Startups A Luz Do Direito Brasileiro

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Dr.

Eduardo Goulart Pimenta


Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG e PUC/MG

Dr. Rodrigo Almeida Magalhães


Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG e PUC/MG

Dr. João Bosco Leopoldino da Fonseca


Professor Titular da Faculdade de Direito da UFMG

Dr. Marcelo Andrade Féres


Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG

LEGAL TALKS:
STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Direção editorial: Luciana de Castro Bastos

Diagramação e Capa: Daniel Carvalho


Igor Carvalho

A regra ortográfica usada foi prerrogativa do autor.

Todos os livros publicados pela Expert Editora


Digital estão sob os direitos da Creative
Commons 4.0
https://br.creativecommons.org/

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


PIMENTA, Eduardo Goulart, NOGUEIRA, Fernanda Araújo Couto e Melo, FONSECA,
Maurício Leopoldina da. (Orgs)
Legal Talks - Startups à luz do direito brasileiro [livro eletrônico]
Eduardo Goulart Pimenta, Maurício Leopoldina da Fonseca, Fernanda Araújo
Couto e Melo Nogueira. - Belo Horizonte - Editora Expert 2020.

ISBN 978-65-992633-1-6 |
290 páginas
1. Direito empresarial - Brasil 2. Startup - Brasil 3. Empreendedorismo - Brasil I.
Título.

Índices para catálogo sistemático: CDD-340


1. Direito : Brasil 340

Disponivel: http://experteditora.com.br

Organizadores

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO
Eduardo Goulart Pimenta
Doutor e Mestre em Direito Empresarial pela UFMG
Professor Adjunto na Faculdade de Direito da UFMG e na PUCMINAS
Procurador do Estado de Minas Gerais

Maurício Leopoldino da Fonseca


Sócio Fundador do JBL Advocacia e Consultoria.
Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais.
Especialista em Direito Administrativo pela UFMG
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Procurador do Estado de Minas Gerais.

Fernanda Araújo Couto e Melo Nogueira


Sócia do JBL Advocacia e Consultoria.
Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais pela Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa.
MBA - Gestão Estratégica de Negócios pela Universidade FUMEC.
Especialista em Contratos pela Fundação Getúlio Vargas.
Graduada em Direito pela Universidade FUMEC.
Membro da Comissão Especial de Proteção de Dados da Secção
OAB/MG.

LEGAL TALKS:
STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Autores

Ana Amélia Ribeiro Sales


Advogada do JBL Advocacia e Consultoria.
Doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra.
Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra.
Pós-graduada em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos
Humanos IUS GENTIUM CONIMBRIGAE (Portugal)
Graduada em Direito pelo Centro Universitário UNA.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
Membro da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com
Deficiência da OAB/MG.

Ana Lúcia Oliveira Carlos de Sousa


Advogada do JBL Advocacia e Consultoria.
Doutoranda em Direito do Trabalho pela Universidade de Buenos
Aires, Argentina.
Mestranda em Direito, Cultura, Segurança e Justiça pela
Universidade de Girona, Espanha.
Especialista em Direito do Trabalho pela Faculdade Pitágoras.
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais.
Graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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Cássia Campos Almeida
Advogada do JBL Advocacia e Consultoria;.
Especializada em Direito e Processo do Trabalho e cursa Pós
Graduação Lato Sensu em Processo Civil nas Cortes Superiores na
Faculdade Mackenzie.
Membro da Comissão de Advocacia nos Tribunais Superiores da
OAB/DF.

Gabriela Cabral Pires


Sócia do JBL Advocacia e Consultoria.
Mestranda na linha de pesquisa de Desenvolvimento e Políticas
Públicas pela PUC Minas.
Pós graduada em Gestão Empresarial com ênfase em Finanças
pela Fundação Dom Cabral.
Especialista em Direito Tributário Internacional pela International
Tax Center - Leiden, na Holanda
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Pós graduada em Direito Tributário pelo CEAJUFE.
Ex-Membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/MG

Guilherme Ribeiro Valadares do Amaral


Advogado do JBL Advocacia e Consultoria;
Pós-graduado em Direito Tributário pela Faculdade Única de
Ipatinga;
Pós-graduando em Direito Administrativo pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais;

LEGAL TALKS:
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Heloísa de Carvalho Feitosa Valadares
Advogada no JBL Advocacia e Consultoria.
Doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais.
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal
Fluminense.
Certified Expert in Compliance pelo Instituto ARC.
Certified Expert in Internal Investigation and Corporate
Counterintelligence pela ESENI.
Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Superior
de Advocacia de Pernambuco.

Karina Rodrigues de Almeida


Advogada do JBL Advocacia e Consultoria.
Pós-Graduada em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais
Pós-Graduada em Gestão de Pessoas pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais.

L EG A L TA L KS :
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Luciana de Castro Bastos
Professora de Direito Empresarial na Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais - PUC MINAS.
Coordenadora do Curso de Especialização a Distância em Legal
Tech: Direito, Inovação e Startups da PUC MINAS VIRTUAL.
Professora de Pós Graduação na área de Direito Empresarial do IEC
PUCMINAS e CEDIN.
Mestre em Direito Privado na Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais - PUCMINAS. Especialista em Direito Civil e Processo
Civil pela Universidade Veiga de Almeida/RJ .

Patrícia de Oliveira Leite Leopoldino


Sócia do JBL Advocacia e Consultoria.
Especialista em Direito Administrativo pela UFMG
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Procuradora do Estado de Minas Gerais.

Raphael Boechat Alves Machado


Sócio do JBL Advocacia e Consultoria; .
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais.
Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais.
Professor de Direito na Graduação e na Pós-Graduação.
Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/MG.

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Capitulo 1
Maurício Leopoldino da Fonseca

ESTRUTURA JURÍDICA DA EMPRESA DE INOVAÇÃO ...........21

1. Estruturação Jurídica das Startups ................................ 21

2. Os Tipos de Sociedade .................................................... 24

3. EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade


Individual .............................................................................. 25

4. Sociedade Limitada ......................................................... 28

5. Sociedade Anônima ......................................................... 34

6. Conclusão......................................................................... 39

Capitulo 2
Patrícia de Oliveira Leite Leopoldino
Karina Rodrigues de Almeida

RELAÇÕES DE TRABALHO NAS STARTUPS ........................................40

1. Contratação Trabalhista ................................................... 42

2 - Outras Formas de Contratação ....................................... 50

2.1 - Contrato de Estágio ...................................................... 50

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2.2 - Contrato de Prestação de Serviço .............................. 53

2.3 - Terceirização de Serviços – Lei 6.019/74.................. 58

Conclusão............................................................................. 66

Referências Bibliográficas: .................................................. 68

Capítulo 3
Eduardo Goulart Pimenta
Luciana de Castro Bastos

STARTUPS E CAPITAL: INSTRUMENTOS JURÍDICOS DE


REGULAÇÃO DOS INVESTIMENTOS FINANCEIROS EM ATIVIDADES
EMPRESARIAIS ................................................................................70

1 - A empresa e a necessidade de capital .......................... 70

2 – Sócios e credores: as duas modalidades de


fornecedores de capital à empresa ................................... 72

3 – Ações e quotas: aspectos comuns e distinções......... 76

4 – Os denominados investidores “anjo” e o “capital


semente”............................................................................... 79

5 – As “opções” de ações ou quotas e o financiamento de


startups ................................................................................ 82

LEGAL TALKS:
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6 – As denominadas “incubadoras” e as “aceleradoras” .. 84

7 – Os Fundos de investimento e “venture capital” ........... 88

Referências .......................................................................... 90

Capítulo 4
Ana Amélia Ribeiro Sales

STARTUPS E DIREITOS DO CONSUMIDOR ...................................... 91

Propositura de ações no domicílio do consumidor ............ 94

2 - Direito de arrependimento ............................................... 97

3 - Responsabilidade Objetiva do Fornecedor .................... 98

4 - Repetição do indébito em dobro ................................... 101

5 - Interpretação das cláusulas contratuais ...................... 104

6 - Direito à informação ...................................................... 107

7 - Ônus da prova ................................................................ 111

Conclusão............................................................................ 113

Bibliografia........................................................................... 114

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Capítulo 5
Heloisa de Carvalho Feitosa Valadares

PROTEÇÃO DE DADOS E STARTUPS ............................................. 115

1 – Proteção de Dados como direito e como dever .......119

2 – Como a proteção de dados impacta o ecossistema das


startups .............................................................................. 124

2.1 - Mudança de paradigma: privacidade desde a


concepção (privacy by design) e privacidade por padrão
(privacy by default) ............................................................126

2.2 - Termos de uso .......................................................... 128

2.3 – Política de privacidade .............................................129

2.5 - Guarda e prova do consentimento e dos requisitos 131

2.6 - Governança de dados ................................................132

2.7 – Instituição de uma Política de Segurança da


Informação (SI) .................................................................. 135

2.8 – Reforço da cultura de Proteção de Dados e Segurança


da Informação .................................................................... 138

2.9 – Melhoramento contínuo ..........................................140

3 – Aparente conflito entre o MCI e a LGPD ....................143

4 - Como agir após a entrada em vigor da LGPD .............145


LEGAL TALKS:
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4.1 - Pontos de atenção ...................................................146

5 – Práticas de governança de dados como vantagem


competitiva ........................................................................ 147

6 – Referências recomendadas para se aprofundar no tema


............................................................................................. 150

Capítulo 6
Raphael Boechat Alves Machado
Guilherme Ribeiro Valadares do Amaral

AS STARTUPS E A PROTEÇÃO DA CONCORRÊNCIA: ANÁLISE DOS


CASOS UBER, NUBANK E DAS CRITPOMOEDAS ..........................152

1.Introdução ....................................................................... 152

2. Princípios Informadores do Direito Econômico para as


Start Ups ............................................................................. 153

1. Princípios Jurídicos: Definição e Aplicação ................153

2. Princípio da Concretude ................................................157

3. Princípio da Mutabilidade..............................................159

3. Princípios Informadores do Direito Econômico para as


Start Ups ............................................................................. 162

4. Defesa da Concorrência e Punição das Infrações de


Mercado.............................................................................. 166
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5. O Caso Uber ................................................................... 171

5. O Caso Nubank .............................................................. 176

6. O Caso das Criptomoedas ............................................179

5. Considerações Finais ....................................................182

Referências Bibliográficas .................................................184

Capítulo 7
Fernanda Araújo Couto e Melo Nogueira

GOVERNANÇA CORPORATIVA E CONFORMIDADE NAS STARTUPS


.........................................................................................................187

1 - Governança Corporativa – conceito, princípios e origens:


............................................................................................. 188

Conclusão: .......................................................................... 205

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16 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Capítulo 8
Gabriela Cabral Pires

POR QUE COMPLIANCE TRIBUTÁRIO PARA STARTUPS? ................210

1 - Introdução .................................................................... 210

2 - Compliance tributário: para além do cumprimento das


obrigações acessórias ......................................................212

3 - Conflitos tributários envolvendo as startups: a natureza


jurídica da atividade exercida............................................216

3.1 - Marketplace e e-commerce ......................................219

3.2 – Comercialização e desenvolvimento de “software” 224

3.3 - Classificação das atividades de prestação de serviços


............................................................................................. 228

4 – Conclusão: Por que compliance tributário nas startups?..


232

5 – Referências Bibliográficas ..........................................236

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Capítulo 9
Raphael Boechat Alves Machado
Cássia Campos Almeida

RELAÇÕES E ACORDOS ENTRE OS SÓCIOS ...................................240

I - Situação Atual do País ................................................... 240

II - A Pessoa Jurídica e o Risco .........................................242

III - Responsabilidades dos sócios na PJ .........................246

Capítulo 10
Eduardo Goulart Pimenta

DIREITO DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL: A TUTELA JURÍDICA DA


INOVAÇÃO EMPRESARIAL.............................................................257

1 – Introdução .................................................................... 258

2 - A proteção à propriedade industrial e sua evolução


histórica .............................................................................. 258

3 – A proteção supra nacional à Propriedade Industrial .265

3.2 - O Modelo de utilidade ...............................................275

3.3 - O Desenho industrial .................................................278

3.4 – Marca ....................................................................... 283


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PREFÁCIO
É com imensa satisfação e alegria que recebi o convite do dr.
Eduardo Goulart para fazer o prefácio do segundo volume da série
Legal Talks: Startups à Luz do Direito Brasileiro. Em 2017, participei
da organização da primeira edição e, ainda como profissional do
direito, escrevi o artigo que trouxe o contexto desse mercado tão
fascinante de tecnologia e negócios digitais. 

Esse universo das startups, inovação e tecnologia realmente


me capturou e, poucos meses depois, fundei o Órbi Conecta, hub
de inovação em Belo Horizonte, juntamente com empreendedores
da comunidade de startups da capital mineira e grandes empresas
do nosso país: MRV, Localiza e Inter. Sou grata à JBL Advocacia e
Consultoria pelo apoio e por acreditar que nosso país pode ser
transformado pelo empreendedorismo tecnológico.

Desde então, através do Órbi, venho fomentando o


crescimento do ecossistema de tecnologia, além de ajudar direta e
indiretamente dezenas de startups a se desenvolverem e empresas
tradicionais a iniciarem seu processo de transformação digital.

Apesar de não mais exercê-lo como profissão, o Direito


continua sendo parte da minha rotina e com certeza é uma
das ferramentas mais básicas e essenciais para o sucesso de
qualquer negócio. Sabemos que inúmeros empreendedores se
apaixonam rapidamente por suas soluções, trabalham dia e noite
incansavelmente para colocá-las no mercado, contudo, com
frequência, negligenciam uma sólida estruturação jurídica. 

L EG A L TA L KS :
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Assinar contratos, estabelecer acordos, isto é, iniciar um
compromisso entre sócios, clientes, fornecedores, investidores
e colaboradores sem compreender a importância das nuances
jurídicas desses relacionamentos, sem estar ciente dos riscos
envolvidos, é o mesmo que vendar os olhos e sair dirigindo um
carro a 100km por hora. Isso mesmo, é loucura.

Estamos em um país com um ordenamento jurídico bastante


complexo. Ainda que seu produto esteja totalmente aderente à
necessidade de mercado, tenha inúmeros clientes, esteja faturando
bem, tenha uma equipe de alta performance, ignorar obrigações
tributárias, por exemplo, pode trazer um dano financeiro a ponto
de prejudicar severamente a continuidade do negócio. 

É por isso que a continuidade dessa obra se faz tão necessária.


Parabenizo o dr. Maurício Leopoldino, dr. Eduardo Goulart e dra.
Fernanda Nogueira por se empenharem nesse segundo volume e
por organizar aqui artigos com temas tão relevantes. JBL Advocacia
e Consultoria é um dos escritórios mais humanos que conheço. O
propósito de fazer o bem para a sociedade faz parte da cultura e se
expressa na rotina desse ambiente que tive a honra de fazer parte.
Essa obra é a extensão desse DNA e pode contribuir fortemente
para a jornada árdua de cada empreendedor e empreendedora
desse país. 

Desejo que você aproveite cada linha aqui escrita e que os


conhecimentos adquiridos possam trazer luz e segurança no meio
de tantas escolhas difíceis que o fundador de uma startup precisa
fazer. 

Anna Martins - Co-Fundadora e CEO Órbi Conecta

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Capitulo 1

ESTRUTURA JURÍDICA DA
EMPRESA DE INOVAÇÃO
Maurício Leopoldino da Fonseca

1. Estruturação Jurídica das Startups

Qual é a melhor hora e qual a melhor forma para uma


Startup se estruturar?

A internet e as novas tecnologias, inaugurando a era digital


ou era da informação, vem transformando o modo de agir e de
comportar-se das pessoas, que passaram a ter, em qualquer parte
do mundo, um amplo e rápido acesso a todo e qualquer tipo de
informação.

Atualmente, quando você precisa de algum produto, serviço


ou ainda apenas de uma informação rápida sobre algo, o que você
faz? Pesquisa no “Google”.

O “Google” e outras tecnologias disponíveis se, por um lado,


tornaram-se ferramentas indispensáveis do nosso dia a dia, seja em
casa, no trabalho ou no lazer, por outro, constituem oportunidades
de novos negócios.

Dentro desse contexto, estamos assistindo ao aparecimento


de pequenos empreendedores que se juntam para desenvolverem
novos negócios, que se destinam à criação de produtos e serviços,
como soluções inovadoras para as novas demandas da sociedade.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 21
Assistimos ao surgimento das startups, pequenas empresas
que se desenvolvem com o objetivo de estabelecer um modelo
novo de negócio, com soluções inovadoras e criativas.

As startups são formadas pela união de pequenos


empreendedores que, à semelhança de outros tipos de
empreendimentos, repartem esforços e cooperam mutuamente
ampliando a capacidade de investimento, tanto econômico, como
de tempo e de produção, através da contribuição financeira,
complementação de conhecimento técnico e de habilidades,
distribuição de responsabilidades, compartilhamento de decisões
e divisão de riscos.

Entretanto, para que esses pequenos empreendedores


possam, de forma organizada, alcançar os objetivos traçados,
que não alcançariam de forma isolada, devem se organizar
juridicamente através da constituição de uma sociedade, não só
com o objetivo de criarem uma nova estrutura que possa contrair
direitos e obrigações em nome próprio, mas também que possua
um patrimônio distinto do de seus sócios, restringindo e limitando
a responsabilidade e os riscos do empreendimento.

Para isso, precisam se organizar juridicamente, através da


constituição formal de uma “sociedade”.

A sociedade, à semelhança do casamento, pode ser saudável


e produtiva, desde que os sócios tenham afinidade, estejam
alinhados a respeito dos objetivos que pretendem atingir, sejam
complementares, tenham visões semelhantes sobre o negócio
e possuam o mesmo grau de comprometimento, mas acima de
tudo desde que estabeleçam com antecedência as regras que
pretendem seguir. A combinação das regras deve ser feita antes

LEGAL TALKS:
22 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
de iniciar a sociedade, quando as relações estão boas e o cenário
é favorável.

A formalização da sociedade, que se concretiza através da


celebração do contrato social, permite o estabelecimento das
regras do jogo entre os sócios ou empreendedores, e, por isso,
deve ser feito o quanto antes.

A constituição de uma sociedade garante uma organização


interna, por meio do estabelecimento dos direitos e deveres dos
sócios, da divisão das tarefas e funções, da forma de participação
nos lucros e nos prejuízos, etc., e também, uma ordem externa,
por meio da criação de uma nova pessoa (pessoa jurídica) distinta
daquela de seus sócios, que se relaciona diretamente com
terceiros.

As sociedades, enquanto pessoas jurídicas são entidades


criadas para a consecução organizada das finalidades instituídas
por seus criadores, possuem alguns atributos próprios, tais como
nome, nacionalidade, domicílio, existência própria e distinta da
dos seus sócios, capacidade de contrair direitos e obrigações e
patrimônio próprio e autonomia para administrá-lo.

O primeiro passo para a constituição de uma sociedade é


escolher o modelo societário e celebrar o contrato social, por meio
do qual se estabelece entre outras questões, a responsabilidade e
o percentual de participação de cada sócio, e a forma de saída dos
sócios e as condutas que devem ser adotadas nesse caso.

Mas qual é o melhor modelo societário?

Esse é um tema que os empreendedores deixam para um


segundo plano, e, normalmente, delegam a escolha para um

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 23
contador, que, por sua vez, se utiliza de “formulários padrões”
que, se antes eram adquiridos em bancas de jornais, atualmente,
podem ser encontrados em diversos sites da internet.

A escolha a ser feita pelos sócios deve, contudo, sempre


contar com a assessoria de profissionais especializados e
competentes.

Não existe uma fórmula pronta para a escolha do modelo


societário adequado para cada startup.

Para a correta escolha do tipo societário, além de conhecer


as características de cada um dos modelos de sociedade, suas
vantagens e desvantagens e os direitos e obrigações decorrentes
de cada um deles, é importante avaliar as ambições, os perfis e as
características dos empreendedores, a participação societária de
cada um, o interesse de captar investimento externo, a possibilidade
da entrada de sócios investidores ou da aquisição de participação
por seus colaboradores, a forma de divisão de tarefas e funções, e,
também, a forma de repartição dos lucros, dentre outras informações.

2. Os Tipos de Sociedade

A legislação brasileira oferece diversos tipos societários,


cada um dos quais atende às necessidades específicas de cada
modelo de negócio.

Passemos à análise dos principais modelos societários


disponíveis.

LEGAL TALKS:
24 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
3. EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Individual

A EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada


é a solução para os empreendedores que querem sozinhos
desenvolver uma atividade ou para aqueles que ainda não
encontraram um sócio para ajudar no negócio.

Muitos empreendedores quando precisavam “abrir” sua


empresa, precisavam convidar parentes para se tornarem sócios.
Eles se tornavam o sócio fictício ou sócio fantasma, sócio que nunca
aparecia e não tinha nenhum conhecimento sobre o negócio.

A EIRELI é um modelo mais simplificado de empresa, que


visa acabar com o sócio fictício. Ela é a forma legal que permite
ao empreendedor, individualmente, criar uma pessoa jurídica com
direitos e obrigações próprios que não se confundem nem se
misturam com os direitos e obrigações de seu titular, ou seja, o
empreendedor enquanto pessoa física.

Além de permitir a criação da empresa de um sócio só,


permite a separação do patrimônio pessoal do titular do da empresa
e, consequentemente, a limitação dos riscos e da responsabilidade
de seu titular, desde que o titular atue com transparência, não
permitindo a confusão patrimonial, e desde que não aja com abuso
ou fraude.

A responsabilidade do titular limitada ao valor do capital social


subsiste desde que o titular atue de acordo com o ordenamento
jurídico (a lei) e desde que mantenha a separação patrimonial,
não admitindo que o seu patrimônio pessoal se confunda com
o da empresa, o que ocorreria, por exemplo, quando a empresa
passasse a pagar as contas pessoais do titular.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 25
A constituição da EIRELI é semelhante à das demais
sociedades. É necessária a elaboração de um documento de
constituição, o qual deve ser levado a registro no Cartório de
Registro Civil de Pessoas Jurídicas ou na Junta Comercial do Estado
no qual o negócio será implantado; e após o registro, é necessário
promover a inscrição da empresa junto ao Cadastro Nacional de
Pessoas Jurídicas perante a Receita Federal, para obtenção do
“CNPJ”.

O documento de constituição deve conter, obrigatoriamente,


(i) o nome e qualificação completa do titular;

a denominação (nome) da empresa, do qual constará como


última expressão a abreviatura “EIRELI”; (iii) o capital, expresso em
moeda corrente, o qual deve ser integralizado pelo titular no ato
de constituição; (iv) o endereço completo da sede bem como das
filiais, se houver; (v) a descrição completa e detalhada do objeto da
empresa; (vi) a indicação do prazo de duração da empresa; (vii) a
data de encerramento do exercício social, quando não coincidente
com o ano civil; (viii) a(s) pessoa(s) natural(is) incumbida(s) da
administração da empresa, e seus poderes e atribuições; (IX) a
qualificação completa do administrador, quando este não for
o titular da empresa; (x) a declaração de que o seu titular não
participa de nenhuma outra EIRELI.

Para a criação de uma EIRELI, deve-se atender a algumas


exigências legais, entre elas, possuir um capital social de, pelo
menos, de 100 (cem) vezes o maior salário mínimo vigente no País,
o qual deve ser integralizado pelo titular no ato de constituição da
empresa. Sem esse valor mínimo e sem a sua integralização total
não é possível “abrir” uma EIRELI.

LEGAL TALKS:
26 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Esse capital mínimo serve como garantia para os empregados,
fornecedores e os demais credores, pois representa o menor valor
do patrimônio à disposição para garantir as obrigações da empresa.

Ora, se, por um lado, a EIRELI permite a separação do


patrimônio pessoal do titular do patrimônio da empresa e a
limitação da responsabilidade no exercício individual da empresa,
por outro lado, o capital social representa a garantia mínima da
empresa para satisfação de suas obrigações.

Assim, exemplificativamente, em caso de falência, o


patrimônio pessoal do titular (em princípio) não responderá pelas
dívidas da empresa; que serão garantidas e suportadas pelo seu
capital social.

Afora a separação do patrimônio pessoal do titular do da


empresa e a limitação dos riscos e da responsabilidade ao valor
do capital social integralizado, que responderá pelas obrigações
da empresa, e apesar das restrições estabelecidas em lei, como
a impossibilidade de o titular possuir mais de uma EIRELI e a
necessidade de capital social mínimo, a EIRELI apresenta algumas
vantagens em relação ao empresário individual que quer exercer
uma atividade econômica e, também, em relação a sociedades em
geral:
• a EIRELI pode desenvolver atividades em diversos ramos,
que abrangem as atividades rurais, industriais, comerciais
e de serviços, diversamente do Microempreendedor
Individual (MEI) que tem suas atividades limitadas e
restritas a apenas alguns ramos específicos;

• o empreendedor que deseja trabalhar sozinho ou não


possui sócio para constituir uma sociedade, pode

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 27
constituir uma pessoa jurídica de responsabilidade
limitada;

• a EIRELI não tem limitação de faturamento, diversamente


do Microempreendedor Individual (MEI) que não pode ter
faturamento anual superior a R$ 81.000,00;

• ela pode optar pelo regime de tributação mais adequado


ao seu tamanho, podendo optar inclusive pelo simples
nacional, já o MEI obrigatoriamente só pode ser
enquadrado no simples nacional;

Esses são alguns aspectos que o empreendedor deve considerar


antes de optar pela constituição de uma EIRELI.

4. Sociedade Limitada

A sociedade limitada ou sociedade por quotas de


responsabilidade limitada corresponde ao tipo societário mais
utilizado pelos empreendedores. Mais de 90% das sociedades
criadas no Brasil são sociedades limitadas.

As sociedades limitadas surgiram como uma solução para os


pequenos e médios empresários. Enquanto a sociedade anônima
é um modelo que se amolda mais adequadamente a grandes
empreendimentos, os pequenos e médios empreendedores
necessitavam de um modelo societário menos complexo e com
menores formalidades do que a sociedade anônima, mas que a
responsabilidade dos sócios fosse, também, limitada ao seu capital
social; assim, para atender a essa demanda foi criada a sociedade
por quotas de responsabilidade limitada.

LEGAL TALKS:
28 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
A limitação da responsabilidade é fruto de uma necessidade
econômica e social, que permite àqueles que desejam empreender
dividir os riscos do empreendimento com os demais operadores
do mercado.

A sociedade limitada, como o próprio nome indica, é um


tipo societário no qual a responsabilidade dos sócios é limitada
ao valor de suas quotas, desde que o capital social esteja todo
integralizado. A integralização dá-se com a transferência pelo
sócio de determinado bem ou quantia em dinheiro de seu
patrimônio pessoal para o da sociedade, o que pode ocorrer no ato
de constituição da sociedade ou em momento futuro, em parcela
única ou em várias parcelas. A partir do momento em que o capital
social é todo integralizado pelos sócios, que, em contrapartida,
adquirem uma participação societária, a responsabilidade dos
sócios fica limitada ao valor de suas respectivas participações
(quotas) e o patrimônio pessoal dos sócios não pode ser (em
princípio) afetado pelas obrigações assumidas pela sociedade.

Entretanto, enquanto o capital social não estiver todo


integralizado, todos os sócios serão solidariamente responsáveis
pelo valor que falta a ser integralizado, ou seja, ainda que algum
sócio já tenha integralizado sua quota parte, enquanto o capital
social não estiver todo constituído, todos os sócios, inclusive aquele
que já integralizou sua parte, continuam responsáveis, perante
terceiros, pelo valor que falta a ser transferido para a sociedade.

O capital social pode ter qualquer valor. Não existe um


valor mínimo como acontece na EIRELI. O capital social é dividido
em quotas, as quais são adquiridas pelos sócios na proporção
das respectivas contribuições feitas pelos sócios à sociedade.
E os sócios podem, cada um, possuir a mesma quantidade de

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 29
quotas, ou quantidades diferentes, desde que tenham realizado
contribuições em proporções iguais ou diferentes. O voto nas
reuniões ou assembleias, como direito do sócio, é exercido na
mesma proporção da participação no capital social: o sócio que
possuir maior número de quotas terá um maior número de votos.

A responsabilidade dos sócios está limitada ao valor de


suas quotas, mas, à semelhança do que acontece na EIRELI, em
algumas situações as obrigações podem ultrapassar o limite
da participação dos sócios na sociedade e atingir o patrimônio
pessoal dos sócios e administradores. Isso acontece quando
os sócios e administradores agem com abuso da personalidade
jurídica, ou seja, quando agem com desvio da finalidade para a
qual a sociedade foi criada, ou quando promovem a confusão do
patrimônio da sociedade com o patrimônio pessoal.

Assim, para que a responsabilidade dos sócios fique


limitada ao valor de suas quotas, é importante que os sócios e
administradores cuidem para que a sociedade atue sempre de
acordo com a finalidade para a qual foi criada, bem como não
permitam que o patrimônio da sociedade e o seu patrimônio pessoal
se confundam, o que ocorreria quando as despesas pessoais dos
sócios fossem pagas diretamente pela própria sociedade ou vice-
versa. Além disso, os sócios e administradores, também, devem
cuidar para que no âmbito das relações com os consumidores, não
aconteça abuso de direito, excesso de poder ou infração à lei; para
que no âmbito do direito do trabalho, a sociedade não viole ou
descumpra os direitos trabalhistas de seus empregados; ou ainda,
para que, no âmbito do direito econômico ou do direito ambiental,
a sociedade não cometa infrações à ordem econômica ou não
pratique crimes ambientais, pois em todas essas situações pode
ser determinada a desconsideração da personalidade jurídica,

LEGAL TALKS:
30 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
e todo o patrimônio pessoal dos sócios e administradores pode
responder pelas obrigações da sociedade.

Para se constituir uma sociedade limitada basta a vontade


de uma ou mais pessoas, que podem ser naturais ou jurídicas.

No contrato social, por exigência legal, devem constar


algumas informações obrigatórias, tais como, (a) a qualificação dos
sócios, que podem ser pessoas naturais ou jurídicas; (b) a razão
ou denominação social, o qual deve vir sempre acompanhado
da expressão “limitada” ou, na sua forma abreviada, “Lt.da”; (c) a
descrição detalhada do objeto social; (d) a indicação do endereço da
sede e, se houver, de suas filiais; (d) a indicação do prazo de duração
da sociedade, sendo, usualmente, adotado o prazo indeterminado;
(e) o capital social, indicando o seu valor total, o número de quotas
em que é dividido e os seus respectivos titulares, bem como a
forma e o tempo em que o capital deve ser integralizado pelos
sócios; (f) a indicação do(s) administrador(es) e a especificação
de seus poderes; (g) a forma de participação dos sócios nos
lucros e nos prejuízos sociais; (h) e, por fim, a previsão de que a
responsabilidade dos sócios limita- se ao valor de suas quotas e de
que os sócios não respondem subsidiariamente pelas obrigações
sociais. Além das disposições obrigatórias, os sócios podem ainda
estipular, nos limites permitidos por lei, outras cláusulas e regras
de interesse, tais como a forma de ingresso de novos sócios, os
critérios para o exercício do direito de retirada, a possibilidade
de exclusão do sócio minoritário, o estabelecimento de quórum
especial para determinadas matérias a serem deliberadas pelos
sócios, etc.

Após a celebração do contrato social, este deve ser levado


a registro na Junta Comercial do Estado no qual a sociedade tem

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 31
sua sede. Somente com o registro na Junta, a sociedade está
efetivamente constituída. E após o registro, é necessário promover
a inscrição da empresa junto ao Cadastro Nacional de Pessoas
Jurídicas perante a Receita Federal, para obtenção do “CNPJ”, junto
à Secretaria de Estado da Fazenda (para inscrição de ICMS) e junto
à Prefeitura Municipal, para obtenção do alvará de funcionamento
e localização. Afora essas exigências mínimas, dependendo do
objeto social que a empresa pretende explorar, pode, também, ser
necessária a autorização de outros órgãos e conselhos de classe,
como a vigilância sanitária, etc.

Para a realização da gestão da sociedade limitada, os


sócios devem indicar uma ou mais pessoas naturais que ficarão
incumbidas da administração da sociedade. Essas pessoas podem
ser sócias ou não, e podem ser indicadas no próprio corpo do
contrato social ou em termo apartado.

O administrador, enquanto tal, não se responsabiliza pelas


obrigações sociais, mas responde por culpa ou dolo no exercício
de suas funções.

A sociedade limitada pode possuir, por opção dos sócios


(não obrigatoriamente), um Conselho Fiscal, o qual será composto
por no mínimo três pessoas, sócios ou não sócios, e que terá como
função fiscalizar a administração da sociedade. Contudo, como a
fiscalização orgânica feita pelo Conselho Fiscal tem se mostrado
ineficiente, este é um órgão pouco usual nas sociedades limitadas,
que, quando precisam ser submetidas a uma fiscalização,
acabam optando pela fiscalização externa, feita por auditores
independentes.

Nas sociedades limitadas, regidas supletivamente pela lei


da sociedade anônima, os sócios, todos ou alguns, podem ainda

LEGAL TALKS:
32 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
celebrar um acordo paralelo (acordo de quotistas), que tem
como objetivo disciplinar a relação interna entre os sócios, sobre
determinadas matérias que não tenham sido regulamentadas no
próprio contrato social.

O acordo de quotista visa regulamentar questões


importantes, que devem ser negociadas entre os sócios antes que
ocorra qualquer desentendimento, e que, por dizerem respeito
apenas aos sócios, não devam, estrategicamente, figurar no
contrato social.

Por meio do acordo de quotistas (espécie de contrato


parassocial), os sócios podem regular o exercício do direito de
voto e do poder de controle, estabelecer regras sobre a alienação
de quotas e o direito de preferência na aquisição das mesmas,
a entrada e saída de sócios, regras mais detalhadas sobre a
distribuição de lucros, os poderes do sócio investidor, a forma de
aumento de capital, entre outras matérias.

A sociedade limitada, seja por suas características próprias,


como a limitação da responsabilidade dos sócios, seja pela
simplicidade dos procedimentos de constituição, seja pela
organização interna que permite um melhor controle de sua gestão,
seja pela sua estrutura que permite acolher investimentos externos,
costuma ser o modelo societário preferido dos empreendedores
que pretendem desenvolver um negócio de pequeno ou médio
porte.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 33
5. Sociedade Anônima

Quando o negócio cresce ou quando os empreendedores


desejam fazer um negócio escalável, sobretudo, através da
captação de investimento externo, a solução que normalmente
se adota é a constituição de uma sociedade anônima ou a
transformação da sociedade em S/A.

Isso não significa que as empresas organizadas sob a forma


de sociedade anônima sejam necessariamente maiores do que
aquelas organizada sob forma de sociedade limitada. Existem
grandes empresas estruturadas sob a forma de sociedade
limitada. Entretanto, as sociedades anônimas constituem o modelo
societário que oferece maiores vantagens na captação de recursos
externos.

A sociedade anônima, também, denominada companhia,


é um tipo societário em que o capital social é dividido em partes
iguais, representadas por títulos negociáveis, denominados ações,
que podem ser livremente transferidas pelos sócios, os quais são
chamados de acionistas.

A responsabilidade do acionista é limitada ao valor das ações


que ele adquire para ingressar na sociedade. O acionista não é
responsável pela integralização do capital social, como ocorre nas
sociedades limitadas. Isso se deve ao fato de que o acionista nem
sempre participa da administração da sociedade, o que é feito por
órgãos da sociedade. Assim, a responsabilidade do acionista é
ainda mais reduzida, com o objetivo de não dificultar ou restringir o
seu ingresso na companhia.

LEGAL TALKS:
34 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
As ações, como títulos livremente negociáveis, dão aos
seus titulares a qualidade de acionista. Entretanto, como existem
variados tipos de acionistas, a lei houve por bem criar diferentes
espécies de ações que atendam aos diferentes interesses de cada
um dos tipos de acionistas.

Existem os acionistas que têm pretensões de participar


efetivamente da administração da companhia; mas existem aqueles
que desejam apenas auferir vantagens econômicas (investidores),
seja através da negociação das ações, seja através do recebimento
de dividendos. Em contrapartida aos variados tipos de acionistas,
existem diferentes espécies de ações, umas que asseguram todos
os direitos aos seus titulares, inclusive o direito de voto; outras que
garantem vantagens patrimoniais, mas não asseguram o direito de
voto.

Existem, assim, as ações ordinárias, que são aquelas que


conferem os direitos comuns ao acionista (direito de voto, de
participar na participação dos lucros, entre outros), sem privilégios
ou vantagens. As ações ordinárias podem ainda ser de classes
diferentes, em razão (1) da sua conversibilidade em ações
preferenciais, (2) da exigência de nacionalidade brasileira do
acionista, e (3) do direito de voto em separado para o preenchimento
de cargos de determinados cargos de órgãos de administração.

E existem, também, as ações preferenciais que são aquelas


que possuem acesso preferencial a determinadas vantagens ou
privilégios, e, normalmente, em compensação aos privilégios
concedidos, os seus titulares não possuem direito de voto. Assim
como as ordinárias, as ações preferenciais podem ser de classes
diferentes, seja por ter prioridade na distribuição do dividendo,
fixo ou mínimo, seja por ter prioridade no reembolso do capital,

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 35
ou ainda essas duas vantagens cumuladas, seja ainda por possuir
determinados direitos políticos, como o direito de eleger em
separado algum membro da administração da companhia ou
como o poder de veto em relação a determinadas matérias.

Essa variedade de espécies e classes de ações permite


atrair um maior número de acionistas, garantindo, por um lado,
aos empreendedores a manutenção do comando da companhia,
e garantindo, por outro, aos investidores certos privilégios ou
vantagens econômicas em virtude dos aportes realizados.

Além das ações, as sociedades anônimas podem lançar mão


da emissão de outros títulos mobiliários para captação de recursos
e, assim, permitir o autofinanciamento da empresa, sem os riscos e
os custos do mercado financeiro, tais como “partes beneficiárias”,
“debêntures”, “bônus de subscrição” e “comercial papers”.

A sociedade anônima pode adotar a forma de sociedade


aberta ou fechada. São abertas, as sociedades em que as
ações podem ser negociadas publicamente na bolsa de valores
(mercado de valores mobiliários), o que exige o registro e atrai a
fiscalização e o controle da CVM (Comissão de Valores Mobiliários).
Já as sociedades fechadas são aquelas em que as ações circulam
de forma restrita, não sendo admitida a negociação de ações em
bolsa de valores.

A constituição de uma sociedade anônima não é um


procedimento simples, ao contrário, é um procedimento complexo,
que é dividido em três fases: (1) providências preliminares, (2)
constituição propriamente dita e (3) providências complementares.

Em síntese, antes da constituição propriamente dita, é


necessário, preliminarmente, promover a subscrição de todo

LEGAL TALKS:
36 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
o capital social, o que deve ser feito por duas ou mais pessoas,
que se comprometem a pagar o todo o capital social. Após a
subscrição, as pessoas que subscreveram o capital social devem
promover a sua integralização, a qual não precisa ser feita de
forma integral ou imediata, sendo exigida a integralização mínima
de 10% do preço de emissão das ações em dinheiro. Por fim, os
fundadores da nova companhia devem proceder ao depósito dos
valores correspondentes à integralização inicial em uma instituição
financeiro, em nome do subscritor e a favor da sociedade.

Cumpridas as providências preliminares, pode-se dar início


aos atos de constituição propriamente ditos da nova sociedade.
Os fundadores devem convocar, observadas todas as exigências
legais, uma assembleia geral dos subscritores do capital social,
na qual o estatuto da companhia será votado e aprovado e os
primeiros administradores serão eleitos, e a sociedade, ao final,
será declarada constituída. Nesta fase, as exigências legais variam
caso a subscrição das ações seja pública (destinada ao mercado
aberto de valores) ou particular. E no caso de sociedades fechadas
admite-se, ainda, a constituição por meio de escritura pública.

Após a constituição da sociedade, os primeiros


administradores devem cumprir as providências complementares,
que consistem no arquivamento de todos os documentos de
constituição na Junta Comercial do Estado em que está situada
a sede da sociedade, e na publicação dos atos constitutivos, e,
ainda, se for o caso, na transferência da propriedade dos bens
que eventualmente tenham sido utilizados para a subscrição do
capital social. Dentre as providências complementares, poder-
se-ia incluir, também, a inscrição da companhia junto ao Cadastro
Nacional de Pessoas Jurídicas perante a Receita Federal, para
obtenção do “CNPJ”, junto à Secretaria de Estado da Fazenda (para

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 37
inscrição de ICMS) e junto à Prefeitura Municipal, para obtenção do
alvará de funcionamento e localização. Após o cumprimento de
todas essas providências, a nova companhia estará pronta e apta
para funcionar regularmente.

As sociedades anônimas possuem uma estrutura complexa


em virtude das várias exigências legais que precisam cumprir e
atender. Precisam, por exemplo, promover uma vez por ano uma
assembleia geral, composta por todos os acionistas, para aprovar
as contas e demonstrações financeiras da sociedade; possuir uma
diretoria, composta por no mínimo dois membros, a quem incumbe
a representar a companhia e praticar os atos necessários ao seu
funcionamento regular; possuir livros especiais para a escrituração
contábil; e ainda emitir várias demonstrações financeiras.

Se por um lado, essas exigências acarretam uma maior


complexidade da estrutura das sociedades anônimas, por outro
lado, asseguram uma maior segurança para aqueles que desejam
aportar investimentos, em razão de um melhor controle financeiro
e gerencial da sociedade.

Para concluir, pode-se dizer que o modelo da sociedade


anônima passa a ser interessante para uma empresa quando ela
possui sócios (acionistas) com diferentes perfis e interesses e
ela precisa atrair investimentos mais relevantes para alavancar o
desenvolvimento de seu negócio, o que exige, em contrapartida,
uma estrutura empresarial mais complexa.

LEGAL TALKS:
38 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
6. Conclusão

A escolha, portanto, da melhor e mais adequada estrutura


societária é um grande desafio que os empreendedores não
podem se descuidar. Ainda que a estrutura possa ser alterada,
dependendo da fase do empreendimento, os empreendedores
devem sempre contar com a orientação de profissionais
especializados e competentes, pois a escolha poderá atrapalhar
ou impulsionar o desenvolvimento do negócio.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 39
Capítulo 2

RELAÇÕES DE TRABALHO NAS


STARTUPS
Patrícia de Oliveira Leite Leopoldino
Karina Rodrigues de Almeida

Um dos pontos sensíveis para o empreendedor de startup


é a questão relacionada às relações de trabalho, notadamente
porque numa startup, normalmente, as relações são de amizade
e baseadas na informalidade. Em regra, principalmente nos
momentos iniciais da sua existência, há certa resistência, em
ambos os lados das relações, à formalização.

No entanto, a startup é um negócio como outro qualquer,


sujeito a todas as regras legais vigentes no país, e deve, desde o
seu nascedouro, ser cuidada como tal.

O empreendedor de uma startup não pode ser simplista


e imaginar que somente deve pensar em envidar esforços para
levar adiante um modelo de negócio inovador, rentável e que
tenha valor de mercado. Esse desafio é fundamental, mas não
é suficiente, pois muitos equívocos praticados ao longo do
caminho, pelo desconhecimento das normas legais vigentes ou
pela negligência na aplicação dessas normas, podem fazer com
que o negócio não prospere e termine muito antes do previsto.

Os equívocos, muitas vezes cometidos no trato das relações


de trabalho que se constituem ao longo da existência da startup,

LEGAL TALKS:
40 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
podem gerar riscos insustentáveis pelo negócio, inviabilizando-o.

Esse é um ponto muitas vezes difícil de ser assimilado pelo


empreendedor, o que é compreensível, pois é realmente difícil
imaginar a conciliação entre o empreendedorismo, a inovação, a
velocidade das ideias e das necessidades desse tipo de negócio,
com uma legislação trabalhista retrógrada, cujas normas centrais
remontam à década de 40 ou que estão incrustadas na Constituição
Federal, não permitindo, em regra, qualquer flexibilização.

O fato de a startup estar em estágio inicial, não significa que


ela não esteja sujeita ao cumprimento das normas trabalhistas.
Mesmo que não formalizada a contratação, a depender das
condições de trabalho, já poderá ser caracterizada uma relação de
trabalho, com todas as consequências legais, como o pagamento
de férias, 13º salário, recolhimento de FGTS, dentre outros direitos,
como implicações financeiras que, muitas vezes, não poderão ser
suportados pelo empreendedor.

Um dos princípios básicos do Direito do Trabalho é o


chamado “Princípio do Contrato Realidade” que estabelece
a prevalência da realidade sobre a forma eleita pelas partes
contratantes. Em síntese, é a realidade dos fatos efetivamente
ocorridos na relação jurídica, esteja ela formalizada ou não, que vai
dizer sobre a existência ou não de uma relação jurídica de emprego
entre o empreendedor e seu colaborador.

Por tudo isso, o cuidado com os aspectos jurídicos nas


relações de trabalho em uma startup, quando da contratação de
seus colaboradores e prestadores de serviços, é um investimento.
Não é um investimento que lhe traz dinheiro, mas é um investimento
que visa minimizar riscos, evitar perdas financeiras e até mesmo
impedir a inviabilidade do negócio.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 41
Em seguida, serão apresentados, em linhas gerais, alguns
aspectos considerados mais relevantes, nas contratações
realizadas pelas startups sob o enfoque trabalhista.

Esta edição, atualizada com a colaboração da D.ra Karina


Rodrigues de Almeida, traz as mudanças introduzidas pela Reforma
Trabalhista que adveio com a Lei 13.467/2017, que não só modificou
várias normas da CLT, mas, também, alterou a Lei 6.019/74, para
introduzir normas para regulamentar a terceirização trabalhista.

1. Contratação Trabalhista

O fundador de startup, na formação, constituição e


desenvolvimento de seu negócio, necessita de pessoas
trabalhando com ele e para ele. Nesse contexto, as relações
podem ter contornos e características diversas, implicando,
consequentemente, a aplicação de normas legais diversas.

Para se saber se a relação entre o trabalhador e o


empreendedor está sujeita às normas trabalhistas, ou seja, se
a relação entre esse trabalhador e a startup é uma relação de
emprego, é preciso conhecer as características básicas dessa
relação.

A CLT – Consolidação da Leis do Trabalho – define


empregado como “toda pessoa física que presta serviços não
eventuais sob dependência do empregador e mediante remuneração”.

Portanto, os elementos que caracterizam uma relação, como


relação de emprego, regida pelas normas trabalhistas, são:

1) Pessoa Natural: a prestação de serviço por pessoa

LEGAL TALKS:
42 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
natural ou física;

2) Pessoalidade: a prestação de serviço com pessoalidade


pelo trabalhador;

3) Habitualidade: a prestação de serviços deve ser habitual,


não podendo ser eventual;

4) Subordinação: o trabalhador realiza a prestação de


serviços mediante subordinação aos comandos do
empreendedor;

5) Onerosidade: os serviços prestados devem ser


remunerados pelo empreendedor.

Esses elementos, que ocorrem no mundo dos fatos, ou seja,


na realidade vivenciada cotidianamente entre o empreendedor e o
seu colaborador, é que devem ser analisados para se constatar a
existência, ou não, da relação de emprego.

Dentre esses elementos, tem destaque a subordinação, que,


em regra, é o elemento definidor da relação de emprego.

Sem adentrar nos meandros teóricos da sua conceituação,


a subordinação caracteriza o modo de atuação da prestação de
serviço do trabalhador em relação ao empreendedor, de forma
que a prestação de serviço, pelo colaborador, se dará sempre sob
os comandos e ordens do empreendedor, então empregador. A
forma de realizar as atividades, pelo colaborador, passará sempre
pelo crivo do empreendedor, ainda que por ordem indireta deste a
superior hierárquico do trabalhador.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 43
O empregado, estando subordinado aos comandos do
empregador, tem a sua autonomia de vontade limitada, de
forma que não realiza as atividades para as quais foi contratado
segundo a sua vontade, mas seguindo as ordens, procedimentos
e determinações fixadas previamente pelo empregador para a
execução dos serviços necessários ao empreendimento.

Portanto, se o empreendedor de startup contratar, ainda


que informalmente, uma pessoa para lhe prestar serviços
habitualmente, mediante pagamento de remuneração, e sob as
suas ordens, diretas ou indiretas, estará caracterizada uma relação
de emprego.

