Serie-Monografias-29 - Andressa C Schneider - COMPLETA
Serie-Monografias-29 - Andressa C Schneider - COMPLETA
Serie-Monografias-29 - Andressa C Schneider - COMPLETA
Andressa C. Schneider
JUSTIÇA FEDERAL
Conselho da Justiça Federal
Centro de Estudos Judiciários
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL
Andressa C. Schneider
CONSELHO EDITORIAL DO CEJ
Presidente
Ministro Raul Araújo
Diretor do Centro de Estudos Judiciários
Membros
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Superior Tribunal de Justiça
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Superior Tribunal de Justiça
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Superior Tribunal de Justiça
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Tribunal Regional Federal da 5ª Região – Recife-PE
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Seção Judiciária do Estado de Santa Catarina
Juíza Federal Vânila Cardoso André de Moraes
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Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Desembargador Pedro Manoel Abreu
Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina
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Universidade de São Paulo-USP – São Paulo-SP
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Diretor da Fundação Getúlio Vargas – FGV Direito – Rio de Janeiro-RJ
Desembargador Federal Edilson Pereira Nobre Júnior
Tribunal Regional Federal da 5ª Região
Ministro Og Fernandes
Superior Tribunal de Justiça
Brasília-DF, dezembro de 2017 29
Andressa C. Schneider
Copyright © Conselho da Justiça Federal
É autorizada a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte.
As opiniões expressas pelos autores não são necessariamente reflexo da
posição do Conselho da Justiça Federal.
EQUIPE EDITORIAL
ISBN 978-85-8296-022-6
Ficha catalográfica elaborada por Maria Aparecida de Assis Marks – CRB 1/1590
Mais les enfants ce sont les mêmes,
a Paris ou à Göttingen.
Barbara
AGRADECIMENTOS
Esta tese, como qualquer trabalho acadêmico, é uma obra coletiva. Diversas
instituições e pessoas estiveram ao meu lado para que ela fosse realiza-
da. Dessa forma, é imprescindível que elas sejam nomeadas e recebam
minha gratidão. À Universidade Federal do Rio Grande do Sul e à Justus-
Liebig-Universität agradeço pela oportunidade ímpar de aperfeiçoamento.
À Universidade de São Paulo agradeço pela oportunidade de participar do
curso de verão sobre Direito Econômico e por permitir a consulta franca
ao acervo das suas bibliotecas jurídicas. Também às Universidades Goethe,
de Frankfurt, Ruprecht-Karls, de Heidelberg, e Unige, de Genebra, agrade-
ço por disponibilizarem suas bibliotecas à pesquisa. À Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior agradeço pelo apoio finan-
ceiro durante o período de pesquisa em Gießen, proporcionado pela partici-
pação em uma pesquisa coletiva desenvolvida no âmbito do Probral II, pro-
grama que envolveu, também, o Deutscher Akademischer Austauschdienst.
Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande
do Sul agradeço por oportunizar o período sabático para que eu pudesse
me dedicar ao Doutorado. Agradeço, especialmente, ao Professor Doutor
Augusto Jaeger Junior pela orientação e pelo auxílio constantes. Se denken ist
danken, os pensamentos expostos nesta tese são, também, um agradecimen-
to por seu trabalho. Agradeço, igualmente, ao Professor Doutor Christoph
Benicke pela acolhida e por todo o apoio durante o período de pesquisa
na Alemanha. Sou grata, ainda, aos Professores Doutores Bruno Nubens
Barbosa Miragem, Marcelo Schenk Duque e Cristiano Heineck Schmitt, que
integraram a banca de qualificação, pela paciência de ler esta tese quando
ainda deveras incipiente e pelas contribuições inestimáveis. À Professora
Doutora Claudia Lima Marques agradeço pelas lições inesquecíveis trans-
mitidas em suas aulas e em sua obra. Mais do que lições sobre o Direito
do Consumidor, elas são lições sobre o humanismo. À Rafaela Fetzner Drey
agradeço pelo auxílio na tradução de alguns termos ingleses tricky, pelo
compartilhamento de livros e pela companhia em nossos encontros via
Skype. À Deborah Salomão, Ardyllis Soares e Laurício Pedrosa, doutoran-
dos que estiveram comigo durante a estadia em Gießen, agradeço pelos
momentos de alegria, pelas discussões inspiradoras e pela amizade eterna
com que me presentearam. À Heike e Peter Kiewert agradeço pela recepção
em Feucht, pelos passeios nos arredores e pelo apoio. Ao Leo agradeço pela
companhia em Gießen em todas as oportunidades possíveis, pelos diálogos
em alemão para que eu pudesse aprimorar meus conhecimentos naquela
língua que, afinal, fez com que nos encontrássemos, pelas discussões insti-
gantes e sugestões sempre bem-vindas e, o mais importante, por estar sem-
pre comigo. Por fim, mesmo sabendo que palavra alguma poderia expressar
com fidelidade a gratidão devida, agradeço aos meus avós, Nila e Norberto,
e à tia Sita, que é como se fosse uma avó, e a meus pais, Ana e Claudio, pelo
apoio e, claro, pela companhia em Gießen que tornou meus dias muito mais
felizes. Ao meu irmão, Douglas, também agradeço pelos dias com que me
brindou com sua companhia e pelo convívio, desde sempre.
SOBRE A AUTORA
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AC Ato de Concentração
ACC Acordo em Controle de Concentração
1 A Lei n. 12.529/2011 tem por finalidade prevenir e reprimir as infrações contra a ordem econô-
mica. Ela estabelece a forma de implementação da política de concorrência no País, dispondo
sobre a competência das autarquias e órgãos encarregados de zelar pela prevenção e repressão
de abusos do poder econômico.
21
2 Mesmo que o caráter regulador da concorrência não tenha se manifestado de forma substancial
desde o início da trajetória do CADE, que muitas vezes apresentou um papel de mero “expecta-
dor” de condutas ou de “chancelador” de alterações estruturais, sua evolução, desde a década
de 1960, é considerável, como demonstram as alterações legislativas ocorridas no período e o
aprimoramento da técnica concorrencial verificada na jurisprudência daquela autarquia, o que
também repercutiu na produção acadêmica e na expertise profissional.
3 Uma das três linhas de pesquisa atualmente mantidas pelo PPGD da Faculdade de Direito da
UFRGS. As outras duas são: (i) fundamentos teórico-filosóficos da experiência jurídica e (ii) fun-
damentos da integração jurídica. Informações disponíveis no site daquele Programa (UFRGS).
lecem os arts. 5o, XXXII, e 170, V, da Constituição da República Federativa
do Brasil (CRFB/88), além de um postulado4 a orientar expressamente a
aplicação da Lei n. 12.529/2011.
O trabalho parte, ainda, da observação de uma característica pe-
culiar do Direito da Concorrência, qual seja, a diversidade5 controversa
(PFEIFFER, 2015, p. 99) de objetivos centrais (core goals) que ele apresenta
e a multiplicidade (FORGIONI, 2012, p. 236) de interesses que ele prote-
ge, materializada sobretudo na intenção derradeira de proteger o consu-
midor e os concorrentes (elementos subjetivos), além da própria concor-
rência (elemento objetivo), como instituição de Direito da Concorrência
(ou Antitruste) (KOPPENSTEINER, 20146), por meio da prevenção e da re-
pressão às infrações contra a ordem econômica.
Por conseguinte, o trabalho considera a existência de uma confluência
explícita entre o Direito da Concorrência e o Direito do Consumidor, o que
demanda uma abordagem dialética das políticas públicas7 relacionadas
à defesa da concorrência e à defesa do consumidor para assegurar-lhes
4 Os postulados, que funcionam diferentemente dos princípios e das regras, são normas que orien-
tam a aplicação de outras. Ademais, enquanto aqueles são primariamente dirigidos ao Poder
Público e aos contribuintes (rectius: administrados), os postulados são frontalmente dirigidos ao
intérprete e aplicador do Direito. (ÁVILA, 2014a, p. 164).
Robert Bork afirma que “despite the obtrusive importance of this issue, the federal courts in over eighty years
have never settled for long upon a definitive statement of the law’s goals. Today the courts seem as far as ever from the
necessary clarity of purpose. A survey of judicial opinions, not to mention the surrounding confusion of scholarly and
professional commentary, is likely to leave the impression that antitrust is a cornucopia of social values, all of them
rather vague and undefined but infinitely attractive”. Em tradução livre: apesar da importância indiscreta
desta questão, os tribunais federais em mais de 80 anos nunca decidiram definitivamente sobre
os objetivos da lei. Hoje os tribunais parecem tão longe como sempre da clareza necessária ao
propósito. Um levantamento de opiniões judiciais, para não mencionar a confusão em torno de
comentários acadêmicso e profissionais, é provável que deixe a impressão de que o Antitruste
é uma cornucópia de valores sociais, todas elas bastante vagas e indefinidas, mas infinitamente
atraentes. (BORK, 1993, p. 50).
22 6 Palestra realizada em evento organizado pela Faculdade de Direito da Universidade de Salzburg
em 5/11/2014 e compartilhada pelo palestrante, como manuscrito, com a autora.
7 Adota-se, neste trabalho, a definição proposta por Juarez Freitas, para quem as políticas públi-
cas constituem “programas que o Poder Público, nas relações administrativas, deve enunciar e
implementar de acordo com prioridades constitucionais cogentes, sob pena de omissão especí-
fica lesiva. Ou seja, as políticas públicas são assimiladas como autênticos programas de Estado
(mais do que de governo), que intentam, por meio de articulação eficiente e eficaz dos atores
governamentais e sociais, cumprir as prioridades vinculantes da Carta, de ordem a assegurar, com
hierarquizações fundamentadas, a efetividade do plexo de direitos fundamentais das gerações
presentes e futuras”. (FREITAS, 2014, p. 32)
eficácia recíproca. Além disso, o trabalho parte da constatação da existên-
cia de um reconhecimento doutrinário parcial envolvendo a possibilidade
de o consumidor titularizar direitos, no âmbito da Lei n. 12.529/2015, em
três situações específicas, no âmbito das infrações da ordem econômica,
o que destoa da proteção tradicionalmente oferecida ao consumidor pelo
Direito da Concorrência que, em regra, é considerada indireta8, mediata9.
A partir disso, a tese sustentada neste trabalho pretende verificar se
o direito fundamental e o princípio constitucional da defesa do consumi-
8 Como apontam Calixto Salomão Filho (2013, p. 105, 107), Heloisa Carpena (2005, p. 258), Roberto
Pfeiffer (2015, p. 151) e Paula Forgioni (2012, p. 246), entre outros.
9 Para Paula Forgioni, “nas leis antitruste, a tutela do consumidor é mediata, ao passo que a livre
iniciativa e a livre concorrência são bens imediatamente tutelados”. (FORGIONI, 2012, p. 246).
12 Dispõe o art. 5o, § 2o da CRFB/88: os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil seja parte.
13 Dispõe o art. 7o do CDC: os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de
tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna or-
dinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como
dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade.
Nesta tese, pretende-se, em suma, pensar o papel exercido pela “li-
vre concorrência” na implementação do valor, da regra14 e do superprin-
cípio (Übergrundrecht) da dignidade da pessoa humana, cerne do sistema
jurídico, dado que a proteção da dignidade da pessoa humana não pode
encontrar lacunas. Com isso, ela pretende contribuir, também, para a com-
preensão do papel do consumidor no âmbito concorrencial, consideran-
do que “atribuir direitos não é ajustar as pessoas a papéis adequados à
sua natureza; é deixar que elas escolham sozinhas os próprios papéis”
(SANDEL, 2014a, p. 248).
A partir, então, das premissas (hipóteses) de que (i) o consumidor é
passível de titularizar direitos concorrenciais, como ocorre em pelo me-
nos três hipóteses, relacionadas a infracões da ordem econômica, e de
que (ii) esse reconhecimento pode ser eventualmente ampliado a fim de
permitir a configuração de um “direito à concorrência”, apresentam-se os
seguintes problemas que definem a pesquisa aqui descrita e que consti-
tuem sua linha vermelha (roter Faden):
a. em que medida o consumidor é protegido pelo Direito da
Concorrência?
b. Em que consiste a proteção indireta conferida ao consumidor pela
Lei n. 12.529/2011?
c. Pode-se falar em uma proteção direta do consumidor pela Lei n.
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
12.529/2011?
d. O consumidor é passível de titularizar direitos na Lei n. 12.529/2011?
e. Em que dispositivos da Lei n. 12.529/2011 identificam-se direitos
passíveis de serem titularizados pelo consumidor? Em todas as hipóteses
de infrações da ordem econômica ou apenas naquelas já reconhecidas
pela doutrina?
f. Em caso afirmativo, qual é a eficácia jurídica desses dispositivos?
24 g. Há a possibilidade de desvirtuar-se o núcleo conceitual da defesa
da concorrência?
h. Existe um direito à concorrência? Qual é a natureza deste direito?
14 A norma da dignidade da pessoa humana é tratada como regra e como princípio, prevalecendo
contra os princípios colidentes, segundo Robert Alexy. (ALEXY, 2015, p. 111).
i. Presumindo-se que sim e identificando-se a presença de direito
subjetivo no âmbito concorrencial, quais as implicações jurídicas dessa
possibilidade, em face dos concorrentes e à instituição concorrencial?
j. A legislação, a doutrina e a jurisprudência nacional e internacional
admitem essa possibilidade, que amplia o rol de direitos do consumidor?
k. Havendo ampliação do rol de direitos subjetivos, como solucionar
a eventual propositura de demandas em massa, por consumidores, com
fundamento no mesmo direito à concorrência? Pode-se falar em aplica-
25
15 O que Fabio Nusdeo (2013, p. 1200), por exemplo, expressamente reconhece.
19 Embora a expressão consagrada pela Constituição seja “defesa do consumidor”, pensa-se que a 27
expressão mais apropriada e completa seria “proteção e defesa do consumidor”, a partir da con-
sideração de que a “proteção” (Schutz) é um ato preventivo, ativo, enquanto a “defesa” (Abwehr),
um ato repressivo, reativo.
20 A propósito, o item 8 da Resolução n. 39/248 da ONU fala do papel das pesquisas em universida-
des no que tange ao desenvolvimento de políticas relacionadas à defesa do consumidor, litteris:
“8. The potential positive role of universities and public and private enterprises in research should be considered when
developing consumer protection policies”. Em tradução livre: 8. O potencial papel positivo das universi-
dades e de empresas públicas e privadas em pesquisa deveria ser considerado ao se desenvol-
verem políticas de defesa do consumidor. (UNITED NATIONS, 2003)
CAPÍTULO 1
cada com apenas três ingredientes, quais sejam, água, malte de cevada
e lúpulo, em reação às deturpações constatadas à época no processo de
fabricação da cerveja. Além disso, a maior parte do texto da Reinheitsgebot
tratava do controle de preços. Assim, além de motivações locais, essa pre-
ocupação com o tabelamento pode estar relacionada ao prelúdio da cha-
mada “Revolução dos Preços” que afetou a Europa Ocidental entre o fim
do século XV e o começo do século XVII (FISHER, 1989).
30 Como muitas dessas regras, que inspiram o legislador até hoje, cau-
sassem problemas de acesso ao mercado (barreiras à entrada) e limitação,
enfim, da liberdade de concorrer (FORGIONI, 2012, p. 47), pelo monopólio
21 É interessante observar que, nas cidades diocesanas, os bispos faziam reinar a moral católica
e, dessa forma, impunha-se aos vendedores a prática de um justum pretium que não se poderia
exceder sem que se caísse em pecado. (PIRENNE, 2012)
que as corporações representavam, houve a necessidade de repensá-las
a partir da crise do sistema político medieval, para a qual colaboraram
fatores como as Cruzadas, o rompimento das barreiras do Mediterrâneo,
o desenvolvimento das cidades e as manifestações do espírito burguês
e da economia mercantil e capitalista (MIRANDA, 2002, p. 36). Mesmo
assim, ainda durante o Mercantilismo, diversos problemas “concorren-
ciais” foram agravados pela consolidação de monopólios exercidos pe-
los Estados-nação recém-formados ou por particulares (já que a política
22 Historicamente, o processo pelo qual a burguesia se tornou, no decorrer do século XVIII, a clas-
se politicamente dominante abrigou-se atrás da instalação de um quadro jurídico explícito, co-
dificado, formalmente igualitário, e através da organização de um regime de tipo parlamentar
e representativo. Todavia, o desenvolvimento e a generalização dos dispositivos disciplinares
constituíram a outra vertente, obscura, desse processo. Havia, paralelamente, sistemas de mi-
O pensamento liberal propõe a defesa de liberdades e de direitos in-
dividuais23 (há, nesse contexto, uma sacralização da propriedade privada,
por exemplo) e considera a existência de uma ordem natural passível de
assegurar a harmonia espontânea do mercado. A partir da regra do laissez-
-faire24 e da existência de uma ordem natural que convém não contrariar, o
liberalismo se opõe ao Mercantilismo.
Desse modo, o aspecto político desse olhar que privilegia o indiví-
duo pode ser sintetizado pela ideia de abstenção, de redução ao mínimo
das funções estatais. O viés econômico, por sua vez, pode ser identificado
pela ideia da “mão invisível” (SMITH, 1987), pela qual os interesses indi-
viduais seriam guiados na direção mais favorável aos interesses de toda a
sociedade (DROUIN, 2014, p. 16). Por fim, o viés jurídico pode ser repre-
sentado pelo postulado da autonomia da vontade, já que o Estado não
deveria intervir nas relações obrigacionais dos particulares, mas permitir
a ampla liberdade contratual (MARQUES, 2014, p. 248).
Já o Estado social (Sozialstaat) é um conceito gestado a partir das revol-
tas e tentativas de revolução europeias25 que agitaram o século XIX. Ele
remonta a algumas iniciativas legislativas ocorridas no Reino da Prússia26
e propõe, resumidamente, a integração das classes sociais menos favo-
recidas, evitando a exclusão e a marginalização pela compensação das
desigualdades e pela redistribuição da renda por meio da justiça fiscal e
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
23 Esses direitos individuais envolvem, por exemplo, a proteção contra a privação arbitrária da li-
berdade e da propriedade, a inviolabilidade do domicílio e o segredo de correspondência. Além
disso, são exemplos das liberdades econômicas e políticas a liberdade de iniciativa, a liberdade
32 de atividade econômica, a liberdade de eleição da profissão, a livre disposição sobre a proprie-
dade, além das liberdades de associação, de reunião, de formação de partidos, de opinar, o
direito de votar, o direito de controlar os atos estatais etc. (TAVARES, 2012, p. 502)
24 Expressão que significa “não intervenção» ou «não interferência». Recorde-se a fórmula atribuída
ao fisiocrata Vincent de Gournay (1712-1759): «laissez faire les hommes, laissez passer les marchandises”,
que significa “deixai os homens fazer, deixai passar as mercadorias”. (DROUIN, 2014, p. 19, 20)
25 Pode-se citar como exemplo emblemático a Comuna de Paris, de 1871. Depois, já no século XX, o
Estado social afirmou-se como resposta à Revolução Mexicana, de 1910, e à Revolução Russa, de 1917.
26 Cita-se, por exemplo, a Allgemeines Landrecht für die Preußischen Staaten, de 1794.
vezes o Estado social e a economia social de mercado com o Estado de
bem-estar social (Wohlfahrtsstaat). Todavia, há entre eles uma diferença su-
til, pois do Estado social deriva um princípio (Sozialstaatprinzip), enquanto
o Estado de bem-estar social (também chamado de Estado-providência)
vincula-se, originalmente, a políticas públicas. Assim Pierre Rosanvallon:
O Estado social, que seria aprofundado por Otto von Bismarck27, chan-
27 Embora a Inglaterra houvesse promulgado, em 1601, a Lei dos Pobres (Poor Relief Act), tornando o
Estado, pela primeira vez, prestador de assistência aos que não tivessem condições de garantir
a própria subsistência, observa-se que, preocupado com os movimentos sociais que exigiam do
Estado ações voltadas à proteção da classe trabalhadora, Otto von Bismarck, chanceler alemão,
desenhou o primeiro modelo de seguro social, que visava proteger os trabalhadores em situa-
ção de necessidade. Para realizar o custeio (financiamento) estabeleceu-se que contribuiriam os
próprios trabalhadores, as empresas e o Estado: em 15/6/1883, promulgou-se a lei que criava o
seguro obrigatório contra doenças e, em 6/11/1884, foi aprovada a lei que instituía o seguro obri-
gatório contra acidentes de trabalho. (KONKEL JUNIOR, 2005, p. 32, 34) 33
28 Mas, segundo Eric Hobsbawm, “com exceção dos românticos que viam uma estrada reta levan-
do das práticas coletivas da comunidade aldeã russa a um futuro socialista, todos tinham como
igualmente certo que uma revolução da Rússia não podia e não seria socialista. As condições
para uma tal transformação simplesmente não estavam presentes num país camponês que era
um sinônimo de pobreza, ignorância e atraso, e onde o proletariado industrial, o predestinado
coveiro do capitalismo de Marx, era apenas uma minúscula minoria, embora estrategicamente lo-
calizada. Os próprios revolucionários marxistas russos partilhavam dessa opinião. Por si mesma,
a derrubada do czarismo e do sistema de latifundiários iria produzir, e só se poderia esperar que
produzisse, ‘uma revolução burguesa’”. (HOBSBAWM, 1995, p. 64)
em 1917, em que o proletariado reivindicava a repartição da riqueza gerada
desde a Revolução Industrial, o que representou uma ameaça ao controle
do Estado pela burguesia, que se viu impelida a fazer concessões.
Nesse contexto, com o advento do Estado social – que significa ajuda
para quem necessita por parte daqueles que podem prestá-la – além de
direitos de defesa do cidadão diante do Estado (conquistas do Estado
liberal), que são direitos a ações negativas (abstenções) do Estado, há o
reconhecimento de direitos a ações positivas realizadas pelo Estado, di-
reitos a receber prestações do Estado, os assim chamados direitos presta-
cionais29. Não por acaso, as Constituições mexicana, de 1917, e de Weimar,
de 1919, trazem em seus textos, pela primeira vez, direitos sociais30. Além
disso, a percepção de que a propriedade privada apresentava uma função
social, interessando à coletividade foi, pela primeira vez, positivada, des-
tacando-se a Constituição de Weimar, que, em seu art. 153, última alínea,
dispunha: “a propriedade obriga. Seu uso deve igualmente ser um serviço
ao bem comum31”32.
Foi a partir do primeiro Pós-guerra que começaram a surgir33, nas
Constituições, capítulos destinados a legitimar princípios e regras que, di-
reta ou indiretamente, indicavam determinados fins ou metas a balizarem
os resultados ou o desempenho da atividade econômica (CANOTILHO;
MOREIRA, 2007, p. 941), uma expressão formal da “Constituição econômi-
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
29 Esse tema (que envolve verificar se as disposições de direitos fundamentais devem “adscrever”
normas que conferem direitos prestacionais) é, aliás, segundo Robert Alexy, um dos mais discu-
tidos na dogmática atual dos direitos fundamentais. (ALEXY, 2012, p. 383)
30 Surge o constitucionalismo social, cujo primeiro exemplo, no Brasil, foi a Constituição de 1934,
que dedicou um capítulo à ordem econômica e social. (BARROSO, 2015, p. 90)
31 Conforme Chantal Mouffe (1999, p. 72), antes da época moderna, a comunidade se organizava em
torno de uma única ideia de bem comum substancial, não se distinguia realmente entre ética e
política e se subordinava a política ao bem comum. Com o surgimento do indivíduo, a separação
34
da Igreja e do Estado, o princípio da tolerância religiosa e o desenvolvimento da sociedade civil,
instalou-se uma divisão entre o político e o que terminou por converter-se na esfera da moral. As
crenças morais e religiosas são agora assunto privado sobre o qual o Estado não pode legislar, e o
pluralismo é um rasgo decisivo da democracia moderna, ou seja, a democracia que se caracteriza,
segundo a autora, pela ausência de bem comum substancial.
32 No original: „Eigentum verpflichtet. Sein Gebrauch soll zugleich Dienst sein für das Gemeine Beste.“
33 Mas, conforme Gilberto Bercovici, “a Constituição Econômica não é uma inovação do ‘constitucio-
nalismo social’ do século XX, mas está presente em todas as Constituições, inclusive nas liberais
dos séculos XVIII e XIX”. (BERCOVICI, 2005, p. 32)
ca” (BERCOVICI, 2005, p. 33). Surgia, aí, aliás, o próprio Direito econômi-
co, um Direito excepcional, de guerra, marcado pela intervenção estatal
(ARIÑO ORTIZ, 1999, p. 11), que, inobstante isso, sobreviveu às circuns-
tâncias históricas que motivaram sua aparição, já que, concluída a guerra
que assolara a Europa entre 1914 e 1918, a nova regulação mostrou-se
oportuna para a ordenação da atividade econômica do primeiro Pós-
guerra (GALÁN CORONA, 1985, p. 7).
Um marco, nesse contexto, foi a Constituição de Weimar, que deu origem
Assim, se, hoje, por um lado, o Estado social está em crise porque
não pode cumprir seus compromissos, além de estar em falência concei-
tual, como demonstram seus pensadores e teóricos (ARIÑO ORTIZ, 1999,
34 O termo “economia social de mercado” consta inclusive do Tratado de Lisboa (Tratado da União
Europeia), conforme o disposto no art. 3°, item 3. (UNIÃO EUROPEIA, TRATADO DE LISBOA)
p. 103), e o Estado de bem-estar social, que chegou ao fim do século XX
amplamente questionado em sua eficiência tanto para gerar e distribuir
riquezas como para prestar serviços públicos (BARROSO, 2015, p. 90), é
alvo de críticas do discurso neoliberal e está em declínio35, por outro lado,
pode-se afirmar que o Estado contemporâneo é, fundamentalmente, um
Estado implementador de políticas públicas (GRAU, 1995, p. 59) e, nesse
sentido, ainda um Estado social em que government by policies vai além do
government by law do liberalismo (BERCOVICI, 2005, p. 57). Desse modo,
ainda que exista um consenso de que o Estado não cumpre a contento
suas funções, isso não significa que é necessário diminuir sua presença
ou, mesmo, destitui-lo de suas funções. Implica atribuir-lhe outra função,
talvez mais onerosa: fazer algo que o particular e o mercado jamais farão;
incumbe-lhe redistribuir. Em suma, trata-se de um Estado que deve ba-
sear sua gestão em valores36, e não em objetivos econômicos (SALOMÃO
FILHO, 2002, p. 41).
35 Destaca-se que, conforme Gilberto Bercovici, não é o fato de não termos alcançado um Estado
de bem-estar social que nos impede de construir um Estado que possa superar a barreira do
subdesenvolvimento. (BERCOVICI, 2005, p. 67)
37 Assim dispõe a UWG § 1 „Wer im geschäftlichen Verkehre zu Zwecken des Wettbewerbes Handlungen vor-
nimmt, die gegen die guten Sitten verstoßen, kann auf Unterlassung und Schadensersatz in Anspruch genommen
werden“. (ALEMANHA, GESETZ...)
em comunicações e em transporte proviram a infraestrutura necessária
para habilitar o setor empresarial a atender aos mercados urbanos em
crescimento (FOX, 2012, p. 3).
Não por acaso, as ferrovias foram o primeiro setor a enfrentar proble-
mas concorrenciais, visto que elas demandavam investimentos iniciais al-
tos. Para compensar o elevado capital e os custos operacionais, as empre-
sas ferroviárias disputavam grandes volumes de negócios a preços baixos.
Muitas vezes, ferrovias apresentavam taxas diferenciadas, com preços me-
nores para grandes carregadores de volume e longas viagens. Como respos-
ta à competição pelo menor preço, as empresas ferroviárias formaram pools
ou cartéis que se tornaram sistemas dominantes em nível regional (IDEM).
Como os pools fossem acordos instáveis, algumas corporações proemi-
nentes se voltaram para uma forma de acordo nova e mais sofisticada, o trust,
criado quando um número de corporações, anteriormente membros de um
pool, depositavam suas ações em um conselho de administração (board of trus-
tees) recebendo, em retorno, certificados confiáveis (trust) de valor equivalen-
te. Com isso, algumas corporações realizavam acordos verticais, integrando a
produção e a distribuição, desde a obtenção da matéria-prima até o forneci-
mento de sistemas de marketing estruturados. Standard Oil, o mais conhecido
dos grandes trusts, formou-se em 1882, capturando com sucesso a indústria de
petróleo e mantendo seu controle por muitos anos (IDEM, p. 3-4).
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38 É interessante notar, nessa perspectiva histórica, que a Liga Hanseática foi uma aliança de cida-
des mercantis que estabeleceu e manteve um monopólio comercial sobre quase todo o norte da
Europa e o Mar Báltico, em fins da Idade Média e começo da Idade Moderna (entre os séculos
XIII e XVII). De início com caráter essencialmente econômico, desdobrou-se posteriormente em
uma aliança política, o que demonstra a recorrência da transformação do poder econômico em
poder político, fato que, hoje, é perceptível no lobby intenso que grandes grupos econômicos re-
alizam, nas mais diversas democracias, o que torna esse um tema contemporâneo sensível, alvo
da Economia Política.
os trabalhadores, recém-organizados em sindicatos. O tema das conse-
quências econômicas e sociais de acordos como os trusts afetou, enfim, a
opinião pública (CARREIRA, 1992, p. 29), que passou a clamar por medidas
capazes de contê-los. Sobre esse tema, falar-se-á no próximo tópico.
39 O poder de monopólio é um tipo de falha de mercado. Ele envolve situações em que um pro-
dutor tem a capacidade de restringir o produto e elevar preços acima do nível de concorrência.
A teoria econômica mostra que essa não é uma solução Pareto-ótima e, portanto, não é um re-
sultado eficiente. Quando o monopólio ou o oligopólio são resultantes da presença de subaditi-
vidade de custos, um grande número de concorrentes não é possível nem tampouco desejável.
O mercado não comporta um grande número de firmas operando em escala e escopo eficientes.
Entretanto, se a indústria for controlada por um monopolista ou por um pequeno grupo de gran-
des empresas, qual a garantia de que o consumidor se beneficiará dos custos menores? Tal resul-
tado não estará garantido pela força da concorrência. (FARINA; AZEVEDO; SAES, 1997, p. 118-119)
40
40 Segundo a tradição dos países do common law.
41 A seção 1 do Sherman Act proíbe contratos e conspirações que restringem o comércio e prescreve
prisão e multa para violadores. A seção 2 proíbe tentativas ou monopolização de fato de “qual-
quer parte do comércio entre vários estados ou entre nações estrangeiras” (uma posição de mo-
nopólio por si não é ilegal). Além disso, a lei traz as próprias penalidades criminais, que podem
incluir prisão de até três anos. (MOTTA; SALGADO, 2015, p. 3-4)
42 The Clayton Act addresses specific practices that the Sherman Act does not clearly prohibit, such as mergers and
interlocking directorates (that is, the same person making business decisions for competing companies). Section 7
of the Clayton Act prohibits mergers and acquisitions where the effect “may be substantially to lessen competition,
1914, e Federal Trade Commission Act43, também em 1914). Nesse contexto, é
interessante observar que, ao introduzir o Sherman Antitrust Act, em 1889,
o senador John Sherman afirmava que “the purpose of the bill was to contain the
concentration of economic power”44. Não por acaso, os primeiros anos de apli-
cação do Sherman Act foram marcados pela repressão contra empresas de
grande dimensão relativa que haviam adquirido essa posição em grande
parte por meio de fusões e aquisições ocorridas em época anterior, em
que não havia controle algum, e que, na maioria dos casos, haviam se
or to tend to create a monopoly.” As amended by the Robinson-Patman Act of 1936, the Clayton Act also bans
certain discriminatory prices, services, and allowances in dealings between merchants. The Clayton Act was amended
again in 1976 by the Hart-Scott-Rodino Antitrust Improvements Act to require companies planning large mergers
or acquisitions to notify the government of their plans in advance. The Clayton Act also authorizes private parties
to sue for triple damages when they have been harmed by conduct that violates either the Sherman or Clayton
Act and to obtain a court order prohibiting the anticompetitive practice in the future. Em tradução livre: A Lei
Clayton aborda práticas específicas que a Lei Sherman não proíbe claramente, como fusões e di-
reções interligadas (isto é, o fato de a mesma pessoa tomar decisões de negócios para empresas
concorrentes). A seção 7 da Lei Clayton proíbe fusões e aquisições em que o efeito “pode ser
substancialmente diminuir a concorrência, ou tender a criar um monopólio.” Conforme alterado
pela Lei Robinson-Patman, de 1936, a Lei Clayton também proíbe certos preços discriminatórios,
serviços e subsídios nas relações entre os comerciantes. A Lei Clayton foi alterada novamente
em 1976 pela Hart-Scott-Rodino Antitrust Improvements Act para exigir das empresas que pla-
41
nejam grandes fusões ou aquisições que notifiquem o Estado de seus planos com antecedência.
A Lei Clayton também autoriza particulares a processar por danos triplos quando eles foram
lesados por um comportamento que viola tanto a Lei Sherman ou Clayton e para obter uma
ordem judicial que proíbe a prática anticompetitiva no futuro. (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA,
FEDERAL...)
43 O ato criou uma agência para investigar e ordenar “métodos competitivos desleais”. (FOX, 2012,
p. 42)
44 Em tradução livre: o objetivo do projeto de lei era conter a concentração de poder econômico.
(FOX, 2012, p. 6)
diciais nesse âmbito (os concorrentes desde sempre o puderam fazer)
(SCHAUMBURG, 2006, p. 24).
Além disso, o Direito da Concorrência europeu também reflete as
preocupações da sociedade europeia da segunda metade do século XX,
quais sejam, justiça social, bem-estar do consumidor, ausência de explo-
ração etc., tornando-se um motor da integração europeia (STUYCK, 2005,
p. 6), tanto que o objetivo de instituir um sistema comunitário de defesa
da concorrência é afirmado com a entrada em vigor do Tratado de Roma
(COMUNIDADE ECONÔMICA EUROPEIA, 1957), de 1957, que instituiu a
Comunidade Econômica Europeia (CEE)45. De acordo com o art. 3o, alínea
“f” desse Tratado, a ação da CEE implicaria, entre outros, “um regime que
garanta que a concorrência não seja falseada no mercado comum”. A pro-
pósito, sobre esse contexto histórico, Jürgen Basedow observa que «de
façon générale, on peut constater, après la seconde guerre mondiale, dans beaucoup de
pays, une activité législative dans le domaine des restrictions à la concurrence. Ces lois
règlent des faits qui relèvent du droit privé» (BASEDOW, 1997, p. 29)46.
Mais atualmente, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
(TFUE) define os princípios do Direito da Concorrência que vigoram en-
tre os Estados-membros da UE e a competência para a atuação compar-
tilhada47 entre a Comissão − e, na Comissão, a principal responsável pela
aplicação das regras da concorrência é a Direção-Geral da Concorrência
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45 Pode-se afirmar que, enquanto a edição do primeiro marco legal estadunidense, o Sherman Act,
de 1890, liga-se ao Estado social, as primeiras iniciativas legislativas europeias envolvendo a ma-
téria relacionam-se com o Estado de bem-estar social, que tem o Plano Marshall, de 1947, como
42
ponto de referência histórica.
46 Em tradução livre: em geral, pode ser constatada, após a Segunda Guerra Mundial, em muitos
países, uma atividade legislativa em matéria de restrições à concorrência. Essas leis disciplinam
os fatos que sobressaem do direito privado.
48 Art. 101°: 1. São incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre empre-
sas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam
susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objectivo ou
efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno, designadamente as que
consistam em:
a) Fixar, de forma directa ou indirecta, os preços de compra ou de venda, ou quaisquer outras
condições de transacção;
b) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos;
c) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento;
49 Art. 102o: É incompatível com o mercado interno e proibido, na medida em que tal seja susceptível
de afectar o comércio entre os Estados-Membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de 43
forma abusiva uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste.
Estas práticas abusivas podem, nomeadamente, consistir em:
a) Impor, de forma directa ou indirecta, preços de compra ou de venda ou outras condições de
transacção não equitativas;
b) Limitar a produção, a distribuição ou o desenvolvimento técnico em prejuízo dos consumidores;
c) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equi-
valentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência;
d) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de pres-
tações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm
ligação com o objecto desses contratos.
(art. 106 do TFUE) e (iv) o controle dos auxílios estatais (previsto no art.
107 do TFUE).
Mais tardiamente, a disciplina concorrencial tem surgido em países em
desenvolvimento, onde muitas vezes ainda está em estágio embrionário,
como demonstra, por exemplo, o caso chinês50, no que tange à Ásia, e o
caso paraguaio51, no que tange à América Latina. No Brasil, a trajetória do
desenvolvimento do Direito da Concorrência será analisada no tópico 1.4.
