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Revista Judicial Brasileira

Conselho Superior da Enfam ReJuB


Revista Judicial Brasileira
Ministro Og Fernandes (Presidente)
Diretor-Geral da Enfam Ministra Maria Thereza Rocha de Assis
Moura
Ministro Benedito Gonçalves Diretora
Vice-Diretor da Enfam Ministro Antonio Herman Benjamin
Coordenador-Geral do Programa
Ministro Jorge Mussi de Pós-Graduação da Enfam
Diretor do CEJ do Conselho da Justiça
Federal
Conselho Editorial
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
Superior Tribunal de Justiça (STJ) Ministro Og Fernandes (Presidente)
Ministra Maria Thereza Rocha de Assis
Ministra Isabel Gallotti Moura
Superior Tribunal de Justiça (STJ) Ministro Antonio Herman Benjamin
Ministro Benedito Gonçalves
Desembargadora Federal Therezinha
Cazerta
Tribunal Regional Federal da 3a Região
(TRF3)

Desembargadora Katia Maria Amaral


Jangutta
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
(TJRJ)

Juiz Federal Roberto Carvalho Veloso


Associação dos Juízes Federais do
Brasil (Ajufe)

Juiz Jayme Martins de Oliveira Neto


Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB)

Juíza Federal Cíntia Menezes Brunetta


Secretária-Geral

Jaqueline Aparecida Correia de Mello


Secretária Executiva
Ano 2 N.1 - Janeiro/Julho 2022
Editoria
Jaqueline Aparecida Correia de Mello
Cyva Regattieri de Abreu
Maria Fernanda Pereira Neves Leite Silva
Tatiana Barroso de Albuquerque Lins

Revisão Bibliográfica
Gabriela Breder Lopes
Karoline dos Santos Rodrigues

Revisão Ortográfica
Luciana Silva Cantanhede Lobo
Mariana Ribeiro Reino da Silva

Projeto Gráfico
Wanderson Oliveira dos Reis

Diagramação
Wanderson Oliveira dos Reis
Créditos Institucionais
Biblioteca Ministro Oscar Saraiva - SED/STJ
Seção de Serviços Gráficos - SAD/CJF

Tiragem
150 exemplares

Distribuição gratuita
Impressa em 2022

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
A reprodução total ou parcial é permitida desde que citada a fonte e indicada a autoria do texto.

Endereço:
Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - Enfam
SCES - Trecho 3, Polo 8, Lote 9, 1º andar, Brasília - DF, Brasil CEP: 70.200-003

www.enfam.jus.br
www.revistadaenfam.emnuvens.com.br/renfam/index
[email protected]
As opiniões expressas pelos autores não refletem, necessariamente, a posição da Enfam.
Esta revista não é comercializada.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

ReJuB [recurso eletrônico] : Revista Judicial Brasileira / Escola Nacional de


Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. – Ano 1, n. 1 (jul./dez. 2021)-
. – Brasília : Enfam. 2021- .

Semestral.
Disponível em: https://revistadaenfam.emnuvens.com.br/renfam/index
ISSN 2764-2704. eISSN 2764-3484.

1. Direito, periódico, Brasil. 2. Poder judiciário, periódico, Brasil. 3. Escola


Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, Brasil. II. Título.

CDU 340(81)(05)

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Roberta Penha e Silva Marins CRB
1/2436
APRESENTAÇÃO

Esta é uma edição especial da Revista Judicial Brasileira – ReJuB,


que reúne 16 artigos de juízas e juízes brasileiros selecionados para
participar do curso Novas Perspectivas sobre o Combate ao Crime
Organizado no Contexto Europeu e Latino-Americano. O evento,
realizado em Roma, de 20 a 29 de junho de 2022, foi uma parceria entre
a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados –
Enfam e a Escola Superior do Ministério Público da União – ESMPU,
com o apoio de entidades internacionais.

Com 588 páginas, a primeira edição do ano de 2022 da ReJuB é


um compilado de artigos inéditos que foram selecionados, mediante
critério duplo-cego, por uma comissão formada pela Ministra Presidente
do Superior Tribunal de Justiça, Maria Thereza Rocha de Assis Moura,
então corregedora nacional de Justiça; pelo Ministro Rogerio Schietti
Cruz, do STJ; pelo Desembargador José Marcos Lunardelli, do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região; e pelo Procurador Regional da República
Vladimir Aras.

Os candidatos deveriam escrever sobre sociologia do crime


organizado e da corrupção no Direito Penal Internacional: crime
organizado; corrupção e lavagem de dinheiro; evasão de divisas;
offshores; cibercriminalidade; e tráfico de drogas, mulheres e crianças.
O temário também incluía as experiências italiana e brasileira na luta
contra o crime organizado; estratégias de enfrentamento das forças
paramilitares e milícias; a liberdade de imprensa e o combate ao
crime organizado transnacional; e, ainda, a cooperação internacional:
proteção de dados, cooperação policial, cooperação probatória e
recuperação de ativos.
Os textos passaram por um rigoroso escrutínio, do ponto de
vista temático e também de ordem formal, do que resultaram estudos
consistentes sobre temas que foram também abordados pelos
expositores destacados para a formação continuada na Itália.

As expectativas foram superadas pelos autores, e temos a alegria


de apresentar à magistratura brasileira e à academia um conjunto coeso
e substancial de artigos que abordam a importância da liberdade de
imprensa para o enfrentamento do crime organizado transnacional;
os modernos desafios da lavagem de dinheiro, inclusive quanto à
autolavagem e à reciclagem em finanças descentralizadas – DeFi; temas
específicos de criminalidade transnacional organizada, como o tráfico
de madeira, a colaboração premiada e a ampla defesa; aspectos do
Direito Processual Penal Probatório; a proteção de dados no processo
penal; a investigação de cibercrimes, assim como a transferência de
processos penais no âmbito transnacional; e o atualíssimo debate
sobre a regulação de criptoativos.

Para este número da ReJuB, foi essencial o auxílio prestado


pela Juíza Federal Cíntia Brunetta, do Tribunal Regional Federal da 5ª
Região, como secretária-geral da Enfam. Em seu nome, agradecemos
a todos os servidores da Escola.

A Comissão de Seleção

Ministra Maria Thereza Rocha de Assis Moura

Ministro Rogerio Schietti Cruz

Desembargador José Marcos Lunardelli

Procurador Regional Vladimir Aras


SUMÁRIO
LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL 9
9
ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA
https://orcid.org/0000-0002-0114-5995

CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM: CONCURSO EFETIVO DE DELITOS OU


CONFLITO APARENTE DE NORMAS? 37
37
MARCELO COSTENARO CAVALI
37
https://orcid.org/0000-0002-8633-0371

UTILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO:


LIMITES E POSSIBILIDADES DE TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO
EM MEIO DIGITAL 68
68
ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI
https://orcid.org/0000-0002-8137-776068

TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL 107


107
CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD
107
https://orcid.org/0000-0003-4401-3439

O “HOMEM DE CONFIANÇA” NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO 142


142
DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA
142
https://orcid.org/0000-0002-2200-9570

LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA DEL GIUDICE


COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA E IN BRASILE E LA SUA
INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE 174
174
HUGO ABAS FRAZÃO
https://orcid.org/0000-0003-1511-0010 174

USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME


ORGANIZADO 215
215
GEORGE MARMELSTEIN LIMA
215
https://orcid.org/0000-0002-1277-3217

A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O COMPARTILHAMENTO DE PROVAS


COMO TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO
TRANSNACIONAL 266
266
CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ
https://orcid.org/0000-0002-2370-9747
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E
PERSPECTIVAS 296
296
FABIO NUNES DE MARTINO
https://orcid.org/0000-0003-1561-9976 296

LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –


DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO
TERRORISMO – GAFI 339
339
MATHEUS LOLLI PAZETO
https://orcid.org/0000-0002-0127-1633 339

CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO 374


374
MARCOS VINICIUS LIPIENSKI
374
https://orcid.org/0000-0002-3144-745X

O RECONHECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS COMO ESTRUTURA


COMPLEXA E ÚNICA DA SOCIEDADE – COMPARATIVO À LEGISLAÇÃO
ITALIANA QUE TIPIFICA NOMINALMENTE O PERTENCIMENTO A UMA
ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (ART. 416-BIS) 404
404
MARIANA PARMEZAN ANNIBAL
404
https://orcid.org/0000-0003-0913-3953

NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME ORGANIZADO:


INTERAMERICANIZAÇÃO DO DIREITO PENAL 434
434
FREDERICO VALDEZ PEREIRA
434
https://orcid.org/0000-0002-4000-9021

LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O DIREITO À AMPLA DEFESA NA


COLABORAÇÃO PREMIADA 469
469
MARA LINA SILVA DO CARMO
469
https://orcid.org/0000-0002-2934-4240

CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO BRASIL: UM


MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRANSNACIONAL 499
499
MARCELO GUERRA MARTINS
499
https://orcid.org/0000-0002-3176-229X

A UTILIZAÇÃO DO MALWARE COMO FERRAMENTA DA INFILTRAÇÃO VIRTUAL


NA INVESTIGAÇÃO DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA: UMA REALIDADE
NORMATIVA POSSÍVEL? 544
544
ULISSES AUGUSTO PASCOLATI JUNIOR
544
https://orcid.org/0000-0003-4647-4028
https://doi.org/10.54795/rejub.n.1.175

LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO


CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL
FREEDOM OF THE PRESS AND THE TRANSNATIONAL
FIGHTING AGAINST ORGANIZED CRIME

ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA


Juiz federal no Rio de Janeiro. Mestre em Direito Público pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
https://orcid.org/0000-0002-0114-5995

RESUMO

O fenômeno da globalização, observado após o encerramento da


Guerra Fria, trouxe consigo a “globalização do crime”, elevando
a criminalidade organizada a bases transnacionais, sem que o
arranjo institucional persecutório tenha se reestruturado à altura de
responder ao desafio. A divulgação da magnitude das movimentações
financeiras suspeitas nos casos Swiss Leaks e Panama Papers
chamou atenção para a emergência do tratamento dessa questão.
Nesse contexto, sobreleva em importância a garantia do direito
à informação e da imprensa livre, em sua dupla fundamentação
(individual e institucional), como meio indispensável de colaboração
para a elucidação de ilicitudes, sem perder de vista seus limites e
os cuidados para ponderá-la frente a outros direitos fundamentais.

Palavras-chave: liberdade de imprensa; crime organizado; globalização;


liberdade de informação.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022. 9


ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA

ABSTRACT

The phenomenon of globalization, observed in sequence to closure


of the Cold War, brought with it the “globalization of crime”,
raising organized crime to transnational basis, without having been
accompanied by the restructuring of the law enforcement system
at the height of responding to the challenge. The discovery of the
magnitude of suspicious financial transactions in the cases Swiss
Leaks and Panama Papers highlighted the emergency of addressing
this issue. This context outweighs the importance of the right to
information and of the free press, in their double grounding (individual
and institutional), as an indispensable mean of cooperation to the
elucidation of felony, without losing sight of their limits and the
precaution taken to balance them against other fundamental rights.

Keywords: freedom of the press; organized crime; globalization;


freedom of information.

Recebido: 14-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 O crime organizado em um mundo globalizado e o


apagamento das fronteiras; 2.1 A globalização do crime e o desafio de
se conferir efetividade à tutela penal punitiva no âmbito dos crimes
financeiros transnacionais; 2.2 O caso Swiss Leaks; 2.3 O caso Panama
Papers. 3 A liberdade de imprensa, sua fundamentalidade, seus limites
e o entrechoque com outros direitos fundamentais e os valores
constitucionais. 4 A liberdade de imprensa na perspectiva do combate
à criminalidade organizada em escala transnacional. 5 Conclusão.
Referências.

10 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022.


LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

1 INTRODUÇÃO

A união de esforços entre o Estado e a sociedade civil em torno


do combate à criminalidade organizada não representa propriamente
uma novidade. Porém, o aprofundamento do processo de globalização
elevou ao nível mundial esse desafio cuja magnitude, até há pouco
tempo, não era conhecida.

Uma ideia acerca do volume de movimentações financeiras


transnacionais suspeitas veio a lume com destaque na última década,
particularmente em virtude da divulgação dos casos Swiss Leaks e
Panama Papers. Esses episódios revelaram o tamanho do problema
a ser enfrentado, colocando à mostra contornos absolutamente
desafiadores para os estados, em particular, e para a comunidade
internacional, como um todo.

O presente artigo pretende abordar, de forma panorâmica,


os contornos, as características e as necessidades observáveis
no fenômeno, dimensionando a relevância da participação de
uma imprensa livre na conjugação de esforços para o combate à
criminalidade organizada transnacional, assim como a necessidade
de remodelação dos órgãos de persecução para que se dispense o
adequado tratamento a essa questão.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022. 11


ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA

2 O CRIME ORGANIZADO EM UM MUNDO GLOBALIZADO E O


APAGAMENTO DAS FRONTEIRAS

2.1 A globalização do crime e o desafio de se conferir


efetividade à tutela penal punitiva no âmbito dos crimes
financeiros transnacionais

O encerramento da Guerra Fria na última década do século


XX, aliado à aceleração exponencial do desenvolvimento de novas
tecnologias, especificamente na área de produção e de comunicação
de dados, abriu margens nunca vistas para a mundialização de todas
as atividades humanas. A configuração tradicional da organização
dos meios de produção sofreu rápida transformação ao longo dos
anos, com a radical mudança no perfil econômico dos países e o
deslocamento dos centros de produção. Vários negócios tradicionais
deixaram de existir; outros tantos surgiram; zonas industriais mudaram
de continente; e a interdependência econômica dos países somente
se fez aumentar, na contramão da força que as fronteiras nacionais,
outrora expressões máximas de soberania e autodeterminação, foram
perdendo.

Como o rearranjo relatado ocorreu na base da organização


mundial, é natural supor que o mesmo espaço e as mesmas
oportunidades tenham surgido para a expansão das atividades
ilícitas, conduzindo a um processo de “globalização do crime”. É esse
exatamente o título do Relatório do Escritório das Nações Unidas
sobre Drogas e Crimes – UNODC1, publicado em 2010 (UNITED
NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, c2010), que busca retratar

1
Sigla em língua inglesa para United Nations Office on Drugs and Crime.

12 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022.


LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

as mudanças e as ameaças envolvendo as mais diversas atividades


criminosas na era da globalização.

As dificuldades apontadas pelo mencionado relatório para que se


alcance um nível satisfatório de efetividade no combate à criminalidade
organizada transnacional passam pelos seguintes aspectos: (i)
deficiência e heterogeneidade (pouca confiabilidade) da informação
disponível, prejudicando a formulação de políticas de enfrentamento
ao crime transnacional; (ii) manutenção do caráter nacional das
organizações destinadas ao combate à criminalidade organizada, com
pouco ou nenhum laço de cooperação, e com diferentes prioridades de
política de enfrentamento ao crime, desaguando em um jogo desigual,
sempre desfavorável às forças de garantia da legalidade (é textualmente
observado, nesse sentido, que “apenas intervenções na escala do
problema – global – são capazes de ter um efeito sustentável”2); (iii)
nível insuficiente de regulação dos fluxos comerciais transnacionais,
que se dinamizaram mais rapidamente do que a capacidade estatal de
gerenciá-los; (iv) o fato de os crimes praticados por essas organizações,
em sua maioria, não terem vítimas conscientes dessa condição, o que
elimina do cenário um natural colaborador das forças de persecução,
dificultando o trabalho de investigação e punição; (v) nas reduzidas
hipóteses em que há vítimas bem ajustadas a esse papel social, uma
estrutura (própria da “organização” referida) de dissuasão dessas
vítimas ao acionamento das autoridades, mediante intimidações e
ameaças, passa a atuar; e (vi) as estruturas rígidas e hierarquizadas
das máfias tradicionais vêm sendo substituídas por redes fluidas
e descentralizadas, aumentando a diversidade, a flexibilidade, a
invisibilidade e a longevidade das organizações, facilitando sua rápida

2
Tradução livre. Texto original: “Only interventions at the scale of the problem –
global – are likely to have a sustained effect” (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS
AND CRIME, c2010, p. v).

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ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA

substituição em prol da continuidade da atividade ilícita e dificultando


sobremaneira seu desmantelamento.

Analisado o problema sob uma ótica econômica, o incentivo ou


a ausência de obstáculos à ampliação das atividades criminosas em
bases transnacionais, quando não se traduz na exploração direta de
pessoa a pessoa, como no caso do tráfico humano, têm, no mínimo, o
efeito perverso de ampliar, de modo geral, as condições de pobreza
e desigualdade econômica. O dinheiro obtido em atividade ilícita,
sempre em montantes consideráveis, em geral é drenado da ciranda
econômica de cada país e conduzido a paraísos fiscais, onde passam
ou não por processos de “lavagem” para fins de legitimação. Evadem-
se divisas e evadem-se, igualmente, receitas tributárias que seriam
destinadas ao custeio de políticas públicas de garantia da dignidade
humana e de satisfação dos direitos sociais consagrados em favor
dos mais despossuídos de recursos e, por consequência, de maior
vulnerabilidade.

Mais concentração de renda e menos recursos para a promoção


da ascensão social da imensa maioria confinada à situação de pobreza.
Essa é a face mais perversa da criminalidade financeira organizada
transnacional, o que se traduz na emergência da estruturação e da
promoção de mecanismos transnacionais, igualmente ágeis e flexíveis,
aptos a proporcionar um adequado enfrentamento a esse tipo de
atividade criminosa.

Trata-se de postulado não apenas da legalidade e da proteção da


higidez do sistema jurídico, mas também da igualdade e da subjacente
ideia de justiça, uma vez que a evasão financeira e fiscal de uma elite
econômica mundial, a despeito de sua inquestionável capacidade
contributiva, termina por perpetuar a desigualdade e a indignidade
que vitima a maior parte da população mundial.

14 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022.


LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

A nocividade dessa espécie de crime, sob todos os aspectos


mencionados, é bem ilustrada por dois casos concretos relativamente
recentes: o caso Swiss Leaks e o caso Panama Papers, ambos reveladores
dos contornos dos mecanismos internacionais de criminalidade
financeira e trazidos à luz pela atuação notável de órgãos de imprensa.
Os detalhes desses casos serão apresentados nas seções seguintes.

2.2 O caso Swiss Leaks

Em fevereiro de 2015, o Consórcio Internacional de Jornalistas


Investigativos – Icij, na sigla em inglês3, publicou uma reportagem
intitulada Swiss Leaks: dinheiro escuso protegido pelo sigilo fiscal
(SWISS..., 2015), ponto culminante de investigação jornalística que
envolveu mais de 140 profissionais em 45 países, e revelou um esquema
de evasão fiscal envolvendo o banco britânico HSBC, através de sua
subsidiária suíça, que envolveu a movimentação de 180,6 bilhões de
euros por mais de 100,000 clientes e 20,000 empresas offshore entre
novembro de 2006 e março de 2007.

Os mais de 60 mil arquivos que embasaram a reportagem foram


furtados do HSBC por um ex-funcionário, entregues a autoridades da
França no fim de 2008 e repassados ao Icij por intermédio do jornal
francês Le Monde. As movimentações envolviam políticos, figuras
públicas e líderes empresariais, além de traficantes de drogas e
armas, e financiadores de organizações terroristas, de mais de 200
países. Apenas 65 nomes foram revelados de acordo com o critério de
“interesse público” adotado pelo consórcio (FERREIRA, 2015).

O caso expôs a existência de contas em nome de pessoas com


notório envolvimento em crimes e iniciou uma discussão sobre o sigilo

3
Sigla em língua inglesa para International Consortium of Investigative Journalists.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022. 15


ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA

bancário e os mecanismos de controle utilizados pelas instituições


financeiras para um mínimo de filtragem sobre as informações
pertinentes aos titulares de ativos financeiros. O banco HSBC, o
segundo maior do mundo, teve não apenas ciência, mas parece ter
adotado uma posição de encorajar as fraudes fiscais cometidas em sua
representação de Genebra.

Como consequência da série de reportagens, na França, primeiro


país cujas autoridades trataram o material, houve uma regularização
fiscal por parte da maioria dos cidadãos franceses envolvidos, tendo
havido instauração de processo contra 72 cidadãos (DAVET; LHOMME;
MICHEL, 2015).

Segundo Ferreira (2015), o Brasil foi colocado em 9º lugar entre os


países com a maior movimentação de dinheiro, com cerca de 7 bilhões
de euros, e em 4º lugar em número de correntistas (6.606 contas).

Embora as reportagens, de modo geral, tenham adotado um


tom de cautela em relação à origem ilícita dos depósitos encontrados,
a série de reportagens destacou-se pelo volume movimentado; pela
atividade notoriamente ilícita por que eram conhecidos alguns dos
correntistas; e pela frouxidão dos controles estatais e bancários quanto
à movimentação financeira transnacional, gerando debates em torno
de temas como concentração de renda e evasão fiscal.

2.3 O caso Panama Papers

A partir de abril de 2016, o mesmo Consórcio Internacional de


Jornalistas Investigativos, congregando mais de 100 jornais em todo
o mundo, passou a publicar uma série de reportagens que inauguraria
um capítulo inédito na exposição da fraude financeira e da corrupção

16 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022.


LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

política em escala global. O caso Panama Papers foi intitulado


“investigação da década” pela revista Press Gazette, tendo sido
premiada com o Brittish Journalism Awards. O esforço transnacional
de apuração jornalística contou com a participação de 376 jornalistas
de 109 veículos em 76 países (PANAMA..., 2022).

O material examinado foi obtido originalmente pelo jornal


alemão Süddeutsche Zeitung, por meio de uma fonte anônima, sendo
composto de cerca de 11,5 milhões de arquivos, do período de 1977 a
2015, que foram analisados secretamente ao longo de mais de um ano.
Os arquivos pertenciam ao escritório de advocacia Mossack Fonseca,
especializado em abrir e gerenciar empresas offshore, com sede no
Panamá e representações em Hong Kong, em Zurique e dezenas de
outros lugares.

A análise identificou informações sobre 214.488 empresas


offshore conectadas a pessoas de mais de 200 países e territórios
e contidas em e-mails, planilhas financeiras, passaportes e registros
corporativos que revelavam os donos ocultos de contas bancárias e
empresas em 21 paraísos fiscais. Dessas empresas, 1.700 pertenciam
a pessoas residentes no Brasil, sendo 107 relacionadas à chamada
Operação Lava Jato. Os parceiros brasileiros do esforço jornalístico
foram o jornalista Fernando Rodrigues, do Poder360, a Rede TV e o
Estado de São Paulo (RODRIGUES, 2016).

Os crimes revelados pela investigação incluem a suspeita de


uso de offshores para enviar remessas ilegais de dinheiro para fora
dos países; para intermediar transferências financeiras ilícitas entre
autoridades, empresários e até celebridades; e para operar a venda de
empresas e estabelecimentos com evasão tributária e à margem dos
mecanismos de controle.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022. 17


ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA

O impacto mundial da série de reportagens foi inédito, tendo


redundado na queda e na acusação de políticos de alto gabarito,
tais como o primeiro-ministro da Islândia – após enfrentar protestos
populares em que as pessoas atiravam bananas e iogurte – e dirigentes
da Mongólia, da Espanha e de outros países. Em 2017, a Suprema Corte
do Paquistão removeu o primeiro-ministro que há mais tempo servia
na história do país, como resultado de investigações baseadas na série
de reportagens, tendo ele sido sentenciado a dez anos de prisão e à
multa superior a US$ 10 milhões, um ano após.

No campo legislativo, as reportagens impulsionaram a


criminalização de advogados por não reportarem a evasão fiscal de
seus clientes no Reino Unido. Em Gana, uma nova legislação de 2017
passou a obrigar os donos de empresas a se identificarem, juntando-
se a mais 80 países com normas similares. Nos Estados Unidos, o
caso impulsionou a aprovação da Lei de Transparência Corporativa4,
que obriga os proprietários de empresas americanas a revelar suas
identidades ao Departamento do Tesouro, o que é considerada a maior
reforma da legislação de combate à lavagem de dinheiro no país desde
a legislação após os ataques de 11 de setembro de 2001 (FITZGIBBON;
HUDSON, 2021).

Mesmo o Panamá, que inicialmente classificou os Panama Papers


como uma campanha para macular a reputação do país, recentemente
assinou uma convenção internacional para partilhar informações sobre
contribuintes com outras nações.

Cinco anos após a publicação da primeira reportagem, no mês


de março de 2021, a repercussão do caso ainda era grande e gerava
consequências, sendo referenciado como justificativa: a apresentação

4
Tradução livre. Texto original: Corporate Transparency Act.

18 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022.


LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

de acusação criminal contra o chefe de gabinete do ex-primeiro ministro


de Malta; o indeferimento da tentativa de sustação das investigações
por candidato presidencial do Peru; a justificativa da contratação
de novos empregados no Ministério da Economia da Dinamarca; e a
motivação para elaborar dois projetos de lei para a prevenção de crimes
financeiros e de fraude política nos Estados Unidos (FITZGIBBON;
HUDSON, 2021).

No aspecto financeiro, ainda segundo Fitzgibbon e Hudson


(2021), foram recuperados mais de 1,36 bilhão de dólares americanos
em impostos sonegados, multas e penalidades.

No âmbito da sociedade civil, o caso inspirou movimentos pela


adoção de padrões mais rígidos de transparência e responsabilidade
financeira, que vem continuamente impactando o desenvolvimento
institucional e legislativo e despertando o senso de prioridade para o
enfrentamento do problema.

3 A LIBERDADE DE IMPRENSA, SUA FUNDAMENTALIDADE,


SEUS LIMITES E O ENTRECHOQUE COM OUTROS DIREITOS
FUNDAMENTAIS E OS VALORES CONSTITUCIONAIS

A afirmação da liberdade de imprensa como direito fundamental


é algo marcadamente intuitivo, não oferecendo grandes dúvidas, de
forma geral. A estatura jurídica e a extensão de importância desse
cânone são fortemente explicadas pela dupla raiz de sua concepção.
Por um lado, tal direito está ancorado na vertente iluminista e
jusracionalista, revelando-se como expressão específica da liberdade
individual de manifestação do pensamento, uma das dimensões
da personalidade humana. Por outro lado, revela-se a dimensão
institucional-coletiva do direito fundamental, qualificada como norma

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022. 19


ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA

fundamental da liberdade público-institucional de expressão, com


reforço à ideia de não suscetibilidade, a priori, ao controle ou à restrição
estatal de qualquer espécie. Essa segunda dimensão posicionaria os
órgãos de imprensa ao lado de partidos políticos e outras entidades da
sociedade civil, como veículos assecuratórios do pluralismo político e,
em última instância, fiadores do próprio regime democrático.

Andrade (1997, p. 27) bem ilustra o ressoar e a prevalência dessa


dimensão público-institucional na jurisprudência do Tribunal Federal
Constitucional alemão, ao sintetizar:

[...] é essa, no essencial, a lição que pode colher-se na


jurisprudência relativamente constante e estabilizada
do Tribunal Constitucional Federal alemão. Isso
pese embora a frequência com que nos seus arestos
abundam expressões como “instituto da imprensa
livre”, “o instituto, imprensa livre”, “a independência
institucional da imprensa (institutionelle
Eigenständigkeit der Presse)”, a denotar um aparente
privilégio da dimensão institucional. Nesta linha, o
tribunal chega mesmo a falar (decisão de 6 de outubro
de 1959) da “garantia institucional da imprensa como
um dos portadores e difusores da opinião pública
no interesse de uma democracia livre”, associando-
lhe o regime próprio de um direito fundamental.
Apesar disto, e ao mesmo tempo, não deixa aquele
tribunal pôr em evidência o significado privilegiado da
referência pessoal como uma das duas colunas sobre
que assenta a liberdade de imprensa.

20 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022.


LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

O autor destaca, de igual maneira, a plena aplicabilidade do


direito, nessa extensão, ao regime dos arts. 37 e 38, da Constituição
da República Portuguesa5. Menciona também a decisão do Tribunal
Constitucional Espanhol, de 12 de dezembro de 1986, a respeito do
objetivo que tem esse cânone de:

5
“Art. 37. Liberdade de expressão e informação
1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra,
pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se
informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações.
2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou
forma de censura.
3. As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios
gerais de Direito Criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua
apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade
administrativa independente, nos termos da lei.
4. A todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade
e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização
pelos danos sofridos.
Art. 38. Liberdade de imprensa e meios de comunicação social
1. É garantida a liberdade de imprensa.
2. A liberdade de imprensa implica:
a) A liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores, bem como
a intervenção dos primeiros na orientação editorial dos respetivos órgãos de
comunicação social, salvo quando tiverem natureza doutrinária ou confessional;
b) O direito dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso às fontes de informação e à
proteção da independência e do sigilo profissionais, bem como o direito de elegerem
conselhos de redação;
c) O direito de fundação de jornais e de quaisquer outras publicações,
independentemente de autorização administrativa, caução ou habilitação prévias.
3. A lei assegura, com carácter genérico, a divulgação da titularidade e dos meios de
financiamento dos órgãos de comunicação social.
4. O Estado assegura a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social
perante o poder político e o poder econômico, impondo o princípio da especialidade
das empresas titulares de órgãos de informação geral, tratando-as e apoiando-as de
forma não discriminatória e impedindo a sua concentração, designadamente através
de participações múltiplas ou cruzadas.
5. O Estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio
e de televisão.
6. A estrutura e o funcionamento dos meios de comunicação social do setor público
devem salvaguardar a sua independência perante o governo, a administração e
os demais poderes públicos, bem como assegurar a possibilidade de expressão e
confronto das diversas correntes de opinião.
7. As estações emissoras de radiodifusão e de radiotelevisão só podem funcionar
mediante licença, a conferir por concurso público, nos termos da lei.” (PORTUGAL,
2005).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022. 21


ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA

[...] garantir um interesse constitucional: a formação e


a existência de uma opinião pública livre, garantia que
se reveste de uma especial transcendência já que, por
ser uma condição prévia e necessária para o exercício
de outros direitos inerentes ao funcionamento de um
sistema democrático, converte-se, por sua vez, em
um dos pilares de uma sociedade livre e democrática.
(ANDRADE, 1997, p. 29).

A Constituição brasileira evidencia esse caráter dúplice da


garantia ao consagrar o direito de acesso à informação e ao sigilo da
fonte como direito individual fundamental (art. 5º, XIV), e ao dedicar
todo o Capítulo V, do Título VIII (arts. 220 a 224) à Comunicação
Social, evidenciando a relevância dos órgãos de imprensa no arranjo
institucional de Estado-sociedade por ela propugnado (BRASIL, 1988).

Afinal, tutela a Constituição do Brasil a liberdade de informação –


nas modalidades de informar (conectada à liberdade de manifestação
do pensamento) e ser informado – e o direito coletivo à informação,
previstos em seu art. 5º, caput, e incisos IV, XIV e XXXIII6 c/c art. 220,
caput, e §§ 1º e 2o, sendo certo, por outro lado, que em seu art. 139, inciso
III7, somente admite que sejam tomadas contra as pessoas restrições

6
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
[...]
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte,
quando necessário ao exercício profissional;
[...]
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse
particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei,
sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à
segurança da sociedade e do Estado;” (BRASIL, 1988).
7
“Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só
poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:
[...]
III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações,
à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na
forma da lei;” (BRASIL, 1988).

22 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022.


LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

relativas à prestação de informações e à liberdade de imprensa na


vigência de estado de sítio, haja vista que, nas palavras do Ministro
Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal – STF brasileiro:

[...] O modelo político-jurídico, plasmado na nova


ordem constitucional, rejeita o poder que oculta e não
tolera o poder que se oculta. Com essa vedação, o
constituinte pretendeu tornar efetivamente legítima,
em face dos destinatários do poder, a prática das
instituições do Estado. (BRASIL, 2006, grifo nosso).

O reconhecimento relativamente descomplicado do caráter


fundamental da liberdade de imprensa, quando isoladamente
considerada, não tarda a ingressar em ambiente de tensão e
entrechoque com outros direitos fundamentais, logo que considerada
a partir do sistema jurídico em que está inserida. De fato, o exercício
amplo da liberdade de imprensa tem como resultado prático a
exposição de fatos e atos capazes de despertar o interesse dos
destinatários da notícia, o que não raro pode representar agravo a
outro indivíduo ou à própria entidade estatal. A atuação da imprensa
em prol da transparência na administração pública, por exemplo,
revelando escândalos de corrupção e esclarecendo o público quanto à
atuação de seus dirigentes, é a face mais contundente desse potencial.
A devassa na vida de celebridades e pessoas conhecidas do grande
público oferecem igual potencial de tensão, fincando na trilha da
liberdade de imprensa questões envolvendo a honra, a intimidade, a
dignidade, o sigilo, o esquecimento e outros bens jurídicos igualmente
tutelados pelo ordenamento.

Isso somado ao reconhecimento da própria falibilidade dos


agentes de imprensa; à sua suscetibilidade aos mais diversos interesses,
nem sempre legítimos; e à possibilidade de seu abuso, como no caso da
disseminação de notícias falsas, põe sobre a mesa a questão essencial

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022. 23


ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA

sobre os limites intrínsecos desse direito fundamental e sobre como


resolver o conflito com outros direitos de igual estatura.

A primeira e mais difundida colisão possível com a liberdade de


imprensa dá-se com os direitos à honra, à privacidade e à intimidade.
Com efeito, qualquer reportagem que se produza, em relação à pessoa
natural ou jurídica, apresenta o potencial, mais ou menos agudizado,
de arranhar aspectos relativos à dimensão estritamente pessoal de
quem seja objeto da notícia.

O ponto de partida hermenêutico é, no caso brasileiro, dado pelo


próprio STF, para quem:

[...] os direitos que dão conteúdo à liberdade de


imprensa são bens de personalidade que se qualificam
como sobredireitos. Daí que, no limite, as relações de
imprensa e as relações de intimidade, vida privada,
imagem e honra são de mútua excludência, no
sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo,
às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as
relações de imprensa como superiores bens jurídicos
e natural forma de controle social sobre o poder do
Estado, sobrevindo as demais relações como eventual
responsabilização ou consequência do pleno gozo das
primeiras. (BRASIL, 2009, p. 15).

Dessa perspectiva, não destoa a jurisprudência da Corte


Europeia de Direitos Humanos, assim sintetizada por Renucci (2005,
p. 24), no que diz respeito à preeminência do princípio da liberdade

24 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022.


LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

de informação, consagrado no art. 108, da Convenção Europeia de


Direitos Humanos, sobre outros direitos de igual estatura:

A afirmação de um tal princípio implica abolição


de todos os sistemas de autorização ou censura
prévia. O conteúdo da mensagem deve ser livre, e
liberdade de informação deve normalmente impedir
a interferência de autoridades públicas. A natureza
pluralista e objetiva da informação requer uma tal
política, qualquer que seja o meio informativo ou o
conteúdo da mensagem, o qual pode possivelmente
ofender certas convicções ou crenças. A força da
liberdade de informação é tamanha que geralmente
ganha precedência quando sopesada em face de
outros direitos protegidos pela convenção, tais como
o direito ao respeito pela vida privada ou a presunção
de inocência. (RENUCCI, 2005, p. 24, tradução nossa).

A ponderação a ser adotada de modo a preservar o núcleo


essencial de ambos os direitos em conflito deve, em primeira linha,
delimitar e classificar cada um dos fatos abordados na atividade
jornalística, de acordo com o grau e a natureza do interesse que possam
despertar. Haverá, assim, a esfera dos fatos de interesse estritamente
privado – despidos de qualquer relevância comunitária – e, do outro
lado, dos fatos de interesse nitidamente coletivo. Os primeiros
tenderão a posicionar-se sob a proteção da privacidade, enquanto os

8
“Art. 10. 1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende
a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias
sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações
de fronteiras. O presente artigo não impede que os estados submetam as empresas de
radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício desta liberdade, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode
ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela
lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a
segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem
e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos
direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para
garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.” (CONVENÇÃO EUROPEIA
DOS DIREITOS DO HOMEM, 2020).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022. 25


ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA

segundos se resguardarão sob o manto da liberdade de imprensa. A


zona cinzenta que possa entremear esses campos provavelmente não
será desprezível, o que torna essa primeira delimitação insuficiente
para a finalidade propugnada.

Um outro recorte pode ser feito em linha com o exaurimento


do interesse público ou comunitário antes existente, em função
de fatores como o decurso do tempo. Assim, o chamado direito ao
esquecimento – densificado no âmbito penal na situação do indivíduo
que, condenado por um crime, tenha cumprido integralmente sua
pena – faz cessar a proteção da liberdade de imprensa, estabelecendo
uma tendência clara ao resguardo da privacidade, como um campo
necessário para o “recomeço” que cada um merece, após ter saldado
suas contas com a Justiça Penal.

Outro critério necessário para o temperamento da ação


jornalística é o da proporcionalidade, na ideia de que:

[...] a intromissão na esfera pessoal não deve ir para


além do que é exigido para uma satisfação adequada
do interesse da informação; por outro lado, as
desvantagens decorrentes (do tratamento jornalístico)
para o agente do crime tem de ser ajustadamente
proporcionadas à gravidade do crime e ao seu
significado geral para o público. (ANDRADE, 1997,
p. 43).

A esse respeito, a propósito do caso Swiss Leaks, a Diretora-


Adjunta do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos – Icij,
Marina Walker Guevara, em entrevista ao jornal brasileiro O Globo, ao
ser indagada sobre a razão pela qual não teria sido divulgada a lista
completa de correntistas secretos do HSBC, respondeu:

26 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022.


LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

[...] divulgar a lista toda não seria fazer jornalismo. O


trabalho do repórter é justamente pegar essa base de
dados e aplicar sobre ela critérios de interesse público,
avaliando que pessoas devem entrar em reportagens
e que pessoas não precisam ser expostas. O mais
importante é entender o que chamamos de esquemas
sistêmicos. Nós do Icij estamos interessados em
saber como traficantes de drogas e vendedores de
diamantes usavam o banco, por exemplo. (GUEVARA,
2015).

Tem-se nesse posicionamento um claro indicativo do uso


da proporcionalidade no trabalho jornalístico, de modo a prevenir
colisões in concreto com outros direitos fundamentais. Evidente que
sempre pode haver questionamento sobre a legitimação dos órgãos
jornalísticos para definir o que seja ou não “de interesse público”, mas
o dado objetivo é que a autocontenção é bem-vinda e aponta em
direção da paz sistemática que deve marcar a coexistência de direitos
fundamentais.

Por fim, mas não menos importante, há que se estabelecer


a devida efetividade do princípio da presunção de inocência, não
apenas através da linguagem jornalística utilizada (que deve referir-
se a “supostos” crimes; “suspeito”; “alegado” envolvimento, quando
os fatos ainda estão em fase investigatória), mas no devido destaque
aos pontos obscuros da investigação e à versão dos acusados, que
deve sempre ser contemplada nas reportagens. O controle judicial
nesse campo, preservando o essencial da divulgação da notícia, face
à impossibilidade de censura prévia, deve desenvolver-se através
do manejo de instrumentos como o direito de resposta, visando
ao suprimento de eventuais lacunas, evitando incorrer, pura e
simplesmente, na supressão da reportagem classificável como
“tendenciosa”.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022. 27


ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA

4 A LIBERDADE DE IMPRENSA NA PERSPECTIVA DO


COMBATE À CRIMINALIDADE ORGANIZADA EM ESCALA
TRANSNACIONAL

Inobstante os avanços alcançados na última década, a organização


institucional dos órgãos responsáveis pela persecução penal, e sua
integração nos mais diversos países, ainda está muito aquém do que
seria necessário para o combate minimamente efetivo à criminalidade
organizada em escala transnacional. Esta tende a ignorar fronteiras
e espraiar-se para os lugares mais receptivos em termos de garantia
de discrição e clandestinidade para suas atividades. Nas palavras de
Franco (1994, apud SEQUEIRA, 1996, p. 263), o crime organizado, por
sua peculiar conformação:

[...] não respeita as fronteiras de cada país e apresenta


características assemelhadas em várias nações;
detém um imenso poder com base em estratégia
global e numa estrutura organizativa que lhe permite
aproveitar as fraquezas estruturais do sistema penal;
provoca danosidade social de alto vulto; tem grande
força de expansão compreendendo uma gama de
condutas infracionais sem vítimas ou com vítimas
difusas; dispõe de meios instrumentais de moderna
tecnologia; apresenta um intricado esquema de
conexões com outros grupos delinquenciais e uma
rede subterrânea de ligações com os quadros oficiais
da vida social, econômica e política da comunidade;
origina atos de extrema violência; urde mil disfarces
e simulações e, em resumo, é capaz de inerciar ou
fragilizar os poderes do próprio Estado.

Se tais dificuldades apresentam-se internamente, tanto mais se


farão sentir no âmbito transnacional.

28 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022.


LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

Embora se esteja a testemunhar um movimento global no sentido


da ampliação da esfera de cooperação para fins de persecução penal
e controle fiscal, bem como a adoção de padrões de transparência
e controle mais rígidos por parte dos tradicionais paraísos fiscais9,
seria ingênuo não constatar o abismo ainda existente entre essa
lenta, tortuosa e oscilante engenharia e a agilidade das organizações
criminosas em (re)moldar seus esquemas a cada movimento percebido
do “outro lado”.

Os ajustes a serem feitos nas estruturas de persecução penal


existentes para o enfrentamento desse tipo de criminalidade devem
voltar-se, portanto, ao saneamento de sua insuficiência estrutural
e à promoção de seu caráter transnacional, de modo a conferir aos
agentes estatais as ferramentas necessárias ao combate minimamente
efetivo a tal criminalidade.

O papel da imprensa, por sua vez, no cenário que ficou desenhado,


tem sua importância sensivelmente ampliada, visto que a plasticidade
e a agilidade da investigação jornalística permitem uma atuação
transfronteiriça muito mais rápida e eficaz que aquela desempenhada
em nível institucional, viabilizando antecipar determinados fatos

9
Por exemplo, nos Estados Unidos, o relatório pertinente à aplicação da Lei de
Conformidade Tributária de Contas Estrangeiras – Fatca de 2016, na perspectiva dos
efeitos do caso Panama Papers, aponta: (i) a formulação de acordo de não persecução
penal com 80 bancos suíços, como contrapartida do pagamento de U$250 milhões
em penalidades, da abertura de informações, do engajamento na cooperação na
requisição de informações e do compromisso de fechamento de contas dos que não
se adequarem às regras americanas de compliance financeiro; (ii) o número recorde de
americanos regularizando suas obrigações de transparência financeira e fiscal; e (iii) o
número recorde de americanos renunciando sua cidadania com o propósito de escapar
ao controle fiscal dos Estados Unidos, dentre outras medidas (BURTON, 2016, p. 21-26).
Na Nova Zelândia, as modificações legislativas editadas em 21 de fevereiro de 2017,
baseadas no relatório do especialista John Shewan, reverteram a condição de paraíso
fiscal atribuída ao país desde a reforma legislativa liberalizante de 1988, conduzindo a
padrões mais rígidos de transparência e controle financeiros, mesmo ao custo previsto
de evasão de capitais (LITTLEWOOD, 2017, p. 59-90).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022. 29


ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA

relevantes e deixar traçadas as linhas de investigação a serem trilhadas


pelos oficiais da persecução penal.

A inserção da imprensa tradicional na complexa rede de mídias


sociais, a despeito dos riscos que possa apresentar, tem sido um
elemento impulsionador da investigação jornalística ao propiciar
aos veículos tradicionais informação instantânea, encriptada, de
largo alcance e com potencial multiplicador. Quando uma notícia de
corrupção ou de prática de qualquer outro crime é postada nas redes
sociais, o retorno em novas denúncias por parte de possíveis outras
vítimas do mesmo criminoso ou da organização torna-se muito mais
provável10.

Por outro lado, não se pode deixar de acentuar a preocupação


de que esse cenário possa favorecer a consolidação de injustiças,
na medida em que a institucionalidade não esteja suficientemente
estruturada para confirmar ou não a versão apurada jornalisticamente.
Diferentemente de casos paradigmáticos de erro jornalístico a respeito
de apuração criminal, na dimensão transnacional, a capacidade
institucional de confirmar ou não a versão jornalisticamente apurada é
comparativamente menor, o que pode deixar os órgãos de persecução
demasiadamente dependentes dos elementos fornecidos pela mídia,
terminando por conduzir uma investigação enviesada e mais suscetível
ao erro. Por isso, a preocupação em relação à influência da mídia sobre
a imparcialidade judicial ganha contornos particularmente dramáticos,
exigindo redobrado cuidado na consideração e na confirmação dos
fatos apurados, sob pena de perpetuar-se o “linchamento moral” a que

10
Como exemplos, Trautman (2017, p. 859) menciona a atuação do ativista anticorrupção
russo Alexey Navalny, ao postar suas suspeitas de superfaturamento na compra de gás
pela estatal russa de petróleo, posteriormente confirmada por investigação oficial; ou o
site indiano IPaidABribe.com, que, nos primeiros seis meses de operação, recebeu mais
de cinco mil relatos de pagamento de propina.

30 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022.


LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

algum acusado tenha sido eventualmente submetido em função de


massiva divulgação midiática a determinada investigação.

5 CONCLUSÃO

Por tudo o que foi exposto, é forçoso concluir:

a) A “globalização do crime” é tendência irrefreável, decorrente


do próprio processo de globalização geral, e deve ser
respondido através da internacionalização dos mecanismos
de persecução penal e de combate ao crime organizado,
mediante reforço dos laços de intercâmbio de informações e
de cooperação policial e judicial; uniformização de políticas e
prioridades em matéria de segurança pública; moldagem de
estruturas persecutórias flexíveis, ágeis e tecnologicamente
aparatadas;

b) A promoção de mecanismos eficazes e efetivos de combate


à criminalidade organizada transnacional homenageia não
apenas a legalidade, mas também a igualdade, visto que
os crimes financeiros em escala mundial drenam recursos
essenciais à concretização de políticas públicas de promoção
social;

c) Os casos Swiss Leaks e Panama Papers tiveram o mérito


de revelar a magnitude dos crimes financeiros em escala
transnacional; de impulsionar o aperfeiçoamento da
legislação de controle em nível mundial; e de incentivar os
países outrora conhecidos como “paraísos fiscais” a adotar
padrões mais rígidos de transparência e compliance – porém
trata-se apenas de um bom começo, e, inclusive, atrasado

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022. 31


ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA

em comparação com a velocidade de atuação de referidos


criminosos;

d) No Brasil e na Europa, a liberdade de imprensa e de difusão


e o acesso à informação vêm sendo concebidos como
sobredireito, dotados de preeminência sobre direitos de
igual estatura, dada a sua natureza dúplice, de um lado
como manifestação da liberdade individual de expressão, e
de outro como instituições essenciais à formação da opinião
pública livre, garantidora do pluralismo e do controle da ação
do Estado;

e) A ponderação da liberdade de imprensa frente aos direitos à


honra, à vida privada e à intimidade, a par de excluir qualquer
tipo de censura prévia, deve ser moldada pela natureza do
interesse despertado pela notícia (coletivo ou privado);
pelo exaurimento do interesse coletivo face ao decurso do
tempo (direito ao esquecimento); pela proporcionalidade
da exposição midiática; e pelos reclamos da presunção de
inocência;

f) A integração dos órgãos jornalísticos ao esforço de apuração


dos crimes transnacionais é desejável, como forma de suprir
as deficiências estruturais e funcionais dos órgãos públicos
dotados dessa competência, devendo, porém, ser redobrados
os cuidados com os vieses que essa atuação possa despertar,
e dos riscos conexos de “erros de julgamento” e “linchamentos
morais”.

O caminhar das sociedades livres jamais foi o mais tranquilo e, em


geral, paga-se um preço relativamente alto pela preservação de amplas
esferas de liberdade em favor de cada um dos indivíduos. Todavia, é

32 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022.


LIBERDADE DE IMPRENSA E COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

dessa mesma liberdade, e do pluralismo dela indissociável, que provém


a força de resistência, não apenas contra os arroubos autoritários
dos governantes de momento como contra o toque degenerante da
atividade criminosa. A existência de órgãos de imprensa livres, ao
lado de agentes estatais autônomos e profissionais, constitui garantias
de que o tecido social estará protegido contra tudo aquilo que pode
destruí-lo.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 09-36, jan./jul. 2022. 33


ANTÔNIO HENRIQUE CORRÊA DA SILVA

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Manuel da Costa. Liberdade de imprensa e tutela penal da


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CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM:


CONCURSO EFETIVO DE DELITOS OU CONFLITO
APARENTE DE NORMAS?
PASSIVE BRIBERY AND SELF-MONEY LAUNDERING:
CONFLICT OF NORMS OR LEGITIMATE OVERLAPPING OF
CRIMINAL OFFENSES?

MARCELO COSTENARO CAVALI


Professor de pós-graduação em sentido estrito na Fundação Getulio
Vargas – FGV/SP e na Universidade Nove de Julho. Pesquisador de pós-
doutorado na Harvard Law School. Visiting Scholar na Columbia Law
School. Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Mestre
em Ciências Jurídico-Econômicas pela Universidade de Coimbra. Juiz
auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça.
https://orcid.org/0000-0002-8633-0371

RESUMO

Corrupção e lavagem de dinheiro são crimes umbilicalmente


associados. É comum que o próprio pagamento da propina seja
revestido de estratégias voltadas a dificultar a sua identificação
pelas autoridades públicas. Nos casos em que a vantagem indevida é
recebida pelo funcionário público de modo dissimulado, com aparência
de legitimidade ou com especiais requintes de ocultação, a doutrina se
divide entre reconhecer a existência de um único crime de corrupção
passiva ou de concurso efetivo entre a corrupção passiva e a lavagem
de dinheiro. O objetivo deste artigo é sugerir critérios de resolução
desses casos. Para tanto, propõe-se, ainda, a afastar a ideia de que, para
serem puníveis, atos de lavagem de dinheiro precisam ser praticados
somente após a consumação da corrupção passiva.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022. 37


MARCELO COSTERANO CAVALI

Palavras-chave: corrupção passiva; lavagem de dinheiro; concurso


aparente de normas; concurso de crimes.

ABSTRACT

Corruption and money laundering are crimes inextricably linked. Usually


the payment of bribes is disguised by strategies aimed at making it
difficult for public authorities to identify them. In cases in which the
bribe is received by the corrupt public official in a disguised way, with
the appearance of legitimacy, or with special concealment refinements,
some authors recognize the existence of a single crime of passive
bribery while others admit an effective overlapping of passive bribery
and money laundering. The purpose of this article is to suggest criteria
for solving these cases. To this end, it also proposes to dispel the idea
that, to be punishable, money laundering acts need to be practiced
only after the receivement of the bribe.

Keywords: passive bribery; money laundering; apparent conflict of


norms; overlapping of criminal offenses.

Recebido: 14-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 Lavagem de dinheiro e expansão do Direito Penal


Econômico; 2.1 Primeira premissa: a política antilavagem de dinheiro
tem especial foco no produto da corrupção; 2.2 Segunda premissa:
a lavagem de dinheiro possui autonomia em relação à infração penal
antecedente; 2.3 Terceira premissa: a legislação brasileira não veda
a punição da autolavagem; 2.4 Quarta premissa: a criminalização
da lavagem de dinheiro tutela, essencialmente, a administração da

38 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022.


CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM: CONCURSO
EFETIVO DE DELITOS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS?

Justiça. 3 Desfazendo um mito: a lavagem de dinheiro não pressupõe a


consumação anterior da corrupção passiva; 3.1 A lavagem de dinheiro
prescinde de uma infração penal cronologicamente antecedente;
3.2 O recebimento indireto da vantagem indevida na corrupção passiva.
4 Concurso efetivo de delitos e conflito aparente de normas;
4.1 Concurso efetivo (formal e material) de delitos; 4.2 Conflito aparente
de normas; 4.3 Proposta de solução. 5 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Há uma relação simbiótica entre lavagem de dinheiro e corrupção


(CHAIKIN; SHARMAN, 2009, p. 1). Por diversas razões, esses crimes
estão permanente e umbilicalmente associados. Os delitos se reforçam
reciprocamente: de um lado, a corrupção produz elevados ganhos,
cuja origem criminosa precisa ser dissimulada para evitar os riscos de
sua detecção pelas autoridades públicas; de outro, vantagens ilícitas
são pagas para corromper os próprios responsáveis por sistemas
antilavagem de dinheiro (CHAIKIN, 2008, p. 274). A existência de
corrupção aumenta a quantidade de dinheiro sujo na economia
formal (MENDES; OLIVEIRA, 2013, p. 55-61). Os lavadores de dinheiro
atualizam seus métodos, criando estruturas complexas para atender
clientes mais sofisticados, políticos e outros funcionários públicos
corruptos que desviam e se apropriam de altas somas do erário.

No caso da corrupção passiva, especialmente quando o valor da


propina recebido pelo funcionário público é elevado, a necessidade
de afastar o dinheiro de sua origem criminosa é quase imperativa.
Os ganhos regulares dos agentes públicos estão sujeitos, quando
comparados aos demais cidadãos, a um escrutínio especial, o que torna
mais arriscado o recebimento da vantagem indevida sem a realização
de algum procedimento voltado a escamotear sua procedência ilícita.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022. 39


MARCELO COSTERANO CAVALI

Essa relação simbiótica produz, por vezes, imputações de lavagem


de dinheiro e corrupção passiva contra o mesmo acusado. Coloca-se,
então, a controversa questão de saber qual a responsabilidade penal
do corrupto que escamoteia a origem ilícita da propina recebida1.

Pensemos em dois problemas concretos a serem respondidos


ao fim do artigo. No primeiro caso, o corrupto acerta o recebimento
da propina em diversas parcelas, declaradas aos órgãos públicos
como pagamentos por supostos serviços de consultoria. No segundo
exemplo, o recebimento da propina ocorre em uma conta mantida no
exterior, de titularidade de empresa offshore, administrada por um
“testa-de-ferro”.

Este funcionário público cometeria apenas o crime de corrupção


passiva, não havendo lavagem de dinheiro? Ou o delito de lavagem
de dinheiro seria consumido/absorvido pelo de corrupção passiva? Ou
estaríamos diante de um concurso formal ou material de delitos?

O presente artigo tem dois objetivos. O primeiro é afastar a ideia


de que somente são puníveis atos de lavagem de dinheiro praticados
após a consumação da corrupção passiva. O segundo objetivo é o
de apontar critérios para distinguir casos em que, além da corrupção
passiva, o corrupto deve ser punido, também, por lavagem de dinheiro.

1
O artigo não tem por objeto o delito de corrupção ativa (CP, art. 333) (BRASIL, 1940),
na medida em que se concorda com a assertiva de Brandão (2021a, p. 902), para quem
“a corrupção ativa é, por definição, insuscetível de gerar vantagens aptas a serem
lavadas. Nesta modalidade de corrupção, o corruptor abre mão do bem que forma
o suborno, pelo que, como é óbvio, deixa essa vantagem de poder ser lavada em seu
benefício”.

40 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022.


CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM: CONCURSO
EFETIVO DE DELITOS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS?

2 LAVAGEM DE DINHEIRO E EXPANSÃO DO DIREITO PENAL


ECONÔMICO

Para atingir os objetivos propostos, é necessário estabelecer


antes algumas premissas que orientarão a interpretação dos tipos
penais da Lei n. 9.613/1998 (BRASIL, 1998). Tais premissas se inserem
no contexto de uma política criminal expansiva da lavagem de
dinheiro, delito especialmente vocacionado para a punição eficaz da
criminalidade econômica.

2.1 Primeira premissa: a política antilavagem de dinheiro tem


especial foco no produto da corrupção

No seu nascedouro na década de 1980, a criminalização da


lavagem de dinheiro teve por objetivo impedir a utilização dos produtos
ilícitos decorrentes da atuação de organizações criminosas voltadas ao
tráfico de drogas2. A criação do delito se deu a partir da constatação de
que as ferramentas clássicas de combate à criminalidade organizada
se mostravam claramente insuficientes (STESSENS, 2000, p. 9).

Porém, desde a própria fundação do sistema bancário, a história


traz diversos exemplos ilustrativos de complexos esquemas dirigidos
à ocultação do produto de outros crimes, como a corrupção de
funcionários públicos (BLANCO CORDERO, 2012, p. 53). Com isso em
mente, a política antilavagem de dinheiro se expandiu, em documentos
internacionais, para atingir os bens provenientes de outros crimes.

2
A Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas,
de 1988 (CONVENTION DES NATIONS UNIES CONTRE LE TRAFIC ILLICITE DE
STUPÉFIANTS ET DE SUBSTANCES PSYCHOTROPES, [20--]), previu que os estados-
partes deveriam adotar as medidas necessárias para caracterizar como delitos penais
em seu Direito interno, quando cometidos internacionalmente, atos de conversão,
transferência, ocultação ou encobrimento da origem ilícita de bens oriundos do tráfico
de drogas (art. 3°, § 1°, b, incisos I e II).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022. 41


MARCELO COSTERANO CAVALI

Exemplo disso é a Convenção das Nações Unidas contra o Crime


Organizado Transnacional (Convenção de Palermo) (UNITED NATIONS
CONVENTION AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME,
2004), que impôs aos estados-partes a criminalização de atos de
ocultação e dissimulação de bens oriundos de delitos cometidos por
organizações criminosas3.

O principal documento internacional relacionado à corrupção,


a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de
Mérida), de 2003 (CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA
A CORRUPÇÃO, 2007), prevê, além do dever de implantação de
sistemas de prevenção da lavagem de dinheiro (art. 14), a obrigação
de tipificação da lavagem de dinheiro (art. 23, § 1, a, incisos I e II).

Vê-se, portanto, que a política criminal antilavagem de dinheiro,


hoje, não se restringe ao encobrimento do produto do comércio de
entorpecentes, abrangendo o lucro proveniente de uma variada gama
de delitos, dentre os quais recebe especial destaque a corrupção.

2.2 Segunda premissa: a lavagem de dinheiro possui autonomia


em relação à infração penal antecedente

O autor de um homicídio, sempre que possível, buscará ocultar o


cadáver da vítima. Quem integra uma organização criminosa objeto de
investigação criminal será tentado a obstruir esta apuração. Do mesmo
modo, quem obtém lucro com o cometimento de um delito procurará
esconder a sua origem criminosa.

3
Art. 6°, § 1°, a, incisos I e II. No Brasil, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional foi aprovada por meio do Decreto Legislativo n. 231/2003
(BRASIL, 2003) e promulgada pelo Decreto n. 5.015/2004 (BRASIL, 2004).

42 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022.


CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM: CONCURSO
EFETIVO DE DELITOS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS?

Tais condutas dificultam o trabalho das autoridades de


persecução penal e, consequentemente, a responsabilização do autor
do delito original. Essas tentativas de se esquivar da aplicação da lei
penal são inerentes à natureza humana. Fazem parte do senso de
autopreservação de cada pessoa.

Não obstante, nada impede que o legislador tipifique tais


ações – contanto que se possa nelas visualizar uma reprovabilidade
autônoma – como crimes independentes. Assim, a lei criminaliza a
ocultação de cadáver4, o impedimento ou embaraço de investigação
sobre organização criminosa5 e a lavagem de dinheiro6.

A intenção dos documentos internacionais – e do legislador


brasileiro – foi justamente conferir uma reprovabilidade autônoma à
dissimulação e à ocultação da sua origem criminosa.

Nesse sentido, na exposição de motivos da Lei n. 9.613/1998


restou consignado que:

[...] a defesa do Estado, sob a perspectiva interna,


justifica a criminalização da lavagem de dinheiro
como entidade típica autônoma. Realmente, além da
improbidade administrativa, como gênero de uma
vasta gama de ilicitudes praticadas pelo servidor, a
ocultação ou a dissimulação do proveito auferido
com o delito contra a administração pública (Cód.
Penal, arts. 312 e segs.; Lei n. 8.666, de 21 de junho

4
Art. 211 do CP. “Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele: Pena – reclusão, de
um a três anos, e multa” (BRASIL, 1940).
5
Art. 2º da Lei n. 12.850/2013. [...] “§ 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de
qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização
criminosa.” (BRASIL, 2013a).
6
Art. 1º da Lei n. 9.613/1998. “Ocultar ou dissimular natureza, origem, localização,
disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes,
direta ou indiretamente, de infração penal.” (BRASIL, 1998).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022. 43


MARCELO COSTERANO CAVALI

de 1993) devem ser reprovadas como espécie de


uma delinquência astuciosa, ainda que o infrator seja
estranho aos quadros administrativos. (BRASIL, 1998).

Na mesma senda, na própria ementa da Ação Penal n. 470


(Mensalão), o Supremo Tribunal Federal – STF reconheceu que “a
lavagem de dinheiro constitui crime autônomo em relação aos crimes
antecedentes, e não mero exaurimento do crime anterior” (BRASIL,
2013b).

Em suma, enquanto não havia tipificação autônoma da lavagem


de dinheiro, a dissimulação da origem do produto da corrupção
consubstanciava mero exaurimento deste delito. Com a edição da Lei
n. 9.613/1998 (BRASIL, 1998), a conduta passa a merecer reprovação
própria, inclusive para o autor/partícipe do delito antecedente, como
visto a seguir.

2.3 Terceira premissa: a legislação brasileira não veda a punição


da autolavagem

Diferentemente de outros países7, a legislação brasileira não


proibiu ou restringiu expressamente a punibilidade da autolavagem,
isto é, a punição do próprio autor ou partícipe da infração penal
antecedente que atua na dissimulação ou ocultação do produto desse
ilícito. Poderia perfeitamente tê-lo feito – conforme previsão dos arts.

7
Na Alemanha, por exemplo, a autolavagem, embora tenha passado a ser punível mais
recentemente, restringe-se aos casos em que o autor ou partícipe da infração penal
antecedente que “inserir o objeto em circulação no mercado e, assim, ocultar a sua
origem ilícita” (§ 261, 7, do Código Penal). (DEUTSCHLAND, [20--]). Na Itália, desde 2015
o Código Penal pune a autolavagem, com sanções mais brandas do que para a lavagem
em geral, somente de quem emprega o produto do ilícito em atividades econômicas,
financeiras, empresariais ou especulativas, “de modo a dificultar concretamente a
identificação da sua origem criminosa” (art. 648-ter.1, do Código Penal). (DEI DELITTI...,
2022).

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CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM: CONCURSO
EFETIVO DE DELITOS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS?

6º, 2º, e, da Convenção de Palermo (UNITED NATIONS CONVENTION


AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2004) e 23, 2º, e, da
Convenção de Mérida (CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA
A CORRUPÇÃO, 2007), segundo os quais os estados aderentes
podem, de acordo com seus princípios internos, prever que os delitos
de lavagem não sejam aplicáveis às pessoas que tenham cometido a
infração principal –, mas não o fez.

Por essa razão, a punibilidade da autolavagem foi reconhecida


pelo Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2011, 2017b, 2018, 2019c) e
pelo Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2017a, 2019a, 2020).

Trata-se, pois, de uma opção legislativa – consolidada, a


propósito, mundo afora8. Ocultar ou dissimular o produto do crime do
qual se participou não seria um crime autônomo se o legislador não
tivesse assim decidido. Do mesmo modo, o autor do homicídio não
seria punido também por ocultação de cadáver se a lei não previsse
esse crime autônomo.

Eis a quarta premissa: a lei brasileira não veda a punição da


autolavagem.

2.4 Quarta premissa: a criminalização da lavagem de dinheiro


tutela, essencialmente, a administração da Justiça

Qualquer intérprete de um tipo penal precisa declarar, a fim de


permitir a verificação da coerência de suas afirmações, qual entende
ser o bem jurídico protegido pela norma.

8
Nesse sentido, a Diretiva (UE) n. 2018/1673 (UNIÃO EUROPEIA, 2018) impõe aos
estados europeus que criminalizem a autolavagem (art. 3°, 5).

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MARCELO COSTERANO CAVALI

Embora se trate de tema controverso, reputo que, ao menos no


que diz respeito ao tipo penal do caput do art. 1° da Lei n. 9.613/1998
(BRASIL, 1998), trata-se de norma protetiva da administração da
Justiça Penal9.

A principal razão de ser da lavagem de dinheiro é reforçar


a eficácia da persecução penal em relação aos delitos que geram
lucros, impedindo a fruição econômica da prática criminosa10. Busca-
se inviabilizar que o produto ou o proveito desses delitos sejam tão
afastados ou dissimulados de sua origem criminosa que as autoridades
públicas se tornem incapazes de identificar essa origem. Se exitosa a
lavagem de dinheiro, os criminosos conseguem, a um só tempo, escapar
da punição do crime antecedente e fruir de seu resultado econômico11.

Mais especificamente, a lavagem de dinheiro lesa a capacidade


das autoridades vinculadas à atividade de persecução penal de exercer
suas funções de investigar, processar, julgar e recuperar o produto do
delito. Administração da Justiça, nesse sentido, compreende não só
o exercício da atividade jurisdicional, mas de todos os envolvidos na
persecução penal. Concretamente, tutela-se a capacidade policial de
localização, a capacidade ministerial de indicação e as capacidades
judiciais de bloqueio (art. 125 e seguintes do CPP), apreensão

9
Sobre as teorias acerca do bem jurídico tutelado na Lei n. 9.613/1998, posicionando-se
pelo reconhecimento da administração da Justiça como objeto de proteção do tipo
penal da lavagem de dinheiro, cf. (BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 79-95).
10
Novamente, vale citar a ementa do acórdão prolatado na Ação Penal n. 470: “A Lei de
Lavagem de Dinheiro (Lei n. 9.613/1998), ao prever a conduta delituosa descrita no
seu art. 1º, teve entre suas finalidades o objetivo de impedir que se obtivesse proveito
a partir de recursos oriundos de crimes, como, no caso concreto, os crimes contra a
administração pública e o sistema financeiro nacional.” (BRASIL, 2013b).
11
Conforme Horta e Teixeira (2019, p. 18), “nota-se na política de repressão à lavagem
de capitais uma orientação cada vez mais acentuada para coibi-la por seu desvalor
intrínseco: pela dificuldade que a lavagem opõe à apreensão, ao sequestro, ao arresto,
ao perdimento e à recuperação de ativos criminalmente obtidos, bem como pela
disponibilidade que ela confere, dos ativos provenientes de crimes, aos seus autores ou
partícipes, consolidando suas vantagens econômicas ilícitas”.

46 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022.


CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM: CONCURSO
EFETIVO DE DELITOS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS?

(art. 260, CPP) (BRASIL, 1941) e confisco (art. 91, inciso II, b, do CPP)
(BRASIL, 1940) do produto, direto ou indireto, da infração penal
antecedente12.

Essa é a quarta premissa aqui firmada: o bem jurídico tutelado


pela lavagem de dinheiro é a administração da Justiça, especificamente
no que diz respeito à capacidade das autoridades de persecução penal
de identificar, apreender e confiscar os bens oriundos das infrações
penais antecedentes.

Somente deve ser punida a conduta de quem cria especiais


dificuldades na identificação e apreensão dos produtos de ilícitos.
A criminalização da lavagem pretende fazer com que o criminoso
tenha enormes dificuldades para fruir do ilícito. Essa delimitação mais
específica do bem jurídico permite uma interpretação mais racional e
restritiva do tipo penal.

Assim, a conduta de ocultar, prevista no art. 1°, caput, da Lei


n. 9.613/1998 (BRASIL, 1998), pressupõe mais do que simplesmente
esconder fisicamente o objeto do delito antecedente. É preciso que
essa ocultação possua razoável potencial de, por meio do afastamento
dos ativos de sua origem criminosa, impedir a atuação efetiva da
persecução penal.

Desse modo, quem esconde o dinheiro do roubo em sua própria


casa ou escritório está sujeito a uma medida simples de busca e
apreensão (art. 260 do CPP) (BRASIL, 1941) que permitirá que os

12
Em sentido semelhante, sustenta Caeiro (2018, p. 287) que “o branqueamento é um
crime de média gravidade contra a administração da Justiça, na medida em que pode
impedir ou dificultar significativamente (crime de perigo abstrato) a detecção e o
confisco das vantagens provenientes de crimes graves e a perseguição/punição dos
respectivos agentes”.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022. 47


MARCELO COSTERANO CAVALI

valores sejam descobertos. Quem recebe o dinheiro do peculato em


sua própria conta-corrente – ou na de seus parentes próximos –, sem
lhe conferir uma aparência de licitude, pode ser, de modo relativamente
fácil, identificado como responsável pela infração penal antecedente,
com base em uma mera quebra de sigilo bancário (art. 1°, § 4°, da
Lei Complementar n. 105/2001) (BRASIL, 2001), seguida de sequestro
desses valores (art. 125 do CPP) (BRASIL, 1941).

Nessa linha argumentativa, decidiu, corretamente, o STF que a


conduta de simplesmente esconder notas pelo corpo, sob as vestes,
nos bolsos do paletó, junto à cintura e dentro das meias não é suficiente
para caracterizar a lavagem de dinheiro (BRASIL, 2019b). Tal conduta
não é suficiente para colocar em risco o bem jurídico da administração
da Justiça, protegido pelo tipo penal do art. 1° da Lei n. 9.613/1998
(BRASIL, 1998), na medida em que não afastou de modo eficaz os
valores da possibilidade de apreensão por autoridades de persecução
penal, nem tampouco teria aptidão para conferir aparência de licitude
ao dinheiro.

Porém a conduta de dissimular exige que o agente confira uma


aparência (falsa) de licitude ao produto da infração penal antecedente.
Nesse caso, não é necessário que o bem seja escondido, bastando que,
mesmo facilmente à vista das autoridades, esteja disfarçado.

Cite-se, como exemplo, a hipótese em que o agente declara


o produto de um crime à Receita Federal como se se tratasse do
recebimento de um pagamento por um serviço supostamente
prestado. Os valores foram informados às autoridades públicas, mas
acompanhados de uma justificativa falsa, de modo a dificultar a
identificação de sua origem criminosa.

48 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022.


CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM: CONCURSO
EFETIVO DE DELITOS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS?

Em suma, para que o ato de ocultação ou dissimulação possa


caracterizar lavagem de dinheiro, ele deve ter o potencial de impedir
ou, ao menos, dificultar a identificação da origem ilícita do dinheiro
para as autoridades públicas.

Se medidas normais de investigação – como quebras de sigilo


bancário e fiscal e buscas e apreensões – forem suficientes para
encontrar o dinheiro, e não houver mecanismos voltados a lhe conferir
aparência de licitude, não há crime. Depositar dinheiro na conta
bancária de titularidade do próprio filho não é lavagem de dinheiro.
Esconder dinheiro em casa não significa lavá-lo.

Essa interpretação restritiva deve ser apta a impedir excessos


punitivos decorrentes da lavagem de dinheiro, com mais eficácia e
gerando menos resultados político-criminalmente indesejados do que a
obsessão com o momento consumativo da infração penal antecedente.

3 DESFAZENDO UM MITO: A LAVAGEM DE DINHEIRO NÃO


PRESSUPÕE A CONSUMAÇÃO ANTERIOR DA CORRUPÇÃO
PASSIVA

Por ocasião do julgamento de embargos infringentes na Ação


Penal n. 470 (Mensalão), o STF decidiu que “a autolavagem pressupõe
a prática de atos de ocultação autônomos do produto do crime
antecedente (já consumado)” (BRASIL, 2014b, p. 1). Essa ideia, de que
somente pode haver lavagem da propina da corrupção consumada,
ganhou ares míticos.

Na verdade, por trás da decisão do STF parece estar a premissa,


dogmática e político-criminalmente fundada, de que não basta, para a
lavagem de dinheiro, o mero recebimento de propina. Porém o critério

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022. 49


MARCELO COSTERANO CAVALI

cronológico utilizado para distinguir os casos em que há ou não


concurso de delitos não é convincente, como demonstrado a seguir.

3.1 A lavagem de dinheiro prescinde de uma infração penal


cronologicamente antecedente

Depois do julgamento da AP n. 470 (Mensalão), portanto, virou


voz comum o entendimento de que a infração penal antecedente tem
de ser cronologicamente antecedente à lavagem do seu produto. E não
só: não bastaria ter sido iniciada a execução, teria de estar consumado
o delito antecedente para que se pudesse cogitar de algum ato de
lavagem.

De fato, como regra, os atos de lavagem de dinheiro ocorrem


somente após a realização da infração penal antecedente. Mas
não tem de ser assim, nem fática, nem juridicamente. Do ponto de
vista jurídico, a Lei n. 9.613/1998 (BRASIL, 1998) não prevê essa
antecedência cronológica, mas apenas uma derivação jurídica, quando
o art. 1º se refere aos bens, direitos ou valores provenientes, direta ou
indiretamente, de infração penal. A antecedência tem de ser lógica,
não cronológica. Alguns exemplos concretos ilustram como é possível
lavar o dinheiro de um crime antes mesmo que ele tenha sua execução
iniciada.

Pense-se num caso em que um “matador de aluguel” é contratado


para assassinar uma pessoa. O mandante e o futuro executor do delito
celebram, então, um “contrato de prestação de serviços de consultoria
em segurança”; os valores são pagos e declarados sob esse pretexto
à Receita Federal, como forma de “lavar” a propina. Depois disso,
o homicídio contratado é executado. Note-se que todos os atos de
dissimulação da natureza do dinheiro recebido ocorreram antes do
início da execução do delito, embora a causa real do pagamento fosse

50 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022.


CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM: CONCURSO
EFETIVO DE DELITOS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS?

conhecida pelos envolvidos. Seria essa cronologia razão suficiente


para afastar a ocorrência da lavagem de dinheiro?

A resposta para essa pergunta é negativa13. Os valores recebidos


pelo “matador de aluguel” configuram, uma vez combinados, produto
do ilícito a ser perpetrado. É claro que, se o homicídio não vier a ter sua
execução iniciada, não se poderá falar em lavagem de dinheiro, pois não
terá havido infração penal antecedente, nem sequer na forma tentada.
Por isso, nos casos em que as condutas próprias do delito de lavagem
de dinheiro ocorrerem anteriormente à infração penal antecedente
que deu causa ao ativo lavado, o delito da Lei n. 9.613/1998 somente
será punível quando ao menos iniciada a execução da infração penal
antecedente14.

Nesse caso, o início da execução da infração penal antecedente


funciona como condição objetiva de punibilidade da lavagem de
dinheiro15, assim como sucedia com a ocorrência de lesão corporal
grave ou morte da vítima do crime de indução ou instigação ao suicídio
(art. 122 do CP), (BRASIL, 1940), antes do advento da Lei n. 13.968/201916.

13
No mesmo sentido, cf. o Acordo Plenário n. 7-2011/CJ-116, da Corte Suprema de Justiça
do Peru (PERU, 2012), em que se exemplifica essa possibilidade com o recebimento
de valores pela futura venda de armas que, antes de sua efetivação, é utilizado para a
aquisição de aeronaves, barcos e veículos registrados como de uso recreativo.
14
Em sentido próximo, García Cavero (2015, p. 109) defende que “activos procedentes
de un delito pueden ser también aquellos beneficios o ganancias que se reciben por
un delito que aún no se ejecuta (como adelantos o pagos parciales). Pese a la falta de
execución del delito previo, la generación de los activos maculados ya tuvo lugar y, por
lo tanto, dichos activos son desde ya pasibles de ser lavados”.
15
Sem referir ao início da execução, outros autores tratam a infração penal subjacente
(rectius, um fato ilícito típico, posto que não necessariamente culpável ou punível)
como condição objetiva de punibilidade da lavagem – nesse sentido, cf. (MENDES;
REIS; MIRANDA, 2008, p. 801).
16
A partir da Lei n. 13.968/2019 o delito deixa de exigir que haja lesão à vítima,
havendo punibilidade desde a indução, instigação ou auxílio material ao suicídio ou à
automutilação – embora a ocorrência de lesão corporal de natureza grave ou gravíssima
e morte configurem qualificadoras (art. 122, §§ 1° e 2°, do CP) (BRASIL, 1940).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022. 51


MARCELO COSTERANO CAVALI

Tampouco existe qualquer empecilho do ponto de vista subjetivo,


pois as partes envolvidas conhecem a origem do dinheiro, isto é,
sabem que os valores foram pagos para o cometimento de um futuro
homicídio – embora ainda não iniciado.

Aliás, esse mesmo exemplo demonstra como não é necessária a


consumação da infração penal antecedente. Crimes tentados também
podem gerar produtos – como o pagamento no homicídio –, de modo
que a falta de consumação não impede a ocorrência da lavagem de
dinheiro.

3.2 O recebimento indireto da vantagem indevida na


corrupção passiva

O crime de corrupção passiva compreende três ações típicas:


solicitar, receber ou aceitar vantagem indevida em razão da função
pública17. Cuida-se de crime de ação múltipla ou conteúdo variado
no qual o agente pode praticar uma ou mais condutas, mas é
responsabilizado por um só delito. Isso significa que a prática de
qualquer uma das ações consuma o delito, não constituindo mero
exaurimento.

Se o agente solicita, aceita e, posteriormente, recebe a propina,


qualquer dessas ações seria suficiente para realizar o tipo penal. Cada
uma dessas condutas viola o bem jurídico, embora sejam punidas
como um único crime, por escolha do legislador. É importante destacar,
porém, que, ao contrário do que defende boa parte da doutrina, o
recebimento da vantagem indevida, último ato nesse processo de

17
Art. 317 do CP. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida,
ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e
multa (BRASIL, 1940).

52 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022.


CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM: CONCURSO
EFETIVO DE DELITOS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS?

negociação da função pública, não é mero exaurimento das condutas


anteriores de solicitação ou aceitação, mas um momento de violação
autônoma e, inclusive, mais grave do bem jurídico (BRANDÃO, 2021b).

Somente na modalidade receber, o delito de corrupção passiva


pode servir como infração penal antecedente da lavagem de dinheiro.
Trata-se, com efeito, da única das ações que produz bens, valores ou
ativos passíveis de lavagem.

Tal recebimento, conforme previsto no tipo penal, compreende


a conduta de receber “direta ou indiretamente” a vantagem indevida.
Esse receber indiretamente inclui na previsão típica da corrupção
passiva os casos em que o valor seja repassado por meio de um
intermediário. E também abrange quaisquer outras situações em que
a vantagem indevida é repassada sob forma sub-reptícia, dissimulada
ou clandestina.

O que não significa que o legislador não pudesse transformar


esses mecanismos especialmente reprováveis de repasse da vantagem
indevida em um injusto autônomo. Até o advento da Lei n. 9.613/1998,
isso não ocorria e todo esse processo caracterizava um único delito de
corrupção passiva. A partir daí, porém, esse panorama mudou e deve-
se verificar a possibilidade de ocorrência de um concurso de delitos.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022. 53


MARCELO COSTERANO CAVALI

4 CONCURSO EFETIVO DE DELITOS E CONFLITO APARENTE


DE NORMAS

4.1 Concurso efetivo (material ou formal) de delitos

O concurso efetivo de delitos está regulado, no Direito brasileiro,


pelos arts. 69 (concurso material)18 e 70 (concurso formal)19 do Código
Penal (BRASIL, 1940). A diferença fundamental entre concurso material
e concurso formal está na quantidade de condutas praticadas pelo
autor dos delitos.

No concurso material, o agente pratica dois ou mais crimes


“mediante mais de uma ação ou omissão”. No concurso formal, o agente
comete dois ou mais crimes “mediante uma só ação ou omissão”.

A fim de saber se estamos diante de uma única ação, em sentido


jurídico-penal, devemos nos valer tanto de uma consideração natural
como de uma valoração jurídica. Um único soco dado na vítima
é uma ação em sentido natural (e jurídico-penal), mas também é
considerada uma (unidade natural de) ação, em sentido jurídico-
penal, uma sequência de tapas sucessivos desferidos na mesma vítima
(HILGENDORF; VALERIUS, 2019, p. 384-385).

18
Art. 69. “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou
mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de
liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão
e de detenção, executa-se primeiro aquela.” (BRASIL, 1940).
19
Art. 70. “Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais
crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais,
somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As
penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os
crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo
anterior.” (BRASIL, 1940).

54 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022.


CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM: CONCURSO
EFETIVO DE DELITOS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS?

O recebimento de uma propina previamente acertada em


diversas parcelas configura uma unidade natural de ação em sentido
penal e, assim, um único crime de corrupção.

Se, além disso, um ou mais desses recebimentos se fazem


dissimuladamente, de modo a lhes conferir aparência de licitude
ou de outra forma dificultar sobremaneira a sua identificação pelas
autoridades de persecução penal – como o pagamento em conta
mantida no exterior, de titularidade de sociedade offshore, administrada
por um “laranja” –, essa única ação também realiza os elementos típicos
do delito previsto no art. 1°, caput, da Lei n. 9.613/1998 (BRASIL, 1998).
Em princípio, portanto, estaremos diante de um concurso formal de
delitos, pois o agente pratica dois ou mais crimes “mediante uma só
ação ou omissão”.

Se, de outro modo, as operações de dissimulação/ocultação


da vantagem oriunda da corrupção passiva forem outras, distintas
do próprio recebimento da vantagem indevida, estaremos diante de
um concurso material, visto que o agente pratica dois ou mais crimes
“mediante mais de uma ação ou omissão”.

4.2 Conflito aparente de normas

Pode ocorrer, porém, de uma unidade de ação, a despeito de


preencher os elementos típicos de mais de uma figura penal, ter sua
reprovabilidade integralmente contida em um dos delitos. Quando
isso ocorre, não há um concurso efetivo, mas um conflito aparente
de normas, que se resolve pelos princípios da especialidade, da
subsidiariedade e da consunção. Somente subsistirá o concurso efetivo
se a unidade de ação não puder ser suplantada por um desses três
critérios (HILGENDORF; VALERIUS, 2019, p. 388-389).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022. 55


MARCELO COSTERANO CAVALI

No caso da especialidade, uma norma contém, no plano abstrato,


todos os elementos de um tipo penal e mais um elemento específico.
Há entre as normas uma relação de especialidade, isto é, de gênero
para espécie, de modo que a norma especial afasta a incidência da
norma geral. Não é o caso da relação entre corrupção e lavagem de
dinheiro. Não há elementos em comum entre os tipos penais do art. 317
do Código Penal (BRASIL, 1940) e do art. 1°, caput, da Lei n. 9.613/1998
(BRASIL, 1998).

A subsidiariedade pode ser tácita ou expressa. Nesta última,


a própria lei afirma a incidência subsidiária de um dos tipos penais,
valendo-se de fórmulas como “se o fato não constitui crime mais grave”.
Na subsidiariedade tácita, um tipo penal é previsto como uma lesão ou
ameaça de lesão menos grave ao (mesmo) bem jurídico do que outro
tipo penal. É o caso clássico da lesão corporal consumada, que é meio
necessário em relação ao homicídio. Tampouco existe subsidiariedade
entre corrupção e lavagem de dinheiro, seja por ausência de previsão
legal, seja pela proteção de bens jurídicos distintos.

Finalmente, pode-se cogitar da aplicação do princípio da


consunção para se punir o corrupto, nos casos em que a propina é
paga de modo dissimulado, somente por corrupção passiva.

Na consunção, o conteúdo de injusto de uma infração penal


abarca, ao menos substancialmente, o injusto decorrente da realização
dos elementos de outra infração penal. Com isso, pune-se o agente
somente pela prática da norma consuntiva.

Diferentemente do que ocorre na subsidiariedade, na consunção


a absorção do injusto não se resolve no plano abstrato. A relação de
consunção se estabelece no plano fático, quando se pode aquilatar

56 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022.


CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM: CONCURSO
EFETIVO DE DELITOS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS?

especificamente a respeito da compreensão ou não do injusto da


norma penal consumida pela norma consuntiva.

A doutrina costuma apontar o crime consumido como meio


necessário ou etapa normal de preparação ou execução de outro
crime. É o que ocorre, por exemplo, com delitos de falsidade documental
(ideológica ou material) em relação ao descaminho (BRASIL, 2021) ou
porte de arma de fogo utilizado em um roubo (BRASIL, 2014a).

Embora seja um indicativo importante, a proteção pelos tipos


penais de bens jurídicos diversos, não é, por si só, suficiente para
afastar a possibilidade de consunção. Isso porque, conforme o caso
concreto, a lesão a determinado bem jurídico pode se exaurir no próprio
cometimento do crime consumido. É o que ocorre, v. g., quando uma
falsidade documental (delito-meio) – que protege a fé pública – é
cometida especificamente para a perpetração de outro crime (delito-
fim), como o estelionato – que tutela o patrimônio20.