E estando caracterizada a relação entre as partes, como


relação de emprego, a pessoa contratada, terá, em regra, os
seguintes direitos:
• Assinatura da CTPS;

• Jornada de trabalho máxima de 8 horas diárias e de 44


horas semanais; intervalo para descanso/alimentação
não inferior a 1 hora, e intervalo interjornada de 11 horas;

• Adicional noturno;

• Salário igual ou superior ao salário mínimo, com garantia


de irredutibilidade salarial e de descontos não previstos
em lei;

• 13º salário;

• Férias integrais e proporcionais, com acréscimo de 1/3;

• Aviso prévio;

LEGAL TALKS:
44 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
• Repouso semanal remunerado;

• Salário família;

• Vale transporte;

• Recolhimento à Previdência Social;

• Fundo de Garantia por Tempo de Serviço

• Licença-maternidade e paternidade e estabilidade no


emprego;

• Auxílio-doença;

• Seguro desemprego;

• Seguro contra acidente do trabalho;

• Aposentadoria;

• Outros direitos que sejam fixados em normas


convencionais fixadas em convenção coletiva, conforme
o enquadramento sindical da startup.

Importante destacar que em caso de contratação de


empregados com profissão regulamentada em lei, integrantes das
chamadas categorias diferenciadas, exemplo são as categorias
dos engenheiros, médicos, professores, dentre outras, deverão ser
observadas as condições especiais de trabalho, seja em relação à
jornada de trabalho, ao piso salarial e enquadramento sindical.

É possível também conceder ao empregado, a critério do


empregador, benefícios não obrigatórios, dentre os quais, cita-se o

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 45
plano de saúde, o seguro de vida, o plano de previdência privada e
PLR - participação nos lucros e resultados, que não se incorporam
ao salário para fins dos encargos trabalhistas, como o FGTS e a
contribuição previdenciária.

Embora a formalização da contratação do empregado possa


dar-se apenas com a assinatura da carteira de trabalho – CTPS –
do empregado, na qual são feitas todas as anotações relativas à
contratação, como data de admissão, salário ajustado e condições
especiais, se houver, é importante que o empreendedor, desde o
início, adote um modelo padrão de contrato de trabalho escrito.

No contrato de trabalho escrito, que deve ser elaborado


considerando as especificidades das atividades desenvolvidas
pela startup, devem ser estabelecidas de forma clara todas as
condições da contratação. As condições básicas a serem previstas,
dentre outras, são: a) as funções a serem desempenhadas pelo
empregado; b) a remuneração a ser paga ao empregado pelos
serviços prestados; c) a jornada de trabalho e o horário a ser
cumprido, pelo empregado, com especificação do horário de
alimentação/descanso; d) o prazo para o qual o empregado está
sendo contratado.

Também, podem ser previstas no contrato de trabalho


escrito outras questões, como regras especiais a serem
seguidas pelo empregado, dependendo da atividade específica
desempenhada na startup; normatização da responsabilidade do
empregado por eventual prejuízo causado, por dolo ou culpa, e a
respectiva autorização de desconto dos prejuízos comprovados na
remuneração do empregado; regulação sobre confidencialidade
das informações do negócio da startup e responsabilidade do
empregado em caso de divulgação indevida; previsão sobre direito

LEGAL TALKS:
46 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
de propriedade intelectual do empreendedor empregador sobre
as atividades realizadas pelo empregado na startup.

Quanto ao benefício da PLR, valem aqui alguns


esclarecimentos ante os equívocos, normalmente cometidos pelas
empresas, sobre o entendimento da PLR e sobre a possibilidade
de sua concessão.

De início, importante ressaltar que a concessão do benefício


da PLR – Participação no Lucros e Resultados –, com está previsto
no art. 7º, inciso XI da Constituição Federal e na Lei 10.101/2000,
requer também a formalização em documento escrito, no qual
o empregador deverá estabelecer todo o Programa de PLR,
prevendo de forma clara e objetiva todas as regras e condições
de elegibilidade dos participantes, dos índices de produtividade,
qualidade ou lucratividade e programas de metas, resultados e
prazos, e da forma e condições de pagamento do benefício.

A PLR é um benefício instituído pela legislação, em favor


do empregado, e que deve ter necessariamente vinculação ao
lucro e aos resultados globais alcançados pela empresa. E, por
ser um benefício pago em favor do empregado, a PLR tem um
tratamento tributário e previdenciário favorável ao empregado e,
consequentemente, à empresa.

Além disso, o programa de participação nos lucros e


resultados não admite a contemplação de apenas parte dos
empregados da empresa, excluindo-se outros empregados
que certamente também contribuíram para o lucro obtido pela
empresa.

A concessão equivocada ou fraudulenta de PLR, em


desacordo com as suas características e objetivos e com a

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 47
legislação que a rege, implica não só em risco trabalhista para o
empregador, hipótese em que o benefício poderá passar a sofrer
toda a incidência dos encargos trabalhistas, mas também tributário,
podendo o fisco exigir o recolhimento dos tributos que não foram
recolhidos.

Daí que a concessão de PLR exige a análise jurídica da situação


de cada empresa, para a formalização adequada do seu respectivo
programa, de forma a prevenir riscos para o empreendedor.

Quanto ao prazo do contrato de trabalho, é importante


destacar que em regra o contrato de trabalho é firmado por prazo
indeterminado, uma vez que a legislação brasileira somente admite
a contratação por prazo determinado em situações excepcionais,
previstas em lei.

Além disso, mesmo para essas situações excepcionais, o


contrato por prazo determinado admite apenas uma prorrogação
e não pode exceder o prazo de 2 anos.

O contrato de trabalho admite também a contratação por


período de experiência, no qual as partes poderão apurar aspectos
subjetivos (relativos à qualificação e perfil do profissional) e
objetivos (relacionados, por exemplo, a horário, local e ambiente
de trabalho ou salário) da contratação para a manutenção da
continuidade da relação.

O contrato de experiência somente pode ser firmado pelo


prazo máximo de noventa dias, que pode ser dividido em dois
períodos. Em qualquer hipótese, o contrato de experiência admite
apenas uma única prorrogação.

LEGAL TALKS:
48 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Além disso, é considerada fraude trabalhista a recontratação,
por período de experiência, de um mesmo empregado, para as
mesmas funções e num mesmo contexto empresarial, após a
extinção de um contrato de experiência anterior.

O contrato de experiência deve ser anotado na CTPS do


empregado, na página de anotações gerais.

A reforma trabalhista, introduzida pela Lei 13.467/2017, trouxe


uma nova forma de contrato, o contrato de trabalho intermitente.

A lei considera como intermitente o “contrato de trabalho


no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua,
ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de
inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente
do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os
aeronautas, regidos por legislação própria”.

A principal característica do contrato de trabalho intermitente


é descontinuidade na prestação de serviços. Nesse formato, os
serviços podem ser prestados com períodos de alternância de
inatividade. Basicamente, o empregado é convocado quando a
empresa tem uma demanda a ser suprida. E o empregado pode
prestar os mesmos serviços a diversas empresas.

O contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por


escrito, devendo mencionar o valor da hora de trabalho, respeitado
o valor horário do salário mínimo ou aquele “devido aos demais
empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função
em contrato intermitente ou não”. Devem ser observadas todas
as regras para a convocação do empregado, que pode aceitar ou
não o trabalho, o que não descaracteriza a subordinação, nem
configura motivo para a rescisão contratual.

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STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 49
O contrato de trabalho intermitente é uma modalidade
contratual que somente deve ser utilizada quando a atividade
empresarial demandar, pela sua natureza, alternância entre alta e
baixa demanda de serviços. É o caso, por exemplo, de empresas
de eventos, que podem ter um banco de empregados, previamente
contratados como trabalhadores intermitentes, para convocação
conforme a demanda de serviços.

2 - Outras Formas de Contratação

Na hipótese de os serviços a serem executados não exigirem


relação de subordinação com o empreendedor empregador,
quando se tratar de serviços especializados ou quando tiverem
regulação jurídica própria diversa do contrato de trabalho,
admitem-se outras formas de contratação.

As mais comuns, em se tratando de startup, são o contrato de


estágio e o contrato de prestação de serviços, além da terceirização
propriamente dita, que hoje está regulada em lei.

2.1 - Contrato de Estágio

O contrato de estágio está regulado na Lei nº 11.788/2008


- Lei do Estágio. A relação de estágio tem por objetivo central o
aprendizado do aluno, diferenciando-se da relação de emprego
justamente por seu caráter pedagógico. Visando a apropriação do
aprendizado profissional do estudante, deve haver correspondência
entre as funções desempenhadas pelo estagiário na empresa e a
grade curricular do estudante.

Para a regularidade do contrato de estágio, a empresa que


for contratar o estagiário, tem que firmar termo de compromisso

LEGAL TALKS:
50 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
de estágio, necessariamente escrito, com o estudante e com a
instituição de ensino na qual estiver matriculado o estagiário,
devendo enviar, com periodicidade mínima de 6 meses, um
relatório de atividades à instituição de ensino.

O contrato de estágio poderá ser remunerado através do


recebimento de uma bolsa ou outra forma de contraprestação que
venha ser acordada no termo de compromisso do estágio.

A concessão da bolsa e do auxílio-transporte é facultada


no caso de estágio obrigatório, que é aquele definido no projeto
pedagógico do curso e cuja carga horária é requisito para
aprovação e obtenção do diploma. Somente será compulsório o
pagamento de bolsa e do auxílio-transporte nos casos de estágio
não obrigatório. Outros benefícios, como alimentação, plano
de saúde, dentre outros, podem ser concedidos ao estagiário,
sendo recomendado que o que for ajustado conste do termo de
compromisso de estágio.

O pagamento de horas extras, adicional, comissão e


gratificação, remunerações típicas da relação de emprego, na qual
se exerce uma atividade profissional, sem finalidade estritamente
educativa, descaracteriza a relação de estágio, com riscos
trabalhistas para o empreendedor, em face da possibilidade de
incidência dos encargos trabalhistas e previdenciários.

A legislação impõe limitação à contratação de estagiários


de nível médio, proporcionalmente ao número de empregados da
empresa, da seguinte forma:

a) Empresa com 1 (um) a 5 (cinco) empregados: até 1 (um)


estagiário;

L EG A L TA L KS :
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b) Empresa com 6 (seis) a 10 (dez) empregados: até 2 (dois)
estagiários;

c) Empresa com 11 (onze) a 25 (vinte e cinco) empregados:


até 5 (cinco) estagiários;

d) Empresa acima de 25 (vinte e cinco) empregados: até 20%


(vinte por cento) de estagiários.

Essa limitação, entretanto, não se aplica aos estagiários


inscritos em curso de nível superior e de nível profissional.

O estagiário tem direito, quando o estágio for igual ou superior


a 1 ano, a um recesso remunerado de trinta dias, sem qualquer
acréscimo, como ocorre com as férias do empregado, ou recesso
proporcional no caso de o período de estágio ser inferior a um ano.

A jornada do estagiário está limitada a 4 horas diárias e 20


horas semanais, no caso de estudantes de educação especial, de
estudantes dos últimos anos do ensino fundamental, de estudantes
na modalidade profissional de educação de jovens e adultos. Para
os estudantes do ensino superior, da educação profissional e do
ensino médio regular, a jornada de atividade em estágio está
limitada a 6 horas diárias e 30 horas semanais.

A duração do contrato de estágio está limitada a 2 anos,


exceto quando se tratar de estagiário portador de necessidade
especial.

Todas as normas de segurança e saúde do trabalhador


em geral, aplicáveis especificamente em cada empresa, devem
também ser observadas para os estagiários.

LEGAL TALKS:
52 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
A empresa concedente do estágio deve, obrigatoriamente,
contratar seguro contra acidentes pessoais para os estagiários que
contratar.

Considerando, portanto, todas as especificidades do contrato


de estágio, o exercício de atividades além das estabelecidas em
seu contrato ou em desconformidade com o curso no qual estiver
inscrito o estagiário, bem como a inobservância das regras próprias
do contrato de estágio, pode descaracterizar o contrato de estágio,
com risco de a relação ser tida como empregatícia, com imposição
ao contrato de todos os encargos trabalhistas.

2.2 - Contrato de Prestação de Serviço

A empresa pode também necessitar da contratação de


pessoas, físicas ou jurídicas, como prestadoras de serviços.

O contrato civil de prestação de serviços é aquele em que


uma das partes (prestador) se obriga a fornecer uma atividade/
tarefa a outra (tomador), mediante remuneração. Possui como
características essenciais a especificação do serviço contratado
(objeto da contratação); a livre negociação da retribuição pecuniária
ou outra espécie de ajuste compensatório (preço dos serviços),
que pode ser fixado por período ou por serviço entregue; e, o
estabelecimento de acordo entre as partes sobre o trato da relação
jurídica estabelecida (consentimento).

Na lei civil o contrato de prestação de serviços é considerado


uma forma residual de contratação (art. 593 CC), já que abrange
todos os serviços que não estejam sujeitas às leis trabalhistas
(empregado celetista) ou a lei especial (servidor público). A

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 53
disciplina legal da prestação de serviço está descrita nos artigos
593 a 609 do Código Civil.

É necessário ter o cuidado de contratar prestadores de


serviços que possuam habilitação ou satisfaçam requisitos outros
estabelecidos em lei para a prestação de serviço. A contratação
irregular de prestador de serviço, ou seja, agentes não autorizados,
técnicos não diplomados, etc., atrai para o contratante o risco de
responsabilização pela relação estabelecida, nos termos da lei
civil, tributária, penal e trabalhista.

O serviço pode ser contratado por prazo determinado


ou indeterminado. Optando-se pela contratação por prazo
indeterminado, recomenda-se que no contrato firmado com o
prestador seja prevista a forma de rescisão.

A contratação de pessoa física como prestador de serviço se


dá, em regra, por meio da figura do trabalhador autônomo.

O trabalhador autônomo é a pessoa física que exerce, por


conta própria, atividade econômica de natureza urbana, com fins
lucrativos ou não, sem qualquer subordinação ao beneficiário do
serviço. O profissional autônomo, em regra, é aquele que possui
determinadas habilidades técnicas, manuais ou intelectuais e
decide trabalhar por conta própria, sem vínculo empregatício,
assumindo por si os riscos do seu ofício. O trabalhador autônomo
não cumpre jornada de trabalho. O próprio trabalhador estabelece
os horários em que prestará os serviços. Ele presta os seus
serviços geralmente de forma eventual e/ou aleatória apesar de,
atualmente, esse não ser mais um critério absoluto de distinção.

Com a reforma trabalhista, introduzida pela Lei 13.467/2017,


a prestação de serviço como autônomo pode se dar de forma

LEGAL TALKS:
54 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
contínua ou não, com ou sem exclusividade, como expressamente
autoriza o artigo 442-B da CLT. O código civil, neste aspecto, é
silente, presumindo que as partes ajustem, consensualmente, a
forma da prestação de serviço.

Em suma, o prestador autônomo de serviço guarda


independência técnica e de organização da atividade que será
prestada, não possuindo dever de subordinação hierárquica ao
contratante. O trabalho autônomo, por sua natureza, resguarda ao
prestador autônomo de serviço os poderes de autodeterminação
e autogestão do seu trabalho, obrigando-se tão somente a
entregar o serviço (objeto final da contratação) atento às condições
estabelecidas no contrato e ao resultado final, como qualidade,
quantidade, precisão e técnica esperados da contratação.

Apesar de o código civil, como lei geral, não estipular


obrigatoriedade da forma escrita, é recomendável que a contratação
sob a forma de prestação autônoma de serviços seja formalizada
com contrato escrito entre as partes. A depender do tipo de serviço
a ser contratado é importante verificar previamente se lei especial
exige o contrato escrito, registro em órgãos reguladores, dentre os
requisitos formais para o exercício da profissão, como ocorre, por
exemplo, na contratação de motoristas autônomos de transporte
de cargas (Lei 11.442/07) e de representantes comerciais (Lei
4.886/65).

Fato é que a contratação do serviço do autônomo não


raramente se encontra em uma zona limítrofe com a relação de
emprego, sendo a formalização desta modalidade de contratação
um meio de demarcar expressamente a natureza da relação
jurídica que foi originalmente ajustada entre as partes. E é neste
contexto que a reforma trabalhista introduziu o art. 442-B à CLT

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 55
prevendo que “a contratação do autônomo, cumpridas por este
todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma
contínua ou não, afasta a qualidade de empregado.”.

Pode também a contratação do prestador de serviço ocorrer


com pessoa jurídica, que tenha como objeto social a prestação de
serviços especializados.

A contratação de outras pessoas jurídicas para prestação


de serviço é algo corriqueiro no desenvolvimento da atividade
econômica das empresas e as regras gerais dessa contratação já
foram lançadas nas linhas acima.

O prestador de serviço por pessoa jurídica também mantém


intacto o poder de auto-gestão, independência e autonomia na
execução dos serviços contratados, independentemente de existir
exclusividade ou habitualidade na prestação dos serviços.

Contudo, é preciso ficar atento ao fato de que a contratação


de pessoas jurídicas para execução de atividades para a empresa
não pode ser utilizada como estratégia para substituir trabalhadores
empregados, a famosa “pejotização”, ou seja, a constituição Pessoa
Jurídica – P-J – para dissimular uma relação empregatícia.

A “pejotização”, mesmo após a regulamentação da


terceirização de serviços (mais adiante detalhada), continua sendo
vedada e sujeita a nulidade, com a caracterização de vínculo
trabalhista. A “pejotização” tem sido reconhecida pela jurisprudência
trabalhista, geralmente, nos casos em que a execução do serviço
se dá pela figura dos sócios, de forma pessoal, única e exclusiva
e no desenvolvimento de atividades essenciais aos fins sociais da
empresa. Condicionar a contratação do trabalhador à constituição
de uma pessoa jurídica para prestar os serviços também tem sido

LEGAL TALKS:
56 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
reconhecida como uma conduta fraudulenta a direitos trabalhistas
e sociais.

Percebe-se, portanto, que a contratação do prestador


de serviços, seja como pessoa física ou jurídica, somente não
vai gerar risco trabalhista se, de fato, a contratação cumprir as
formalidades legais estabelecidas pela natureza dos serviços, se
ocorrer preferencialmente em atividades que não sejam essenciais
aos fins sociais da empresa, se o prestador de serviço não se
integrar na estrutura da empresa com atividades de liderança e/
ou participação em equipes de empregados e, principalmente,
se a atividade for desenvolvida sem qualquer subordinação aos
integrantes da empresa contratante ou tomadora do serviço.

Na relação com o prestador de serviço não podem estar


presentes as características da relação de emprego. Não pode
haver subordinação jurídica entre o prestador e o tomador do
serviço, vale dizer, o prestador não pode ficar sujeito, para a
execução das atividades contratadas, a ordens diretas dos sócios,
diretores ou empregados da empresa tomadora do serviço.

O prestador de serviço deve executar as atividades


contratadas de forma autônoma, independente e desvinculada
das atividades de rotina da tomadora.

Sendo a relação, de fato, de prestação de serviço, recomenda-


se a formalização de um contrato escrito, que se regerá pela
legislação civil, no qual deverão ser estabelecidas todas as regras
da contratação, como aquelas relacionadas ao objeto do contrato,
às obrigações das partes, ao preço do serviço, ao prazo e à rescisão
contratual.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 57
Portanto, para que a empresa não incorra em risco trabalhista,
que pode até mesmo inviabilizar o negócio, recomenda-se que não
se faça, como é comum, a contratação de pessoa física, por meio
de pessoa jurídica, ou a contratação de trabalhador autônomo, para
o exercício de funções já realizadas por empregados da empresa,
com recebimento de remuneração vinculada à remuneração paga
aos empregados da empresa, com uso de e-mail e cartão de visita
institucional, dentre outros equívocos.

Essa situação, além de sujeitar a empresa a autuação pela


Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia, ocasiona grande
risco trabalhista, com elevada repercussão financeira, que pode
inviabilizar a empresa ou mesmo colocá-la em desvantagem com
seus concorrentes e com possíveis investidores.

Não se pode esquecer que, para as relações trabalhistas,


regidas pelo Direito do Trabalho, vigora o princípio da primazia
da realidade, que impõe que as relações sejam analisadas
considerando sempre a realidade fática efetivamente vivenciada
pelas partes, não se limitando essa análise ao contrato escrito
firmado entre as partes.

2.3 - Terceirização de Serviços – Lei 6.019/74

Na prestação de serviços por terceiros ou terceirização


de serviços há uma fragmentação das atividades da empresa
que contrata outra empresa para realizar parte da sua atividade
empresarial, permitindo-lhe concentrar os seus esforços, com
maior eficiência, na atividade que seja o núcleo da geração de
valor da empresa.

LEGAL TALKS:
58 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
A terceirização de serviços, até o início do ano de 2017, não era
regulamentada por lei. E durante este período, o assunto sempre
foi muito polemizado. Muito se debateu nos tribunais trabalhistas
a respeito da licitude da terceirização, por ser considerada por
muitos uma forma de organização do trabalho que gera condições
precarizantes aos trabalhadores. Por isso, até aquele ano, havia
sido consolidado o entendimento segundo o qual seria ilícita a
terceirização de serviços quando relacionada à atividade-fim, ou
atividade principal, da empresa.

Entretanto, nem toda terceirização é necessariamente


sinônimo de precarização ou é utilizada só com a finalidade de
redução do custo da produção através da redução do custo com
a mão de obra.

A dinâmica econômica tem exigido das empresas, para se


manterem no mercado e atenderem as demandas da sociedade
de consumo, alteração constante de objeto social, a fim de
promover a diversificação das atividades empresariais, das formas
de produção, dos processos de trabalho etc. Esta necessidade de
se adaptar rapidamente às demandas – seja para aprimoramento
dos produtos/serviços, seja para buscar melhoria da qualidade,
melhor forma de produzir com baixo impacto, uso de tecnologias
que estão na posse de outros, adaptação ao mercado consumidor,
logística, captação de insumos, etc. – revela que a terceirização
de serviços é um fenômeno que não tem como ser impedido e é
muitas vezes necessário.

Portanto, a adoção da terceirização de serviços, como


estratégia do negócio, se mostrou ao longo do desenvolvimento
das economias globais uma necessidade para alguns
setores empresariais em razão da concorrência empresarial

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STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 59
e da identificação de necessidades e exigências do mercado
consumidor, como já dito.

Neste contexto, a terceirização passou a ser vista não mais


apenas como uma estratégia para as empresas se concentrarem
na sua atividade principal ou finalística, mas como uma forma de
possibilitar que a empresa possa se concentrar na atividade que
gere maior valor agregado a seu produto ou serviço, no nicho de
mercado de sua atuação.

Atento às mudanças econômicas e ao clamor da sociedade


que há muito tempo esperava por um posicionamento do Poder
Legislativo sobre o tema, o Congresso Nacional aprovou a Lei
13.429/2017 – Lei da Reforma Trabalhista -, que introduziu à Lei
6.019/74 regras explícitas sobre a terceirização de serviços, que
passou a ser expressamente regulamentada por lei, com contornos
legais bem definidos.

A Lei 6.019/74, modificada pela Lei 13.429/2017, conceitua


a terceirização de serviços ou a prestação de serviços a terceiros
como “a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer
de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica
de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade
econômica compatível com a sua execução” (art. 4º-A).

O Supremo Tribunal Federal, apreciando o tema da


terceirização de serviços, no julgamento da ADPF 324, realizado
em 30/08/2018, cujo relator foi Ministro Roberto Barroso, assim
decidiu:

“I - É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade,


meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre
a contratante e o empregado da contratada;

LEGAL TALKS:
60 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
II - A terceirização, compete à contratante: i) verificar a
idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada;
e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento
das normas trabalhistas, bem como por obrigações
previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993”.

Portanto, atualmente a terceirização de serviços, seja por


previsão legal, seja por entendimento do Supremo Tribunal Federal,
pode ser utilizada pelas empresas em quaisquer de suas atividades,
inclusive em sua atividade principal ou atividade-fim, desde que
observados os requisitos legais previstos na Lei 6.019/74, para esta
modalidade de contratação, com as modificações introduzidas
pela Lei 13.429/2017.

Para que o contrato de prestação de serviços a terceiros não


seja descaracterizado e declarada ilícita a terceirização, é preciso
cumprir as formalidades da lei.

Como dito, a Lei 6019/1974, com as modificações introduzidas


pela Lei 13.429/2017, assim conceitua a terceirização:

“Considera-se prestação de serviços a terceiros a


transferência feita pela contratante da execução de
quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade
principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora
de serviços que possua capacidade econômica compatível
com a sua execução” (art. 4º-A).

Do conceito legal da terceirização, se extraem algumas


regras:

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 61
a terceirização pode ser realizada em quaisquer das
atividades da empresa contratante;

a terceirização somente pode ser executada por uma pessoa


jurídica, prestadora de serviços;

a empresa contratada para prestar os serviços terceirizados


deve possuir capacidade econômica para a execução dos serviços
contratados.

Exigindo a lei que a empresa prestadora de serviços a terceiros


seja uma pessoa jurídica, impõe-se, para o seu funcionamento, a
comprovação da sua inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa
Jurídica (CNPJ), bem como o seu registro na Junta Comercial (art.
4º-B, I e II).

Além disso, a lei estabelece que a empresa prestadora


de serviços a terceiros precisa ter capital social compatível com
o número de empregados, seguindo os seguintes parâmetros:

Nº de empregados Capital mínimo


c/ até 10 empregados R$ 10.000,00
c/ mais de 10 e até 20 empregados R$ 25.000,00
c/ mais de 20 e até 50 empregados R$ 45.000,00
c/ mais de 50 e até 100
R$ 100.000,00
empregados
c/ mais de 100 empregados R$ 250.000,00

A empresa contratante, ou seja, aquela que terceiriza parte dos


serviços ou atividades da sua estrutura empresarial, deve verificar

LEGAL TALKS:
62 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
a idoneidade e capacidade econômica da empresa terceirizada
que pretende contratar, uma vez que possui responsabilidade
subsidiária pelo descumprimento de normas trabalhistas, bem
como por obrigações previdenciárias, como decidiu o STF na ADPF
324 citada acima e como está expressamente previsto na redação
atual da Lei 6.019/74 (art. 5º-A, § 5º).

O contrato de prestação de serviços a terceiros exige a forma


escrita, estabelecendo a lei que deva conter cláusulas mínimas: de
qualificação das partes, especificação do serviço a ser prestado,
valor a ser pago e, se for o caso, prazo para realização do serviço.
No entanto, recomenda-se que se tenha bastante cuidado nas
contratações, devendo todo o conteúdo do que foi negociado
entre as partes ser expressamente contido no contrato.

A exigência legal de o contrato conter a “especificação do


serviço a ser prestado” visa prevenir o desvirtuamento da prestação
de serviço contratada, uma vez que a lei veda expressamente à
contratante “a utilização dos trabalhadores em atividades distintas
daquelas que foram objeto do contrato com a empresa prestadora
de serviços”.

Dessa forma, se a contratação foi para prestação de


serviços de limpeza, a contratante não pode utilizar os serviços do
trabalhador terceirizado para serviços de recepção, por exemplo.
O desvio de finalidade na prestação dos serviços compromete
o contrato, podendo ser considerada ilícita a terceirização e
declarado o vínculo de emprego do trabalhador terceirizado
diretamente com a empresa contratante.

Obviamente que, se houver um incremento de atividades a


serem prestadas, o contrato de terceirização deverá ser aditado, por

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meio termo aditivo escrito, para fazer constar as novas atividades
contratadas e o valor do serviço.

Registre-se que a lei autoriza a subcontratação dos serviços.


Portanto, se a contratante entender não ser conveniente este tipo
de inclusão (ou alteração) na execução do serviço contratado, deve
fazer constar no contrato o ajuste para que a empresa terceira não
subcontrate os serviços repassando-o a outras empresas.

Outra questão importante a ser observada antes da


contratação de serviços terceirizados, diz respeito aos impedimentos
temporários para a realização do contrato de prestação de serviços
de terceiros, também chamados de “quarentena” do contrato de
terceirização.

O primeiro impedimento à terceirização diz respeito à


pessoa jurídica da empresa contratada. Neste caso, a lei dispõe
que não pode ser contratada empresa terceirizada cujos sócios ou
titulares tenham sido empregados ou trabalhadores sem vínculo
de emprego da empresa contratante nos últimos 18 meses, exceto
se os sócios ou titulares forem aposentados

O segundo impedimento refere-se à relação com ex-


empregados. A lei estabelece que o empregado que for demitido
não pode ser contratado como terceirizado da antiga empregadora
pelo prazo mínimo de 18 meses, a partir da demissão.

A execução dos serviços contratados pode se dar nas


instalações físicas da empresa contratante ou em qualquer outro
local.

Quando o trabalho for executado nas dependências da


empresa contratante ou em local previamente convencionado

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pelas partes, é responsabilidade da contratante garantir as
condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores.

Ao trabalhador terceirizado deve ser assegurado, quando


e enquanto os serviços forem executados nas dependências
da empresa contratante, as mesmas condições de trabalho
concedidas a seus empregados diretos relativas à alimentação
quando fornecida em refeitório; uso de serviços de transporte
da empresa contratante, atendimento médico ou ambulatorial
existente nas dependências da contratante; treinamento, medidas
de proteção à saúde e segurança do trabalho e instalações
adequadas para a prestação do serviço.

A lei não exige a aplicação de isonomia salarial entre


empregados terceirizados e empregados diretos da empresa
contratante, podendo as partes, contratante e contratada, como
mera faculdade, ajustar em contrato equivalência salarial, bem
como concessão de outros benefícios.

Estabelece a lei que “não se configura vínculo empregatício


entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de
serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante”.

Apesar da expressa previsão legal de ausência de vínculo


de emprego sabe-se que, da análise do contrato realidade, o
reconhecimento da condição de empregado pode ser declarado,
se constatada a existência de fraude no contrato de terceirização,
desvio de sua finalidade ou a existência de pessoalidade e
subordinação entre a empresa contratante e o terceiro.

O não atendimento aos requisitos legais e formais para a


contratação de terceiros também pode repercutir na alteração
da natureza jurídica da contratação dos trabalhadores envolvidos

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na terceirização, ou seja, também acarreta risco trabalhista
de declaração de vínculo de emprego direto com a empresa
contratante dos serviços.

Por isso, o gestor da empresa, para decidir pela terceirização


das suas atividades, deve avaliar bem, considerando o seu tipo
de negócio, os riscos e todas as vantagens e desvantagens da
terceirização.

A terceirização não pode visar apenas a redução de custos,


mas deve ter por finalidade a eficiência dos serviços, uma vez que
a terceirização tem como principal objetivo flexibilizar e agilizar os
processos da empresa.

Conclusão

Formalizada a contratação nos moldes da legislação


trabalhista ou não, outras questões, ao longo da relação, devem
ser cuidadas, não só para que a empresa se mantenha regular
perante a lei, mas também para minimizar, ou mesmo evitar
riscos, que podem trazer impactos financeiros negativos para o
empreendedor.

Tratando-se de relação de trabalho, com vínculo


empregatício, deve-se atentar para as questões relacionadas
com a regularidade da documentação dos empregados e com os
recolhimentos previdenciários e fiscais; com o regime da jornada de
trabalho; com o enquadramento sindical da categoria profissional
dos empregados das empresas; com os afastamentos legais dos
empregados, com a confidencialidade das informações da startup
às quais o empregado tem acesso.

LEGAL TALKS:
66 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Além disso, ao término da relação de trabalho, que pode se
dar por iniciativa do empreendedor ou do empregado, sem justo
motivo ou por justa causa, deve o empreendedor cuidar para que
o vínculo empregatício seja extinto com a formalização do Termo
de Rescisão do Contrato de Trabalho – TRCT e pagamento das
verbas rescisórias devidas ao empregado, além da entrega a este
dos documentos rescisórios.

Enfim, dos passos prévios à contratação ao seu término,


o empreendedor deve buscar sempre o enfrentamento, com
o devido e adequado assessoramento, de todas as questões
jurídicas envolvidas, seja na relação com os seus empregados,
seja na relação com os seus prestadores de serviço, de forma a
evitar, principalmente, que sejam dados passos equivocados que
possam comprometer o futuro do empreendimento.

O trabalho preventivo é sempre o melhor remédio, para evitar


que erros, muitas vezes incorrigíveis, sejam cometidos, além de, a
longo prazo, significar economia financeira para o empreendedor.

L EG A L TA L KS :
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Referências Bibliográficas:

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São Paulo: LTr, 2017.

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Trabalho. São Paulo: Atlas, 2012.

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2011.

- NADER, Paulo. Curso de direito civil, v. 3: Contratos. – 8ª ed.


ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016.

- PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil –


Vol. III / Atual. Caitlin Mulholland. – 21ª ed. – Rio de Janeiro: Forense,
2017.

- SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Acórdão do RE 958252.


Relator Ministro Luiz Fux, DJE 13/09/2019 - ATA Nº 132/2019. DJE
nº 199, divulgado em 12/09/2019. Disponível em: http://portal.stf.
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Acesso em 04/07/2020.

- SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Decisão da ADPF 324.


Relator Ministro Roberto Barroso, Ata de julgamento nº 30, de
23/08/2018. DJE nº 180, divulgado em 30/08/2018. Disponível em:
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4620584 .
Acesso em: 06/07/2020.

- VENOSA, Sílvio de Salvo Venosa. Direito civil: contratos em


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- VIANNA, Cláudia Salles Vilela. Manual Prático das Relações
Trabalhistas. São Paulo: LTr, 2012.

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Capítulo 3

STARTUPS E CAPITAL:
INSTRUMENTOS JURÍDICOS DE
REGULAÇÃO DOS INVESTIMENTOS
FINANCEIROS EM ATIVIDADES
EMPRESARIAIS
Eduardo Goulart Pimenta
Luciana de Castro Bastos

1 - A empresa e a necessidade de capital

Ao se analisar as atividades de produção ou distribuição


de bens e prestação de serviços e, principalmente, a forma pela
qual são implementadas no mercado, é possível constatar que
elas envolvem uma complexa e organizada gama de recursos
economicamente mensuráveis, além de várias transações
juridicamente relevantes.

Neste sentido a empresa é a soma de recursos materiais,


mão de obra, dinheiro (fator capital) e conhecimentos (fator
tecnologia) para que, devidamente organizados por uma pessoa
física ou jurídica (o empresário), gerem bens ou serviços.

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Esta também é, em essência, a realidade das aqui
chamadas startups, cuja grande peculiaridade talvez esteja no fato
de pautar suas atividades a partir da tecnologia, que se reflete no
oferecimento de inovadores produtos ou serviços ao mercado. Elas
exploram áreas inovadoras de determinado setor (geralmente de
tecnologia), possuindo uma aceleração de crescimento muito alta
já nos primeiros meses de existência face a aplicação de capital
realizada por fundos de investimento especializados.

Cada um dos fatores de produção de que precisa o


empreendedor, para constituir e exercer a empresa, exige a devida
recompensa, seja esta na forma de salários, juros, renda, preços
ou royalties. Estes custos são modalidades de custos de produção,
entendidos estes como a retribuição econômica canalizada pelo
empresário em favor daquele que lhe forneça um determinado
fator de produção.

Assim, para conseguir capital – objeto de análise neste texto -


este empresário necessita de estabelecer transações com o Poder
Público, instituições financeiras ou pessoas físicas ou jurídicas
privadas que disponham deste recurso para ceder-lhe mediante
uma recompensa.

Há diversas formas de se estabelecer juridicamente a relação


entre capital e empresa/empresário. Termos como “venture capital”,
“private equity”, “investidor anjo”, “incubadoras”, “aceleradoras” e
“opções” são, hoje, corriqueiramente empregados para identificar
exatamente estas diferentes possibilidades de se investir dinheiro
diretamente em um determinado empreendimento econômico.

Antes, porém, de se abordar as particularidades de cada


uma destas hipóteses é necessário explicar que, seja qual for o
modelo jurídicamente empregado, a pessoa que investe recursos

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financeiros em uma atividade empresarial assume, sempre, a
posição de sócio e/ou credor do empreendimento no qual investiu.

Sócios e credores têm muito em comum, mas também


algumas importantes distinções que precisam ser observadas. São
estas distinções que devem ser ponderadas quando da decisão –
tanto do investidor quanto do empreendedor – sobre qual modelo
de financiamento adotar.

2 – Sócios e credores: as duas modalidades de fornecedores de


capital à empresa

As sociedades – sejam elas anônimas ou limitadas – e


empresários têm, em essência, dois meios para formalizar a
captação dos recursos financeiros necessários às suas atividades
negociais.

O primeiro deles está na contribuição dos sócios e se


concretiza quando cada um deles integraliza suas respectivas
quotas ou ações e, assim, se tem constituído o capital social.

O segundo está na contratação de empréstimos – de


curto, médio ou longo prazos para pagamento – no denominado
mercado financeiro, composto essencialmente, no polo credor, por
instituições bancárias. Ambas as formas de captação têm, para o
empreendedor, diferentes custos a serem considerados.

A captação de recursos através do lançamento de novas


ações ou quotas – e, em consequência, admissão de novos sócios
– implica em alteração da estrutura de controle e poder sobre a
sociedade.

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A entrada de novos integrantes modifica o percentual de
todos no capital social e, em virtude disso, altera o exercício de
certos direitos de sócio, principalmente no que diz respeito ao
percentual de cada um sobre os lucros e nas deliberações sociais.

O custo elementar da captação de recursos, por uma


sociedade, através do lançamento de novas ações ou quotas
é, portanto, esta alteração – a princípio permanente, diga-se de
passagem – no percentual de todos os sócios sobre o capital social.

Já a busca por dinheiro através de empréstimos contraídos


no mercado bancário impõe, à sociedade/mutuária, os encargos
– essencialmente constituídos por juros, correção monetária e
garantias – exigidos, pelos bancos, para a realização do contrato.
O custo elementar da captação de recursos no mercado bancário
está, por óbvio, nos encargos financeiros atrelados ao contrato.

Sócio e credor têm em comum, pode-se afirmar, o fato


de serem, cada um a seu modo, os provedores dos recursos
financeiros a serem empregados pela sociedade no exercício de
sua atividade. São, porém, significativas as diferenças entre um e
outro, como se passa a demonstrar.

O direito do credor contra o devedor – no caso, a sociedade


– é, pode-se dizer, incondicionado, posto que futuramente exigível
desde a data de sua criação. O credor de uma sociedade tem, desde
a data de constituição de seu crédito, o direito de exigir, no futuro,
o valor emprestado, mais os encargos financeiros oferecidos pela
devedora.

Já o sócio tem, neste sentido, o que se pode chamar de


direito condicionado, posto que, por um lado, sua remuneração se
concretiza na participação nos lucros gerados pelo empreendimento

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– os quais não são garantidos – e, por outro lado, a restituição do
valor de seus títulos somente se dará com a dissolução parcial –
exclusão ou recesso – ou total da pessoa jurídica.

Tem-se, neste sentido, que o credor pode exigir o valor do


principal mais os encargos oferecidos, e este direito existe desde a
constituição de sua relação com sociedade devedora.

Já o sócio somente poderá exigir a sua forma de remuneração


própria – participação nos lucros – se as atividades de sociedade
forem economicamente bem sucedidas e, além disso, o valor por
ele investido somente será reembolsado – após descontados os
débitos da pessoa jurídica - em caso de recesso ou dissolução
total da companhia.

De outro lado, o direito do credor contra a sociedade


devedora é quantitativamente limitado, posto que consiste no
valor do principal mais os encargos financeiros preestabelecidos.
O credor não pode exigir e não receberá nada além disso.

Já o sócio, por sua vez, é remunerado na forma de


participação nos lucros gerados pelas atividades da sociedade,
os quais são potencialmente ilimitados. Assim, quanto maior for
o sucesso financeiro da empresa, proporcionalmente será maior
a remuneração do sócio, na forma de participação nos lucros
gerados.

Isto não ocorre com o credor, cujo crédito é, como se viu,


exigível, mas limitado aos valores preestabelecidos.

Uma terceira diferença está na modalidade de risco de


cada um destes tipos de investimento. O risco do credor está na
possível incapacidade patrimonial de pagamento do devedor –

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no caso, a sociedade. Trata-se do que se pode chamar de risco
de insolvência. O credor não recebe se o devedor não tiver bens
suficientes para honrar tal compromisso.

Já o sócio assume uma outra modalidade de risco, que é


o de fracasso econômico das atividades a serem desenvolvidas
pela sociedade. Todas as sociedades têm finalidade lucrativa. Isto,
porém, não significa que todas elas alcançarão o lucro almejado.
Assim, se a sociedade não for economicamente bem-sucedida,
não haverá lucro a partilhar. O risco do sócio é, portanto, o risco de
insucesso da sociedade.

Por fim, uma quarta significativa distinção entre credores


e sócios está na prerrogativa de interferir ou não sobre os atos a
serem praticados pela devedora e sobre a gestão do patrimônio
dela.

Em princípio, os sócios têm direito de participação na


sociedade, o qual se desdobra exatamente na prerrogativa de
votar nas deliberações sociais e na eleição dos administradores do
patrimônio e atividades sociais.

Já o credor não tem, em regra, tal poder de participação,


permanecendo – ao contrário – alheio à forma pela qual age a
sociedade devedora e são escolhidos os gestores do capital por
eles fornecido1.

Feitas estas distinções necessárias e fundamentais, pode-


se passar à análise das principais formas de captação de recursos
1 Vale repetir que esta distinção leva em conta a realidade fundamental de cre-
dores e sócios. Com o evoluir do regime jurídico das sociedades e formas de
captação de recursos, acabaram por ser desenvolvidas formas “híbridas”,
como as debêntures perpétuas, as conversíveis em ações ou com remunera-
ção vinculada aos lucros obtidos pela sociedade devedora e mesmo as ações
preferenciais sem direito de voto e sem prioridade na repartição dos lucros.

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financeiros por uma empresa startup, seja na forma de admissão
de novos sócios ou de novos credores.

3 – Ações e quotas: aspectos comuns e distinções

As chamadas ações ordinárias são normalmente


conceituadas como a espécie que confere a seus titulares a
integralidade do “estado de sócio” ou “direito de participação”, pois
assegura a estes acionistas, além dos seus direitos essenciais, a
faculdade de intervir, com base no direito de voto, nas deliberações
sociais em geral.

As ações ordinárias são as únicas de existência obrigatória,


tanto nas companhias abertas quanto nas fechadas. Isto significa
que, salvo previsão estatutária, a totalidade do capital da companhia
será composto por ações desta espécie, o que coloca todos os
seus acionistas no mesmo grau de direitos e deveres em relação à
sociedade.

As ações preferenciais, por sua vez, decorrem de criação


estatutária, tanto nas companhias abertas quanto fechadas. Assim,
elas somente existem quando forem previstas no estatuto social,
ao qual também cabe estruturar, dentro das premissas fixadas em
lei, os direitos e possíveis restrições aplicáveis aos seus titulares.

A característica que mais evidentemente individualiza as


ações preferenciais está no fato de terem, em relação às ações
ordinárias, uma vantagem ou preferência especificamente a elas
atribuída, por previsão estatutária. Tais vantagens podem ser de
natureza patrimonial ou política.

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Por outro lado, o estatuto social pode retirar das ações
preferenciais, por previsão expressa, um ou mais dos direitos
pertinentes às ações ordinárias, inclusive o direito de voto nas
deliberações sociais.

Assim - e diferentemente do que se tem nas ações ordinárias


- as ações preferenciais podem, em caso de previsão estatutária
neste sentido, ser “não votantes” nas deliberações sociais, o que
acaba, na prática, permitindo que o capital de uma companhia
com ações desta espécie seja dividido entre o “votante” e o “não
votante” .

Afiguram-se elas, deste modo, como possível instrumento


de atração de capital para a companhia sem alteração no poder
de controle sobre as deliberações e gestão da sociedade, os quais
ficam concentrados nos titulares de ações ordinárias. Os titulares
de ações preferenciais – chamados preferencialistas – não votantes
são, portanto, um grupo de sócios sem poder de interferir nas
decisões da companhia e, por consequência, na estrutura interna
de controle.

Denomina-se quota a fração constitutiva do capital de uma


sociedade limitada ou qualquer outra daquelas disciplinadas pelo
Código Civil. Por consequência, pode-se afirmar que o valor do
capital social destas sociedades é o resultado da soma aritmética
do valor das quotas em que está dividido.

Ao contrário do que se tem com as ações, as quotas não


são legalmente classificadas em diferentes espécies ou classes. É
da essência da quota o conferimento, ao seu titular, dos mesmos
direitos e deveres em relação à sociedade, sem qualquer vantagem
ou restrição específica para alguns, em relação aos demais.

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As quotas componentes do capital de uma sociedade
podem ser de valores iguais ou diferentes entre si, assim como
uma mesma pessoa pode ser titular de uma ou várias delas (Código
Civil, art. 1.055). Tem-se então que, em determinada sociedade,
uma pessoa pode ter cem quotas no valor de R$ 1,00 (um real)
cada, enquanto outra pode ser, por exemplo, titular de única quota
no valor de R$ 100,00 (cem reais).

O exercício dos direitos de sócio é diretamente proporcional


ao percentual que a quota ou as quotas de um sócio representam
no capital social. Assim, sejam cem quotas de R$ 1,00 (um real)
cada ou uma quota de R$ 100, 00 (cem) reais o percentual é, em
ambos os casos, o mesmo em relação ao montante total do capital
social e, em decorrência, os direitos de sócio serão exercidos, neste
exemplo, em igual proporção.

O número de quotas integrantes do capital social, assim


como o valor e titularidade de cada uma delas, é fixado em cláusula
constante do contrato social assinado por todos os sócios (Código
Civil, art. 997), instrumento no qual também são fixadas as formas
de integralização de cada uma destas frações.

A condição de quotista se prova pela referência, em cláusula


do contrato social assinado por todos os sócios e devidamente
arquivado no órgão de registro competente, ao nome daquela
pessoa física ou jurídica como titular de uma ou mais quotas de
determinada sociedade.

Já a transferência de titularidade sobre uma ou mais das


quotas integrantes do capital social se opera pelo arquivamento,
igualmente no órgão de registro competente, de alteração no
contrato social assinada pelo alienante, pelo adquirente e demais
sócios remanescentes.

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4 – Os denominados investidores “anjo” e o “capital semente”

Várias startups que vêm se destacando desde o início dos


anos 2000 baseiam-se em ideias inovadoras, mas isso não quer
dizer que todas as incríveis ideias deem certo – muitas delas nem
saem do papel, por falta de recursos. As ideias inovadoras precisam
ser testadas e, para tanto, alguns empreendedores contam com
investidores anjos e capital semente.

No mercado brasileiro (e internacional), encontra-se


profissionais chamados de investidores anjos ou anjos de negócios
(em inglês, “business angels” e “angel investors”), especializados em
apoiar projetos existentes na fase inicial, no estágio de teste da
ideia, do produto ou do modelo de negócio. Esses profissionais em
regra são pessoas com grande experiência no mercado no qual
está situada a startup. São bem-sucedidos, confiantes, experientes
e conhecem as tendências e as oportunidades de algumas áreas
do mercado. Além do mais, eles têm disposição e vontade de
contribuir na criação de novas empresas e novos produtos.

Em essência, trata-se de uma relação de fornecimento


de capital a uma startup na qual uma pessoa física investe seus
recursos financeiros disponíveis com o objetivo de tornar a
nascente empresa economicamente mais fortalecida.

Este investidor agrega não apenas capital mas também


colabora ativamente para o desenvolvimento das atividades da
startup, não sendo, assim, apenas um credor ou sócio que aguarda
passivamente o retorno financeiro de seu investimento – na forma
de juros e correção monetária ou participação nos lucros.

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Por se tratar, em geral, de pessoa com grande experiência
e/ou networking na área de atuação econômica da startup, este
investidor colabora também com seus atos e contatos profissionais
para o sucesso da empresa, abrindo-lhe novas oportunidades ou
fornecendo-lhe novos conhecimentos.

Este investidor funciona, assim, como um consultor sem,


entretanto, ocupar posição administrativa na sociedade. O termo
“anjo” refere-se não ao caráter filantrópico do investimento, mas ao
ressaltado fato de que este investidor não é apenas um credor, mas
alguém que colabora ativamente para o sucesso da sociedade.

Esta forma de investimento foi regulamentada pela


Lei Complementar 155/2016 que estabelece as regras de
funcionamento do investimento-anjo para as microempresas ou
empresas de pequeno porte, incentiva as atividades de inovação,
os investimentos produtivos e facilita ainda mais o caminho de
quem está buscando dinheiro para desenvolver a sua startup.

A lei estabelece uma nova forma de participação na sociedade


e representa uma importante garantia para os investidores, não os
tornando responsáveis pelas obrigações da empresa. O investidor-
anjo não pode, por exemplo, ser acionado para pagar uma dívida
trabalhista ou fiscal da startup.