Pelo exposto, observa-se que, gradualmente, o Direito Antitruste
transforma-se em Direito da Concorrência, já que sua pretensão não mais
se resume à repressão de trusts e de outras formas empresariais semelhan-
tes. Em síntese, pode-se dizer que o Direito da Concorrência, que se torna
intervencionista (SALOMÃO FILHO, 2013, p. 240) ao garantir a preservação
da “dinâmica concorrencial”, pretende corrigir a lex mercatoria (FORGIONI,
2013, p. 780). Suas pretensões se tornam complexas e passam a contem-
plar diversos objetivos; aos poucos, assenta-se a ideia de instrumentali-
dade da concorrência, considerada um valor que deve ser protegido no
quadro de um sistema jurídico marcado por direitos e liberdades funda-
mentais (CORDEIRO, 2005a, p. 10).
50 A lei chinesa denomina-se “Lei Antimonopólio” (LAM). Ela entrou em vigor em 1o de agosto de
2008, como noticia a professora da Universidade de Macau, Wei Dan (2012, p. 237 -266)
b) A Escola neoclássica
A Escola neoclássica surgiu na década de 1870, a partir das obras
de William Jevons e Léon Walras. Os economistas neoclássicos consegui-
ram mudar o nome da disciplina, da tradicional “Economia Política” para
“Teoria econômica”, a fim de que esta fosse despojada de aspectos polí- 45
52 Ou, na versão contemporânea, de Steve Jobs: “but in the end, for something this complicated, it’s really
hard to design products by focus groups. A lot of times, people don’t know what they want until you show it to them”.
Em tradução livre: mas, no final, para algo tão complicado, é realmente difícil projetar produtos
por grupos definidos. Muitas vezes, as pessoas não sabem o que querem até que você mostre a
elas. (REINHARDT, 1998)
Na economia neoclássica, o sistema econômico é concebido como
uma rede de trocas, impulsionada, em última instância, por escolhas feitas
pelos consumidores “soberanos” (tema sobre o qual se discorrerá adian-
te). Ela enfatiza o papel das condições da demanda (derivada da avalia-
ção subjetiva realizada pelo consumidor) ao definir o valor de um bem
ou de um serviço. O valor (chamado pelos neoclássicos de preço) de um
produto não depende apenas do tempo de trabalho despendido na pro-
dução (teoria do valor-trabalho), mas do quanto o produto é valorizado
pelos potenciais consumidores (IDEM, p. 115-116).
A Escola neoclássica desenvolveu, ainda, duas ideias centrais da
Escola clássica: a ideia segundo a qual (i) os agentes econômicos são
movidos pelo interesse próprio, mas a concorrência no mercado garan-
te que suas ações produzam um resultado socialmente benigno, e (ii) os
mercados se autoequilibram, de forma que o capitalismo (ou a economia
de mercado, como essa escola o chama) não demanda atitudes externas
(IDEM, p. 117). Vilfredo Pareto, por exemplo, argumentava que, se se res-
peitarem os direitos de cada indivíduo soberano, é possível considerar
que uma mudança social foi válida apenas quando ela melhora condições
de um grupo sem piorar as de nenhum outro, o que se conhece como cri-
tério de Pareto, que hoje constitui a base das avaliações sobre melhorias
sociais na economia neoclássica, que tem um viés conservador (IDEM, p.
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115-116).
Um marco importante, nesse contexto, foi o surgimento da Economia
do bem-estar (welfare economics), ou a abordagem do fracasso do mercado,
desenvolvida na década de 1920 por Arthur Pigou, em que se verificou
que os efeitos de algumas atividades econômicas não recebem um preço
no mercado e, assim, não têm reflexo nas decisões econômicas – o que se
conhece como “externalidade” (que pode ser negativa, caso da poluição,
46 ou positiva, caso das atividades de pesquisa e desenvolvimento), um tipo
de falha de mercado (IDEM, p. 118).
c) A Escola austríaca
Se nem todos os economistas neoclássicos defendem o livre mer-
cado, é verdade que nem todos os economistas do livre mercado são
neoclássicos: os adeptos da Escola austríaca são defensores ainda mais
apaixonados do livre mercado do que a maioria dos seguidores da Escola
neoclássica. (CHANG, 2015, p. 131)
A Escola austríaca foi iniciada por Carl Menger no fim do século XIX.
Ludwig von Mises, Friedrich von Hayek, Joseph Schumpeter ampliaram
a influência da escola, que se tornou conhecida (MÖLLER, 2008, p. 86)
principalmente quando Hayek publicou, em 1944, a obra “O caminho da
servidão” (HAYEK, 1977).
Embora destaquem a importância do indivíduo, para os teóricos aus-
d) A Escola de Freiburg
Na União Europeia, o desenvolvimento do Direito da Concorrência
está historicamente relacionado à teoria ordoliberal que se desenvolveu,
nos anos 1930, na Escola de Freiburg (GERBER, 1998, p. 232). A teoria
ordoliberal trata-se de uma teoria neoliberal cujas teses foram formula- 47
das pelo economista Walter Eucken e pelos juristas Franz Böhm e Hans
Grossmann-Doerth, pertencentes a um grupo acadêmico que realizou um
projeto de pesquisa interdisciplinar ligado à reconstrução das Ciências
Econômica e Jurídica.
A Escola de Freiburg realiza uma crítica das condições que levaram a
Alemanha, no período entreguerras, a permitir o desenvolvimento de uma
profusão de cartéis53, já que, desde fins do século XIX e até as vésperas da
Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi chamada de “país dos cartéis”,
de tal forma eram eles aceitos ou, mesmo, estimulados como veículo para
a conquista de mercados externos (NUSDEO, 2002, p. 64).
Os membros da Escola de Freiburg atribuíam as deficiências das con-
dições econômicas, jurídicas e políticas dominantes à época ao colapso
do equilíbro entre o Poder Público (que havia sido tomado pelo nazismo)
e o poder privado (que havia sido apropriado por grupos influentes e por
conglomerados industriais altamente integrados e cartelizados). Uma re-
forma futura (após a queda desejada do regime nazista) teria, então, de
concentrar-se em um arranjo institucional que efetivamente equilibrasse
os poderes público e privado (BEHRENS, 2014).
A escola ordoliberal sustenta como ponto de partida a hipótese de
que, na regulação da economia, o Estado está vinculado a dois modelos
(ordens econômicas) predeterminados, incompatíveis entre si: o modelo
de economia de administração centralizada ou de planejamento e o mo-
delo de economia de mercado (REICH, 1985, p. 37). A propósito, segundo
o economista John Kenneth Galbraith, nos países industriais contempo-
râneos existiriam, por ironia, dois sistemas econômicos operando para-
lelamente: o das pequenas e médias empresas, operando em um siste-
ma de mercado (em que há concorrência), e o das grandes corporações,
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54 Segundo aponta o dicionário, Wettbewerb significa „zentrales Lenkungs– und Ordnungselement in einer
Marktwirtschaft, in der sich Unternehmen auf dem Markt als Konkurrenten gegenüberstehen. Der W. dient der
Auslese und der Leistungssteigerung sowie optimaler Lösung wirtschaftl., gesellschaftl. und wiss. Aufgaben; er genießt
daher gesetzl. Schutz (Kartellrecht u.a.).“ (GROßES LEXIKON, 1996, p. 887-888). Já o termo Konkurrenz
significa „1) Gegnerschaft, Rivalität, (wirtschaftl.) Wettbewerb. – 2) sportl. Wettkampf.”(IDEM, p. 485).
de de associação. Por condições jurídicas de regulação entende-se o exercí-
cio de uma política estatal antimonopólio ativa, objetivando a realização de
uma concorrência perfeita. Segundo Walter Eucken isso se reflete na proibi-
ção de formação de cartéis e em uma vigilância estrita de qualquer forma de
monopólio, que deve ser desmantelado ou submeter-se às condições que
existiriam em uma situação de concorrência. É aí que está a originalidade da
Escola de Freiburg: o reconhecimento da tarefa específica que tem o Estado
de lutar contra o poder de mercado (REICH, 1985, p. 38).
Nesse contexto, o poder de mercado caracterizaria algo a ser combatido,
pois indicaria um mercado injusto e, consequentemente, incapaz de fomen-
tar a integração social. (GERBER, 1998, p. 241) Portanto, ao invés de persegui-
rem apenas uma economia social (soziale Wirtschaft), os teóricos ordoliberais
passaram a defender uma economia social de mercado (soziale Marktwirtschaft).
Assim, a Escola de Freiburg argumentava a favor de proibições nor-
mativas para situações de cartel e, no que tange a posições dominantes,
seus teóricos sugeriam a existência de controle por uma agência estatal
(especialmente onde o poder de mercado fosse o resultado inevitável do
êxito do agente empresarial em dado mercado ou da situação fática, no
caso de um monopólio natural), o que poderia significar até mesmo a dis-
solução, a fragmentação dos agentes empresariais, por meio da aplicação
de medidas de desconcentração (BEHRENS, 2014).
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56 Para uma crítica e informações sobre a influência da teoria ordoliberal na política econômica
alemã do Pós-guerra, veja-se Foucault (2008, p. 139 e ss).
do pelas Escolas de Harvard e de Chicago, cujas características principais
serão vistas a seguir.
e) A Escola de Harvard
O Antitruste ganhou contornos acadêmicos próprios nos EUA, a partir
dos anos 1950, por meio do pensamento proposto pela Escola de Harvard,
onde floresceu a teoria estruturalista57, que desenvolveu um modelo que
interliga as estruturas, as condutas e o desempenho, o chamado paradig-
ma Estrutura-Conduta-Desempenho (ECD)58: a estrutura do mercado in-
fluencia a conduta que influencia o desempenho (FOX, 2012, p. 57).
Esse paradigma analisa as características dos agentes econômicos
presentes no mercado para avaliar sua performance, supondo para tanto que
as condutas das empresas (firmas, no jargão econômico) são condiciona-
das pela estrutura anteriormente existente (GAMA, 2005, p. 7). Entendia-
se, à época, que as influências eram fortes e, muitas vezes, determinantes
(FOX, 2012, p. 57).
Dessa forma, a perspectiva concorrencial elaborada considerando
os preceitos dessa escola preocupa-se, sobretudo, com o aumento da
concentração do mercado e com a presença de barreiras à entrada (de no-
vos concorrentes, os entrantes). Há um temor em relação às estruturas de
mercado caracterizadas pela presença de monopólios e oligopólios que,
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
52
57 Que não se confunde com a corrente científica do estruturalismo, que se desenvolveu nos anos
1960 sobretudo na França. Para os estruturalistas, o mais importante não é a mudança ou a trans-
formação de uma realidade, mas a estrutura ou forma que ela tem no presente. Influenciados
pelo estruturalismo, vários filósofos franceses como Michel Foucault, Jacques Derrida e Gilles
Deleuze admitiram que a razão é histórica – isto é, muda temporalmente –, mas essa história
não é cumulativa, evolutiva, progressiva e contínua. Pelo contrário, é descontínua, se realiza por
saltos e cada estrutura nova da razão possui um sentido próprio, válido apenas para ela. (CHAUI,
2012, p. 104 e 105).
58 A primeira referência ao modelo ECD foi feita por Edward Mason, em artigo publicado em 1939.
com baixo poder de decisão e influência sobre preços, como sintetizam
Phillip Areeda e Donald Turner, fundadores da literatura ECD: “the competi-
tive market is one in which power is not unduly concentrated in the hands of one or a few
firms”59. Paula Forgioni recorda, a propósito, que o emblema estruturalista
é uma estrutura mais pulverizada, “evitando-se as disfunções no merca-
do” (FORGIONI, 2012, p. 166).
Com efeito, considera-se que, em um mercado concentrado (estru-
tura), onde as empresas têm poder de decidir o preço cobrado pelo pro-
f) A Escola de Chicago
Em artigo seminal, de 1956, Aaron Director e Edward Levi apresen-
taram muitas ideias características do que se convencionou chamar de 53
59 Em tradução livre: mercado competitivo é aquele em que o poder não esteja indevidamente
concentrado nas mãos de uma ou poucas empresas. (GAMA, 2005, p. 7)
central problems in the field of antitrust as yet unsettled and pressing for solution concern
size, abuses and collusion” (DIRECTOR; LEVI, 1956, p. 296)60.
Segundo Richard Posner, a abordagem da Escola de Chicago é cética
sobre a gravidade do perigo à concorrência de uma ação unilateral de uma
empresa (firma), unilateral no sentido de não requerer a cooperação com
os concorrentes (mas que normalmente requer cooperação com clientes
ou fornecedores). A abordagem enfatiza tanto a dificuldade de haver da-
nos à concorrência causados por esses meios como o perigo de que a
aplicação heavy-handed61 da legislação antitruste possa suprimir uma práti-
ca que, embora pareça anticompetitiva, na verdade é eficiente (POSNER,
2001a, p. 251).
Dessa forma, a Escola de Chicago pode ser caracterizada por dois
adágios, quais sejam, less is more e size matters: estruturas concentradas62, se
resultarem em uma economia de recursos que compense seus eventuais
efeitos anticompetitivos63, não deveriam ser coibidas. Propõe-se, então,
a análise do efeito líquido resultante da comparação entre os ganhos de
eficiência gerados e as perdas potenciais ou reais decorrentes de efeitos
anticompetitivos (GAMA, 2005, p. 10). Dessa forma, a Escola de Chicago
atenta-se sobretudo à redução dos custos de produção, a partir da qual
haverá um reflexo nos preços que, menores, beneficiarão o consumidor.
Considera-se, assim, que a Escola de Chicago rompeu com a tradição
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
60 Em tradução livre: “os problemas centrais no domínio da defesa da concorrência que ainda são
incertos e pressionam por solução envolvem tamanho, abusos e conluio.”
61 Em um viés liberal, já que, segundo Frank Easterbrook, “markets themselves are organized”.
54
(EASTERBROOK, 1984, p. 1)
62 Segundo Easterbrook, “the goal of antitrust is to perfect the operation of competitive markets. What does this
mean? A “competitive market” is not necessarily the one with the most rivalry moment-to-moment”. Em tradução
livre: o objetivo de Antitruste é aperfeiçoar o funcionamento dos mercados competitivos. O que
isso significa? Um “mercado competitivo” não é necessariamente aquele com a maior rivalidade
momento a momento. (EASTERBROOK, 1984, p. 1)
63 As concentrações (e o poder econômico que delas deriva) não são vistas como mal a ser evitado,
os acordos verticais passam a ser explicados em termos de economia de custos de transação,
eficiências e ganhos para os consumidores. (FORGIONI, 2012, p. 170)
reforçada em um quadro caracterizado por um menor número de empre-
sas que sejam, cada uma delas, de maior dimensão e capazes de um de-
sempenho mais eficiente se comparado a um cenário pulverizado por um
vasto número de empresas de pequeno porte e desempenho ineficiente
(PEREIRA, 2009, p. 98).
Segundo Robert Bork, a eficiência buscada pela concorrência pode
ser definida como uma condição para maximizar o bem-estar dos consu-
midores (BORK, 1993, p. 405-406). Além disso, para ele, a política con-
in judging consumer welfare, productive efficiency, the single most important factor contri-
buting to that welfare, must be given due weight along with allocative efficiency. [...] The
law should permit agreements on prices, territories, refusals to deal, and other suppressions
of rivalry that are ancilarry, in the sense discussed, to an integration of productive econo-
mic activity. [...] Antitrust should have no concern with any firm size or industry structure
created by internal growth or by a merger more than ten years old64.
64 Em tradução livre: “ao julgar o bem-estar do consumidor, a eficiência produtiva, o fator mais im-
portante que contribui para o bem-estar, deve ser dada a devida importância, juntamente com a
eficiência alocativa. [...] A lei deveria permitir os acordos sobre os preços, os territórios, as recu-
sas para contratar, e outras supressões de rivalidade que são acessórias, no sentido discutido, de
uma integração das atividades econômicas produtivas. [...] O Antitruste não deve ter nenhuma
preocupação com qualquer tamanho ou estrutura industrial criado pelo crescimento interno ou
por uma fusão de mais de dez anos de idade.”
nuem a produção ou se têm como resultado uma pró-eficiência significati-
va, qualidades pró-inovação, então eles não são ineficientes e não devem
ser proibidos. Esse paradigma amplia o escopo da liberdade de aplicação
do Antitruste (FOX, 2012, p. 56).
Finalmente, nota-se que, a partir do final dos anos 1970, a Escola de
Harvard, que preconiza a existência de condições estruturais de concor-
rência, perde importância, pois seus defensores aceitam grande parte dos
pressupostos da Escola de Chicago, que passam a predominar com a elei-
ção presidencial, nos EUA, de Ronald Reagan, cujo governo apresentou
matizes liberais, como aponta Eleanor Fox:
from the early 1980s forward, U.S. antitrust law developed under a model that is euphe-
mistically called “maximizing consumer welfare”. But in an important sense, this modern
goal is not to maximize consumer welfare even if consumer surplus is the sole focus. U.S.
antitrust law is not designed to make consumers as well off as possible, as Justice Scalia
took pains to state in Verizon Communications, Inc. v. Law Offices of Curtis V.
Trinko. The operational goal (not accepted by all jurists) is to let business be free of an-
titrust unless its acts will decrease aggregate consumer surplus, and then again, unless
the acts are a response to the market or a way to produce or invent new or better goods or
services. This is not an indefensible modus operandi. In some circumstances it may make
sense as a guiding light for applications of U.S. antitrust law in this millennium. But it
is not the goal of antitrust unless the concept of “goal” reads ninety years out of antitrust
history (FOX, 2013, p. 2158– 2159)65.
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65 Em tradução livre: “desde o início dos anos 1980, a lei antitruste dos EUA desenvolveu-se sob
um modelo que é eufemisticamente chamado de “maximização do bem-estar do consumidor”.
56 Mas, num sentido importante, essa meta moderna não é maximizar o bem-estar do consumidor,
mesmo que o excedente do consumidor seja o único foco. A lei antitruste dos EUA não é proje-
tada para proporcionar tanto bem aos consumidores quanto possível, como o juiz Scalia teve o
cuidado de indicar no processo Verizon Communications, Inc. v. Law Offices of Curtis V. Trinko. O objetivo
operacional (que não é aceito por todos os juristas) é deixar os negócios livres do Antitruste, a
menos que os seus atos diminuam o excedente do consumidor agregado, e em seguida, nova-
mente, a menos que os atos sejam uma resposta ao mercado ou uma maneira de produzir ou
inventar bens ou serviços novos ou melhores. Este não é um modus operandi indefensável. Em
algumas circunstâncias, pode fazer sentido como uma luz para a aplicações da lei antitruste dos
EUA neste milênio. Mas não é o objetivo do Antitruste, a menos que o conceito de “meta” seja
lido sem considerar noventa anos de história antitruste.”
de fontes de insumo, a manutenção de preços menores e a adoção de in-
centivos para inovar, os objetivos, segundo Eleanor Fox, do Antitruste es-
tadunidense (FOX, 2012, p. 49), onde os postulados da Escola de Chicago,
que traz para o Antitruste a análise econômica do Direito66, instrumento
de uma busca maior, a eficiência alocativa do mercado (FORGIONI, 2012,
p. 169), têm importância ímpar. E, com essa abordagem, pode-se afirmar
que “US antitrust law subordinates the immediate welfare of consumers to the lon-
ger-run productivity of the economy that would benefit consumers in the longer term”
g) A perspectiva pós-Chicago
A perspectiva pós-Chicago reúne o conjunto de teóricos “revisionis-
tas” que, apesar de ainda não terem estabelecido uma “escola” (BEHRENS,
2014, p. 32), a partir da década de 1980, passaram a questionar os pos-
tulados por vezes demasiadamente simplistas propostos pela Escola de
Chicago, ainda que reconheçam as vantagens da aplicação de modelos
econômicos à análise antitruste (FORGIONI, 2012, p. 175) e a contribuição
66 Que Ronald Dworkin, por exemplo, explicitamente rejeita: “a análise econômica, no seu ramo
descritivo, parece fundamentar-se no sentido e na verdade de uma motivação direta, que é a
de que os juízes decidem casos com a intenção de maximizar a riqueza social. Meu argumento
contra o ramo normativo da análise econômica, porém, também questiona tal afirmação motiva-
cional. Não afirmei que maximizar a riqueza social é apenas um entre vários objetivos possíveis,
ou que é um objetivo social mesquinho, pouco atraente e impopular. Afirmei que ela não faz ne-
nhum sentido como objetivo social, mesmo entre outros. É absurdo supor que a riqueza social é 57
um componente do valor social, e implausível que a riqueza social seja fortemente instrumental
para um objetivo social porque promove a utilidade ou algum outro componente do valor social
melhor do que faria uma teoria instrumental fraca. Portanto, é bizarro atribuir aos juízes o motivo
de maximizar a riqueza social por si mesma ou de perseguir a riqueza social como um alvo falso
para algum outro valor. Mas uma explicação motivacional direta não faz nenhum sentido, a menos
que faça sentido atribuir o motivo em questão aos agentes cuja conduta está sendo explicada”.
(DWORKIN, 2005, p. 393-394)
67 Em tradução livre: “a lei antitruste dos EUA subordina o bem-estar imediato dos consumidores
para a produtividade a longo prazo da economia, que beneficiaria os consumidores a longo prazo.”
sariais são sempre eficientes e a atuação estatal é sempre ineficaz (IDEM),
exceto em casos que envolvam hard core cartel (OECD, 2010a).
Embora se considere que os postulados da Escola de Chicago pre-
dominam na análise econômica aplicada ao Direito da Concorrência, essa
prevalência se dá, sobretudo, na análise das estruturas. Esses pressupos-
tos, porém, são criticáveis: quando filtrados pela análise jurídica, têm sua
aplicação bastante restringida (SALOMÃO FILHO, 2013, p. 385), já que o
discurso utilizado, que é positivista (POSNER, 2001b, p. 3), baseia-se no
pragmatismo e no tecnicismo, como se as decisões antitruste não derivas-
sem de opções políticas (FORGIONI, 2012, p. 172). Assim, questiona-se,
sobretudo, a consideração da eficiência econômica como o paradigma-ba-
se da aplicação das normas concorrenciais, como observa William Kovacic:
discussions of U.S. competition policy from the early 1970s to the present often emphasize
the ascent of Chicago School perspectives in guiding doctrine and enforcement policy. In
this narrative, Chicago School views ordinarily endorse what Frank Easterbrook has cal-
led a “profoundly skeptical program” that consists of “little other than prosecuting plain
vanilla cartels and mergers to monopoly.” Such an approach generally would disregard
vertical contractual restraints, vertical and conglomerate mergers, and most claims of ille-
gal monopolization or attempted monopolization. Chicago School scholars typically propose
that the attainment of economic efficiency be the exclusive basis for the design and appli-
cation of antitrust rules68. (KOVACIC, 2007)
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
58
68 Em tradução livre: “discussões sobre a política de concorrência dos Estados Unidos a partir do
início de 1970 até o presente muitas vezes enfatizam a ascenção das perspectivas da Escola de
Chicago ao orientar a doutrina e a política executiva. Nesta narrativa, as perspectivas da Escola de
Chicago normalmente endossam o que Frank Easterbrook chamou de “programa profundamente
cético”, que consiste em “pouco mais do que perseguir os meros cartéis de baunilha e fusões que
resultam em monopólio”. Essa abordagem geralmente não teria em conta restrições contratuais
verticais, fusões verticais e conglomeradas e a maioria dos pedidos de monopolização ilegal ou
tentativa de monopolização. Estudiosos da Escola de Chicago normalmente propõem que a rea-
lização da eficiência econômica seja a base exclusiva para a concepção e aplicação das regras de
defesa da concorrência.”
Outra teoria crítica ao neoclassicismo representado pela Escola de
Chicago é o estruturalismo, que surge a partir da instituição da Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), em 1948. Seu pen-
samento próprio e a partir da perspectiva latino-americana sobre o fenô-
meno do (sub)desenvolvimento argumenta que é preciso compreender
as estruturas sociais, econômicas, políticas etc. para se entender e superar
a dicotomia entre centro (economias homogêneas) e periferia (economias
heterogêneas)69. Desse modo, segundo os estruturalistas, é impossível
69 Conforme palestra do Professor Doutor Gilberto Bercovici realizada no Salão nobre da Faculdade
de Direito, em 9/2/2015, por ocasião do curso de verão em Direito Econômico realizado pelo
Programa de Pós-Graduação em Direito da USP.
70 Sobre a colônia açucareira, por exemplo, escreve Celso Furtado (2007, p. 79): “a renda que se
gerava na colônia estava fortemente concentrada em mãos da classe de proprietários de enge- 59
nho. Do valor do açúcar no porto de embarque apenas uma parte ínfima (não superior a cinco
por cento) correspondia a pagamentos por serviços prestados fora do engenho no transporte e
armazenamento. Os engenhos mantinham, demais, um certo número de assalariados: homens
de vários ofícios e supervisores do trabalho dos escravos. Mesmo admitindo que para cada dez
escravos houvesse um empregado assalariado – 1500 no conjunto da indústria açucareira – e
imputando um salário monetário de quinze libras anuais cada um, chega-se à soma de 22,5 mil
libras, que é menos de dois por cento da renda gerada no setor açucareiro”.
71 No que tange ao contexto brasileiro, Rubens Requião anota que “constituiu política econômica
do Governo o estímulo às incorporações e fusões, para aglutinar empresas, tornando-as de gran-
setores, produz um padrão particularmente assimétrico de desenvolvi-
mento econômico (GALBRAITH, 1988, p. 42). Com efeito, a ordem concor-
rencial, que constitui um interesse institucional (SALOMÃO FILHO, 2013,
p. 98), deve ser considerada para a alteração desejada do status quo, pois,
conforme a teoria institucionalista, institutions matter72.
O Direito da Concorrência desenvolveu-se de forma incipiente no
Brasil, inspirado na experiência estadunidense (OLIVEIRA, 2007, p. 169), a
partir da década de 1930 (RAMOS, 1977, p. 211), com o surgimento de nor-
mas esparsas voltadas à proteção da economia popular, à tipificação como
crime de determinadas condutas consideradas atentatórias à livre concor-
rência73 e, ainda, à definição de uma série de atos contrários à economia
nacional74. Nesse contexto, destaca-se o art. 14175 da Constituição de 1937,
que transformou em princípio constitucional a proteção da economia po-
pular e foi regulamentado pelo Decreto-lei n. 869/193876, que, apontado
como o primeiro diploma brasileiro antitruste, surgiu com função constitu-
cional definida, qual seja, a proteção da economia popular77 e, portanto,
mediata e precipuamente do consumidor (FORGIONI, 2012, p. 99).
É necessário destacar, nesse contexto, por sua importância históri-
ca, o Decreto-lei n. 7.666/1945, conhecido como “Lei Malaia”, como lem-
de porte e, assim, aptas à economia de escala, com melhores condições de competição no mer-
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
73 A Lei n. 1.521/1951 alterou dispositivos da legislação então vigente (Decreto-lei n. 869/1938) so-
bre crimes contra a economia popular.
74 O Decreto-lei n. 7.666/1945 estipulava uma série de atos considerados contrários à ordem econômica.
60
75 Assim dispõe o art. 141 da Constituição de 1937: “art 141 – A lei fomentará a economia popular,
assegurando-lhe garantias especiais. Os crimes contra a economia popular são equiparados aos
crimes contra o Estado, devendo a lei cominar-lhes penas graves e prescrever-lhes processos e
julgamentos adequados à sua pronta e segura punição.”
76 O Decreto-lei n. 869/1938 criminalizava diversas condutas que atentavam contra a economia popular.
77 Conforme Roberto Pfeiffer (2015, p. 132), sobre esse contexto, pode-se afirmar que, “ainda que não
se empregasse a expressão’consumidor’ (até porque à época não se utilizava corriqueiramente tal
termo nos textos legais) resta óbvio que a repressão ao abuso do poder econômico o tinha como
destinatário, pois a tutela da economia popular redundava em proteção do consumidor”.
bra José Nabantino Ramos (1977, p. 211), que definiu os atos contrários
à economia nacional e criou a então Comissão Administrativa de Defesa
Econômica (CADE), o que permite afirmar que, a partir de 1945, já havia
um esboço de um sistema de defesa da concorrência no Brasil.
Observa-se, também, que apenas na Constituição de 1946 a ênfase
do Direito concorrencial brasileiro deixou de ser simplesmente a defesa
da economia popular para apresentar um compromisso com a ordem eco-
nômica e com a noção de defesa do consumidor (BERCOVICI, 2005, p. 26),
61
78 Existe uma relação direta entre concentração do poder econômico e má distribuição de renda, como de-
monstrou estudo sobre o tema já na década de 1970. (COMANOR; SMILEY, 1975, p. 177-194)
79 Relativamente ao Brasil, o índice de Gini mais atual, de 2013, segundo dados do Banco Mundial,
é de 52,9. (BANCO MUNDIAL)
trole de preços, em reserva de mercado80 e em barreiras tributárias contri-
buíram para a manutenção de indústrias ineficientes81.
Assim, foi sobretudo a partir da década de 1990, marcada pelo fim da
fase de transição democrática e caracterizada pela influência do discurso
neoliberal, que se percebe ter havido uma (re)construção do Direito da
Concorrência em âmbito nacional, agora integrante de um sistema que
possui uma “Constituição cidadã”82. Diversas empresas estatais com atu-
ação nos setores siderúrgico, petroquímico, de telecomunicações e ele-
tricidade, por exemplo, foram privatizadas83, como previsto no Programa
Nacional de Desestatização (PND), que se seguiu à abertura comercial
introduzida no Governo Fernando Collor e ao início do período de con-
trole inflacionário trazido pelo Plano Real, nos Governos Itamar Franco e
Fernando Henrique Cardoso.
Foi nesse contexto que a norma concorrencial anterior, Lei n.
8.884/1994, vigente até maio de 2012, foi promulgada. Ela contribuiu de
forma vigorosa para o desenvolvimento da ideia de uma cultura da con-
corrência, então ainda incipiente no País, e, por isso, foi saudada como
porta-voz de um controle estatal sobre as condutas e as estruturas que
seria reconhecido, ao longo dos últimos anos, como fator importante para
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
80 Como ilustra a reserva de mercado para os produtores, de capital nacional, de produtos de in-
formática, na década de 1980, com base na Política Nacional de Informática, instituída pela Lei n.
7.232/1984. (BRASIL, 1984)
81 Um problema que ainda persiste, conforme aponta relatório da OCDE, para quem a falta de
concorrência nos mercados de muitos produtos, evidenciada pelos altos níveis de concentração
e estruturas de mercado rígidas, parece ser um dos principais motivos do baixo desempenho
da inovação das empresas industriais brasileiras, já que evidências empíricas revelam que as
empresas brasileiras que foram expostas à concorrência em mercados estrangeiros aplicaram
maiores esforços de inovação no contexto doméstico. (OECD, 2015a, p. 24)
62 83 Calixto Salomão Filho, recordando o contexto de privatizações da década de 1990, destaca que
“as autoridades governamentais, em particular o BNDES, passam a perseguir com afinco a con-
centração dos mercados e das empresas nacionais. De um lado, nos setores regulamentados,
incentivam a concentração ou a cooperação entre empresas (é o que acontece, com particular
ênfase, em setores de infraestrutura sujeitos à influência do órgão em função da necessidade
de vultosos financiamentos). Nos setores não sujeitos a regulação seu papel de órgão executor
da política de investimento do Governo federal (artigo 23 da lei 4.594/64) passa a ser desempe-
nhado precipuamente através da vinculação da concessão de empréstimos a reestruturações
dos setores, que leva a um maior (e, via de regra, bastante acentuado) nível de concentração. Os
órgãos de defesa da concorrência, de outro lado, revelando sua fraqueza histórica, pouco ou nada
fazem ou conseguem fazer contra esse movimento”. (SALOMÃO FILHO, 2001, p. 130-131)
o crescimento econômico do País. Entretanto, refere-se que ela apresen-
tava um desenho institucional falho, com algumas sobreposições de fun-
ções entre a autarquia e os órgãos então integrantes do SBDC (MOTTA;
SALGADO, 2015, p. 17).
Mais recentemente, a Lei n. 12.529/2011 introduziu alterações signifi-
cativas no modelo concorrencial brasileiro, como demonstra a formaliza-
ção do SBDC, integrado pelo CADE e pela Secretaria de Acompanhamento
Econômico (SEAE), órgão ainda vinculado ao Ministério da Fazenda (MF).
84 No que tange ao País, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Decreto Legislativo de
Acordos, Tratados ou Atos Internacionais (PDC) n. 07/2015 que aprova o texto do Acordo de
Defesa da Concorrência do Mercosul, assinado em 16 de dezembro de 2010. No momento, o
PDC, que já foi aprovado em todas as comissões internas da Câmara, aguarda ser pautado para
posterior votação pelo plenário. Informações disponíveis em: <http://www2.camara.leg.br/propo-
siçõesWeb/fichadetramitação?idProposição=947629>. Acesso em: 15 dez. 2015.
1.4.1.1 A (des)ordem econômica
O capitalismo caracteriza-se por crises cíclicas (MARX, 1982, p. 281 e
ss.) e, portanto, a desordem econômica lhe é ínsita. Mesmo que se discor-
de de que o capitalismo está fadado a se autodestruir85 e do determinis-
mo histórico, já que, até o momento, o que se destruiu mesmo foi o socia-
lismo, é inegável que o sistema econômico hegemônico carrega consigo
algo da Medeia euripidiana.
Se os tempos atuais são tempos de desordem (LORENZETTI, 2009, p.
39), dar-lhes alguma ordem86, por meio do Direito, da “ordem jurídica”87,
torna-se necessário. Nesse sentido, a expressão “ordem econômica”, in-
corporada à linguagem jurídica a partir da primeira metade do século XX
(GRAU, 2015, p. 64), demonstra essa disposição, como se sua positiva-
ção representasse a ordenação imediata do caos. Afinal, a necessidade
de utilização da expressão “ordem econômica” traz consigo a afirmação
subjacente de que a ordem econômica (mundo do ser) do capitalismo foi
rompida (IDEM). Trata-se, portanto, de confidência que tem repercussões
importantes, demandando um engajamento no sentido de restaurar a or-
dem perdida.
No Brasil, a ordem econômica, que é uma ordem econômica aberta
e que postula um modelo de bem-estar (IDEM, p. 307-308), fundada na
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
85 Como profetizou Karl Marx e tem profetizado Nouriel Roubini, como demonstra a entrevista “Karl
Marx was right”, de 2011.
64
86 É interessante recordar que Digesto, do latim digerere, significa “pôr em ordem”. O Digesto, também
denominado Pandectas, como se sabe, é parte do Corpus Iuris Civilis. (ALVES, 2014, p. 49-51)
87 Segundo Konrad Hesse, ordem jurídica e unidade política são tarefas que definem a
“Constituição”. E, em sua visão, a ordem jurídica “deve, como ordem histórica, pela atividade
humana ser criada, posta em vigor, conservada e aperfeiçoada”. (HESSE, 1998, p. 29, 36)
88 A livre iniciativa é, também, um dos valores sociais que fundamentam a República (art. 1o, IV da
CRFB/88).
66
90 Um estudo interessante demonstra que “em todas as análises realizadas foi comprovado que
a estrutura de propriedade influencia negativamente a eficiência, ou seja, estruturas mais
concentradas prejudicam a alocação eficiente de recursos das empresas no Brasil”. (SONZA;
KLOECKNER, 2014, p. 334)
91 Conforme palestra do Professor Doutor Gilberto Bercovici realizada no Salão nobre da Faculdade
de Direito, em 9/2/2015, por ocasião do curso de verão em Direito Econômico realizado pelo
Programa de Pós-Graduação em Direito da USP.
1.4.1.2 A livre iniciativa como fundamento da
República e valor da ordem econômica
A livre iniciativa é um dos valores sociais que fundamentam a
República (art. 1o, IV, da CRFB/88) e um dos valores em que se ancora
a ordem econômica (art. 170, caput, da CRFB/88). Esses dois dispositivos
constitucionais consubstanciam princípios conformadores, ao passo que o
princípio da livre concorrência (art. 170, IV, da CRFB/88) constitui princípio
92 Assim, pode-se falar em uma “função social da livre iniciativa”, exercida em benefício da coletivi-
dade, e não em caráter individualista ou excludente, de onde nasce, a propósito, o fundamento
de validade do pagamento de tributos.
tórios, como o são a defesa do consumidor e a liberdade de iniciativa
(MARQUES, 2014, p. 663).
