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História da educação na Alta Idade Média: a igreja retratada

nos livros didáticos


Elizabete Custódio da Silva Ribeiro*
Terezinha Oliveira**

Resumo

Neste trabalho, partindo do pressuposto de que é essencial à formação humana


compreender, sem preconceitos, as diferentes formas de ser e de pensar as relações
sociais ao longo da história, propõe-se realizar uma análise das informações encon-
tradas em alguns livros didáticos de 6ª e 7ª séries no que se refere ao medievo, em
especial, à Igreja, como instituição. O objetivo é refletir em que medida esses livros
têm contribuído para um melhor entendimento desse período histórico e para a
formação dos alunos do ensino fundamental. Tendo como fio condutor a própria
História, serão utilizadas, além dos livros didáticos, fontes primárias e intérpretes
do medievo. A Igreja, que em tais livros é apresentada como sinônimo de tirania
que perdurou por toda a Idade Média, foi a responsável por nortear uma sociedade
mergulhada no caos deixado pelo esfacelamento do Império Romano, tendo o mé-
rito de salvaguardar o conhecimento. É por esse importante papel desempenhado
nos primeiros séculos do medievo que essa instituição precisa ser conhecida.
Palavras-chave: História da Educação. Idade Média. Igreja. Livro didático.

1 INTRODUÇÃO

A Idade Média foi um período bastante singular e complexo da história.


Compreendê-la implica considerar que, por seus mil anos de história, perpassam

* Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de


Maringá; [email protected]
** Pós-doutora em Filosofia da Educação FE/USP; coordenadora do Programa de Pós-gra-
duação em Educação da UEM; Universidade Estadual de Maringá, Av. Colombo, 5790,
Bloco H35, sala 9, DFE, Campus Universitário, 87020-900, Maringá, Paraná; teleoliv@
gmail.com

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contínuas alterações nas formas de ser e de pensar as relações humanas. Em ou-


tras palavras, o medievo contém uma riqueza de acontecimentos concomitantes,
de construções e desconstruções humanas que, a nosso ver, não podem ser igno-
rados, sob pena de se chegar a conclusões equivocadas da história.
Nos livros didáticos que tivemos a oportunidade de analisar1, algumas
informações sobre a Igreja pareceram-nos equivocadas, despertando nossa in-
quietação. Por isso, tomando esses livros como objeto de análise e considerando
que eles são norteadores da formação dos alunos na disciplina de história, temos
como intuito, neste trabalho, promover uma reflexão a respeito do que neles se
afirma sobre o medievo, em especial, sobre a Igreja medieval.
Importa lembrar que, na educação atual, é atribuída grande importância
ao livro didático. Muitas vezes, ele é o único material utilizado por professores e
alunos, tanto na sala de aula quanto nas bibliotecas públicas.2 Por isso, entende-
mos que é importante abrir um diálogo e uma reflexão acerca da interpretação
sobre a Igreja medieval, avaliando se ela contribui ou não para o entendimento
das relações humanas do período.

2 UMA SÓ IGREJA SOB DOIS OLHARES DISTINTOS

De acordo com as leituras historiográficas, o papel da Igreja na organiza-


ção social da Alta Idade Média foi essencial. “[...] Ao cair o império e derrubadas
suas instituições civis, apenas permaneceu a Igreja como organização.” (ZILLES,
1996, p. 14). Conforme o autor, subsequentemente à queda do Império Romano
e em meio ao grande caos relacionado a esse acontecimento, a Igreja foi a única
instituição que se manteve em condições de proporcionar unidade aos homens
e que tinha um mínimo de organização para viabilizar a manutenção da vida e
reordenar a sociedade.
Ainda, a respeito do papel fundamental que a Igreja desempenhou nesse
momento, gostaríamos de acrescentar as palavras de Oliveira (2005, p. 19):

Tudo é novo e assustador nesse momento em que imperam a


violência e a força das hordas vindas do norte, por um lado, e,
por outro, a falta de regras, de leis no seio do que restara do
mundo romano. Esse novo conhecimento consegue se desen-

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volver e prosperar no seio dessa sociedade confusa por que


ela tem sua face. Sua base de conhecimento, o neoplatonismo
agostiniano, as traduções de Boécio, de autores pagãos, a Bíblia,
serão e estarão sempre presentes na sociedade, especialmente
nos mosteiros. Foram eles e neles que se preservaram os escri-
tos sagrados e profanos da Antiguidade.