É nesse sentido que Dias (2007, p. 990) propõe a perquirição de


um único ou de uma pluralidade de sentidos autônomos de ilicitude
para diferenciar um concurso aparente de um concurso real, aplicado
a seguir.

4.3 Proposta de solução

Eis o momento de enfrentar o problema central deste artigo.


Como identificar os casos em que o recebimento dissimulado da

20
Esse é o fundamento do Enunciado n. 17 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça:
“Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este
absorvido” (BRASIL, 1990).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022. 57


MARCELO COSTERANO CAVALI

propina caracterizará concurso real e aqueles em que haverá concurso


aparente entre corrupção passiva e lavagem de dinheiro?

Voltemos aos dois exemplos apresentados no início: a)


recebimento da propina, em parcelas, a pretexto de remuneração de
serviços de consultoria; e b) recebimento parcelado da propina em
conta mantida no exterior, de titularidade de empresa offshore.

Inicialmente, é preciso estabelecer que, em ambos os casos


examinados, está-se diante de uma única conduta. O recebimento
parcelado da propina caracteriza, em sentido jurídico-penal, uma
unidade de ação. Se o recebimento ocorre de forma dissimulada, haverá
somente possibilidade de concurso formal – jamais material. Somente
se poderá falar em concurso material se os atos de dissimulação
ocorrerem posteriormente à percepção da vantagem indevida, pois
então teremos “mais de uma ação ou omissão” (art. 69 do CP) (BRASIL,
1940).

O passo seguinte consiste em verificar se há violação a bens


jurídicos distintos. Caso aceitas as premissas anteriormente expostas
sobre a política-criminal e o bem jurídico protegido pelo tipo penal
da lavagem de dinheiro, nos exemplos mencionados as condutas
representam violações de bens jurídicos distintos: tanto lesam a
probidade na administração pública como ofendem a administração
da Justiça, especificamente em sua capacidade de atuação eficiente
da persecução penal.

Como visto, entretanto, é possível a consunção de um delito por


outro, mesmo que os tipos penais examinados tutelem bens jurídicos
diversos. Para isso, seria necessário não haver sentidos autônomos de
ilicitude nessa conduta.

58 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022.


CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM: CONCURSO
EFETIVO DE DELITOS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS?

Nos casos examinados, esses sentidos autônomos estão


presentes. O primeiro é o sentido de venda da função pública; o
segundo é o de recebimento da vantagem com aparência de licitude
(no caso do recebimento sob pretexto de prestação de serviços de
consultoria) ou de recebimento da vantagem de modo a praticamente
inviabilizar a atuação das autoridades de persecução penal (no caso
do recebimento dos valores em conta de titularidade de offshore).

O desvalor de registrar a propina como pagamento por serviços


de consultoria é claramente maior do que o de simplesmente receber
o dinheiro em espécie por meio de um intermediário, sem dificultar
sobremaneira a aplicação integral da lei penal no que se refere aos
efeitos patrimoniais da condenação. Aquele que recebe a propina
como se se tratasse de honorários de consultoria age com o intuito de
criar uma justificativa aparentemente lícita para o dinheiro recebido.

Do mesmo modo, é mais grave o desvalor de receber os valores


diretamente em uma conta bancária no exterior, de titularidade de uma
offshore, administrada por um “laranja”, do que o de simplesmente
enviar o cônjuge para retirar os valores em uma agência bancária.

Note-se que a solução proposta, também do ponto de vista


político-criminal, mostra-se mais acertada. Não é menos reprovável a
conduta do corrupto que, antes, recebeu uma mala de dinheiro e depois
simula o contrato ou remete os valores ao exterior. Aliás, a se sustentar
a conclusão de que é necessária a consumação prévia do delito de
corrupção passiva para o cometimento da lavagem de dinheiro,
basta que o criminoso, para diminuir sua responsabilidade, exija o
recebimento da propina “lavada”. Assim, o criminoso mais sofisticado
fica numa situação melhor do que o mais simplório. Portanto, também
sob um prisma político-criminal, o critério cronológico deixa a desejar.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022. 59


MARCELO COSTERANO CAVALI

Nos dois exemplos propostos, portanto, está-se diante de


concurso (efetivo) formal de delitos entre corrupção passiva (art. 317
do CP) (BRASIL, 1940) e lavagem de dinheiro (Lei n. 9.613/1998, art. 1°,
caput) (BRASIL, 1998).

Mais ainda, normalmente nesses casos se estará diante de


concurso formal impróprio, assim entendido aquele em que “a ação
ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios
autônomos” (art. 70 do CP, in fine) (BRASIL, 1940). Não há desígnios
autônomos apenas se a unidade de comportamento corresponder a
uma vontade única do agente; se ele quiser obter ambos os resultados
danosos, tem-se desígnios autônomos, a atrair a consequência do
concurso formal impróprio, isto é, a cumulatividade de penas.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu, ao examinar


o recebimento de propina, por parlamentar, por meio de transferências
realizadas entre contas mantidas no exterior, sendo a conta remetente
de titularidade de uma empresa offshore e a conta destinatária de
titularidade de um trust (BRASIL, 2019c). Nas palavras do Relator,
Ministro Edson Fachin, no caso não se tratou apenas de:

[...] recebimento indireto da vantagem indevida,


descrevendo-se cenário que denotaria a direção da
conduta no sentido também da ocultação dos recursos
e dissimulação de sua titularidade, propiciando-se
fruição oportuna. (BRASIL, 2019c, p. 12).

E, mais do que isso, reconheceu-se, além do “dolo de recebimento


de vantagem ilícita”, a:

[...] finalidade específica de branqueamento


desses recursos, notadamente pela utilização
de expedientes tendentes a conferir aparência

60 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022.


CORRUPÇÃO PASSIVA E AUTOLAVAGEM: CONCURSO
EFETIVO DE DELITOS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS?

de licitude aos referidos recursos (notadamente


trusts tidos como fictícios). (BRASIL, 2019c,
p. 24).

Em outro precedente (BRASIL, 2018), o Ministro Ricardo


Lewandowski frisou que:

[...] o fato isolado de alguém receber uma vantagem


indevida, diretamente ou por interposta pessoa,
enquadra-se no tipo penal da corrupção passiva.
Agora, se ficar demonstrado nos autos que a pessoa
que recebeu a propina tiver o dolo diverso daquele
primeiro, ou seja, se caracterizada a intenção de lavar o
produto da corrupção, ele incidirá, concomitantemente,
no crime de lavagem de dinheiro. (BRASIL, 2018,
p. 35).

5 CONCLUSÃO

Não podemos baratear o crime de lavagem de dinheiro,


aplicando-o a qualquer tentativa simplória de esconder o produto
do ilícito. Mas também não podemos encarecê-lo demais, a ponto de
deixá-lo de aplicar justamente aos casos de criminalidade do colarinho
branco mais complexos que ele tem por objetivo combater.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 37-67, jan./jul. 2022. 61


MARCELO COSTERANO CAVALI

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https://doi.org/10.54795/rejub.n.1.180

UTILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO


COMBATE AO CRIME ORGANIZADO: LIMITES E
POSSIBILIDADES DE TÉCNICAS ESPECIAIS DE
INVESTIGAÇÃO EM MEIO DIGITAL
PERSONAL DATA AGAINST ORGANIZED CRIME: LIMITS
AND POSSIBILITIES OF SPECIAL INVESTIGATION
TECHNIQUES IN DIGITAL MEDIA

ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI


Juiz auxiliar da Presidência do Supremo Tribunal Federal – STF.
Coordenador do Centro de Mediação e Conciliação do STF. Juiz de direito
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP. Doutorando em
Direito do Estado (subárea: Direito Constitucional) pela Universidade
de São Paulo – USP. Mestre em Direito, Estado e Constituição (linha:
Constituição e Democracia) pela Universidade de Brasília – UnB. Autor
de livros, capítulos de livro e artigos jurídicos. Professor e palestrante.
https://orcid.org/0000-0002-8137-7760

RESUMO

A dinamicidade do mundo moderno aporta desafios adicionais


à atividade estatal de persecução penal. Fenômenos como a
globalização, a virtualização da economia e o surgimento contínuo
de novas tecnologias representam a necessidade de atualização das
técnicas de investigação na busca de uma tutela penal eficiente. Ao
mesmo tempo, os limites formais e materiais da ordem constitucional
que guiam a atuação penal do Estado são também continuamente
atualizados, contexto em que a autonomia do direito fundamental
à proteção dos dados pessoais surge como um novo limite a ser
observado. Nesse cenário, o artigo expõe limites possíveis a essas

ReJuB
68 - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022.
UTILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO:
LIMITES E POSSIBILIDADES DE TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO EM MEIO DIGITAL

novas técnicas investigativas, à luz do direito fundamental à proteção


dos dados e à preservação da cadeia de custódia de meios de
prova digital, a partir do contexto brasileiro e internacional. Ainda,
são abordados os desafios que se somam quando a descoberta
de informações penalmente relevantes se dá por investigações
jornalísticas.

Palavras-chave: proteção de dados; provas digitais; cadeia de custódia.

ABSTRACT

The dynamics of the modern world brings additional challenges to


the state’s criminal prosecution. Phenomena such as globalization, the
virtualization of the economy and the continuous emergence of new
technologies represent the need to update investigation techniques
in the pursuit of efficient protection. At the same time, the formal
and substantial limits that guide the criminal prosecution are also
continuously updated, a context in which the fundamental right to the
protection of personal data appears as a new limit to be observed. In this
scenario, the article exposes possible limits to these new investigative
techniques, considering the fundamental right to data protection and
the preservation of the chain of custody of digital evidence, in the
Brazilian and international perspectives. Also, it points to challenges
that are added when the discovery of criminally relevant information
takes place through non-official journalistic investigations.

Keywords: data protection; digital evidence; chain of custody.

Recebido: 7-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022. 69


ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 A autonomia do direito fundamental à proteção de


dados: um novo limite à persecução penal estatal. 3 Técnicas especiais
de investigação em meio digital: utilizando dados pessoais no processo
penal. 4 Compartilhamento internacional de dados em investigações
jornalísticas: cadeia de custódia e verdade processual. 5 Conclusão.
Referências.

1 INTRODUÇÃO

A persecução criminal estatal é tarefa que revela desafios


intrínsecos em uma ordem constitucional acusatória. A tutela dos bens
jurídicos protegidos e dos direitos fundamentais das vítimas impõem
a realização eficiente dessa atividade. Ao mesmo tempo, na busca
pela justificação da imposição legítima de uma sanção, exige-se fiel
observância aos direitos e às garantias dos investigados, seja durante
as investigações pré-processuais, seja no curso do processo penal
propriamente dito.

O contínuo e dinâmico equilíbrio entre esses dois polos não


é novidade no estudo do processo penal. Diz-se, inclusive, que seu
grau de balanceamento indica o grau democrático ou autoritário de
uma sociedade (GOLDSCHMIDT, 1935, p. 67), funcionando o processo
penal como um “sismógrafo da Constituição do Estado” (ROXIN,
2000, p. 10, tradução nossa). Entretanto, no âmbito da persecução
da macrocriminalidade, da criminalidade organizada e no combate
a crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de pessoas,
esses desafios ganham contornos dinâmicos e são ainda mais críticos,
sobretudo quando assumem natureza transnacional, tendo em vista a
limitação e a insuficiência dos meios investigativos e probatórios mais
tradicionais.

70 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022.


UTILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO:
LIMITES E POSSIBILIDADES DE TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO EM MEIO DIGITAL

Com efeito, fenômenos como a globalização e a virtualização da


economia, a facilidade e a celeridade na coleta, tratamento e tráfego
de dados cada vez mais volumosos, a dinamicidade do surgimento de
novas tecnologias e seus elevados impactos sociais são circunstâncias
que apresentam reflexos diretos na persecução penal (BASSIOUNI,
2015), inclusive quanto ao surgimento de novos bens jurídicos a
serem tutelados. Essas peculiaridades, por consequência, veiculam a
necessidade de aperfeiçoamento dos órgãos estatais e multilaterais,1
bem como de seus métodos e instrumentos de ação, frente a novas
técnicas de tipificação de crimes2 e sanção penal; estímulos à prática
de conformidade legal (compliance); novos meios de investigação
e persecução penal, como a cooperação internacional, a adoção de
soluções negociadas (ARAS, 2021); além de aspectos como a proteção
e o incentivo aos denunciantes de boa-fé (whistleblowers) (ARAS,
2013).

De outro lado, essas inovações apenas podem se desenvolver


legitimamente quando observados os direitos fundamentais dos
investigados, inclusive aqueles que também nesse contexto surgem
ou se atualizam. É o caso, por exemplo, do direito à proteção de
dados, a atrair complexos elementos na sua tutela legal em sede de

1
Nesse sentido, Shaw e Kemp (2015, p. 345-348) propõem a reestruturação do sistema
multilateral de resposta ao crime organizado, em cinco etapas principais: a criação de
um escritório das Nações Unidas para a Justiça, incrementando a liderança e não apenas
a coordenação entre os países; o redirecionamento de algumas abordagens atuais que
mesclam questões de saúde e justiça como uma coisa só; uma nova implementação da
Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional; o investimento
em performance analítica no combate ao crime organizado e sua vinculação com os
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS; além do aprimoramento do sistema
global pelo fortalecimento dos sistemas regionais.
2
É o que ocorre com a ascensão de modelos de tipificação de crimes de perigo abstrato
e delitos de acumulação, por exemplo, decorrentes de uma sociedade do risco descrita
por Beck (2002) com reflexos penais e processuais penais de relevo (BOTTINI, 2011,
p. 119). Nesse contexto, o “perigo deixa o campo do subjetivo e passa a ostentar uma
realidade objetiva, preenchida probabilidade fática da ocorrência da lesão ou do dano
que se quer evitar” (BOTTINI, 2019, p. 23). Ainda, Hassemer (1999, p. 22) descreve
algumas novidades do que chama de “moderno Direito Penal”.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022. 71


ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

investigação criminal e sua inserção na cadeia de custódia, que deve


ser documentada e preservada. Além das fronteiras decorrentes
de novos direitos fundamentais, os limites legais e epistêmicos da
atividade probatória (BADARÓ, 2018, p. 520) também se modificam,
para uma valoração racional de provas íntegras e autênticas (FERRER-
BELTRÁN, 2007, p. 42-47), que devem guiar “a convicção do juiz sobre
a realidade de uma alegação fática” (GOLDSCHMIDT, 2015, p. 464,
tradução nossa), que ultrapasse o mero caráter hipotético da acusação.

Quanto a esse ponto, outros aspectos importantes se revelaram


em situações recentes em que elementos informativos surgiram a partir
de meios não estatais de investigação, como denúncias anônimas e
bem documentadas feitas a veículos internacionais de comunicação
ou descobertas decorrentes de iniciativas conjuntas e transnacionais
de jornalismo investigativo. É o exemplo dos casos conhecidos como
Panama Papers e Swiss Leaks, por exemplo, que evidenciaram a
publicação de uma enorme quantidade de dados e documentos que
indicavam a possível prática de atos fraudulentos e criminosos por
diversas pessoas, dentre as quais líderes políticos e celebridades.
No ponto, também se envolve diretamente a liberdade de imprensa,
outra garantia constitucional e internacionalmente protegida, a atrair
desdobramentos particulares.

Configura-se, assim, o objeto do presente artigo: a partir da


exposição de novas técnicas investigativas surgidas nesse contexto
e dos limites que lhe têm sido atribuídos pela interpretação judicial
em alguns casos nacionais e estrangeiros, propõe-se a contraposição
entre a necessidade de seu desenvolvimento e a tutela de direitos
fundamentais. Mais especificamente, quer-se apresentar o direito à
proteção de dados como uma nova limitação autônoma às atividades
de persecução penal pelo Estado, problematizando-o face a situações
em que a descoberta de informações penalmente relevantes se dá

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UTILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO:
LIMITES E POSSIBILIDADES DE TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO EM MEIO DIGITAL

por meios extraoficiais, como os acima mencionados, protegidos pela


liberdade de imprensa. Com efeito, esses são desafios que se revelam
presente não apenas na América Latina e na Europa, como também em
outros países do mundo, havendo casos em que é possível vislumbrar
a aplicação prática dessas premissas, evidenciando a relevância e a
necessidade da discussão.

2 A AUTONOMIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À PROTEÇÃO DE


DADOS: UM NOVO LIMITE À PERSECUÇÃO PENAL ESTATAL

A proteção constitucional da intimidade e da vida privada


é noção que desde há muito se afirma. Com efeito, como reflexo
inerente da dignidade da pessoa humana, há aspectos da vida de
cada um que devem restar preservados do conhecimento público, ao
menos enquanto assim recomendar sua própria autodeterminação. Ao
mesmo tempo, também há muito se admite que o conflito com outros
valores constitucionais ou direitos fundamentais pode representar a
excepcional relativização dessa proteção, quando exista motivado
interesse no conhecimento dessas informações pessoais, nos limites
materiais e formais do que autorizado por lei.

Nesse sentido, por exemplo, é que a Constituição brasileira de


1988, desde sua redação original, expressamente afirma o direito
fundamental de inviolabilidade da intimidade e da vida privada, além
de cartas, correspondências, comunicações telemáticas, telefônicas e
do domicílio físico dos indivíduos (art. 5º, X, XI, XII, da CRFB/1988),
observadas as limitações ali mesmo indicadas ou remetidas à lei
(BRASIL, 1988). No plano internacional, destaca-se a previsão da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (promulgada
no Brasil pelo Decreto n. 678/1992) no sentido de que o art. 11, § 2°
pontua que “ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou
abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em
sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022. 73


ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

(COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1969).


Igualmente, no sistema europeu, a Convenção Europeia dos Direitos
Humanos de 1950 (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, [2021],
p. 11) estabelecia que “qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua
vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência”
(art. 8°, § 1°).

Ao longo do tempo, porém, a regulamentação tradicional


do direito à intimidade e à privacidade revelou-se insuficiente. A
necessidade de contínua atualização e revisitação, de tempos em
tempos, do conteúdo protetivo do direito à privacidade conforme
as alterações sociais, econômicas e políticas de uma sociedade era
descrita no século XIX por Warren e Brandeis (1890, p. 193).

Com efeito, na era da informação, “as leis existentes para proteção


da privacidade da informação não responderam adequadamente
ao surgimento dos dossiês digitais” (SOLOVE, 2004, p. 8), nem à
desregulamentada utilização de dados pessoais, impondo a necessidade
de que a própria proteção à privacidade fosse repensada. Eventos
como o escândalo do Facebook e da Cambridge Analytica (KAISER,
2020), revelaram o amplo emprego de informações pessoais como
itens valiosos, sem que seus titulares estivessem cientes ou pudessem
participar desse processo (SOLOVE, 2004, p. 223). Isso não apenas
para apropriações comerciais propriamente ditas, mas inclusive para
campanhas eleitorais e definição de eleições,3 mediante a utilização
de técnicas algorítmicas de microdirecionamento (microtargeting) e
veiculação de informações falsas.4

3
Empoli (2020, p. 84) também indica como a irrupção de novas mídias e suas ferramentas
de personalização contribuem para a construção de um caos político e social. O autor
analisa o contexto de diferentes países europeus, como a Itália, no âmbito da qual cita
o exemplo do Movimento 5 Estrelas (MoVimento 5 Stelle).
4
No cenário brasileiro, um retrato exemplificativo da utilização dessas ferramentas, seus
reflexos diretos no processo eleitoral e suas ameaças potenciais para a democracia
pode ser encontrado em Mello (2020).

74 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022.


UTILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO:
LIMITES E POSSIBILIDADES DE TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO EM MEIO DIGITAL

Nesse debate, por vezes, a tutela adequada de informações


pessoais é colocada em confronto com a proteção da segurança
da comunidade, especialmente em tempos de crise de segurança
pública, quando são frequentes os argumentos de que direitos e
liberdades pessoais devem ser sacrificados em prol de um interesse
público nacional. Entretanto, considerando que esses valores não são
necessariamente excludentes, essa dicotomia não é inexorável e pode
se revelar falsa. Aliás, esse argumento pendular descrito por Solove
(2011, p. 56) deveria se revelar em sentido contrário: em tempos de
crise é que deveria ser mais incisiva a proteção à privacidade e às
liberdades pessoais.

Nesse cenário, a proteção aos dados pessoais adquiriu, ao


longo do tempo, uma necessária autonomia, como espécie de direito
fundamental, tanto no plano doméstico (pela promulgação de atos
legislativos destinados à tutela específica dos dados pessoais) quanto
no plano multilateral e transnacional. A Carta de Direitos Fundamentais
da União Europeia de 2000 o assegurava de forma própria em seu
artigo 8º, § 1°, que dispõe que “todas as pessoas têm direito à proteção
dos dados de caráter pessoal que lhes digam respeito” (UNIÃO
EUROPEIA, 2000, p. 10). Ainda, nesse mesmo documento, garante-
se no item 2° a necessidade de “[...] um tratamento leal [dos dados],
para fins específicos e com o consentimento da pessoa interessada ou
com outro fundamento legítimo previsto por lei” (UNIÃO EUROPEIA,
2000, p. 10), garantido o direito de acesso e retificação às informações
pessoais por seu titular.

Também no âmbito da interpretação e aplicação dessa previsão,


o Tribunal de Justiça da União Europeia pronunciou-se de forma
específica sobre a questão no conhecido caso Digital Rights Ireland
(C-293/2012 e C-594/2012, apreciados em conjunto), em acórdão

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ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

datado de 8 de abril de 2014 (UNIÃO EUROPEIA, 2014).5 Na ocasião,


discutiu-se a Diretiva n. 2006/24/EC,6 adotada pelo Conselho Europeu
e pelo Parlamento Europeu na busca de uniformizar o tratamento da
matéria dentre os países integrantes do bloco, que dispunha sobre o
armazenamento de dados de telecomunicações por provedores de
serviços de internet, para fins de utilização no combate a crimes graves
cometidos na União Europeia. Na diretriz, não se alcançava o conteúdo
das comunicações, mas especificamente:

[...] os dados necessários para encontrar e identificar


a fonte e o destino de uma comunicação, para
determinar a data, a hora, a duração e o tipo de uma
comunicação, o equipamento de comunicação dos
utilizadores, bem como para localizar o equipamento
de comunicação móvel, dados entre os quais figuram,
designadamente, o nome e o endereço do assinante
ou do utilizador registado, o número de telefone
de origem e o número do destinatário e também
um endereço IP para os serviços de internet. Estes
dados permitem, designadamente, saber qual é a

5
Cita-se com destaque a decisão do Tribunal Europeu por sua relevância internacional
e pela consolidação que representa na afirmação do direito fundamental à proteção
dos dados pessoais. Não se tratou, porém, da primeira vez que uma corte se dedicou
ao tema. Pode-se citar, por exemplo, paradigmático caso julgado em 1983 pelo Tribunal
Constitucional Federal Alemão, no qual se falava em uma “autodeterminação sobre a
informação”. O caso (BVerfGE 65, 1 – Volkszählung) dizia respeito à lei de 1982 que
determinava a realização de recenseamento da população, a partir da coleta de dados
como a profissão, o domicílio e o local de trabalho. Na ocasião, o tribunal assentou
a constitucionalidade da lei, mas reconheceu a invalidade de alguns dispositivos,
estabelecendo restrições sobre a comparação, a troca e a transmissão de dados em
algumas situações. Ali, falava-se na necessidade de “uma proteção especialmente
intensa” sobre o processamento de dados pessoais. Em suas razões, a corte assentou que
“O livre desenvolvimento da personalidade pressupõe, sob as modernas condições do
processamento de dados, a proteção do indivíduo contra levantamento, armazenagem,
uso e transmissão irrestritos de seus dados pessoais. [...] O direito fundamental garante
o poder do cidadão de determinar em princípio ele mesmo sobre a exibição e o uso de
seus dados pessoais.” (MARTINS, 2005, p. 238).
6
O ato normativo não foi o primeiro, no âmbito do Direito Comunitário europeu,
a tratar do tema, colocando-se em uma sequência de outras disposições sobre a
proteção de dados e informações pessoais nas ações de coleta, tratamento, tráfego e
armazenamento, como as Diretivas n. 1995/46/CE e n. 2002/58/CE.

76 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022.


UTILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO:
LIMITES E POSSIBILIDADES DE TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO EM MEIO DIGITAL

pessoa com quem um assinante ou um utilizador


registrado comunicou, e através de que meio, assim
como determinar o tempo da comunicação e o local a
partir do qual esta foi efetuada. Além disso, permitem
saber com que frequência o assinante ou o utilizador
registrado comunicam com certas pessoas, durante
um determinado período. (UNIÃO EUROPEIA, 2014,
§ 26).

A partir de dois casos enviados pelas cortes máximas da Irlanda


(High Court) e pela Áustria (Verfassungsgerichtshof), a questão
chegou ao Tribunal Europeu. No primeiro, Digital Rights Ireland (uma
organização da sociedade civil irlandesa para defesa dos direitos
digitais) narrava que as medidas legislativas e administrativas de
armazenamento de dados pessoais e informações eletrônicas seriam
inválidas. No segundo, os proponentes também se queixavam de
aspectos semelhantes. O próprio acórdão, em referência à manifestação
da Corte Austríaca de remessa do caso ao Tribunal Europeu, destacava
que:

A conservação dos dados diz respeito quase


exclusivamente a pessoas cujo comportamento não
justifica sequer que os seus dados sejam conservados.
Essas pessoas ficam expostas a um risco superior
de que as autoridades investiguem os seus dados,
tomem conhecimento do seu conteúdo, informem-se
acerca da sua vida privada e utilizem esses dados com
múltiplas finalidades, tendo designadamente em conta
o número incomensurável de pessoas que têm acesso
aos dados durante um período de, pelo menos, seis
meses. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, há
dúvidas, por um lado, quanto ao fato de esta diretiva
poder alcançar os objetivos que prossegue e, por outro,
quanto ao caráter proporcionado da ingerência nos
direitos fundamentais em causa. (UNIÃO EUROPEIA,
2014, § 20).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022. 77


ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

Em síntese, argumentava-se nos dois casos que a diretiva e as


respectivas leis nacionais estariam servindo como fundamento para
a implementação de sistemas de vigilância em massa, em violação
aos direitos fundamentais de privacidade e de proteção dos dados
pessoais.

Analisada a questão, o Tribunal de Justiça da União Europeia


assentou que a diretiva representava indevida ingerência no direito
fundamental à proteção dos dados pessoais. Nesse sentido, a corte
assentou que a diretiva não previa limitações como a aplicação a
pessoas em relação às quais houvesse prévios indícios de participação
em determinada atividade criminosa grave, não excepcionava situações
de comunicações acobertadas por sigilo profissional, não restringia de
forma adequada o período temporal ou determinada região geográfica
a partir de qual se desse o armazenamento de dados, nem se sujeitava
a um controle judicial prévio. Assim, apesar de atender a um objetivo
efetivo de interesse geral — a “prevenção das infrações e na luta contra
a criminalidade, designadamente a criminalidade organizada” (UNIÃO
EUROPEIA, 2014, § 43) —, a medida não se revelava proporcional, tendo
em vista que permitia “uma ingerência nos direitos fundamentais de
quase toda a população europeia” (UNIÃO EUROPEIA, 2014, §56).

O caso permite identificar, portanto, que a afirmação da


autonomia do direito fundamental à proteção de dados aporta novos
limites materiais e procedimentais à atuação dos órgãos de persecução
penal. Com efeito, a própria Diretiva n. 2006/24/EC cita conclusões de
19 de dezembro de 2002 do Conselho Justiça e Assuntos Internos,
constituído pelos ministros da Justiça e de Assuntos Internos dos
Estados-Membros da União Europeia, no sentido de que:

[...] devido a um notável crescimento das possibilidades


oferecidas pelas comunicações eletrônicas, os dados
gerados pela utilização deste tipo de comunicações

78 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022.


UTILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO:
LIMITES E POSSIBILIDADES DE TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO EM MEIO DIGITAL

constituem um instrumento extremamente importante


e útil na prevenção, investigação, detecção e de
repressão de infrações penais, em especial contra a
criminalidade organizada. (UNIÃO EUROPEIA, 2006,
§ 7°).

O texto – aprovado depois dos atentados de Londres de julho de


2005, em que se intensificou no Conselho Europeu a compreensão pela
necessidade de estabelecer medidas comuns entre os países quanto à
conservação de dados de telecomunicações – volta, mais à frente, a
confessar sua motivação penal, no sentido de possibilitar novos meios
de prevenção e repressão de delitos, especialmente os praticados por
organizações criminosas:

Visto que a conservação de dados se tem revelado


um instrumento de investigação necessário e eficaz
de repressão penal em vários estados-membros,
nomeadamente em matérias tão graves como o crime
organizado e o terrorismo, é necessário assegurar
que as autoridades responsáveis pela aplicação da lei
possam dispor dos dados conservados por um período
determinado, nas condições previstas na presente
diretiva. (UNIÃO EUROPEIA, 2006, § 9°).

No Brasil, há desde 1988 previsão constitucional da inviolabilidade


do sigilo de dados (art. 5º, XII, da CRFB/1988), revelando-se possível
falar em sua proteção não apenas como um desdobramento do direito
à intimidade e à vida privada, mas como um direito fundamental
autônomo, que reclama atuações estatais específicas – negativas e
positivas – para sua tutela adequada (BRASIL, 1988; MENDES, 2018,
p. 188). Ainda, a autodeterminação informativa é medida que ganha
força normativa progressiva no país, sobretudo a partir da edição da
Lei n. 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados), ato normativo que

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022. 79


ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

representou a criação de um sistema protetivo aos dados pessoais e


seu tratamento (BRASIL, 2018a).7

No âmbito do Supremo Tribunal Federal – STF, por exemplo, a


autonomia do direito fundamental à proteção dos dados pessoais foi
assentada por alguns ministros durante o julgamento da Ação Direta
de Inconstitucionalidade n. 6.387 (BRASIL, 2020e), julgada em 7 de
maio de 2020, em que se impugnava a Medida Provisória n. 954/2020,
que dispunha sobre a coleta, a conservação e o compartilhamento de
dados pessoais por empresas de telecomunicações com o órgão estatal
de estatística, para fins de enfrentamento da pandemia de Covid-19. Na
ocasião, o ato normativo não ultrapassou o juízo de proporcionalidade
realizado pela corte, tendo sido considerado incompatível com a ordem
constitucional brasileira.

Em reforço a essa autonomia, houve reconhecimento explícito


do direito fundamental à proteção dos dados pessoais, inclusive
nos meios digitais, pela superveniência da Emenda Constitucional
n. 115, promulgada em 10 de fevereiro de 2022. A partir de sua edição,
acrescentou-se nova disposição ao catálogo dos direitos fundamentais
afirmados pelo art. 5º da Constituição brasileira (BRASIL, 1988),
(inciso LXXIX), assegurando de forma expressa “nos termos da lei, o
direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”,
assegurando à União a competência para “organizar e fiscalizar a
proteção e o tratamento de dados pessoais” (art. 21, XXVI), bem como
para legislar privativamente sobre a matéria (art. 22, XXX).

7
Na legislação brasileira, também se destaca o Marco Civil da Internet, Lei n. 12.965/2014,
que estabelece a internet como ambiente essencial ao exercício da cidadania, garantindo
a seus usuários a “inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”; “a inviolabilidade
e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma
da lei”; e “a inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo
por ordem judicial” (art. 7º, I, II e III) (BRASIL, 2014a).

80 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022.


UTILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO:
LIMITES E POSSIBILIDADES DE TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO EM MEIO DIGITAL

Dessa forma, ao mesmo tempo em que surge um interesse cada


vez maior sobre as informações pessoais digitais para execução do ius
puniendi estatal, o direito fundamental à proteção dos dados pessoais
implica que as medidas legislativas que disciplinam seu acesso, bem
como as empreitadas investigativas sobre seu conteúdo devem se
revelar proporcionais, isto é, adequadas e necessárias ao atendimento
dos objetivos que justificam a relativização de sua inviolabilidade, sem
que se vislumbre a alternatividade de outra medida menos gravosa.
Assim, interesses como a persecução penal eficiente à criminalidade
organizada são objetivos adequados à limitação da proteção dos
dados pessoais, mas devem ser perquiridos com fundamento em lei
e de forma limitada, pontual e justificada, sem que se promova uma
devassa sobre os dados de pessoas indeterminadas.

3 TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO EM MEIO DIGITAL:


UTILIZANDO DADOS PESSOAIS NO PROCESSO PENAL

A partir das premissas do tópico anterior, chega-se à dinâmica


relação entre o surgimento de novos direitos fundamentais limitadores
da persecução penal e a necessidade de desenvolvimento de novas
técnicas investigativas que, em um mundo cada vez mais digital e
globalizado, permitam um eficiente combate ao crime organizado.
Essa relação não revela contradição inerente, podendo sua justa
medida de equilíbrio ser encontrada a partir dos mencionados critérios
de proporcionalidade, cuja delimitação mais específica pode ser
apreendida a partir da análise de alguns casos concretos. É o que se
propõe a fazer na presente seção, a partir da identificação de alguns
casos julgados no Brasil pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, sobre o
tema de meios digitais de provas e seu possível confronto com o sigilo
e a inviolabilidade dos dados pessoais, mediante aportes advindos do
enfrentamento de temas similares também em outros países. A maioria
dos casos se relaciona, em alguma medida, ao enfrentamento do crime
organizado e mesmo os que não se vinculam de forma direta a essa

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022. 81


ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

finalidade permitem solidificar premissas teóricas importantes para a


sua persecução.

De início, surge relevante a requisição judicial de dados digitais


armazenados por provedores de aplicação na internet relativamente
a um conjunto indeterminado de pessoas. O tema foi apreciado pela
Terceira Seção do STJ em um conjunto de casos8 relacionados à
investigação do homicídio da vereadora fluminense Marielle Franco e
de seu motorista Anderson Gomes.

Nesses julgados, debatia-se sobre a validade de decisões do


juízo de primeira instância que determinavam que alguns provedores
fornecessem a identificação dos usuários de aplicativos que estivessem
em uma região específica da cidade do Rio de Janeiro, dentro de um
intervalo temporal também determinado (no caso, os limites eram de
15 minutos em um certo polígono de coordenadas em que um veículo
relacionado ao crime havia sido visto), bem como a identificação dos
IPs (Internet Prococols) de usuários do Google que, nos dias anteriores
à prática do crime, tivessem realizado certas buscas nessa plataforma,
a partir da delimitação de alguns parâmetros de pesquisa. Quanto
ao ponto, destaca-se que a autorização judicial se dava em intervalo
delimitado de tempo (de 10 de março 2018 a 14 de março de 2018, data
do crime), a partir de algumas palavras-chave também delimitadas,
relacionadas à investigação.9

As decisões de origem eram impugnadas pelo próprio Google,


que argumentava que as circunstâncias do caso não justificavam
a quebra do sigilo desses dados, nem se revelariam proporcionais,
sobretudo por não recaírem sobre investigados específicos, mas

8
RMS 60.698 (BRASIL, 2020a), RMS 61.302 (BRASIL, 2020b) e RMS 62.143 (BRASIL,
2020c), todos de relatoria do Ministro Rogerio Schietti, julgados pela Terceira Seção do
STJ em 26 de agosto de 2020.
9
Os parâmetros adotados foram os seguintes: “Marielle Franco”, “Vereadora Marielle”,
“Agenda Vereadora Marielle”, “Casa das Pretas”, “Rua dos Inválidos, 122” ou “Rua dos
Inválidos”.

82 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022.


UTILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO:
LIMITES E POSSIBILIDADES DE TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO EM MEIO DIGITAL

sobre um conjunto não identificado de pessoas. Em outros países, a


empresa havia recebido ordens judiciais semelhantes, quando cumpriu
a requisição de identificação de protocolos de internet a partir de
parâmetros de pesquisa para identificação de suspeitos.10

Esses argumentos não foram acolhidos pelo STJ, que confirmou


a validade das determinações judiciais, tendo em vista que havia
um concreto interesse público relevante, reconhecido previamente
por decisão fundamentada da autoridade judicial competente
para supervisão das investigações, possibilitando uma limitação à
inviolabilidade de dados estáticos de registro armazenados, não
alcançando o conteúdo em si do fluxo de comunicações de dados.11
Ademais, a decisão judicial apresentava elementos que restringiam a
incidência da medida, a partir de critérios justificados e correlacionados
de forma específica à investigação (circunstâncias de tempo, de lugar
e de modo delimitadas), ainda que não houvesse – por absoluta
impossibilidade e pela ineficácia, quanto ao ponto, dos outros meios
investigativos previamente utilizados – a identificação individualizada
das pessoas alcançadas, visto que esse era justamente o objetivo da
diligência investigativa. Não se tratava, assim, de uma devassa geral e
irrestrita de dados pessoais.12

10
Cita-se o caso de Robert Kelly e Michael Williams, este último identificado como suspeito
pela possível prática de um incêndio criminoso a um carro, a partir de protocolos de
internet utilizados para buscas do endereço da vítima no dia do crime e na véspera
(ARAS, 2020a).
11
Com efeito, o Direito brasileiro comporta diferentes níveis protetivos conforme a maior ou
menor intromissão nos dados pessoais, relativamente ao próprio conteúdo da comunicação
em si, seus dados de armazenamento ou mesmo dados cadastrais propriamente ditos
(MOURA; BARBOSA, 2020, p. 478). Nesse sentido, destaca-se recente decisão do STJ
de que o mero requerimento, para que a guarda dos registros de acesso a aplicações
de internet ou registros de conexão se dê por prazo superior ao legal, pode ser feito
diretamente pela autoridade policial ou pelo Ministério Público, sem autorização judicial
prévia, visto que a medida não traduz acesso aos dados armazenados (BRASIL, 2022).
12
Vladimir Aras lembra o caso de Nicky Verstappen, garoto holandês de 11 anos morto
em 1988 durante um acampamento de verão (ARAS, 2020b). A solução do caso só
foi possível em 2008, após a realização de mais de 16 mil testes de DNA dentre os
homens da região, que atenderam voluntariamente ao chamado da polícia. A busca
permitiu restringir, mediante os traços genéticos que indicavam parentesco, o foco
da investigação, até que se encontrasse, mediante busca e apreensão judicialmente
autorizada na casa de um investigado, uma amostra 100% compatível com o material
genético que havia sido encontrado nas roupas da vítima.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022. 83


ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

Assim, a corte considerou que, no caso, estavam atendidos


os critérios de proporcionalidade da quebra de sigilo dos dados
requisitados, tendo em vista que era adequada ao fim buscado e
necessária ante à ineficácia de outros métodos de investigação.13 Ainda,
persistiria o dever de sigilo sobre os dados obtidos e não conexos à
investigação criminal, de modo que a medida não levaria à exposição
pública de pessoas não vinculadas ao fato criminoso.

Em outra situação, a ausência de critérios específicos de


delimitação temporal levou o STJ a considerar inválida a quebra de
sigilo de comunicações por e-mail em intervalo desproporcional de
tempo. No Habeas Corpus n. 315.220/RS (BRASIL, 2015), investigava-
se a prática dos crimes de corrupção, peculato e falsidade ideológica,
tendo a autoridade judicial determinado a quebra de sigilo de e-mails
dos investigados em um período superior a dez anos, sem que fossem
apresentadas razões suficientes que concretamente indicassem a
necessidade de que a diligência recaísse sobre tão largo tempo.
Entendendo se tratar, assim, de medida desproporcional, declarou-se
a nulidade das provas resultantes dessa diligência.

Em relação à determinação de identificação dos usuários de


aplicações de internet que estivessem em uma dada região dentro
de um intervalo temporal determinado, trata-se de técnica conhecida
como geofencing (cercamento geográfico), que no Brasil encontra

13
Nesse ponto, destaca-se trecho do voto proferido pelo ministro relator: “Quanto à
proporcionalidade da quebra de dados informáticos, ela é adequada, na medida em
que serve como mais um instrumento que pode auxiliar na elucidação dos delitos, cuja
investigação se arrasta por mais de dois anos, sem que haja uma conclusão definitiva;
é necessária, diante da complexidade do caso e da não evidência de outros meios não
gravosos para se alcançarem os legítimos fins investigativos; e, por fim, é proporcional
em sentido estrito, porque a restrição a direitos fundamentais que dela redundam –
tendo como finalidade a apuração de crimes dolosos contra a vida, de repercussão
internacional – não enseja gravame às pessoas eventualmente afetadas, as quais não
terão seu sigilo de dados registrais publicizados, os quais, se não constatada sua
conexão com o fato investigado, serão descartados.” (BRASIL, 2020c).

84 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022.


UTILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO:
LIMITES E POSSIBILIDADES DE TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO EM MEIO DIGITAL

respaldo legal no artigo 22 do Marco Civil da Internet (BRASIL, 2014a).14


A partir da autorização judicial de acesso a dados digitais, permite-
se identificar as pessoas que estavam em um espaço geográfico em
determinado período, afunilando as investigações sobre possíveis
suspeitos.

Nos Estados Unidos, discute-se sobre a validade jurídica dos


“mandados de geocercamento” (“geofence warrants”) ou “mandados
de localização reversa” (“reverse location warrant”), sobretudo à luz
da limitação de buscas e apreensões irrazoáveis, afirmada pela Quarta
Emenda à Constituição daquele país. Apesar de seu texto afirmar a
inviolabilidade sobre “pessoas, casas, papéis e pertences”, também
os dados pessoais são alcançados pelo dispositivo constitucional
(GEOFENCE..., 2021, p. 2513). Assim é que:

[...] a expansão dos métodos ocultos de investigação,


com seu potencial de eliminação das barreiras à
privacidade, provoca reativamente a configuração
de defesas jurídicas de proteção do âmbito essencial
da configuração da vida privada que se constituem
a partir de uma dimensão de dependência recíproca
entre legalidade e reserva de jurisdição. (PRADO,
2021, p. 179).

Em termos próximos, destaca-se que desde 2016 o Código de


Processo Penal – CPP brasileiro (art. 13-A) autoriza que, no caso de
alguns crimes específicos,15 o Ministério Público ou a polícia requisite,
de órgãos públicos ou de entidades privadas, dados e informações
cadastrais da vítima ou de suspeitos, independentemente de
autorização judicial prévia (BRASIL, 1941). Ateriormente havia previsões

14
Sobre o ponto, destacam-se os arts. 22 e 23 da Lei n. 12.965/2014.
15
Os crimes indicados pelo art. 13-A do Código de Processo Penal são: sequestro e
cárcere privado; redução à condição análoga à de escravo; tráfico de pessoas; extorsão
mediante restrição de liberdade da vítima; extorsão mediante sequestro e tráfico
internacional de crianças.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022. 85


ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

similares nas leis que tratam do crime de lavagem de capitais (art. 17-B
da Lei n. 9.613/1998) e das organizações criminosas (art. 15 da Lei
n. 12.850/2013).

Ainda, no caso de investigação relacionada ao tráfico de pessoas,


o CPP (art. 13-B) dispõe que essa requisição pode alcançar também
informações de telecomunicações e telemática que permitam identificar
a localização da vítima ou de suspeitos, mediante a triangulação de
posicionamento de estações rádio base – ERB, por exemplo (BRASIL,
1941). Nesse caso, apesar de haver certa contradição na redação do
dispositivo (LIMA, 2017, p. 139-141), exige-se prévia autorização judicial,
havendo limites temporais e circunstanciais estabelecidos pela lei.

Em todo caso, renova-se a afirmação quanto à incidência dos


vetores limitativos da adequação e necessidade dessas medidas
investigatórias, bem como a estrita observância ao sigilo no tratamento
dos dados coletados, inclusive com o descarte daqueles que não
apresentem relevância para a atividade investigativa. Ainda, em
qualquer dessas circunstâncias, os dados coletados deverão ter uma
fiel documentação de sua cadeia de custódia, a fim de que se garantam
a autenticidade e a integridade dos elementos informativos colhidos.

Com efeito, a inevitável digitalização da investigação criminal


apresenta desafios adicionais ao registro da cadeia de custódia,
sobretudo na documentação de sua cronologia e na garantia de não
interferência dos agentes envolvidos. Aliás, a própria produção de
elementos informativos digitais revela aspectos de difícil controle,
especialmente nos chamados “meios ocultos de investigação” (MOURA;
BARBOSA, 2020, p. 484), o que “reclama adequada compreensão
quanto ao cabimento – forma e conteúdo – da cadeia de custódia das
provas nesse cenário” (PRADO, 2021, p. 179).

Veja-se, nesse sentido, questão enfrentada pelo STJ relativamente


à utilização do espelhamento de aplicativo de mensagens de celular

86 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022.


UTILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO:
LIMITES E POSSIBILIDADES DE TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO EM MEIO DIGITAL

em computador (WhatsApp Web) para fins de investigação criminal.


No caso RHC n.99.735/SC (BRASIL, 2018b), houve autorização judicial
para que se apreendesse o celular de um investigado e, mediante a
coleta de dados do WhatsApp e a leitura de um QR Code, a autoridade
policial procedeu ao espelhamento de seu conteúdo em computador,
a fim de que tivesse acesso ao histórico de mensagens recebidas e
enviadas pelo investigado, bem como àquelas que ainda seriam
enviadas, depois de a ele restituído o bem apreendido. A técnica
investigativa que, inicialmente, parece promissora por permitir o
conhecimento interno de detalhes de uma organização criminosa ou
do planejamento de um crime, por exemplo, apresenta peculiaridades
reconhecidas no mencionado julgamento.

Diferentemente de uma interceptação telefônica ou do acesso


a trocas de e-mails, em que se registra o conteúdo das comunicações
realizadas sem qualquer possibilidade de interferências pelos
investigadores, o acesso espelhado ao aplicativo de mensagens
permite que, em tese, as pessoas envolvidas possam interferir na troca
de informações entre os investigados. A partir do emparelhamento
entre celular e computador, é possível que por esse último meio, envie-
se mensagens ou apague conteúdo presente ou passado, enviado
ou recebido, em atualizações simultâneas entre as plataformas, sem
possibilidade de posterior recuperação ou desfazimento.

Assim, a própria funcionalidade utilizada indica a possibilidade


de que haja, por parte da investigação, interferência direta na
comunicação, além de viabilizar o acesso a todo o histórico de conversas
do investigado, alcançando conteúdo passado, quando ainda inexistia
autorização judicial que permitisse a quebra de seu sigilo. Não se
podendo garantir, portanto, a autenticidade e a mesmidade (PRADO,
2014, p. 17) dos elementos a serem aportados como prova em um
processo penal, a corte assentou a nulidade da decisão judicial que
havia autorizado o espelhamento do aplicativo, bem como das provas
que resultaram dessa diligência. Para o futuro, porém, imagina-se se
não seria possível desenvolver um software que permitisse registrar

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022. 87


ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

e/ou limitar as atividades dos investigadores no computador, a fim de


permitir a utilização válida desse meio de investigação.

Nota-se, assim, que o direito fundamental à inviolabilidade e


à proteção dos dados pessoais aporta novas limitações às técnicas
investigativas que constantemente surgem, impondo requisitos que
devem ser observados pelos órgãos estatais de persecução penal. Em
outras situações, porém, as informações colhidas podem advir de meios
não oficiais de investigação, como quando derivam de descobertas
jornalísticas ou vazamento de dados, refletindo novas preocupações
no processo penal.

4 COMPARTILHAMENTO INTERNACIONAL DE DADOS EM


INVESTIGAÇÕES JORNALÍSTICAS: CADEIA DE CUSTÓDIA E
VERDADE PROCESSUAL

As circunstâncias afirmadas nos tópicos anteriores ganham


relevo adicional quando se considera a dimensão internacional
do enfrentamento à criminalidade organizada, não apenas como
consequência de tratados entabulados entre os países,16 mas também
como inevitável desdobramento prático de sua investigação. Com

16
Podem ser citados, nesse sentido, a Convenção de Palermo (Convenção das Nações
Unidas contra o Crime Organizado Transnacional), como principal documento
internacional destinado ao tema, promulgado internamente no Brasil pelo Decreto
n. 5.015/2004. Seus protocolos adicionais versam sobre o Combate ao Tráfico de
Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea; a Prevenção, Repressão e Punição
do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças; e a Fabricação e o Tráfico
Ilícito de Armas de Fogo, suas Peças, Componentes e Munições; os quais foram
também promulgados no Brasil (Decretos n. 5.016/2004, 5.017/2004 e 5.941/2006,
respectivamente). Ainda, surgem como documentos internacionais relevantes
sobre o tema a Convenção de Viena de 1988 (Convenção contra o Tráfico Ilícito de
Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas), promulgada pelo Decreto n. 154/1991 e a
Convenção de Mérida (Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção), promulgada
pelo Decreto n. 5.687/2006. Por fim, a Convenção de Budapeste (Convenção sobre o
Crime Cibernético), cuja adesão pelo Brasil se deu em dezembro de 2021, pelo Decreto
Legislativo n. 37 daquele ano.

88 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022.


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efeito, cada vez mais, impõe-se o enfrentamento internacional do


crime organizado, cenário em que assumem relevância instrumentos
como a cooperação internacional, não apenas entre os estados, mas
também em abrangência dos organismos internacionais.

Ainda, acordos bilaterais de cooperação jurídica ostentam


relevância crescente, como instrumentos de troca de informações
entre países para investigações criminais, bem como para obtenção
de dados pessoais de investigados. É o caso, por exemplo, do Mutual
Legal Assistance Treaty – MLAT (Tratado de Assistência Jurídica Mútua
em Matéria Penal), firmado entre Estados Unidos e Brasil em 1997,
promulgado internamente pelo Decreto n. 3.810/2001 (BRASIL, 2001).
Esse ato normativo tem, inclusive, seu alcance discutido perante o STF
na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 51 (BRASIL, 2020d),
especialmente no que diz respeito à (im)possibilidade de requisição
direta de dados pessoais de comunicação em poder de provedores de
aplicação que possuem sua sede no exterior.17

Não bastassem essas complexidades, casos recentes de relevantes


investigações jornalísticas aportam desafios práticos adicionais ao
compartilhamento internacional de informações e seu aproveitamento

17
ADC n. 51, rel. Min. Gilmar Mendes. Na ação, requer-se a confirmação da constitucionalidade
do Decreto n. 3.810/2001, além do artigo 237, II, do Código de Processo Civil, e dos
arts. 780 e 783 do Código de Processo Penal (que versam sobre o cumprimento de cartas
rogatórias e a cooperação jurídica internacional). Discute-se, na ação, se a mencionada
requisição direta de dados de comunicação contrariaria esses dispositivos. A entidade
autora (Federação das Associações das Empresas de Tecnologia da Informação)
argumenta que apenas por meio da expedição de carta rogatória ou pelo cumprimento
estrito dos instrumentos previstos pelo MLAT (solicitação pelo Ministério da Justiça
brasileiro ao Department of Justice – DOJ norte-americano) é que esses dados poderiam
ser acessados por autoridades judiciais brasileiras. A discussão ainda envolve reflexos da
legislação interna estadunidense (Stored Communications Act e Cloud Act), relativamente
à necessidade ou não de prévia decisão judicial interna para o envio dos dados pessoais
solicitados. A corte realizou audiência pública para discussão do tema em 10 de fevereiro
de 2020 e o julgamento do caso está agendado para 11 de maio de 2022.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022. 89


ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

na esfera penal. Exemplos como os conhecidos Panama Papers18 e


Swiss Leaks19 revelam situações de vazamento de um elevado número
de dados pessoais, nas quais o descobrimento de elementos de
informação relativos ao possível cometimento de crimes diversos,
inclusive no contexto transnacional, derivam de meios não estatais de
investigação, como denúncias anônimas e bem documentadas feitas a
veículos internacionais de comunicação ou descobertas decorrentes
de iniciativas conjuntas de jornalismo investigativo. Nesses casos, as
iniciativas são acobertadas pela liberdade constitucional de imprensa,
mas sua inserção no processo penal pode representar peculiaridades
relevantes.

Dentro de uma concepção democrática, a liberdade de imprensa,


como reflexo de uma das liberdades públicas, possui proteção
destacada e até mesmo preferencial nas ordens constitucionais. Isso
porque, para além das inerentes finalidades que justificam a proteção
dessas liberdades, elas também assumem importância instrumental
para a garantia e implementação de outros direitos fundamentais.
Como consequência, a regra é que prevaleça sua ampla liberdade,
exigindo-se um significativo ônus argumentativo para as decisões que
determinem sua restrição ou seu afastamento (ARABI, 2019, p. 127-128).

18
O escândalo deriva do vazamento de milhões de documentos do escritório Mossak
Fonseca (sediado no Panamá), enviados anonimamente a um jornal alemão e
compartilhados com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos – Icij.
Os arquivos relevavam um amplo esquema organizado de remessa oculta de valores
bilionários a empresas de fachada sediadas em paraísos fiscais e relacionadas a diversos
políticos de relevo e celebridades internacionais. A divulgação, iniciada em abril de 2016,
despertou interesse em autoridades investigativas de diversos países, que passaram a
buscar acesso a esses documentos.
19
De forma semelhante, o caso deriva de investigações jornalísticas que partiram
do vazamento de dados apropriados por um ex-funcionário de um relevante banco
europeu, os quais revelariam um organizado esquema de evasão fiscal e alocação de
recursos financeiros no exterior. O caso eclodiu em fevereiro de 2015, provocando
também amplo interesse penal em sua investigação.

90 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022.


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Há que se garantir, portanto, a livre e independente possibilidade


de investigação jornalística, cujo grau de autonomia revela, inclusive,
perfis mais ou menos democráticos de uma nação.20 Seus reflexos
penais, porém, despertam preocupações adicionais.

De início, há que se destacar que a busca da verdade jornalística


e a busca da verdade processual penal apresentam escopos
distintos (VIEIRA, 2012, p. 131). Para além das próprias limitações
epistemológicas da apropriação de qualquer verdade, no processo
penal, obedecidas as limitações materiais e procedimentais que são
condições de validade de sua própria existência (GOMES FILHO, 1997,
p. 54), a verdade probatória coloca-se como a “maior aproximação
possível” (TARUFFO, 1992, p. 158) dos fatos, empreitada que não
leva a certezas, mas a probabilidades daquilo que se investiga. Nesse
sentido, a verdade processual “é apenas um pressuposto para se poder
adequadamente decidir qual é a hipótese legal aplicável ao caso
concreto” (BADARÓ, 2018, p. 518), revelando-se como uma verdade
aproximativa (FERRAJOLI, 2014, p. 53).

Nessa perspectiva, o valor jornalístico de um elemento de


informação não necessariamente coincidirá com seu valor probatório
no processo penal, à luz das limitações materiais e formais distintas a
que uma e outra forma de investigação estão sujeitas. A inviolabilidade
de dados pessoais e das comunicações privadas, o devido processo
legal e a ampla defesa são algumas das garantias cuja observância
estrita pode não interessar à atividade jornalística investigativa. Trata-
se, de outro lado, de requisitos de legitimidade da atuação dos órgãos
estatais de persecução penal.

20
Nesse sentido, cite-se a conhecida Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa,
promovida pela organização Repórteres Sem Fronteiras. No ranking de 2022, o Brasil
ocupa a 110ª posição, dentre os 180 países integrantes do estudo (REPÓRTERES SEM
FRONTEIRAS, 2022).

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ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

Em relação aos dados pessoais, cuja proteção consubstancia


direito fundamental autônomo, é possível que informações obtidas
sem prévia e justa autorização judicial e/ou legal sirvam, no âmbito
da liberdade de imprensa, à busca da verdade jornalística. Entretanto,
sua utilização no processo penal como meio de prova na persecução
da verdade processual deve se cercar de cuidados adicionais, tanto
nos momentos de sua admissão quanto naqueles de sua valoração e
da decisão a partir dos fatos provados, conforme diferentes padrões
de racionalidade que cada etapa exige (FERRER-BELTRÁN, 2007,
p. 67-68).

Além dos aspectos materiais e procedimentais que limitam a


atuação penal estatal, também a ausência de registro de sua cadeia
de custódia pode ser elemento que influencie na admissão e valoração
desses materiais como meios de prova. Com efeito, “a necessidade de
documentação da cadeia de custódia é fundamental para assegurar
o potencial epistêmico das fontes de provas reais” (BADARÓ, 2021,
p. 8), o que se revela em relação a qualquer meio de prova. Sua
regulamentação no Direito brasileiro, porém, é recente e ainda se guia
pelos meios de prova físicos ou materiais (arts. 158-A a 158-F do Código
de Processo Penal, incluídos pela Lei n. 13.964/2019).

Há que se considerar que em situações como as mencionadas


acima, não há supervisão judicial ou contraditório sobre a formação
dos elementos de informação, que por vezes derivam de vazamento
de documentos – que inclusive podem representar, em si, atividade
criminosa (como no caso de invasão a dispositivo informático). Assim,
o mero acesso pelos órgãos estatais de persecução penal a esses
documentos, via cooperação internacional, não necessariamente
valida a sua utilização como meio de prova no processo penal. Nesse
sentido, é ainda mais dificultosa a garantia de que os meios de prova
sejam autênticos e íntegros, à luz dos vetores da mesmidade e da
desconfiança (PRADO, 2014, p. 17).

92 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022.


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Por sua própria natureza, há uma dificuldade intrínseca em


“preservar a integridade do elemento probatório digital e de verificar
sua autenticidade, além de determinar o cuidado extremado que se
deve ter, haja vista os riscos concretos de manipulação e alteração
de dados” (PRADO, 2021, p. 194). Nesse sentido, há de destacar que,
por vezes, uma alteração propositada ou imprudente empreendida
em um meio de prova digital pode se dar sem qualquer possibilidade
de identificação ou rastreio posterior, visto que se trata de “fonte de
prova que pode ser facilmente contaminada, sendo sua gestão muito
delicada, por apresentar um alto grau de vulnerabilidade a erros”
(BADARÓ, 2021, p. 8).

Jurisprudencialmente, o tema foi enfrentado em alguns casos


julgados no Basil. Relativamente à interceptação telefônica e telemática,
autorizada por decisão judicial prévia, válida e bem fundamentada,
o STJ considerou, por exemplo, que o acesso integral ao conteúdo
derivado de sua realização deve ser disponibilizado, tal qual captado,
aos investigados e sua defesa, necessidade que não se supre pelo
acesso aos autos do processo em si.

No Habeas Corpus n. 160.662/RJ (BRASIL, 2014b), em que se


investigava a prática dos crimes de associação criminosa, descaminho
e lavagem de capitais por organizado grupo de empresas reais e de
fachada no Brasil e no exterior, houve, ainda durante a fase policial,
extravio de parte do conteúdo captado, havendo, no material
disponibilizado à defesa dos acusados, partes omissas e descontínuas
nos áudios e e-mails capturados, em razão da formatação do
computador utilizado durante as investigações, sem possibilidade de
recuperação. Enfrentando a questão, o STJ afirmou que a preservação
da integralidade dos elementos de informação colhidos na investigação
é dado essencial à efetivação das garantias do contraditório e da
ampla defesa, de modo que a falha na cadeia de custódia da prova

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022. 93


ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

representaria um cerceamento ao direito de defesa. Dessa forma,


ante à não preservação da integralidade do material probatório, foi
reconhecida a nulidade das provas resultantes das interceptações
telefônica e telemática.

Aspectos semelhantes também foram considerados no


enfrentamento da matéria pelo STF. No caso Rcl n. 32.722/MT (BRASIL,
2019), relativo à investigação de uma organização criminosa de tráfico
internacional de entorpecentes, houve o reconhecimento de dúvidas
sobre a confiabilidade do resultado de interceptação telefônica e
telemática. Discutia-se, assim, independentemente da validade e da
legitimidade da realização da interceptação, se era adequado o acesso
pela defesa aos dados interceptados em sua forma autêntica, integral
e original.

Mais especificamente, havia suspeitas de que a autoridade


policial teria alterado os arquivos que retratavam a transcrição de
mensagens trocadas entre os investigados, substituindo os números
de identificação originalmente indicados pelos nomes dos supostos
emissores e destinatários das mensagens. A corte reconheceu, assim,
a existência de uma dúvida concreta sobre a fidedignidade dos
dados apresentados pela polícia, reafirmando à defesa, em razão da
necessidade de registro e preservação adequada da cadeia de custódia,
o acesso integral ao material informativo, tal qual originalmente
colhido.21

21
Registra-se que, na ocasião, o Ministro Edson Fachin proferiu voto divergente no sentido
de que a possível alteração mencionada não representaria impactos à confiabilidade ou
à autenticidade dos meios de prova, tendo em vista que todo o seu conteúdo havia sido
disponibilizado à defesa dos investigados tal como colhidos na interceptação. Segundo
a distinção que ali se fez, se havia dúvidas quanto à transcrição realizada, inexistiam
suspeitas sobre o conteúdo propriamente dito.

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Nota-se, assim, uma contínua preocupação legislativa, doutrinária


e jurisprudencial com a correta preservação da cadeia de custódia,
como elemento necessário à concreta efetivação do devido processo
legal. Em relação aos dados digitais, essas disposições são ainda mais
significativas, tendo em vista a inexistência de regulamentação legal
específica e mesmo de consenso sobre as práticas e formas corretas
de sua preservação.

Em relação aos elementos informativos resultantes de


investigações jornalísticas realizadas no exercício legítimo da
liberdade de imprensa, seu aproveitamento no processo penal deve
cercar-se de cuidados adicionais, visto que não atendem, a princípio,
características próprias da investigação criminal (supervisão judicial,
reserva de jurisdição, contraditório, registro da cadeia de custódia).
Essas peculiaridades devem, portanto, guiar os standards racionais e
argumentativos de decisão nos momentos de admissão e valoração
dos dados e das informações colhidas como meios de prova em um
processo penal. A liberdade de imprensa deve mesmo ser ampla, mas
a internalização de seus documentos e de sua produção informativa no
processo penal deve se guiar por critérios que garantam a identidade,
a integridade e a autenticidade daquilo que se admitir como meio de
prova.

5 CONCLUSÃO

Em um processo penal democrático, a busca da verdade


processual não pode se dar a qualquer custo, sob pena de invalidação
de seus próprios resultados (CONDE, 2003, p. 112). Os limites formais e
materiais que se colocam derivam da necessidade de que a eficiência da
tutela penal estatal se alinhe à observância dos direitos fundamentais.
Esses variados aspectos são dinâmicos e acompanham as mudanças
sociais que se enfrentam. Assim é que os meios de investigação criminal

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ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

e os direitos fundamentais que o limitam atualizam-se constantemente,


influenciando-se reciprocamente.

A essas constatações, somam-se ainda as limitações


epistemológicas que a produção probatória intrinsecamente assume,
contexto em que a busca da verdade processual é sempre aproximativa,
levando a distintos graus de probabilidade dos fatos investigados,
esclarecidos em procedimento dialético que permita o contraditório
efetivo na verificabilidade das hipóteses acusatórias e defensivas.
Assim, a busca de um procedimento válido é um dos elementos que
confere justiça à própria decisão, ao permitir a “apuração confiável dos
fatos relevantes do caso” (TARUFFO, 1997, p. 319-320, tradução nossa).

Nesse contexto, a utilização de dados pessoais no processo


penal é medida necessária, mas que deve se cercar de cuidados
peculiares. A promoção de uma persecução penal estatal eficiente é
objetivo adequado à limitação da proteção dos dados pessoais, desde
que obedecidos os critérios constitucionais e legais, que indicam a
necessidade de uma intervenção limitada, pontual e justificada.

Em relação aos dados digitais, em atendimento a dificuldades


inerentes que sua preservação apresenta, também a documentação de
sua cadeia de custódia deve guiar a atuação dos órgãos de persecução
penal, a fim de que se garanta a integralidade e a autenticidade dos
documentos e elementos de informação colhidos. Adicionalmente,
quando derivem de dados compartilhados a partir de investigações
jornalísticas, a admissão e a utilização dessas informações como meios
de prova no processo penal aportam a necessidade de cumprimento
de um mais elevado ônus argumentativo, tendo em vista que sua
produção ocorre sem contraditório ou supervisão judicial, por meios
não oficiais de investigação.

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Sem descuidar da necessidade de que essas investigações


jornalísticas sejam protegidas no âmbito da liberdade de imprensa, sua
utilização no processo penal deve considerar as peculiaridades que
envolvem, a partir de distintos standards racionais e argumentativos
de decisão nos momentos de admissão e valoração dos dados e
das informações colhidas. A garantia de identidade, integridade e
autenticidade dos meios de prova admitidos é medida essencial à
consecução de um procedimento válido que busque uma decisão justa.

Ainda que esses valores pareçam contraditórios, deve-se buscar


um equilíbrio que promova a tutela penal eficiente e a proteção dos
direitos fundamentais dos investigados. Essa é a empreitada contínua
a que se dedica o processo penal democrático, que cotidianamente se
modifica e deve se atualizar.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 69-107, jan./jul. 2022. 97


ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

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TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA


PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL
WOMEN TRAFFICKING FROM BRAZIL TO ITALY FOR
SEXUAL EXPLOITATION

CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD


Graduado em Direito pela Faculdade de Direito na Universidade Federal
de Minas Gerais – UFMG. Mestrado e doutorado em Ciências Penais
pela UFMG. Pós-doutor pela Universidade de Michigan. Juiz federal –
Justiça Federal Seção Judiciária de Minas Gerais. Professor associado da
Faculdade de Direito da UFMG, onde também atua como coordenador
da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas. Leciona no mestrado
profissional da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de
Magistrados – Enfam na área no Direito e Processo Penal. Experiência na
área de administração da Justiça, além de atuar na formação de juízes,
certificado pela École Nationale de la Magistrature, na França.
https://orcid.org/0000-0003-4401-3439

RESUMO

O Relatório de 2021 sobre tráfico de pessoas, elaborado pelo governo


americano, coloca Brasil e Itália no mesmo nível no enfrentamento do
crime. Os dois países não atenderam totalmente aos padrões mínimos
para a eliminação do tráfico, embora estejam fazendo esforços
significativos nesse sentido. O presente artigo mostra como está
estruturada a legislação criminal relacionada ao tráfico de pessoas em
ambos os estados e analisa ações penais da Justiça Federal brasileira
que tenham como vítimas mulheres traficadas para exploração sexual
com destino à Itália. A amostra de processos é avaliada com base no
tempo de tramitação, nos resultados dos julgamentos e nas penas
aplicadas. Apura-se que há grande morosidade na tramitação dos

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 109-143, jan./jul. 2022. 107
CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD

processos criminais, maior número de condenações do que absolvições


de acusados, majoritariamente do sexo masculino, com imposição de
penas privativas de liberdade, em regra, superiores a quatro anos.
As conclusões do Relatório de 2021 são parcialmente confirmadas
e demonstram a necessidade de se aprimorar o sistema de Justiça
Criminal brasileiro, especialmente no tocante à duração do processo.

Palavras-chave: tráfico de pessoas; Brasil; Itália; persecução penal.

ABSTRACT

The 2021 Report on Trafficking in Persons, made by the US government,


places Brazil and Italy on the same level in the fight against the crime.
The two countries have not fully met the minimum standards for the
elimination of trafficking, although they are making significant efforts
in this regard. This article shows how the criminal legislation related
to human trafficking is structured in both States and analyzes criminal
cases from the Brazilian Federal Justice that have women as victims
trafficked for sexual exploitation to Italy. The sample of cases is
evaluated based on the processing time, the results of the judgments
and the punishment applied. It concludes that there is a great delay
in the processing of criminal cases, a greater number of convictions
than acquittals of defendants, mostly male, with sentences, as a rule,
of more than four years in jail. The conclusions of the 2021 Report are
partially confirmed and demonstrate the need to improve the Brazilian
criminal justice system, especially regarding to the length of the cases.

Keywords: human trafficking; Brazil; Italy; criminal prosecution.

Recebido: 14-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

108 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 109-143, jan./jul. 2022
TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 Marco legal. 3 Metodologia da coleta de dados.


4 Processos com vítimas destinadas à Itália. 5 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Tier 21.

Este é o ponto comum que une Brasil e Itália quando se trata


de tráfico de pessoas. Todos os anos, o Departamento de Estado dos
Estados Unidos elabora um relatório em que apresenta a situação do
enfrentamento do tráfico de pessoas em mais de uma centena de países.
O último documento divulgado – 2021 Trafficking in Persons Report –
colocou Brasil e Itália no mesmo patamar, haja vista que os governos
dos dois países não atenderam totalmente os padrões mínimos para a
eliminação do tráfico, embora estejam fazendo esforços significativos
nesse sentido (UNITED STATES OF AMERICA, 2021, p. 52).

O relatório classifica os países em um dos quatro níveis


(tiers), conforme determina o Trafficking Victims Protection Act of
2000 – TVPA. Essa colocação não se baseia no tamanho do problema
de um país, mas na extensão dos esforços do governo para atender aos
padrões mínimos da TVPA para a eliminação do tráfico de pessoas, que
geralmente são consistentes com o Protocolo de Palermo (UNITED
NATIONS CONVENTION AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED
CRIME, 2004). O Protocolo da Organização das Nações Unidas –
ONU alcançou ratificação quase universal, totalizando 178 partes
aderentes. Sua implementação resultou em capacidade aprimorada
para detectar, processar e prevenir o tráfico de pessoas em toda a
comunidade internacional. Ao longo da última década, melhorias

1
Nível 2

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 109-143, jan./jul. 2022 109
CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD

marcantes na estrutura legislativa foram registradas, particularmente


nas Américas, Ásia e Oriente Médio (UNITED NATIONS OFFICE ON
DRUGS AND CRIME, 2021, p. 23).

O governo americano monitora o cumprimento do tratado


internacional por outros estados, colocando-os em classificação
de quatro níveis, que tem consequências para seus orçamentos de
ajuda externa, em relação às alíquotas de impostos que se aplicam
às importações ou sobre os investimentos estrangeiros (HALLEY
et al., 2006, p. 335).2 Do lado do governo italiano, o relatório concluiu
que se aumentou o financiamento de campanhas de prevenção e
conscientização do tráfico de trabalhadores em comparação com
o ano anterior; treinaram-se mais policiais e se adotaram novos
decretos, que revogaram em grande parte os decretos de 2018, os
quais afetavam a proteção humanitária para requerentes de asilo,
elevando a vulnerabilidade ao tráfico (UNITED STATES OF AMERICA,
2021, p. 310). Da parte do governo brasileiro, o relatório constatou
que se obtiveram condenações finais para três traficantes sexuais e
condenações iniciais para seis traficantes de mão de obra escrava,
como também se desenvolveram novas orientações abrangentes para
identificar e prestar assistência a vítimas de trabalho escravo, incluindo
aquelas afetadas pelo tráfico (UNITED STATES OF AMERICA, 2021,
p. 135). No entanto, em ambos os países recomenda-se investigar e
processar vigorosamente os casos de tráfico, incluindo no Brasil os que
envolvem turismo sexual infantil, e condenar e sentenciar os traficantes
com penas de prisão significativas (UNITED STATES OF AMERICA,
2021, p. 136, 310).

2
Há também a preocupação de que os relatórios estejam sendo politizados pelos
Estados Unidos, classificando os países com base no fato de serem ou não aliados, pelo
menos até certo ponto. Por exemplo, o relatório TIP de 2004 promoveu a Indonésia,
que é um aliado na guerra contra o terrorismo, do Nível 3 para o Nível 2, e rebaixou a
Venezuela, com quem os Estados Unidos têm relações tensas, do Nível 2 para o Nível
3, apesar de nenhuma mudança ter ocorrido nas práticas dos dois países. Vide Chuang
(2006, p. 482).

110 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 109-143, jan./jul. 2022
TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

O enfrentamento do tráfico de pessoas encontra-se na


intersecção de uma série de questões controversas: a perda da
soberania do Estado nacional e a transferência do poder para níveis
superiores e inferiores; o aumento da ameaça do crime organizado
transnacional; a regulamentação da imigração e do trabalho informal;
o combate à violência e à discriminação contra as mulheres; o controle
da prostituição e do trabalho sexual; e o patrulhamento das fronteiras
do Estado (WESTMORLAND, 2010). Nesse contexto, certas condições
sociais predizem quando é provável que o tráfico ocorra. Os indicadores
mais significativos incluem pobreza, agitação social, corrupção
governamental, mercado de trabalho, superpopulação, incapacidade
de migrar legalmente e ignorância quanto à possibilidade de ser
traficado (FAHEY, 2009, p. 355; CÂNDIDO, 2021, p. 61). É difícil distinguir
empiricamente entre tráfico e migração e parece improvável que o
problema do tráfico seja resolvido sem abordar os impulsionadores da
migração internacional (RAO; PRESENTI, 2012, p. 234).

Muitos daqueles que tentam lidar com esse fenômeno


multifacetado são os primeiros a reconhecer que o “problema” não
pode ser “resolvido” quando colocado apenas em termos de delitos
cometidos por criminosos organizados. Antes, é preciso considerar
o tráfico de pessoas como “problema social” (SPECTOR; KITSUSE,
2001). O tráfico de mulheres para exploração sexual – objeto deste
estudo – pode ser entendido através das lentes de vários
enquadramentos, entre eles: Direitos Humanos, criminalidade, imigração,
trabalho, gênero e política de prostituição. Entre educação, prevenção,
proteção e persecução, a prioridade talvez não deva centrar-se nesta
última, que surge tardiamente, quando a vítima foi lesada.

De qualquer forma, a repressão penal faz parte do arsenal de


instrumentos postos à disposição dos estados para enfrentar e reduzir
a ocorrência da prática ilícita. Da perspectiva da justiça criminal, os

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CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD

esforços precisam se concentrar na coleta de dados para uso da


inteligência investigativa, na persecução de traficantes e na dissolução
das organizações e redes criminosas envolvidas no tráfico de pessoas
(DIRIENZO; DAS, 2017, p. 285). O presente trabalho é necessariamente
estrito, pois enfoca exclusivamente o aspecto criminal do tráfico de
mulheres, em oposição a todas as pessoas. Situa-se na persecução
penal, com o objetivo de analisar se as conclusões do Departamento
de Estado americano, especificamente em relação ao sistema de
Justiça brasileiro, são consistentes com o que tem sido praticado no
meio forense. Para isso é examinada a base de dados que engloba
processos de tráfico internacional para fins de exploração sexual de
mulheres, tendo por foco os casos em que o crime se direcionou ao
território italiano.

Em primeiro lugar, o marco legal do tráfico de pessoas no Brasil


e na Itália é apresentado, a fim de verificar se, a despeito da posição
equivalente no 2021 Trafficking in Persons Report, a regulamentação
do tema, em ambos os países, possui contornos similares e aderência
ao Protocolo de Palermo. Em seguida, examina-se a base de dados
de ações penais na Justiça Federal, que contém informações sobre o
tráfico internacional de pessoas envolvendo Brasil-Itália. A exposição
da metodologia da coleta de dados antecede a apresentação dos
principais achados. Por fim, conclui-se o trabalho com a discussão
sobre os resultados obtidos.

2 MARCO LEGAL

Uma razão pela qual tem sido difícil medir o tráfico de pessoas
é porque, até o início do século, havia pouca concordância sobre
como defini-lo. No começo da década de 1990, o tráfico era visto
principalmente como forma de contrabando de pessoas e tipo de
migração ilegal (LACZKO; GRAMEGNA, 2003, p. 180). O Protocolo de

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TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

Palermo foi elaborado em 2000, como emenda à Convenção sobre


o Crime Organizado Transnacional (UNITED NATIONS CONVENTION
AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2004)3. Seu objetivo
era salvaguardar os direitos das vítimas de tráfico e tratá-las da mesma
forma que os cidadãos dos países ou lugares para os quais foram
traficadas, isto é, para garantir formalmente a assistência e a denúncia
por parte delas independentemente de sua nacionalidade (CÂNDIDO,
2021, p. 59). Os estados-partes comprometem-se a prevenir e combater
o tráfico de pessoas, proteger e assistir as vítimas do tráfico e promover
a cooperação entre os estados para atingir esses objetivos.

Enquanto o Protocolo de Palermo (UNITED NATIONS


CONVENTION AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2004)
corta a existência de qualquer ligação necessária entre prostituição e
tráfico, não nega a existência de relação especial entre eles. Assim, nos
termos do art. 3º, a prostituição e outras formas de exploração sexual
são especificamente incluídas ao lado do trabalho forçado e de práticas
análogas à escravidão. Além disso, o foco especial autoimposto do
protocolo sobre mulheres e crianças pode ser lido, dada a dinâmica da
atividade de prostituição, para apoiar a existência de conexão implícita
em andamento (MUNRO, 2006, p. 326).

O Brasil inclui-se entre aqueles países que sofreram influência


do Protocolo de Palermo, tendo alterado a legislação doméstica há
pouco mais de um lustro. Encontra-se em vigor a Lei n. 13.344/2016
(BRASIL, 2016), que revogou os arts. 231 e 231-A do Código Penal e
criou o art. 149-A, com o objetivo de adequar a legislação interna ao
documento internacional. A nova lei preocupa-se com a prevenção e a
repressão ao tráfico de pessoas, além de dispor sobre a assistência às

3
O Protocolo de Palermo, como a Convenção sobre Crimes Transnacionais da qual faz
parte, foi inegavelmente bem-sucedido em obter acordos entre países do Norte e
do Sul, do Primeiro ao Terceiro Mundo, da demanda, oferta e países de trânsito. Vide
Nelken (2010, p. 481).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 109-143, jan./jul. 2022 113
CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD

vítimas. Relativamente à esfera penal, o crime ganhou maior amplitude,


passando a compreender não só a exploração sexual – como era
tratado pelos artigos revogados – mas também contemplando os
casos de remoção de órgãos, trabalho em condições análogas às de
escravo, qualquer tipo de servidão e adoção ilegal. O art. 149-A também
prevê os meios e as formas pelos quais a vítima é traficada: coação,
ameaça, emprego de violência, fraude ou abuso, como elementos do
tipo penal e não apenas como circunstâncias qualificadoras (SOUZA,
2018, p. 267). Com a nova incriminação, passou-se a exigir, além da
conduta típica, a incidência de um dos meios elencados na norma, de
maneira que se tornou imprescindível para a incriminação do agente a
verificação do consentimento do sujeito passivo. Atualmente, entende-
se que o consentimento válido afasta a tipicidade delitiva (SIFUENTES,
2019, p. 44; ANDRADE; ESBERARD, 2021, p. 80; SIQUEIRA; MURATORI;
MARQUES, 2021, p. 111). Portanto, o tráfico internacional de pessoas
consiste em crime único, variando apenas o tipo de exploração a que
se destina. A violência, a ameaça e a fraude tornaram-se elementos
constitutivos, isto é, condição necessária para que se caracterize. E
é dispensável a exigência de movimento, pois pode haver tráfico de
pessoas, por exemplo, com a finalidade de exploração sexual ou laboral
de alguém na mesma localidade onde sempre viveu (HADDAD, 2019,
p. 163).

O tráfico de pessoas foi inserido ao lado do delito de redução à


condição análoga à de escravo, previsto no art. 149 do Código Penal
(BRASIL, 1940), a exemplo do que sucede no ordenamento italiano.
No país peninsular, o tráfico de pessoas (tratta di persone) tem que
ser analisado em conjunto com o crime de redução ou manutenção
em escravidão ou servidão (riduzione o mantenimento in schiavitu o
in servitu) e de compra e venda de escravos (acquisto e alienazione di
schiavi), uma vez que, na prática, estão interligados. Os crimes foram
trazidos pela Lei n. 228/2003 (ITALIA, 2003), cujo núcleo principal
consiste na alteração dos arts. 600, 601 e 602 do Código Penal italiano

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TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

(ITALIA, 1930). As três infrações fazem parte da Seção I – crimes contra


a pessoa – do Capítulo III, referente aos delitos contra a liberdade
individual. Em razão disso, há regra específica que faz com que os
prazos de prescrição sejam contados em dobro (art. 157, 6º comma)
(ITALIA, 1930).

Em 2010, foi editada a Lei n. 108 (ITALIA, 2010), que inseriu o


art. 602-bis, modificando as circunstâncias que implicam o aumento
das penas no caso de tráfico humano. Em seguida, a definição da
conduta típica foi ampliada pelo Decreto Legislativo n. 24/2014
(ITALIA, 2014), que também regula o direito à indenização das vítimas.
Ambas as produções legislativas são resultantes da implementação, no
ordenamento jurídico italiano, de tratados internacionais: a Convenção
de Varsóvia e a Diretiva n. 2011/36/EU, respectivamente (ITALIA,
c2018, p. 1).

O tráfico de pessoas na Itália, previsto no art. 601, possui pena


de reclusão de 8 a 20 anos. A conduta típica consiste em introduzir no
Estado ou transferir para fora dele seres humanos, ceder a posse sobre
alguém, admitir em sua propriedade pessoas que estão nas condições
análogas às de escravo definidas pelo art. 600 do Código Penal (ITALIA,
1930), mediante engano, violência, ameaça, abuso de autoridade ou
tirar proveito de situação de vulnerabilidade, inferioridade física, mental
ou necessidade, ou por promessa ou outorga de dinheiro ou outras
vantagens à pessoa que tem autoridade sobre ela(s), a fim de induzi-
la(s) ou forçá-la(s) a realizar atividade laboral, sexual ou mendicância,
atividades ilegais ou coleta de órgãos.

Comparativamente ao sistema brasileiro, o modelo italiano prevê


maior número de meios para se praticar o crime, sendo expresso em
mencionar situação de vulnerabilidade, inferioridade física, mental ou
necessidade, circunstâncias não positivadas em nosso Código Penal.

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CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD

Lá, também existe expressa previsão de que igual penalidade se aplica


a qualquer pessoa que, mesmo ausente os meios referidos em lei,
realize a conduta prevista contra menor de idade. Essa regra não faz
parte do ordenamento nacional.

Diferentemente do Brasil, o sistema italiano prioriza a tutela de


seres humanos em comparação com a proteção da saúde pública.
Segundo o art. 73 do testo unico stupefacenti (ITALIA, 2022), aquele
que pratica o tráfico de drogas é punido com penas que variam de 6 a
20 anos, além de multa que vai de 26.000 a 260.000 euros. No Brasil, a
exemplo do que sucede em muitos países, o tráfico de drogas é punido
mais severamente do que o tráfico de pessoas. Para aquele, as penas
variam de 5 a 15 anos (art. 33 da Lei n. 11.343/2006) (BRASIL, 2006),
ao passo que para este limitam-se a 4 a 8 anos de reclusão. Nessas
circunstâncias, não seria surpresa que o tráfico de pessoas se tornasse
o crime internacional predileto, haja vista que a análise risco/benefício
penderia a favor do agente criminoso. Estranhamente, pune-se com
mais severidade quem trafica substâncias entorpecentes do que quem
trafica seres humanos.

A Lei n. 228/2003 (ITALIA, 2003) estabeleceu a criação do fondo


per le misure anti-tratta, correspondente a fundo de financiamento
de programas de assistência social e integração em prol de vítimas
do crime e outras finalidades de proteção social referidas no art. 18
da Lei Consolidada de Imigração (Decreto Legislativo n. 286/1998)
(ITALIA, 1998). Implementou-se programa de assistência especial às
vítimas da escravidão e do tráfico de pessoas, a fim de assegurar, de
forma transitória, condições adequadas de acomodação, alimentação
e assistência à saúde, sem prejuízo da aplicação das disposições
humanitárias referidas no art. 18 da Lei Consolidada de Imigração, se
a vítima for pessoa estrangeira.4 Outrossim, houve o estabelecimento

4
A implementação do programa de assistência foi dada pelo D.P.R. 19 de setembro de
2005, n. 237 (ITALIA, 2005).

116 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 109-143, jan./jul. 2022
TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

de políticas especiais de cooperação para os países afetados pelos


crimes, a serem implementadas pelo Ministério das Relações Exteriores,
por meio de reuniões internacionais e campanhas de informação nos
países de origem das vítimas.