A seguir, colaciona-se a ementa do acórdão exarado nos autos do
Recurso Extraordinário (RE) n. 349.686, relatado pela Ministra Ellen Gracie,
em que se asseverou que “o princípio da livre iniciativa não pode ser in-
vocado para afastar regras de regulamentação do mercado e de defesa do
consumidor”, litteris:
68
93 Conforme o voto do Conselheiro-Relator Carlos Ragazzo, que asseverou “[...] o exercício ilimitado
da liberdade de iniciativa por um agente pode comprometer seriamente o ambiente concorren-
cial, em prejuízo do bem-estar social”. (BRASIL, CADE, AP 08012.006899/2003-06, 2009).
1.4.1.3 A livre concorrência como princípio da
ordem econômica
A expressão “livre concorrência” não deixa de ser um truísmo, visto
que é da essência da concorrência ser livre de quaisquer entraves. Não
obstante isso, “livre concorrência” é expressão consagrada, presente, tam-
bém, no texto constitucional, que a elenca entre os princípios da ordem
econômica, previstos no art. 170 da CRFB/88, como se infere:
A concorrência
Não existe uma definição jurídica de concorrência (FERRAZ JUNIOR,
2009, p. 173). Por muito tempo, o conceito de concorrência deu-se por
oposição ao de monopólio (SOUZA, 2002, p. 29), encontrando-se já em
Aristóteles94, por exemplo, referência à questão concorrencial, sob o pris-
ma do monopólio.
Segundo a definição clássica de Friedrich von Hayek, como visto,
a concorrência é um processo de descoberta. A existência e a preserva-
ção desse processo, porém, dependem inexoravelmente do Direito95,
especialmente do Direito Concorrencial, que pretende, como visto, cor-
rigir a lex mercatoria e, assim, assegurar um “mínimo concorrencial” (das
Wettbewerbsminimum), que se considera ser imprescindível ao mercado in-
94 Aristóteles narra uma anedota envolvendo Tales de Mileto, que teria previsto, por seus conheci-
mentos astronômicos, que haveria uma grande colheita de azeitonas. Ainda era inverno e Tales
teria arrendado todas as prensas de óleo de Mileto e de Quios por um preço baixo, já que não 71
tinha concorrentes. Chegada a época da colheita, de repente, uma multidão teria procurado as
prensas, que ele teria alugado, então, pelo preço que quis, obtendo grandes lucros. Com isso,
Tales teria demonstrado a facilidade de os filósofos enriquecerem quando assim o desejassem.
Tales teria, então, demonstrado sua habilidade especulativa, que era, para Aristóteles, “acessível
a todos aqueles que podem criar um monopólio”. (ARISTÓTELES, 2007, p. 30-31)
96 Em tradução livre: a concorrência é uma tarefa ou atividade que ocorre no mercado por parte
daqueles que dele concorrem como fornecedores de bens ou serviços. Vem de competir, que
significa “disputar”, “rivalizar” com o objetivo de obter preferências ou vantagens.
transactions at fully known market prices, (iii) all relevant prices are known to each produ-
cer, who also knows of all input combinations technically capable of producing any specific
combination of outputs and who makes input-output decisions solely to maximize profits e
(iv) every producer has equal access to all input markets and there are no artificial barriers
to the production of any product97. (AREEDA; KAPLOW; EDLIN, 2013, p. 5)
97 Em tradução livre: (i) os vendedores e compradores são tão numerosos que as ações de nenhum 73
pode ter um impacto perceptível sobre o preço de mercado, e não há conluio entre comprado-
res ou vendedores, (ii) os consumidores registram suas preferências subjetivas entre os vários
produtos e serviços por meio de operações de mercado a preços de mercado totalmente conhe-
cidos, (iii) todos os preços relevantes são conhecidos por cada produtor, que também sabe de
todas as combinações de entrada tecnicamente capazes de produzir qualquer combinação espe-
cífica de saídas e quem toma as decisões de entrada e saída exclusiva para maximizar os lucros
e (iv) cada produtor tem igualdade de acesso a todos os mercados de insumos e não existem
barreiras artificiais para a produção de qualquer produto.
A livre concorrência
74
A expressão “livre concorrência” denota uma preocupação com a
presença de condições mínimas de concorrência (igualdade), ou, mais
precisamente, com a liberdade de acesso e de permanência no merca-
99 Em tradução livre: o Antitruste complementa ou, talvez, define as regras do jogo em que a con-
corrência ocorre.
do (SALOMÃO FILHO, 2013, p. 82). Ela se vincula à teoria ordoliberal e
apresenta-se contrária a estruturas ou práticas que possam limitar ou fal-
sear a (i) liberdade de acesso, salvaguardada, também, pela proteção da
liberdade de iniciativa, e a (ii) liberdade de permanência no mercado.
Limitadora da liberdade de acesso é a existência de barreiras à entrada
de concorrentes, enquanto que falseadora da liberdade de permanência
são as práticas predatórias, tendentes a excluir artificialmente os partici-
pantes do mercado (IDEM, p. 82-83).
100 Que dispõe: tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis
brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
101 Que dispõe: a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempre-
sas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado,
visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previ-
denciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.
Além disso, a livre concorrência é uma liberdade instrumental na me-
dida em que é condição necessária ao exercício da livre iniciativa. A livre
concorrência “é essencial para a legitimidade da liberdade de iniciativa”
(COSTA, 1998, p. 14-15). Entende-se, além disso, que a livre concorrência
é, também, instrumental na medida em que é necessária ao exercício da
liberdade de escolha do consumidor, sendo, portanto, precursora da de-
fesa do consumidor, perspectiva que se coaduna com a ideia de proteção
reflexiva do princípio da concorrência (das Wettbewerbsprinzip) identificada
no âmbito da EU (MÜLLER, 2014, p. 156).
A liberdade de concorrência
Mas, afinal, qual a diferença entre “livre concorrência” e “liberdade
de concorrência” – que tem a peculiaridade de constituir a quinta liberda-
de econômica fundamental102 de um processo de integração que preveja
a etapa de mercado comum? A livre iniciativa representa uma liberdade
econômica cujo titular é o empresário. Entre suas diversas manifestações
estão o sentido de “liberdade de comércio e indústria” e o sentido de “li-
berdade de concorrência”. Assim, a “liberdade de comércio e indústria”,
que significa a não ingerência do Estado no domínio econômico, envolve:
(i) a faculdade de criar e explorar uma atividade econômica a título priva-
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
102 Trata-se de uma liberdade não escrita, mas identificada pela análise jurisprudencial e doutrinária
realizada pelo autor. As outras quatro liberdades econômicas fundamentais, clássicas, são: liber-
dade de circulação de bens, de pessoas, de serviços e de capitais. (JAEGER JUNIOR, 2006, p. 198,
731)
103 Como sintetiza Deborah Healey, “government has a substantial inpact on markets. Laws and regulations
designed to promote important public policy goals may, for example, distort markets and affect competition”. Em
diante do fenômeno concorrencial, em igualdade de condições dos con-
correntes (GRAU, 2015, p. 202, 207).
tradução livre: o governo tem um impacto substancial nos mercados. Leis e regulamentos desti-
nados a promover importantes objetivos de política pública podem, por exemplo, distorcer os
mercados e afetar a concorrência. (HEALEY, 2014, p. 12)
104 Sobre o tema, há precedente interessante da lavra do Supremo Tribunal Federal, que ao julgar a
ADI n. 595 assim dispôs: EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INSTRUMENTO
DE AFIRMAÇÃO DA SUPREMACIA DA ORDEM CONSTITUCIONAL. O PAPEL DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL COMO LEGISLADOR NEGATIVO. A NOÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE/
INCONSTITUCIONALIDAD E COMO CONCEITO DE RELAÇÃO. A QUESTÃO PERTINENTE AO
BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE. POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS DIVERGENTES EM TORNO
DO SEU CONTEÚDO. O SIGNIFICADO DO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE COMO FATOR
DETERMINANTE DO CARÁTER CONSTITUCIONAL, OU NÃO, DOS ATOS ESTATAIS. NECESSIDADE
DA VIGÊNCIA ATUAL, EM SEDE DE CONTROLE ABSTRATO, DO PARADIGMA CONSTITUCIONAL
ALEGADAMENTE VIOLADO. SUPERVENIENTE MODIFICAÇÃO/SUPRESSÃO DO PARÂMETRO DE
CONFRONTO. PREJUDICIALIDADE DA AÇÃO DIRETA. – A definição do significado de bloco de 77
constitucionalidade – independentemente da abrangência material que se lhe reconheça – re-
veste-se de fundamental importância no processo de fiscalização normativa abstrata, pois a exata
qualificação conceitual dessa categoria jurídica projeta-se como fator determinante do caráter
constitucional, ou não, dos atos estatais contestados em face da Carta Política. – A superveniente
alteração/supressão das normas, valores e princípios que se subsumem à noção conceitual de
bloco de constitucionalidade, por importar em descaracterização do parâmetro constitucional de
confronto, faz instaurar, em sede de controle abstrato, situação configuradora de prejudicialidade
da ação direta, legitimando, desse modo – ainda que mediante decisão monocrática do Relator
da causa (RTJ 139/67) – a extinção anômala do processo de fiscalização concentrada de constitu-
cionalidade. Doutrina. Precedentes. [...] (BRASIL, STF, ADI 595/ES)
por apresentar uma pluralidade de interesses subjetivos e objetivos que
visa proteger e pelo fato de ter, entre seus objetivos, a implementação
dos princípios constitucionais da livre concorrência e da defesa do consu-
midor (SALOMÃO FILHO, 2013, p. 82).
O parágrafo único do art. 1o da Lei n. 12.529/2011 dispõe que “a cole-
tividade é a titular dos bens jurídicos protegidos” por ela. No entanto, a
lei não define quais os bens jurídicos protegidos e interesses preponde-
rantes, insuflando, assim, o debate doutrinário e a divergência jurispru-
dencial105.
Na Lei n. 12.529/2011, a expressão “defesa dos consumidores” consta,
expressamente, no caput do art. 1o − mantendo a tradição da lei concorren-
cial anterior, a Lei n. 8.884/1994, que já o fazia semelhantemente. A “de-
fesa dos consumidores” apresenta-se, aqui, como princípio que orienta a
aplicação da lei concorrencial em conjunto com os princípios da liberdade
de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade e repressão
ao abuso do poder econômico. Houve, assim, uma incorporação expressa
à lei concorrencial de parte dos princípios constitucionais que regem a
ordem econômica.
Para Grau, a referência expressa aos “ditames constitucionais de li-
berdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade,
defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico” e a
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
105 A autora refere-se à Lei n. 8.884/1994, mas sua observação permanece atual e é aplicável à Lei n.
12.529/2011. (CARPENA, 2005, p. 252-253)
106 Embora sua obra tenha sido atualizada, chama a atenção que ela não se refere à Lei n. 12.529/2011,
mas à Lei n. 8.884/1994. Pensa-se, porém, que seu entendimento é aplicável à atual lei concorren-
cial. (GRAU, 2015, p. 208)
dro da CRFB/88, sentido conformado pelo conjunto dos demais princípios
por ela contemplados. Seu conteúdo é determinado pela sua inserção em
um contexto de princípios, no qual e com os quais subsiste em harmonia
(GRAU, 2015, p. 209).
Segundo Calixto Salomão Filho (2013, p. 83),
107 O Código Civil de 2002 foi influenciado pela teoria italiana da empresa, a teoria subjetiva, segun-
do a qual qualquer atividade pode ser considerada empresária, a depender da forma como ela é
exercida. Não há, assim, um rol de atividades consideradas empresárias, tanto que o código não
apresenta um conceito de “empresa”, mas unicamente de “empresário”, exposto em seu art. 966
e parágrafo único.
108 No âmbito da UE, o conceito de empresa vem sendo forjado pela doutrina e pela jurisprudência.
Ainda assim, ele é flexível a fim de preservar a eficácia das normas concorrenciais europeias.
(JAEGER JUNIOR; NORDMEIER, 2007, p. 13-14)
independentemente do desejo de “b”. A fumaça que um ônibus produz,
por exemplo, como aponta didaticamente Cristiane Schmidt, causa uma
externalidade negativa. Se medidas não forem tomadas, o ônibus, sob a
perspectiva de todos os fatores de poluição, poderá emitir, singularmen-
te, mais fumaça do que seja suportável pela saúde humana ou pelo meio
ambiente. Como solução, o Estado pode regular a quantidade de fumaça
emitida (SCHMIDT, 2015).
Com efeito, a literatura propõe uma classificação da atuação estatal
110 Segundo Tercio Sampaio Ferraz Junior (1997, p. 88), no que tange à análise de atos de concentra-
ção de empresas, o CADE adota uma decisão cujo fundamento técnico não expressa um juízo de
conveniência e oportunidade – mas uma vinculação a ditames legais referentes à proteção da livre
iniciativa e da livre concorrência, o que reforça a ideia de que as decisões da autoridade de defesa
da concorrência são atos de Estado – e não atos de governo, cujas diretrizes são ocasionais.
111 Nesse sentido, Bruno Miragem (2005, p. 156) e Isabel Vaz (1993, p. 79).
estão potencialmente vinculados “todos os órgãos estatais, todas as po-
tências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabe-
lecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes
da Constituição” (HÄBERLE, 2002, p. 13), afinal, os participantes do pro-
cesso interpretativo formam uma “sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição”, como propõe Peter Häberle (2002, p. 12)
112 Que, segundo Marx, é uma superestrutura, um subproduto da Economia, já que, como ensina
Washington Peluso Albino de Souza, a tese marxista “baseia-se na afirmativa de que o fato eco-
nômico constitui a infra-estrutura, da qual decorrem todas as demais. Esta ‘infra-estrutura’ é uma
técnica e representaria precisamente as condições materiais da produção, a realidade econô-
mica. Todo o aspecto a mais, de que se revista esta realidade, constitui superestrutura cultural,
exprimindo-se tanto no Direito, como na moral ou na própria religião”. (SOUZA, 1961, p. 36-37)
dade em si mesma, que não deveria sofrer influência de outros preceitos
(como a proteção dos mais fracos, por exemplo) (ARIÑO ORTIZ, 1999, p. 2),
c. a transição do Estado liberal para os Estados social e de bem-estar
social trouxe consigo avanços sociais significativos, que passam pelo reco-
nhecimento progressivo de direitos e pela realização de políticas públi-
cas, entre as quais está a política concorrencial,
d. o Direito Concorrencial é o resultado do desenvolvimento de nor-
mas que a priori visavam reprimir a concorrência desleal, sobretudo na
Direito à Informação e A
2 O CONSUMIDOR: Acesso
PESSOA
a Documentos Governamentais:
HUMANA EM ESTADO DE
breve estudo do Direito canadense
VULNERABILIDADE
Luiz Guilherme Loureiro
113 Eric Hobsbawm traz uma análise interessante: “qualquer que fosse a es-
trutura de idade da administração da IBM ou da Hitachi, os novos com-
Sonhar possuir uma casa transbordante de quinquilharias eletrô-
nicas, por exemplo, deixa de ser algo utópico e passa a ser algo factí-
vel (ALBORNOZ, 1999, p. 22). Com efeito, como a sociedade afluente
(GALBRAITH, 1987) depende cada vez mais da ininterrupta produção e
consumo do supérfluo, dos novos inventos, do obsoletismo planejado e
dos meios de destruição, os indivíduos têm de adaptar-se a esses requi-
sitos de um modo que excede os caminhos tradicionais (MARCUSE, 1975,
p. 13). A toda hora substitui-se o “velho” pelo “novo”, afinal, a “destruição
criadora” é o “fato essencial do capitalismo”, conforme o insight de Joseph
Schumpeter (1971, p. 118-124).
Assim, a época que inicia no Pós-guerra assistiu ao surgimento das
sociedades de consumo, um consumo massificado realizado por massas,
por intermédio de negócios jurídicos de massa caracterizados pela indi-
ferenciação das pessoas contratantes, pelo emprego de fórmulas estereo-
tipadas, padronizadas, estandardizadas e pela utilização da comunicação
com o público como método de provocar a sua formação (ALMEIDA, 1992,
p. 598). Por meio desses contratos de massa, sintoma da despersonaliza-
ção e da desmaterialização das relações jurídicas, entre os quais se des-
tacam, conforme Claudia Lima Marques (2014, p. 72-73), os contratos de
adesão, as condições gerais dos contratos ou cláusulas gerais contratu-
ais (e, desde a década de 1990, os contratos do comércio eletrônico com
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
88
putadores eram projetados e os novos programas criados por pessoas na casa dos vinte anos.
Mesmo quando essas máquinas e programas eram, esperava-se, à prova de erro, a geração que
não crescera com eles tinha uma aguda consciência de sua inferioridade em relação às gerações
que os haviam feito. O que os filhos podiam aprender com os pais tornou-se menos óbvio do que
o que os pais não sabiam e os filhos sim. Inverteram-se os papéis das gerações”. (HOBSBAWM,
1995, p. 320)
Nas cidades114, dois fenômenos importantes aconteceram: por um
lado, em seus bairros115 e locais de trabalho, os operários e suas famílias116
(que deixaram em caráter definitivo a vida no campo) criaram uma cultura
e uma arte próprias, chamadas de “populares”; por outro lado, passaram
a fazer parte da grande massa de consumidores dos produtos industriais
para os quais começaram a ser reproduzidas, em larga escala, versões sim-
plificadas e inferiores dos produtos e das criações da cultura e da arte de
elite117. A partir daí, perde-se gradualmente a noção de identidade, seja
114 Pierre Rosanvallon observa que “a passagem da Gemeinschaft (comunidade) para a Gesellschaft (so-
115 A reflexão de Paulo Mendes da Rocha sobre as cidades brasileiras contemporâneas, especifica-
mente sobre a cidade de São Paulo, é contundente: “houve um abandono das zonas centrais. É
uma política de rejeição à dimensão democrática da cidade − a classe dominante indigna abando-
na a cidade e foge para algum lugar onde não haja esse plano democrático. Se um cidadão se põe
na esquina da Ipiranga com a São Luís o dia inteiro parado, não acontece nada. Se você fizer isso
em bairros privados, aparecem quatro jagunços armados. Essa síndrome do medo faz parte de uma
visão maligna, fascista. Há uma exacerbação da propaganda que diz: vá morar num lugar paradisía-
co e isolado. Por que a praia é tão encantadora? Porque está todo mundo lá.” (WISNIK, 2012, p. 163)
116 É interessante a reflexão de John Kenneth Galbraith (1988, p. 236-237): “com a industrialização e a
urbanização, os homens e as mulheres não dividem mais as tarefas de produção segundo critérios
de força e capacidade de adaptação. O homem desaparece na fábrica ou no escritório, a mulher 89
concentra-se exclusivamente na administração do consumo. Este é um arranjo convencional, não
uma divisão de trabalho necessariamente eficiente; a um nível simples de consumo, é perfeita-
mente possível que uma pessoa faça ambas as coisas. Sem negar que a família tem outras finali-
dades, incluindo as de amor, sexo e criação de filhos, ela não é mais uma necessidade econômica.
Com padrões de vida mais elevados ela se torna, cada vez mais, um instrumento facilitador de um
consumo crescente. O fato de que os laços familiares se enfraquecem cada vez mais com a indus-
trialização e com a elevação dos padrões de vida comprova muito bem esse argumento”.
117 “Essa reprodução simplificada das obras eruditas deu origem ao que viria a ser conhecido com o
nome de cultura e arte de massa”. (CHAUI, 2012, p. 360)
teiros que faziam pessoalmente e sob medida as roupas e os sapatos de
seus clientes. O prêt-à-porter transformou a produção e o consumo de moda,
que se relaciona à “esfera do ser-para-outrem”, segundo Gilles Lipovetsky
(2009, p. 334). A criação de vestuário em escala industrial significou uma
economia de custos para o produtor/fornecedor e, consequentemente,
uma redução de preços para o consumidor. Representou, ainda, uma ma-
neira prática de escolha do produto, que já está pronto e imediatamente
disponível para o consumo118.
Da moda, aliás, diz Georg Simmel que ela satisfaz a necessidade
de apoio social − e “consumir” significa investir na afiliação social de si
próprio (BAUMAN, 2008, p. 75) −, conduz o indivíduo ao trilho que to-
dos percorrem, fornece um universal que faz do comportamento de cada
indivíduo um simples exemplo. E satisfaz igualmente a necessidade de
distinção, a tendência para a diferenciação. Na moda, a tendência para
a igualização social se une à tendência para a diferença e a diversidade
individuais em um agir unitário (SIMMEL, 2014, p. 25).
Logo depois assistiu-se ao crescimento dos grands magasins, lojas de
departamentos de grande porte, com nichos específicos, cujos primeiros
exemplares remontam ao século XIX. São dessa época também as primei-
ras galerias (como a parisiense Galerie Vivienne, inaugurada em 1826), uma
espécie de embrião dos shopping centers, modelos arquitetônicos típicos do
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
american way of life, tão exaltado119 durante a Guerra Fria, que concentram
uma série de produtos e serviços em que o consumidor pode se servir
sozinho, sem sequer se comunicar com um vendedor. Nesse modelo, seu
118 Para Gilles Lipovetsky, “a era da moda consumada significa tudo menos uniformização das con-
vicções e dos comportamentos. Por um lado, ela certamente homogeneizou os gostos e os modos
de vida pulverizando os últimos resíduos dos costumes locais, difundiu os padrões universais do
bem-estar, do lazer, do sexo, do relacional, mas, por um outro lado, desencadeou um processo
90 sem igual de fragmentação dos estilos de vida. Ainda que o hedonismo e o psicologismo sejam
valores dominantes, os modos de vida não cessam de romper e de se diferenciar em numero-
sas famílias que os sociólogos do cotidiano tentam inventariar. Há cada vez menos unidade nas
atitudes diante do consumo, da família, das férias, da mídia, do trabalho, do lazer, a disparidade
ganhou o universo dos estilos de vida. Se nossas sociedades aprofundam o círculo das diferenças
nas crenças e nos gêneros de vida, o que permite assegurar a estabilidade do corpo coletivo?”.
(LIPOVETSKY, 2009, p. 322-323)
119 Como lembra Alain de Botton (2005, p. 42), “quando Franklin D. Roosevelt foi indagado sobre
que livro poderia dar aos soviéticos para ensinar-lhes as vantagens da sociedade americana, ele
citou o catálogo da Sears”.
anonimato é exaltado. Ele flana pelos corredores de lojas e de shopping
centers sem ser reconhecido.
Nesse contexto surge uma variante que é um dos símbolos da so-
ciedade pós-moderna, o fenômeno do prêt-à-manger, depois aperfeiçoado
pelo fenômeno do fast food (que tem seu correspondente na indústria da
moda, o fast fashion). Nele, substituiu-se o modelo de restaurantes como
conhecido, em que o cliente cumprimenta o garçom, senta-se à mesa, em
geral acompanhado, e pede seu prato, que ainda será preparado, para
120 E, eventualmente, até mesmo de forma ainda mais “eficiente”, por um conjunto, em geral mais
barato, que une prato principal, sobremesa e algo para beber, os conhecidos “combos”, palavra
de origem inglesa que é uma corruptela da palavra “combination”.
121 Contardo Calligaris (2015) sintetiza a diferença entre desejo e necessidade. O desejo com fre-
quência parece fútil: ele corre atrás de reconhecimento e de objetos que não são propriamente
Talvez nenhuma outra ideia revele com tamanha precisão os con-
tornos da realidade122 contemporânea, em que o ato de consumir toma
significado cada vez maior no cotidiano da pessoa: para afirmar-se como
pessoa, o sujeito, que é falta (MENDONÇA, 1993, p. 137-151) (afinal, o estí-
mulo de base dos homens é a fome, e em primeiro lugar a fome material, a
fome123 de alimento, que leva a outras, numerosas e variadas [ALBORNOZ,
1999, p. 21]), da qual decorre o desejo, consome, preenche alguma espé-
cie de ausência, de forma material ou imaterial. A condição de consumidor
torna-se elemento constitutivo do sujeito, razão de sua afirmação como
pessoa nos tempos pós-modernos.
Portanto, não se poderia imaginar que o Direito se mantivesse alheio
à sociedade de consumo ou à própria “vida para o consumo” (BAUMAN,
2008) que se formou principalmente a partir de meados do século XX.
Afinal, o consumo é um direito econômico essencial para o acesso à cidada-
nia (CARVALHO, 2012). Conforme Erik Jayme (1995, p. 147), «le droit à la pleine
expression de la personnalité comprend également la sphère économique; ainsi chaque per-
sonne doit elle avoir le droit d’utiliser ses capacités pour atteindre le bien-être matériel»124.
O ato de consumir, que invariavelmente tem contornos de método
de integração social, representou, nesse contexto, também, a ascensão de
uma indústria publicitária que se expandiu rapidamente e utilizou estra-
tégias agressivas de marketing, a fim de convencer o consumidor (inclusive
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122 E, como se sabe, “la realtà non esiste se non in quanto interpretata”. (MATTEI, 1998, p. 166)
123 A propósito, veja-se a bela “A última crônica”, de Fernando Sabino, sobre os integrantes de uma
família “que se preparam para algo mais que matar a fome”. (SABINO, 2000, p. 214)
124 Em tradução livre: o direito à plena expressão da personalidade também inclui a esfera econô-
mica; assim, cada pessoa deve ter o direito de utilizar as suas capacidades para alcançar o bem-
-estar material.
perendividamento, na trilha da música profética de Cazuza, que, ao cantar
que “meu cartão de crédito é uma navalha” (CAZUZA; ISRAEL; ROMERO,
1988), já falava do cortar-se a si mesmo pelo consumo desenfreado −, em
um ambiente em que ainda não havia normas específicas para atender às
peculiaridades das relações de consumo que pela primeira vez ocorriam
e que ganhavam um status absolutamente novo (visto que, na relação que
envolve uma costureira que trabalhe em seu pequeno atelier e um cliente
interessado em encomendar uma roupa, por exemplo, não há falar em
125 Claudia Lima Marques e Bruno Miragem ensinam que “a relação entre dois ‘civis’, sem habituali-
dade, continuidade ou fim econômico ou de lucro é uma relação civil stricto sensu e será regulada
pelo Código Civil de 2002, relação entre iguais que é”. Já a relação entre um “civil”, destinatário 93
final do serviço, e um empresário, fornecedor de um produto ou serviço no mercado, “é uma rela-
ção de consumo ex vi arts. 2.° e 3.° do CDC, uma relação entre ‘diferentes’, tutelando a lei um deles, o vul-
nerável (art. 4.°, III do CDC), o consumidor, e será por isso, em face do mandamento constitucional
do art. 5.°, XXXII, de proteção apenas deste agente econômico, regulada prioritariamente pelo
Código de Defesa do Consumidor. Assim, se a relação é de consumo aplica-se prioritariamente o
Código de Defesa do Consumidor e só, subsidiariamente, no que couber e for complementar, o
Código civil de 2002”. (Grifos do original). (MARQUES; MIRAGEM, 2014, p. 95-96)
126 Segundo Adalberto Pasqualotto (2009, p. 79), “o ato de consumo é impessoal e sugere uma
relação jurídica despersonalizada».
consumidor tratamentos “vip”127 (very important person128), entre os quais se
destacam agências bancárias diferenciadas, como exemplificam as assim
chamadas agências “personalitté”129, a fim de resgatar o caráter pessoal e en-
fatizar a valorização da individualidade do consumidor. Assim, o dualismo
apresenta-se como marca do mercado, que admite a coexistência de pro-
dutos e serviços de massa e outros, personalizados, dirigidos a nichos de
consumo sofisticados. Opõem-se clientes “especiais” e consumidores de
massa, mais desprotegidos e vulneráveis do que seus “colegas do merca-
do global”, o que tem gerado diferenciações discriminatórias nos merca-
dos de consumo em favor de consumidores mais “poderosos” econômica,
social ou politicamente (MACEDO JÚNIOR, 1999, p. 232, 237).
O consumidor não é rei130, como a indústria cultural gostaria de fazer
crer. Ele não é sequer sujeito dessa indústria, mas seu objeto, segundo
a crítica de Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985, p. 133). Ao Direito
resta, portanto, a tarefa de restabelecer o caráter pessoal que o consumo
exacerbado dos tempos pós-modernos fez e faz o indivíduo perder, o que
passa pelo reconhecimento da sua vulnerabilidade e pelo exercício do
direito à escolha131, dada a ideia de preservação da soberania do consu-
midor132 aí subjacente. É por meio do direito à escolha que o consumidor
127 Michael Sandel comenta que “os estádios esportivos são essencialmente lugares onde as pessoas
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se reúnem para assistir a eventos atléticos”, mas “o ensinamento cívico dos esportes é corroído
de maneira ainda mais acentuada por uma outra tendência que vem acompanhando a ascenção
dos direitos de nome corporativos: a proliferação dos camarotes de luxo”. O autor observa que “o
advento de camarotes especiais muito acima do campo separou os abastados e privilegiados das
pessoas comuns nas tribunas e arquibancadas mais embaixo”. (SANDEL, 2014b, p. 172-173)
129 Vinculadas ao banco brasileiro Itaú, por exemplo, como informa seu site. Disponível em: <https://
www.itau.com.br/personnalite/>. Acesso em: 10 fev. 2016.
130 Uma outra leitura permite perguntar: o consumidor é, de fato, um rei? Ele se veste com o manto
da cultura que a indústria cultural insiste em transmitir e chamar assim. No entanto, é um rei
94
destronado porque é o ser do conformismo, da subordinação, mas que goza do status que lhe é
conferido. Torna-se, então, mesmo sem o saber, cúmplice do processo psicossocial que o violen-
ta. (RODRIGUES; CANIATO, 2012, p. 235)
131 O “direito à escolha” não se confunde com o “direito de escolha”, presente nas obrigações alter-
nativas. (PONTES DE MIRANDA, 2013, p. 298)
132 John Kenneth Galbraith apresentou a ideia de “soberania do consumidor” em descompasso com
a realidade da grande empresa, com seu poder de mercado e de controle sobre o consumidor,
por meio da propaganda e do marketing. Galbraith, em entrevista, respondeu assim a pergunta
que segue: o que há de errado com o conceito de soberania do consumidor – a ideia de que,
pode satisfazer seus desejos e suas necessidades e influenciar os proces-
sos mercadológicos, ainda que suas escolhas, isoladas, atomizadas, es-
tejam distantes de poder influir de forma soberana sobre quaisquer das
variáveis do mercado (REICH, 1985, p. 162, 178).
no capitalismo, o indivíduo escolhe com independência os bens que vai adquirir? “Essa é uma 95
fraude muito propagada, inclusive no ambiente universitário. Ela nasce da tendência a silenciar
sobre o poder de controle do marketing. O ‘consumidor soberano’ na verdade é tutelado sem
cessar pelos altamente qualificados mandarins da propaganda. Que ninguém se engane: não
importa o número de gráficos sobre o poder de escolha do público que os economistas produ-
zam, o fato é que atribuimos ao consumidor uma autoridade maior do que a que ele realmente
possui”. (GALBRAITH, 1994)
133 Roberto Pfeiffer lembra que “um evento é fundamental para marcar as modificações na forma
de consumo: a produção em série, marcada, simbolicamente, pelo taylorismo e fordismo. [...]
O complemento à produção em série é o consumo em massa. Com efeito, as grandes escalas
diversas ordens entre as partes da relação de consumo, o que demanda
um tratamento diferenciado a fim de se recuperar o equilíbrio desconhe-
cido. Em resumo: o Direito do Consumidor invoca uma ordem protetiva
que derroga o princípio geral da igualdade dos cidadãos perante a lei
(igualdade formal134) em prol de uma igualdade material (LORENZETTI,
1998, p. 47), em conformidade com o preceito aristotélico segundo o qual
a igualdade não admite nenhuma diferença entre aqueles que são iguais
(ARISTÓTELES, 2007, p. 95), sendo o contrário válido: “a igualdade é jus-
ta, e o é na verdade, mas não para todos, e sim somente entre iguais. A
desigualdade também parece ser, e o é na verdade, mas não para todos,
somente entre aqueles que não são iguais” (IDEM, p. 88).
Portanto, se há um momento histórico que se pode identificar como
marco inicial do desenvolvimento da proteção jurídica do consumidor, ele
é, definitivamente, o início da década de 1960 (COMPARATO, 1990, p. 67),
nos EUA, que coincide com a recuperação e o crescimento econômico ple-
no que caracterizaram o Pós-guerra. Esse momento histórico ímpar defi-
ne-se pela formação de uma sociedade nova, em que o ato de consumir e
os produtos e os serviços que se adquire ou contrata perdem, em grande
parte, como visto, os principais aspectos que os caracterizavam até então:
a exclusividade e a individualidade.
Assim, foi em 1962 (IDEM), que o então presidente dos EUA, John
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de produção geraram a necessidade de intenso escoamento dos bens, o que redundou em di-
versas pessoas consumindo o mesmo tipo de produto. Surge, então, a figura do consumidor”.
(PFEIFFER, 2015, p. 75)
134 Segundo Fábio Konder Comparato (2010, p. 65-66), “em contrapartida a essa ascenção do indiví-
96 duo na História, a perda da proteção familiar, estamental ou religiosa, tornou-o muito mais vulne-
rável às vicissitudes da vida. A sociedade liberal ofereceu-lhe, em troca, a segurança da legalida-
de, com a garantia da igualdade de todos perante a lei. Mas essa isonomia cedo revelou-se uma
pomposa inutilidade para a legião crescente de trabalhadores, compelidos a se empregarem nas
empresas capitalistas. Patrões e empregados eram considerados, pela majestade da lei, como
contratantes perfeitamente iguais em direitos, com inteira liberdade para estipular o salário e as
demais condições de trabalho”.
135 Houve, porém, antes disso, normas incipientes de proteção do consumidor nos EUA, como de-
monstra o Meat Inspection Act, de 1906, o Pure Food and Drug Act, de 1914, e o Federal Trade Commission
Act, de 1914.
ser ouvido (REICH, 1985, p. 164). É interessante notar que, na mensa-
gem do presidente Kennedy, ele afirmava que “consumidores, por de-
finição, somos todos nós”136, sentença que expressa apropriadamente o
Zeitgeist do Pós-guerra no mundo capitalista ocidental e que, aprofundado,
tornar-se-ia o que hoje Zygmunt Bauman define como a “vida para o con-
sumo” (BAUMAN, 2008).
Mais tarde, em 1973137, a Comissão de Direitos Humanos da
Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu alguns direitos aos
97
136 Tradução livre da mensagem especial ao Congresso dos EUA sobre a proteção dos interesses
dos consumidores, em que o então presidente John Kennedy assumiu que “consumers, by definition,
include us all”.
137 Daí a observação de Jean Calais-Auloy e Henri Temple de que “consumidor” e “consumo” são pa-
lavras que, provenientes da Economia, são parte apenas a partir da década de 1970 do vernáculo
jurídico. (CALAIS-AULOY; TEMPLE, 2015, p. 6)
blico ou privado.
Da análise do texto constitucional, verifica-se que o constituinte origi-
nário tornou a defesa do consumidor um direito fundamental140, o que de-
riva da sua previsão no art. 5°, XXXII141, da CRFB/88 (MARQUES; MIRAGEM,
2014, p. 151), por sua vez incluído no Título II, que cuida “dos direitos e
garantias fundamentais” (IDEM).
98
140 De acordo com o critério formal, que aponta a forma de positivação, todos os enunciados do títu-
lo II da CRFB/88, que cuida “dos direitos e garantias fundamentais”, são disposições de direitos
fundamentais, independentemente do conteúdo e da estrutura do que eles estatuem. (ALEXY,
2012, p. 48)
141 Conforme o art. 60, § 4°, da CRFB/88, por sua localização topográfica e conteúdo axiológico, a
defesa do consumidor apresenta a condição de cláusula pétrea, não podendo ser suprimida por
emenda constitucional, em conformidade com o art. 60, § 4°, da CRFB/88.
De acordo com a interpretação liberal clássica, os direitos fundamen-
tais asseguram uma esfera de liberdade ao indivíduo em face das inter-
venções dos Poderes Públicos; eles são, assim, direitos de defesa do cida-
dão diante do Estado (ALEXY, 2015, p. 433). Todavia, o desenvolvimento
do Estado social levou gradualmente à consideração dos direitos funda-
mentais também como direitos a prestações (de natureza fática e jurídica)
e à extensão da sua aplicação aos particulares, como propõe a teoria sobre
a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas (Drittwirkung der
142 Na literatura, encontra-se referência aos correspondentes “deveres fundamentais dos consumi-
dores”. (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 786)
ção” (MIRAGEM, 2014, p. 51). Por “direitos de proteção” compreendem-se
os direitos do titular do direito fundamental diante do Estado para que
este o proteja da intervenção de terceiros (ALEXY, 2012, p. 398). Nesse
sentido, o direito do consumidor perfaz um direito pelo qual o Estado
protege seu titular da intervenção de terceiros, de modo que a qualidade
de consumidor lhe atribui determinados direitos oponíveis, em regra, aos
entes privados e, em menor grau (com relação a alguns serviços públi-
cos), ao próprio Estado (conforme dispõe o art. 22143 do CDC, por exemplo)
(MIRAGEM, 2014, p. 51).