A autora aponta para o papel dos mosteiros na preservação do conheci-


mento antigo e, portanto, para a organização da sociedade, destacando dois im-
portantíssimos pensadores desse período histórico: Santo Agostinho3 (séc. V) e
Boécio (séc. VI), cujas obras nos permitem entender que era preciso pensar na
formação e manutenção da reflexão humana, até para que os homens pudessem
se tornar cristãos.4 Em suma, não havia como formar uma sociedade sem, antes,
combater a violência, civilizar os homens.5
Teóricos como Agostinho e Boécio não foram somente representantes de
uma religião; eles se mostravam envolvidos com a sociedade. Podemos dizer que
foi graças a compromissos dessa envergadura que a Igreja pôde nortear a socie-
dade, ou seja, por meio da fé, pôde agregar os homens em torno de apenas um
ideal.6
Divergindo de Petta (1999, p. 41), que afirma que “A Igreja medieval ten-
tou tornar o mundo o mais simbólico possível, somente decifrável pelos homens
de fé [...]”, Oliveira (2005, p. 19) considera que a Igreja se preocupava em falar
“[...] o que o povo entendia e aceitava ouvir.” Segundo ela, essa instituição sina-
lizava para a possibilidade de convivência do que restara da aristocracia romana,
dos novos cristãos e dos povos nômades; procurava se fazer ouvir e explicar o
mundo de forma inteligível a todos, e não o contrário.
Em geral, as interpretações contidas nos livros didáticos aproximam-se da
visão de Petta, ou seja, da ideia de uma Igreja que já nasce fortalecida e voltada
para si mesma. É o que encontramos em Boulos Junior (1997, p. 149):

Muito antes da queda do Império Romano (século V), a Igreja


Católica já era uma instituição solidamente organizada. É por
isso, em parte, que conseguiu continuar crescendo mesmo
quando as invasões bárbaras desorganizaram completamen-
te a economia, a política e o quotidiano na Europa Ociden-
tal [...] Durante a Idade Média, a Igreja Católica continuou a
crescer e tornou-se a instituição mais poderosa do Ocidente.

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E isso só ocorreu porque, além de ser organizada, a Igreja era


uma instituição imensamente rica. Sua riqueza vinha, princi-
palmente, das doações de terra e dinheiro que recebia dos fi-
éis e dos tributos que cobrava dos servos nos seus gigantescos
feudos [...]

Essa ideia de Boulos Junior não tem respaldo no campo da historiografia.


Estudiosos do período medieval, como Guizot, Oliveira, Nunes, Duby, Gilson e
outros, afirmam que o sistema feudal foi um modelo social que vigorou entre os
séculos IX e XIII. Desse modo, no século V, a Igreja não poderia possuir nem os
gigantescos feudos, nem a riqueza ou o poder mencionados por Boulos Junior.
As grandes proporções que ela atingiu posteriormente ocorrem em virtude do
longo e difícil papel civilizatório desempenhado nos primeiros anos do medievo,
à semeadura que fez quatro séculos antes de existir o feudalismo.
Cabe aqui uma importante observação: os livros didáticos analisados fo-
ram estruturados de forma a apresentar os conteúdos referentes ao feudalismo7
sempre em primeiro plano. Dito de outro modo, primeiramente se fornecem in-
formações sobre o sistema feudal (de sua gênese até seu enfraquecimento) para
depois, e de forma muito superficial, descrever a ação da Igreja no período. Pen-
samos que esse é um problema estrutural, mas que pode ser um indício do por-
quê de a Igreja aparecer, constantemente, como a “[...] grande senhora feudal.”
(PILETTI; PILETTI, 1997, p. 178).
Vejamos duas passagens encontradas nos livros didáticos, nas quais o nas-
cimento do feudalismo remonta à ruína do Império Romano. A primeira: “A
partir do início da decadência do Império romano, um novo tipo de sociedade
começou a surgir: a sociedade feudal ou feudalismo [...]” (BONI; BELLUCI,
1989, p. 91); a segunda: “Recuando aos últimos séculos do Império Romano,
encontramos as origens do Feudalismo a partir da crise romana do século III
[...]” (PETTA, 1999, p. 38).
Essas duas passagens, de autores diferentes, revelam a concepção de que
o feudalismo é inerente à toda Idade Média, mas não são as únicas. Essa abor-
dagem do feudalismo, que, do nosso ponto de vista, é equivocada, também foi
encontrada em outros livros analisados, o que não quer dizer que seja regra.
Dos onze livros analisados, quatro remetem às origens do sistema feudal
ao século IX, mas somente um dos livros analisados, o de Vicentino (2002),