No Brasil, a Lei n. 13.344/2016 (BRASIL, 2016) previu a proteção


e o atendimento à vítima direta ou indireta do tráfico de pessoas, com
o fornecimento de assistência jurídica, social, de trabalho e emprego e
de saúde; acolhimento e abrigo provisório; preservação da intimidade
e da identidade; prevenção à revitimização no atendimento e nos
procedimentos investigatórios e judiciais; atendimento humanizado;
e informação sobre procedimentos administrativos e judiciais. É
concedida residência permanente às vítimas de tráfico de pessoas no
território nacional, independentemente de sua situação migratória e
de colaboração em procedimento administrativo, policial ou judicial. O
visto ou a residência permanente poderão ser concedidos, a título de
reunião familiar, a cônjuges, companheiros, ascendentes e descendentes;
e a outros membros do grupo familiar que comprovem dependência
econômica ou convivência habitual com a vítima. Contudo, embora
preveja várias formas de proteção às vítimas, a lei “não traz uma linha
sequer sobre qual será o órgão responsável pela sua execução, nem
tampouco cuida da destinação de recursos orçamentários para essa
finalidade” (SIFUENTES, 2019, p. 42).

A Itália foi um dos países que levou mais tempo na Europa antes
de se adequar às diretrizes da União Europeia ou internacionais em
matéria de tráfico de pessoas (NELKEN, 2008, p. 299). Da mesma
forma, segundo Nelken (2008), chegando mais especificamente ao
tipo de proteção legal prevista pelo Protocolo de Palermo (UNITED
NATIONS CONVENTION AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED
CRIME, 2004), o sistema de justiça criminal da Itália não é muito
vitimista-orientado, e seu movimento de apoio às vítimas não é tão
bem desenvolvido quanto o de outros países ocidentais. Em parte,

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 109-143, jan./jul. 2022 117
CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD

como resultado da influência da cultura católica, na Itália, muitas


vezes, espera-se que as vítimas “perdoem” em vez de pedir vingança
(NELKEN, 2010, p. 505), a exemplo do que também parece ocorrer
no Brasil. Da mesma forma, como uma “sociedade estatal”, punir é
considerado algo a ser realizado no “interesse geral” pelo “Estado”.
Em contraste, em muitos países protestantes, com sua ideia “liberal”
de Estado, as vítimas são colocadas em pedestal como representantes
da “comunidade” para cuja defesa o Estado/governo justifica sua
existência (NELKEN, 2000).

Porém o regime doméstico desenvolvido na Itália parece,


pelo menos à primeira vista, ter sido influenciado por impulso mais
humanitário. O art. 18 do Decreto Legislativo n. 286/1998 (ITALIA, 1998)
tem desempenhado papel central neste domínio, disponibilizando às
vítimas de tráfico procedimentos de residência temporária ou mesmo
permanente, bem como apoio social. Esta disposição, que se estende
a qualquer cidadão estrangeiro que se encontre em situação de abuso
e cuja segurança esteja ameaçada, habilita as vítimas a participar de
programa de assistência social e integração oferecido por grupos de
Organizações não Governamentais – ONGs locais ou por autoridades
públicas (MUNRO, 2006, p. 319).

Assim, há duas características marcantes da resposta italiana.


Em primeiro lugar, a criação de delito específico para repressão do
tráfico no âmbito do regime penal interno teve desenvolvimento
relativamente tardio: a Lei n. 228/2003 (ITALIA, 2003) inseriu no
Código Penal, pela primeira vez, infração específica de tráfico de
pessoas e trouxe nova definição de redução à escravidão. No Brasil,
aqui se registra, desde 1940, a previsão do crime de tráfico de
mulheres para fins de prostituição, que evoluiu mais recentemente
para vítimas indistintas exploradas para variadas finalidades. Em
segundo lugar, o acesso ao art. 18 na Itália não depende da vontade
da vítima de participar de qualquer tipo de processo criminal formal

118 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 109-143, jan./jul. 2022
TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

contra seus traficantes ou exploradores. Isso pode ser contrastado, por


exemplo, com a posição da Holanda, onde os regulamentos permitem
às vítimas de tráfico residência temporária apenas sob a condição de
sua cooperação nas investigações judiciais (MUNRO, 2006, p. 319-
20). Da mesma forma, tanto nos Estados Unidos quanto no Canadá
a grande maioria das mulheres que solicitam visto sob exceções
especiais de “vítima de tráfico” tiveram sua permissão negada para
permanecer no país (SHARMA, 2005, p. 104). O objetivo da aplicação
da lei, especialmente em países economicamente avançados, em regra,
é predominantemente focado em acabar com a migração ilegal, em
vez de garantir as chances de vida das vítimas do tráfico (NELKEN,
2010, p. 493). O Brasil segue a orientação italiana, pois a residência
permanente independe da cooperação da vítima com as autoridades
encarregadas da persecução penal.

3 METODOLOGIA DA COLETA DE DADOS

Uma vez exposto o marco legal do tráfico de pessoas no Brasil


e na Itália, procurou-se levantar processos em que o crime teve como
origem e destino das vítimas os dois países. Assim, seria possível
verificar como se opera na prática a regulamentação jurídica sobre o
tema e em que medida as conclusões do 2021 Trafficking in Persons
Report encontram ressonância no sistema de justiça nacional.

Os processos pesquisados tiveram por ponto de partida lista


fornecida pela Organização Internacional para Migrações – OIM,
composta por 612 feitos que tramitaram nas Justiças Estadual,
Federal e do Trabalho.5 Em regra, compete à Justiça Estadual julgar

5
A lista foi elaborada para produção do Relatório da Pesquisa de Avaliação de
Necessidades sobre o tráfico internacional de pessoas e crimes correlatos: mapeamento
de processos criminais, ainda não publicado. O relatório está inserido no Projeto
Fortalecimento das capacidades do sistema de Justiça para prevenir e julgar casos de
tráfico de pessoas e crimes relacionados no Brasil - executado pela OIM, em parceria
com CNJ, TRF3, Emag TRF3 e Ajufe.

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CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD

casos de tráfico de pessoas doméstico; à Justiça Federal incumbe o


julgamento de ações penais que envolvam tráfico internacional de
pessoas; a Justiça do Trabalho aprecia ações não penais em que o
tráfico intersecciona com relações de trabalho. A partir do rol de ações
penais e trabalhistas, examinou-se cada uma delas e se apurou que
79 processos criminais, em todo o Brasil, estavam relacionados ao
tráfico internacional de pessoas.

Optou-se por direcionar a análise aos casos de competência


da Justiça Federal, que abrangiam todo o país e se distribuíam entre
cinco tribunais regionais federais, por envolver o crime em contexto
internacional. A lista fornecida pela OIM era composta apenas por
processos que haviam tido julgamento em segunda instância, de forma
que não foram incluídas aquelas ações penais pendentes de sentença
ou de acórdão ou que transitaram em julgado em primeiro grau, sem
interposição de recurso. Outrossim, foram excluídos da análise todos
os processos que diziam respeito a medidas cautelares, habeas corpus
ou que não guardavam correlação com o crime de tráfico internacional
de pessoas. Além disso, os processos sob segredo de justiça, cujo
acesso era inviável, também não compuseram a base de julgados.

Para garantir que a pesquisa fosse o mais abrangente possível,


procurou-se complementar os 79 processos inicialmente identificados
com outros localizados no banco de dados dos tribunais regionais
federais. Cientes de que nem todos os acórdãos são disponibilizados
no banco de jurisprudência dos tribunais brasileiros, buscaram-
se processos com base nos termos “tráfico de pessoas”, “tráfico
internacional de pessoas” e “tráfico de mulheres”. Como resultado,
obtiveram-se mais 62 feitos criminais, que haviam sido julgados em
primeira e segunda instâncias.

Por fim, recorreu-se ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ, por


meio do Departamento de Pesquisas Judiciárias, que compartilhou

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TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

base de dados composta por 688 processos que tramitavam na Justiça


Federal, selecionados pelo assunto das Tabelas Processuais Unificadas
do CNJ. Adotou-se o mesmo procedimento anterior, excluindo-se os
processos que não se referiam a tráfico internacional de pessoas, os
que não constituíam ações penais, os que não foram encontrados
pela numeração fornecida, em segredo de justiça e aqueles que
estavam incorporados à base de dados que se formava. Ao final, foram
adicionados apenas três processos.

Chegou-se ao total de 144 ações penais.6 Deste total, havia


13 processos7 em que se constatou, na modalidade tentada ou
consumada, o tráfico de pessoas para a Itália, isto é, quase 10% do
acervo selecionado. Os processos não foram examinados em sua
integralidade, mas apenas as partes que estavam disponíveis nos
repositórios virtuais dos tribunais regionais federais.

Inicialmente, tencionava-se selecionar os processos criminais


que tramitaram nos últimos 10 anos. Tendo em vista a duração das
ações penais – como adiante se verá – alterou-se o recorte temporal
para compreender todos os acórdãos localizados nos últimos 20 anos.
Contudo, a busca nos bancos de jurisprudência retornou processos
ainda mais antigos e se optou por incluir todos aqueles que fossem
localizados, independentemente da data do crime.

Não foi possível analisar o impacto da introdução do art. 149-A ao


Código Penal, a partir de 2016, ano da alteração legislativa (Lei n. 13.344)

6
Do total de 144 ações penais, Espanha e Portugal estão na frente da Itália entre os três
países de destino preferencial das vítimas de tráfico sexual.
7
Fazem parte da base de dados as seguintes ações penais – AP: AP 010938-
84.2006.4.02.5001/ES; AP 0000743-68.2008.4.03.6124/SP; AP 0000754-98.2008.4.02.5001/
ES; AP 0004344-98.2001.4.01.3500/GO; AP 0001703-58.2007.4.03.6124/SP; AP 0016184-
56.2009.4.02.5001/ES; AP 0008164-81.2006.4.02.5001/ES; AP 0000063-10.2016.4.05.8400/RN;
AP 201050010005676/ES; AP 0022654-68.2004.4.01.3300/BA; AP 0018120-29.2005.4.01.3500/
GO; AP 0001749-77.2009.4.02.5001/ES; e AP 0015311-15.2000.4.01.3800/MG.

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(BRASIL, 2016), nos processos por tráfico de pessoas. Não se localizou


nenhum processo julgado em segunda instância cuja denúncia tenha
sido originalmente feita com fundamento no art. 149-A. Encontraram-se
apenas casos em que houve a aplicação, pelos tribunais, do art. 149-A
como lei mais favorável aos réus denunciados pelo art. 231 e 231-A.

Identificados os universos temporal e espacial, cada processo foi


analisado em dois aspectos: lapsos temporais e conteúdo das decisões.
A análise dos lapsos temporais possibilitou aferir o grau de eficiência de
todos os atores que tocam o processo, os pontos de estrangulamento
e o grau de celeridade/morosidade. Foram levantados os marcos
temporais mais importantes em cada processo: data de ocorrência
do crime; data de recebimento da denúncia; data da sentença; datas
dos recursos; data dos acórdãos; data do trânsito em julgado. Ao se
estudar o conteúdo das decisões procurou-se apurar os quantitativos
de condenações e absolvições e a medida das penas.

4 PROCESSOS COM VÍTIMAS DESTINADAS À ITÁLIA

A Itália apresenta campo de estudo único sobre esse tema, uma


vez que se tornou país de destino há relativamente pouco tempo (final
da década de 1970) e estava em transição de um país de emigração
para um de imigração. Além disso, a Itália tem sido frequentemente
considerada local de fronteiras permeáveis, que permitem fluxo
razoavelmente fácil de migração indocumentada para a União
Europeia – UE. No que diz respeito ao tráfico, é juntamente com a
Bélgica um dos poucos estados da UE a incluir cláusula específica nas
suas leis de migração que permite a proteção social e a legalização das
vítimas (ANDRIJASEVIC, 2003, p. 252).

O pequeno número de processos localizados – apenas 13 – talvez


se explique por variados fatores, a começar pela opção metodológica
de somente considerar processos de tráfico internacional julgados em

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TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

primeira e segunda instância. Grande obstáculo que impede a existência


de mais processos sobre tráfico de seres humanos é, obviamente,
a relutância das vítimas em pedir auxílio. Vivendo no submundo do
crime, diante da violência, sem passaporte ou dinheiro próprio, muitas
mulheres se sentem vulneráveis e não se arriscam em acionar a polícia
(SMARTT, 2003, p. 172; PENTEADO FILHO, 2020, p. 73). Assim, o tráfico
de pessoas segue como crime subnotificado para o qual a maioria dos
casos permanece desconhecida e em que se fazem ausentes dados
qualitativos e quantitativos (DIRIENZO; DAS, 2017, p. 282; DORNELAS,
2021, p. 139). Problemas não vistos costumam ser tratados como
problemas que não existem, e essa cifra oculta prejudica a elaboração
das políticas de segurança pública, pois a não comunicação dos crimes
impede que os dados estatísticos reflitam a realidade da situação e
que se promovam as respostas institucionais adequadas (CAETANO
et al., 2020, p. 650).

A falta de dados sobre a escala do tráfico também pode ser


atribuída à baixa prioridade dada ao enfrentamento pelas autoridades
em muitos países. A razão para a baixa priorização parece estar
ligada a dois fatores principais: primeiro, a legislação é muitas vezes
deficiente, inadequada ou não implementada, tornando muito difícil
e muitas vezes impossível processar os traficantes; segundo, as
condenações por tráfico são muitas vezes baseadas em testemunhas
e/ou depoimentos de vítimas. Esse testemunho é difícil de obter, pois
as vítimas de tráfico são deportadas como migrantes ilegais ou, se
identificadas como pessoas traficadas, muitas vezes têm medo de
testemunhar. Uma legislação inadequada, tanto para a acusação quanto
para a proteção de vítimas e testemunhas, significa que as autoridades
policiais muitas vezes preferem não processar os traficantes, sabendo
que muito esforço despendido raramente resulta em condenação
(LACZKO; GRAMEGNA, 2003, p. 183).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 109-143, jan./jul. 2022 123
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A OIM apontou para o fato de que relativamente poucos casos


estavam sendo processados, alegando que das cerca de 600.000 a
4 milhões de pessoas traficadas, identificadas, assistidas e protegidas,
em média, apenas 6.000 agentes são acusados com sucesso todos os
anos (ALBANO, 2009).

As estatísticas abaixo são estimativas derivadas de dados


fornecidos por governos estrangeiros e outras fontes e revisadas
pelo Departamento de Estado americano, responsável por produzir
o 2021 Trafficking in Persons Report. Os dados agregados variam de
um ano para o outro devido à natureza oculta dos crimes, eventos
globais dinâmicos, mudanças nos esforços de cada governo e falta de
uniformidade nas estruturas de relatórios nacionais (UNITED STATES
OF AMERICA, 2021, p. 60).

Tabela 1 - Dados globais de persecução penal

PROCESSOS
ANO CONDENAÇÕES VÍTIMAS
CRIMINAIS
2013 9.460 5.776 44.758
2014 10.051 4.443 44.462
2015 19.127 6.615 77.823
2016 14.939 9.072 68.453
2017 17.471 7.135 96.960
2018 11.096 7.481 85.613
2019 11.841 9.548 118.932
2020 9.876 5.271 109.216
Fonte: Trafficking in Persons Report (2021)

Analisando os números globais, surge a indagação de como é o


desempenho dos órgãos responsáveis por aplicar a lei penal no Brasil.
Qual é o percentual de processos, condenações e vítimas existentes
no sistema de justiça criminal brasileiro, comparado com o resto do
mundo? A pequena amostra de casos envolvendo vítimas com destino
à Itália pode trazer algumas luzes sobre isso.

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TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

Ao todo, como dito anteriormente, há 13 processos, na


modalidade tentada ou consumada, em que houve tráfico de pessoas
para a Itália. Da leitura das decisões disponíveis em consulta pública,
apurou-se a existência de 57 vítimas, todas mulheres brasileiras,
sendo duas menores de idade. Laczko (2005, p. 8) constatou que
50% da literatura sobre tráfico abordava o tráfico de mulheres e
meninas, fato que se reflete na predominância de informações sobre
o tráfico de mulheres na base de dados utilizada para este estudo.
Segundo Gueraldi e Dias (2012, p. 70), aproximadamente 80% das
pessoas traficadas são mulheres de baixa instrução e renda.

Quase metade das ações foram distribuídas no Estado do Espírito


Santo (seis processos). Os demais processos são de Goiás e São Paulo,
com dois processos cada, e da Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do
Norte, com uma ação por estado.

Gráfico 1 - Tráfico internacional de pessoas por estado

Fonte: elaboração própria

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Pensando na distribuição por Tribunal Regional Federal, nota-


se que há processos em todos os tribunais federais, exceto no TRF4.
Encontraram-se quatro processos no TRF1; seis processos no TRF2;
dois processos no TRF3; e um processo no TRF5.

Gráfico 2 - Tráfico internacional de pessoas por tribunal

Fonte: elaboração própria

Nos 13 processos analisados, foram denunciadas 28 pessoas,


sendo 20 homens e oito mulheres. Em todos os processos, a denúncia
foi oferecida pela prática do crime previsto no art. 231 do Código
Penal (BRASIL, 1940), isto é, com a finalidade de exploração sexual.
Em cinco feitos, o julgador concluiu pelo cometimento do crime
pelo simples fato de haver aliciamento, promoção ou facilitação da
entrada ou saída de pessoas do território nacional para exercício da
prostituição, independentemente do emprego de algum meio. Nos
demais processos, foi possível identificar um ou mais meios para o

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TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

cometimento das infrações. O principal meio utilizado foi o abuso de


situação de vulnerabilidade, presente em seis processos. Em seguida,
aparece a fraude, verificada em cinco ações, a despeito de, na vigência
do art. 231, esse meio funcionar como figura qualificadora do delito.

Em relação aos crimes denunciados, nota-se que os delitos


correlatos mais comuns são os dos arts. 230 e 288, ambos do Código
Penal. Tais crimes foram objeto da denúncia em sete processos cada.

Gráfico 3 - Delitos correlatos ao tráfico internacional de pessoas

Fonte: elaboração própria

Na primeira instância, 11 réus foram condenados, dentre eles, dez


homens e uma mulher. A condenação parcial (ou seja, por pelo menos
um dos crimes da denúncia) foi medida imposta a nove réus, sendo seis
homens e três mulheres. Oito réus, quatro homens e quatro mulheres,
foram absolvidos na sentença.

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Gráfico 4 - Sentenças de tráfico internacional de pessoas

Fonte: elaboração própria

Observa-se que, proporcionalmente, mais homens são


condenados. A condenação total foi medida imposta a 50% dos réus
do sexo masculino, ao passo que apenas 12,5% das mulheres foram
totalmente condenadas. De maneira oposta, no tocante às absolvições,
mais mulheres são absolvidas; 50% das rés foram absolvidas na
sentença, ao passo que apenas 20% dos homens foram absolvidos.

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TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

Gráfico 5 - Sentenças por gênero dos réus

Fonte: elaboração própria

Nos 13 processos, houve recurso aos TRFs. Em quatro processos


o recurso foi de ambas as partes, em um processo o recurso foi apenas
do Ministério Público Federal e, em oito processos, apenas o réu
recorreu. Em quatro ações, os recursos não ensejaram mudança da
sentença. Em nove processos, a sentença foi parcialmente alterada,
havendo mudança na dosimetria da pena privativa de liberdade ou
da multa, correção de erros materiais ou, ainda, reconhecimento da
prescrição para algum dos crimes objeto da condenação. Em nenhum
caso houve reforma completa da sentença.

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Gráfico 6 - Apelações de tráfico internacional de pessoas

Fonte: elaboração própria

Analisando o índice de êxito recursal, observa-se que, dos cinco


apelos de autoria do órgão ministerial, em três houve atendimento
a pelo menos parte dos pedidos recursais, resultando em reforma
parcial da sentença. Em relação aos recursos interpostos pelos réus,
seis apelações não redundaram em sucesso. Em seis ações, as razões
recursais dos acusados foram pelo menos parcialmente atendidas, o
que resultou na reforma parcial da sentença.

Importante salientar que em apenas dois processos houve a


interposição de recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça, ambos
da parte ré, porém eles ainda não foram julgados. Não se identificou
nenhum recurso direcionado ao Supremo Tribunal Federal.

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TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

Em relação aos resultados transitados em julgado, nove réus


foram definitivamente condenados por todos os crimes denunciados;
cinco réus foram condenados por pelo menos um dos crimes objeto da
denúncia; sete réus foram completamente absolvidos; e ainda há sete
réus aguardando julgamento.

Gráfico 7 - Decisões definitivas de tráfico internacional de pessoas

Fonte: elaboração própria

Analisando apenas o resultado transitado em julgado para os réus


do sexo masculino, percebe-se que oito homens foram condenados
definitivamente por todos os crimes pelos quais foram denunciados.
Três réus foram condenados por pelo menos um dos crimes objeto da
denúncia. Quatro homens foram completamente absolvidos. Ainda há
cinco réus do sexo masculino aguardando julgamento definitivo. No
tocante às mulheres, percebe-se que apenas uma ré foi condenada
definitivamente por todos os crimes denunciados. Duas rés foram
condenadas parcialmente; três rés foram completamente absolvidas
e, para três mulheres, ainda não houve trânsito em julgado. Mais uma

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vez se percebe que o percentual de homens condenados supera o


percentual de mulheres condenadas e o de mulheres absolvidas supera
o de homens absolvidos.

Gráfico 8 - Decisões definitivas por gênero dos réus

Fonte: elaboração própria

Ao todo, 14 réus foram condenados a penas privativas de liberdade.


Apenas um foi beneficiado pela substituição por sanção restritiva de
direitos. Desses réus, 12 foram condenados a penas totais superiores
a quatro anos. Para seis acusados não foi possível verificar a pena
cominada para cada crime, uma vez que, das decisões disponibilizadas
para consulta, apenas constavam as penas totais. Esses casos foram
desconsiderados no cálculo da média e da mediana das penas por
crime, mas foram considerados no cálculo das penas totais. Não foi
calculada a moda, tendo em vista o conjunto ser pequeno e não haver
penas iguais em maior frequência.

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TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

Tabela 2 - Duração das penas

Média Mediana
Art. 231 do 47,42 meses 48 meses
CP

Art. 288 do 20 meses 24 meses


CP

Art. 230 do 23,5 meses 21,5 meses


CP

Pena total 96,85 meses 72,5 meses

Fonte: elaboração própria

No tocante ao crime previsto no art. 231 do Código Penal (BRASIL,


1940), percebe-se que as penas variaram de um ano e quatro meses
de reclusão (na modalidade tentada) a seis anos, um mês e dez dias
de reclusão. Para 13 dos 14 condenados, houve também imposição de
pena de multa.

Por fim, no que diz respeito à duração processual, apurou-


se que a maior parte do tempo de tramitação do processo se
concentra no período entre o recebimento da denúncia e a sentença
(967 dias), seguido do período investigativo – entre a data do fato e o
recebimento da denúncia (956 dias) – e, em terceiro lugar, no período
entre a sentença e o acórdão (699 dias). Ressalva-se que o período de
tramitação no STJ não foi computado, uma vez que os processos no
referido tribunal ainda não foram julgados, impossibilitando o cálculo
do tempo de tramitação total.

O tempo médio de tramitação da persecução penal, a contar da


data do crime até o trânsito em julgado, corresponde a 3.642 dias,

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 109-143, jan./jul. 2022 133
CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD

o que equivale a pouco menos de dez anos.8 Se o efeito dissuasivo


do Direito Penal é notoriamente expresso em termos da relação
entre o ganho esperado com o crime, e a severidade da sanção e a
probabilidade da condenação (BECKER, 1990, p. 77), não há dúvida
de que a morosidade processual integra essa equação para diminuir as
supostas finalidades retributiva, preventiva e ressocializadora da pena.

Quadro 1 - Prazos de tramitação processual

Fonte: Elaboração própria

8
A média da duração total das ações penais não equivale à soma das médias dos prazos
parciais, porque diferentes processos compuseram o cálculo de cada um dos lapsos
temporais. Mas o valor total encontrado, baseado em dados de nove processos, não
difere muito do apurado para os 144 processos do Relatório da Pesquisa de Avaliação
de Necessidades sobre o tráfico internacional de pessoas e crimes correlatos:
mapeamento de processos criminais, ainda não publicado. Neste caso, o prazo médio
foi de 3.966 dias.

134 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 109-143, jan./jul. 2022
TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

5 CONCLUSÃO

É truísmo afirmar que o enfrentamento ao tráfico de pessoas,


especialmente o de caráter internacional, não constitui tarefa fácil.
Os estados podem promulgar legislação interna para punir o tráfico,
mas as normas valem apenas dentro de suas próprias fronteiras.
Organizações não governamentais e entidades de apoio às vítimas
podem criar programas para educar ou ajudá-las a superar a lesão
sofrida, mas apenas na medida em que tenham recursos e contem com
apoio dos governos.

Enquanto não se reforça a cooperação internacional e a produção


de informações sobre o crime e as vítimas, cabe aos estados, em âmbito
doméstico, adotar medidas para prevenir o delito e fornecer assistência
às pessoas ofendidas. Nesse aspecto, o ordenamento italiano criou o
fondo per le misure anti-tratta, em que se prevê indenização às vítimas,
medida não contemplada no sistema jurídico nacional, mas que deveria
ser estudada.

Outra diferença marcante entre os dois marcos legais diz


respeito à punição prevista para o crime. A pena mínima prevista na
Itália corresponde à pena máxima cominada no art. 149-A do Código
Penal (BRASIL, 1940), o que demonstra a existência de perspectivas
distintas acerca da gravidade da infração. As condenações impostas
nos processos analisados, pelo então vigente art. 231, em média, foram
inferiores a quatro anos (47,42 meses). Se não houve mais casos de
substituição por sanção restritiva de direitos, isso se explica pelas
imputações adicionais que acompanhavam o delito de tráfico de
pessoas e que elevaram o montante da punição.

Ao mesmo tempo em que as vítimas – mulheres exploradas


sexualmente com destino à Itália – podem encontrar dificuldade em

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 109-143, jan./jul. 2022 135
CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD

receber assistência efetiva no Brasil, que muito depende de recursos


financeiros, no contexto da repressão penal do tráfico internacional
de pessoas, aqui se gasta quase dez anos para concluir o processo
criminal, a contar da data do crime até o trânsito em julgado. O longo
prazo de duração processual torna as finalidades da pena – retribuição,
prevenção e ressocialização – difíceis de serem alcançadas. É devido à
longa duração processual que não se encontrou nenhum processo cuja
denúncia tenha-se baseado no art. 149-A do Código Penal (BRASIL,
1940). Como o prazo médio de duração corresponde a quase dez anos,
por volta de 2025, provavelmente, devem surgir os primeiros acórdãos
que apreciarão o dispositivo legal que surgiu em 2016.

A análise dos dados processuais, além de revelar significativa


morosidade processual, mostrou que o 2021 Trafficking in Persons
Report (UNITED STATES OF AMERICA, 2021), ao menos na amostra
examinada, guarda alguma coerência com a realidade forense.
Verificou-se que a maior parte das penas totais impostas aos
traficantes não admitiu substituição por sanção restritiva de direitos,
por serem superiores a quatro anos, ao contrário do que foi apontado
pelo governo americano, segundo o qual as punições precisariam ser
mais duras. Mas, como visto, em comparação com a Itália, o patamar
punitivo nacional ocupa escala mais branda.

Em suma, julgam-se poucos casos de tráfico internacional de


pessoas, despende-se muito tempo no processamento das ações, mas
se punem os réus, a maioria do sexo masculino, com penas privativas
de liberdade. Isso significa que ainda há muito espaço para aprimorar o
funcionamento do sistema de justiça criminal brasileiro, especialmente
no tocante ao tempo de tramitação das ações penais.

136 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 109-143, jan./jul. 2022
TRÁFICO DE MULHERES DO BRASIL À ITÁLIA PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

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O “HOMEM DE CONFIANÇA” NO
ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO
TRUSTED MAN IN OPERATIONS AGAINST
ORGANIZED CRIME

DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA


Juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça. Juiz federal na 4ª
Região. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e mestre
em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
https://orcid.org/0000-0002-2200-9570

RESUMO

Este artigo discorre sobre a participação de homens de confiança


em operações encobertas para fins de inteligência, de prevenção e
de investigação de crimes. De forma especial, é analisada a validade
do uso de provas obtidas por tais agentes em juízo, tendo em
vista as implicações dessas operações aos direitos fundamentais
das pessoas investigadas, em particular o direito ao silêncio. O
entendimento tradicional é de que o direito à não autoincriminação
é engajado pela coação do suspeito a colaborar com as apurações,
mas, recentemente, tem-se defendido que o engano também
pode levar ao engajamento do direito. Nas ações encobertas, a
dissimulação, o ardil e o embuste são empregados pelo homem de
confiança, o qual não é um funcionário público, mas que, sem revelar
sua qualidade, colabora com as autoridades. A jurisprudência da
Corte Europeia de Direitos Humanos e de tribunais constitucionais
tem afirmado a incompatibilidade do direito ao silêncio com as
provas obtidas mediante extração da informação (elicitation)
pelo homem de confiança. Mas, nas investigações preventivas, a

ReJuB
142 - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022.
O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

dinâmica é diversa, visto que o direito à não autoincriminação não


se aplica aos delitos cuja execução não foi iniciada.

Palavras-chave: homem de confiança; ações encobertas; técnicas


especiais de investigação; direito ao silêncio; direito à privacidade.

ABSTRACT

This article discusses the collaboration of trusted men in undercover


operations, with emphasis on the compatibility of the use of
evidence obtained by such agents in investigations and preventive
investigations. In a special way, the implications on fundamental rights
of the investigated persons are analyzed, in particular the right not
to produce evidence against oneself. The traditional understanding is
that the right to non-self-incrimination is engaged by the suspect’s
coercion to collaborate with the investigations. More recently, it has
been argued that deception can also trigger that right. In covert
actions, dissimulation, trickery and deceit are employed by the trusted
man, which is not a public servant, but without revealing this quality,
collaborates with the authorities. The jurisprudence of the European
Court of Human Rights and constitutional courts has affirmed the
incompatibility with the right to silence when the trusted man carries
out the extraction of information from the suspect (elicitation). In
preventive investigations, the dynamics are different since the right
to non-self-incrimination does not apply in relation to crimes whose
execution has not yet started.

Keywords: trusted man; covert actions; special investigation techniques;


right to silence; right to privacy.

Recebido: 14-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022. 143
DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 Autoincriminação e engano. 3 Homem de confiança e


ações controladas. 4 Validade da prova. 5 Investigações preventivas.
6 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

No Brasil, há pouca discussão sobre a participação de particulares


em ações encobertas em face de grupos criminosos. Países como
Portugal, Alemanha e Itália dispõem de ferramentas legais para
regulamentar a colaboração dessas pessoas em apurações. A doutrina
jurídica lusitana, por exemplo, discute os limites da atuação dessas
pessoas, referidas como homens de confiança.

Este artigo analisa a participação de homens de confiança em


operações encobertas para fins de inteligência, de prevenção e de
investigação de crimes. De forma especial, é analisada a validade do
uso de provas obtidas por tais agentes em juízo, tendo em vista as
implicações dessas operações quanto aos direitos fundamentais das
pessoas investigadas, em particular o direito ao silêncio.

As operações encobertas estão entre as técnicas especiais de


investigação cujo emprego é incentivado por tratados internacionais
para o combate à corrupção e ao crime organizado – art. 20 da
Convenção de Palermo (UNITED NATIONS CONVENTION AGAINST
TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2004) e art. 50 da Convenção
de Mérida (CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A
CORRUPÇÃO, 2007).

Nem sempre as operações encobertas podem se valer de um


investigador estatal, profissional teoricamente habilitado para realizar
uma ação dessa complexidade. São ações que pressupõem um contato

144 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022.
O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

próximo entre o agente e os suspeitos, com o estabelecimento de uma


relação de confiança. A construção dessa relação demanda tempo e,
por vezes, o envolvimento em práticas ilícitas.

Por isso, a contribuição de pessoas próximas aos suspeitos pode


ser decisiva para obtenção de informações ou provas relevantes.
Pessoas da confiança dos suspeitos – amigos, familiares e associados –
podem ter interesse em colaborar com as apurações estatais.

A esses particulares costuma-se dar o nome de homem de


confiança. O homem de confiança é um particular que não está
diretamente a serviço da administração pública, mas que colabora
com as autoridades em ações de investigação ou de inteligência, sem
revelar essa colaboração aos seus associados.

Os limites à contribuição de não profissionais em investigações


precisam ser devidamente traçados. O recurso fornecido a agentes
encobertos gera preocupações com os direitos à privacidade, à
integridade moral e à não produção de provas contra si mesmo.

Neste artigo, são analisadas as implicações do emprego de


confiança com os direitos fundamentais das pessoas investigadas. De
forma especial, avaliamos a relação com o direito ao silêncio.

2 AUTOINCRIMINAÇÃO E ENGANO

Tradicionalmente, o direito ao silêncio é engajado em face


da coação para a cooperação com investigações. No entanto, mais
recentemente, surgiu a discussão da possibilidade de invocar esse
privilégio diante da colaboração obtida mediante engano.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022. 145
DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA

Traçar os limites da prerrogativa de não se autoincriminar não


é simples, até porque ela não é enunciada em termos claros nas
declarações de direito. Naquelas em que figura, costuma limitar-se
à enunciação de norma protegendo o direito a não depor contra si
mesmo.

O reconhecimento normativo da prerrogativa é mais antigo nos


países de tradição commom law. A Quinta Emenda à Constituição dos
Estados Unidos, de 1791, foi o primeiro documento a consagrar essa
prerrogativa no âmbito constitucional.

Nos tratados internacionais de proteção aos Direitos Humanos,


a prerrogativa é consagrada no art. 14, parágrafo 3, g, do Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; e no art. 8º, parágrafo
2, g, do Pacto de San José da Costa Rica. Ela não está expressa na
Convenção Europeia dos Direitos Humanos, mas a jurisprudência da
Corte Europeia de Direitos Humanos a deduz do direito ao fair trail,
previsto no art. 6º da Convenção Europeia (Saunders v. Reino Unido,
§ 60; O’Halloran e Francis v. Reino Unido, § 45; Funke v. França, § 44).
O direito não é mencionado na Carta Africana dos Direitos Humanos e
dos Povos ou na Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos.

Nos países de tradição continental, o reconhecimento da


prerrogativa de não colaborar com a acusação ganhou velocidade na
segunda metade do século passado.

No Brasil, tal direito não constava no catálogo de direitos


fundamentais das constituições pré-1988, tampouco era reconhecido
no plano legal. Pelo contrário, o Código de Processo Penal – CPP
originalmente previa que o silêncio do acusado seria interpretado em
seu desfavor – art. 186 (BRASIL, 1941).

146 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022.
O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

A Constituição de 1988 consagrou o direito ao silêncio de forma


indireta. O texto constitucional enunciou apenas o direito à advertência,
e ainda assim somente em favor do preso – “o preso será informado
de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado”, art. 5º,
inciso LXIII (BRASIL, 1988). No entanto, é seguro dizer que, mesmo
indiretamente, esse dispositivo afirma o direito ao silêncio, na medida
em que somente se adverte um direito existente.

Além disso, a doutrina costuma amparar o direito ao silêncio na


conjugação de disposições constitucionais. Trois Neto (2011) defende
que o direito à não autoincriminação é derivado da “união de diversos
enunciados constitucionais, dentre os quais o do art. 1º, inciso III
(dignidade humana); o do art. 5º, inciso LIV (devido processo legal);
do art. 5º, inciso LV (ampla defesa); e do art. 5º, inciso LVII (presunção
de inocência)” (TROIS NETO, 2011, p. 104). Ainda que essa conjugação
indique que o direito tem âmbito de proteção amplo, não há consenso
quanto à existência de um direito fundamental à não autoincriminação
fora do universo das provas declarativas.

No plano legal, apenas em 2003, a modificação legislativa


ocorrida no art. 186 reconheceu o direito ao silêncio no interrogatório
policial e judicial, alterado pela Lei n. 10.792/2003 (BRASIL, 2003),
combinado com art. 6º, inciso V, do CPP (BRASIL, 1941). O Código de
Processo Civil, de 2015 (BRASIL, 2015), introduziu o direito da parte
de não produzir prova contra si própria – art. 379. Por tudo, é seguro
afirmar que o direito ao silêncio se aplica a qualquer interrogatório
policial ou judicial.

Como visto, o marco normativo do direito à não autoincriminação


não é claro. As referências constitucionais e convencionais limitam-se
a enunciar a prerrogativa de não depor contra si mesmo. A dificuldade

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022. 147
DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA

de compreender se o direito ao silêncio pode ser engajado em face de


ações encobertas decorre dessa falta de clareza.

As operações encobertas permitem acessar a comunicação dos


suspeitos e documentar seu conteúdo mediante testemunho de seus
interlocutores ou captação de voz, de imagem ou de voz e imagem.

Para avaliar em que medida o direito ao silêncio poderia ser


invocado, é importante ter em vista seus fundamentos. O direito ao
silêncio tem fundamentos epistêmicos e não epistêmicos.

Fundamentos epistêmicos “são instrumentais, tendo por foco


a promoção de uma acurada descoberta dos fatos ou descoberta
da verdade” (CHOO, 2013, p. 647). São, portanto, razões ligadas à
qualidade da produção da prova. A ideia é que o Estado, ao coagir
o imputado a cooperar, contribui para a produção de informações
pouco confiáveis. Especialmente preocupante é a contribuição do
aparelho estatal para a obtenção de confissões falsas. Fundamentos
epistêmicos, portanto, são aplicáveis quando “o que se demanda é a
resposta a uma pergunta” (CHOO, 2013, p. 701, grifo nosso).

Fundamentos não epistêmicos, por sua vez, são ligados a outras


razões diversas da qualidade da prova:

Justificações não epistêmicas para o privilégio contra


a autoincriminação são variadas, mas têm em comum
preocupações deontológicas com valores intrínsecos
não relacionados à promoção de uma acurada
investigação dos fatos. (CHOO, 2013, p. 701).

Muito embora possam ser de ordem variada, os fundamentos não


epistêmicos mais lembrados são aqueles relacionados à “imposição de

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O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

ônus excessivo” ou “afrontosos à dignidade individual” (CHOO, 2013,


p. 703).

Em síntese, os fundamentos epistêmicos levam à não exigência de


uma confissão potencialmente falsa. Os fundamentos não epistêmicos
levam ao respeito da liberdade moral do imputado. Os limites do direito
à não autoincriminação são uma decorrência de seus fundamentos.

Segundo a interpretação tradicional, o privilégio protege contra a


coação do imputado a declarar. O fundamento epistêmico recomenda
que o Estado não atue sobre a vontade do imputado, buscando obter
uma declaração, sob pena de contribuir para uma falsa confissão. Os
fundamentos não epistêmicos contam com a crueldade de exigir a
autoincriminação e desrespeitam a decisão do acusado em declarar-
se ou não. Logo, se a declaração é espontânea, não há engajamento do
direito. Observa Silva (2018, p. 389) que “a utilização de coação sobre
o arguido para dele obter declarações assinala o núcleo essencial do
nemo tenetur se ipsum accusare”, na medida em que “voluntário, um
depoimento com conteúdo altamente incriminador pode, sem objeções
constitucionais, ser valorado contra o seu autor” (SILVA, 2018, p. 255).

Mais recentemente, tem surgido o debate sobre o engajamento


do nemo tenetur em face da utilização de meios enganosos ou ocultos
de interrogatório e de investigação. Roxin (2008) defende que o uso
do engano ou ardil para obter a colaboração do investigado constitui
fraude à lei, devendo ser sancionada com a inadmissibilidade da prova.
De acordo com o autor, a proteção contra a autoincriminação:

[...] não apenas proíbe a coação para declarar, mas


também pretende proteger o imputado de uma
autoincriminação induzida pelo Estado por meio do
erro, de uma manipulação de sua decisão de declarar
por meio do engano estatal. (ROXIN, 2008, p. 62).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022. 149
DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA

A jurisprudência tem invocado a proteção contra a


autoincriminação como meio para impedir o interrogatório disfarçado,
conduzido sem que o investigado tenha conhecimento de que está
interagindo com agentes do Estado – ou pessoas sob sua orientação –
e de forma que a comunicação esteja registrada para fins probatórios.

No Direito Comparado, percebe-se a tendência de a jurisprudência


usar um teste em dois passos para avaliar a compatibilidade de provas
produzidas mediante engano com o nemo tenetur. Inicialmente
formulado pela Suprema Corte do Canadá (R. v. Broyles [1991]
3 S.C.R. 595), (CANADÁ, 1991), o teste persuadiu a Corte Europeia de
Direitos Humanos (Allan v. Reino Unido. Decisão de 5 de novembro
de 2002. §§ 50-51), (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2002)
e foi internalizado na jurisprudência dos países-membros (BGH 3 StR
104/07, decisão de 26 de julho de 2007), (ALEMANHA, 2007).

De acordo com a Suprema Corte do Canadá (1991, p. 597, tradução


nossa):

[...] o direito ao silêncio só será infringido se o


informante agia como um agente do Estado no
momento em que o acusado fez a declaração e se foi o
informante que levou o acusado a fazer a declaração.

A Corte Europeia de Direitos Humanos seguiu, com expressa


menção, o entendimento da corte canadense no Caso Allan v. Reino
Unido, de 2002.

O Tribunal Federal Alemão Bundesgerichtshof – BGH seguiu


a compreensão da Corte Europeia no chamado Caso Maiorca
(ALEMANHA, 2007). Antes dele, o BGH tinha se debruçado sobre a
relação entre o direito ao silêncio e a captação ambiental em uma

150 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022.
O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

sequência de precedentes conhecidos por Hörfalle. Após decisões


divergentes do 2º (BGHSt – 39, 335), (ALEMANHA, 1993) e 5º
(BGH – 5 StR 680/1994), (ALEMANHA, 1995) senados, o Grande Senado
concluiu não haver violação do nemo tenetur em face da utilização
do homem de confiança para interrogar o investigado sob suspeita
(ALEMANHA, 1996).

Há dois grandes vetores na avaliação do interrogatório disfarçado:


a participação de agente de investigação e a extração da informação
(elicitation).

Ao que releva este artigo, a definição de agente de investigação


não está limitada ao funcionário do Estado envolvido na investigação,
normalmente um policial, mas também alcança o terceiro, que age sob
sua influência. Esse terceiro é definido como homem de confiança.

No próximo título, analisaremos a validade das provas produzidas


pelo homem de confiança em face do direito à não autoincriminação.

3 HOMEM DE CONFIANÇA E AÇÕES ENCOBERTAS

As ações encobertas inserem-se entre as técnicas especiais de


investigação, as quais são meios de obtenção marcados pelo sigilo,
geralmente de prova invasiva, e voltadas para a criminalidade grave ou
organizada (ARAS, 2012).

Nas ações encobertas, a “dissimulação, o ardil e o embuste são


empregados pelo Estado para romper o silêncio mafioso (omertá)
de organizações criminosas ou para obter informações cruciais de
criminosos comuns” (ARAS, 2012, p. 540).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022. 151
DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA

As ações encobertas podem ser conduzidas diretamente por


investigadores ou podem se valer de particulares. Interessa-nos essa
segunda modalidade, na qual homens de confiança concorrem para o
seu desenvolvimento.

Elas podem ter fins de inteligência ou probatórios. Nesta hipótese,


são destinadas a reunir provas a serem empregadas em juízo. Naquela,
buscam produzir informações relevantes para a tomada de decisões
públicas – identificação dos integrantes, da estrutura do grupo ou da
organização, do patrimônio, dos relacionamentos externos etc. (ARAS,
2020).

O homem de confiança é um particular que não está a serviço da


administração pública, mas que colabora com as autoridades em ações
de inteligência ou de investigação, sem revelar essa qualidade (SILVA,
2018, p. 562).

A expressão homem de confiança decorre do idioma tedesco.


A legislação alemã usa a expressão Vertrauensleute, que pode ser
traduzida por “pessoas de confiança” cujo emprego corrente se
vale da flexão de gênero – Vertrauensman (homem de confiança)
e Vertrauensfrau (mulher de confiança) –, e mesmo de forma
abreviada – V-Mann ou V-Leute. Daí o emprego, pela doutrina
portuguesa, da expressão homem de confiança.

A legislação dos países que preveem o uso de homens de


confiança varia quanto ao escopo de sua admissibilidade.

A Alemanha está entre os países que prevê o uso de homens


de confiança em operações de inteligência, inclusive de Estado e de
investigação criminal. A legislação define homem de confiança como

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O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

um particular que de forma duradoura colabora com as autoridades,


normalmente sem o conhecimento de terceiros (ALEMANHA, 1977),
(Anexo D 2.2; BVerfSchG, § 9b).

Em Portugal, o ordenamento menciona o uso de homens de


confiança apenas em face de fatos com relevância criminal, ainda
que o admita para fins preventivos e propriamente de investigação.
A lei que trata do “regime jurídico das ações encobertas para fins de
prevenção e investigação criminal” prevê que o “terceiro atuando sob o
controle da Política Judiciária” pode desenvolver “ações encobertas”,
com a “ocultação da sua qualidade e identidade”, para a “prevenção ou
repressão dos crimes” graves nela arrolados (Lei n. 101/2001, artigo 1º,
§ 2; e artigo 2º), (PORTUGAL, 2001).

Na Itália, a legislação prevê o uso de homens de confiança em


operações encobertas (operazioni sotto copertura) apenas para a
investigação criminal. A lei menciona que os investigadores podem
praticar uma série de condutas típicas formais pessoalmente – ou
valendo-se de pessoa interposta (interposta persona) ou auxiliar
(ausiliar) – somente para obter elementos de prova dos delitos graves
nela especificados. Para que a responsabilidade pela prática de delitos
seja afastada, é indispensável que a operação seja devidamente
autorizada e documentada (Legge, 16 de março de 2006, n. 146,
art. 9), (ITÁLIA, 2006).

No Brasil, a legislação não contempla a previsão sobre o uso


do homem de confiança. Não há nenhuma menção à colaboração de
terceiros com ações de inteligência ou de investigação, preventiva ou
repressiva.

Existe, em nosso país, apenas a previsão de infiltração policial em


organizações criminosas (art. 3º, da Lei n. 12.850/2013), (BRASIL, 2013)

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022. 153
DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA

e em grupos que praticam crimes pela internet (arts. 190-A a 190-E


do Estatuto da Criança e do Adolescente), (BRASIL, 1990). Não há
menção à colaboração de terceiros não integrantes de forças estatais.

A participação de homens de confiança em ações encobertas


tem grande potencial de produzir informações e provas relevantes. Por
serem pessoas que gozam de relacionamento com os membros dos
grupos criminosos, possuem mais facilidade para obter informações
aos investigadores.

As investigações de ações de grupos criminosos organizados


são especialmente favorecidas pelo emprego de homens de confiança.
O crime organizado adota estratégias para evitar a responsabilização
de seus agentes, como o segredo interno, a compartimentação de
informações e o acesso gradual de novatos. Assim, a colaboração de
uma pessoa inserida no grupo criminoso é de grande valor.

4 VALIDADE DA PROVA

Compreendido o potencial de contribuição da colaboração de


homens de confiança em ações encobertas para a apuração de delitos
praticados por organizações criminosas, resta avaliar se as provas
produzidas por esses agentes teriam validade em juízo, em face do
direito ao silêncio.

Há dois passos no teste de validade da prova produzida em ações


encobertas mediante engano: a participação de agente de investigação
e a extração da informação (elicitation).

O primeiro passo é a participação de agente de investigação.


Entre particulares, as interações não são regidas pela oficialidade que

154 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022.
O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

regulamenta as investigações criminais. Assim, há maior liberdade, que


pode ser usada para a extração de informações.

Se um terceiro, agindo por conta própria, interroga o imputado,


ter-se-á uma conversa entre privados, não sendo eles obrigados a
respeitar reciprocamente a prerrogativa de não autoincriminação. Não
haverá engajamento do direito ao silêncio. Nessa linha, o Supremo
Tribunal Federal possui jurisprudência no sentido da admissibilidade
do uso, como prova, de gravação ambiental realizada por um dos
interlocutores (RE 583.937 QO-RG. Rel. Min. Cezar Peluso, julgado em
19 de novembro de 2009). Como regra, terceiros podem questionar o
suspeito de um crime sobre o fato sem realizar qualquer advertência.
Dessa forma, um comparsa ou um amigo do perpetrador, um familiar da
vítima ou a imprensa poderiam realizar questionamentos que levassem
a uma confissão, em princípio, válida.

O envolvimento do direito ao silêncio surge quando toma


parte da comunicação um agente de investigação. Os agentes do
Estado envolvidos na investigação não podem dirigir perguntas
potencialmente incriminatórias ao suspeito sem antes adverti-lo de
que suas declarações podem ser usadas como prova e de que existe
a faculdade de não responder. Do contrário, o investigado é posto em
uma situação em que está produzindo prova contra si, em interação
com o agente público, sem ser advertido do direito ao silêncio. Mesmo
nos países em que não exista um dever de advertir formalmente quanto
ao direito ao silêncio, o interrogatório disfarçado é uma perigosa
subversão ao rito. Trata-se de uma forma de obter confissão mediante
engano.

A questão é um pouco mais complexa quando não há agente


estatal envolvido na investigação participando da conversa. A atuação
autônoma do particular não atrai o engajamento do direito ao silêncio.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022. 155
DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA

Como visto, a interlocução entre particulares não está sujeita ao dever


de advertência quanto às consequências da autoincriminação.

No entanto, o particular pode ser um agente de investigação


quando age sob instigação ou induzimento dos investigadores
estatuais. Apesar de não serem funcionários públicos, os homens de
confiança são terceiros que atuam sob influência dos investigadores e
podem ser considerados, para essa finalidade, agentes da investigação.

O teste para a avaliação da qualidade do homem de confiança é


bastante inclusivo. Nas palavras da Suprema Corte do Canadá:

[...] o teste para determinação se o informante é


agente do estado para os propósitos do direito ao
silêncio é simples: teria a conversa entre investigado
e informante ocorrido, na forma e maneira em que
ocorrida, não fora pela intervenção do estado ou de
seus agentes? (CANADÁ, 1991, p. 607, tradução nossa).

Portanto, se o particular é instigado ou induzido a comunicar-se


com o investigado, com intuito de produzir prova, estará na qualidade
de homem de confiança.

Esse tema ganha especial relevância nas provas produzidas por


membros de organizações criminosas convencidos pelos investigadores
a colaborar com investigações.

A instigação ou o induzimento devem ser concretos, decorrentes


de contato do homem de confiança com agentes da investigação. O
particular que age espontaneamente não será considerado homem de
confiança.

156 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022.
O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

No Brasil, a legislação beneficia o membro da investigação


criminosa que colabora com as apurações, delatando os comparsas –
art. 4º, da Lei n. 12.850/2013 (BRASIL, 2013). Trata-se de incentivo para
que membros arrependidos da organização criminosa providenciem a
produção de prova contra os demais.

Se um dos comparsas na empreitada criminosa resolve, por


iniciativa própria, gravar a conversa com os demais, no interesse de
obter os benefícios da delação premiada (art. 4º, da Lei n. 12.850/2013),
não haverá engajamento do nemo tenetur.

No entanto, se o membro da organização foi induzido ou instigado


pelos investigadores a colaborar com a investigação, fornecendo
informações ou produzindo provas, será considerado homem de
confiança.

Recente modificação da legislação brasileira parece indicar a


invalidade da captação ambiental realizada por homem de confiança.
A gravação de conversas entre presentes é importante meio para
documentar o conhecimento obtido por esses agentes.

A nova legislação afirma que, se feita por um dos interlocutores


“[...] sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério
Público” (BRASIL, 1996), a captação ambiental poderá ser usada em
matéria de defesa (art. 8º-A, § 4º, da Lei n. 9.296/1996, incluído pela
Lei n. 13.964/2019). Apesar da falta de clareza, o dispositivo parece
indicar que a instigação ou o induzimento à gravação, realizados pelos
órgãos da persecução penal, levam à invalidade da prova. O texto
legal tampouco deixa claro se, com autorização judicial, seria válida
a captação ambiental entre presentes feita por homem de confiança.

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DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA

O segundo passo do teste proposto pela jurisprudência


internacional é a extração da informação (elicitation).

Para que a prova seja invalidada, exige-se que a informação


tenha sido extraída pelo agente de investigação (elicitation). Se o
investigado tomar a iniciativa de comunicar sua própria culpa, não
haverá engajamento do nemo tenetur. A comunicação incriminatória
deve ocorrer em resposta a uma indagação por parte do homem de
confiança. Assim, a declaração deve ser provocada e a informação,
extraída.

Sobre o ponto, o Supremo Tribunal do Canadá afirmou que “a


informação deve ser ativamente extraída pelo agente”, visto que “não
haverá violação do direito ao silêncio se o suspeito espontaneamente
decide fornecer a informação” (CANADÁ, 1991, tradução nossa).
Asseverou ainda que, na avaliação, dois conjuntos de fatores devem
ser considerados.

O primeiro conjunto de fatores diz respeito à “natureza do


diálogo”. Observando “a conversa como um todo, o informante
conduziu sua parte da conversa como o acusado esperaria, ou foi a
conversa o equivalente formal a um interrogatório?” (CANADÁ, 1991,
tradução nossa).

Aqui, o relevante é a iniciativa das declarações incriminatórias. Se


o homem de confiança não dirige a conversa para o fato investigado,
sendo do suspeito a iniciativa de falar sobre sua culpa, não haverá
engajamento do direito à não autoincriminação. A informação terá
sido espontaneamente oferecida.

158 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022.
O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

O segundo conjunto de fatores diz respeito à “natureza da relação


entre o agente do Estado e o acusado”. Indaga-se se o agente “explora
alguma característica especial da relação para extrair a declaração”
(CANADÁ, 1991, tradução nossa).

Nesse ponto, importam quaisquer condições que coloquem


o investigado em especial sujeição às perguntas do interlocutor. As
relações de parentesco e de afeto, ou a posição de liderança ou de
autoridade, devem ser especialmente consideradas.

As razões epistêmicas do direito à não autoincriminação são


relevantes neste ponto: a relação de sujeição torna especialmente
propícia a extração de confissões falsas.

Também as razões não epistêmicas podem ser lembradas, visto


que haverá incentivo estatal à quebra de confiança dentro das relações
de amizade ou de parentesco.

No mencionado caso Broyles, a corte canadense aplicou esse


conjunto de princípios e julgou inválida a gravação na qual o amigo do
investigado o visitou na prisão e, sob orientação dos investigadores, fez
perguntas sobre os fatos. Essa mesma interpretação pode ser aplicada
ao Direito brasileiro (CANADÁ, 1991).

Por tudo, a prova produzida será, em regra, válida se realizada


por pessoa que não seja funcionário público envolvido na investigação.
Poderá, no entanto, ser inválida se o terceiro atuar como homem
de confiança dos agentes da investigação e se, cumulativamente, a
confissão for extraída do investigado em resposta a perguntas do
homem de confiança. Na avaliação da extração da informação, deve-
se considerar se o agente fez indagações que levaram às respostas e se

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DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA

havia alguma relação que colocava o investigado em especial posição


de sujeição ao investigador.

5 INVESTIGAÇÕES PREVENTIVAS

O tema merece enfoque diverso em relação às investigações


preventivas.

Investigações preventivas são apurações conduzidas para evitar


a prática ou a reiteração de delitos.

A investigação preventiva gera muitas preocupações quanto à


interferência em direitos fundamentais. O Direito Penal não se coaduna
com a criminalização da cogitação. Recolher provas sobre condutas
que, apenas eventualmente, terão relevância criminal pode ser uma
forma indevida de interferência na autonomia privada.

A produção de conhecimento, com propósitos preventivos,


costuma ser mais bem reconhecida no campo da inteligência. Mais
recentemente, a inteligência também tem sido acrescida às atribuições
das forças policiais e de segurança pública (TINOCO, 2020).

Alguns países, no entanto, vêm voltando seus instrumentos de


persecução penal para a prevenção de delitos. A legislação de Portugal
prevê o uso de ações encobertas com propósito preventivo (Lei
n. 101/2001, art. 1º, § 2; e art. 2º), (PORTUGAL, 2001).

No Brasil, não há previsão expressa de investigações preventivas.


Mesmo a inteligência de Estado é escassamente regulamentada. A Lei
n. 9.883/1999 cria o Sistema Brasileiro de Inteligência, estabelecendo
competências para o planejamento e a execução de ações de

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O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

inteligência, mas não desenha o regime jurídico às quais essas ações


estão submetidas (BRASIL, 1999).

Apesar da falta de previsão legal, o uso de técnicas especiais de


investigação em ações de inteligência é mencionado por normativos e
manuais do Sistema Brasileiro de Inteligência1.

Além disso, nos casos envolvendo crime organizado, o Brasil


usa instrumentos processuais penais para o acompanhamento do
grupo criminoso, o que permite desvendar ações criminosas desde a
preparação. As legislações penal e processual penal propiciam esse
tipo de apuração.

A legislação penal material brasileira facilita o uso de investigações


criminais com propósito preventivo. O país criminaliza condutas
anteriores e posteriores ao dano em alguns casos, como delitos
autônomos e permanentes, permitindo o enquadramento penal de
condutas que não exteriorizam, ictu oculi, lesividade. As associações
para fins criminais são tipificadas como delitos permanentes
(art. 288 do Código Penal; art. 2º da Lei n. 2.889/1956; art. 35 da Lei
n. 11.343/2006; art. 2º da Lei n. 12.850/2013), permitindo que a apuração
de suas ramificações seja de interesse policial a qualquer momento.
O branqueamento de capitais também é tipificado, possibilitando
que a movimentação de ativos sem lastro ou sem aparente finalidade
econômica leve à expansão das apurações em direção à origem dos
recursos. Existem também vários crimes de posse, notadamente na
legislação sobre drogas (art. 33, da Lei n. 11.343/2006) e de armas (Lei
n. 10.826/2003), as quais facilitam o uso de ações controladas.

1
Para uma análise crítica, ver Aras (2012).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022. 161
DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA

Com base na legislação sobre o crime organizado, são


instauradas investigações que se iniciam por uma fase oculta na qual
são empregadas técnicas especiais de investigação (art. 3º, da Lei
n. 12.850/2013). O uso desses meios ocultos e dissimulados de
obtenção de provas busca revelar as ramificações da organização e
flagrar delitos, na medida em que vão sendo postos em execução.

Assim, a partir da constatação de um evento criminoso, é possível


instaurar acompanhamento temporário de um grupo de suspeitos de
integrar uma organização criminosa. Por exemplo, a apreensão de uma
partida de droga em uma inspeção de rotina em uma estrada permite
que, a partir do rastreio de contatos do condutor, sejam identificadas
as pessoas envolvidas na operação. Essas pessoas passam a ser
investigadas, e sua movimentação leva à identificação dos demais
membros da organização criminosa. Novas remessas realizadas pelo
grupo podem ser interrompidas antes de chegar ao usuário final.

Apesar de certa vocação para a prevenção a delitos, essas


investigações não perdem seu propósito de produção de provas. Todas
as diligências apuratórias precisam ser documentadas para o controle
judicial e o acesso às defesas. A investigação não permanece oculta
de forma indeterminada. Ela evolui para uma fase ostensiva, na qual
são adotadas medidas apuratórias e cautelares que não dependem do
sigilo. Nesse momento, os implicados passam a ter amplo acesso aos
elementos coligidos.

Em investigações preventivas, o direito ao silêncio não impede


o uso de homens de confiança. Por definição, a prerrogativa de não
autoincriminação não se aplica a crimes cuja execução ainda não se
iniciou. A prerrogativa de não se autoincriminar é engajada como
proteção ao sujeito, que “não é juridicamente exigido ou compelido a

162 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022.
O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

prover informação que razoavelmente levaria a, ou aumentaria o risco


de, persecução do sujeito por um delito” (CHOO, 2013, p. 8).

Não há possibilidade de incriminação quanto ao delito que ainda


não aconteceu. Por mais que o sujeito tenha a intenção de praticar um
crime, enquanto o iter criminis não ultrapassar a fase de preparação,
não há possibilidade de punição. Logo, se não há ao menos tentativa,
não há possibilidade de autoincriminação.

Como não há direito ao silêncio no que tange a delitos cuja


execução não foi iniciada, é viável, em princípio, a utilização de homens
de confiança em investigações preventivas. A prova assim obtida
poderia ser usada em juízo, sem que o direito à autoincriminação
socorra o implicado.

Esse tema ganha especial relevância nas ações realizadas por


homens de confiança infiltrados em organizações criminosas. Imagine-
se que o homem de confiança participa de uma conversa com um
membro da associação criminosa, na qual se gabam de um delito
que acabaram de praticar, enquanto planejam os detalhes de sua
reiteração. O direito ao silêncio não impede que a conversa contribua
para a prova de delitos que, naquele momento, ainda não tinham a
execução iniciada. Logo, o direito ao silêncio não impede a prova do
delito que está sendo planejado – caso a execução venha a ser iniciada.

Em Portugal, a doutrina se orienta na direção de que as provas


produzidas em investigações preventivas não contrariam o nemo
tenetur. Silva (2018, p. 578-579) defende a validade da utilização de
homens de confiança em investigações preventivas, muito embora a
condene em investigações repressivas. Andrade (2006, p. 232), por
sua vez, vai além para admitir a utilização de agentes de confiança para
a obtenção de provas para “finalidades exclusiva ou prevalentemente

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022. 163
DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA

preventivas”. Um detalhe interessante é que o autor adota uma


interpretação bem ampla de investigação preventiva: sustenta a
validade do uso de prova não apenas para comprovar delitos ainda
não consumados, mas também para reprimir e desmantelar grupos
criminosos como meio de combate “do terrorismo, da criminalidade
violenta ou altamente organizada”. Orientação semelhante é adotada
por Monte (1997). Pereira (2004, p. 21) sustenta que, nos casos
envolvendo a criminalidade altamente organizada, justifica-se o uso de
homens de confiança em investigações preventivas.

Por tudo, temos que, em princípio, é válida a prova obtida por


investigações preventivas, mediante ações encobertas, nas quais
participam homens de confiança.

Por óbvio, o valor da prova produzida antes do início da execução


é limitado. A prova da cogitação ou da preparação de um delito não é
suficiente para demonstrar o delito em si. A execução do crime pode
nem sequer vir a ser iniciada. Ainda que o resultado venha a ocorrer,
a cogitação não é suficiente para demonstrar a autoria. Incumbirá à
acusação complementar a prova, demonstrando que o suspeito evoluiu
da preparação para a execução do delito.

As investigações preventivas também levam à preocupação com


a responsabilidade criminal do homem de confiança. No Brasil, não
há regras excludentes de responsabilidade pela atuação como agente
duplo. Eventual perdão ou redução de penas estão subordinados às
regras da colaboração premiada (arts. 3º-A a 7º da Lei n. 12.850/2013),
(BRASIL, 2013).

Sempre existe, ademais, a preocupação com a indução à prática


do delito. A oferta de benefícios ao homem de confiança pode
estimulá-lo a converter-se em agente provocador. No Brasil, esse tema

164 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022.
O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

costuma ser tratado sob o rótulo do flagrante preparado, que afasta a


consumação do crime (Súmula 145 do STF). No entanto, ainda que haja
preparação ou induzimento por agente provocador, se o bem jurídico
pode ser atingido, haverá delito. Nesse sentido, o Ministro Gilmar
Mendes afirmou em voto no julgamento do Inquérito n. 4.483/DF do
Supremo Tribunal Federal que:

[...] se a preparação [do flagrante] não impedir


a consumação do delito, o agente público que
determina, instiga ou auxilia o agente será
penalmente responsável, a título de participação
ou, em casos extremos, de autoria mediata
(art. 29 do CP). (BRASIL, 2017).

Portanto, o induzimento à prática do delito por homens de


confiança pode levar à impossibilidade de consumação do delito se
não for viável atingir o bem jurídico protegido. Poderá, entretanto, dar
causa à responsabilidade penal dos homens de confiança, caso o dano
venha a ocorrer.

De tudo concluímos que, realizada no interesse de investigação


preventiva, a atuação de homem de confiança não leva ao engajamento
do direito ao silêncio.

6 CONCLUSÃO

Nem sempre as ações encobertas podem se valer de um


investigador estatal, profissional teoricamente habilitado para realizar
uma ação dessa complexidade. São ações que pressupõem um contato
próximo entre o agente e os suspeitos, com o estabelecimento de uma
relação de confiança. A construção dessa relação demanda tempo e,
por vezes, o envolvimento em práticas ilícitas.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022. 165
DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA

O dilema jurídico das ações encobertas relaciona-se de forma


próxima com a invocação ao direito ao silêncio. O objetivo do uso do
meio de prova costuma ser a utilização do conteúdo de comunicação
dos investigados obtido mediante testemunho de seus interlocutores –
captação de voz, de imagem ou de voz e imagem.

Recentemente, tem surgido debate sobre o engajamento do


nemo tenetur em face da utilização de meios enganosos ou ocultos
de interrogatório e de investigação. A jurisprudência tem invocado
a proteção contra a autoincriminação como base para impedir o
interrogatório disfarçado, conduzido sem que o investigado tenha
conhecimento de que está interagindo com agentes do Estado – ou
pessoas sob sua orientação –, e de forma que a comunicação esteja
sendo registrada para fins probatórios.

No Direito Comparado, percebe-se a tendência da jurisprudência


em avaliar a validade das provas em teste em dois passos. Inicialmente
formulado pela Suprema Corte do Canadá (R. s. Broyles), (CANADÁ,
1991), o teste persuadiu a Corte Europeia de Direitos Humanos
(Allan v. Reino Unido, decisão de 5 de novembro de 2002. §§ 50-51),
(CONSELHO DA EUROPA, 2002) e foi internalizado na jurisprudência
dos países-membros (BGH 3 StR 104/07, decisão de 26 de julho de
2007), (ALEMANHA, 2007).

Há dois grandes vetores na avaliação do interrogatório disfarçado:


a participação de agente de investigação e a extração da informação
(elicitation).

Entre particulares, as interações não são regidas pela oficialidade


que regulamenta as investigações criminais. Assim, há maior liberdade,
que pode ser usada para a extração de informações.

166 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022.
O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

Se um terceiro, agindo por conta própria, interroga o imputado,


ter-se-á uma conversa entre privados, não obrigados a respeitar
reciprocamente a prerrogativa de não se autoincriminar. Não haverá
engajamento do direito ao silêncio. Nessa linha, o Supremo Tribunal
Federal tem jurisprudência no sentido da ampla admissibilidade
do uso, como prova, de gravação ambiental realizada por um dos
interlocutores.

O envolvimento do direito ao silêncio surge quando toma


parte da comunicação um agente de investigação. Os agentes do
Estado envolvidos na investigação não podem dirigir perguntas
potencialmente incriminatórias ao suspeito sem antes adverti-lo de
que suas declarações podem ser usadas como prova e de que existe a
faculdade de não responder.

O homem de confiança não é, ao menos diretamente, um agente


do Estado. Apesar de não serem funcionários públicos, os homens de
confiança são terceiros que atuam sob influência dos investigadores e
podem ser considerados, para essa finalidade, agentes de investigação.
A jurisprudência vem afirmando que o questionamento por agente de
confiança é causa do engajamento do direito ao silêncio.

Além disso, exige-se que a informação tenha sido extraída pelo


homem de confiança (elicitation). Se o investigado tomar a iniciativa
de comunicar sua própria culpa, não haverá engajamento do nemo
tenetur. A comunicação incriminatória deve ocorrer em resposta a uma
indagação; a declaração deve ser provocada; e a informação deve ser
extraída.

A questão é um tanto diversa nas investigações preventivas.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022. 167
DANIEL MARCHIONATTI BARBOSA

Em investigações preventivas, o direito à não autoincriminação


não impede o uso de homens de confiança. Por definição, a prerrogativa
de não autoincriminação não se aplica a crimes cuja execução ainda
não se iniciou.

Não há possibilidade de incriminação quanto a delito que ainda


não aconteceu. Por mais que o sujeito tenha a intenção de praticar um
crime, enquanto o iter criminis não ultrapassar a fase de preparação,
não há possibilidade de punição. Logo, se não há ao menos tentativa,
não há possibilidade de autoincriminação.

Por óbvio, o valor da prova produzida antes do início da execução


é limitado. A prova da cogitação ou da preparação de um delito não
é suficiente para demonstrar o delito em si. A execução do crime
pode nem sequer ser iniciada. Ainda que o resultado venha a ocorrer,
a cogitação não é suficiente para demonstrar a autoria. Incumbirá à
acusação complementar a prova, demonstrando que o suspeito evoluiu
da preparação para a execução do delito.

168 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 145-176, jan./jul. 2022.
O HOMEM DE CONFIANÇA NO ENFRENTAMENTO AO CRIME ORGANIZADO

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isso também se aplica se ele ouvir a conversa sem o conhecimento da
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GSSt 1/1996. Se, por instigação das autoridades investigadoras,
um particular tiver mantido uma conversa com o suspeito com o
objetivo de obter informações sobre o objeto da investigação sem
revelar a intenção de investigar, o conteúdo da conversa poderá ser
utilizado como prova testemunhal, trata-se de solucionar um crime de
considerável importância. Investigar os fatos usando outros métodos
de investigação teria sido significativamente menos promissor ou
significativamente mais difícil [...]. Decisão em: 13 de maio de 1996.
Servat: Hamburgo, 1996. Disponível em: https://www.servat.unibe.ch/
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fraude; investigadores disfarçados; princípio nemo tenetur; situação
de interrogatório; interpretação de acordo com a Convenção);
Direito ao silêncio (percepção; respeito; proibição do uso de provas:
efeito continuado em [...]. Decisão em: 26 de julho de 2007. HRRS:

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particular como informante – interrogatório policial formal ao iniciar
e ouvir uma chamada telefônica – evidência da conversa telefônica
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LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE


INTERPRETATIVO-CREATIVA DEL GIUDICE
COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN
ITALIA E IN BRASILE E LA SUA INFLUENZA SUL
SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE
SHARING THE CONSTITUTIONAL JUDGE’S
INTERPRETATIVE FUNCTION WITH THE COMMON JUDGE
IN ITALY AND BRAZIL, AND ITS INFLUENCE ON THE ANTI-
CORRUPTION CRIMINAL SYSTEM

HUGO ABAS FRAZÃO


Juiz federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Doutorando em
Justiça Constitucional na Universidade de Pisa desde 2019 e Visiting
Researcher na Sciencis Po Paris – 2021-2022. Coordenador do Laboratório
de Inovação Judicial Nova Justiça – SJMA. Membro assistente do Comitê
Científico do Curso de Alta Formação em Justiça Constitucional e
Tutela Jurisdicional de Direitos Alessandro Pizzorusso, coordenado
pelo Professor Roberto Romboli e realizado em colaboração com a
Universidade de Pisa; e da Associação de Constitucionalistas Gruppo di
Pisa. Membro da The International Society of Public Law – ICONS.
https://orcid.org/0000-0003-1511-0010

ABSTRACT

Lo scopo di questo lavoro è lanciare un’indagine più specifica sul


modo in cui una Corte (suprema o costituzionale) dialoga con il
giudice ordinario e delle conseguenze per il sistema di giustizia
penale, in particolare la lotta contro la corruzione e le organizzazioni
criminose. La ricerca descrive come i giudici costituzionali in Italia
e in Brasile assumono una variazione fluida tra accentramento e
diffusione a prescindere dalla lettura dei modelli classici di controllo

ReJuB
174 - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

della costituzionalità. Quando si propongono di decentrare il loro


potere questi giudici costituzionali condividono una maggiore autorità
per i tribunali ordinari per promuovere interpretazioni creative. Tali
interpretazioni, a loro volta, stanno influenzando il sistema penale e,
di conseguenza, il modo in cui i giudici in generale esaminano i casi
di lotta contro la corruzione e le organizzazioni criminose, secondo
un accurato approccio costituzionale. Lo studio adotta un metodo
culturalista di comparazione che analizza ogni oggetto a partire dal
suo contesto. I risultati suggeriscono che l’atteggiamento del giudice
comune è stato più vicino alla legittimità dialogica di quella limitata
dalle fonti legislative del diritto. Il presente lavoro considera le sue
implicazioni per le teorie della giustizia costituzionale.

Parole chiave: giudice costituzionale; giudice comune; condivisione


di giurisdizione; funzione interpretativo-creativa; sistema penale
anticorruzione.

ABSTRACT

The purpose of this paper is to launch a more specific investigation on


the way a court (supreme or constitutional) dialogues with the ordinary
judge and the consequences for the criminal justice system, particularly
the fight against corruption. The research describes how constitutional
judges in Italy and Brazil assume a fluid variation between centralization
and diffusion regardless of classical models of constitutionality control.
When proposing to decentralize their power, these constitutional
judges share greater authority for ordinary courts to promote creative
interpretations. These interpretations, in turn, are influencing the
criminal justice system and, consequently, the way judges at significant
review anti-corruption cases from a correct constitutional approach.
The study adduces a culturalist method of comparison, which analyzes
each object from its context. The results suggest that the attitude of
the common judge has been closer to dialogical legitimacy than that

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022. 175
HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

limited by the legislative sources of law. The present work considers its
implications for theories of constitutional justice.

Keywords: constitutional judge; shared judge; sharing of jurisdiction;


interpretive-creative function; anti-corruption criminal justice system.

Recebido: 14-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 Condivisione di giurisdizione tra giudici (costituzionale


e comune) nei sistemi tecnici semi-accentrati italiano e quello diffuso
(o duale) brasiliano. l’influenza della giurisprudenza costituzionale
sull’interpretazione della magistratura. 3 l’intensità dei movimenti
di “diffusione” e “accentramento”. la differenza tra decentramento
“esterno” e quello “interno”. il ruolo svolto dal principio della collegialità
di fronte a questi fenomeni. 4 Dialettica tra giudici costituzionali e
comuni: un raffinamento della protezione dei principi fondamentali nel
contesto dei procedimenti basati sulla corruzione e sulle organizzazioni
criminose. 5 Conclusione. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Questa ricerca si propone di avviare un’indagine più specifica


su come una Corte (suprema o costituzionale) conversa con il giudice
comune e sulle conseguenze sul sistema penale, in particolare sulla
lotta alla corruzione e alle organizzazioni criminose. Si tratta senz’altro
di un oggetto in linea con la concezione deliberativa di democrazia,
cioè una concezione in cui il processo decisionale si svolge in un
dialogo inclusivo la cui giustificazione, secondo Habermas (1996,
p. 305), è tanto maggiore quanto maggiore è il coinvolgimento di tutti

176 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

coloro potenzialmente interessati dal giudizio. Tuttavia, per ragioni di


metodo, la questione del dialogo costituzionale non sarà trattata a
lungo. Si tratterà piuttosto di capire come, in una « conversation among
equals » (GARGARELLA, 2022), il giudice costituzionale si rapporta
dialetticamente al giudice comune.

Infatti, la qualità argomentativa che emerge dalla comunicazione


con altri giudici (comuni e sovranazionali) è spesso capace di
riposizionare il giudice costituzionale verso nuovi confini giurisdizionali.
Ciò può portare a una funzione interpretativa più o meno creativa
nel sistema, a causa del modo e dell’intensità in cui agiscono altre
giurisdizioni, soprattutto per quanto concerne la protezione dei diritti
fondamentali. Anche se è arduo sostenere una tale proposizione sulla
base di una “teoria delle fonti”, essa può certamente essere giustificata
sulla base di una “teoria dell’interpretazione delle norme”, in cui la
dimensione descrittiva del diritto è altrettanto importante che quella
prescrittiva.

Inoltre, il possibile esito (o no) delle controversie costituzionali in


altre giurisdizioni può influenzare la legittimità del giudice costituzionale,
portandolo a mantenere o cambiare la ruota della sua giurisprudenza,
per esempio, nel senso di self-restraint o di judicial activism.

A partire dal diritto processuale costituzionale è possibile spiegare


questo fenomeno con una prospettiva flessibile o duttile (TUSSEAU,
2009, p. 33) delle nozioni di “accentramento” e “diffusione” sul
controllo di costituzionalità. A tale riguardo è vero che ciascun sistema
di giustizia costituzionale potrà essere visto, in termini accademici,
come accentrato o diffuso secondo l’idea per cui esistono nel mondo
soltanto due modelli di controllo: l’americano e l’europeo. Secondo tale
chiave di lettura, negli Stati uniti, ogni tribunale ha la competenza di
disapplicare la Costituzione e quindi farla prevalente dinanzi a qualsiasi
altro padrone normativo. Dall’altro lato, nel modello europeo, solo una

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022. 177
HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

Corte specializzata e distinta dei tribunali comuni può giudicare il


contenzioso costituzionale (FAVOREU, 1989, p. 46). Tuttavia, anche se
questa dicotomia teorica domina ancora l’analisi, è in qualche modo
caricata, nella misura in cui i sistemi costituzionali non sono, in realtà,
perfettamente adatti a ciò che esalta questa classificazione.

In realtà, ogni sistema rivela una complessità che può essere


compresa solo dalla combinazione di due visioni che, in molti casi,
vivono ignorandosi a vicenda. La prima, propria delle scienze giuridiche,
riguarda come il giudice costituzionale esercita la sua “tecnica” mentre
la seconda, propria delle scienze politiche, analizza come egli esercita
il suo “potere” (ROBERTSON, 2010, p. 432).

Da questo punto di vista vale la pena scoprire empiricamente


le modalità con cui una Corte (suprema o costituzionale) estende o
ritrae la sua giurisdizione nei confronti di altri giudici (TUSSEAU, 2021).
Perciò si propone qui di trattare l’accentramento e la diffusione non
secondo il modello a priori di controllo costituzionale scelto dal sistema.
Piuttosto si cerca di farlo secondo un criterio diverso: dell’intensità
con cui una Corte è incline a raccogliere in sé il potere di risolvere le
controversie costituzionali; la misura di questo spostamento prende
come contesto le relazioni di tale Corte con il giudice comune e anche
quello sovranazionale, tenendo conto che « a contextual approach is
not an invitation to abandon principles » (SELZNICK, 2003, p. 184).

Per illustrare ciò il capitolo considera i sistemi dell’Italia e del Brasile


che, sebbene contrastanti in termini di tipo o modellazione di giustizia
costituzionale, mostrano somiglianze nella possibilità di oscillare tra
alcune forme di decentramento della giurisdizione costituzionale la
cui esistenza non era ovvia a prima vista. Si cerca di dimostrare che
l’attività del giudice costituzionale può essere partecipata, per esempio,
al giudice ordinario persino in un sistema tecnicamente centralizzato

178 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

ma, altresì, intensamente accumulata nel giudice costituzionale in un


sistema tecnicamente diffuso (o duale).

Inoltre, la funzione dell’interpretazione costituzionale si vede


senz’altro influenzata da questo scenario, sia in termini teorici che
in termini pratici. Invero, nel caso del decentramento di un tribunale
costituzionale, i metodi ermeneutici utilizzati dai suoi membri saranno
progressivamente disseminati e raffinati per favorirne l’uso da parte di
altrettanti organi giudiziari. In via di ritorno, il tribunale stesso potrà
essere colpito da come altri giudici interpretano un caso secondo la
Costituzione; forse ciò lo porta ad acquisire nuovi strumenti per il
suo ruolo di custode del sistema e a cambiare o stabilire una propria
dottrina giurisprudenziale dedicata all’interpretazione democratica dei
testi normativi, specie riguardo al bilanciamento tra valori fondamental1.

2 CONDIVISIONE DI GIURISDIZIONE TRA GIUDICI


(COSTITUZIONALE E COMUNE) NEI SISTEMI
TECNICI SEMI-ACCENTRATI ITALIANO E QUELLO
DIFFUSO (O DUALE) BRASILIANO. L’INFLUENZA
DELLA GIURISPRUDENZA COSTITUZIONALE
SULL’INTERPRETAZIONE DELLA MAGISTRATURA

Spesso le Corti (supreme o costituzionali) condividono la


giurisdizione, in modo più o meno intenso, con i giudici che compongono
i rami della giustizia comune (ordinaria, amministrativa, elettorale,

1
Sulle tracce di una dottrina giurisprudenziale che guidi le Corti supreme nelle nuove
sfide democratiche, cf. Barak (2002, p. 160-161): « I hope that in the future we will have
a better understanding of the tools with which the court fulfills its role. Jurisprudence
and case law must provide the courts with an acceptable doctrine for the interpretation
of constitutions and statutes. It is a badge of shame for us all that such a doctrine has
not yet been established. I also hope that jurisprudence will provide us with a better
understanding of the tool of ‘balancing’ and aid us in determining the ‘weight’ of
competing values. I am convinced that with globalization, comparative law will play an
increasingly prominent role. »

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022. 179
HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

ecc…) Da un lato, in termini di giurisdizione costituzionale, questa


distribuzione può sembrare più esplicita in un sistema di controllo
di costituzionalità diffuso e/o duale, ad esempio in quello brasiliano,
in cui tutti i giudici sono autorizzati a disapplicare una legge che sia
in contrasto con la Costituzione in un caso concreto. Si tratta di una
logica che contraddice quella dei sistemi tecnicamente accentrati,
tramite cui il giudice comune non ha il potere di decidere sulla non-
conformità di una legge alla Costituzione in quanto l’integrità della
gerarchia delle norme sarebbe di competenza esclusiva del giudice
costituzionale, mediante il cd. “monopolio di annullamento delle leggi”
oppure Normverwerfungsmonopol (GRABENWARTER, 2011, p. 2).

Tuttavia questo non significa che nei sistemi accentrati il giudice


comune non abbia il compito di svolgere, in qualche modo e con qualche
intensità, una quota della giurisdizione costituzionale. Piuttosto, pur
quando il giudice comune non può, da solo, disapplicare una legge in
conflitto con la Costituzione, egli può diventare soggetto a un obbligo di
dare alla legge stessa un’interpretazione costituzionalmente conforme.
Ne è un esempio il sistema italiano dove, sebbene il monopolio
dell’annullamento delle leggi resti al giudice costituzionale, questo ha
delegato a qualsiasi tribunale il potere di scegliere l’interpretazione più
compatibile con la Costituzione a partire da 1996 (ROMBOLI, 2020,
p. 3)2. Come si approfondirà più avanti, anche se questa condivisione tra
giudice costituzionale e giudice comune in Italia appare meno esplicita
e meno intensa che in Brasile (che ha un sistema formalmente diffuso)
non si può negare che anche nel caso italiano il giudice comune si
relaziona con la giurisdizione costituzionale in modo rilevante.

2
Como sottolinea Romboli (2020, p. 3): « [n]ella prima occasione, infatti, il tema era
giustificato da quella giurisprudenza, inaugurata nel 1996, che invitava i giudici a
risolvere loro stessi le questioni di costituzionalità attraverso l’utilizzo dei propri poteri
interpretativi e nei limiti da questi consentiti, senza passare dal Giudici costituzionale, »
Quindi, questo avviene nel sistema italiano soprattutto quando, secondo Romboli (2015,
p. 50): « Il giudice comune usa i suoi poteri di interpretazione per valutare se è possibile
superare i dubbi di incostituzionalità attraverso un’interpretazione adeguata.»

180 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

In effetti, l’equilibrio di potere stabilito tra il giudice costituzionale


e il comune è dinamico e variabile secondo le circostanze di ogni sistema
di giustizia costituzionale. Tuttavia, come sostiene Martinez Dalmau
(2021, p. 727), bisogna tenere presente che: « Il giudice comune che
aiuta a garantire la conformità attraverso l’interpretazione è un giudice
materialmente costituzionale » anche se non lo è formalmente.