Ocorre, dessa forma, a celebração de um “contrato de


participação” entre o empreendedor e o investidor-anjo, com a
finalidade de fomento à inovação e aos investimentos produtivos.

Por outro lado, para o empreendedor, o fato de o


investimento-anjo não ter participação societária garante que o
controle societário da startup que continuará em suas mãos. Assim,
a Lei Complementar 155/2016 contribui para que empreendedor e

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investidor-anjo possam exercer cada um o seu papel respectivo.
De fato, a startup é a principal beneficiária, que se vê protegida de
interferências externas, e, simultaneamente, torna-se um ambiente
mais seguro para os investimentos.

Consoante a lei, “o investidor-anjo somente poderá exercer


o direito de resgate depois de decorridos, no mínimo, dois
anos do aporte de capital”. A finalidade da medida é garantir ao
empreendedor um mínimo de estabilidade, impedindo que o
dinheiro investido migre para outro negócio a qualquer momento.

A Lei Complementar 155/2016 exige também que a vigência


do contrato de participação não ultrapasse 7 anos. Essa regra traz
benefício ao investidor-anjo, fixando um prazo máximo para ele
realizar as perdas ou os ganhos do que foi investido.

Uma modalidade específica de investimento em sociedades


nascentes – startups – é a denominada “capital semente” (seed
capital), que se constitui nos aportes realizados nos estágios ainda
iniciais da atividade empreendedora.

Realizado muitas vezes pelos próprios sócios ou pessoas a


eles próximas – como parentes e amigos – serve para, literalmente,
viabilizar a implementação inicial da atividade empresarial a ser
realizada pela startup e, assim como se dá nas outras hipótese
mencionadas no texto, o investidor formaliza tal aplicação na forma
de sócio ou de credor da nascente sociedade.

O investidor-anjo é, comumente, uma pessoa física; o capital


semente, entretanto, que assume as mesmas características do
investimento-anjo, é procedente de uma pessoa jurídica (em geral
por um fundo de investimento com um deep pocket e que tem,

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como atividade econômica, aportar investimentos em negócios
com grande potencial de escalabilidade).

Os investidores de capital-semente, diversamente


dos investidores-anjo, geralmente procuram negócios mais
consolidados, com produtos e clientes bem definidos etc. – mas
que ainda precisam de investimentos para se consolidarem no
mercado. Eles investem quantias maiores que os investidores-anjo
em várias startups, para diversificar sua carteira e solver seu risco,
ampliando as chances de lucrar com maior acerto.

5 – As “opções” de ações ou quotas e o financiamento de


startups

A “opção” é, em essência, uma operação financeira na qual


as partes acordam, em momento presente, o direito de, em data
futura, comprar e vender entre si uma determinada participação no
capital de uma sociedade (na forma de ações ou quotas), a preço
já fixado.

Segue um exemplo simples: A adquire de B, em 20 de


Maio de 2015, a opção de comprar, em 20 de Dezembro de 2015,
determinado número de ações preferenciais que B possui na
companhia X pelo valor de, digamos R$100,00 cada.

Assim, na data de vencimento da opção, 20 de Dezembro


de 2015, caberá a A (adquirente da opção) decidir se deseja ou não
comprar as ações preferenciais de B, pelo preço estipulado entre
eles. Se A desiste de comprá-las, perde o valor pago pelo opção,
ou seja, pelo direito de adquiri-las. Se, por outro lado, A resolve
efetuar a compra (realizar a opção), B tem o dever de vende-las,
pelo valor estipulado.

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Tal contrato está atrelado ao valor das ações em questão.
Além disso, apresenta forte e evidente caráter especulativo, pois,
como está previamente estipulado o valor de cada ação, o titular da
opção de compra irá exercê-la se, na data fixada para tal exercício, o
valor de negociação das ações objeto no mercado estiver superior
àquele pelo qual a outra parte se obrigou a vendê-las.

O titular de uma opção de compra – chamada call – aposta


que, na data futura, fixada para a realização da opção de compra, a
ação objeto estará valendo mais do que o preço estabelecido por
ele e pelo vendedor, quando da estipulação da opção.

O titular da opção de compra tem, como dito, o direito de


comprar a ação objeto pelo preço anterior (seu valor na opção)
e não pelo preço atual, o que significa que, se efetivada a sua
expectativa de aumento no valor da ação objeto, ele, titular do
direito de compra-las a preço inferior, realizará os ganhos desta
diferença.

Já o titular de uma opção de venda – chamada put – adquire


o direito de vender certo número de ações objeto, pelo preço
fixado, na data futura estabelecida. Ele acredita que, na data da
efetivação da compra e venda, a ação objeto valerá menos do que
o estabelecido na opção e busca, por meio deste derivativo, evitar
a perdas decorrentes de tal desvalorização, minimizando seus
riscos.

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6 – As denominadas “incubadoras” e as “aceleradoras”

Dada a sua própria natureza, as startups são em geral


organizadas a partir de elementos intangíveis inovadores
(tecnologia), grande disponibilidade e capacidade dos
empreendedores mas, por outro lado, relativa inexperiência
gerencial, aliada à necessidade premente de captação de recursos
financeiros.

De forma a preencher estas duas lacunas inerentes à


generalidade das startups – relativamente pouca experiência
gerencial e necessidade de capital – é corrente a atuação de duas
modalidades particulares de investidores. São eles as denominadas
“incubadoras” e as “aceleradoras”.

Embora sejam conhecidas no mercado como realidades


distintas, ambas têm significativos pontos de contato: são, em
regra, dotadas de relevantes ativos financeiros destinados ao
fortalecimento econômico de startups com forte potencial de
crescimento.

Além disso, “incubadoras” e “aceleradoras” são fortemente


caracterizadas por serem instituições com grande conhecimento
de mercado e gestão, o qual é usufruído pela startup por elas
financiada.

As “incubadoras” são caracterizadas por serem entidades


destinadas ao fomento financeiro de empresas startup cujo produto
ou serviço tenham particular interesse estratégico ou econômico
para uma determinada região ou entidade do Poder Público.

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Deste modo, as “incubadoras” estão interessadas em um
determinado “nicho” de mercado e buscam se aliar a empresas
que ofereçam produtos ou serviços vinculados a tal “nicho”.

É também comum que a “incubadora” tenha seu capital direta


ou indiretamente oriundo do PoderPúblico, o que torna a formalização
da relação com a empresa startup e os controles sobre o uso dos
recursos investidos mais burocrático e sujeito a regras mais rígidas.

Quais são os objetivos de uma incubadora de startups

Bem, talvez você esteja se perguntando: porque uma


incubadora ajudaria no nascimento de outras empresas
sem lucrar nada (ou quase nada) com isso? A resposta
é simples: ela lucra, mas nem sempre é diretamente.
Por estarem bastante ligadas à instituições de
ensino, causas sociais ou programas do governo
(como o Sebrae), as incubadoras, ao desenvolver o
surgimento de tecnologias e novos mercados no país,
ajudam a aumentar não só o número de empregos
como a qualidade do que é produzido no Brasil.

Responsável por ajudar aqueles que estão começando no


mundo do empreendedorismo (ou até alguns veteranos
que precisam de uma forcinha em novos projetos), a
incubadora de startups é uma verdadeira mão na roda
para qualquer empresa que esteja começando a andar.
Por isso, mais do que uma bela parceira, ela pode
também ser a salvadora de muitos projetos futuros.
http://www.guiaempreendedor.com/entenda-como-
uma-incubadora-vai-ajudar-sua-startup-a-decolar/

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“A filosofia do modelo das incubadoras é a de auxiliar novos
empreendedores e de protegê-los do hostil ambiente do mercado
aberto, de forma a permitir eles crescerem dentro de um espaço
seguro”2. As incubadoras têm foco em desenvolvimento econômico
e o objetivo de abrigar empresas vulneráveis até que elas possam
se tornar independentes.

Graças a uma demanda econômica por competitividade e a


busca pelo crescimento da população de pequenas empresas de
alta tecnologia, vistas como fonte crucial na geração de empregos,
o investimento público e privado em Incubadoras de Negócios e
Parques Tecnológicos mostra-se promissor. “Isso se dá devido ao
fato de as incubadoras serem descritas como capazes de aumentar a
chance de sobrevivência de empresas incubadas”3.

Já as denominadas “aceleradoras” são, como as


“incubadoras”, dotadas de ativos financeiros de grande monta
e experiência de mercado destinados a serem aplicados em
empresas que lhes demonstre alta capacidade de crescimento
econômico.

As aceleradoras podem variar no montante investido,


tamanho da participação acionária tomada, duração do programa
de orientação e educação, disponibilidade de espaço de co-
working (trabalho compartilhado) e no foco vertical da indústria.
“Algumas aceleradoras são afiliadas às empresas de capital de
risco ou grupos de investidores anjo, algumas com corporações e

2 COHEN, Susan. What do accelerators do? Insights from incubators and an-
gels. innovations, v. 8, n. 3-4, p. 19-25, 2013
3 DEE N. J., et al. Incubation for Growth: A review of the impact of business
incubation on new ventures with high growth, Nesta Report. 2011

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outras com universidades, governos locais ou com organizações não
governamentais”4.

Elas disponibilizam também mentoria com empreendedores


bem sucedidos, oportunidades de networking, venture capitalists,
investidores anjo ou até mesmo empresas executivas.

Na prática, as aceleradoras são uma combinação de distintos


serviços/funções que antes eram caros para um empreendedor
encontrar e obter individualmente. A abordagem da aceleradora
foi amplamente adotada por grupos privados e públicos, por
corporações e por esforços governamentais5.

A decisão das “aceleradoras” em investir ou não em uma


determinada startup é baseada essencialmente no potencial
de lucratividade que o produto ou serviço oferecido apresenta.
Não há, em geral, preocupação com um determinado “nicho” de
mercado ou com critérios outros além da futura geração de alto
retorno para o investimento feito.

4 COHEN, Susan; HOCHBERG, Yael V. Accelerating startups: The seed acce-


lerator phenomenon. 2014.
5 HOCHBERG, Yael V. Accelerating entrepreneurs and ecosystems: The seed
accelerator model. Innovation Policy and the Economy, v. 16, n. 1, p. 25-51,
2016.

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7 – Os Fundos de investimento e “venture capital”

O fundo de investimento agrega o capital de inúmeros


investidores para, com este montante, investir no mercado
de valores mobiliários ou diretamente em empresas para, em
consequência, proporcionar aos seus quotistas os ganhos oriundos
da variação no preço ou decorrentes dos lucros gerados pelos
títulos adquiridos.

Para o investidor, a vantagem básica é poder contar


com a capacitação técnica e elevado grau de informação dos
administradores do fundo de investimento. Com isso o investidor
fica, em princípio, desonerado dos custos de buscar, ele mesmo,
as informações sobre as boas opções de compra disponíveis no
mercado.

Por outro lado, como agregam um volume imenso de


capital, estes fundos têm enorme potencial de investimento em
diferentes tipos de atividades empresariais.

Fundos abertos são aqueles que admitem a livre entrada


e saída de quotistas e o aumento, mediante novos aportes, da
participação de cada um. Os fechados, ao contrário, somente
permitem o resgate do valor das cotas ao final de suas operações.

As quotas de fundos de investimento passaram, com a Lei n.


10.303/2001, a ser consideradas valores mobiliários, o que atraiu
para elas a possibilidade de negociação ao público no mercado
mas também as normas e demais competências a cargo da
Comissão de Valores mobiliários.

Fundos de investimento são, como “investidores anjo”,


“incubadoras” ou “aceleradoras”, pessoas (físicas ou jurídicas)

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que aportam capital em atividades empresariais através de
sua admissão – ainda que temporária – à condição de sócio do
empreendimento ou por meio da condição de credor desta
empresa.

Tratam-se, pode-se mesmo dizer, de diferentes agentes que


figuram em um dos polos das operações de “venture capital” (capital
de risco), tomada esta como qualquer aporte financeiro realizado
por uma pessoa física ou jurídica em uma atividade empresarial
com o objetivo de, seja na condição de sócio ou de credor, auferir
lucros decorrentes do sucesso da atividade da empresa na qual se
deu o investimento.

O termo capital de risco sugere que o investidor – assuma


qual modalidade for – vincula o retorno de seu investimento ao grau
de sucesso econômico da atividade investida. Por isso, empresas
vinculadas a inovações tecnológicas – como caracteristicamente é
o caso das startups – costumam atrair mais diretamente o interesse
dos titulares deste tipo de capital de risco.

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Referências

COHEN, Susan. What do accelerators do? Insights from


incubators and angels. innovations, v. 8, n. 3-4, 2013.

COHEN, Susan; HOCHBERG, Yael V. Accelerating startups:


The seed accelerator phenomenon. 2014.

DEE N. J., et al. Incubation for Growth: A review of the impact


of business incubation on new ventures with high growth, Nesta
Report. 2011

HOCHBERG, Yael V. Accelerating entrepreneurs and


ecosystems: The seed accelerator model. Innovation Policy and
the Economy, v. 16, n. 1, 2016.

LEGAL TALKS:
90 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Capítulo 4

STARTUPS E DIREITOS DO
CONSUMIDOR
Ana Amélia Ribeiro Sales

Apesar de, sob o ponto de vista mercadológico e empresarial,


as startups serem dotadas de características que as diferenciam
das demais empresas, notadamente por estarem em fase inicial
de desenvolvimento e organização de suas atividades, do ponto
de vista jurídico, as startups enquadram-se no conceito geral de
empresariado, assim como as demais empresas, qual seja: exercem
atividade econômica organizada para a produção ou a circulação
de bens ou de serviços (art. 966, Código Civil).

Em razão disso, uma série de regramentos jurídicos são


aplicáveis às startups assim como às demais empresas, dentre eles
as normas destinadas à proteção do consumidor.

É fato que grande parte das startups comercializam produtos


ou prestam serviços ao consumidor. Portanto, é imprescindível
que elas conheçam e também atuem em conformidade com
a legislação consumerista brasileira, tanto para respeitarem o
ordenamento jurídico quanto para reduzir os riscos de ações
judiciais e reclamações de clientes insatisfeitos.

A Constituição Federal Brasileira garante a defesa do


consumidor, conforme está preceituado em seu art. 5º, XXXII: “o
Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 91
Assim, a partir dos princípios constitucionais da defesa do
consumidor e da igualdade nas relações de consumo, normas
protetivas do consumidor foram fixadas pela Lei Federal n.º
8.078/90, conhecida como Código de Defesa do Consumidor –
CDC.

Promulgado no ano de 1990 e já tendo sofrido algumas


alterações legislativas desde então, o Código de Defesa do
Consumidor é considerado uma legislação relativamente recente
e na vanguarda da defesa dos direitos do ponto de vista do
consumidor.

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) define as partes


de uma relação de consumo para estabelecer a quem as regras
nele dispostas são aplicáveis. De acordo com o CDC, o consumidor
é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou
serviço como destinatário final. Ao definir a figura do fornecedor,
o CDC estabelece que este é toda pessoa física ou jurídica,
pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes
despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção,
montagem, criação, construção, transformação, importação,
exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou
prestação de serviços.

O Código de Defesa do Consumidor ainda traz a definição


dos termos produto e serviços. Produto é definido pelo CDC
como qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. Já os
serviços consistem em qualquer atividade fornecida no mercado
de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza
bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes
das relações de caráter trabalhista.

LEGAL TALKS:
92 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
A partir dessas definições, o Código de Defesa do
Consumidor (CDC) traça regras que devem reger as relações de
consumo, com o objetivo de sanar uma situação de desequilíbrio
que, comumente, existe nessas relações em que o consumidor se
apresenta como parte mais frágil ou vulnerável diante das empresas
ou conglomerados fornecedores de produtos ou serviços com
grande poder de mercado. Assim, considerando a vulnerabilidade
do consumidor e buscando uma equalização nas relações de
consumo, para reequilibrar essa situação de desigualdade entre as
partes (consumidor x fornecedores), o CDC traz uma série de regras
caracterizadas pelo protecionismo ao consumidor e que atribuem
um ônus maior aos fornecedores.

Não há dúvidas de que, em sua imensa maioria, as startups


enquadram-se no conceito de fornecedor estabelecido pelo CDC,
e, portanto, os atos negociais praticados pelas startups com os seus
clientes (consumidores) estão submetidos às normas e garantias
dispostas no CDC.

Nesse contexto, quando no lugar do grande conglomerado


se tem uma startup (especialmente aquelas com modelos de
negócio B2C – business to consumer) deve-se reforçar a atenção
aos impactos que as disposições do CDC podem causar nos atos
negociais da startup, que possivelmente não possuem o poder de
mercado e econômico dos grandes fornecedores para os quais o
CDC traçou as suas normas.

Como visto, o Código de Defesa do Consumidor é uma


legislação da década de 1990, quando eram poucas ou incipientes
as startups. O CDC é um código pensado para proteger o consumidor
em sua vulnerabilidade diante dos grandes fornecedores e
conglomerados.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 93
Entretanto, houve o boom no surgimento das startups e o
CDC é a legislação que será aplicada nos atos negociais dessas,
mesmo elas não se configurando como grandes fornecedores ou
conglomerados, bastando enquadrar-se, como de fato, em sua
grande maioria, se enquadram no conceito de fornecedor.

Assim é que as normas do CDC podem causar enormes e


significativos impactos nas startups. O empreendedor de startup
deve estar atento a tais normas, devendo onhece-las para respeitá-
las, reduzindo os riscos de ações judiciais de clientes insatisfeitos e
possível impacto negativo que as normas do CDC podem implicar.

Por serem empresas em fase inicial de desenvolvimento,


as startups podem estar mais suscetíveis de impactos negativos
ante as normas protetivas do consumidor dispostas no CDC. Por
isso, tais normas merecem máxima atenção jurídica nas startups.
Abordaremos aqui algumas regras do CDC que se revelam mais
propensas de atingir as startups em suas relações negociais com
seus clientes (consumidores), merecendo especial atenção.

1 – Propositura de ações no domicílio do consumidor

De acordo com o artigo 101, inciso I do CDC, nas ações de


responsabilidade por fato do produto ou serviço, o consumidor tem
direito a propor ação em seu domicílio.

A possibilidade de o consumidor propor alguma ação em


seu domicílio pode gerar um grande problema para as startups.
Obviamente, com o auxílio da internet, não é necessário ser uma
grande e consolidada empresa ou conglomerado econômico
para fornecer produtos ou serviços em todo o território nacional. A

LEGAL TALKS:
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internet permite que startups, inclusive as de pequeno porte e com
número enxuto de funcionários, forneçam produtos ou serviços em
qualquer lugar do Brasil. E, tal fato gera, automaticamente, para
essas startups, a possibilidade de serem processadas também em
qualquer lugar do Brasil.

O surgimento de processos judiciais por si só já traz custos


inerentes para defesa (honorários de advogado, mobilização de
pessoal para defesa, etc), mas o fato de os processos judiciais
poderem ser instaurados em locais longínquos da sede da
startup pode implicar em maiores despesas, diante do necessário
deslocamento e mobilização de pessoas para promoção da defesa
e acompanhamento processual.

Mesmo nos chamados juizados especiais, em que as partes


podem comparecer desacompanhadas de advogados em um
primeiro momento (o que inicialmente pode parecer um benefício,
mas na prática pode levar a prejuízos das mais diversas ordens), há
a necessidade do comparecimento presencial de um preposto do
fornecedor/startup nas audiências.

É certo que, com a pandemia causada pelo Coronavirus


Covid-19, o Poder Judiciário tem-se utilizado de audiências on
line, por meio de videoconferência, o que sem dúvidas, economiza
e torna menos dispendiosos os custos agregados à defesa
processual – fatores significativos para pequenas startups que
fornecem para todo o território nacional. Entretanto, tais audiências
on line ainda estão em fase bem inicial de implementação e estão
sendo utilizadas apenas em casos mais urgentes e considerando
a impossibilidade da realização das audiências presenciais em
decorrência da referida pandemia. Apesar de muitos considerarem
que a tendência é a realização de atos processuais on line

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 95
(inclusive porque o processo judicial eletrônico já é uma realidade
no Poder Judiciário brasileiro), a realização de audiências por
videoconferência ainda está sendo utilizada apenas em situações
excepcionais, como a de pandemia Covid-19, e processos mais
urgentes.

O uso da arbitragem também pode, desde que haja a


concordância expressa e consciente do consumidor, ser uma
alternativa mais viável e econômica. A arbitragem é realizada
quando as partes elegem um terceiro (juízo arbitral) para solucionar
o conflito, podendo-se dizer que seria um “tribunal privado” que
solucionará o conflito através de uma sentença arbitral, sem a
interferência do Poder Judiciário (e toda a lentidão e custos a ele
inerentes). O uso da arbitragem é regulado pela Lei n.º 9.307/1996,
sendo possível que o procedimento arbitral seja feito 100% on line,
desde que acordado pelas partes.

Contudo, é de se destacar que o CDC também limitou o uso


da arbitragem para a solução dos conflitos oriundos das relações
de consumo quando, em seu art. 51, VII, dispôs que são nulas as
cláusulas contratuais que determinam a utilização obrigatória da
arbitragem.

Assim, a arbitragem somente será uma alternativa viável


quando o consumidor com ela concordar expressamente, não
sendo possível estabelecer em contrato, tampouco nos termos
de uso, a obrigatoriedade de arbitragem em casos de conflito
decorrente da relação negocial com a startup e seus clientes.

Dessa forma, para fornecer produtos ou serviços para locais


longínquos da sede da startup ou até mesmo em todo o território
nacional, a direção da startup deve levar em consideração questões
relevantes como atendimento ao consumidor a fim de evitar tanto

LEGAL TALKS:
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quanto possível eventuais reclamações judiciais dos seus clientes,
o que poderá ser processado no domicílio do cliente.

2 - Direito de arrependimento

O direito de arrependimento é uma questão atinente à


aquisição de produtos ou serviços on line, e, por isso muito comum
nos negócios praticados por startups.

O Código de Defesa do Consumidor dispõe que sempre que


a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer
fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone, a
domicílio ou compras pela internet, o consumidor pode desistir do
contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de
recebimento do produto ou serviço.

O direito de arrependimento do consumidor não precisa ser


justificado. Basta a vontade do consumidor de desfazer o negócio,
não sendo necessário justificar o motivo da devolução, nem que
haja algum defeito ou falha no produto/serviço entregue.

Considerando a vulnerabilidade do consumidor, o CDC


entende que, nas compras feitas à distancia (não presenciais),
em razão da falta de contato direto com o objeto, a vontade do
consumidor em adquirir o produto ou serviço e a capacidade dele
em avaliar se a oferta realmente corresponde às suas expectativas
e possibilidades podem estar comprometidas. Mais uma vez, o
CDC atribui ao consumidor uma situação de vulnerabilidade diante
do fornecedor, e, em razão disso basta o arrependimento do
consumidor para o desfazimento do negócio, ainda que não haja
justificativa para tal.

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STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 97
A regra pode parecer injusta aos fornecedores, principalmente
quando eles são pequenas startups, pois nos casos em que há o
arrependimento injustificado do consumidor, o fornecedor/startup
já abriu mão da mercadoria/serviço por alguns dias e já incorreu
em gastos (transporte, embalagens, mobilização de funcionários,
etc) que repercutem em sua situação empresarial. No entanto, a
regra deve ser respeitada haja vista o direito de arrependimento
estar garantido na legislação consumerista, e sob pena de dar
surgimento a ações judiciais e reclamações dos clientes capazes
de causar prejuízos ainda maiores.

Assim, as startups que atuem comercializando produtos ou


serviços on line devem estar cientes de tal regra para permitir e
facilitar a devolução do produto/serviço sem cobrar quantias ou
causar prejuízos de qualquer espécie para o consumidor.

De toda forma, quando o consumidor faz uso do direito


de arrependimento, as startups (fornecedores) devem avaliar
individual e cautelosamente solicitações de seus clientes, pois
o direito de arrependimento não contempla casos em que os
consumidores tenham utilizado o produto de forma excessiva, o
tenham deteriorado ou estejam agindo de má-fé.

3 - Responsabilidade Objetiva do Fornecedor

Também tendo como premissa a vulnerabilidade do


consumidor, o CDC atribui ao fornecedor uma responsabilidade
objetiva pelo fornecimento do produto ou serviço. Dizer que
há responsabilidade objetiva significa dizer que, o fornecedor
responde pela reparação dos danos causados aos consumidores

LEGAL TALKS:
98 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por
informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e
riscos, independentemente da existência de culpa do fornecedor
na ocorrência do dano. O Código de Defesa do Consumidor entende
que, por auferir lucro com a atividade, o fornecedor deve responder
pelos prejuízos causados a terceiros, independentemente da
existência de culpa, e isso é o que se chama de responsabilidade
objetiva.

Ou seja, o consumidor apenas precisa comprovar a ocorrência


de dano e o nexo de causalidade existente entre o dano (prejuízo
por ele sofrido) e o defeito do produto ou serviço. Ainda que não haja
omissão (negligência), ação imprudente ou imperita do fornecedor,
ele deverá arcar com os prejuízos (danos) que o produto ou serviço
causaram ao consumidor. Assim, a responsabilidade objetiva traz
grandes impactos e risco aos fornecedores, principalmente se
estes forem startups, ainda em fase de consolidação no mercado.
Esses riscos advindos da responsabilidade objetiva devem ser
assumidos pelas startups desde o momento de constituição do
negócio, eis que interferem diretamente na viabilidade da atividade
econômica.

Cabe aqui uma importante observação com relação às


startups desenvolvedoras/administradoras de aplicativos. Apesar
de ser ainda polêmico e existirem diversos entendimentos jurídicos
sobre o assunto, é importante enfatizar que a responsabilidade
objetiva também pode ser atribuída às startups desenvolvedoras/
administradoras de aplicativos.

Startups, a exemplo das administradoras de aplicativos de


entrega de produtos em domicílio, de transporte de passageiros,
de hospedagem, etc, podem ficar sujeitas à responsabilização caso

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 99
o produto ou serviço entregue apresente defeito e cause dano ao
consumidor, independentemente de terem culpa a respeito do
defeito apresentado. Assim, danos decorrentes, por exemplo, da
comida delivery que causou intoxicação alimentar, do motorista
de aplicativo que errou o endereço e não conseguiu levar o
passageiro ao destino ou o destratou causando danos (inclusive
de ordem moral), podem ser atribuídos não só aos responsáveis
diretos (restaurante, motorista, loja/fabricante do produto), como
também às administradoras de aplicativos, independentemente
de estas serem grandes empresas ou startups e de terem ou não
agido com culpa.

Isto porque o serviço prestado por essas startups se


enquadra no conceito fixado no § 2º do art. 3º do CDC, que dispõe,
expressamente: “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado
de consumo, mediante remuneração...”.

Qualquer empresa, seja uma pequena startup ou um grande


conglomerado econômico, que se enquadre nas definições já
expostas de fornecedor e forneça produtos ou serviços (também
de acordo com as definições do CDC) fica sujeita a responder por
eventuais danos que o produto ou serviço entregue em função do
exercício de sua atividade cause aos clientes (consumidores), ainda
que elas não tenham agido com culpa para que tal dano ocorresse.

A responsabilidade do fornecedor pode, no entanto, ser


afastada nas seguintes hipóteses: se o fornecedor comprovar que
não colocou o produto/serviço no mercado; se provar que, tendo
prestado o serviço, o defeito inexiste; ou se provar que houve culpa
exclusiva do consumidor ou terceiro, conforme dispõe o §3º do art.
14 do CDC. O motivo de força maior ou o caso fortuito também se

LEGAL TALKS:
100 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
enquadram nessas hipóteses de exclusão da responsabilidade do
fornecedor.

Assim, é imprescindível conhecer o instituto da


responsabilidade objetiva que é atribuível às empresas, sobretudo
quando estamos falando de startups, pois, tal responsabilização
jurídica acarreta riscos inerentes à atividade empresarial, desde
a escolha de desenvolvimento do próprio negócio, à escolha de
parceiros e às diversas formas de condução dos negócios.

A possível atribuição de responsabilidade objetiva pela


falha ou defeito do produto ou serviço, independentemente da
ocorrência de culpa do fornecedor, é, assim, um risco que deve ser
conhecido e considerado pelas empresas, principalmente quando
falamos em startups, as quais, normalmente, ainda estão em fase de
desenvolvimento e devem ser por isso bem estruturadas e pensadas.

4 - Repetição do indébito em dobro

Outra norma protetiva que merece atenção especial das


startups e demais empresas que se configuram como fornecedores
de produtos ou serviços é o art. 42 do Código de Defesa do
Consumidor. Este artigo prevê que, na cobrança de débitos, o
consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será
submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

E, ainda, o parágrafo único do mesmo artigo estabelece


que o consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à
devolução em dobro do que pagou em excesso, acrescido de
correção monetária e juros legais.

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STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 101
Dessa forma, o CDC institui o que é conhecido por repetição
do indébito em dobro, ou seja, prevê a restituição em dobro do valor
cobrado indevidamente. O CDC considera que a cobrança em
excesso é uma prática abusiva e, por isso, estabelece que a vítima
dessa prática (o consumidor) tem direito a receber em dobro o que
foi pago em excesso.

A ocorrência da cobrança indevida e o seu respectivo


pagamento já faz surgir para o consumidor o direito de receber
em dobro o que foi pago em excesso, sem necessidade de entrar
com processo judicial para tanto. O direito já existe e o consumidor
pode solicitar a devolução em dobro diretamente ao fornecedor.

No entanto, o que geralmente acontece é que muitas vezes


os fornecedores se recusam a devolver em dobro a quantia cobrada
em excesso e os consumidores são levados a ingressar com
processo no Poder Judiciário para ter seu direito respeitado. Isso
acaba fazendo surgir mais gastos para o fornecedor que terá (se
efetivamente perder o processo) de arcar com custas processuais
e honorários de sucumbência, além, é claro, da devolução em
dobro do valor cobrado indevidamente do consumidor.

No entanto, os fornecedores e startups devem estar ainda


atentos para o fato de que nem sempre a repetição do indébito
deve se dar em dobro, pois pode ocorrer a hipótese de a devolução
do indébito ser realizada espontaneamente e de forma simples (ou
seja, apenas a devolução do valor cobrado indevidamente).

Isto porque o CDC prevê uma exceção para o direito de


devolução em dobro do valor indevidamente cobrado. A exceção
ocorre quando a cobrança indevida for decorrente de um “engano
justificável”, conforme dispõe o próprio parágrafo único do art. 42
do CDC.

LEGAL TALKS:
102 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Não são juridicamente delimitadas quais hipóteses
configuram o que seria o “engano justificável”. A doutrina esclarece
que o erro justificável poderia ser a culpa exclusiva de terceiros.
Por exemplo, a ação de um “vírus” em programa de computador ou
mesmo uma falha no sistema, o que afastaria, excepcionalmente, a
responsabilidade objetiva do fornecedor e configuraria o “engano
justificável” a ponto de afastar a repetição em dobro do indébito6.

Assim, se houver um “engano justificável” a devolução


do valor indevidamente cobrado deve se dar de forma simples
(repetição do indébito simples); caso contrário, se houver má-fé
do credor ou mesmo culpa, a devolução do valor indevidamente
cobrado deve ser em dobro (repetição do indébito em dobro).

Outra questão para a qual os fornecedores, inclusive startups,


devem estar atentos com relação à repetição do indébito é o prazo
prescricional.

O Código de Defesa do Consumidor não prevê, explicitamente,


prazo prescricional específico para os casos de repetição de
indébitos. No entanto, o art. 27, CDC, dispõe que “prescreve em
cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato
do produto ou do serviço […], iniciando-se a contagem do prazo a
partir do conhecimento do dano e de sua autoria”.

A jurisprudência, notadamente do Superior Tribunal de


Justiça, considera, assim, que prescreve em cinco anos o direito de
o consumidor exigir a devolução (seja simples ou em dobro) dos
valores indevidamente cobrados pelo fornecedor e pagos pelo
consumidor7.
6 GRINOVER, Ada Pellegrini [et al.]. Código brasileiro de defesa do consumi-
dor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004. p. 395/397.
7 STJ, 4ª Turma, AgInt no AREsp 1056534 / MS, rel. Min. LUIS FELIPE SALO-
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 103
Portanto, nem sempre que o fornecedor/startup faz a
cobrança indevida é obrigado a devolver o valor, e nem sempre
essa devolução deve se dar em dobro. É importante verificar,
nesses casos, se houve “engano justificável” a ponto de excluir a
devolução em dobro do valor cobrado indevidamente ou mesmo
se já não está prescrito o direito do consumidor de obter a repetição
do indébito.

5 - Interpretação das cláusulas contratuais

Um outro ponto de extrema relevância para startups é


a normatização contratual das relações jurídicas com seus
consumidores e a interpretação que a lei consumerista (CDC) dá a
tais contratos.

Os contratos ou mesmo os termos de uso – estes geralmente


celebrados por startups de serviços on line ou aplicativos – são de
extrema importância para a segurança jurídica do negócio, para
estabelecer os direitos e obrigações de cada parte (fornecedor
e consumidor), além de indicar como o produto ou serviço será
oferecido, utilizado, pago e quais as garantias.

Os contratos ou termos de uso que regulam os negócios


entre as startups e seus clientes, geralmente, enquadram-se
na modalidade de “contratos de adesão”, qual seja, contratos
caracterizados por terem sido elaborados por apenas uma das
partes (o fornecedor), sendo que a outra parte (o consumidor)

MÃO, julgado em 20/04/2017, publicado em 03/05/2017.

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104 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
apenas adere ao contrato, sem haver a possibilidade de discutir o
seu conteúdo ou alterar alguma cláusula.

Mas, é importante notar que não é apenas o contrato/termos


de uso firmado entre as partes que regerá as relações negociais
entre elas. Conforme enfatiza João Bosco Leopoldino da Fonseca
“o contrato não existe isoladamente mas, sim, dentro de um contexto,
no interior de um conjunto normativo. É ele um dos institutos de que se
compõe um ordenamento jurídico e, portanto, acompanha sempre o
seu modo de inserção na sociedade de que é expressão”8.

Além do contrato, a legislação irá interferir nessas relações


negociais, seja dando interpretação aos contratos, seja normatizando
questões omissas ou mesmo invalidando disposições contratuais
consideradas abusivas ou nulas.

Nesse sentido, o CDC, como lei que possui um caráter


essencialmente protetivo ao consumidor, vem estabelecer uma
série de regras aplicáveis aos contratos, com o fim de reequilibrar
as relações negociais nele formalizadas.

Assim, o CDC estabelece, em seu art. 47, o princípio geral


da interpretação pró-consumidor: as cláusulas contratuais serão
interpretadas sempre de maneira mais favorável ao consumidor.

A interpretação contratual a favor dos interesses do


consumidor não se exaure apenas no art. 47, mas decorre de
diversos outros dispositivos do CDC, dentre aqueles que garantem
direitos básicos ao consumidor (art. 6º), que estabelecem a
nulidade de cláusulas abusivas (art. 51) e fixam requisitos para que
algumas cláusulas contratuais sejam válidas (art. 54).

8 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Cláusulas abusivas nos contratos. 2.


Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 73.
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O CDC traz a definição dos contratos de adesão, conforme
acima referimos, e dispõe que para que as cláusulas que impliquem
limitação de direito do consumidor sejam válidas, é necessário que
elas sejam redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil
compreensão pelo consumidor. O CDC enfatiza que os contratos
de adesão devem ser redigidos em termos claros e com caracteres
ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao
corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.
A cláusula que, por exemplo, estabelece a renovação automática
da contratação dos serviços e concomitantemente a obrigação de
pagamento pelo consumidor deve ser redigida com destaque, em
negrito e/ou sublinhado, de forma a atender a exigência legal.

A não observância dessas regras pode gerar a nulidade da


cláusula contratual, em benefício do consumidor e em detrimento
do fornecedor.

É imprescindível que os contratos/termos de uso estipulem


de forma expressa e clara, para não deixar margem a interpretações,
a descrição do serviço/produto a ser fornecido, as obrigações do
fornecedor e as obrigações do cliente; os prazos para cumprimento
dessas obrigações; a contraprestação, o prazo e a forma para o
cumprimento da contraprestação; o foro contratual.

As startups devem, portanto, estar muito atentas para


a redação das cláusulas de seus contratos/termos de uso, e,
devem considerar, ainda, que, em caso de cláusulas ambíguas,
será adotada sempre a interpretação mais favorável ao cliente
(consumidor).

Uma redação bem elaborada dos contratos/termos de uso


que regem as relações contratuais das startups e seus clientes
mostra-se, assim, extremamente necessária para o sucesso dos

LEGAL TALKS:
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negócios das startups, de forma a garantir com clareza os direitos e
obrigações das partes, sem acarretar obrigações demasiadamente
onerosas para nenhuma delas e, fundamentalmente, para a startup
não acabar sendo prejudicada pelos termos do contrato do seu
próprio contrato.

6 - Direito à informação

As startups também devem ter conhecimento do teor do


direito à informação.

Com relação ao direito à informação, cujo titular é o


consumidor, o CDC deixa clara em seu art. 6º uma série de direitos
básicos do consumidor, e, dentre eles está o direito à informação
adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços. O direito
à informação engloba a especificação correta de quantidade,
características, composição, qualidade, tributos incidentes e
preço, bem como sobre os riscos que os produtos ou serviços
apresentem, conforme inciso III do art. 6º do CDC.

O CDC ainda estabelece que, a informação sobre os produtos


e serviços deve, também, ser acessível à pessoa com deficiência.
Nesse sentido, especificamente sobre os serviços prestados ou
comprados pela internet, o Estatuto da Pessoa com Deficiência
(Lei 13.146/2015) estabelece que é obrigatória a acessibilidade nos
sítios da internet mantidos por empresa com sede ou representação
comercial no País ou por órgãos de governo, para uso da pessoa
com deficiência, garantindo-lhe acesso às informações disponíveis,
conforme as melhores práticas e diretrizes de acessibilidade

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STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 107
adotadas internacionalmente. Os sítios da internet ainda devem
conter símbolo de acessibilidade em destaque.

O atendimento ao direito à informação visa possibilitar ao


consumidor uma escolha consciente dos produtos ou serviços
disponíveis no mercado. O CDC parte da premissa de que o
consumidor possui uma vulnerabilidade informacional, no sentido
de que a falta de informação adequada sobre o produto/serviço,
assim como informação abundante, confusa ou manipulada,
fragilizam o consumidor e comprometem a sua vontade na
aquisição do produto ou serviço. Como é o fornecedor quem detém
tais informações sobre o produto ou serviço e é ele quem controla
quais as informações serão disponibilizadas, o CDC estabelece
como obrigação do fornecedor informar adequadamente aos
consumidores todos os aspectos indispensáveis do produto ou
serviços, e, ainda, de forma clara.

O direito básico do consumidor a uma informação adequada


e clara configura-se, portanto, como uma importante ferramenta
de equilíbrio entre as partes na relação de consumo. Nota-se,
ainda, que, mesmo antes de haver um contrato firmado entre
consumidor e fornecedor, o fornecedor já possui a obrigação de
atender ao direito de informação do consumidor. É uma obrigação
pré-contratual.

A violação ao direito à informação do consumidor pode levar


à condenação do fornecedor por infringência a esse direito.

Além do conteúdo a ser informado ao consumidor, a forma


como se passa essa informação também é essencial para se
cumprir o dever de informar atribuído aos fornecedores.

LEGAL TALKS:
108 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Nesse sentido, o CDC estabeleceu que os contratos que
regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores,
se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento
prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem
redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e
alcance, conforme dispõe expressamente o art. 46 do CDC.

Sobre esse aspecto, o Superior Tribunal de Justiça, já


manifestou que, “No direito do consumidor, não é válida a meia
informação ou a informação incompleta. Também não é suficiente
oferecer a informação, pois é preciso saber transmiti-la, já que mesmo
a informação completa e verdadeira pode vir a apresentar deficiência
na forma como é exteriorizada ou recebida pelo consumidor”.

A informação tem de ser passada pelos fornecedores de


forma que os seus consumidores sejam capazes de entender.

É por isso que, atrelado ao direito à informação está o


princípio da transparência. Ao dispor sobre a política nacional das
relações de consumo (art. 4º), o CDC dispõe que um dos seus
objetivos é a transparência e harmonia das relações de consumo,
atendido o princípio da educação e informação de fornecedores
e consumidores quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à
melhoria do mercado de consumo.

Conforme explica Cláudia Lima Marques, “transparência


significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido,
sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações
entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual, isto é,
na fase negocial dos contratos de consumo”9.

9 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor.


O novo regime das relações contratuais. 4. ª ed.rev. atual. e amp. São Paulo:
RT, 2002. P. 594-595.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 109
O direito a uma informação clara e precisa abrange não só os
produtos ou serviços a serem fornecidos, mas também a relação
contratual a ser firmada entre as partes, a informação sobre quais
são as obrigações e os deveres de cada uma delas.

Assim, o próprio CDC possui caráter informativo e atende


aos princípios da informação e da transparência ao estabelecer as
regras que devem reger as relações de consumo.

Ainda relacionado ao direito à informação estão as questões


atinentes à publicidade enganosa. É considerada publicidade
enganosa – e por isso proibida – qualquer modalidade de
informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou
parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por
omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da
natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades,
origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.

O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou


comunicação publicitária cabe a quem as patrocina, ou seja, é um
ônus do fornecedor.

Caso o fornecedor de produtos ou serviços se recuse a


cumprir a oferta ou a publicidade, o consumidor poderá, a sua livre
escolha: exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos
da oferta, apresentação ou publicidade; ou, aceitar outro produto
ou prestação de serviço equivalente; ou, ainda, rescindir o contrato,
com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada,
monetariamente atualizada, e a perdas e danos.

As startups devem estar particularmente atentas ao direito


a informação do consumidor, haja vista que esse direito existe
mesmo antes do negócio firmado com o cliente. Como dito, o

LEGAL TALKS:
110 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
direito à informação é pré-contratual e o fornecedor já possui a
obrigação de prestar informações adequadas, claras e precisas
tão logo disponibilize o seu produto/serviço no mercado. A mera
disponibilização do produto/serviço no mercado já gera o dever de
prestar informação, de forma adequada e clara, em atendimento
aos preceitos da legislação consumerista.

A fim de evitar condenações por infringência ao direito


de informação, e, por estarem ainda firmando seu negócio nos
concorridos mercados, as startups devem assegurar que as
informações que serão ou estão sendo disponibilizadas sobre os
seus produtos/serviços são adequadas, completas e visíveis/
inteligíveis aos seus clientes.

7 - Ônus da prova

Na eventualidade da existência de uma ação judicial, na


relação com seus clientes, há ainda um ponto para o qual as
startups devem estar atentas: o CDC determina a inversão do ônus
da prova.

Em um processo entre partes iguais (em que não há relação


de consumo), a regra geral estabelecida pelo Código de Processo
Civil é a de que, aquele que alegar certo fato tem a obrigação de
prová-lo, sob pena de não serem acolhidas as suas alegações pelo
juiz.

No entanto, quando se trata de relação consumerista a regra


é diferente, eis que, conforme temos enfatizado, o CDC tem um
caráter fundamentalmente protetivo ao consumidor e que visa
suprir a sua vulnerabilidade diante dos fornecedores.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 111
O CDC, em seu art. 6º, estabelece como direito básico do
consumidor a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive
com a possibilidade de o juiz inverter o ônus da prova em seu
favor, quando for verossímil a alegação ou quando o consumidor
se mostrar hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de
experiência.

Ou seja, quando se trata de relações consumeristas, pode


ocorrer a inversão do ônus da prova, o que de fato é comumente
determinado pelos juízes nesse tipo de processo. A inversão do
ônus da prova não é automática, ela deve ser determinada pelo
juiz no caso concreto e nas hipóteses em que o consumidor é de
fato hipossuficiente para provar o seu direito.

Uma vez determinada a inversão do ônus da prova significa


que, ao consumidor cabe tão somente provar o dano e o nexo
causal entre o fato e os danos dele advindos (responsabilidade
objetiva, conforme anteriormente expusemos). Para se desonerar
da obrigação de indenizar, ao fornecedor competirá, por outro
lado, provar que inexiste o defeito no produto; que o produto não
foi colocado no mercado pela empresa; ou, ainda, culpa exclusiva
do consumidor (e aqui também mais uma vez a importância da
informação prestada pelo fornecedor ao consumidor) ou de
terceira pessoa.

Especialmente quando se trata de matéria de ordem técnica,


o ônus da prova recairá sobre o fornecedor. E quando a matéria
for de ordem técnica será necessária a realização de uma perícia
técnica e os custos para a realização de tal perícia (remuneração
do perito judicial, despesas da perícia, etc) deverão ser antecipados
pelo fornecedor, onerando ainda mais este.

LEGAL TALKS:
112 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
E, se por um lado o fornecedor fica onerado com os custos
da realização da perícia técnica, por outro lado, a não realização da
perícia poderá impossibilitar que ele prove no processo que não
deve ser responsabilizado pelas alegações do consumidor.

Conclusão

A defesa das startups em causas de direito do consumidor


possui nuances que devem ser conhecidas pelos empreendedores,
sob pena de onerar demasiadamente seus negócios, podendo,
inclusive, inviabilizar a própria atividade econômica.

O CDC por ser uma norma inicialmente pensada para


proteger o consumidor diante de sua vulnerabilidade em relação
a grandes conglomerados econômicos, acaba por estabelecer
regras extremamente onerosas aos fornecedores; regras essas
que são atribuídas também às startups, haja vista que elas também
se enquadram no conceito de fornecedor.

Assim, o empreendedor e a startup devem conhecer bem


as regras consumeristas, de forma a cumpri-las integralmente,
como forma de reduzir os riscos de reclamações de clientes
insatisfeitos. Desde a elaboração dos contratos/termos de uso,
até ao fornecimento das informações ao disponibilizar o produto
no mercado, a startup deve estar atenta às regras consumeristas.

E quando não for possível evitar as ações judiciais, o


empreendedor e a startup devem buscar meios legais e jurídicos
de reduzir os riscos advindos das ações judiciais, com um bom
acompanhamento jurídico que esteja atento às particularidades
que são inerentes aos processos que tratam de relações de
consumo, sem perder de vista as fragilidades também das startups.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 113
Bibliografia

FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Cláusulas abusivas


nos contratos. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de defesa do


consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do


Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 4. ª ed.rev.
atual. e amp. São Paulo: RT, 2002.

STJ, 4ª Turma,  AgInt no AREsp 1056534 / MS, rel. Min. Luis


Felipe Salomão, julgado em 20/04/2017, publicado em 03/05/2017.

STJ, EREsp 1.515.895 / MS, rel. Min. Humberto Martins, julgado


em 20/09/2017, publicado em 27/09/2017.

LEGAL TALKS:
114 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Capítulo 5

PROTEÇÃO DE DADOS E STARTUPS


Heloisa de Carvalho Feitosa Valadares

Vivemos numa sociedade em rede, ou, como preferem


alguns, numa sociedade da informação, em que o acesso e o
domínio da gestão de informações ganham crucial importância. A
informação é o principal ativo10 na contemporaneidade. Você já deve
ter ouvido falar que os dados são o novo petróleo. E é provável que
no seu negócio você lide diariamente com informações pessoais
de clientes, colaboradores e parceiros de negócios. É possível,
ainda, que o processamento dessas informações seja uma das
atividades centrais da sua empresa.

Airbnb, Uber, Ifood, Rappi, Loggi são exemplos de


empresas que têm crescido, e que têm como atividade principal,
essencialmente, o processamento dos dados dos seus usuários
e prestadores de serviços. Esses empreendimentos têm seu
rendimento a partir da intermediação do contato entre quem
precisa de um serviço e quem tem disponibilidade para prestá-lo,
e da cobrança de um percentual sobre a transação.

Ante esse cenário, e buscando se adequar às exigências do


mercado internacional, o Brasil começa a estruturar um sistema
robusto de proteção de dados pessoais. Essa preocupação com a
regulamentação do processamento de dados pessoais fica mais
evidente a partir da consolidação de diversas previsões legais,

10 Ativos são os bens da organização que possuem valor econômico. Abran-


gem, portanto as informações processadas e todos os recursos existentes
para o seu tratamento.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 115
existentes desde a Constituição Federal de 1988, do Código de
Defesa do Consumidor de 1990 e do Código Civil de 2002, em leis
mais específicas.