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História da educação na Alta Idade Média: a igreja retratada nos livros didáticos

aborda a importância da Igreja na Alta Idade Média, a teorização da doutrina


cristã por Santo Agostinho e os diferentes contornos que a Igreja assumiu ao
longo dos séculos, já na baixa Idade Média.
Ao se apresentar a Igreja como senhora feudal, como instituição sem tra-
jetória anterior ao feudalismo, compromete-se o entendimento de sua real ação
na sociedade do período denominado Alta Idade Média, retirando-se os homens
do processo de construção da história. Nesse caso, a Igreja aparece como insti-
tuição que nasce pronta, forte, sem ter enfrentado os grandes conflitos de cons-
trução da nova sociedade. É o que encontramos no livro Projeto Araribá (2006,
p. 17, grifo nosso), livro adotado para o ensino de história dos alunos de 6ª série
de escolas públicas, compondo a coleção PNLD 2008-2010: “A já poderosa Igre-
ja Católica, durante a Idade Média tornou-se a principal força política, cultural e
religiosa da Europa feudal [...]”
De fato, na análise que fizemos dos livros didáticos, Vicentino (2002) foi
uma exceção que encontramos no que diz respeito ao papel desempenhado pela
Igreja na Alta Idade Média. Em geral, a Igreja é lembrada como opressora e tira-
na, cuja atuação se estende a todo período que compreende a Idade Média.
Atentemos para as palavras de Campos (1991, p. 130):

Além de dar respostas às aflições da época e aos problemas do


além-túmulo, o Cristianismo passou a ser usado pelos reis e
grandes senhores como uma forma de dominar a massa da po-
pulação. Progressivamente a religião cristã passou a ser a forma
extremamente eficiente de controle dos corações e mentes, im-
pedindo qualquer forma de desobediência às classes dominan-
tes, que eram o clero e os grandes senhores. [...] Qualquer pes-
soa que vivesse naquela época estava obrigada ao batismo logo
depois do nascimento; receberia do clero ensinamentos sobre
o bem e o mal, teria como obrigatórios a missa dominical, o
casamento religioso e outras cerimônias. Os sinos das igrejas
marcavam as horas do dia e dos grandes acontecimentos. Esse
controle da vida cotidiana pela religião tornou o clero cada vez
mais poderoso.

O uso das palavras “dominar” e “controle”8 deixam transparecer a ideia de


que a Igreja atua por força de um desejo maligno e incontrolável de poder e ri-
queza, de que ela estaria muito longe do bem comum. No entanto, essa é uma

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Igreja que os primeiros séculos do medievo não conheceram. Além disso, não
podemos deixar de esclarecer que alguns rituais de vida cristã, aqui colocados
como obrigatórios, eram comuns no período, assim como, na atualidade, temos
os nossos rituais (o batismo e o casamento, por exemplo, ainda estão presentes
em nossa sociedade).
Em outro livro analisado, Cantele ([19--], p. 185-186) afirma que, na
Idade Média, as pessoas eram influenciáveis, emotivas, crédulas e de inteligên-
cia limitada. Possivelmente, o autor fez sua análise com os olhos do presente,
esquecendo-se de que cada momento vivido pelos homens tem seu próprio, e
específico, presente. De nosso ponto de vista, os homens medievais foram o que
a sociedade em que eles estavam inseridos lhes permitiu ser.
O que Oliveira (2005, p. 7) escreve favorece o entendimento da importân-
cia da Igreja nesse período e por que seu governo foi legítimo:

Podemos, por conseguinte, indagar os motivos do fato de a


Igreja poder governar soberanamente a sociedade medieva por
pelo menos cinco séculos. A nosso ver, a Igreja católica foi, do
início do século VI até meados do século XI, a única instituição
capaz de estabelecer princípios de governo seja porque era a
instituição mais organizada da sociedade em função, inclusi-
ve, do seu contato com o mundo romano, seja porque trazia
em seu seio o elemento fundamental para a preservação de
qualquer sociedade: o conhecimento. Esse conhecimento era
composto, por um lado, da herança do mundo antigo, por meio
da preservação de documentos e da cultura, e, por outro, a es-
sência da nova doutrina religiosa da sociedade, o cristianismo.
Era em seu meio que os homens nutriam o saber, a Filosofia
cristã/Escolástica. Foram, portanto, essas duas condições que
forneceram legitimidade à Igreja para governar. Foram os ho-
mens medievais que deram a esta instituição o governo que ela
passou a exercer. Não se trata, portanto, de uma força extrín-
seca e tirânica que a levou a usurpar um poder que não lhe era
devido.