Os direitos de proteção podem ter como objeto coisas muito diferen-
tes (os bens protegidos envolvem tudo aquilo que, desde a perspectiva
dos direitos fundamentais, é digno de ser protegido, como a dignidade, a
liberdade, a família etc.). Não menos variadas são as formas possíveis de
proteção, que compreendem, por exemplo, a edição de leis ou mesmo a
realização de atividades fáticas (ALEXY, 2012, p. 398).
Os direitos de proteção são, em suma, direitos constitucionais a que
o Estado organize e disponha a ordem jurídica de uma determinada ma-
neira (IDEM, p. 399). Há, pois, um dever estatal de promover esses direi-
tos (MIRAGEM, 2014, p. 51-52), dando corpo a determinados desempe-
nhos, como demonstram as políticas públicas relacionadas à defesa do
consumidor e à livre concorrência, por exemplo.
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
143 Dispõe o art. 22 do CDC: Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permis-
sionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços
adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. Parágrafo único. Nos casos
de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas
jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.
bém, um dos princípios da ordem econômica, conforme dispõe o art. 170,
V, da CRFB/88.
A defesa do consumidor, aqui, é um princípio constitucional imposi-
tivo, a cumprir dupla função, como instrumento para a realização do fim
de assegurar a todos existência digna e objetivo particular a ser alcançado
(GRAU, 2015, p. 247).
O princípio da democracia econômica e social que informa a Constituição
econômica, como observam Canotilho e Vital Moreira ao comentarem a
144 Faz-se referência ao Projeto de lei do Senado n. 281/2012, que altera o CDC. (BRASIl, 2012)
146 Nesse sentido, impõe-se relembrar que as relações de consumo de natureza bancária ou financei-
ra devem ser protegidas pelo CDC, conforme o entendimento do Plenário do STF, que julgou im-
procedente o pedido formulado pela Confederação Nacional das Instituições Financeiras (Consif)
102 na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 2591, cuja ementa segue: EMENTA: CÓDIGO
DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ART. 5o, XXXII, DA CB/88. ART. 170, V, DA CB/88. INSTITUIÇÕES
FINANCEIRAS. SUJEIÇÃO DELAS AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, EXCLUÍDAS DE
SUA ABRANGÊNCIA A DEFINIÇÃO DO CUSTO DAS OPERAÇÕES ATIVAS E A REMUNERAÇÃO
DAS OPERAÇÕES PASSIVAS PRATICADAS NA EXPLORAÇÃO DA INTERMEDIAÇÃO DE DINHEIRO
NA ECONOMIA [ART. 3º, § 2º, DO CDC]. MOEDA E TAXA DE JUROS. DEVER-PODER DO BANCO
CENTRAL DO BRASIL. SUJEIÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. 1. As instituições financeiras estão, todas
elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor.
2. “Consumidor”, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou
jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. 3. O pre-
ceito veiculado pelo art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor deve ser interpretado em
tabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e
interesse social”. Daí se extrai, em conjunto com as normas constitucionais
que expressamente tratam do sujeito como consumidor, a necessidade de
uma proteção distinta, que se volta ao consumidor como pessoa humana.
A lei consumerista, então, que perfaz um código, é chamada de “Código
de Defesa e Proteção do Consumidor”, e não do consumo. Trata-se de
uma lei de proteção da pessoa, e não dos contratos de consumo, não das
relações de consumo.
coerência com a Constituição, o que importa em que o custo das operações ativas e a remunera-
104
148 Assim Jacques Derrida em entrevista concedida a Betty Milan e publicada originalmente na Folha
de São Paulo. (MILAN, 2012, p. 51) 105
149 Essa é, também, a essência do materialismo dialético (ainda que démodé, a pertinência desse
pensamento permanece e, de todo modo, ideias não conhecem o tempo). Karl Marx e Friedrich
Engels adotavam como tese a sociedade burguesa, que constituíra uma unificação em relação ao
regime feudal que se desintegrava; a antítese era o proletariado, gerado pelo desenvolvimento
da indústria moderna mas depois dissociado, pela especialização e o aviltamento, do corpo prin-
cipal da sociedade moderna, e que um dia teria de se voltar contra ela; a síntese seria a socieda-
de comunista resultante do conflito entre a classe operária e as classes proprietárias e patronais
e do controle da indústria pela classe operária, e que representaria uma unidade mais elevada
ao harmonizar os interesses de toda a humanidade. (WILSON, 2006, p. 210)
ou de abandonar o conceito de luta de classes, basta adaptá-lo a uma nova
situação político-econômica150.
150 Em entrevista concedida a Betty Milan (2012, p. 51) e publicada originalmente na Folha de São
Paulo.
151 Mesmo assim, sabe-se da capacidade de poupança do consumidor e da teoria keynesiana segun-
do a qual um aumento do rendimento determina, quase automaticamente, um recrudescimento
106 da propensão para consumir e, por conseguinte, da procura global. Segundo Milton Friedman,
contudo, a subida da componente transitória do rendimento não tem efeito imediato sobre o
consumo, na medida em que os agentes econômicos não incorporaram ainda o respectivo au-
mento de recursos no seio do rendimento permanente. Assim, apenas após um certo lapso tem-
poral designado por Milton Friedman como “horizonte do consumidor” é que se poderá assitir a
um aumento do consumo. (DROUIN, 2014, p. 128)
152 A vontade de lutar e de ganhar é um tipo de motivação que anima o empresário, segundo o
economista Joseph Schumpeter. Assim, para ele, a atividade econômica é entendida como uma
espécie de luta de boxe em que vence o melhor. O lucro é considerado como um índice de su-
cesso e não só como o objetivo último da atividade empresarial. (DROUIN, 2014, p. 115)
tratar o serviço cuja utilidade lhes é cara ou necessária, preservando assim
sua renda, em regra proveniente do trabalho assalariado, para outros fins.
Como destacam Amartya Sen e Bernardo Kliksberg, a linha divisória
entre “os que têm” e “os que não têm” não é apenas um clichê retóri-
co ou slogan eloquente, mas, infelizmente, uma característica substancial
da atualidade (SEN; KLIKSBERG, 2010, p. 37), já que não se pode negar
que o acesso ao consumo distingue, inclui ou exclui o sujeito na e da so-
ciedade de consumo e de conhecimento (BAUMAN, 2008). Com efeito, a
153 Há também definições de consumidor no parágrafo único do art. 2º, no art. 17 e no art. 29 do CDC.
Nesse contexto, é necessário abordar o tema com cautela, pois uma
interpretação demasiadamente ampla poderia resultar em uma proteção
excessiva de sujeitos que não apresentam qualquer necessidade de uma
proteção jurídica diferenciada. Afinal, a vulnerabilidade é o que justifica
a própria existência de um Direito (protetivo) do consumidor (MARQUES,
2014, p. 301), passível de proteger “des personnes en situation de faiblesse
relative”154 − o que não significa, de modo algum, paternalismo ou ação típi-
ca de um Estado-babá (Nanny State).
Assim, na definição legal, a única característica restritiva seria a aqui-
sição ou a utilização do produto ou do serviço como destinatário final. Mas
o que dizer do sujeito que adquire ou utiliza um produto ou um serviço
para utilizá-lo em sua profissão, como profissional (elemento subjetivo),
com fim de lucro, portanto? Também ele deve ser considerado “desti-
natário final”? A disposição do art. 2o do CDC não responde à pergunta.
Em consequência, é necessário interpretar a expressão “destinatário final”
(MARQUES, 2014, p. 303).
Identificam-se, a partir dessa necessidade, três teorias que se pro-
põem a conceituar o consumidor e os demais sujeitos que a ele se equi-
param155, quais sejam: a teoria finalista (ou subjetiva), a teoria maximalista
(ou objetiva) e a teoria finalista aprofundada (ou ampliada).
Para a teoria finalista a definição do sujeito como consumidor é o pi-
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
lar que sustenta a proteção especial que lhe é concedida como parte vul-
nerável no mercado de consumo (IDEM), conforme afirma o CDC no art. 4o,
I156. Desse modo, a teoria finalista propõe uma interpretação teleológica,
considerando consumidor o destinatário final fático e econômico do pro-
duto e/ou do serviço. Ela é, pois, restritiva, concebendo como consumidor
apenas aquele que adquire (ou utiliza) produto e/ou serviço para uso pró-
108
154 Em tradução livre: as pessoas em situação de relativa fragilidade. (CALAIS-AULOY; TEMPLE,
2015, p. 6-7)
155 Dispõe o parágrafo único do art. 2º do CDC, “equipara-se a consumidor a coletividade de pesso-
as, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”.
156 Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das ne-
cessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de
seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e
harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I – reconhecimento da
vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo.
prio e/ou de sua família. Desse modo, qualquer utilização do produto e/
ou do serviço como insumo de uma atividade econômica – e “o objetivo
final de toda a atividade econômica é o consumo” (PREBISCH, 1991, p. 57)
– do adquirente ou usuário o exclui da categoria de consumidor, dado que
este seria exclusivamente o não profissional (MARQUES, 2014, p. 300-301).
Por isso fala-se em destinatário final econômico (e não apenas fático) do
bem ou serviço, haja vista que não basta ao consumidor ser adquirente ou
usuário, devendo haver o rompimento da cadeia econômica com o uso pes-
157 Assim o voto-vista do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva ao analisar o Agravo Regimental no
Recurso especial n. 1.321.083/PR (BRASIL, STJ, AgRg no REsp 1.321.083/PR).
160 Para incluir no âmbito de proteção da lei especial pequenos empresários e profissionais liberais
que contratassem com determinado fornecedor sem conhecimentos técnicos especiais e fora do
campo de sua atividade comercial, considerando seu estado de ignorância ou vulnerabilidade
quando da contratação. (MARQUES, 2014, p. 306-307)
Com efeito, de acordo com Bruno Miragem (2014, p. 159), a interpreta-
ção finalista ampliada apresenta-se a partir de dois critérios básicos, quais
sejam: (i) extensão do conceito de consumidor por equiparação, que é
medida excepcional no regime do CDC, e (ii) consideração da necessi-
dade de reconhecimento da vulnerabilidade da parte que pretende ser
equiparada a consumidora. Segundo Roberto Pfeiffer, tal também é possí-
vel pela extensão do próprio conceito de consumidor em sentido estrito.
Todavia, o autor propõe que o modo mais coerente de estender a apli-
Artigo 2o.
Apreciação das concentrações
1. As concentrações abrangidas pelo presente regulamento devem ser
apreciadas de acordo com os objectivos do presente regulamento e com
as disposições que se seguem, com vista a estabelecer se são ou não
compatíveis com o mercado comum.
114
Nessa apreciação, a Comissão deve ter em conta:
a) A necessidade de preservar e desenvolver uma concorrência efectiva no
mercado comum, atendendo, nomeadamente, à estrutura de todos os mer-
cados em causa e à concorrência real ou potencial de empresas situadas no
interior ou no exterior da Comunidade;
116 165 Nas décadas de 1960, 1970 e 1980, algumas teorias de cunho consequencialista, ou pragmático
(cujo maior expoente é Richard Posner, ícone da Escola de Chicago), como a análise econômica
do Direito (também conhecida como Law and Economics), dedicaram-se à verificação do impacto
do Direito sobre o desempenho global das economias. A idéia básica era a do instrumentalismo
jurídico, que propunha que, ao se aplicar o Direito sem ponderar custos e consequências eco-
nômicas das decisões judiciais, por exemplo, estar-se-ia eventualmente promovendo resultados
socialmente indesejáveis e, mesmo, em desacordo com sua intenção original. Essa visão, porém,
não considera que o Direito deve promover, em alguma medida, o bem comum. Em uma socie-
dade heterogênea, na medida em que o Direito é tão somente instrumento, ele se torna capturá-
vel, passível de ceder a lobbies e a ideologias dos mais diversos matizes. Perde, mesmo, a noção
de integridade, de núcleo de valores, de propósitos ínsitos ao Direito. (MENDONÇA, 2014, p. 78)
O Sistema Nacional de Defesa do Consumidor
Tanto a defesa da concorrência quanto a defesa do consumidor de-
mandam uma atuação estatal integrada para que elas sejam, de fato, efi-
cazes, e não iniciativas randômicas. No que tange à defesa do consumidor,
especificamente, mesmo entidades privadas podem promovê-la, como
dispõe o art. 105 do CDC, segundo o qual “integram o Sistema Nacional de
Defesa do Consumidor (SNDC), os órgãos federais, estaduais, do Distrito
166 Como o sentido literal, o contexto significativo da lei, a intenção reguladora, fins e ideias norma-
tivas do legislador histórico de que fala Karl Larenz (1997, p. 450 e ss)
a cooperação que une presentemente o CADE e a Secretaria Nacional do
Consumidor (Senacon), objeto de análise no tópico 3.5.4.
119
CAPÍTULO 1
167 Como nota Jean-Paul Bronckart (2007, p. 32-33), na espécie humana, a cooperação dos indivíduos
na atividade é regulada e mediada por verdadeiras interações verbais e a atividade caracteriza-se,
portanto, por essa dimensão que Jürgen Habermas chamou de “agir comunicativo”. Assim, além do
fato de ser constitutiva do psiquismo especificamente humano, a emergência do agir comunicati-
vo é também constitutiva do social propriamente dito. Com efeito, na medida em que os signos
cristalizam as pretensões à validade designativa, se estão disponíveis para cada um dos indivídu-
os particulares, eles também têm, necessariamente, devido a seu estatuto de formas negociadas,
uma dimensão transindividual, veiculando representações coletivas do meio, que se estruturam
em configurações de conhecimentos que podem ser chamadas, segundo Popper e Habermas, de
mundos representados. Além disso, conforme a Linguística estrutural de Ferdinand de Saussure, “a
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o outro”.
(SAUSSURE, 2012, p. 40). E, ainda, “a língua é um fato social. O indivíduo, organizado para falar,
só poderá chegar a utilizar seu aparelho através da comunidade que o cerca, − além disso, ele só
experimenta o desejo de utilizá-lo em suas relações com ela. Ele depende inteiramente dessa
comunidade; sua raça é indiferente (salvo, talvez, por alguns fatos de pronúncia). Então, nisso o
homem só é completo através do que tira do seu meio”. (IDEM, 2004, p. 154)
169 Que significa o ser-no-mundo, como propõe Martin Heidegger, para quem o homem é visto como
Dasein, em que o Da indica o caráter intuitivo, sensível e temporal (Zeit), e o Sein indica o caráter
inteligível, o ser (Sein). O Dasein é ser-no-mundo, esse é o «como» do homem, que deve resol-
ver a questão da temporalidade como uma das características fundamentais do ser-no-mundo,
122 enquanto passado-presente-futuro. Porém, este ser-no-mundo deve estar articulado, precisa de
uma estrutura que seja descritível e que possua a marca fundamental da condição humana, qual
seja, a Sorge, o cuidado, a estrutura de ser-aí. Daí a tríplice estrutura do cuidado: o ser adiante de
si (futuro) – existência, já ser em (passado) – facticidade e ser junto às coisas (presente) – decaí-
da. (STEIN, 1997, p. 106 e 107).
170 A propósito, segundo Lenio Streck (2007, p. 177-178), “conceber a linguagem como totalidade, é
dizer, entender que não há mundo sem a mediação do significado, significa romper com a con-
cepção de que há um sujeito cognoscente apreendendo um objeto, mediante um instrumento
chamado linguagem. Morre, assim, o cogito cartesiano e todas as formas de ‘eu’ puro, desindexado
de cadeias significantes”.
ção da parte que compõe o todo. O indivíduo, assim, integrava uma or-
dem, um estamento, uma corporação ou qualquer outra entidade coleti-
va, considerados, por sua vez, sujeitos sociais efetivamente reconhecidos
(MARTINS-COSTA, 2007, p. 16).
Desse modo, percebe-se que a ideia do indivíduo como sujeito e
ator jurídico, dotado de direitos subjetivos, é relativamente recente. Ela
resulta de uma construção complexa elaborada no Renascimento e na
Modernidade, sobretudo quando o Jusnaturalismo se associa ao Iluminismo
171 Veja-se, a propósito, a obra de Emmanuel Lévinas, que fala da ética da alteridade.
lução cuja plenitude seria alcançada após Immanuel Kant e a Revolução
Francesa (IDEM, p. 36-37).
Foi no Renascimento, assim, que se lançaram as bases de um direito
da pessoa considerada laicamente em si e por si. Mais tarde, no século
XIX, Friedrich Carl von Savigny172 transformaria em dogmática jurídica es-
sas ideias (IDEM, p. 43) ao lutar pela independência do Direito, implantar
no Direito uma racionalidade historicamente baseada e considerar que
“todo Direito provém do espírito do povo” (LAHUSEN, 2013).
172 Principal representante da Escola Histórica Alemã, para quem o Direito nasceria do “espírito do
125
povo” (Volksgeist) e a essência da norma jurídica estaria contida nos usos, costumes e nas crenças
dos grupos sociais.
173 Não por acaso, a Declaração de direitos do homem e do cidadão, de 1789, dispôs que “a lei é a
expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou atra-
vés de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger,
seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as
dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que
não seja a das suas virtudes e dos seus talentos”. (FRANÇA, 1789)
174 A herança jacente, os bens em inventário são, por exemplo, sujeitos de Direito, mas não pessoas.
tutela de interesses. Diga-se o mesmo das pretensões, ações e exceções.
Por eles e com eles, realiza-se a política de se deixar aos indivíduos o cui-
dar dos direitos que têm, dos bens que lhes tocam” (IDEM, 2013, p. 293).
Ao sujeito de direitos se conferem direitos e deveres, podendo-se falar
em sujeito ativo (de um direito subjetivo) e em sujeito passivo (de uma
obrigação) (FERRAZ JUNIOR, 2015, p. 122-123).
A incidência da regra jurídica, que dá a alguém o poder de ser sujeito
de direitos, cria a capacidade de direito, o direito de personalidade. Esse
é o primeiro direito. Ser sujeito de direitos é posterius, é a realização da-
quele direito: é-se pessoa, sem se ter outro direito que o de ser pessoa;
sujeito de direito só se é, partindo-se do fato de se ser sujeito do direito
de personalidade, quando se tem a posição de sujeito de direito em re-
lação jurídica concreta (PONTES DE MIRANDA, 2013, p. 289). O sujeito de
direitos, ou sujeito jurídico, é, portanto, o portador de direitos. A ideolo-
gia assente a essa concepção pensa o sujeito como o titular da proprie-
dade privada enquanto instituto que cabe ao Direito objetivo proteger e
garantir. Assim, como o homem tem em seu próprio corpo a primeira das
propriedades (na medida em que seu corpo é fonte de trabalho), o indi-
víduo é por excelência o sujeito jurídico (o homem como ser que trabalha,
homo faber) (FERRAZ JUNIOR, 2015, p. 121).
Se o termo “sujeito” ingressou no léxico ocidental por volta do sé-
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
culo XIII denotando sujeição, observa-se que, no século XVI, ele ganha o
sentido de “fundamento, causa, motivo” e, mais tarde, o de “pessoa que é
motivo de algo” para, finalmente, designar a “pessoa considerada em suas
aptidões”. Em consequência, a doutrina civilista inventa o sujeito de di-
reitos como ser dotado de capacidade para atuar na ordem jurídica, assu-
mindo direitos, deveres, tendo garantias e responsabilidades (MARTINS-
COSTA, 2007, p. 37-38).
126 Não por acaso, o Código Civil (CC) brasileiro, de 2002, dispõe, em seu
art. 1°, que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Dessa
forma, a pessoa é sujeito de direitos e obrigações na vida civil, titular de de-
terminados direitos, quais sejam, os direitos subjetivos, direitos do sujeito.
Mesmo consideradas todas essas nuances etimológicas, há uma sino-
nímia consagrada entre os termos indivíduo, pessoa e sujeito de direitos
que não pode ser desconsiderada. Afinal, ela esconde séculos de uma
construção ideológica laboriosa de conceitos jurídicos de importância ím-
par e que é passível de determinar a perspectiva pela qual o Direito é
aplicado (IDEM, p. 19). Percebe-se, assim, que houve uma transformação
valiosa da noção de sujeito, não mais um sujeito vinculado à ideia im-
plícita de submissão que caracterizava outrora o súdito. O sujeito, agora,
tornou-se protagonista de sua própria vida. Não mais súdito, ele é cida-
dão, sujeito de direitos e de deveres, ainda que, hoje, na época pós-mo-
derna, assista-se à transformação das pessoas em mercadoria, como nota
175 A Declaração estabelecia em seu art. 1° que “os homens nascem e são livres e iguais em direitos.
As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”. (FRANÇA, 1789)
p. 659). Kant, a propósito, formula seu imperativo categórico176 nos seguin-
tes termos: “age de maneira tal que possas também querer que a máxima
de teu agir se transforme em lei universal da natureza”177.
Ao longo do século XX, principalmente após o Holocausto, a ideia
de dignidade humana foi incorporada ao discurso político das potências
vencedoras na Segunda Guerra Mundial, tornando-se uma “metapolítica”,
um fim a ser alcançado por instituições nacionais e internacionais. Sua
consideração como um conceito jurídico, nos dois lados do Atlântico, foi,
176 Anota Jürgen Habermas (2012, p. 157): “na formulação kantiana do princípio do direito, a ‘lei geral’
177 No original: „Handle nur nach derjenigen Maxime, durch die du zugleich wollen kannst, dass sie ein allgemeines
Gesetz werde“. (KANT, 1965). Segundo Hans Jonas, um imperativo que fosse adequado ao novo tipo
do agir humano e ao tipo novo de sujeito e objeto nele envolvidos poderia ser enunciado da
seguinte forma: “age de maneira tal que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a perma-
nência de autêntica vida humana sobre a terra”. (GIACOIA JUNIOR, 1996, p. 72-73)
178 Segundo Robert Alexy (2015, p. 145-146), “princípios são mandamentos de um determinado tipo,
a saber, mandamentos de otimização. Como mandamentos, pertencem eles ao âmbito deontoló-
gico. Valores, por sua vez, fazem parte do nível axiológico”. E exemplos de conceitos deontológi-
cos são os conceitos de dever, proibição, permissão e direito a algo. Comum a esses conceitos é
o fato de que podem ser reduzidos a um conceito deôntico básico, que é o conceito de dever ou
de dever-ser. Já os conceitos axiológicos são caracterizados pelo fato de que seu conceito básico
não é o de dever ou de dever-ser, mas o conceito de bom.
129
179 Para Humberto Ávila (2014a, p. 225), “o significado preliminar dos dispositivos pode experimen-
tar uma dimensão imediatamente comportamental (regra), finalística (princípio) e/ou metódica
(postulado). As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e
com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da cor-
respondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte e nos princípios que lhes são
axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a cons-
trução conceitual dos fatos. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente
prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação
demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos
decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”.
fundamentais. Além disso, a identificação da dignidade humana como um
princípio jurídico produz consequências relevantes no que diz respeito à
determinação de seu conteúdo e estrutura normativa, seu modo de apli-
cação e seu papel no sistema constitucional (IDEM, p. 64-65).
Quanto ao conteúdo da dignidade humana, como visto, destacam-
-se três ideias essenciais, analisadas a seguir: (i) o valor intrínseco de
cada ser humano, (ii) a autonomia individual e (iii) o valor comunitário.
Pretende-se, com essa análise, obter-se mais subsídios para a compre-
ensão da dimensão representada pela dignidade da pessoa humana no
Direito, o que é importante para se avaliar o significado do reconheci-
mento do direito à concorrência.
Do valor intrínseco do ser humano decorre um postulado antiutili-
tário e outro antiautoritário (BARROSO, 2014, p. 76-77). A impossibilida-
de de aplicação de qualquer ideia utilitária à pessoa humana, que tem
dignidade, e não preço, como ensina Kant ao afirmar que “im Reiche der
Zwecke hat alles entweder einen Preis, oder eine Würde”180, constituiu-se em uma
conquista filosófica e civilizatória inestimável. Isso significa que o valor de
uma pessoa nunca poderá ser equiparado ao valor de uma coisa, pois a
primeira tem dignidade e a segunda, preço.
No plano jurídico, o valor intrínseco está na origem de um conjunto
de direitos fundamentais, como o direito à vida, à igualdade, à integrida-
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
de física etc.
A autonomia, por usa vez, é o elemento ético da dignidade huma-
na. É o fundamento do livre arbítrio dos indivíduos, o que lhes permite
buscar, a seu modo, o ideal de viver bem181. Ela inclui, em geral, três ca-
tegorias, quais sejam, a autonomia privada (liberdades básicas), a auto-
nomia pública (direito à participação política) e o mínimo existencial (das
Existenzminimum) (IDEM, p. 82).
130 Assim, a dignidade se incorpora aos direitos sociais materialmente
fundamentais, em cujo âmbito merece destaque o conceito de mínimo
180 Em tradução livre: no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. (KANT, 1965, p. 41)
181 Já Aristóteles reconhecia que toda ação de conhecer e toda intenção deliberada estão dirigidas à
consecução de algum bem. E, para ele, o mais elevado entre todos os bens cuja obtenção pode ser
realizada pela ação é a felicidade, embora felicidade não seja um termo capaz de abranger o sentido
mais amplo do conceito que a palavra grega «eudaimonia” representa. (ARISTÓTELES, 2002, p. 42)
existencial. Para ser livre, igual e capaz de exercer sua cidadania, todo
indivíduo precisa ter satisfeitas as necessidades indispensáveis à sua
existência física e psíquica; ele tem direito a determinadas prestações e
utilidades elementares. O direito ao mínimo existencial, que é um limite à
aplicação da teoria da reserva do possível (der Vorbehalt des Möglichen)182, não
é, como regra, referido expressamente em documentos constitucionais ou
internacionais, mas sua estatura constitucional tem sido amplamente re-
conhecida (BARROSO, 2014, p. 84), desde alguns julgamentos183 icônicos
186 Veja-se, para tanto, as soluções divergentes dadas para casos difíceis envolvendo os temas da
eutanásia, feto anencéfalo, experimentos científicos com células-tronco e mesmo o homicídio por
estado de necessidade, entre outros.
nasce a defesa do consumidor, que, no Brasil, tem status de direito funda-
mental e é princípio conformador da ordem econômica, vis-à-vis o disposto
nos arts. 5o, XXXII, e 170, V, da CRFB/88 e, até mesmo, a consideração do
consumo como direito humano187. Isso torna necessário considerar que a
dignidade da pessoa humana inclui a atuação da pessoa como consumi-
dora (MARQUES, 2009), razão por que “making markets work for people as a
post-millennium development goal” (FOX, 2015), deveria ser a premissa de um
sistema jurídico em cujo cerne está a dignidade da pessoa humana.
187 Identifica-se essa posição, na literatura, pelo menos nas seguintes obras: Deutch (1994), Benöhr
(2013) e Pasqualotto (2009).
188 A título comparativo, o mesmo ocorre na Alemanha, onde se debate igualmente o que e quem a
UWG deve proteger, se os competidores, a coletividade ou os consumidores. (TONNER, 1988, p.
96 e ss.)
te, método que se escolheu, considerando que a essência da metáfora
é “compreender e experimentar um tipo de coisa em termos de outra”
(LAKOFF; JOHNSON, 2003).
Assim, observou-se que a dinâmica concorrencial poderia ser repre-
sentada, com fidelidade, pelo menos no que tange aos seus propósitos
jurídicos (plano do dever ser), por um concerto. A origem etimológica do
termo “concerto” remete a duas palavras latinas: a primeira, concertatum,
do verbo concertare, que significa “combater”, “rivalizar”, “lutar” (FERREIRA,
1960, p. 256) e a segunda, de consertum, do verbo conserere, traduzido como
“entrelaçar”, “atar”, mas, também, em alguns contextos, como “argumen-
tar” (IDEM, p. 257).
Seja qual for a origem etimológica da palavra “concerto” ambas as
hipóteses que a explicam servem para a metáfora que se deseja apresen-
tar ao leitor: a dinâmica concorrencial envolve tanto as ideias de combate
como de entrelaçamento. Seus entes convivem em um diálogo permanen-
te, ainda que eventualmente conflituoso.
Assim, a lei concorrencial é representada por uma partitura. O concor-
rente, por um músico que compõe a orquestra cujo regente é representado
pelo Estado. A concorrência é representada, por sua vez, pela própria orques-
tra, enquanto a competição o é pela música e o consumidor, pela plateia.
A música, como se sabe, é o resultado de todo um esforço coletivo
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
189 A expressão é de Paula Forgioni, que nota que o “jogo do interesse protegido” estava presente
já na Lei n. 4.137/1962 e em algumas decisões adotadas pelo CADE ainda na década de 1960.
Houve, pois, não apenas a utilização dos “interesses da economia nacional” como justificadores
da licitude de alguns atos de concentração econômica, mas também dos “interesses do consumi-
dor”. (FORGIONI, 2012, p. 119, 237)
cia190 e depender, inexoravelmente, da existência de um outro sujeito,
também disposto a competir.
Pense-se, por exemplo, no caso de um agente estatal que explore
determinada atividade econômica em caráter de monopólio. No Brasil, é
a própria CRFB/88, em seu art. 21, XXIII, que reserva apenas à União, entre
outras hipóteses, a possibilidade de “explorar os serviços e instalações
nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pes-
quisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o
comércio de minérios nucleares e seus derivados”.
Evidente, portanto, que os casos que envolvem situações de mono-
pólio estatal191 (também chamado monopólio legal ou público), como o
citado, ou de monopólio natural192, não tratam de um competidor, porque
inexiste o pressuposto básico para a existência de um competidor, qual
seja, a multiplicidade de agentes competentes em uma situação de dis-
puta, mas, ao invés, de um agente que não pode ser qualificado como
competidor, dada a inexistência de competição. Trata-se, tão somente, de
um monopolista.
Então, havendo pluralidade de agentes dispostos a competir em de-
terminado mercado, dispostos a conquistar a renda do consumidor que,
por sua vez, deseja adquirir o produto ou contratar o serviço por eles ofe-
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
190 Que não se confunde com a competência enquanto “atribuição”. Como ensina Tercio Sampaio
Ferraz Junior, as normas instituidoras de poder, cujo conteúdo é o estabelecimento do que se pode
chamar de “poder heterônomo” e cuja função é capacitar o sujeito a dar forma a relações jurídicas
de terceiros, instituem o que se chama de “competência”. (FERRAZ JUNIOR, 2015, p. 122, 125)
191 O monopólio legal, ao contrário do natural, não decorre de circunstâncias fáticas ou de incapa-
cidade técnica, tampouco deriva de uma jurídica ou antijurídica situação de controle total do
mercado, podendo ser de duas espécies: (i) os que visam impelir o agente econômico ao investi-
mento e (ii) os que são instrumento de ação do Estado na economia. Os do primeiro tipo decor-
136 rem da propriedade industrial – proteção de marcas, patentes, know-how, insígnias – o que confere
a seu proprietário exclusividade em sua exploração. Os da segunda espécie caracterizam-se pelo
fato de o Estado assumir o exercício exclusivo de determinada atividade econômica, sem admitir
concorrentes. (MENDONÇA, 2014, p. 286)
192 Um monopólio é denominado “natural” quando o número de firmas que minimiza o custo total
da indústria é 1 (um). Caso esse mercado não seja perfeitamente contestável, a teoria prevê
uma perda líquida de excedente (peso morto) e, portanto, uma ineficiência alocativa derivada
do exercício do poder de monopólio. Neste caso, portanto, as forças de mercado devem ser
substituídas pela regulamentação econômica ou pela operação de empresas estatais. (FARINA;
AZEVEDO; SAES, 1997, p. 119)
recido, devem-se assegurar condições para que essa competição, existin-
do, mantenha-se e observe padrões mínimos.
Tão importante quanto propiciar que exista um número razoável de
agentes competentes dispostos a disputar, de forma simultânea e entre si,
a conquista da renda do consumidor, em um dado mercado e lapso tem-
poral, é garantir a manutenção dessa competição, que é autóctone, e sua
lisura (fair play). Uma vez assegurada a existência de um ambiente em que
competir seja possível, factível, aumentam as chances de que novos agen-
137
193 Isabel Vaz observa que “a expressão portuguesa concorrência, do século XVI, o espanhol compe-
tencia, o italiano concorrenza, dos séculos XIV-XV, o alemão Konkurrenz, do século XVII, ligam-se ao
particípio presente latino concurrens-entis, ‘concorrente’ (do latim concurrere, ‘concorrer’), origem do
francês concurrent, de 1120, donde o francês concurrence, de 1559. A literatura jurídica inglesa e a
norte-americana adotam as palavras competition, competition law, competition Act, competition Policy, com
significado semelhante ao de ‘concorrência’” (grifos do original). (VAZ, 1993, p. 21)
194 Nesse sentido se posiciona Isabel Vaz, que afirma: “a noção tradicional de concorrência pressu-
põe uma ação desenvolvida por um grande número de competidores, atuando livremente no
Nesse sentido, Michel Foucault, ao analisar o viés ordoliberal, afirma
que a concorrência não é de modo algum um dado natural, mas um prin-
cípio de formalização: a concorrência como lógica econômica essencial só
aparecerá e só produzirá seus efeitos sob certo número de condições cui-
dadosa e artificialmente preparadas (FOUCAULT, 2008, p. 163-164).
Competir, como outrora visto, significa disputar; concorrer, por sua vez,
significa mais, significa disputar algo em condições de igualdade, de pari-
dade de armas, conforme se espera que um Estado Democrático de Direito
permita. Não fosse assim, poder-se-ia verificar o seguinte quadro: alguns
agentes que compitam entre si, por exemplo, como únicos competidores
existentes em um dado mercado, poderiam assistir ao crescimento de um
dos agentes que, por seus próprios méritos, fosse mais eficiente do que os
demais. Esse crescimento, que é legítimo, poderia, contudo, provocar uma
alteração de comportamento do agente que tenha se destacado como o
mais competente e fazê-lo, eventualmente, atuar de forma prejudicial aos
interesses dos demais competidores (e, também, dos consumidores).
Daí a necessidade de se assegurar que os agentes que compitam
possam, também, concorrer: continuar a competir, observadas regras de
conduta mínimas, mesmo que as condições tenham se alterado. Sob essa
perspectiva, a concorrência está ligada ao Direito e, mais, à justiça, como
forma de impedir que o fiel da balança penda para um lado; como forma,
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
195 Elisabeth Farina informa que “na presença de externalidades, bens públicos ou coletivos e de
informação imperfeita as decisões orientadas pela racionalidade individual não são consistentes
com a racionalidade coletiva. O equilíbrio não-cooperativo não é Pareto-ótimo e, portanto, pode-se
obter vantagens a partir do comportamento cooperativo. Em tais casos, o comportamento racional
dos participantes do mercado tem que estar subordinado a alguma forma de controle autoritário
exercido pelo Estado ou por algum outro agente”. (FARINA; AZEVEDO; SAES, 1997, p. 151)
e, de outro, o fornecedor (plano vertical do mercado). Ela a ultrapassa e
envolve, também, a relação jurídica concorrencial entre, de um lado, o
fornecedor-consumidor e, de outro lado, o fornecedor-concorrente, cuja
relação tem espaço no plano horizontal do mercado (BENJAMIN, 2011, p.
375), como observa Adalberto Pasqualotto (2009, p. 81):
196 Nesse sentido, Paula Forgioni (2012, p. 246) e Lafayette Petter (2007, p. 73)
197 Um dos mais notórios julgamentos de conduta unilateral realizado pelo CADE ocorreu em julho
de 2009, quando a fabricante de cervejas Ambev, líder do mercado brasileiro de cervejas, foi
condenada ao pagamento de uma multa de quase R$ 353 milhões. O programa de fidelidade
denominado “Tô Contigo”, criado pela Ambev, oferecia descontos e bonificações aos pontos de
venda em troca de exclusividade ou de redução na comercialização de produtos dos concorren-
tes. Os estabelecimentos comerciais poderiam optar por participar ou não do programa, mas
os que não aderissem, deixariam de receber descontos e brindes da Ambev. A conclusão do
CADE foi a de que essa prática, ao ser adotada por uma empresa com quase 70% de participa-
ção no mercado brasileiro de cervejas, limitava o acesso de outros concorrentes aos locais de
venda, dificultando a entrada e o desenvolvimento de outras cervejarias. Segue a ementa do
prolatada no autos do Processo Administrativo n. 08012.003805/2004-10: “EMENTA: PROCESSO
ADMINISTRATIVO. PROGRAMA DE FIDELIDADE TÔ CONTIGO. PROVAS CONCRETAS. INSPEÇÃO
IN LOCO. PESQUISA DE CAMPO. PRÁTICAS DE EXCLUSIVIDADE NA VENDA DE CERVEJAS
NO CANAL BAR E TRADICIONAL. SHARE AMBEV EXIGIDOS INFORMALMENTE. DESCONTOS
SUBSTANCIAIS. INCAPACIDADE DE RIVAIS MAIS EFICIENTES DE COMPETIR. AUMENTO DAS
BARREIRAS À ENTRADA. EFEITOS ECONÔMICOS POSSÍVEIS. ABUSO DE PODER ECONÔMICO.