D’altro lato, una seconda condivisione giurisdizionale tra giudici


(costituzionale e comune) può avvenire in relazione alla giurisdizione
ordinaria che, eccezionalmente, si verifica sia nei sistemi diffusi che
in quegli accentrati. In altre parole non è raro che le Costituzioni
definiscano che il tribunale costituzionale sia incaricato di perseguire
e giudicare casi civili, penali, amministrativi o elettorali che sarebbero
spesso di competenza dei giudici ordinari ma che, a causa della natura
dell’autorità o dell’interesse coinvolto, saranno analizzati direttamente
dal giudice costituzionale3. È il caso, per esempio, del procedimento
d’accusa che si svolge originariamente in una Corte costituzionale per
presunti crimini commessi da un capo di governo o di stato nell’esercizio
della sua carica politica4. Sebbene le questioni di fatto non siano
considerate oggetti tipici della giustizia costituzionale, anche in casi di
questa natura i giudici costituzionali possono svolgere un importante
ruolo didattico nel senso di insegnare ai giudici ordinari a imporre

3
Xavier Philippe, nel Corso di « justice constitutionnelle comparée », tenuto al Master
2 Droit comparé dell’Università Sorbonne-Pantheon, 1 semestre, 2 anno 2021-2022,
classifica come contenzioso costituzionale specifico le ipotesi di contenzioso elettorale,
contenzioso di partiti e raggruppamenti politici, altri contenziosi specifici (ineleggibilità
o destituzione del capo dello Stato). Invece il professore classifica come veri e propri
contenziosi costituzionali quelli riguardanti la gestione dei conflitti tra enti pubblici
(negli Stati composti - federali: centro/periferia; negli Stati unitari - conflitti tra organi
dello Stato) e la tutela dei diritti fondamentali.
4
Per esempio, in Italia (1947) - Cost. 1947, art. 134. La Corte costituzionale giudica: [...]
sulle accuse promosse contro il Presidente della Repubblica, a norma della Costituzione.
In Brasile, a sua volta - art. 102, I, b, Cost. 1988 (BRASIL, 2016). Compete ao Supremo
Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: processar e
julgar, originariamente: nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-
Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-
Geral da República.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022. 181
HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

soluzioni individualizzate e conformi alla Costituzione. Inoltre, la Corte


stessa può prendere i casi di contenzioso ordinario per ripensare la sua
dottrina riguardante il contenzioso costituzionale5.

Oltre alle variazioni che questi casi di giurisdizione condivisa


possono presentare in un dato sistema è abbastanza frequente che
un giudice comune sia influenzato dalle tecniche di interpretazione
adottate dal giudice costituzionale nel valutare la compatibilità della
Costituzione con altre norme del sistema o con il caso specifico.
In questo senso i giudici comuni che cominciano ad agire con un
comportamento interpretativo più vicino a quello delle corti supreme
o costituzionali funzionano spesso come un elemento importante di
collaborazione della giustizia costituzionale, rafforzando la protezione
dei diritti fondamentali.

5
In Brasile, la Azione Penale n° 470 (BRASIL, 2013) è stato il più grande caso penale
giudicato direttamente dal STF. Concluse le investigazioni la Procura generale ha
presentato denuncia contro quaranta accusati su crimini commessi contro la pubblica
amministrazione. Uno dei punti più interessanti del caso ordinario riguarda il fatto secondo
cui, durante la deliberazione sul ricevimento della denuncia, la Corte ha definito se la
Corte processerebbe tutti gli accusati oppure soltanto quelli con foro per prerogativa di
funzione fissato nel STF, secondo regole di competenza predefinita dalla Costituzione. Il
relatore, giudice Joaquim Barbosa, ha proposto il dismembramento del caso tra il STF e
il giudice comune, ripartendo con questo il processamento degli accusati senza funzione
pubblica gli garantisse il giudizio diretto dal giudice costituzionale. Tuttavia, il collegio
ha rigettato la proposta, nella misura in cui il criterio del dismembramento (previsto
dal art. 80 del Codice di procedura penale, il quale disciplinava la competenza penale
costituzionalmente fissata) era inconveniente data la complessità del caso. La Corte
ha quindi adottato un altro criterio, cambiando la sua stessa giurisprudenza: il criterio
della connessione (ai sensi del art. 76 del Codice di procedura penale) tra i supposti
crimini commessi da tutti gli accusati prevale sul dismembramento in base al foro per
prerogativa di funzione. Cf. BRASIL, 2006. L’unico riferimento all’aspetto costituzionale,
anche se indiretto, è stato fatto dal giudice Gilmar Mendes durante tutta la deliberazione.
Secondo lui, come indicato dalla giurisprudenza della STF, il criterio di connessione
(art. 76 del Cpp) non è mai stato dichiarato illegittimo nel corso degli anni. Tuttavia, nel
caso in esame, l’uso di questo criterio implicava l’assorbimento di competenze di altre
istanze da parte della Corte Suprema, a titolo di corresponsabilità penale tra gli imputati
(BRASIL, 2006, p. 61-62). Anche così, il giudice Mendes e lo stesso STF non hanno
affrontato la questione costituzionale più delicata: se una norma infra-costituzionale
possa modificare o estendere la competenza del STF stabilita direttamente dalla
Costituzione. In questo senso, qualche espansione o modifica ha finito per avvenire
attraverso la deliberazione del plenum, ma implicitamente.

182 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

Da questo momento in poi c’è un punto di rottura con la teoria


di Montesquieu, il qualesostiene. nell’Esprit des lois (livre XI, chapitre
VI). che: « Les juges de la nation ne sont, comme nous avons dit, que
la bouche qui prononce les paroles de la loi; des êtres inanimés qui
n’en peuvent modérer ni la force ni la riguer. » Tale idea, significata
soprattutto dalla scuola esegetica francese, limitò il giudice a un mero
riproduttore meccanico della legge, tenuta come unica fonte del diritto
esistente, specie dopo la promulgazione del Codice civile francese del
180466. Ovvero, come interprete, il giudice comune adotterebbe un
mero metodo sillogistico normativamente sterile che non rivelerebbe
l’interpretazione giudiziale come un poter reale7.

Dunque, con la maturazione della giustizia costituzionale in ogni


sistema8, la predominanza della scuola esegetica cede gradualmente

6
In opposizione al significato dato dalla scuola esegetica, v. Dauchy (2014, p. 256), che
sostiene che è improbabile che Montesquieu intendesse dare alla sua metafora ‘il giudice
è la bocca che pronuncia le parole della legge’ una portata così ampia e radicale come
quella che le concederà l’Assemblea costituente. L’obiettivo di Montesquieu, a dire
il vero, è solo quello di sollevare il problema della relazione tra il giudice, principale
maestro nell’applicazione della legge e il legislatore, responsabile della redazione di
questa legge. È vero che un tale autore propone, usando la terminologia dell’Esprit
des lois, l’attuazione di un meccanismo necessario di contrappeso reciproco tra il
potere giudiziario e quello legislativo, meccanismo che conduce necessariamente e
inevitabilmente a un rapporto di subordinazione della giustizia alla legge e, quindi, del
giudice al legislatore (distinto a sua volta dal potere esecutivo) ma non ha mai inteso
negare al giudice ciò che costituisce la sua missione essenziale, cioè l’interpretazione
della legge generale. In questo senso, se il giudice è “la bocca della legge”, è proprio
perché spetta a lui, attraverso un ragionamento basato sulla legge, determinare il
significato che si deve dare alla legge o, più precisamente, e attraverso un approccio
teleologico, determinare il significato che il legislatore ha voluto dare alle parole della
legge.
7
A proposito: « La constitution [française] actuelle hérite incontestablement de cette
culturale politique, puisqu’elle consacre, en son titre VIII, non un ‘pouvoir’ mais une
‘autorité’ judiciaire. » (DUHAMEL; TUSSEAU, 2020, p. 1294).
8
Vale la pena rafforzare che, negli Stati Uniti, il controllo di costituzionalità è già
riconosciuto dalla prassi giudiziaria di Marbury contro Madison nel 1803 come un carattere
fondamentale della Cost. 1787. Anche se tale proposizione non fu espressamente dichiarata
nel testo costituzionale è certo che la maggior parte dei costituenti americani sembrava
riconoscere come ovvio il potere dei tribunali di dichiarare una legge incostituzionale.
A questo proposito, secondo un notevole studio di Charles Beard, per esempio, dei
cinquantacinque membri della Convenzione federale, non meno di venticinque erano

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022. 183
HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

il passo alla scuola normativista, secondo cui la Costituzione e i suoi


principi governano l’ordine giuridico in modo tale da influenzare
l’interpretazione delle leggi da parte dei giudici9. Di conseguenza ciò
produce una discontinuità nella dicotomia tra la creazione della norma
(che spetterebbe al legislatore) e la sua applicazione (che spetterebbe
al giudice) nella misura in cui un giudice che decide in base al parametro
costituzionale è anche creatore normativo. In questo senso, il giudice
costituzionale utilizza metodi variabili di interpretazione che non
sempre concordano con la visione esegetica ma riguardano invece
un approccio progressivo10. Inoltre, ulteriori ricerche rivelano che uno
stesso tribunale costituzionale non usa sempre lo stesso metodo di
interpretazione11. La scelta del metodo è forse strategica, a seconda

direttamente o indirettamente a favore della revisione giudiziaria della Costituzione.


Cf. BEARD, 1962. Inoltre, Alexander Hamilton preconizzò chiaramente questa facoltà
giudiziaria già nel noto articolo 78 del Federalista. D’altra parte, nell’Europa continentale,
le costituzioni moderne fecero un percorso opposto, cioè diedero esclusivamente
all’organo politico il potere di decidere sulla norma costituzionale. Sui giudici ordinari
europei nell’epoca del costituzionalismo moderno poggiava l’incredulità o il sospetto che
fossero contrari all’interesse del popolo. Pertanto, ai magistrati europei non fu dato alcun
margine di discrezionalità interpretativa per seguire esattamente la volontà stabilita dal
legislatore ordinario. Tale situazione in Europa, soltanto, cambia senz’altro con l’avvento
delle costituzioni contemporanee e democratiche del post-seconda guerra.
9
Sul potere normativo che tocca al giudice dall’influenza della scuola normativa, cf.
Duhamel, Tusseau (2020, p. 1294) ss. Per quanto riguarda il ruolo creativo del giudice
nell’interpretazione normativa: “Lorsqu’un tribunal tranche un litige entre deux parties
ou qu’il condamne l’accusé à une peine, il applique une norme générale […] ; mais il
crée simultanément une norme individuelle qui prévoit qu’une sanction précise doit
être exécutée à l’encontre d’un individu. […] La décision juridictionnelle est clairement
[créatrice] dans la mesure où elle ordonne l’exécution d’une sanction concrète contre un
individu, le délinquant. Son caractère [créateur] provient aussi […] de ce qu’elle établit
les faits qui conditionnent la sanction° Dans l’univers du droit, il n’existe pas de fait « en
soi », de fait « absolu », il n’y a que des faits établis par un organe compétent “au terme
d’une procédure prescrite par le droit (KELSEN, 1997, p. 188-190).
10
Prendendo in considerazione la classificazione dei quattro approcci all’interpretazione
costituzionale proposta da Sustein (2005, p. 281), la funzione del giudice potrà
adottare un approccio perfezionista (adottato da molti giudici progressisti per rendere
la Costituzione la migliore possibile); minimalista (scettico sulle teorie interpretative
e credente in decisioni meno estese, concentrate sul caso concreto piuttosto che su
proposizioni generiche); massimalista (in cui si favorisce il processo politico democratico,
il cui centro di gravità è il legislatore); o fondamentalista (per cui il significato della
Costituzione rimane quello del momento della sua ratifica.
11
A questo punto, cf. Barroso (2018b, p. 244). Con riferimento al STF brasiliano, « [é]

184 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

di quale degli strumenti esistenti è il più appropriato per fornire


una soluzione completa al caso in esame, cioè basata più nel piano
dell’efficacia che nel piano della validità (MEZZANOTTE, 2014, p. 115)12.

Il potenziamento creativo del giudice costituzionale risuona


anche nel giudice comune. In altre parole la relazione tra i primi
porta invariabilmente i secondi in contatto con una “nuova teoria
dell’interpretazione”, secondo la quale le leggi devono sempre essere
riesaminate da una chiave costituzionale. A questo punto l’idea del
giudice come “la bouche de la loi” si dissolve progressivamente. Questo
vale per sistemi tecnicamente accentrati come l’Italia dove il giudice
comune, anche se non ha ricevuto il potere di controllo di legittimità
delle leggi dalla Cost. 1947, ha imparato a materializzare la Costituzione
nel caso concreto, da un lato, per mezzo dell’interpretazione e delle
sue costanti conversazioni con il giudice costituzionale. Occorre
quindi sottolineare che il sistema accentrato italiano è “il più diffuso
d’Europa”13, vale a dire: a differenza delle vie di accesso in altri sistemi

importante destacar que não há um magistrado que em sua prática jurisdicional seja
sempre minimalista ou perfeccionista. Nos casos da fidelidade partidária, da cláusula de
barreira e da inelegibilidade, por exemplo, o Min° Eros Grau assumiu um posicionamento
nitidamente minimalista e formalista, ao passo que no caso do amianto aproximou-se,
conforme foi visto, do modelo perfeccionista. » (SILVA, 2008, p. 139)
12
In Brasile vale la pena di leggere in Pereira e Gonçalves (2015, p. 133): « Superado
esse panorama histórico e pacificada a ideia de supremacia constitucional, opera-se
um alargamento do conceito e das finalidades da Constituição. Ela não se resume ao
ápice de uma pirâmide normativa autossuficiente, mas passa a ser entendida como
um documento com múltiplos campos de irradiação, conformando o agir dos agentes
públicos e da sociedade como um todo. Essa assunção de novas tarefas impõe uma
revisão do conceito de inconstitucionalidade, reconhecendo-se que essa categoria nem
sempre se resume ao exame de validade de atos estatais e da eficácia jurídica das
normas constitucionais, passando a abarcar a noção de efetividade da Constituição. »
13
È un’espressione usata dal professor Romboli (2016, p. 517-519) da cui merita di essere
estratta la seguente citazione, contenuta alle?: « Il modello di giustizia costituzionale
seguito in Italia viene inserito, come noto, nei modelli misti, in quanto via di mezzo
tra accentrato e diffuso, a seguito della previsione della via di accesso del giudizio
incidentale (un modello accentrato ma a iniziativa diffusa). Se questo è comune a molte
altre esperienze dell’Europa continentale, la particolarità del caso italiano consiste nel
fatto che, mentre le altre esperienze sono caratterizzate dalla presenza di ulteriori vie di
accesso al Giudice costituzionale, oltre quella incidentale, in Italia invece la nostra Corte

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022. 185
HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

di giustizia costituzionale in Italia sono soprattutto gli stessi giudici


comuni a sollevare il dubbio motivato di illegittimità presso la Corte
costituzionale, in qualità di suoi gatekeepers14. Perciò, forse con più
accuratezza tecnica, si dovrebbe dire che un tale sistema è di natura
semi-accentrata15.

Ciononostante il profillo costituzionale del giudice comune


non è avvenuto subito alla nascita dell’attuale ordine costituzionale
italiano. Anzi, fino all’installazione della Corte costituzionale (1956) la
magistratura fu autorizzata a esercitare una sorta di controllo diffuso
(secondo la VII disposizione transitoria costituzionale) ma ciò non
si è tradotto in successi verso la professionalità della magistratura
(ROMBOLI, 2008, p. 323-326). All’epoca i membri della magistratura,
soprattutto della Corte di cassazione, cercarono di mantenere una
separazione tra il livello di legalità e quello di costituzionalità, senza
valorizzare la Costituzione come fonte di diritto. Questa situazione
ritardò il cambio di paradigma teorico (da un’interpretazione orientata
al diritto a un’interpretazione orientata alla costituzionalità) con

inizia a funzionare ed eserciterà le sue funzioni per più di venti anni basandosi solamente
sulla via incidentale. La via principale, infatti, stante la inattuazione per molti anni delle
regioni ordinarie sarà praticata in pochi casi (con riguardo alle regioni speciali), così
come pure la via dei conflitti tra enti e tra poteri. Se il modello diffuso si caratterizza
anche per il fatto di valorizzare e porre fiducia nell’attività del giudice, possiamo dire
che, limitando di fatto l’accesso alla sola via incidentale, il nostro modello di giustizia
costituzionale, sia stato in Europa quello ‘più diffuso’ fra tutti i modelli accentrati. »
14
« Il necessario dialogo e rapporto diretto con i giudici, unici [o predominanti] ‘portieri’
della Corte, ha inevitabilmente determinato una prevalente coloritura giurisdizionale
dell’attività del nostro Giudice costituzionale, dando un decisivo apporto allo sviluppo
dell’’anima’ giurisdizionale rispetto a quella politica » (ROMBOLI, 2016, p. 519). Nel
giudizio in via incidentale il giudice ordinario (a quo) esercita inevitabilmente un controllo
di costituzionalità, nella misura in cui rimette la questione al giudice costituzionale (ad
quem) solo se ha un fondato dubbio sulla costituzionalità della norma in questione, o se
è convinto della sua incostituzionalità, a seconda dell’inquadramento fatico-giuridico.
In questo senso, il controllo è diffuso, giacché questa operazione intellettuale spetta ai
giudici comuni, soltanto il potere di annullamento è centralizzato, e monopolizzato dalla
Corte costituzionale (‘Verwerfungsmonopol’), il che rende difficile inquadrare il sistema
nella teoria dell’opposizione di modelli (SEGADO, 2004, p. 1086-1091; JOUANJAN,
2006, p. 83; TUSSEAU, 2009, p. 33-34).
15
Espressione usata da Favoreu e Mastor (2011).

186 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

riguardo al giudice comune. Infatti, la situazione cambia solo quando


la Corte costituzionale, tramite la sua progressiva giurisprudenza,
riesce a condizionare il potere giudiziario a comportarsi secondo lo
standard costituzionale. L’illustrazione di questo quadro vedrà fatta più
chiaramente in seguito.

Dall’altro lato, questa nuova teoria dell’interpretazione acquista


importanza anche nei sistemi di giustizia costituzionale segnati dalla
diffusione tecnica, specie quando, nonostante abbia la competenza
per disapplicare una legge illegittima, la magistratura non lo fa per
la mancanza di strumenti ermeneutici appropriati. Un particolare
esempio è il caso del Brasile in cui il controllo diffuso esisteva già prima
della vigenza della Cost. 1988 ma senza legittimarsi in pratica. Come
sostiene Marcelo Neves le Costituzioni brasiliane precedenti (1824,
1891, 1934, 1946 e 1967) furono meramente nominaliste in modo di non
dare luogo alla concretizzazione dei diritti, nonché « ad aver il gioco
politico sviluppato sopra e al margine della Costituzione mancando,
pertanto, una interpenetrazione tra diritto e politica. » (NEVES, 2018,
p. 312, tradotto da noi).

A causa della profondità e della gravità di questo problema, la


Cost. 1988 è diventata la tappa di un movimento teorico che propone
un’applicazione attiva della Costituzione da parte dei magistrati. In
particolare ciò significa fargli assumere un ruolo di trasformazione
sociale, cioè, sia per invertire l’esclusione sociale dominante e massiccia
presente nel paese (NEVES, 2018, p. 313), sia per dare alla magistratura
stessa un’indipendenza che fu inesistente durante la dittatura militare,
tra 1964-1985 (CARVALHO, 2017).

È certo che questo cambiamento viene rivelato tramite il


riconoscimento dalla giurisprudenza della STF del concetto di
forza normativa della Costituzione. Ciò, tra l’altro, spinge la dottrina

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022. 187
HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

costituzionalista brasiliana verso la questione dell’interpretazione


costituzionale, implicando un graduale rinnovamento dell’intera cultura
giudiziaria nazionale (BARROSO, 2018a, 2018b). Inoltre, la Cost. 1988
crea nettamente strumenti procedurali destinati a cercare di rendere
effettiva la norma costituzionale, di aumentare radicalmente le vie di
accesso al STF16. Di conseguenza ciò ha aumentato notevolmente gli
strumenti ermeneutici dei giudici della Corte e, successivamente, dei
giudici nel complesso.

Ciononostante, come si vedrà in seguito, il decentramento della


giustizia costituzionale in Brasile è alquanto precario, poiché il STF
se ne è andato posizionandosi in un luogo di estremo accumulo di
giurisdizione sul contenzioso costituzionale. Ciò contraddice il fatto
che un sistema tecnicamente diffuso o duale è giustificato, tra l’altro,
dalla pluralità degli interpreti costituzionali. Ma più la STF si espande e
centralizza il potere, più il controllo nel sistema brasiliano può apparire
un po’ più centralistico che in un sistema tecnicamente “accentrato”.

3 L’INTENSITÀ DEI MOVIMENTI DI “DIFFUSIONE” E


“ACCENTRAMENTO”. LA DIFFERENZA TRA DECENTRAMENTO
“ESTERNO” E QUELLO “INTERNO”. IL RUOLO SVOLTO DAL
PRINCIPIO DELLA COLLEGIALITÀ DI FRONTE A QUESTI
FENOMENI

16
Per esempio, oltre agli tipologie di azione che hanno ampliato la via di accesso
del controllo accentrato (azione diretta di incostituzionalità, azione diretta di
incostituzionalità per omissione, azione per incupimento di precetto fondamentale
e, posteriormente, azione dichiaratoria di costituzionalità), furono create azioni per
assicurare i diritti e libertà fondamentali per mezzo della via diffusa (mandato di
ingiunzione e habeas data, oltre ad altre che già esistevano, come l’habeas corpus,
azione popolare e mandato di sicurezza). Come risultato sia il giudice del STF che il
giudice comune brasiliano diventano attori rilevanti della Costituzione, ognuno nella
sua sfera di competenza e, ovviamente, al di là delle sfere di competenze delle altre
istituzioni democratiche, specie il poter legislativo.

188 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

La funzione interpretativa di un giudice costituzionale non si


scontra solo con il legislatore o con la istanza politica del potere. A causa
dell’idea di democrazia maggioritaria, una disciplina giurisdizionale
che innova davanti al legislatore è più che altro una sfida di legittimità
e, quindi, trovare la giustapposizione tra la norma legale e la norma
del giudizio è una questione decisiva per il buon funzionamento del
sistema. Tuttavia possono verificarsi altri tipi di confronti che aiutano a
risolvere le contraddizioni argomentative e a legittimare la costruzione
interpretativa del giudice. In questo senso, al di là del rapporto di
influenza tra giudici costituzionali e ordinari, ci possono essere dei
disaccordi tra i due.

a) Il decentramento verso l’esterno (e di accentramento verso


l’interno)

In primo luogo si può dire che un’eccessiva condivisione o


collaborazione di competenze tra i due giudici (costituzionale e comune)
può avere conseguenze indesiderabili per una buona coesistenza
istituzionale. Ad esempio, in Italia la Corte costituzionale specializzata
ha adottato una precedente stagione giurisprudenziale per delegare
il potere a favore dei giudici comuni, un fenomeno che comporta un
“decentramento esterno”: il potere decisionale è condiviso con altri
centri giurisdizionali al di fuori del centro della Corte stessa.

Ciò accadeva per la crescita di decisioni di inammissibilità dalla


Corte costituzionale, in modo da lasciare la soluzione della questione
costituzionale all’interpretazione conforme della magistratura. Questo
perché alla Corte italiana accedono prevalentemente gli stessi giudici
comuni, che sollevano al giudice costituzionale dubbi di illegittimità su
leggi applicabili a casi concreti (utilizzando la via del giudizio incidentale).
Quanto maggiore è l’autonomia dei giudici comuni nell’esercizio della
funzione d’interpretazione costituzionalmente conforme, tanto più

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022. 189
HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

non è necessario sollevare una questione costituzionale alla Corte.


Questo discorso preso in dismisura può far sì che l’accesso al giudice
costituzionale diventi una procedura sempre più inutilizzabile.

A sua volta, già in una successiva (e attuale) stagione


giurisprudenziale, la Corte costituzionale ha ritenuto che ci fosse troppa
delega alla magistratura, al punto da trovare il giudice costituzionale
delegittimato a esercitare il ruolo di custode del sistema. A questo
punto, come si dirà più dettagliatamente in seguito, la Corte italiana
decide « per l’assunzione o la riassunzione di compiti che, attraverso
le decisioni di inammissibilità, si erano ‘lasciati’ di norma al legislatore
o all’autorità giudiziaria » (TEGA, 2021, p. 430-431). Tale “riaccentrarsi”
o ricentralizzarsi nel confronto del giudice comune – creato dalla
autonormazione e non da fonti politiche di diritto – ha impedito
a lui di utilizzare il potere di interpretazione conforme in modo tale
da monopolizzare il discorso, al punto da provocare una sorta di
svuotamento dell’importanza del giudice costituzionale17. Dunque, la
condivisione della giurisdizione costituzionale tra giudici (costituzionali
e comuni) ha dato luogo a un effetto backslash: il giudice costituzionale
partecipa allo scenario interistituzionale in modo attivo e sempre
secondo il principio di collegialità18. Ciò avviene per evitare un timore

17
Sulla possibilità che questo ri-accentramento consista in una mera manifestazione di
attivismo giudiziario, cf. Groppi (2021, p. 98): « Se è di per sé difficile bollare di “audacia”
il “ri-accentramento” in un sistema accentrato di giustizia costituzionale neppure la ‘ri-
centralizzazione’ vuol dire necessariamente ‘attivismo’. Come è stato ben messo in
evidenza, il fatto che la Corte torni a decidere questioni precedentemente “delegate”
ai giudici comuni, o dichiari incostituzionali norme delle quali in passato si limitava ad
accertare l’incostituzionalità senza pronunciarla, non tocca tutta un’altra serie di aspetti
del ‘minimalismo’ della giustizia costituzionale italiana, nel senso che la Corte resta
strettamente limitata dal principio della domanda, ha fatto utilizzo dell’autorimessione
soltanto in rarissimi casi nella sua storia passata e recente, procede nelle decisioni di
accoglimento secondo il metodo del ‘one case at a time’ (ovvero con accoglimenti
parziali), preferisce pronunciarsi su un unico parametro, considerando gli altri assorbiti,
non si dilunga in obiter dicta o disquisizioni dottrinali. »
18
Il “convitato di pietra” in tale dibattito è il principio di collegialità che caratterizza il
momento della decisione costituzionale, come stabilito dagli artt. 16 e 18 della legge
n° 87 del 1953 e dall’art. 17 delle N°I. (nel testo approvato il 7 ottobre 2008), insieme

190 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

che esisteva già dall’avvento della legge n° 87 del 195 nella primissima
stagione della Corte costituzionale (anteriore all’attuale stagione
di ri-accentramento e quell’anteriore di delega), cioè che il giudice
costituzionale vedesse diminuire gradualmente la propria autonomia e
il proprio prestigio a causa della forza esterna di altre istituzioni.19

A tal proposito, al fine di rimediare all’eccesso di condivisione


della giurisprudenza costituzionale con riguardo al giudice comune, la
Corte costituzionale italiana ha utilizzato il principio della collegialità
quale uno “scudo” contro le principali critiche che potrebbe emergere
dall’overruling verso il ri-accentramento. Ovvero, la collegialità

alla segretezza (messa in discussione, secondo molta dottrina, dalla sentenza n° 18 del
1989) della discussione e del voto in camera di consiglio.
19
Il Gruppo di Pisa ha affrontato il recente caso di dissociazione tra giudice relatore e giudice
relatore presso la Corte costituzionale italiana a partire dalla sentenza n° 278/2020,
attraverso la quale la dottrina ha ravvivato il dibattito sulla necessità/opportunità di
introdurre l’istituto dell’opinione dissenziente nei procedimenti costituzionali. A quel
punto, riguardo alla questione dell’istituzione dell’opinione dissenziente, Tega (2021) ha
sottolineato che: « La domanda che ci viene posta oggi è pressoché la medesima che
ci si fece in occasione dell’adozione della l- n° 87 del 1953: in quel momento l’ipotesi di
introduzione venne scartata proprio per timore che i giudici fossero soggetti a influenze
politiche e che l’autonomia e il prestigio del nuovo organo ne uscisse diminuito: in
particolare si decise in tal modo perché tale istituto «avrebbe potuto condurre, in un
paese come il nostro in cui la vita politica è dominata da organizzazioni di partito,
in maggioranza di massa, a una forma di controllo dell’attività dei giudici da parte di
forze politiche organizzate, controllo che fatalmente avrebbe potuto incidere sulla
indipendenza e sul prestigio della Corte», così si legge nella Relazione della Commissione
speciale sul disegno di legge approvato dal Senato e trasmesso alla Camera il 2 aprile
1949, Atto C. n° 469-A, presentata alla Presidenza della Camera il 17 aprile 1950, 34
(reperibile anche attraverso il sito www.normattiva.it).» (TEGA, 2021, p. 410). Quindi,
l’esternazione di un’unica e coesa argomentazione del Collegio, cioè senza rivelare chi
fosse il giudice interno che non coesisteva con la stessa opinione vittoriosa, rappresentò
fin dalla primissima stagione della Corte italiana un’immunità contro ogni tentativo di
indebolimento politico del giudice costituzionale. Visto il contesto politico del 2021, le
paure espresse nel 1953 possono essere considerate ancora valide? Secondo Il forum
sull’introduzione dell’opinione dissenziente nel giudizio di costituzionalità, promosso
dal Gruppo di Pisa, Fascicolo n° 1/2021, parte della dottrina si è manifestata d’accordo
con l’inclusione dell’opinione dissenziente (a favore dell’iniziativa: Beniamino Caravita
Di Toritto, Alessandra di Martino, Saulle Panizza, Giorgio Repetto, Diletta Tega, Lorenza
Violini; contrari: Valeria Marcenò, Antonio Ruggeri, Marco Ruotolo). Tuttavia, la Corte
costituzionale non ha ancora interiorizzato questo istituto, né per auto-normazione né
per etero-normazione.

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HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

costituisce uno strumento che potenzia l’”accentramento interno” del


giudice costituzionale: il centro decisionale della Corte si definisce dal
suo organo massimo, cioè il Collegio.

A proposito, durante tutte le stagioni della Corte italiana, la


collegialità viene tradizionalmente alzata in risposta alle accuse
di eccessiva politicità rivolte al giudice costituzionale da altre
istituzioni democratiche. Ad esempio, furono le accuse sollevate per
quanto concerne la sentenza n° 466/2005, sulla l. n° 189/2002, il cui
contenuto modificava in senso restrittivo la legislazione antecedente di
immigrazione e di asilo; o quelle pronunce che hanno smantellato le cd.
leggi ad personam adottate dai governi Berlusconi, n. 24/2004, sulla l.
n. 140/2003, 262/2009, sulla l. n. 124/2008 (TEGA, 2021, p. 411). Al fine
di frenare qualsiasi risposta da parte di altre istituzioni interessate a
mettere in discussione le modifiche di espansione o ritrattazione della
sua giurisdizione, la Corte costituzionale invoca un tipo di collegialità
che assorbe totalmente i singoli membri del collegio. Da questo punto
di vista, sia per decidere di aumentare o diminuire la condivisione
della giurisprudenza con il giudice comune, il giudice costituzionale
esteriorizza una coesione, un’apparenza di non-dissenso, in modo da
perseguire l’autolegittimazione (ELIA, 2009).

È giustificato da questo fatto che negli ultimi anni sono emerse


in Italia proposte legislative per introdurre l’opinione dissenziente20.
Inoltre, nell’attuale legislatura, è stata presentata da Alessandro Pagano
e da altri deputati della Lega la proposta A.C. 2560: essa intende
modificare l’art. 18 della l. n. 87/1953 inserendo nel corpo della sentenza

20
Cioè, con lo scopo di ridurre la possibilità che l’accentramento giurisdizionale della CC
possa portare a sentenze sgradite. L’ultima iniziativa su questo tema è una proposta di
legge costituzionale (A.C. 2953), presentata da Andrea Colletti e altri membri del gruppo
misto, ex-deputati del Movimento 5 Stelle, intesa a modificare la legge costituzionale
n° 1/1948 mediante l’introduzione di un ricorso alla Corte italiana da parte di una
minoranza parlamentare e di un’opinione dissenziente (DI MARTINO, 2021, p. 422)

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LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

l’indicazione del numero dei giudici-membri che hanno formato la


maggioranza e prevedendo la facoltà per il giudice costituzionale di
redigere un parere dissenziente o, semplicemente, dichiarare il proprio
dissenso (DI MARTINO, 2021, p. 423)

È certo che nessuna riforma costituzionale è stata approvata a


questo riguardo. Neanche l’opinione dissenziente è stata approvata
da leggi ordinarie. Tuttavia bisogna considerare che, anche se ci
sono rischi derivanti dall’esposizione della Corte, vi è una tendenza
alla riduzione della centralizzazione interna in relazione alla Corte
stessa. Per esempio, permettere ai giudici di dissentire pubblicamente
dall’opinione della maggioranza del Collegio potrebbe portare a una
maggiore chiarezza nel modo in cui il contenzioso costituzionale viene
condotto, soprattutto quando esso si trova così (ri)centralizzato nella
Corte costituzionale.21

b) L’accentramento verso l’esterno (e decentramento verso


l’interno)

In secondo luogo l’eccessivo accumulo di diverse competenze,


costituzionali o ordinarie, in capo solo alla Corte (suprema o
costituzionale) e a scapito del giudice comune può portare invece
all’esaurimento istituzionale della Corte accumulatrice, nonché a
una iper-esposizione dei suoi membri all’opinione pubblica e a un
indebolimento della legittimità del giudice comune come attore
dell’applicazione della Costituzione. Ciò accade nel caso del Brasile,
in cui il sistema è formalmente diffuso (o duale) ma in cui l’accumulo
di giurisdizione è di fatto sempre più accentrato nella Corte Suprema,

21
In altre parole, il giudice-membro della Corte potrebbe « reclamare la possibilità di
dissentire rispetto al superamento di dottrine classiche come quella delle cd. rime
obbligate in materia penale o quella Granital in tema di inversione della cd. doppia
pregiudiziale, entrambe notevolmente aggiornate dall’attuale stagione giurisprudenziale
» (TEGA, 2021, p. 431).

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HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

rivelandosi come una delle cause della cd. disfunzionalità della giustizia
costituzionale nazionale (GODOY, 2021, p. 10134-1069). In particolare,
per rispondere all’altissimo carico di casi che gli arrivano davanti,
il STF, invece di distribuire veramente il suo potere a favore di altri
organi giudiziari, ha determinato prevalentemente conuna peculiare
diffusione al suo interno: una delega al giudice relatore del caso di
un ampio giudizio monocratico (per quanto riguarda l’attribuzione per
decidere le tutele cautelari in qualsiasi azione o ricorso, sia di controllo
astratto che di controllo diffuso, ad referendum dell’organo Plenario o
della Turma competente).22 Ciò fa sì che la Corte Suprema brasiliana,
intorno al suo stesso centro, abbia forse lo status di “Corte più diffusa
del mondo” nella misura in cui ognuno dei suoi undici membri diventa
un’isola di giudizio23.

La Corte brasiliana è forse un esempio tipico della riluttanza a


sottomettersi al principio di collegialità. È vero che essa segue una
tipologia in cui le decisioni di merito sono prese secondo i criteri
della maggioranza dell’intero tribunale. Tuttavia, la Corte stessa ha
sviluppato l’abitudine giurisprudenziale di permettere ai singoli membri
di prendere decisioni monocratiche di natura protettiva. Sebbene tali

22
Rispetto all’art. 21, IV e V, del regimento interno del STF, sono attribuzioni del giudice
supremo relatore: iv - sottoporre al Plenario o alle Turme, nei casi di loro rispettiva
competenza, le misure precauzionali necessarie per la protezione dei diritti suscettibili
di riparazione incerta, o anche per garantire l’efficacia di una successiva decisione sul
caso; v - in casi urgenti, per determinare le misure ai sensi del paragrafo precedente,
ad referendum del Plenum o della Turma (BRASIL, 2020); (...). Come evidenziano il III
Relatório do Supremo em números - O Supremo e o tempo (FALCÃO; HARTMANN;
CHAVES, 2014); l’indagine condotta da Pública - agenzia di giornalismo investigativo,
del 2018 (BELISÁRIO, 2018) e i dati trovati dal portale Jota, del 2018 (TEIXEIRA,
2019), il numero di decisioni monocratiche e con esse il numero di decisioni cautelari
monocratiche in Azioni dirette di incostituzionalità (ADI), è cresciuto esponenzialmente
dal 1989 al 2018. Al contrario, vi è un palpabile calo delle decisioni collegiali. Con riguardo
alle azioni di controllo accentrato in generale il numero di decisioni monocratiche è
cresciuto da 227 nel 2014 a 650 nel 2018. Inoltre, dal 10/09/2014 al 20/12/2018 ci sono
state novantaquattro decisioni cautelari monocratiche in ADI contro solo dieci concesse
dal plenario del STF nello stesso periodo. Cf. (GODOY, 2021, p. 1039-1940).
23
Cf. Falcão; Arguelhes; Recondo, 2016; Mendes, 2010; Mendes, 2014; Mendes, 2017.

194 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

decisioni debbano in linea di principio essere approvate dal plenario


del STF al più presto, in pratica permettono ai giudici-membri che le
emettono di sospendere indefinitamente l’applicazione di una legge
con efficacia erga omnes.

Questo perché l’ordine del giorno della plenaria del STF è fissato
in modo occasionale, cioè, non si è richiesto di votare una decisione
monocratica pronunciata da molto tempo purché il giudice-relatore
e il giudice-presidente decidano di includerla per referendum del
plenario. L’accettazione da parte di ogni giudice-membro della
responsabilità personale nel promuovere queste decisioni allarga il
margine di apprezzamento dei giudici costituzionali, nella misura in cui
si relativizza la collegialità, un principio che costituisce un filtro contro
il controllo di legittimità abusivo, accanto ad altri filtri come la dottrina
della Corte (suprema o costituzionale), i vincoli agli argomenti, l’auto-
contenzione, ecc… (TERRÉ, 2007, p. 167-191).

Anche se il giudice relatore non può decidere direttamente sul


merito della questione costituzionale, le sue decisioni monocratiche
sono notevoli al sistema. A tal riguardo occorre sottolineare la decisione
monocratica del giudice del STF Alexandre de Moraes che, il 17/02/2022,
nelle ADI n° 7.042 e ADI n° 7.043 (azioni di controllo tecnicamente
accentrato) ha dato un’interpretazione costituzionalmente conforme
per “sospendere” una riforma legislativa (Legge n° 14.230/2021) che
ha eliminato l’attribuzione agli enti territoriali di muovere l’azione
giudiziale di irregolarità amministrative contro autorità e funzionari
pubblici riservandola alla Procura della Repubblica, come già avviene
nell’azione penale. Il giudice Moraes ha compreso che una tale riforma
ridurrebbe “la lotta contro la improbità amministrativa”, nonostante
non esista un parametro costituzionale che stabilisca che spetti alle
autorità territoriali proporre questo tipo di azione giudiziaria e che non
ci sono ancora indizi che suggeriscano che la Procura stia applicando la

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022. 195
HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

suddetta attribuzione in modo inefficiente. Il giudice poteva aspettare


che l’eventuale illegittimità fosse dichiarata, in via di controllo diffuso,
dai tribunali ordinari, oppure che fosse dichiarata dal collegiato in modo
da coinvolgere altri interpreti nel giudizio (BRASIL, 2022c). Tuttavia, ha
preferito “abbattere” il risultato del processo legislativo da solo, vale a
dire sospenderlo con effetti erga omnes24.

Secondo il IX “Relatório Supremo em Numeros” (LEAL;


BARCELLOS; ALMEIDA, 2020), tra il 2017 e il 2018 si è notato una
crescita del numero di decisioni monocratiche favorevole alla tutela
cautelare costituzionale (di più di 7.000 annuale nel 2017 a verso 11.000
nel 2018) nonché il numero medio di giorni di vigenza tra il giudizio
liminare e il giudizio di merito è in molti casi superiore a 6 anni. Ciò fa
sì che:

[…] le leggi siano sospese da misure cautelari che


alterano e consolidano nuovi rapporti giuridici. Essi
alterano non solo la situazione giuridica delle parti ma
il diritto brasiliano nel suo insieme per quanto riguarda
la norma giuridica attaccata. (FALCÃO; HARTMANN;
CHAVES, 2014, p. 30, tradotto da noi).

24
Paradossalmente, la decisione monocratica è inizialmente motivata dall’argomento
che la concessione di misure cautelari in azioni di tipo accentrato è eccezionale
perché relativizza il principio di presunzione di costituzionalità degli atti legislativi.
Successivamente, però, il giudice è auto-investito di un potere sufficiente per congelare
il prodotto legislativo. Il dispositivo segue in questo senso: « Diante do exposto, com
fundamento no art. 10, § 3º, da Lei 9.868/1999, e no art. 21, V, do RISTF, DEFIRO
PARCIALMENTE A CAUTELAR, ad referendum do Plenário desta SUPREMA CORTE,
para, até julgamento final de mérito: (A) CONCEDER INTERPRETAÇÃO CONFORME
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL ao caput e §§ 6º-A, 10-C e 14, do artigo 17 da Lei
nº 8.429/92, com a redação dada pela Lei nº 14.230/2021, no sentido da EXISTÊNCIA
DE LEGITIMIDADE ATIVA CONCORRENTE ENTRE O MINISTÉRIO PÚBLICO E AS
PESSOAS JURÍDICAS INTERESSADAS PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO POR ATO DE
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA; (B) SUSPENDER OS EFEITOS do § 20, do artigo 17
da Lei nº 8.429/92, com a redação dada pela Lei nº 14.230/2021, em relação a ambas as
Ações Diretas de Inconstitucionalidade (7042 e 7043); (C) SUSPENDER OS EFEITOS
do artigo 3º da Lei nº 14.230/2021» (BRASIL, 2022c, p. 13).

196 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

Quindi, il giudizio monocratico del relatore, da un lato, influisce


sull’accoglimento/rigetto del merito dalla collegialità in sé, quale una
“giurisprudenza o precedente personale”; dall’altro produce risultati al
di fuori del tribunale, condizionando il processo decisionale di altre
istituzioni democratiche (giudice comune, legislativo, governo etc…)
purché il collegio non controlli tali pronunce monocratiche25.

Nessuna delle ipotesi di giudizio monocratico dal relatore sembra


a priori aprire alcuna possibilità per l’esercizio di un potere individuale
rilevante e indipendente del Collegio. Ma ci sono possibili usi strategici
per le decisioni monocratiche. Esse possono aiutare ciascun giudice a
portare avanti la propria agenda giurisprudenziale con effetti anche al
di fuori della Corte suprema, pur senza sottoporre queste posizioni al
vaglio del processo collegiale, riflettendo così un esercizio individuale
del potere26.

25
Sull’uso delle decisioni monocratiche come precedenti, Arguelhes e Ribeiro (2015,
p. 127): « Nos termos das regras oficiais vigentes, deveria haver reduzidas oportunidades
para que a ação de um(a) Ministro(a) seja suficiente para produzir efeitos no mundo
externo ao tribunal. Formalmente, o poder individual mais explícito que o desenho
do STF reconhece a seus Ministros talvez seja o de decidir monocraticamente pela
concessão de liminares. Mesmo assim, essa é uma decisão precária, que pode ser
revista a qualquer tempo pelo Plenário. Mas essas regras formais são insuficientes
para explicar o comportamento do STF e a atuação dos seus ministros no Brasil de
hoje. O comportamento estratégico de um determinado ator relevante – no caso, o
Congresso ou o Presidente – pode se orientar, também, por ações que, embora não
necessariamente formalizadas em termos de regras escritas, podem servir como
sinalizações de futuras decisões e fornecer inputs para antecipações estratégicas por
parte de atores políticos externos ao STF. »
26
Arguelhes e Ribeiro (2015, p. 139, tradotto da noi): « Ciò si verifica […] in casi in cui
nulla è oggettivamente deciso, il giudice relatore fa uso della sua libertà di costruire
la motivazione della decisione come vuole per (i) annunciare tesi giuridiche
potenzialmente controverse e (ii) trattare come “giurisprudenza” o “precedente” del
STF tesi già annunciate in passate decisioni monocratiche. Tutto questo senza alcun
tipo di mediazione da parte del processo decisionale collegiale, nel quale, nonostante
la libertà di redigere il suo voto come vuole, il giudice potrebbe almeno essere criticato
direttamente dai suoi colleghi al momento di presentare i suoi argomenti e le sue ragioni
in seduta. »

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022. 197
HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

Sebbene questa “non-collegialità” contribuisca a ridurre l’arretrato


di casi pendenti nel STF, poiché un “tribunale diviso” è in grado di
emettere più decisioni complessive, essa crea altre inquietudini tra
cui: riprodurre in qualche modo, dentro la Corte, le divisioni politiche
esterne a essa; vedere minata l’autorevolezza e la legittimazione
dell’istituzione; aumentare l’incertezza, i conflitti e le controversie;
assistere a un rafforzamento della personalizzazione delle pronunce
e di eventuali eccessi polemici (TEGA, 2021, p. 411). In altre parole, se
questo è un vantaggio per affrontare le statistiche riguardo al numero
di casi pendenti davanti alla STF oggi, in termini di argomentazione o
di qualità, può rivelare un’instabilità nel sistema costituzionale.

Inoltre, la diffusione verso l’interno nel STF causa paradossalmente


una atrofia del controllo diffuso in relazione ai giudici comuni, in quanto
esso è vincolato non soltanto da precedenti costituzionali collegiati in
controllo astratto (art. 28, Parágrafo único, della Lei n. 8.868/1999) e in
controllo concreto (art. 927, II, del CPC/2015) ma anche in via di giudizio
monocratico. Ciò provoca un accentramento o centralizzazione del
giudice costituzionale poiché egli incomincia a esercitare materialmente
una giurisdizione sempre più larga (TEIXEIRA, 2019).

A tal riguardo, dato che l’STF ha diverse vie d’accesso, dal


controllo astratto al controllo concreto, riesce così ad agire in anticipo
rispetto agli altri organi giudiziari sull’interpretazione costituzionale
delle leggi. Secondo Luís Guilherme Marinoni ciò rivela un quadro di
svalutazione del modello diffuso in Brasile perché:

[...] la Corte Suprema interpreta la legge prima


che il dibattito interpretativo si sia fruttificato [e le
corti inferiori della magistratura, specie il Superiore
Tribunale di Giustizia] abbiano avuto la possibilità di
pronunciarsi. (MARINONI, 2019, p. 197-198, tradotto da
noi).

198 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

Pensare che la diffusione verso l’interno, come succede ormai in


Brasile, possa contribuire alla dialettica tra i propri membri del STF è
forse un errore. Ciò perché, a differenza delle deliberazioni nel Collegio,
in cui la opinione dissenziente può produrre una maggiore autorità
argomentativa, nelle decisioni monocratiche non v’è dialogo né scambio
di idee tra giudici-membri, nonché non rare volte esse generano dubbi
rispetto alla mancanza di imparzialità di chi l’ha adottata. Per esempio,
la dottrina ha criticato la decisione monocratica del giudice relatore
Luiz Fux che ha sospeso il dispositivo di legge che crea la figura del
“giudice per le indagini preliminari” nella prima istanza del giudiziario.
Tale decisione – resa nell’ambito delle azioni ADIs n. 6298, 6299, 6300 e
6305 – è stata data ad referendum del plenario. Due anni dopo e senza
alcun referendum plenario, l’ultimo aggiornamento sul sito del STF
riporta che il caso è stato escluso dell’ordine del giorno dal presidente
della Corte, il giudice Fux in persona. Oltretutto non è incluso tra i temi
da presentare nella sessione plenaria del primo semestre dell’anno
2022. Il testo della legge n. 13.964/2019 (BRASIL, 2021), che ha creato
la figura del giudice per le indagini preliminari, era stato approvato
in consensus in entrambe le case legislative e sancito dal presidente
Jair Bolsonaro. Tuttavia questa regola legale non è più in vigore da un
tempo incerto, da quando è stata emessa la decisione monocratica.

Inoltre, nella vita quotidiana del STF, l’eccesso di decisioni


monocratiche a scapito di quelle collegiali può rivelare una sorta di
strategia politica adottata dai giudici per evitare la sessione plenaria,
in modo che l’efficacia della decisione del giudice relatore si prolunghi
senza essere discussa dagli altri giudici-membri. Così, la diffusione
verso l’interno alla Corte suprema brasiliana diventa un palcoscenico
di incertezza giuridica e ha un effetto corrosivo sulla separazione dei
poteri (COM EXCESSO..., 2018).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022. 199
HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

In questo scenario l’unica dissidenza praticabile diventa quella


che deriva del giudice comune di fronte al STF. Ovvero, i tribunali
inferiori non possono decidere i casi concreti in contraddizione con
l’interpretazione della Corte suprema ma possono avvertire la loro
posizione presentando i loro argomenti a favore della modifica della
posizione del giudice costituzionale.

Il dissenso, in questo senso, è molto importante


non solo per l’aggiornamento del diritto, in accordo
con i nuovi fatti e valori sociali, ma anche perché
il diritto venga ripensato con attenzione ad altri
fattori, non messi in discussione o addirittura
debitamente approfonditi. (MARINONI, 2022,
p. 202, tradotto da noi).

Così, l’espansione del giudice costituzionale può trovare nel


giudice comune il necessario contro-argomento per tornare a una
postura più minimalista.

4 DIALETTICA TRA GIUDICI COSTITUZIONALI E COMUNI:


UN RAFFINAMENTO DELLA PROTEZIONE DEI PRINCIPI
FONDAMENTALI NEL CONTESTO DEI PROCEDIMENTI
BASATI SULLA CORRUZIONE E SULLE ORGANIZZAZIONI
CRIMINOSE

La condivisione giurisdizionale tra giudici non è esente dal


disaccordo della Corte (suprema o costituzionale) soprattutto quando
essa vede che la sua preponderanza istituzionale e interpretativa
nel sistema è a rischio dal modo in cui tale condivisione si sviluppa.
Nel caso dell’Italia la condivisione giurisdizionale si è evidenziata in
una stagione di “diffusione” della giustizia costituzionale e dopo è
retrocessa in una nuovissima stagione di “ri-accentramento”. Ciò è
stato il risultato di un ingrandimento del giudice comune che, quale

200 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

gatekeeper della Corte costituzionale, ha iniziato sempre più a non-


sollevare questioni costituzionali a esso e a risolverle sempre più
tramite la via dell’interpretazione conforme. Nonostante ciò nemmeno
il ri-accentramento del giudice costituzionale ha interrotto la dialettica
tra giudici. Anche se il giudice comune ha sofferto una riduzione del suo
margine di valutazione costituzionale la sua condizione di gatekeeper fa
sì che imprescindibilmente la Corte costituzionale rimanga a scambiare
spunti con esso.

Dal canto suo, in Brasile, anche una fase di centralizzazione del


dibattito costituzionale nelle mani della STF non ha impedito ai giudici
ordinari di ottenere un innegabile appoggio ermeneutico costituzionale
appreso dalle decisioni della STF stessa. Questo ha dato ai giudici
ordinari un’inventiva sempre più creativa che deve essere evidenziata
in questo saggio.

Per quanto riguarda l’Italia e il Brasile la ricerca si rivolge ormai


alla questione della giustizia penale, soprattutto quella relativa alla
lotta alla corruzione che ha colpito entrambi i paesi, particolarmente
nel contesto delle operazioni Mani Pulite e Lava Jato. Tuttavia, riguardo
a ogni tentativo di utilizzare un discorso a favore della etica pubblica,
è impensabile che l’esercizio della giurisdizione costituzionale rimanga
in silenzio di fronte agli abusi che si verificano in questi casi. In
questo senso, i tribunali giudiziari offrono un’esperienza che sostiene
fondamentalmente l’idea che il giudice comune utilizza la dottrina della
giustizia costituzionale per evitare che le eventuali accuse infondate di
criminalizzazione della corruzione minino la tutela dei diritti.

In Italia, un caso importante in questo senso è il c.d. Caso Taricco,


il quale emerge da una questione pregiudiziale posta da un tribunale
italiano alla Corte di giustizia dell’Unione europea nell’ambito di un caso
penale concernente la creazione e l’organizzazione di un’associazione

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022. 201
HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

al fine di commettere diversi reati in materia di IVA, allo scopo di


danneggiare gli interessi finanziari. La Corte di Lussemburgo ha stabilito,
ai sensi dell’’art. 325 del TFUE, che se gli Stati sono liberi di scegliere
le sanzioni penali da applicare devono tuttavia garantire che siano
previste sanzioni penali efficaci e dissuasive nei casi di frode grave,
altresì ricordando che, secondo la logica del tertium comparationis,
sarebbe illegittimo che tali misure fossero meno efficaci delle misure
adottate dagli Stati per combattere i casi di frode di gravità equivalente
a danno degli interessi finanziari nazionali (UNIONE EUROPEA, 2015).

Così, la Corte di giustizia ha affermato che, quando la normativa


nazionale in materia di proroga della prescrizione è tale da impedire
l’applicazione di sanzioni effettive e dissuasive in un numero
significativo di casi di frode lesiva degli interessi finanziari dell’UE, il
giudice nazionale sarebbe tenuto a dare attuazione all’art. 325 TFUE
disapplicando, se del caso, le normative nazionali che avessero qualsiasi
effetto di impedire allo Stato membro interessato di adempiere agli
obblighi derivanti da tale disposizione (VIGANÒ, 2016, p. 8).

Tuttavia la Corte d’appello di Milano ha ritenuto che la decisione


“Taricco”, emessa dalla Corte di Lussemburgo, offendesse il diritto
fondamentale alla prescrizione penale. Di conseguenza sollevò una
questione di costituzionalità alla Corte costituzionale riguardante lo
stesso caso, poiché la sentenza Taricco comportava dubbi sui diritti
inalienabili degli imputati, compresi gli effetti retroattivi in malam
partem, in contrasto con il principio di legalità previsto dall’articolo
25 della Costituzione del 1947. In un altro caso la Corte di Cassazione
ha considerato che gli argomenti esposti nella sentenza Taricco non
fossero applicabili al caso in questione poiché non si trattava di un reato
“grave” e il fatto era già stato prescritto. Pertanto, la non applicazione
del diritto nazionale in nome della sentenza Taricco era contraria alla
protezione dei diritti (VIGANÒ, 2016, p. 9).

202 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

L’atteggiamento dei giudici ordinari italiani ha portato la Corte


costituzionale a rinviare il caso alla Corte di Lussemburgo con l’ordinanza
di rinvio n° 24/2017 (ITALIA, 2017); attraverso tale decisione, la sentenza
Taricco sollevava dubbi sui principi supremi dell’ordine costituzionale
italiano e sul rispetto dei diritti inalienabili della persona. Secondo il
giudice costituzionale, la soluzione data allora dalla Corte di giustizia,
in particolare, violava il principio di legalità dei reati e delle pene che
richiede, in particolare, che le disposizioni penali siano definite con
precisione e non possano essere applicate retroattivamente.

In risposta alla Corte costituzionale, la Corte sovranazionale


ha emesso la sentenza 5 dicembre 2017, secondo cui afferma che il
precedente Taricco deve essere seguito, a patto che non comporti
una violazione del principio di legalità dei reati e delle pene a causa
dell’insufficiente determinatezza della legge, o l’applicazione retroattiva
di una legislazione che impone un regime sanzionatorio più severo di
quello in vigore al momento della commissione del reato (TEGA, 2017).
In questo senso la Corte di Giustizia dell’UE ha dichiarato la seguente
tesi:

L’articolo 325, paragrafi 1 e 2, TFUE dev’essere


interpretato nel senso che esso impone al giudice
nazionale di disapplicare, nell’ambito di un
procedimento penale riguardante reati in materia
di imposta sul valore aggiunto, disposizioni interne
sulla prescrizione, rientranti nel diritto sostanziale
nazionale, che ostino all’inflizione di sanzioni penali
effettive e dissuasive in un numero considerevole di
casi di frode grave che ledono gli interessi finanziari
dell’Unione europea o che prevedano, per i casi di frode
grave che ledono tali interessi, termini di prescrizione
più brevi di quelli previsti per i casi che ledono gli
interessi finanziari dello Stato membro interessato, a
meno che una disapplicazione siffatta comporti una
violazione del principio di legalità dei reati e delle
pene a causa dell’insufficiente determinatezza della

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HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

legge applicabile, o dell’applicazione retroattiva di


una normativa che impone un regime di punibilità più
severo di quello vigente al momento della commissione
del reato. (UNIONE EUROPEA, 2017, p. 11).

In Brasile la Corte Superiore di Giustizia (STJ) recentemente ha


promosso una decisione rilevante per la tutela dei diritti nell’ambito del
sistema penale a somiglianza del caso italiano. Il STF, nel RE n. 1.055.941/
SP (BRASIL, 2019), ha stabilito la posizione che è costituzionale
condividere i rapporti di intelligence finanziaria della UIF e il testo
integrale delle procedure di ispezione dell’Ufficio Federale delle Entrate
brasiliano – in cui si definisce l’accertamento fiscale – con gli organi della
Procura a fini penali, senza previa autorizzazione giudiziaria, e che la
riservatezza delle informazioni deve essere salvaguardata in procedure
formalmente stabilite e soggette a successivo controllo giudiziario.

Tuttavia il STJ, nel Ricorso in Habeas Corpus n. 83233 –


SP – 2017/0083338-5 (BRASIL, 2022a) e nel Ricorso in Habeas Corpus
n. 83447 – SP – 2017/0089929-9 (BRASIL, 2022b), ha protetto una
situazione non prevista nel nucleo di questo precedente: il STJ ha
inteso che se la richiesta o la domanda è diretta della Procura della
Repubblica all’Ufficio Federale delle Entrate allo scopo di raccogliere
prove a sostegno di un’indagine o di un’istruzione penale non è coperta
dal precedente. In questo senso:

In uno Stato di diritto non è possibile ammettere che


gli organi investigativi, in procedure informali e non
urgenti, richiedano informazioni dettagliate su persone
o aziende, informazioni costituzionalmente protette,
a meno che non siano autorizzate da un tribunale.
Una cosa è che l’organismo di controllo finanziario,
nell’ambito dei suoi poteri, identifichi i segnali di reato
e comunichi i suoi sospetti agli organi investigativi
affinché, nell’ambito della legalità e dei suoi poteri,
indaghino sull’origine di tali sospetti; un altro è l’organo

204 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
DELGIUDICE COSTITUZIONALE CON IL GIUDICE COMUNE IN ITALIA
E IN BRASILE, E LA SUA INFLUENZA SUL SISTEMA PENALE ANTICORRUZIONE

investigativo, la polizia o la Procura della Repubblica,


senza alcun tipo di controllo, che ipotizza la possibilità
di un reato, di richiedere all’organo finanziario o
all’Agenzia Federale delle Entrate (COAF) informazioni
finanziarie riservate e dettagliate su una certa persona,
fisica o giuridica, senza una preventiva autorizzazione
giudiziaria. (BRASIL, 2022a, tradotto da noi).

In caso contrario l’accesso diretto della Procura ai dati, senza


intervento giudiziario, rappresenterebbe una violazione al principio
della legalità e anche al principio del giudice naturale.

5 CONCLUSIONE

A tal riguardo la presente ricerca ha descritto come i giudici


costituzionali in Italia e in Brasile assumono una variazione fluida tra
accentramento e diffusione a prescindere dalla lettura dei modelli
classici di controllo della costituzionalità. Quando si propongono di
decentrare il loro potere questi giudici costituzionali condividono una
maggiore autorità per i tribunali ordinari per promuovere interpretazioni
creative. Tali interpretazioni, a loro volta, stanno influenzando il sistema
penale e, di conseguenza, il modo in cui i giudici in generale esaminano
i casi di lotta contro la corruzione e organizzazioni criminose, secondo
un accurato approccio costituzionale.

Lo studio ha adottato un metodo culturalista di comparazione


che ha analizzato ogni oggetto a partire dal suo contesto. I risultati
hanno suggerito che l’atteggiamento del giudice comune è stato più
vicino alla legittimità dialogica di quella limitata dalle fonti legislative
del diritto. Il presente lavoro considera le sue implicazioni per le teorie
della giustizia costituzionale.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022. 205
HUGO LEONARDO ABAS FRAZÃO

Per quanto riguarda i menzionati casi trattati questi consistono


ovviamente in una conversazione (esplicita o implicita) che i giudici
comuni hanno promosso con le corti (supreme o costituzionali) dei loro
rispettivi paesi; sono atteggiamenti che dimostrano la posizione sempre
più evidente che il giudice comune è anche un giudice materialmente
costituzionale e il custode dei diritti fondamentali.

206 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 177-217, jan./jul. 2022.
LA CONDIVISIONE DELLA FUNZIONE INTERPRETATIVO-CREATIVA
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USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE”


NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO
THE USE OF “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” IN
COMBATING ORGANIZED CRIME

GEORGE MARMELSTEIN LIMA


Professor de Direito Constitucional e Filosofia do Direito. Mestre em
Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Doutor
em Direito pela Universidade de Coimbra. Juiz federal do Ceará.
https://orcid.org/0000-0002-1277-3217

RESUMO

Confissões secundárias são relatos de uma testemunha que afirma


ter ouvido um suspeito proferir declarações autoincriminatórias.
Geralmente, tais declarações são introduzidas em processos criminais
por meio do testemunho de agentes de polícia, de informantes ou
de colaboradores. O objetivo do presente artigo é compreender o
sentido e a natureza jurídica das confissões secundárias, mapeando
os principais precedentes dos tribunais sobre o assunto. Ao final, são
analisados os limites e as possibilidades do uso desse tipo de prova no
sistema judicial brasileiro, com foco nas novas estratégias de combate
ao crime organizado.

Palavras-chave: processo penal; provas judiciais; crime organizado;


confissões secundárias; declarações incriminatórias.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 215
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

ABSTRACT

Secondary confessions are testimonies from a witness who claims to


have heard a suspect make self-incriminating statements. Generally,
such statements are introduced into criminal proceedings through the
testimony of police officers, informants or whistleblowers. The purpose
of this article is to understand the meaning and legal nature of the
secondary confession, mapping the main precedents of the courts
on the subject. In the end, the limits and possibilities of the use of
secondary confession in the Brazilian judicial system are analysed,
focusing on new strategies to combat organized crime.

Keywords: criminal proceeding; judicial evidence; organized crime;


secondary confession; incriminating statements.

Recebido: 4-2-2022
Aprovado: 28-4-2022

“O que andou preso me disse/que dissera o Carcereiro,/


que dissera o Capitão./(Mas pareceu-lhe parvoíce,/e
não delatou primeiro/porque não teve ocasião...)” –
Cecília Meireles, in Romanceiro da Inconfidência

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 As confissões secundárias nos tribunais brasileiros.


3 As várias faces das confissões secundárias. 4 A natureza jurídica das
confissões secundárias. 5 Admissibilidade das confissões secundárias.
6 Valoração das confissões secundárias. 7 Conclusão. Referências.

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USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

1 INTRODUÇÃO

“Ele me confessou que praticou o crime”. Essa frase é a essência


de um modelo de evidência que não tem nome específico no Brasil,
mas que, nos Estados Unidos, tem sido denominada de secondary
confession (confissão secundária), que ocorre quando alguém relata
ter ouvido o suspeito assumir a autoria de um delito.

A referida expressão foi utilizada pela primeira vez em um artigo


científico publicado em 2008 (NEUSCHATZ et al., 2008), com o título
The Effects of Accomplice Witnesses and Jailhouse Informants on Jury
Decision Making1.

O objetivo do estudo era verificar o impacto de confissões


secundárias, testemunhadas por informantes e colaboradores da
polícia, na percepção de culpa de um suspeito. Até então, os estudos
sobre o poder de influência das confissões envolviam apenas
confissões primárias, em que as declarações autoincriminatórias são
ouvidas diretamente da boca do suspeito. Nesses casos, experimentos
indicam que a confissão costuma ter mais impacto nos veredictos do
que qualquer outra forma de evidência (KASSIN; NEUMANN, 1997).

Esse poder altamente persuasivo das confissões primárias tem,


pelo menos, duas explicações: (1) uma confissão é uma admissão de
culpa em primeira mão, ou seja, uma declaração presumivelmente feita
por alguém com conhecimento íntimo do evento em disputa; (2) uma
confissão espontânea é uma declaração do acusado que contradiz
inequivocamente seu próprio interesse ou motivação, gerando uma

1
Tradução livre: “Os efeitos do depoimento de testemunhas cúmplices e informantes de
cela na tomada de decisão do júri”.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 217
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

percepção de veracidade com base na ideia intuitiva de que ninguém


iria se autoincriminar se não fosse verdade (KASSIN; NEUMANN, 1997).

A confissão secundária, por outro lado, é um relato de uma


pessoa que ouviu outra pessoa (o suspeito) assumir a autoria de um
crime (NEUSCHATZ et al., 2012). Portanto, ela não é uma admissão
de culpa de quem presenciou os fatos, visto que não se manifesta em
primeira pessoa (“eu fiz”), mas em terceira pessoa (“ele me disse que
fez”). Além disso, a testemunha não está agindo contra seu próprio
interesse – pelo contrário. Muitas vezes, os motivos do delator
costumam ser altamente egoístas, como a obtenção de vantagens
jurídicas, de tratamentos especiais, de prestígio, de vingança, de poder
ou até mesmo de incentivo financeiro.

No modelo norte-americano, a confissão secundária


costuma estar associada a algumas técnicas investigativas muito
polêmicas, por exemplo: (a) jailhouse informants ou jailhouse
snitches (delatores de cela), que são pessoas que estão presas
com o suspeito e aceitam delatá-lo em troca de algum benefício
(perdão judicial, penas mais brandas, imunidade, privilégios de
tratamento ou até dinheiro); (b) informant witnesses (testemunhas
informantes), que são pessoas que atuam como informantes da
polícia, muitas vezes de forma confidencial e também recebendo
incentivos; (c) accomplice witnesses (testemunhas cúmplices) ou
whistleblowers (delatores), que são corréus que fazem acordo
de colaboração premiada (plea agreement); (d) undercover
agents (agentes infiltrados), que são policiais que se infiltram na
organização criminosa para extrair informações.

Por derivar de métodos bastante questionáveis, o poder


persuasivo de uma confissão secundária é, sem dúvida, diferente e
menor do que o poder persuasivo de uma confissão primária. Apesar
disso, no experimento conduzido por Neuschatz, revelou-se que os

218 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

jurados tendem a acreditar na confissão secundária, como prova de


incriminação, mesmo quando têm conhecimento de que o testemunho
é motivado por razões espúrias (NEUSCHATZ et al., 2008).

No Brasil, apesar de não ter “nome próprio”, a confissão secundária


é praticada em muitos contextos. A situação mais comum ocorre em
abordagens policiais, em que o suspeito admite informalmente a
prática do delito. Nessa situação, caso o suspeito se retrate antes de a
confissão ser registrada, a única forma de comprovar essa admissão de
culpa é por meio do testemunho do policial. Se o policial afirmar, em
juízo, que presenciou o réu “confessando”, tem-se um típico caso de
confissão secundária, que costuma ser chamada, na jurisprudência, de
confissão informal ou confissão indireta.

Para além dessa hipótese, com o uso cada vez mais frequente
de informantes, agentes infiltrados e colaboradores, o sistema
brasileiro tem lidado com vários casos de confissões secundárias. De
fato, sobretudo no contexto das colaborações premiadas, é comum o
colaborador informar que o suspeito-alvo lhe disse que praticou um
crime, fornecendo aos órgãos estatais munição para investigar2. Além
disso, há casos em que a polícia usa informantes, agentes infiltrados
ou disfarçados, que dialogam com o suspeito e extraem informações
comprometedoras passíveis de serem usadas na investigação ou

2
Por exemplo, na colaboração de Sérgio Cabral, muitas conversas mantidas com outros
réus no período em que estavam presos foram levadas a juízo. Cito, em particular, um
trecho extraído da sentença proferida no Proc. 0196181-09.2017.4.02.5101/RJ (BRASIL,
2021a, p. 28): “Que ficou preso junto a CARLOS NUZMAN e LEONARDO GRYNER em
Benfica; Que chegaram a conversar formalmente sobre o assunto da ação penal; Que
era uma conversa de quem quer fugir da verdade; Que NUZMAN dizia que ia negar tudo
e LEO GRYNER dizia para o interrogado, como já disse aqui, que era um patrocínio; Que
LEO GRYNER veio com essa história de que era um patrocínio, que foi solicitado e tudo
mais; Que essa versão ficou combinada lá em Benfica a pedido do LEO GRYNER para
ele, que disse que ia falar”.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 219
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

no processo judicial3. Com menos frequência, há também, no Brasil,


processos em que presos são chamados a testemunhar em juízo contra
o seu companheiro de cela, sobre conversas ocorridas dentro do
presídio, algumas vezes narrando a admissão de culpa de seu colega4.

O objetivo do presente artigo é explorar o uso da confissão


secundária como prova de incriminação, no sistema processual
brasileiro, com foco nas novas estratégias de combate ao crime
organizado.

O primeiro passo é mapear algumas posições dos tribunais


brasileiros sobre a admissão e valoração da confissão secundária, ainda
que mencionada com outros nomes, para demonstrar que há uma
grande incompreensão sobre a sua natureza jurídica. A consequência
disso é a presença de muito ruído entre as decisões, com posições
antagônicas sobre tópicos relevantes.

Em seguida, é necessário olhar para além da realidade brasileira,


a fim de conhecer a experiência de outros países, em que o debate
está mais amadurecido. A análise de alguns precedentes, sobretudo

3
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal – STF anulou as provas obtidas por um
policial de inteligência, que atuou, de fato, como agente infiltrado, sem autorização
judicial, em grupos Black Blocks. Várias informações eram confissões secundárias,
como se pode extrair desse trecho do depoimento: “Que o declarante acredita que por
apenas ouvir e não perguntar e por inclusive sentar-se à mesa em bares para beber
cerveja com os integrantes, ganhou a confiança de alguns que passaram a confidenciar
atos diversos e inclusive contar fatos sobre terceiros”. A decisão do STF foi no sentido
de que houve verdadeira “infiltração de agente em grupo determinado, por meio de
atos disfarçados para obtenção da confiança dos investigados” (BRASIL, 2019a, p. 7).
Sendo assim, a prova foi considerada ilícita, dada a necessidade de prévia autorização
judicial, conforme o art. 10 da Lei n. 12.850/2013 (BRASIL, 2013).
4
Um exemplo famoso ocorreu no caso Eliza Samudio. Um presidiário, que era companheiro
de cela do acusado Bola, foi arrolado como testemunha de acusação após tê-lo ouvido
afirmar, dentro da cela, que teria queimado Eliza em pneus e jogado suas cinzas em uma
lagoa. Não há, contudo, informação de que houve incentivo à testemunha. Além disso,
no julgamento, o promotor dispensou a ouvida da referida testemunha (MARTINS,
2013).

220 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

norte-americanos, indica que as confissões secundárias têm muitas


roupagens, sendo importante discriminar todas as nuances que
circundam o conceito para descobrir sua natureza.

Por fim, serão analisados as condições de admissibilidade e os


principais critérios de valoração da confissão secundária. Como se verá,
a validade desse tipo de prova está sujeita a filtros éticos e jurídicos
que ainda estão sendo construídos. Além disso, a sua valoração está
condicionada a determinados constrangimentos que podem afetar
tanto a credibilidade quanto a confiabilidade do testemunho.

O estudo, portanto, tem um componente metodológico analítico,


na medida em que busca compreender o sentido e a natureza jurídica
da confissão secundária, e um componente descritivo, visando mapear
o posicionamento jurisprudencial sobre o assunto. O propósito final,
contudo, é prescritivo, direcionando os esforços ao aprimoramento do
sistema jurídico brasileiro, sobretudo em face dos novos institutos de
combate ao crime organizado.

A crença sincera é que o presente texto possa gerar uma reflexão


sobre a forma como o sistema de justiça lida com as confissões
secundárias e como deveria lidar. Ainda há muitas perguntas em
aberto, mas temos aqui um bom ponto de partida.

2 AS CONFISSÕES S E C U N D Á R I A S NOS TRIBUNAIS


BRASILEIROS

O termo confissão secundária não aparece nos precedentes


dos tribunais brasileiros, mesmo porque se trata de um conceito
recente e ainda não consolidado na linguagem forense. Há, contudo,
o uso frequente de expressões correlatas, que descrevem o mesmo

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 221
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

fenômeno. Uma busca com os termos confissão informal, confissão


indireta ou confissão extrajudicial, na página jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça – STJ, indica que há 7.877 decisões monocráticas e
209 acórdãos de casos criminais com menção a esse tipo de prova, até
26 de janeiro de 2022.

Os casos, em geral, envolvem o testemunho do policial que fez a


abordagem, conversou com o suspeito e obteve dele, informalmente, a
admissão de culpa, desmentida em uma fase posterior da investigação
ou do processo judicial.

A repetição de padrões parece retratar um modus operandi


comumente utilizado pelos órgãos de polícia, em todo o território
nacional, no contexto da guerra às drogas (RIGON; JESUS, 2019;
SEMER, 2019). Esse modus operandi parte de uma suspeita que se
materializa em uma abordagem, seguida de uma revista pessoal, em que
é encontrada uma determinada quantidade de drogas com o suspeito.
A partir daí, a polícia realiza a prisão em flagrante e procede a um
interrogatório preliminar em busca de mais informações. Pressionado,
o suspeito admite que é traficante ou que é membro de alguma facção
e, eventualmente, indica outros locais em que armazena seus produtos.
Raramente, essa confissão informal é registrada, gravada ou reduzida a
termo. Em juízo, o réu nega ter feito a confissão informal ou admite que
confessou por se sentir coagido. Com isso, na instrução processual,
tem-se apenas a confissão secundária, derivada da palavra dos policiais
que fizeram a abordagem, que é admitida e valorada a depender das
idiossincrasias do julgador.

Os pontos de controvérsia, nos debates judiciais sobre esse tema,


costumam girar em torno das seguintes questões: (a) a confissão indireta
pode ser admitida como prova incriminatória?; (b) em caso positivo,
qual o seu valor probatório?; (c) ela é suficiente para, isoladamente,

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USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

gerar um juízo condenatório?; (d) caso a confissão indireta seja usada


como prova incriminatória, deve ser considerada como atenuante
(art. 65, inciso III, d, do Código Penal), ainda que não reiterada em
juízo?; (e) caso não seja admitida, deve ser tratada como uma prova
ilícita capaz de invalidar as provas dela derivadas?

As respostas dos tribunais variam entre os dois extremos do


espectro, refletindo vários tipos de ruído, dentro do modelo proposto
por Kahneman, Sibony e Sunstein (2021). Por um lado, os juízes mostram
diferentes níveis de severidade e rigor na análise da prova (ruído de
nível), talvez por compartilharem diferentes pontos de vista a respeito
das garantias constitucionais e diferentes atitudes em relação ao papel
desempenhado pelos órgãos de segurança pública. Por outro lado,
os decisores parecem discordar entre si por terem reações diferentes
acerca de quais casos merecem respostas mais duras e quais casos
merecem um tratamento mais brando da justiça criminal (ruído de
padrão).

Seja como for, é possível identificar decisões que seguem uma


linha mais combativa, preocupada com o fim da impunidade e com
o combate à criminalidade, e outras decisões que seguem uma linha
mais garantista, preocupada com o devido processo e com a limitação
do poder punitivo do Estado.

As decisões mais combativas tendem a enfatizar a importância de


se confiar na palavra dos policiais, atribuindo-lhe uma força probatória
bastante elevada. Para isso, reforçam a ideia de que os policiais são
servidores públicos treinados, dotados de fé pública, que colocam suas
vidas em risco para proteger a sociedade e que, em tese, atuam de
forma imparcial em busca da verdade. Assim, o depoimento do policial
em juízo costuma ser tratado como uma espécie de trunfo probatório,

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 223
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

que vale mais do que a palavra do réu e com força suficiente para
produzir, até isoladamente, um decreto condenatório5.

Por sua vez, as decisões mais garantistas tendem a destacar a


importância de respeitar os princípios do devido processo, sobretudo os
que tratam do direito ao silêncio, da proibição de não autoincriminação,
do direito ao advogado e da vedação de uso de provas ilícitas, além
de realçarem as falhas do sistema punitivo e os vícios de caráter de
muitos agentes estatais que praticam más condutas, até mesmo para
forjar evidências, ameaçar testemunhas e extrair confissões coagidas.

Seguindo uma linha mais garantista, o STF, em recente julgado,


anulou um decreto condenatório baseado exclusivamente em
declarações informais prestadas a policiais no momento da prisão em
flagrante (BRASIL, 2021c).

No caso concreto, uma mulher foi presa em flagrante, com


alguns papelotes de cocaína, tendo afirmado, na viatura policial, que
exercia a traficância. Logo depois, no interrogatório, assistida por
advogado, afirmou que era usuária e que os papelotes se destinavam
ao seu consumo próprio. O Tribunal de Justiça paulista condenou a
ré pelo crime de tráfico de drogas, adotando a palavra dos policiais
que fizeram a abordagem como o principal elemento de prova para a
classificação do delito.

No STF, a condenação foi anulada com base em vários


fundamentos extraídos do voto do Ministro Gilmar Mendes: (a) mesmo
que se reconheça a validade dos depoimentos prestados pelos

5
Nesse sentido: “Depoimentos com confissão extrajudicial corroborados por outros meios
de prova, notadamente depoimento dos policiais, com provas produzidas sob o crivo
do contraditório e ampla defesa, são aptos a sustentar condenação” (BRASIL, 2018b).
“Os depoimentos dos policiais têm valor probante, já que seus atos são revestidos de fé
pública, sobretudo quando se mostram coerentes e compatíveis com as demais provas
dos autos” (BRASIL, 2020a).

224 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

policiais envolvidos na prisão, o que está em jogo não é a palavra dos


policiais, mas a forma como foi realizado o “interrogatório informal”;
(b) para que tenha valor jurídico, a confissão precisa observar várias
formalidades jurídicas: ser espontâneo e não coagido, haver a
assistência por advogado, o suspeito tem que ser informado sobre
o direito ao silêncio, o depoimento precisa ser reduzido a termo,
com assinatura do confessor e do seu defensor etc.; (c) a acusação
não poderia se utilizar de declarações obtidas por agentes policiais
após a apreensão ou detenção de acusados, sem a demonstração
da utilização de procedimentos que evidenciem a proteção contra
a autoincriminação; (d) uma suposta confissão firmada pelo réu, no
momento da abordagem, sem observação dessas formalidades, é
inteiramente imprestável para fins de condenação, invalidando as
demais provas obtidas mediante tal interrogatório (BRASIL, 2021c).

Como se vê, o STF, no precedente acima, levou o pêndulo para


uma direção oposta, não apenas reconhecendo a inadmissibilidade
da confissão secundária, mas tratando-a como prova ilícita capaz de
contaminar todos os atos dela derivados6.

Entre esses dois polos, há decisões que admitem a validade


da confissão indireta, atribuindo-lhe, contudo, um valor probatório
mais baixo, entendendo que não pode servir como elemento isolado
para justificar a condenação7, mas pode ser utilizada como prova de

6
Há precedente do STJ de 2002 no mesmo sentido: “A eventual confissão extrajudicial
obtida por meio de depoimento informal, sem a observância do disposto no inciso LXIII,
do art. 5º, da Constituição Federal, constitui prova obtida por meio ilícito, cuja produção
é inadmissível nos termos do inciso LVI, do mencionado preceito” (BRASIL, 2002).
7
Por exemplo: “A confissão informal, isoladamente, não pode servir de arrimo à
condenação, pois, inclusive, por ser tomada ‘sem a observância do disposto no inciso
LXIII, do art. 5º, da Constituição Federal, constitui prova obtida por meio ilícito, cuja
produção é inadmissível nos termos do inciso LVI, do mencionado preceito’” (BRASIL,
2020b).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 225
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

corroboração8, ocasião em que gera até mesmo o direito à atenuante


da confissão, ainda que tenha havido a retratação em juízo9.

Não é hora, ainda, de definir a natureza jurídica dessa “confissão


informal”, nem de julgar quem está certo nesse debate. O objetivo é
apenas demonstrar a existência de um sistema judicial ruidoso que
ainda não tem respostas uniformes para um problema muito comum.
Conforme visto, há uma enorme ambivalência sobre a força probatória
da palavra do policial e uma grande dificuldade de definir a validade
jurídica de informações extraídas do suspeito em conversas informais.

Para tornar o problema ainda mais complexo, a confissão


secundária não se esgota nesse arremedo de interrogatório, em que
um suspeito admite, casualmente, a prática do crime a uma autoridade
policial. Conforme mencionado, a confissão secundária também
pode ser dirigida a companheiros de cela, a informantes da polícia, a
cúmplices colaboradores ou a agentes infiltrados. É preciso, portanto,
compreender as outras faces da confissão secundária.

3 AS VÁRIAS FACES DAS CONFISSÕES SECUNDÁRIAS

A repressão à macrocriminalidade depende, em grande medida,


de informações privilegiadas que o Estado precisa obter de várias
fontes. Como forma de expandir a rede de informações, tem-se

8
A título ilustrativo: “A confissão extrajudicial, aliada ao local da apreensão, conhecido
como ponto de venda, à posse de rádio transmissor, às inscrições referentes à facção
Comando Vermelho nas embalagens das drogas apreendidas, além do depoimento
de policiais, confirmados em juízo, podem respaldar a condenação pelo delito de
associação para o tráfico” (BRASIL, 2020c).
9
No mesmo sentido: “Confissão feita na fase policial e retratada em juízo. Aplica-se a dita
atenuante, pois, in casu, o magistrado a quo utilizou-se dos elementos nela declinados
para pautar a sentença condenatória” (BRASIL, 2009); “A atenuante da confissão
espontânea não tem incidência nas hipóteses em que a confissão não concorreu para a
condenação do réu” (BRASIL, 2012).

226 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

consolidado a prática de conceder incentivos para informantes que


aceitam cooperar ou colaborar com a justiça. Esses informantes
repassam detalhes relevantes sobre o funcionamento interno das
operações criminosas em troca de clemência ou outros benefícios,
fornecendo uma fonte de inteligência relativamente barata que
alimenta a máquina de repressão, em uma complexa rede de troca
de informações (DABNEY; TEWSBURY, 2016). Em alguns casos,
agentes infiltrados também são admitidos e usados pelos órgãos
de investigação (FITZGERALD, 2014). Há, ainda, a possibilidade
de recrutar presos para reunirem secretamente informações
incriminatórias contra réus na prisão, recebendo em troca diversas
benesses, como redução de pena e tratamento privilegiado no
presídio (SCHWARTZAPFEL, 2018).

Nos Estados Unidos, esses métodos são utilizados há décadas.


Por isso, vale a pena conhecer alguns posicionamentos da Suprema
Corte daquele país sobre a juridicidade de algumas estratégias
investigativas que produziram confissões secundárias. Conforme se
verá, há muitos insights relevantes que, com o devido cuidado, podem
inspirar o aprimoramento do modelo brasileiro.

Um dos primeiros precedentes sobre a matéria é o caso Massiah


v. United States (UNITED STATES, 1964). Na ocasião, a Suprema Corte
decidiu que declarações incriminatórias a um corréu que se tornou
colaborador da polícia, após o início de um processo criminal, sem a
presença de um advogado, não é válida como prova.

No caso concreto, Winston Massiah havia sido denunciado pelo


crime de tráfico de drogas e respondia ao processo em liberdade. Um
corréu, depois de decidir cooperar com o governo, convidou Massiah
para entrar em seu carro a fim de conversarem sobre o crime. Durante
a conversa, Massiah fez várias declarações incriminatórias. Um agente

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 227
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

do governo ouviu a conversa por um radiotransmissor e testemunhou


contra Massiah no julgamento.

Na Suprema Corte, o debate girou em torno de dois pontos:


(1) as declarações incriminatórias de um réu feitas sem a presença de
um advogado, após o início de um processo criminal, são admissíveis
como prova?; (2) um agente do governo pode testemunhar sobre as
declarações incriminatórias do réu ouvidas por meio de um informante
com um dispositivo de gravação eletrônica, sem o conhecimento do
réu, quando o informante não depõe no julgamento?

As respostas foram negativas para as duas perguntas. A Suprema


Corte considerou que declarações incriminatórias, após a acusação,
sem a presença de advogado, violam o devido processo e não podem
ser usadas como prova, nem mesmo por meio de testemunho do agente
do governo que ouviu indiretamente a conversa. A fórmula relevante
que passou a orientar os casos futuros é a ideia de deliberate elicitation
(obtenção deliberada): qualquer tentativa de obter deliberada e
intencionalmente informações incriminatórias do réu, com a ação
criminal iniciada, deve ser realizada na presença de advogado, sob
pena de nulidade (UNITED STATES, 1964, tradução nossa)10.

Três anos depois, foi decidido o famoso caso Miranda v.


