Bellouesus 13 Ebdrc o Mito
Bellouesus 13 Ebdrc o Mito
Bellouesus 13 Ebdrc o Mito
CLÍNIAS: Bem, senhor, não pensais que a existência dos deuses é uma
verdade fácil de explicar?
ATENIENSE: Como?
CLÍNIAS: Bem, apenas olha para a terra e o sol e as estrelas e o universo
em geral; observa a procissão maravilhosa das estações e o seu arranjo em
anos e meses!
Platão, Cratilo1
Esse fragmento do diálogo escrito pelo filósofo grego nos dá uma pista da
origem da primeira experiência do homem com o sagrado. A ordem silenciosa da
Roda de Prata e o curso das estrelas que a seguem representam tanto os elementos
mais elevados da criação quanto sua base mais fundamental e mais segura. A
regularidade do giro da roda é reconfortante para os seres vivos apanhados no caos
da Vida e submetidos à ira imprevisível do Altíssimo. As diferentes peças que se
repetem diante dos olhos do homem podem ser vistas como um sinal que guia sua
caminhada no tempo: o passar dos dias, dos meses e dos anos oferece-lhe a visão de
uma cena da peça que se desenrola no palco da natureza. A observação dessa peça
é, no entanto, desconcertante. É somente através de uma longa reflexão, quando
cada uma de suas cenas foi vista inúmeras vezes e cada um de seus detalhes foi
aprendido, que ele pode começar a interpretá-la e ver seu significado.
1 Tradução em português: Platão, “Leis”, X, 885e-886a); original grego: “Κλεινίας: οὐκοῦν, ὦ ξένε,
δοκεῖ ῥᾴδιον εἶναι ἀληθεύοντας λέγειν ὡς εἰσὶν θεοί; Ἀθηναῖος: πῶς; Κλεινίας: πρῶτον μὲν γῆ καὶ
ἥλιος ἄστρα τε καὶ τὰ σύμπαντα, καὶ τὰ τῶν ὡρῶν διακεκοσμημένα καλῶς οὕτως, ἐνιαυτοῖς τε καὶ
μησὶν διειλημμένα: καὶ ὅτι πάντες Ἕλληνές τε καὶ βάρβαροι νομίζουσιν εἶναι θεούς.”
2 Tradução em português: Platão, “Epinomis”, 982c-d; original grego: “τοῖς δὲ ἀνθρώποις ἐχρῆν
τεκμήριον εἶναι τοῦ νοῦν ἔχειν ἄστρα τε καὶ σύμπασαν ταύτην τὴν διαπορείαν, ὅτι τὰ αὐτὰ ἀεὶ
πράττει διὰ τὸ βεβουλευμένα πάλαι πράττειν θαυμαστόν τινα χρόνον ὅσον, ἀλλ᾽ οὐ
μεταβουλευόμενον ἄνω καὶ κάτω, τοτὲ μὲν ἕτερα, ἄλλοτε δὲ ἄλλα πρᾶττον, πλανᾶσθαί τε καὶ
μετακυκλεῖσθαι.”
comandante de um navio”.3 O que é verdade para o capitão é, no entanto, também
verdade para todo homem, cuja vida está presa no fluxo do tempo, no girar da roda.
As forças em jogo nos céus são as mais visíveis e, portanto, as primeiras a ser
reconhecidas pelo homem. Vistas de qualquer parte da terra, por todo homem,
durante toda a vida, e apesar disso, ainda inacessíveis, as forças celestes são as
primeiras a ser identificadas como sendo maiores que o próprio homem. Essas
forças naturalmente passam a estar ligadas à origem e ao destino do homem, fato já
conhecido pelo filósofo grego: “Parece-me que os primeiros habitantes da Grécia
acreditavam apenas naqueles deuses em que muitos estrangeiros ainda acreditam
hoje – Sol, Lua, Terra, Estrelas e Céu”. As forças da natureza passam assim a ser
identificadas como “deuses”, mas isso não implica que esses deuses fossem os da
mitologia grega. Ao dar um nome a diferentes partes da natureza, o homem rompe
sua unidade para compreendê-la e trazê-la para seu mundo. O aparecimento do
primeiro “deus” marca o início da luta do homem para compreender a essência da
natureza e a essência de seu próprio ser. Quando criou a palavra “deus”, ele não
sabia o que essa palavra realmente designava, e milhares de anos de uso dessa
palavra podem ter levado os homens mais longe de uma resposta. Concentrando sua
reflexão na própria palavra, os homens tendem a esquecer o impulso que os levou a
criá-la. A criação do primeiro “deus” foi de fato uma pergunta e não uma resposta:
uma maneira de o homem cristalizar o temor fugaz experimentado enquanto
contemplava a grandeza da natureza e da essência do ser.