Entre essas leis que se ocupam com maior detalhamento da


proteção de dados destacam-se a Lei nº. 12.965, de 23 de abril de
2014, mais conhecida como Marco Civil da Internet (MCI), que foi
regulado pelo Decreto nº. 8.771/2016, e a Lei nº. 13.709 de 14 de
agosto de 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)11.
A urgência por um sistema de proteção de dados se intensifica
como uma forma de enfrentar os desafios decorrentes da evolução
tecnológica, assim como de adequar as empresas brasileiras às
melhores práticas internacionais, ampliando oportunidades de
negócios. As leis citadas, juntamente com a Lei nº. 9.610 de 19 de
fevereiro de 1998, Lei de Direitos Autorais (LDA), são pilares para
esse sistema de proteção de dados pessoais.

O tema ganha ainda mais relevância já que a proteção de


dados passou a ser entendida como direito autônomo e complexo,
por envolver muitas variáveis a serem observadas. A proteção
de dados implica na promoção e fortalecimento de uma cultura
organizacional voltada à garantia da privacidade e da segurança
da informação. E demanda a adequação das operações para que
se tenha a instituição de uma gestão por processos, com registro
das atividades e medidas adotadas.

A proteção de dados é um direito fundamental que todos


nós possuímos e que caminha junto com privacidade e com
autodeterminação informativa. Esses direitos em conjunto
demandam a promoção de transparência no processamento, mas

11 Para tornar o texto mais dinâmico e direto, opto por fazer referência aos
marcos legais Lei do Marco Civil da Internet e Lei Geral de Proteção de Da-
dos, respectivamente pelas siglas MCI e LGPD.

LEGAL TALKS:
116 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
sobretudo o fornecimento de informações ao titular, para que ele
tenha clareza acerca da finalidade para a qual os seus dados serão
processados pela empresa. Além disso, a adoção de uma nova
postura é voltada à segurança da informação em sentido amplo.

Sendo assim, o tema é de extrema importância para a


operação das Startups12, que comumente operam por intermédio
da internet. As empresas que se valem da internet para a prestação
dos seus serviços têm, desde o MCI, o dever de adotar uma série de
medidas técnicas e administrativas com a finalidade de criar uma
estrutura operacional de minimização de dados e de segurança da
informação.

Com o intuito de esclarecer melhor os seus deveres no que


toca à proteção de dados, veremos a seguir como a proteção de
dados impacta as suas operações e a criação de novos produtos
e serviços, como deve se adequar às exigências legais, e quais
os deveres e pontos de atenção quando a LGPD entrar em vigor,
dado o aparente conflito entre algumas de suas previsões com as
trazidas pelo MCI. Por fim, abordarei o quanto a adoção de medidas
para adequação a um padrão de proteção pode se configurar em
uma vantagem competitiva para o seu negócio.
Antes de começarmos, alguns conceitos e esclarecimentos
importantes:

Dado pessoal: é a informação relacionada à pessoa natural


que a identifica ou tem o potencial de a identificar.

12 É sabido que nem toda Startup está ligada à tecnologia. Segundo o IBGC,
Startup é uma organização escalável, de alto potencial econômico e inova-
dora. Mesmo não necessariamente ligada à tecnologia, a escalabilidade e
a inovação em geral passam pelo intermédio da internet na prestação dos
serviços, ou na oferta de produtos.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 117
Titular: é a pessoa a quem se referem os dados pessoais.

Banco de dados: é o conjunto estruturado de dados pessoais,


que pode estar concentrado em um só local ou em vários. O meio
de guarda e armazenamento desses dados pode ocorrer em meio
físico (ex.: arquivo com formulários em papel), ou eletrônico.

Tratamento: compreende todo tipo de operação realizada do


dado, desde a coleta, armazenamento, acesso, compartilhamento,
transmissão, classificação, modificação, até a eliminação.

Incidente de segurança: qualquer evento adverso,


confirmado ou sob suspeita, relacionado à segurança de sistemas
de computação ou de redes de computadores. No âmbito da
proteção de dados pessoais, relaciona-se, ainda, ao acesso
indevido de informações, estejam elas em meio físico ou digital,
por pessoas não autorizadas.

Aplicações da internet: é o conjunto de funcionalidades que


podem ser acessadas por meio de um dispositivo (celular, tablet,
computador etc.) conectado à internet.

Provedores de aplicações da internet: são as pessoas físicas


e ou jurídicas que fornecem serviços ligados ao funcionamento da
internet como, por exemplo, correio eletrônico, hospedagem de
páginas da web, conteúdo.

Provedores de conexão de internet: são as pessoas físicas ou


jurídicas que fornecem o acesso à rede mundial de computadores.

Os conceitos dispostos são importantes para que possamos


entender o objeto deste artigo. Para uma melhor compreensão do
tema é preciso esclarecer que o MCI tem por objeto regulamentar

LEGAL TALKS:
118 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
o uso da internet no Brasil, estabelecendo princípios orientadores,
garantias, bem como direitos e deveres para os usuários e agentes
que operem através da internet. Se a sua Startup opera oferecendo
alguma solução por intermédio da internet, então o MCI se aplica
a ela. É necessário frisar que o MCI traz uma série de obrigações
de guarda e registro de acesso quanto aos agentes que se
classifiquem como provedores ou aplicações de internet, mas o
foco deste artigo são somente as obrigações ligadas à proteção
de dados.

Uma vez que o objetivo deste artigo é esclarecer e orientar


a promoção da proteção de dados nas Startups, cumpre destacar
que a LGPD em complemento ao MCI trata com maior detalhe da
proteção de dados por tê-la como tema central de regulamentação.

1 – Proteção de Dados como direito e como dever

A proteção de dados pessoais, enquanto direito, integra


os direitos da personalidade, aquele conjunto de direitos que são
próprios das pessoas naturais. Vale dizer, todas as pessoas físicas
possuem esses direitos da personalidade. A esse direito que assiste
às pessoas naturais, corresponde um dever das pessoas físicas
e jurídicas que atuem em atividade econômica com a oferta de
serviços ou produtos. Tais empreendedores devem assegurar essa
proteção e pensar em meios para que o titular do direito possa
exercê-lo plenamente.

Inicialmente é necessário um pequeno esclarecimento:


o direito à proteção de dados pessoais se distingue do direito à
privacidade. São direitos autônomos que se complementam.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 119
Enquanto o direito à privacidade surge num contexto pós-segunda
guerra mundial, em que ficou evidente a necessidade de tutelar
a intimidade e a vida privada do indivíduo como meio de permitir
a sua liberdade de pensamento e desenvolvimento particular, o
direito à proteção de dados pessoais surge em momento posterior,
em decorrência da facilidade de compartilhamento de informações
com o avanço tecnológico e o crescente acesso a computadores
e à internet. Nesse contexto, a gestão e armazenamento de
informações em bancos de dados passa a ser um importante
diferencial no mercado.

Vale reforçar: o direito à proteção de dados pessoais é fruto


da vida hiperconectada que temos atualmente, sendo resultado
da chamada sociedade da informação, em que os afazeres,
as necessidades e as comunicações são intermediadas por
computadores e pelas tecnologias ligadas à internet. Dessa forma,
a capacidade de acessar, controlar e armazenar informações, em
especial informações que se caracterizem como dados pessoais, é
uma forma de poder.

Com o avanço da automatização do processamento das


informações pessoais, bem como com a monetização do seu
uso, surge a necessidade de proteger o titular, a pessoa a quem a
informação diz respeito. A proteção de dados compreende, assim,
a garantia de que o uso e tratamento desses dados ocorrerão para
uma finalidade específica e legítima, e de que o direito à informação
do titular será respeitado. Mas vai além: constitui uma garantia de
que os dados fornecidos para um dado fim não serão usados contra
o interesse do titular ou em violação às suas liberdades individuais,
nem ao seu direito de igualdade e de não discriminação.

LEGAL TALKS:
120 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Nesse sentido, são especialmente importantes as previsões
trazidas pelo MCI e pela LGPD, como mencionado. As leis em
questão possuem alguns pontos de aparente divergência, mas
reforçam mutuamente o sistema de proteção de dados pessoais, e
devem ser aplicadas em conjunto aos negócios que estabeleçam
relações de prestação de serviços através da internet.

Entre os direitos do usuário da internet ligados à proteção


de dados, o MCI traz o não fornecimento dos seus dados pessoais
a terceiros sem o seu consentimento livre, expresso e informado,
ou nas hipóteses determinadas por lei. Traz, ainda, o direito de
acesso a informações claras e completas sobre a coleta, o uso, o
armazenamento, o tratamento e os meios de proteção empregados
em relação aos dados pessoais. Ademais, estabelece a restrição
do tratamento para finalidades que justifiquem a coleta, não sejam
vedadas pela legislação, e estejam especificadas nos contratos de
prestação de serviços ou em termos de uso das aplicações.

Somam-se a esses direitos, a exclusão definitiva dos dados


pessoais fornecidos, mediante requerimento do usuário e ao final
da relação entre as partes (ressalvada a guarda de dados imposta
por lei), e a publicidade e clareza quanto aos termos e políticas de
uso. Além do mais, há a vedação da guarda de dados pessoais que
sejam excessivos em relação à finalidade para a qual foi dado o
consentimento pelo titular, salvo se configurada hipótese que se
encaixe em alguma das autorizações de tratamento contidas na
LGPD.

É imprescindível respeitar a determinação do MCI de que


o tratamento de dados pessoais só poderá ocorrer mediante
consentimento do titular. Caso esse consentimento esteja previsto
no contrato, deve ser escrito em uma cláusula destacada das

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 121
demais. O consentimento13 deve cumprir os seguintes requisitos:
ser expresso (ser fornecido e estar comprovado de maneira
categórica), livre (ser fruto da autonomia da vontade de um sujeito
legalmente capaz) e informado (ser fornecido após o acesso
e aceitação dos termos e condições de prestação do serviço
ou fornecimento do bem). A LGPD ainda inclui como requisito a
especificidade, ao dispor que o consentimento é a manifestação de
vontade livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda
com o tratamento dos seus dados pessoais para uma finalidade
determinada. Em todo caso, o consentimento pode ser revogado a
qualquer tempo. E, vale reforçar, o consentimento genérico é nulo.

Dessa forma, tem-se que o consentimento é a única base


legal, ou seja, a única hipótese de autorização prevista na lei para

13 A definição da formação do consentimento nos contratos firmados pela


internet não é algo simples. conforme se pode perceber da abordagem de
Victor Hugo Pereira Gonçalves, na obra Marco Civil da Internet Comenta-
do: “Na internet, os consentimentos são construídos de forma diferente do
mundo atual. Muito se discutiu na doutrina sobre se a formação dos con-
tratos eletrônicos se daria entre ausentes ou entre presentes. Com o advento
do Código Civil de 2002, essas discussões foram sendo aplainadas, pois os
arts. 427 e seguintes resolveram adotar a teoria da aceitação.21 Contudo,
essa teoria da aceitação possui grande problemas para ser implementada.
[...] Ricardo Lorenzetti, para se evitar os problemas da teoria da expedição
da oferta, impõe ao ofertante três deveres: o dever de informação, dever de
confirmação e o dever de segurança. O dever de informação consiste em
informar sobre todos os aspectos tecnológicos no modo de aceite, dos pro-
dutos e serviços envolvidos na oferta e nos aspectos legais nas condições
gerais de contratação. O dever de confirmação surge ao ofertante, por con-
trolar os meios tecnológicos, na construção de um mecanismo de resposta
eletrônica automática, que descreve a oferta transmitida pelo destinatário,
confirmando o recebimento. E o dever de segurança impõe ao ofertante a
construção de um ambiente tecnicamente confiável, devidamente certifica-
do, a fim de que possa garantir a veracidade da oferta e da aceitação.” Mais
uma demonstração do quanto o MCI e a LGPD são complementares, vez que
esta acabou por detalhar os requisitos do consentimento.

LEGAL TALKS:
122 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
que o tratamento de dados pessoais por empresas que operem
por intermédio da internet seja presumido legítimo (ainda que a
LGPD traga outras nove hipóteses).

Já a LGPD traz um rol ainda mais extenso de direitos: a


confirmação da existência do tratamento; o acesso aos dados;
a correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados; a
anonimização, bloqueio (suspensão temporária do tratamento) ou
eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em
desconformidade com os requisitos da lei; a portabilidade mediante
requisição expressa; a eliminação; a revogação do consentimento
e a informação sobre a possibilidade de não consentir e as
consequências da negativa; além da informação sobre quem são
os envolvidos na cadeia de tratamento (com quem a empresa que
coletou seus dados os compartilha).

A esses direitos corresponde o dever da empresa de


adequar suas operações de maneira a possibilitar que o titular
possa se valer de cada uma das garantias descritas. Para tanto,
em muitos casos é necessário repensar os produtos e a operação
da empresa, adequar as formas de comunicação com o cliente e
com as partes interessadas, e rever as medidas de segurança da
informação instituídas. Soma-se a isso a necessidade de promover
a conscientização dos colaboradores através de treinamentos, para
que entendam a importância de aceitar e seguir as modificações
na sua forma de trabalhar que se fizerem necessárias.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 123
2 – Como a proteção de dados impacta o ecossistema das
startups

A maioria das Startups se desenvolve a partir de uma ideia


inovadora, disruptiva e incremental, e com a preocupação principal
em impulsionar a comercialização dessa ideia, em meio a um
cenário de incertezas e recursos escassos. Sendo assim, em geral
não possuem uma estrutura organizacional complexa, raramente
baseando a sua gestão em processos.

O ecossistema das Startups é caracterizado, ainda, pela


recorrência da necessidade dos seus empreendedores de atrair
investidores, que com seu capital permitam a aceleração da
projeção e oferta dos produtos e serviços idealizados. Uma
pesquisa de 2019 realizada pelo IBGC14- Instituto Brasileiro de
Governança Corporativa, com cento e cinquenta Startups apontou
como principal objetivo dos empreendedores respondentes
para os próximos três anos de vida da empresa a captação de
investimentos para expansão do negócio (opção marcada por
87% dos respondentes). Outra finalidade buscada por esses
empreendedores é a realização de parcerias (opção de 52% dos
respondentes).

Ocorre que, para que essa atração de investidores e


parceiros ocorra, a Startup deve oferecer um mínimo de segurança
de retorno do investimento.

14 O questionamento sobre quais eram os planos e intenções das Startups


para os próximos três anos tinha como respostas possíveis: 1) Captar investi-
mentos para expansão do negócio; 2) Realizar parcerias; 3) Expandir fora do
Brasil. E os respondentes poderiam marcar mais de uma opção, daí o fato de
os dados destacados no texto terem soma maior que 100%.

LEGAL TALKS:
124 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Uma pesquisa realizada pelo SEBRAE em conjunto com o
Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, de 2018,
revelou que 30% das Startups brasileiras não consegue se manter
no mercado por dificuldade de atração de investidores, por falta
de recursos financeiros para montar uma equipe de trabalho e
divulgar a comercialização do produto ou serviço idealizado. Dessa
maneira, empresas que possuam um modelo de negócios mais
maduro e uma estrutura mais alinhada com as melhores práticas
já terão um diferencial, aumentando as chances de captação de
investidores e parceiros de negócios.

Assim, conforme destacado, a promoção da proteção


de dados implica em mudança de mentalidade (mindset)15, que
implicará numa mudança de postura e revisão da forma como o
seu negócio está sendo conduzido. E o elemento impulsionador
dessa mudança de mentalidade não deve ser só o fato de as
leis aqui abordadas trazerem previsão de penalidades para o
descumprimento das suas diretrizes, mas a noção de que a
adequação a tais diretrizes constitui medida que poderá refletir
numa maior credibilidade da sua organização e no aumento da
satisfação do seu cliente, fortalecendo a relação e fidelizando.

Além das vantagens já elencadas, há o fato de a adequação


à proteção de dados atender a uma demanda do mercado
internacional, à medida que vários países já possuem marcos
legais dedicados ao tema. Não se adequar significa ficar para trás
no acesso às melhores oportunidades de negócio.

Quando se fala em adequação para a proteção de dados é


comum que à primeira vista esse processo de mudanças represente
gastos enormes e burocratização dos negócios. Esse aspecto
15 Mindset é a atitude mental adotada para lidar com um determinado
assunto ou situação.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 125
negativo é erroneamente enfocado, muito pela ideia de que a
adoção de boas práticas de governança seja algo extremamente
complexo e difícil de implementar, ou que não esteja ao alcance
das Startups, por muitas vezes contarem com capital reduzido e
estrutura de funcionamento mais enxuta.

Entretanto, como veremos adiante, não existe uma receita


de bolo a ser seguida igualmente por todas as empresas. Cada uma
deve buscar o seu caminho, e implementar as medidas que forem
adequadas à sua realidade, pois que o mais importante é a criação
de uma cultura de proteção de dados e segurança da informação,
ou seja, entender a importância desse direito e o quanto ele diz
respeito a todos nós.

A seguir, são elencadas algumas medidas importantes em


matéria de proteção de dados.

2.1 - Mudança de paradigma: privacidade desde a concepção


(privacy by design) e privacidade por padrão (privacy by default)

O maior rigor no que tange à proteção de dados representa


um importante marco na virada tecnológica vivenciada nas últimas
décadas. Estamos saindo de uma cultura de armazenamento
e de coleta indiscriminados de dados, para uma era em que a
minimização é imprescindível.

A minimização de dados se concretiza a partir da coleta e


uso dos dados que sejam realmente necessários à prestação do
serviço ou venda do produto, assim como a partir da manutenção
desses dados nos seus arquivos pelo mínimo de tempo possível

LEGAL TALKS:
126 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Essa virada operacional reverbera em ter a privacidade,
visando a proteção de dados, como um dos elementos centrais ao
criar um produto ou serviço, assim como no desenvolvimento da sua
operacionalização e escalabilidade. Quando se fala em proteção de
dados na internet vêm à tona os conceitos de “privacidade desde
a concepção” (privacy by design) e de “privacidade por padrão”
(privacy by default). Você já deve ter ouvido ou lido algo a respeito
desses termos.

A preocupação com a privacidade desde a concepção


funciona como uma medida preventiva, pautada em um
mapeamento de riscos de eventuais vazamentos e violações da
proteção de dados. E dessa forma integrar na elaboração do produto
ou serviço, aparato de medidas que diminuam a probabilidade de
ocorrência dos incidentes negativos.

Somente a detecção de deficiências nos processos e


procedimentos existentes (assim como nos que forem instituídos
para adequação à proteção de dados) permitirá avaliar os potenciais
incidentes operacionais que ameaçam o seu negócio, e pensar em
ações hábeis a impedir a sua concretização. Assim, a preocupação
com a privacidade desde a concepção permite já desenhar um
bem a ser fornecido que conte com mecanismos de comunicação
adequados, com todas as informações para que o usuário saiba
como exercer seus direitos e tenha mais autonomia para interagir
com a organização.

Já a privacidade por padrão significa que o produto ou


serviço disponibilizado no mercado adota a melhor configuração
de privacidade possível, orientada pela minimização de dados, pela
transparência, pela responsabilidade corporativa e pela prestação
de contas ao usuário / titular. Uma das vertentes da privacidade

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por padrão é a manutenção dos dados dentro da cadeia de
tratamento somente enquanto for essencial para a entrega do
bem ou prestação do serviço.

Em linhas gerais, isso significa que a organização deve se


certificar de que a privacidade e a segurança das informações serão
observadas em todas as etapas da sua cadeia produtiva. Deve
buscar meios de garantir a privacidade de ponta a ponta: desde a
coleta do dado, até o fim da prestação de serviço ou entrega final
do bem.

2.2 - Termos de uso

No ambiente da internet em que os negócios são celebrados


com um clique é menos comum a existência de um contrato escrito
e formal, como nas transações realizadas presencialmente.

Nesse contexto, os Termos de Uso fazem as vezes de


contrato. Constituem o instrumento pelo qual se documentará
o regramento da relação negocial firmada. Dessa forma, ele
deve ser escrito de maneira mais clara e acessível possível, ser
uma das etapas necessárias a serem percorridas para acesso à
funcionalidade ofertada pela organização, e estar alocado em
local de destaque na página da web ou no aplicativo. Além de ser
mantido disponível para consulta pelo usuário, sempre que desejar.

É importante que esse documento utilize uma linguagem


simples que possa ser compreendida por leigos, para que cumpra
o dever de informação ao usuário / titular de dados pessoais. E
sempre que houver qualquer modificação nos termos de uso, isso
deve ser comunicado de imediato ao usuário / titular, e colhida

LEGAL TALKS:
128 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
mais uma vez a sua ciência e anuência em relação às alterações
efetuadas.

2.3 – Política de privacidade

A Política de Privacidade é um documento destinado ao


usuário / titular dos dados pessoais. Tem por objetivo esclarecer
que dados são coletados, como serão tratados e guardados, e
por quanto tempo serão mantidos na cadeia de tratamento. Tem
a finalidade, ainda, de disponibilizar informações sobre a cadeia
de tratamento, sobre eventuais compartilhamentos e finalidade
do compartilhamento, assim como esclarecer as finalidades de
tratamento para as quais os dados serão processados.

É neste documento que a organização abordará de maneira


simples e direta quais medidas técnicas e administrativas existem
para a promover a proteção aos dados fornecidos pelo usuário e
coletados.

Deve ser escrito em linguagem simples e direta. Para


facilitar o entendimento, é desejável que seja bem explicativo e
segmentado por temas de maior relevância, para definir com
clareza cada assunto abordado e facilitar a consulta. É uma das
modalidades de concretização do dever de informação que a
organização possui.

É altamente recomendável que essa política aborde, ainda


que de maneira breve e sintética, os direitos do usuário / titular
de dados pessoais previstos no MCI e na LGPD. E que estabeleça
quais são os canais de comunicação com a organização para
realizar solicitações, como por exemplo, revogar o consentimento,

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 129
requerer a retificação dos dados, como desabilitar cookies (arquivos
vinculados a funcionalidades e sites que coletam e armazenam
dados relativos à navegação e preferências do usuário). Essa é
uma forma de cumprir o dever de assegurar ao usuário / titular
dos dados pessoais a autonomia no exercício dos seu direito de
proteção de dados.

Para fins de documentar o compromisso com a proteção de


dados, é recomendável que haja algum mecanismo de certificação
de que o usuário / titular de dados pessoais está ciente do
conteúdo da política de privacidade.

2.4 - Coleta do consentimento

Uma análise conjunta do MCI com a LGPD, marcos legais


usados como referência para a tutela do direito à proteção de
dados pessoais, deixa claro que o consentimento é a única base
legal comum.

Os negócios firmados pela internet se concretizam com


um clique. Levando em conta que o MCI é uma lei mais específica,
que se ocupa diretamente de disciplinar o uso da internet,
compreendendo no seu bojo de previsões o fornecimento de bens
e serviços através da internet, existe a necessidade de coleta do
consentimento como meio de formalizar a relação negocial firmada
neste ambiente.

O consentimento consiste numa anuência do usuário / titular


dos dados pessoais quanto ao uso dos seus dados para a finalidade
de fornecimento do bem ou serviço. Pressupõe que esse usuário

LEGAL TALKS:
130 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
está ciente dos termos de uso praticados pela organização, e que
manifesta a sua concordância com as previsões nele contidas.

O consentimento fornecido de acordo com os requisitos


do MCI e da LGPD fornece legitimidade para o tratamento
de dados. Trata-se de pressuposto fundamental para toda
relação negocial firmada entre organizações que utilizem a
internet como meio de operacionalização das suas atividades.

2.5 - Guarda e prova do consentimento e dos requisitos

É dever da empresa que opere através da internet o


fornecimento de todas as informações sobre os dados pessoais
coletados, a forma de tratamento que será empregada e a
finalidade do processamento.

É a empresa que deve provar que esse consentimento foi


dado pelo usuário e que cumpriu os requisitos legais, de ter sido
dado de forma expressa, livre, esclarecida, inequívoca e específica,
uma vez que vinculado a uma finalidade determinada.

Para a caracterização dos requisitos do consentimento é


preciso que a empresa tenha uma política de privacidade e termos
de uso que sejam explicativos e suficientemente informativos para
os usuários. É extremamente relevante, também, que haja clareza
quanto aos canais de comunicação de que o usuário possa se valer
para realizar requerimentos e impugnar o tratamento que esteja
em desacordo com o seu consentimento.

E como o nosso sistema de proteção de dados se espelha


no sistema europeu, é importante que se siga a diretriz de que o
consentimento possa ser revogado pelo mesmo meio com que

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 131
ele é fornecido. O usuário deve ter seu requerimento de revogar
o consentimento atendido sem a imposição de burocracias ou
etapas excessivas que dificultem o exercício desse direito.

Vale reforçar que todas as etapas de tratamento de dados e


medidas para a proteção de dados devem ser documentadas, não
somente o consentimento. Entretanto, como o consentimento é a
única hipótese de autorização de um tratamento de dados legítimo
no MCI, a sua coleta e documentação torna-se imprescindível para
o bom desenvolvimento das atividades de empresas que operem
através da internet.

2.6 - Governança de dados

A governança é importante para todas as organizações,


independentemente do porte, da escala de operações ou mesmo
do capital que detenham. A expressão “governança” remete a
direção, controle. O IBGC, que é uma referência na matéria no Brasil,
conceitua16 governança corporativa como “o sistema pelo qual as
empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e
incentivadas”.

O conceito em questão não traz uma identificação tangível de


que medidas constituiriam uma boa governança. Mas é necessário
observar que a governança passa necessariamente por ações
éticas, e pela postura íntegra da empresa para com seus parceiros
e partes interessadas.

As melhores práticas a serem adotadas são construídas e


aprimoradas constantemente, e variam pelo ramo de atividade. O
16 Conceito disposto no Código das Melhores Práticas de Governança Cor-
porativa do IBGC.

LEGAL TALKS:
132 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
fato é que a governança abrange um conjunto de práticas que visam
preservar a organização e gerar valores, além de facilitar o acesso
a investimentos. A partir do estabelecimento de regulamentos
e políticas que com clareza demonstrem qual a orientação da
organização, qual a sua identidade, suas preocupações e objetivos,
a governança viabiliza a longevidade da empresa.

Para que se possa respeitar e promover a proteção de dados,


além das medidas de segurança da informação pertinentes, é
preciso operar com base nos princípios basilares da governança
corporativa: transparência, equidade, prestação de contas e
responsabilidade corporativa. E esses princípios são aplicáveis à
proteção de dados, por trazerem boas práticas de gestão:
• Transparência: é a disponibilização aos usuários e a todas
as partes interessadas no negócio das informações
sobre o tratamento de dados que sejam do seu interesse.
No âmbito da proteção de dados, a disponibilização de
informações pertinentes aos dados coletados, à forma
de coleta, aos meios empregados no tratamento, a
identificação de terceiros que eventualmente venham a
ter acesso a esses dados (se há ou não compartilhamento
dos dados e para quê), tempo de manutenção do dado
na cadeia de tratamento para a finalidade para a qual o
usuário consentiu o seu uso, os direitos do usuário, assim
como os meios de exercê-los perante a empresa.

• Equidade: tratar os usuários e partes interessadas de


maneira igual. Vedação ao tratamento discriminatório ou
à criação de burocracias e categorizações que impeçam
o livre exercício dos direitos pelos usuários.

• Prestação de contas: comunicação aos usuários / titulares

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STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 133
sempre que um incidente de segurança envolvendo
os seus dados ocorrer. Esse comportamento proativo
demonstra boa-fé, aumenta a credibilidade da empresa
e fortalece a relação com os clientes. Além de ser levado
em conta na LGPD para aplicação de uma penalidade
mais branda.

• Responsabilidade corporativa: reflexo dos demais


princípios basilares. Compreende a operação da empresa
com base no fiel cumprimento das obrigações legais
pertinentes à proteção de dados, e na postura proativa
da organização para se manter sempre atualizada quanto
à adoção de melhores práticas para a promoção da
segurança da informação, da privacidade e da proteção
de dados dos seus usuários, colaboradores e parceiros
de negócio.

Possuir uma estrutura mínima de governança é uma forma


de impulsionar o crescimento do seu negócio. A pesquisa do IBGC
de 2019, já mencionada, aponta que os empreendedores do ramo
estão atentos a isso, embora ainda não possuam conhecimento
robusto para a aplicação à estrutura das suas empresas:

A governança corporativa parece ser um motor


importante para esse crescimento, na percepção dos
respondentes.: numa escala de 0 a 10, foi atribuída
uma nota média de 9 pontos para a importância que
a governança corporativa representa na realização
desses planos futuros.

[...] considerando a mesma escala de 0 a 10, os


respondentes atribuem uma nota média de 6,2 pontos

LEGAL TALKS:
134 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
para o seu conhecimento sobre governança corporativa.
[...] (IBGC, 2019, p. 10).

O tema é de extrema relevância para as Startups17. A adoção


de uma estrutura mínima de governança corporativa agrega
valor ao negócio, por instituir uma melhor gestão, por promover
a organização da administração e o ganho de capital humano,
ao proporcionar um melhor ambiente de trabalho e de capital
reputacional, assim como ao ampliar a credibilidade da empresa
perante a clientela.

2.7 – Instituição de uma Política de Segurança da Informação


(SI)

É provável que você já tenha tido contato com alguma das


normas ISO. Em matéria de Segurança da Informação, as normas ISO
27001 e 27002 trazem importantes parâmetros para a instituição de
um sistema de Segurança da Informação para empresas de todos
os portes. Essas normas podem ser de grande valia para auxiliar
na construção de uma Política de Segurança de Informação, que
oriente seus colaboradores e atenda à demanda de proteção de
dados dos seus clientes e de todos os seus parceiros de negócios.

A Política de Segurança da Informação é voltada para a


regulação de processos e procedimentos internos da organização,
ou seja, traz regramentos e diretrizes para a atuação dos
17 Entre os benefícios elencados pelo IBGC (2019, p. 12) da governança cor-
porativa para Startups constam: o fortalecimento do modelo de gestão; o
aprimoramento do processo decisório; a contribuição para a longevidade
da startup; a facilidade de acesso a recursos de investidores; a melhoria
da prestação de contas; a administração e mediação de conflitos entre os
sócios; a proteção do patrimônio da empresa e dos sócios.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 135
colaboradores (sejam eles internos ou externos), e de todos os
envolvidos profissionalmente na sua cadeia de produção.

Por colaboradores internos nos referimos às pessoas que


executam atividade profissional na estrutura interna da empresa
através de algum vínculo contratual (empregados e estagiários por
exemplo). Os colaboradores externos são as pessoas contratadas
de outras empresas para prestar algum serviço específico em
interesse da sua organização (são os consultores e prestadores
de serviços diversos da atividade principal da sua empresa, por
exemplo).

A Segurança da Informação parte da premissa de que não


existe ambiente informacional plenamente seguro. Tem como
princípios orientadores de gestão a confidencialidade, a integridade,
a disponibilidade informacional, o não repúdio, a autenticidade, a
privacidade e a legalidade. Esses princípios devem ser levados em
conta na elaboração da política.

É importante que essa política deixe claro o fato de que


toda informação produzida ou recebida pelos colaboradores no
desempenho das suas atividades profissionais constitui ativos da
empresa. E como parte do patrimônio da empresa, deve ser tratada
de forma ética e atendendo aos padrões de segurança instituídos
(processos, procedimentos e controles).

O documento deve expor para o colaborador, de maneira


inequívoca e destacada, quais serão os controles aplicados ao
exercício da sua atividade. Esses controles são, a título de exemplo,
o monitoramento dos e-mails, o controle de acesso à internet, a
auditoria e conferência quanto ao uso de dispositivos da empresa,
tais como notebooks, smartphones e tablets, além do registro de
acesso aos sistemas da empresa (horário e local de acesso).

LEGAL TALKS:
136 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Os controles de registro e monitoramento são importantes
ferramentas para evitar a concretização de riscos relativos a
incidentes de segurança da informação. Além do mais, permitem
identificar com maior rapidez de onde partiu algum vazamento de
informações ou violação à proteção de dados, otimizando a ação
no sentido de remediar a falha. Uma ação mais célere de correção
do problema contribui para que o impacto do incidente seja menor
e seu alcance menos danoso.

Para que tenha efetividade, não basta que a política seja


bem elaborada. É preciso que ela seja amplamente divulgada para
os colaboradores. E para que ocorra a sua absorção e incorporação
à cultura organizacional os treinamentos e as estratégias de
comunicação interna são aliados relevantíssimos. E a verificação
do nível de aderência é também importante, como forma de
identificar os pontos que merecem ser reforçados, ou explicados
com maior detalhamento.

Como tudo em matéria de conformidade, colher e


documentar a ciência do colaborador quanto aos termos da política
de segurança da informação é uma prática imprescindível. Essa
ciência funciona como um termo de responsabilidade em seguir
todas as recomendações ali contidas.

Ao lidar com informações da empresa é importante


que os colaboradores tenham ciência da confidencialidade
e da responsabilidade da organização quanto à proteção de
dados. E para que essa responsabilidade seja compartilhada,
é recomendável que todos os colaboradores celebrem com a
organização um Acordo de Confidencialidade.

O Acordo de Confidencialidade deve contemplar todos os


deveres de sigilo, diligência e cuidado que o colaborador deve ter

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 137
ao exercer a sua atividade. É crucial que explicite a possibilidade de
responsabilização desse colaborador caso atue em desvio ao que
é recomendado na política. E sendo ele responsável por qualquer
incidente de segurança da informação que resulte em violação à
proteção de dados e prejuízos aos titulares, deverá responder pelos
danos decorrentes para a organização. Isso porque a organização
poderá sofrer as sanções previstas no MCI e na LGPD.

Assim, o colaborador deve ter consciência de que a


assinatura do Acordo de Confidencialidade implica na necessidade
de cumprir fielmente as orientações da organização, agir com
responsabilidade, ética e diligência ao executar suas atividades.
Deverá, assim, buscar sempre orientação do seu líder ao ter
dúvidas sobre os procedimentos a serem realizados, e comunicar
prontamente qualquer falha de segurança que chegue ao seu
conhecimento.

2.8 – Reforço da cultura de Proteção de Dados e Segurança da


Informação

Como em relação a toda a cultura organizacional, o


reforço é necessário para que haja aderência, ou seja, para que
os colaboradores entendam e vivenciem os valores e princípios
da organização. Não se constrói ou se modifica uma cultura da
noite para o dia. É, portanto, necessário pensar em estratégias de
divulgação e disseminação dos valores da empresa.

E quando se fala em reforço, pode ele ser realizado por


meio de métodos positivos (treinamentos, dinâmica, comunicação
interna) ou negativos (implementação de uma política disciplinar,

LEGAL TALKS:
138 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
atrelada a um procedimento de investigações internas para o caso
de desvios de conduta).

Quanto ao reforço positivo muitas estratégias podem ser


adotadas além do treinamento tradicional e intermediado por
plataformas. A seguir enumeram-se algumas opções:
• a criação de competições entre os colaboradores com
relação questionários formulados para testar o nível de
assimilação das normas de segurança da informação e
proteção de dados instituídas;

• a divulgação de “pílulas” diárias de informações sobre


as normas (na tela inicial do computador, em murais da
empresa, na abertura do sistema interno, por exemplo);

• a gamificação (criação de jogos para testar a aderência


e conhecimento, e ao mesmo tempo proporcionar
oportunidade aos colaboradores de reverem as regras
de proteção de dados e segurança da informação);

• criação de revista em quadrinhos com situações relativas


à proteção de dados, para de forma lúdica tornar concreto
o objetivo das normas e procedimentos internos;

• a bonificação simbólica para os colaboradores que melhor


aderirem às orientações (ex.: algumas empresas adotam
a designação temporária em cada setor de “agentes” de
algum tema específico, o que pode ser feito em relação
à proteção de dados. Esse agente seria uma referência
para os colegas. A aplicação de adesivos ou símbolos
de conhecimento das regras no crachá ou na mesa dos
bonificados, entre outras formas. Símbolos internos de
valoração são meios interessantes de fortalecimento da

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 139
cultura).

Quanto ao reforço negativo é preciso respeitar os limites


impostos pela legislação trabalhista na instituição de medidas
disciplinares, assim como os limites constitucionais em relação à
condução de procedimentos de investigações internas. E para que
funcione como reforço, a norma disciplinar tem que ser aplicada a
todos igualmente.

Vale dizer, a punição pura e simples, sem o acompanhamento


de meios para a correção da causa do desvio da conduta (e não
somente do seu efeito) não surtirá o resultado esperado de reforçar
a cultura. É preciso lidar com o erro com parcimônia e empatia.
O colaborador não pode ser visto como um número, mas como
uma pessoa, passível de falhas, que se não forem propositais e
maliciosas merecem ser vistas como arestas a serem lapidadas.

A criação de uma relação de confiança e parceria com o seu


colaborador é a forma mais eficaz de reter talentos e fortalecer as
suas operações, evitando a rotatividade, que gera vulnerabilidade
à proteção de dados e à segurança da informação.

2.9 – Melhoramento contínuo

Como toda mudança operacional, o programa de adequação


à proteção de dados deve ocorrer por etapas. Todo projeto, seja
o de adequação, ou o de alcance de metas de venda, deve ser
orientado pela busca de melhoramento contínuo, sob pena de se
tornar obsoleto e de perder o sentido.

LEGAL TALKS:
140 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Uma metodologia frequentemente indicada para o alcance
da melhoria contínua, com a finalidade de remediar falhas
encontradas e aprimorar o sistema ou programa implementado,
é o emprego do Ciclo de Deming. Esse ciclo é uma ferramenta
importante de gestão em quatro etapas, e mais conhecido pela
associação da inicial em inglês de cada etapa, como ciclo PDCA.

O processo circular do Ciclo de Deming é composto pelas


etapas Plan (Planejar, desenhar um plano de ação), Do (fazer,
executar o plano de ação), Check (Checagem, conferência quanto
ao funcionamento) e Act (Ação consequencial).

As atividades abrangidas por cada etapa são as seguintes:


• Plan (Plano de Ação): etapa que demanda maior empenho
de recursos. Nela se identifica o problema ou anomalia
que precisa ser sanado, e a partir do seu mapeamento se
estabelece uma meta. A meta deve ser pautada na análise
do problema e dos seus elementos, do entorno, das
circunstâncias que influenciam na sua resolução, e nos
efeitos que ele gera. A partir da análise fenomenológica
do problema, se identifica a sua causa raiz. Ciente da
causa raiz, e da meta para solução do problema, se
estabelece um plano para atingir o resultado desejado,
com a delimitação: do que precisa ser feito (what); porque
a atividade é necessária, qual benefício será alcançado
com ela (why); quem executará cada atividade (who);
quando (qual o prazo de execução, o cronograma a ser
seguido); onde, que setor ou departamento é responsável
pela demanda (when); como executará a atividade (how);
e qual o custo estimado (how much).

• Do (execução do plano de ação): compreende inicialmente

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 141
a divulgação para os colaboradores e treinamento.
Isso porque as pessoas precisam estar cientes do
que é esperado delas, quais as suas incumbências.
Depois parte-se para a execução propriamente dita das
atividades e a checagem das ações implementadas
(significa verificar se o plano está sendo executado da
forma que foi desenhado, ou seja, seguindo os processos
previstos). O foco é no método e não no resultado.

• Check (checagem): confirmação da efetividade da ação


corretiva, comparação de resultados e verificação da
continuidade do problema.

• Act (ação consequencial): orientação da ação em função


dos resultados obtidos através da execução do plano
de ação. Para tanto, é preciso agir de forma a corrigir
os pontos de insucesso (revisar o plano de ação para
verificar os motivos do fracasso, redimensionar e corrigir
as causas). Em caso de sucesso do plano de ação ou da
correção eficaz dos erros nele encontrados, padronizar e
treinar com base no processo desenvolvido.

Para testar o que já está padronizado em termos de


processo e procedimento, aplica-se o método SDCA – Standard,
Do, Check, Act. Esse método é aplicado na mesma lógica do
anterior, mas partindo da definição da meta que deve ser mantida
e do procedimento operacional padrão vigente, para testar se há
espaços de aprimoramento do modelo instituído.

LEGAL TALKS:
142 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
3 – Aparente conflito entre o MCI e a LGPD

Alguns pontos são levantados como conflito entre o MCI e


a LGPD, a ponto de surgirem teorias de que, entrando em vigor, a
LGPD revogaria o MCI, o que não procede. As leis fazem menção
uma a outra e se complementam no que diz respeito à proteção de
dados no ambiente da internet. Ademais, a LGPD expressamente
modifica dois artigos do MCI, de maneira que se a intenção do
legislador fosse revogar o MCI ele o faria de maneira clara e
expressa no texto da LGPD, o que não se verifica.

As maiores polêmicas dizem respeito ao consentimento


como base legal das relações comerciais celebradas pela internet
não ser mais necessário para todas as situações. Já que a LGPD
traz diversas outras hipóteses de autorização legal, a exemplo do
legítimo interesse do controlador, ou a necessidade de tratamento
de dados pessoais para a execução de um contrato, alguns
estudiosos da área têm defendido que o consentimento não seria
necessário18. Outra polêmica diz respeito a como ficará a aplicação
das penalidades por violações à proteção de dados, já que as
normas em questão trazem previsões diferentes de penalidades.

Tratando das penalidades, o MCI traz como penalidades à


violação dos artigos relativos à proteção de dados, sem prejuízo
das demais sanções cíveis, criminais e administrativas, as seguintes,
que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente: advertência,
18 Por exemplo: para efetuar uma compra, o fato de fornecer os dados ser
algo necessário para a execução do contrato não haveria necessidade de o
usuário do site consentir com o tratamento dos seus dados, ou manifestar
a ciência e concordância quanto aos termos e condições do site. Entendo,
de maneira diversa, que o consentimento é sempre necessário em negócios
firmados pela internet, sendo uma maneira de assegurar a transparência e
a responsabilidade da empresa fornecedora para com o usuário / consu-
midor.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 143
com fixação de prazo para adoção de medidas corretivas; multa de
até 10% (dez por cento) do faturamento no seu último exercício;
a suspensão temporária das atividades que envolvam tratamento
de dados pessoais; e a proibição de exercício das atividades de
tratamento de dados pessoais.

De outro lado, a LGPD tem como penalidades: a advertência,


com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas; multa
simples de até 2% (dois por cento) do faturamento da pessoa
jurídica de direito privado no seu último exercício, limitada a
R$50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) por infração; multa
diária observado o limite total descrito; publicização da infração
após devidamente apurada e confirmada; bloqueio dos dados a
que se refere a infração; eliminação dos dados a que se refere a
infração; suspensão parcial do funcionamento do banco de dados
a que se refere a infração; suspensão do exercício de atividades
de tratamento dos dados pessoais a que se refere a infração; e,
por fim, a proibição parcial ou total do exercício das atividades
relacionadas ao tratamento de dados.

Friso que, independentemente das teorias acerca do conflito


das normas, elas possuem focos diversos, mas tocam a proteção
de dados e foram pensadas para atuar em complementaridade
no sistema brasileiro de proteção de dados. Dessa forma, entendo
que devem ser aplicadas conjuntamente às empresas que no
desempenho de atividades econômicas através da internet tratem
dados pessoais em algum momento da sua cadeia produtiva.

LEGAL TALKS:
144 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
4 - Como agir após a entrada em vigor da LGPD

O MCI e a LGPD são complementares no que diz respeito


à proteção de dados. Enquanto o foco do MCI é disciplinar o uso
da internet no Brasil, o da LGPD é regular a proteção de dados
pessoais.

Posto isso, entendo ser necessária a adequação à LGPD por


que qualquer pessoa, seja física ou jurídica, que exerça atividade
econômica que não se configure como pesquisa científica,
atividade artística ou jornalística.

A opção por se orientar, quanto à proteção de dados, pelas


medidas exigidas pela LGPD já garante que os requisitos impostos
pelo MCI serão atingidos, no que tange o tratamento de dados
pessoais.

Entretanto, reforço ser de extrema relevância para as


organizações que tenham a internet como intermediadora da
sua prestação de serviços ou oferta de bens, manter sempre o
consentimento como base legal, tomando os devidos cuidados
para fornecer todas as informações pertinentes ao negócio, para
que o usuário / titular de dados forneça o consentimento dentro
dos requisitos previstos em lei: de forma expressa, livre, informada,
inequívoca e específica.

Não basta obter o consentimento de acordo com os


requisitos legais, é necessário que a organização se preocupe em
manter a guarda dessa anuência como meio de provar que cumpriu
com sua obrigação.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 145
4.1 - Pontos de atenção

Tendo em vista a explicação sobre o aparente conflito entre


as normas, destacam-se os seguintes pontos, de forma resumida:
• Manutenção do consentimento como base legal, vez que
o MCI é mais específico e não foi revogado pela LGPD.

• Manutenção dos registros de comunicações conforme


determina o MCI, vez que esse tratamento é legítimo,
tendo como base legal o cumprimento de obrigação
legal ou regulatória (art. 11, II, a).

• A LGPD tem por objetivo disciplinar o tratamento de


dados pessoais, seja em documentos físicos (analógicos)
ou o seu uso em meio digital. Traz obrigações que
impactarão as suas operações desde que nelas haja o
tratamento de dados pessoais de indivíduos localizados
no território nacional e a oferta ou fornecimento de
bens ou serviços (art. 3º, II, LGPD), como atividade com
finalidade econômica.

• A interpretação conjunta do MCI e da LGPD permite


entender que o controle das diretrizes do MCI ficará
sob responsabilidade da Autoridade Nacional de
Proteção de Dados - ANPD, autoridade reguladora
prevista na LGPD, na falta de uma agência específica
para a fiscalização do cumprimento do MCI.

LEGAL TALKS:
146 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
5 – Práticas de governança de dados como vantagem
competitiva

Como explicado, governança diz respeito à gestão. A


instituição de uma estrutura de governança, além de ser uma clara
demonstração da preocupação da organização com a proteção
de dados, constitui mecanismo que otimizará a operação da sua
empresa. Trará maior organização e eficiência no funcionamento.

Vale destacar que nem todo incidente de segurança,


mesmo que envolva dados pessoais, ocasiona necessariamente
a responsabilidade do agente de tratamento de dados. A
comprovação de que a organização tomou todos os cuidados para
a efetiva promoção da proteção de dados, demonstra diligência,
evidencia a sua responsabilidade corporativa com a preservação
dos direitos dos seus clientes e parceiros e o seu compromisso
com o desenvolvimento de um ecossistema empresarial ético
e preocupado com a proteção de dados enquanto direito
fundamental do cidadão.

Nesse sentido, a estruturação de um programa de governança


de dados se revela como um investimento que agregará muito valor
ao seu negócio. Não só por prevenir a probabilidade de incidentes
de informação, mas por otimizar a sua detecção, e permitir uma
ação de remediação mais célere. E com essa maior eficiência
na operação, mitigar a probabilidade de responsabilização da
empresa, tendo um melhor relacionamento com o poder público.

Além do mais, a adoção de uma postura transparente,


demonstrando seu comprometimento com a proteção de dados,
acarreta um aumento do seu capital reputacional, ou seja, a

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valorização da sua marca pelo aumento da confiança e credibilidade
perante a clientela e perante o mercado.

Num mercado em constante renovação e com a crescente


demanda por inovação, há que se observar que o consumidor está
cada vez mais atento às ações das empresas e utilizando os seus
recursos para validar organizações que se alinhem com os seus
interesses e visão de mundo. A mesma preocupação e consciência
têm sido observadas nas organizações, que estão cada vez mais
criteriosas no que tange à associação e à formação de parcerias
de negócios.

Na sociedade da informação, em que todo conteúdo é


rapidamente distribuído e acessado, ninguém quer ter a sua imagem
vinculada ou investir em uma organização que esteja envolvida em
algum escândalo ou esteja sob suspeita de utilização indevida de
dados, ou mesmo não tenha meios de garantir a segurança das
informações com ela compartilhadas. Não se adequar à exigência
de proteção de dados implica em ser enxergado como um
empreendimento de alto risco, afastando investidores, potenciais
parceiros de negócio e, principalmente, clientes em potencial.

A adequação da empresa às melhores práticas de proteção


de dados e segurança da informação é imprescindível para a
prevenção e combate de fraudes e crimes praticados por meio
eletrônico. E é também um mecanismo de proteção e de promoção
da integridade, e da inteireza da organização.

O sistema de proteção de dados estruturado no Brasil é


pautado nas melhores práticas internacionais, já instituídas e
reconhecidas no mercado externo. Dessa forma, adequar-se às
normas e requisitos referentes à proteção de dados representa

LEGAL TALKS:
148 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
uma ampliação potencial de oportunidades de negócio para a sua
Startup.

Por fim, as melhorias proporcionadas pela governança de


dados, que tem como etapa necessária a adoção de medidas de
governança corporativa, refletirão em maior eficiência e eficácia
das suas operações. O ganho em questão refletirá fatalmente
em melhores resultados, tanto pelo aumento da clientela, pela
retenção de talentos (atração e manutenção de colaboradores
mais qualificados), quanto pela ampliação do acesso ao crédito e
da captação de investidores.