Arizona (UNITED STATES, 1966a) que, apesar de ser um exemplo de
confissão primária, firmou as balizas formais de admissibilidade da
autoincriminação. O caso representa, na verdade, a reunião de quatro

10
A fórmula Massiah aplica-se apenas quando o papel do governo muda de investigação
para acusação. Assim, na fase de investigação, em que ainda não há um juízo de
suspeita sobre um indivíduo, a polícia pode fazer sondagens preliminares para obter
informações, sem necessariamente mencionar o direito ao advogado (UNITED STATES,
1972b). Além disso, em Texas v. Cobb, a Suprema Corte esclareceu que o direito a um
advogado se aplicava apenas ao crime acusado e não se aplicava a tentativas de coletar
informações sobre “outros crimes ‘intimamente relacionados factualmente’ ao crime
acusado” (UNITED STATES, 2001, tradução nossa).

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USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

processos que tinham em comum o fato de haver um réu que havia


confessado a prática de um crime, durante o interrogatório, sem ser
informado de seus direitos da Quinta Emenda11. A decisão da Suprema
Corte foi no sentido de que a Quinta Emenda exige que os agentes
públicos informem os suspeitos sobre o seu direito de permanecer em
silêncio e de obter um advogado, durante o interrogatório, enquanto
estiverem sob custódia policial. Assim, para que a garantia seja
respeitada, o réu deve ser advertido antes de ser questionado que ele
tem o direito de permanecer em silêncio e que qualquer coisa que
ele disser pode ser usada contra ele em um tribunal. Exigiu-se, ainda,
que o réu seja informado de que tem direito a um advogado e, se não
puder pagar um advogado, um deveria ser nomeado para ele antes de
qualquer interrogatório, se assim o desejasse. Depois que esses avisos
forem dados, o réu poderia renunciar consciente e inteligentemente
a esses direitos e concordar em responder a perguntas. A evidência
obtida como resultado do interrogatório não deveria ser usada contra
um réu no julgamento, a menos que a acusação demonstre que as
advertências foram dadas, e conscientemente e inteligentemente
renunciadas (UNITED STATES, 1966a).

Em Hoffa v. United States (UNITED STATES, 1966b), a Suprema


Corte reconheceu como válidas as conversas incriminatórias,
produzidas por um informante pago pelo governo, mesmo sem
mandado judicial, desde que, no momento da obtenção das provas,
não houvesse acusação formal contra o suspeito.

No caso, o líder sindicalista James Hoffa respondia a um processo


criminal por desvios de fundos sindicais. O processo chegou a um
impasse, porque os jurados ficaram divididos, tendo sido designado um

11
Na parte relevante, a Quinta Emenda estabelece que “nenhuma pessoa será obrigada
em qualquer processo criminal a ser testemunha contra si mesmo, nem ser privada da
vida, da liberdade ou da propriedade, sem o devido processo legal”.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 229
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

novo julgamento. Durante os preparativos para o segundo julgamento,


Hoffa ocupou uma suíte em um hotel em Nashville, onde fazia as
reuniões com o seu círculo mais íntimo de amigos e advogados. Um
desses amigos era Edward Partin, que participou de várias reuniões
no quarto de Hoffa. Nessa ocasião, Partin era informante da polícia e
escrevia relatórios frequentes a um agente federal. Em alguns desses
relatórios, Partin revelou que Hoffa estava subornando os jurados.

Hoffa foi então acusado e condenado por obstrução de justiça,


por haver subornado os jurados do primeiro julgamento. O testemunho
de Partin, relatando as conversas que manteve com Hoffa, foi decisivo
para a condenação. Hoffa alegou que seus direitos fundamentais foram
violados e recorreu para a Suprema Corte.

A Suprema Corte rejeitou a alegação de Hoffa, entendendo que


as provas seriam válidas, pois as conversas de Hoffa com seu colega
foram inteiramente voluntárias e não induzidas. Afinal, Partin não teria
entrado na suíte à força ou furtivamente. “Ele não era um bisbilhoteiro
sub-reptício. Partin estava na suíte por convite, e todas as conversas
que ouvia eram dirigidas a ele ou conscientemente conduzidas em sua
presença”. Além disso, as conversas de Hoffa com Partin teriam sido
totalmente voluntárias, sem qualquer tipo de induzimento para extrair
declarações incriminatórias. Assim, não havia necessidade de mandado
judicial prévio nem do aviso Miranda. Do mesmo modo, não houve
violação ao precedente Massiah, porque as declarações incriminatórias
ouvidas por Partin se relacionavam a um crime distinto daquele que
estava sendo discutido na ação penal que já havia iniciado. O que
estava em jogo era a tentativa de suborno de jurados, e não o desvio
de fundos sindicais. Em conclusão, decidiu a Suprema Corte que a
utilização de um informante secreto não é, per se, inconstitucional,
estando a veracidade e a valoração do testemunho sujeita ao cross-
examination e às instruções ao júri (UNITED STATES, 1966b).

230 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

No caso Giglio v. United States (1972), a Suprema Corte decidiu


que a acusação tem o dever de informar os termos do acordo feito
com uma testemunha colaboradora que recebeu incentivos para depor.
Para a Suprema Corte, a existência do acordo é relevante para aferir
a credibilidade da testemunha. Assim, não divulgar essa informação
representa uma supressão de evidências favoráveis ao réu e, portanto,
uma violação ao devido processo (UNITED STATES, 1972a).

No caso United States v. Henry (1980), a Suprema Corte decidiu


que as declarações feitas a um colega preso, que tinha um acordo pré-
estabelecido com um agente do governo para atuar como informante
pago, eram inadmissíveis, especialmente porque o réu estava sob
custódia e respondendo ao processo criminal na época em que as
declarações foram extraídas. No caso concreto, Henry estava na prisão
aguardando julgamento pelo crime de assalto à mão armada a um
banco. No mesmo bloco de celas, havia um preso que era informante
da polícia e foi instruído a ficar atento a quaisquer declarações feitas
pelos presos. Ao ser solto, o informante relatou a um agente do governo,
mediante pagamento, várias conversas que manteve com Henry,
inclusive envolvendo declarações incriminatórias sobre o roubo. Henry
foi julgado e condenado com base no testemunho do informante, mas
a sentença foi anulada. A Suprema Corte entendeu que as declarações
do réu ao informante da polícia não deveriam ter sido admitidas no
julgamento, porque o governo criou intencionalmente uma situação
suscetível de induzir o réu a fazer declarações incriminatórias sem a
assistência de um advogado, violando assim as garantias processuais.
Reafirmou-se o precedente Massiah, assinalando que, uma vez que
o réu não tinha conhecimento que o informante estava agindo em
nome do governo, mediante pagamento, e as declarações foram
“deliberadamente extraídas”, de acordo com as instruções dadas pelo
governo, não havia como considerar que houve a renúncia ao seu
direito à assistência de um advogado (UNITED STATES, 1980).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 231
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

Por outro lado, em Kulhmann v. Wilson (UNITED STATES, 1986), a


Suprema Corte admitiu a possibilidade do testemunho de informantes
presos, desde que o informante não faça qualquer esforço para
estimular conversas sobre o crime com o acusado. No caso, Joseph
Wilson foi preso por suspeita de ter praticado um latrocínio e foi
colocado na mesma cela que Benny Lee, que era um informante da
polícia – instruído a apenas ouvir o seu colega de cela com o objetivo
de coletar informações sobre o crime –, mas sem formular qualquer
pergunta que pudesse induzir a uma confissão. De modo espontâneo,
sem saber que seu colega de cela era um informante da polícia, Wilson
proferiu declarações incriminatórias, assumindo a autoria do crime,
que foram usadas contra ele no julgamento mediante o testemunho de
Benny Lee.

No debate sobre a validade dessa modalidade de prova, a Suprema


Corte entendeu que os direitos de Wilson não foram violados porque a
testemunha apenas ouviu o colega de cela, sem tomar nenhuma ação
projetada deliberadamente para obter comentários incriminatórios.
Segundo a Corte, a preocupação primária dos precedentes Massiah e
Henry é evitar o uso de técnicas investigativas que são equivalentes ao
interrogatório policial direto. Assim, nos contextos em que o governo,
de forma direta ou por meio de informantes, busca deliberadamente
extrair informações de um suspeito, há explícita necessidade de
enunciar os avisos de Miranda (Miranda warnings), sob pena de
nulidade. Porém, se a autoincriminação ocorre de modo espontâneo,
sem qualquer solicitação ou iniciativa do informante, que apenas escuta
sem estimular a fala, não haveria como invalidar o seu testemunho.
Desse modo, nem sempre há violação da Sexta Emenda quando o
Estado obtém declarações incriminatórias do acusado por meio de
informantes, seja mediante acordo prévio ou voluntariamente. A prova
somente será ilícita se o réu demonstrar que a polícia e seu informante
tomaram alguma ação, além de apenas ouvir, que foi projetada

232 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

deliberadamente para provocar comentários incriminatórios (UNITED


STATES, 1986).

No caso Illinois v. Perkins (UNITED STATES, 1990), a Suprema


Corte analisou a validade da prova obtida por um agente infiltrado
dentro do presídio. O caso envolvia o julgamento de Lloyd Perkins,
que era suspeito de ter cometido um assassinato em 1984, em
Illinois. Aproveitando que Perkins estava preso por outro motivo não
correlacionado ao assassinato, a polícia colocou um informante e um
agente infiltrando na mesma cela. Eles começaram a falar sobre escapar
da prisão e depois direcionaram a conversa para saber se Perkins já
havia matado alguém. Perkins falou sobre o assassinato que cometeu,
fornecendo diversos detalhes incriminatórios. O agente disfarçado em
nenhum momento se identificou como policial, nem alertou sobre as
salvaguardas de Miranda durante a conversa, o que é bem típico nessa
modalidade de investigação, até por motivo de segurança.

Perkins foi então processado com base nas informações obtidas


pelo informante e pelo agente infiltrado. Antes do julgamento, Perkins
fez uma moção para suprimir suas declarações incriminatórias na prisão,
argumentando que não foram respeitados os direitos de Miranda. A
moção foi acolhida, mas revertida na Suprema Corte. Em sua decisão,
a Suprema Corte considerou que agentes policiais disfarçados não
precisam enunciar o aviso Miranda ao falar com suspeitos dentro do
ambiente prisional. Para o tribunal, as conversas entre presos, ainda
que um deles seja um agente disfarçado, não são feitas em uma
“atmosfera dominada pela polícia”. Desse modo, a coerção potencial
de declarações autoincriminatórias deve ser avaliada do ponto de vista
do suspeito, e se ele não sabe que está falando com a polícia, não
está sob a pressão coercitiva de um interrogatório normal (UNITED
STATES, 1990).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 233
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

Por outro lado, no caso Arizona v. Fulminante (UNITED STATES,


1991), a Suprema Corte decidiu que uma confissão dada a um
companheiro de cela, mesmo de modo espontâneo, pode configurar
uma confissão coagida, a depender dos motivos que levaram o
suspeito a assumir a autoria do crime. O caso concreto é bem peculiar.
O acusado, Oreste Fulminante, era suspeito de ter matado a sua
enteada de 11 anos, mas não havia provas contra ele. Alguns meses
após a morte da criança, Fulminante foi preso por porte ilegal de
arma de fogo. Na prisão, espalharam-se rumores de que Fulminante
matara a criança e, por isso, ele se viu ameaçado. Seu colega de cela,
Anthony Sarivola, disse que tinha conexões com o crime organizado e
prometeu-lhe proteção, desde que ele falasse a verdade. Fulminante
confessou-lhe o crime, dizendo até mesmo onde havia escondido a
arma do crime. O detalhe é que Sarivola era informante confidencial do
Federal Bureau of Investigation – FBI (Departamento de Investigação
Federal), tendo testemunhado em juízo no processo criminal movido
contra Fulminante.

A Suprema Corte concluiu que a confissão informal dada por


Fulminante a Sarivola seria inválida, porque o medo da violência física e
a promessa de proteção de seu companheiro de cela teriam o motivado
a confessar. Assim, levando em conta a totalidade das circunstâncias,
não havia como reconhecer a voluntariedade da confissão, pois a
confissão foi fruto da promessa de proteção de Sarivola (UNITED
STATES, 1991).

4 A NATUREZA JURÍDICA DAS CONFISSÕES SECUNDÁRIAS

Os precedentes acima demonstram que as confissões secundárias


têm muitas roupagens, com muitas variações entre si. O que há, em
comum, em todas elas, é a existência de três eventos sucessivos que
se relacionam entre si:

234 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

Figura 1 – Organograma Confissões Secundárias

Fonte: Elaboração própria

Um erro comum é pensar que as confissões secundárias são as


próprias declarações incriminatórias do evento 2. Na verdade, essas
declarações incriminatórias são relatos em primeira pessoa. É uma
conversa em que o suspeito assume a autoria de um delito ou pelo
menos enuncia frases comprometedoras. Se houver um registro dessa
conversa, por meio de uma gravação, por exemplo, o seu conteúdo
deve ser tratado como uma prova direta de autoria, respeitando-se os
requisitos de admissibilidade e os critérios de valoração específicos da
gravação.

O que chamamos de confissão secundária é o evento 3, ou


seja, é o relato de uma pessoa que presenciou o evento 2. Aqui, há
de se pressupor que as declarações incriminatórias (evento 2) foram
proferidas informalmente, sem registro, de modo que o único meio de
provar sua existência é o testemunho de alguém que estava presente
no evento 2. Se o próprio suspeito admitir que a conversa ocorreu,
ainda assim essa admissão é prova do evento 2, que pode ou não ter
repercussão na comprovação do evento 1, a depender do contexto12.

12
Por exemplo, é possível que um suspeito diga: “De fato, eu conversei com o Fulano
e falei que pratiquei o delito. Mas só falei de brincadeira. Eu nem estava no local do
crime”. Ou então: “Quando fui preso, fiquei com medo e disse o que os policiais queriam
ouvir. Mas, na verdade, sou inocente”. Nesses casos, o depoimento do suspeito (evento
3) está confirmando a existência de declarações (evento 2), mas negando a autoria do
crime (evento 1).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 235
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

A confissão secundária é um relato que se baseia na palavra e


na memória de quem participou do evento 2. Desse modo, nem toda
prova produzida por delatores e agentes infiltrados será uma confissão
secundária. Se um delator troca mensagens de texto com o suspeito
em que este se autoincrimina, a prova daí decorrente não é uma
confissão secundária, pois não depende de um testemunho atestando
a sua existência, mas uma prova digital do evento 2, que será avaliada
de acordo com os pressupostos próprios desse tipo de prova. Do
mesmo modo, se o suspeito assinar um termo de confissão e depois
se retratar em juízo, esse documento não é uma confissão secundária,
mas uma prova documental de uma confissão primária que pode ou
não ser admitida, a depender de um juízo sobre a transmissibilidade
probatória dos atos de investigação13.

Compreendido o quadro acima, é possível perceber que a


confissão secundária não é propriamente uma confissão, mas o
testemunho de um evento em que o suspeito proferiu declarações
incriminatórias.

Apesar de ser uma prova testemunhal, ela tem a pretensão de


ser o equivalente funcional de uma confissão. O seu objetivo é reforçar
a comprovação de autoria, usando palavras atribuídas ao suspeito
para vinculá-lo ao crime. Porém, essa semelhança entre a confissão
secundária e a confissão primária é enganadora e precisa ser bem
delimitada para evitar confusões.

13
Como explica Damasceno, a investigação tem por objetivo buscar “vestígios” do fato
criminoso, que são marcas do passado que podem possibilitar a reconstrução do crime
no presente. Quando o vestígio é baseado na percepção de uma pessoa, as declarações
que ela prestar acerca do fato, em um interrogatório, serão documentadas e se tornarão
uma prova documental de suas memórias. O autor defende a transmissibilidade para o
processo judicial dessas provas documentais, formalizadas na investigação a partir da
coleta de depoimentos pela polícia (em texto, áudio ou vídeo), desde que observadas
algumas condições, como a impossibilidade de comparecimento da testemunha em
juízo ou como “prova de confronto”, caso haja indícios de que a testemunha esteja
mentindo em juízo (DAMASCENO, 2021).

236 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

A confissão primária, obtida validamente, de modo voluntário


e espontâneo, com respeito às garantias do acusado, é um relato
pretensamente completo, elaborado por meio de um interrogatório
conduzido para esclarecer os fatos, sendo registrado e assinado
pelo suspeito. Quem confessa nessas condições tem consciência,
pelo menos potencial, de que seu ato terá consequências relevantes,
podendo levar à privação de liberdade. Daí a importância de o acusado
ter conhecimento do seu direito ao silêncio, do seu direito de não
produzir provas contra si mesmo e do seu direito a ser assistido por
um advogado.

A confissão secundária, por sua vez, é produzida em um ambiente


de informalidade, em um contexto bem diferente da confissão oficial.
O confessor não imagina que o conteúdo será divulgado, muito
menos usado contra si. Os motivos da fala não estão relacionados
ao esclarecimento do que ocorreu. Geralmente, envolvem um desejo
de aumentar o status perante o grupo criminoso, a vontade de criar
um laço de confiança com o interlocutor, o interesse de mostrar
arrependimento, a preocupação em interromper uma abordagem
intimidatória, o intuito de proteger outra pessoa ou até mesmo de
animar uma conversa com fanfarronices.

Como não costuma ser registrada, a própria existência da


confissão secundária pode ser objeto de discussão. E a solução para
esse impasse dependerá de um julgamento em que a palavra do
suspeito e a palavra do seu interlocutor serão colocadas em uma
balança para saber quem está dizendo a verdade.

Mesmo que a conversa tenha ocorrido, pode haver disputa sobre


o seu real conteúdo e significado. O diálogo em que as declarações
foram proferidas é um recorte de uma conversa mais ampla. As
circunstâncias completas da conversa raramente vêm à tona. O que se
apresenta é um trecho parcial e fragmentado de palavras pronunciadas

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 237
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

pelo suspeito e interpretadas pelas lentes do interlocutor, que nem


sempre é capaz de captar corretamente o sentido da mensagem14. Com
frequência, as declarações são repletas de inconsistências, de lacunas
e de informações falsas, típicas de uma fala que não foi orientada pela
busca da verdade.

Por isso, a confissão secundária não tem a natureza jurídica de


confissão15. Ela é apenas uma prova testemunhal, sujeita a requisitos
específicos de admissibilidade e de valoração, dependentes do
contexto em que as declarações incriminatórias foram obtidas e das
circunstâncias em que são apresentadas em juízo.

5 ADMISSIBILIDADE DAS CONFISSÕES SECUNDÁRIAS

Depois de mapear as principais facetas das confissões secundárias


e de compreender a sua natureza como prova testemunhal, resta
verificar a sua admissibilidade à luz do sistema processual brasileiro.

De início, seria tentador afirmar que, por ser uma prova


testemunhal, a confissão secundária é admitida no Direito brasileiro e,
portanto, deve ser sempre tratada como uma prova válida, ainda que
de baixa qualidade.

14
Como disse Lord Macaulay: “Palavras podem facilmente ser mal interpretadas por um
homem honesto. E podem ser facilmente distorcidas por um patife. O que foi falado
metaforicamente pode ser compreendido literalmente. O que foi falado de pilhéria
pode ser compreendido com seriedade. Um particípio, um tempo verbal, uma ironia,
uma ênfase podem fazer toda a diferença entre culpa e inocência” (MACAULAY, 1979,
p. 366, tradução nossa).
15
Não se quer dizer, com isso, que a confissão secundária, caso admitida, não possa ser
usada como atenuante. Afinal, se ela é incorporada ao acervo probatório para reforçar o
juízo condenatório, sendo tratada como uma “confissão informal” pelos órgãos estatais,
então é mais do que razoável aceitar o seu efeito mitigador.

238 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

Não é tão simples. Como vimos, a confissão secundária não é


um testemunho sobre o fato criminoso, mas um testemunho sobre
declarações incriminatórias relacionadas ao fato criminoso. A sua
validade depende de como essas declarações incriminatórias foram
obtidas. Voltando ao diagrama exposto anteriormente, se o evento 2
for inválido, também será inválido o evento 3, que dele é derivado.

Nesse ponto, há várias perguntas que devem ser feitas para aferir
a licitude da prova: (a) houve a participação de agentes estatais?;
(b) as declarações foram espontâneas?; (c) havia necessidade do aviso
Miranda? Em caso afirmativo, foram respeitados esses requisitos?

Para começar, é preciso diferenciar duas formas de extrair


declarações incriminatórias de um suspeito: (1) sem a participação do
Estado e (2) com a participação do Estado.

Quando um suspeito admite espontaneamente que cometeu


um crime para um colega, um parente ou um companheiro de cela –
sem que tenha havido qualquer envolvimento de agentes estatais –, o
testemunho do interlocutor, relatando o conteúdo da conversa, pode
ser considerado, em princípio, uma prova válida16.

A principal dúvida quanto à validade dessa modalidade de


testemunho é que ela se aproxima da evidência “por ouvir dizer”

16
Nesse sentido, em um processo de homicídio qualificado tentado, cuja prova principal
era o depoimento do irmão do réu que “teria presenciado a confissão”, o STJ validou
sentença de pronúncia, assinalando: “Em relação ao depoimento judicial, na espécie,
não se trata de alguém que repete a vox publica, isto é, não se trata de testemunha
que sabe através de alguém, por ter ouvido alguém narrando ou contando o fato. Do
contrário, conforme consignado pelo Juiz Sumariante, a ‘versão do irmão do réu, que
teria presenciado a confissão, gera indício de autoria que deverá ser melhor analisada em
Plenário’. Não há como considerar imprestável em termos de valoração o depoimento
de testemunha, corroborado pela confissão extrajudicial, afirmando que ‘o réu (que é
seu irmão) lhe confessou que ‘foi lá e fez’, ou seja, que desferiu as facadas [na vítima]”.
(BRASIL, 2021b).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 239
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

(hearsay evidence). A evidência “por ouvir dizer” é o testemunho sobre


uma declaração extrajudicial oferecida para provar a veracidade de um
fato. Em princípio, esse tipo de prova testemunhal não é admitido nos
sistemas probatórios contemporâneos17.

Porém as confissões secundárias são excluídas da vedação de


hearsay evidence porque há um entendimento de que as palavras de
quem é parte no processo, ainda que proferidas extrajudicialmente,
podem ser levadas a juízo e usadas contra ela, sem que isso implique
violação do devido processo18. Assim, como a confissão secundária
envolve uma declaração atribuída ao próprio suspeito, a pessoa que
presenciou a fala pode testemunhar em juízo, incidindo uma das
exceções ao testemunho “por ouvir dizer” (NEUSCHATZ, 2022).

Desse modo, o testemunho de um particular que ouviu


declarações incriminatórias de um suspeito pode ser admitido. Não
havendo participação do Estado na conversa comprometedora, o
diálogo se situa na zona de livre manifestação, não sendo necessárias
maiores formalidades para que a testemunha deponha em juízo. Como
decidiu a Suprema Corte dos EUA, “nenhum direito fundamental
protege a crença equivocada de um criminoso de que uma pessoa
a quem ele voluntariamente confia a sua palavra não a revelará
posteriormente” (UNITED STATES, 1966b, tradução nossa)19.

17
Por exemplo: “Muito embora a análise aprofundada dos elementos probatórios seja
feita somente pelo Tribunal Popular, não se pode admitir, em um Estado Democrático
de Direito, a pronúncia baseada, exclusivamente, em testemunho indireto (por ouvir
dizer) como prova idônea, de per si, para submeter alguém a julgamento pelo Tribunal
Popular” (BRASIL, 2017a).
18
Nos EUA, essa exceção é conhecida como “party-opponent exception” e está prevista
na Regra 801, d, 2, a, da Federal Rules of Evidence, de 1975 (UNITED STATES, 1975), que,
explicitamente, estabelece que não se aplica a proibição da evidência por ouvir dizer
em relação a “uma declaração de uma parte opositora”.
19
“O risco de ser ouvido por um bisbilhoteiro ou traído por um informante ou enganado
quanto à identidade de alguém com quem se lida é provavelmente inerente às condições
da sociedade humana. É o tipo de risco que assumimos sempre que falamos” (UNITED
STATES, 1963, tradução nossa).

240 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

O debate muda de figura quando o Estado participa, direta ou


indiretamente, da extração de declarações incriminatórias. É que, a
partir do instante em que o Estado começa a investigar um indivíduo,
automaticamente incidem algumas salvaguardas que protegem o
cidadão contra a interferência arbitrária na sua liberdade. Ou seja,
saímos do campo da autonomia privada para o campo de limitação do
poder.

O Estado tem a prerrogativa de investigar os crimes em sua


jurisdição. Para isso, pode fazer perguntas para qualquer indivíduo.
Nada impede que um investigador converse informalmente com
testemunhas em potencial que possam ajudar a esclarecer os fatos.
Ocorre que a investigação, por sua própria natureza, é uma atividade
dirigida para o desconhecido/incerto. Logo, é muito difícil precisar
antecipadamente o que vai ser dito (DAMASCENO, 2021). É possível
que, nessa coleta preliminar de informações, eventuais declarações
incriminatórias sejam ditas espontaneamente. Se tais declarações
foram, de fato, livremente expressadas, podem ser usadas em juízo.

Do mesmo modo, os indivíduos são livres para se apresentarem


para uma autoridade estatal e falar sobre fatos criminosos. Se um
suspeito vai até a delegacia por conta própria e diz “eu cometi um
crime”, não há ilicitude em utilizar a referida informação. A rigor, o único
requisito para que essas declarações sejam admitidas em juízo, inclusive
por meio de testemunhas que a presenciaram, é a voluntariedade.

Uma declaração voluntária é o produto de um intelecto racional


e de um livre-arbítrio, pronunciada de modo consciente e sem coação.
Tudo o que for dito nessas condições é presumivelmente válido como
prova. Porém, declarações obtidas por meio de intimidação física ou
de pressão psicológica são presumivelmente inválidas. Do mesmo
modo, declarações proferidas em um contexto de esgotamento físico

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 241
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

e mental, ou de intoxicação, ou estimuladas por falsas promessas ou


ameaças, ou por informações inverídicas, não devem ser consideradas
como voluntárias. Equivalem, para todos os efeitos, a uma prova obtida
sob tortura, violando o devido processo porque são inerentemente não
confiáveis, não credíveis, fundamentalmente injustas e não respeitam
os direitos de autonomia de uma pessoa fazer escolhas livres e racionais
(FERDICO; FRADELLA; TOTTEN, 2009).

Além da voluntariedade, o grau de proteção do indivíduo


aumenta quando as declarações são proferidas nos interrogatórios com
a custódia do Estado. Nessa situação, as declarações do custodiado
somente serão admitidas se a pessoa tiver plena consciência dos seus
direitos e das consequências da sua fala.

Essa é a razão do aviso Miranda, desenvolvido pela Suprema


Corte dos Estados Unidos e que se tornou uma medida profilática
contra o abuso policial em vários países. O pressuposto é que, sem
as devidas salvaguardas, os interrogatórios com custódia (custodial
interrogations), por sua própria natureza, geram pressões persuasivas
capazes de minar a capacidade de resistência do indivíduo e obrigá-lo
a falar onde ele não o faria livremente (UNITED STATES, 1966a).

Daí porque o interrogador, antes de extrair quaisquer informações


comprometedoras do suspeito, deve avisá-lo de todos os seus direitos,
inclusive de seu direito ao silêncio, do seu direito a um defensor e do
direito de não se autoincriminar. Qualquer declaração incriminatória,
proferida em interrogatório com custódia, sem que essas salvaguardas
sejam anunciadas e compreendidas, é inadmissível como prova.

O que vai definir se um interrogatório é com custódia ou sem


custódia é a condição de submissão do interrogando perante a
autoridade. Sempre que o interrogando estiver, de algum modo, com
a sua liberdade de ação comprometida, o interrogatório deverá ser

242 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

considerado com custódia. O critério básico consiste em verificar se


uma pessoa razoável que esteja na mesma posição do suspeito se
sentiria livre para interromper a conversa e sair sem medo daquela
situação. Em caso afirmativo, não há custódia. Em caso negativo, há
custódia20.

O modus operandi da polícia brasileira de obter confissões


informais após a abordagem policial, e sem qualquer salvaguarda,
pode ser considerado um exemplo de violação do devido processo.
O STF tem gradativamente reconhecido que o aviso Miranda também
deve ser aplicado ao contexto brasileiro, reconhecendo que o dever
do Estado “de informar ao preso seu direito ao silêncio não apenas no
interrogatório formal, mas logo no momento da abordagem, quando
recebe voz de prisão por policial, em situação de flagrante delito”
(BRASIL, 2021c)21.

20
Todas as circunstâncias que cercam o ato devem ser levadas em conta para avaliar se
uma pessoa razoável se sentiria livre para interromper o interrogatório, por exemplo: 1.
O local do encontro, se era familiar ao suspeito, ou pelo menos neutro ou público, sendo
de se pressupor, em linha de princípio, que os interrogatórios em órgãos policiais, em
viaturas ou em salas isoladas são custodiados; 2. O número de policiais formulando
questões ao suspeito, sendo de se presumir que qualquer interrogatório com mais de
três policiais tem uma alta probabilidade de ser sob custódia, dado o maior poder de
controle e de intimidação; 3. O grau de constrangimento ou de força usada para deter
fisicamente o suspeito; 4. A duração e o estilo do interrogatório, incluindo o grau de
coação psicológica usado e o tipo de pergunta formulada; 5. Os termos usados para
intimar ou chamar o suspeito; 6. A ocorrência de confrontação, em que o sujeito é
informado de forma direta que a polícia o considera como suspeito; 7. Se o suspeito
teve a iniciativa de entrar em contato com a polícia ou se a iniciativa foi da própria
polícia (FERDICO; FRADELLA; TOTTEN, c2009).
21
No mesmo sentido: “Há a violação do direito ao silêncio e à não autoincriminação, [...],
com a realização de interrogatório forçado, travestido de ‘entrevista’, formalmente
documentado durante o cumprimento de mandado de busca e apreensão, no qual não
se oportunizou ao sujeito da diligência o direito à prévia consulta a seu advogado e
nem se certificou, no referido auto, o direito ao silêncio e a não produzir provas contra
si mesmo, nos termos da legislação e dos precedentes transcritos 4. A realização de
interrogatório em ambiente intimidatório representa uma diminuição da garantia contra
a autoincriminação. O fato de o interrogado responder a determinadas perguntas
não significa que ele abriu mão do seu direito [...]. Precedentes dos casos Miranda v.
Arizona e Mapp v. Ohio, julgados pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Necessidade
de consolidação de uma jurisprudência brasileira em favor das pessoas investigadas”
(BRASIL, 2019b).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 243
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

Faz todo sentido considerar como ilícita a “confissão informal”


obtida a partir de um interrogatório de uma pessoa presa que não foi
alertada sobre os seus direitos, pois há um claro déficit de autonomia
numa entrevista realizada nesse contexto de intimidação. A pessoa
abordada pela polícia irá dizer tudo o que for possível para evitar o uso
de violência contra si e, por isso, tenderá a assumir a autoria de qualquer
delito se isso puder interromper o tratamento hostil. Também faz todo
sentido reconhecer a ilicitude, por derivação, das provas que foram
colhidas a partir dessa entrevista para dissuadir atividades abusivas.
Admitir uma prova derivada de abuso irá, na prática, estimular ainda
mais abuso.

Portanto, se for confirmada a natureza custodial do interrogatório,


o aviso Miranda é condição de validade do ato, mesmo que as
declarações incriminatórias pareçam voluntárias. Se o acusado invocar
o seu direito ao silêncio ou solicitar a assistência de um advogado,
o interrogatório deve ser encerrado. Por outro lado, se o suspeito é
avisado de seus direitos e ainda assim confessa, as suas declarações
podem ser admitidas se for comprovado (1) que o suspeito renunciou aos
direitos voluntariamente, ainda que de forma oral e (2) que o suspeito
tinha plena consciência do direito renunciado e das consequências daí
decorrentes (UNITED STATES, 1987).

Mesmo nessas condições, o requisito da voluntariedade das


declarações ainda deve ser observado. Por exemplo, uma confissão
obtida mediante coação física ou psicológica, com ameaças veladas
ou explícitas, com privação de comida e de sono ou em confinamento
prolongado etc., continuará sendo inválida, ainda que tenha sido
observado o aviso Miranda22.

22
Por outro lado, a mera presença de promessas de redução de pena, de encorajamento
para cooperar ou de apelo a crenças religiosas não são consideradas táticas coercitivas
ao ponto de desnaturar a voluntariedade da confissão (FERDICO; FRADELLA; TOTTEN,
2009).

244 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

Vale ressaltar que o dever de pronunciar o Aviso de Miranda antes


de um interrogatório somente se aplica quando o suspeito sabe que
está falando com agentes estatais. Conversas entre suspeitos e agentes
disfarçados ou infiltrados não estão sujeitas ao Aviso de Miranda,
porque os suspeitos não podem alegar, de forma razoável, que uma
conversa nesse contexto foi pronunciada sob coação23. Ressalte-se,
contudo, que, no modelo brasileiro, a admissibilidade da referida prova
está submetida à reserva de jurisdição, dependendo de autorização
judicial prévia24. Além disso, pela regulamentação do instituto no Brasil,
o agente infiltrado precisa necessariamente ser agente de polícia, não
podendo haver o uso de informantes privados realizando um papel
equivalente ao do agente infiltrado/disfarçado.

Em relação a declarações incriminatórias fornecidas a


colaboradores, há algumas variáveis a serem levadas em conta. No
modelo norte-americano, se as declarações foram voluntárias e
pronunciadas antes do acordo com a polícia, em princípio, a prova
é admissível, ainda que de baixa qualidade. Por outro lado, se as

23
Eis o argumento completo: “Um policial disfarçado que se apresenta como um
companheiro de prisão não precisa dar Aviso de Miranda a um suspeito encarcerado
antes de fazer perguntas que possam provocar uma resposta incriminadora. A doutrina
Miranda deve ser aplicada de forma estrita, mas apenas em situações em que as
preocupações subjacentes a essa decisão estejam presentes. Essas preocupações
não estão implicadas aqui, pois faltam os ingredientes essenciais de uma ‘atmosfera
dominada pela polícia’ e um contexto que leve a uma confissão compulsória. É premissa
de Miranda que o perigo de coação decorre da interação da custódia e do interrogatório
oficial, pelo qual o suspeito pode se sentir compelido a falar pelo medo de represálias
por permanecer calado ou na esperança de um tratamento mais brando caso confesse.
Essa atmosfera coercitiva não está presente quando uma pessoa encarcerada fala
livremente com alguém que acredita ser um colega de prisão e que supõe não ser um
oficial com poder oficial sobre ele. Em tais circunstâncias, Miranda não proíbe mero
engano estratégico, aproveitando-se de uma confiança equivocada de um suspeito”
(UNITED STATES, 1990, tradução nossa).
24
“Art. 10. A infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação, representada
pelo delegado de polícia ou requerida pelo Ministério Público, após manifestação
técnica do delegado de polícia quando solicitada no curso de inquérito policial, será
precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá
seus limites” (BRASIL, 2013).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 245
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

declarações foram pronunciadas sob a orientação da polícia, isso


torna o informante um agente do governo, de modo que a confissão
secundária somente será admissível se: (1) for voluntária, ou seja,
sem qualquer tipo de coação ou ameaça, direta ou indireta; (2) não
houver qualquer ação ou estímulo positivo, além da escuta, projetada
deliberadamente para induzir comentários incriminatórios (UNITED
STATES, 1986). Em outras palavras, colaboradores orientados pelo
Estado não podem formular perguntas para induzir o suspeito a se
autoincriminar, pois isso equivaleria a burlar as salvaguardas do devido
processo. No Brasil, contudo, é bastante questionável a possibilidade
de valoração de uma confissão secundária testemunhada por um
colaborador, por razões que serão explicadas mais à frente.

Outro ponto importante é que a declaração incriminatória


também será inadmissível depois da formalização da acusação se não
for dada oportunidade ao réu de consultar um advogado. Ou seja, em
relação aos fatos denunciados, nenhum interrogatório será admissível
na ausência de advogado. Portanto, em princípio, não há sentido em
admitir a confissão secundária produzida após a acusação, pelo menos
em relação aos fatos que foram objeto da denúncia (UNITED STATES,
1966b).

Em síntese, para aferir a validade (admissibilidade) da


confissão secundária, é fundamental saber: (1) se não houve quebra
da voluntariedade na extração das declarações; (2) se havia uma
atmosfera de controle policial, ocasião em que devem ser observadas
as salvaguardas do Aviso de Miranda; (3) se houve a devida renúncia
dessas salvaguardas. Somente se essas condições forem respeitadas
é que se poderá admitir um testemunho relatando a possível
existência de uma conversa em que o suspeito forneceu informações
comprometedoras.

246 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

6 VALORAÇÃO DAS CONFISSÕES SECUNDÁRIAS

Em geral, um interrogatório produz uma prova documental


de confissões primárias, com o registro do ato assinado pelo
suspeito, atestando que são suas aquelas declarações. A gravação
do interrogatório também produz o mesmo efeito de atestar a
autoria e a autenticidade da confissão. A propósito, uma das
principais recomendações para reduzir as falsas confissões é a
gravação do interrogatório do começo ao fim para que se possa
ter mais transparência e clareza de todo o contexto que levou
a pessoa a confessar. Para que uma confissão seja devidamente
valorada, é preciso verificar as técnicas adotadas da entrevista, o
tempo de duração e a presença de outros fatores de risco, como
vulnerabilidades, privação do sono, fome, isolamento, menção
a evidências inexistentes, promessas, ameaças e táticas de
minimização das consequências e assim por diante (GUDJONSSON,
2018).

Porém, sabendo que a realidade é bem diferente do mundo ideal,


é possível que, em algumas situações, o ato não seja registrado, não
havendo outro meio de comprovar a sua existência além da palavra
daquele que o presenciou. Por exemplo, é possível que o custodiado
tenha assumido a culpa na viatura policial ou em uma conversa informal,
mudando de versão logo em seguida.

A depender das circunstâncias em que as declarações


incriminatórias foram proferidas, a confissão secundária poderá ser
admitida. Se as condições de admissibilidade forem respeitadas, passa-
se à fase de valoração.

Aqui, mais uma vez, é preciso enfatizar que a confissão secundária


é uma prova testemunhal, cuja qualidade pode ser prejudicada por falhas
de percepção, de codificação, de contaminação, de esquecimento,

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 247
GEORGE MARMELSTEIN LIMA

de confabulações, de sugestionabilidade, de interferências etc.


(MARMELSTEIN, 2022). Além disso, como toda prova testemunhal,
seu valor depende de um julgamento acerca da credibilidade da
testemunha e de confiabilidade do relato (FERNANDES, 2020).

Em outras palavras, o fato de uma confissão secundária ser


admitida não significa que terá valor probatório. Para avaliar a sua
força probatória, é preciso analisar a totalidade das circunstâncias
que a circundam, por exemplo: (a) o contexto em que a suposta
conversa ocorreu, incluindo-se os possíveis motivos do confessor; (b) a
adequada interpretação das palavras proferidas pelos comunicadores;
(c) a credibilidade da testemunha, englobando suas intenções, seus
motivos para depor, suas qualidades morais e seu nível de isenção com
a causa; e (d) a confiabilidade do testemunho, em termos de coerência,
consistência e plausibilidade.

No contexto norte-americano, as principais críticas envolvendo


as confissões secundárias estão relacionadas aos incentivos dados
a informantes, companheiros de cela ou cúmplices que resolveram
colaborar com a polícia25. Em geral, essas testemunhas são “vigaristas,
mentirosos congênitos e fraudadores experientes”, que estão sendo
recompensadas para reunir provas contra alguém. Mesmo sendo
pouco confiáveis, seus testemunhos podem receber um crédito

25
De acordo com um relatório do The Marshall Project, “o incentivo mais comum oferecido
aos informantes da cadeia por informações ou testemunhos são anos cortados de uma
sentença potencial. Os réus federais que cooperam durante o curso de seus casos
têm seu tempo de prisão reduzido, em média, em mais da metade, de acordo com um
relatório de 2016 da Comissão de Sentenças dos EUA. Mas esse não é o único incentivo
para informar ou desinformar. Na década de 1990, em Detroit, os detidos nas celas
do departamento de polícia recebiam comida quente, drogas e quartos para entreter
os visitantes em troca de examinar os documentos judiciais de outros réus para que
pudessem dar testemunhos que correspondiam à versão dos eventos dos promotores,
de acordo com duas reportagens investigativas. Entre os informantes mais prolíficos do
Departamento do Xerife do Condado de Orange, estava um par de membros da máfia
mexicana que foram recompensados com sofás em suas celas, caixas de cigarros, ‘quase
ilimitadas corridas de Taco Bell’ e um total de US$ 335 mil por seu trabalho em dezenas
de casos, de acordo com as notícias locais” (SCHWARTZAPFEL, 2018, tradução nossa).

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USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

imerecido, sobretudo quando são apresentados como “testemunhas


de acusação”, avalizadas pelo ministério público (COVEY, 2014).

Alguns estudos indicam que, em cerca de 21% das condenações


de inocentes, exonerados por meio do exame de DNA, houve algum
tipo de testemunho de informantes que receberam incentivos para
depor. Vários desses testemunhos são relatos de pessoas que, em
troca de benefícios, afirmaram falsamente que ouviram o suspeito
confessar o crime (GROSS; SHAFFER, 2012; GOULD; LEO, 2010). Os
dados envolvendo pena capital são ainda piores. Uma análise de 111
casos de pessoas que foram libertadas do corredor da morte, entre
1973 e 2004, indicou que 45,9% dos casos continham uma confissão
secundária falsa de um informante preso (WETMORE; NEUSCHATZ,
2014).

Aqui no Brasil, embora exista previsão legal para o pagamento de


incentivo a informantes26, o problema tem uma dimensão bem menor,
uma vez que não faz parte da nossa tradição indicar informantes
como testemunhas de acusação. Há, contudo, uma tendência de usar
o testemunho de colaboradores em juízo, muitas vezes envolvendo a
divulgação de conversas com outros presos.

A meu ver, é preciso uma cautela redobrada ao valorizar as


confissões secundárias nessas situações. Primeiro, porque a confissão
secundária é uma prova dependente da credibilidade, e um delator
incentivado não é uma pessoa confiável. O seu modo de atuação
depende justamente da quebra da confiança e da traição de seus
comparsas (RODRÍGUEZ, 2018). Segundo, porque aquele que recebe

26
“Art. 4º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no âmbito de suas
competências, poderão estabelecer formas de recompensa pelo oferecimento de
informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou
ilícitos administrativos. Parágrafo único. Entre as recompensas a serem estabelecidas,
poderá ser instituído o pagamento de valores em espécie” (BRASIL, 2018a).

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GEORGE MARMELSTEIN LIMA

recompensa em função de seu testemunho estará comprometido com


a acusação, colocando em risco a necessária objetividade em relatar a
verdade27. Terceiro, porque o modelo brasileiro não tem regras seguras
e bem desenhadas contra os falsos testemunhos. Nos Estados Unidos,
o juízo de admissibilidade da prova está sujeito a um procedimento
específico de admissão, chamado pretrial reliability hearings. Somente
quando a prova testemunhal atende a um pressuposto mínimo de
credibilidade é que pode ser valorada e, ainda assim, sujeita a um
rigoroso cross-examination pela parte adversa. Nosso modelo de
contradita de testemunhas é bem menos eficiente do que o modelo
de confronto e de impugnação do cross-examination. Além disso, nos
EUA, a acusação é obrigada a fornecer toda e qualquer informação
que possa afetar a credibilidade da testemunha, até mesmo os
antecedentes, as acusações anteriores de má conduta e todos os
incentivos ou promessas de incentivos que ela recebeu (precedentes
Brady e Giglio). No Brasil, ainda não temos uma regra Brady ou Giglio
que imponha ao Ministério Público o dever de fornecer informações
que possam beneficiar a defesa.

Afora tudo isso, há ainda um óbice de natureza jurídica que


impede a atribuição de valor probatório à palavra do colaborador. Nos
termos da legislação brasileira, a colaboração não é prova, mas “meio
de obtenção de prova”28. Isso significa que, por opção legislativa,
a palavra do colaborador não tem valor probatório por si só. E a
confissão secundária, por definição, é uma prova que se sustenta
exclusivamente na palavra. Logo, não há sentido em atribuir valor

27
Nos EUA, um informante chamado Leslie Vernon White costumava ligar para vários
policiais, passando-se por agente de polícia, pedindo detalhes sobre um crime que
apenas um insider saberia. Depois, oferecia-se para testemunhar em troca de sursis,
abatimento da pena ou dinheiro. Os relatos eram confissões secundárias contra o
acusado. Ele testemunhou em pelo menos uma dúzia de casos usando esse esquema
(SCHWARTZAPFEL, 2018).
28
“Art. 3º-A O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de
obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos” (BRASIL, 2013).

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USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

probatório a um mero relato oral do colaborador, sem uma prova de


reforço que ateste a existência daquela conversa. Assim, conversas
ouvidas pelo colaborador, sem registro, poderão ser utilizadas para fins
de investigação, mas nunca para corroborar o juízo de condenação29.

Por último, resta analisar os critérios de valoração do testemunho


policial. Como dito anteriormente, em muitos contextos, a palavra do
policial costuma ser tratada como um trunfo probatório, com uma
elevada presunção de veracidade. Isso é bastante problemático, por
vários motivos.

Inicialmente, o policial nem sempre está em posição privilegiada


para relatar adequadamente os fatos. O seu testemunho pode ser
contaminado por interferências de outras testemunhas, por outros
eventos semelhantes ou por expectativas enganadoras. Quando o
policial chega ao local do evento, o mais comum é que um esquema
mental seja pré-ativado a partir da narrativa que ele recebeu ao ser
chamado. Assim, ele irá enxergar os fatos a partir do esquema montado,
com o claro risco de ser influenciado pelo viés de confirmação, pela
visão de túnel e pelos preconceitos implícitos que estão embutidos em
sua mente.

Além disso, em muitos casos, os policiais não são partes


desinteressadas, pois participam lado a lado da acusação na

29
Essa tem sido a orientação do STF: “7. Se os depoimentos do réu colaborador, sem outras
provas minimamente consistentes de corroboração, não podem conduzir à condenação,
também não podem autorizar a instauração da ação penal, por padecerem da presunção
relativa de falta de fidedignidade. 8. A colaboração premiada, como meio de obtenção
de prova, tem aptidão para autorizar a deflagração da investigação preliminar, visando
adquirir coisas materiais, traços ou declarações dotadas de força probatória. Essa, em
verdade, constitui sua verdadeira vocação probatória. 9. Todavia, os depoimentos do
colaborador premiado, sem outras provas idôneas de corroboração, não se revestem de
densidade suficiente para lastrear um juízo positivo de admissibilidade da acusação, o
qual exige a presença do fumus commissi delicti” (BRASIL, 2017b).

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GEORGE MARMELSTEIN LIMA

construção de um lastro probatório de incriminação (JOHNSON, 2016).


Às vezes, a primeira classificação do fato como crime é feita por um
policial, a partir de percepções subjetivas potencialmente enviesadas,
influenciando decisivamente o percurso do caso no sistema de justiça
criminal (RIGON; JESUS, 2019). Outras vezes, a polícia realiza a
prisão em flagrante, criando um pré-compromisso de confirmar a sua
intervenção, até para afastar qualquer acusação de abuso policial.

Há ainda policiais atuando diretamente na investigação, como


agentes disfarçados, ouvindo informantes, averiguando denúncias
anônimas, realizando diligências informais, fazendo campanas,
conduzindo o reconhecimento do suspeito e procurando evidências
em buscas pessoais ou domiciliares. Todos esses comportamentos são
esperados de agentes de polícia, justamente porque o policial não é
meramente um observador imparcial, mas uma parte integrante do
aparato estatal de segurança pública, que tem o dever de intervir para
combater o crime.

Nos casos em que o policial é chamado a depor em juízo, ele não


está agindo como policial, mas como testemunha. E como qualquer
testemunha, os policiais também não são perfeitos. Por isso, não se
pode atribuir uma credibilidade implícita e automática à palavra do
policial, outorgando-lhe um valor de verdade imerecido, sem uma
ponderação racional de todos os fatores relevantes (WARREN, 2018).

O juízo de admissibilidade e a valoração do depoimento do


policial dependem de uma análise crítica da própria conduta do policial.
Para isso, alguns pontos relevantes precisam ser considerados: (a) em
que contexto o policial extraiu as declarações do suspeito?; (b) houve
coação de alguma forma?; (c) qual foi o método de interrogatório?;
(d) o suspeito estava sob custódia?; (e) o suspeito foi alertado de
seus direitos?; (f) houve a renúncia consciente e voluntária das

252 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

salvaguardas?; (g) a declaração foi proferida pelo suspeito ou foi


forjada pelo policial?; (h) há razões para crer que o policial possa
estar sendo motivado por preconceitos implícitos ou explícitos?;
(i) no seu histórico disciplinar, o policial tem algum antecedente de
má conduta?; (j) há alguma política que incentive os policiais a realizar
o máximo de diligências que possam gerar um descuido funcional
(prêmios por produtividade, elogios, recursos financeiros para o
departamento etc.)?; (k) a ação policial pode ter sido motivada em
resposta a pressões institucionais e sociais?; e (l) em que medida o
resultado do processo pode interferir na sua reputação ou na sua
carreira funcional?

Esse tipo de constrangimento é típico de provas que se baseiam


na palavra. Quando valoramos o depoimento de um colaborador,
temos consciência de que os incentivos por ele recebidos afetam a sua
credibilidade, razão pela qual a sua palavra costuma ser avaliada com
cautela. Do mesmo modo, costumamos atribuir um peso reduzido ao
depoimento do réu que se declara inocente, porque sabemos que ele
tem um claro interesse no resultado do julgamento. A mesma lógica
deveria se aplicar ao depoimento do policial. É preciso perceber que,
em muitas situações, a palavra do policial deve receber um peso menor
do que a de uma testemunha isenta, porque sua posição pode ser
tendenciosa (JOHNSON, 2016).

Por isso, a palavra do policial jamais poderia produzir uma


inversão da presunção de inocência, sob pena de tornar inócua essa
garantia, além de esvaziar o próprio sentido da jurisdição (SEMER, 2019,
p. 190). Afinal, não basta ao estado declarar ou afirmar a culpa, mas
prová-la, não sendo suficiente presumir como absolutas as percepções
subjetivas de um ser humano falível, ainda que fardado.

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GEORGE MARMELSTEIN LIMA

Assim, o testemunho do policial precisa ser valorado com cautela,


mesmo quando são respeitadas as condições de admissibilidade.
Sua força precisa ser sustentada por uma cadeia de circunstâncias
verossímeis e corroborada por outras provas. Não se deve tratar o
policial nem como um nobre guardião da civilização, que entrega sua
vida para proteger o público, nem como um perverso manipulador da
justiça, que abusa do seu poder para oprimir inocentes. A verdade está
em algum lugar desses dois extremos e pode variar de caso a caso
(WARREN, 2018).

7 CONCLUSÃO

Antes de concluir, é preciso enfatizar que o rigor metodológico


aqui proposto tem em mira mitigar erros judiciais decorrentes de um
mau uso das confissões secundárias. Apesar de ter um baixo valor
epistêmico, a confissão secundária é uma prova fácil de ser obtida, pois
se alicerça exclusivamente na palavra de uma testemunha. Além disso,
costuma ser apresentada em juízo com o aval da polícia e do Ministério
Público, dando a falsa impressão de que merece confiança. Mesmo
sendo uma prova “fraca”, tem poder de influência. Daí a necessidade
de analisá-la com a devida cautela.

As conclusões a seguir foram desenvolvidas com essa


preocupação de reduzir os riscos, sem prejuízo de outras medidas que
possam caminhar nessa direção:

(1) Uma confissão secundária é um testemunho de uma conversa


informal, não registrada, em que alguém afirma ter presenciado um
suspeito proferir declarações autoincriminatórias;

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USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

(2) A validade da confissão secundária, como prova judicial,


depende do contexto em que as supostas declarações foram proferidas.
Se houver ilicitude na extração das declarações, também será ilícita a
prova testemunhal dela decorrente;

(3) Em relação a declarações espontâneas proferidas em


conversas privadas, sem a participação do Estado e sem uma atmosfera
policial, a prova testemunhal de quem participou legitimamente da
conversa é, em princípio, válida, bastando aferir a voluntariedade da
declaração e ter o devido cuidado na sua valoração – com especial
análise da credibilidade da testemunha e dos possíveis ruídos de
comunicação;

(4) Em relação a declarações incriminatórias extraídas com


a participação do Estado, inclusive por meio de informantes ou
colaboradores orientados por agentes estatais, há muitas variáveis em
jogo:

(4.1) Se forem espontâneas e voluntárias, sem induzimento e


sem a pressão de uma atmosfera de custódia, a prova testemunhal de
quem presenciou a declaração é, em princípio, válida, não havendo
necessidade de explicitar o aviso Miranda;

(4.2) Se a entrevista for um interrogatório ou um equivalente


funcional de interrogatório, com a liberdade de ação do suspeito
limitada pelas circunstâncias, a prova testemunhal daí decorrente será
válida apenas se o suspeito for previamente avisado de seus direitos
(aviso Miranda) e renunciá-los de modo consciente e autêntico;

(4.3) Em relação a declarações incriminatórias espontâneas,


testemunhadas por agentes infiltrados, o entendimento é de que não
há necessidade de aviso Miranda, devendo, contudo, no caso brasileiro,

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GEORGE MARMELSTEIN LIMA

ser observada a prévia autorização judicial e ser realizado apenas por


agentes de polícia;

(4.4) À luz do sistema brasileiro, é inviável atribuir valor probatório


às confissões secundárias testemunhadas por colaboradores, pois a
palavra do colaborador não vale como prova. É apenas um “meio de
obtenção de prova” que pode abrir linhas de investigação, mas sem
aptidão probatória de per si;

(4.5) Em qualquer caso, se a declaração se referir a fatos que


foram objeto de acusação, haverá ilicitude se houver induzimento e
não for garantido o direito ao advogado;

(5) Se as condições de admissibilidade forem atendidas, a


valoração da confissão secundária dependerá de uma análise de
credibilidade da testemunha e da confiabilidade do relato, devendo ser
explorados, por exemplo, os seguintes tópicos: (a) contexto da conversa;
(b) possíveis motivos do confessor e da testemunha; (c) interpretação
das palavras, dadas as circunstâncias em que foram pronunciadas;
(d) eventuais ruídos de comunicação (erros honestos e desonestos);
(f) possíveis incentivos recebidos pela testemunha; (g) qualidades
morais e antecedentes da testemunha; (h) nível de isenção em relação
ao resultado do processo; (i) possível animosidade com o suspeito;
(j) coerência narrativa; (k) consistência com outros depoimentos
e com a prova dos autos; (l) plausibilidade ou verossimilhança em
correspondência com a realidade;

(6) Em relação às confissões secundárias testemunhadas por


policiais, também é necessário realizar um escrutínio crítico para
aferir a sua credibilidade e a sua confiabilidade. Além de uma análise
rigorosa sobre as condições de admissibilidade, é preciso avaliar
alguns fatores de risco, por exemplo: (a) o contexto da declaração;

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USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

(b) a possível contaminação da memória; (c) as possíveis distorções


de percepção (esquemas mentais, preconceitos implícitos, vieses etc.);
(d) o histórico de má conduta; (e) os possíveis incentivos corporativos
e as pressões institucionais para realizar diligências, gerando uma
atuação mais descuidada; (f) a possível falta de isenção, por medo de
afetar a reputação e a carreira; (g) o receio de ser acusado de abuso de
poder; e (h) o excesso de compromisso pessoal com a tese acusatória.

(7) O ideal é que o sistema de justiça não precise confiar na


confissão secundária para condenar um suspeito; porém, na hipótese
de aceitá-la, é preciso ser prudente na análise de suas condições
de admissibilidade e de seus parâmetros de valoração. Se não for
respeitado um padrão razoável de confiabilidade e de credibilidade,
não é seguro atribuir-lhe qualquer valor probatório, nem como prova
de corroboração, muito menos como prova isolada de condenação.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 257
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264 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022.
USO DA “SECONDARY CONFESSION EVIDENCE” NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

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ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 219-269, jan./jul. 2022. 265
https://doi.org/10.54795/rejub.n.1.185

A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O
COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COMO
TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL
THE TRANSFER OF CRIMINAL PROCEEDINGS AND
SHARING OF EVIDENCE AS TECHNIQUES FOR THE
OPTIMIZATION OF THE COMBAT TO TRANSNATIONAL
ORGANIZED CRIME

CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ


Mestre e doutoranda em Direito Processual pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Juíza federal – Justiça Federal de Primeiro Grau no Rio
de Janeiro – Seção Judiciária do Rio de Janeiro. Ex-defensora pública
do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora da Comissão de Direito
Processual Civil da Escola da Magistratura Regional Federal – Emarf do
Tribunal Regional Federal – TRF da 2ª Região.
https://orcid.org/0000-0002-2370-9747

RESUMO

O presente artigo almeja realizar uma análise do compartilhamento


de provas e da transferência de processos penais entre os países
enquanto ferramentas vocacionadas à otimização do combate ao crime
organizado transnacional – um dos maiores desafios contemporâneos.
Para tanto, analisar-se-á a disciplina da matéria em Convenções como
as de Palermo e Mérida, bem como a jurisprudência brasileira acerca
dessas técnicas. Será concedido destaque à aferição dos modos de
equacionar o procedimento de compartilhamento de provas com as
garantias do devido processo legal previstas na Constituição Brasileira,
no embate entre a adoção da lex fori e lex diligentiae. Aborda-se-á,
outrossim, a garantia da paridade de armas na produção de provas

ReJuB
266 - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022.
A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COMO
TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

no exterior. Quanto à transferência de processos, o desafio consistirá


no modo de compatibilizar esse instrumento com a soberania dos
estados e as duas características-chave da jurisdição: territorialidade e
indelegabilidade.

Palavras-chave: cooperação; crime organizado transnacional; provas.

ABSTRACT

The present article aims to carry out an analysis of the sharing of


evidence and transfer of criminal proceedings between countries as
tools aimed at optimizing the fight against transnational organized
crime, one of the greatest contemporary challenges. In order to do so,
the discipline of the matter in Conventions such as those of Palermo
and Mérida will be analyzed, as well as the Brazilian jurisprudence on
these techniques. Emphasis will be given to the assessment of ways to
equate the procedure for sharing evidence with the guarantees of due
process provided for in the Brazilian Constitution, in the clash between
the adoption of the lex fori and lex diligentiae. It will also address the
guarantee of parity of arms in the production of evidence abroad. As
for the transfer of processes, the challenge will be how to make this
instrument compatible with the sovereignty of States and two key
features of the jurisdiction: territoriality and non-delegation.

Keywords: cooperation; transnational organized crime; evidence.

Recebido: 14-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 Transferência de processos como ferramenta para a busca


da “jurisdição mais adequada”. 3 Da cooperação jurídica internacional

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022. 267
CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ

para a produção de provas no exterior: os problemas concernentes ao


compartilhamento de provas. 4 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Em um mundo globalizado, o desafio de combater a criminalidade


cresce de forma exponencial, dada a sofisticação do modus operandi
das organizações criminosas. Como resultado do aumento de circulação
de bens e pessoas entre os diversos países, as organizações criminosas,
nos mesmos moldes das sociedades empresárias multinacionais,
estruturam-se para o cometimento de diversos crimes mediante a
difusão, a distribuição da atividade delitiva em diferentes estados,
de modo a maximizar o proveito do delito e, sobretudo, a dificultar a
persecução penal.

De fato, as dificuldades oferecidas à persecução penal nos


delitos transnacionais derivam dos óbices impostos pelas soberanias
dos diferentes países e da diversidade legislativa, notadamente no que
tange aos tipos penais e à produção e admissibilidade das provas.

Por essa razão, o combate à macrocriminalidade transnacional


exige a conjugação de esforços das autoridades dos diversos países
envolvidos para a apuração dos crimes, tanto sob a forma de atuação
de equipes conjuntas de investigação1 quanto pela cooperação por
meio do uso de técnicas de compartilhamento de provas, bem como

1
Acerca das equipes conjuntas de investigação, assevera Souza (2020, p. 146): “Nesse
contexto, as Equipes Conjuntas de Investigação – ECIs foram desenvolvidas como
modernos e promissores instrumentos de cooperação jurídica internacional para o
enfrentamento do crime transnacional, especialmente naquelas suas modalidades
mais graves (v.g., tráfico de drogas, crime organizado e corrupção). Estruturadas com
um modelo de atuação inovador, as ECls reúnem autoridades de vários países para a
realização integrada de uma mesma investigação criminal determinada, assegurando
aos membros da equipe a realização de atuações transnacionais e contatos diretos para
troca de elementos de informações (pedidos de diligências e resultados investigativos)”.

268 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022.
A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COMO
TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

a transferência de processos penais e procedimentos investigatórios


entre os países, com o escopo de otimizar a instrução probatória e
assegurar a punição do delito.

O tema se encontra na ordem do dia, tendo sido inserido no


Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 (Paz, Justiça e Instituições
Eficazes), subitem 16.42, da Agenda 2030 da Organização das Nações
Unidas – ONU (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA,
2019), destinado a estabelecer a meta de paz e justiça por meio da
cooperação internacional no combate eficiente ao crime organizado.

Nessa perspectiva de atuação logística integrada, um marco na


implementação do combate à criminalidade organizada transnacional
foi a Convenção de Palermo, iniciativa da ONU voltada à sistematização
das normas jurídicas referentes ao uso de técnicas especiais de
investigação das graves infrações cometidas pelas organizações
criminosas por meio de acordos, protocolos bilaterais ou multilaterais
apropriados.

Considerando que a produção probatória é o cerne do processo,


imprescindível é a análise dos instrumentos de cooperação jurídica

2
Os Objetivos da Agenda 2030 da ONU são um plano de ação cujo objetivo é o
desenvolvimento sustentável em suas múltiplas formas por meio de metas a serem
alcançadas até 2030. A Meta 16 busca promover sociedades pacíficas e inclusivas para
o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir
instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis. A Meta 16.4 da Agenda
2030 da ONU é a seguinte: “Até 2030, reduzir significativamente os fluxos financeiros e de
armas ilegais, reforçar a recuperação e devolução de recursos roubados e combater todas
as formas de crime organizado”. Conforme o site do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada – Ipea, há os seguintes indicadores: 16.4.1 – Valor total de entradas e saídas
de fluxos financeiros ilícitos (em dólares americanos correntes); 16.4.2 – Proporção de
armas apreendidas, encontradas ou entregues, cuja origem ou contexto ilícito tenha sido
detectado ou estabelecido por uma autoridade competente, em linha com instrumentos
internacionais (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2019).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022. 269
CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ

internacional à disposição dos órgãos de persecução penal voltados


ao desempenho da atividade instrutória.

Desse modo, o propósito do presente artigo é analisar o


compartilhamento de provas e a transferência de processos entre
os países, previstos na Convenção de Palermo e de Mérida, como
ferramentas de otimização do combate ao crime organizado
transnacional.

Para tanto, o plano de trabalho consistirá na averiguação


da disciplina da matéria em Convenções como a de Palermo e a
jurisprudência brasileira acerca dessas técnicas.

Não obstante, existem algumas dificuldades quanto ao


compartilhamento de provas: há a tensão entre o direito à prova e as
garantias processuais constitucionais do investigado/acusado, e, com
relação à transferência de processos penais, existe a necessidade de
compatibilização dessa ferramenta com a soberania dos estados, e a
consequente territorialidade e indelegabilidade da jurisdição.

Com o intuito de enfrentar os problemas derivados da aplicação


das referidas técnicas, serão apresentados, no segundo tópico, as
características e o modo de utilização da transferência de processos
criminais e de procedimentos investigatórios para a busca da jurisdição
mais adequada – com vistas a implementar esse ideal de eficiência. Em
seguida, no terceiro tópico, far-se-á uma incursão no tema referente
ao compartilhamento de provas no âmbito penal e ao modo de
equacionar a tensão entre os princípios processuais constitucionais e
o direito à prova. No que tange à paridade de armas no processo, será
também abordado o tema da possibilidade de produção de provas
internacionais postuladas pela defesa no exterior, por intermédio da

270 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022.
A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COMO
TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

cooperação jurídica internacional. Em arremate, no quarto tópico,


serão apresentadas as conclusões.

2 TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS COMO FERRAMENTA


PARA A BUSCA DA “JURISDIÇÃO MAIS ADEQUADA”

Conquanto a persecução penal esteja atrelada à jurisdição


como manifestação da soberania estatal, exercida nos lindes de um
território e de natureza indelegável, essa concepção rígida termina por
inviabilizar a concretização do Direito Penal em casos mais complexos,
como aqueles envolvendo os crimes transnacionais.

Afinal, os crimes transfronteiriços demandam o


redimensionamento da noção de soberania, e, consequentemente, de
jurisdição, a fim de que se busque a jurisdição mais adequada para o
processamento e julgamento do processo – justamente a que garantir
maior eficiência da prestação jurisdicional3.

Com efeito, em alguns casos, as provas relevantes serão


encontradas somente em um dos países com conexão para o
processamento e julgamento do delito, ou seriam, de qualquer modo,
mais bem colhidas em um determinado país.

No caso de jurisdição concorrente, revela-se necessário um acerto


entre os estados para resolver esse conflito positivo de jurisdição, a fim
de obstar a condenação de um acusado pelos mesmos crimes (ne bis
in idem) e eliminar os malefícios à eficiência decorrentes da tramitação
paralela de processos.

3
Oportuna é a noção de soberania compartilhada exposta por Slaughter (2004).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022. 271
CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ

Em outras situações, haverá a impossibilidade de extradição, a


justificar a transferência do processo criminal ou do procedimento
investigatório como único modo de assegurar a punição do acusado.

Enfim, adotar a concepção tradicional de jurisdição como


emanada de uma noção de soberania engessada, que proscreve a
transferência de processos a outros países, tornaria ineficiente a
persecução penal e o sistema de justiça no que tange ao enfrentamento
dos crimes organizados transnacionais.

Ressalte-se que o conceito de juiz natural vem sofrendo mutações


ao longo dos anos, sendo certo que, na prática, se distancia da
concepção original de impossibilidade de modificação da competência
ex post facto por meio de delegação.

No afã de revisitar o referido princípio, dentro de uma visão


dinâmica, Cabral (2021, p. 306) identificou o seu núcleo central na
observância dos vetores da objetividade, da impessoalidade, da
invariância das regras e das decisões sobre competência, além da
previsibilidade e da controlabilidade do procedimento de atribuição
ou da modificação de competência4. Portanto, a evolução ocorreu para
além do núcleo de proteção do jurisdicionado contra o arbítrio estatal,
de sorte a atender ao imperativo de eficiência, com base na busca da
competência do juízo mais adequado.

Destarte, a modificação de competência (rectius jurisdição), por


meio da delegação, não violaria o princípio do juiz natural, de acordo
com esse conceito, pois a regra de transferência é prevista segundo

4
Explica o autor “[...] procuramos identificar o seu núcleo essencial em torno de
outros vetores – objetividade, impessoalidade, invariância das regras e decisões
sobre competência – e ainda a previsibilidade e controlabilidade do procedimento de
atribuição e modificação de competência” (CABRAL, 2021, p. 306).

272 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022.
A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COMO
TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

critérios objetivos e impessoais em tratados multilaterais ou bilaterais,


não ofendendo, outrossim, as garantias do direito de defesa do réu.

Aliás, um dos motivos ensejadores da transferência de processos


é assegurar o melhor exercício dos direitos de defesa do réu no âmbito
do processo penal. Nesse aspecto, como bem ressalta Lessa (2013,
p. 167), a unificação dos processos reforçaria o exercício da ampla
defesa ao reduzir os custos da defesa, permitindo ao réu refutar de
modo mais eficiente todas as imputações realizadas.

No âmbito do Direito Internacional, pode-se falar, nessa vereda,


em exercício da jurisdição dos estados em cooperação (MENDONÇA,
2021, p. 112), de modo racionalizado, derivado de uma soberania
compartilhada (ABADE, 2013, p. 28), a viabilizar a eficiência da
prestação jurisdicional.

Dessa forma, entende-se que o Estado com jurisdição originária


estaria a gerir o exercício desse atributo da soberania ao transferir o
exercício da persecução penal, para que o Estado com a competência
adequada o faça5 em seu nome, representando-o ao tutelar os
interesses do Estado autor da transferência6.

A despeito de não possuir um regramento interno geral acerca


da transferência de procedimentos criminais, o Brasil é signatário
de alguns tratados internacionais que versam sobre alguns crimes
específicos, tais como a Convenção de Palermo (art. 21 do Decreto
n. 5.015/2004) (BRASIL, 2004), quanto ao crime organizado
transnacional; a Convenção de Viena (art. 4º, § 2º, do Decreto

5
Nesse aspecto, conferir a concepção da transferência como ato de delegação em
Ludwiczak (2013, p. 95).
6
A transferência encerraria uma função de representação, tal como defende Alt-Maes
(1992, p. 376-377).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022. 273
CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ

n. 154/1991) (BRASIL, 1991), relativamente ao combate ao tráfico


ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas; e a Convenção
de Mérida (art. 47 do Decreto n. 5.687/2006) (BRASIL, 2006), no que
tange ao combate à corrupção.

A Convenção de Palermo, em seu art. 21, prevê a possibilidade


de cooperação com vistas à transferência de processo, procedimentos
penais, contanto que estejam envolvidas as várias jurisdições e esteja
presente a necessidade da centralização da instrução probatória para
a boa administração da justiça (UNITED NATIONS CONVENTION
AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2004). O art. 47 da
Convenção de Mérida (CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA
A CORRUPÇÃO, 2007), por sua vez, possui redação análoga.

Como é cediço, tais tratados, quando internalizados, adquirem


status de lei ordinária federal, ostentando plena aplicabilidade no Brasil,
embora fosse aconselhável uma disciplina interna procedimental mais
detalhada do instituto da transferência de processos, com a enunciação
dos requisitos.

O objetivo geral desse instrumento é assegurar a boa


administração da justiça: almeja-se de modo específico alcançar a
eficiência da coleta de provas, reprimir crimes transnacionais, obstar
que um acusado seja condenado mais de uma vez pelos mesmos
crimes, garantir o exercício adequado da ampla defesa, e, ainda, a
eficácia da persecução nos casos em que esta seria inútil, em face
da inviabilidade da extradição. Note-se que, nesse último caso, a
transferência de processos é motivada pela recusa ou impossibilidade
de extradição, como ocorre no caso de acusados e investigados
nacionais, em que o propósito é obstar a falta de punição.

274 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022.
A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COMO
TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

A natureza desse instrumento de cooperação jurídica


internacional é a de um acordo entre estados, por meio das autoridades
de persecução penal (MENDONÇA, 2021, p. 269), cujo escopo é a
transferência da pretensão processual a outro país detentor de
melhores condições para o processamento e julgamento da ação
penal.

Assim, com a aceitação da transferência, o Estado requerente


deve cessar a persecução, porquanto caberá ao Estado requerido a
assunção do processo.

A assunção de procedimentos investigatórios e processos


penais pelo Brasil encontra fundamento nos tratados celebrados e no
preceituado no art. 7º, inciso II, da Constituição da República (BRASIL,
1988).

Alguns cuidados devem ser adotados, como a delimitação no ato


concertado dos lindes da transferência do crime em questão, podendo
haver disposições acerca do modo de colheita da prova em atenção às
garantias do devido processo legal7.

Por força do princípio acusatório, a cooperação jurídica para


a transferência de processos na forma ativa deve ser requerida pelo
Ministério Público à autoridade judicial, para que esta, mediante
controle de legalidade, autorize a solicitação à autoridade central
de cooperação internacional do seu Estado. Na forma passiva, as
autoridades estrangeiras devem requerer ao Ministério Público a
transferência dos processos.

Ressalte-se que, conquanto o Poder Executivo represente


o Estado brasileiro no plano internacional, deve a iniciativa da

7
Perfilhando essa orientação, vide Mendonça (2021, p. 395).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022. 275
CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ

transferência partir do dominus litis, no caso o Ministério Público, que


apenas se dirige ao Poder Judiciário para o controle da legalidade do
pedido de transferência de processos (MENDONÇA, 2021, p. 395).

E, pelo mesmo fundamento, não deveria caber ao Poder Judiciário


tal iniciativa, não obstante o acordo acarretar uma transferência do
exercício da jurisdição.

Na prática, os pedidos formulados pelo Ministério Público vêm


sendo aceitos, como se depreende da decisão proferida no bojo da Ação
Penal n. 8638, autorizando a transferência de ações penais instauradas
no exterior – França, Ilhas Jersey, Luxemburgo e Suíça – para o Brasil
de acusado por crime de corrupção, com fulcro no preceituado no
art. 7º, inciso II, alínea a, do Código Penal (BRASIL, 1940) e no art. 47 da
Convenção de Mérida (CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA
A CORRUPÇÃO, 2007).

Indaga-se se o princípio da especialidade deve ser aplicado


à transferência de processos. Nesse ponto, em decisão proferida
no Inquérito Penal n. 4.146 (BRASIL, 2016), o Plenário do Supremo
Tribunal Federal – STF reconheceu a possibilidade de transferência
de procedimentos investigatórios provenientes da Suíça, afastando
a alegação defensiva de falta de preenchimento do requisito da
especialidade ante a ausência de limitações impostas pela autoridade

8
Ação Penal n. 863, relator Ministro Ricardo Lewandovski, proferida em 14 de maio de 2014
(BRASIL, 2017). Na decisão, foi deferida a pretensão formulada na petição apresentada
pelo Ministério Público Federal autorizando a adoção para: (i) promover, através do
Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, do
Ministério de Estado da Justiça, este na condição de Autoridade Central, a confirmação
sobre a existência de procedimentos criminais em nome do investigado, bem como
a realização da transferência dos procedimentos penais em trâmite na França, nas
Ilhas Jersey, em Luxemburgo e na Suíça, instaurados contra o investigado e eventuais
coautores ou partícipes, “a fim de que tais feitos tenham seguimento perante a Justiça
brasileira”; e (ii) providenciar a repatriação, para o Brasil, “dos ativos bloqueados
naqueles países, para que aqui fiquem bloqueados” até ulterior decisão judicial.

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A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COMO
TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

suíça. Em verdade, a defesa alegou que o réu não poderia ser


denunciado pelo crime de evasão de divisas por inexistir a previsão de
tal delito na Suíça.

Relativamente ao momento da transferência, considerando o


caráter dinâmico da relação processual, em vista dos fatos que possam
surgir no curso da ação, assiste razão a quem defende a possibilidade
de transferência até o trânsito em julgado da decisão condenatória,
quando se tratar da necessidade de instrução probatória (MENDONÇA,
2021, p. 112).

Não se desconhece, contudo, a transferência de pessoas


condenadas com vistas à execução da pena e a execuções de sentença,
as quais possuem como fundamento a efetividade da atividade
executiva, caso em que seria admissível a transferência após o trânsito
em julgado. Porém, trata-se de situação diversa da tratada no presente
artigo.

De fato, como bem lembra Lessa (2013, p. 169), as convenções,


como as de Palermo e a de Mérida, não operam a distinção entre
processos judiciais e procedimentos penais, razão pela qual é possível
admitir, com base em tais avenças internacionais multilaterais, a
transferência das ações penais, e não somente de procedimentos
investigatórios.

No Direito Estrangeiro, contudo, são encontrados exemplos


de disciplina diversa, como na Itália, cujo Código de Processo Penal
(ITALIA, 2020) prevê a possibilidade de transferência de procedimentos
investigatórios somente até a propositura da ação penal.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022. 277
CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ

Observa-se, por fim, que esse instrumento de cooperação


jurídica internacional não é aproveitado em sua potencialidade em
razão da falta de disciplina detalhada no Direito Interno e, sobretudo,
em decorrência do desconhecimento pelos operadores do Direito
(MENDONÇA, 2021, p. 395)9.

Nessa diretriz, espera-se que esse instrumento seja mais utilizado


pelos órgãos de persecução penal para atender a um ideal de eficiência
na colheita da prova, com vistas à persecução penal com base na
jurisdição mais adequada, de modo coordenado pelos países, e não
somente nas hipóteses de inviabilidade de extradição.

A intensificação desse diálogo e da troca de informações


permitiria uma análise conjuntural do crime organizado em suas
múltiplas facetas, para o ajuste de uma estratégia coordenada de
atuação, que pode representar, outrossim, uma repatriação mais célere
de ativos quando se tratar de dano causado a um determinando país
de modo específico, como ocorre nos casos de corrupção.

3 DA COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL PARA A


PRODUÇÃO DE PROVAS NO EXTERIOR: OS PROBLEMAS
CONCERNENTES AO COMPARTILHAMENTO DE PROVAS

No âmbito dos crimes organizados transfronteiriços, desponta a


importância da produção probatória em países diferentes, a demandar
o reforço da cooperação jurídica por meio de acordos multilaterais e
bilaterais.

9
O referido autor apresentou, na tese de doutorado defendida na Universidade de São
Paulo – USP, o resultado de pesquisa empírica realizada no âmbito do Ministério Público
Federal. Segundo essa pesquisa, a maioria dos membros da carreira desconhecia o
funcionamento da transferência de processo penal e os procedimentos investigatórios
como instrumento de cooperação jurídica internacional.

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A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COMO
TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

Os veículos utilizados para cooperação em matéria probatória


são a carta rogatória, quando a medida postulada derivar de decisão
judicial, e o auxílio direto10, mais célere e desburocratizado, por
prescindir do juízo de delibação.

O juízo de delibação enquanto filtro para o controle superficial


em vista da aferição de requisitos formais e da compatibilidade
com a ordem pública somente se justificaria para o controle das
providências solicitadas por força de decisão judicial. No entanto,
existe a possibilidade de ser prevista em tratado a dispensa do juízo
de delibação11 mesmo nesses casos.

Como bem acentua Aras (2019, p. 443), na prática, tais


institutos teriam a mesma finalidade, inexistindo uma diferença
substancial, especialmente na forma ativa, restando apenas algumas
“dessemelhanças tópicas”.

Justamente em decorrência da celeridade e da informalidade,


assiste-se a uma intensificação do uso do auxílio direto entre as
autoridades responsáveis pela persecução penal em diferentes países
por meio de acordos multilaterais, como as Convenções de Palermo
e de Mérida, bem como mediante tratados bilaterais, como os Mutual
Legal Assistance Treaty – MLAT.

10
Além dos tratados, o Código de Processo Civil de 2015 (BRASIL, 2015), inovando em
relação ao anterior, apresenta a previsão do auxílio direto, em seus arts. 28 a 34, para
pedido de medidas que não derivem de decisão judicial e, portanto, sem submissão ao
juízo de delibação.
11
Por meio de tratado, também pode ser prevista a dispensa do juízo de delibação para a
eficácia de sentenças, como a regra do art. 20 do Protocolo de Las Leñas internalizado
por meio do Decreto n. 6.891/2009, de eficácia extraterritorial de sentenças e laudos
arbitrais nos estados signatários. Portanto, pode haver a previsão dessa dispensa em
sede de decisões judiciais de produção de provas, por exemplo. Com isso, a diferença
entre carta rogatória e auxílio direto torna-se ainda mais tênue (BRASIL, 2009).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022. 279
CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ

O tema referente ao compartilhamento de provas, entretanto,


traz à tona o desafio de equacionar a tensão entre o direito à prova,
com vistas a viabilizar a persecução penal e as garantias processuais
constitucionais do investigado ou acusado. Em acréscimo, existe ainda
a tensão entre o direito à prova do acusado e a disciplina das regras do
país encarregado de produzir a prova e prestar as informações.

Na realidade, o ponto nevrálgico do problema reside nas


diferenças das regras referentes à coleta de provas nos diversos
países que atuam em cooperação12. Cite-se, como exemplo, os casos
de compartilhamento de provas produzidas no exterior, que, no Brasil,
se submeteriam à reserva de jurisdição, tais como interceptações
telefônicas e quebra do sigilo bancário.

No entanto, exigir uma simetria perfeita entre os ordenamentos


jurídicos no âmbito da cooperação jurídica internacional redundaria na
ineficácia da cooperação, com grave sacrifício ao princípio do acesso
à justiça e ao dever de reprimir o crime organizado transnacional,
assumido em tratados internacionais, porquanto fragilizado o direito
à prova.

Isso porque impor a observância do Direito do país no qual o


processo se desenvolve significa intervir nas regras internas do Estado
que aceitou praticar um ato de cooperação.

Destarte, a adoção da lex diligentiae é informada primordialmente


pelo respeito à soberania do Estado estrangeiro na adoção das regras
de produção da prova e de confiança mútua. Não se deve olvidar,
ainda, que a Constituição brasileira (BRASIL, 1988) encarta entre
os fundamentos do Estado brasileiro a cooperação entre os povos

12
A problemática é bem exposta por Ramos (2015, p. 685-703).

280 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022.
A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COMO
TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

para o progresso da humanidade, base de todos os instrumentos de


cooperação jurídica internacional.

Indaga-se qual seria o melhor critério para a escolha da lei de


referência da prova penal: a lei do Estado no qual o processo original
se desenvolve (lex fori regit processum) ou a lei do Estado estrangeiro
no qual a diligência será realizada (lex diligentiae)?

Registre-se que a leitura das disposições das convenções da ONU


não concede qualquer norte interpretativo para essa questão, ficando
a cargo do Estado requerente definir as regras aplicáveis na aferição
da admissibilidade das provas produzidas no exterior.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ evoluiu


de uma postura mais refratária à admissibilidade das provas obtidas
no exterior por meio de cooperação judiciária, em casos de falta de
simetria com o sistema nacional, para uma posição de reconhecimento
da lex diligentiae.

Como exemplo do posicionamento favorável à lex fori processum,


pode-se mencionar a decisão adotada no julgamento da Suspensão
de Segurança 2.382-SP (Superior Tribunal de Justiça – STJ) (BRASIL,
2011c), relativa a um pedido de quebra de sigilo bancário aos Estados
Unidos da América – EUA, mediante auxílio direto.

Nessa esteira, houve a falta de reconhecimento da validade das


provas, sob o fundamento de que a autoridade brasileira não poderia
obter no exterior, pela via da colaboração jurídica internacional, o que
lhe é vedado no exercício de competência própria, no respectivo país.
Partiu-se da premissa de que deveria haver simetria quanto a essa
garantia de proteção da privacidade.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022. 281
CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ

Contudo, o entendimento que vem prevalecendo no âmbito do


Superior Tribunal de Justiça é o de aplicação da lex diligentiae13 na
cooperação jurídica internacional, segundo o qual a Justiça brasileira
pode usar provas obtidas no exterior em processos penais, desde que
tenham sido obtidas legalmente, em conformidade com o ordenamento
jurídico local e com base em acordo celebrado para a realização do
auxílio direto.

Essa orientação se encontra fulcrada no preceituado no


art. 13 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB
(BRASIL, 1942), o qual dispõe que, à prova dos fatos ocorridos em país
estrangeiro, aplica-se a lei vigente no referido país. Prestigia-se, desse
modo, o princípio do reconhecimento mútuo de decisões judiciais.

Compreende-se, pois, que o compartilhamento direto de dados


bancários e a realização de interceptações telefônicas pelos órgãos
investigativos por força da cooperação jurídica internacional não
violariam a ordem pública, mesmo que, no Estado de origem, sejam
obtidos sem prévia autorização judicial – se a reserva de jurisdição não
é exigida pela legislação local, como no caso dos EUA.

A mesma orientação foi perfilhada no julgamento do Habeas


Corpus n. 128.590-PR (BRASIL, 2011a) (Caso Rueda Bastos), tendo
o STJ decidido que a oitiva de testemunha perante autoridade não

13
Adotando esse entendimento de aplicação da lex diligentiae, conferir os arestos
proferidos no julgamento do Agravo em Recurso Especial – AREsp n. 701.833/SP,
Relator Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 4 de maio de 2021, publicado
no Diário da Justiça Eletrônico – DJe em 10 de maio de 2021, Habeas Corpus – HC
n. 231.633, 5ª turma do STJ, Relator Ministro Jorge Mussi, publicado no DJe em 25
de novembro de 2014, Ação Penal – APn n. 856/DF, Corte Especial, Relatora Ministra
Nancy Andrighi, julgado em 18 de outubro de 2017, Recurso Especial – REsp n. 1.610.124/
PR, Agravo Regimental – AgRg no AgRg nos Embargos de Declaração – EDcl no AREsp
n. 1243890/RS, Rel. Min. Felix Fischer, 5ª turma do STJ, publicado do DJe em 17 de
setembro de 2018.