199 Como observa Paula Forgioni (2012, p. 186): “o texto da Constituição de 1988 não deixa dúvidas
quanto ao fato de a concorrência ser, entre nós, meio, instrumento para o alcance de outro bem
maior, qual seja, ‘assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social’”.
(Grifo da autora).
200 Entretanto, a instrumentalização do Direito da concorrência não é imune a críticas. Há, por exem-
plo, na literatura, quem perceba a presença de uma colisão de objetivos na esfera da UE pela
para a obtenção de escopos que a transcendem. Essa natureza instrumen-
tal201 da concorrência, na UE, reflete a dimensão social do então mercado
comum202 desde os primórdios203 da construção europeia (MÜLLER, 2014,
p. 344-347) e se vincula especialmente aos objetivos (FORGIONI, 2012, p.
130) delimitados no art. 3o e 3o-A do Tratado da EU, também denominado
“Tratado de Maastricht” (UNIÃO EUROPEIA, TRATADO DA UNIÃO...).
Inicialmente, nos EUA do fim do século XIX, a concorrência era vista ex-
clusivamente como condição da existência de uma economia de mercado.
201 Há, na literatura, quem identifique características híbridas no modelo europeu. (SANTOS;
GONÇALVES; MARQUES, 2008, p. 319-321)
203 É interessante recordar que a Declaração Schuman, proferida pelo ministro francês dos Negócios
Estrangeiros, Robert Schuman, em 9 de maio de 1950, propunha a criação da Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço (CECA) com vista a instituir um mercado comum do carvão e do
aço entre os países fundadores. A CECA, cujos membros fundadores foram França, Alemanha,
Itália, Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo, foi a primeira de uma série de instituições europeias
supranacionais que deram origem à atual União Europeia. A respeito, Augusto Jaeger Junior ob-
serva que “a orientação econômica do processo de integração é decorrente dessa declaração”,
que afirma “ao contrário de um cartel internacional que tende a repartir e a explorar os mercados
nacionais com base em práticas restritivas e na manutenção de elevados lucros, a organização
projectada assegurará a fusão dos mercados e a expansão da produção”. Ainda segundo o autor,
“isso implicava a necessidade de controlar os comportamentos das empresas por meio de nor-
mas de concorrência e impedir o protecionismo estatal mediante a garantia da livre circulação
dos fatores de produção. A declaração, reproduzida no Preâmbulo do Tratado da Comunidade
Econômica Europeia para o Carvão e o Aço (TCECA), que viria a surgir em 1951, continha os va-
lores e os princípios fundamentais de caráter político e econômico do processo de integração”. 143
(JAEGER JUNIOR, 2010, p. 48-49; UNIÃO EUROPEIA, DECLARAÇÃO SCHUMAN..., 1950)
204 A doutrina concorrencial estadunidense, a partir dos precedentes da Suprema Corte daquele
país, divide as condutas anticoncorrenciais entre aquelas que são ilícitas per se e as que somente
serão objeto de sanção após um estudo com fulcro na regra da razão, com uma análise casuística
dos potenciais efeitos anticompetitivos comparativamente às eficiências esperadas com a prá-
tica em questão. Philip Areeda esclarece que: “the Sherman Act prohibition against ‘every’ agreement in
restraint of trade has been understood by the federal courts since the 1911 Standard Oil decision to forbid
only ‘un-
reasonable restraints’. However, Standard Oil reconciled earlier categorical prohibitions with its own rule of reason by
declaring some restraints ‘inherently unreasonable’ or, as later courts put it, ‘per se unlawful’”. (AREEDA, 1981)
antitruste, que proibia205 os atos que restringissem o comércio (PFEIFFER,
2015, p. 224). Mais tarde, o modelo da concorrência-condição, também dito
norte-americano, seria atenuado (CORDEIRO, 2005, p. 126) por interpreta-
ções baseadas na regra da razão (rule of reason)206, que passaram a considerar
o contexto concorrencial e as repercussões, múltiplas, dos atos empresa-
riais e da resposta estatal, de forma que as práticas que restringem a con-
corrência de forma não razoável são consideradas ilegais207.
No sistema da concorrência-instrumento, a concorrência é vista como
um meio para se chegar a algum objetivo outro que supere a mera assegu-
ração de concorrência. Esse objetivo, por sua vez, varia conforme o país ou
a organização multilateral político-econômica (por exemplo, a represen-
tada pela UE208), conforme seus princípios, regras, valores e postulados
juridicamente definidos.
205 Por exemplo, assim dispõe o § 1o do Sherman Act: § 1 Sherman Act, 15 U.S.C. § 1
Trusts, etc., in
restraint of trade illegal; penalty. Every contract, combination in the form of trust or otherwise, or conspiracy, in
restraint of trade or commerce among the several States, or with foreign nations, is declared to be illegal. Every
person who shall make any contract or engage in any combination or conspiracy hereby declared to be illegal shall
be deemed guilty of a felony, and, on conviction thereof, shall be punished by fine not exceeding $100,000,000 if
a corporation, or, if any other person, $1,000,000, or by imprisonment not exceeding 10 years, or by both said
punishments, in the discretion of the court. (EUA, SHERMAN ACT)
206 Desenvoldida com o julgamento do caso Standard Oil, de 1910, que se tornou célebre. Em seu
voto vencedor, o juiz White afirmou que as proibições estatuídas no Sherman Act deveriam ser
interpretadas à luz da razoabilidade, princípio geral da common law que constituiria a medida da
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
legalidade. Com isso, passou-se a entender que as práticas mercantis não poderiam ser taxadas
de ilícitas a priori, mas, antes, deveriam ser analisadas casuisticamente. Com efeito, a jurisprudên-
cia, ao considerar a seção 1 do Sherman Act, que proíbe os acordos restritivos ao comércio, passou
a exigir, para a condenação de acordos entre concorrentes, os requisitos de que os agentes eco-
nômicos detivessem poder de mercado e tivessem se engajado em práticas que não pudessem
ser toleradas, dado o seu efeito ou intuito de proteger ou fortalecer uma posição de (quase) mo-
nopólio. Portanto, a jurisprudência dos EUA, desde há muito, percebe que, para considerar uma
prática mercantil como incompatível com a legislação concorrencial, é necessária uma análise
dos objetivos e do potencial anticompetitivo da prática investigada. (FINDLAW, U. S. SUPREME
COURT,. STANDARD OIL CO. OF NEW JERSEY v. US; FGV, 2008, p. 130)
207 Destaque-se que, em regra, o cartel é exemplo de infração que recebe tratamento sob a perspec-
144 tiva da ilegalidade per se. (EUA, ANTITRUST..., 2010)
208 No que tange a esse tema, recorda-se que o então Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias
(TJCE) ao julgar o processo C‐501/06, GlaxoSmithKline/Comissão, em 6/10/2009, asseverou que
“por outro lado, importa sublinhar que o Tribunal de Justiça já decidiu que o artigo 81° CE visa,
a exemplo de outras regras de concorrência enunciadas no Tratado, proteger não apenas os in-
teresses dos concorrentes ou dos consumidores, mas a estrutura do mercado e, deste modo, a
concorrência em si mesma. Por isso, a declaração da existência de objectivo anticoncorrencial de
um acordo não pode ficar subordinada a que os consumidores finais fiquem privados das vanta-
gens de uma concorrência eficaz em termos de aprovisionamento ou de preços (v., por analogia,
acórdão T‑Mobile Netherlands e o., já referido, n. 38 e 39)”. (CURIA, 2009)
Embora não se possam desprezar eventuais conflitos entre o aspecto
organizacional e o aspecto intervencionista do Direito e da política con-
correncial, já que o Estado garante a concorrência e simultaneamente a
instrumentaliza para atingir seus objetivos de política econômica, esses
eventuais conflitos (exceção) não podem impedir a adoção de normas e
de políticas públicas em que a concorrência tenha papel funcional, em
benefício da coletividade (regra), uma vez que, como todo fenômeno hu-
mano, mesmo a concorrência pode apresentar contradições, passíveis de
209 O discurso do comissário europeu, em 1993, em que ele menciona esse aspecto, tornou-se icôni-
co. (MIERT, 1993)
212 Veja-se a carta encíclica do Papa Pio XI, Quadragesimo anno, em que se destacou o conceito de
“justiça social”. (PIO XI, 1931)
Direito da Concorrência, no Brasil, presente desde as suas origens, sem-
pre permitiu que a proteção do consumidor fosse compreendida como
uma de suas finalidades (OLIVEIRA, 2007, p. 172).
Ainda, uma questão importante relacionada ao tema envolve os limi-
tes da capacidade de instrumentalização política da concorrência, pois,
embora a concorrência apresente elementos de solidariedade imanentes
(MÜLLER, 2014, p. 53) (sob a perspectiva do consumidor, os resultados
do desempenho empresarial são transmitidos sob a forma de redução de
preços, aumento da qualidade de produtos e serviços, aumento da diver-
sidade de opções etc.) a política concorrencial deve, sobretudo, cumprir
sua função essencial, a saber, a manutenção da livre concorrência, consi-
derando permanentemente a defesa do consumidor, e não ser descarac-
terizada, o que fatalmente prejudicaria o consumidor.
213 Em tradução livre: é amplamente afirmado, nos círculos de defesa da concorrência contemporâ-
neos, que a lei antitruste protege os consumidores, e não os concorrentes.
216 Em tradução livre: todos os sistemas de Direito da Concorrência tem uma número de objetivos
que pretende alcançar, alguns dos quais podem ser particularmente ligados às peculiaridades
147
da economia do país ou região e outros que podem mudar com o passar do tempo ou com a
mudança de ideologias políticas ou de escolas.
217 Em tradução livre: uma das três principais políticas baseia-se na ideia de que a concorrência é um
valor em si mesmo, um outro conceito se baseia em argumentos de eficiência econômica puras e
uma terceira política aceita interesses públicos mais amplos como o objetivo da concorrência.
218 Em tradução livre: em 1979, o Supremo Tribunal mais uma vez escolheu interpretar a lei anti-
truste para proteger os consumidores, não as pequenas empresas, descrevendo o Sherman Act
como uma “receita de bem-estar do consumidor”. Outros tribunais adotaram pontos de vista se-
melhantes. Durante as últimas décadas, tribunais, agências e profissionais de defesa da concor-
Do mesmo modo, Robert Bork afirma que “the antitrust laws, as they now
stand, have only one legitimate goal, and that goal can be derived as rigorously as any
theorem in economics”. Para ele, “the only legitimate goal of American antitrust law is
the maximization of consumer welfare”, embora assevere que “clearly the law does
employ other values, values that often conflict with consumer welfare, and occasionally,
though not often, courts have been explicit about the fact”219 (BORK, 1993, p. 50-51).
Já Eleanor Fox opõe-se à definição de objetivos. Segundo a autora,
há consenso no que tange à definição dos mercados, que se quer sejam
robustos. Entretanto, no que tange ao Antitruste, há controvérsia. Para ela,
the question, then, is how to reach the objective of “robust markets” or, more precisely,
how antitrust can be used to do so. The core debate is how to design and apply antitrust
principles so that robust markets are likely to result or be preserved, not what are the goals
of antitrust.
There is wide agreement on a second proposition: we do not want to, nor could we if we desi-
red, engineer the results. The answer must lie in safeguarding an environment that creates
the right incentives, the right mix of business freedom, and prohibitory rules and standards.
At this point, consensus ends. Experts and stakeholders are divided. On what do they
disagree? On perspective and on assumptions220. (FOX, 2013, p. 2160)
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
rência têm reconhecido o bem-estar do consumidor como o objetivo unificador da lei antitruste.
“Poucas pessoas contestam que a missão antitruste central é proteger o direito dos consumido-
res a preços baixos, inovação e produção diversificada que a concorrência promete”.
219 Em tradução livre: as leis antitruste, como hoje definidas, têm apenas um objetivo legítimo, e
este objetivo pode ser derivado tão vigorosamente quanto qualquer teorema em economia. [...].
o único objetivo legítimo da lei antitruste americana é a maximização do bem-estar do consu-
midor [...] claramente a lei emprega outros valores, valores que muitas vezes conflitam com o
bem-estar dos consumidores e, ocasionalmente, embora não muitas vezes, os tribunais têm sido
148 explícitos sobre o fato.
220 Em tradução livre: a questão, então, é a forma de alcançar o objectivo de “mercados robustos”
ou, mais precisamente, como o Antitruste pode ser usado para fazê-lo. O debate central é como
projetar e aplicar os princípios de defesa da concorrência para que resultem em ou preservem
mercados robustos, não o que são os objetivos do Antitruste. Existe um amplo acordo sobre uma
segunda proposição: nós não queremos, nem poderíamos, se desejado, engenhar os resulta-
dos. A resposta deve estar na salvaguarda de um ambiente que cria os incentivos adequados, a
combinação certa de liberdade comercial e regras de proibição e padrões. Neste ponto, termina
o consenso. Os peritos e as partes interessadas estão divididas. Em que eles discordam? Em
perspectiva e em suposições.
Como se percebe, há um mal-estar envolvendo o Direito da
Concorrência. Afinal, percebe-se que, por alguma razão, o legislador ha-
bitualmente é hesitante ao definir os elementos (subjetivos e objetivos)
protegidos pela lei concorrencial (discussão dos chamados Schutzziele e
Zielkonflikte [GUSKI, 2015, p. 518]) e os objetivos da política concorrencial.
Essa característica denuncia a preferência por um discurso vago221 e con-
troverso, mas incapaz de esconder que o consumidor não é terra incognita
para o Direito da Concorrência.
221 João Maurício Adeodato (2014, p. 110) anota que a análise do discurso procura detectar estraté- 149
gias falaciosas empregadas pelo autor escolhido (o que inclui, naturalmente, o legislador). Entre
as estratégias está a da vagueza. Para o autor, “quanto mais preciso o discurso, menos acordo ele
atrairá. A contrario sensu, quanto menos diga efetivamente, mais acordo. Quando esses termos va-
gos trazem uma conotação positiva no âmbito da retórica estratégica, mais eficazes ainda. Quem
poderia ir contra frases como ‘uma efetiva distribuição de justiça’, ou ‘uma posição ponderada,
responsável e sem fanatismos’. Isso não quer dizer nada, mas o orador atrai simpatia para o que
vai defender efetivamente [...].”
222 Nesse sentido, Daniel Glória (2003, p. 93), para quem “a proteção do consumidor é o princípio básico do
direito da concorrência, pois se não houver concorrência não há uma efetiva defesa do consumidor”.
(uma alegoria possível equipararia a livre concorrência à democracia e o
abuso de posição dominante à tirania). Da mesma forma, eventuais danos
à concorrência são com frequência percebidos na medida em que trazem
disfunções ao processo de descoberta (HAYEK, 1985, p. 72) que caracteri-
za a concorrência.
É certo, assim, que a ausência de concorrência (em situações de mo-
nopólio natural ou legal), ou a sua limitação (por infrações da ordem eco-
nômica), é passível de reconhecimento e terá efeitos sobre o consumidor,
podendo, mesmo, comprometer seu bem-estar. Não por acaso, considera-
-se que o consumidor é o destinatário econômico final das normas concor-
renciais (FORGIONI, 2012, p. 246), sendo seu bem-estar uma espécie de
Leitmotiv perseguido pelas autoridades antitruste. O legislador francês, por
exemplo, ilustrou bem essa característica ao intitular a lei concorrencial
como “loi pour le développement de la concurrence au service des consommateurs”223
(FRANÇA, 2008).
No Japão, por exemplo, considera-se que a lei antimonopólio é meio
para a defesa dos interesses de consumidores e de associações de consu-
midores, como se verifica:
für Japan ist es typisch, dass Verbraucher und Verbrauchergruppen großes Interesse für
das Antimonopolgesetz als Mittel zur Verteidigung ihrer Rechte hegen. Dieses Bewusstsein
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
der Verbraucher und Verbrauchergruppen bildet sicherlich eine wichtige Stütze bei der
Entwicklung des Antimonopolgesetzes224. (AKIRA, p. 18)
223 Em tradução livre: lei para o desenvolvimento da concorrência a serviço dos consumidores.
224 Em tradução livre: no Japão é usual que os consumidores e grupos de consumidores apresentem
grande interesse na lei antimonopólio como um meio para defender os seus direitos. Esta toma-
da de consciência dos consumidores e grupos de consumidores certamente constitui um pilar
importante no desenvolvimento da Lei antimonopólio.
que, a longo prazo, o prejudica em aspectos multifatoriais, o que sugere
a necessidade de uma reflexão cuidadosa sobre o tema. Não por acaso,
“the law has long recognized that there is an inherent tension between the immediate
interestes of consumers and the incentives that motivate producers. Consumers desire a
low price while producers seek high profits” (BUTTIGIEG, 2009, p. 161)225.
É que determinadas condutas podem apresentar efeitos transitoria-
mente benéficos ao consumidor e, em momento posterior, mostrarem-se
prejudiciais, o mesmo sendo possível inversamente – o que problematiza
225 Em tradução livre: a lei reconheceu há muito tempo que há uma tensão inerente entre os inte-
resses imediatos dos consumidores e os incentivos que motivam produtores. Os consumidores
desejam um preço baixo, enquanto produtores procuram altos lucros.
151
226 Que, todavia, não se conseguiu localizar. Pelo seu didatismo, optou-se por mantê-la neste traba-
lho. Ela foi citada em Forgioni (2012, p. 239).
227 Segundo o item 34 do Guia para Análise Econômica de Preços Predatórios da SEAE, uma definição
excessivamente inclusiva do que seria uma “venda abaixo do custo” poderia ter conseqüências
danosas ao bem estar do consumidor, pois haveria a possibilidade de confundir-se uma prática
predatória com uma competição vigorosa, inibindo-se ou constrangendo esta última. Por exemplo,
não raro se confunde “preços abaixo do custo” com “preços abaixo dos preços de mercado”, o que é
evidentemente impróprio, dado que um entrante mais eficiente poderia facilmente realizar vendas
a preços inferiores aos anteriormente praticados em um dado mercado. (BRASIL, MF, SEAE, 2002)
zado senão para obter lucro, de forma que a prática de preço predatório
explica-se à medida que pretende prejudicar os concorrentes, em um pri-
meiro momento, e o consumidor, em um segundo momento − para além
de prejudicar a própria concorrência.
Desse modo, expõe-se a insegurança jurídica que a incerteza sobre
os interesses protegidos pela lei concorrencial representa. Seguramente,
no caso há pouco examinado, tivesse a concorrência sido o interesse pre-
dominante, o resultado da decisão teria sido outro, resguardando, então,
os interesses da própria concorrência, dos concorrentes e do consumidor.
Quanto à Lei n. 12.529/2011, percebe-se que ela é omissa quanto aos
seus objetivos, havendo algumas “pistas” sobre a sua finalidade no art. 1o,
caput, que refere:
152 228 O fenômeno do poder econômico, no Brasil, remonta à própria constituição do Estado, tendo em
vista as raízes coloniais do País, que assumiu em um primeiro momento a forma de um monopó-
lio econômico dominado por Portugal. Enquanto colônia de uma metrópole distante, o País apre-
sentava uma estrutura burocrática diluída e que objetivava primordialmente proteger a estrutura
econômica, que surgiu antes mesmo da formação do Estado. Ainda depois disso, a concentração
econômica se reproduz do mesmo modo: concentração regional da atividade econômica, con-
centração industrial em setores determinados, concentração fundiária etc. E, mais importante
do que a formatação econômico-estatal, essa situação teve conseqüências sociais profundas, le-
vando à criação de padrões de desigualdade que acompanharam o desenvolvimento dos ciclos,
que, do ponto de vista social, poderiam ser chamados de ciclos de drenagem. (SALOMÃO FILHO,
2013, p. 27-30)
36, III, da Lei n. 12.529/2011), hipótese que, embora para a Economia seja
aceitável (porque fator inegável de estímulo à competição), para o Direito
não o é na medida em que contém a ideia de abuso, perfazendo um ato
antijurídico, contrário à boa-fé.
the theory underlying competition policy (and law) must neither be overcomplex
nor undercomplex. The “Chicago School’s” price or efficiency concept proves to be
undercomplex, because it is unable to adequately reflect the non-price dimensions of
consumer preferences229. (BEHRENS, 2014, p. 33)
229 Em tradução livre: a teoria subjacente à política concorrencial (e ao Direito) não deve ser dema-
siadamente complexa, nem pouco complexa. O conceito de preço ou de eficiência da Escola de
Chicago prova ser pouco complexo, porque é incapaz de refletir adequadamente as dimensões
não-preço de preferências dos consumidores.
230 Embora se esteja ciente dos problemas envolvendo a definição de well-being e do Paradoxo de
154 Easterlin, que sugere que não há um link entre o desenvolvimento econômico de uma sociedade
e seu nível médio de felicidade. (STEVENSON; WOLFERS, 2008)
231 Em artigo recente, Vanessa Friedman fala, por exemplo, da questão da fadiga do produto, pela
exposição midiática excessiva, que está transformando a indústria da moda. Segundo a autora,
“interviews with dozens of retailers, editors, designers and private individuals over the last few weeks suggest that
women are experiencing product fatigue. After being inundated by images and live streams from runway shows, from
awards shows where the items are worn mere days after they appear on the runway, and from ad campaigns (and the
making of ad campaigns), by the time these customers see the clothes in stores, the dresses and skirts and suits seem
tediously familiar. Old. Over”. Em tradução livre: entrevistas com dezenas de comerciantes, editores,
designers e particulares ao longo dos últimas semanas sugerem que as mulheres estão experimen-
no que tange a non-price criteria such as quality, speed of delivery, after sales service,
new or better products etc.232 (BEHRENS, 2014, p. 28)
O Guia para Análise Econômica de Atos de Concentração Horizontal
(BRASIL, MF, SEAE/SDE, 2001), que ainda é utilizado pelo CADE, apesar
de publicado em 2001, informa que a defesa da concorrência “é meio para
se criar uma economia eficiente e preservar o bem-estar econômico da
sociedade”. E, em uma economia eficiente, “os consumidores dispõem
da maior variedade de produtos pelos menores preços possíveis. Em tal
tando fadiga do produto. Depois da inundação por imagens e transmissões ao vivo de desfiles,
de prêmios onde os itens são usados poucos dias depois que eles aparecem na passarela, e de
campanhas de publicidade (e a realização de campanhas publicitárias), no momento em que
esses clientes vêem as roupas nas lojas, os vestidos e saias e ternos parecem tediosamente
familiares. Velhos. Ultrapassados. (FRIEDMAN, 2016, p. D1)
232 Em tradução livre: critérios que não o preço, como qualidade, velocidade de entrega, serviço
pós-venda, produtos novos ou melhores etc.
EUA, pelo menos no que tange às fusões. Já no Canadá, Austrália e Nova
Zelândia, as autoridades concorrenciais inclinam-se em direção ao padrão
de bem-estar total (IDEM).
Desse modo, discute-se qual dos dois modelos de bem-estar (o do
consumidor ou o do produtor) deve ser o objetivo apropriado da política
concorrencial. Massimo Motta e Lucia Helena Salgado argumentam que
não seria sensato que as autoridades concorrenciais adotassem um ob-
jetivo de bem-estar do consumidor estrito por diversas razões, entre as
quais se destaca o fato de que, se houvesse o objetivo de maximizar o
excedente do consumidor, os preços se elevariam ao nível do custo mar-
ginal e as empresas deixariam o mercado no longo prazo ou teriam de ser
subsidiadas para poderem cobrir seus custos fixos. Além disso, preços e
lucros mais baixos retirariam das empresas os incentivos necessários para
inovar, investir e oferecer novos produtos e serviços. Consequentemente,
deve-se considerar o objetivo de maximizar o bem-estar do consumidor
ao longo do tempo (em termos dinâmicos); caso contrário, ajudar os con-
sumidores hoje significará prejudicá-los amanhã (IDEM, p. 22).
233 Em livre tradução: o direito à plena expressão da personalidade também inclui a esfera econô-
mica, de modo que cada indivíduo deve ter o direito de usar suas habilidades para alcançar o
bem-estar material.
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, objetiva as-
segurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Em
suma, verifica-se que a livre concorrência é um princípio indutor da prote-
ção da dignidade da pessoa humana. Mais do que isso, com base na teoria
penal, pode-se pensá-la como garante da proteção da dignidade da pessoa
humana. O garante responsabiliza-se por alguém ou algo. É uma espécie
de fiador. A concorrência, nesse sentido, torna-se uma instituição que, mais
do que propiciar, “garante” a proteção da dignidade humana por meio da
defesa do consumidor. Afinal, segundo Friedrich von Hayek, “dividir ou des-
centralizar o poder é, forçosamente, reduzir a soma absoluta de poder, e o
sistema de competição é o único capaz de reduzir ao mínimo, pela descen-
tralização, o poder exercido pelo homem sobre o homem” (HAYEK, 1977,
p. 137). Não há, pois, como negar que a concorrência exerce uma função
importante (embora muitas vezes negligenciada) na sociedade de consumo
que caracteriza o Pós-modernismo contemporâneo.
Além disso, não se pode isolar a proteção do consumidor de outras
políticas públicas, por exemplo. O consumidor não é uma ilha e requer uma
proteção que considere as particularidades que carrega consigo. Se a ló-
gica do subsistema consumerista é uma lógica da proteção do sujeito por-
que vulnerável, a atuação desse sujeito, como consumidor, em quaisquer
dimensões (o que inclui a perspectiva concorrencial) deve preservar essa
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
235 A regra seria um princípio em si mesmo considerado, e a lei seria a sua forma, ou o que o con- 163
tém. Então, a lei seria o continente, enquanto a regra e o princípio seriam o conteúdo da lei.
(MARTINS-COSTA, 2000, p. 317)
236 Essa disposição pressupõe o reconhecimento de que o País é, ainda, subdesenvolvido − fato
que a desigualdade social que lhe é inerente infelizmente ainda demonstra. O desenvolvimento
que se objetiva alcançar não é, porém, qualquer desenvolvimento, mas um desenvolvimento
sobretudo inclusivo e sustentável, o que pressupõe “erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Conforme palestra do Professor Doutor Gilberto
Bercovici realizada no Salão nobre da Faculdade de Direito, em 9/2/2015, por ocasião do curso de
verão em Direito Econômico realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da USP.
mover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação.
Analisado o diálogo entre os princípios da livre concorrência e da
defesa do consumidor, passa-se a verificar o diálogo entre as leis que os
materializam, o que é importante para a compreensão da simbiose entre
o Direito da Concorrência e do Consumidor em um quadro sistemático.
237 Considerando-se que os diferentes ramos do Direito constituem subsistemas fundados em uma
lógica interna e na compatibilidade externa com os demais subsistemas. (BARROSO, 2015, p. 329-
330).
las relaciones de consumo, en particular la Ley N. 25.156 de Defensa de la Competencia
y la Ley N. 22.802 de Lealtad Comercial o las que en el futuro las reemplacen. En caso
de duda sobre la interpretación de los principios que establece esta ley prevalecerá la más
favorable al consumidor.
Las relaciones de consumo se rigen por el régimen establecido en esta ley y sus reglamen-
taciones sin perjuicio de que el proveedor, por la actividad que desarrolle, esté alcanzado
asimismo por otra normativa específica238. (ARGENTINA, 1993/2008)
167
239 O Projeto de lei do Senado n. 281/2012, que altera o CDC, apresenta uma “positivação” clara
da técnica do diálogo das fontes, como demonstra o art. 3-A: “Art. 3-A. As normas e os negócios
jurídicos devem ser interpretados e integrados da maneira mais favorável ao consumidor”.
(BRASIL, SENADO, 2012)
240 Algumas ideias aqui expostas basearam-se na palestra proferida pela Professora Doutora Claudia
Lima Marques no Primer Congreso Sudamericano de Derecho del Consumidor, realizado em setembro de
2015 na Universidad Nacional del Litoral, em Santa Fe, na Argentina. (MARQUES, 2015)
especificamente da Lei n. 12.529/2011 (hipótese de legislação interna or-
dinária), tema que será analisado nos capítulos 4 e 5 deste trabalho.
A proposta do CDC é, ainda, a superação da vulnerabilidade do con-
sumidor. Essa mesma proposta está presente nas disposições constitucio-
nais relacionadas à defesa do consumidor e deve, portanto, integrar todo
o sistema jurídico, sob pena de se comprometer o diálogo entre as normas
que o integram. Assim, a superação da vulnerabilidade do consumidor
também pela lei concorrencial é uma premissa.
É particularmente importante destacar o papel da Política Nacional
das Relações de Consumo, que, prevista no art. 4o do CDC, objetiva o (i)
atendimento das necessidades dos consumidores, o (ii) respeito à sua
dignidade, saúde e segurança, a (iii) proteção de seus interesses econô-
micos, a (iv) melhoria da sua qualidade de vida, bem como a (v) transpa-
rência e harmonia das relações de consumo. Para tanto, alguns princípios
devem ser atendidos, entre os quais se destacam os seguintes, previstos
nos incs. I, II, III, IV, VI, VII e VIII do citado art. 4o, litteris:
Por fim, destaca-se que, como visto no segundo capítulo deste traba-
241 Em tradução livre: a falta de concorrência pode levar a falhas de mercado, razão pela qual os
governos intervêm para tentar garantir mercados competitivos. Outra importante fonte de falha
de mercado ocorre quando os consumidores não têm informações completas sobre os produtos
e preços disponíveis no mercado. As falhas de mercado que surgem da falta de informação são
um foco primário da política de protecção do consumidor.
to previsto no inc. II do caput do art. 36 da Lei n. 12.529/2011, que cuida da
hipótese de domínio de mercado relevante de bens ou serviços, enquan-
to que, no âmbito do controle estrutural, conforme dispõe o art. 88, § 6o,
da Lei n. 12.529/2011, a eficiência é um dos fatores, ao lado do repasse de
parte relevante de benefícios ao consumidor, que permitem a autorização
de atos de concentração econômica que impliquem eliminação da concor-
rência em parte substancial de mercado relevante, que possam criar ou
reforçar uma posição dominante ou que possam resultar na dominação de
mercado relevante de bens ou serviços.
Sumariamente, pode-se dizer que o embate entre os postulados das
Escolas de Freiburg e de Chicago envolvem duas percepções distintas
sobre o significado de “bem-estar do consumidor”. Enquanto o bem-estar
do consumidor significa grosso modo para os teóricos da Escola de Freiburg
liberdade de escolha, para os teóricos representados pela Escola de
Chicago, ele significa eficiência, e eficiência entendida tão somente como
a habilidade de produzir a custos menores e, consequentemente, redu-
zir, teoricamente, os preços de produtos e serviços para o consumidor
(SALOMÃO FILHO, 2013, p. 3, 40, 44).
A defesa da eficiência vincula-se claramente à teoria utilitária, uma
teoria de justiça que é teleológica, e não deontológica (MOUFFE, 1999,
p. 71), e que, já se demonstrou, é incompatível com o sistema jurídico,
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
242 Como nota Dworkin, o utilitarismo é uma teoria baseada em metas, enquanto os imperativos
categóricos de Kant configuram uma teoria baseada em deveres. (DWORKIN, 2010, p. 266)
243 E, segundo Rawls (2008, p. 29), “define-se o bem independentemente do justo e, então, define-
-se o justo como aquilo que eleva o bem ao máximo”.
Mesmo assim, no final da década de 1990, a Comissão Europeia re-
gistrou o surgimento de uma tese favorável a uma abordagem mais eco-
nômica (more economic approach) do Direito, expressão que denota um au-
mento do uso da Ciência Economia pelo Direito da Concorrência e inclui
o aumento da confiança na Ciência Econômica para informar as normas
concorrenciais, privilegiando o parâmetro econômico da “eficiência” como
fator de que resultariam benefícios ao consumidor, perspectiva reconhe-
cidamente defendida pela Escola de Chicago:
244 Em tradução livre: a Comissão reconhecidamente já anunciou no seu Livro Branco de 1999 uma 173
“abordagem mais econômica” (more economic approach), na avaliação concorrencial do comporta-
mento empresarial sem primeiro explicar mais detalhadamente o que isso significava exata-
mente. Mas apoiadores e críticos de uma “abordagem mais econômica”, tendem muitas vezes a
acreditar que a Comissão a introdução dos efeitos da eficiência (particularmente no bem-estar
do consumidor) vá orientar testes de ganhos de poder de mercado. Para tanto deram motivo as
manifestações de representantes devidamente autorizado pela Comissão.
245 O Departamento de Justiça dos EUA e a Comissão Europeia propuseram ação contra a Microsoft
Corporation por abuso de poder de mercado nos mercados de sistemas operacionais e de navega-
dores de internet.
Assim, a proposta da Escola de Chicago, que privilegia a eficiência
como suposta garantia do bem-estar do consumidor, embora eloquente,
é questionável, uma vez que, na ideia central da Escola de Chicago, a
principal certeza é o aumento de lucros pelo agente econômico (leia-se
fornecedor-concorrente), e não a apropriação consequente de benefícios
(como redução de preços de produtos e/ou serviços, por exemplo) pelo
consumidor. Isso, aliás, poderá jamais ocorrer, ou, ocorrendo, poderá não
corresponder à previsão hipotética inicial − o que faz a legislação brasilei-
ra prever que, na hipótese de os benefícios decorrentes da concentração
autorizada não serem alcançados, a autorização poderá ser revista pelo
Tribunal do CADE, de ofício ou mediante provocação da Superintendência-
Geral, como preceitua o art. 91 da Lei n. 12.529/2011.
Então, na tentativa de supostamente proteger o consumidor, a teoria
neoclássica pode, sim, prescindir dos interesses, do bem-estar do con-
sumidor, já que ela não apresenta preocupações de cunho distributivo
(MÖLLER, 2008, p. 92; SALOMÃO FILHO, 2013, p. 76), que estão, contudo,
presentes na lei concorrencial brasileira, aspecto intrínseco aos objeti-
vos do Direito da Concorrência, como percebe Robert Lande, para quem
“wealth transfers demonstrated that the antitrust laws were intended to be, and are best
viewed as, a type of consumer protection statute” 246 (LANDE, 1999, p. 959).
Por isso, a perspectiva que considera necessário proteger a existência
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
246 Em tradução livre:“transferências de renda demonstraram que as leis antitruste foram destinadas
a ser e são mais vistas como um tipo de estatuto de defesa do consumidor”.
conformidade com a ideia de “soberania” do consumidor, permitindo-lhe
ser protagonista do ato de consumo que deseja e/ou necessita realizar na
medida em que lhe é facultado escolher, e não simplesmente consumir
o que um ou alguns fornecedores lhe imponham. Por ironia, o dogma da
autonomia privada (da vontade), uma decorrência da liberdade, aqui, é
tomado em benefício, e não em prejuízo do consumidor, já que é a sua
autonomia que está em jogo.
Finalmente, se o mote do CDC, exemplo de lei com função social que
varias empresas concurren al mercado con sus productos y rivalizan en calidad y precio,
posibilitando la elección del consumidor. Esta posibilidad, ejercitada de una manera espon-
tánea, libre, sin trabas ni limitaciones, como no sean las propias de la producción, distri-
bución o comercialización, es lo que se busca o anhela. En su tutela o defensa se orienta
la normativa legal247.
247 Em tradução livre: várias empresas concorrem no mercado com seus produtos e rivalizam em
qualidade e preço, permitindo a escolha do consumidor. Esta possibilidade, exercida de uma for-
ma espontânea, livremente, sem entraves ou limitações que não sejam às próprias da produção,
distribuição ou comercialização, é o que se pretende obter ou almeja. Em sua tutela ou defesa se
orientam as normas legais.
248 Para o autor, “só se pode defender a negação das liberdades iguais quando isso é essencial para
alterar as condições de civilização de modo que, no momento apropriado, seja possível desfrutar
dessas liberdades”. (RAWLS, 2008, p. 29)
provavelmente sobreviverá como se eficiente fosse (MOTTA; SALGADO,
2015, p. 38).
Trata-se de um mecanismo darwiniano, pois a concorrência sele-
ciona empresas eficientes. Em um mercado em que existam empresas
mais e menos eficientes, a concorrência forçará as menos eficientes
a deixá-lo. O bem-estar será elevado, porque os bens serão produzi-
dos a menor custo. Um argumento relacionado ao tema envolve o fato
de que, quando a concorrência existe, diferentes projetos, produtos
249 Termo que define uma situação em que há conflito de escolha. Caracteriza uma ação econômica
que visa à resolução de um problema mas acarreta outro, obrigando que se faça uma escolha.
implicadas em um contexto de maior competição no mercado, oferecem
preços menores, o que indubitavelmente eleva o excedente do consu-
midor (eficiência alocativa). Por outro lado, há uma duplicação de custos
fixos, o que representa perda em termos de eficiência produtiva (estática)
(MOTTA; SALGADO, 2015, p. 42).