Assim, podemos dizer que não foi a Igreja que tomou para si o poder, mas
este lhe foi concedido pela própria sociedade, à medida que essa instituição se
apresentava como a única com condições para responder pela organização social
naquele momento. A Igreja, ao estabelecer uma finalidade para a vida do homem

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na terra: a de conquistar o direito de moradia eterna – o céu, ensinou princípios


morais e normas de conduta e de bem viver social, tornando-se foco de luz em
meio à grande instabilidade que caracterizava o período. Nunes (1979, p. 63) ex-
põe a importância da Igreja para os primeiros séculos do medievo, enumerando
algumas de suas conquistas:

Em primeiro lugar, a Igreja proibiu que o escravo fosse vendido


a pagãos ou a judeus, para que não imolasse aos seus deuses
ou não o obrigassem a abjurar a sua religião. 2) Protegeu-lhe a
vida, identificando ao assassino e ferindo com a excomunhão
o senhor que o matasse num movimento de cólera. Deu-lhe a
família, declarando indissolúvel o casamento, mesmo contra a
vontade do senhor. 3) Conservou-lhe a pátria e o lar, proibindo
vendê-lo além das fronteiras, o que parece ter sido o destino or-
dinário dos escravos germânicos outrora. 4) Restituindo-lhe a
dignidade de cristão, concedendo-lhe o repouso do Domingo e
reivindicando a sua liberdade contra o senhor que queria forçá-
lo a trabalhar no dia do senhor.

Assim, Nunes (1979) nos proporciona a ideia de como algumas regras,


fundamentais para a existência e manutenção de qualquer sociedade, foram cria-
das e cumpridas. Como resultado disso, a sociedade principiou a pensar para
além de sua sobrevivência, ou seja, pôde se desenvolver e, em consequência,
questionar-se a respeito da própria existência.
É nesse momento, com o desenvolvimento da sociedade e com os questio-
namentos a respeito de si e da fé cristã, que a Igreja principia a se tornar autoritá-
ria. Contudo, essa atitude evidenciou-se quatro séculos depois de seu surgimen-
to como instituição, e não caracteriza sua atuação na Alta Idade Média.
Outro equívoco ensinado aos alunos e que se relaciona com a descrição
da Igreja descrita como instituição forte e autoritária, que mantém seu poder
por meio da opressão desde o início da Idade Média, é que ela aparece sempre
como a grande detentora de todo o poder – temporal e espiritual. Ora, autori-
dades no campo da pesquisa histórica afirmam que, oficialmente, esta fusão de
poderes (temporal e espiritual) efetivou-se com a promulgação do Dictatus Pa-
pae (1074/1075), um documento composto de 27 proposições que atribuem à
Igreja a autoridade soberana sobre toda a sociedade, inclusive sobre os senhores
feudais e imperadores.

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O movimento de Reforma da Igreja, realizado por Gregório VII, constitui


um marco, um sinal de que a Igreja, questionada em suas bases, principia a ser
tirana:

Desse modo, somente a partir do momento em que esse poder


não responde “naturalmente” aos anseios da sociedade é que o
seu governo começa a ser questionado e, concomitantemente,
principia a assumir a forma tirânica. Com efeito, o governo da
Igreja passa a ser questionado no momento em que as novas for-
ças sociais foram capazes de responder pela sociedade. É o caso
dos grandes senhores feudais, no século XI; as cidades e o co-
mércio, nos séculos XII e XIII; as Universidades, no século XIII,
e, ao mesmo tempo, internamente, os representantes da Igreja
deixaram de se vincular e se interessar pelos problemas sociais.
Ao contrário, estavam mais voltados para os seus problemas par-
ticulares. Reside, pois, nesses dois elementos, o surgimento de
novas forças sociais com possibilidades de assumir o governo e
na própria crise interna da Igreja, no seu isolamento da socieda-
de, o aparecimento, de um lado, de críticas e oposição à Igreja e,
de outro, uma ação autoritária dela para conservar-se no poder,
como, por exemplo, a promulgação da Dictatus Papae e o surgi-
mento das três ordens sociais. (OLIVEIRA, 2005, p. 8).