282 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022.
A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COMO
TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

judicial (deposition estadunidense) não teria ofendido o devido


processo legal, porquanto cumprida as regras do Estado incumbido da
produção da prova (lex diligentiae). Em acréscimo, houve a concessão
de oportunidade à defesa para apresentação de quesitos.

De acordo com a legislação de referido país, somente não seria


admissível a prova produzida no estrangeiro se o meio de sua obtenção
violar a ordem pública, a soberania nacional e os bons costumes
brasileiros, conforme a previsão do art. 17 da LINDB (BRASIL, 1942).

Nesse sentido, a ordem pública, compreendida como a “moral


básica de uma nação” (DOLINGER; TIBÚRCIO, 2020, p. 446), composta
pelos “princípios fundamentais jurídicos, econômicos, morais e sociais”
de um país (BARROSO; TIBÚRCIO, 2013, p. 495), deve obstar a
admissibilidade da prova produzida no exterior.

Dito isso, pode-se lançar a seguinte pergunta: os princípios


reitores do devido processo legal de sede constitucional não estariam
naturalmente inseridos no conceito de ordem pública, um paradigma,
ao lado da soberania e dos bons costumes, que opera como um filtro
axiológico da admissibilidade de provas produzidas no exterior?

Descartada a necessidade de uma perfeita simetria, ante a


previsão da cooperação jurídica como um dos objetivos da República
brasileira, pergunta-se: como seria possível analisar o nível de proteção
equivalente outorgado pelos sistemas jurídicos estrangeiros?

Fato é que, aparentemente, inexiste no caso de sigilo bancário


e telefônico o mesmo cuidado por parte das autoridades estrangeiras
em face da falta de previsão da reserva de jurisdição, ainda que se
admita a existência de um controle relativo à admissibilidade do

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022. 283
CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ

pedido de produção de prova, como ocorre nos EUA quanto à aferição


da probable cause (nexo de causalidade).

A solução de exigir decisão judicial no Brasil para solicitar a


quebra de sigilo tornaria a cooperação jurídica mais lenta ante a
exigência, em princípio, de tramitação pelo uso de carta rogatória, por
se tratar de decisão judicial14.

No entanto, algumas diligências instrutórias inquestionavelmente


violariam a ordem pública, tais como a oitiva de corréu como
testemunha, a colheita de interrogatório sem assistência jurídica e a
obtenção de confissão por meio de coação ou tortura.

Ante a indeterminação e a fluidez do conceito de ordem pública,


faz-se imperiosa a sistematização de um conteúdo mínimo destinado
ao controle adequado das provas provenientes do exterior por meio de
instrumentos de cooperação jurídica internacional.

Esse seria um modo de temperar a teoria da lex diligentiae


na aferição dos elementos probatórios. Com base na análise das
decisões dos tribunais superiores, parece que nem todas as garantias
constitucionais estariam incluídas no conceito de ordem pública como
filtro axiológico do controle das provas produzidas no exterior.

Diante dessa celeuma, propõe Ramos (2021, p. 547-549), como


solução para o controle das provas produzidas no exterior, a aplicação,
no lugar da lex fori e da lex diligentiae, de um modelo universalista
(ou da interpretação internacionalista) com o intuito de verificar o
conteúdo e os limites dos direitos protegidos de acordo com parâmetros

14
Consoante asseverado, poderá haver a previsão, por meio de tratado, dessa dispensa
em sede de decisões judiciais de produção de provas, por exemplo.

284 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022.
A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COMO
TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

internacionais, com base nas decisões de órgãos internacionais de


Direitos Humanos, como a Corte Europeia de Direitos Humanos e a
Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Com efeito, esse modelo universalista é o que mais se coaduna


com os predicados da tolerância, da diversidade e da pluralidade,
que caracterizam o Direito Internacional Privado (RAMOS, 2015,
p. 699-700)15.

Tal concepção é acompanhada por Bechara (2011, p. 59) e Müller


(2016, p. 186), pontuando tais autores que deve ser aplicado um padrão
normativo universal para o controle da validade e eficácia da prova
produzida no exterior. No mesmo norte, Silva (2021, p. 219) propõe
que haja a compilação de tais regras universais em uma lei geral de
cooperação internacional para conceder uma orientação na redação
de tratados internacionais.

Em verdade, esse modelo de construção de um padrão universal


de princípios conferiria não só a tutela adequada dos direitos
fundamentais como também garantiria maior segurança, reforçando
a confiança nas relações de cooperação internacional. Nesse norte, a
disciplina legislativa de um procedimento com tais parâmetros ou a
sistematização em sede jurisprudencial pelos tribunais superiores seria
de grande valia para tal desiderato.

Outro ponto polêmico é a tutela da paridade de armas na


produção probatória no âmbito internacional.

15
O referido autor descartou o uso da fórmula “primazia de norma probatória mais
favorável ao indivíduo”, dada a inviabilidade em um cenário de conflito. Ressalta a
superioridade do modelo universalista pela coerência e consistência com a concepção
internacionalista dos Direitos Humanos e pela existência de decisões internacionais que
densificam os direitos envolvidos na produção probatória no exterior (RAMOS, 2015,
p. 700).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022. 285
CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ

Em alguns sistemas, como o adversarial estadunidense, observa-


se que inexiste a previsão da possibilidade da cooperação para a
produção de provas em favor da defesa. Ressalte-se, ainda, inexistir
qualquer previsão no Tratado de Assistência Mútua em Matéria Penal
entre o Brasil e os EUA (Decreto n. 3.810/2001) (BRASIL, 2001), motivo
pelo qual a paridade de armas poderia ser vulnerada em decorrência da
impossibilidade de produção de prova nos EUA postulada pela defesa.

Nessa diretriz, a solução encontrada em julgado no STJ16 e na


doutrina (MÜLLER, 2016, p. 137) é a de ser a providência requerida ao
juiz para o encaminhamento como diligência determinada pelo juízo.

No entanto, tal solução não é perfeita, visto que as autoridades


estadunidenses podem se recusar a produzir tal prova por concluírem
que deriva de postulação da defesa.

Conclui-se, pois, que o ideal seria a previsão da possibilidade de


produção de prova postulada pela defesa no bojo do MLAT, celebrado
entre o Brasil e os Estados Unidos.

4 CONCLUSÃO

Em um mundo em constante evolução, é imperiosa a adequação


dos instrumentos de combate ao crime organizado aos novos contornos

16
A este propósito, confira-se o Habeas Corpus n. 147.375/RJ42, no qual a concessão
do writ foi negada sob o fundamento de que, não obstante a falta de previsão da
produção probatória em favor da defesa no MLAT celebrado entre o Brasil e os EUA,
o impetrante poderia solicitar ao juízo a produção da prova, e que este a solicitaria
ao Estado requerido. Segue excerto do referido julgado: “2. Mesmo que os Estados
Unidos da América não aceitem pedidos de prova requeridos pela defesa em face das
peculiaridades do sistema da common law adotado, não há dúvidas de que inexistem
impedimentos no direito pátrio a que o juiz solicite, por meio do acordo, as providências
desejadas pelo acusado” (BRASIL, 2011b).

286 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022.
A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COMO
TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

desse delito – dotado, na contemporaneidade, de uma dimensão


transnacional.

Nessa toada, o combate ao crime organizado transnacional


demanda a revisitação da noção de soberania estatal quanto ao
exercício da jurisdição, de modo a reforçar o uso dos instrumentos de
cooperação jurídica internacional.

Assim, a adoção de uma gestão judiciária internacional,


compartilhada entre os países, é a que melhor atende ao ideal
de eficiência da justiça penal relativamente ao crime organizado
transnacional, sem se descurar da tutela dos direitos dos investigados
e acusados.

Sob esse prisma, o uso de ferramentas como a transferência


de processos e o compartilhamento de provas visa superar os óbices
decorrentes da diversidade legislativa e da aplicação rígida das regras
da jurisdição, assegurando uma produção probatória mais eficiente.

A soberania, interpretada sob as lentes da interdependência entre


as nações com vistas ao combate ao crime organizado, é exercida de
modo compartilhado.

A jurisdição, por sua vez, encontra-se alicerçada em uma noção


de juiz natural mais flexível (CABRAL, 2021, p. 306), que permite a
delegação, desde que preservado o núcleo essencial de objetividade,
a invariância das regras, além da previsibilidade das normas de
modificação da jurisdição.

O Supremo Tribunal Federal, em casos de pedido de transferência


de processos e procedimentos penais, não tem criado óbices à aceitação

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022. 287
CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ

desse instrumento, afastando, inclusive, a especialidade, quando o país


autor da transferência não impõe condições.

Nesse viés, existe uma enorme potencialidade do uso da


transferência de processos como ferramenta para atender a um ideal
de eficiência na colheita da prova, com vistas à persecução penal com
base na jurisdição mais adequada: evita-se o bis in idem em caso de
jurisdições concorrentes, além de otimizar a produção da prova no
local em que essa atividade será mais proveitosa.

No entanto, esse instrumento é pouco utilizado na prática,


merecendo ocupar um lugar de maior destaque no plano logístico da
investigação do crime organizado transnacional.

Quanto ao compartilhamento de provas, o desafio é o encontro de


um ponto de equilíbrio entre o direito à prova no âmbito da persecução
e as garantias constitucionais, no embate entre a adoção da lex fori e
da lex diligentiae.

A posição que vem prevalecendo no STJ de prestigiar a lex


diligentiae é a que confere máxima efetividade à cooperação jurídica
internacional, sem se descurar do exame da ordem pública.

Não obstante, seria recomendável a sistematização do núcleo de


Direitos Humanos fundamentais para efeitos de cooperação, com base
em decisões proferidas pelas cortes de Direitos Humanos.

Nessa toada, a elaboração de uma lei geral de cooperação


jurídica internacional ou a sistematização de critérios nas decisões
judiciais conferiria a segurança necessária ao controle da colheita de

288 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022.
A TRANSFERÊNCIA DE PROCESSOS E O COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COMO
TÉCNICAS PARA A OTIMIZAÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL

prova realizada no exterior e um norte para a cooperação jurídica a ser


cumprida pelo Brasil.

A produção de prova postulada pela defesa no âmbito da


cooperação jurídica internacional encontra óbices em sistemas como o
da Common Law, quando, igualmente, inexiste previsão nos acordos de
assistência judiciária internacional em matéria penal (MLAT celebrado
entre o Brasil e os Estados Unidos).

A solução de determinar que a defesa postule ao juiz o


encaminhamento como produção de prova do juízo não resolve de
todo o problema, dada a probabilidade de recusa pelas autoridades
estadunidenses. O ideal, portanto, seria a previsão dessa possibilidade
no MLAT celebrado entre o Brasil e os Estados Unidos.

Em suma, as perspectivas de aprimoramento dos instrumentos


de cooperação jurídica internacional fomentam a esperança no
combate eficiente do crime organizado transnacional, de sorte que
as Convenções de Palermo e de Mérida não sejam reduzidas a meras
“cartas de intenções”, desprovidas de efetividade.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 271-300, jan./jul. 2022. 289
CARLA TERESA BONFADINI DE SÁ

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A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL


COMO INSTRUMENTO DE COMBATE AO
CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO
TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS
THE USE OF FACIAL RECOGNITION AS A INSTRUMENT
TO FIGHT TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME AND
TERRORISM: LIMITS AND PERSPECTIVES

FABIO NUNES DE MARTINO


Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (2000). Especialista em Direito Penal e Criminologia pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS (2020).
Mestre em Justiça Administrativa pela Universidade Federal Fluminense
(2021) e mestrando em Direito Processual pela Universidade de São
Paulo. Atualmente é juiz federal – Seção Judiciária do Paraná.
https://orcid.org/0000-0003-1561-9976

RESUMO

Para enfrentar os desafios gerados pela constante atuação do crime


organizado transnacional e das organizações terroristas, os estados
se viram obrigados a utilizar novos mecanismos de investigação
com o objetivo de tornar mais eficiente a atividade de prevenção e
de repressão a esses delitos. Entre os mecanismos, encontra-se o
reconhecimento facial automatizado. Partindo desse contexto, este
artigo pretende fazer uma análise da utilização dessa tecnologia
como ferramenta voltada ao apoio das agências de investigação na
prevenção e na repressão da criminalidade organizada e do terrorismo
internacional, incluindo uma abordagem sobre a existência de limites
técnicos, práticos e jurídicos, bem como expondo as perspectivas para
a compatibilização do uso dessa ferramenta de investigação com a
proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos.

ReJuB
296 - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

Palavras-chave: reconhecimento facial; eficiência; limites; direitos


fundamentais; cooperação judicial internacional.

ABSTRACT

In order to face the challenges generated by the constant activity of


transnational organized crime and terrorist organizations, States were
forced to use new investigative mechanisms with the objective of
making the activity of preventing and repressing these crimes more
efficient. Among these mechanisms is automated facial recognition.
Based on this context, this article intends to analyze the use of this
technology as a tool aimed at supporting investigative agencies in
the prevention and repression of organized crime and international
terrorism, including an approach to the existence of technical, practical
and legal limits, as well as exposing the perspectives for making the use
of this research tool compatible with the protection of the fundamental
rights of individuals.

Keywords: facial recognition; efficiency; limits; fundamental rights;


international judicial cooperation.

Recebido: 13-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 A evolução do combate ao crime organizado


transnacional e ao terrorismo operada através do aprimoramento da
cooperação internacional e da implementação de novas tecnologias
de investigação. 3 Identificação biométrica e reconhecimento facial:
conceitos e possibilidades. 4 Limites técnicos ao uso do reconhecimento
facial. 5 Limites práticos relacionados à utilização do reconhecimento
facial. 6 Limitações jurídicas: o reconhecimento facial viola direitos

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022. 297
FABIO NUNES DE MARTINO

fundamentais? 7 Perspectivas e caminhos para o uso eficiente do


reconhecimento facial. 8 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Diante da evolução das práticas criminosas transnacionais e


do terrorismo nas últimas décadas, os países se viram obrigados a
aprimorar as estratégias de combate a essas organizações criminosas,
incluindo a utilização de novas tecnologias de investigação e, também,
o aperfeiçoamento da cooperação internacional entre as agências de
persecução penal.

Nesse contexto, o presente artigo objetiva analisar a utilização da


tecnologia do reconhecimento facial automatizado como ferramenta
voltada ao apoio das agências de investigação na prevenção e na
repressão da criminalidade organizada e do terrorismo internacional,
incluindo uma abordagem sobre a existência de limites técnicos,
práticos e jurídicos, bem como as perspectivas para a compatibilização
do uso dessa ferramenta de investigação com a proteção dos direitos
fundamentais dos indivíduos.

Para alcançar esse objetivo, inicialmente será exposto um


panorama sobre a evolução do combate ao crime organizado
transnacional e do terrorismo através da implementação de novas
técnicas de investigação e do aperfeiçoamento da cooperação
internacional entre as nações.

Na sequência, serão aprofundados os conceitos e as possibilidades


de utilização desse mecanismo de identificação biométrica na
prevenção e repressão da criminalidade organizada.

298 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

Partindo dessa exposição geral sobre o funcionamento do


reconhecimento facial voltado para o auxílio à segurança pública,
o artigo buscará traçar limitações técnicas, práticas e jurídicas à
implementação dessa tecnologia.

No que se refere aos limites técnicos, com base em pesquisas de


campo e científicas, serão abordadas as dificuldades dessa ferramenta
na correta identificação dos indivíduos, incluindo as limitações
decorrentes da má qualidade da imagem captada e, também, os vieses
raciais e de gênero que decorrem de falhas relacionadas à programação
dos algoritmos ou mesmo ao seu treinamento falho.

No capítulo referente aos limites práticos, serão abordados os


requisitos necessários para que essa tecnologia possa ser utilizada
de forma eficiente no combate ao crime organizado transnacional e
ao terrorismo. Esses requisitos abrangem, por um lado, a necessidade
da existência de um banco de dados completo que contenha o maior
número possível de padrões faciais arquivados e, também, que haja
efetiva integração entre as agências de persecução penal de forma
que as informações sejam compartilhadas sem maiores burocracias,
mas com respeito à proteção dos dados sensíveis.

O terceiro bloco de limitações abordado pelo texto se refere


às limitações jurídicas. Nesse bloco, serão ponderadas relevantes
preocupações externadas por vários estudiosos do assunto no sentido
de que o reconhecimento facial tem grande potencial de colocar em
risco os direitos fundamentais dos cidadãos.

Em seguida, tendo sedimentado as principais críticas feitas com


relação à tecnologia, será exposto um panorama atual sobre a utilização
do reconhecimento facial automatizado para fins de segurança pública
no Brasil e no mundo, incluindo o debate sobre o seu banimento ou

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022. 299
FABIO NUNES DE MARTINO

seu uso com limites estritos. Serão ainda delimitados caminhos para
o melhor uso dessa relevante ferramenta para investigações criminais,
incluindo a necessidade de aprimoramento técnico dos programas, a
fixação de limites legais que possibilitem o controle na utilização da
tecnologia e, também, a necessidade de aperfeiçoamento da legislação
brasileira de proteção e transferência de dados na seara penal, de forma
que eleve os standards de proteção de dados e, assim, compatibilize-
se com legislações estrangeiras mais evoluídas sobre o assunto.

Por fim, a conclusão de forma sintética fará um apanhado das


dificuldades e dos caminhos propostos pelo estudo, sempre com
o objetivo de compatibilizar a utilização de novas tecnologias de
investigação com a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos.

2 A EVOLUÇÃO DO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO


TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO OPERADA ATRAVÉS
DO APRIMORAMENTO DA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
E DA IMPLEMENTAÇÃO DE NOVAS TECNOLOGIAS DE
INVESTIGAÇÃO

A intensificação do fenômeno da globalização nas últimas


décadas fez com que fossem derrubadas fronteiras geográficas,
sociais, culturais, políticas e econômicas entre pessoas e instituições,
modificando por completo as relações internacionais. Esse fenômeno,
em grande parte, viu-se estimulado pelos avanços tecnológicos nas
áreas das comunicações e da informática, bem como pela evolução
dos meios de transporte de longa distância, fatores esses que
conjuntamente permitiram o desaparecimento da distância e do tempo
em diversas áreas da atividade humana (ZAVASCKI, 2010, p. 9).

300 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

Dentro dessa nova realidade mundial, Valente (2013, p. 75)


defende que toda essa mudança fez com que os cidadãos deixassem
de se sentir vinculados espacialmente a uma sociedade específica,
para que cada vez mais passassem a se sentir como integrantes de um
todo – ou, em outras palavras, “o viver de cada cidadão é, cada vez
mais, um viver como cidadão do mundo”.

Esse novo formato do globo também transformou a dinâmica


dos crimes que deixaram de ser apenas locais para se transformarem
em regionais ou mesmo internacionais (VALENTE, 2013, p. 76) e
passassem a afetar bens jurídicos transindividuais, dentre os quais se
incluem o meio ambiente, a segurança pública, o sistema financeiro e a
ordem econômica (ANDREATO, 2016, p. 147).

Até os crimes mais simples acabam ganhando um contorno


internacional. Para isso basta que se imagine que um crime ocorrido
no Brasil e que seja praticado por brasileiros contra brasileiros pode
exigir para a sua resolução que as autoridades de persecução penal
brasileiras acessem dados que estejam localizados no exterior (VIOLA;
HERINGER; CARVALHO, 2021, p. 2), o que demonstra que atualmente
os dados pessoais transitam naturalmente por todo o mundo sem
maiores limitações pela divisão territorial existente.

Observa-se que todas essas mudanças que ocorreram em escala


global, e foram benéficas em diversos campos da sociedade, também
favoreceram o crime organizado, que se aproveitou da globalização
para expandir os seus negócios, que deixaram de ser regionais para
alcançarem uma escala mundial (SAADI, 2016, p. 141).

A globalização também modificou a dinâmica do crime de


terrorismo que inicialmente se vinculava a movimentos clandestinos
locais com o objetivo de libertação nacional e passaram a ser

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FABIO NUNES DE MARTINO

internacionalizados, afetando por muitas vezes a paz e a segurança


das nações (SOUZA, 2016, p. 164). Inclusive, esse fenômeno passou a
ser alvo de maiores preocupações dos estados a partir de atentados
contra a vida de pessoas indeterminadas, tendo o seu ápice com o
atentado das Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 (VALENTE,
2013, p. 85).

Toda essa expansão da criminalidade organizada e do terrorismo


internacional exigiu que os estados fossem obrigados a aperfeiçoar as
formas de cooperação e, também, que novas medidas investigativas
passassem a ser utilizadas com o objetivo de enfrentar o grande
desafio.

No que diz respeito ao aperfeiçoamento da cooperação


internacional, verifica-se que, em resposta a essa nova criminalidade
que surgiu a partir da globalização mundial, tornou-se necessária
a implementação de acordos internacionais de auxílio mútuo em
matéria penal em substituição às tradicionais formas de cooperação
que utilizam das vias diplomáticas e das autoridades centrais. Assim,
a cooperação direta entre os estados se mostrou um relevante
instrumento de aproximação entre os diversos órgãos de persecução
penal (LESSA, 2016, p. 117).

Diariamente, novos acordos, bilaterais ou multilaterais,


disciplinando a cooperação jurídica internacional em matéria penal, são
celebrados, o que diminui a utilização das cartas rogatórias e agiliza a
efetivação da cooperação entre os países (ANDREATO, 2016, p. 149).

Ao tratar do combate ao terrorismo internacional, Valente (2013,


p. 76-78, 90) defende que a cooperação multilateral ou bilateral é
fundamental para prevenir atos terroristas ou para identificar os seus
autores, desde que respeitada toda a legislação vigente. O autor ainda

302 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

sustenta que mais do que uma cooperação judicial entre as nações,


deveriam ser criados espaços supranacionais em que se pudesse
dar uma resposta tanto no âmbito do Direito Penal Material como no
âmbito do Processo Penal.

Diante desse cenário, atualmente existem duas formas principais


de cooperação entre as nações: através da inteligência policial e da
cooperação jurídica internacional. As cooperações realizadas pelos
estados mediante a inteligência policial podem se dar por intermédio
das polícias1, dos ministérios públicos ou mesmo por unidades de
inteligência financeira. Já as medidas que demandam análise pelo
Poder Judiciário devem se utilizar dos mecanismos da cooperação
jurídica internacional (SAADI, 2016, p. 142-143).

Diante de uma realidade permeada por uma descomunal


quantidade de dados disponíveis, torna-se muito importante a
atividade de inteligência dos estados, visto que é necessário o
processamento desses dados para que sejam possíveis as tomadas de
decisão, especialmente aquelas preditivas que permitam uma atuação
antecipada por parte do Estado (ALVES, 2018, p. 1-6).

Dentro da cooperação jurídica internacional, houve uma


evolução com o passar dos anos em que se buscou formas menos
burocratizadas de cooperação, especialmente retirando-se qualquer
participação política desse processo que, nesse novo formato, privilegia
a cooperação direta entre os órgãos de persecução penal dos estados
envolvidos.

1
Por exemplo, através da Interpol ou das adidâncias existentes em diversos países.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022. 303
FABIO NUNES DE MARTINO

Zavascki (2010, p. 10) bem dimensiona a questão:

Nesta área, a agilidade das condutas ilícitas e


a eficácia transnacional de seus resultados se
mostravam diretamente proporcionais à ineficiência e
à insuficiência dos antigos e tradicionais mecanismos
de cooperação utilizados entre os estados, visando
combatê-las, consistentes em instrumentos formais
e burocratizados, em geral intermediados por
órgãos do Judiciário de cada país. Por isso mesmo,
inúmeros acordos e tratados celebrados em tempos
recentes, em âmbito bilateral e multilateral, dos quais
o Brasil também é signatário, buscaram instituir um
novo padrão de cooperação, mediante criação de
instrumentos mais compatíveis com as exigências
dos novos tempos. Construiu-se, assim, um sistema
de cooperação jurídica em que os instrumentos
tradicionais, notadamente o das cartas rogatórias,
passaram a conviver com formas mais modernas,
instituídas por fontes normativas de Direito Público
Internacional. (ZAVASCKI, 2010, p.10).

Assim, a adoção por parte das nações de mecanismos que


possibilitassem uma cooperação mútua mais desburocratizada surgiu
da necessidade de criação de um sistema que permitisse que os órgãos
de persecução penal estabelecessem comunicação eficiente, troca de
informações, compartilhamento de provas e execução de medidas
preventivas, investigatórias, instrutórias ou acautelatórias (ZAVASCKI,
2010, p. 12).

Apesar de ser evidente que um dos valores buscados pela


cooperação internacional seja a eficiência da persecução penal,
não se pode esquecer que essa busca não pode de forma alguma
deixar de lado os direitos fundamentais dos cidadãos. Assim, deve-
se abandonar aquela ideia inicial de que os acordos de cooperação
deveriam ser vistos exclusivamente sobre um olhar bidimensional,

304 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

na medida em que visavam unicamente os interesses dos estados


envolvidos. Atualmente, exige-se que esses acordos sejam vistos a
partir de uma dimensão tridimensional em que, além dos interesses
dos estados, devem ser tutelados os direitos fundamentais garantidos
aos indivíduos (GRINOVER, 1995, p. 43-44).

Compartilhando sobre a mesma preocupação, Valente (2013,


p. 87), ao analisar a cooperação judiciária europeia e internacional em
matéria penal, pontua que a proteção efetiva dos direitos e liberdades
fundamentais dos cidadãos constituem limites intransponíveis2.

A reação dos estados para enfrentar esse novo fenômeno da


criminalidade transnacional não parou apenas no aprimoramento
da cooperação internacional para fins penais, evoluindo também no
campo dos novos meios de investigação que se fizeram necessários
para que as atividades de prevenção e instrução processuais fossem
mais efetivas.

Assim, o avanço do crime organizado transnacional e do terrorismo


também obrigou os estados a buscarem meios de obtenção de prova
especializados que fossem capazes de proporcionar investigações
mais eficientes, tais como interceptações telefônicas e ambientais,
infiltrações policiais, videovigilância e rastreio digital (VALENTE, 2017,
p. 474-475).

Além de todas essas medidas, é inegável que, com o avanço


tecnológico, multiplicaram-se as possibilidades para uma investigação
criminal, seja pelo fato de hoje em dia existir uma imensa quantidade
de dados pessoais coletados nas atividades cotidianas das pessoas,

2
Seguindo a mesma linha, Cervini (2013, p. 70), ao analisar o protocolo de assistência
penal no âmbito do Mercosul, defende que o acordo sempre seja interpretado com a
necessidade de integral respeito aos direitos fundamentais do homem.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022. 305
FABIO NUNES DE MARTINO

seja pelo fato de que qualquer conduta delituosa acaba de alguma


forma deixando uma pegada digital e isso abre possibilidade para a
atuação dos órgãos de persecução (FERREIRA, 2021, p. 117-119).

Esse contexto exige que a tecnologia seja de fato empregada nas


investigações criminais, especialmente através do legítimo tratamento
de dados pessoais coletados dos indivíduos com a finalidade de
prevenir ameaças geradas pela criminalidade organizada e pelo
terrorismo (ARAS, 2020, p. 25).

Dessa forma, o uso de dados pessoais se mostra atualmente em


crescente evolução, não apenas para auxiliar na colheita de provas
no âmbito do processo penal, mas principalmente na utilização
preventiva de todos esses dados para auxiliar na atuação dos órgãos
de persecução penal. Esses dados muitas vezes são colhidos de forma
massiva e processados por sistemas de inteligência artificial que buscam
categorizar grupos e indivíduos com propensão à criminalidade. Entre
esses novos usos, podem ser citados a polícia preditiva, as diversas
tecnologias de vigilância e o processamento de dados com o objetivo
de investigar crimes específicos (FERREIRA, 2021, p. 130).

A polícia preditiva se destaca entre esses usos objetivando prever


áreas de criminalidade ou pessoas com alguma predisposição aos
crimes a partir de dados históricos processados por algoritmos. Para
auxiliar nesse processo são associadas diversas tecnologias, como o
reconhecimento facial e o uso de drones e de sensores de ambiente
(AZEVEDO; DUTRA, 2021, p. 254).

Por todo o exposto, verifica-se a evolução dos instrumentos


de investigação e de cooperação entre os estados com a finalidade
de enfrentar a nova realidade da criminalidade transnacional que se
consolidou em um mundo globalizado.

306 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

Na sequência, será aprofundado o estudo sobre um desses


novos instrumentos surgidos para auxiliar a persecução penal: o
reconhecimento facial. Serão abordados conceitos gerais e aportes
teóricos necessários para a compreensão desse novo mecanismo,
incluindo a sua importância como uma eficiente ferramenta para a
prevenção e para a investigação de crimes e, ainda, serão expostas as
suas principais limitações no contexto mundial atual.

3 IDENTIFICAÇÃO BIOMÉTRICA E RECONHECIMENTO FACIAL:


CONCEITOS E POSSIBILIDADES

A biometria pode ser conceituada como um mecanismo de


reconhecimento das pessoas através dos traços morfológicos ou
comportamentais (JAIN; PANKANTI, 2008, p. 78). Dentre os métodos
que utilizam padrões morfológicos ou fisiológicos, podem ser citados,
por exemplo, aqueles que usam impressões digitais, características da
íris ou geometria da mão. Já os métodos que utilizam o comportamento
humano abrangem, por exemplo, análise dos padrões da fala e a forma
de assinatura do indivíduo3 (MATA, 2020, p. 124).

Para o correto funcionamento de um sistema biométrico, exige-


se que as características sejam individualizáveis em cada pessoa, além
de ser necessário que os traços analisados não sofram mudanças
significativas ao longo dos anos (JAIN; PANKANTI, 2008, p. 79).

Além disso, deve-se compreender que todos esses métodos


não são infalíveis, sendo fundados predominantemente em análises

3
Atualmente, existem diversas tecnologias voltadas à identificação biométrica, sendo que
os principais métodos foram classificados pela Agência Brasileira de Desenvolvimento
Industrial em três grupos: 1) sistemas de impressão digital; 2) sistemas de identificação
de íris, DNA e face; e 3) sistemas de reconhecimento de voz (AGÊNCIA BRASILEIRA DE
DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL, 2010, p. 61).

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FABIO NUNES DE MARTINO

probabilísticas e, também, é necessário que sejam corretamente


utilizados de acordo com a finalidade pretendida, não existindo um
único método que seja adequado para todas as necessidades (JAIN;
PANKANTI, 2008, p. 78-81).

Atualmente, os métodos de identificação biométrica são


utilizados de forma automatizada, através de sistemas computacionais
que capturam e codificam as características morfológicas ou
comportamentais dos indivíduos (AGÊNCIA BRASILEIRA DE
DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL, 2010, p. 60).

Uma das formas de identificação biométrica que vem sendo


desenvolvida e utilizada atualmente é o reconhecimento facial. Essa
modalidade, embora tenha se originado na década de 1960, passou
por grande evolução após os atentados de 11 de setembro nos Estados
Unidos (NUNES et al, 2016, p. 123).

Em termos gerais, essa técnica se utiliza da captação da imagem


dos rostos dos indivíduos e, na sequência, um software auxiliado
por algoritmos realiza o mapeamento matemático dessas imagens
e os compara com padrões armazenados em bancos de dados (BIG
BROTHER WATCH, 2018, p. 6). No mapeamento dos traços faciais de
cada indivíduo, são considerados cerca de 80 pontos nodais, sendo
que as relações existentes sobre esses pontos geram uma geometria
espacial única, que é armazenada em forma de dados (MENA, 2018).

Em geral, os sistemas de reconhecimento facial seguem etapas


durante o processo de reconhecimento. Inicialmente, ocorre a detecção
do rosto, o qual é seguido pela extração e conversão em dados, para
finalmente ocorrer a comparação com os bancos de dados existentes
(KLARE et al, 2012, p. 3).

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A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

Essa tecnologia pode ser usada tanto para a verificação como para
a identificação das pessoas. Os sistemas que objetivam a verificação
basicamente comparam os dados capturados com os dados daquele
mesmo indivíduo que estejam armazenados em um banco de dados.
Os sistemas de identificação são um pouco mais elaborados, pois
não partem de um indivíduo específico para comparar com os dados
captados de uma face. Nesse sistema, são comparadas as informações
extraídas do rosto de um indivíduo com informações de diversos
indivíduos existentes em um banco de dados (AGÊNCIA BRASILEIRA
DE DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL, 2010, p. 61).

Tanto a identificação como a verificação têm um grande potencial


de auxílio na área da segurança pública, abarcando o policiamento
preventivo, as investigações criminais e o combate ao terrorismo. A
potencialidade desse novo instrumento tecnológico na persecução
penal somente se desenvolveu graças à recente expansão das
capacidades de coleta, armazenamento e processamento de dados, ao
aumento dos dispositivos de captação de imagens e ao aprimoramento
dos algoritmos de inteligência artificial4 (BUOLAMWINI et al, 2020, p. 7).

Desta forma, verifica-se que o reconhecimento facial possui


características que são valiosas para a atuação na segurança pública e
na prevenção do terrorismo, especialmente pelos avanços tecnológicos
que permitem uma enorme e constante captação de imagens com boa
qualidade através de câmeras de vigilância espalhadas por todo o
mundo. Além desse ambiente favorável à colheita de dados, também
deve ser mencionado que essa forma de identificação biométrica
permite que as autoridades públicas realizem um controle a distância

4
Tanto a evolução da tecnologia de captação de imagens por máquinas digitais como a
evolução da internet possibilitaram a formação de imensos bancos de dados de imagens
que foram fundamentais para o treinamento dos algoritmos de reconhecimento facial e,
consequentemente, para o desenvolvimento dessa tecnologia (LESLIE, 2020, p. 12).

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FABIO NUNES DE MARTINO

sem que os indivíduos tenham ciência da realização do monitoramento


(NUNES et al, 2016, p. 114).

Nesse ponto, o reconhecimento facial possui características


positivas para a identificação biométrica, incluindo a universalidade,
a aceitabilidade e, principalmente, a coletabilidade, pois não exige a
cooperação do indivíduo para a obtenção dos dados5 (UNIVERSIDADE
DE BRASÍLIA, 2014, p. 44-46).

Expostos os contornos gerais do reconhecimento facial e a sua


importância para a atividade persecutória, verificar-se-á nos próximos
capítulos as limitações técnicas, práticas e jurídicas para a aplicação
dessa tecnologia na persecução penal.

4 LIMITES TÉCNICOS AO USO DO RECONHECIMENTO FACIAL

Embora os programas de reconhecimento facial tenham evoluído


muito nos últimos anos6, estudos demonstram que essa tecnologia
ainda comete muitas falhas quando utilizada em tempo real para
identificar um indivíduo entre muitos.

Por exemplo, pesquisa realizada no País de Gales constatou um


índice de 91% de correspondências equivocadas dentro de um total de
2.685 correspondências realizadas pelo sistema. A situação se mostrou

5
Diferente, por exemplo, da utilização de impressão digital, que exige que a colheita
se dê de forma física e com a anuência do indivíduo (AGÊNCIA BRASILEIRA DE
DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL, 2010, p. 61).
6
Nesse sentido, pode ser citado estudo elaborado pelo Instituto Nacional de Padrões
e Tecnologia dos Estados Unidos – Nist, que realizou uma simulação para verificar a
utilização do reconhecimento facial no controle de passageiros de 567 voos simulados,
tendo obtido uma eficácia de 99,5% no reconhecimento facial positivo, em que se
compara se uma determinada pessoa está presente em um banco de dados (GROTHER
et al, 2021, p. 3-5).

310 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

ainda mais grave na atuação da Polícia Metropolitana do Reino Unido,


na qual foi observado um índice de 98% de correspondências erradas
(BIG BROTHER WATCH, 2018, p. 29).

Esses números são muito preocupantes se pensarmos que


na área da segurança pública e da prevenção do terrorismo se
necessita exatamente que os sistemas de reconhecimento facial sejam
programados para identificar um indivíduo entre muitos em tempo real.

Ao se analisar um panorama geral sobre os estudos relacionados


aos programas de reconhecimento facial, verifica-se que as principais
causas de erros do sistema decorrem da má qualidade da imagem
captada, estando normalmente relacionadas à iluminação da imagem,
ao ângulo obtido ou a eventuais expressões contidas na face7 (KLARE
et al, 2012, p. 1).

Em geral, os sistemas de reconhecimento facial são extremamente


precisos quando utilizados em condições favoráveis. Assim, quando
a captação da imagem é frontal, com uma boa iluminação e com a
expressão da face neutra, a acurácia dos sistemas é maior, o que não
ocorre quando a imagem da face é captada com alterações na pose,
na iluminação ou quando a pessoa está utilizando acessórios faciais ou
tem barba (JAIN; PANKANTI, 2008, p. 80).

Embora venham sendo desenvolvidos programas voltados


a aprimorar a detecção e o reconhecimento das faces e,
consequentemente, que possam superar todas essas dificuldades
(SATO et al, 2005, p. 28-31), as limitações no uso dessa tecnologia
ainda são relevantes. Nesse sentido, estudo capitaneado por Klontz e

7
Por exemplo, se a imagem captada tiver um sorriso ou estiver com os olhos fechados,
isso gerará dificuldades na atuação dos sistemas de reconhecimento facial (MATA,
2020, p. 131).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022. 311
FABIO NUNES DE MARTINO

Jain (2013, p. 91-94) analisou fotografias de suspeitos do atentado de


Boston ocorrido em 2013 e verificou que a baixa qualidade das fotos
extraídas de filmagens e a existência de óculos na face dos suspeitos
dificultam a eficácia do processo de identificação.

Outro ponto que gera inúmeras dificuldades ao funcionamento


dos programas de reconhecimento facial diz respeito às decisões
enviesadas geradas pela programação dos algoritmos.

Os sistemas de reconhecimento facial automatizados se


utilizam de algoritmos para o seu correto funcionamento. E são
usados algoritmos inteligentes capazes de criar algoritmos e,
consequentemente, escrever seus próprios programas – o que
se convencionou denominar como machine learning (MENDES;
MATTIUZZO, 2019, p. 44). Em outras palavras, a técnica de machine
learning utiliza algoritmos para coletar e interpretar dados. Mas para
que isso funcione, é necessário que processe um grande volume de
dados que permitam o aprendizado do algoritmo (FERRARI; BECKER;
WOLKART, 2018, p. 639).

Embora os algoritmos partam de uma importante premissa


de buscar decisões mais objetivas que fujam do subjetivismo e da
arbitrariedade (QUATTROCOLO, 2019, p. 1528), nem sempre isso
acontece, seja por falhas na própria programação ou mesmo no
treinamento dos algoritmos (MENDES; MATTIUZZO, 2019, p. 51-54).

No âmbito do reconhecimento facial, estudos verificaram que,


em muitas ocasiões, os sistemas foram programados a partir de
pressupostos técnicos que privilegiavam a pele clara, como ocorreu na
evolução da tecnologia das fotografias (LESLIE, 2020, p. 6, 14). Assim, a
falha na própria programação dos algoritmos é capaz de gerar erros no
sistema de reconhecimento facial, especialmente aqueles relacionados

312 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

ao reconhecimento de pessoas negras8 e de mulheres (BUOLAMWINI;


GEBRU, 2018, p. 11).

Nesse sentido, uma pesquisa liderada por Buolamwini e Gebru


(2018, p. 11) analisou diversos algoritmos de reconhecimento facial
e constatou que a precisão dos sistemas são piores em relação às
mulheres e aos negros. Os números são preocupantes e revelam, por
exemplo, uma diferença de até 20,6% de erros no reconhecimento
de mulheres em relação aos homens e de até 19,2% de erros no
reconhecimento de pessoas negras em relação a pessoas brancas.

Além de falhas na programação dos algoritmos, muitas


vezes os vieses verificados nos sistemas decorrem de falhas nos
treinamentos dos algoritmos. Assim, o aprimoramento dos sistemas de
reconhecimento facial depende de efetivo treinamento que se dá através
do processamento de milhões de imagens de rostos (GATES, 2014,
p. 12). Ocorre que, no treinamento dos programas de reconhecimento
facial, muitas vezes são usados bancos de dados que representam de
forma preponderante grupos sociais e raciais dominantes, deixando
uma menor participação para grupos marginalizados, o que gera,
por consequência, uma piora na qualidade do sistema (LESLIE, 2020,
p. 13-17).

Para comprovar esse fator de ineficiência dos sistemas, foi


realizada pesquisa pelo Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia
dos Estados Unidos – Nist, que verificou a maior ocorrência de
erros do sistema em relação a negros, asiáticos, mulheres, crianças
e idosos. Entre as conclusões da pesquisa, chama a atenção a

8
Caso que se tornou rumoroso nos Estados Unidos ocorreu após a prisão de Robert
Julian Borchak Williams em Detroit, em janeiro de 2020. A prisão de Williams, que
é negro, decorreu de um alerta equivocado do sistema de reconhecimento facial da
polícia (ANDERSON, 2020). No Brasil, também foi verificado problema similar com uma
prisão sendo realizada em razão de falha no sistema de reconhecimento facial conforme
noticiado pela imprensa (WERNECK, 2019).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022. 313
FABIO NUNES DE MARTINO

constatação de que a localização do desenvolvedor do algoritmo e a


consequente alimentação dos dados demográficos influenciavam de
forma significativa o desempenho do programa (GROTHER; NGAN;
HANAOKA, 2019, p. 10).

Por todo o exposto, verifica-se que, embora tenha ocorrido


uma grande evolução nos programas de reconhecimento facial
automatizado, ainda existem relevantes limites técnicos que, muitas
vezes, podem ocasionar identificações erradas e causar sérios prejuízos
aos indivíduos.

5 LIMITES PRÁTICOS RELACIONADOS À UTILIZAÇÃO DO


RECONHECIMENTO FACIAL

Para que os sistemas de reconhecimento facial tenham


efetividade na utilização na área da segurança pública ou mesmo
na prevenção da criminalidade organizada transnacional ou do
terrorismo, é necessário que existam bancos de dados completos e
integrados entre os órgãos de inteligência e de persecução penal dos
diversos países.

Num primeiro ponto, para que os sistemas sejam efetivos, exige-


se que os bancos de dados sejam completos e contenham os padrões
faciais do maior número de pessoas possível. Sem esse banco de
dados completo fica prejudicada a lógica do sistema, pois não existirão
padrões para a realização das comparações “de um para muitos”.
Uma amostra dessa necessidade pode ser constatada pela análise do
atentado de 11 de setembro de 2001 no qual, na época, apenas dois
terroristas eram conhecidos do sistema de segurança norte-americano,
sendo que apenas um deles possuía foto no sistema (NUNES et al,
2016, p. 124).

314 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

Além da existência de bancos de dados completos, para que


o sistema de reconhecimento facial automatizado seja efetivo na
prevenção delitiva e na instrução criminal é necessário que esses bancos
de dados sejam integrados entre as diversas forças de segurança
das nações. Sem esse real compartilhamento de informações, a
aplicabilidade da tecnologia ficaria restrita à criminalidade local. E,
como foi visto nos capítulos anteriores, atualmente a criminalidade
organizada e o terrorismo deixaram de atuar de forma local e passaram
a atuar de forma integrada por todo o mundo.

Essa criminalidade supranacional atua sem fronteiras e em escala


mundial, o que exige que os estados criem instrumentos jurídicos que
sejam aptos a efetivar um combate que também não seja restringido
por fronteiras físicas (LESSA, 2016, p. 117).

Assim, mostra-se fundamental que acordos sejam firmados entre


os países e que as legislações nacionais sigam standards mínimos de
proteção dos direitos individuais.

Nesse aspecto, o reconhecimento facial, por se utilizar de dados


biométricos sensíveis dos indivíduos, deve ter a sua implementação
pautada pela atuação do Estado de acordo com a lei e com a proteção
dos direitos fundamentais asseguradas por tratados internacionais e
pelas constituições nacionais.

Sobre a importância da aplicação das leis de proteção de dados


pessoais também à atuação de persecução penal, são importantes as
explicações de Aras:

Nesse sentido, as normas de proteção de dados


pessoais devem aplicar-se também ao Estado
quando coleta, manipula e difunde dados

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022. 315
FABIO NUNES DE MARTINO

pessoais de investigados, suspeitos, réus, vítimas,


testemunhas, peritos, autoridades e funcionários
que atuam na persecução criminal e de terceiros
eventualmente alcançados por medidas de
apuração. Investigações criminais e medidas de
segurança pública são atividades estatais que
interferem rotineiramente na vida dos cidadãos,
tornando-se relevante a perspectiva da privacidade.
Por outro lado, é preciso regular adequadamente a
transferência internacional de dados para atividades
empresariais e para a cooperação internacional nos
campos policial e judicial, temática essencial num
mundo hiperconectado. Como em tudo na vida, a
virtude está no plano médio. Tais proteções não
devem inviabilizar os métodos operacionais do
Estado na elucidação de crimes. Cada vez mais
dependemos de meios tecnológicos de investigação
para a descoberta de crimes, especialmente para a
determinação de autoria. (ARAS, 2020, p. 25).

Assim, é importante que os países tenham legislações modernas


que prevejam todas essas proteções aos indivíduos e que, ao mesmo
tempo, garantam a segurança jurídica aos operadores do sistema.
Nesse ponto, a existência de legislações nacionais que respeitem os
standards mínimos previstos em tratados internacionais se mostra
fundamental para permitir uma efetiva e segura integração entre os
órgãos de persecução dos diversos países.

6 LIMITAÇÕES JURÍDICAS: O RECONHECIMENTO FACIAL


VIOLA DIREITOS FUNDAMENTAIS?

Como foi visto ao longo do texto, a utilização de sistemas


de reconhecimento facial se relaciona com a extração de dados
biométricos dos indivíduos, atuando, portanto, com a coleta de

316 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

informações sensíveis dos cidadãos9. No caso do reconhecimento


facial, a preocupação com a proteção de dados é ainda maior pelo
fato de essa extração de informações se dar sem a ciência e sem o
consentimento do indivíduo.

Dessa forma, uma primeira preocupação existente se relaciona


com a proteção de dados pessoais10. Embora no Brasil ainda não exista
uma legislação específica que trate da proteção de dados pessoais para
a utilização na segurança pública e na instrução criminal, os princípios
gerais da Lei Geral de Proteção de Dados (BRASIL, 2018) devem ser
invocados sempre que se trate da coleta de dados sensíveis, como
é o caso da tecnologia do reconhecimento facial. Assim, qualquer
projeto que opte por utilizar essa tecnologia no Brasil deve respeitar
os princípios da adequação, da necessidade, da qualidade dos
dados, da segurança, da prevenção de danos e da não discriminação
(MALDONADO; BLUM, 2020, p. 75).

Para uma melhor compreensão da importância do assunto, é


importante perceber que a proteção de dados dos indivíduos está
intimamente relacionada aos direitos da personalidade. Nesse sentido,
Mendes (2020, p. 1-15) traça a evolução dos julgamentos proferidos
pelo Tribunal Constitucional Alemão, que culminou com a decisão
sobre o censo ocorrida em 1983. De acordo com a autora, naquela
época, o tribunal alemão considerou que as inovações tecnológicas
no processamento dos dados pessoais exigem uma evolução na
interpretação dos direitos fundamentais. Assim, com base na proteção

9
Cabe referir que nem todo processamento de imagens envolve o de dados sensíveis,
o que apenas ocorre naqueles casos em que o processamento se dá por um meio
técnico que permita a identificação ou a autenticação individualizada de uma pessoa
(CONSELHO DA EUROPA, 2021, p. 3).
10
Em data recente, a Emenda Constitucional n. 115, de 2022, incluiu expressamente no
art. 5º, LXXIX, a proteção de dados pessoais como um direito fundamental nos seguintes
termos: “É assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais,
inclusive nos meios digitais”. (BRASIL, 2022).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022. 317
FABIO NUNES DE MARTINO

da personalidade dos indivíduos, a corte alemã verificou que não


bastava mais uma proteção sobre a natureza das informações que
seriam coletadas das pessoas, mas agora interessava também a
forma como essas informações seriam processadas e os riscos que
aquele processamento traria para os direitos da personalidade. Daí,
surge o direito à autodeterminação informativa que influenciou tantos
ordenamentos estrangeiros e que, inclusive, está incorporado na Lei
Geral de Proteção de Dados brasileira.

Verifica-se uma evolução sobre a proteção da privacidade que


inicialmente se resumia a uma dimensão negativa, na qual terceiros
não poderiam invadir espaços privados, e atualmente possui uma
dimensão positiva que abrange a necessária atuação positiva que
proteja também a maneira como os dados vão circular de forma que
o indivíduo não perca o controle sobre as suas próprias informações
(MORAES; QUEIROZ, 2019, p. 118).

Dessa forma, observa-se que os danos que podem ser


causados com o acesso aos dados pessoais não se resumem à sua
coleta, mas também podem gerar sérias consequências após o seu
processamento – como o que ocorre com empresas privadas, que
se utilizam dos dados para pautarem suas ações de marketing11, ou
mesmo pelas forças de segurança que podem utilizar da coleta
massiva de dados para detectar crimes e suspeitos (FROOMKIN, 2000,
p. 1469-1471).

Essa coleta massiva de dados pode se dar através de diversos


mecanismos, como a utilização de câmeras de vigilância, a localização
de telefones celulares, veículos e de aplicativos, o reconhecimento de
voz, entre outros (FROOMKIN, 2000, p. 1475-1481), sendo a utilização

11
Sobre o capitalismo de vigilância e a força dessas empresas na atualidade cabe a leitura
da obra de Zuboff (2020).

318 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

do reconhecimento facial automatizado um desses mecanismos que


possibilitam a coleta massiva de dados pessoais – o que permite que o
Estado tenha ciência de cada passo dado por seus cidadãos12.

Dentro desse contexto, o reconhecimento facial sofre críticas por


ser um dos instrumentos que auxiliam na implementação de sistemas
de vigilância massiva das pessoas. Sobre a vigilância em massa, Milaj
e Bonnici (2014, p. 419-423) argumentam que, atualmente, dever-se-ia
falar em uma sociedade pré-crime, e não em uma sociedade pós-crime,
pois as pessoas são previamente investigadas mesmo que não tenham
nenhuma relação com atividades delituosas. Partindo dessa visão, os
autores defendem que programas de vigilância em massa violariam o
princípio da presunção da inocência. Essa conclusão decorre de uma
interpretação mais ampla desse princípio, o que abrange a proteção
contra qualquer ato que possa gerar uma investigação contra uma
pessoa.

Dessa realidade de vigilância de massa, extrai-se uma relevante


preocupação com a invasão das esferas individuais das pessoas que,
ao terem ciência de que seus passos estão cada vez mais monitorados
pelo Estado, acabam deixando de fazer ou de ser o que gostariam. É
o que a doutrina denomina como chilling effect e que nada mais é do
que uma consequência de uma sociedade fundada em uma cultura
de suspeita em que prepondera o medo e a desconfiança (MILAJ;
BONNICI, 2014, p. 420).

Nesse ponto, a utilização do reconhecimento facial pode ser


danosa para o desenvolvimento da personalidade das pessoas,
incluindo o direito de expressão. Por exemplo, quando utilizado em

12
Nesse sentido, observa-se que, em alguns países, o sistema de controle que utiliza o
reconhecimento facial como uma das suas ferramentas chegou ao ponto de possibilitar
o controle das pessoas por scores (ZYLBERMAN, 2020).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022. 319
FABIO NUNES DE MARTINO

espaços públicos, pode inibir um protesto, limitando consequentemente


a participação cívica e democrática dos cidadãos (LEMOS et al, 2021,
p. 5).

Cabe referir, ainda, que a preocupação com a privacidade e com


a autodeterminação informativa não se restringe à esfera de cada
indivíduo, mas sim de toda a sociedade que pressupõe a liberdade
para que todos façam as suas escolhas (FERREIRA, 2021, p. 134).

No que toca ao reconhecimento facial, todas essas preocupações


são extremamente pertinentes, pois a utilização dessa ferramenta
possui o potencial de colocar em risco direitos fundamentais dos
cidadãos, incluindo a privacidade, as liberdades de expressão e a
associação e a presunção de inocência (LEMOS et al, 2021, p. 1).

Por todos esses motivos, é relevante que o tema seja devidamente


discutido pela sociedade e que se busquem soluções que permitam
o aproveitamento das novas tecnologias sem qualquer violação de
direitos fundamentais.

320 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

7 PERSPECTIVAS E CAMINHOS PARA O USO EFICIENTE DO


RECONHECIMENTO FACIAL

Os sistemas de reconhecimento facial automatizados são


aplicados em grande parte dos países13, especialmente nas áreas de
segurança pública e privada, movimentando atualmente um montante
aproximado de 3,8 bilhões de dólares (FACIAL..., 2020).

No Brasil, verifica-se a utilização da tecnologia, especialmente


na área do transporte e da segurança pública (INSTITUTO IGARAPÉ,
c2022), observando-se que até 2019 se averigua pelo menos 13 projetos
de sistemas de reconhecimento facial voltados à segurança pública
(FRANCISCO; HUREL; RIELLI, 2020, p. 2).

Essas primeiras iniciativas foram se expandindo, sendo a


tecnologia incluída como uma das medidas adotadas pelo Ministério da
Justiça e Segurança Pública para o combate da criminalidade violenta14,
além de dar apoio a novos sistemas de identificação utilizados pela
Polícia Federal brasileira15.

Embora essa nova tecnologia venha sendo utilizada no Brasil e no


mundo, existem inúmeras resistências a sua expansão, especialmente
com as preocupações, elencadas ao longo do texto, com a proteção dos
direitos fundamentais, incluindo a privacidade, as diversas liberdades e
os dados sensíveis. Também existem preocupações com a vigilância em

13
Mapa demonstra que a tecnologia está sendo aplicada em grande parte dos países do
globo (THE FACIAL..., 2020).
14
Nesse sentido, o art. 4º, § 1º, III, b, da Portaria n. 793/2019 dispõe sobre o “fomento
à implantação de sistemas de videomonitoramento com soluções de reconhecimento
facial, por Optical Character Recognition – OCR, uso de inteligência artificial ou outros”
(BRASIL, 2019b).
15
Atualmente, a Polícia Federal brasileira implementou um sistema de identificação
biométrica denominado Solução Automatizada de Identificação Biométrica – Abis, que
abrange tanto a impressão digital como o reconhecimento facial (BRASIL, 2021).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022. 321
FABIO NUNES DE MARTINO

massa e seus nefastos efeitos em uma sociedade e, também, com o alto


índice de erros dos sistemas de reconhecimento facial, principalmente
aqueles que atingem classes historicamente marginalizadas.

Esse movimento contrário ao uso da tecnologia fez com que o


reconhecimento facial automatizado fosse proibido em um aeroporto
da Bélgica (BELGIAN..., 2019) e em alguns estados norte-americanos
(FRANCISCO; HUREL; RIELLI, 2020, p. 9-10). No âmbito judicial, a
Corte de Apelação de Cardiff, no País de Gales, decidiu que a polícia
local violou direitos humanos ao utilizar os sistemas de reconhecimento
facial em desacordo com a lei (ROYAL COURTS OF JUSTICE, 2020).

Por outro lado, existe forte apoio pela utilização da tecnologia,


especialmente por se mostrar uma relevante ferramenta de combate e
prevenção ao crime organizado e ao terrorismo internacional16.

Nesse sentido, importante decisão da Corte Europeia de


Direitos Humanos, no caso Big Brother Watch e outros vs. Reino
Unido, tratou do tema da vigilância em massa. Embora não tenha se
referido expressamente à tecnologia do reconhecimento facial, a corte
europeia declarou, por maioria, que programas de vigilância em massa
são admissíveis desde que respeitem a regulamentação e a imposição
de salvaguarda pelos países (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS,
2021)17, inclusive superando a posição em sentido diverso da corte no
caso Szábo e Viss vs Hungria (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS,
2016)18.

16
Não se pode esquecer que esse apoio é fortalecido pelas grandes empresas de
tecnologia, que são as principais desenvolvedoras e fornecedoras dos programas de
reconhecimento facial.
17
O caso se originou de três diferentes pedidos que decorreram das revelações feitas por
Edward Snowden sobre programas de vigilância eletrônica realizados pelos serviços de
informações dos Estados Unidos e do Reino Unido.
18
Caso em que a Corte Europeia censurou a prática de interceptações genéricas em uma
área em que ocorra um crime.

322 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

Fixadas essas premissas, que de alguma forma resumem o atual


estado do debate mundial sobre o uso do reconhecimento facial na
área da segurança pública, a partir desse momento se buscará expor os
principais pontos levantados ao longo do texto para que, na sequência,
se possa posicionar sobre esse tema tão relevante.

De início, deve-se pontuar que a tecnologia do reconhecimento


facial se desenvolveu muito nos últimos anos, sendo uma ferramenta
imprescindível para a utilização em investigações relacionadas ao
crime organizado transnacional e ao terrorismo. O atual ambiente em
que vivemos, com imenso monitoramento por vídeo, permite que o
reconhecimento facial seja extremamente eficiente na localização e
identificação instantânea de criminosos e terroristas, o que pode ser
muito útil tanto na prevenção de crimes como na investigação desses
delitos.

Essa possibilidade quase instantânea de localizar suspeitos e


criminosos em tempo real, sem que tenham ciência, é uma ferramenta
inigualável em termos de eficiência e permite que a tecnologia seja
utilizada em conjunto com outros meios de investigação para o
enfrentamento dessas organizações criminosas que estão cada vez
mais profissionalizadas.

Ocorre que a tecnologia do reconhecimento facial ainda necessita


de diversos aprimoramentos técnicos para evitar a ocorrência de falsos
negativos, que atrapalham as investigações e, principalmente, de falsos
positivos, que podem causar danos irreversíveis para os cidadãos que
sejam incorretamente identificados.

Além disso, os programas devem evoluir para que não ocorram


vieses raciais e de gênero que, como foi visto ao longo do trabalho,

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022. 323
FABIO NUNES DE MARTINO

aumentam demasiadamente a possibilidade de identificações erradas


em relação a mulheres e pessoas da raça negra.

Nesse sentido, cabe mencionar as recomendações constantes


na Convenção 108 do Conselho da Europa (CONVENTION FOR THE
PROTECTION OF INDIVIDUALS WITH REGARD TO AUTOMATIC
PROCESSING OF PERSONAL DATA, 2021), que traz diversas diretrizes
voltadas ao aprimoramento do reconhecimento facial. Entre essas
diretrizes, que são voltadas aos legisladores, desenvolvedores
e aplicadores da tecnologia, estão aquelas em que se busca um
aprimoramento técnico da tecnologia.

Embora a correção desses defeitos técnicos dos sistemas de


reconhecimento facial seja urgente, para que tal ferramenta seja efetiva
no combate ao crime transnacional também é necessário que haja uma
aproximação entre os países de forma que bancos de dados possam
ser compartilhados e, com isso, possam de fato ser aptos a auxiliar em
investigações internacionais.

Por outro lado, o reconhecimento facial gera uma série de


preocupações relacionadas à proteção de dados sensíveis e à violação
de direitos fundamentais dos indivíduos. Para evitar e minorar qualquer
violação de direitos, é muito importante que a utilização desse meio
tecnológico se dê de forma cautelosa e seja pautada por limitações
legais ou regulamentares que estabeleçam diretrizes e limitações ao
uso da tecnologia e, também, que coíbam eventuais excessos por parte
dos órgãos de persecução penal.

Por exemplo, no Reino Unido, a regulamentação se dá através


da utilização de vários documentos recomendatórios, enquanto
na França, além de uma lei específica, exige-se autorização dos

324 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

órgãos competentes após prévio estudo sobre os possíveis impactos


(FRANCISCO; HUREL; RIELLI, 2020, p. 6-12).

No Brasil, ainda não existe uma lei geral que trate sobre o
reconhecimento facial19, assim como não existe uma lei que trate da
proteção pessoal de dados para fins específicos de uso na segurança
pública, o que gera um vácuo legislativo que, por um lado, cria um
ambiente de insegurança jurídica para os investigadores e, também,
deixa um perigoso espaço para a ocorrência de violações de direitos
fundamentais dos indivíduos.

Talvez a vigência de uma lei de proteção de dados para


a segurança pública possa definir um caminho mais seguro na
regulamentação desse tipo de tecnologia. Nesse sentido, em 2020
foi apresentado um anteprojeto de lei dispondo sobre uma lei geral
de proteção de dados para a segurança pública e a persecução penal
(BRASIL, 2019a). O referido anteprojeto de lei, embora não tenha se
referido expressamente sobre as tecnologias de reconhecimento facial,
tratou genericamente das tecnologias de monitoramento elencando
pelo menos dois requisitos necessários para a sua implementação:
autorização legal prévia e específica (art. 42); e que haja conexão com
uma investigação específica autorizada por lei e por decisão judicial
(art. 43) (LEMOS et al, 2021, p. 4).

Além da importância de uma legislação específica sobre o


reconhecimento facial em um contexto de criminalidade organizada
transnacional e de grupos terroristas internacionais, mostra-se
relevante que existam caminhos de comunicação e troca de informação
entre os diversos países. Esses caminhos normalmente se materializam
mediante tratados internacionais e de acordos bilaterais entre as
nações.

19
O Distrito Federal foi a primeira unidade da Federação a dispor sobre uma legislação
específica a respeito do reconhecimento facial (DISTRITO FEDERAL, 2020).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022. 325
FABIO NUNES DE MARTINO

Também nesse aspecto, o Brasil está atrasado em relação aos


demais países, pois ainda não possui uma legislação de proteção de
dados específica para a segurança pública nos moldes da Diretiva
n. 680/2016 (UNIÃO EUROPEIA, 2016), que está em vigor na Europa.
Nesse sentido, Aras (2020, p. 26-29) defende que o Brasil busque uma
simetria com a legislação europeia para que não fiquem prejudicadas
as cooperações internacionais a serem realizadas pelo Brasil. Refere
ainda o autor que a falta dessa legislação vem prejudicando o
compartilhamento de dados referentes a cidadãos residentes na União
Europeia.

Assim, exige-se a criação de uma lei que trate sobre a proteção


e a transferência de dados pessoais em matéria penal, sendo essa
exigência fundamental para que sejam resguardados os direitos
fundamentais dos indivíduos e, também, para que o Estado possa
cumprir o seu papel de prevenção e repressão delitiva20 (VIOLA;
HERINGER; CARVALHO, 2021, p. 5).

Para tentar suprir essa carência, o projeto da Lei Geral de


Proteção de Dados para a segurança pública e a persecução penal
prevê disciplina similar àquela prevista pela Diretiva n. 680/2016, a qual
permite a troca de dados entre os países por três vias: primeiramente,
com base em uma decisão de adequação; não sendo possível a primeira

20
Nesse sentido, deve ser citado o teor de parte da exposição de motivos do anteprojeto
da Lei Geral de Proteção de Dados na esfera da segurança pública que bem sintetiza
essa ideia: “Nesse contexto, a elaboração de uma legislação específica fundamenta-se
na necessidade prática de que os órgãos responsáveis por atividades de segurança
pública e de investigação/repressão criminais detenham segurança jurídica para exercer
suas funções com maior eficiência e eficácia – como pela participação em mecanismos
de cooperação internacional –, porém sempre de forma compatível com as garantias
processuais e os direitos fundamentais dos titulares de dados envolvidos. Trata-se,
portanto, de projeto que oferece balizas e parâmetros para operações de tratamento de
dados pessoais no âmbito de atividades de segurança pública e de persecução criminal,
equilibrando tanto a proteção do titular contra mau uso e abusos como acesso de
autoridades a todo potencial de ferramentas e plataformas modernas para segurança
pública e investigações.” (BRASIL, 2019a).

326 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO FACIAL COMO INSTRUMENTO DE COMBATE
AO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL E AO TERRORISMO: LIMITES E PERSPECTIVAS

via, a transferência pode se dar por meio da exigência de garantias


adequadas de proteção de dados; e, subsidiariamente, admite-se
uma terceira via em que as transferências de dados ocorram por meio
de acordos firmados diretamente pelos países (VIOLA; HERINGER;
CARVALHO, 2021, p. 7-9).

A integração entre os países também no nível legislativo com


a fixação de standards mínimos de proteção de dados é muito
importante para permitir uma eficiente cooperação, além de garantir
que os direitos fundamentais sejam respeitados com a efetiva proteção
dos dados pessoais.

8 CONCLUSÃO

O uso da tecnologia vem permitindo um considerável


progresso nas estratégias de investigação adotadas por diversos
países, especialmente para o enfrentamento de uma criminalidade
internacional que cada vez mais está profissionalizada.

Dentro dessa realidade, a utilização dos sistemas de


reconhecimento facial automatizados possui um grande potencial na
busca por uma investigação mais eficiente que seja capaz de prevenir
e de coibir práticas delitivas tão sofisticadas.

Ocorre que a busca pela eficiência a qualquer custo não pode ser
justificativa para o uso descontrolado dessa ferramenta investigativa.
Existem limites que devem ser respeitados sob pena de frontal violação
de direitos fundamentais dos cidadãos.

Partindo dessa ideia, essa ferramenta deve ser utilizada com


cautela, pois, como foi relatado ao longo do estudo, ainda possui

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022. 327
FABIO NUNES DE MARTINO

limitações técnicas que podem levar a identificações incorretas e


consequentemente trazer prejuízos concretos para os indivíduos.

Além dos possíveis erros, o reconhecimento facial não pode ser


utilizado sem limites, o que colocaria em risco os direitos fundamentais
das pessoas e abriria caminho para a concretização de abusos por
parte das agências de investigação.

Para evitar esses danos, o trabalho sugeriu que a tecnologia


do reconhecimento facial e a transferência de dados entre os países
devam ser devidamente regulados com o objetivo de trazer segurança
jurídica tanto para os operadores dos sistemas como para os cidadãos
que terão seus direitos protegidos.

328 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 301-343, jan./jul. 2022.
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LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS


FINANÇAS DESCENTRALIZADAS – DEFI E SUA
PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES
DO GRUPO DE AÇÃO FINANCEIRA CONTRA A
LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO
DO TERRORISMO – GAFI
MONEY LAUNDERING IN DECENTRALIZED
FINANCE – DEFI AND ITS PREVENTION ACCORDING TO
THE FINANCIAL ACTION TASK FORCE – FATF GUIDANCE

MATHEUS LOLLI PAZETO


Juiz federal substituto da 4ª Vara Federal de Criciúma/SC. Pós-graduando
em Direito dos Criptoativos e Blockchain pela Escola da Magistratura
Federal do Paraná – Esmafe/PR. Bacharel em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC.
https://orcid.org/0000-0002-0127-1633

RESUMO

O artigo trata da atividade ilícita de lavagem de dinheiro no âmbito


das finanças descentralizadas, conhecida no universo de criptoativos
por DeFi. Inicialmente, é feita uma explicação sobre o ambiente dos
criptoativos, descrevendo a tecnologia Blockchain e sua operabilidade,
que serve de base para o fornecimento de inúmeros serviços de forma
segura, privada e descentralizada, incluindo os típicos do ecossistema
financeiro tradicional. Na sequência, o artigo descreve o crime de
lavagem de dinheiro e contextualiza sua ocorrência no âmbito dos
criptoativos, apresentando os fatores de risco e os desafios para as
autoridades estatais, notadamente na comparação entre a negociação

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022. 339
MATHEUS LOLLI PAZETO

de criptoativos por meio de entidades intermediadoras centralizadas


e em finanças descentralizadas – DeFi. Por fim, é abordado o tema da
prevenção à lavagem de dinheiro na visão do Grupo de Ação Financeira
contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo – Gafi,
com enfoque nas atualizações das recomendações desse organismo
internacional acerca dos fatores de risco trazidos pelos criptoativos,
incluindo a mais recente, na qual foi abordada a questão dos protocolos
DeFi.

Palavras-chave: criptoativos; DeFi; lavagem de dinheiro; Gafi.

ABSTRACT

The article deals with the illicit activity of money laundering in


decentralized finance, known in the cryptoasset universe as DeFi. Initially,
an explanation of the cryptoassets environment is made, describing the
blockchain technology and its operability, which works as an underlying
technology for numerous services in a secure, private and decentralized
way, including those typical of the traditional financial ecosystem.
Subsequently, the article describes the crime of money laundering and
contextualizes its occurrence in the scope of cryptoassets, presenting
the risk factors and challenges for state authorities, notably in the
comparison between the trading of cryptoassets through centralized
intermediary entities and in decentralized finance – DeFi. Finally,
the issue of money laundering prevention is addressed in the view of
the Financial Action Task Force – Fatf, with a focus on the updated
guidance of this international organization on the risk factors brought
by cryptoassets, including the most recent one, which addressed the
issue of DeFi protocols.

Keywords: cryptoassets; DeFi; money laundering; FATF.

Recebido: 14-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

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LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –
DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO TERRORISMO – GAFI

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 Blockchain, criptoativos e DeFi. 3 O crime de lavagem


de dinheiro em finanças descentralizadas – DeFi. 4 Recomendações
do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o
Financiamento do Terrorismo – Gafi sobre lavagem de dinheiro em
criptoativos: uma aproximação às finanças descentralizadas – DeFi.
5 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A recente tecnologia Blockchain possibilitou maior


descentralização no registro, na confiabilidade e no armazenamento
de informações. Por suas características inerentes, como o alcance
global, a maior privacidade, a irreversibilidade e a rastreabilidade das
transações e a imutabilidade dos registros, o sistema denominado
Blockchain tem ganhado cada vez mais força no ecossistema
financeiro mundial, com a criação e a circulação dos mais diversos
criptoativos.

Em 2021, a imprensa noticiou que o valor de mercado dos


criptoativos chegou à significativa marca de três trilhões de dólares,
sendo um terço disso atribuído apenas ao bitcoin, a criptomoeda mais
difundida1. Boa parte desse capital tem circulado nos mais diversos
protocolos de finanças descentralizadas, ou simplesmente DeFi.

É tradicional a afirmação de que “onde há dinheiro, há


oportunidades”. Da mesma forma, tamanha concentração de capital
não escapa ao crime organizado, o que tem propiciado, nesse

1
Nesse sentido, veja-se notícia veiculada no portal digital IstoÉ Dinheiro, em 8 de
novembro de 2021 (MERCADO..., 2021).

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MATHEUS LOLLI PAZETO

ecossistema, o surgimento de crimes financeiros, dentre os quais a


lavagem de dinheiro.

O presente artigo propõe-se a explicitar em que consistem as


chamadas finanças descentralizadas – DeFi, como o crime de lavagem
de dinheiro pode se desenvolver nesses protocolos, e como o tema tem
sido abordado pelos agentes responsáveis pelo combate à lavagem de
dinheiro, notadamente no âmbito do Grupo de Ação Financeira contra
a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo – Gafi.

2 BLOCKCHAIN, CRIPTOATIVOS E DEFI

Desde o surgimento da computação e, mais tarde, da internet, o


modo como as pessoas se relacionam, realizam suas atividades diárias
e fazem negócios está cada vez mais ligado ao universo digital. Por
consequência, a tecnologia em torno desse novo paradigma está em
constante e acelerado desenvolvimento.

Conforme Don Tapscott e Alex Tapscott (2016, p. 3-4), a tecnologia


não cria prosperidade sem, em contrapartida, assolar a privacidade.
Com isso em mente, desde 1981, inventores buscavam resolver, por
meio de criptografia, os problemas de privacidade, de segurança e
de inclusão causados pela internet. Todavia, não importava o quanto
reestruturavam o processo, sempre havia vazamentos por conta do
envolvimento de terceiros. Como exemplo, descrevem as dificuldades
existentes por trás da utilização de cartão de crédito na internet, em
que usuários precisam divulgar muitos dados pessoais; ou das taxas
por transação, que são muito altas para pequenos pagamentos; ou
dos vendedores no comércio eletrônico, que não se importam com a
privacidade e a segurança dos dados.

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LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –
DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO TERRORISMO – GAFI

Em 2008, por meio de mensagem encaminhada para uma lista


de interessados em criptografia, um sujeito, então identificado pelo
pseudônimo Satoshi Nakamoto2, deu publicidade a um artigo em que
descrevia um sistema de dinheiro eletrônico ponto a ponto, por ele
intitulado Bitcoin3.

Nas palavras de Nakamoto:

O comércio na internet tem dependido quase


exclusivamente de instituições financeiras que servem
como terceiros confiáveis para processar pagamentos
eletrônicos. Enquanto o sistema funciona bem para a
maioria das operações, ainda sofre com as deficiências
inerentes ao modelo baseado em confiança.
[...]
O que é necessário é um sistema de pagamento
eletrônico baseado em prova criptográfica, em vez
da confiança, permitindo a quaisquer duas partes
dispostas a transacionar diretamente uma com a
outra sem a necessidade de um terceiro confiável.
(NAKAMOTO, [20--], p. 1).

Assim, Satoshi Nakamoto pretendia criar um sistema de


pagamentos ou de transferência de valores sem a necessidade de
utilizar, de forma centralizada, um terceiro intermediário, com a
finalidade de se excluir os problemas decorrentes dessa atribuição de
confiança.

2
A verdadeira identidade de Satoshi Nakamoto é ainda desconhecida, podendo ser
atribuída a um indivíduo ou, até mesmo, a um grupo – com diversas especulações.
Nesse sentido, ver matéria do portal digital InfoMoney (QUEM É..., c2022).
3
Sobre a convenção em torno da utilização da palavra bitcoin, Uhdre (2021, p. 32) alerta
que “podemos estar diante de uma ‘moeda’ digital e virtual – bitcoin, grafado com letra
minúscula –, e/ou diante de um protocolo tecnológico desenvolvido sobre a camada da
internet – Bitcoin, gravado em letra maiúscula”.

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MATHEUS LOLLI PAZETO

A palavra blockchain não é mencionada em momento algum


no referido artigo. Por sua vez, a partir desse sistema de pagamento
eletrônico ponto a ponto – criado por Satoshi Nakamoto –, relatam
Don Tapscott e Alex Tapscott (2016, p. 5) que se originaram diversos
sistemas de registro distribuído, baseado em criptografia, hoje
denominados Blockchain – dentre os quais o Bitcoin segue o maior e o
mais conhecido.

Uhdre (2021, p. 33) assim descreve o funcionamento do


protocolo Bitcoin, citação que ora se faz necessária a fim de que, a
partir do entendimento da aplicação gênese, possa-se entender a
tecnologia Blockchain:

Atualmente, quando fazemos uma transferência de


valores para outrem, de nossa conta no Banco <A>
para outra conta no Banco <B>, por exemplo, cada
uma das instituições tem de contabilizar a transação.
O Banco <A>, ao verificar que o remetente tem
saldo em sua conta, registrará a saída dos valores
transferidos, e o Banco <B>, a entrada desses mesmos
valores na respectiva conta destinatária. Tal controle
tem por objetivo assegurar que os valores utilizados
são únicos, isto é, de que foram gastos apenas uma
vez.

O protocolo Bitcoin substitui o papel desses


intermediários, atribuindo-o à tecnologia. Para tanto,
propõe a descentralização da arquitetura de rede, de
modo a se ter vários computadores conectados de
forma distribuída ao redor do globo. Ainda, distribui-
se o registro dos dados, de forma que cada um desses
computadores detenha a compatibilidade atualizada
das operações realizadas. Retomando o exemplo
anterior, é como se todos os computadores (também
chamados de nós, nodes ou ledger) da rede, por
terem o registro de todas as operações até então
realizadas, pudessem fazer a verificação da existência

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LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –
DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO TERRORISMO – GAFI

de saldo na “conta” do emitente. Da mesma forma,


ao se concretizar a transferência de valores, cada
um dos pontos (computadores) da rede atualizaria
quase simultaneamente o registro, contabilizando a
operação recém-realizada. (UHDRE, 2021, p. 33, grifo
nosso).

Verifica-se que, a partir do sistema Blockchain, busca-se que o


registro de transações ou ocorrências seja perfectibilizado de forma
descentralizada, a partir de qualquer ponto conectado à rede – porém
com a segurança e a privacidade advindas do uso de criptografia e
contando com a imutabilidade e a publicidade dos registros –, visto
que é possível a verificação das informações em todos os demais
pontos conectados à rede cujo consenso formado pelos integrantes
da rede impede alguma alteração.

Portanto, uma definição possível para o Blockchain seria um


sistema cujas tecnologias envolvidas permitam um registro contínuo
de blocos de transações, conectados de forma criptográfica, protegido
por um algoritmo de consenso e armazenado em cada um dos
computadores ligados a uma rede ponto a ponto.

Os usos para o blockchain são muitos e não se esgotam no


protocolo Bitcoin.

Uhdre (2021, p. 49) afirma que, desde o surgimento do Bitcoin,


houve um grande desenvolvimento do tema, podendo-se falar em até
quatro gerações de blockchain.

Segundo a autora, “Blockchain 1.0 seria a ‘blockchain gênese’


cujo uso está atrelado unicamente à realização de transações com as
criptomoedas” (UHDRE, 2021, p. 49).

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MATHEUS LOLLI PAZETO

Sobre a segunda geração, assim discorre Uhdre (2021, p. 50-51):

A segunda geração de blockchains (Blockchain 2.0)


tem por marco o lançamento, em 2013, da plataforma
Ethereum. Essa nova geração incorporou um conjunto
de recursos novos e promissores que possibilitaram a
ampliação das vantagens do blockchain para outros
campos além das criptomoedas (trocas). A Ethereum,
assim como a Hyperledger, vem como a promessa de
ser a verdadeira plataforma de infraestrutura, sob a
qual inúmeros projetos e/ou aplicabilidades poderiam
ser erigidas (os chamados Dapps). Essa nova geração
de blockchain tem por objetivo, portanto, possibilitar
uma gama mais ampla de cenários de aplicação do
blockchain, de modo que esse “livro razão distribuído”
registre, confirme e transfira outros ativos – ou suas
representações digitais –, tais como contratos,
propriedades, votos etc.

É aqui que os chamados “smart contracts”, ou


“contratos inteligentes”, ganham cena.
[...]
No contexto do Blockchain (2.0), smart contracts
geralmente significam código de computador
armazenado em um blockchain, e que pode ser
acessado por uma ou mais partes. Ademais, esses
programas costumam ser autoexecutáveis e usam
propriedades de blockchain, como resistência à
violação, processamento descentralizado e outros.
[...] Assim, esses “contratos inteligentes” podem ser
usados para codificar e automatizar processos de
negócios, que podem então ser compartilhados e
executados entre várias partes, oferecendo maior
confiança e confiabilidade no processo, o que redunda,
muitas vezes, em ganhos significativos de eficácia e
eficiência. (UHDRE, 2021, p. 50-51, grifo nosso).

A geração 3.0 é tratada por Uhdre (2021, p. 53) como uma


extensão da tecnologia para mais aspectos da vida social, que não

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LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –
DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO TERRORISMO – GAFI

somente o financeiro, cujo mercado esteve até então no centro da


tecnologia Blockchain, e na sua gênese está o Bitcoin.

Enfim, acerca do Blockchain 4.0, a autora menciona que:

[...] tem como uma das características a inclusão


de inteligência artificial como parte da plataforma
em funções relacionadas a tomadas de decisões e
a atuações nos sistemas, reduzindo ainda mais a
necessidade de gestão humana. (UHDRE, 2021, p. 54).

Como visto, para além da ferramenta de pagamento e


de transferência de valores, o sistema Blockchain ampliou suas
possibilidades de uso, em especial a partir do surgimento das
plataformas de contratos inteligentes, como a Ethereum.

A Ethereum se descreve, em seu próprio website, como uma


tecnologia construída a partir da inovação trazida pelo Bitcoin, mas
com a diferença de ser programável, de modo que, além de funcionar
como forma de pagamento e de transferência de valores, também é
uma plataforma para serviços financeiros, jogos virtuais e aplicativos
em geral (ETHEREUM, 2022).

É importante destacar que, não obstante a plataforma Ethereum


ser a maior e mais difundida4, existem muitas plataformas de contratos
inteligentes5, cada uma em funcionamento na sua própria rede
blockchain. E, em cada uma dessas plataformas, há a utilização de

4
A esse respeito, destaca-se como exemplo a matéria do portal de notícias Exame, que
discorre sobre o funcionamento da plataforma Ethereum e destaca sua classificação
como a segunda maior rede blockchain (ENTENDA..., 2021).
5
Outros exemplos de plataformas de contratos inteligentes, ou redes blockchain, são
a Solana (SOLANA, [20--]), a Terra (TERRA, [20--]) e a Avalanche (AVALANCHE
MULTIVERSE, [20--]).

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MATHEUS LOLLI PAZETO

um ou mais criptoativos, os quais podem ser transacionados para os


mais diversos usos. Estima-se que, em março de 2022, existam mais de
18.000 espécies de criptoativos em circulação, conforme levantamento
do website CoinMarketCap, que rastreia em tempo real os dados desse
mercado (COINMARKETCAP, c2022).

Portanto, a utilidade da tecnologia Blockchain vai além do


registro de pagamentos descentralizados, valendo-se dos contratos
inteligentes para a ampliação de seus usos, com o objetivo de levar
aos indivíduos uma alternativa às demandas de serviços, porém
com privacidade, segurança e sem a dependência de uma entidade
centralizada.

É nesse cenário que surgiu a chamada DeFi, abreviação de


decentralized finance, isto é, finanças descentralizadas.

A partir da possibilidade de utilização das plataformas de


contratos inteligentes para serviços financeiros, tem-se criado
protocolos que oferecem, sem a necessidade de intermediação de
uma entidade centralizada, serviços típicos do ecossistema financeiro,
como empréstimos, troca de ativos, ofertas de liquidez e compra e
venda de derivativos.

Alex Anderson conceitua DeFi como a ideia de construir


instrumentos financeiros tradicionais em uma plataforma baseada
na tecnologia Blockchain de forma a, essencialmente, eliminar
a necessidade de um intermediário no sistema financeiro e, por
consequência, criar um ambiente livre de regulação e de controle
governamental (ANDERSON, 2020).

348 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022.
LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –
DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO TERRORISMO – GAFI

Em comparação às finanças tradicionais, defende-se que a DeFi


é mais aberta e transparente, de modo que qualquer indivíduo com
habilidades em programação pode desenvolver um produto para
oferta de serviços financeiros, eliminando as barreiras de entrada.
Além disso, a DeFi não estaria sujeita à burocracia e à regulação do
sistema bancário e financeiro, o que permitiria o livre desenvolvimento
de projetos envolvendo criptoativos (STABLY, 2019).

Um dos tipos de protocolo mais difundidos em DeFi diz


respeito às corretoras descentralizadas, também chamadas de
DEX, uma abreviação para decentralized exchange6. Por meio da
DEX, um indivíduo pode efetuar a troca de criptoativos bastando
fornecer seu endereço criptografado na plataforma de contratos
inteligentes (também conhecido como carteira ou wallet) à
corretora descentralizada. Trata-se de uma alternativa às corretoras
centralizadas, conhecidas por CEX (abreviação de centralized
exchange, ou apenas exchange), em que, para se ter acesso ao
mercado de criptoativos – uma vez que será a corretora quem
se responsabilizará pela compra e custódia do criptoativo –, o
interessado deve fazer um cadastro, fornecendo seus dados pessoais
e, ainda, enviar moeda soberana (real, dólar, euro etc.) à corretora,
por meio de transferência bancária ou cartão de crédito – tudo em
termos semelhantes ao que ocorre no sistema financeiro tradicional.

Outra espécie de protocolo em DeFi é o de gerenciamento de


empréstimos ou de provimento de liquidez7, em que o indivíduo pode
disponibilizar seus criptoativos para que haja liquidez nas corretoras

6
Exemplos de DEX são a Uniswap (UNISWAP PROTOCOL, [20--]), a TerraSwap
(TERRASWAP, c2022) e a TraderJoe (TRADER JOE, c2022), que estão estabelecidas,
respectivamente, nas plataformas de contratos inteligentes Ethereum, Terra e Avalanche.
7
Exemplos bem conhecidos são os protocolos Aave (AAVE LIQUIDITY PROTOCOL,
[20--]) e Yearn (YEARN, [20--]), ambos na plataforma Ethereum.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022. 349
MATHEUS LOLLI PAZETO

descentralizadas, ou ainda para utilização de terceiros, mediante


remuneração.