Esse trade-off entre eficiência alocativa e eficiência produtiva implica
que uma política que almeja maximizar o número de empresas de de-
terminada indústria seria inconsistente: muitas empresas aumentariam a
competição e deslocariam os preços para baixo, mas, ao mesmo tempo,
envolveriam uma perda de economias de escala. Um conflito com critérios
econômicos de bem-estar poderia ser gerado se uma autoridade concor-
rencial tentasse não só garantir a possibilidade de entrada em uma indús-
tria, como garantir que todas as empresas competissem em condições de
igualdade e, além disso, usassem subsídios ou outros instrumentos de
política industrial para ativamente promover a entrada ou artificialmente
impedir a saída de empresas de um setor (IDEM).
Apesar dessas ponderações, juridicamente, é necessário assegu-
rar as condições fáticas mínimas para que exista a liberdade de esco-
lha e, logo, o direito do consumidor ao consumo e à escolha (papel
desempenhado pelo sistema de defesa da concorrência). A eficiência,
que é o principal mote da disputa que caracteriza a competição (e a
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
179
250 Em livre tradução: aceita-se o fato de que os seres humanos seguem suas emoções, apesar dos
perigos inerentes a uma tal atitude. A ideia utilitária, segundo a qual as razões de natureza eco-
nômica determinam ou devem determinar exclusivamente as ações do homem, não é mais con-
vincente. Os homens estão lutando também pelos valores da alma. Em Direito, é a preservação
da identidade cultural que é a expressão desses sentimentos [...].
tenha consciência dos interesses em jogo e da sua função econômica, mas
sem que esta função econômica constitua o critério prevalente251.
Enfim, a conquista de eficiência não pode continuar a ser vista como
o fator preponderante, como propõe a Escola de Chicago, mas como fator
importante. É também necessário perguntar que espécie de eficiência se
deseja conquistar. Afinal, o desenvolvimento de um peixe geneticamente
modificado, como o salmão, recentemente “produzido” por uma empresa
de biotecnologia, nos EUA, é seguramente um exemplo de pesquisa e de
inovação que representa ganho de eficiência passível de repartição com
o consumidor. Mas, seguro, sob a ótica do princípio da precaução252, visto
que se trata de tecnologia cuja segurança vem sendo contestada, apesar
da aprovação, em novembro de 2015, pelo U.S. Food and Drug Administration
(FDA) (FDA, 2015)? E os custos ambientais, à saúde?
251 Utilizaram-se, aqui, ideias de Eduardo Galán Corona (1985, p. 15) sobre o Direito econômico,
180
adaptando-as ao contexto do Direito da concorrência.
252 Embora tenha origem no Direito alemão, que o desenvolveu, aponta-se que o princípio da
precaução está positivado no Direito brasileiro desde a adesão, ratificação e promulgação
da Convenção da Diversidade Biológica e da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a
Mudança do Clima. Além disso, a adoção do art. 225 da CRFB/1988 e do art. 54, § 3o, da Lei n.
9.605/1998 também o explicitam. (MACHADO, 2014, p. 98, 112)
255 Em tradução livre: os dois enfoques são complementares e atuam como vasos comunicantes.
256 Em tradução livre: os Direitos da Concorrência e da Proteção do Consumidor estão intimamente relacio-
nados, dois lados da mesma moeda da soberania do consumidor e, portanto, da justiça econômica.
257 A França, por exemplo, mantém um Código do Consumo e, apenas em 2014, por meio da Loi
Hamon de 17/3/2014, introduziu-se naquele código um artigo preliminar assim redigido: «Art.
préliminaire.-Au sens du présent code, est considérée comme un consommateur toute personne physique qui agit à
transversal. Assim, sem modificar seu Direito Privado, em 1993, a França
preferiu organizar um Código de Consumo, consolidando todas as suas leis
internas e as Diretivas europeias relativas à defesa do consumidor. Dessa
forma, observa-se que o tema daquele código não é o consumidor, mas
o consumo mesmo e o mercado de consumo. Reconhece-se que o tema
“consumo” é transversal e envolve vários ramos do Direito, como o Direito
Administrativo, Ambiental, Civil, Concorrencial, Econômico, Empresarial,
Penal, Processual etc. (MARQUES, 2004, p. 24)
Em suma, “un lien particulier unit le droit de la consommation au droit de la
concurrence” (CALAIS-AULOY; TEMPLE, 2015, p. 18)258 e a simbiose é tal que,
sem perder sua identidade, as duas matérias poderiam ser agrupadas em
uma única, o Direito do Mercado (IDEM). No que tange ao caso brasileiro,
Bruno Miragem refere que o Direito do Consumidor constitui um dos fato-
res mais relevantes da ordenação do mercado. Embora se percebam seus
efeitos sobre a proteção do consumidor, no âmbito da relação de consu-
mo, eles se estendem para além das partes diretamente envolvidas nesta
e projetam-se tanto em direção a um determinado grupo de consumidores
ou de fornecedores como em direção ao conjunto dos agentes econômicos
no mercado (MIRAGEM, 2014, p. 81 e ss.). A propósito, segundo a OCDE, as
políticas de defesa da concorrência e do consumidor, ligadas por um pro-
cesso de osmose (MURIS, 2012, p. 7), podem até mesmo se sobrepôr:
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
consumer protection complements competition policy, but they also overlap as a consumer
protection measure can affect competition and vice versa. While both have the common goal
of promoting consumer welfare, their techniques and focus differ. Competition policy seeks to
encourage and ensure a high degree of rivalry among sellers, thereby providing consumers
with greater choice and lower prices. A key element in the competitive process is the role of the
consumer in imposing discipline on competing firms by shifting their expenditures to firms that
best satisfy their needs and wants. Policies that enable consumers to make informed choices in
182 the market can therefore also help maintain competition. Thus, effective competition policies
des fins qui n’entrent pas dans le cadre de son activité commerciale, industrielle, artisanale ou libérale». Em tra-
dução livre: Art. preliminar. Para os propósitos deste código considera-se consumidor qualquer
pessoa física que atue com fins que não pertençam ao âmbito da sua atividade comercial, indus-
trial, artesanal ou profissional. (FRANÇA, 2014)
258 Em traduação livre: um elo particular une o Direito do Consumo ao Direito da Concorrência.
help to protect consumers, and effective consumer policies can help to maintain competition259.
OECD, 2010b, p. 32)
259 Em tradução livre: a proteção do consumidor complementa a política de concorrência, mas elas
também se sobrepõem na medida em que a proteção do consumidor pode afetar a concorrência
e vice-versa. Embora ambas tenham o objetivo comum de promover o bem-estar dos consumi-
dores, suas técnicas e foco diferem. A política concorrencial visa encorajar e assegurar um eleva-
do grau de rivalidade entre os vendedores, proporcionando aos consumidores maior escolha e
183
preços mais baixos. Um elemento-chave no processo competitivo é o papel do consumidor na
imposição de disciplina às empresas concorrentes ao mudar seus gastos para as empresas que
melhor satisfaçam as suas necessidades e desejos. Políticas que permitam aos consumidores
fazer escolhas informadas no mercado, portanto, podem também ajudar a manter a concorrência.
Assim, as políticas de concorrência eficazes ajudam a proteger os consumidores, e políticas efica-
zes de consumo podem ajudar a manter a concorrência.
260 Em tradução livre: políticas concorrenciais efetivas ajudam a proteger os consumidores, e políti-
cas consumeristas efetivas podem ajudar a manter a concorrência.
competition cases are typically fewer in number and broader in scope, affecting entire
markets. Consumer cases are more numerous and more narrowly focused, sometimes
involving a specific practice by a single business. Competition and consumer agencies also
have different tools at their disposal for dealing with violations of their respective laws.
The instruments available to competition agencies are more blunt: fines, or prohibition of
anticompetitive conduct, for example. The remedies available to consumer agencies can be
more targeted and specific: measures designed to improve information flows to consumers,
for example262. (OECD, 2010c, p. 137)
184
262 Em tradução livre: casos concorrência são tipicamente menores em número e de âmbito mais
abrangente, afetando mercados inteiros. Casos de consumo são mais numerosos e têm um foco
mais estreito, por vezes envolvendo uma prática específica de uma única empresa. Agências de
concorrência e dos consumidores também têm diferentes ferramentas à sua disposição para lidar
com violações de suas respectivas leis. Os instrumentos das autoridades de concorrência são
mais contundentes: multas, ou proibição de condutas anticompetitivas, por exemplo. Os remé-
dios disponíveis para as agências de consumidores podem ser mais direcionados e específicos:
medidas destinadas a melhorar os fluxos de informação para os consumidores, por exemplo.
Enquanto a política concorrencial volta-se, resumidamente, à garan-
tia da existência e da preservação da concorrência, permitindo a atuação
de concorrentes (já que o monopólio é situação excepcionalmente tole-
rada) que compitam entre si para, em última análise, conquistar o consu-
midor, possibilitando ofertas mínimas de produtos e serviços com preço
e qualidade que reflitam o ambiente de concorrência, a política consume-
rista pretende garantir, sobretudo, o exercício do direito básico à escolha
do consumidor, a teor do disposto no art. 6o, II, do CDC. A perspectiva
187
CAPÍTULO 1
263 Como apontam Calixto Salomão Filho (2013, p. 105-107), Heloisa Carpena (2005, p. 258), Roberto
Pfeiffer (2015, p. 23) e Paula Forgioni (2012, p. 246), entre outros.
264 Prefácio do professor Mario Monti ao XXIX Relatório
sobre a Política de Concorrência. (UNIÃO
EUROPEIA. XXIX RELATÓRIO..., 2000a, p. 3)
porânea demonstra uma divisão, entre os doutrinadores, no que tange à
possibilidade de haver uma proteção direta do consumidor pela Lei n.
12.529/2011 e, particularmente, de o consumidor titularizar direitos indi-
vidual e/ou coletivamente, tema que é importante para a presente tese,
que reflete sobre o reconhecimento do direito à concorrência.
Essa possibilidade corresponderia a uma necessidade pragmática
decorrente das situações de concentração de poder típicas da economia
brasileira (SALOMÃO FILHO, 2013, p. 107). Todavia, ela não pode ser consi-
196
265 A autora refere-se à Lei n. 8.884/1994, mas sua observação permanece atual e é aplicável à Lei n.
12.529/2011. (CARPENA, 2005, p. 252-253)
266 Assim, por exemplo, Ana Paula Barbosa-Fohrmann (2012, p. 14) fala da proteção do bem “digni-
dade” no âmbito do art. 1o, § 1o, da Lei Fundamental de Bonn.
A proteção direta do consumidor pela Lei n.
12.529/2011
Como visto, para além de uma proteção indireta do consumidor pela
Lei n. 12.529/2011, há uma proteção direta, que ocorre no âmbito (i) da auto-
rização de determinados atos de concentração econômica que apresentem
efeitos anticoncorrenciais, passíveis de legitimação contanto que exista o
repasse de parte substancial dos benefícios decorrentes (do ato) aos con-
nia com um Estado já não liberal, mas de bem-estar social, como visto.
Essa liberdade de empreender materializada na empresa pressupõe
a liberdade de contratar, que não é, todavia, irrestrita. Há, por exemplo, di-
versos princípios no sistema jurídico – inclusive a previsão expressa de que
os contratos cumprirão função social267 – que condicionam o exercício, pelos
agentes econômicos, do direito de escolher com quem contratar e o próprio
objeto da relação contratual. Pelo prisma econômico-regulatório, a não au-
torização de determinados acordos decorre dos princípios constitucionais
da livre concorrência (art. 170, IV, da CRFB/88) e da repressão ao abuso de
posição dominante (art. 173, § 4o, da CRFB/88) (FGV, 2008, p. 122).
O controle de atos de concentração econômica se insere nesse qua-
dro. Ele consubstancia a função268 de prevenção às infrações da ordem
econômica, conforme preceitua o art. 1o da Lei n. 12.529/2011, e é uma es-
pécie de filtro pelo qual a autoridade concorrencial269 verifica a possibi-
lidade de o ato de concentração econômica − cuja tipologia empresarial
(Unternehmensträger) é variável, podendo o ato revestir-se de uma fusão, de
uma aquisição, de uma incorporação, de uma associação, de um contrato
ou de uma joint-venture, como prevê o art. 90270 da Lei n. 12.529/2011 271 −
oferecer riscos concorrenciais, ou não. Por isso, ele exerce uma função que
267 O CC prevê: art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato.
268 Uma outra função envolve aspectos societários. Como há pouca possibilidade de controle do po-
der do sócio majoritário por parte de acionistas minoritários e credores, já que os instrumentos
de controle interno e a responsabilidade externa não têm extensão nem profundidade suficien-
tes, faz-se necessário submeter ao controle concorrencial um número maior de concentrações e
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
269 Elisabeth Farina observa que “a presença de uma agência forte de defesa da concorrência é
especialmente importante quando a estratégia setorial é concebida e implementada por asso-
ciações privadas. Entretanto, essas agências devem reconhecer que em uma economia de mer-
cado há um enorme espaço a ser ocupado por ações de caráter cooperativo e que não devem
ser ingenuamente confundidas com ações cartelizadas visando apenas lucros monopólicos de
curto prazo. Esse tipo de ação é, obviamente, possível e passível de controle. Entretanto, a pro-
visão de bens coletivos demanda uma ação coordenada entre potenciais concorrentes e que pro-
move a competitividade tanto de firmas individuais quanto do setor como um todo”. (FARINA;
AZEVEDO; SAES, 1997, p. 153)
270 É interessante observar que o art. 54 da Lei n. 8.884/1994 previa hipótese elástica de concentra-
198 ção econômica, abarcando quaisquer atos jurídicos como passíveis de notificação ao CADE, em
consonância com a possibilidade de existência de estruturas societárias cooperativas, já que
existe controle minoritário interno ou controle externo (de fato ou de Direito) que leva a uma
tal interdependência entre as empresas que é possível e provável que entre elas venha a exis-
tir cooperação econômica. Assim, para prevenir formas societárias que visem elidir a aplicação
da regra geral baseada na “influência dominante”, a doutrina alemã desenvolveu o conceito de
“influência relevante do ponto de vista concorrencial” (wettbewerblich erheblichen Einfluss), também
aplicável ao controle das condutas. (COMPARATO; SALOMÃO FILHO, 2005, p. 534, 539)
271 Dispõe o art. 90: art. 90. Para os efeitos do art. 88 desta Lei, realiza-se um ato de concentração
quando: I – 2 (duas) ou mais empresas anteriormente independentes se fundem;
se vincula claramente à defesa do consumidor e que poderia ser conside-
rada uma forma de proteção indireta do consumidor, não fosse a necessi-
dade de haver o repasse, como prevê o art. 88, § 6o, da Lei n. 12.529/2011,
de parte relevante dos benefícios decorrentes de atos de concentração
econômica com efeitos restritivos da concorrência ao consumidor − o que
torna esta uma hipótese de proteção direta do consumidor.
Ainda, é importante referir que os já citados arts. 170, IV e V e 173, §
4 , da CRFB/88 norteiam a aplicação do controle de estruturas, bem como
o
272 O CADE já impôs condenações a empresas pela prática de gun jumping. Ao julgar o Ato de concentração
200 n. 08700.010394/2014-32, em sessão de julgamento realizada em 22/4/2015, por exemplo, o Tribunal do
CADE determinou às empresas Brasfrigo Ltda., Brasfrigo S/A e Goiás Verde Ltda. o pagamento de R$
3 milhões pela prática de gun jumping – situação em que ocorre consumação da operação sem autoriza-
ção prévia da autoridade concorrencial. Para a conselheira relatora do caso, Ana Frazão, ainda que o ato
de concentração não tenha gerado efeitos negativos sobre o mercado, “a ausência de notificação alterou
prematuramente as condições de concorrência e trouxe benefícios ilícitos às requerentes, especialmente à
compradora, que passou a utilizar os ativos da Brasfrigo sem antes submeter o negócio à análise prévia do
CADE”. A consumação da aquisição ficou comprovada a partir do exame do contrato celebrado entre as
empresas. Além disso, observou-se, entre outros aspectos, que a Goiás Verde já vinha utilizando em seu site
as marcas da Brasfrigo, tendo inclusive alterado a embalagem dos produtos comercializados sob a marca
Jurema. (BRASIL, CADE)
2012, p. 138). De acordo com o § 4o do art. 88 da Lei n. 12.529/2011, até a
decisão final sobre a operação, deverão ser preservadas as condições de
concorrência entre as empresas envolvidas, sob pena de aplicação das
sanções previstas no § 3o do referido artigo.
No que tange ao aspecto material do controle das estruturas, o caput
do art. 88 da Lei n. 12.529/2011 dispõe que serão submetidos ao CADE
pelas partes envolvidas na operação os atos de concentração econômica
em que, cumulativamente, (i) pelo menos um dos grupos envolvidos na
273 A concentração horizontal envolve concorrentes, agentes econômicos que desempenham uma
mesma atividade. Por envolver empresas que competem entre si, é a espécie que mais desperta
preocupações concorrenciais. (MOTTA; SALGADO, 2015, p. 125 e ss.)
274 A concentração vertical envolve a unificação de empresas que atuam em diversos estágios de
202 uma determinada atividade econômica. (MOTTA; SALGADO, 2015, p. 159 e ss.)
275 A concentração conglomerada envolve atos realizados entre empresas que não concorrem em
um mesmo mercado, nem tampouco mantém relação vertical. (OLIVEIRA; RODAS, 2013, p. 107)
276 Nesse sentido, Calixto Salomão Filho (2013, p. 325) e Maria Cecília Andrade (2002, p. 324).
277 De acordo com o § 8o da Lei n. 12.529/2011, “as mudanças de controle acionário de companhias
abertas e os registros de fusão, sem prejuízo da obrigação das partes envolvidas, devem ser co-
municados ao Cade pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM e pelo Departamento Nacional
do Registro do Comércio do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, res-
pectivamente, no prazo de 5 (cinco) dias úteis para, se for o caso, ser examinados”.
sistema jurídico, por outro lado, há a possibilidade de se evitar problemas
concorrenciais futuros, privilegiando-se o interesse público.
De acordo com o Guia para Análise Econômica de Atos de Concentração
Horizontal, que apresenta orientações específicas278 para as concentrações
horizontais, consideradas mais problemáticas do que as demais, utiliza-se
como critério básico para a emissão de um parecer favorável à autorização
de um ato de concentração econômica que ele tenha um efeito líquido
não negativo sobre o bem-estar econômico-social279. Conforme o Guia, o
Etapa Objeto
I definição do mercado relevante
II determinação da parcela de mercado sob controle das empresas re-
querentes. Os atos que não gerarem o controle de uma parcela de
278 Nos EUA, o FTC adotou as Horizontal Merger Guidelines. Já no direito da UE, vigoram, desde 2004, as
Orientações relativas às Concentrações Horizontais.
281 Eleanor Fox aponta que não há, correntemente, guidelines para casos de concentrações verticais e
conglomeradas nos EUA. Já a UE tem guidelines para casos de concentrações horizontais, verticais
e conglomeradas. (FOX, 2012, p. 369)
282 Segundo Eleanor Fox (2012, p. 372-373), “HHIs are derived from market shares, which are derived from the
market definition. If the market definition is wrong, the HHIs are meaningless”. Além disso, “HHI gives signifi-
cance to the size-distribution of firms in the market, since firms are weighted by their market share”.
4.2.2 A proibição de atos de
concentração econômica
De acordo com o § 5o do art. 88 da Lei n. 12.529/2011 os atos de con-
centração econômica que impliquem eliminação da concorrência em par-
te substancial de mercado relevante, que possam criar ou reforçar uma
posição dominante ou que possam resultar na dominação de mercado
relevante de bens ou serviços são proibidos, já que, como aponta Ronald
I – cumulada ou alternativamente:
a) aumentar a produtividade ou a competitividade;
b) melhorar a qualidade de bens ou serviços; ou
c) propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico; e
II – sejam repassados aos consumidores parte relevante dos benefícios 205
decorrentes.
283 Nesse sentido, citam-se as seguintes obras de Bruna (2001, p. 157), Buchain (2006, p. 39), Forgioni
(2012, p. 194-195) e Pfeiffer (2015, p. 228).
285 Como ensina Hely Lopes Meirelles (1999, p. 568), “limitação administrativa é toda imposição
geral, gratuita, unilateral e de ordem pública condicionadora do exercício de direitos ou de ativi-
dades particulares às exisgências do bem-estar social”.
286 Observa-se que o faturamento do Grupo Anhanguera, no Brasil, em 2012, totalizou R$ 2,6 bi-
lhões, enquanto o faturamento do Grupo Kroton, no País, em 2012, foi de R$ 1,7 bilhão, con-
forme dados disponíveis na p. 3.681 da versão pública do dos autos do ato de concentração
08700.005447/2013-12 (BRASIL, CADE, ATO...).
nos cenários nacional e municipal envolvendo a graduação a distância e
presencial (BRASIL, CADE, ATO..., p. 4.064) e resguardaria o interesse do
estudante/consumidor −, como se verifica: (i) alienação de ativos287, (ii)
suspensão do uso de bandeira em alguns cursos e limitação do número
de vagas ofertadas288, (iii) limitação da expansão nacional289 e, finalmente,
(iv) metas de qualidade290. Definiu-se, ainda, que o monitoramento do
ACC ocorreria, sobretudo, pela apresentação à autarquia concorrencial de
relatórios semestrais contendo informações relativas às providências ne-
cessárias ao seu cumprimento, pelas partes compromissárias291.
Ainda não se pode avaliar se os remédios estruturais e compor-
tamentais adotados no ACC celebrado no âmbito do Ato de concen-
tração n. 08700.005447/2013-12 terão, de fato, os efeitos esperados292.
Aparentemente, a peculiaridade de haver avaliações periódicas realiza-
287 A alienação da Uniasselvi para um terceiro que não faça parte, no momento da alienação, do mes-
mo grupo econômico que as empresas compromissárias, por exemplo, integra o ACC apresenta-
do pela Kroton e Anhanguera perante o CADE. O intuito da medida é permitir a presença de um
concorrente com escala suficiente para rivalizar no mercado de ensino à distância nacional com
a empresa resultante da concentração. Além disso, estabeleceu-se a necessidade de alienação
de ativos vinculados à graduação presencial nos municípios de Rondonópolis e Cuiabá. (BRASIL,
CADE, ATO..., p. 4.067, 4.070)
das mantenças de Ensino à distãncia (EAD) das compromissárias, e limitar o número de alunos
que poderá ser captado pela outra mantença de EAD das compromissárias, para determinado
curso, em certo município. Nesses casos, aquela bandeira – Kroton ou Anhanguera – que detiver
maior participação de mercado nos cursos em que foram detectados problemas concorrenciais
ficará impedida de ofertar vagas. A outra que detiver menor participação não poderá expandir
sua oferta de matrículas, de forma a limitar a expansão das requerentes e viabilizar o crescimento
dos concorrentes. (BRASIL, CADE, ATO..., p. 4.068)
289 Relativa às operações de EAD de Unopar e Uniderp. (BRASIL, CADE, ATO..., p. 4.069)
290 Relativas à melhoria da qualidade do ensino de graduação, na modalidade EAD. (BRASIL, CADE,
ATO..., p. 4.070)
208 291 Além disso, deve-se destacar que, pelo período de 3 anos, a partir da publicação da decisão do
CADE que autorizou a operação, condicionada ao ACC, as partes compromissárias deverão noti-
ficar o CADE de qualquer aquisição de controle de instituição de ensino superior com atuação e
que oferte, no momento da aquisição, cursos de graduação presenciais e a distância, no Brasil,
ainda que não atendidos os requisitos dispostos no art. 88 da Lei n. 12.529/2011. A aquisição,
nesse caso, está condicionada à autorização do CADE. (BRASIL, CADE, ATO..., p. 4.071)
292 Em estudo a respeito dos impactos de fusões e aquisições sobre a qualidade dos serviços ofer-
tados pelas empresas adquiridas no setor de ensino superior brasileiro, aponta-se que vários fa-
tores, como o “conceito preliminar de curso”, por exemplo, experimentam efeito positivo apenas
decorridos, em média, dois anos da operação concentracionista. (GARCIA, 2014, p. 64)
das pelo Ministério da Educação (MEC), a fim de verificar estrutura, quali-
ficação do corpo docente etc., das Instituições de Ensino Superior (IESs),
caso da empresa resultante da concentração, é um “trunfo” fiscalizatório,
constituindo uma forma complementar de a autoridade concorrencial mo-
nitorar o atendimento das metas de qualidade que devem ser alcançadas
e repassadas ao estudante/consumidor.
293 Segundo Judith Martins-Costa (2000, p. 312), há uma dialética que permeia todo o Direito e que
se constitui entre a necessidade de certeza e precisão, de um lado, e a necessidade de impre-
cisão, de outro, pois é esta que possibilitará o amoldamento da fattispecie normativa às situações
novas, sequer possíveis de terem sido previstas quando posto o texto pelo legislador.
e ss.)? Afinal, o que seriam “benefícios decorrentes” do ato de concentração
econômica autorizado? O que seria uma “parte relevante”294 desses benefí-
cios? E, finalmente, como ocorreria o “repasse” aos consumidores?
O Guia para Análise Econômica de Atos de Concentração Horizontal
não define o que seriam esses benefícios e tampouco os exemplifica, mas
estabelece, em seu item 72, que
efficiencies are difficult to verify and quantify, in part because much of the information
210
relating to efficiencies is uniquely in the possession of the merging firms. Moreover, effi-
ciencies projected reasonably and in good faith by the merging firms may not be realized.
Therefore, it is incumbent upon the merging firms to substantiate efficiency claims so that
294 Tercio Sampaio Ferraz Junior (1997, p. 87) anota que o conceito pode ser indeterminado, mas não
indeterminável.
295 Que, embora tenha origem militar e previsão expressa na Lei n. 9.099/1995, deve ter aplicação ampla.
the Agencies can verify by reasonable means the likelihood and magnitude of each asser-
ted efficiency, how and when each would be achieved (and any costs of doing so), how each
would enhance the merged firm’s ability and incentive to compete, and why each would
be merger-specific.
Efficiency claims will not be considered if they are vague, speculative, or otherwise cannot
be verified by reasonable means. Projections of efficiencies may be viewed with skepticism,
particularly when generated outside of the usual business planning process. By contrast,
efficiency claims substantiated by analogous past experience are those most likely to be
credited296. (EUA, HORIZONTAL…, 2010b, p. 30)
296 Em tradução livre: eficiências são difíceis de verificar e quantificar, em parte porque muitas das
informações relativas às eficiências estão exclusivamente na posse das empresas envolvidas na
concentração. Além disso, a eficiência projetada razoavelmente e de boa-fé pelas partes na con-
centração pode não ser realizada. Portanto, cabe às empresas envolvidas na concentração funda-
mentar as alegações de eficiência de modo que as agências possam verificar por meio razoável 211
a probabilidade e a magnitude de cada suposta eficiência, como e quando cada uma delas seria
alcançada (e quaisquer custos para fazê-lo), como cada uma melhoraria a capacidade e o incen-
tivo de a empresa resultante da concentração competir, e por que cada uma seria específica da
concentração. Ganhos de eficiência não serão considerados se eles são vagos, especulativos, ou
de outra forma não podem ser verificados por meios razoáveis. Projeções de ganhos de eficiên-
cia podem ser vistos com ceticismo, particularmente quando geradas fora do processo usual de
planejamento de negócios. Por outro lado, as reivindicações de eficiência justificadas por expe-
riências análogas do passado são aquelas com maior probabilidade de receber crédito.
298 Para a avaliação dos referidos benefícios são frequentemente utilizados os conceitos de exce-
dente do consumidor e de excedente do produtor, já verificados no tópico 3.4.2.
maiores no cenário pós-concentração, desde que existam outros bene-
fícios compensatórios ao consumidor, como qualidade maior de produ-
tos e/ou serviços, melhor informação, ampliação de serviços e inovação
(BUTTIGIEG, 2009, p. 327-328).
Já sob o modelo do bem-estar total (total welfare model) há dois standards
possíveis, quais sejam, o “total surplus standard” e o “balancing weight method”.
Ambos os standards ignoram a transferência de renda dos consumidores
para as partes envolvidas na concentração econômica ao não requerer
que as eficiências sejam repassadas aos consumidores, mas no caso do
método balancing weight o efeito é algo mitigado na medida em que este
método permite uma ponderação da transferência de renda numa base
casuística a fim de refletir valores sociais (IDEM, p. 328).
Nos EUA adota-se o modelo “consumer welfare” na forma do modified pri-
ce standard desenvolvido pelos teóricos pós-Chicago, ao invés do mode-
lo total welfare na forma do total surplus standard desenvolvido pela Escola
de Chicago299. Em termos econômicos, refere-se que o modelo total welfare
requer que as eficiências sejam suficientemente amplas para compensar
a perda de peso morto (deadweight loss) resultante de um comportamento
anticompetitivo, de forma que se permita uma concentração econômica
que aumente o total surplus, a despeito de um aumento dos preços acima
do nível competitivo (BUTTIGIEG, 2009, p. 327-328).
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
299 De acordo com Silke Möller, porém, «im Verständnis der Chicago School sind die Begriffe Verbraucherwohlfahrt
und Gesamtwohlfahrt oder auch Verbraucherwohlfahrt und statische Effizienz Synonyme“. Em tradução livre: na
compreensão da Escola de Chicago os conceitos de bem-estar do consumidor e bem-estar total ou
também bem-estar do consumidor e eficiência estática são sinônimos. (MÖLLER, 2008, p. 223)
tes da concentração, implica uma adesão a ideias díspares de excedente,
tema que dá azo a amplas discussões na Economia. É indiscutível, porém,
que a eficiência econômica, no sistema jurídico brasileiro, não é um valor
desprendido de um fim social, pois, se, por um lado, a Constituição prevê
o princípio da livre-iniciativa, o direito de propriedade e o princípio da
livre concorrência, por outro, apresenta preocupações claras com a justiça
social, a valorização do trabalho e a dignidade da pessoa humana (SOUZA
NETO; SARMENTO, 2016, p. 175), considerada, neste trabalho, sob a pers-
concentrar (fusão, aquisição etc.). Além disso, há, na literatura, quem iden-
tifique na redistribuição a grande função do Estado contemporâneo, acres-
centando que o objetivo redistributivo é, também, uma forma de dar efi-
ciência ao Estado (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 42) e ao próprio capitalismo.
Não se está, aqui, sustentando que obrigações desarrazoadas sejam
impostas aos particulares em função da intenção, legítima, de obter o aval
da autoridade concorrencial para a realização de uma concentração eco-
216 nômica. O valor social da livre iniciativa exerce um papel importante no
sistema jurídico, é fundamento da República e fundamento da ordem eco-
300 Entre os quais estão os consumidores, como se depreende da leitura das “Orientações relativas
à aplicação do n. 3 do art. 101º do TFUE” (UNIÃO EUROPEIA, 2004b).
301 Há, ainda, a justiça comutativa, em que «o igual é tomado segundo a proporção aritmética, e essa
é uma afirmativa comprovada pelo fato de que, nesse tipo de justiça, a diferença de proporções
entre as pessoas não é considerada relevante». (AQUINO, 2012, p. 53)
nômica, assim como o direito de propriedade, que é direito fundamental.
Ocorre, porém, que o requisito distributivo está implicitamente previs-
to na lei concorrencial e demonstra a preocupação do legislador com o
consumidor, sujeito reconhecidamente vulnerável, atendendo ao preceito
constitucional que tornou a defesa do consumidor um direito fundamental
e princípio da ordem econômica.
Essa preocupação não ocorre gratuitamente. Ela encerra um cuidado
que não é demasiado, como demonstra o fato de o legislador não ter men-
302 Em seu sentido aristotélico, a justiça distributiva exigia que pessoas merecedoras fossem recom-
pensadas de acordo com seus méritos. Implicava primariamente a distribuição de status político,
218
sem relacionar-se ao direito de propriedade. Então, os significados contemporâneo e antigo da
expressão são muito diferentes. (FLEISCHACKER, 2006, p. 9)
303 Para Samuel Fleischacker (2006, p. 8), “a justiça distributiva é entendida como necessária a qual-
quer justificação de direitos de propriedade, e de tal forma que pode até mesmo implicar a
rejeição da propriedade privada”.
304 Como observa Juarez Freitas (2010, p. 175), “o intérprete − quando bem assimila o processo da
exegese sistemática − enxerga na racionalidade uma espécie de libertação do fragmentarismo,
isto é, percebe que deve preferir soluções integradoras no bojo do sistema, gerando Direito e
não violação dele”.
Há um exemplo interessante que demonstra um dilema hipotéti-
co envolvendo a escolha entre a vida e a arte, que é economicamente
apreciável, apesar de ser, talvez, a manifestação humana mais elevada. O
exemplo está em uma frase atribuída ao escultor suíço Alberto Giacometti,
que disse: “dans un incendie, entre un Rembrandt et un chat, je sauverais le chat”
(BRENSON, 2004, p. 222)305. Poder-se-ia argumentar que, com a venda de
um Rembrandt, muitos hospitais veterinários poderiam ser construídos,
por exemplo, em benefício dos animais (IDEM, p. 224). Mas a vida per-
219
305 Em tradução livre: em um incêndio, se tivesse que escolher entre salvar um Rembrandt e um
gato, eu salvaria o gato.
306 Como defende Peter Singer, em sua obra pioneira “Animal liberation”, e Gary Francione, para quem
“a teoria dos direitos animais requer que desistamos da ideia de que é moralmente aceitável
tratar os outros seres sencientes como meios para os nossos fins”. (FRANCIONE, 2013, p. 270)
307 Definido por Rawls, por exemplo, como “a visão segundo a qual o princípio de utilidade é o prin-
cípio correto da concepção pública de justiça da sociedade”. (RAWLS, 2008, p. 223)
Então, diante dos paradigmas da eficiência e da justiça, no contexto
de um sistema jurídico em cujo cerne está a dignidade da pessoa huma-
na, deve-se privilegiar a justiça em primeiro lugar. Essa é a determinação
constitucional, que definiu como objetivos fundamentais da República,
no art. 3o, I, II, III e IV, da CRFB/88, “construir uma sociedade livre, justa e
solidária”, “garantir o desenvolvimento nacional”, “erradicar a pobreza e
a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “pro-
mover o bem de todos”. Além disso, a Constituição preconiza uma ordem
econômica que tem por fim assegurar a todos existência digna, confor-
me os ditames da justiça social, segundo estabelece o art. 170, caput, da
CRFB/88. Ao mesmo tempo, percebe-se que não há nenhuma menção ao
paradigma da eficiência no texto constitucional.
Diz-se que, enquanto a eficiência é um paradigma que pode ser
avaliado objetivamente, a justiça (e a equidade308) demanda juízos
que vão além da Economia e entram no campo da Filosofia Política
(ISMODES, 2009, p. 17). Contudo, mesmo a avalização da eficiência
pode ser complexa e trazer problemas jurídicos (além de dilemas éti-
cos) que terão repercussão sobre o paradigma da justiça (e da equi-
dade). Sabe-se, por exemplo, que, na indústria da moda, há empre-
sas que chegam a destruir peças de vestuário que não foram vendidas
em determinada estação simplesmente porque manter estoques em
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
308 E, segundo John Rawls, que desenvolve uma teoria da justiça, a justiça como equidade, pensar a
justiça como equidade só é possível desde que se afastem as diferenças individuais e o apego
de cada um. Além disso, a força da justiça como equidade parece provir de duas coisas: a exigên-
cia de que todas as desigualdades sejam justificadas para os menos favorecidos e a prioridade
da liberdade. (RAWLS, 2008, p. 4 e ss., p. 310)
isso não significa que se esteja desprezando o paradigma da eficiên-
cia, como já se verificou. Ao contrário, apenas a adoção de um diálogo
que considere a importância relativa da eficiência e da justiça e as
repercussões decisivas que a sua ponderação conjunta têm poderá
atender efetivamente ao imperativo da defesa do consumidor na es-
fera concorrencial. É necessário haver uma conciliação dos paradig-
mas da eficiência e da justiça − e não uma exclusão recíproca. Afinal,
a eficiência pode ser justa e a justiça, eficiente.