Quando o alemão diz: O céu masculino [der Himmel]. A terra feminina [die
Erde]. O espaço masculino [der Raum]. O tempo feminino [die Zeit]. Quão
longe então se está realmente para, a partir disso, expressar conceitos
espirituais através de divindades masculinas e femininas? Fica-se quase
tentado a dizer: a própria linguagem é apenas mitologia desbotada; o que
a mitologia ainda conserva em diferenças vivas e concretas só se conserva
na linguagem nas diferenças abstratas e formais. 4
3 Tradução em português: Platão, “República”, 488d; original grego: “τοῦ δὲ ἀληθινοῦ κυβερνήτου
πέρι μηδ᾽ ἐπαΐοντες, ὅτι ἀνάγκη αὐτῷ τὴν ἐπιμέλειαν ποιεῖσθαι ἐνιαυτοῦ καὶ ὡρῶν καὶ οὐρανοῦ καὶ
ἄστρων καὶ πνευμάτων καὶ πάντων τῶν τῇ τέχνῃ προσηκόντων, εἰ μέλλει τῷ ὄντι νεὼς ἀρχικὸς
ἔσεσθαι, ὅπως δὲ κυβερνήσει”.
4 Schelling, “Historical-Critical Introduction to the Philosophy of Mythology”, p. 40; original alemão:
“Wenn die deutsche sagt : der Himmel, de Erde ; der Raum, die Zeit : wie weit ist es von da noch bis
zu dem Ausdruck geistiger Begriffe durch männliche und weibliche Gottheiten. Beinahe ist man
versucht zu sagen : die Sprache selbst sei nur die Verblichene Mythologie, in ihr sei nur in abstrakten
und formellen Unterschieden bewahrt, was die Mythologie noch in lebendigen und concreten
bewahre.” De: Schelling, “Sämmtliche Werke: Bd. Einleitung in Die Philosophie Der Mythologie”, p.
52.
A linguagem inicia o transporte dos deuses, das partes mais altas do céu e das
partes mais profundas da terra até a vizinhança dos homens. A imaginação do
homem, no entanto, logo assume a liderança na criação de uma mitologia. O jogo da
natureza, com seu arranjo harmonioso de forças frouxamente definidas, é
lentamente substituído por um teatro, onde deuses antropomórficos são os atores
de uma peça que espelha a vida do homem.
O mito está sempre conosco. Nossa linguagem encontra suas raízes em mitos
antigos, representações poéticas da natureza que surgiram do assombro inspirado
pelo céu, a terra, o sol, as estrelas, os animais e os mares.
6 Original francês: “chaque élément du monde (microcosme) fonctionne selon les mêmes lois que
l’univers entier (macrocosme) et toute description de l’un s’applique aussi aux autres.” De: Sterckx,
“La mythologie du monde celte”, p. 135.
7 Tradução em português de: Heidegger, “Contributions to Philosophy”, pp. 325-326; original alemão:
“Der letzte Gott hat seine einzigste Einzigkeit und steht außerhalb jener verrechnenden Bestimmung,
was die Titel ‘Monotheismus’, ‘Pantheismus’ und ‘Atheismus’ meinen . . . Die Vielheit der Götter ist
keiner Zahl unterstellt, sondern dem inneren Reichtum der Gründe und Abgründe in der
Augenblicksstätte des Aufleuchtens und der Verbergung des Winkes des letzten Gottes.” De:
Heidegger, “Beiträge zur Philosophie”, p. 411.
É através da apropriação da tensão entre Escuro e Claro que o último deus
pode ser chamado, e sua antevisão percebida. Quando o homem tiver feito sua
grande luta, ele poderá então começar a se apropriar da essência de seu próprio ser
e do ser em si mesmo. Só então ele poderá pavimentar o caminho para a chegada do
último deus, cujo advento dependerá da capacidade do homem de propagar o evento
da apropriação do ser entre sua própria espécie.
A narração do mito central da Gália que virá a seguir deve, portanto, ser
tomada como um convite a levantar o véu sobre a ligação entre a vida humana e a
essência da natureza, o giro da roda que nos leva em sua rotação. O que importa não
é se esse mito representa ou não uma reconstrução fiel daquele que foi contado
pelos Druidas da Gália: o que importa é que essa (re)construção pode nos ajudar a
reapropriar a essência da poesia e, em última análise, nos ajudar preparar-nos para
a chegada do último deus. Esta releitura do mito se abre com o que provavelmente
seria seu mais importante pilar: a história que espelha o ciclo anual.