Além desses, pode-se citar, em DeFi, os protocolos de compra


e venda de derivativos, de pagamento, de seguradoras – todos em
funcionamento em redes blockchain.

Cada vez mais, a DeFi tem ganhado adeptos e valor de mercado8.


Esse acúmulo de patrimônio em protocolos descentralizados também
traz riscos semelhantes àqueles presentes nas finanças tradicionais,
como os ilícitos financeiros, cujo enfoque será objeto do capítulo
seguinte.

3 O CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO EM FINANÇAS


DESCENTRALIZADAS – DEFI

A lavagem de dinheiro, também chamada de lavagem de


capitais, pode ser definida como “o método pelo qual um indivíduo
ou uma organização criminosa processa os ganhos financeiros obtidos
com atividades ilegais, buscando trazer a sua aparência para obtidos
licitamente” (MENDRONI, 2018, p. 20).

Desde a celebração da Convenção contra o Tráfico Ilícito de


Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, firmada em Viena em 1988,
criou-se no cenário mundial uma direção no sentido da criminalização
da lavagem de dinheiro.

8
Levantamento de website DeFi Llama, especializado no tema, aponta para mais de
194 bilhões de dólares investidos em DeFi na data de 8 de março de 2022 (DEFI
LLAMA, 2022).

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LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –
DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO TERRORISMO – GAFI

Dispõe o texto da convenção, no art. 3º, que cada parte signatária


adotará medidas para a criminalização da conversão ou a transferência
de bens com o objetivo de ocultar ou encobrir sua origem ilícita, bem
como a ocultação ou o encobrimento da natureza, da origem, da
localização, do destino, da movimentação ou da propriedade verdadeira
dos bens, sabendo que procedem de tráfico ilícito de entorpecentes
(BRASIL, 1991).

A partir de então, passou a ser mais comum, no ordenamento


jurídico dos países, a criminalização da lavagem de capitais, passando-
se por três gerações.

Lima (2015, p. 288-289) descreve as gerações de legislações


sobre criminalização da lavagem de dinheiro:

Logo após a Convenção de Viena, as primeiras leis que


incriminaram a lavagem de capitais traziam apenas
o tráfico ilícito de drogas como crime antecedente,
razão pela qual ficaram conhecidas como legislações
de primeira geração.
Nos países que adotaram essa sistemática, constatou-
se que a lavagem de capitais também estava sendo
utilizada para dissimular a origem de valores obtidos
com a prática de outras infrações penais além do
tráfico de drogas. Em virtude da relevância de se coibir
a movimentação financeira do produto financeiro de
outros delitos, também considerados graves, houve,
então, uma ampliação do rol dos crimes antecedentes
(numerus clausus), dando origem, assim, às legislações
de segunda geração.
[...]
Finalmente, as legislações de terceira geração, como
a espanhola, consideram que qualquer crime grave
pode figurar como delito antecedente da lavagem de
capitais. Na Argentina, por exemplo, qualquer delito
também pode figurar como infração precedente.
(LIMA, 2015, p. 288-289, grifo nosso).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022. 351
MATHEUS LOLLI PAZETO

Dessa forma, seja qual for a geração da legislação, verifica-se que


há um caráter acessório no crime de lavagem de capitais, uma vez que,
para sua ocorrência, é necessária a existência de uma infração penal
antecedente.

Conforme explicam Callegari e Weber (2017, p. 2): “O delito


de lavagem de dinheiro ataca frontalmente o sistema econômico-
financeiro de um país, afetando a estrutura negocial ao introduzir
bens ilicitamente adquiridos e ao quebrar a regra da livre e justa
concorrência”.

Portanto, primordialmente, o bem jurídico tutelado pelo crime de


lavagem de dinheiro é a ordem socioeconômica.

De outro norte, alerta Mendroni (2018, p. 98) que a administração


da justiça é tutelada pelo crime de lavagem de dinheiro, visto que, com
a criminalização do processamento de ganhos ilícitos, há um reforço
na defesa dos crimes antecedentes que geraram a riqueza indevida, os
quais, por vezes, não recebem a devida resposta do sistema judicial.

O crime de lavagem de dinheiro costumeiramente ocorre em três


fases ou etapas: colocação, dissimulação e integração.

Lima (2015, p. 290-291) bem define suas etapas:

a) Colocação (placement): consiste na introdução do


dinheiro ilícito no sistema financeiro, dificultando a
identificação da procedência dos valores de modo a
evitar qualquer ligação entre o agente e o resultado
obtido com a prática do crime antecedente. Diversas
técnicas são utilizadas nesta fase, tais como o
fracionamento de grandes quantias em pequenos
valores, que escapam do controle administrativo

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LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –
DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO TERRORISMO – GAFI

imposto às instituições financeiras (art. 10, inciso II c/c


art. 11, inciso II, a, da Lei n. 9.613/1998) – procedimento
esse conhecido como smurfing, em alusão aos
pequenos personagens da ficção na cor azul –,
a utilização de estabelecimentos comerciais que
usualmente trabalham com dinheiro em espécie, as
remessas ao exterior através de mulas, as transferências
eletrônicas para paraísos fiscais, a troca por moeda
estrangeira etc. A colocação é o estágio primário da
lavagem e, portanto, o mais vulnerável à sua detecção,
razão pela qual devem as autoridades centrar o foco
dos maiores esforços de sua investigação nessa fase
da lavagem;
b) Dissimulação ou mascaramento (layering):
nessa fase, são realizados diversos negócios ou
movimentações financeiras a fim de impedir o
rastreamento e encobrir a origem ilícita dos valores.
De modo a dificultar a reconstrução da trilha do papel
(paper trail) pelas autoridades estatais, os valores
inseridos no mercado financeiro na etapa anterior
são pulverizados através de operações e transações
financeiras variadas e sucessivas, no Brasil e em outros
países, muitos dos quais caracterizados como paraísos
fiscais, que dificultam o rastreamento dos bens. São
exemplos de dissimulação: transferências eletrônicas
e envio do dinheiro convertido em moeda estrangeira
para o exterior via cabo;
c) Integração (integration): com a aparência lícita,
os bens são formalmente incorporados ao sistema
econômico, geralmente por meio de investimentos no
mercado mobiliário ou imobiliário, de transações de
importação/exportação com preços superfaturados
(ou subfaturados), ou de aquisição de bens em
geral (v.g., obras de arte, ouro, joias, embarcações,
veículos automotores). Em alguns casos, os recursos
monetários, depois de lavados, são reinvestidos nas
mesmas atividades delituosas das quais se originaram,
perpetuando-se, assim, o ciclo vicioso.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022. 353
MATHEUS LOLLI PAZETO

Apesar da consagrada divisão do crime de lavagem de dinheiro


em etapas, poderá ocorrer o crime ainda que se percorra apenas
uma das fases indicadas, desde que haja o processamento de capital
oriundo de atividade criminosa com o objetivo de lhe imputar caráter
de licitude.

Importante ressaltar que o crime de lavagem de capitais pode


ocorrer de inúmeras formas. “Apesar de ser mais comum a utilização
do sistema bancário e financeiro para a prática da lavagem de capitais,
esta pode ser levada a efeito em outras áreas de movimentação de
valores e riquezas” (LIMA, 2015, p. 288).

Com o surgimento de novas tecnologias no sistema financeiro,


bancário e de pagamentos, novas possibilidades de ocorrência do
crime de lavagem de capitais têm sido percebidas, inclusive por meio
de criptoativos.

Algumas características inerentes aos criptoativos, por serem


registrados no âmbito de redes blockchain, podem estimular seu uso
para a prática do crime de lavagem de dinheiro. São elas: a privacidade,
a irreversibilidade dos eventos e a abrangência global.

Fala-se em privacidade uma vez que a conexão do interessado


na negociação de criptoativos à rede blockchain se dá por meio de
endereços criptografados, não havendo a necessidade de fornecimento
de dados pessoais como nome, endereço, data de nascimento,
identificação no cadastro dos órgãos fiscais, número de telefone etc.

Nesse sentido, Estellita (2020, p. 426) explica como funciona


a conexão à rede bitcoin, por meio da qual se pode entender o
funcionamento da maioria das redes blockchain:

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LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –
DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO TERRORISMO – GAFI

Tem disponibilidade sobre os bitcoins quem possuir


a chave privada que lhe permite gastar os bitcoins
associados a um endereço específico. Esse endereço
específico é o produto de uma dupla operação
normalmente feita pelas wallets (aplicativos a isso
destinados): com a chave privada, gera-se uma chave
pública que, então, gera o endereço.
Enquanto a chave privada é aleatória, tanto a
chave pública quanto os endereços são gerados
aplicando-se à chave privada uma função hash: chave
privada > chave pública > endereço. Essa função
hash é unidirecional, ou seja, ela facilmente gera
uma chave pública, e dela um endereço, mas é
praticamente impossível percorrer o caminho de
volta: em outras palavras, é praticamente impossível
derivar uma chave pública de um endereço, e uma
chave privada de uma chave pública. Isso quer dizer
que a exposição do endereço – que é fornecido aos
demais usuários do sistema para que a ele remetam
bitcoins e que funciona como os dados de uma conta
bancária (agência e número da conta) – nunca expõe
o detentor da chave privada. (ESTELLITA, 2020,
p. 426).

Assim, basta que um interessado gere um ou mais endereços na


rede blockchain e, a partir dele, estará apto a receber transferências
ou fazer pagamentos com sua chave privada, sem precisar informar
os dados que o identifiquem diretamente – o que poderia servir de
incentivo ao uso ilícito dos criptoativos.

Ocorre que, numa rede blockchain, como mencionado


anteriormente, todas as transações são registradas de forma
descentralizada e distribuída, em uma grande cadeia de blocos pública.
Ainda que não se saiba o indivíduo por trás de um endereço da rede,
todas as movimentações feitas por ele são passíveis de consulta e
de rastreamento por qualquer interessado, conforme a tradicional
técnica investigativa de seguir o dinheiro (follow the money). Nesse

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022. 355
MATHEUS LOLLI PAZETO

sentido, embora a rede blockchain possa garantir ao usuário alguma


privacidade, também pode servir de elemento probatório de todas as
suas transações. Por isso, pode-se falar que há privacidade, porém não
em sua forma mais absoluta.

Acerca da irreversibilidade dos eventos, foi mencionado que os


registros em uma rede blockchain são imutáveis pelo fato de estarem
organizados em uma cadeia de blocos e presentes em cada um dos
pontos conectados à rede. Assim, uma vez realizado o pagamento ou a
transferência, sejam eles decorrentes de uma atividade lícita ou ilícita,
essa transação será registrada no bloco, passará a constar em cada
dispositivo conectado à rede blockchain, e sua alteração encontrará
barreira no algoritmo de consenso.

Como alerta Bueno (2020, p. 117), essa característica atinge


diretamente a execução dos instrumentos de confisco e bloqueio de
valores, visto que a titularidade dos criptoativos só pode ser alterada
mediante uso da chave privada, não havendo a possibilidade de estorno
da transação – o que impede sua constrição.

Nesse sentido, ante a impossibilidade de reversão da transação,


poder-se-ia pensar em um ambiente mais favorável a transferências de
cunho ilícito.

Enfim, sobre o alcance global, vale ressaltar que, para transacionar


diretamente um criptoativo, basta que alguém se conecte, de qualquer
parte do mundo, por meio da internet, à rede blockchain pela qual
pretende realizar a transação e, assim, de forma quase imediata,
transferir o ativo de um ponto a outro.

356 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022.
LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –
DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO TERRORISMO – GAFI

Não obstante as características expostas acima, que poderiam


favorecer o uso de criptoativos para lavagem de capitais, faz-se
necessário tecer algumas considerações extras.

No início do uso da tecnologia Blockchain, o que remete aos


primeiros anos da rede bitcoin, as compras, as vendas e as trocas
envolvendo criptoativos, primordialmente bitcoin, eram realizadas
diretamente entre os indivíduos conectados à rede blockchain, na
chamada transação ponto a ponto (peer-to-peer ou P2P).

Os fatores de risco, como privacidade e irreversibilidade das


transações, dizem respeito a essa modalidade de compra e venda.

Por sua vez, como foi mencionado anteriormente, o número de


criptoativos e o seu valor de mercado dispararam nos últimos anos,
com aumento significativo do número de adeptos.

Embora ainda se realizem muitas transações ponto a ponto,


atualmente a maioria dos interessados em negociar criptoativos
o fazem por meio de corretoras responsáveis pela intermediação
(chamadas, como visto no capítulo anterior, de Centralized
Exchanges – CEX, ou simplesmente exchanges)9.

Isso acontece, principalmente, pela praticidade, visto que as


corretoras centralizadas fazem a custódia do ativo, fornecem uma
precificação em tempo real, aceitam o recebimento de moeda de
curso legal (por transferência bancária ou uso de cartão de crédito)
e dispensam o interessado de lidar com tecnologias ou plataformas

9
Segundo matéria escrita por Khatri (2021) no portal The Block, corretoras
centralizadas de criptoativos reportaram um volume de negociação superior a
14 trilhões de dólares em 2021.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022. 357
MATHEUS LOLLI PAZETO

fora de seu domínio técnico, uma vez que lhe é oferecida experiência
similar à de muitos bancos ou corretoras de ativos mobiliários.

Ocorre que, ao se utilizar de um intermediador, aumentam-se as


chances de os órgãos de persecução penal alcançarem o agente que
esteja tentando processar o dinheiro obtido ilicitamente. Isso porque,
dos possíveis fatores de estímulo ao uso dos criptoativos como meio de
lavagem de dinheiro, o uso de uma corretora exclui quase totalmente a
privacidade e a irreversibilidade das transações.

Vale dizer que é nesse ponto que ocorre a maior entrada de


moeda soberana no ecossistema dos criptoativos, o que, em termos de
lavagem de dinheiro, seria considerada a etapa de colocação.

Salvo casos em que a corretora também está mal-intencionada,


o que pode ocorrer com algumas domiciliadas em países sem
legislação antilavagem de dinheiro, esses intermediadores precisam
cumprir alguns requisitos exigidos pelos reguladores de onde estão
constituídos.

Os principais requisitos são: a estruturação de um setor de


compliance, destinado a identificar transações suspeitas, e a adoção
de políticas de conhecimento aprofundado sobre o cliente que utiliza
de seus serviços (política denominada pelo termo KYC, abreviação de
know your costumer).

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LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –
DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO TERRORISMO – GAFI

Conforme descreve Santos (2019):

[...] o objetivo principal do compliance nas empresas


que trabalham com moedas eletrônicas é transmitir
uma segurança aos órgãos regulatórios para prevenir
futuras incursões do crime organizado nessa nova
ferramenta de economia digital.

Portanto, ao contrário das transferências realizadas em ambiente


descentralizado, em que não há uma entidade responsável, ao negociar
por meio de uma CEX o agente terá suas transações analisadas
pela própria corretora, a qual poderá reportar às autoridades
responsáveis pelo combate ao crime de lavagem de dinheiro eventuais
movimentações que considere suspeitas.

Sobre o KYC, Gomes (2020, p. 461) descreve seu funcionamento:

Trata-se de importante ferramenta de captação de


informações básicas de clientes, traçando um perfil de
risco, cujo objetivo é prevenir que o cliente se utilize
da estrutura das instituições para o cometimento de
atividades ilícitas.

Nas exchanges de criptoativos, o controle é ainda


maior. Isso se dá porque ainda são exigidas, além das
informações cadastrais, documentos que corroboram
tais informações e a denominada “prova de vida”, uma
foto do cliente na modalidade selfie segurando um
documento.


Dessa forma, um agente que pretenda movimentar, em uma
CEX, criptoativo adquirido com dinheiro decorrente de crime, com o
objetivo de lavagem do capital, não o fará de forma anônima, uma vez

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022. 359
MATHEUS LOLLI PAZETO

que seus dados estarão à disposição das autoridades penais – caso


haja requisição à corretora.

Ademais, como é a corretora centralizada quem faz a custódia


do criptoativo em nome do cliente, resta afastada a característica
da irreversibilidade das transações, uma vez que a corretora poderá
atender a ordens de bloqueio, sequestro ou confisco emitidas por
parte das autoridades de persecução penal, de maneira similar ao que
ocorre com as instituições financeiras.

Portanto, uma vez que corretoras centralizadas devem adotar


métodos de compliance e de prevenção à lavagem de dinheiro, além
de que o uso do modelo de transferência ponto a ponto possui forte
rastreabilidade, cresceu o uso de DeFi para a prática de lavagem de
dinheiro.

Segundo informações da Chainalysis, uma empresa


especializada em análise de dados em blockchain, em 2021, protocolos
DeFi receberam cerca de 900 milhões de dólares de fundos obtidos
ilicitamente, com a finalidade de lavagem de dinheiro. Isso representou
um incremento de 1,964% em relação a 2020, ou seja, quase 20 vezes
(CHAINALYSIS, 2022).

No âmbito de DeFi, três tipos de protocolos têm sido


mais comumente usados para lavagem de dinheiro: as corretoras
descentralizadas – DEX, os protocolos de mixer descentralizados e os
protocolos de ponte entre redes blockchain (cross-chain bridges).

Conforme explicado, por meio de uma DEX um indivíduo pode


efetuar a troca de criptoativos, bastando que forneça seu endereço
criptografado na plataforma de contratos inteligentes à corretora

360 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022.
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descentralizada para o recebimento de um criptoativo e para a


utilização de sua chave privada para envio de outros.

O objetivo, portanto, é assegurar maior privacidade, de modo


que o agente possa trocar seus criptoativos por outros, sem que essa
transação passe por entidades que adotam políticas de compliance e
KYC.

Os mixers são protocolos utilizados para interromper a cadeia


de transferência registrada nas redes blockchain, misturando os
valores transferidos por um indivíduo com aqueles transferidos por
outro, de modo a dificultar o rastreio sequencial dos criptoativos.
Os primeiros mixers eram operados de forma centralizada, o que
obrigava o indivíduo a transferir seus fundos para que alguém
prestasse esse serviço, aumentando consideravelmente não só risco
de golpe financeiro como também de ter seus dados coletados em
algum momento por autoridades antilavagem de dinheiro. Todavia,
atualmente, existem mixers descentralizados, aplicativos baseados em
contratos inteligentes que oferecem o serviço sem a necessidade de
transferência de custódia, aumentando a privacidade.

É necessário destacar que o uso de um mixer, por si só, não


configura uma atividade ilícita. Trata-se de um protocolo destinado a
quem é obstinado por privacidade, visto que, em termos de blockchain,
a cadeia de transferência é pública e passível de rastreamento. Porém,
caso se faça uso de um protocolo mixer para ocultar a destinação de
dinheiro resultante de crime, certamente estará configurada a lavagem
de dinheiro.

As cross-chain bridges são protocolos que permitem a


transferência de um criptoativo que está em uma rede blockchain para
outra, por exemplo, da rede bitcoin para a rede ethereum. Trata-se,

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022. 361
MATHEUS LOLLI PAZETO

também, de um protocolo de uso costumeiro e lícito no ecossistema de


criptoativos, visto que as negociações podem depender da alternância
de redes. Todavia, é possível que se faça uso de uma cross-chain bridge
para transferir criptoativos obtidos ilicitamente de uma rede blockchain
para outra com a finalidade de dificultar a recuperação por parte dos
órgãos de persecução penal – o que configuraria ato de lavagem de
capitais.

Portanto, verifica-se que a possibilidade de desenvolvimento


de aplicativos descentralizados de DeFi nas plataformas de contratos
inteligentes tem trazido novos desafios à prevenção da lavagem
de dinheiro, uma vez que as medidas adotadas para entidades
centralizadas e, por consequência, sujeitas à regulação não têm a
mesma aplicabilidade nesses protocolos.

Importante destacar que, apesar de as técnicas utilizadas


por criminosos para a lavagem de dinheiro estarem sempre em
desenvolvimento, não é impossível sua mitigação. Como afirma Don
Tapscott e Alex Tapscott (2016, p. 276), o fato de criminosos fazerem
uso de criptoativos para suas práticas diz mais sobre as falhas no
controle, na regulação, na divulgação e na educação sobre o tema a
propriamente suas características inerentes.

Por conseguinte, o capítulo subsequente buscará esclarecer


como o tema do combate à lavagem de dinheiro em criptoativos,
incluindo o DeFi, tem sido abordado pelo principal ator internacional
neste tema.

362 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022.
LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –
DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO TERRORISMO – GAFI

4 RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO FINANCEIRA


CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO
DO TERRORISMO – GAFI SOBRE LAVAGEM DE DINHEIRO
EM CRIPTOATIVOS: UMA APROXIMAÇÃO ÀS FINANÇAS
DESCENTRALIZADAS – DEFI

O crime de lavagem de dinheiro, por seus atributos ínsitos, que


envolvem ações de ocultação e de dissimulação, tende a ocorrer em
setores à margem do controle estatal, de modo a dificultar a persecução
penal.

Justamente por isso, o combate a esse crime deve angariar


recursos nos mais diversos setores da sociedade, passando não só
pelos órgãos de persecução penal, pelos reguladores, pelas equipes de
inteligência e pelo monitoramento dos órgãos fiscais, como também
pelas próprias empresas privadas que atuam nos ramos bancário,
financeiro, de mercado de capitais, imobiliário etc. por meio de seus
setores de compliance.

No mercado de criptoativos, não é diferente, tendo em vista


que, por se tratar de tecnologia recente, a comunhão de esforços na
prevenção à lavagem de dinheiro ganha em relevância.

De todo modo, importante consignar que, segundo dados de


uma empresa de assessoria especializada na análise de dados em
blockchain, devido ao incremento na adoção de medidas de segurança
pelos negociantes de criptoativos, pelos reguladores e pelas instituições
financeiras, as transações ilícitas em 2021 representavam uma pequena
porcentagem dos negócios em geral, sendo que menos de 1% das
transações com bitcoin envolviam atividades ilícitas, enquanto em
2012 esse número chegava a 35% (ELLIPTIC, 2021).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022. 363
MATHEUS LOLLI PAZETO

Apesar disso, considerados os demais dados aqui apresentados,


no sentido de que o valor de mercado dos criptoativos e de transações
apenas em exchanges centralizadas alcança a casa dos trilhões de
dólares, 1% do montante negociado representa uma quantia expressiva
em números absolutos.

Por isso, a lavagem de dinheiro no âmbito dos criptoativos


não fica à margem das recomendações do Grupo de Ação Financeira
contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo – Gafi.

O Gafi, chamado internacionalmente de Financial Action Task


Force – FATF:

[...] foi criado em 1989 pelos sete países mais ricos do


mundo no âmbito da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico – OCDE com a finalidade
de examinar, desenvolver e promover políticas de
combate à lavagem de dinheiro. (LIMA, 2015, p. 290).

Trata-se de uma entidade intergovernamental, cuja função é:

[...] definir padrões e promover a efetiva implementação


de medidas legais, regulatórias e operacionais para
combater a lavagem de dinheiro, o financiamento
do terrorismo e o financiamento da proliferação,
além de outras ameaças à integridade do sistema
financeiro internacional relacionadas a esses crimes.
Em colaboração com outros atores internacionais, o
Gafi também trabalha para identificar vulnerabilidades
nacionais com o objetivo de proteger o sistema
financeiro internacional do uso indevido. (FINANCIAL
ACTION TASK FORCE, 2012).

364 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022.
LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –
DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO TERRORISMO – GAFI

Em 1990, o Gafi estabeleceu 40 recomendações “como uma


iniciativa para combater o uso indevido dos sistemas financeiros por
pessoas que queriam lavar o dinheiro proveniente do tráfico de drogas”
(FINANCIAL ACTION TASK FORCE, 2012).

Desde então, as recomendações vêm recebendo atualizações,


tratando de novas ameaças ou fatores de risco em termos de lavagem
de dinheiro. Também foram incluídas recomendações em termos de
combate ao financiamento do terrorismo.

Conforme explica Corrêa (2013, p. 37):

As recomendações buscam ter aplicação universal,


com a necessária flexibilidade para serem adotadas por
diferentes sistemas nacionais legais e financeiros, com
distintas tradições jurídicas e níveis de sofisticação.
Assim, se, por um lado, buscam ser bastante
abrangentes, por outro, não há a preocupação de
detalhar em demasia seus dispositivos. São princípios
para a ação dos estados nos campos legislativo,
regulatório, institucional e administrativo.

Portanto, trata-se de recomendações a serem adotadas pelos


estados em suas esferas de poder a fim de construir um arcabouço
jurídico preventivo à ocorrência do crime de lavagem de dinheiro e de
financiamento do terrorismo.

Em 2015, o Gafi tratou de forma mais concentrada sobre


criptoativos, em que adaptou suas tradicionais 40 recomendações
à nova realidade. O organismo internacional tratou do que foi por
ele chamado de moedas virtuais (Virtual Currency – VC) e serviços
e produtos de pagamento com moedas virtuais (Virtual Currency
Payment Products and Services – VCPPS).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022. 365
MATHEUS LOLLI PAZETO

Conforme o documento lançado à época, o objetivo era explicar


a aplicação da abordagem baseada em risco em termos de VC, bem
como ajudar autoridades nacionais a entender e, potencialmente, a
desenvolver respostas regulatórias endereçadas a VCPPS (FINANCIAL
ACTION TASK FORCE, 2015).

Dentre as recomendações, encontram-se medidas destinadas a


efetuar estudos sobre a forma de regulação das VCs, exigir registro
ou licença dos VCPPS, implementar uma supervisão eficaz, fornecer
uma série de sanções dissuasivas e facilitar a cooperação internacional
(FINANCIAL ACTION TASK FORCE, 2015).

Conforme discorre Bueno (2020, p. 77):

As aludidas recomendações têm clara preocupação


em impedir a utilização dos serviços de criptoativos
como ferramentas de lavagem de dinheiro e de
financiamento ao terrorismo. Assim como no âmbito
da União Europeia, há especial atenção aos serviços
de conversão dos criptoativos em moedas soberanas
dos estados, normalmente dispostos pelas corretoras
virtuais (exchanges), sendo incentivada a regulação
da matéria, no âmbito de cada Estado, para a adoção
de medidas que permitam o controle das pessoas e
dos valores envolvidos nessas operações.
Motivo pelo qual o Gafi dedica especial atenção
às corretoras virtuais de criptoativos (exchanges),
em razão de funcionarem como ligação entre os
criptoativos e as moedas soberanas, sendo assim,
ponto fulcral para o enfrentamento da criminalidade
voltada a práticas de lavagem de dinheiro, a adoção
de políticas que permitam identificar e registrar as
operações e os usuários nela envolvidos.

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Dessa forma, resta claro que o Gafi se preocupou, em sua


adaptação das recomendações aos criptoativos, em orientar os estados
a fortalecer a regulação e o controle sobre as corretoras centralizadas
por considerá-los pontos fundamentais no combate à lavagem de
dinheiro com uso de criptoativos – uma vez que é por meio deste que
costuma ocorrer a conversão entre ativo digital e moeda de curso legal.

Em 2019, o Gafi atualizou mais uma vez suas recomendações.


Nesse documento, passou a tratar sobre os criptoativos sob outra
nomenclatura: ativos virtuais (Virtual Asset – VA) e fornecedores de
serviços em ativos virtuais (Virtual Asset Service Provider – Vasp). Além
disso, incluiu os protocolos descentralizados entre os possíveis Vasps
e que deveriam, por consequência, submeter-se à regulação estatal
sobre medidas de prevenção à lavagem de dinheiro (FINANCIAL
ACTION TASK FORCE, 2019).

Enfim, em outubro de 2021, o Gafi atualizou novamente suas


recomendações em termos de criptoativos. Pela primeira vez, foi
utilizado o termo DeFi cuja definição atribuída é a de aplicativos
descentralizados que oferecem serviços financeiros, como os
oferecidos pelos Vasps. Porém, segundo o Gafi, os protocolos DeFi
não se enquadrariam como Vasp nos seus parâmetros, uma vez que
seriam softwares ou tecnologias basilares cuja aplicação é múltipla
(FINANCIAL ACTION TASK FORCE, 2021).

De outro norte, o documento alerta que criadores, proprietários


e operadores, ou algum outro indivíduo que mantenha controle
ou influência suficiente nos protocolos DeFi, mesmo que pareça
descentralizado, podem se enquadrar na definição do Gafi de um Vasp
(FINANCIAL ACTION TASK FORCE, 2021).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022. 367
MATHEUS LOLLI PAZETO

Assim, em termos de DeFi, o Gafi trata os protocolos como uma


tecnologia-base, sem recomendar medidas diretamente sobre os
protocolos. Porém, direciona suas orientações para a identificação de
alguém que possa estar por trás dos protocolos descentralizados, a
fim de que esse indivíduo ou instituição se submeta às exigências de
prevenção à lavagem de dinheiro.

Com isso, sem perder de vista o aprimoramento das


recomendações sobre corretoras centralizadas, denota-se que o
Gafi passou a ter um olhar mais próximo sobre os protocolos DeFi,
em decorrência do aumento de seu uso para a prática de lavagem de
dinheiro. Todavia, ainda não há uma recomendação clara sobre como
os estados devem proceder em relação a esses protocolos, apenas
sobre eventuais indivíduos que o controlem – por vezes de difícil
descoberta –, o que ainda demanda um aperfeiçoamento no futuro.

5 CONCLUSÃO

A partir da criação da rede bitcoin, ganhou escala o uso da


tecnologia Blockchain, que possibilita um registro contínuo de blocos
de transações conectados de forma criptográfica, protegido por um
algoritmo de consenso e armazenado em cada um dos computadores
ligados a uma rede ponto a ponto.

Atualmente, existem inúmeros criptoativos além do bitcoin, e o


uso do sistema blockchain passou a ser aplicado também para produtos
e serviços financeiros com o objetivo de eliminar a necessidade de
um intermediário e, por consequência, criar um ambiente livre de
regulação – mas com a segurança e a privacidade proporcionadas pelo
sistema blockchain. Surgiu, assim, a chamada finanças descentralizadas,
ou DeFi.

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LAVAGEM DE DINHEIRO NO ÂMBITO DAS FINANÇAS DESCENTRALIZADAS –
DEFI E SUA PREVENÇÃO À LUZ DAS RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE AÇÃO
FINANCEIRA CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO E O FINANCIAMENTO DO TERRORISMO – GAFI

Com o crescente valor das transações com criptoativos, e o maior


uso dos protocolos DeFi, também se verificaram maiores riscos – que
antes eram reservados ao ecossistema financeiro tradicional –, como o
uso da tecnologia Blockchain, devido a suas inerentes características
de privacidade; a irreversibilidade dos eventos; e a abrangência global
para a lavagem de dinheiro obtido ilicitamente.

As autoridades estatais e os organismos internacionais, como


o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o
Financiamento do Terrorismo, começaram a estruturar seu arcabouço
jurídico para a prevenção da lavagem de capitais com criptoativos. A
adoção de políticas de compliance e know your costumer tem sido
exigida das corretoras centralizadas, uma vez que elas têm sido a
maior ponte entre o sistema financeiro tradicional e o ecossistema de
criptoativos.

Em relação aos protocolos DeFi, todavia, ainda são bastante


incipientes as manifestações do Gafi, limitando-se a recomendar que
as autoridades estatais verifiquem se há indivíduos ou entidades
por trás dos protocolos DeFi, a fim de exigir desses responsáveis a
estruturação das medidas antilavagem de dinheiro.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 345-379, jan./jul. 2022. 369
MATHEUS LOLLI PAZETO

REFERÊNCIAS

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BUENO, Thiago Augusto. Bitcoin e crimes de lavagem de dinheiro.


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CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO
ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO
CRYPTOASSETS: ANONYMITY CRYPTOGRAPHY AND
REGULATION ATTEMPTS

MARCOS VINICIUS LIPIENSKI


Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Minas
Gerais (2015 – atual). Graduado em Direito pela Universidade Federal de
Uberlândia (2008). Atualmente é juiz federal – Tribunal Regional Federal
da 1ª Região.
https://orcid.org/0000-0002-3144-745X

RESUMO

O objetivo do artigo é, em primeiro lugar, apresentar um panorama


das principais tecnologias criptográficas responsáveis notadamente
por criar um ambiente de ocultamento no uso de criptoativos, de
forma a dificultar o rastreio para o combate à lavagem de dinheiro
e ao financiamento do terrorismo. Depois, buscamos identificar
os principais marcos regulatórios concebidos para os criptoativos.
Iniciamos essa pesquisa com as diretrizes Gafi/FATF de utilidade; em
seguida, estudamos o esquema normativo geral da União Europeia
para, depois, tratar do caso específico da Itália. Antes de chegarmos
à conclusão, tratamos também das iniciativas regulatórias brasileiras,
com destaque para comparação entre essas experiências. A conclusão
aborda a necessidade de equilíbrio entre a regulação para suprimir
a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo e a criação
de um ambiente favorável ao desenvolvimento de tecnologias úteis às
pessoas nas mais diversas áreas.

Palavras-chave: criptoativos; ocultamento; Gafi/FATF; regulação.

ReJuB
374 - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022.
CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO

ABSTRACT

The article’s objective is, in the first place, to present a panorama of


the main cryptographic technologies notably responsable for creating
na environment of concealment in the use of cryptoassets, in a way
that hinders tracking for fighting money laundering and terrorism
financing. Later, we seek to identify the main cryptoassets’ conceived
regulatory frameworks. We begin this research with GAFI/FATF’s
useful guidances; then, we study the Europe Union’s general normative
body to assess Italy’s specific case. Before we come to a conclusion,
we also analize brazilian’s regulatory iniciatives, with emphasis in the
comparison between these experiences. The conclusion address the
necessity of balance amidst regulation to supress money laundering
and terrorism financing and the cration of a favorable environment to
the development of useful techonolgies to the people in many diverse
areas.

Keywords: cryptoassets; concealment; Gafi/FATF; regulation.

Recebido: 10-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 Conceitos gerais e recursos criptográficos aplicados ao


bitcoin e às criptomoedas em geral. 3 A regulação dos criptoativos na
Europa. 4 Exemplo concreto: a regulação na Itália. 5 A regulação dos
criptoativos no Brasil. 6 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A forma relativamente rápida e descentralizada de realização


de transações de criptoativos, aliada ao emprego das mais variadas

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022. 375
MARCOS VINICIUS LIPIENSKI

formas de criptografia, os tornam atrativos para uso na lavagem de


dinheiro.

Em razão da pouca familiaridade do mundo jurídico com a


criptografia, o artigo inicia com um capítulo destinado a uma descrição
de diversos protocolos aplicados a algumas espécies de moedas virtuais
e suas funções, notadamente quando contribuem para a ocultação de
informações sobre pessoas e valores envolvidos.

Depois, o próximo capítulo trata do progressivo aumento de


preocupação e regulação de criptoativos na Europa, principalmente
após a ocorrência de atentados terroristas no norte, ao que se segue
um relato de como a Itália (historicamente um centro tradicional
de combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro),
especificamente, lida com a internalização das medidas regulatórias
formuladas pela União Europeia.

Uma vez apresentadas as bases do panorama regulatório de


criptoativos, bem como a experiência italiana, o capítulo seguinte
dedica-se a discorrer sobre a evolução do uso dos criptoativos no Brasil,
mediante análise comparativa entre as ainda incipientes propostas
legislativas nacionais sobre o tema e aquilo desenvolvido na Europa
em acordo com recomendações do Gafi/FATF.

2 CONCEITOS GERAIS E RECURSOS CRIPTOGRÁFICOS


APLICADOS AO BITCOIN E ÀS CRIPTOMOEDAS EM GERAL

O bitcoin tem a sua origem identificada na publicação, no âmbito


de um fórum de criptógrafos Cypherpunk, de um artigo denominado
Bitcoin: a Peer-to-Peer Electronic Cash System, de autoria de
Satoshi Nakamoto. Seguiu-se, meses depois, a primeira transação e

376 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022.
CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO

a disponibilização pública do aplicativo denominado Bitcoin v.0.1


(TEIXEIRA; BOCHI, 2019).

O bitcoin fundamenta-se na vontade de criar um sistema


eletrônico de transações no qual um terceiro não se faz necessário
(peer-to-peer), de forma que o seu custo não sofre o acréscimo em
razão dessa participação. O sistema de Blockchain, por outro lado,
oferece o suporte para evitar transações duplas mediante a utilização
de um registro público validado por meio do Proof of Work1 (ajustável
de acordo com o avanço da potência de processamento da mineração),
que torna computacionalmente impraticável a atividade de hackers,
enquanto não detiverem o domínio quase absoluto sobre todo o poder
computacional existente:

We have proposed a system for electronic transactions


without relying on trust. We started with the usual
framework of coins made from digital signatures, which
provides strong control of ownership, but is incomplete
without a way to prevent double-spending. To solve
this, we proposed a peer-to-peer network using proof-
of-work to record a public history of transactions
that quickly becomes computationally impractical
for an attacker to change if honestnodescontrol a

1
Sobre Proof of Work: “A ideia toda surgiu em 1993, quando Cynthia Dwork e Moni Naor
publicaram um artigo científico sobre funções vinculadas à memória para combater o
spam. No artigo, eles estavam tentando introduzir um novo método de combate aos
e-mails de spam, que são enviados usando a energia do computador para cada e-mail
(ou transação). O Proof of Work é uma função difícil de calcular, mas fácil de verificar. A
função possui uma mensagem, um endereço de destinatário e alguns outros parâmetros.
Neste trabalho, Dwork e Naor chamavam de função de precificação. Os computadores
de hoje podem enviar milhões de mensagens de spam todos os dias, o que cria um
grande problema. No entanto, se os computadores precisarem gastar 10 segundos
em cada mensagem, eles poderão enviar apenas 8 mil spams por dia. Em 1999, no
artigo Proofs of work and bread pudding protocols (Provas de trabalho e protocolos de
pudim de pão) publicado por Markus Jakobsson e Ari Juels, o termo ‘Proof of work’ foi
introduzido e a notação é criada. Seu objetivo era caracterizar a notação de uma prova
de trabalho (PoW), um protocolo no qual um provador demonstra a um verificador
que ele gastou um certo nível de esforço computacional em um intervalo de tempo
específico.” (BASTIANI, 2019).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022. 377
MARCOS VINICIUS LIPIENSKI

majority of CPU power. The network is robust in its


unstructured simplicity. Nodeswork all at once with
little coordination. They do not need to be identified,
since messages are not routed to any particular
place and only need to be delivered on a best effort
basis. Nodes can leave and rejoin the network at will,
accepting the proof-of-work chain as proof of what
happened while they were gone. They vote with their
CPU power, expressing their acceptance of valid blocks
by working on extending them and rejecting invalid
blocks by refusing to work on them. Any needed rules
and incentives can be enforced with this consensus
mechanism. (NAKAMOTO, 2008, p. 8).

Tecnologias como o Blockchain são denominadas Distributed


Ledger Technologies – DLT, redes peer-to-peer que permitem que
diversos indivíduos mantenham uma cópia idêntica de um mesmo
registro, independentemente de uma autoridade central que verifique,
execute e grave transações (WHAT ARE..., c2022).

Apesar de haver publicidade acerca das transações, o que


inclusive é elemento essencial para viabilizar tanto o Proof of Work
como para dispensar uma instituição financeira intermediária, ainda
existe um nível considerável de privacidade garantida. A relação entre
publicidade e privacidade, no contexto do bitcoin, é possível mediante
o sistema de chaves privadas e chaves públicas. Enquanto a chave
privada seria o equivalente de uma senha para realizar transações, a
chave pública aproximar-se-ia de um endereço na rede bitcoin, para
onde alguém interessado deveria encaminhar a moeda virtual em caso
de interesse de transacionar (como se fosse o e-mail de um usuário).

Tanto a chave privada quanto a pública são compostas por 78


dígitos aleatórios, e a cada chave privada corresponde uma única
chave pública. Ocorre que, apesar de trabalhoso, é possível identificar
e decodificar a chave privada a partir da análise do volume de

378 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022.
CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO

transações referentes a uma chave pública específica. Para conferir


maior segurança a essa construção, passou-se a utilizar endereços
públicos, gerados a partir das chaves públicas, por meio de uma
complexa função matemática, e gerar uma camada extra de segurança
(CHAVE, 2018).

As características principais do bitcoin podem ser resumidas


em três, de acordo com a breve exposição: descentralização,
pseudoanonimidade e globalidade. A descentralização diz respeito
à dispensa de uma autoridade central para possibilitar transações;
a pseudoanonimidade se refere à relativa ausência de identificação
da pessoa que comercializa a moeda virtual, notadamente em
comparação com a utilização de instituições financeiras tradicionais;
por fim, a globalidade atine à possibilidade de realização de transações
independentemente de fronteiras políticas ou geográficas (ASSIS,
2020).

Existem, hoje, diversas criptomoedas, mas o bitcoin responde


pelo maior valor. Em novembro de 2021, o mercado de capitalização de
criptomoedas excedia pela primeira vez 3 trilhões de dólares, dos quais
cerca de 1.3 trilhões correspondiam ao bitcoin (BINDSEIL; PAPSDORF;
SCHAAF, 2022). As demais moedas variam basicamente de acordo
com a aplicação e privacidade para as quais foram direcionadas.

O ether é a moeda da denominada blockchain de segunda


geração, Ethereum. Segunda geração porque, enquanto bitcoin é
considerada de primeira geração, de construção relativamente simples
e com linguagem voltada primariamente para transações, o Ethereum
foi concebido como uma plataforma computadorizada descentralizada
que roda seus smart contracts simultaneamente em inúmeros
computadores pelo mundo. Esses smart contracts, por sua vez, são
aplicativos mais variados possíveis que rodam no ambiente Ethereum

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022. 379
MARCOS VINICIUS LIPIENSKI

e são ativados mediante transações financeiras. Esses aplicativos


são disponibilizados na blockchain para qualquer outro usuário e
não podem ser deletados a não ser mediante instrução específica de
seu criador. As transações no Ethereum são públicas, apesar de não
registrarem o nome real dos usuários, no estilo do bitcoin (WHAT IS...,
2021).

A tecnologia blockchain é dividida em três gerações. A primeira,


ou Blockchain 1.0, refere-se à plataforma tecnológica e à moeda virtual;
a segunda (Blockchain 2.0) diz respeito aos diversos aplicativos
econômicos e financeiros que existem para além de simples transações
financeiras; por último, a Blockchain 3.0 trata de aplicações diversas
que não envolvem transações financeiras, como arte, saúde etc., com
destaque para a governança de smart cities (EFANOV; ROSCHIN, 2018).

A par de moedas virtuais que seguem o padrão público


(pseudoanônimo) do bitcoin, surgiram diversas outras que trazem em si
mecanismos para conferir maior grau de anonimidade, as denominadas
privacy coins.

Dentre as privacy coins, destacam-se monero e zcash, em razão


de seu volume no mercado.

Monero é a moeda virtual cujo padrão é unicamente privado,


em razão da utilização de stealth adresses e ring signatures. Stealth
adresses fazem com que o transmissor de moeda utilize um endereço
de uso único para cada transação que realizar, de modo a dificultar o
rastreamento e a identificação do destinatário e os valores envolvidos
(FRANKENFIELD, 2022). Por outro lado, ring signatures funcionam
de forma que um usuário envie uma mensagem e o destinatário saiba
que a assinatura venha de um grupo, porém não revele a identidade

380 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022.
CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO

do usuário assinante.2 Ainda, ring confidential transactions, ou RingCT,


ajudam a ocultar o valor das transações (SETH, 2021).

A moeda zcash originou-se de uma proposta de alteração do


bitcoin para que houvesse a adoção de um recurso de privacidade
que acabou rejeitado pela comunidade. Por isso, ela possui alguns
elementos comuns com o bitcoin, como a utilização do mecanismo
de consenso Proof of Work, enquanto inova em outros pontos,
como por exemplo no algoritmo Equihash em substituição ao SHA-
256 (ISMAR, 2021). O zcash pode funcionar de forma pública como
também permite a habilitação de uma transação protegida mediante
protocolo com criptografia zero-knowledge proof (especificamente,
zk-SNARK, ou zero-knowledge Succint Non-Nteractive Argument of
Knowledge, uma espécie que pode ser realizada em milissegundos).
Essa tecnologia é interessantíssima, permite convencer um verificador
não somente de que o número existe, mas como também o conhece,
sem revelar qualquer informação sobre esse número (WHAT ARE...,
c2021). Em outras palavras, mais genéricas (porque a tecnologia, ainda
em estágios iniciais de desenvolvimento, engloba possibilidades mais
vastas de aplicação), permite que uma informação seja validada sem
necessidade de expor dados que a demonstrem (ALAMEDA, 2020).

A criptomoeda grin, por sua vez, vale-se do protocolo


Mimblewimble (nome inspirado em uma magia do universo de Harry
Potter cuja finalidade é silenciar a vítima acerca de determinado
assunto). Baseado em criptografia de curva elíptica, que confere uma
camada extra de proteção às operações, o protocolo ainda combina

2
Curiosamente, o artigo citado trata da utilização de ring signaures em aplicativos de
comunicação remota entre médicos e pacientes, de forma a apresentar uma solução
de segurança para os dados médicos do usuário do sistema, o que demonstra um dos
possíveis empregos benéficos da tecnologia de sigilo apresentada. Bem por isso, o
combate aos crimes não pode impedir radicalmente o avanço do estado da arte para
não impedir o progresso tecnológico em prol dos cidadãos.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022. 381
MARCOS VINICIUS LIPIENSKI

outros protocolos criptográficos como Confidential Transactions – CTs,


CoinJoin, Dandelion e Cut-Through (esse último visa acelerar a análise
e confirmação da transação na blockchain).

Confidential Transactions são protocolos de zero knowlegde,


explicados logo acima.

CoinJoin é um processo no qual duas ou mais pessoas combinam


suas transações de forma a dificultar a identificação do seu produto.
Para ser realizado, depende que a transação contenha assinaturas de
diversas pessoas, ou seja, receba inputs de diversas pessoas, e como
resultado, output de mesmo valor, porém com a titularidade ofuscada
em razão do processamento conjunto (PARMAN, 2021).3

O protocolo Dandelion é uma solução pensada para conferir uma


camada extra de proteção às pessoas de uma transação dentro do
método utilizado pelo bitcoin. Nesse método tradicional, quando um
node (computador que está na rede bitcoin) envia uma transação à rede

3
“Suponha que Maria queira transferir 1 BTC do endereço A para o endereço B. Enquanto
Juan deseja transferir 1 BTC do endereço C para o endereço D. Para tornar esta transação
privada, os dois decidem usar CoinJoin para fins de combinação de suas transferências
em uma única transação que tem duas entradas (A e C) e duas saídas (B e D). O que o
CoinJoin faz é pegar as entradas de Maria e João, combiná-las na mesma transação e, a
partir delas, misturar essas moedas para gerar as transações que irão para o seu destino.
Se a operação exigir o reembolso de uma troca, a transação CoinJoin também irá criar
essa transação e a enviará para um endereço de troca sob o controle da pessoa a quem
essas moedas pertencem. A operação de pagamento CoinJoin somente será realizada
quando Maria e João assinarem criptograficamente as suas respectivas transações.
No entanto, o truque que o CoinJoin mostra todo o seu poder na blockchain.
Normalmente, as transações de Maria e João mostravam um padrão claro de envio de
moedas. Ou seja, as moedas vão do seu endereço para o endereço de destino. Porém,
no CoinJoin, podemos ver uma única transação na qual várias entradas são unidas e há
várias saídas.
Isto torna mais difícil para terceiros determinar qual destinatário recebeu qual saída.
Mesmo o destinatário da transação não pode determinar de qual endereço os fundos
recebidos são provenientes, porque os UTXOs não estão diretamente relacionados a
um endereço em si, mas a uma transação de várias entradas, todas elas independentes”
(O QUE..., c2022).

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CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO

bitcoin, ela se propaga para outros nodes conectados a ele, conhecidos


como peers. Essa mensagem é propagada em uma reação em cadeia,
no que é conhecido como protocolo de fofoca (gossip protocol) do
bitcoin. Depois, há a difusão, momento no qual cada um desses nodes
transmite transações com atrasos exponenciais e independentes como
forma de anonimizar aquela primeira transação (CURRAN, 2018).

Ocorre que o protocolo utilizado pelo bitcoin se mostrou


vulnerável à detecção do verdadeiro usuário, daí a pesquisa que
originou o Dandelion. Esse protocolo possui duas fases, denominadas
stem e fluff. Durante a primeira fase, anônima, em vez de anunciar
a transação para todos os peers conectados, transmite-se a
mensagem para um único peer mediante algoritmo aleatório, e assim
sucessivamente. Ainda de forma aleatória, um dos peers inicia a fase
fluff, na qual a transação é comunicada à maioria dos nodes da rede,
de forma que um observador externo somente conseguirá rastreá-la
até um dos nodes que receberam a mensagem original na primeira
fase (HARPER, 2018).

Para encerrar esse capítulo, devemos tratar do advento da


computação quântica, que traz consigo capacidade de cálculo
absurdamente maior. Desde o momento da ordem até a inscrição na
blockchain (no caso do bitcoin), existe uma janela de oportunidade
para que a transação seja manipulada, pode demorar de dez minutos a
um dia. Ocorre que a estimativa de capacidade de processamento para
permitir essa invasão é estimada em cerca de 317 milhões de qubits
(unidade de processamento do computador quântico) para realizar essa
operação em uma hora, e provavelmente seis vezes mais para realizá-
la em dez minutos. Em perspectiva, o maior computador quântico
hoje existente possui 127 qubits, o que indica que não é uma hipótese
provável por um longo tempo. Ainda, há pesquisas em andamento para
garantir a segurança de criptoativos, como aquelas realizadas pelo
US National Institute of Standards and Technology e pela Ethereum
Foundation, o que pode dificultar a quebra da criptografia mesmo para
computadores quânticos.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022. 383
MARCOS VINICIUS LIPIENSKI

3 A REGULAÇÃO DOS CRIPTOATIVOS NA EUROPA

As características das moedas virtuais que ocultam identidades


e transações estimulam o seu emprego no contexto de lavagem de
dinheiro, tráfico de drogas e financiamento do terrorismo. É bem
representativa dessa situação o caso Silk Road, um mercado on-line
criado em 2011, na dark web, cujas transações se davam somente
mediante bitcoin e possuía, em seu auge, cerca de 70% de produtos
relacionados a drogas.

A página Silk Road, cujo nome foi inspirado na denominada


Rota da Seda, utilizada no comércio da seda entre Oriente e Europa
em épocas remotas, operava na dark web e dedicava-se quase
exclusivamente ao comércio de drogas ilícitas, a ponto de receber a
alcunha de Amazon das drogas.

A página foi fechada em 2013 depois de uma operação conjunta


entre o FBI, DEA, IRS e Customs. Foram apreendidos mais de 144 mil
bitcoins, um valor total estimado, à época, de 34 milhões de dólares,
bem como presos diversos usuários, incluído o fundador, que foi
condenado à prisão perpétua sem possibilidade de fiança em 2015
por crimes ligados à distribuição de drogas, inclusive pela internet,
e conspiração para violar leis de narcóticos (FRANKENFIELD, 2022;
MULLIN, 2015).

Em razão da crescente preocupação com a disseminação de


moedas virtuais e seu potencial para acobertar lavagem de dinheiro
e financiamento do terrorismo, em junho de 2014 o Grupo de Ação
Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do
Terrorismo – Gafi/FATF emitiu o seu primeiro informe a respeito de
moedas virtuais, no qual constaram definições terminológicas e uma
breve análise de riscos potenciais da utilização da tecnologia, como

384 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022.
CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO

a pseudoanonimidade e o alcance global, além da distribuição de


estruturas de operação em diversos países lenientes no combate à
lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo (FINANCIAL
ACTION TASK FORCE, 2014).

Em junho de 2015, o Gafi/FATF publicou o documento intitulado,


em tradução livre, de Diretrizes para uma abordagem baseada em risco
para moedas virtuais, com foco em casas de câmbio (exchangers) de
moedas virtuais conversíveis, visto que são um ponto de interseção
entre elas e moeda fiat (moeda em curso legal nos países) (FINANCIAL
ACTION TASK FORCE, 2015). Nele, constam diversas recomendações,
tais como a obrigação de casas de câmbio de moedas virtuais de
atuarem com a devida diligência ao realizar conversões entre moeda
fiat e virtual mediante a identificação dos usuários e pesquisa sobre
seu histórico de transações e a comunicação de transações suspeitas
de vínculo com lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo.

Em junho de 2019, novo documento foi editado. Concebido


como aprimoramento das diretrizes de 2015, ele buscou se atualizar
diante de novas tecnologias e aprimorar explicações e exemplos
de regulamentação, bem como indicar eventuais dificuldades que
os países podem enfrentar na tentativa de regulação da matéria
(FINANCIAL ACTION TASK FORCE, 2019). Houve diversas propostas,
dentre as quais destacam-se a obrigação de provedores de serviços de
bens virtuais de se registrarem perante autoridades nacionais de sua
jurisdição de criação e fiscalização por um órgão estatal que goze de
prerrogativas de sanção e que coopere internacionalmente com outros
países.

Essa diretriz foi atualizada em 2021, após dois relatórios


anuais de acompanhamento, para clarificar, de forma abrangente,
as definições de ativos virtuais e provedores de serviço de ativos
virtuais; exemplificar como os padrões Gafi podem ser aplicados

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022. 385
MARCOS VINICIUS LIPIENSKI

a stablecoins (moedas virtuais com valor atrelado a alguma moeda


fiat); prover direcionamento para riscos e ferramentas para que países
possam tratar adequadamente as transações peer-to-peer, que não
passam por provedores de serviço; proporcionar guia atualizado para
licenciamento e registro de provedores de serviço de ativos virtuais;
possibilitar maior guia para implementação da regra de viagem
(mecanismos para prevenção de lavagem de dinheiro correlatos
à transferência internacional de valores, notadamente registro de
informações completas sobre as pessoas e o objeto da transação, que
devem ser aplicados inclusive nas transações nacionais, caso ocorram
mediante ativos virtuais); incluir princípios de compartilhamento de
informação e cooperação entre entidades de supervisão de provedores
de serviço de moedas virtuais. Apresenta, ainda, significativos relatos
de implementação de regulação por diversos países (FINANCIAL
ACTION TASK FORCE, 2021).

Na linha dos trabalhos do Gafi, o parlamento da União


Europeia editou a Diretiva n. 849/2015/EU (alterada pela Diretiva
n. 843/2018/UE), em junho de 2015, relativa à prevenção da utilização
do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais
ou de financiamento do terrorismo. Em sua exposição de motivos,
aborda expressamente a necessidade de sujeição de ativos virtuais
às obrigações de devida diligência quanto ao cliente, guarda e
notificação de operações suspeitas aplicáveis às instituições financeiras
relacionadas à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. Em
seu corpo adota, entre outras medidas, a avaliação baseada em risco
idealizada pelo Gafi.

Após ataques terroristas que atingiram o norte da Europa em 2015,


o Conselho da União Europeia e o Conselho Europeu solicitaram reforços
na normativa relacionada à lavagem de dinheiro e ao financiamento
do terrorismo para alcançar moedas virtuais, principalmente por meio

386 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022.
CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO

de exchanges (INGRAO, 2019). A concretização, na União Europeia,


de regulamentação de ativos virtuais nesse contexto de prevenção à
lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo veio na Diretiva
n. 843/2018/UE (UNIÃO EUROPEIA, 2018), de junho de 2018, que
efetivamente ampliou a Diretiva n. 849/2015/UE (UNIÃO EUROPEIA,
2015) para alcançar também exchanges e serviços de carteiras virtuais
(wallets). Ela também definiu a moeda virtual como representação
digital de valor não emitida, nem garantida por um banco central nem
por uma autoridade pública, não necessariamente associada a uma
moeda estabelecida legalmente, que não possui a natureza jurídica de
moeda ou dinheiro, porém aceita por pessoas físicas ou jurídicas como
meio de câmbio e que se pode transferir, armazenar ou negociar por
meios eletrônicos.

Em fevereiro de 2022, o Banco Central Europeu atendeu a


pedidos do Parlamento e do Conselho Europeu para se manifestar
a respeito de uma proposta de regulação na prevenção do uso do
sistema financeiro para lavagem de dinheiro e financiamento do
terrorismo e uma proposta para uma diretriz acerca de mecanismos
a serem adotados por estados-membros para a prevenção do uso
do sistema financeiro para lavagem de dinheiro e financiamento do
terrorismo. O documento publicado, CON/2022/5, elogia a mudança
de terminologia adotada pelas diretrizes 2015 e 2018 da União
Europeia para substituir o termo moedas virtuais para criptoativos,
numa aproximação da definição do Gafi (uma representação digital
de valor que pode ser digitalmente comercializada ou transferida, e
pode ser usada para pagamento ou para investimento. Criptoativos
não incluem representações digitais de moedas fiat ou outros ativos
financeiros que são tratados em outras recomendações do Gafi)
(EUROPEAN CENTRAL BANK, 2022).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022. 387
MARCOS VINICIUS LIPIENSKI

4 EXEMPLO CONCRETO: A REGULAÇÃO NA ITÁLIA

A Itália introduziu, em seu ordenamento, legislação para atender


às diretrizes da União Europeia: primeiro, o Decreto Legislativo n. 90,
de maio de 2017, em atenção à Diretriz n. 849/2015/UE, e depois o
Decreto Legislativo n. 125, de outubro de 2019, que corresponde a
atualizações acerca da Diretriz n. 843/2018/UE.

Tais decretos legislativos previram a submissão às normas de


prevenção de lavagem de dinheiro aplicáveis a instituições financeiras,
também de prestadores de serviços relativos à utilização de moedas
virtuais e de prestadores de serviços de carteiras digitais (wallets).

Os prestadores de serviços relativos à utilização de moedas


virtuais foram primeiro conceituados, no Decreto Legislativo n. 90/2017
(ITÁLIA, 2017), como toda pessoa física ou jurídica que fornece a
terceiros, a título profissional, serviços funcionais para utilização, troca,
conservação de valores virtuais e sua conversão em moeda de curso
legal. Depois, alterou-se a definição no Decreto Legislativo n. 125/2019
(ITÁLIA, 2019) para toda pessoa física ou jurídica que fornece, ainda
que on-line, serviços funcionais para utilização, troca, conservação
de valores virtuais e a sua conversão em moeda de curso legal em
representações digitais de valor, inclusive aqueles conversíveis em
outros valores virtuais, bem como de serviço de emissão, oferta,
transferência e compensação e qualquer outro serviço funcional à
aquisição, negociação ou intermediação na troca dessas mesmas
moedas.

Trata-se de atualização legislativa para incluir expressamente


o exercício dessa atividade on-line, bem como incluir também a
conversão de uma moeda virtual em outra (além de conversão de

388 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022.
CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO

moeda virtual em moeda fiat) e, por fim, alcançar qualquer serviço


acerca de utilização de valores virtuais (de acordo com a diretriz de
2019 do Gafi). Dessa forma, tais pessoas passaram a ser obrigadas a se
licenciarem perante uma autoridade administrativa cuja omissão implica
uma sanção administrativa que varia entre 2.065 euros e 10.329 euros.
São também obrigados a verificar adequadamente a identidade de
seus clientes (know your client), bem como a comunicar às autoridades
qualquer transação no valor de 15.000 euros ou mais. Possuem, ainda,
obrigação de guarda de documentos, datas e informações úteis a
prevenir lavagem de dinheiro, bem como de fornecer imediatamente
tais documentos quando solicitado (SICIGNANO, 2020).

Por sua vez, os prestadores de serviços de carteiras virtuais foram


definidos no Decreto Legislativo n. 125/2019 (ITÁLIA, 2019) como toda
pessoa física ou jurídica que fornece, a título profissional, ainda que
on-line, serviços de salvaguarda de chaves eletrônicas privadas em
nome dos clientes para deter, memorizar ou transferir moedas virtuais.
A tais pessoas se aplicam as mesmas obrigações que alcançam os
prestadores de serviços de utilização de moedas virtuais (SICIGNANO,
2020).

Essas pessoas podem sofrer responsabilidade penal e


administrativa em razão da omissão em seus deveres contra lavagem
de dinheiro. Além de eventualmente poderem responder, em coautoria,
pela própria lavagem de dinheiro, há tipos penais que incidem sobre
a utilização de dados falsos na atividade, seja dos clientes, seja das
transações realizadas; sobre a violação do dever de comunicação de
operações suspeitas; e até os clientes podem incidir em crime por
fornecer informações de identidade falsa. Esses tipos penais aplicáveis

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022. 389
MARCOS VINICIUS LIPIENSKI

à atividade econômica de serviços e guarda de moedas virtuais


possuem a contraparte administrativa (SICIGNANO, 2020).4

5 A REGULAÇÃO DOS CRIPTOATIVOS NO BRASIL

O Brasil ainda não possui um posicionamento estatal homogêneo


acerca das moedas virtuais. O primeiro documento oficial que abordou
expressamente as criptomoedas foi o Imposto sobre a Renda da
Pessoa Física – Perguntas e Respostas, de 2016, publicado pela Receita
Federal, no qual ela afirma que, muito embora as moedas virtuais não
possam ser classificadas como moeda, em função da Lei. n. 9.069/1995
(BRASIL, 1995), são equiparadas a ativo financeiro, e por isso devem
ser declaradas como outros bens, muito embora não haja regra para
a conversão de valores para fins tributários, ante a inexistência de
cotação oficial.

Em outubro de 2017, a Comissão de Valores Imobiliários – CVM


emitiu uma nota a respeito das Initial Coin Offerings – ICOs, na qual
afirma que, a depender das características da moeda virtual, pode
representar valor mobiliário sujeito à sua regulação nos termos da Lei
n. 6.385/1976 (BRASIL, 1976). Em janeiro de 2018, a CVM expediu o
Ofício Circular n. 1 que destaca a impossibilidade de qualificação de

4
Para uma visão mais completa a respeito da implementação de medidas de prevenção
à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo por parte de diversos países,
recomenda-se a do segundo acompanhamento anual da padronização de ativos
virtuais e provedores de serviço de ativos virtuais, realizada em 2021. Lá, existe um
diagnóstico detalhado sobre o número de países que deram início à implementação
das medidas sugeridas pelo organismo, notadamente a Recomendação n. 15, que
trata da fiscalização e instituição de obrigações de prevenção para aquelas atividades
econômicas. Reportou-se que 58 jurisdições haviam a legislação necessária para
implementar a Recomendação n. 15, com 35 delas com regime operacional. Para uma
abordagem panorâmica das medidas de fato tomadas por diversos países sobre ativos
virtuais, que ultrapassa o objetivo desse trabalho, o leitor interessado deve procurar
a diretriz Gafi atualizada sobre abordagem baseada em risco de ativos virtuais e de
provedores de serviços de ativos virtuais, também de 2021, na qual constam relatadas
tais experiências.

390 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022.
CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO

moedas virtuais como ativos financeiros, como forma de vedar a sua


aquisição direta por fundos de investimentos regulados pelo art. 3º da
Instrução CVM n. 555/2014 (TEIXEIRA; BOCHI, 2019).

A Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem


de Dinheiro – ENCCLA, em 2017, promoveu a Ação n. 8: Elaborar
diagnóstico sobre a atual conjuntura da utilização de moedas virtuais e
meios de pagamento eletrônico. Ela foi coordenada pelo Bacen
e teve como colaboradores a Agência Brasileira de Inteligência, a
Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal, a Associação
Brasileira de Magistrados, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica
Federal, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, a
Controladoria-Geral da União, o Conselho Nacional do Ministério
Público, o Coaf, a Comissão de Valores Mobiliários, a Federação
Brasileira de Bancos – Febraban, o Gabinete de Segurança Institucional
da Presidência da República, o Ministério Público Federal, o Ministério
Público do Estado de São Paulo, o Ministério das Relações Exteriores, a
Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a Secretaria
da Receita Federal, a Superintendência de Seguros Privados, a
Secretaria de Gestão do Ministério de Planejamento e o Tribunal de
Contas da União, e demonstra a preocupação conjunta sobre o tema
(BOTTINO; TELLES, 2018).

No âmbito do processo legislativo, o Projeto de Lei n. 2.303/2015


(renumerado para PL n. 4401/2021) (BRASIL, 2015), do deputado
Áureo Lídio Moreira Ribeiro, dispõe sobre a inclusão das moedas
virtuais e dos programas de milhagem aérea na definição de arranjos de
pagamento previstos na Lei n. 12.865/2013 (BRASIL, 2013). Ocorre que,
como bem pontuado em outra produção acadêmica, o enquadramento
é simplesmente inadequado, uma vez que arranjos de pagamento
trabalham com intermediários, figura inexistente em negociações de
criptomoeda (BOTTINO; TELLES, 2018).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022. 391
MARCOS VINICIUS LIPIENSKI

Em 2019, dois projetos foram protocolizados no Senado,


Projeto de Lei n. 3.825/2019 (BRASIL, 2019a), do Senador Flávio
Arns, e PL n. 3.949 (BRASIL, 2019b), de Styvenson Valentim. Seguiu-
se a apresentação do PL n. 4.207/2020 (BRASIL, 2020), de Soraya
Thronicke. No dia 22 de fevereiro de 2022, a Comissão de Assuntos
Econômicos – CAE do Senado aprovou um substitutivo do Senador
Irajá a essas três matérias, que recomenda a aprovação do PL
n. 3.825/2019 e prejudicados os outros dois.

Em justificativa, o Senador Flávio Arns se reporta à necessidade


de regulamentação do mercado de criptoativos para evitar a sua
exploração criminosa e atender à Quinta Diretriz de Prevenção à
Lavagem de Dinheiro da União Europeia quanto à regulamentação de
exchanges.

O PL n. 3.825/2019 conceitua criptoativo como:

[...] a representação digital de valor denominada em


sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser
expresso em moeda soberana local ou estrangeira,
transacionado eletronicamente com a utilização de
criptografia e/ou de tecnologia de registro distribuído,
que pode ser utilizado como forma de investimento,
instrumento de transferência de valores ou acesso a
bens ou serviços, e que não constitui moeda de curso
legal. (BRASIL, 2019a).

Uma exchange, por outro lado, é definida como a pessoa jurídica


que oferece serviços referentes a operações realizadas “criptoativos
em plataforma eletrônica, inclusive intermediação, negociação ou
custódia” (BRASIL, 2019b).

392 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022.
CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO

A regulação do mercado, bem como do funcionamento de


exchanges, é atribuída ao Banco Central do Brasil nesse projeto, a
quem caberá, inclusive, fomentar a autorregulação do mercado de
criptoativos. Independentemente disso, há diretrizes básicas para o
licenciamento de uma exchange, bem como a previsão de deveres
básicos de guarda de informações e diligência adequada acerca da
identidade de seus clientes, além de obrigá-las aos deveres da Lei
n. 9.613/1998 (dispõe sobre crimes de lavagem e cria Coaf), da Lei
n. 13.506/2017 (dispõe sobre processo administrativo sancionador
na esfera de atuação do Bacen e CVM), bem como submete a oferta
pública de criptoativos que gerem direito de participação, parceria ou
remuneração à CVM (o que mantém o entendimento da CVM segundo
o qual, nessas hipóteses, o criptoativo se assemelha a título mobiliário).
Por fim, consta a inclusão, na Lei n. 7.429/1986 (dispõe sobre crimes
contra o sistema financeiro nacional), de tipo penal específico para
gestão fraudulenta de exchange de criptoativos, com a conhecida figura
da gestão temerária e com pena qualificada para gestão fraudulenta
mediante pirâmide financeira (BRASIL, 2019b).

Se, por um lado, o projeto de lei tem o mérito de estabelecer uma


autoridade estatal para se encarregar do registro oficial e licenciamento
da atividade de exchanges, de outro, omitiu-se a respeito de wallets, que
possuem igualmente informações a respeito de titulares de criptoativos,
transações e valores (o que inclusive levou ao seu tratamento idêntico
às exchanges na imensa maioria das iniciativas regulatórias mundiais).

Pode-se, então, seguir dois raciocínios. Primeiro, é possível


argumentar que o legislador brasileiro incluiu as wallets no conceito
de exchanges ao se referir à custódia de criptoativos, o que, se não
encontra paralelo na realidade, apresenta utilidade para a regulação.
Outra interpretação possível é a de que, realmente, a lei é omissa
quanto às wallets.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022. 393
MARCOS VINICIUS LIPIENSKI

Não se pode, entretanto, afirmar que as wallets estão indenes


de deveres e de escrutínio estatal em se tratando de monitoramento e
prevenção de atividades ligadas à lavagem de dinheiro, se realmente
prevalecer a interpretação de que a lei é omissa.

O art. 9º, parágrafo único, inciso IV, da Lei n. 9.613/1998 prevê


que se sujeitam às obrigações de devida diligência quanto a clientes,
guarda de informações sobre transações e comunicação de operações
financeiras suspeitas “as administradoras ou empresas que se utilizem
de cartão ou qualquer outro meio eletrônico, magnético ou equivalente,
que permita a transferência de fundos” (BRASIL, 1998). E é justamente
essa a função das carteiras de moedas virtuais: oferecer uma interface
amigável para controle e transações. Percebe-se, também, que a lei
disciplina, nessa hipótese, a transferência de fundos, e não de dinheiro
ou título mobiliário, o que se enquadra na definição corrente no Brasil
e também naquela prevista no Projeto de Lei n. 3.825/2019 (BRASIL,
2019a).

É interessante apontar que a Lei n. 9.613/1998 (BRASIL, 1998),


ao tratar das obrigações de devida diligência quanto à identificação
de clientes, guarda de informações acerca de transações realizadas,
prevê que tais atividades empresariais devam ser cadastradas no órgão
regulador ou fiscalizador ou, na sua falta, no Coaf; a mesma coisa para
os dados coletados de operações suspeitas. Significa então que, na
ausência de lei que crie autoridade expressamente responsável por
centralizar as diversas operações relativas à regulação de exchanges
e wallets, existe a fixação de um órgão para realizar tais tarefas, e o
mesmo ocorrerá se for aprovada lei que trate apenas de exchanges.

A existência de tal recurso dá razão parcial ao argumento de que


os mecanismos atualmente existentes são suficientes para combater
uma ameaça significativa ao sistema financeiro nacional proveniente

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CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO

de criptomoedas, que não seriam uma tecnologia disruptiva a ponto de


exigir mudanças na forma como se dá o combate à lavagem de dinheiro,
visto que o processo seria semelhante àquele que hodiernamente
ocorre com moedas fiat (HERZOG; HOCH, 2021).

A nosso juízo, então, a atividade fiscalizatória brasileira sobre


empresas de exploração de criptomoedas não corre o risco de sofrer o
revés ocorrido na Alemanha. A Autoridade Federal Alemã de Supervisão
Financeira – BaFin classificava continuamente as plataformas de
bitcoin como instrumentos financeiros na forma de unidades de
contagem, de acordo com a Lei do Sistema de Crédito, para obrigá-las
e demais prestadoras de serviço à autorização, inclusive sob ameaça
de sanção criminal. Em setembro de 2018, a corte judiciária alemã
responsável (Kammergericht) afastou tal entendimento, o que causou
um vácuo legal sobre a matéria que somente foi preenchido mediante
a implementação nacional da Diretiva 2018/843/EU (HERZOG; HOCH,
2021).

6 CONCLUSÃO

As novas tecnologias que possibilitam o desenvolvimento das


moedas virtuais são disruptivas para o desenvolvimento tecnológico
e aplicáveis nos mais diversos segmentos possíveis. No entanto, o
potencial das moedas virtuais para lavagem de dinheiro, financiamento
do terrorismo e tráfico de drogas é ainda pouco catalogado pelas
autoridades, de modo que não pode ser subestimado.

A simples aquisição ou comercialização de moedas virtuais não


configura, em si, conduta reprovável, e nisso reside o desafio de sua
regulação: estabelecer um ambiente que permita o desenvolvimento
da tecnologia sem deixar de coibir empreitadas criminosas.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022. 395
MARCOS VINICIUS LIPIENSKI

Sob esse enfoque, os primeiros passos representados pelas


diretrizes do Gafi e União Europeia buscam o equilíbrio mediante
uma abordagem baseada na avaliação do risco de cada atividade e
parecem adequados. E essa adequação se sustenta mesmo perante
a crítica da parcial imprestabilidade de se regular atividades de
prestadores de serviço, haja vista que é de amplo conhecimento que
as criptomoedas dispensam intermediários para sua circulação e há
economias que as aceitam como moeda, o que dificulta até mesmo o
rastreio na transposição para o mundo real por meio de aquisição de
bens e serviços.

A regulamentação estatal pode, ademais, contribuir para


iniciativas de autorregulação, registradas em algumas dessas moedas,
que buscam se afastar da pecha de instrumentos da criminalidade
organizada.

O Brasil, embora com certo atraso, busca implementar


expressamente as diretrizes do Gafi, notadamente quanto à
necessidade de licenciamento para atividades de prestação de
serviços relacionados a moedas virtuais. O projeto de lei mais recente
e que caminha para aprovação possui lacunas, é verdade, mas elas
são supridas pela legislação em vigor quanto à lavagem de dinheiro,
como demonstrado.

Por fim, as experiências internacionais, aliadas ao modo de


funcionamento das criptomoedas, clamam pela regulamentação
semelhante e amplo compartilhamento de informações entre países, a
fim de mostrar alguma eficácia à altura do desafio.

396 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 381-410, jan./jul. 2022.
CRIPTOATIVOS: CRIPTOGRAFIA DO ANONIMATO E TENTATIVAS DE REGULAÇÃO

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O RECONHECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES


CRIMINOSAS COMO ESTRUTURA COMPLEXA
E ÚNICA DA SOCIEDADE – COMPARATIVO
À LEGISLAÇÃO ITALIANA QUE TIPIFICA
NOMINALMENTE O PERTENCIMENTO A UMA
ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (ART. 416-BIS)
THE RECOGNITION OF CRIMINAL ORGANIZATIONS
AS A COMPLEX AND UNIQUE STRUCTURE OF
SOCIETY – COMPARATIVE TO THE ITALIAN LEGISLATION
THAT TYPIFIES THE ASSOCIATION TO A CRIMINAL
ORGANIZATION (ART. 416-BIS)

MARIANA PARMEZAN ANNIBAL


Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo. Juíza de direito
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Experiência na área de
Defesa, com ênfase em Direito Penal e Criminologia.
https://orcid.org/0000-0003-0913-3953

RESUMO

No presente texto, discute-se como as instituições legislativa e judiciária


brasileiras poderiam utilizar a experiência das instituições italianas
no combate às organizações criminosas. É preciso reconhecer que,
enquanto o combate às associações criminosas de fato organizadas
quando muito remontam 15 a 20 anos no Brasil (a primeira lei a tratar
do tema de forma rudimentar data de 1995), esse fenômeno se dá
na Itália há pelo menos um século, fazendo com que tal experiência
traga casos de sucesso e fracasso que podem ser utilizados pelas
autoridades brasileiras. Analisando a formação das organizações
criminosas nos dois países e as respectivas legislações, percebe-se que
a sociedade brasileira, leia-se tanto as autoridades públicas quanto

ReJuB
404 - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 411-440, jan./jul. 2022.
O RECONHECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS COMO ESTRUTURA
COMPLEXA E ÚNICA DA SOCIEDADE – COMPARATIVO À LEGISLAÇÃO ITALIANA QUE
TIPIFICA NOMINALMENTE O PERTENCIMENTO A UMA ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (ART. 416-BIS)

a mídia, insiste em negar a existência de fato de organizações como


o Primeiro Comando da Capital, o Comando Vermelho, a Família do
Norte, as milícias, entre outros, tratando todas elas como “facções
criminosas que dominam o Estado”, o que sem dúvida não colabora
para o seu combate. Apenas com uma leitura mais aprofundada das
características mais específicas de cada uma dessas organizações,
nomeando-as, reconhecendo suas forças e fragilidades, será
possível realizar um combate específico e sair do ciclo vicioso de
encarceramento de pequenos traficantes que não combate nem ao
menos desestabiliza tais associações.

Palavras-chave: organizações criminosas; origem; características;


Primeiro Comando da Capital; máfia; legislação brasileira; legislação
italiana; método de combate; comparativo.

ABSTRACT

This text discusses how Brazilian legislative and judicial institutions


could use the experience of Italian institutions to fight criminal
organizations. It is necessary to recognize that, while the fight against
organized criminal associations at most dates back 15 to 20 years in
Brazil (the first law to address the issue in a rudimentary way dates
from 1995), this phenomenon has been taking place in Italy for at least
a century, so this long experience can bring cases of success and failure
that can be used by Brazilian authorities. Analyzing the formation of
criminal organizations in both countries and the respective legislation,
it is clear that Brazilian society – both the public authorities and the
media – insist on denying the existence of organizations such as the
Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, milícias, among
others, treating all of them as “criminal organizations that dominate
the State”, which undoubtedly does not contribute to the combat
of this kind of criminality. Only with a deeper reading of the more
specific characteristics of each of these organizations, naming them,

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 411-440, jan./jul. 2022. 405
MARIANA PARMEZAN ANNIBAL

recognizing their strengths and weaknesses, will it be possible to carry


out a specific fight and get out of the vicious cycle of incarceration of
small traffickers that do not even destabilize such associations.

Keywords: criminal organizations; origin; characteristics; Primeiro


Comando da Capital; mafia; Brazilian legislation; Italian legislation;
method of combat; comparative.

Recebido: 11-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 Origem histórica da máfia e do Primeiro Comando


da Capital. 3 Semelhanças entre tais organizações criminosas.
4 Conclusão – análise das condutas tomadas pela Itália e sua possível
aplicação no Brasil. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, a sociedade brasileira se deparou com


o nascimento, o crescimento e o desenvolvimento da criminalidade
de fato organizada, não sendo possível abstrair a sua existência,
nomenclatura, musculatura e dominância, como pretendem alguns. É
necessária a ampliação dos estudos acerca da origem de tais estruturas
e a efetividade das condutas tomadas pelos entes públicos com a
finalidade de combater o crime organizado e, portanto, o futuro de tais
organizações, o que sem dúvida esbarra na experiência internacional,
especialmente a italiana, com o tema.

406 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 411-440, jan./jul. 2022.
O RECONHECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS COMO ESTRUTURA
COMPLEXA E ÚNICA DA SOCIEDADE – COMPARATIVO À LEGISLAÇÃO ITALIANA QUE
TIPIFICA NOMINALMENTE O PERTENCIMENTO A UMA ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (ART. 416-BIS)

Chama a atenção nesse tema e, particularmente, na sociedade


paulistana, o quase que monopólio do crime ou pelo menos o seu
controle na sociedade paulista pela organização autointitulada Primeiro
Comando da Capital – PCC.

Não se desconhece a existência de outras organizações criminosas


no Brasil, que é um país de dimensões continentais, justificando as
disparidades no modo como estas nasceram e se desenvolveram, mas
esse não será o enfoque deste estudo – que visa analisar como o PCC
encontrou espaço e oportunidade para exercer poder nas periferias do
Estado do São Paulo e como esse poder está além da influência para
a prática de atividades ilícitas e em quais medidas se aproxima ou se
afasta da estrutura organizacional da máfia italiana.

Fixado o propósito, é preciso regredir conceitualmente para


progredir comparativamente.

Para Zaffaroni (1996, p. 46), a organização criminosa não pode


ser confundida com uma associação criminosa, que se caracteriza
pela pluralidade de agentes que a legislação busca responsabilizar
penalmente líderes e condutores. O conceito de crime organizado para
o autor nem mesmo pode ser entendido no mundo pré-capitalista,
pois necessariamente abarca duas características primárias: estrutura
empresarial – que é pressuposto desse sistema econômico – e mercado
ilícito.

O mesmo autor cita em seu trabalho ainda que, em 1976, nos


Estados Unidos, um comitê concluiu sobre a conceituação de crime
organizado “[...] não existir uma definição suficientemente abrangente,
que satisfaça as necessidades dos indivíduos e grupos muito diferentes
que possam usá-la como meio para desenvolver um esforço controlador
do crime organizado” (UNITED STATES, 1976 apud ZAFFARONI, 1996,

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 411-440, jan./jul. 2022. 407
MARIANA PARMEZAN ANNIBAL

p. 47), discorrendo sobre a incapacidade da doutrina e jurisprudência


de chegarem a um consenso e a um conceito claro sobre o tema, o que
se torna uma problemática ainda mais profunda quando se nega as
características unas de cada uma dessas estruturas, tratando-as como
um fenômeno único e com um olhar simplista.

Ou seja, dependendo do modelo de organização criminosa


analisado, ele apresentará elementos distintos e em comum, sendo que
a não consideração de tais fatores com a adoção de uma definição
única sem especificidades sem dúvida levará a uma leitura equivocada
e pouco eficaz do fenômeno (BORGES, 2002, p. 16).

Assim, se há mais de 45 anos a doutrina tinha dificuldade de


delinear os contornos das organizações criminosas, na sociedade atual,
muito mais complexo é tal tema, e deve ser analisado com cautela,
conforme se demonstrará.

Historicamente, estamos tratando de um tema relativamente


recente, que envolve todo o deslinde social pós-capitalista e suas
bases sendo que apenas uma compreensão macropolítica, econômica
e de segurança será capaz de criar elementos mais claros e reais para
a formação de uma política criminal.

Fica claro, assim, que o ângulo ainda hoje defendido por certa
ala política, principalmente de que estaríamos lidando com bárbaros
a serem combatidos apenas com violência, não encontra guarida na
realidade, o que é possível observar não só nas ruas paulistas como
também se pode depreender dos anos de lida da segurança pública
frente à máfia na Itália.

408 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 411-440, jan./jul. 2022.
O RECONHECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS COMO ESTRUTURA
COMPLEXA E ÚNICA DA SOCIEDADE – COMPARATIVO À LEGISLAÇÃO ITALIANA QUE
TIPIFICA NOMINALMENTE O PERTENCIMENTO A UMA ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (ART. 416-BIS)

Mais do que isso, da mesma forma que na realidade italiana,


percebe-se no Brasil que a relação máfia-política, milícia-política, PCC-
política nunca foi de fato revelada à população – do ponto de vista
tanto político como de sua formação institucional – de maneira aberta
e clara pelos meios de comunicação em massa e pelas instituições
responsáveis pela segurança pública, tratando-se de opções e
conveniência da opinião daqueles que transmitem a informação, o que
sem dúvida não só prejudica seu combate como cria uma aura não
desejada em cima do tema (DINO, 2010, p. 121).

Antes, porém, é preciso delinear alguns limites e características


das organizações criminosas, a fim de adentrar no tema de sua
classificação e identificação, pontuando o papel da mídia, da política
e das instituições no seu combate e até sua influência no crescimento
dessas organizações.

Parece evidente que a origem do PCC se diverge em grande monta


da origem da máfia italiana, mas são necessários uma abordagem
e um estudo específico desta estrutura, uma vez que as teorias do
crime organizado conhecidas e aceitas pelos estudiosos e pelos entes
de segurança não são suficientes para explicar como funciona essa
organização (FELTRAN, 2018, p. 20).

Por outro lado, da mesma forma que a criminologia enfrenta


dificuldades para a determinação do conceito de organização criminosa,
falta mais ainda aos governos elementos críticos de entendimento
dessas estruturas ao pensarem em políticas públicas que gerem o
efetivo combate à criminalidade, ao que nos parece, levando a medidas
populistas que, ao final, geram apenas o encarceramento em massa da
população mais vulnerável e alimentam o crescimento da facção.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 411-440, jan./jul. 2022. 409
MARIANA PARMEZAN ANNIBAL

Diferentemente do Brasil, que teve a primeira tentativa de


regulamentar o combate à criminalidade organizada por meio da
Lei n. 9.034, de 3 de maio de 1995, a Itália vem lidando com um tipo
de organização criminosa há pelo menos 200 anos, tendo obtido
sucessos e fracassos com medidas públicas de combate à máfia que,
sem dúvida, podem auxiliar a nossa compreensão do fenômeno por
meio de paralelo de similaridades e diferenças que ajudem a entender
como lidar ou não com a criminalidade organizada.

O grande desafio, portanto, é conseguir ter um olhar amplo para


o fenômeno da organização criminosa, entendendo que se trata de
uma estrutura criminal complexa, recheada de nuances e atividades
lícitas e ilícitas, e não condutas isoladas e individuais.