A não adoção de práticas de governança para fomentar a


proteção de dados pode significar a morte da sua Startup. Vale
lembrar que a recente pesquisa do IBGC focada no ecossistema
das Startups aponta que, em que pese o Brasil ter alcançado um
nível interessante de maturidade na área, o índice de mortalidade
precoce dessas empresas ainda é muito alto, podendo chegar a
75% (IBGC, 2019, p. 5).

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 149
6 – Referências recomendadas para se aprofundar no tema

• Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa.


Disponível em: https://conhecimento.ibgc.org.br/
Lists/Publicacoes/Attachments/21138/Publicacao-
IBGCCodigo-CodigodasMelhoresPraticasdeGC-5aEdicao.
pdf

• Estudo sobre as principais causas de mortalidade das


empresas brasileiras do SEBRAE. Disponível em: https://
www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/UFs/SP/
Pesquisas/CAUSA%20MORTIS_vf.pdf

• GARCIA, Andressa. Direito Digital: Quais os provedores


segundo o Marco Civil da Internet? Disponível em: https://
garciandressa.jusbrasil.com.br/artigos/500417126/
direito-digital-quais-os-provedores-segundo-o-marco-
civil-da-internet

• Sobre o MCI e a interpretação realizada por juristas:


GONÇALVES, Victor Hugo Pereira. Marco civil da internet
comentado. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

• Para compreender as etapas de evolução das Startups,


as principais práticas de governança adotadas por
empresas do segmento e os desafios em termos
de adequação às melhores práticas de governança
corporativa recomenda-se a pesquisa do IBGC realizada
em 2019 com 150 empreendedores / fundadores e
Startups em funcionamento: INSTITUTO BRASILEIRO DE
GOVERNANÇA CORPORATIVA. Governança Corporativa

LEGAL TALKS:
150 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
em Startups e Scale-ups: Práticas e Percepções. São
Paulo, SP: IBGC, 2019.

• Para entender a importância de mecanismos de controles


internos, recomenda-se assistir ao documentário
“Dis(honesty) – A verdade sobre as mentiras” (2015)
baseado nos estudos empíricos de Dan Ariely, psicólogo
especialista em economia comportamental. Disponível
em: http://youtu.be/QI4tRBIQIoU

• Publicações do “Data Privacy Brasil” – www.dataprivacy.


com.br

• Publicações do Laboratório de políticas públicas e internet


– LAPIN – www.lapin.org.br

• Sobre segurança da informação (SI) e sistemas de gestão


de SI – ISO 27001 e ISO 27002.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 151
Capítulo 6

AS STARTUPS E A PROTEÇÃO DA
CONCORRÊNCIA: ANÁLISE DOS
CASOS UBER, NUBANK E DAS
CRITPOMOEDAS
Raphael Boechat Alves Machado
Guilherme Ribeiro Valadares do Amaral

1. Introdução

O conhecimento aplicado é a força motriz que impulsiona


a economia e pode resultar no sucesso exponencial da empresa,
sendo fundamental o seu estímulo e proteção pelo Estado,
enquanto agente regulador da economia.

O conhecimento possui algumas características que lhe


são próprias, sendo por isto delicada, polêmica e conflituosa a
escolha de políticas públicas que a estimule e, ao mesmo tempo,
a proteja. Para este trabalho, conceituamos o conhecimento como
bem intangível, de natureza não-exclusiva, que possui efeitos
exógenos (spillovers), atraindo, por isto, consequências próprias
como os caroneiros (free-riders) e ainda o subaproveitamento do
conhecimento básico, aquele não patenteável.

A obtenção de conhecimento e, principalmente, a sua


aplicação nos fatores de produção como objeto transformador do

LEGAL TALKS:
152 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
insumo em produto ou serviço é resultado de um fino equilíbrio
entre os custos envolvidos na produção desse conhecimento
aplicado e os benefícios resultantes de sua aplicação.

Outro grande dilema relativo ao conhecimento diz respeito


ao seu transbordamento para além dos muros da empresa, spillover,
que permite a toda a população, inclusive aos concorrentes, o
aproveitamento econômico daquele bem intangível em soluções
não visualizadas pelo inventor.

Diante de toda esta gama de efeitos gerados pela obtenção e


aplicação do conhecimento, este possui a capacidade de alterar as
estruturas de mercado, com o surgimento de uma nova tecnologia
ou mesmo de estimular condutas anticompetitivas, como barreiras
à entrada ou condutas anticoncorrenciais por parte de agentes já
estabelecidos.

2. Princípios Informadores do Direito Econômico para as Start


Ups

1. Princípios Jurídicos: Definição e Aplicação

Para a devida compreensão de todos os contornos da


discussão que se trava no presente trabalho, necessário esboçar
os principais aspectos e as peculiaridades existentes na relação de
determinados princípios basilares do Direito Econômico, quando
em interação com startups.

Uma vez que as startups, enquanto empresas informadas


para um crescimento célere e exponencial, usualmente através

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 153
de propostas e tecnologias inovadoras, constituem arranjo
empresarial muito específico, é necessária uma detida análise de
como estas são encaradas pelo Direito Econômico.

Para tanto, valer-nos-emos de cotejo analítico de


determinados princípios do Direito Econômico, enquanto raízes de
racionalidade deste microssistema jurídico, que informam toda a
sua aplicação e interpretação, enquanto seus alicerces estruturais.

Os princípios, conforme os ensinamentos da mais autorizada


doutrina, constituem fonte jurígena que, também, se apresentam
autonomamente na condição de normas, dotadas de alto grau
de abstração, cuja aplicação deve sempre buscar sua máxima
otimização19. O eventual choque entre estas espécies normativas
deve ser resolvido por meio de juízo de ponderação, não
importando, assim, na exclusão absoluta de nenhum dos princípios
em conflito20 - embora não se ignore que atualmente também
seja objeto de discussão “a aplicação do esquema tudo ou nada
aos princípios como a possibilidade de também as regras serem
ponderadas”21.

Não obstante a colocação acima, é válida também, no que


concerne aos princípios jurídicos, a lição de ÁVILA22, quando enfatiza
a importância de que sejam respeitadas as regras esculpidas
pelo legislador, enquanto instrumentos que dotam o sistema de
maior segurança e certeza, dotadas de legitimidade democrática,

19 ALEXY, Robert; SILVA, Luís Virgílio Afonso da (Trad.). Teoria dos Direitos
Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
20 DOWRKIN. Levando os Direitos a Sério. 3ª Ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010.
21 BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: fun-
damentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. Ed., São Pau-
lo: Saraiva, 2004, p. 357-258.
22 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 5. Ed., São Paulo: Malheiros, 2006.

LEGAL TALKS:
154 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
afastando o malfadado ativismo judicial que vem figurando como
atuação rotineira de nossos Tribunais – que, não raro, adotam
sentenças manipulativas calcadas em princípios, conforme os
ensinamentos de GUASTINI23, não obstante a existência de regras
jurídicas de inequívoca subsunção ao caso.

Neste sentido, conforme ensina ÁVILA24:

Os princípios são normas imediatamente finalísticas,


primariamente prospectivas e com pretensão de
complementariedade e de parcialidade, para cuja
aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre
o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes
da conduta havida como necessária à sua promoção.

O que se busca, neste sentido, é afastar a ideia de uma


sobrevalorização excessiva dos princípios, que acompanha
grande parte da doutrina do neoconstitucionalismo. Isto porque,
ao contrário do que pode parecer, as regras também se voltam à
adequada, suficiente e proporcional, tutela dos bens jurídicos, nem
sempre demandando a interferência direta de um princípio para se
alcançar uma decisão justa.

Justamente por este motivo a Constituição Brasileira de 1988


é considerada analítica,

Não por outra razão, acertada a análise de STRECK25 ao


cunhar a expressão “pamprincipiologia”, decorrente da arbitrária

23 GUASTINI. Estudios sobre la Interpretación Jurídica. México, Porrúa, 2000,


apud MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Pau-
lo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5 ed., São Paulo: Saraiva,
2010, p. 184.
24 Idem - Teoria dos Princípios, p. 78-79.
25 STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista? Novos
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 155
edificação de princípios sem lastro histórico-valorativo no seio da
sociedade pelos magistrados, a legitimar ilegítimo decisionismo
judicial. Exige-se, deste modo, a existência de densidade
deontológica nos princípios, de modo que “não podem ser criados
ad hoc, sem vínculos históricos, pois não são passíveis de um controle
intersubjetivo de seus sentidos juridicamente possíveis”26.

Expostas as presentes preocupações, pontua-se, por fim,


que inexistem dúvidas de que os princípios, resguardados os
abusos que vêm sendo cometidos, representam substratos do
sistema jurídico, cuja adoção, quando realmente pertinentes, é,
sem sombra de dúvidas, imprescindível à manutenção do princípio
geral da própria justiça – como, em regra, nos chamados “hard
cases”, conforme os ensinamentos de DWORKING27.

Feita esta breve, mas necessária, análise da atual utilização


dos princípios, passa-se a tratar dos princípios específicos do
Direito Econômico, cuja incidência se faz pertinente in casu.

Os princípios do Direito Econômico apresentam


características próprias, o que justifica o seu tratamento em
separado, conforme a pertinente consideração erigida pelo Prof.
JOÃO BOSCO LEOPOLDINO DA FONSECA28, um dos maiores nomes
do Direito da Econômico e da Concorrência no Brasil:

Estudos Jurídicos, v. 15, n. 1, 2010. Disponível em <http://siaiap32.univali.br/


seer/index.php/nej/article/view/2308>. Acesso em 22 de junho de 2020.

26 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas funda-


mentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. Belo
Horizonte, Casa do Direito, 2017, p. 243.
27 DOWRKIN. Levando os Direitos a Sério. 3ª Ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010.
28 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. 9. ed. rev., atual.,
e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 52.

LEGAL TALKS:
156 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
O estudo dos princípios que regem a aplicação do Direito
Econômico oferece alguma particularidade, relativamente
à relação entre Direito Público e Direito Privado, porque,
como já vimos no primeiro capítulo, este novo ramo do
Direito se situa numa interseção daqueles dois ramos,
revelando-se como um direito de síntese.

E continua, ao se referir ao novo tratamento destes princípios


em decorrência do advento da Constituição Cidadã:

Pode-se, por um lado, verificar que alguns dos princípios


inseridos no atual texto constitucional têm suas raízes de
caráter liberal herdado de constituições anteriores, mas
observa-se também que a tradição constitucional de
caráter intervencionista no domínio econômico deixou suas
marcas, quer introduzindo princípios novos, quer dando
nova configuração aos princípios liberais, agora aceitos
como neoliberais29.

Feita esta breve análise, passa-se à exposição dos princípios


pertinentes ao modelo organizacional específico das startups.

2. Princípio da Concretude

O Direito Econômico, enquanto ramo do direito voltado à


conformação e regulação das relações humanas propriamente
econômicas, tem sua gênese umbilicalmente relacionada com
a mutação econômica hodierna, marcada pela massificação dos
29 Idem.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 157
contratos e relações jurídicas existentes quando da produção
e circulação de bens e serviços, conforme leciona CHAMPAUD,
citado por JOÃO BOSCO30.

Partindo desta definição ampla de Direito Econômico,


é simples a conclusão de que o Direito Econômico se volta
diretamente às situações concretas, tratando-se, por essência,
de seara jurídica orientada à realidade fática que lhe serve de
fundamento.

Por sua origem, nota-se que se trata de fenômeno histórico,


que evolui e acompanha o ritmo da sociedade e suas respectivas
necessidades, que oscilam conforme o contexto fático – social,
político e, claro, econômico – que o acompanha através dos
tempos.

O Direito Econômico, justamente com fulcro no princípio da


concretude, ante o fenômeno das startups, cuja difusão no país se
iniciou recentemente, no ano de 2011, vê surgir novo instituto digno
de sua regulação e normatização, uma vez que estas empresas
possuem uma série de peculiaridades e características próprias,
merecendo especial atenção.

Por tal razão, sempre atento à realidade social que lhe


fornece substrato, a nova formação empresarial decorrente das
startups não lhe pode escapar.

E, da mesma forma, não podem ser estranhos a esta seara


do direito os impactos na Concorrência decorrentes da atuação
destes novos agentes econômicos, que tem atuação deveras
30 CHAMPAUD, Claude. Contribution à la définition du droit économique. Il
Diritto dell’Economia. Rivista di Dottrina e di Giurisprudenza, Milano, v. 13, n. 2,
p. 141-154, 1967, apud FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômi-
co. 9. ed. rev., atual., e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 23.

LEGAL TALKS:
158 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
diferente, uma vez que buscam um crescimento rápido, muitas
vezes inovando no mercado, de modo que, sem a menor sombra de
dúvidas, são aptas a ocasionar consideráveis impactos no mercado
relevante em que atuam.

3. Princípio da Mutabilidade

Justamente em razão de ser a vertente jurídica que se volta


diretamente a disciplinar relações econômicas, fenômeno em
constante mutação, o princípio da mutabilidade dota o Direito
Econômico da característica de acompanhar tais alterações na
maior medida do possível.

Em qualquer Estado, um Direito Econômico obsoleto


é despiciendo, é inútil. Terá função meramente simbólica,
consubstanciando letra de lei morta.

Isto porque, a ausência de normatização estatal não é


suficiente para frear os agentes econômicos, que, ao contrário,
continuaram sua atuação, conforme as respostas que o próprio
mercado proporcionar.

Portanto, enquanto ramo do Direito que, pela concretude,


extrai todo seu fundamento e necessidade da realidade fática,
inexiste razão de ser no Direito Econômico caso este não se
encontre intrinsecamente em consonância com o mercado que
regulamenta.

E, de tal conclusão, extrai-se o princípio da mutabilidade,


que dota o Direito Econômico da capacidade de proporcionar
rápidas respostas às novas peculiaridades que porventura surjam
nas relações travadas no mercado, pelo aproveitamento dos seus

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 159
próprios institutos, regras e princípios, que possuem a amplitude
necessária para se adaptar e regulamentar novas formas que
venham a figurar no mercado que seja seu objeto.

Ainda em relação a este, em outra faceta, o ensinamento


sempre preciso do Prof. JOÃO BOSCO LEOPOLDINO31:

Ao conduzir a atividade econômica, o Estado está tratando


com um fenômeno que se caracteriza pela constante
evolução, pela contínua mobilidade. Uma medida de
política econômica, por se endereçar a fatos concretos
e, por isso mesmo, isolados, não consegue nunca gerar
uma situação de satisfação generalizada. Os setores que,
alcançados por aquela medida, se sentirem prejudicados,
lançarão seus brados provocadores de mudança. E o
Estado deverá certamente procurar adotar novas medidas
no intuito de alcançar o equilíbrio.

Constituindo as startups novos arranjos empresariais, cujos


objetivos e modo de ser lhes são específicos, detêm elas uma série
de especificidades, que exigem a resposta rápida e adequada do
Direito Econômico, que precisa se remodelar para efetivamente se
conformar com esta nova realidade.

Destarte, não fosse a mutabilidade, o Direito Econômico se


veria impotente frente ao advento deste novo e arrojado modelo
empresarial, com seus objetivos e modus operandi próprios e bem
delineados.

Se assim não fosse, o mercado se encontraria sujeito a


quaisquer adversidades inesperadas, avessas ao desenvolvimento
regular e ordinário das atividades econômicas. E, nestas condições,
31 Idem - Direito Econômico, p. 30.

LEGAL TALKS:
160 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
não seria possível justificar a existência do Direito Econômico nos
tempos contemporâneos, marcados pela latente e célere troca
de informações e bens, extremamente suscetível à formação e
ao surgimento de novas estruturas, em virtude do fenômeno da
globalização, como decorre dos ensinamentos de JOÃO BOSCO
LEOPOLDINO DA FONSECA32:

Passamos de uma relação sistêmica para uma relação


intersistêmica, ou seja, há uma superação dos limites
territoriais centrados em uma soberania nacional. Os
ordenamentos jurídicos têm de conviver, procurando
uma harmonização viabilizadora de uma convivência
internacional. A concorrência, a inovação, a defesa do
consumidor, a empregabilidade não são mais questões que
se restringem aos limites nacionais.

Assim, é somente em razão do princípio da mutabilidade


que o Direito Econômico é capaz de manter uma de suas mais
importantes características: a atualidade. Sem esta, não se
vislumbra qualquer fundamento para a própria existência deste
ramo do Direito.

Daí, como consequência dessa mutabilidade, surge uma


notável característica desse arrojado ramo, a sua maleabilidade
que garante a aderência a realidade flutuante da economia.

O direito Econômico, para isso, se valerá de complexos


instrumentos para a regulação, desde a Constituição, de onde
este tira sua base normativa e da legislação, passando por atos
administrativos, como portarias, resoluções e instruções normativas,
até guias (guidelines) ou mesmo estratégias comportamentais como

32 Idem - Direito Econômico, p. 325.


L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 161
o nudge, meio de endoregulação por meio do comportamento dos
agentes atuantes no mercado relevante.

Pensarassim em direito Econômico exige a compreensão sobre


o dinamismo do mercado e de todo o ferramental posto à disposição
do Estado para esta regulação, necessitando, por isso, de tomadas
de decisão instantâneas e de instrumentos que as concretize,

3. Princípios Informadores do Direito Econômico para as Start


Ups

Conforme exposto até aqui, as startups consistem em


configurações empresárias que, regra geral, se formam em torno
da inovação, motriz que impulsiona a empresa a um crescimento
rápido.

Enquanto novo elemento no seio do mercado, a inovação


deve ser encarada como fenômeno extremamente benéfico para
aquele, uma vez que não somente representa a presença de
novos players atuando ativamente em regime concorrencial, mas,
também e principalmente, importa em considerável e significativa
oxigenação do mercado, da economia e da concorrência.

Tal conclusão decorre diretamente da realidade de que, com


a inserção de empresa que busca e trabalha diretamente com a
inovação, tem-se a oferta de novos bens e serviços que, ainda que
guardem relação com aqueles pré-existentes, apresentam traços
distintivos suficientes para provocar uma alteração disruptiva do
mercado.

Isto porque, as empresas já existentes no mercado


frequentemente serão pressionadas a adaptar suas atividades e

LEGAL TALKS:
162 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
os meios de exercê-las para adequar melhor sua oferta à nova
realidade do mercado.

Além disto, os consumidores se beneficiarão diretamente


com a inserção de novas e variadas ofertas, bem como com o
incremento na dinâmica concorrencial existente.

Na condição de agente inovador no mercado, é necessário


pontuar, ainda, que os ordenamentos jurídicos tendem a
proporcionar algum tipo de tutela especial à invenção, usualmente
o objeto das startups. Neste sentido, a Constituição Brasileira
expressamente consagra a proteção aos autores de inventos
industriais e privilégio temporário, no rol dos direitos e liberdades
individuais:

Art. 5º, XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos


industriais privilégio temporário para sua utilização, bem
como proteção às criações industriais, à propriedade das
marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos,
tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento
tecnológico e econômico do País;33

O inciso sob análise consagra o direito à patente, que


assegura garantia de exploração exclusiva e temporária pelo
autor da inovação. O presente instituto figura como instrumento
imprescindível de incentivo à inovação.

Infraconstitucionalmente, o direito à propriedade industrial


é tutelado pela Lei Federal n.º  9.279/96, que, em seu artigo 6º,
dispõe:

33 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> .
Acesso em 25 de julho de 2020.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 163
Art. 6º Ao autor de invenção ou modelo de utilidade será
assegurado o direito de obter a patente que lhe garanta a
propriedade, nas condições estabelecidas nesta Lei.34

Ainda conforme a Lei em referência (art. 8º), são requisitos


para a patenteabilidade: (a) a novidade; (b) a atividade inventiva; e
(c) a aplicação industrial.

Neste sentido, a existência de um Estatuto da Propriedade


Industrial, que recebe a adequada e própria tutela de que
necessita, tem-se por preenchido requisito sine qua non para a
gênese do espírito inventivo e inovador no mercado. O instituto é
verdadeiro incentivo legislativo ao desenvolvimento do mercado e
da concorrência.

Ora, como se poderiam esperar investimentos de recursos


financeiros e humanos, bem como de tempo, por parte dos
agentes privados que atuam no mercado, na busca por inovações
tecnológicas, se não lhes fosse assegurada qualquer garantia na
posterior exploração econômica?

Destarte, a patente se apresenta como verdadeiro fator


impulsionador à logística mercadológica das startups, se não
verdadeira condicionante. Afinal, sem instrumento do tipo, inexistirá
qualquer player disposto a investir em inovação – pelo simples fato
de que não será uma escolha rentável ao ponto de amortizar todo
o investimento necessário.

Em última análise, trata-se da garantia de um mercado


com real possibilidade de livre concorrência, enquanto princípio

34 BRASIL. Lei Federal n.º 9.279 de 14 de maio de 1996. Regula os direitos e


obrigações relativos à propriedade industrial. Disponível em < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm> . Acesso em 25 de julho de 2020.

LEGAL TALKS:
164 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
estruturante da Ordem Econômica e Financeira, nos termos do art.
170, IV, da Carta Magna. Proporcionando-se ao mercado as reais
condições de concorrência e, mais que isto, fomentando-as, todos
serão diretamente beneficiados.

Mais uma vez se recorre, para demonstrar o exposto, aos


ensinamentos entabulados pelo Prof. JOÃO BOSCO LEOPOLDINO
DA FONSECA35:

Se têm o direito e o dever de concorrer, estará assegurado


o direito à livre iniciativa. Estará assegurado o direito de
ingressar no mercado e garantida a sua permanência. Se
se garante a livre concorrência, impõe-se aos concorrentes
o dever de ofertar sempre pelo melhor preço, pela melhor
qualidade. Estimula-se a inovação.

Com a garantia da livre-concorrência, protege-se ao


consumidor, a quem se garante o direito da livre escolha.
Protege-se também o trabalhador, pois que estarão
integrando o mercado empresas, grandes, médias, de
pequeno porte e microempresas, a propiciar-lhe maior
oportunidade de trabalho, com perspectivas de melhores
salários.

A regulação do mercado, por parte do Estado, garantirá


ao consumidor melhores condições de acesso aos serviços
públicos concedidos.

Dito isto, expostas as condições de mercado sob as quais


este trabalho se debruça, pode-se partir para a análise direta do
combate às infrações cometidas, lesivas à concorrência.

35 Idem - Direito Econômico, p. 324.


L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 165
4. Defesa da Concorrência e Punição das Infrações de Mercado

O uso da ciência econômica para a explicação da ação


humana representa um relevante avanço na teoria comportamental,
em especial para a previsão em termos de probabilidade sobre
determinadas condutas.

A partir da compreensão da ação humana sobre os


mecanismos de incentivo e desestímulo, a aplicação desta
metodologia na ciência jurídica apresenta um relevante arcabouço
de dados e condutas socialmente (ou não) desejáveis, a partir do
controle das leis.

Nesse sentido, como bem assevera Egon Bockmann Moreira:

(...) cumpre ao Estado dar eficácia ao princípio da função


social e estabelecer limites à atuação dos agentes
econômicos privados, bem como gerar meios de uma
melhor distribuição de riqueza. Isso através de regulação
normativa ou da gestão direta. O texto constitucional prevê
a integração da busca pelo lucro ao dever do atendimento
a interesses alheios àqueles dos detentores dos direitos em
questão (propriedade, livre empresa, etc.); o que implica a
funcionalização social do conceito do exercício de liberdade
de iniciativa.36

A visualização da ação humana a partir do comportamento


prescrito pela norma é o escopo do estudo que costumeiramente
se intitulou de análise econômica do direito, ou seja, a partir da
sabedoria da ação racional, com os conceitos aplicados de
36 MOREIRA, Egon Bockmann. Reflexões a propósito dos princípios da livre
iniciativa e da função social. Revista de Direito Público da Economia. São
Paulo, ano 4, n.16, out/dez, 2006, p.36.

LEGAL TALKS:
166 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
escassez, maximização de interesses, incentivos e desestímulos,
busca-se explicar se aquela lei é ou não adequada para o fim que
se busca tutelar.

Não se trata, por isto, de uma ideologia jurídica, e sim de


um método analítico que, a partir de determinados critérios e,
principalmente dados, ultrapassa o modelo dedutivo-hipotético
para transcrever a realidade social, a partir da ação positiva do
Estado.37

E, neste contexto, vários são os trabalhos referenciados


sobre o tema, os quais trazem em comum o ponto de partida em
Ronald Coase38, The nature of the firm.

A Análise Econômica do Direito permite, por meio da


utilização de ferramentas da economia, descrever a (in)eficiência
de uma determinada previsão normativa e explicar como deveria
ser a norma, para ser eficiente.

Trata-se de um verdadeiro diálogo das fontes, onde o direito


é revisitado para compreender o comportamento dos tutelados e
dos criadores da norma.

Para o desempenho da empresa, os agentes de mercado


enfrentam custos de produção, analisados sob a ótica da doutrina
37 O Direito, enquanto ciência, se dedica ao estudo das relações intersub-
jetivas, sob o aspecto material. Mas há ainda um outro aspecto, o formal, a
configurar e delimitar cada campo de estudo. Como visto acima, o Direito
pode estudar as normas que regem aquelas relações sob vários prismas. Um
deles é o da direção da política econômica pelo Estado. Será este aspecto
formal que identificará e distinguirá o Direito Econômico dos demais ramos
jurídicos. FONSECA, João Bosco Leopoldino. Direito econômico. Rio de Janei-
ro: Forense, 2015, p.8.
38 “(...) à aplicação das teorias e métodos empíricos da economia para as
instituições centrais do sistema jurídico”. COASE, Ronald. The Economic Ap-
proach to Law”. Texas Law Review, v. 53, n. 4, 1975.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 167
da Análise Econômica do Direito, que são os ônus a eles inerentes
para o desempenho de determinada atividade, os quais devem ser
reduzidos para que a atividade seja lucrativa.

No Estado Democrático de Direito e na sociedade capitalista


em que se vive por opção política e constitucional, a vida não seria
possível sem a observância do direito de propriedade. Ronald
Coase, agraciado com o Prêmio de Ciências Económicas em
Memória de Alfred Nobel de 1991, demonstra em sua teoria que a
economia funciona melhor em um sistema com definição clara do
alcance do direito de propriedade.39

Pensar em mercado é pensar num espaço social onde


ocorrem as trocas de produtos e serviços, trata-se assim de
conceito simples que permite desmistificar o tema, sendo que o
controle e a fiscalização deste espaço se impõem como essenciais
para o desenvolvimento de uma nação.

Aliás, calha trazer o ensinamento do Papa Bento XVI na


conhecida Caritas in Veritate:

O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada,


é a instituição económica que permite o encontro entre as
pessoas, na sua dimensão de operadores económicos que
usam o contrato como regra das suas relações e que trocam
bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas
carências e desejos. O mercado está sujeito aos princípios
da chamada justiça comutativa, que regula precisamente
as relações do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas
a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a
importância que tem a justiça distributiva e a justiça social

39 COASE, Ronald. A firma, o mercado e o direito. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2016.

LEGAL TALKS:
168 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
para a própria economia de mercado, não só porque
integrada nas malhas de um contexto social e político mais
vasto, mas também pela teia das relações em que se realiza.
De facto, deixado unicamente ao princípio da equivalência
de valor dos bens trocados, o mercado não consegue gerar
a coesão social de que necessita para bem funcionar. Sem
formas internas de solidariedade e de confiança recíproca,
o mercado não pode cumprir plenamente a própria função
económica. E, hoje, foi precisamente esta confiança que
veio a faltar; e a perda da confiança é uma perda grave.

E, sob este aspecto, atendendo-se a todas as disposições


previstas para as boas práticas de governança e legislação, busca-
se a construção de uma normatividade que fomente a concorrência
entre os agentes de mercado, partindo-se da análise de Louis
Brandeis, no caso Board of Trade of City of Chicago:

É legal regular a concorrência em certo grau. E não foi de


forma alguma o objetivo do Plano, nem da prática por ele
implementada, regular a concorrência sob qualquer forma.
Sua finalidade foi a de tornar possível uma regulação
racional, fornecendo dados de outra forma não disponíveis,
e sem os quais a maioria dos participantes do mercado não
teriam a possibilidade de mercadejar inteligentemente.40.

40 UNITED STATES. Supreme Court. Justia Opinion Summary and Annota-


tions. American Column & Lumber Co. v. 257 U.S. 377 (1921). US: Supreme, 1921.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 169
Em 1921, em julgamento da Suprema Corte dos Estados
Unidos, os Juízes Holmes e Brandeis derrubaram o voto do Relator
(Clarke), sob o argumento de que o “Plano Aberto de Concorrência”
adotado pelas empresas, não violava a Lei Sherman. Holmes
afirmou:

Quando há vendedores concorrentes numa classe de bens,


o conhecimento do estoque total disponível, da demanda
provável, e dos preços pagos, de certo tenderá para equalizar
os preços cobrados. Mas eu suponho que a Lei Sherman
não se coloca contra o conhecimento.... Eu penso que o ideal
de um mercado seja um intercâmbio inteligente realizado
com pleno conhecimento dos fatos como uma base para a
previsão do futuro em ambos lados (...)41

Einer Elhauge afirma que:

Uma vez mais, eu penso que a maioria se esqueceu de


um poderoso argumento. O maior problema da tendência
doutrinária é que, tendo em vista o recente precedente da
Suprema Corte, a regra per se contra os acordos horizontais
de fixação de preço não mais se aplica em casos em que
estes acordos possivelmente promovem finalidades PRO-
COMPETITIVAS de uma relação de mercado.42

Neste aspecto, para que surja e se solidifique a atividade


econômica organizada dos fatores de produção que vise à
prestação de serviço ou fabricação de produtos, é necessária a

41 UNITED STATES. Supreme Court. Justia Opinion Summary and Annota-


tions. American Column & Lumber Co. v. 257 U.S. 377 (1921). US: Supreme, 1921.
42 ELHAUGE, Einer R. Harvard, Not Chicago: Which Antitrust School Drives
Recent Supreme Court Decisions?.  Competition Policy International, v. 3, n. 2,
Autumn, 2007.

LEGAL TALKS:
170 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
criação pelo Estado de um ambiente minimamente favorável, com
os riscos inerentes ao mercado e que tragam ao empreendedor
o maior grau de certeza possível sobre os desígnios da política
monetária.43

5. O Caso Uber

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)


analisou em 2018 a existência de infrações por parte de taxistas e
pelas entidades que representam a categoria, que foram acusados
de uso de meios abusivos de forma a excluir a entrada da Uber do
Brasil Tecnologia Ltda., aplicativo de transporte de passageiros, no
mercado transporte individual remunerado – referente ao processo
administrativo n.º 08700.006964/2015-71.

A decisão foi proferida na sessão de julgamento na qual o


colegiado entendeu não existirem provas suficientes acerca da
materialidade e autoria das condutas denunciadas ao órgão que
justifiquem a condenação dos representados no processo.

Em denúncia efetuada pela Diretório Central dos Estudantes


da Universidade de Brasília e pelo Diretório Central dos Estudantes
do Centro Universitário de Brasília e pela própria Uber, alegou-
se que representantes da categoria de táxis teriam abusado do
43 “O agente econômico é livre para empreender o que bem entenda, desde
que não prejudique a liberdade, de outros agentes econômicos, de concor-
rer.
Em sentido inverso, para que haja liberdade de concorrer é preciso que não
se utilize em termos absolutos a liberdade de empreender, o que somente
pode ser obtido mediante restrições a esta última.” AGUILLAR, Fernando Her-
ren. Direito econômico: São Paulo: Atlas, 2012, p. 266.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 171
direito de petição, constitucionalmente assegurado, através da
propositura de uma série de ações judiciais e administrativas
semelhantes, visando a obstar a atuação da Uber no mercado.
Além disto, também foi relatado que os representantes teriam
empregado violência coordenada contra motoristas e passageiros
do aplicativo.

Necessário pontuar, a prima facie, que a configuração do


referido instituto é excepcional, uma vez que a regra é o irrestrito
direito de ação, em virtude do art. 5º, XXXV, da Constituição
Federal, que consagra a inafastabilidade da jurisdição, em virtude
da adoção do sistema inglês, ou uno, pelo país.

Dito isto, no que concerne a esta alegação, o Conselheiro


Relator Mauricio Oscar Bandeira Maia, entendeu pela
impossibilidade da verificação da existência de indícios bastantes
da configuração de quaisquer práticas abusivas.

Conforme entende o julgado, quando dos eventos


impugnados, ou seja, quando da chegada da Uber no país, a
categoria dos taxistas efetivamente considerava que estava sendo
injustamente prejudicada pela entrada da empresa no mercado,
justamente em face da inexistência de regulação da atividade
prestada pela Uber – que seria, portanto, menos onerada que a
categoria dos taxistas, o que consubstanciaria indevida quebra da
isonomia.

Ou seja, entendeu o Relator que as diversas ações judiciais


e administrativas que foram movidas em face da Uber não foram
fundadas em qualquer forma de abuso de direito, mas, ao contrário,
seu exercício legítimo. Afinal, não basta a mera repetição de lides
com objeto igual ou semelhante para a configuração do sham
litigation.

LEGAL TALKS:
172 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
No que se refere à figura do abuso do direito de petição,
denominada sham litigation, o Superior Tribunal de Justiça,
recentemente teve a oportunidade de se manifestar a respeito de
sua configuração, no seguinte sentido:

O ajuizamento de sucessivas ações judiciais, desprovidas


de fundamentação idônea e intentadas com propósito
doloso, pode configurar ato ilícito de abuso do direito de
ação ou de defesa, o denominado assédio processual44.

Do que se observa da decisão do Tribunal da Cidadania,


é necessário que exista, efetivamente, propósito doloso e real
ausência de fundamentação para que se configure o abuso no
direito de ação, corroborando com o entendimento exposto.

Nestes termos, o Cade entendeu que não eram infundadas


as demandas ajuizadas em face da Uber, mesmo que julgadas
improcedentes, uma vez que existia pretensão fundada nas lides
ajuizadas. Neste sentido, o Conselheiro Relator se manifestou no
seguinte sentido:

Tendo em vista a novidade que as Empresas de Rede de


Transporte representaram para o mercado e a dúvida
que pairava sobre o tema, a demanda dos taxistas em
reconhecer a proibição dos aplicativos de transporte
individual de passageiros não parece estar despida de
fundamento, mesmo que se concorde com os benefícios
que os novos serviços trazem para o mercado e para a

44 STJ. 3ª Turma. REsp 1.817.845-MS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino,


Rel. Acd. Min. Nancy Andrighi, julgado em 10/10/2019 (Info 658).
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 173
concorrência.45

No que concerne à alegação de que teria ocorrido o emprego


de violência e grave ameaça, o Conselheiro Relator Bandeira
Maia entendeu que o conjunto probatório acostado aos Autos do
processo não foi capaz de demonstrar a configuração de quaisquer
atos ilícitos a expor a risco a concorrência.

Interessa pontuar que, conforme o Documento de Trabalho


003/2015, expedido pelo Departamento de Estudos Econômicos
do Cade, apesar de a chegada do aplicativo Uber no Brasil tenha
impactado no número de consumidores corriqueiros dos taxistas,
tal realidade não se perpetuou. Assim, o mercado foi capaz de se
estabilizar, como não poderia ser diferente.

Nos termos do referido documento:

Em outras palavras, a análise do período examinado, que


constitui a fase de entrada e sedimentação do Uber em
algumas capitais, demonstrou que o aplicativo, ao contrário
de absorver uma parcela relevante das corridas feitas por
taxis, na verdade conquistou majoritariamente novos clientes,
que não utilizavam serviços de taxi. Significa, em suma, que
ate฀ o momento o Uber não “usurpou” parte considerável dos
clientes dos taxis nem comprometeu significativamente o
negócio dos taxistas, mas sim gerou uma nova demanda.46

45 CADE, Assessoria de Comunicação Social. Cade arquiva investigação no


mercado de aplicativo de transporte individual de passageiros, 2018. Dispo-
nível em <http://www.cade.gov.br/noticias/cade-arquiva-investigacao-no-
-mercado-de-aplicativo-de-transporte-individual-de-passageiros>. Acesso
em 25 de junho de 2020.
46 CADE, Departamento de Estudos Econômicos. Documentos de Trabalho
003/2015, p. 08. Disponível em <http://www.cade.gov.br/noticias/rivalida-
de-apos-entrada-o-impacto-imediato-do-aplicativo-uber-sobre-as-corri-
das-de-taxi.pdf >. Acesso em 25 de junho de 2020.

LEGAL TALKS:
174 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Justamente em função de seu caráter inovador, embora
preste serviço no mesmo ramo dos taxistas, percebe-se que, em
verdade, os aplicativos de transporte individual desaguaram no
surgimento de novo mercado. Não há que se falar em qualquer
abuso de sua posição no mercado, portanto.

Neste sentido, as conclusões do Departamento de Estudos


Econômicos do Cade:

As evidências preliminares aqui reportadas sugerem que


estejamos lidando com a criação de um mercado novo. A
considerar a experiência registrada em outros mercados
geográficos, onde os serviços de caronas pagas ja฀ estão
fortemente consolidados, a tendência é que a rivalidade
entre os serviços de caronas pagas e de corridas de táxis
cresça ao longo do tempo, gerando diferentes graus de
substitutibilidade em diferentes nichos de consumidores,
ou seja, uma situação competitiva vivida diariamente pela
ampla maioria dos agentes econômicos.47

Assim, apesar da figura ocorrida em um primeiro momento,


o ambiente competitivo no qual se inseriu a Uber foi capaz de se
regular, recuperando os consumidores que deixaram o aplicativo
em um primeiro momento.

Mais uma vez se corrobora a conclusão de tudo o que já


foi exposto até aqui: a concorrência só tem a beneficiar todo o
mercado, de maneira ampla. Deste modo, com a entrada da Uber
no mercado, os aplicativos de táxi reagiram, diminuindo o valor de
suas tarifas e buscando outros meios de aperfeiçoar a prestação
de seu serviço.

47 Idem – Documentos de Trabalho 003/2015, p. 25.


L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 175
Em que pese o choque provocado pela entrada da UBER,
com traços marcantes de inovação, percebe-se que a fluidez e
mutabilidade do mercado é capaz de se amoldar ao seu ingresso
enquanto novo player, sem prejuízo de sua estabilidade.

5. O Caso Nubank

Em caso mais recente, no processo administrativo


n.º  08700.006964/2015-71, instaurado pelo Cade em 2019, o
Conselho analisa a eventual existência da prática de atos lesivos
à ordem econômica praticados pelo Banco do Brasil, Banco
Bradesco, Banco Santander e pela Caixa Econômica Federal em
face da Nu Pagamentos S.A. (Nubank).

Foi apontada a existência de condutas discriminatórias dos


bancos, abusando de sua posição dominante do mercado.

Uma das condutas incriminadas aos bancos em questão


consiste na criação de empecilhos ao Nubank de acesso ao débito
automático, que permitira o pagamento automático das faturas do
Nubank dos correntistas naqueles bancos. Enquanto facilidade e
comodidade para o consumidor, a ausência do referido produto
pode impactar na posição do Nubank no mercado, afastando
eventuais e atuais clientes.

Embora o caso ainda não tenha sido julgado pelo Cade,


existem relevantes considerações que podem ser traçadas, pelo
conjunto probatório das investigações realizadas até então –
cujo lastro foi suficiente para determinação da instauração do
procedimento administrativo.

LEGAL TALKS:
176 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
A Nubank, na condição de empresa que oferece uma série
de serviços bancários, inclusive de conta corrente, se apresenta
como concorrente dos grandes e tradicionais bancos.

Ou seja, exerce atividade no mesmo mercado relevante que


o Banco do Brasil, Banco Bradesco, Banco Santander e a Caixa
Econômica Federal.

A diferença, todavia, está no modo da prestação dos serviços:


a Nubank aposta em inovações e novas tecnologias, realizando
todas as suas atividades por via remota, através de aplicativo
de celular. Ou seja, apresenta, assim como se deu no caso Uber,
a prestação de serviço homogêneo àquele que já era prestado,
no mesmo mercado relevante, mas cuja forma de prestação é
completamente inovadora.

Portanto, caso realmente configurada a conduta dos bancos


de impedir o acesso a serviço importantíssimo, que se torna
realmente necessário, mormente nos tempos atuais, em que as
pessoas encontram-se com cada vez menos tempo, sendo este
o mais valioso bem, caracteriza inequívoco abuso da posição
dominante do mercado por parte daqueles.

Isto porque, trata-se de evidente monopólio de serviço que


pode ser considerado essencial para a atividade desenvolvida pela
Nubank.

Destarte, relevante trazer à tona a teoria das essential


facilities, cujos contornos foram bem delimitados por RAFAEL
OLIVEIRA48:

48 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 2ª


Ed. São Paulo: Método, 2014, pp. 494-495
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 177
De acordo com a teoria das ‘essential facilities’, a
infraestrutura monopolizada por determinado agente
econômico e considerada essencial para o desempenho
da atividade deve ser compartilhada pelos concorrentes.
São requisitos para aplicação da referida teoria: a) controle
da ‘essential facility’ por um monopolista; b) inviabilidade
prática ou razoável de duplicação da ‘essential facility’;
c) restrição de uso da ‘essential facility’ por outros
competidores; e d) viabilidade técnica de acesso à ‘essential
facility’.

Neste sentido, pode-se perceber a configuração, in casu, dos


requisitos para a aplicação da referida teoria.

Primeiro, ao obstarem os grandes bancos o acesso do


Nubank ao serviço de débito automático, enquanto produto
essencial para o desempenho da atividade deste, percebe-se que
se configura o controle da essential facility pelo monopólio das
estruturas tradicionais dos bancos.

Segundo, o serviço do débito automático se trata de produto


que, para ser efetivamente prestado, depende diretamente do
outro banco, visto que consiste justamente no pagamento dos
débitos do cliente do Nubank por meio de desconto automático
dos valores na conta corrente deste mesmo cliente em outro
banco. Ou seja, não é possível que o Nubank procure uma segunda
via para o serviço, pela sua própria natureza.

Terceiro, os indícios coletados pelo Cade apontam para a


efetiva existência da criação de óbices e empecilhos para que o
Nubank tenha acesso ao serviço.

LEGAL TALKS:
178 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Por fim, o serviço de débito automático é de simples
implementação, ou seja, caso realmente configurada a conduta
apontada, não se pode argumentar pela existência de qualquer
óbice que torne sua adoção pelo Nubank tecnicamente inviável.

Portanto, ante o exposto, caso realmente se entenda pela


configuração da conduta que obsta o acesso do Nubank a esta
essential facility, inexistem dúvidas de que estará configurada
conduta lesiva à concorrência, pelo abuso da posição econômica
dos bancos tradicionais.

6. O Caso das Criptomoedas

Outro caso ainda sem julgamento pelo Cade, ainda sem


processo administrativo instaurado, mas em fase de investigações,
é atinente às criptomoedas. Mais especificamente, as corretoras das
criptomoedas representaram junto ao Cade contra as instituições
financeiras, que teriam cometido determinadas infrações à ordem
econômica.

A Associação Brasileira de Criptomoedas e Blockchain


(ABCB) representou ao Cade, visando evitar que os bancos
fechem ou neguem a abertura de contas correntes de empresas
que trabalham com criptomoedas, justamente porque tal prática
caracterizaria flagrante ofensa à livre concorrência. Foram
denunciadas as seguintes instituições financeiras: Banco do Brasil;
Banco Bradesco; Banco Itaú; Banco Santander; Banco Inter; e o
Sicredi.

A representação se fundou no fato de que o Banco do Brasil


teria decidido por fechar a conta de uma startup que atua no

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 179
ramo de bitcoins, justificando tal conduta simplesmente em uma
decisão administrativa – o que, por este fato, torna-se realmente
controverso, uma vez que as empresas precisam ter acesso aos
serviços do sistema financeiro para operar.

Em relação a estas, ainda existe questão relevante que vem


postergando a instauração do processo administrativo junto ao
Cade: se as empresas atuariam no mesmo mercado relevante. Ou
seja, existe discussão, inclusive, se as corretoras de criptomoedas
e as instituições bancárias efetivamente concorrem entre si.

Apesar disto, em 2019 o Cade havia determinado o


arquivamento do processo, ante a alegação das instituições
financeiras de que, como as atividades das corretoras de
criptomoedas não são regulamentadas, suas atividades
representariam fortes riscos de lavagem de dinheiro e outros
crimes contra o sistema financeiro.

Entretanto, em maio deste ano (2020), a Conselheira Lenisa


Rodrigues Prado se manifestou pela retomada do processo, visto que
considerou inexistente justificativa contundente para as condutas
adotadas pelos bancos, entendendo assim pela continuidade do
processo, com apoio da unanimidade do colegiado.

É evidente que as instituições financeiras possuem o domínio


das estruturas essenciais (essential facilities) referentes ao produto
de contas correntes.

Ora, não é razoável esperar que empresas que trabalhem


como corretoras de ativos financeiros, ainda que se trate de
criptomoedas – na condição de ativos não regulamentados. Isto
porque, é difícil vislumbrar, se não impossível, nos tempos atuais,

LEGAL TALKS:
180 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
que qualquer sociedade empresária possa desenvolver sua
atividade sem o uso de contas bancárias.

O óbice de que as corretoras tenham acesso a contas


correntes acaba caracterizando obstáculo não somente à livre
concorrência, mas, também, à própria livre iniciativa.

E, a princípio, as alegações realizadas pelos bancos,


relativas à existência de riscos referentes à lavagem de dinheiro,
bem como a existência frequente de investigações referentes
à incompatibilidade do faturamento e as movimentações das
corretoras, parecem demasiadamente frágeis para legitimar
restrição à concorrência.

Existe uma série de mecanismos para se proceder à


fiscalização das operações bancárias de correntistas, sendo
extremamente temerário afirmar que a medida mais eficaz seja
impedir a criação de conta corrente. Caracterizaria, na verdade,
uma verdadeira presunção de culpabilidade, ou seja, de antemão
se presume que as referidas empresas estão cometendo ilícitos,
tão-somente em razão da atividade que exercem.

Trata-se de flagrante violação, também, à própria presunção


de inocência.

Considerando que as instituições financeiras exercem


atividade restrita e controlada, de modo que inexistem
possibilidades alternativas aos consumidores que necessitam de
seus serviços, é inequívoco que exercem posição dominante do
mercado, detendo o domínio destas essential facilities.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 181
Destarte, a imposição de óbices ao acesso aos seus serviços,
sem justificativa realmente fundamentada, caracteriza-se,
inequivocamente, o abuso da posição econômica.

Além disto, ainda que não sejam as criptomoedas


regulamentadas pelo Banco Central ou pela CVM, já existe, desde
2019, regulação da Receita Federal, que determina que todas as
transações envolvendo as moedas virtuais lhe sejam reportadas,
nos termos da Instrução Normativa n.º 1.888 de 03 de maio de 2019.

Mais, diferente do que é aduzido pelos bancos, a titularidade


de contas correntes pelas corretoras de criptomoedas, além de
ferramenta necessária para o desempenho da atividade econômica
daquelas, também importa em importante instrumento para
possibilitar o próprio controle desta – ou seja, seria, na verdade,
meio para combater a prática de crimes contra o sistema financeiro.

5. Considerações Finais

Como se percebe por todos os casos relacionados à


emergência de startups no mercado expostos no presente trabalho,
as empresas já consolidadas no mercado relevante tendem a
adotar condutas defensivas, e muitas vezes anticoncorrenciais.
Diferentemente do surgimento de novos concorrentes
ordinariamente, as startups, por suas peculiaridades, são encaradas
com grande desconfiança, muitas vezes com verdadeiro receio
de que as novas estruturas importarão na substituição das já
consolidadas.

Todavia, não é esta a tendência. Na verdade, muitas vezes as


startups, embora à primeira vista não pareça, atuam em mercados

LEGAL TALKS:
182 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
relevantes ao menos parcialmente distintos, alcançando público
diverso – o que fica mais claro no caso Uber.

O efeito disruptivo da startup é tão avassalador que é capaz


de gerar um efeito supernova, isto é, rompe com o status quo
existente para fazer surgir um novo mercado, e não uma forma
eficiente de executar algo já existente.

Perceba-se que muitos dos mercados em voga, B2E, B2B, P2P


são oriundos de eventos disruptivos das startups, impondo por isso
a ação estatal que prestigie e proteja a concorrência de mercado.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 183
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LEGAL TALKS:
186 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Capítulo 7

GOVERNANÇA CORPORATIVA E
CONFORMIDADE NAS STARTUPS
Fernanda Araújo Couto e Melo Nogueira

Introdução:

Certamente você já ouviu falar em “Governança Corporativa”


e em “Programas de Compliance” (ou, como preferimos, de
Conformidade).