309 É impossível não ver a semelhança, ironicamente, da ideia de Rawls com o dilema do prisioneiro,
um problema da teoria dos jogos, em que se supõe que cada jogador, de modo independente,
quer aumentar ao máximo a sua própria vantagem sem lhe importar o resultado do outro jogador.
tencial” [BARCELLOS, 2011, p. 146]) o pressuposto lógico de sua constru-
ção teórica, classificada, então, como espécie de “liberalismo igualitário”,
de que se extraem dois princípios de justiça: o princípio que requer iguais
liberdades individuais para todos, bem como uma igualdade equitativa
de oportunidades e uma divisão igualitária de riqueza, e o princípio “de
diferença”, já que a estrutura básica deve permitir a diversidade inerente
aos indivíduos, contanto que melhore a situação de todos, inclusive a do
menos favorecido, e desde que seja compatível com a liberdade igual e a
igualdade de oportunidades (RAWLS, 2008, p. 182-184).
Retomando-se a discussão que envolve o tema da justiça e da
eficiência, percebe-se que, para além de eventuais motivações ex-
tratextuais que influenciem percepções em sentido contrário, parece
claro que o sistema jurídico brasileiro, em que a Constituição de 1988
tem papel proeminente, não é um sistema axiologicamente neutro.
Ao contrário, se podem existir variadas concepções sobre o Direito, o
constituinte originário expressou sua opção por uma delas, sobretudo
na forma dos princípios fundamentais que escolheu, o que, por evi-
dente, tem repercussão na interpretação dos enunciados normativos
em geral (BARCELLOS, 2011, p. 100-101). Desse modo, é necessário
algum tipo de balizamento para que a realização dos valores constitu-
cionais não reste frustrada pela substituição da concepção de Estado
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
310 Assim, conforme aponta Calixto Salomão Filho (2013, p. 400), pretende-se verificar a existência
de um objetivo estratégico de atingir o bem “concorrência”, dominando o mercado, limitando a
própria concorrência etc. Reconhece-se a importância da persecução do comportamento oportu-
nístico, estratégico, intencionalmente voltado a transferir artificialmente os custos das transações
para os concorrentes.
caput, tem condição de deflagrar a consequência antijurídica consistente
na configuração de infração da ordem econômica. Cada uma das hipóte-
ses revela-se por si só um comportamento contrário ao Direito, sem que
seja necessário conjugar-se com as demais, de forma que é indiferente se
se trata de (i) limite, falseamento ou qualquer forma de prejuízo à livre
concorrência ou à livre iniciativa, de (ii) domínio de mercado relevante de
bens ou serviços, de (iii) aumento arbitrário dos lucros ou, finalmente, de
(iv) exercício abusivo de posição dominante.
311 Destaque-se que, na classificação adotada por Calixto Salomão Filho (2013, p. 408), o art. 36 pre-
vê apenas três ilícitos em seus incisos.
ções cumulativas que tornam atos de concentração econômica limitativos
da concorrência passíveis de autorização pela autoridade antitruste: efi-
ciências compensatórias, repartição dos benefícios com os consumidores
e inexistência de meio menos restritivo à concorrência para alcançar os
objetivos visados. Dessa forma, percebe-se que o bem-estar do consu-
midor é um fator importante ao se realizar um juízo de ponderação sobre
o caráter ilícito de uma conduta que restringe a concorrência (PFEIFFER,
2015, p. 228-229).
Ainda, deve-se referir que, no Brasil, a lei não exige que se caracterize
o ato como abuso de posição dominante para que ele seja vedado: basta a
existência de determinados objetivos ou a produção dos efeitos previstos
no art. 36, caput, da Lei n. 12.529/2011. Assim, a lei brasileira (FORGIONI,
2012, p. 132) não exige que o agente detenha posição dominante para que
infrinja a ordem econômica, embora se identifiquem posições diversas,
como a sustentada por parte da doutrina, para quem uma particularidade
das infrações da ordem econômica é a necessidade de demonstração de
que “a empresa investigada possui poder de mercado” (PFEIFFER, , 2015,
p. 222), destacando-se que a lei brasileira adota, com idêntico sentindo,
o conceito de posição dominante. A doutrina também aponta reiteradas
decisões do CADE nesse sentido e refere que existem exceções a tal regra
(IDEM, p. 223).
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
312 Sobre os diversos testes aplicáveis às condutas unilaterais, recomenda-se a leitura do seguinte
documento: Unilateral conduct workbook. (INTERNATIONAL COMPETITION NETWORK, 2012)
Para traçar os contornos da esfera de liberdade do agente econômi-
co e distinguir inovação de conduta anticompetitiva, o CADE analisa três
fatores combinados: (i) o fato de o agente deter posição dominante, (ii) o
fato de a conduta ser capaz de prejudicar substancialmente a concorrên-
cia com potenciais danos aos consumidores e (iii) o fato de a conduta ser
objetivamente justificável, gerando “reais benefícios à empresa ou aos
consumidores”, ou, ao invés, o fato de ser preponderantemente orientada
pela premissa de causar danos à concorrência (BRASIL, CADE, VOTO ... PA
08012.006439/2009-65, p. 4).
Para analisar a conduta de abuso de posição dominante, traz-se à co-
lação, novamente, o art. 36, caput e incisos, da Lei n. 12.529/2011:
232
313 Em tradução livre: o fato de uma firma ter uma posição dominante não constitui um ilícito; o que se
proíbe é o abuso de posição dominante. Contudo, a Corte de Justiça no caso Michelin v Commission
afirmou que uma firma em posição dominante tem a responsabilidade especial de não permitir
que sua conduta impeça a concorrência não falseada (distorcida) no mercado comum.
314 Nesse contexto, Roberto Pfeiffer observa que o Decreto n. 6.523/2008, estabeleceu regras rigoro-
sas disciplinadoras do Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) das empresas fornecedoras
de serviços regulados pelo Poder Público Federal. Para o autor, trata-se de “setores majorita-
riamente marcados por forte concentração econômica e que apresentam os maiores índices de
reclamações junto aos órgãos de defesa do consumidor”. (PFEIFFER, 2015, p. 143, 145)
diante da reduzida (ou ausência de) alternativa para a eventual troca de
fornecedor (IDEM, p. 143-144).
Segundo Paula Forgioni, desde a promulgação das primeiras leis de
cunho concorrencial, no Brasil, havia a preocupação de controlar o abuso
de posição dominante, dado que a estrutura industrial brasileira caracte-
riza-se historicamente pela presença de agentes econômicos detentores
de grande poder de mercado (FORGIONI, 2012, p. 266). Assim, constituem
infrações da ordem econômica que envolvem hipótese de abuso de posi-
315 Que se divide em duas espécies, a saber, venda casada estática e venda casada dinâmica, como observou
o ex-conselheiro do CADE, Luiz Carlos Delorme Prado: “a venda casada estática é realizada através 233
de acordos de exclusividade realizados através de contratos ou via compatibilidade tecnológica. Ocorre
quando o consumidor, ao comprar o produto A por ele desejado, é obrigado também a comprar simultane-
amente o produto B que, eventualmente, poderia ser obtido de outra fonte. Por exemplo, um consumidor
ao comprar um aparelho televisor também é obrigado a comprar simultaneamente uma antena parabólica.
A venda casada dinâmica ocorre quando, ao comprar o produto A, o consumidor é obrigado a adquirir
produtos complementares ou de manutenção exclusivamente do fornecedor do produto A. Por exemplo, a
obrigatoriedade de aquisição de cartuchos de tinta exclusivamente do fornecedor de máquina fotocopiado-
ra. Outra diferença entre a venda casada estática e a venda casada dinâmica é que nesta a compra do bem
acessório é indispensável para o usufruto do bem fundamental. Por exemplo, a compra de uma impressora
requer a compra de papel”. (BRASIL, CADE, VOTO ... AC 08012.002172/2004-22)
tados, que tenham por objeto ou possam produzir um aumento arbitrário
de lucros, ainda que não alcançado, convivem com a máxima segundo a
qual o correspondente preço abusivo dele derivado seria uma espécie
de “cabeça de bacalhau”, já que não há registro, no Brasil, de condenação
por prática de preço excessivo, muito embora várias representações, en-
volvendo diversos setores econômicos, já tenham sido apresentadas ao
SBDC (RAGAZZO, 2011, p. 21).
Da redação do art. 36, III, da Lei n. 12.529/2011 percebe-se que o
ilícito consistente em aumento arbitrário de lucros não faz qualquer re-
ferência à existência de eventual posição dominante pelo agente ecô-
nomico que o pratica, segundo Paula Forgioni (2012, p. 139). Contudo,
para Calixto Salomão Filho, o fato de a lei concorrencial brasileira, se-
melhantemente à CRFB/88, conter disposições próprias, relativamen-
te ao aumento arbitrário de lucros (art. 36, III) e ao abuso de posição
dominante (art. 36, II), não significa que o aumento arbitrário de lucros
possa ter configuração independente, pois “arbitrário” seria apenas o
aumento que decorre de abuso de posição dominante. Assim, se esse
não se verificar, ou o aumento de lucros decorrer da própria eficiên-
cia econômica, não será, então, arbitrário, ou, então, sequer ocorrerá.
Assim, na perspectiva do autor, o agente econômico que, sem dominar
o mercado, procurar elevar seus lucros por meio de aumento de preços
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
Ainda assim, reconhece-se que o art. 36, III, da Lei n. 12.529/2011 tam-
bém protege a livre concorrência e a livre iniciativa na medida em que
o aumento arbitrário de lucros é passível de configurar atentado a esses
bens juridicamente protegidos, caso do franqueador que aufere lucros ex-
cessivos pela imposição de cláusulas restritivas de concorrência a seus 235
franqueados317.
316 Assim o texto constitucional de 1946: “art 148 – A lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso do poder
econômico, inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua
natureza, que tenham por fim dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitra-
riamente os lucros”. (BRASIL, 1946)
one form of abuse which in most cases is solely and directly exploitative of the consumer
(rather than anticompetitive) involving as it does a clear wealth transfer to the detriment
of consumers is the charging of excessive prices by the undertaking in a dominant position.
Given its dominance on the market, it can obtain monopoly profits through its supra-
-competitive prices because it need not fear losing customers to its rivals318.
318 Em tradução livre: uma forma de abuso que, na maioria dos casos, é única e diretamente explo-
radora do consumidor (em vez de anticompetitiva), envolvendo, como de fato o faz, uma trans-
ferência de riqueza clara em detrimento dos consumidores, é a cobrança de preços excessivos
236
pela empresa em posição dominante. Dada a sua posição dominante no mercado, ela pode obter
lucros de monopólio através de seus preços supracompetitivos porque ela não precisa temer
perder clientes para seus rivais.
319 Conforme Galbraith (1987, p. 118, 120), “nada se comprovou tão problemático na explicação dos pre-
ços (i.e., valores de troca) quanto o fato indigerível de que algumas das coisas mais úteis possuem
o menor valor de troca e de que algumas das mais inúteis têm o maior valor”. Assim, “o conceito de
utilidade marginal decrescente era, e ainda é, uma das ideias indispensáveis da economia”.
320 Carlos Ragazzo defende a ineficácia dos dispositivos relacionados aos preços excessivos.
(RAGAZZO, 2011, p. 21)
consubstanciada no aumento arbitrário de lucros com a carestia é inequí-
voca, o que também pode levar à inflação.
321 Conforme o art. 2° da Lei 9.279/1996: Art. 2º A proteção dos direitos relativos à propriedade indus-
238 trial, considerado o seu interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País,
efetua-se mediante:
I – concessão de patentes de invenção e de modelo de utilidade;
II – concessão de registro de desenho industrial;
III – concessão de registro de marca;
IV – repressão às falsas indicações geográficas; e
V – repressão à concorrência desleal.
322 A realização de acordos entre agentes econômicos somente será sancionada pela lei concorren-
cial brasileira na medida em que houver, como visto, potencial para produzir os efeitos proibidos
pelo art. 36, caput e incisos da Lei n. 12.529/2011.
traduz-se, para o consumidor, em um aumento dos preços praticados no
mercado, em uma redução das escolhas etc.
Ana Paula Martinez lembra, nesse contexto, a fala de um empresá-
rio que confessou ter participado do conhecido cartel das lisinas323: “our
competitors are our friends; our customers are the enemy”324. A frase, simbólica,
transmite com fidelidade o espírito do cartel: o consumidor, ou a empresa
que, em uma cadeia, seja a “cliente” de outra empresa, são vistos como
o inimigo, como aquele que pode forçar as empresas a competir e, com
323 Um cartel global de fixação de preços da lisina, que é o mais importante aminoácido utilizado
nos alimentos para animais para fins nutricionais. Os aminoácidos são os elementos constituintes
das proteínas. Podem ser de origem vegetal ou animal (por exemplo, farinha de soja ou farinha
239
de peixe). Podem igualmente ser transformados. Os cinco participantes no cartel fabricavam e
vendiam aminoácidos sintéticos. A disponibilidade de aminoácidos sintéticos permite aos nu-
tricionistas definirem os regimes de proteínas que melhor se adaptam às necessidades alimen-
tares dos animais. O caso, punido pelas autoridades concorrenciais dos EUA e da UE, tornou-se
tão conhecido que resultou inclusive em um filme, The informant, de 2009, dirigido por Steven
Soderbergh. Mais informações podem ser obtidas no site da Comissão Europeia (2009).
324 Ana Paula Martinez a traduz assim: “nossos concorrentes são nossos amigos, o consumidor é o
inimigo”. (MARTINEZ, 2013, p. 36)
326 Especula-se que seu valor de mercado seja de cerca de US$ 50 bilhões. (HIGSON, 2015)
328 Além disso, esse tema fala, também, da responsabilidade do consumidor como sujeito que pode
afastar do mercado fornecedores de produtos e serviços que desprezam o Direito sob argumen-
tos econômicos. Afinal, consumir é um ato individual que tem impactos coletivos não apenas no
momento da escolha do produto e da formalização do consumo, mas também, após, impondo os
deveres de cuidado quando da manutenção e do descarte do produto, por exemplo.
329 A propósito, Marilena Chaui afirma: “é verdade que as lutas populares nos países de capitalismo
avançado ampliaram os direitos dos cidadãos e que a exploração dos trabalhadores diminuiu
muito, sobretudo com o Estado do Bem-Estar Social. No entanto, houve um preço a pagar: a
exploração mais violenta do trabalho pelo capital recaiu nas costas dos trabalhadores dos países
do então chamado Terceiro Mundo”. (CHAUI, 2012, p. 506)
330 Como noticia artigo recente a respeito de gigante da indústria de alimentos: (KELLY, 2016)
331 A psicanalista Diana Corso traz um exemplo contundente acerca da questão, contextualizando-a 241
com a onda atual de exibicionismo das redes sociais, ao narrar a experiência promovida por um
reality show norueguês: “promovido por um jornal norueguês, o Reality Show: Sweatshop – Deadly
Fashion levou três jovens blogueiros de moda até o Camboja. Frida, Ludvig e Anniken trabalha-
ram por um mês, 12 horas por dia, numa fábrica onde são costuradas as roupas que eles usam e
promovem, em troca de uma quantia de dinheiro que eles costumam gastar no lanche. É claro
que a maior parte da série é dedicada às lágrimas, ao choque com a precariedade da vida daque-
les trabalhadores. O impacto foi ainda pior já que eles se perceberam parte da engrenagem que
escraviza aquelas pessoas. No capitalismo selvagem não existe luxo e desperdício sem produzir,
na outra ponta, sofrimento e miséria. Essa é a realidade de uma multidão invisível aos olhos dos
que não a partilham”. (CORSO, 2015, p. 23)
de práticas empresariais que utilizam técnicas de produção que compro-
metem o bem-estar e a saúde integral dos animais e do próprio ser hu-
mano, como é o caso da indústria alimentícia que cria galinhas, porcos e
bois, entre outros, em ambientes confinados e superlotados, com luz arti-
ficial, rações, hormônios e antibióticos, para que eles cresçam em tempo
recorde (factory farming) e sejam comercializados a preços “competitivos”.
Preços “competitivos” a que preço? O sacrifício332, já em vida, de animais
destinados ao sacrifício maior, a morte? Longe dos tempos bíblicos, o sa-
crifício de animais na Pós-modernidade é um sacrifício ao capital, o deus
da religião monoteísta da contemporaneidade.
Desse modo, verifica-se que são inúmeras as formas de se abordar o
tema da concorrência desleal, infração da ordem econômica que afeta o
consumidor indiretamente, ao corromper a dinâmica concorrencial, e que
poderá, também, afetá-lo diretamente, contanto que seja por meio dele,
consumidor, que ela se realize, como visto.
332 Segundo Horkheimer e Adorno (1985, p. 59), “a instituição do sacrifício é ela própria a marca de
uma catástrofe histórica, um ato de violência que atinge os homens e a natureza igualmente”.
Não se poderia afirmar que todo exercício abusivo de posição dominante
encerra um ato de concorrência desleal? E quanto à hipótese de aumen-
to arbitrário de lucros, cuja definição é complexa? Acaso não seria, como
apontado, “arbitrário” apenas o aumento que decorre de abuso de posi-
ção dominante (SALOMÃO FILHO, 2013, p. 521)? Como defini-lo?
O laço comum entre as três hipóteses de infração da ordem econômica,
para além da configuração de um ato ilícito, previsto no art. 927333 do CC e
no art. 47 da Lei n. 12.529/2011, passível de reparação, é a inobservância do
ARTICULO 9o.– Principio de buena fe. Los derechos deben ser ejercidos de buena fe.
ARTICULO 10.– Abuso del derecho. El ejercicio regular de un derecho propio o el cumpli-
miento de una obligación legal no puede constituir como ilícito ningún acto.
La ley no ampara el ejercicio abusivo de los derechos. Se considera tal el que contraría los
fines del ordenamiento jurídico o el que excede los límites impuestos por la buena fe, la
333 Que dispõe: “art. 927. Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
334 Para informações detalhadas, remete-se o leitor à obra de Bruno Miragem (2012).
243
335 Estabelece a lei concorrencial argentina: “ARTICULO 1º — Están prohibidos y serán sancionados de
conformidad con las normas de la presente ley, los actos o conductas, de cualquier forma manifestados, relacionados
con la producción e intercambio de bienes o servicios, que tengan por objeto o efecto limitar, restringir, falsear o dis-
torsionar la competencia o el acceso al mercado o que constituyan abuso de una posición dominante en un mercado,
de modo que pueda resultar perjuicio para el interés económico general”. Em tradução livre: Art. 1o − estão
proibidos e serão sancionados de acordo com as normas da presente lei, os atos ou condutas, de
qualquer forma manifestados, relacionados com a produção e o intercâmbio de bens ou serviços,
que tenham por objeto ou efeito limitar, restringir, falsear ou distorcer a concorrência ou o acesso
ao mercado ou que constituam abuso de uma posição dominante em um mercado, de modo que
possa resultar prejuízo para o interesse econômico geral. (ARGENTINA, 1999)
moral y las buenas costumbres.
El juez debe ordenar lo necesario para evitar los efectos del ejercicio abusivo o de la situaci-
ón jurídica abusiva y, si correspondiere, procurar la reposición al estado de hecho anterior
y fijar una indenización.
ARTICULO 11.– Abuso de posición dominante. Lo dispuesto en los artículos 9° y 10 se
aplica cuando se abuse de una posición dominante en el mercado, sin perjuicio de las dis-
posiciones específicas contempladas en leyes especiales336. (ARGENTINA, 2014)
do poder econômico, eis que opera com grande eficiência, seja em clima
de liberdade ou de autoridade, não havendo razões para crer que também
assim não o será, onde liberdade e autoridade se interpenetrem, como é
comum no campo do Direito Econômico (BRUNA, 2001, p. 167).
244 336 Em tradução livre: ARTIGO 9o. O princípio da boa fé. Os direitos devem ser exercidos de boa-fé.
ARTIGO 10. Abuso de direito. O exercício regular de um direito ou o cumprimento de uma obri-
gação legal não pode constituir nenhum ato ilegal.
A lei não protege o abuso de direitos. Considera-se como tal o ato que contraria os propósitos do
ordenamento jurídico ou o que excede o limites impostos pela boa-fé, pela moral e pelos bons
costumes.
O juiz deve ordenar o necessário para evitar os efeitos do exercício abusivo ou da situação jurí-
dica abusiva e, se for o caso, procurar a reposição ao estado anterior e fixar uma indenização.
ARTIGO 11. Abuso de posição dominante. As disposições dos arts. 9o e 10 são aplicadas quando
se abuse de uma posição dominante no mercado, sem prejuízo das disposições específicas con-
tidas nas leis especiais.
No que tange ao tema da diferença entre o uso e o abuso da posição
dominante, Paula Forgioni aponta que é útil a utilização do art. 187 do
CC. Contudo, segundo a autora, tal utilização, tipicamente privada, não
é pertinente, pois “não toca ao direito antitruste a disciplina do respeito
mútuo às esferas de direitos dos sujeitos, mas sim a regulamentação do
mercado” (FORGIONI, 2012, p. 265). Assim, caberia entender a repres-
são ao abuso do poder econômico como coibição ao abuso dos direitos
de liberdade econômica, visando à implementação de políticas públicas
337 De forma diversa posiciona-se Tercio Sampaio Ferraz Junior, para quem o Direito Antitruste não
se qualifica facilmente como Direito Público e tampouco como Direito Privado. (FERRAZ JUNIOR,
2013, p. 17)
generally speaking one may say that through the application of Article 82 EC the consu-
mer is indirectly protected as this provision curbs the abusive conduct of undertakings in
a dominant position which inevitably leads to lesser consumer choice and higher prices and
generally a loss in consumer well-being. But some practices may even target directly and
solely consumers rather than competitors or have a more direct effect on their interests339.
(BUTTIGIEG, 2009, p. 159, grifos do original).
339 Em tradução livre: de um modo geral pode-se dizer que, através da aplicação do art. 82o CE o
consumidor está protegido indiretamente na medida em que esta disposição restringe a conduta
abusiva de empresas em posição dominante, o que leva inevitavelmente a menos opções de
consumo e a preços mais elevados e, geralmente, a uma perda de bem-estar do consumidor.
Mas algumas práticas podem até mesmo atingir os consumidores diretamente ao invés de os
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
340 Assim decidiu o Tribunal de Justiça, em acórdão: “trata-se de saber se, com a expressão «explora-
rem de forma abusiva», o art. 86.° se refere apenas aos comportamentos das empresas susceptíveis
de afectar directa mente o mercado, prejudiciais à produção e à distribuição, aos utilizadores ou
aos. consumidores, ou se se refere também às modificações estruturais da empresa que tenham
por efeito alterar gravemente a concorrência numa parte substancial do mercado. [...] É à luz destas
considerações que deve ser interpretada a condição imposta pelo art. 86 segundo a qual, para
ser proibida, a exploração de uma posição domi nante deve ter sido exercida de forma abusi-
va. Esta disposição enuncia um determinado número das práticas abusivas que proíbe. Trata-se
de uma enumeração a título exemplificativo, que não esgota as formas de exploração abusiva de
posição dominante proibidas pelo Tratado. Além disso, como resulta das alíneas c) e d) do n. 2,
246 esta disposição não se refere apenas às práticas susceptíveis de causar um prejuízo imediato aos
consumidores, mas também àquelas que lhes causam prejuízo por impedirem uma estrutura de
concorrência efetiva, tal como se infere no art. 3o, alínea f do Tratado. [...] Com efeito, para além
de, indepedentemente de qualquer infracção, poder ser considerada abusiva, a detenção de uma
posição dominante levada a um ponto tal que os objectivos do Tratado sejam prejudicados por
uma modificação tão substan cial da estrutura da oferta que a liberdade de comportamento do
consumidor no mercado seja gravemente comprometida, a eliminação prática de qualquer concor
rência entra necessariamente nesse quadro”. (UNIÃO EUROPEIA, 1973)
341 Que dispõe: “limitar a produção, a distribuição ou o desenvolvimento técnico em prejuízo dos
consumidores”.
genericamente como um princípio subjacente (BUTTIGIEG, 2009, p.
160). Com efeito, durante a Copa do Mundo de futebol, que ocorreu
na França, em 1998, o Comité français d’organisation de la Coupe du Monde de
football de 1998 (CFO) realizou acordos relativos à venda ao público de
bilhetes para os jogos da fase final do campeonato. Ao adotar meios
restritivos disponibilizados ao público de fora da França para reser-
var bilhetes, o CFO abusou da sua posição dominante nos mercados
relevantes, uma vez que o seu comportamento teve o efeito de impor
342 Algumas ideias aqui expostas basearam-se na palestra proferida pelo Professor Doutor Bruno
Miragem no Primer Congreso Sudamericano de Derecho del Consumidor, realizado em setembro de 2015
na Universidad Nacional del Litoral, em Santa Fe, na Argentina (MIRAGEM, 2015).
343 Para mais informações sobre o tema, remete-se o leitor à dissertação de Daniela Cravo (2013, p. 95).
“dos pedidos”. Devem ser levados em consideração, portanto, todos os re-
querimentos feitos ao longo da peça inaugural, ainda que implícitos. Assim,
se o julgador se ateve aos limites da causa, delineados pelo autor no corpo
da inicial, não há falar em decisão citra, ultra ou extra petita. Precedente
STJ. 2. A prova dos autos revela que as empresas distribuidoras de gás
agiam de forma concertada, em conluio, por meio da “Área Operacional
Metropolitana (na região de Porto Alegre/Canoas), enquadrando-se nos ar-
tigos 20 e 21 da Lei n. 8.884/94. 3. Determinada a vedação de práticas carte-
lizantes às rés a fim de permitir a livre concorrência no setor. 4. Com a car-
A prática abusiva
O art. 6o, IV, do CDC dispõe que é direito básico do consumidor
“a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comer-
ciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abu-
sivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços”. Sobre o
249
tema, aliás, anota Ricardo Lorenzetti que a análise da cláusula abusiva
não deve estar desvinculada do Direito da Concorrência. Mais ainda,
a “eficácia na prevenção do uso de cláusulas abusivas radica em uma
adequada regulamentação do sistema concorrencial, de maneira que
não se produzam concentrações econômicas, e exista sempre liberda-
de de opção” (LORENZETTI, 1998, p. 238).
Embora o CDC não defina a prática abusiva, seu conceito, fluido e
flexível, envolve a ideia de desconformidade com os padrões mercado-
lógicos de boa conduta em relação ao consumidor. Ela é um gênero do
qual as cláusulas e a publicidade abusivas são espécie (BENJAMIN, 2011,
p. 374-375).
No art. 39, o CDC apresenta exemplos de práticas abusivas vedadas
ao fornecedor de produtos ou de serviços, como se infere:
344 Em adição à lista exemplificativa do art. 39 do CDC, também são reputados abusivos todos os
métodos comerciais coercitivos (art. 6o, IV), assim como todas as tentativas de acionar o consumi-
dor em jurisdicções longínquas. (BENJAMIN, 2011, p. 376).
A partir disso, observa-se que a efetivação de uma prática abusiva
por parte do fornecedor é um ato ilícito e nulo, sujeitando-o às sanções
e indenizações cabíveis (PFEIFFER, 2015, p. 220). Administrativamente,
o fornecedor sujeita-se à aplicação das sanções previstas no art. 56345 do
CDC. No campo cível, deverá indenizar o consumidor pelos danos morais
e materiais praticados (art. 6o , VII, do CDC). Finalmente, observa-se que
algumas práticas estão, também, tipificadas criminalmente, conforme dis-
põe o art. 7o da Lei n. 8.137/1990, que trata dos crimes contra as relações
de consumo.
Segundo Roberto Pfeiffer, para a configuração da prática abusiva,
é necessário que ela tenha sido realizada no âmbito de uma relação
de consumo, que pressupõe a presença de um consumidor e de um
fornecedor. A realização de uma prática abusiva requer, ainda, a impo-
sição de uma desvantagem ao consumidor pelo fornecedor, não sendo,
porém, necessária a concretização de um dano concreto ao consumidor
e tampouco a demonstração de efeitos limitadores da concorrência.
Basta, assim, a potencialidade do dano, sendo desnecessária sua con-
sumação (PFEIFFER, 2015, p. 220).
345 Art. 56. As infrações das normas de defesa do consumidor ficam sujeitas, conforme o caso, às
252 seguintes sanções administrativas, sem prejuízo das de natureza civil, penal e das definidas em
normas específicas:
I – multa;
II – apreensão do produto;
III – inutilização do produto;
IV – cassação do registro do
produto junto ao órgão competente; V – proibição de fabricação do produto;
VI – suspensão de
fornecimento de produtos ou serviço;
VII – suspensão temporária de atividade;
VIII – revogação
de concessão ou permissão de uso;
IX – cassação de licença do estabelecimento ou de atividade;
X – interdição, total ou parcial, de estabelecimento, de obra ou de atividade; XI – intervenção
administrativa;
XII – imposição de contrapropaganda. Parágrafo único. As sanções previstas neste
artigo serão aplicadas pela autoridade administrativa, no âmbito de sua atribuição, podendo ser
aplicadas cumulativamente, inclusive por medida cautelar, antecedente ou incidente de proce-
dimento administrativo.
que objetive ou possa produzir algum dos seguintes efeitos, ainda que
esses efeitos não sejam produzidos: (i) limitar, falsear ou de qualquer for-
ma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa, (ii) dominar merca-
do relevante de bens ou serviços, (iii) aumentar arbitrariamente os lucros
e (iv) exercer de forma abusiva posição dominante.
As práticas consideradas abusivas pelo CDC não se confundem com
as infrações da ordem econômica previstas na Lei n. 12.529/2011. Enquanto
a prática abusiva pressupõe uma conduta contrária às prescrições do CDC
não haveria qualquer bis in idem entre ações individuais, civis públicas, pe-
nais e processos administrativos, porquanto possuidores de escopos dis-
tintos e cumuláveis. Eventuais aspectos de coordenação entre demandas
concomitantes seriam dirimidos, p. ex., pela disciplina dos efeitos civis de
sentenças penais, quando aplicáveis (BRASIL, STJ, REsp n. 1.181.643/RS,
grifos do original)
Assim, é absolutamente possível que existam ações judiciais, paralelas,
baseadas em hipóteses em que uma conduta esteja coincidentemente tipifi-
cada como infração da ordem econômica e como prática abusiva: o consumi-
dor, lesado, pode demandar contra o agente econômico que tenha realizado,
por exemplo, uma venda casada enquanto prática abusiva e enquanto infra-
ção da ordem econômica (se presentes os requisitos para tanto), como prevê
o art. 47 da Lei n. 12.529/2011. Está-se diante, portanto, de duas “vias” com
vista à proteção do consumidor, não havendo nenhum obstáculo que o im-
peça de defender-se, concomitantemente, da infração da ordem econômica,
quando ela prejudique “seus interesses individuais ou individuais homogê-
neos” (enfim, violando seus direitos), e da prática abusiva.
Por fim, é necessário referir a disposição do art. 35 da Lei n. 12.529/2011,
que dispõe que a repressão das infrações da ordem econômica não exclui
a punição de outros ilícitos previstos em lei.
Essa possibilidade, que não foi uma opção gratuita do legislador e que
amplia os instrumentos de implementação da Lei n. 12.529/2011, atende,
entre outros, à defesa do consumidor e é necessária simplesmente porque
há situações em que o consumidor (assim como outros eventuais prejudi-
cados) é lesado pela prática de uma infração da ordem econômica que não
constitua, simultaneamente, prática abusiva, tema analisado a seguir.
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
346 Prefácio do professor Mario Monti ao XXIX Relatório sobre a Política de Concorrência. (UNIÃO
EUROPEIA, 2000a, p. 5-6)
das na ausência de uma posição dominante (SILVA, 2012, p. 2), de onde se
extrai que, para tanto, não é necessária a presença do abuso de posição
dominante. Além disso, o art. 102 do TFUE pode ser aplicado ainda que
o comportamento de uma determinada empresa, em posição dominante,
embora não cause qualquer efeito na estrutura da concorrência, preju-
dique diretamente os interesses dos consumidores (UNIÃO EUROPEIA,
2000b, ITEM 100).
260
CAPÍTULO 1
Direito à Informação
5 O DIREITO e Acesso
À CONCORRÊNCIA:
a Documentos
O RECONHECIMENTO Governamentais:
DE UM
breve
NOVO estudo do Direito
DIREITO canadense
FUNDAMENTAL
À DEFESA
Luiz Guilherme Loureiro DO CONSUMIDOR
262
347 Assim Riobaldo, em “Grande Sertão: Veredas”: “mire veja: o mais importante e bonito, do mun-
do, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas − mas que elas
vão sempre mudando. Afinam ou desafinam”. (GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 39)
348 Como aponta Fábio Konder Comparato, ao citar a obra heideggeriana Sein und Zeit. (COMPARATO,
2010, p. 42)
349 Refere-se que, “na realidade, não se pode dizer que as normas da Magna Carta constituam uma
afirmação de caráter universal, de direitos inerentes à pessoa humana e oponíveis a qualquer
governo. O que ela consagrou, de fato, foram os direitos dos barões e prelados ingleses, restrin-
gindo o poder abslouto do monarca. Todavia, essa afirmação de direitos, feita em caráter geral
ser considerada como a conclusão dessa primeira fase da história dos di-
reitos do homem, que culmina nas primeiras declarações que reconhece-
ram direitos do e ao homem e que serviram de premissa às Constituições
nacionais a partir do final do século XVIII – com a distinção clássica entre
direitos naturais (moral rights) e direitos positivos (legal rights), surgidos pela
primeira vez na Inglaterra, em 1689, no Bill of Rights –, não mais enunciadas
por filósofos, e portanto sine imperio, mas por detentores do poder estatal,
e portanto, cum imperio, o homem natural tem um único direito, o direito
263
350 Segundo Fábio Konder Comparato, “no embrião dos direitos humanos, portanto, despontou antes
de tudo o valor da liberdade. Não, porém, a liberdade geral em benefício de todos, sem distinções
de condição social, o que só viria a ser declarado ao final do século XVIII, mas sim liberdades espe-
cíficas, em favor, principalmente, dos estamentos superiores da sociedade − o clero e a nobreza −,
com algumas concessões em benefício do ‘Terceiro Estado’, o povo”. (COMPARATO, 2010, p. 58)
Já a segunda dimensão de direitos, que foi influenciada pelas revolu-
ções do século XIX e do início do século XX e consolidada após a Segunda
Guerra Mundial, caracteriza-se pela natureza econômica, social e cultural.
Esses direitos humanos eram vistos como um instrumento ou uma condi-
ção necessária para preservar a liberdade e a autonomia privada no mer-
cado. Direitos tipicamente socioeconômicos, como a garantia de um stan-
dard mínimo de vida, que inclui acesso à educação, saúde e previdência
social, passaram a ser vistos como prerrequisitos para uma vida autôno-
ma. Esses direitos caracterizam-se pela intervenção, e não pela abstenção
do Estado (BENÖHR, 2013, p. 47). Com essa dimensão, não há a pretensão
de os indivíduos se protegerem do Estado. Há, sim, a elaboração de um
rol de pretensões exigíveis do próprio Estado, que passa a ter de atuar
para satisfazer esses direitos (TAVARES, 2012, p. 503).
A terceira dimensão de direitos consiste em direitos que ainda não
foram reconhecidos como direitos humanos, mas que foram, apesar disso,
aprovados por várias organizações da ONU (BENÖHR, 2013, p. 47). Eles
incluem por ora o direito ao desenvolvimento e à paz, além de direitos
ambientais e culturais (IDEM) e costumam ser denominados como direi-
tos de solidariedade ou fraternidade (TAVARES, 2012, p. 503). Os direitos
de terceira dimensão caracterizam-se pelo fato de se desprenderam do
sujeito enquanto indivíduo singular, destinando-se à proteção de indiví-
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
Os direitos fundamentais
Há uma questão terminológica essencial relacionada ao tema dos di-
reitos, na perspectiva dos direitos fundamentais, visto que ocorre o em- 265
prego indiscriminado de diversos vocábulos: direitos naturais, direitos hu-
manos, direitos do homem, direitos individuais, liberdades fundamentais,
351 „Im modernen Wirtschaftssystem ist der Bürger Käufer auf dem Markt für Konsum– und Existenzgüter. Der
Bürger als Verbraucher erwirbt diverse Waren und Dienstleistungen, um sein Dasein zu sichern und zu entfalten“.
Em tradução livre: no sistema econômico moderno o cidadão é comprador de bens de consumo
existenciais. O cidadão como consumidor adquire diversos produtos e serviços a fim de garantir
a sua existência e desenvolvimento. (AKIRA, p. 10)
liberdades públicas, entre outros (TAVARES, 2012, p. 492). Assim, parte da
doutrina tem utilizado a expressão “direitos fundamentais” para referir-se
aos direitos humanos positivados em determinado sistema constitucio-
nal, ao passo que a expressão “direitos humanos” tem sido empregada
para identificar posições jurídicas decorrentes de documentos internacio-
nais, sem vínculo com qualquer ordenamento interno específico e com
pretensão de validade universal (SARLET, 2009, p. 214), embora se refira
que os direitos humanos prescindem de um fundamento em uma norma
jurídica positivada, estando ancorados em princípios universais e neces-
sários da razão (BARZOTTO, 2005, p. 85). Há, porém, quem considere que
direitos fundamentais são direitos humanos reconhecidos expressamente
pela autoridade política (COMPARATO, 2010, p. 74). De forma concreta,
considera-se que os direitos fundamentais são formados pelas seguintes
categorias de direitos: direitos individuais, direitos políticos, sociais, eco-
nômicos e culturais (BARROSO, 2006, p. 97 e ss.).