Segundo Oliveira (2005), a Igreja medieval tem dois momentos distintos:


no primeiro, ela é a base da sociedade, que lhe concede o poder; no segundo,
em razão das profundas mudanças que ocorreram na sociedade e em face da
nova forma de ser social que surgiu, ela luta, com todos seus instrumentos, para
manter esse poder.
Quando a Igreja passa a ter seu governo questionado, como vimos na cita-
ção anterior, torna-se necessário criar teorias legitimadoras desse poder. Como
exemplo, podemos citar Adalberon, que teoriza a respeito da composição da so-
ciedade em três ordens,9 como explica Gumieri (2003, p. 84):

Segundo a interpretação de Duby, Adalberón conseguiu esta-


belecer, pela primeira vez no interior da Idade Média, sua teo-
rização dos segmentos sociais, apontando a cada um deles qual
era o papel a desempenhar: os servos por condição social “na-
tural” trabalham para a Igreja e o senhor, os bellatores protegem
com sua atividade guerreira todos os segmentos da sociedade

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e os oratores também cuidam de todos, pois sua função é orar


para que Deus perdoe os pecados, criando, assim, uma explica-
ção da sociedade, baseada na trifuncionalidade.

Esta “trifuncionalidade” da sociedade não precisou ser pensada anterior-


mente, já que as necessidades básicas, ou seja, a sobrevivência dos homens não
estava sendo suprida. Contudo, estabelecida a paz, criam-se espaços para que os
indivíduos e a sociedade se desenvolvam, criam-se, também, novas forças so-
ciais, novos espaços de poder (como os que estão e serão ocupados pelos senho-
res feudais e príncipes).
Outro importante pensador convocado a teorizar a respeito do governo da
Igreja e, também, a legitimar a existência de Deus foi Anselmo de Bec, teólogo
e filósofo do século XI. As ideias expressas por esse filósofo cristão revelam que
o governo da Igreja não é mais aceito como “natural” pela sociedade e que uma
nova interpretação de mundo se faz necessária.
Toda discussão anselmiana gira em torno da ideia de que Deus criara to-
das as coisas, mas, ao conceder ao homem o dom da razão, deu-lhe, também, a
capacidade de discernir bem e mal, de atuar na construção de sua vida e de seu
meio social. Essa é uma leitura nova de mundo, que aponta para uma indepen-
dência maior do homem em relação à Igreja.
Em suma, é somente a partir desse momento, e não na Alta Idade Média, a
saber, entre os séculos V e IX, que, questionada em suas bases, a Igreja afasta-se
de seus preceitos e vai se tornando autoritária.

3 CONCLUSÃO

Baseando-nos no que disseram os próprios autores do período, bem como


nas autoridades da historiografia contemporânea e comparando esses resultados
com as leituras e análises que realizamos dos livros didáticos, podemos concluir
que a forma como a Igreja tem sido retratada nestes últimos, sem uma trajetória
historicamente construída, explica que a sua importante contribuição seja es-
quecida ou equivocadamente compreendida.
A história mostra-nos que a Igreja não foi um entrave à sociedade, pelo
contrário, foi essencial para dissipar o caos e direcionar o desenvolvimento das

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relações humanas por vários séculos do medievo. A Igreja é uma instituição hu-
mana, que, ao longo dos anos, com o conjunto da sociedade, sofreu as vicissitu-
des da vida, porém sem sua ação, possivelmente a cultura e o conhecimento não
teriam sobrevivido e chegado até a atualidade.
Ao final, gostaríamos de ressalvar que, em alguns livros didáticos, encon-
tramos a preocupação de retratar a Idade Média com o olhar da história, sem
juízos de valores, mas esse procedimento, infelizmente, não é o mais frequente.
Pensamos que o conteúdo predominante nos livros didáticos precisa ser
objeto de uma profunda reflexão, porque contribui para que os alunos mante-
nham uma visão negativa de Idade Média negativa, criem novos preconceitos
e se distanciem da possibilidade de entender a própria história de nossa época.
Enfim, é necessário apresentar os conteúdos de maneira que leve os alunos a ver
o passado como referência, como fonte abundante de exemplos a ser, ou não,
seguidos.