E, quase tão certo quanto já ter ouvido alguma dessas


expressões relacionadas ao universo empresarial/administrativo
é, num primeiro momento, ter pensado que elas são parte de uma
realidade extremamente sofisticada e distante, sendo aplicáveis
somente a grandes estruturas corporativas, mediante custos
exorbitantes.

Um dos equívocos mais comuns cometidos por


empreendedores de startups é julgar que a governança corporativa
e o sistema de compliance não se aplicam a empresas recém-
nascidas, ou que elas não precisam e não comportam esse tipo de
estruturação.

Nada mais distante da realidade.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 187
O primeiro desafio de uma startup é tirar a ideia do papel e
colocá-la em prática. No momento em que o projeto se transforma
em negócio de verdade, outras preocupações vêm à tona, como
escolher a melhor configuração societária para constituir a pessoa
jurídica, elaborar um plano de negócios factível, proteger a
propriedade intelectual dos produtos desenvolvidos e garantir que
o empreendimento se torne competitivo no mercado, tudo isso
com alta capacidade de aceleração de forma a atrair, rapidamente,
investidores, incubadoras e público-alvo.

Para dar conta de tantos desafios e permitir que a startup


se desenvolva de forma sustentável, os seus fundadores precisam
implementar, desde o início, mecanismos básicos de governança
corporativa, os quais servirão como pilares fundamentais para o
crescimento sólido da empresa.

1 - Governança Corporativa – conceito, princípios e origens:

De acordo com o Instituto Brasileiro de Governança


Corporativa – IBGC49:

“Governança Corporativa é o sistema pelo qual as empresas


e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas,
envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de
administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais
partes interessadas”.

49 O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), organização sem


fins lucrativos, é a principal referência do Brasil para o desenvolvimento das
melhores práticas de Governança Corporativa. Vale a pena acessar o site:
www.ibgc.org.br.

LEGAL TALKS:
188 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Mas, para além de uma definição abstrata, devemos
partir do pressuposto de que boas práticas de governança
corporativa pressupõem a conversão de seus pilares básicos em
recomendações objetivas, que deverão servir de diretrizes para
o alinhamento dos interesses dos sócios com a preservação e a
valorização econômica da empresa, de forma a facilitar seu acesso
a recursos e a permitir sua longevidade.

Consensualmente, são 04 (quatro) os pilares básicos que


regem as boas práticas de Governança Corporativa:

I) Transparência: consiste na disponibilização correta e


facilitada das informações, tanto às partes interessadas
quanto à sociedade, na forma imposta pela lei e pelos
regulamentos, e, ainda, a prestação de informações
que, embora não sejam legalmente exigíveis,
possam ser relevantes para aquele que as solicita. A
transparência está ligada à apresentação fidedigna
dos fatos relacionados ao desempenho econômico-
financeiro da corporação, mas também a outros
elementos que norteiam a ação gerencial e que estão
diretamente ligados à preservação e à valorização da
empresa.

II) Equidade: consiste no tratamento justo e isonômico


dos sócios, bem como de todos os interlocutores
da organização (stakeholders), levando-se em
consideração seus direitos, seus deveres, suas
necessidades, seus interesses e suas expectativas.

III) Prestação de Contas (Accountability): deve ser feita de

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 189
forma clara, concisa e tempestiva, cabendo ao agente
proceder com diligência e assumir a responsabilidade
por seus atos e omissões.

IV) Responsabilidade Corporativa: consiste na obrigação


de zelar pela viabilidade econômico-financeira de um
negócio, seja em curto, em médio ou em longo prazo,
de forma a preservar os capitais financeiro, intelectual,
humano, social, ambiental e patrimonial da empresa.

As melhores práticas de governança corporativa


pressupõem o uso consciente e efetivo dos instrumentos de
governança, ressaltando a importância das deliberações éticas
nas organizações. Para tanto, é preciso considerar um sistema
adequado de compliance.

Nesse sentido, podemos definir o Princípio da Conformidade


como o comprometimento da organização de sempre agir de
forma correta e coerente com o que determinam as leis, os
regulamentos, as normas internas, os contratos sociais, os acordos
comerciais e os demais documentos normativos capazes de
estabelecer direitos, obrigações e limites à atuação de cada player.
Muito mais do que uma atividade operacional, ser “compliant” é
uma questão estratégica, alinhada diretamente à identidade e à
coerência organizacionais.

Assim, temos que a adoção das boas práticas de Governança


Corporativa visa à harmonização dos interesses e das relações
da corporação, tanto internas quanto externas, favorecendo o
equilíbrio de forças e criando um ambiente propício à captação de
recursos junto aos investidores, o que contribui diretamente com a
perenidade da empresa.

LEGAL TALKS:
190 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
A essa altura, você pode estar se perguntando de onde
surgiu essa tal “Governança Corporativa” e por que ela passou a
ser tão importante nos dias de hoje.

A preocupação com a “maximização do desempenho da


empresa e acesso ao capital” sempre inquietou a mente dos
investidores. E, por isso mesmo, desde muito tempo, as práticas
comerciais e organizacionais vêm se aprimorando cada vez mais.

Da forma como é atualmente concebida, a Governança


Corporativa teve seu início na segunda metade do século XX,
época marcada pelo agigantamento das corporações mediante
os avanços tecnológicos; a expansão demográfica; a produção em
série e em grandes escalas; a evolução do mercado de capitais;
as crescentes emissões primárias; a proliferação de pequenos
negócios; os investimentos públicos; a transnacionalização das
companhias via fusões e aquisições; e as relações estabelecidas
entre o poder econômico e o poder político, que resultaram em
medidas protecionistas aos interesses das grandes organizações
emergentes. Some-se a isso a integração promovida por um
dinâmico comércio internacional, expandindo as transações
financeiras em âmbito global.

Nesse contexto de crescimento acelerado das atividades,


a separação entre propriedade e gestão passou então a se
fazer imperiosa, demandando do corpo empresarial diversas
adequações na sua estrutura de controle. Afinal, a partir do instante
em que há cisão entre a propriedade da corporação (agora exercida
pelos sócios) e a sua gestão (outorgada a executivos e gestores
contratados), um novo rol de conflitos internos se inaugura.

De tais conflitos, portanto, originam-se os debates sobre


Governança Corporativa, que remetem, essencialmente, à

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 191
superação dos chamados “conflitos de agência”, decorrentes
de uma propriedade com natureza dispersa, a ensejar novas
divergências entre os interesses dos sócios, os interesses dos
executivos e o chamado “melhor interesse da empresa”. Enquanto
o principal interesse dos outorgantes (sócios) é a maximização
de sua riqueza e dos retornos aos seus investimentos, podem os
gestores/administradores ter outras prioridades, como a busca
por status, benefícios e altas remunerações.

Podemos, portanto, citar como custos atribuíveis ao


oportunismo dos gestores as altas remunerações e os excessivos
benefícios autoconcedidos; a resistência à implantação de ações
vantajosas para os acionistas, quando estas impliquem em
ameaças aos cargos de gestão; ou mesmo a adoção de medidas
estratégicas movidas por interesses próprios, em detrimento dos
interesses da companhia e dos sócios.

Por sua vez, podemos citar como custos atribuíveis ao


oportunismo dos acionistas: o monitoramento exagerado dos
outorgados (gestores e administradores); a adoção de sistemas
complexos e demasiadamente onerosos de informações
gerenciais; e a criação de onerosos sistemas de incentivos e de
recompensas.

No Brasil, ainda predominam as sociedades de propriedade


concentrada, o que tende a intensificar a existência de conflitos
na medida em que, concomitantemente com o crescimento
da empresa, passam a fazer parte dela outros sócios – como
investidores e herdeiros –, os quais também possuem ideias e
fórmulas de gestão próprias. Nesse cenário, a Governança também
busca promover uma harmonização das questões em benefício da
organização.

LEGAL TALKS:
192 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Passemos a um exemplo prático: uma questão que enseja a
adoção de boas práticas de Governança Corporativa é a existência
de acionistas com direitos assimétricos, resultantes da emissão
de ações com direito a voto e ações sem direito a voto. Nessas
hipóteses, um grupo com expressiva quantidade de ações
votantes, ainda que detenha pequena parcela do capital total,
pode efetivamente controlar a empresa.

A preocupação da Governança Corporativa é, portanto, a de


criar um conjunto eficiente de mecanismos, tanto de incentivos
quanto de monitoramento, que possam assegurar um alinhamento
do comportamento dos administradores e sócios com o já referido
“melhor interesse da empresa”, garantindo sua sustentabilidade e
sua perenidade.

No universo corporativo brasileiro, o movimento de


adoção das boas práticas mostrou-se mais dinâmico a partir das
privatizações e da abertura do mercado nacional nos anos 1990 –
tendo sido criado, em 1995, o Instituto Brasileiro de Conselheiros de
Administração (IBCA), que, a partir de 1999, passou a ser intitulado
Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). Trata-se de
uma instituição com condão de propagar as práticas transparentes,
responsáveis e equânimes na administração das organizações.

Ademais, as discussões internacionais foram fortalecidas


pelas iniciativas da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) que criaram um fórum para
tratar especificamente sobre o tema, o Business Sector Advisory
Group on Corporate Governance50.

De igual forma, a ONU, através do seu programa de


Pacto Global, também tem relevante papel na mobilização das
50 Disponível em: http://www.oecd.org/daf/ca/. Acessado em: 23/07/2020.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 193
empresas para que os seus negócios sejam conduzidos sob o
viés da Governança Corporativa, atuando de forma responsável
e alinhando suas estratégias com os dez princípios sobre direitos
humanos, trabalho, meio ambiente e combate à corrupção que são
os pilares do United Nations Global Compact51.

A partir dos movimentos globais, as diretrizes e princípios


internacionais passaram a ser cada vez mais considerados na
elaboração de leis, na atuação de órgãos regulatórios e na
elaboração de recomendações por entidades do Brasil e de vários
outros países. Destacam-se algumas iniciativas organizacionais e
legislativas que abordaram o compliance em diferentes aspectos,
como a Lei n. 12.846/201352 (“Lei Anticorrupção”), o Decreto n.
8.420/201553 (que regulamenta a referida Lei n. 12.846/2013), a Lei n.
13.303/201654 (“Lei das Estatais”), a ISO 19600:2014, a ISO 37001:2016,
o Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa55 (IBGC),
a elaboração do Código Brasileiro de Governança Corporativa –
Companhias Abertas56 (GT Interagentes), o guia sobre compliance
concorrencial do Conselho Administrativo de Defesa Econômica57
(CADE) e a revisão do regulamento do Novo Mercado58 (B3).
51 Disponível em: https://www.unglobalcompact.org/. Acessado em
23/07/2020.
52 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2013/lei/l12846.htm. Acessado em 26/07/2020.
53 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/decreto/d8420.htm. Acessado em 26/07/2020.
54 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2016/lei/l13303.htm. Acessado em 26/07/2020.
55 Disponível em: https://conhecimento.ibgc.org.br/Paginas/Publicacao.
aspx?PubId=21138. Acessado em 26/07/2020.
56 Disponível em: https://conhecimento.ibgc.org.br/Paginas/Publicacao.
aspx?PubId=21148. Acessado em 26/07/2020.
57 Disponível em: http://www.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publica-
coes-institucionais/guias_do_Cade/guia-compliance-versao-oficial.pdf.
Acessado em 26/07/2020.
58 Disponível em: http://www.b3.com.br/pt_br/regulacao/estrutura-nor-

LEGAL TALKS:
194 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
2 - Conformidade para Startups:

Como vimos, as boas práticas de Governança Corporativa


visam orientar e aprimorar o modelo de gestão das organizações
através da harmonização dos interesses e do gerenciamento dos
riscos corporativos.

O foco na governança corporativa nunca foi mais importante


no ambiente empresarial do que é nos dias de hoje, quando a
confiança dos investidores, dos fornecedores e do público não
se baseia apenas no desempenho financeiro ou na qualidade dos
produtos e serviços.

Cada vez mais, a confiança se baseia num conjunto de


informações relacionadas à empresa e à sua interação com o meio
no qual está inserida: na estrutura da corporação; na sua cultura;
na confirmação de políticas e diretrizes éticas e eficientes; e no
comportamento dos seus diretores e de todos os empregados.

Assim, é essencial que, desde a sua origem, a organização


leve a sério a Governança Corporativa, adotando uma postura
proativa por parte dos seus sócios fundadores e desenvolvendo
uma cultura corporativa de transparência, conformidade,
equidade, responsabilidade social, planejamento estratégico e
responsabilidade (accountability).

Até agora, vimos o relevante papel da Governança Corporativa


para a sustentabilidade da empresa. Mas, o que é o Sistema de
Compliance e por que ele também é importante?

Embora o Compliance possa ser entendido como um dos


princípios da Governança Corporativa, podemos dizer que o seu

mativa/listagem/. Acessado em 26/07/2020.


L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 195
alcance extrapola os limites das boas práticas gerenciais na
condução dos negócios de uma empresa, na medida em que deve
envolver todos os procedimentos adotados pela organização –
desde a compra básica de insumos até a elaboração dos contratos
que formalizam as transações societárias mais complexas.

Nesse sentido, o estrito cumprimento das normas e


dos acordos é indispensável para a efetivação dos princípios
de transparência e equidade perseguidos pela Governança
Corporativa. E mais ainda: eles são essenciais para garantir
uma relação de confiança entre a empresa e os seus diversos
interlocutores (stakeholders), bem como para o comportamento
responsável dos dirigentes.

A título de exemplo, cite-se a necessidade de contratar


empregados com estrita obediência à CLT; de realizar a operação
conforme normas técnicas recomendadas pelo órgão regulador,
de adequar processos para obter certificação ISO; de adotar, se for
o caso, regras contábeis internacionalmente aceitas; de observar e
fazer cumprir as determinações legais quanto à responsabilidade
ambiental e à propriedade intelectual; dentre várias outras medidas,
sob pena de responder pelo descumprimento, de ser onerada com
multas, punições e restrições legais.

Além de tudo isso, atualmente, com a promulgação de várias


leis e atos contrários à fraude e à corrupção, a conformidade tem
merecido relevante destaque pelas organizações. Prova disso é
o surgimento dos chamados Programas de Conformidade (ou de
Integridade), os quais são pensados para garantir a implantação de
princípios diretores e de uma cultura de atuação ética por todos
os integrantes da organização, bem como de exigir, dos seus

LEGAL TALKS:
196 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
interlocutores – em especial fornecedores e parceiros –, a adoção
de práticas legalmente permitidas e eticamente viáveis.

Em qualquer empresa, a criação de um Programa de


Conformidade pode gerar dúvidas e dificuldades, sendo a mais
frequente delas relacionada ao ponto de partida para que a
organização adote tais princípios e políticas. Com as startups
não é diferente: se, cada vez mais, a adoção de boas práticas de
Governança Corporativa e de um Programa de Conformidade
são diferenciais que incitam segurança e atraem os melhores
e maiores investidores, o “como fazer” e “o que fazer” ainda são
questionamentos de extrema importância.

Considerando que a implementação de boas práticas de


Governança Corporativa e de um Programa de Conformidade
(Compliance) é, cada vez mais, uma exigência do mercado, será
que não vale a pena instituí-los desde o início? A cada dia, temos
assistido ao exponencial impacto negativo gerado pela corrupção
no mundo corporativo, tanto no cenário interno quanto no cenário
internacional.

E, com o intuito de impedir tais práticas, cada vez mais


atos normativos e regulamentos são criados para se exigir das
organizações a adoção de medidas preventivas contra atos de
corrupção.

Além disso, numa busca contínua pela transparência e


pela equidade, temos visto grandes corporações – e mesmo as
entidades estatais – exigirem de seus parceiros (fornecedores,
clientes, conveniados e demais) a adoção de práticas de governança
corporativa e de conformidade.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 197
Cite-se, por exemplo, a obrigação de as empresas licitantes
apresentarem programa de conformidade para participarem de
licitação promovida por entes da Administração Pública59; ou a
obrigação de os fornecedores de grandes empresas adotarem as
normas editadas pela empresa compradora60, caso o fornecedor
não disponha do seu próprio Programa de Conformidade (ou,
no caso de possuí-lo, não estar ele coerente com o alto padrão
adotado pela compradora).

Diante de tudo isso, parece-nos a melhor opção (na verdade,


entendemos que é essencial) a adoção de boas práticas de
Governança Corporativa e de um Programa de Conformidade pela
startup desde a sua fundação, ainda que em caráter embrionário, de
forma que a sua evolução acompanhe o crescimento da empresa.

Não se trata de gastar rios de dinheiro com um programa


por demais complexo e inaplicável. Ao contrário, o Programa de
Conformidade de uma startup deve estar coerente com a fase de
desenvolvimento da empresa. Além disso, deve ser elaborado de
forma personalizada, vinculado aos riscos e às peculiaridades do
mercado em que a empresa pretenda atuar.

Pensando nisso, passamos a descrever os 05 (cinco) passos


básicos que devem auxiliar o empreendedor a implementar o seu
Programa de Conformidade, as quais são baseadas nas medidas
sugeridas pela Transparência Internacional – TI, pela Organização
59 Em 2015, a CGU lançou o Guia de Integridade pública, que traz orienta-
ções para a administração pública federal: direta, autárquica e fundacio-
nal. Disponível em: http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/etica-e-integrida-
de/arquivos/guia-de-integridade-publica.pdf. Acessado em: 20/07/2020.

60 Cite-se, por exemplo, o Código de Conduta da empresa Baxter, uma das


grandes corporações do mercado de saúde. Disponível em: http://www.la-
tinoamerica.baxter.com/brasil/sobre-a-baxter/governanca-corporativa/
etica-e-compliance.html. Acessado em: 20/07/2020.

LEGAL TALKS:
198 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pela
Endeavor Brasil61:
1) Estabelecer a Missão, a Visão e os Valores da Empresa:

O primeiro passo para implantar uma cultura ética e coerente


com os princípios da empresa é definir a sua missão, a sua
visão e os seus valores.

A missão está relacionada ao propósito maior da organização


e para quem ela se destina.

A visão traduz a perspectiva de longo prazo da empresa. É


inspirada naquele objetivo fim que se almeja para o futuro,
devendo ser, portanto, “um sonho atingível”.

E os valores são os princípios e crenças que norteiam a


conduta ética da empresa e de seus funcionários. Eles devem
guiar a conduta de todos os integrantes de uma organização
e são inegociáveis, ditando comportamentos e atitudes no
funcionamento de toda a estrutura organizacional.

A partir dessas definições, fica mais claro quais são as


expectativas de cada um com a startup no que se refere
ao seu propósito, tamanho, alcance e estilo de gestão, e
tudo isso pode impactar no direcionamento estratégico do
negócio.

Não é incomum que, a partir deste levantamento, haja


divergências entre sócios e que relações societárias
cheguem a ser dissolvidas, pois, às vezes, as crenças, visões
de mundo e expectativas trazidas pelos empreendedores
são tão distintas que se tornam inconciliáveis.

61 Disponível em: https://endeavor.org.br/. Acessado em 30/01/2020.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 199
Por outro lado, uma atividade empresarial pautada em
valores éticos convergentes aumenta as chances de atrair
investidores, fornecedores, parceiros e clientes afinados com
o perfil da startup.

2) Definir papéis e responsabilidades:

É muito importante separar o papel que o empreendedor


desempenha como sócio do papel desempenhado pelo
executivo, ainda que tais funções sejam exercidas pela
mesma pessoa. São duas posições distintas, que, como
vimos, podem gerar conflito de interesse.

Sob tal aspecto, a implantação das boas práticas de


Governança Corporativa ajuda a startup a criar um
procedimento decisório mais transparente e eficiente,
minimizando o risco de tomada de decisões precipitadas ou
contrárias aos interesses da empresa.

É essencial que, desde a fase de ideação, em que a startup


está desenvolvendo a ideia do produto e/ou serviço que
pretende ofertar e está entendendo o problema que deseja
resolver ou a lacuna do mercado que deseja preencher, os
papéis e as responsabilidades dos sócios sejam esclarecidas
e especificadas, inclusive quanto às formas de contribuição
e a intensidade de dedicação, a remuneração e futura
participação, bem como opções de saída e descontinuidade.

Nesse sentido, estimula-se a criação de instâncias


deliberativas como forma de criar uma cultura de prestação
de contas e de “due diligence”, através da qual decisões
importantes passem a ser tomadas com maior consciência e
responsabilidade, mediante ampla discussão e deliberação.

As regras de participação societária devem ser claras, sendo

LEGAL TALKS:
200 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
ajustados conforme

as necessidades são percebidas. Com o desenvolvimento do


projeto elas provavelmente serão revisitadas para considerar
o equilíbrio de envolvimento dos sócios fundadores e dos
novos ingressantes.

Em suma, a implantação da Governança Corporativa permite


o aproveitamento de toda a riqueza do capital humano da
empresa, contribuindo para um processo decisório funcional
e eficiente e se refletindo na expansão acelerada e sustentável
do negócio.

3) Implementar um Código de Conduta Ética e Políticas da


Organização:

Para garantir o sucesso e o crescimento concertado da


organização, é essencial que, desde o seu início, seja
implantada uma cultura de responsabilização pelos próprios
atos e pela integridade do próprio trabalho. Nesse sentido,
devem ser criados procedimentos e políticas internas que
direcionam e definem os comportamentos obrigatórios e os
aceitos pela empresa – em especial, no que tange à interação
dos empregados com empresas concorrentes, com agentes
do governo e com terceiros.

A criação de um Código de Conduta Ética significa muito mais


do que simplesmente adotar um modelo pré-estabelecido
de normas e comportamentos exigidos e/ou proibidos. Antes,
requer a análise aprofundada dos riscos relacionados às
atividades desenvolvidas pela empresa; e, ainda, a tradução
da sua missão, dos seus valores e dos princípios por ela
defendidos em orientações objetivas e concretas.

Por isso mesmo, esse Código deve ser elaborado com o

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 201
acompanhamento de um especialista, de forma a garantir que
seja o mais pormenorizado possível – detalhando os valores
almejados, as recomendações práticas e as penalidades
previstas.

É através da concepção do Código de Conduta que restarão


asseguradas as medidas que visam prevenir potenciais
violações da lei ou das políticas da empresa, bem como
as medidas para que eventuais infrações sejam aferidas e
respondidas prontamente com as medidas disciplinares
apropriadas.

Além da elaboração do Código de Conduta, é recomendável


o estabelecimento de políticas que disciplinem alguns tipos
específicos de transações com partes relacionadas, tais
como práticas de doação, uso e proteção de dados pessoais,
gastos autorizados em viagens, prevenção e detecção de
atos ilícitos etc.

É essencial que tais documentos sejam divulgados, tanto


no âmbito interno da empresa quanto junto aos seus
interlocutores externos – tais como clientes, fornecedores
e parceiros –, de forma a garantir que as pessoas que
necessitem saber, tenham acesso às regras e diretrizes
estabelecidas e determinadas pela empresa.

Afora a divulgação, também é recomendável que haja revisões


e treinamentos periódicos que permitam o aperfeiçoamento
e a atualização contínuos das disposições contidas nos
documentos.

Mais ainda, é essencial que a liderança esteja comprometida


com os esforços de compliance da organização através de
monitoramento e pronta resposta aos desvios eventualmente
detectados.

LEGAL TALKS:
202 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
4) Constituir um Conselho Consultivo:

As dúvidas relacionadas à estruturação de um negócio são


muitas, e podem estar relacionadas a variados aspectos.
Por isso, o empreendedor deve buscar apoio especializado,
destacando um grupo de pelo menos três a cinco profissionais
que poderão auxiliá-lo na adoção dos passos que permitirão
a ascensão acelerada do negócio.

Ao conselho consultivo cabe a função de apoio ao


planejamento estratégico empresarial e pode ser o primeiro
órgão para o aprimoramento dos princípios de prestação de
contas e transparência. Em se tratando de órgão desprovido
de caráter deliberativo, a decisão a ser adotada fica a cargo
dos administradores da startup.

Aqui, cabe ao empreendedor determinar o perfil mais amplo e


capacitado possível para que o Conselho possa acompanhar
e deliberar de forma eficaz sobre as questões estratégicas
relacionadas à startup. Para começar, vale a pena definir os
indicadores a serem monitorados por este seleto grupo, além
da periodicidade de monitoramento e quais instrumentos de
gestão serão disponibilizados.

Importante lembrar que os Conselheiros possuem


deveres de diligência, lealdade e de informar e, portanto, é
recomendável que as regras de funcionamento do Conselho
sejam previamente definidas e que as deliberações sejam
registradas.

5) Definir indicadores:

Tão importante quanto criar uma estrutura mínima capaz de


conduzir a empresa para o sucesso é definir quais indicadores
serão levados em conta e como eles serão divulgados aos

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 203
diversos stakeholders com os quais a organização interage.

É a partir da definição de tais indicadores que a empresa


estará apta a fazer a medição do impacto de suas ações, e,
também, a divulgar os resultados obtidos. Também será a
partir deles que a empresa poderá identificar pontos mais
frágeis para dar a eles o tratamento adequado.

Assim, é essencial que a organização – desde a alta diretoria


até o “chão de fábrica” – esteja engajada com uma conduta
ética e profissional, tendo como objetivos a prevenção e a
detecção prematura de qualquer violação a leis, políticas,
procedimentos internos e demais normas aplicáveis.

De tal maneira que, além da mera definição de indicadores, é


necessário o treinamento periódico dos funcionários eleitos
para exercer cargos de fiscalização e monitoramento.

É altamente recomendável a elaboração de um planejamento


formal do negócio em que estejam previstos recursos
disponíveis, metas, indicadores de gestão e prestação de
contas.

A manutenção das demonstrações financeiras atualizadas


também é uma boa prática de governança corporativa que,
além de consistir em uma conformidade legal, pode ser o
diferencial para a captação de novos recursos.

Conclusão:

Diante do que foi apresentado, esperamos que o leitor


já tenha se convencido de que a adoção de boas práticas de
Governança Corporativa e a implementação de um Programa de

LEGAL TALKS:
204 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Conformidade são essenciais para o crescimento sustentável de
uma empresa.

Um bom sistema de governança aliado a um Programa de


Conformidade personalizado cria as regras do jogo entre os atores
diretamente envolvidos na gestão do empreendimento (sócios,
investidores, conselheiros e equipe executiva) e permite que a
empresa atinja o ápice de sua perfórmance, preservando a missão
e os princípios que norteiam sua atuação.

Tendo em vista as atuais restrições econômicas, o


empreendedor deve usar os recursos financeiros disponíveis com
o maior aproveitamento possível, adotando medidas eficientes e
pouco complexas que garantam a conduta íntegra e sustentável
da organização até o seu completo amadurecimento.

Ao implementar as práticas de Governança e o Programa de


Conformidade, o empreendedor deve, antes de tudo, compreender
que o custo dessa operação é, em verdade, um investimento. Sendo
assim, trará o consequente retorno, atraindo grandes investidores
e valorizando a imagem institucional perante o consumidor e a
sociedade, garantindo a maior probabilidade de sucesso do seu
negócio.

Em geral, empresas brasileiras com estrutura reduzida


relutam em adotar programas de compliance. É um velho hábito
nacional o de preferir remediar a prevenir. O problema surge quando
se tem que travar uma longa disputa judicial em decorrência de um
descumprimento de lei trabalhista; ou arcar com multas pesadas
da Receita Federal devido a falhas na prestação de contas ao
Fisco; ou mesmo receber imposições por descumprimento às leis
ambientais. Tudo isso pode enfraquecer de tal maneira a atuação

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 205
da corporação no mercado que termina por inviabilizar a sua
perspectiva de crescimento – e, em alguns casos, de sobrevivência.

Por isso, não deixe para depois o que pode e deve ser
considerado desde o início. Para as startups embrionárias que
enfrentarão o desafio do crescimento acelerado, a Governança
Corporativa e o Programa de Conformidade nascem junto com o
nascimento da ideia, e vão ganhando estrutura juntamente com
o desenvolvimento da empresa, garantindo assim as maiores
chances de sucesso no menor prazo possível.

Estando preparadas desde o começo, as empresas crescerão


sob fundamentos sólidos. E estarão preparadas para agarrar as
oportunidades e os investimentos disponíveis no mercado.

• Por fim, referenciamos alguns dos resultados decorrentes


de uma boa governança associada à Conformidade:

• maior eficiência na gestão e desempenho da empresa;

• geração de valor para a imagem da companhia;

• integridade na conduta sob os aspectos éticos, contábil


financeiro, e normativo;

• transparência relacionada à divulgação clara e precisa


das informações relevantes sobre o desempenho
econômico-financeiro;

• maior controle interno e externo das atividades


empresariais;

• maior atenção à responsabilidade corporativa, no que

LEGAL TALKS:
206 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
diz respeito às práticas sociais, ambientais, de segurança
do trabalho e da saúde, de proteção de dados pessoais,
dentre outras que colaboram, no longo prazo, para a
perenidade do negócio;

• benefícios trazidos ao seu setor de atuação e à sociedade


como um todo.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 207
Para Aprofundamento do Tema:

Abaixo, seguem alguns links para sites e publicações que


abordam a Governança Corporativa e o Compliance e que podem
auxiliá-lo no aprofundamento dos temas tratados nesse capítulo:

• 10 passos para a boa governança - https://


p o r t a l . t c u . g o v. b r/d a t a / f i l e s / F7/A 1 / E A /
A4/63B0F410E827A0F42A2818A8/2666621.PDF

• Amcham – Comitê estratégico de Marketing - http://


w w w. a m c h a m . c o m . b r/re p o s i to r i o - d e - a rq u i vo s /
a p re s e nt a co e s /co m p l i a n ce - e m - m a r ket i n g -
amcham-20130918.pdf;

• Compliance à Luz da Governança Corporativa - https://


c o n h e c i m e n to . i b g c . o rg . b r/ P a g i n a s / P u b l i c a c a o .
aspx?PubId=23486

• Compliance: guia para as organizações brasileiras - https://


www.oabmg.org.br/pdf_jornal/Cartilha%20Compliance_
cartilha%20vers%C3%A3o%20final_Impress%C3%A3o.pdf

• Empresas de Alto Crescimento e o desafio de scale-up:


onde estamos e para onde podemos ir. - https://images.
endeavor.org.br/uploads/2018/06/29194659/White-
Paper-Lancamento-Catedra-Endeavor.pdf

• Governança Corporativa para Startups e Scale-ups -


https://conhecimento.ibgc.org.br/Paginas/Publicacao.
aspx?PubId=24050

LEGAL TALKS:
208 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
• Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE)
- http://www.cade.gov.br/acesso-a-informacao/
publicacoes-institucionais/guias_do_Cade/guia-
compliance-versao-oficial.pdf

• Endeavor Brasil - https://endeavor.org.br/;

• Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) –


http://www.ibgc.org.br/;

• Organização para a Cooperação e Desenvolvimento


Econômico (OCDE) – http://www.oecd.org/corporate/;

• Transparency International – https://www.transparency.


org/;

• United Nations Global Compact – https://www.


unglobalcompact.org/.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 209
Capítulo 8

POR QUE COMPLIANCE TRIBUTÁRIO


PARA STARTUPS?
Gabriela Cabral Pires

1 - Introdução

O mundo globalizado impõe cada vez mais o controle das


empresas em relação aos riscos envolvidos em suas operações
e à constante necessidade de aumento de receitas. Manter o
funcionamento da empresa a longo prazo, porém, consiste em
árduo trabalho, como se verifica pela baixa taxa de sobrevivência
das empresas no Brasil.

Pesquisa realizada pelo Sebrae em 201662, com empresas


criadas em 2011 e 2012, mostra que a taxa de sobrevivência foi
de 78,9% após 1 ano de funcionamento (2013), 64,5% após 2 anos
(2014), 55,0% após 3 anos (2015), 47,2% após 4 anos (2016) e 39,8%
após 5 anos (2017). O estudo ainda perguntou aos empresários
que encerraram suas atividades o que teria sido útil para evitar
o fechamento do negócio, donde 52% responderam que seria o
menor ônus tributário e 18% disseram ser necessário um melhor
planejamento do negócio.

62 SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. So-


brevivência das Empresas no Brasil. 2016. Disponível em <https://datase-
brae.com.br/sobrevivencia-das-empresas/#referencias> Acesso realiza-
do em 10/07/2020.

LEGAL TALKS:
210 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Quando a análise se limita ao campo das startups, a taxa
de sobrevivência é ainda menor. Conforme estudo realizado
pela Fundação Dom Cabral63, após um ano, pelo menos 25% das
empresas morrem, sendo que essa taxa sobe para 50% quando se
fala de quatro anos. Isso significa que nem a metade das startups
chega a completar cinco anos de vida.

Ainda assim, essas empresas, que se caracterizam pelas


condições de incerteza e inovação, possuem grande potencial
de impactar a economia nacional, demandando estudos mais
direcionados às suas peculiaridades como forma de mantê-las em
funcionamento por mais tempo.

O objetivo do presente estudo, então, é justamente


demonstrar que não só as grandes companhias necessitam dos
estudos de compliance, em especial do compliance tributário. Nesse
sentido, de forma a melhor ilustrar a questão, serão analisados
modelos de negócios comuns entre as startups que possuem
características merecedoras de atenção sob a ótica tributária.

Como se verá adiante, o compliance tributário é de extrema


utilidade para a boa performance financeira das startups, para a
captação de investimentos, para manutenção de clientes e para a
neutralização de riscos.

63 ARRUDA, Carlos; NOGUEIRA, Vanessa; COZZI, Afonso; e COSTA, Viní-


cius. Causas da Mortalidade de Startups Brasileiras. Fundação Dom Ca-
bral, 2015. Disponível em: <http://ois.sebrae.com.br/publicacoes/cau-
sas-da-mortalidade-de-startups-brasileiras/#:~:text=Um%20dos%20
principais%20resultados%20encontrados,ou%20igual%20a%20treze%20
anos.>. Acesso realizado em 12/07/2020.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 211
2 - Compliance tributário: para além do cumprimento das
obrigações acessórias

Apesar de o termo compliance ser cada vez mais comum no


meio empresarial, o que, de fato, ele significa? A tradução literal do
termo em inglês remete ao cumprimento, ou à conformidade, o
que, no campo do direito, relaciona-se à observância das leis. Mas
a prática não se limita ao cumprimento das leis, mesmo porque ele
sempre foi imperativo.

A origem desse movimento é associada à legislação dos


Estados Unidos do final da década de 70, conhecida como FCPA –
Foreign Corrupt Practices Act, embora a preocupação com o maior
controle das operações financeiras e com a confiança do mercado
em face dessas operações já pudesse ser observada desde a crise
da bolsa, em 1929. As disposições do FCPA, emendadas no ano de
1998, tratam principalmente de medidas antissuborno a que estão
sujeitas as empresas americanas e aquelas que tenham atividades
no território dos Estados Unidos.

Essa e outras normas internacionais subsequentes foram


responsáveis pelo início do movimento no Brasil de adequação
das empresas mesmo na ausência de lei nacional a esse respeito,
já que o programa de compliance tornou-se uma exigência de
contratação por parte de várias empresas multinacionais. A cultura
em questão foi reforçada pela instituição da Lei n. 12.846/13 e de
sua regulamentação por meio do Decreto n. 8.420/15, por meio
dos quais foram estabelecidas sanções para responsabilizar as
pessoas jurídicas e os responsáveis envolvidos em ato ilícito
praticado contra a administração pública.

LEGAL TALKS:
212 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Dentre as hipóteses de atenuação das sanções previstas
na lei em comento, encontra-se “a existência de mecanismos
e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à
denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética
e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” (inciso VII do art. 7º da Lei
n. 12.846/13), os quais se enquadram no conceito de compliance
mundialmente adotado.

Trata-se da adequação das atividades da empresa aos


seus propósitos, princípios e também às normas. Justamente por
esse motivo, o compliance usualmente se relaciona às práticas
anticorrupção e a questões éticas das tomadas de decisões,
norteadas por regras internas de conduta.

O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, em estudo


intitulado “Compliance à luz da governança corporativa”, destaca
que o termo significa “a busca permanente de coerência entre aquilo
que se espera de uma organização - respeito às regras, propósito,
valores e princípios que constituem sua identidade - e o que ela de
fato pratica no dia a dia”.64

Nesse sentido, as medidas de controle de informações


privilegiadas, a revisão de contratos comerciais à luz do direito e o
exame de deveres instrumentais (como as obrigações acessórias
tributárias) consistem em alguns dos controles cuja finalidade é
garantir que os processos estão de acordo com as normas e, assim,
mitigar os riscos de erro, fraude ou interpretações diversas a que
estão sujeitos os empresários.

64 NEDER, Marcos Vinicius; CRUZ, Alessandro. A investigação de complian-


ce e o processo administrativo fiscal. In.: CARVALHO, Paulo de Barros (coord.),
BRITTO, Lucas Galvão de; DIAS, Karen Jureidini (org.). Compliance no Direito
Tributário. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. pg. 127-152.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 213
A gestão de riscos se associa ao compliance na medida
em que ela significa exatamente a criação de procedimentos e
processos que garantam monitoramento das atividades de forma
suficiente a evitar perdas financeiras, gerando maior confiabilidade
e segurança entre os stakeholders. Nesse sentido, o trabalho de
compliance se inicia pelo mapeamento dos riscos, identificando
onde existe algum fator que possa gerar risco à companhia,
apontando os controles existentes para mitigar a ocorrência desse
fator e elaborando o documento chamado Matriz de Risco.

Posteriormente, o profissional de compliance realiza o


monitoramento dos processos e participa de reuniões das áreas
gestoras relacionadas aos fatores de risco. Por fim, o trabalho de
compliance também auxilia na confecção das políticas internas das
empresas e na sua propagação entre os funcionários.

Esse resumo das atividades do profissional de compliance


usualmente leva ao entendimento de que, na seara tributária, a
atuação se limitaria ao cumprimento dos deveres instrumentais,
ou das obrigações acessórias. Todavia, esse trabalho vai muito
além, estendendo-se à construção interpretativa das normas e a
sua adequação aos fatos ocorridos no mundo fenomênico.

Os mecanismos em questão podem vir a ter inúmeros


objetivos, dentre os quais se destacam, para os fins do presente
estudo, o cumprimento das normas tributárias vigentes, a
prevenção de demandas administrativas e judiciais, a redução do
passivo tributário e a demonstração para potenciais investidores
e clientes de que a empresa é confiável. Todos eles convergem
para a minimização dos riscos negociais, principalmente na fase de
elaboração de plano de negócios e de planejamentos tributários.

LEGAL TALKS:
214 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Dessa forma, no âmbito tributário, o tax compliance ou fiscal
compliance relaciona-se ao respeito às regras, propósito, valores
e princípios que constituem a identidade de uma companhia e ao
grau de cumprimento pelos contribuintes das normas tributárias.
Para além de fins altruístas e morais, o compliance é um importante
fator de mercado, tanto em decorrência da atuação dos órgãos
de controle (como a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, o
COAF - Conselho de Controle de Atividades Financeiras e o Banco
Central do Brasil), quanto devido à exigência de acionistas, clientes
e potenciais investidores, que realizam intenso trabalho de
investigação das práticas e dos passivos da empresa, a exemplo
das due dilligences.

Não obstante sejam esses motivos suficientes para a adoção


dos mecanismos de compliance, ainda se observa, com maior
intensidade nos dias de hoje, a atuação de outros stakeholders
que também induzem à implementação de tais mecanismos.
Como bem lembra Paulo de Barros Carvalho65, recentemente
houve um relevante movimento dos consumidores britânicos, os
quais boicotaram um famoso café vendido por uma multinacional
americana em virtude da divulgação da economia de tributos no
Reino Unido por meio de um planejamento tributário considerado
agressivo. Essa prática tem sido chamada de tax shaming.

Diante desse cenário, verifica-se que a de implementação


do compliance é imposta a quaisquer empresas, sejam elas de
grande, médio ou pequeno porte. O risco tributário no Brasil advém
de uma legislação extremamente complexa, das mais diversas
interpretações dessas normas (inclusive pelo próprio Poder
Público) e do equivocado entendimento de que existem modelos
65 CARVALHO, Paulo de Barros (coord). BRITTO, Lucas Galvão de; e DIAS,
Karem Jureirini (org.). Compliance no direito tributário. São Paulo: Thomp-
son Reuters Brasil, 2018. Pg. 10.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 215
“pré-fabricados” de estruturação empresarial. O compliance é um
mecanismo poderoso de neutralização desses riscos cujo objetivo
é construir um instrumento eficiente para detectar os desvios e
promover as correções preventivas, mostrando-se imprescindível
à saúde financeira e à segurança de atuação das empresas.

3 - Conflitos tributários envolvendo as startups: a natureza


jurídica da atividade exercida

Em geral, as startups inserem-se em um cenário cercado


de incertezas, em especial por atuarem em campos de inovação
disruptiva, usualmente por meio de modelos de negócios
escaláveis, ou seja, com expectativa de crescimento em um
curto espaço de tempo sem que os custos aumentem na mesma
proporção das receitas. Isso significa que se espera da startup uma
alta lucratividade, de forma rápida e em um setor inovador, que
rompa com o que já se viu no mercado até então.

Consequência dessa característica de incerteza é a


necessidade de elaboração de um plano de negócios o mais
fidedigno e verossímil possível, de forma a não só captar maiores
investimentos, mas também alcançar a almejada lucratividade
mediante o eficaz planejamento. A elaboração de um plano
eficiente significa maior precisão nas previsões relacionadas ao
retorno do negócio e à viabilidade das decisões a serem tomadas
pelos gestores da empresa.

O plano de negócios consiste em um documento em que


são descritas as características do negócio, sua operação, suas
estratégias, seus planos e as projeções de despesas, receitas

LEGAL TALKS:
216 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
e resultados financeiros66. Um dos objetivos desse modelo é a
identificação de riscos associados à atividade, sendo importante
ressaltar que, quanto antes os riscos forem identificados, tanto
mais rapidamente poderão ser evitados ou amenizados.

O plano financeiro contempla as análises e projeções


relacionadas ao capital inicial necessário para dar início à operação
e aos resultados, bem como apresenta as previsões de receitas,
custos e as análises financeiras.

Nesse sentido, a implantação do compliance tributário em


uma startup assume grande importância devido ao fato de que
os custos tributários impactam diretamente na composição do
preço a ser ofertado e nos resultados financeiros estimados e
realizados pela empresa. Como se verá adiante, algumas situações
usualmente enfrentadas pelas startups podem ser evitadas ou
planejadas de forma a reduzir os riscos de autuação fiscal e melhor
estimar os custos tributários.

Noutro lado, é de extrema relevância no plano de negócios a


análise jurídica, por meio da qual será definida a estrutura legal da
empresa e será descrita a forma societária adotada, além de que
essa análise abrange a avaliação dos possíveis questionamentos
jurídicos que possam envolver a atividade a ser exercida. Também
nesse aspecto o trabalho de compliance tributário merece atenção,
na medida em que a correta classificação das atividades e os riscos
jurídico-tributários relacionados ao ramo de atuação são objeto de
estudo nessa seara.

66 BIZZOTTO, Carlos Eduardo Negrão. Plano de negócios para empreen-


dimentos inovadores. São Paulo: Atlas, 2008. Pg. 24

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STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 217
Como forma de delimitar o objeto do presente trabalho, será
analisado a seguir um tema cuja importância é pouco reconhecida
pelos empresários e gestores, embora traga relevantes impactos
financeiros e comerciais à empresa. Trata-se da identificação da
correta natureza jurídica das atividades a serem exercidas pelas
sociedades, incluindo a correta classificação quando do cadastro
do objeto social na Receita Federal, por meio do código CNAE –
Classificação Nacional de Atividades Econômicas.

Segundo a Receita Federal67, a CNAE é um instrumento


utilizado pelos diversos órgãos da Administração Tributária do
País para padronizar os códigos de atividade econômica e dos
critérios de enquadramento. Essa classificação é resultado de um
trabalho conjunto das três esferas de governo, elaborada sob a
coordenação da Secretaria da Receita Federal e orientação técnica
do IBGE. Participam desse trabalho, na Subcomissão Técnica da
CNAE, representantes da União, dos Estados e dos Municípios.

O estudo de definição do código CNAE a ser informado para a


Receita Federal como atividade principal ou atividades secundárias,
contudo, não é tão simples quanto parece, merecendo atenção
e conhecimento preciso do trabalho executado. A classificação
da atividade, além de poder gerar consequências relacionadas à
responsabilidade civil do contratado, ainda interfere diretamente
na tributação incidente sobre as operações, sendo inclusive objeto
de autuações pelo Fisco.

A seguir, serão analisados modelos de negócios


comumente adotados pelas startups e que trazem

67 BRASIL. Receita Federal do Brasil. Disponível em <https://receita.econo-


mia.gov.br/orientacao/tributaria/cadastros/cadastro-nacional-de-pes-
soas-juridicas-cnpj/classificacao-nacional-de-atividades-economicas-
-2013-cnae/apresentacao>. Consulta realizada no dia 11/07/2020.

LEGAL TALKS:
218 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
características merecedoras de atenção sob a ótica tributária.

3.1 - Marketplace e e-commerce

O mercado de comércio eletrônico tem se mostrado como


um dos mais promissores da atualidade. Essa característica se
intensificou diante da imposição de isolamento social decorrente
da pandemia causada pelo vírus Covid-19, iniciada em março
de 2020, sendo que a mudança de hábitos dos consumidores
dificilmente será revertida.

A Receita Federal do Brasil68 informou que em 2020, o


comércio eletrônico teve crescimento exponencial em quantidade
e em volume, especialmente a partir de março. Em comparação
com o mesmo mês de 2019, a média diária de vendas apuradas
em 2020 cresceu 20,6% em março, 17,5% em abril, 37,4% em maio
e 73,0% em junho. Ainda que a permissão para abertura das lojas
físicas, após o período de isolamento social, venha a afetar esses
índices, é improvável que a realidade mude por completo e os
consumidores deixem de realizar as compras no ambiente virtual O
desafio das empresas que atuam no setor, então, é se planejarem
para que continuem ativas independentemente da mudança de
hábitos sociais.

As vendas de mercadorias em ambiente virtual podem


ser realizadas por uma extensa variedade de mecanismos e
plataformas tecnológicos, mas a determinação do negócio jurídico
efetivamente realizado pelo operador da plataforma causa dúvidas

68 BRASIL. Receita Federal do Brasil. Disponível em: <http://receita.eco-


nomia.gov.br/noticias/ascom/2020/julho/vendas-em-junho-cresce-
ram-10-3-quando-comparadas-a-junho-de-2019> Acesso realizado em
12/07/2020.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 219
e tem sido objeto de autuações fiscais, já que existem relevantes
impactos tributários nessa definição.

Uma opção é a atividade de e-commerce, consistente na


venda direta ou revenda dos produtos por meio do operador da
plataforma de vendas. Nesse caso, o operador adquire a mercadoria
fabricada por terceiros e a coloca à venda no site ou disponibiliza
mercadorias produzidas por ele próprio.

Do ponto de vista tributário, na revenda, há incidência dos


tributos sobre o consumo no momento em que o fornecedor
realiza a venda e também quando o revendedor emite a nota
fiscal de venda para o consumidor final, ambos, em regra, sobre
o preço cobrado pelo produto. Dentre os tributos incidentes
sobre o consumo, destaque-se, para fins de análise no presente
estudo, o ICMS - imposto sobre circulação de mercadorias e
prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal
e comunicação, de competência dos Estados da Federação.

A segunda possibilidade consiste na atividade classificada


como marketplace digital, por meio da qual se prestam serviços
de intermediação, onde a detentora do sítio eletrônico figura na
posição de agenciadora de compradores e vendedores.

Nessa hipótese, as empresas reconhecem em seus


resultados tão somente a receita relacionada ao serviço de
intermediação realizado, enquanto os demais valores (repassados
ao vendedor) apenas transitam por contas de ativo e passivo, na
medida em que correspondem a meros ingressos.

A comissão ou o preço do serviço prestado, em geral, é


cobrado dos vendedores dos produtos oferecidos na plataforma
digital, mas essa não é uma regra. Nesse aspecto, o importante

LEGAL TALKS:
220 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
é que o site ofereça de forma clara as informações acerca da
operação efetivamente realizada.

A título exemplificativo, o Decreto Federal n.º  7.962/13


determina que os sítios utilizados para oferta ou conclusão de
contrato de consumo devem disponibilizar, em local de destaque e
de fácil visualização, dentre outras informações o nome empresarial
e número de inscrição no CNPJ (quando houver) do fornecedor da
mercadoria.

Daí a relevância dos termos de uso e das demais informações


constantes do sítio, que devem ser claras o suficiente para
comprovar que o serviço prestado é de intermediação de negócios,
não de revenda de produtos.