Como visto, os direitos fundamentais caracterizam-se por apresentar
uma dimensão dupla, na condição de normas objetivas e de direitos subje-
tivos (SARLET, 2009, p. 141). No que tange à primeira dimensão, aponta-se
a decisão paradigmática, proferida em 1958, pelo Tribunal constitucional
federal alemão ao julgar o caso Lüth352, em que se asseverou que os di-
reitos fundamentais não se limitam à função precípua de direitos subjeti-
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
vos de defesa do indivíduo contra atos do Poder Público, mas que, além
disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da
Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico, fornecendo di-
retrizes para os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo (IDEM, p. 143).
Com efeito, refere-se que um desdobramento dessa perspec-
tiva objetiva dos direitos fundamentais é a sua eficácia irradiante
(Ausstrahlungswirkung der Grundrechte), já que fornecem impulsos e diretrizes
266 para a aplicação e interpretação do Direito infraconstitucional, o que tam-
bém significa a necessidade de uma interpretação conforme aos direitos
fundamentais (IDEM, p. 147).
352 BVerfGE 7, 198, 1958. Trata-se de um caso julgado pelo Tribunal Constitucional alemão que en-
volveu conflito relacionado à liberdade de manifestação de pensamento entre particualres e dos
danos daí decorrentes. Informações detalhadas sobre o tema estão presentes na seguinte obra
de Duque, (2013, p. 66 e ss.)
Associada a esse efeito irradiante dos direitos fundamentais, desen-
volveu-se, ainda na década de 1950, também na Alemanha, a teoria sobre
a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas (Drittwirkung
der Grundrechte) (DUQUE, 2014, p. 63-64), que envolve a interpretação do
Direito Privado condicionada pela aplicação dos direitos fundamentais,
que não seriam oponíveis, portanto, apenas aos Poderes Públicos, mas,
também, aos particulares. Seu principal mérito é, assim, demonstrar que
nenhum âmbito jurídico pode ficar imune à incidência dos direitos funda-
353 O STF, ao julgar ADI envolvendo discussão sobre o preâmbulo da Constituição, entendeu que
ele não constitui norma central. Segundo o Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, o preâmbulo
não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política. A seguir, a ementa do referido
268 julgamento: EMENTA: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMAS CENTRAIS.
Constituição do Acre. I. – Normas centrais da Constituição Federal: essas normas são de repro-
dução obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas, ou não,
incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MT e 383-SP (RTJ 147/404). II. – Preâmbulo da
Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma
de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. III. – Ação direta
de inconstitucionalidade julgada improcedente. (ADI 2076, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO,
Tribunal Pleno, julgado em 15/08/2002, DJ 08-08-2003 PP-00086 EMENT VOL-02118-01 PP-00218).
Mais tarde, ao julgar recurso em mandado de segurança, o preâmbulo constitucional foi invocado
pelo Relator, Ministro Carlos Britto, como reforço argumentativo para consolidar a proteção de
direitos fundamentais. (BRASIL, STF, RMS 26.071/DF)
deve ser livre” (NUNES, 2012, p. 67), ideia subjacente ao próprio reconhe-
cimento da vulnerabilidade do consumidor e, portanto, da necessidade
de um tratamento protetivo capaz de corrigir tal fragilidade.
No capítulo dos direitos e das garantias individuais, a CRFB/88 garan-
te a todos a inviolabilidade do direito à liberdade (art. 5o , caput) para, em
seguida, instituir uma série de direitos mais específicos (liberdade de ma-
nifestação de pensamento, de consciência e de crença, de expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, de associação
354 E inclusive se utilizam de redes sociais, dos digital influencers, para dissimular propagandas de
produtos e serviços.
Assim, percebe-se que a proteção da liberdade de escolha dos con-
sumidores é da essência do Direito da Concorrência e do Consumidor,
porque um “escudo” para infirmar a vulnerabilidade própria do sujeito
enquanto consumidor.
Enfim, pensa-se, como Averitt e Lande (2007, p. 175-264) e, ainda,
como Behrens (2014, p. 33-34), que the consumer choice approach is fundamen-
tally superior to the price and efficiency paradigms because it asks the right question355.
Uma possível resposta a essa questão envolve o fato de que concor-
a merger that gives the acquiring firm a monopoly but in so doing reduces the costs of
serving the market to the extent that the monopoly price after the merger is lower than the
competitive market price was before the merger would be blocked by a competition autho-
rity that considers simply wether or not competition was reduced and ignores the efficiency
gains − this would not be in the interestes of consumer well-being356. (BUTTIGIEG,
2009, p. 79)
social welfare would be greater if the monopoly were permitted than if it were forbidden,
and since, in an economic analysis, we value competition because it promotes efficiency −
that is, as a means rather than as an end − it would seem that whenever monopoly would
increase efficiency it should be tolerated, indeed encouraged. On this view of antitrust,
competition is viewed “as a state in which consumer interests are well served rather than
as a process of rivalry that is diminished by the elimination of even one tiny rival”357.
(POSNER, 2001a, p. 28-29)
356 Em tradução livre: uma concentração que dá à empresa aquisidora um monopólio, mas ao fazê-lo 271
reduz os custos de atendimento ao mercado na medida em que o preço de monopólio depois
da fusão é inferior ao preço de mercado competitivo antes da concentração seria bloqueada
por uma autoridade da concorrência que considerasse simplesmente se ou não a competição
foi reduzida e ignorasse os ganhos de eficiência – isso não seria no interesse do bem-estar do
consumidor.
357 Em tradução livre: o bem-estar social seria maior se o monopólio fosse permitido ao invés de ser
proibido, e uma vez que, em uma análise econômica, valorizamos a competição porque promove
a a eficiência – ou seja, como um meio e não como um fim – parece que sempre que o monopó-
lio aumentasse a eficiência ele deveria ser tolerado, de fato encorajada. Deste ponto de vista
O problema dessa visão, que privilegia a eficiência, e não a concor-
rência, é que ela vê o ganho de eficiência e o correspondente benefício ao
consumidor (que eventualmente poderia sequer se confirmar, o que faz
com que as autoridades concorrenciais tenham de monitorar com zelo a
transferência das eficiências ao consumidor, tema complexo, como visto)
em uma perspectiva imediata. Ocorre que, ao aplicá-la, aceita-se in extre-
mis uma redução da concorrência que, a longo prazo, prejudica o consumi-
dor em aspectos multifatoriais, como a diminuição ou ausência de opção
de escolha, a redução do estímulo ao desenvolvimento de novos produ-
tos e serviços e o aumento dos preços que, em um primeiro momento,
foram reduzidos. Em sentido contrário, como visto, posiciona-se Eugène
Buttigieg (2009, p. 79-80):
wether analysing collusive behaviour or merger activity or indeed even the allegedly
abusive practices of a firm enjoying market power a competition authority should always
consider that a reduction of competition could bring about efficiency gains − if efficiencies
are ignored and the assessment focuses solely on competition, the consumer well-being
that competition law is designed to achieve will not be achieved358.
Ocorre que, disso, não se pode extrair que, de fato, a eficiência será trans-
ferida, distribuída ao consumidor no futuro.
É evidente que desconsiderar totalmente o ganho de eficiência não
é, sequer, uma opção. Os ganhos de eficiência deverão ser sempre consi-
derados na análise antitruste, sob pena de não cumprimento de seu perfil
distributivo. No entanto, não se pode concluir, daí, que a concorrência
272
de defesa da concorrência, a concorrência é vista “como um estado em que os interesses dos
consumidores são bem servidos e não como um processo de rivalidade que é diminuído pela
eliminação de até mesmo uma pequena empresa rival”.
273
359 Por exemplo, os produtos para limpeza de roupas Ace e Ariel, os produtos para limpeza capilar
Head&Shoulders, Pantene e Wella, do grupo Procter & Gamble, que, apesar de aparentarem
ser concorrentes na verdade não o são, conforme se verifica no site (P&G). Outro exemplo são as
cervejas do grupo Ambev, que aparentam ser concorrentes, apesar de não o serem. Cita-se, por
exemplo, as marcas Brahma, Antarctica e Skol, conforme se verifica no site da Ambev.
360 Caso de holdings que atuam no varejo de moda, como, por exemplo, o grupo Restoque, proprietário
de diversas marcas, como Le Lis Blanc, Bo.Bô, John John, Rosa Chá e Dudalina. (RESTOQUE S/A)
361 É interessante, a propósito, a observação de Geraldo Vidigal (1977, p. 118): “o ideal clássico da
liberdade econômica envolveria naturalmente em seu quadro a idéia da liberdade de consumo.
colha. Afinal, já Aristóteles verificou que a escolha “pertence ao gênero da
ação voluntária, mas nem todo ato voluntário é escolhido” (ARISTÓTELES,
2002, p. 89). Pode-se falar, também, em um “mito da concorrência”, como
propõe Daniel Glória, para quem mesmo em uma situação na qual existam
possibilidades de opção, tal circunstância não significa liberdade fática de
escolha do consumidor, face a uma certa “semelhança”, “homogeneida-
de” dos produtos, serviços e cláusulas contratuais oferecidas no mercado
(GLÓRIA, 2003, p. 116).
Outro aspecto que indica a vulnerabilidade exacerbada do consumi-
dor diz respeito à eventual ausência de produtos e serviços disponíveis
ao consumo (fato que se relaciona com o “mito de la igualdad362 en el acceso a los
bienes y servicios” [ARIÑO ORTIZ, 1999, p. 90]). Se hoje, por exemplo, um con-
sumidor brasileiro desejar comprar alimentos orgânicos363, ou pelo menos
não transgênicos, e, para tanto, dirigir-se ao supermercado, verificará que
tal possibilidade é restrita e que, em relação a diversos alimentos, ela ine-
xiste – enquanto ainda for possível identificar a presença de Organismos
Geneticamente Modificados (OGMs) em alimentos, no Brasil, consideran-
do a aprovação na Câmara dos Deputados do Projeto de lei n. 4.148/2008
(BRASIL, CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2015), que dispensa a identificação
de elementos transgênicos em rótulos de alimentos, apesar da conhecida
incerteza científica sobre os efeitos deletérios dos OGMs na saúde hu-
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
274
Para as classes de menor poder de compra, no entanto, seria a liberdade de consumo um falso
direito: não há liberdade real no consumo inviável”.
362 Sobre o mito da igualdade, fala Jean Baudrillard ao comentar a ideologia igualitária do bem-estar.
(BAUDRILLARD, 2003, p 47)
363 Chama a atenção a escassez de estudos doutrinários de lege lata et de lege ferenda sobre o marco regulató-
rio dos agrotóxicos, com seus diversos impactos sabidamente nocivos à saúde humana e ambiental.
364 As ideias da autora sobre o rollensoziologisches Modell do consumidor foram adaptadas ao contexto
deste trabalho. (MÖLLER, 2008, p. 59)
Ocorre que, inúmeras vezes, essa questão, que se liga à segurança
alimentar365, envolvendo a própria saúde do consumidor e o direito à
vida, não se trata de uma escolha voluntariosa, de uma escolha supér-
flua366, mas, ao invés, de uma necessidade. Se o consumidor tem res-
trições alimentares (e hoje as alergias alimentares se tornaram epidê-
micas367, por exemplo) e não encontra no mercado opções mínimas de
consumo (e por opção mínima pretende-se a oferta de pelo menos uma
opção de escolha de produto ou serviço, com preço razoável), pode-se
365 Que se liga, por sua vez, ao direito fundamental à informação, segundo estudo de Caroline Vaz
(2015).
275
366 E ainda que fosse esse o caso, tratar-se-ia de escolha legitimamente defensável.
368 Sobretudo de um duopólio, envolvendo Monsanto e DuPont, como noticia artigo do jornal The
Guardian (SHEMKUS, 2014).
senciais às pessoas, não possam ser adquiridos por algum problema en-
volvendo a oferta. Aplicado o conceito à realidade social, o que se tem é
o fato de que o objetivo constitucional da construção de uma sociedade
livre significa que, sendo a situação real de necessidade, o Estado pode
e deve intervir para garantir a dignidade humana (NUNES, 2012, p. 67),
dada a gravidade de quaisquer violações370 à dignidade da pessoa huma-
na. Assim, de uma ou outra forma, esse ônus, decorrente do bônus relativo
276 à possibilidade de exploração da atividade econômica, deve ser distribuí-
do a algum sujeito, seja ele privado ou público.
Ademais, pode-se arguir a necessidade de eventual intervenção para
que se possibilite o exercício da escolha que o direito à concorrência per-
370 Uma violação à dignidade da pessoa humana é algo de extrema gravidade e não pode ser objeto
de banalização (FOLLONI, 2012, p. 23).
mite sob o fundamento de que a livre iniciativa baseia-se na solidarieda-
de social, que “es la consecuencia de la naturaleza social del hombre, que debe llevar
a éste a una firme y perseverante actitud de contribución al logro del bien común”371
(ARIÑO ORTIZ, 1999, p. 120), já que é objetivo fundamental da República,
como estabelece o art. 3o, I, da CRFB/88, “construir uma sociedade livre,
justa e solidária”. Também cabe referir o princípio da função social da pro-
priedade, previsto no art. 5o, XXIII, e no art. 170, III, da CRFB/88, e da em-
presa, como fundamento dessa visão sobre a possível intervenção estatal,
371 Em tradução livre: que é a consequência da natureza social do homem que deve levá-lo a uma
atitude firme e perseverante de contribuição para a realização do bem comum.
e do ato de consumo, um ato político por natureza, em sua maior ampli-
tude possível e, igualmente, atendendo à diversidade de necessidades
especiais dos consumidores, caso dos consumidores hipervulneráveis.
Além disso, sustenta-se que o direito fundamental à concorrência
está estruturado na forma de um princípio372 que integra, ainda que impli-
citamente, o sistema jurídico brasileiro, pois sobressai o seu caráter emi-
nentemente finalístico em detrimento do prescritivo. O estado de coisas
buscado por esse princípio não prevê, assim, as condutas expressamente
devidas à promoção deste, que devem, todavia, ser extraídas da inter-
pretação/aplicação dessa norma-princípio à luz do caso concreto (ÁVILA,
2014b, p. 102).
Percebe-se, assim, que o direito à livre concorrência integra os di-
reitos do consumidor, que, como visto, configuram, segundo a classifica-
ção proposta por Robert Alexy (2012, p. 393), direitos prestacionais (em
sentido amplo), típicos do Estado social, e, especificamente, direitos de
proteção.
Além disso, ele se manifesta de formas diversas e, por isso, são diver-
sas as formas de sua defesa no âmbito processual, tema analisado adiante.
individual homogêneo
A literatura373 nacional usualmente refere a concorrência como
um interesse difuso374, que, segundo o conceito proposto por Rodolfo
Mancuso, envolve
372 Segundo Karl Larenz (1997, p. 682-683), “se bem que os princípios jurídicos tenham, em regra,
278
também o carácter de ideias jurídicas directivas, das quais se não podem obter directamente
resoluções de um caso particular, mas só em virtude da sua concretização na lei ou pela jurispru-
dência dos tribunais, existem também princípios que, condensados numa regra imediatamente
aplicável, não só são ratio legis, mas em si próprios, lex. Denomino-os de ‘princípios com forma de
proposição jurídica’”.
373 Cita-se, entre outros, os posicionamentos de Forgioni (2012, p. 125) e de Ferraz Junior (2013, p.
18).
374 E, nas palavras de Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 26), “interesses ‘difusos’ são inte-
resses fragmentados ou coletivos, tais como o direito ao ambiente saudável, ou à proteção do
interesses metaindividuais, que, não tendo atingido o grau de agregação e
organização necessário à sua afetação institucional junto a certas entidades
ou órgãos representativos dos interesses já socialmente definidos, restam
em estado fluido, dispersos pela sociedade civil como um todo (v. g., o in-
teresse à pureza do ar atmosférico), podendo, por vezes, concernir a certas
coletividades de conteúdo numérico indefinido (v. g., os consumidores).
Caracterizam-se: pela indeterminação dos sujeitos, pela indivisibilidade
do objeto, por sua intensa, litigiosidade interna e por sua tendência à tran-
sição ou mutação no tempo e no espaço (MANCUSO, 2013a, p. 153).
consumidor. O problema básico que eles apresentam − a razão de sua natureza difusa − é que,
ou ninguém tem direito a corrigir a lesão a um interesse coletivo, ou o prêmio para qualquer in-
divíduo buscar sua correção é pequeno demais para induzi-lo a tentar uma ação”.
Nesse sentido, refere-se que a preocupação primordial do legislador,
ao inserir a expressão “coletividade” na lei concorrencial, foi demarcar o
caráter difuso do direito (PFEIFFER, 2004, p. 14). E, da análise do art. 81, I,
do CDC, observa-se que os “interesses ou direitos difusos” são os transin-
dividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeter-
minadas e ligadas por circunstâncias de fato.
Mesmo sabendo que a plurivalência semântica do vocábulo “direito”
comporta numerosas manifestações conceituais (PEREIRA, 1998, p. 4), a
utilização da expressão combinada “interesses ou direitos” para designar
as espécies passíveis de proteção coletivamente, o que envolve também
os “interesses ou direitos coletivos” stricto sensu (art. 81, II, do CDC) e os
“interesses ou direitos individuais homogêneos” (art. 81, III, do CDC) cha-
ma a atenção, dado que o acesso à justiça375 não é só franqueado a quem
afirme possuir a titularidade de um direito subjetivo resistido ou insatis-
feito, podendo ser judicializado um interesse, desde que legítimo (posi-
ções ou situações reflexamente protegidas) (MANCUSO, 2013b, p. 61).
Assim, se o critério para se caracterizar o interesse como jurisdicio-
nável antes se limitava à titularidade, que conduzia ao regime de coinci-
dência ou de correspondência entre a pessoa titular do direito e o autor
da ação (legitimação ordinária), hoje, considerando o impacto da judicia-
lização das macrolides, utiliza-se o critério da relevância social, acopla-
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
375 E, segundo Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 11-12), “o direito ao acesso efetivo tem
sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos
individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência
de mecanismos para sua efetiva reivindicação”.
dificuldade na definição de um determinado bem jurídico passível de pro-
teção como direito subjetivo, em acordo com o significado que tradicional-
mente lhe vem sendo indicado pela doutrina. A proteção dos consumido-
res não se conforma apenas em relação àqueles que tenham sido sujeitos
de relações de consumo, senão a toda a coletividade, que envolve tanto
quem tenha celebrado contratos de consumo, quanto esteja simplesmente
exposto às práticas do mercado, sem necessariamente possuir vínculo jurí-
dico formal com fornecedores ou quem tenha violado as normas previstas
no CDC. (MIRAGEM, 2014, p. 664)
376 Em tradução livre: o que existe em um nome? Aquilo que chamamos de rosa por qualquer outra
palavra teria o mesmo perfume.
377 Exemplo clássico de direito difuso é o direito ao meio ambiente, cuja titularidade pertence a
todos, algo evidente na música de Tom Jobim (1974): “olha, está chovendo na roseira/ que só dá
rosa, mas não cheira/ a frescura das gotas úmidas/ que é de Luísa/ que é de Paulinho/ que é de
João/ que é de ninguém”.
do, nem renunciar, nem confessar e tampouco assumir ônus probatório
não fixado na lei. Por fim, eventual mutação dos titulares ativos difusos
da relação de Direito material se dá com absoluta informalidade jurídica,
bastando alteração nas circunstâncias de fato (ZAVASCKI, 2014, p. 36-37).
A partir de um exemplo hipotético, baseado em uma situação em que
uma empresa que possuísse dois concorrentes em um determinado mer-
cado relevante praticasse a conduta de preço predatório e, a partir disso,
eliminasse-os do mercado, Roberto Pfeiffer afirma:
A literatura aponta, porém, que uma mesma causa pode dar ensejo
a lesões a direitos de ordem individual, coletiva e difusa, o que se aplica
à concorrência, já que uma mesma conduta pode causar lesão à livre con-
378 Exemplos de outros estados de vulnerabilidade da pessoa humana podem ser identificados na
condição de idoso, crianca, incapaz etc., como demonstram Marques e Miragem (2014).
379 E, como ensina Pontes de Miranda (2013, p. 292), “o direito objetivo, regrando distribuição de
bens da vida, cria poderes. Mas poder, aí, não é mais do que faculdade, que se faz conteúdo do
direito subjetivo”.
É certo que a concorrência apresenta importância não só como ga-
rantia de honestidade e de lealdade na conduta dos agentes econômicos,
mas também na defesa dos direitos do consumidor. Dessa forma, a con-
corrência que o constituinte pretende “livre” de obstáculos desarrazoados
pode transformar-se, quando objeto de uma política econômica coerente,
em instrumento garantidor do direito ao consumo (VAZ, 1993, p. 11, 358).
O direito à escolha, como é intuitivo, demanda uma pluralidade de
produtos e de serviços, um tema de certa forma tabu no Brasil, que tem
380 Que não se confunde com pluripartidarismo. O pluralismo político constitucionalmente positiva-
do no Brasil alcança, hoje, as diversas esferas da vida política e social do País. (LIMA, 2014, p. 136)
381 Em tradução livre: atrás da coisa, ou seja, que a desvele, que procure sua essência, para além de
seus propósitos evidentes. Segundo o Professor Doutor Marcelo Schenk Duque, ao pronunciar-
-se no Encontro anual da Associação Luso-alemã de Juristas realizado em novembro de 2015 no
Salão Nobre da Faculdade de Direito da UFRGS, a expressão é utilizada com frequência pelo
eminente jurista Erik Jayme.
A análise legislativa, jurisprudencial e doutrinária realizada até o
momento demonstra que o consumidor é protegido pelo Direito da
Concorrência, que a defesa do consumidor é um dos objetivos da lei con-
correncial, que a livre concorrência é um pressuposto da defesa do con-
sumidor, que a proteção da concorrência, enquanto instituição jurídica,
também protege o consumidor e que, além de a lei concorrencial proteger
indiretamente o consumidor, ele também é titular de direitos concorren-
ciais, de forma autônoma.
A partir disso, entende-se que é possível reconhecer um direito fun-
damental à concorrência, ao consumidor, a partir do superprincípio da
dignidade da pessoa humana, como uma dimensão da defesa do consu-
midor, direito fundamental nos termos da CRFB/88. Contribui para essa
percepção, ainda que por um viés diverso, o fato de a concorrência confi-
gurar, também, uma liberdade econômica fundamental (JAEGER JUNIOR,
2006, p. 198, 731) de um processo de integração que preveja a etapa de
mercado comum, o que já se reconhece no âmbito da UE, como visto.
Mesmo sabendo da crítica ao suposto excesso de direitos na socie-
dade pós-moderna (hiperjuridificação) e da proposta legítima de reduzir
consideravelmente sua quantidade (desjuridificação) (GIORGI, 2011, p.
176), pensa-se que o reconhecimento de um direito fundamental à con-
corrência é significativo para a implementação da defesa do consumidor,
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
291
non è detto che il giurista debba sentirsi limitato da quanto costituisce ius conditum, ti-
picamente i precetti di legge o le decisioni giurisprudenziali. Il giurista, come qualunque
altro libero pensatore, può svolgere creativamente il proprio compito proponendo soluzioni
innovative382. (MATTEI, 1998, p. 165)
382 Em tradução livre: diz-se que o jurista deve ser limitado ao que constitui ius conditum, normalmen-
te, os preceitos legislativos ou as decisões judiciais. O jurista, como qualquer pensador livre,
pode realizar criativamente sua tarefa, oferecendo soluções inovadoras.
Percebe-se facilmente que o constituinte não tornou expressis verbis
a concorrência um direito fundamental. No entanto, do superprincípio
da dignidade da pessoa humana e da condição de direito fundamental
atribuída à defesa do consumidor decorre a conclusão inevitável de
que também a concorrência, ou a livre concorrência, que é a expres-
são consagradamente adotada no sistema jurídico brasileiro, perfaz
um direito fundamental. Essa perspectiva decorre da verificação de
que a defesa do consumidor realiza-se se e somente se a existência
de concorrência estiver assegurada, excetuando-se os casos que en-
volvem falhas de mercado, em que é necessária a atuação do Direito
Regulatório. Tanto que, nos casos em que a concorrência não se mos-
tra factível, é necessária a presença do Estado (intervenção, portan-
to) para que não se produzam as intercorrências próprias de situações
monopolísticas, conhecidas pelo potencial risco aos mais fracos, sejam
os demais agentes econômicos, direta ou indiretamente envolvidos no
setor econômico afetado, sejam os consumidores.
Além disso, como já se verificou, a literatura usualmente classifica os
direitos fundamentais em dois grupos, a partir da classificação proposta
por Robert Alexy: (i) direitos fundamentais como direitos de defesa e (ii)
direitos fundamentais como direitos a prestações. Este último grupo, por
sua vez, divide-se em duas espécies: (i) direitos a prestações em sentido
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
384 Cujo art. 4o dispõe: art. 4° Constitui crime contra a ordem econômica:
I – abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a
concorrência mediante qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas;
II – formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando:
a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas;
b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas;
Segundo Calixto Salomão Filho (2013, p. 108), a proteção do interesse
direto e individual do consumidor diferencia-se da proteção do “interesse
institucional da concorrência” e,
385 Em sentido diverso, como visto, posiciona-se Luiz Carlos Buchain (2006, p. 147).
cia, que hoje praticamente inexistem, na prática, e somente decorrerão da
paulatina educação dos cidadãos e do acesso à cultura da concorrência, o
que perfaz um instrumento de inibição do cometimento de ilícitos concor-
renciais (IDEM, p. 293).
Assim, a disposição do art. 47 da Lei n. 12.547/2011, não é uma dele-
gação da competência administrativa do CADE aos particulares, mas uma
reafirmação do direito destes de acesso ao Poder Judiciário, para obten-
ção de reparação cível, quando constatado um ato ilícito, o seu dano e o
386 Assim traduzido: “wherever there is a right, there is a remedy”. Em tradução livre: onde houver um di-
reito, há um remédio. (FELLMETH; HORWITZ, 2009)
interesse. A ação é, pois, um dos elementos essenciais do direito subjeti-
vo (ALVES, 2014, p. 190).
Além disso, juridicamente, não é possível a denegação de justiça
mesmo na eventualidade de inexistir lei específica sobre a matéria dis-
cutida387. Desse modo, a universalidade da tutela jurisdicional e o amplo
acesso ao Poder Judiciário, garantidos no art. 5o, XXXV, da CRFB/88, ao
prever que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito”, significam que a todo direito, interesse jurídico ou si-
Desse modo, como não poderia deixar de ser, “todas388 as causas an-
titruste podem ser levadas à apreciação dos magistrados” (FORGIONI,
2012, p. 156). A propósito, na literatura, referem-se cinco oportunidades
301
387 Segundo o art. 4o da Lei de introdução às normas do Direito brasileiro, “quando a lei for omissa,
o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
388 Em sentido diverso posiciona-se Amanda Flávio de Oliveira, para quem, no Brasil, a defesa da
concorrência pode ser exercida em duas órbitas, a administrativa e a judicial, sendo que esta
pode ocorrer em algumas hipóteses: “primeiramente, por provocação do CADE, quando se fizer
necessária a atuação do Poder Judiciário para a execução das decisões administrativas proferi-
das. Em segundo lugar, por provocação da empresa envolvida, sempre que esta não concordar
com a decisão proferida pelo CADE. Por fim, quando uma determinada empresa julgar-se lesada
que dão ensejo à provocação do Poder Judiciário no que tange à matéria
concorrencial:
a. quando o CADE, autarquia a quem cabe a decisão final na esfera
administrativa acerca da ocorrência de infrações da ordem econômica e
sobre a autorização de atos de concentração econômica, necessita propor
ação para fazer cumprir as suas decisões,
b. nas hipóteses em que o administrado discorda de alguma sanção
imposta pelo CADE, seja em processo administrativo sancionatório, seja em
processo administrativo para apreciação de ato de concentração econômica,
c. quando são propostas ações individuais para a tutela do direito
individual lesado (por exemplo, a reparação de danos causados a um con-
corrente ou a um consumidor),
d. na hipótese de propositura de ação civil pública para a tutela da
livre concorrência,
e. quando ocorrer o ajuizamento de ação coletiva para a tutela de di-
reitos individuais homogêneos em virtude de lesão a direitos por conduta
anticoncorrencial (PFEIFFER, 2004, p. 12).
Além disso, segundo Heloisa Carpena,
o mesmo fato − uma infração da ordem econômica − que tenha sido apu-
rado administrativamente, ainda que julgado definitivamente no âmbito
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
389 Como a obra da autora citada foi publicada em 2005, ela se refere à Lei n. 8.884/1994. No entanto,
sua reflexão permanece atual, visto que não houve alteração significativa entre o art. 29, da lei de
1994, e o art. 47, da Lei n. 12.529/2011.
da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por per-
das e danos sofridos”. O primeiro refere-se a interesse difuso, enquanto o
ressarcimento constitui exemplo de tutela de interesse individual homo-
gêneo. A omissão quanto aos coletivos stricto sensu não impede seja dedu-
zida pretensão relativa a essa espécie de interesses, abrigados de forma
expressa no CDC (artigo 81), o qual se aplica às demandas da concorrência
(CARPENA, 2005, p. 160).
390 Dispunha o art. 29: Art. 29. Os prejudicados, por si ou pelos legitimados do art. 82 da Lei n. 8.078, de
11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais
ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econô-
mica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente
do processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação.
analogia, pode-se identificar um subsistema processual que delineia
claramente os modos e os instrumentos de tutela dos direitos cole-
tivos, caso das ações civis públicas e da ação popular, e os modos e
os instrumentos para tutelar coletivamente os direitos subjetivos in-
dividuais, caso das ações civis coletivas, nelas incluído o mandado de
segurança coletivo (ZAVASCKI, 2014, p. 49).
A partir dessa perspectiva, verificam-se os “remédios” passíveis de
ser manejados para assegurar o direito à concorrência.
com base no art. 66, § 1o, da Lei n. 12.529/2011. O dispositivo prevê que
o inquérito administrativo, procedimento investigatório de natureza
inquisitorial para apuração de infrações à ordem econômica, instaura-
do pela Superintendência-Geral do CADE, poderá ser instaurado de
ofício ou em face de representação fundamentada de qualquer interes-
sado, ou em decorrência de peças de informação, quando os indícios
de infração à ordem econômica não forem suficientes para a instaura-
304
ção de processo administrativo.
A representação se trata de ato desprovido de forma jurídica espe-
cífica. Inobstante isso, ela é uma ferramenta útil à participação do con-
sumidor na esfera concorrencial, de acordo com uma perspectiva inclu-
siva, que privilegia a consecução da ideia de democracia participativa,
de que já se falou.
Em recente e rumoroso episódio, foi apresentada representação391
perante o CADE pelo Diretório Central de Estudantes da Universidade de
Brasília (DCE/UNB) em face de associações e sindicatos dos permissioná-
rios de táxis, por suposto exercício, por taxistas, de pressão coordenada
para a retirada de concorrente do mercado, in casu, motoristas que traba-
lham com o aplicativo Uber, sobre o qual se falou anteriormente, conduta
que se enquadra na hipótese dos incs. III (limitar ou impedir o acesso
de novas empresas no mercado), IV (criar dificuldades à constituição, ao
306
Os arts. 101392 e 102393 do TFUE, já mencionados, tratam das hipóteses
de acordos entre agentes econômicos e de abuso de posição dominante.
O Tribunal de Justiça da União Europeia tem jurisprudência consolida-
da, desde 2001, quando julgou o caso Courage/Crehan (UNIÃO EUROPEIA,
2001), segundo a qual qualquer pessoa tem o direito de pedir reparação
pelos danos sofridos quando exista um nexo de causalidade entre esses
danos e uma “infração ao Direito da Concorrência”, entendida esta como
os artigos 101 e 102 do TFUE produzem efeito direto nas relações entre
particulares e criam, para as pessoas em causa, direitos e obrigações que
os tribunais nacionais devem tutelar. Os tribunais nacionais têm, assim,
um papel igualmente essencial na aplicação das regras da concorrência
(aplicação privada). Ao decidirem sobre os litígios entre particulares, sal-
vaguardam os direitos subjetivos decorrentes do direito da União, nome-
adamente através da concessão de indenizações às vítimas de infrações.
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
any person who shall be injured in his business or property by reason of anything
forbidden in the antitrust laws may sue therefore in any district court of the United States
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
in the district in which the defendant resides or is found or has an agent, without respect
to the amount in controversy, and shall recover threefold the damages by him sustained,
and the cost of suit, including a reasonable attorney’s fee398. (ESTADOS UNIDOS DA
AMÉRICA, CLAYTON ACT)
398 Em tradução livre: qualquer pessoa que seja ferida em sua empresa ou propriedade devido a
qualquer proibição presente nas leis antitruste pode litigar em qualquer tribunal distrital dos
Estados Unidos no distrito em que o demandado resida ou se encontre ou tenha um agente, sem
considerar o montante da controvérsia, e deve recuperar o triplo dos danos sofridos e o custo do
processo, incluindo honorários advocatícios.
art. 1o Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular,
as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
l – ao meio ambiente;
ll – ao consumidor;
III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e pai-
sagístico;
IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo;
V – por infração da ordem econômica;
VI – à ordem urbanística;
VII – à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos,
VIII – ao patrimônio público e social.
Por fim, o art. 82, IV, do CDC confere legitimação ativa às “associações
legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus
fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este
código, dispensada a autorização assemblear”.
A afirmação de que apenas há legitimação das associações para a
propositura de ação coletiva quando seu objeto for a tutela de direitos
individuais homogêneos decorrentes das relações de consumo, encon-
320 trada inclusive na jurisprudência, faz uma interpretação reducionista das
hipóteses legais de legitimação para demandas coletivas, restringindo-as
àquelas do art. 82, IV, do CDC. Contudo, excetuando-se algumas hipóte-
ses, a legitimação prevista no art. 5o, XXI da CRFB/88 é ampla: a entida-
de associativa está habilitada a promover ações coletivas para a tutela
de quaisquer direitos subjetivos de seus filiados, desde que tais direitos
guardem relação de pertinência material com os fins institucionais da as-
sociação, fins esses que, afinal, constituíram o motivo da própria filiação
(ZAVASCKI, 2014, p. 163).
De qualquer forma, dada a “íntima relação entre a defesa da concor-
rência e a proteção do consumidor”, Roberto Pfeiffer refere que há ampa-
ro para a legitimação das associações para a propositura de ação coleti-
va para reparação de danos causados por infração da ordem econômica
(PFEIFFER, 2015, p. 253). Nesse sentido, como a norma do art. 82, IV, do
CDC exige que a associação inclua entre seus fins institucionais a defesa
327
CONCLUSÃO
402 Fábio Konder Comparato também aponta que o jovem Marx, em sua
Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, antecipando-se ao pensamento
existencialista, já apontara que “o homem não é um ser abstrato, acocora-
do fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a socieda-
de”. (COMPARATO, 2010, p. 40)
Verificou também que a concorrência é um valor atribuído ou ins-
trumental que está à disposição da defesa do consumidor, direito funda-
mental cuja implementação, em um sistema econômico capitalista, de-
manda um quadro em que exista a concorrência eficaz, que significa uma
proteção avant la lettre do consumidor, sempre que não se esteja diante de
situações que envolvam falhas de mercado e que demandem, por isso, a
aplicação do Direito Regulatório.
A proteção da instituição concorrencial, enquanto instituição jurídica
precursora da defesa do consumidor, é a prioridade de uma política de
defesa da concorrência orientada pela defesa do consumidor, com vista
a concretizar a dignidade da pessoa humana em sua dimensão econômi-
ca, o que não significa que a política concorrencial deva apresentar como
único objeto a proteção dos interesses do consumidor e, tampouco, do
concorrente. Seu objeto primordial é a proteção da concorrência e, se essa
tarefa for cumprida, cumpre-se, também, o mandamento constitucional da
defesa do consumidor.
Como o superprincípio da dignidade da pessoa humana descreve
uma realidade complexa, o trabalho considerou que, sob a perspectiva
jurídica, e não econômica, o paradigma da liberdade de escolha, defen-
dido pela Escola de Freiburg, deve prevalecer em caso de conflito com
o paradigma da eficiência, defendido pela Escola de Chicago, uma vez
SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 29
333
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