History of education in the upper middle ages: church


shown through didactic books

Abstract

Based on the assumption that understanding the different forms of being and thinking
the social relations throughout history, without any sort of prejudice, is essential for
the human formation, the main objective of the present study is to perform an analysis
of the information available in didactic books, used in the 6th and 7th grade of regular
school, in what refers to medievo, especially regarding church as an institution. The
aim is to reflect upon how such books have contributed to provide a better understan-
ding on that historical period, and have contributed to the current student’s formation.
Having history as guiline for understanding, and in addition, to didactic books, other
primary sources and interpreters of medievo were used to carry out the study. Accor-
ding to our point of view, the church, which is portrayed in such books as a synonym of
a tyranny that lasted throughout the Middle Ages, was the responsible for directing a
society then plunged into chaos by the destruction of the Roman Empire, thus having
the merit of safeguarding the knowledge that, consequently, reached the contemporary

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society. Therefore, it is through such relevant role, played in the first centuries of medie-
vo, that church, as an institution, must be known.
Keywords: History of education. Middle Ages. Church. Didactic book.

Notas explicativas

1
Analisamos onze livros didáticos que, em geral, foram adotados pela rede pública e parti-
cular de ensino no município de Maringá - PR, entre os anos de 1989 e 2002, todos da 7ª
série do ensino fundamental, da disciplina de História – Antiga e Medieval. Alguns deles
não aparecem nas referências porque estavam bastante destruídos e sem capa. Tivemos
a oportunidade de conversar com adolescentes que, atualmente, frequentam a 6ª e a 7ª
série do ensino fundamental, os quais afirmam que o conteúdo ensinado em 2007/2008
é o mesmo contido nos livros do período por nós analisado. Importa acrescentar que o
livro Projeto Araribá compõe a coleção adotada pelo PNLD (Ministério da Educação)
para direcionar o ensino de História nas escolas públicas até o ano de 2010.
2
É importante lembrar que, em relação às fontes de pesquisa dos alunos, muitos preferem
usar a internet, e não a biblioteca, porém no conteúdo on-line, também se encontram
muitas interpretações equivocadas da história.
3
Embora Santo Agostinho seja um grande teórico, legitimador da Igreja como instituição
e que propôs um governo baseado no bem comum dos homens, foi mal interpretado no
livro didático escrito por Campos (1991, p. 155): “Santo Agostinho, principal pensador
da Igreja na Alta Idade Média, sombrio e pessimista, via nos homens criaturas que, sem
Deus, tenderiam inevitavelmente para o mal.” Pensamos que não foi Agostinho um pessi-
mista, ele simplesmente retratou a vida real dos homens do seu presente.
4
Santo Agostinho diz o que Santo Anselmo depois reafirma: o crer para compreender e o
compreender para crer, ou seja, fé e razão precisam atuar conjuntamente.
5
São Jerônimo (séc. IV), outro importante pensador, falava primeiro de comportamentos
(como comer e/ou se vestir), de moral, de virgindade e de vícios, ou seja, de como tornar
o homem civilizado, para que, posteriormente, ministrasse instruções religiosas.
6
O ideal cristão é o de procurar viver de forma a ser digno da morada eterna – o céu.
7
Fourquin (1987, p. 11) descreve as relações feudais como uma organização muito parti-
cular das relações entre os homens: “[...] laços de dependência de homem para homem
estabelecendo uma hierarquia entre os indivíduos. Um homem, o vassalo, confia-se a ou-
tro homem, que escolhe para seu amo, e que aceita esta entrega voluntária. O vassalo deve
ao amo fidelidade, conselho, ajuda militar e material. O amo, o senhor, deve ao seu vassalo
fidelidade, protecção, sustento. O sustento pode ser assegurado de diversas maneiras. Ge-
ralmente faz-se através da concessão ao vassalo de uma terra, o benefício ou feudo.”
8
Nos livros didáticos analisados, é comum encontrarmos as palavras controle e domina-
ção. A sensação que fica é a de que nenhum pensamento, com exceção da Igreja, poderia
ter existido naquele período.

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9
A teoria das três ordens, nos livros didáticos, também aparece como inerente a todo me-
dievo, expressando, desse modo, um único modelo de homens para esses mil anos de his-
tória da humanidade. Duby (1992), em sua obra intitulada As três ordens ou o imaginário
do Feudalismo, analisa essa teoria, enfatizando que ela é válida para três (XI, XII e XIII)
dos dez séculos de Idade Média.

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Recebido em 29 de julho de 2008


Aceito em 22 de setembro de 2008

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