Os preços cobrados pela operação de intermediação de


negócios sujeitam-se à incidência do ISS – Imposto Sobre Serviços,
de competência municipal, enquadrando-se como “serviços
de intermediação e congêneres”. O município competente para
a exigência do ISS incidente sobre o serviço de intermediação
de bens é aquele onde se localiza estabelecimento prestador,
conforme regra geral contida no art. 3º da LC 116/03.

Tendo em vista a dinâmica intrinsecamente relacionada às


operações realizadas no meio virtual, a legislação e a jurisprudência
pátrias ainda não trouxeram aos contribuintes definições seguras
acerca da incidência dos tributos, em especial devido à dificuldade
de enquadramento das novas atividades aos conceitos previstos
em lei.

Alguns Estados iniciaram o processo legislativo em busca


de maior segurança jurídica aos envolvidos na operação de
markerplace. É o caso do Estado de São Paulo, cuja Lei Estadual

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 221
n.º 13.918/09 determinou que são responsáveis solidários pelo
pagamento do ICMS incidente sobre a venda os prestadores
de serviço de intermediação comercial em ambiente virtual e
prestadores de serviços relacionados ao comércio eletrônico. Isso
significa que, na ausência do pagamento do ICMS pelo vendedor do
produto, o tributo pode vir a ser exigido do operador da plataforma
digital.

Todavia, são ainda poucos Estados que trazem normas


específicas sobre essa regulamentação do comércio virtual,
embora seja possível constatar que, por exemplo, a Secretaria
da Fazenda do Estado de Minas Gerais69 exige que o contrato de
intermediação de vendas seja explícito. Além disso, uma eventual
fiscalização pode vir a exigir a comprovação dessa operação
por meio de outras provas, tais como informações explícitas no
anúncio do sítio de vendas, provas do pagamento das comissões
pela intermediação ou comprovantes de recolhimento do ISS pelo
serviço prestado.

Ainda em relação aos riscos envolvidos na operação, o


reconhecimento da receita de terceiros (vendedores efetivos) que
transita pelas contas de titularidade do operador da plataforma de
marketplace consiste em aspecto sensível no que diz respeito aos
reflexos tributários, vez que elas devem ser excluídas das bases de
cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins, ambos de competência
da União, incidentes sobre a receita.

Cita-se o exemplo de um julgado do Conselho Administrativo


de Recursos Fiscais – CARF, em que se tornou explícita a

69 MINAS GERAIS. Conselho de Contribuintes do Estado de Minas Gerais.


Acórdão n. 21.222/13/3ª 6 Publicado no Diário Oficial em 30/11/2013. Dis-
ponível em: < http://www.fazenda.mg.gov.br/secretaria/conselho_contri-
buintes/acordaos/2013/3/21222133.pdf>. Acesso realizado em 13/07/2020.

LEGAL TALKS:
222 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
importância da comprovação da natureza dos ingressos financeiros
de terceiros nas contas do contribuinte, sendo imprescindível que
haja documentos probatórios que justifiquem o trânsito dos valores.
No julgamento em questão, os conselheiros da última instância
administrativa de recursos federais concluíram que “devem ser
considerados como receita, para fins do PIS e da COFINS, os bens e
direitos que impliquem efetivo aumento patrimonial, vale dizer, que
realmente influenciem o resultado do período, tendo sido recebidos
com a finalidade de se agregarem ao patrimônio existente.”70

O mesmo CARF já se pronunciou, em outra oportunidade, no


sentido de que a “intermediação de vendas e serviços pela agência
de turismo configura operação em conta alheia, de modo que os
valores recebidos a esse título não configuram receita, mas somente
ingresso contábil de recursos”71.

Ainda assim, o posicionamento do Fisco em relação,


especificamente, ao comércio eletrônico ainda não é consolidado,
dado o pequeno número de julgados sobre o tema, motivo pelo
qual há risco de entendimentos divergentes que venham a resultar
em autuações, não obstante a vasta fundamentação contábil e
jurídica acerca da matéria.

As interpretações divergentes das autoridades fazendárias


quanto ao enquadramento das atividades podem culminar em
autuações de diversas naturezas, dentre as quais destacam-

70 BRASIL. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF. Processo:


10805.723698/2014-37. Sessão de julgamento de 21/01/2020. Disponível em:
<http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurispruden-
cia/listaJurisprudenciaCarf.jsf>. Acesso em 11/07/2020.
71 BRASIL. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF. Processo
15374.000572/00-37, Data da Sessão: 16/06/2016. Disponível em: <http://
carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/lista-
JurisprudenciaCarf.jsf>. Acesso em 11/07/2020.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 223
se aquelas decorrentes do eventual entendimento de que
o marketplace configura uma operação de e-commerce de
mercadorias. Nesse caso, o risco encontra-se, principalmente nas
autuações: (i) pela Receita Federal, pela omissão de receitas, com
a inclusão do valor integral cobrado do cliente na base de cálculo
dos tributos sobre a receita acrescidos de multa e juros, e (ii) pelo
Fisco Estadual, com a exigência do ICMS sobre o valor total da
operação, também acrescido de multa e juros.

Verifica-se, pois, que, a despeito da ausência de normas claras


acerca das operações virtuais, o trabalho de compliance tributário
é de extrema importância desde a configuração inicial do negócio.
De posse de um consistente estudo sobre as características das
atividades a serem exercidas, o gestor tem mais fundamentos
para elaborar um plano de negócios conciso, ainda que venha
a apresentar os riscos que envolvem determinado modelo a ser
adotado.

Conhecendo a fundo os riscos que envolvem o negócio, o


empresário tem ferramentas para se respaldar e evitar futuros
questionamentos sobre a legitimidade dos institutos declarados e
submetidos a tributação.

3.2 – Comercialização e desenvolvimento de “software”

Outra questão controversa que envolve o setor de tecnologia


é a tributação sobre a venda de softwares, antiga conhecida dos
tributaristas e que ganha novos contornos diariamente. Muitas
vezes essa consiste em atividade exercida pelas startups, já que
o desenvolvimento e a cessão do uso de software é objeto de

LEGAL TALKS:
224 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
grande parte delas, por se enquadrar no conceito já mencionado
de inovação disruptiva.

Há tempos discute-se o conflito de competências tributárias


entre os Estados e Municípios diante da ausência de definição
sobre a incidência do ISS – Imposto sobre Serviços (imposto
municipal) ou do ICMS - Imposto sobre Operações relativas à
Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de
Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação
(imposto estadual).

O cerne da controvérsia gira em torno do conceito de software


na legislação brasileira, sendo que os Estados defendem ser ele
uma mercadoria, ainda que não necessite de suporte físico para ser
vendido, assim como restou definido no caso da energia elétrica.
Segundo os Estados, a incidência do ICMS sobre as operações de
software seria clara.

Noutro lado, os municípios entendem que a operação


realizada com o software não consiste em venda de mercadoria,
mas sim na cessão dos direitos de uso, consistente em prestação
de serviços tributável pelo ISS.

Há na doutrina e na jurisprudência argumentos que justificam


ambos os posicionamentos e até mesmo aqueles que concluem
pela não incidência de nenhum deles, da mesma forma como se
deu no caso das locações de bens móveis.

A Lei nº 9.609/98, que trata da proteção da propriedade


intelectual de programa de computador, define como software (ou
programa de computador) “a expressão de um conjunto organizado
de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em
suporte físico de qualquer natureza (...)”. Embora esse conceito

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 225
seja útil para fins de regulamentação dos direitos autorais sobre
o desenvolvimento dos programas, pouco auxilia na controvérsia
tributária.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal - STF, no passado,


referendou-se uma distinção conceitual entre o que se chamou
de “software de prateleira” e “software customizado”. Segundo a
decisão, o ISS incidiria sobre o licenciamento de direito de uso
de programas de computador, consistente em bem incorpóreo.
Em contrapartida, os Estados poderiam exigir o ICMS sobre “a
circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador
produzidos em série e comercializados no varejo - como a do chamado
“software de prateleira” (off the shelf) - os quais, materializando o
corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem
mercadorias postas no comércio.”72

Todavia, esse mesmo entendimento tomou novos contornos


diante do dinâmico avanço das tecnologias e alterações da
legislação no cenário da revolução 4.0, ou da quarta revolução
industrial, cuja característica marcante é a utilização conjunta de
tecnologias que realizam a fusão entre os mundos físico, digital e
biológico. Impossível, diante dessa nova e incontestável realidade,
distinguir a incidência tributária por meio da caracterização do
software por sua estrutura física para colocação à disposição do
varejo.

No intuito de regulamentar a tributação incidente sobre a


operação, o legislador aprovou a Lei Complementar nº 157/2016,

72 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 176626 / SP - SÃO PAULO. Rela-


tor Min. Sepúlveda Pertence. DJ 11-12-1998 PP-00010. EMENT VOL-01935-02
PP-00305. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/
sjur108939/false>. Acesso em 11/07/2020

LEGAL TALKS:
226 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
com a inclusão de novos itens de serviços sujeitos à incidência
do ISS, previstos na lista anexa à Lei Complementar n. 116/03.
Além da previsão do “licenciamento ou cessão de direito de uso
de programas de computação”, já existente na lista, a nova norma
incluiu a “elaboração de programas de computadores, inclusive de
jogos eletrônicos, independentemente da arquitetura construtiva
da máquina em que o programa será executado, incluindo tablets,
smartphones e congêneres”. Buscou-se, assim, eliminar a incidência
do ICMS sobre essas operações.

Em contrapartida, dois Convênios ICMS 181/2015 e


106/2017 servem de fundamento diametralmente oposto para
que os Estados exijam o ICMS sobre as operações de venda de
software. Essas normas buscaram viabilizar a incidência do tributo
estadual sobre as operações com softwares padronizados “ainda
que sejam ou possam ser adaptados, disponibilizados por qualquer
meio, inclusive nas operações efetuadas por meio da transferência
eletrônica de dados”, ou seja, por meio de downloads.

Embora a controvérsia já tenha sido objeto de análise pelo


STF, está pendente de julgamento nessa Corte a Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 5958, em que se discute a adequação à
Constituição da República do Convênio ICMS 106/2017.

Em parecer sobre o tema, a Procuradoria Geral da República


manifestou-se no sentido de que as manifestações do STF nos
julgados anteriores já teriam norteado a solução para a lide, já que
o serviço de desenvolvimento de produtos digitais por encomenda
demandaria a incidência do ISS, enquanto a venda no comércio do
bem ou mercadoria digital (softwares, jogos eletrônicos, aplicativos,
arquivos eletrônicos e congêneres) ensejaria a incidência do ICMS,
independentemente de ser entregue em meio físico ou digital.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 227
Diante de tamanha insegurança jurídica, os contribuintes
têm acionado o Poder Judiciário para se resguardar de eventuais
autuações, seja pelos Estados, seja pelos Municípios, já que não há
definição quanto ao tributo de fato incidente sobre as vendas de
software.

Em qual momento, afinal, o compliance tributário se torna


importante diante desse contexto? Tanto antes da entrada em
operação da sociedade, quanto durante suas atividades, o
trabalho de compliance será de serventia para o fim de conhecer
as peculiaridades do produto ofertado ao mercado e, assim,
identificar a tributação que melhor se adeque à realidade daquela
empresa especificamente. O trabalho mostra-se importante
para a definição da carga tributária que irá onerar a operação e
também para apontar e mitigar eventuais riscos relacionados
com a atividade, os quais deverão ser calculados pelos gestores.

3.3 - Classificação das atividades de prestação de serviços

Especificamente na seara das empresas que atuam na


prestação de serviços, a classificação correta da atividade pode
se mostrar um verdadeiro conflito, o qual resulta em risco de
passivo tributário para a empresa, mas também para o seu cliente,
tomador de serviços. Este é mais um motivo pelo qual o compliance
tributário se apresenta como essencial para qualquer tamanho de
empresa, já que os tomadores de serviços passam a utilizar-se
cada vez mais da comparação entre os seus possíveis prestadores
de serviços considerando o grau de confiabilidade dos processos
internos de cada um deles. A implementação do compliance, além
dos benefícios financeiros, passa a representar um diferencial
comercial para a empresa.

LEGAL TALKS:
228 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Muito comum é a opção por determinado código de
atividades, considerando a tributação menos onerosa dispensada
para as empresas daquele setor. Contudo, a prática não é
recomendável e pode resultar em autuações fiscais para a empresa,
e pior, para seus clientes, de forma subsidiária ou solidária, como
se verá adiante.

Grande exemplo dessa situação é a opção por determinado


CNAE tendo em vista a possibilidade de enquadramento da
empresa como Microempreendedores Individuais – MEI´s sem,
contudo, plena adequação da atividade exercida com o código
escolhido.

A Lei Complementar nº 128/2008 alterou a Lei Geral da


Micro e Pequena Empresa (Lei Complementar nº 123/2006) e
criou a figura do Microempreendedor Individual, que fatura até R$
81.000,00 (oitenta e um mil reais) por ano. Por meio do Sistema de
Recolhimento em Valores Fixos Mensais dos Tributos abrangidos
pelo Simples Nacional (Simei), o MEI pagará, por meio do DAS,
independentemente da receita bruta por ele auferida no mês, um
valor fixo mensal correspondente à soma dos tributos abrangidos
pelo Simples Nacional.

Assim sendo, o MEI deixa de recolher e apurar, individualmente,


o Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), o Imposto sobre
Produtos Industrializados (IPI), a Contribuição Social sobre o Lucro
Líquido (CSLL), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade
Social (Cofins), a Contribuição para o PIS/Pasep, a Contribuição
Patronal Previdenciária (CPP) para a Seguridade Social, o Imposto
sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre
Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 229
e de Comunicação (ICMS) e o Imposto sobre Serviços de Qualquer
Natureza (ISS).

Por conseguinte, no ano de 2020, a tributação total do MEI


por mês será de até R$ 58,25 (cinquenta e oito reais e vinte e cinco
centavos), a depender do setor de atuação e independentemente
do seu faturamento mensal, desde que respeitado o limite anual já
mencionado73.

O enquadramento do empresário como MEI, contudo, deve


respeitar a Lei Complementar nº 123 no que tange à restrição das
atividades autorizadas a optar pela sistemática de recolhimento em
questão. Atualmente, somente as atividades econômicas previstas
no Anexo XI, da Resolução CGSN nº 140, de 22 de maio de 2018, são
permitidas ao MEI.

No intuito de ajustar a classificação à lista de atividades


permitidas ao MEI – e, com isso, reduzir a carga tributária das
operações – o empresário muitas vezes opta pelo código que não
é o mais adequado ao objeto dos seus contratos de prestação
de serviços celebrados. Por exemplo, uma empresa que exerce a
atividade de desenvolvimento de software não pode se valer do
código de “instrutor individual de informática” somente porque
deseja se beneficiar da tributação reduzida dos MEI´s.

É de suma importância ressaltar que muitas vezes essa


adequabilidade não é óbvia, sendo necessária uma análise mais
aprofundada da atividade e da sua relação com os códigos de
atividades econômicas disponibilizadas pela Comissão Nacional de
Classificação (CONCLA) do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística.
73 Lei Complementar nº 123, de 2006, art. 18-A, § 3º, inciso V.

LEGAL TALKS:
230 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
O equívoco na definição dessa classificação e no consequente
recolhimento a menor de tributos por empresa prestadora de
serviços pode ensejar autuações fiscais federais e municipais,
tendo em vista o fato de que tributação simplificada por meio do
Simples Nacional abarca os tributos de competência de ambos.

Nesse caso, a autoridade fiscal, com base na previsão do art.


149 do Código Tributário Nacional, poderá efetuar o lançamento
do tributo de ofício se, ao fim do procedimento de fiscalização,
entender ter havido comprovação de falsidade ou erro na
classificação ou ainda no caso de se convencer da ocorrência
de dolo, fraude ou simulação na classificação da atividade e na
celebração dos contratos. Destaque-se que, em se tratando de
autuação federal, a multa aplicada nos casos em questão é de 75%
(setenta e cinco por cento) do valor do tributo, sendo que ela pode
vir a ser duplicada caso se constate a ocorrência de sonegação
(que pressupõe a intenção de recolhimento a menor) dos tributos.

Há de se atentar, ainda, para os possíveis reflexos da


classificação errônea da atividade em relação aos tomadores
dos serviços, os clientes das empresas. A Lei Complementar
nº116/03 permitiu aos municípios que, mediante lei, atribuíssem
a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa,
vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a
responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter
supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação,
inclusive no que se refere à multa e aos acréscimos legais.

Diante de tal prerrogativa, os legisladores municipais


criaram normas que instituíram para os tomadores dos serviços a
responsabilidade por reter e recolher o ISS devido pelo prestador
contratado, além de exigir a correta emissão da nota fiscal. Isso

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 231
significa que, a depender da legislação específica do município
onde o serviço é prestado ou onde o ISS é devido, pode ser o cliente
responsabilizado pela equivocada classificação da atividade da
empresa prestadora de serviços.

Vê-se, pois, que os reflexos decorrentes de uma opção


aparentemente simples, de opção pelo CNAE adequado, são
tanto o aumento do risco de autuação tributária, inclusive com
incidência de multa, quanto a responsabilização do cliente, gerando
sérios impactos comerciais negativos. Uma forma de reduzir
significativamente esses riscos é a implementação do compliance
tributário, que terá por fim estudar, com base na interpretação das
normas e na realidade da empresa, o CNAE mais adequado.

Mais uma vez é possível verificar que o compliance tributário


é um mecanismo eficiente na redução dos riscos e também
na transparência e regularidade que vêm sendo exigidas pelas
grandes empresas contratantes.

4 – Conclusão: Por que compliance tributário nas startups?

A tendência mundial de aumento das operações de


tecnologia foi intensificada desde o início da pandemia do vírus
Covid-19 em março de 2020, quando as empresas se viram diante
de uma nova realidade que dificilmente será revertida no futuro.
As vendas pela internet e a necessidade de desenvolvimento de
novos programas de computador que facilitem a vida à distância
das pessoas são imposições de um modelo de vida globalizado e
virtual.

LEGAL TALKS:
232 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Diante dessa realidade, as boas ideias e as inovações
tecnológicas não podem se perder devido à má gestão ou
à ausência de conhecimento dos empresários. Justamente
nesse ponto é que se faz importante a elaboração de um plano
de negócios consistente e, em conjunto, a implementação do
compliance, inclusive do tributário.

Uma empresa desenvolvedora de softwares pode apresentar


um produto de alta qualidade, mas se sua composição de preços
levar em consideração a tributação pelo ISS (de alíquota máxima
de 5%), enquanto a incidência correta for o ICMS (que pode ter
alíquotas muito superiores), o projeto promissor pode se perder
nos prejuízos gerados. Em contrapartida, caso ocorra o contrário
e o a composição de preços considerar o ICMS no lugar do ISS, o
negócio pode se mostrar inviável na análise financeira preliminar.

No campo do comércio eletrônico, o início de uma operação


sem o prévio estudo que permita identificar a classificação correta
da atividade entre e-commerce e marketplace é capaz de gerar um
enorme passivo tributário, afastando investidores e até mesmo
levando a empresa precocemente à falência.

O último exemplo de atividade analisado nesse estudo,


a correta classificação da atividade de prestação de serviços,
não deixa de exigir os mesmos cuidados. Isso porque, além dos
prejuízos causados por uma autuação pela autoridade fiscal
tributária, o impacto comercial da eventual responsabilização do
cliente tomador dos serviços merece especial atenção.

Não é à toa que o alto número de autuações fiscais e


processos judiciais tributários impressiona. A legislação tributária
brasileira é extremamente complexa e vasta, demandando do
operador grande conhecimento e atenção na sua aplicação.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 233
Ademais, as interpretações apresentadas pelos julgadores nos
processos administrativos e judiciais são as mais diversas e
contraditórias possíveis. Eis que o contribuinte se vê rodeado
de insegurança jurídica e incerteza quanto ao planejamento de
seu negócio, fato que resulta, no âmbito da macroeconomia, em
considerável gargalo no desenvolvimento econômico do país.

A segurança jurídica, vista como causa e produto dos


demais princípios do Direito Tributário, em especial da proteção
da confiança, é essencial para o estímulo ao compliance. Isso é
afirmado com base no dever de manutenção da atuação estatal,
inclusive quando se trata de concessão de benefícios e da
respectiva expectativa de legitimidade da sua manutenção pelo
Estado. Por outro lado, a segurança jurídica ainda é imprescindível
no que tange à previsibilidade das medidas coatoras normativas,
sendo que os contribuintes têm o direito de não sofrer com a
surpresa em relação às obrigações a que estão sujeitos.

Esse princípio é de suma importância ao se tratar de


compliance tributário, já que a observância do contribuinte às
normas (e consequente exigência de padrões éticos e jurídicos)
depende do grau de confiança que ele tem em relação à forma de
aplicação dessas normas pelo Estado, seja pela fiscalização, seja
pelas decisões das autoridades.

Diante do cenário de incertezas do Brasil, a ferramenta


do compliance tributário representa um meio de que deve se
valer o contribuinte para buscar maior segurança para seu
empreendimento por meio da identificação dos fundamentos para
a estruturação da atividade empresarial baseados na construção
interpretativa das normas e na sua adequação aos fatos ocorridos

LEGAL TALKS:
234 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
no mundo fenomênico. O resultado da neutralização desses riscos
é a saúde financeira e maior segurança de atuação das empresas.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 235
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L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 239
Capítulo 9

RELAÇÕES E ACORDOS ENTRE


OS SÓCIOS
Raphael Boechat Alves Machado
Cássia Campos Almeida

I - Introdução – Situação Atual do País

O Brasil sempre foi apontado como um ambiente hostil para


empreender. Diversos fatores históricos contribuíram para fomentar
esta fama e gerar ansiedade entre aqueles que pretendem investir
em empreendimentos.

Na década de 1990, foram tomadas diversas medidas


de tentativa de desburocratização e foram estimuladas as
privatizações, visando permitir maior competitividade e estabilidade
econômica74.

Entretanto, apesar da inflação ter sido superada através do


Plano Real em 199475, não houve uma solução definitiva para a
crise fiscal, o que demandaria mudanças estruturais complexas,
que sempre encontraram severa resistência.

Para além do panorama histórico, o país atualmente enfrenta


a pandemia do coronavírus, que assolou o mundo no ano de 2020,
em situação de total despreparo, considerando as suas fragilidades.
74 https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-44782000000100008&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
75 https://veja.abril.com.br/economia/plano-real-que-domou-inflacao-
-estabilizou-economia-completa-25-anos/

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240 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Assim, antigos e novos questionamentos acerca da melhor forma
de conduzir o chamado “custo Brasil” foram trazidos à tona.

O termo “custo Brasil” ganhou popularidade para resumir as


dificuldades características do País, que implicam em entraves
estruturais, burocráticas e econômicas que não foram superados.

O problema em questão foi causado pelo Coronavírus e teve


sua extensão reconhecida pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) com a declaração de pandemia ocorrida em 11 de março de
2020, causando forte impacto em praticamente toda a produção no
planeta, com medidas de distanciamento social que ocasionaram
importante diminuição das atividades comerciais.

Consequentemente, com o aumento do dólar e a redução das


vendas e da produção, o país provavelmente encontrará no futuro
próximo um cenário mais árduo para retomar o crescimento76. Ainda
assim, há sinalização governamental no sentido da manutenção
do equilíbrio fiscal, com restrição de despesas públicas a partir
de 2021, como pode ser observado no projeto da Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO) referente ao próximo ano.77

Diversas medidas de austeridade e de equilíbrio fiscal


vêm sendo - e ainda serão - adotadas, com o fito de incentivar
os empreendedores a lançar inovações e estimular novos
investimentos para alavancar a economia, mostrando, assim,
que, mesmo em momentos de dificuldade, estão camufladas
oportunidades de superar a concorrência, conquistar o consumidor
e consolidar o empreendimento.
76 https://exame.com/economia/6-numeros-mostram-o-dramatico-
-impacto-do-coronavirus-na-economia/
77 https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/04/19/apos-liberar-
-gastos-em-razao-do-coronavirus-governo-voltara-a-restringir-despe-
sas-em-2021.ghtml
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STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 241
II - A Pessoa Jurídica e o Risco

Por desconhecimento ou ceticismo com relação à


necessidade de criar-se uma estrutura jurídica e um estudo sério
acerca das condições para implementação do negócio, muitos
empresários se aventuram e colocam em risco seu patrimônio
pessoal.

A criação de uma startup não precisa ser complexa, mas deve


atender a critérios de controle de risco. A flexibilidade e inovação
destas são as características mais adequadas para a dinâmica
atual da sociedade, que, em meio a uma pandemia repentina, foi
obrigada a reinventar78 a forma de consumir e de se organizar.

As empresas que já encontraram um nicho79 para agradar


o consumidor em confinamento, ou, ainda, que passaram a se
dedicar ao próprio combate ao vírus80, tiveram alavancados seus
resultados em grau superior ao mercado tradicional, abalado com
a mudança81.

Ainda assim, há muito espaço para empreender,


paralelamente às dificuldades, e se consolidar no mercado pós-
pandemia.

78 https://www.ccfb.com.br/noticias/impacto-do-coronavirus-nas-star-
tups/
79 https://exame.com/blog/ideias-renovaveis/por-que-uma-startup-esta-
-contratando-800-pessoas-no-meio-da-pandemia/
80 https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-05/pande-
mia-leva-startups-desenvolverem-produtos-contra-covid-19
81 https://www.nsctotal.com.br/noticias/inovadoras-e-ageis-startups-cres-
cem-exponencialmente-na-pandemia

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242 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Para tanto, é necessário planejamento para se esquivar dos
obstáculos que integram o citado custo Brasil, tanto no que toca à
escolha da atividade quanto à forma de exercê-la.

A legislação pátria oferece modelos pré-concebidos que


antecipam os termos em que se criam as atividades e se restringem
as chances de perda patrimonial. As opções devem ser estudadas
com atenção pelo empreendedor empresário, através da visão
jurídica de como esse formato poderá impactar no futuro.

Através de um acompanhamento jurídico completo e


competente, é possível afastar as probabilidades de sofrer um
prejuízo que possa ser resultado de más decisões dos gestores ou,
ainda, de conflitos entre os sócios.

Tais cuidados, aliados às características das startups - como


inovação -, ainda que sofram com recursos limitados e estruturas
simples de trabalho, permitem garantir o sucesso da empresa.
Encontrado o seu objeto e conciliados todos os seus aspectos,
será possível iniciar a estruturação do negócio.

Para iniciar com cautela, é recomendado que os sócios


estabeleçam as atividades que serão exercidas por cada um, sua
participação financeira e os objetivos da própria empresa, ainda
em fase embrionária.

Alguns pontos importantes devem ser discutidos para


permitir um consenso, como a possibilidade de alteração no quadro
de gestores, a inclusão de novo sócio, a venda de participações,
entre muitos outros.

As diretrizes estabelecidas entre os sócios formam


inicialmente um acordo verbal, que deverá ter seus termos

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 243
subscritos no memorandum of understanding ou m.o.u., para dar
início à formalização dos procedimentos.

Apesar de sua elaboração e seu cumprimento não serem


obrigatórios, a consolidação do consenso em documento escrito
previne futuros conflitos e, inclusive, pode exigir que as partes
guardem sigilo, resguardando assim o objeto da startup ou
qualquer inovação concebida.

Alcançada a convergência de interesses entre os sócios,


o próximo passo será a elaboração de um plano de negócios,
peça–chave no planejamento estratégico e financeiro da empresa,
considerado um alicerce para esmiuçar as estruturas e recursos
necessários para alavancar a atividade.

Por sua importância, este serviço é oferecido pelo SEBRAE82


para micro e pequenas empresas, bem como por diversas
empresas de consultoria que oferecem serviços mais completos,
como pesquisa de mercado para a simulação da aceitação da
atividade explorada.

Com a concepção integral do projeto e sua formalização no


business plan ou plano de negócios, os sócios podem conferir qual
o tamanho do projeto, do aporte e movimentação financeira que
será realizada. Com estes e outros dados é possível escolher o tipo
de sociedade empresária.

Para a constituição da empresa é necessário que os sócios


“emprestem” dinheiro, formando, então, o capital social para início
das atividades da pessoa jurídica. De início, serão estabelecidas
quotas com valores arbitrados em moeda nacional e cada sócio

82 https://m.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/como-elaborar-
-um-plano-de-negocio,37d2438af1c92410VgnVCM100000b272010aRCRD

LEGAL TALKS:
244 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
irá decidir por quantas será responsável, conforme delimitado no
contrato social ou estatuto da empresa.

Necessário ressaltar que esta proporção corresponde aos


lucros e prejuízos que poderão ser suportados por cada um dos
sócios e o montante total responderá pelo capital da empresa,
que passará a ter autonomia e responder pelos seus débitos,
desonerando, a partir de então, os sócios.

De acordo com o tipo societário adequado à atividade,


deverão ser implementadas medidas de proteção ao patrimônio
dos sócios, pois as características de captação do capital social
demandam diferentes cuidados.

Na sociedade limitada, por exemplo, o valor integral do


capital social não precisa ser disponibilizado imediatamente,
porém, as parcelas não integralizadas (ou seja, não pagas naquela
oportunidade) poderão ser cobradas de qualquer um dos sócios em
momento posterior, o que representa uma fragilidade ao patrimônio
pessoal do sócio que integralizou sua quota oportunamente83.

Essas regras são próprias de sociedades em que o controle


e o aporte financeiro são compartilhados entre sócios, mas não é o
único modelo viável.

A legislação disponibiliza alguns tipos de pessoa jurídica que


podem ser escolhidas pelo empreendedor, possuindo, cada um
deles, vantagens e desvantagens. Alguns foram criados visando
alcançar a pessoa física que possui atividade empresarial informal
e pode aderir ao tipo societário mais vantajoso, quais sejam:

83 Art. 1.052 do Código Civil: “Na sociedade limitada, a responsabilidade de


cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solida-
riamente pela integralização do capital social.”    
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 245
Microempreendedor Individual (MEI), Sociedade Individual – EIRELI
e Empresário Individual (EI).

Ressalte-se que à empresa individual de responsabilidade


limitada (EIRELI) se aplicam as regras da Ltda, que limitam a
responsabilidade dos sócios. Ademais, elas são regidas pela Lei
de Recuperação Judicial e Falência e seus livros empresariais
têm prerrogativa de prova em processo judicial, o que demonstra
uma similitude entre os formatos, mas que se diferenciam na
composição do capital social84.

Apesar de oferecerem vantagens para sua constituição


e extinção, as sociedades individuais, em regra, permitem a
responsabilização direta dos sócios, impedem a escolha de
qualquer atividade e limitam o aporte e fluxo financeiro para
expansão do negócio, o que limita seu alcance.

A Sociedade Limitada (Ltda) e a Sociedade Anônima (S.A.)


são os tipos societários mais tradicionais e oferecem liberdade
de empreender, com garantia ao patrimônio dos sócios e
regulamentação capaz de evitar futuros conflitos. Em verdade,
são as melhores opções para alcançar o principal fim da pessoa
jurídica, que é a limitação do alcance patrimonial dos sócios.

III - Responsabilidades dos sócios na PJ

Eduardo Goulart Pimenta85 afirma que “A pessoa jurídica


no direito empresarial é hoje, antes de mais nada, um elemento de
limitação do risco econômico inerente à empresa.”.

84 Teixeira, Tarcisio. Direito empresarial sistematizado: doutrina, jurisprudên-


cia e prática / Tarcisio Teixeira. – 5. ed. – São Paulo : Saraiva
85 PIMENTA, Eduardo Goulart. Direito societário. Porto Alegre, RS: Editora Fi,
2017.

LEGAL TALKS:
246 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Os tipos societários previstos que limitam a responsabilidade
dos sócios, são a Sociedade Limitada e a Sociedade Anônima, que
têm diferentes propostas, vez que, na primeira, há um número
limitado de sócios com atuação direta, enquanto que na segunda
há emissão de ações da empresa, que poderão ser negociadas
arbitrariamente, com escassas possibilidades de restrição pelos
demais acionistas.

Além da liberdade de transacionar as ações, os acionistas


possuem sua responsabilidade e poder proporcionais à
porcentagem de ações que detêm. Tal complexidade é demandada
por empresas que visam entrar no mercado de investimentos e,
por isso, escolhem o modelo da sociedade anônima.

Entretanto, a da limitação da responsabilidade possui


exceções previstas em lei, como ocorre, por exemplo, na
desconsideração da personalidade jurídica, que é autorizada
judicialmente em casos de abuso dessa autonomia de forma
fraudulenta ou confusão patrimonial entre a empresa e os sócios.

Nesse contexto, a condução da empresa de forma ética é


imprescindível para evitar futuras responsabilizações dos sócios,
sendo imprescindível zelar pela relação entre eles.

A importância é tamanha que a legislação destinou um


dispositivo apenas para descrever que o administrador deverá ter
“o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo” deve ter ao
conduzir a atividade empresarial.86

A escolha dos sócios, principalmente do administrador, e a


condução ética da empresa podem implicar em consequências
86 Código Civil: “Art. 1011. O administrador da sociedade deverá ter, no exer-
cício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e pro-
bo costuma empregar na administração de seus próprios negócios.”
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STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 247
para os demais. Primeiro, pela possibilidade de o sócio ser
responsabilizado e, segundo quando, mesmo havendo a perda
da confiança no sócio (chamada affectio societatis), é necessário o
consenso da maioria para conseguir sua expulsão.

A propósito, o Superior Tribunal de Justiça adotou


entendimento de que é preciso a comprovação de justa causa
para expulsão do sócio, não sendo bastante a perda da affectio
societatis, como consignado no Informativo nº 35787.

Isto porque o art. 981 do Código Civil não exige a confiança


entre os sócios como elemento ensejador da dissolução da
sociedade, vez que apenas a manifestação de suas vontades em
exercer a atividade econômica conjuntamente seria o elemento
motivador daquela sociedade.88

Excepcionalmente, no entanto, em nome dos interesses


da sociedade, a Corte já considerou que a perda dessa confiança
justificaria, por si só, o rompimento em alguns casos89.
87 “(...) A jurisprudência deste Superior Tribunal é que, para a exclusão judi-
cial do sócio, não basta a alegação de quebra da affectio societatis, mas a
demonstração de justa causa, ou seja, dos motivos que ocasionaram essa
quebra. (...)”
88 Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente
se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade
econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
89 COMERCIAL. SOCIEDADE ANÔNIMA FAMILIAR. DISSOLUÇÃO PARCIAL.
INEXISTÊNCIA DE AFFECTIO SOCIETATIS. POSSIBILIDADE. MATÉRIA PACIFI-
CADA.
I. A 2ª Seção, quando do julgamento do EREsp n. 111.294/PR (Rel. Min. Castro
Filho, por maioria, DJU de 10.09.2007), adotou o entendimento de que é pos-
sível a dissolução de sociedade anônima familiar quando houver quebra da
affectio societatis.
II. Embargos conhecidos e providos, para julgar procedente a ação de disso-
lução parcial.
(EREsp 419.174/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, SEGUNDA SE-

LEGAL TALKS:
248 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Após a opção por um tipo societário com limitação da
responsabilização, dá-se início à constituição da empresa com a
elaboração do contrato social, que formaliza direitos e obrigações
dos sócios, visando prevenir futuros desgastantes entre estes90.

Por isto, para melhor aproveitar o escopo principal da empresa,


os sócios devem estar atentos para adotar os mecanismos previstos
na legislação pátria que gerem a proteção do seu patrimônio na
constituição do negócio, considerado o momento mais propício.

IV - Formas de criar garantias para os sócios

Feitas tais considerações, fica clara a necessidade da


previsão de instrumentos, sobretudo no momento de constituição
da empresa, que possam garantir a segurança jurídica e patrimonial
do sócio constituinte.

É indicado, de início, elaborar um acordo entre os sócios,


sejam quotistas ou acionistas, conforme o tipo de acordo com o tipo
societário, para regular outras obrigações, o qual que servirá como
ato complementar ao estatuto social. Cada um desses acordos
possui particularidades que permitem que sejam oponíveis contra
terceiros.

Dessa forma, podem e devem ser regulamentadas as


relações e previstas as situações futuras que poderiam prejudicar
a autonomia da empresa e gerar embaraços aos interesses dos
sócios.
ÇÃO, julgado em 28/05/2008, DJe 04/08/2008)
90 Art. 1.004 do Código Civil. Os sócios são obrigados, na forma e prazo
previstos, às contribuições estabelecidas no contrato social, e aquele que
deixar de fazê-lo, nos trinta dias seguintes ao da notificação pela sociedade,
responderá perante esta pelo dano emergente da mora.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 249
Alguns direitos e obrigações são previstos em lei, como a
impossibilidade de substituição do sócio sem o consentimento dos
outros (art. 1.002 do Código Civil) ou a impossibilidade de cessão
das quotas sem o consentimento dos demais sócios (previsão no
art. 1.003, caput do Código Civil). Porém, algumas dessas obrigações
podem ser extintas ou flexibilizadas nos termos estipulados entre
os sócios e formalizados nos livros da sociedade.

Tais limitações ou prerrogativas buscam resguardar o


interesse público, a lisura do negócio e manter a saúde do mercado,
mas podem ser revisadas, considerando a natureza contratual do
vínculo.

Quanto aos sócios, essas medidas se mostram primordiais,


por serem a principal forma de evitar perda patrimonial e do
controle societário. Por isso, muitas empresas de capital aberto
procuram se resguardar ao vender suas ações no mercado.

Para tanto, as empresas devem fazer uso de dispositivos que


resguardem seus interesses. Um estudo indica que a Submarino,
Lojas Renner, Embraer, Perdigão, DASA, Natura e Ideiasnet91 fazem
uso de poison pills92.

As chamadas poison pills são cláusulas antiaquisição para


que terceiros sejam impedidos de tomar o controle da empresa
(take over) através da aquisição de ações dispersas no mercado.

Tais cláusulas possuem diversas espécies, como as pills


flip-in e flip-over, comuns entre as sociedades anônimas norte-

91 https://www.scielo.br/scielo.php?pi=S1519=70772009000200002-&script-
sci_arttext#dnota01
92 Em português, “pílulas venenosas” seriam previsões contratuais que vi-
sam resguardar direitos.

LEGAL TALKS:
250 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
americanas e até mesmo as back-end, que não gozam da mesma
popularidade.93

Diversas outras medidas para preservar o controle da


empresa foram criadas, como o Shark-repellent, Pac man, Scorched-
earth policy, White knight e outras, referidas por Jorge Eliseu Martins
Vieira e Luis Paulo Lopes Fávero.94

Além do seu adimplemento na constituição das empresas,


a dinâmica de funcionamento dessas medidas precisa ser bem
compreendida pelos sócios gestores e empreendedores que
pretendam participar de sociedades, com o fito de garantir a
estabilidade no controle da sociedade e a manutenção da ética e
boa gestão.

Conjuntamente aos dispositivos que impedem a manipulação


da empresa de forma contratual, outras formas de participação na
gestão da empresa devem ser consideradas, como a eleição de
conselho de administração, conselho fiscal e diretoria, e podem
ser objeto de limitações.

O art. 239 da Lei 6.404/76, por exemplo, traz em seu bojo


um mecanismo criado para as sociedades de economia mista
resguardar os interesses dos sócios minoritários nos conselhos:
“As companhias de economia mista terão obrigatoriamente Conselho
de Administração, assegurado à minoria o direito de eleger um dos
conselheiros, se maior número não lhes couber pelo processo de voto
múltiplo.”, como esclarecido por Raphael Machado95.

93 http://www.pucrs.br/direito/wp-content/uploads/sites/11/2018/09/ju-
lio_ferro.pdf
94 VIEIRA. Jorge Eliseu Martins. FÁVERO. Luis Paulo Lopes. Poison Pills no
Brasil: um estudo exploratório. Rev. contab. finanç. vol.20. no.50. São Paulo
May/Aug. 2009.
95 MACHADO. Raphael Boechat Alves. Sociedade de Economia Mista: uma
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 251
Também deve ser considerado o ingresso de terceiros. Em
geral, com o crescimento da sociedade anônima, por exemplo,
aumenta a procura de investidores que pretendem partilhar dos
frutos que provavelmente serão alcançados. Embora deva ser
prevenida a possibilidade de tomada de poder por terceiros,
é preciso também prever, com regras claras, as formas de
participação acionária destes.

Entre as possibilidades legais, há o sócio investidor, que


não participa ativamente da gestão, mas impulsiona a extensão
das atividades, permitindo alcançar maior público e aumentar a
eficiência e qualidade do resultado.

Entretanto, o terceiro também se torna um fator de risco


na equação que equilibra interesses. Assim, outros instrumentos
foram criados com essa proposta, como o Vesting e a Cliff, que
garantem a contraprestação nas participações e regulamentam
seus termos, inclusive o período de duração.

Devem ainda ser usados, junto a outras disposições, os termos


de confidencialidade, não concorrência e exclusividade, mas com
o cuidado de não desestimular sua adesão ao empreendimento.

Há disponível uma infinidade de dispositivos que podem ser


previstos nos atos de constituição da empresa, ou de ampliação
na sua participação, que encorajem o investidor, sem dar-lhes
margem para tomada de controle ou desvio de finalidade.

A criação desmedida de restrições pode dificultar a adesão e


impedir a dinâmica no crescimento do empreendimento, devendo
a empresa mensurar a extensão das cláusulas e criar termos que

análise a partir da Lei 13.303/16. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2016.

LEGAL TALKS:
252 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
permitam a autonomia do investidor, como limitações de tempo
e espaço que resguardem a empresa e não imobilizem o terceiro.

A Lei Complementar 155/2016 prevê ainda o termo de


parceria, que estimula o investimento por pessoa física ou jurídica,
chamado de “investidor – anjo”, e cria exigências para distinguir a
figura do sócio96.

96 Lei Complementar 155/2016: “§ 4o  O investidor-anjo: 


I  -  não  será  considerado  sócio  nem  terá  qualquer  direito  a  gerência
ou voto na administração da empresa; 
II - não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recupera-
ção judicial, não se aplicando a ele o art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janei-
ro de 2002 - Código Civil; 
III - será remunerado por seus aportes, nos termos do contrato de participa-
ção, pelo prazo máximo de cinco anos. 
§  5o    Para  fins  de  enquadramento da  sociedade  como  microempresa
ou  empresa  de  pequeno  porte,  os  valores  de  capital  aportado  não  são
considerados receitas da sociedade. 
§ 6o  Ao final de cada período, o investidor-anjo fará jus à remuneração cor-
respondente  aos  resultados  distribuídos,  conforme contrato  de participa-
ção, não superior a 50% (cinquenta por cento) dos lucros da  sociedade en-
quadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte. 
§  7o    O  investidor-anjo somente  poderá  exercer  o  direito  de  resga-
te depois  de  decorridos,  no  mínimo,  dois  anos  do  aporte  de  capital,
ou  prazo  superior  estabelecido no  contrato  de  participação, e  seus ha-
veres  serão  pagos  na  forma  do  art.  1.031  da  Lei  no  10.406, de  10  de janei-
ro de 2002 - Código Civil, não podendo ultrapassar o valor investido devida-
mente corrigido. 
§ 8o  O disposto no § 7o deste artigo não impede a transferência da titulari-
dade do aporte para terceiros. 
§  9o    A  transferência  da  titularidade  do  aporte  para  terceiro  alheio  à
sociedade  dependerá  do  consentimento  dos  sócios,  salvo  estipulação
contratual expressa em contrário.”
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 253
A lei permitiu ampliar o leque de captação de recursos, o
que pode impulsionar a atividade, sem comprometer a gestão e,
então, a atividade em si.

Dessa forma, fica claro que, de acordo com o interesse dos


sócios e dos investidores, a atividade empresarial pode ser conduzida
com maior segurança e as exigências previstas vão influenciar as
formas de participação, em especial quando o tipo societário permitir
a remuneração através de ações, como a Sociedade Anônima.

V – Conclusão

A atividade empresária não deve ser considerada resultado


da soma de probabilidades ou intempéries da economia. O
contrário é provado pelos exemplos de inovação e dinamismo
traduzidos por startups que conseguem reinventar a forma de
exercer atividades há muito existentes.

A título de exemplo, têm-se os serviços de entregas rápidas


por motoboys, que foram impulsionados pelo uso de aplicativos
em 201897 e continuam a prosperar com novos formatos, como
o aplicativo com alcance a zonas periféricas, onde não havia o
atendimento pelos serviços de delivery comuns98.

Sem dúvidas, o planejamento e o manejo de instrumentos


jurídicos adequados são essenciais para manter a estrutura da
empresa durante os revezes das crises cíclicas do mercado
global. Tanto em momentos de crise econômica quanto nos de

97 https://www.mercadoeconsumo.com.br/2018/12/13/a-febre-dos-deli-
veries-de-quase-tudo/
98 https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/05/22/empresa-que-
-facilita-servico-de-entregas-dentro-das-favelas-de-salvador-registra-au-
mento-de-mais-de-200percent-durante-a-pandemia.ghtml

LEGAL TALKS:
254 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
crescimento, é fato que a estrutura criada na fase embrionária
permite uma ampliação dos negócios no mesmo ritmo de
crescimento do mercado consumidor.

A escolha correta do tipo societário e a elaboração de seus


contratos/estatutos com destreza são essenciais para impulsionar
o seu desenvolvimento e a inovação e para evitar perdas futuras,
sejam elas de ordem financeira ou até mesmo de tempo do
investidor.

Qualquer que seja o tipo societário, é essencial o


acompanhamento nas etapas de constituição da empresa para
veiculação de cláusulas e previsões que resguardem interesses
futuros. Por este aspecto, a escolha por Sociedade Anônima ou
Sociedade Limitadas traz segurança ao sócio que teme por seu
patrimônio.

A limitação da responsabilidade permite escolher entre as


Sociedades Limitadas, mais simples, ou as Sociedades Anônimas,
que possuem maior custo, mas permitem a participação de
diversos tipos de acionistas, o que dependerá da atividade e aporte
financeiros envolvidos.

Por fim, nesse contexto, se mostra imprescindível que os


empreendedores contem com orientação jurídica especializada,
sobretudo para concretizar as expectativas positivas e também a
fim de prevenir eventuais incorreções técnicas que venham a gerar
prejuízos futuros.

Naturalmente, a criação da empresa e seu gerenciamento


responsável permitem a estruturação da atividade e a gestão
dos lucros de forma eficiente e sustentável, aumentando sua

L EG A L TA L KS :
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capacidade de crescer e sobreviver às dificuldades, sempre com
ênfase no futuro promissor da sociedade.

LEGAL TALKS:
256 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Capítulo 10

DIREITO DA PROPRIEDADE
INDUSTRIAL: A TUTELA JURÍDICA
DA INOVAÇÃO EMPRESARIAL
Eduardo Goulart Pimenta

I – Introdução

O Código da Propriedade Industrial brasileiro (Lei n.


9.279/96) conhece e disciplina expressamente quatro categorias
de criações intelectuais de finalidade industrial: a invenção, o
modelo de utilidade, o desenho industrial e a marca.

O tema, porém, não se esgota aí. Entre estes quatro institutos


há diversos pontos de contato que, não raro, tornam obscuras
as suas particularidades. Por outro lado, estas quatro categorias
fundamentais apresentam tantos desdobramentos que acabam
por, vez por outra, serem subdivididas em novas espécies.

Como a relação entre as startups e a inovação é, pode-se


mesmo afirmar, essencial, torna-se igualmente fundamental o
conhecimento das regras destinadas à preservação dos direitos
sobre criações intelectuais voltadas para a atividade empresarial.

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STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 257
2. A proteção à propriedade industrial e sua evolução histórica

Ao longo de toda a História a criatividade e inteligência


humana têm brindado-nos com criações que, de forma maior ou
menor, contribuem para o avanço das ciências, das artes e da
cultura em geral.

Deve-se notar, porém, que a proteção e o respeito a tais


criações são de fundamental importância, posto que somente
sentir-se-ão seguros e motivados os criadores se souberem que,
por parte da legislação e do aparato estatal, terão respeitados os
resultados de sua atividade criativa.

É neste ponto que entram as normas voltadas para a


proteção das criações humanas em geral e daquelas orientadas
para uma finalidade industrial, em particular.

Sob a perspectiva eminentemente econômica, o objetivo


final destas regras é permitir que a pessoa ou grupo responsável
pela criação protegida possa temporariamente99 usufruir, com
exclusividade, dos ganhos advindos de sua utilização.

Em última análise, este modelo de tutela permite, portanto,


que a pessoa ou grupo criador possa internalizar os ganhos
decorrentes de sua criação, assim como incorreram nos custos
de tempo e dinheiro para levá-la adiante. Minimiza-se a falha de
mercado constituída pela externalidade negativa verificada caso

99 Os direitos conferidos pela Lei n. 9.279/1996 são, em atenção ao coman-


do do art. 5º, XXIX da Constituição Federal de 1988, essencialmente tempo-
rários. Os prazos de vigência de uma patente estão expressos no art. 40 da
Lei n. 7.279/96, enquanto desenhos industriais e marcas têm tal questão – e
suas condições para renovação – disciplinadas respectivamente pelos arti-
gos 108 e 133 da mesma legislação.

LEGAL TALKS:
258 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
os benefícios econômicos advindos da criação protegida fossem
indistintamente distribuídos.

Dado que as invenções são inerentes à própria história e


evolução humana na Terra, poder-se-ia pensar que também as
normas voltadas para a proteção dos direitos dos inventores teriam
origem em épocas já distantes. Não foi assim.

Na Antiguidade e, mesmo no Direito Romano, que tão bem


cuidou da propriedade sobre bens materiais, não se reconhecia
como suscetível de proteção as criações intelectuais, fossem elas
desenvolvidas com finalidade industrial ou estética.100

Muito desta omissão pode certamente ser creditada à


inexistência de um regime jurídico sistematizado destinado a
regular a atividade comercia. “Com efeito, se em cada sistema positivo
há e houve normas peculiares ao comércio, a divisão, entretanto, do
direito privado em dois sistemas, o direito civil e o comercia, era alheia
ao direito romano (...)”101

Repudiado pela civilização romana, que via nos trabalhos


manuais em geral atividades menores e indignas, o comércio não
merecia a atenção dos jurisconsultos da época. Ficaram de lado,
conseqüentemente, as questões referentes à proteção das criações
humanas voltadas para o desenvolvimento ou melhoramento dos
produtos ou das formas de obtê-los.

100 No caso Romano houve quem cogitasse a respeito da aplicabilidade das


questões referentes às res incorporales, o que somente se admite a partir de
leituras posteriores e, mesmo assim, indiretas (BOSIO. Edoardo. Lê Privative
Industriali nel Diritto Italiano. Unione Tipgrafico-Editrice Torinese. Turim. 1891.
Pg. 4)
101 ASCARELLI. TULLIO. Panorama do Direito Comercial. Saraiva & Cia Livra-
ria Acadêmica. São Paulo. 1947. Pg. 16.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 259
Pelos mesmos motivos a disciplina das criações intelectuais
voltadas para a atividade econômica mostra-se, no início do período
medieval, desprovida de regulamentação específica. Vistos como
atividades humilhantes, o trabalho manual e o comércio eram
desprezados pela nobreza e, deste modo, desconsiderados como
institutos dignos de regime jurídico próprio.

Porém, é exatamente neste período histórico que


ocorre o fortalecimento do comércio que, sob o ponto de vista
econômico, ganha importância até então desconhecida. Há, neste
momento, o aparecimento da classe burguesa que, dedicando-se
primordialmente à atividade mercantil, também viu crescer sua
importância política, econômica e social.

À medida que o comércio ganhava em relevância econômica


a categoria profissional que a ele se dedicava (os comerciantes) se
tornava mais numerosa e organizada valendo-se, para tanto, das
conhecidas Corporações de Ofício, organizações privadas que
congregavam os comerciantes de uma determinada localidade.

No interior destas corporações os seus membros


disciplinavam suas relações jurídicas profissionais por meio de
normas consuetudinárias posteriormente positivadas pelos
estatutos da organização. Como não poderia deixar de ser, as
criações intelectuais voltadas para o aprimoramento dos produtos
comercializados foram objeto de regulamentação: “As corporações,
na frase de Renouard, refúgio dos fracos contra os fortes, meio eficaz
de polícia no Estado, se converteram em instrumentos de monopólios.
Pertenciam-lhes todos os inventos de seus membros. Nem havia
falar, propriamente, nos direitos destes, submetidos à rígida disciplina
hierárquica, mercê de regulamentos draconianos, concernentes a
cada gênero de manufatura ou ramo profissional. Outorgava-se

LEGAL TALKS:
260 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
prêmios e honrarias aos inventores, mas arrebatava-lhes o invento,
cujo segredo zelosamente guardava por tempo indeterminado, a
bem dizer perpétuo. Perpétuo, é de salientar, na transitoriedade das
instituições humanas. Por isso mesmo, cada corporação era ciosa da
perfeição dos seus produtos, cujo fabrico monopolizava. Quem a ela
não pertencesse era proibido de fabricar ou vender artigo ou produto,
que lhe constituísse objeto.”102
Paralelamente às normas de caráter privado estabelecidas
no interior destas corporações medievais o Estado passou a
conhecer e disciplinar, ainda que de maneira tímida e pouco
sistemática, a questão referente às invenções e os direitos dos
seus criadores.

Em 1623 o Parlamento Inglês sancionou o Statute of


Monopolies, ato por meio do qual proibia os monopólios em geral
ressalvando, entretanto, os privilégios concedidos pelas invenções.
Nas palavras de J. X. Carvalho de Mendonça “esta primeira lei sobre
a matéria, aliás, prolixa na redação, considera-se a magna carta do
direito dos inventores e da liberdade de comércio.”

O autor faz questão de lembrar, entretanto, que “a verdade


é, porém, que a lei francesa de 7 de janeiro de 1791 foi a primeira
a reconhecer o direito subjetivo dos inventores, regulando a sua
modalidade e duração, e servindo de modelo ao sistema legislativo
dos outros povos da Europa e da América do Sul”.103

Seja como for, importa mais ressaltar que é a partir de então


que a legislação passa a disciplinar e garantir os direitos daqueles

102 FERREIRA. Waldemar. Tratado de Direito Comercia. Sexto Volume. Edição


Saraiva. São Paulo. 1962. Pg. 436.
103 CARVALHO DE MENDONÇA. José Xavier. Tratado de Direito Comercial
brasileiro. Volume V. Livro III. Parte I. 4a edição. Livraria e Editora Freitas Bas-
tos. São Paulo. 1946. Pg. 116.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 261
que colocavam sua criatividade a serviço do desenvolvimento de
novos bens ou procedimentos voltados para a atividade industrial.

Nosso país não tardou a cuidar do assunto. Ainda antes da


Independência tivemos nossa primeira legislação sobre invenções
industriais por meio do Alvará de 28 de abril de 1809, no qual o
Príncipe Regente conferia aos inventores a exclusividade no uso
de suas criações, desde que devidamente registradas pela então
existente Junta Real do Comércio.

Já então reconhecida como matéria de profunda relevância,


a questão foi expressamente abordada pela Constituição do
Império que, em seu art. 179, dispunha: “Os inventores terão a
prioridade das suas descobertas ou das suas produções. A lei lhes
assegurará um privilégio exclusivo temporário ou lhes remunerará em
ressarcimento da perda que hajam de sofrer pela vulgarização.”

A legislação infra-constitucional voltada para a disciplina da


propriedade industrial tem seqüência com a edição da Lei de 28
de agosto de 1830:“Este diploma continha 12 artigos e dispunha que
ao descobridor ou inventor de uma indústria útil ficariam assegurados
a propriedade e o uso exclusivo da descoberta ou invenção e
melhoramento; que o direito do descobridor ou inventor seria firmado
pela patente, entregue gratuitamente (salvo o pagamento do selo
e feitio); que as patentes se concederiam, segundo a qualidade
da descoberta ou invenção, por espaço de 5 até 20 anos, salvo
prorrogação por meio de lei; e que o agraciado deveria por em prática
a invenção ou descoberta dentro de dois anos depois de concedida a
patente”.104

104 CARVALHO DE MENDONÇA. José Xavier. Tratado... Vol. V. Livro III. Parte
I. ob. Cit. Pg. 118.

LEGAL TALKS:
262 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Interessante notar que tal norma já se orientava por diversos
princípios que ainda hoje norteiam a disciplina legal do assunto.
Veja-se que a patente já se afigura como o meio protetivo das
criações intelectuais voltadas para o desenvolvimento das
industrias em geral, que o Poder Público assume a obrigação
de concedê-las e fazer cumprir a exclusividade a elas inerente,
que o direito concedido por meio da patente é essencialmente
temporário e, por fim, que o titular da patente tem a obrigação de
colocar em prática sua criação sob pena de perder a exclusividade
a ele concedida.

À esta lei sucederam diversas outras (cada vez mais


complexas e detalhadas) como a Lei n. 3. 129, de 1882 e os
chamados Códigos da Propriedade Industrial corporificados pelas
Leis n. 7. 903, de 1945 e n. 5.772, de 1971.

A Constituição de 1988 corretamente seguiu a tradição


brasileira e fixou, em seu art. 5o, XXIX, as diretrizes fundamentais
do sistema de proteção à propriedade industrial em nosso
ordenamento. Estabeleceu-se assim o direito dos criadores à
proteção de suas criações por meio das patentes e registros, a
obrigação do Poder Público de zelar por tal proteção e, ainda, a
essencial temporariedade destes direitos, pilares sobre os quais
erige-se a legislação ordinária hoje corporificada pela Lei n. 9.
279, de 14 de maio de 1996, muito apropriadamente chamada de
Código da Propriedade Industrial.

A Lei n. 9. 279 cuida, em seu Título I, da proteção às invenções


e modelos de utilidade, realizadas por meio da concessão de
patentes. Dedica o Título II à disciplina do registro de desenhos
industriais e o Título III às marcas, de modo que alcança, com seus
dispositivos, as quatro categorias fundamentais aqui tratadas.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 263
A instituição responsável pela análise e concessão de todos
os direitos sobre a propriedade industrial é, no Brasil, o Instituto
Nacional da Propriedade Industrial (INPI), autarquia Federal criada
em 1970.

Criado em substituição ao antigo Departamento Nacional de


Propriedade Industrial, o Instituto agregou às tarefas tradicionais
de concessão de marcas e patentes, a responsabilidade pela
averbação dos contratos de transferência de tecnologia e,
posteriormente, pelo registro de programas de computador,
contratos de franquia empresarial, registro de desenho industrial e
de indicações geográficas105.

3. A proteção supra nacional à Propriedade Industrial

O respeito às criações intelectuais em geral, e


especificamente em relação às voltadas para a atividade industrial,
é questão que não pode se limitar apenas ao território de um único
país.

De nada adiantará que determinado Estado tutele com rigor


os direitos dos seus inventores se em outros ordenamentos não
houver o mesmo cuidado, possibilitando, ali, a cópia e exploração

105 O Instituto Nacional da Propriedade Industrial se define como uma


“Autarquia Federal, criada em 1970, vinculada ao Ministério do Desenvolvi-
mento, Indústria e Comércio Exterior. Tem por finalidade principal, segundo a
Lei 9.279/96 (Lei da Propriedade Industrial), executar, no âmbito nacional, as
normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função
social, econômica, jurídica e técnica. É também sua atribuição pronunciar-se
quanto à conveniência de assinatura, ratificação e denúncia de convenções,
tratados, convênios e acordos sobre propriedade industrial.”(www.inpi.gov.
br. Site consultado em 05/09/2020).

LEGAL TALKS:
264 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
econômica dos produtos em afronta à exclusividade garantida aos
seus criadores.

Dada esta importante particularidade da propriedade


sobre bens imateriais verifica-se, de longa data, tentativas no
sentido de estabelecer-se princípios e regras supra-nacionais que
possibilitem a proteção das criações industriais na generalidade
dos ordenamentos.

Há que se notar, porém, que a necessidade de proteção das


criações industriais na generalidade dos ordenamentos encontra
um obstáculo de difícil conciliação, representado pela soberania
dos Estados.

Em princípio não há como obrigar-se um determinado


Estado soberano a acatar e fazer respeitar o sistema de patentes.
Do mesmo modo é inviável, em princípio, estabelecer-se um
organismo supra-nacional destinado a zelar por tais questões.
A solução encontrada foi, então, a elaboração de Convenções
e Tratados Internacionais que, pretende-se, sejam acolhidos e
respeitados pelos países signatários e possibilitem a adoção,
pela legislação de cada um destes Estados, de princípios e regras
comuns destinadas à proteção dos inventores e de suas criações.

Já na segunda metade do século XIX foram empreendidas


as primeiras tentativas neste sentido. Em 1873 realizou-se em Viena
o primeiro congresso internacional dedicado à matéria, seguido,
em 1878, por outro realizado em Paris e no qual já se ventilava a
elaboração de um regime internacional destinado a regular a
matéria.

Deste segundo congresso internacional resultaram


diferentes medidas, dentre as quais a composição de uma

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 265
comissão para elaborar um anteprojeto de Convenção Internacional
destinada ao estabelecimento de um regime comum de proteção
e respeito às criações industriais.

Em 1880 foi realizada, novamente em Paris, outra


Conferência, agora destinada, dentre outros assuntos, a examinar
os trabalhos daquela comissão. J.X. Carvalho de Mendonça relata-
nos que “redigiu esta conferência outro anteprojeto, enviando-o às
diferentes potências. Estas realizaram nova Conferência, aderindo
os seus delegados, eventualmente, a esse anteprojeto. Daí surgiu a
Convenção Internacional de Paris, de 20 de março de 1883, assinada
por onze Estados [dentre os quais o Brasil.

A Convenção de Paris, de 1883, criou entre os Estados


contratantes a União para a proteção da propriedade industrial e
admitiu diversos princípios aplicáveis aos direitos dos estrangeiros
nos diferentes Estados da União.”106

A criação da União para a Proteção da Propriedade Industrial,


conhecida simplesmente por União de Paris, representou decisivo
passo na tentativa de uniformização das legislações nacionais em
matéria de proteção à propriedade industrial.

Uma vez que prevista pelo próprio texto da Convenção


de 1883, diversas Conferências Internacionais foram e têm sido
realizadas, desde então, para o aprimoramento do sistema
estabelecido.107

O continente americano também se empenhou na busca


pela proteção internacional da propriedade industrial. O Congresso
106 J.X. Carvalho de Mendonça. Tratado... Vol. V. Livro III. Parte I. ob. Cit. Pg.
202.
107 Para um detalhado relato acerca de cada uma destas Conferências in-
ternacionais remetemos o leitor ao trabalho de J. X Carvalho de Mendonça
(Tratado... Vol. V. Livro III. Parte I. ob. Cit. Pg. 202 e segs.)

LEGAL TALKS:
266 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Internacional Americano realizado em Lima no ano de 1878 já
aventava a necessidade de proteção às criações intelectuais.
Seguiu-se então o Congresso Sul-americano de Montevidéu em
1889 e as sucessivas Conferências Internacionais Americanas,
realizadas periodicamente a partir deste mesmo ano.108
Outro importante passo no sentido da proteção internacional
às criações intelectuais voltadas para o desenvolvimento da
atividade industrial verificou-se em 1967, quando foi criada a
Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI – seção
da ONU sediada em Genebra, Suíça.

Vale citar ainda o Tratado de Cooperação em Matéria de


Patentes – PCT (Patent Cooperation Treaty), que foi elaborado em
19 de junho de 1970.

IV – Dos bens imateriais protegidos pelo Direito da


Propriedade Industrial

3. 1 - Invenção

O elemento fundamental de todo o arcabouço legislativo e


protetivo consistente no Direito da Propriedade Industrial encontra-
se sobre o conceito de invenção.

Deste modo é indispensável, para a compreensão do


assunto, definir o que deve ser entendido por invenção.

Rubens Requião afirma que: “Geralmente o estudo da


matéria se inicia pelo estabelecimento da distinção entre descoberta

108 J.X. Carvalho de Mendonça. Tratado... Vol. V. Livro III. Parte I. ob. Cit. Pg.
205 e segs.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 267
e invenção, para melhor conceituação desta.”109. Nessa linha, serão
aqui analisados ambos os termos, para extrair-lhes distinções e
pontos de contato que permitam a melhor definição de cada um
deles.

É de lembrar, entretanto, que originalmente a doutrina


e mesmo a legislação brasileira tratavam os termos invenção e
descoberta como sinônimos. É o que se percebe, por exemplo,
ao analisar-se a Lei n. 3. 129, de 1882. Aplicava-se, assim, a
mesma proteção legal a ambas as categorias. Waldemar Ferreira,
comentando tal diploma, constatava que “serviu-se dos dois
vocábulos, sinonimizando-os. Submeteu ao mesmo regime tanto
a invenção, quanto a descoberta. Não distinguiu uma da outra.
Igualmente não distinguiu a lei italiana que rege a matéria.”110

A partir do Código da Propriedade Industrial de 1945,


corporificado no Dec. Lei n. 7. 903, a proteção legal obtida por meio
das patentes passou a ser garantida exclusivamente às invenções
que, desde então, não mais são confundidas, pela legislação ou
pela doutrina, com as descobertas.

Talvez o elemento mais característico tanto da invenção


quanto da descoberta esteja na sua originalidade ou novidade.
Em ambos os casos há, como resultado, algo que até então
encontrava-se fora do conhecimento ou percepção humana.
Waldemar Ferreira, analisando os termos em questão afirmou:
“O característico comum a um e outra reside na sua novidade, tanto
quanto no de utilizar-se industrialmente”111.

109 REQUIÃO. Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol. I. São Paulo. Ed. Sa-
raiva. 1999. Pg. 292.
110 FERREIRA. Waldemar. Tratado... Vol. VI. ob. Cit. Pg. 444.
111 FERREIRA. Waldemar. Tratado... Vol. VI. ob. Cit. Pg. 448.

LEGAL TALKS:
268 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Outro forte ponto de contato entre a ideia de invenção e a
de descoberta está em que tanto uma quanto outra são obtidas
a partir do exercício da atividade intelectual de uma determinada
pessoa ou grupo de indivíduos atuando de forma organizada.

É do esforço mental deste indivíduo ou grupo que resultam


as invenções e descobertas. O descobridor usa seu intelecto para
analisar a natureza e constatar nela a existência de algo até então
desconhecido. O inventor, de modo similar, também emprega sua
capacidade intelectual na análise da natureza, mas visa produzir,
com sua inteligência, algo ainda inexistente para solucionar um
determinado problema.

Reside nesta observação uma das grandes diferenças


entre os conceitos ora tratados. A invenção encontra-se fora da
percepção humana por inexistir, ao menos da forma como agora
apresentada, na natureza. Já a descoberta é algo que estava fora
da percepção humana simplesmente por não ter sido constatada,
até então, sua existência, em estado completo, na ordem natural.

Rubens Requião bem salientou a característica ora


abordada ao analisar os termos descobrir e inventar. “(...) descobrir
é o ato de anunciar ou revelar um princípio científico desconhecido,
mas preexistente na ordem natural, e inventar é dar aplicação prática
ou técnica ao princípio científico, no sentido de criar algo de novo,
aplicável no aperfeiçoamento ou na criação industrial.112”

Diferem também os conceitos de invenção e descoberta na


medida que, como ressaltado por Rubens Requião, a invenção é
a solução para uma determinada necessidade específica, surgida
antes de sua concepção.

112 REQUIÃO. Rubens. Curso...Vol. I. ob. Cit. Pg. 293.


L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 269
É o resultado da atividade intelectual de alguém (ou alguns)
que, diante de uma necessidade ou problema prático, se propôs
a desenvolver um bem para solucioná-lo. Já a descoberta, como
constatação de algo existente na natureza, advém da capacidade
contemplativa e especulativa do homem que, ao observar e
perquirir sobre a natureza revela, com o esforço intelectual, algo
até aquele momento desconhecido.

“Chega-se ao invento por via de trabalho orientado e dirigido


ao fim de atingi-lo. A descoberta mais não é do que o achamento,
eventual ou procurado, de processo ou produto das forças da
natureza.113”

Tem-se então que a descoberta não é visada como forma de


atender uma necessidade determinada. Primeiro algo é descoberto
para depois avaliar-se sua capacidade de utilização. Na invenção
ocorre o contrário: constata-se a existência de uma determinada
necessidade ou problema para depois, como o uso do intelecto,
obter-se algo para solucioná-lo.

Corolário desta assertiva é que a invenção é uma criação


suscetível de reprodução, sem qualquer perda de seus elementos,
em escala industrial, contrariamente ao que se verifica em relação
à descoberta que, por tratar-se de algo existente na natureza, pode
ou não ser suscetível de reprodução ou utilização pela indústria.

A lei n. 9. 279/96 absteve-se, como é tradição no direito pátrio


e na maioria das legislações estrangeiras114, de trazer definição
expressa do que seja invenção, limitando-se a tratar dos requisitos

113 FERREIRA. Waldemar. Tratado... Vol. VI. Ob. Cit. Pg. 448.
114 CERQUEIRA. João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial. Vol. I. 2a
edição. Ver. E atual. Por Luiz Gonzaga do Rio Verde e João Casimiro Costa
Neto. Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo. 1982. pg. 211/212.

LEGAL TALKS:
270 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
necessários à sua verificação, quais sejam: a novidade, a atividade
inventiva e a aplicação industrial (art. 8º).

Tais requisitos coincidem com os aspectos acima apontados,


o que permite apresentar um conceito de invenção - e também de
descoberta – apoiado nos ditames do art. 8o da Lei n. 9. 279/96.

A invenção consiste na criação, a partir da atividade


intelectual de uma determinada pessoa ou grupo, de algo até
então inexistente e suscetível de reprodução e utilização em
escala industrial.

A descoberta, por sua vez, consiste na constatação, por meio


da atividade intelectual de uma determinada pessoa ou grupo, da
existência natural de algo até então desconhecido, suscetível ou
não de reprodução e utilização em escala industrial.

Feita esta distinção inicial, cumpre agora separar as ideias


de invenção e descoberta de uma terceira tão importante quanto
elas, a chamada “obra intelectual” disciplinada, no direito brasileiro,
por meio dos chamados “Direitos de Autor”, consolidados na Lei n.
9.610, de 19 de fevereiro de 1998.

Entre a ideia de invenção e a de obra intelectual há diversos


caracteres comuns, a começar pela circunstância de ambas
carecerem de definições legais. Como já salientado, a Lei n. 9.
279/96 preferiu abster-se de definir o que é invenção.

Do mesmo modo ocorre no caso da “obra intelectual”, sem


definição no texto da Lei n. 9.610/98, que preferiu, em seu art. 7o,
enumerar exemplos das “criações do espírito” compreendidas no
conceito ora tratado.

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 271
Outro forte ponto de contato entre as ideias de invenção
e de obra intelectual está no caráter de novidade apresentado
por ambas. Tanto uma quanto outra representam a manifestação
do intelecto de alguém (ou alguns) no sentido de apresentar à
Humanidade algo até então inexistente na natureza.

Vale notar, porém, que elas se diferenciam uma vez


que enquanto a invenção é a solução para uma necessidade
ou problema prático, a obra intelectual vem a ser a projeção da
atividade mental de alguém sem finalidade prática específica a
não ser a de causar satisfação àqueles que venham a com ela ter
contato.

A invenção resulta da especulação do intelecto humano


voltada para o saneamento de uma necessidade prática específica
e premente. Tanto a obra intelectual como a descoberta também
resultam da criatividade humana, mas não a objetivamente voltada
para a solução de um problema e sim aquela orientada para a
especulação e análise da natureza (descoberta) ou orientada para
a produção de trabalho de finalidade estética, em seu sentido mais
amplo (obra intelectual).

É esta a razão pela qual encontra-se na possibilidade de


“reprodução em escala industrial” a distinção conceitual entre a
obra intelectual e a invenção.

Vê-se que com a noção de descoberta a obra intelectual tem


de semelhante este caráter de infungibilidade. Como demonstrado,
trata-se, tanto a descoberta quanto a obra intelectual, de algo
insuscetível de reprodução em escala industrial.

Assim, e face à tais considerações, pode-se afirmar que a obra


intelectual consiste na criação, a partir da atividade intelectual de

LEGAL TALKS:
272 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
uma determinada pessoa ou grupo, de algo até então inexistente
voltado para o engrandecimento da cultura e das artes em geral.

A obra intelectual é, em essência, única e exatamente por


isso protegida por legislação especial. Diferencia-se dos produtos
nos quais eventualmente possa ser reproduzida.

Na reprodução industrial de um bem é necessária a


realização de um procedimento. O bem é fabricado por meio de
uma cadeia organizada de atos empreendida pelo fabricante. Um
mesmo bem pode ser produzido por diferentes modos.

É de constatar-se, então, que não se aplica apenas ao produto


final, obtido pela criatividade do inventor, as características da
novidade, atividade inventiva e reprodução industrial.

Também o procedimento empreendido pelo inventor para


a fabricação de sua invenção – ou modelo de utilidade – pode
ser novo (ou seja, desconhecido do estado da técnica), resultado
de sua atividade inventiva e suscetível de reprodução em escala
industrial.

Há que se considerar, de outro lado, que mesmo um produto


já conhecido e fabricado pode ser objeto de novos estudos (por
parte de seus inventores ou terceiros) que resultem não em uma
modificação de sua estrutura ou feições originais, mas sim em uma
nova forma de fabricação dele.

Entre os estudiosos do tema fala-se em tecnologia (ou


Know-how, em inglês) para definir o ato ou série de atos praticados
para a obtenção de um produto. Alterações em tal procedimento
podem resultar em importantes ganhos de tempo ou dinheiro
para o fabricante tornando-as, então, rentáveis economicamente

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 273
e merecedoras de tutela legal de modo a garantir ao seu criador a
proteção conferida às invenções e modelos de utilidade.

O art. 42 do Código da Propriedade Industrial faz referência


à “patente de processo” de forma a permitir aos criadores de uma
nova forma de obtenção de um produto - já patenteado ou não - a
proteção à sua tecnologia.

Não se trata a tecnologia ou Know-how de uma outra


categoria da propriedade industrial, posto faltar-se disciplina legal
específica. O que importa, entretanto, é que a Lei n. 9.279/96 a
protege por meio da patente, nos mesmos termos que estabelece
para o patenteamento das invenções.

3.2 - O Modelo de utilidade

O modelo de utilidade guarda significativas semelhanças


com a noção de invenção. Ambos trazem em si, de forma inerente,
a idéia de novidade ou originalidade, são igualmente resultados
da atividade intelectual humana e afiguram-se como soluções
a questões ou problemas de ordem prática, necessidades
específicas.

Pelo atual Código da Propriedade Industrial brasileiro tanto a


proteção de invenções quanto de modelos de utilidade depende da
constatação dos requisitos da novidade (art.11), atividade inventiva
(art. 13 e 14) e utilização industrial (art.15).

A diferença fundamental, que justifica a própria separação


dos dois institutos, está no grau de inovação trazido por uma e por
outro.

LEGAL TALKS:
274 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Enquanto na invenção tem-se a criação de um bem
totalmente original, o modelo de utilidade corresponde a algum
acréscimo ou alteração efetuada em algo já criado ou existente
e que, em função daquela modificação, tem ampliada sua
comodidade ou mesmo seu potencial de utilidade.

É o que se pode obter a partir do texto do art. 9o da Lei n. 9.


279/96, que dispõe:

É patenteável como modelo de utilidade o objeto de uso


prático, ou parte deste, suscetível de aplicação industrial, que
apresente nova forma ou disposição, envolvendo ato inventivo, que
resulte em melhoria funcional no seu uso ou em sua fabricação.

Waldemar Ferreira, apoiado em Tullio Ascarelli, explica que a


expressão modelo de utilidade remete aos dois principais caracteres
definidores do instituto. De um lado trata-se de modelo porque, ao
contrário da invenção - que representa um bem totalmente original
- parte de um produto já conhecido e acabado, representando uma
modificação ou acréscimo em sua estrutura original. De outro lado o
termo “de utilidade” salienta que o acréscimo efetuado deve propiciar
uma melhoria no potencial de utilização original do produto ou, ao
menos, na sua forma de utilização.

“A contribuição inventiva [do modelo de utilidade] deve


consistir na comodidade de emprego ou aplicação de produtos
conhecidos e como processos notórios e em relação direta com
seu emprego, pois a criação intelectual se exprime por um modelo.
Não se terá, portanto, nova utilização das leis da causalidade da
natureza a fim de obter-se novos resultados; mas sim a aplicação
de noções técnicas destinadas a maior comodidade ou eficiência
no uso ou aplicação dos produtos.”115
115 FERREIRA. Waldemar. Tratado... Vol. VI ob. Cit. Pg. 471.
L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 275
A concepção original de modelo de utilidade remonta, no
direito brasileiro, ao instituto que, sob a égide da Lei n. 3. 129, de
1882, era conhecido como melhoramento.

O art. 1o, par.1o dispunha que estavam suscetíveis à proteção


estipulada naquele diploma:

1o – omissis

2o – omissis

3o – omissis

4o – O melhoramento de invenção já privilegiada, se tornar


mais fácil o fabrico do produto ou uso do invento privilegiado ou se
lhe aumentar a utilidade.

Vale ressaltar, porém, que enquanto o melhoramento aqui


referido representava uma derivação de invenção já privilegiada
(de forma similar ao que ocorre, no atual Código da Propriedade
Industrial, com a chamada adição de invenção), o modelo de
utilidade hoje disciplinado se afigura uma categoria autônoma em
relação à invenção.

Guardam os termos modelo de utilidade e melhoramento,


porém, a identidade no que se refere à sua principal característica,
qual seja a de representarem acréscimo no potencial de utilização
ou comodidade de um bem já conhecido. É por isso o modelo de
utilidade tratado freqüentemente como “pequena invenção”.

Importa lembrar também que o modelo de utilidade não


deve ser confundido com a chamada “adição de invenção” descrita
pelo art. 76 da Lei n. 9. 279/96 como sendo “aperfeiçoamento ou
desenvolvimento introduzido no objeto da invenção, mesmo que

LEGAL TALKS:
276 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
destituído de atividade inventiva, desde que a matéria se inclua no
mesmo conceito inventivo”.

A adição de invenção é a modificação introduzida em uma


invenção a ser patenteada. É a alteração da concepção original de
uma invenção com o objetivo de aperfeiçoá-la. Trata-se, portanto,
de categoria acessória, posto estar incluída dentro do mesmo
conceito inventivo que a criação original.

Além disso, a adição de invenção não decorre de atividade


inventiva de seu criador, ou seja, é somente um desdobramento
lógico do estado da técnica em relação à invenção a que se refere.
Tem-se a adição de invenção quando o inventor aperfeiçoa sua
criação aplicando-lhe conhecimentos e soluções já disponibilizados
ao conhecimento público e que, portanto, não configuram o avanço
no estado da técnica consistente na atividade inventiva.

Em apoio a tais considerações, o texto do art. 76 par. 3o da


Lei n. 9.279/96 estipula o necessário indeferimento do pedido
de certificado de adição de invenção quando esta não integre o
mesmo conceito inventivo que a criação original da qual decorra.
Configurada, assim, a essencial vinculação entre a adição aqui
mencionada e um outro bem a ser patenteado como invenção.

Este caráter assessório é reforçado pelo disposto pelo art.


77 do Código que dispõe expressamente que “o certificado de
adição é acessório da patente, tem a data final de vigência desta e
acompanha-a para todo os efeitos legais.”

L EG A L TA L KS :
STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 277
3.3 - O Desenho industrial

O Direito Positivo brasileiro distinguia, até a entrada em


vigor da Lei n. 9. 279/96, entre os conceitos de modelo industrial e
desenho industrial.

“O antigo Código da Propriedade Industrial (Lei n. 5.772/71), no


seu art. 11, definia que modelo industrial era toda forma plástica que
pudesse servir de tipo de fabricação a um produto industrial e ainda se
caracterizava por nova configuração ornamental. Desenho Industrial
era toda disposição ou conjunto novo de linhas ou cores que, com fim
industrial ou comercia, pudesse ser aplicado à ornamentação de um
produto, por qualquer meio manual, mecânico ou químico, singelo ou
combinado.116”

Extraía-se então, destes dois institutos, uma característica


fundamental que distinguia-os do modelo de utilidade e da
invenção: tanto o desenho quanto o modelo industrial se referiam
apenas às feições exteriores dos produtos, às suas características
exclusivamente estéticas ou ornamentais, em nada influindo sobre
sua utilização ou comodidade, ao contrário do que se verifica, em
maior ou menor escala, quando se trata de invenção ou modelo de
utilidade.

Os sinais, linhas, contornos e formas dos bens eram e são


importantes elementos na sua identificação – e porque não dizer
qualificação – em relação aos similares. Há produtos com finalidades,
potencial de utilização e comodidade idênticos que se diferenciam
(e se credenciam perante os consumidores) exclusivamente por
meio de suas feições exteriores. Nada mais correto, portanto, que

116 Requião. Rubens. Curso... Vol. I. ob. cit. Pg. 295.

LEGAL TALKS:
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proteger também a atividade criativa destinada à individualização
dos produtos por meio de seus aspectos formais e estéticos.

Distinguia-se o modelo do desenho industrial em função


das dimensões abarcadas por um e outro. Enquanto o modelo
industrial se referida às feições e contornos de um bem considerado
em suas três dimensões o desenho industrial remetia apenas aos
aspectos do produto considerado somente quanto à sua largura e
comprimento.

“O desenho industrial, particularmente, constitui uma


combinação de linha, de cores, de forma dirigida a conseguir um nono
aspecto exterior de um produto, segundo as duas dimensões de um
plano. (...) Já o modelo industrial, hoje no texto da lei confundo com o
desenho industrial, é direito para a configuração exterior do produto,
segundo as três dimensões de um sólido, isto é, da transformação de
sua forma plástica.117”

Como lembrou Rubens Requião, o atual Código da


Propriedade Industrial optou por agrupar as noções de desenho
industrial e modelo industrial em uma única categoria, definida
pelo art. 95, que dispõe:

“Considera-se desenho industrial a forma plástica ornamental


de um objeto ou o conjunto ornamental de linhas e cores que possa
ser aplicado a um produto, proporcionando resultado visual novo e
original na sua configuração externa e que possa servir de tipo de
fabricação industrial”.

Assim com ocorre com todas as outras categorias aqui


referidas o desenho industrial está vinculado à novidade, ou seja,
as linhas, cores e formas por ele constituídas devem ser originais,

117 Requião. Rubens. Curso... Vol. I. ob. cit. Pg. 296.


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no sentido de até então desconhecidas do estado da técnica (art.
96 da Lei n. 9. 279/96).

É especialmente tormentoso o estabelecimento de distinção


entre o desenho industrial ou design e as obras intelectuais, em
especial aquelas referentes as artes plásticas.

“Situa-se o desenho industrial no limite entre a atividade de


criação industrial e a artística. É, ademais, muito comum, em grandes
museus de arte, a existência de seção dedicada ao design, na qual
se existem móveis e utensílios dotados de foram esteticamente
inovadoras. O primeiro a criar essa seção, o Museum of Modern Art,
de Nova York, exibe até mesmo helicóptero (modelo Bell, projetado
por Arthur Young). A proximidade entre o desenho industrial e a obra
de arte derivam da natureza fútil do ato de criação. Tanto o designer
como o artista não contribuem para o aumento das utilidades que
o homem pode esperar dos objetos. A contribuição deles é de outro
gênero, ligada basicamente aos prazeres de fruição visual: uma
contribuição estética, portanto118”.
A questão transpõe a seara puramente doutrinária se
considerarmos que os institutos em foco estão sujeitos a regimes
jurídicos protetivos diferentes. Enquanto os desenhos industriais
são disciplinados pela Lei n. 9. 279/96, como categorias da
propriedade industrial, os trabalhos de pintura e escultura são,
como as obras intelectuais em geral, tutelados por meio dos
Direitos de Autor.

Para Fábio Ulhôa Coelho o critério distintivo encontra-se


na constatação de que o desenho industrial é vinculado a produto
cuja utilidade não é apenas estética, ao contrário do que se verifica
quando se trata das obras intelectuais em geral e, em especial,
118 COELHO. Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial. Vol. I. São Paulo. Ed.
Saraiva. 2005. pg. 147.

LEGAL TALKS:
280 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
no que diz respeito à pintura e à escultura. “O desenho industrial é
diferente da escultura e da pintura (obras de arte) porque o objeto a
que se refere tem função utilitária e não apenas estética, decorativa
ou de promoção do seu proprietário119”.

Assim o desenho industrial, como a invenção e o modelo


de utilidade, somente se configura quando “possa servir de tipo de
fabricação industrial”, o que lhe atribui como característica essencial
a chamada industriabilidade e o separa das obras intelectuais.

Embora concordando com a assertiva do autor, pensamos


que a distinção não se esgota pela circunstância apontada.

A obra intelectual existe por si só. O desenho industrial,


embora com a finalidade estética das obras intelectuais, somente
ganha sentido por vincular-se a um determinado produto, dele
sendo acessória.

A concepção de um desenho industrial se faz em função


de um determinado bem. As linhas distintivas de um automóvel,
por exemplo, são concebidas em função deste bem. Já as
criações intelectuais artísticas são autônomas, existem por si só e
independentemente de qualquer outra função ou produto.

O desenho industrial se separa da invenção e do modelo de


utilidade na medida em que, ao contrário destes, não acrescenta
nada à finalidade ou potencial de utilização original do bem no qual
é acrescida.

A invenção é a criação de um novo produto e o modelo


de utilidade representa um aperfeiçoamento da comodidade ou

119 COELHO. Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial. Vol. I. Ob. Cit. Pg. 148.

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STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 281
do potencial de utilização de um bem já existente ou criado. O
desenho industrial, por seu turno, representa apenas os traços e
linhas distintivas de um bem em relação aos seus similares, em
nada acrescentando à concepção original do produto no qual foi
inserido.

A função do desenho industrial é puramente estética. São


formas e linhas criadas para distinguir um determinado produto de
seus similares, sem nada acrescer, como dissemos, à sua estrutura
ou potencial de utilidade.

Fala-se, exatamente por isso, em princípio da futilidade para


separar a idéia de modelo de utilidade do conceito de desenho
industrial.

As noções de invenção, modelo de utilidade e desenho


industrial podem, então, ser ordenadas segundo o grau de avanço
que provocam no estado da técnica, uma vez que a invenção é a
criação de um novo produto totalmente desconhecido, o modelo
de utilidade é a modificação no potencial de comodidade ou
utilidade de um produto já existente e o desenho industrial, por
seu turno, refere-se apenas às alterações puramente formais ou
estéticas de um bem.

3.4 – Marca

Termos e sinais visuais em geral são empregados, desde as


mais remotas origens da Humanidade, como forma de identificar e
individualizar coisas idênticas ou similares.

Waldemar Ferreira assinala, neste sentido, que a Humanidade,


ainda essencialmente nômade, já se valia de tal expediente para
identificar o rebanho de cada proprietário e lembra que também

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os romanos empregavam termos ou sinais visuais para identificar
os fabricantes ou as diversas mercadorias então produzidas por
eles120.

Vale ressaltar, porém, que, na Antiguidade, esta forma de


identificação não mereceu regulamentação normativa, restando
carecedora de qualquer proteção específica.

Com o já assinalado crescimento da atividade mercantil na


Idade Média, a então efervescente classe dos comerciantes passou
a utilizar com frequência designativos inseridos em seus produtos
como forma de identificá-los junto aos seus consumidores.

Tais sinais ou termos, porém, apresentavam caráter


eminentemente corporativo, vinculados que estavam não aos
comerciantes individualmente considerados, mas às corporações
que os agrupavam121.

O Século XIX trouxe consigo a consagração dos ideais


liberais e a superação dos privilégios corporativos medievais
por uma ordem econômica pautada pela livre concorrência. Os
comerciantes e industriais passaram, desde então, a contar com
a proteção estatal aos termos ou sinais visuais que desenvolvam
para designar seus produtos ou serviços, encarregando-se a
legislação de garantir a exclusividade no uso.

Nesta nova fase, tem especial importância o Direito francês,


que, impulsionado pela Revolução, firmou vários dos princípios

120 FERREIRA. Waldemar Tratado...Vol. VI. Ob. Cit. Pg. 253.

121 Aqueles que desrespeitassem o direito de tais instituições ao uso exclusi-


vo daqueles designativos eram inclusive submetidos a sanções físicas seve-
ras, com os violadores sendo amarrados a postes e submetidos à humilha-
ção pública. FERREIRA Waldemar. Tratado...Vol. VI. Ob. Cit. Pg. 256.
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que ainda hoje regem a matéria. “Fazendo tábua rasa do passado,
a Revolução acabou com o regime corporativo. Instituiu novas leis,
entre as quais as que estabeleceram limites à concorrência, sob
normas uniformes, principalmente no tocante ao selo, timbre e marcas
governamentais. Finalmente, o Código Penal francês disciplinou a
matéria, em todos os países submetida a regimes especiais e, afinal,
universalizados por efeito de convenções e Tratados internacionais122.”

No Brasil a proteção à tal categoria de criações industriais


remonta ao final do Século XIX.

Tendo o Código Comercial se omitido de disciplinar


expressamente o assunto, coube ao Dec. Legislativo n. 2. 682, de 23
de outubro de 1875, inaugurar, no ordenamento jurídico brasileiro,
as normas voltadas para a disciplina e proteção das criações ora
tratadas123.

Vale citar ainda, em breve retrospectiva histórica da


legislação pátria, a Lei n. 3. 346, de 14 de outubro de 1887, a
Constituição Federal de 1891 e a Lei n. 1. 236, de 1904 (a chamada
“Lei de Marcas”) que traçaram as primeiras orientações no sentido
de tutelar os termos criados para a identificação de produtos ou
serviços.

Atualmente a proteção às marcas é dada pelo Direito da


Propriedade Industrial, corporificado pela Lei n. 9. 279, de 1996.
122 FERREIRA Waldemar. Tratado...Vol. VI. Ob. Cit. Pg. 258.
123 Este Decreto teve origem em interessante demanda envolvendo o di-
reito de uso do termo “Rapé Areia Preta”. Representada por Rui Barbosa, a
sociedade criadora do produto e deste designativo acionou concorrente sua
que, indevidamente, também se valia do termo em questão para nominar
produto idêntico. Reconhecida judicialmente a inexistência de norma legal
protetiva, a prejudicada representou à Câmara dos Deputados, que, então,
concebeu o texto que se converteria, em 1875, no Dec. Legislativo n. 2. 682.

LEGAL TALKS:
284 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
Instituto de enorme aplicação prática, a definição de marca
pode ser obtida a partir da conciliação entre os textos dos art. 122
e 123 da Lei n. 9. 279/96 e corresponde, em síntese, aos termos e
sinais distintivos referidos no item anterior.

Art. 122. São suscetíveis de registro como marca os sinais


distintivos visualmente perceptíveis, não compreendidos nas
proibições legais.

Art. 123. Para os efeitos desta Lei, considera-se:

I – marca de produto ou serviço: aquela usada para distinguir


produto ou serviço de outro idêntico, semelhante ou afim, de origem
diversa;

II – marca de certificação: aquela usada para atestar a


conformidade de um produto ou serviço com determinadas normas ou
especificações técnicas, notadamente quanto à qualidade, natureza,
material utilizado e metodologia empregada; e

III – marca coletiva: aquela usada para identificar produtos ou


serviços provindos de membros de uma determinada entidade124.

124 Marca coletiva “(...) tal é a que figura como sendo de sindicatos regular-
mente constituídos ou coletividades par uso dos seus membros individual-
mente, uti singuli. (...) o sistema da marca registrada como comum a uma
corporação local ou regional tem concorrido para evitar a fraude sobre as
indicações de origem ou proveniência das mercadorias.
Esse grande serviço já basta para recomendá-lo.
A marca é comum aos gêneros ou mercadorias produzidos pelos mem-
bros do sindicato ou da coletividade; mas, cada fabricante ou comerciante tem
o direito de empregá-la e de recorrer à justiça no interesse pessoal, contra os
usurpadores.” CARVALHO DE MENDONÇA. J. X. Tratado... Ob. Cit. Pg. 225 e 226.

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STA RT U P S À LU Z D O D I RE I TO B RASI LE I RO 285
Tanto a marca quanto o desenho industrial estão vinculados
a um produto específico e são elementos destinados, em
essência, a conferir-lhe identidade entre seus similares e, em
consequência, atrair a preferência dos consumidores. Porém, em
ambas as hipóteses não há acréscimo ou melhoria no potencial ou
comodidade de utilização do produto.

Vale notar, porém, que o desenho industrial representa as


linhas e formas exteriores do produto, enquanto a ideia de marca
se refere a qualquer termo escrito ou sinal visual atribuído a um
bem de modo a individualizá-lo de outros que lhes sejam idênticos
ou similares.

O desenho industrial compõe a estrutura física do produto


no qual se insere. Já a marca é apenas o sinal visual que, acoplado
à estrutura do produto, visa identificá-lo.

Também se diferencia a marca dos institutos do nome


empresarial e do título de estabelecimento. Distinguem-se estas
categorias em função da finalidade de cada uma delas, embora
todas as três sejam, em essência, elementos gráficos ou visuais de
identificação.

Nome empresarial é o termo elaborado para identificar o


empresário (sujeito de direito que exerce a empresa); o título de
estabelecimento é o designativo que batiza o estabelecimento
daquele empresário e a marca, por sua vez, é o termo que identifica
os produtos ou serviços oferecidos pelo empresário em seu
estabelecimento.

Deste modo, percebe-se que nome empresarial, título de


estabelecimento e marca em muito se assemelham quanto à sua

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286 STA RTU P S À LU Z DO DIREITO BRASILEIRO
estrutura. São designativos, conjuntos organizados de letras e
sinais visuais elaborados para a identificação de outros institutos.

Separam-se na medida que cada uma destas categorias


tem a função de identificar especificamente um determinado
elemento da atividade econômica, seja o empresário (no caso do
nome empresarial), seja o estabelecimento (no caso do título) ou
os produtos ou serviços oferecidos pelo empresário (marca).

Observe-se também que a definição legal de marca


abrange apenas e tão somente sinais, ou desenhos perceptíveis
visualmente. Exclui-se, deste modo, qualquer outra forma de
identificação de produtos ou serviços por meio e estímulos aos
outros sentidos humanos.

Para que possa ser protegida e utilizada exclusivamente


pelo seu criador, a marca deve também respeitar os requisitos da
novidade, atividade inventiva e utilização industrial.

Dadas as suas diferenças estruturais em relação às


invenções e modelos de utilidade, tais requisitos, quando aplicados
às marcas, devem ser particularmente interpretados.

“No sistema legal a novidade da marca consiste em diversificar


esta das outras já em uso; quer dizer simplesmente o fato de não ter
sido a marca precedentemente usada por outrem, ainda que não
registrada, depositada e publicada (...) Quando se fala da novidade ou
originalidade da marca o sentido é, como se vê, diferente da novidade
peculiar às patentes de invenção.125”

A invenção ou modelo de utilidade, para ser definido como


novo, deve configurar algo até então inexistente na cultura humana,

125 CARVALHO DE MENDONÇA. J. X. Tratado... Ob. Cit. Pg. 224.


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representada, como vimos, pelo termo estado da técnica (art. 11
par. 1o)

A originalidade da marca não está nos termos ou sinais que


a constituem e sim na finalidade que a eles é dada pelo criador.
A marca pode ser constituída por expressões ou sinais gráficos
já conhecidos, desde que ainda não tenham sido utilizados para
identificar produtos ou serviços idênticos ou similares àqueles a
que se referem agora.

A originalidade da invenção e do modelo de utilidade está


na estrutura do bem ou da modificação. A originalidade da marca
não está na sua estrutura ou termos, mas sim na forma pela qual
agora são utilizados pelo empresário.

Waldemar Ferreira, apoiado nas assertivas do jurista francês


Georges Bry, conclui:

“O caráter essencial da marca, para que se torne direito positivo,


doutrinou Georges Bry, é a originalidade, que a distingue e impede que
ela se confunda com outra já existente. E esclareceu. É inútil, para que
ela seja especial e nova, que o sinal adotado resulte de verdadeira
criação; é o seu emprego mercantil ou industrial, sua aplicação de
forma distintiva de outros produtos similares, que lhe empresta o
característico exigido. Estrela, flor, abelha, denominações genéricas,
podem servir de marca, desde que se apresentem formando figura
particular ou combinação nova. Esse conjunto é que há a considerar.
Não os seus elementos componentes.126”

Quanto ao requisito da atividade inventiva, o mesmo raciocínio


se aplica. A atividade inventiva não está na criação de termos ou
sinais visuais até então inexistentes, mas sim na utilização destes

126 FERREIRA. Waldemar. Tratado...ob. cit. Pg. 272.

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termos ou sinais visuais para a finalidade específica de identificação
de um produto ou serviço.

Por fim, importante ressaltar que a marca não pode conter,


em sua estrutura, informações falsas a respeito do produto ou
serviço que batiza ou do empresário que o produz, sob pena de
constituir-se em forma não de identificação do produto ou serviço
e sim de modalidade de fraude aos consumidores.

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