Apenas com tal leitura, os Poderes Executivo e Judiciário como


um todo poderão entender se, naquela região ou comunidade, há
uma estrutura organizada de fato com planos, pactos e finalidades
ou trata-se de atividades criminosas não diretamente conectadas e
compartilhadas.

Compreender essa arquitetura básica da organização criminosa


é de fundamental importância para a determinação das diretrizes
de política de segurança pública e inovação legislativa, sob pena
de permanecermos em um ciclo vicioso de encarceramento que,
inevitavelmente, como podemos perceber dos últimos 15 anos, leva à
expansão desenfreada dos integrantes ou simpatizantes das facções
criminosas.

410 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 411-440, jan./jul. 2022.
O RECONHECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS COMO ESTRUTURA
COMPLEXA E ÚNICA DA SOCIEDADE – COMPARATIVO À LEGISLAÇÃO ITALIANA QUE
TIPIFICA NOMINALMENTE O PERTENCIMENTO A UMA ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (ART. 416-BIS)

2 ORIGEM HISTÓRICA DA MÁFIA E DO PRIMEIRO COMANDO


DA CAPITAL

Dito isto, entende-se crucial desenvolver um paralelo histórico,


organizacional e de enfrentamento entre a máfia e o PCC, a fim de
perceber a efetividade das medidas que vêm sendo tomadas pelos
governos e pela sociedade, e o que é ou não possível de aproveitar e
aprender com tais experiências.

Na vertente histórica, sabe-se que a máfia italiana não nasceu,


mas ganhou destaque e poder em 1893 com o reconhecimento da Cosa
Nostra como organização criminosa chamada de máfia, tendo surgido
como alternativa ao poder estatal diante das condições geográficas,
políticas, sociais e econômicas da região da Sicília.

Ocorre que, com o passar do tempo, a criação de um Estado mais


forte e a integração da região da Sicília com as demais regiões italianas
não enfraqueceram a existência dos mafiosos como poder paraestatal,
isso porque eles se associaram aos Manutengolos (CHRISTINO, 2016,
p. 20-21), elite econômica da época, que permitia o uso de suas terras
em troca de proteção – ou seja, logo de início, a criminalidade estava
diretamente ligada a uma elite corrupta que se beneficiava de seus
serviços.

Com a unificação do Estado Italiano, a máfia sai da ilha da Sicília


e migra ao norte, dando-se conta da oportunidade de se infiltrar nos
meandros da política e do governo para obter recursos mais amplos
e de maneira mais rápida, andando assim sempre em paralelo com
a elite social preestabelecida, fazendo com que os Manutengolos
e os criminosos se fundissem em uma figura única em diversas
oportunidades.

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Ainda, com o fim do fascismo, período governamental de grande


dificuldade para os grupos mafiosos, a máfia ofereceu apoio às Forças
Aliadas e, com isso, foram beneficiadas com diversos cargos políticos
ao fim da guerra, tornando de vez a exploração de atividades públicas
como principal fonte de renda da organização criminosa.

Outrossim, além de sua origem em uma região específica da


Itália, a máfia está estritamente vinculada a laços sanguíneos, ou
seja, a base intrínseca da organização é essencialmente familiar,
como é o caso da Ndrangheta, motivo pelo qual seus integrantes são
amplamente conhecidos dentro das comunidades – e tendo prestígio
maior dependendo do cargo que ocupam na organização.

Ou seja, a máfia é uma organização com fortes raízes locais,


na qual a estrutura piramidal de cima para baixo resiste, tratando-se
de uma estrutura organizacional complexa que, partindo da célula
básica da família, desenvolve-se por meio de agregações territoriais
crescentes até abarcar porções significativas do território siciliano.

Desse modo, na máfia, há uma diferenciação entre aqueles que


são pertencentes à organização por laços familiares e os que não
têm vínculo sanguíneo; aqueles que não pertencem à organização,
chamados de contrasto, e aqueles que não pertencem, mas prestam
serviços à organização, os contrasto onorato; e ainda aqueles que são
batizados e se tornam soldado, podendo subir na estrutura piramidal
pré-determinada.

Analisando, assim, essa estrutura, os estudiosos concluíram que


a sua solidez constitui o motivo da resistência da organização mesmo
perante os golpes fundamentais e muito pesados infligidos pelo Estado
aos clãs mafiosos. Paralelamente, tem desempenhado uma função de

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O RECONHECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS COMO ESTRUTURA
COMPLEXA E ÚNICA DA SOCIEDADE – COMPARATIVO À LEGISLAÇÃO ITALIANA QUE
TIPIFICA NOMINALMENTE O PERTENCIMENTO A UMA ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (ART. 416-BIS)

garantia interna como mecanismo de regulação dos conflitos entre os


diversos órgãos de menor dimensão.

Em outro paralelo, que ao olhar menos minucioso levaria a crer


que uma entidade completamente diversa surgiu no Brasil, há o Primeiro
Comando da Capital, que tem contornos menos fixos e pouco ligados a
questões hereditárias, mas que se alimenta dos mesmos nutrientes das
organizações criminosas mafiosas.

A origem do Primeiro Comando da Capital não tem vinculação


familiar ou territorialidade definida. Ele se difere nessa toada, pois
seu estopim se deu diante da situação das prisões brasileiras que, há
tempos, enfrentam a situação de superlotação e péssimas condições
de salubridade, segurança e humanidade.

O embrião da facção criminosa hoje Primeiro Comando da Capital


se deu, portanto, no dia 2 de outubro de 1992 dentro do Complexo
Prisional do Carandiru, quando ocorreu o massacre policial que
culminou na morte de 111 presos, conforme se depreende da versão de
1997 do estatuto do PCC (primeira geração):

13. Temos que permanecer unidos e organizados


para evitarmos que ocorra novamente um massacre
semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção
em 2 de outubro de 1992, onde 111 presos foram
covardemente assassinados, massacre este que jamais
será esquecido na consciência da sociedade brasileira.
Porque nós do comando vamos mudar a prática
carcerária, desumana, cheia de injustiças, opressão,
torturas, massacres nas prisões. (JOZINO, 2017, p. 20).

Com a crise política remanescente do massacre, diversos


presos foram transferidos para penitenciárias no interior da

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capital, especificamente para a Casa de Custódia e Tratamento de


Taubaté – CCTT, também chamada de Piranhão, conhecida pelas
inúmeras torturas a que os presos eram submetidos, inclusive levando
alguns deles à perda de sua sanidade mental.

Nesse local, Idemir Carlos Ambrósio, conhecido como Sombra,


conheceu César Augusto Roriz Silva, o Cesinha, que o apresentou para
Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, seu amigo de infância
(JOZINO, 2017, p. 27). Deste encontro, nasceram as primeiras ideias de
se organizarem a fim de combater as atrocidades estatais por meio de
uma facção criminosa (JOZINO, 2017, p. 20).

Por fim, em 25 de julho de 1990, foi editada a Lei n. 8.072, ou a Lei


dos Crimes Hediondos (BRASIL, 1990), que criou diversos empecilhos
para a progressão de regime e soltura daqueles condenados por crimes
mais graves, tornando ainda mais complicada a vida destes indivíduos
que contavam com longas penas e estavam em locais com pouca ou
quase nenhuma estrutura.

A junção desses três fatores levou à criação de uma organização


criminosa que tinha como objetivo primário, ao menos no discurso,
combater a violência estatal que se dava dentro e fora dos presídios,
tendo como consequência ocupado o espaço vazio deixado pelo
Estado, tanto dentro das prisões, sem qualquer estrutura e organização,
como nas periferias.

Dessa forma, somando todos esses fatores, em especial as


pressões que se exerceram sobre o universo carcerário paulista, gerou-
se a ruptura do status quo antes existente, marcado pela repressão
governamental violenta nos presídios, sem combate organizado por
parte dos presos. No dia 31 de agosto de 1993, nasceu oficialmente o
Primeiro Comando da Capital.

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O RECONHECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS COMO ESTRUTURA
COMPLEXA E ÚNICA DA SOCIEDADE – COMPARATIVO À LEGISLAÇÃO ITALIANA QUE
TIPIFICA NOMINALMENTE O PERTENCIMENTO A UMA ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (ART. 416-BIS)

Diante desse cenário, percebe-se que o alinhamento de fatores


que gerou o grupo criminoso foi especificamente o encarceramento em
massa, predominantemente de pessoas das classes D e E, que vivem
nas regiões mais marginalizadas, sem acesso à infraestrutura básica e,
portanto, mais sujeitas à seletividade do Poder Judiciário.

Interessante, nesse sentido, o relato de Marcos Camacho, o


Marcola, na Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI do Tráfico:

O SR. MARCOS WILLIAN HERBAS CAMACHO


(Marcola) – Eu acho que é o seguinte. Nós todos
somos praticamente filhos da miséria, todos somos
descendentes da violência, desde crianças somos
habituados a conviver nela, na miséria, na violência.
Isso aí, em qualquer favela o senhor vai ver um
cadáver ali todo dia. Quer dizer, a violência é o natural
do preso, isso é natural. Agora, essas organizações
vêm no sentido de refrear essa natureza violenta,
porque o que ela faz? Ela proíbe ele de tomar certas
atitudes que pra ele seria natural, só que ele estaria
invadindo o espaço de outro, o senhor entendeu?
De outro preso. E elas vêm no sentido de coibir
isso mesmo. É claro que se [...]. (BRASIL, 2006a,
p. 25).

Por esse motivo, para integrar o PCC, existe um processo de


filiação que se dá através do batismo, momento a partir do qual o
companheiro se torna um irmão e, com isso, está submetido a outros
regramentos, passando a ter um compromisso com o crime (DIAS,
2011, p. 252). O mesmo ocorre no caso da máfia, em que a pessoa deixa
de ser um contrasto e passa a ser um soldado – o que só pode se dar
por meio da indicação de uma pessoa já filiada chamada de padrinho,
que passa também a ter responsabilidade sobre aquele indivíduo que
ele indicou –, criando uma espécie de corrente de responsabilidade e
irmandade entre os integrantes.

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3 SEMELHANÇAS ENTRE TAIS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS

Pontuadas as diferenças originárias das duas organizações


criminosas, máfia italiana e PCC, temos que apontar as suas
semelhanças e formas de combate usados por ambos os governos,
bem como o tratamento social dispensado a elas.

É facilmente perceptível que estados paralelos surgem do vácuo


deixado pelo governo ao não atender as necessidades básicas da
população e, por isso, tais grupos têm pouca resistência dos moradores
locais quanto a sua origem, visto que, em princípio, pareciam ter como
interesse a melhoria da vida daquela comunidade.

Mais do que isso, tem-se que as associações criminosas como um


todo – máfia, PCC, CV, milícias – partem de um controle populacional,
seja de um território, de uma comunidade, de uma sela, um presídio.
Locais esses que, em regra, não contam com proteção estatal, que
atua de maneira repressiva, sem diferenciar o morador que lá reside
do criminoso que domina e comanda, o que sem dúvida gera maior
desconfiança e afastamento de toda a população em face do Estado
(BORGES, 2002, p. 30).

A máfia surgiu da ausência estatal em uma ilha distante dos


centros políticos e econômicos; a milícia veio no combate à violência
nas comunidades mais pobres do país; e o PCC nasceu do completo
abandono estatal àqueles submetidos ao seu poder.

Assim, para os que estavam no entorno, as organizações tinham


como objetivo suprir as necessidades daquela comunidade, seja pelo
fornecimento de insumos básicos, pela proteção do seu comércio

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COMPLEXA E ÚNICA DA SOCIEDADE – COMPARATIVO À LEGISLAÇÃO ITALIANA QUE
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ou para dar dignidade em situações em que a população foi


completamente renegada pelo seu Estado.

Ocorre que, com o crescimento desses grupos e o monopólio da


força naquela região, outras vertentes foram criadas, fazendo com que
essa população, que se sentiu vista, passasse a ser dominada e refém.

É ainda possível observar que em tais comunidades há uma


obrigação quase que intrínseca de se submeter à organização criminosa
dominante, seja ela qual for – máfia, PCC, milícia –, pois os indivíduos
que lá residem encontram-se psicologicamente dominados, a ponto
de ser um consenso que o local que moram, o empreendimento que
criam e a atividade comercial que exercem não lhes pertencem, mas
sim tratam-se de concessões dadas – e que podem ser a qualquer
momento retiradas pelo crime organizado.

Isso faz parecer que a criminalidade, conforme bem se observa


no Estado de São Paulo, assim como era na antiga hegemonia mafiosa
na Sicília, é onipotente. Contudo, não é esse o caso: não se trata
de onipotência, mas sim de oportunismo, no qual os perpetradores
selecionam cuidadosamente os alvos sobre os quais vão exercer seu
poder e os submetem psicologicamente, gerando em toda aquela
sociedade o mito da onipotência (DINO, 2010, p. 132).

É possível visualizar quase que de forma cristalina tal poder


no PCC que, diferentemente de outras organizações que precisam
derrotar e destruir a concorrência, usa tática da negociação, ou melhor,
do domínio psicológico, fazendo com que todos exerçam suas funções
sob o manto dos princípios do crime – “correr pelo certo” – sem ter que
destinar parte de seus lucros – ao menos diretamente – à organização,
mas apenas seu respeito e sua colaboração quando solicitados – uma

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lógica muito mais concatenada com o mundo capitalista, como previa


Zaffaroni (2001).

Esse fator também viabiliza quase que uma hegemonia


do partido, seja nos presídios, seja na periferia, pois não
necessariamente – e mais ainda raramente – o indivíduo precisa ser
batizado para “correr com o PCC”. Isso porque basta que aquela
população se submeta às regras impostas pela organização –
entre elas, levar as discordâncias para o comando local – para que
a região seja considerada do PCC, além das pessoas – que nem
mesmo são, e na sua maioria não são, criminosos, apesar de não
se oporem ao modo de agir determinado pela facção.

Tamanho é o sucesso de tal artimanha psicológica de dominação


que o estado paulista se deparou até mesmo com uma queda na
criminalidade violenta após a dominação do PCC nas comunidades,
especialmente no tráfico. Isso porque a dinâmica de onipotência, ainda
que aparente, e o preenchimento dos vácuos estatais permitiram que
não fosse necessária a utilização de armas pelos agentes que atuam
no mercado varejista de entorpecentes, visto que há uma hegemonia,
ao menos em como se deve agir. Há uma regra de ouro de que os
conflitos não são decididos diretamente pelas partes, mas por alguém
determinado pelo comando – sendo o suficiente para a manutenção
do controle.

Nesse sentido, deixa patente Feltran (2018):

Não é a ilegalidade em si o que produz a violência,


como se afirma em alguns congressos especializados.
O que produz a violência estatal contra o tráfico
de drogas é a ideia de que não é praticado por seu
Waldomiro, um porteiro, um trabalhador, mas por
sujeitos incivis, que nos ameaçam e devem ser privados
do convívio social. Sujeitos que bloqueiam, pela recusa

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em se submeterem às regras comuns, nosso projeto


de modernização. Pessoas que atravancam o caminho
para uma sociedade correta de todos. (FELTRAN,
2018, p. 72).

É preciso, como se vislumbra pela sociedade italiana, enxergar


o crime organizado brasileiro de forma mais ampla, e não o apontar
como um bicho-papão que tem garras e sinais característicos que
possibilitem “as pessoas de bem” se afastarem. Pelo contrário, ele está
enraizado em quase todos os setores sociais – apesar da insistente
negativa da mídia e da política.

A Agência de Notícias de Direitos da Infância, em 2005, trazia


a constatação de que o modo como a guerra às drogas é tratado –
e consequentemente o combate às organizações criminosas – vem
gerando uma sensação de insegurança que justifica medidas repressivas
não compatíveis com a realidade fática do tráfico e consumo de
entorpecentes (AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DOS DIREITOS DA INFÂNCIA,
[20--], p. 6).

A partir de análises iniciais, constatou-se que tratar de drogas na


mídia brasileira significa quase sempre tomar como ponto de partida
uma relação estreita com a violência urbana, levando o tema a adquirir
proporções gigantescas, com reações da mesma ordem, traduzidas
em ações cada vez mais repressivas.

As consequências dessa conduta sedimentada de propagação de


medo e ansiedade impedem que a sociedade tenha uma visão macro
da situação e desenvolva uma compreensão real do que de fato vem
ocorrendo. Em vez disso, possui uma visão politicamente direcionada
conforme as conveniências do momento.

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MARIANA PARMEZAN ANNIBAL

Diante disso, as políticas dirigidas ao combate das organizações


criminosas acabam tendo um impacto pontual, sem qualquer
reverberação no grupo – até porque miram em indivíduos rotulados e
estigmatizados –, e ainda não colaboram para a mudança da concepção
da sociedade do efeito que a organização criminosa tem em suas vidas
cotidianas (AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DOS DIREITOS DA INFÂNCIA,
[20--], p. 8).

Como bem pontuou Maria Gorete Marques de Jesus (2016, p. 42):

O Brasil adentra esse cenário, mas ainda de forma


muito tímida, pois permanece adotando uma política
de combate focada na ‘guerra contra as drogas’,
difundida na Convenção Única sobre Entorpecentes
(1961) e propagada pelo presidente americano
Richard Nixon na década de 50. Uma das principais
características desse tipo de política é a ausência
de limitações significativas no exercício do poder
discricionário da polícia, tolerada e aceita pelo sistema
de justiça criminal, que integra a lógica da ‘guerra
contra as drogas’.

Ou seja, o modelo até então usado pelo Estado brasileiro no


combate às organizações criminosas, o tratamento dado pelas mídias
a esse fenômeno, em especial a negação de sua existência como uma
entidade reconhecida e nomeada (Primeiro Comando da Capital), e
o encarceramento em massa de uma parcela marcada da população,
somados ao enraizamento da cultura do crime e a substituição estatal
nos locais abandonados pelo poder público tornaram-se a fórmula do
sucesso e do crescimento do PCC.

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O RECONHECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS COMO ESTRUTURA
COMPLEXA E ÚNICA DA SOCIEDADE – COMPARATIVO À LEGISLAÇÃO ITALIANA QUE
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4 CONCLUSÃO – ANÁLISE DAS CONDUTAS TOMADAS PELA


ITÁLIA E SUA POSSÍVEL APLICAÇÃO NO BRASIL

Dito isso, o primeiro ponto que chama a atenção a ser modificado


é a insistência dos governos e da mídia em fingir que o Primeiro
Comando da Capital não existe como estrutura única, mas se trata da
“organização criminosa que domina as prisões paulistas”.

Sabidamente, dar nome e reconhecer a existência da instituição é


primordial para iniciar sua análise na especificidade que ela demanda,
podendo assim prever seus movimentos e planejar formas de
desestruturação.

A fim de combater esse tipo de crime, a legislação italiana foi


adaptada, criando em favor das autoridades que combatem e julgam
os delitos institutos processuais que fossem de fato eficazes para
lidar com a realidade vivida, quais sejam: legislação antiterrorismo,
legislação antissequestro, legislação dos colaboradores e legislação
específica de combate à máfia (BORGES, 2002, p. 16).

Em relação à última legislação citada, tem-se que o Poder


Legislativo resolveu por bem criar uma lei específica para a
criminalização da máfia, citando nominalmente a Cosa Nostra, a
Camorra e a Ndrangheta, por meio do art. 416-bis do Código Penal,
que foi introduzido em 1982 com a Lei n. 646 (ITALIA, 1930).

Art. 416-bis, codice penale - Associazione di tipo


mafioso Chiunque fa parte di un’associazione di tipo
mafioso formata da tre o più persone, è punito con la
reclusione da tre a sei anni.
Coloro che promuovono, dirigono o organizzano
l’associazione sono puniti, per ciò solo, con la reclusione
da quattro a nove anni.

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MARIANA PARMEZAN ANNIBAL

L’associazione è di tipo mafioso quando coloro che ne


fanno parte si avvalgono della forza di intimidazione
del vincolo associativo e della condizione di
assoggettamento e di omertà che ne deriva per
commettere delitti, per acquisire in modo diretto o
indiretto la gestione o comunque il controllo di attività
economiche, di concessioni, di autorizzazioni, appalti
e servizi pubblici o per realizzare profitti o vantaggi
ingiusti per sé o per altri.
Se l’associazione è armata si applica la pena della
reclusione da quattro a dieci anni nei casi previsti
dal primo comma e da cinque a quindici anni nei casi
previsti dal secondo comma.
L’associazione si considera armata quando i partecipanti
hanno la disponibilità, per il conseguimento della
finalità dell’associazione, di armi o materie esplodenti,
anche se occultate o tenute in luogo di deposito.
Se le attività economiche di cui gli associati intendono
assumere o mantenere il controllo sono finanziate in
tutto o in parte con il prezzo, il prodotto, o il profitto
di delitti, le pene stabilite nei commi precedenti sono
aumentate da un terzo alla metà.

Nei confronti del condannato è sempre obbligatoria la


confisca delle cose che servirono o furono destinate a
commettere il reato e delle cose che ne sono il prezzo,
il prodotto, il profitto o che ne costituiscono l’impiego.
Decadono inoltre di diritto le licenze di polizia, di
commercio, di commissionario astatore presso i
mercati annonari all’ingrosso, le concessioni di acque
pubbliche e i diritti ad esse inerenti nonché le iscrizioni
agli albi di appaltatori di opere o di forniture pubbliche
di cui il condannato fosse titolare.
Le disposizioni del presente articolo si applicano
anche alla camorra e alle altre associazioni, comunque
localmente denominate, che valendosi della forza
intimidatrice del vincolo associativo perseguono
scopi corrispondenti a quelli delle associazioni di tipo
mafioso. (ITÁLIA, 1930).

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Verifica-se que a lei especial criada pelo legislativo italiano


pune, em relação à associação, duas condutas distintas: a primeira se
esgota no próprio fato de ingressar na associação; a segunda atribui
importância específica ao fato de ter exercido, na associação, função
gerencial ou de outra forma especializada.

Em ambos os casos, o motivo da punição está ligado apenas


à condição de estar permanente e conscientemente incluído na
associação, mesmo que não participe de nenhum dos crimes cometidos
por ela (por exemplo: adquirir direta ou indiretamente a gestão, ou
em qualquer caso, o controle de atividades econômicas, concessões,
autorizações, contratos e serviços públicos; obter votos para si ou para
outrem; realizar lobbys políticos a fim de beneficiar um seguimento
lícito que sirva de forma de lavagem de capitais à organização).

A importância do texto legal criado e as consequentes mudanças


na política criminal e de segurança pública – que passaram a reconhecer
tais organismos como algo real – se verifica na experiência adquirida
no campo do combate ao crime organizado na Itália. É possível afirmar
que essa presença, menos percebida por não se manifestar nas formas
clássicas de violência, é, porém, mais perigosa porque tende a se
inserir no tecido social e a criar, com o instrumento da corrupção e do
compromisso criminoso, uma rede de relações econômicas e políticas
a ser utilizada para a persecução de objetivos ilícitos.

A luta contra a máfia não deve ser reduzida apenas a uma obra
de repressão policial e estatal, como perceberam as autoridades
e a sociedade italianas em algum tempo, mas deve, antes de tudo,
manifestar-se sob a forma de um verdadeiro “movimento cultural”,
gerando uma consciência coletiva da capacidade do Estado em
combater o crime organizado.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 411-440, jan./jul. 2022. 423
MARIANA PARMEZAN ANNIBAL

Isso porque não é possível enxergar a facção criminosa única e


exclusivamente pelo seu viés violento de controle, mas também pelo
seu papel econômico e social que se alimenta da frágil política e da
presença dos órgãos públicos nos locais em que elas se desenvolvem.

Essa capacidade extraordinária de interceptar as solicitações


dos grupos mais marginalizados acaba se transformando em uma
rede de colaborações e conivências que protege os crimes vinculados
à organização, em especial o tráfico de drogas, e torna aceitável a
submissão de todos aqueles que vivem sob o mando da facção
criminosa, sejam ou não batizados.

Diferentemente da realidade italiana, entendo que ainda há um


longo caminho legislativo e judiciário a seguir no combate a esse tipo
de criminalidade, começando pelo reconhecimento de sua existência de
fato, dando nome, cara, característica e valores que são reconhecidos
pelos seus integrantes e, portanto, devem ser reconhecidos pelo
Estado. Isso é fundamental na medida em que permite compreender
as organizações criminosas não apenas pelas atividades ilícitas que
praticam, mas pela estrutura em que se desenvolvem e como se
retroalimentam.

Analisando especificamente o terceiro parágrafo do art. 416-bis


(ITÁLIA, 1930), percebe-se que há uma definição específica do que é
considerado associação criminosa com a finalidade de abarcar grupos
mafiosos denominados. Tanto é que, no último parágrafo, tais grupos
são nomeados e pontuados.

Por outro lado, a legislação brasileira e consequentemente os


seus aplicadores lidam com um conceito genérico de organizações
criminosas que tenta tipificar desde o conluio de pequenos assaltantes

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até crimes de colarinho branco de altíssima complexidade – o que sem


dúvida dificulta a lida diária com o tema.

A sensação é que a força política e midiática do país entende


que não dar nome e não reconhecer a existência de grupos como
PCC e Comando Vermelho, que na grande mídia são chamados de
“facção criminosa de São Paulo e do Rio de Janeiro” respectivamente,
magicamente fará com que elas tenham menos força.

Reconhecer a existência de organizações criminosas com as


suas especificidades, nomeando-as e eventualmente criando leis que
foquem exatamente em formas de cortar suas fontes de renda e braços,
parece-me um dos jeitos de iniciar o combate a tal criminalidade.

Até porque a legislação é fluída e deve atender a realidade social


do momento. Dessa forma, seria plenamente possível a criação de um
tipo penal, assim como o previsto no sistema italiano, que indicasse
que a prova de associação junto ao PCC, ao Comando Vermelho, à
milícia, ou outras organizações, intitulando-se como “irmão”, geraria
pena mais severa ao agente.

Tudo isso de maneira prática, objetiva e direta, a fim de viabilizar


tanto a investigação criminal, visto que a autoridade policial saberá
exatamente o que procurar, quanto a aplicação da lei em sede de
sentença.

Ora, a título de exemplo, a Lei de Drogas (BRASIL, 2006b) prevê


como causa de aumento no seu art. 40, inciso VII, “o agente financiar
ou custear a prática do crime”. Contudo, percebe-se que tal previsão
é demasiadamente vaga, sendo praticamente impossível enquadrar o
indivíduo na majoração da pena.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 411-440, jan./jul. 2022. 425
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Enquanto isso, a legislação italiana cita como exemplos de


condutas que se enquadram na atitude mafiosa: (i) usar força
intimidatória do vínculo associativo; (ii) subjugação e silêncio para a
prática de crimes; (iii) adquirir direta ou indiretamente a gestão ou
em qualquer caso o controle de atividades econômicas, concessões,
autorizações, contratos e serviços públicos; (iv) obter lucros ou
vantagens injustas para si ou para outrem; (v) impedir ou dificultar
o livre exercício do voto; e (vi) obter votos para si ou para outrem na
ocasião de consultas eleitorais1.

Percebe-se que, nessa hipótese, conseguem tanto a autoridade


policial quanto o Poder Judiciário combater condutas arraigadas na
sociedade e na política de forma muito mais contundente e eficaz.

Parece-me um pouco de ingenuidade dos dirigentes estatais


acreditarem que estamos apenas no início da formação das
organizações criminosas. Talvez as associações não estejam ainda tão
sofisticadas quanto a Máfia Italiana, visto que ainda há certa dificuldade
em aumentar e aprimorar a lavagem de dinheiro, ao menos por ora,
porém também não é possível crer que os dirigentes do PCC sejam
apenas pessoas não escolarizadas, que vivem em comunidades e que
não têm ingerência na vida política do país.

Trata-se, dessa forma, de um quadro bastante distinto daquele


historicamente encontrado na sociedade brasileira, o qual requer um
novo olhar e novas ideias e, certamente, outro tipo de tratamento
para aqueles submetidos ao Direito Penal – que enfrentava suficientes

1
“Art. 416-bis, codice penale – L’associazione è di tipo mafioso quando coloro che ne
fanno parte si avvalgono della forza di intimidazione del vincolo associativo e della
condizione di assoggettamento e di omertà che ne deriva per commettere delitti, per
acquisire in modo diretto o indiretto la gestione o comunque il controllo di attività
economiche, di concessioni, di autorizzazioni, appalti e servizi pubblici o per realizzare
profitti o vantaggi ingiusti per sé o per altri.” (ITÁLIA, 1930).

426 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 411-440, jan./jul. 2022.
O RECONHECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS COMO ESTRUTURA
COMPLEXA E ÚNICA DA SOCIEDADE – COMPARATIVO À LEGISLAÇÃO ITALIANA QUE
TIPIFICA NOMINALMENTE O PERTENCIMENTO A UMA ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (ART. 416-BIS)

revezes, com demasiada ampliação e sem resultado efetivo. Agora se


depara com outra criminalidade que nem mesmo é abrangida pela
legislação vigente.

Olhando desde os deputados, senadores e juristas até os policiais


que atuam nas ruas, percebe-se que tais indivíduos e instituições
não se deram conta de que o crime organizado não pode, nem deve,
ser combatido da mesma forma que a macrocriminalidade – sem
inteligência e especialização –, uma vez que tais agentes atuam não
só na venda da droga em varejo como também infiltrados dentro do
Estado (BORGES, 2002, p. 18).

Se continuarmos no mesmo passo e caminho escolhido pelo


Estado e pela sociedade, continuaremos lotando prisões com pessoas
que têm pouca ou nenhuma relevância para a organização criminosa.
E, de forma alguma, a sua reclusão abala a estrutura e perpetuação de
associações como o PCC.

Apenas com o reconhecimento da existência, da importância,


dos meandros, da influência social, da força política e do status
dessas organizações criminosas, com a consequente criação de
leis específicas, seja na tipificação dos delitos, seja até na forma de
condução das investigações, será possível avançar no combate a essas
entidades paraestatais que estão cada vez mais fortes e enraizadas.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 411-440, jan./jul. 2022. 427
MARIANA PARMEZAN ANNIBAL

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NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME


ORGANIZADO: INTERAMERICANIZAÇÃO DO
DIREITO PENAL
NEW PERSPECTIVES FOR THE FIGHT AGAINST
ORGANIZED CRIME: INTER-AMERICANIZATION OF
CRIMINAL LAW

FREDERICO VALDEZ PEREIRA


Doutor em Direito Público, Justiça Penal e Internacional pela Universidade
de Pavia – Itália, com cotutela na PUCRS. Mestre em Direito pela
Universidade de Lisboa – Portugal. Mestre em Ciências Criminais pela
PUCRS. Especialista em Direito Penal Econômico, Unisinos – RS. Professor
na Esmafe – RS. Juiz federal.
https://orcid.org/0000-0002-4000-9021

RESUMO

A compreensão de que o sistema penal é um importante aliado na


proteção dos direitos fundamentais levou instrumentos supranacionais
a estimularem o aperfeiçoamento da matéria penal. Este estudo analisa
a possibilidade de qualificar o combate à moderna criminalidade
organizada e transnacional a partir do reforço da normativa
supranacional, em especial no sistema interamericano. São referidas
e analisadas possíveis melhorias no aparato penal dos países como
decorrência da atuação de órgãos supranacionais no contexto
europeu e latino-americano. Órgãos do sistema interamericano têm
aptidão de melhorar os instrumentos penais e ampliar a harmonização
entre as ordens jurídicas nacionais. A atuação dos órgãos da União
Europeia – UE e do Conselho da Europa servem como referência
importante na construção de um quadro normativo supranacional no
espaço latino-americano.

ReJuB
434 - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022.
NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO: INTERAMERICANIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

Palavras-chave: crime organizado; sistema multinível; sistema


interamericano.

ABSTRACT

The safeguarding of human rights is part of a multilevel system


of protection. The understanding that the criminal system is also
an important ally in the protection of fundamental rights has led
supranational instruments to stimulate the improvement of criminal
legislation. This study analyzes the possibility of qualifying the fight
against modern organized and transnational crime based on the
strengthening of supranational regulations, especially in the Inter-
American Regional System. Possible improvements in the criminal
apparatus of the countries as a result of the action of supranational
bodies in the European and Latin American context are mentioned
and analyzed. Bodies of the Inter-American System have the capacity
to improve criminal instruments and increase harmonization between
national legal systems. The performance of the bodies of the European
Union and the European Council serve as an important reference in
the construction of a supranational regulatory framework in the Latin
American space.

Keywords: organized crime; multilevel system; Inter-american system.

Recebido: 14-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

SUMÁRIO

1 Introdução. 2. Sistema multinível de proteção e Direito Penal;


2.1 Sistemas regionais como motor da internacionalização do Direito
Penal. 3 O sistema interamericano e a qualificação da tutela penal;
3.1 O Brasil e o sistema interamericano; 3.2 A efetivação da ordem
jurídica supranacional no Conselho da Europa; 3.3 Os novos desafios

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022. 435
FREDERICO VALDEZ PEREIRA

do crime organizado no contexto multinível. 4 Contraste ao crime


organizado na União Europeia. 5 Interamericanização penal no combate
ao crime organizado. 6 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O contexto de múltiplas fontes do Direito, com crescente diálogo


e interação internacional, alcançou o último bastião da soberania
nacional, do monopólio estatal das fontes. O Direito Penal, o sistema
jurídico penal em geral, vem recebendo os influxos de uma crescente
regulação normativa supranacional. A busca de eficácia na proteção
dos Direitos Humanos foi propulsora de percurso que está culminando
na formação de programas de enfrentamento à criminalidade de um
estatuto penal internacional.

Não há dúvida de que esse novo contexto de internacionalização


do Direito Penal enseja inúmeras complexidades e desafios de
legalidade e territorialidade, de harmonização, e até de estrutura de
órgãos e instituições. Mas vêm sendo reconhecidos, e constatado
na prática, os ganhos da perspectiva multinível na qualificação do
combate a novos fenômenos delituosos.

Nessa perspectiva, entende-se que um plano de ação integrado


de combate ao crime tem maior capacidade de rendimento quando
impulsionado no âmbito regional, entre estados da mesma área
geográfica e de histórico e tradições jurídico-culturais mais aproximadas
(PONTI, 2015, p. 26). O sistema interamericano, constituído no bojo
da Organização dos Estados Americanos – OEA, pode e deve assumir
protagonismo no esforço de harmonizar legislações e melhorar a
cooperação jurídica no espaço latino-americano.

436 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022.
NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO: INTERAMERICANIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

Em aspecto amplo, a questão abordada neste artigo é de


como qualificar as estratégias de contraste à nova criminalidade.
Mais especificamente, o problema é: como e de que forma os
órgãos do sistema interamericano poderiam desempenhar o papel
central de fomentar o aprimoramento do combate integrado ao
crime organizado no espaço jurídico-penal latino-americano. Para
tanto, explora-se a possibilidade de que o diálogo entre os espaços
jurídicos supranacionais seja uma estratégia importante no caminho
de aprimorar os instrumentos de tutela e melhorar a efetividade dos
multiníveis normativos1.

Em razão da ausência, no âmbito latino-americano, de um centro


de produção jurídica como a União Europeia – UE, o cotejo, na primeira
parte do artigo, é feito entre o sistema interamericano da OEA e seu
homólogo europeu do Conselho da Europa. Na sequência, são referidos
os novos desafios supranacionais decorrentes do fenômeno do crime
organizado. Somente então passa-se a indicar os progressos alcançados
no regime da UE para contrastar a criminalidade organizada em âmbito
regional. Na última parte, são esboçadas medidas concretas que
permitiriam qualificar o contraste ao crime organizado transnacional e
que, muito provavelmente, dependeriam de condução pelos órgãos do
sistema interamericano no âmbito da OEA.

Seguindo uma metodologia de pesquisa qualitativa, com revisão


bibliográfica e análise de documentos jurídicos internacionais, intenta-
se verificar estratégias supranacionais para melhorar a resposta
integrada dos países ao crime organizado. A integração regional e o
diálogo entre os regimes jurídicos supranacionais apontam com nitidez
para um caminho necessário no tema.

1
A doutrina fala de “interamericanização” do sistema europeu e “europeização” do
sistema interamericano (GARCÍA ROCA, 2016, p. 533).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022. 437
FREDERICO VALDEZ PEREIRA

2 SISTEMA MULTINÍVEL DE PROTEÇÃO E DIREITO PENAL

A perspectiva de aperfeiçoamento do combate ao


crime organizado no âmbito latino-americano com base na
internacionalização do Direito Penal, do aparato penal em seu
conjunto, vem inserida em um cenário de multiníveis normativos, ou
de proteção em múltiplos níveis dos direitos. Para a compreensão
desse contexto, é interessante introduzir, de forma breve, os traços
genéricos da noção de sistema multinível, com especial referência à
normativa penal.

A proteção dos Direitos Humanos aparece como impulso


primordial da ideia de multinível normativo. A partir do segundo
pós-guerra, a afirmação dos Direitos Humanos ganhou expressão
internacional em importantes instrumentos que não só reconheceram
um rol de direitos básicos com significado universal como também
afirmaram a necessidade de proteção global desses direitos.

Concomitante, no âmbito nacional, o Direito Constitucional


recepcionou a dignidade humana como objetivo principal da ordem
jurídica, contemplando instrumentos para a tutela efetiva dos direitos
e liberdades individuais2. As constituições domésticas consolidaram
a abertura dos ordenamentos jurídicos nacionais aos instrumentos
internacionais de proteção dos Direitos Humanos (PIOVESAN; CRUZ,
2021, p. 5). Esses níveis jurídicos de proteção passaram, assim, a
interagir em movimento paralelo de reforço mútuo.

O significativo reforço que complementa esse sistema multinível


de proteção veio com os sistemas regionais de tutela dos Direitos

2
A guarida constitucional de direitos e liberdades fundamentais e a garantia jurisdicional
são pressupostos da tutela multinível dos direitos fundamentais (CARDONE, 2011,
p. 335).

438 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022.
NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO: INTERAMERICANIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

Humanos – o interamericano e o europeu3. A jurisprudência, elaborada


pelas cortes inseridas nesses sistemas, assim como o fenômeno do
controle de convencionalidade, foram elementos fundamentais no
processo de inter-relação entre os sistemas e de impulso na busca de
efetividade na tutela dos direitos.

Na relação do Direito Internacional dos Direitos Humanos com


o tema penal, não há dúvida de que a preocupação primária foi com
a preservação dos direitos dos imputados na persecução penal. A
compreensão do Direito Penal como um instrumento irrenunciável,
embora perigoso, um mal menor, que deveria ser contido pelos Direitos
Humanos, refletiu-se nas diretrizes e normativas oriundas do sistema
multinível de proteção dos direitos.

Essa perspectiva foi gradualmente se alterando, ou se


complementando, a partir, sobretudo, e de modo marcante, da
evolução da jurisprudência da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos – CIDH e da Corte Europeia de Direitos Humanos – CEDH
(VIGANÒ, 2011, p. 244)4. Em diversos julgados que começaram a
aparecer em meados dos anos 1980, tanto da CEDH (1985) como
da CIDH (1988), os direitos individuais passaram a ser concebidos,
também, como objetos necessários de tutela penal a requerer uma
atuação qualificada do Estado, inclusive na seara penal5.

3
Há ainda o sistema africano de Direitos Humanos, assentado na Carta Africana dos
Direitos Humanos no bojo da União Africana, e que conta com comissão e corte.
4
Lavrysen (2014, p. 95) refere que desde a decisão no caso Velásquez-Rodríguez, a
Corte IDH contempla o sistema penal como aliado na proteção efetiva dos direitos
fundamentais.
5
Exigências de efetivação decorrentes dos Direitos Humanos não se reduzem à seara
penal, incidem também em outras searas. Para aprofundamento, consultar Lavrysen
(2014).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022. 439
FREDERICO VALDEZ PEREIRA

2.1 Sistemas regionais como motor da internacionalização do


Direito Penal

Na doutrina, são referidos, em geral, dois fatores principais


que teriam atuado na origem da multiplicidade de fontes normativas
com efeitos sobre a matéria penal. Primeiro, o esforço de garantir a
salvaguarda dos direitos fundamentais de modo efetivo pelos estados
nacionais, razão de ser das convenções americana (CADH) e europeia
(CEDH). Em complemento, a progressiva regulamentação internacional
dos mercados econômicos, gênese da UE, e que acaba por utilizar o
Direito e o Processo Penal como mecanismos de tutela da economia
(KOSTORIS, 2015b, p. 77).

Essa compreensão foi não apenas se consolidando, mas, de certo


modo, ampliando a ponto de se conceber o expediente penal dos
países como indispensável para a proteção dos direitos fundamentais
mais relevantes. Foi nos sistemas regionais que o entendimento da
necessidade do Direito Penal na tutela dos direitos fundamentais ficou
mais explicitada.

Do ponto de vista cronológico, há importantes precedentes


internacionais materializando a relação de consonância protetiva entre
Direito Penal e Direitos Humanos6. No entanto, parece correto afirmar
que tanto a elaboração formal da importância do aparato penal na
tutela de Direitos Humanos como a demanda por concreta efetividade
nessa tutela penal são fatores resultantes da doutrina desenvolvida
pela jurisprudência das cortes EDH e IDH.

A própria ideia de interpenetração das diretrizes supranacionais


na ordem jurídica interna dos países – que tiveram alargados seus

6
Um panorama dos principais precedentes consta no escrito de Zapatero (2013).

440 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022.
NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO: INTERAMERICANIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

referenciais de legitimidade jurídico-material com a inclusão de


disposições normativas externas7, máxime no tema de Direitos
Humanos – recebeu sensível reforço pelos sistemas interamericano e
europeu. Não seria exagero considerar que os sistemas regionais de
tutela foram catalisadores, tanto do processo de recebimento dos
multiníveis normativos como da noção de que o conjunto do sistema
penal é indispensável na tutela e na reafirmação dos Direitos Humanos.

Há variadas razões nesse protagonismo dos sistemas regionais


como estruturas que dinamizaram a viragem referida no parágrafo
acima. Mas certamente dois aspectos foram vitais. Primeiramente,
o fato de que essas estruturas de produção jurídica instituíram
cortes específicas8 para o controle e a imposição das diretrizes
assentadas nos respectivos blocos de convencionalidade9. É fato que
a responsabilização internacional dos estados é indispensável no
processo de atuação dos Direitos Humanos.

O segundo fator é em decorrência do primeiro, mas traz uma


projeção importante. A circunstância de que esses órgãos jurisdicionais
supranacionais passaram a lidar com casos específicos de violações
de direitos fundamentais de vítimas concretas, individualizadas. E
aqui está a projeção importante que se referiu acima: o ressurgimento
da vítima na seara penal, a retomada da noção de que a vítima tem
importância no aparato penal. A vítima não só não pode continuar
sendo desconsiderada, como deve receber atenção específica e atenta

7
O parâmetro amplo do controle de convencionalidade é indicado como corpus juris
convencional, ou bloco de convencionalidade (MAZZUOLI, 2013, p. 105-107).
8
Consoante Ramos (2005, p. 54), a tradicional postura de ratificar os tratados e
descumpri-los na prática não terá mais lugar. A apreciação do cumprimento se dará
pelos órgãos dos respectivos sistemas supranacionais, e não mais, unilateralmente,
pelos próprios estados.
9
O monitoramento constante e os mecanismos de enforcement são também
características do sistema europeu no âmbito da UE, que atua, sobretudo, pela Corte
de Justiça, pela comissão e pelo parlamento europeu, cf. infra, item 4.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022. 441
FREDERICO VALDEZ PEREIRA

na disciplina normativa e na efetivação das deliberações das cortes


supranacionais.

3 O SISTEMA INTERAMERICANO E A QUALIFICAÇÃO DA


TUTELA PENAL

No percurso de atuação do Sistema Interamericano de Direitos


Humanos – SIDH, não é difícil identificar exemplos do empenho
direcionado ao aprimoramento da tutela penal nas ordens jurídicas
domésticas. Esses esforços se dão em dois sentidos complementares:
na recepção pelos estados-membros das diretrizes internacionais de
salvaguarda dos direitos fundamentais; e na melhoria dos instrumentos
normativos domésticos de tutela penal.

A referência deveria começar com a alusão às convenções


interamericanas com relevância direta na matéria penal10. Entre
as obrigações vinculantes aos estados-partes contidas nesses
instrumentos internacionais, são estabelecidas imposições abrangentes
de medidas estatais para prevenir e punir atos de agressão aos direitos
tutelados.

Em algumas, constam mandados de criminalização de condutas,


com indicação de medidas para evitar a impunidade dos ilícitos
cometidos. Na maioria delas, são impostas obrigações de investigar,
processar e punir condutas atentatórias aos valores protegidos.
Muitos desses instrumentos contêm a indicação de mecanismo de
monitoramento e supervisão internacional quanto à efetiva observância,
pelas ordens jurídicas dos países, das diretrizes impostas11.

10
Rol das principais convenções ratificadas pelo Brasil em Piovesan e Cruz (2021, p. 13).
11
Cf. refere Zilli (2022, p. 54), são estabelecidas agendas internacionais de repressão
penal, com vista à maior eficiência no enfrentamento de delitos que ultrapassam as
fronteiras.

442 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022.
NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO: INTERAMERICANIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

O SIDH emite também diversos atos pelos seus órgãos


de atuação, não sendo incomum que contenham exortação aos
ordenamentos jurídicos nacionais para que recepcionem os standards
convencionais de tutela e efetivem a proteção dos valores tutelados,
inclusive na seara penal. Pode-se mencionar a Resolução n. 1 de
2017, da Comissão IDH, na qual é reafirmada a importância que tem
a luta contra a corrupção e a impunidade (ORGANIZACIÓN DE LOS
ESTADOS AMERICANOS, 2017).

Outras iniciativas importantes no âmbito da OEA buscam


incentivar os estados-membros na implementação das diretrizes
internacionais de combate à grave criminalidade. Nesse sentido, o
Departamento contra a Delinquência Organizada Transnacional – DDOT
da OEA, criado em 2016, tem a finalidade de fornecer assistência técnica
e legislativa aos países para melhorar a resposta nacional e regional ao
crime organizado, além de promover projetos de cooperação entre os
estados-partes12.

A jurisprudência da CIDH também tem papel fundamental no


processo de recepção pelos estados-partes de diretrizes estabelecidas
no âmbito supranacional. Mais do que isso, é importante compreender
que o processo jurisdicional-interpretativo da corte tem a capacidade
de ampliar as normas de Direito Internacional Convencional. A
jurisprudência das cortes regionais expande os princípios fundamentais
indicados de forma contida nas convenções e normas internacionais13,
por isso que se fala em jurisprudência-fonte14.

12
Explicitação das diversas linhas de atuação do DDOT junto aos países no tema do
combate à criminalidade organizada está na página eletrônica do Departamento
Contra la Delincuencia Organizada Transnacional (ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS
AMERICANOS, c2022).
13
A característica ipertestuale da Convenção Europeia é referida por Manes (2011,
p. 7), que decorre da ricchissima giurisprudenza della Corte di Strasburgo. Em sentido
análogo, no espaço interamericano (SAGÜÉS, 2010, p. 125).
14
A expressão aparece, por exemplo, na obra de Kostoris (2015a, p. 70).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022. 443
FREDERICO VALDEZ PEREIRA

Consequência direta é o fato de que as decisões das cortes


supranacionais vinculam não apenas o país diretamente envolvido no
precedente, mas o conjunto dos estados-partes da convenção. É o
chamado efeito de “norma convencional interpretada” que se agrega
à coisa julgada internacional formada na decisão definitiva da CIDH, e
atinge de maneira objetiva todos os estados-partes (MAC-GREGOR,
2013, p. 633-639).

3.1 O Brasil e o sistema interamericano

Esse novo contexto jurídico pode ser condensado nas duas ideias
essenciais que impulsionam este estudo: i) a matéria penal é aliada
na preservação dos valores mais relevantes dos Estados de Direito;
ii) a melhor estratégia para qualificar o enfrentamento das graves
manifestações da criminalidade é a abertura do sistema nacional aos
influxos dos níveis normativos supranacional e internacional. A par os
avanços verificados, trata-se de um labor em curso, uma construção
que teve frutos, mas precisa ser qualificada.

A ordem jurídica brasileira perante o SIDH é exemplar nesse


aspecto. Embora a adesão do Brasil à CADH tenha se dado em 1992,
ainda há um longo percurso a ser percorrido para poder se considerar
que o país recepcionou, de forma plena, a transformação trazida pela
perspectiva multinível.

O sistema jurídico-político, em geral, no Brasil ainda não assumiu,


verdadeiramente, o compromisso de harmonizar suas leis e práticas
jurídicas aos ditames provenientes das normativas supranacionais.
Os juízes seguem, em boa medida, desconsiderando a exigência de
observar as emanações jurídicas dos órgãos internacionais. Contexto

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NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO: INTERAMERICANIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

que pode ser confirmado pela necessidade recente de edição da


Recomendação n. 123 pelo CNJ15.

Os demais poderes também seguem, muitas vezes, ignorando


prescrições do plano supranacional. Nesse aspecto, e a modo
meramente exemplificativo, de situações explícitas, é possível referir
as questões envolvendo a anistia16; a competência penal dos tribunais
militares17; a situação carcerária e o tratamento conferido aos presos18.
Mais ainda, no varejo, o constante desrespeito das exigências de
qualidade e eficiência na atuação das instituições envolvidas na
aplicação da lei penal, em um quadro quase que inalterado desde a
primeira condenação do país em 200619 (FISCHER; PEREIRA, 2022).

Anteriormente, foi dito que a ordem jurídica brasileira é exemplar


na identificação dos avanços e das carências no processo de articulação
entre os sistemas jurídicos nacional e supranacional no tema penal.
Paradigma do aperfeiçoamento penal doméstico em decorrência direta
do referencial assentado nos multiníveis normativos é a chamada Lei
Maria da Penha (BRASIL, 2006).

15
A Recomendação n. 123 explicita a importância de os órgãos do Poder Judiciário
observarem os tratados e as convenções internacionais de Direitos Humanos, e
recomenda aos juízes a utilização da jurisprudência da Corte IDH (CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA, 2022).
16
Está consolidada na CIDH a afirmação da incompatibilidade da anistia com crimes
graves; sobre o tema, e referências à jurisprudência da CIDH, ver as obras de Andrade
(2019, p. 165 et seq.); Fischer; Pereira (2022, p. 170 et seq.).
17
A CIDH admite julgamento por tribunais militares apenas quando se tratar de situações
envolvendo funções típicas das forças militares. Jamais por crimes praticados contra
civis. Para exemplificar, o caso Radilla Pacheco c. México (CORTE INTERAMERICANA
DE DIREITOS HUMANOS, 2009). A Lei n. 13.491 traz nítida desconsideração desse
standard supranacional de tutela dos Direitos Humanos (BRASIL, 2017).
18
O Brasil vem sendo cobrado por uma melhoria geral nos estabelecimentos prisionais.
Recentemente, o relatório da Comissão IDH sobre o contexto da “situação dos Direitos
Humanos no Brasil” (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2021).
19
Desde 1988, a CIDH passou a indicar a importância da efetividade do sistema penal
na tutela dos Direitos Humanos, no caso Velásquez Rodríguez c. Honduras (CORTE
INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1988).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022. 445
FREDERICO VALDEZ PEREIRA

Somente depois que o procedimento interno foi submetido


à Comissão Interamericana20, que impulsionou recomendações e
fiscalização internacional, o Brasil alterou sua postura não apenas
perante o caso concreto, mas de modo estrutural21. Entre as providências,
foi editada a referida legislação, com a criação dos juizados especiais
de violência doméstica e familiar, a previsão de medidas protetivas de
urgência, entre outros avanços de proteção do sistema penal brasileiro
às mulheres.

3.2 A efetivação da ordem jurídica supranacional no Conselho


da Europa

A despeito de algumas melhorias tangíveis no ordenamento


nacional, a equação parece sugerir, de modo claro, a importância
de intensificar a recepção, pelo Brasil, dos parâmetros de proteção
oriundos do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Indicar alguns
exemplos advindos da experiência do Sistema Europeu de Direitos
Humanos – SEDH, no esforço de adequação dos sistemas jurídicos
domésticos, pode servir como referencial de um trajeto profícuo.

No âmbito estrito da Europa, o processo de harmonização


da matéria penal22 decorre da atuação de variadas instâncias. Há
influência, sobretudo, da União Europeia e do Conselho da Europa,
no qual estão incorporadas a CEDH e a Corte EDH. Como não há
no espaço latino-americano uma instituição homóloga à UE, nesse

20
Ver Relatório Anual n. 54/2001 da comissão sobre o caso Maria da Penha Maia Fernandes
c. Brasil (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2001).
21
Houve recomendação para: “Intensificar o processo de reforma que evite a tolerância
estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra
mulheres no Brasil”.
22
Harmonização em sentido geral, cf. Calderoni (2010, p. 3): “The concept of harmonization
of criminal law is used in its more appropriate interpretation [...] “The process of
modifying different criminal law legislations in order to improve their consistency and
eliminate frictions among them”.

446 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022.
NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO: INTERAMERICANIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

subitem serão referenciadas apenas algumas das hipóteses verificadas


na estrutura jurídica supranacional do Conselho da Europa com
possibilidade de rendimento no âmbito interamericano. No item 4,
serão complementadas as considerações com a menção ao sistema
da UE.

Os primeiros esforços na tentativa de adequar as ordens


jurídicas nacionais às prescrições firmadas pelo SEDH foram dados
por atuação do Comitê de Ministros23, em recomendações expressas
para os estados-partes assegurarem o reexame ou reabertura dos
casos nos quais a corte tenha atestado alguma violação da CEDH.
O comitê também impulsionou instrumentos para conformação dos
ordenamentos domésticos, e verificação da compatibilidade com a
CEDH de leis e projetos de reforma (SACCUCI, 2008).

Mas foi a própria Corte EDH que funcionou como principal motor
de transformação na direção da conformidade nacional. Superado um
período inicial de maior comedimento, em que a corte apenas aplicava
aos estados-partes indenizações monetárias, os julgamentos passaram
a ir além, indicando medidas concretas para a efetiva realização do
direito. O Tribunal de Estrasburgo passou a impulsionar a efetiva
correção jurídica do caso concreto submetido a julgamento. Em poucas
palavras, a corte passou a impor uma obrigação jurídica de resultado
ao Estado-Membro, inclusive com indicação dos meios necessários à
reintegração jurídica completa no caso específico (KOSTORIS, 2015a,
p. 62).

No aspecto estrutural, a Corte EDH passou a explicitar medidas


de caráter geral que deveriam ser adotadas pelo Estado-Parte para
evitar o desrespeito continuado aos Direitos Humanos, e conformar

23
Os dois órgãos para efetivação da CEDH são a Corte EDH e o Comitê de Ministros do
Conselho da Europa. A Comissão EDH foi extinta em 1998, com o Protocolo n. 11.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022. 447
FREDERICO VALDEZ PEREIRA

a atuação nacional aos padrões convencionais de tutela (MAZZA,


2016, p. 6). Os julgamentos-piloto24 da Corte EDH são importantes
mecanismos para correção sistêmica de ordenamentos jurídicos
nacionais, impulsionando a conformidade da normativa doméstica aos
padrões internacionais de proteção dos direitos.

Esse quadro, meramente esboçado, indica algumas possibilidades


para o espaço latino-americano aperfeiçoar os instrumentos de
recepção efetiva dos padrões de tutela dos direitos, num esforço
necessário de adequação dos sistemas nacionais ao quadro jurídico
supranacional. O sistema do Conselho da Europa fornece alternativas
para impulsionar o sistema multinível de tutela, inclusive na seara penal.

E nenhum esforço nesse sentido da recepção das diretrizes


supranacionais no contexto latino-americano é excessivo quando se
leva em conta a ausência, no plano interamericano, de um centro de
emanação de normas supranacionais como a União Europeia. Como
será visto no item 4, uma das finalidades da UE na matéria penal é
dar resposta comunitária mais adequada às ameaças provenientes da
criminalidade organizada e transnacional (LA ROCCA, 2016, p. 106).

Esse é um aspecto que deve ser considerado essencial quando


se trata da importância do sistema multinível na tutela de direitos e
no aperfeiçoamento dos instrumentos institucionais de combate aos
delitos: os desafios da criminalidade organizada e transnacional. A
melhoria do aparato jurídico penal dos países sempre foi um valor a
impulsionar o processo de integração internacional nos multiníveis
normativos25. Fenômenos como o crime organizado indicam a relevância

24
Com procedimento primeiramente indicado no Protocolo Adicional n. 14 da CEDH, e, na
sequência, integrado no art. 61 do Regulamento da Corte EDH (EUROPEAN COURT OF
HUMAN RIGHTS, 2022).
25
Para um apanhado do processo histórico recente de internacionalização do Direito
Penal, o texto de Zapatero (2013).

448 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022.
NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
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de alguma padronização nos métodos de atuação, de harmonização


das incriminações, e de efetiva cooperação entre os países. Tarefa que,
no espaço jurídico latino-americano de integração, deve ter como ator
principal o SIDH, pelos seus órgãos de atuação.

3.3 Os novos desafios do crime organizado no contexto


multinível

O movimento de intensa harmonização da persecução penal no


plano internacional, com aspectos bem avançados, foi impulsionado,
primordialmente, na esfera dos direitos do imputado no processo. O
objetivo de superar resquícios, não tão incomuns, de arbitrariedades e
excessos na repressão penal deve permanecer como uma preocupação
constante. A noção deve ser a de que todo o esforço no sentido de
assegurar direitos e garantias individuais dos acusados não é excessivo,
e qualquer distração terá consequências perniciosas na realização dos
Direitos Humanos.

Há, no entanto, um contexto diferente na persecução penal,


no aspecto do controle da criminalidade. Os novos desafios falam
não só de incremento da criminalidade, mas de uma nova tipologia
de manifestações do crime, definida por alguns como criminalidade
moderna, para distinguir dos crimes tradicionais de roubo, furto, lesões
e violência (ZAPATERO, 2013, p. 15).

À parte o terrorismo, que ainda resta mais circunscrito a


determinados estados, uma série de fenômenos difusos como os crimes
econômico-financeiros, a corrupção e lavagem de dinheiro, a evasão
de divisas, os tráficos de drogas, mulheres e crianças – na maioria dos
casos praticados sob a forma da organização criminosa, com atuação
transnacional – gera grandes dificuldades na abordagem estatal. Sem
falar na propagação dos cibercrimes, que desconsideram as fronteiras

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022. 449
FREDERICO VALDEZ PEREIRA

e estão se tornando protagonistas das preocupações internacionais de


enfrentamento de crimes (SOUZA; BARROS, 2022).

Não se trata, por óbvio, de dizer que é recente a prática de


crimes por vários agentes em cooperação, e sim que o novo gênero
do crime organizado é decorrência de uma conjunção de fatores, tais
como as facilidades de mobilidade e de comunicação; a evolução
tecnológica e os novos instrumentos de trânsito e gestão de dados;
a capacidade de influência econômica e corruptiva, e mesmo de
infiltração nas estruturas econômica e institucional (ZAPATERO, 2013;
BALSAMO; MATTARELLA, 2021), o que, tudo somado, conferem ao
crime organizado atual grandes potenciais de dano, de dissipação e
de ocultação.

Exatamente em decorrência desse quadro que se torna tão


difícil o combate estatal eficaz ao crime organizado, mormente
quando as tentativas de resposta não estejam integradas em um
contexto comunitário de enfrentamento, com alguma padronização de
instrumentos e atuação26.

Todo esse cenário deve levar a um fortalecimento da


internacionalização no combate ao crime organizado. O primeiro
passo é a conscientização dos países e das instituições supranacionais
da urgência do problema e da necessidade tanto de aperfeiçoar
como de harmonizar os instrumentos normativos direcionados ao
enfrentamento dos delitos. É preciso seguir com a busca de alguma
uniformidade na repressão penal, o que vai depender de relativa
consonância na tipificação de condutas, e da harmonia e integração

26
Não são recentes os diagnósticos do aspecto transnacional da criminalidade organizada.
Ver relatório da United Nations Office on Drugs and Crime – UNODC (UNITED NATIONS,
2010).

450 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022.
NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO: INTERAMERICANIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

entre os procedimentos de investigação penal e de cooperação


judiciária.

Recomendável que as dinâmicas de harmonização sejam


introduzidas também pelo SIDH, em um processo de melhoria e
harmonização dos sistemas jurídicos nacionais com base no impulso
supranacional. Motivos foram referidos: os órgãos de controle desse
sistema, e a revolução gerada pela atuação, sobretudo, da CIDH, mas
também da comissão interamericana, indicam que o processo de
recebimento, pelos países do espaço latino-americano, dos estândares
internacionais de atuação é amplificado.

4 CONTRASTE AO CRIME ORGANIZADO NA UNIÃO EUROPEIA

Diagnóstico rápido identifica a maior preocupação no espaço


europeu com o enfrentamento conjunto da criminalidade organizada27.
Essa prolífera bagagem de atuação institucional conjunta entre as
nações e os organismos extranacionais, no tema do combate ao crime
organizado, repercute na quantidade e no aprofundamento dos estudos
dogmáticos. Nesse amplo contexto, pretende-se apenas fazer algumas
referências pontuais à experiência europeia, indicando exemplos de
um caminho a inspirar o percurso latino-americano.

Há direcionamento da UE de aproximar as condutas puníveis


nos países-membros28. Seus órgãos adotam uma série de estratégias
de intervenção, de modo a exprimir uma política criminal europeia e

27
A Decisão-Quadro n. 2008/841/JAI, relativa à luta contra a criminalidade organizada,
pode ser considerada o ato jurídico marcante na construção de um regime europeu
contra a criminalidade organizada (UNIÃO EUROPEIA, 2008b).
28
Na base, a ideia de que a harmonização aumenta a confiança recíproca entre os estados-
membros e, por consequência, a eficácia do princípio do reconhecimento recíproco:
“Nella prospettiva di un ‘circolo virtuoso’ che lega i tre fenomeni” (AMALFITANO, 2014,
p. 19).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022. 451
FREDERICO VALDEZ PEREIRA

influenciar as ordens jurídicas fracionárias. Não cabe, neste limitado


contexto, explorar tema por natureza problemático, a intenção é
apenas ilustrar o empenho regional na direção de harmonizar normas
incriminatórias em setores relevantes ao espaço europeu.

A doutrina considera que a UE tem competência penal indireta,


ou seja, competência para requerer que os estados editem leis penais
em conformidade com a política criminal comunitária (SOTIS, 2013,
p. 42). O art. 83 do Tratado sobre o Funcionamento da UE – TFUE
sistematizou essa competência penal indireta (UNIÃO EUROPEIA,
2012). Sempre com base na necessidade de enfrentamento integrado,
a UE pode estabelecer regras mínimas para definição dos delitos e das
penas em setores mais sensíveis, dentre os quais o crime organizado.

Os empenhos de harmonização se refletiram na disposição


de conceber instrumentos comuns de tutela para confrontar a
criminalidade mais grave. Nessa vertente processual, o intento da
instituição regional é de desenvolver mecanismos avançados de
cooperação ampla entre as diferentes ordens jurídicas, alcançando a
cooperação policial e judicial.

O Eurojust é considerado o primeiro organismo europeu


na matéria penal de natureza supranacional29. É responsável por
incrementar a cooperação e a coordenação entre as autoridades em
matéria de investigação e processo, auxiliando também na busca de
uniformidade dos ritos. O art. 85 do TFUE regulamenta as funções da
agência, incluindo a possibilidade de instaurar investigações penais

29
Foi criado como unidade da UE em 2002, pela decisão do Conselho n. 2002/187/
JHA, para reforçar o combate à grave criminalidade. Em 2018, foi constituído como
agência para a cooperação judiciária penal pelo Regulamento UE n. 2018/1727 (UNIÃO
EUROPEIA, 2018). Para consulta na doutrina recente, o escrito de Salazar (2019, p. 43).

452 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022.
NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO: INTERAMERICANIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

e propor a instauração de ações penais pelas autoridades nacionais


competentes, quando em questão interesses financeiros da UE.

A contraparte policial do Eurojust é a Europol, que tem finalidades


similares de potencializar ações das autoridades competentes
dos estados-membros e a colaboração recíproca30. A agência tem
atividades de coleta e intercâmbio de informações, instauração ou
participação em equipes nacionais conjuntas de investigação. Pode
ainda requerer às autoridades nacionais que iniciem, realizem ou
coordenem investigações penais. É organismo que complementa o
núcleo estruturante do sistema de coordenação dos procedimentos
policiais e judiciais relativos à grave criminalidade interfronteiras.

Quadro em que deve se incluir a Procuradoria Europeia –


PE, prevista no art. 86 do TFUE31. A PE é a instituição responsável
pelas investigações, pela repressão e pelo exercício da ação penal
relativamente aos crimes que afetam os interesses financeiros da UE.
Embora com atuação originária restrita a esse grupo de delitos, há
possibilidade de as atribuições da procuradoria serem estendidas ao
combate à grave criminalidade com dimensão transfronteiriça32.

Outros instrumentos de vanguarda formalizados no seio da UE


visam também superar antigas práticas nas relações de cooperação
internacional. Institutos como a decisão europeia de investigação –

30
A European Police Office – Europol foi instituída por decisão do conselho de 2009. A
última alteração se deu pelo Regulamento n. 2016/794, do parlamento europeu e do
conselho, que criou a Agência da União Europeia para a Cooperação Policial – Europol
(UNIÃO EUROPEIA, 2016).
31
Segundo a doutrina (FIDELBO, 2016, p. 93), a inspiração direta da European Public
Prosecution Office – EPPO é o Corpus Juris Civilis, modelo normativo de iniciativa
do Parlamento Europeu, elaborado por grupo internacional coordenado por Mireille
Delmas-Marty. A EPPO foi efetivamente instituída pelo Regulamento do Conselho
n. 2.017/1939 (UNIÃO EUROPEIA, 2017).
32
Cf. § 4º do art. 86 do TFUE. Sobre a articulação entre Eurojust e Procuradoria Europeia,
ver o escrito de Spiezia (2018).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022. 453
FREDERICO VALDEZ PEREIRA

DEI33 em matéria penal e o Mandado de Detenção Europeu – MDE34


substituíram mecanismos como as cartas rogatórias, instituindo formas
práticas e ágeis de cooperação horizontal para obtenção e circulação
da prova penal e captura e entrega de pessoas. Fio condutor desse
conjunto de medidas é o princípio do reconhecimento mútuo de
sentenças e decisões judiciais, consentindo relação jurídica direta
entre as autoridades judiciárias de cada Estado-Membro.

A finalidade deste subitem é de referir exemplos consistentes da


coordenação penal na UE em matéria de enfrentamento à criminalidade
organizada. O elevado estágio de desenvolvimento passa pela
harmonização legislativa; pela instituição de estruturas orgânicas
de atuação conjunta, que estimulam a cooperação ágil; e ainda pela
concepção de medidas e expedientes diretos de cooperação.

A criminalidade transnacional deve impulsionar práticas


de investigação e de processo penal também transnacionais. A
conjugação dos atos jurídicos advindos da UE e do Conselho da
Europa em matéria penal permite concluir que o almejado no âmbito
interamericano é uma realidade na Europa. Há algum tempo fala-se em
Direito Penal europeu e em europeização do Direito Penal. A despeito
dos problemas de integração de jurisdições, de equilíbrio no binômio
soberania-harmonização35, são inegáveis os avanços sem precedentes
no contraste à grave criminalidade em geral e ao crime organizado em
particular.

33
Regulada pela Diretiva n. 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho (UNIÃO
EUROPEIA, 2014). DEI corresponde a uma decisão judicial proferida ou validada por
autoridades judiciais de um país para execução de medidas investigativas em outro
país. Na doutrina, Daniele (2016).
34
Originado na Decisão-Quadro do Conselho n. 2002/584/JHI, de 13 de junho de 2002
(UNIÃO EUROPEIA, 2002). Seria a primeira concretização na seara penal do princípio
do reconhecimento mútuo. É uma espécie de extradição simplificada e despolitizada,
para entrega da pessoa procurada ou condenada.
35
Nessa linha, Sotis (2013, p. 3) refere que a relação entre Direito Penal e integração
europeia é marcada pela contradição.

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NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO: INTERAMERICANIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

5 INTERAMERICANIZAÇÃO PENAL NO COMBATE AO CRIME


ORGANIZADO

Os organismos do SIDH, no âmbito da OEA, podem ter


contribuição decisiva no aprimoramento da eficácia no combate ao
crime organizado. Para tanto, deveriam assumir o protagonismo na
elaboração e condução de uma estratégia regional e integrada de
contraste às organizações criminosas.

Esse esforço conjunto deve passar, inicialmente, por iniciativas


políticas de sensibilização da importância da atuação concertada.
Segundo passo seria a adoção de iniciativas práticas, tanto no plano
internacional como na adequação dos instrumentos jurídicos nacionais
e na estruturação das atividades operacionais. Talvez se possa
vislumbrar, num futuro próximo, um projeto de normativa regional
que contemple as experiências nacionais, acrescendo uma mais-valia
importante, de harmonização entre os ordenamentos.

Esse quadro normativo incluiria a regulação de aspectos


relevantes ao enfrentamento integrado do crime organizado,
impulsionando a concordância na incriminação legal pelos estados-
partes das organizações criminosas e dos delitos diretamente
relacionados. Trata-se de avanço essencial, não apenas por reduzir
eventuais lacunas jurídicas que impossibilitam a responsabilização,
como para favorecer a mútua cooperação judicial.

Esse percurso também deve incluir a disciplina integrada de


medidas investigativas para estimular a adoção de recomendações
contidas na Convenção de Palermo36. É fácil perceber o estímulo que

36
Trata-se da Convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional, considerado
o principal instrumento global de combate ao crime organizado (BRASIL, 2004).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022. 455
FREDERICO VALDEZ PEREIRA

adviria de um projeto desse gênero à adoção ampla de modernas


estratégias investigativas pelos regimes jurídicos nacionais. Haveria
ganho indispensável de coesão nessas disciplinas jurídicas, facilitando
a atuação coordenada, e a inserção no circuito da cooperação
internacional dessas estratégias conjuntas de apuração (BALSAMO;
MATTARELLA, 2021, p. 50).

Poderiam ser alcançadas as linhas normativas gerais relativamente


a alguns instrumentos investigativos especiais como as operações
encobertas, com infiltração de agentes, que facilitaria o recurso a
operativos da mesma região cultural e étnica dos componentes do
grupo delituoso. As discrepâncias de tratamento dos meios especiais de
prova e o desnível no resguardo aos direitos fundamentais ameaçados
por esses mecanismos de investigação acabam bloqueando o recurso
a essas técnicas investigativas entre fronteiras, o que seria essencial
para o enfrentamento do crime organizado.

O recurso à vigilância eletrônica e cibernética é indispensável


não só para a busca de prova digital essencial ao enfrentamento da
cibercriminalidade, mas também para superar obstáculos corriqueiros,
nas investigações de delitos de organizações criminosas, decorrentes da
criptografia das comunicações. Tudo indica que sem uma base jurídica
comum, operacionalizada pelo fluxo de cooperação internacional
direta, as fronteiras continuariam sendo entraves apenas à utilização
das novas estratégias investigativas.

A respeito da cooperação direta, referida acima, poderia ser


reforçada uma experiência jurídica recente de colaboração direta
entre magistrados e membros do ministério público provenientes de
países não só do bloco latino-americano, mas de outras nações. A
arquitetura normativa interamericana de regulação dos magistrados e
procuradores de ligação, e de canais de cooperação, poderia estimular

456 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022.
NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO: INTERAMERICANIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

a intermediação entre as autoridades, qualificando o andamento de


instruções investigativas e probatórias.

As chamadas redes de cooperação judiciária e de polícia


favorecem formas de cooperação ágil e direta, e representam
importante passo avante no desempenho dos órgãos envolvidos
na persecução penal37. É preciso conceber um esquema jurídico
adequado, instituído em atos plurinacionais que exortem a vinculação
dos estados-partes da CADH. Somado ao posterior monitoramento
da efetiva adequação dos procedimentos domésticos à padronização
indicada na respectiva convenção. Implementar mecanismos de
coordenação para auxiliar nas investigações e processos pode facilitar
ainda mais o mecanismo de cooperação em rede38, papel que poderia
ser atribuído a uma unidade operativa de referência no âmbito do
próprio sistema interamericano.

Grupo de medidas que muito qualificaria o combate a modernas


formas de criminalidade, mas que dificilmente seria implementado sem
o impulso em normatização supranacional, assenta-se em medidas
estruturais mais avançadas, com a constituição de organismos de
investigação conjuntos. A indicação da relevância dos órgãos mistos
de investigação consta do art. 19 da Convenção da ONU contra o Crime
Organizado Transnacional. Essa composição vem agora intensamente
reforçada pela Resolução n. 10/2004 da Conferência das Partes da
Convenção ONU contra a criminalidade organizada transnacional39
(UNITED NATIONS, [2020]).

37
Exemplo da previsão de rede de cooperação é o art. 35 da Convenção do Conselho da
Europa sobre a criminalidade informática (CONVENÇÃO SOBRE O CIBERCRIME, 2001).
38
Coordenação entre os estados que pode ser impulsionada por pontos de contato
especialmente designados pelas autoridades centrais de cooperação. Finalidade
é facilitar a cooperação em matéria penal. Auxiliam nos contatos diretos entre as
autoridades competentes, e prestam informações jurídicas e práticas para impulsionar
a cooperação. A Decisão n. 2008/976/JHA do Conselho especifica as funções da Rede
Judiciária Europeia (UNIÃO EUROPEIA, 2008a).
39
A Resolução n. 10/2004 contém no § 11 a exortação aos estados para aderirem a
mecanismos de cooperação internacional, entre eles: “Joint investigation bodies that
make use of modern technologies” (UNITED NATIONS, [2020]).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022. 457
FREDERICO VALDEZ PEREIRA

Nessa linha, é possível distinguir “organismos conjuntos de


investigação”, que teriam estrutura permanente e com atribuição para
investigar determinadas tipologias de delitos, e “equipes conjuntas
de investigação”, engendradas para o desenvolvimento de atividade
investigativa em casos específicos, com duração determinada no
tempo40.

Experiências recentes indicam a importância de instrumentos


que permitam o trânsito de informações sobre a localização de ativos
financeiros, e que, em geral, facilitem a comunicação direta entre
as autoridades centrais nacionais (BALSAMO; MATTARELLA, 2021,
p. 51). A apreensão e o perdimento de bens e valores – assim como
a destinação dos bens, ações indispensáveis no enfraquecimento
das organizações transnacionais – são tributárias de mecanismos de
cooperação direta, no quadro de uma estratégia síncrona de atuação
supranacional (PONTI, 2015).

Ação coordenada que deveria ser conduzida no seio do SIDH,


com estabelecimento de padrões normativos e procedimentais de
rastreamento de bens, medidas assecuratórias transnacionais, e
gestão de ativos e repartição dos bens entre os países. Um escritório
central, e equipes conjuntas de investigação, incluindo de inteligência
financeira e de lavagem de capitais, impulsionariam a atuação conjunta
e integrada de diferentes regimes jurídicos.

Há um longo percurso para se aproximar da almejada


harmonização do Direito Penal na américa-latina, em especial no tema

40
Ver o relatório elaborado pelo secretariado para reunião do grupo de trabalho sobre
cooperação internacional, em Viena, 2020, sobre o tema: “The use and role of joint
investigative bodies in combating transnational organized crime” (UNITED NATIONS,
2020).

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NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO: INTERAMERICANIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

do contraste às organizações criminosas. O SIDH, no âmbito da OEA41,


deveria ter protagonismo nesse impulso, de certo modo conjugando
um papel que no espaço europeu é realizado tanto pelos órgãos da UE
como do Conselho da Europa42.

6 CONCLUSÃO

Diferente do que se verifica no âmbito europeu43, no espaço


interamericano convive-se com carências nos instrumentos e
estruturas jurídicas nacionais e supranacionais para o enfrentamento da
criminalidade organizada. Os maiores entraves para melhorar a eficácia
da resposta penal ao crime organizado transnacional parecem estar
na escassa harmonização de institutos e nas lacunas de cooperação
jurídica e de polícia. É muito difícil vislumbrar a implementação de
muitas das medidas indicadas acima sem um impulso concreto do
plano supranacional.

É preciso um duplo protagonismo dos órgãos do SIDH. Primeiro


no sentido de impulsionar a adaptação nacional aos standards
convencionais. Em paralelo, para sistematizar, em um regime jurídico
básico, os princípios gerais contidos em instrumentos internacionais,
como as Convenções ONU de Palermo e de Mérida (UNITED NATIONS
CONVENTION AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2004;

41
Interessante as linhas de atuação do Conselho da Europa no contraste à criminalidade
organizada transnacional, não obstante todo trabalho no seio da UE. Para visão
panorâmica, consultar ”White Paper on transnational organised crime“ (COUNCIL OF
EUROPE, 2014).
42
No documento referido na nota anterior, entre as principais conclusões está a de
que: “The involvement of the Council of Europe in developing a general strategy in
the fight against transnational organised crime – TOC, as well as undertaking political
and practical action in precise areas, would definitely contribute to the increased
effectiveness of the fight against TOC”.
43
Segundo o White Paper on transnational organised crime (COUNCIL OF EUROPE, 2014):
“The drafting of new conventions or legal instruments on TOC should no longer be seen
as a priority. Actions should focus on ratification, implementation and effectiveness of
existing legal instruments”.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022. 459
FREDERICO VALDEZ PEREIRA

CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO, 2003).


Atuação que não só serviria como catalisador da aproximação jurídica
entre os países, como efetivamente iniciaria o processo de construção
do instrumental jurídico necessário ao esforço de integração e
aperfeiçoamento dos regimes jurídicos estatais.

Aspecto de grande importância no enfrentamento do crime


organizado – de mais fácil atuação, por não envolver, propriamente,
práticas de harmonização – é a coleta de dados, estatísticas e
informações confiáveis a nível nacional e transfronteiriço. Na lógica dos
pequenos passos, inerente à impossibilidade prática de se fazer uma
revolução do contexto latino-americano, talvez o próximo pequeno
passo seja concertar a atuação dos estados na busca e trânsito de
informações sobre a atuação do crime organizado na região.

É reconhecido que o crime organizado representa uma ameaça


direta aos fundamentos do Estado de Direito, tem capacidade de minar
as estruturas democráticas, além de gerar graves consequências para
as vítimas, violando os Direitos Humanos e as instituições públicas e
econômicas. Com a característica quase inerente da transnacionalidade,
não pode ser contrastado com eficácia mediante ações desconectadas
nos estados.

Seria ilusória alguma pretensão de erradicar o fenômeno da


criminalidade organizada. Toda a questão, que justifica amplamente
as preocupações com o tema, é de conter o crime organizado dentro
de determinados limites, reduzindo sua disseminação, amenizando
consequências e alcançando alguns resultados positivos na
persecução penal. Não direcionar as atividades dos estados na direção
sumariamente indicada neste texto, de integração e cooperação ampla,
buscando harmonização de práticas e estratégias conjuntas, fará sim
que ilusório seja o combate ao crime organizado transnacional.

460 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 441-475, jan./jul. 2022.
NOVAS PERSPECTIVAS DE COMBATE AO CRIME
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LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O DIREITO À


AMPLA DEFESA NA COLABORAÇÃO PREMIADA
CRIMINAL ORGANIZATION LAW AND THE RIGHT TO DUE
PROCESS IN REWARDED

MARA LINA SILVA DO CARMO


Mestra em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo – PUC-SP. Especialização em Direito do Estado pela Fundação
Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Graduada
em Direito pela UFBA. Atualmente, exerce o cargo de juíza federal titular,
vinculada ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
https://orcid.org/0000-0002-2934-4240

RESUMO

O artigo objetiva constatar se a ampla defesa tem lugar no


procedimento de colaboração premiada, instituto jurídico de suma
importância na experiência brasileira de combate ao crime organizado
e que contribui para a ampliação dos espaços de consenso na esfera
penal. Ao examinar a Lei do Crime Organizado – Lei n. 12.850/2013 –,
modificada pela Lei n. 13.964/2019, identificam-se dispositivos legais
pertinentes ao exercício da ampla defesa na colaboração premiada,
tanto sob o ângulo do colaborador como em relação ao delatado. Em
conclusão, constata-se que a concretização da ampla defesa e de outras
garantias fundamentais na colaboração premiada depende da efetiva
observância do procedimento legal respectivo, preponderantemente,
pelo Poder Judiciário. O problema e a perspectiva de análise se
embasaram na revisão bibliográfica qualitativa e na pesquisa
documental.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022. 469
MARA LINA SILVA DO CARMO

Palavras-chave: justiça criminal; ampla defesa; colaboração premiada;


negociação penal; crime organizado.

ABSTRACT

This article aims to verify if the due process of law takes place in the
rewarded collaboration procedure, a legal institute of paramount
importance in the Brazilian experience of combating organized crime,
and that contributes to the expansion of spaces of consensus in the
criminal sphere. Having drawn a historical-legislative overview of
rewarded collaboration in Brazil, a study is made of the respective
procedure, defined by the Organized Crime Law - Law 12.850/2013,
modified by Law 13.964/2019, seeking to identify legal provisions
relevant to the due process of law, both from the perspective of de
collaborate and in relation to the one denounced by him in the rewarded
collaboration. In the end, it can be seen that the Law to combat organized
crime contains several provisions aimed at protecting the due process
of law in the rewarded collaboration procedure; the realization of this
and other fundamental guarantees, however, depends on the effective
observance of the respective legal procedure, preponderantly, by the
Judiciary. The problem and the perspective of analysis were based on
qualitative literature review and documentary research.

Keywords: criminal justice; due process of law; rewarded collaboration;


plea bargaining; organized crime.

Recebido: 14-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 A colaboração premiada no sistema jurídico brasileiro:


panorama histórico-legislativo. 3 A Lei n. 12.850/2013: contornos da

470 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022.
LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O
DIREITO À AMPLA DEFESA NA COLABORAÇÃO PREMIADA

colaboração premiada; 3.1 Algumas questões controvertidas: a ampla


defesa no combate à criminalidade organizada. 4 Críticas à colaboração
premiada: tensionamento de direitos fundamentais; 4.1 A limitação dos
direitos fundamentais. 5 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Calcado no sistema acusatório e tendo o princípio da


obrigatoriedade como bússola, o processo penal brasileiro se encontra
diante de uma inovadora realidade, plasmada na convivência entre
os princípios da obrigatoriedade e da oportunidade, bem como no
abandono de velhos dogmas quanto à imprescindibilidade de um
processo longo e demorado para que se garanta o exercício da ampla
defesa.

É o que se constata à vista das leis que regem os juizados


especiais criminais nas esferas estadual e federal, bem como, mais
recentemente, e no que interessa ao presente trabalho, em relação
à Lei n. 12.850/2013 – Lei de Organização Criminosa (BRASIL, 2013),
modificada pela Lei n. 13.964/2019, que conferiu uma nova roupagem
à colaboração premiada, fixando regras específicas e detalhadas sobre
o respectivo procedimento.

A colaboração premiada tem sua incidência destinada aos


processos e procedimentos criminais relacionados à prática de crimes
por organizações criminosas. Isso se justifica porque, nesse tipo de
criminalidade, de maior complexidade, os integrantes da organização
se relacionam, essencialmente, com base na confiança mútua e na Lei
do Silêncio (omertá) acerca das atividades do grupo, blindando-se uns
aos outros e, em especial, aqueles que ocupam os níveis hierárquicos
mais altos, em uma verdadeira teia de cumplicidades.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022. 471
MARA LINA SILVA DO CARMO

Diante desses fatores, os meios convencionais de obtenção de


prova podem ser insuficientes para alcançar os líderes da organização
criminosa, restringindo a sua eficácia, em geral, à comprovação dos
crimes que correspondem às tarefas praticadas na base dessa estrutura,
composta pelos agentes criminosos que atuam na linha de frente1.

Nos termos da Lei n. 12.850/20132, a colaboração premiada


tem natureza jurídica de meio de obtenção de prova e, conforme
alteração promovida nesse diploma legal pela Lei n. 13.964/20193, com
clara inspiração na visão do Supremo Tribunal Federal – STF sobre o
tema, configura-se como negócio jurídico processual condicionado à
eficácia do resultado, o que implica a necessidade de atendimento aos
requisitos de existência, validade e eficácia dos negócios jurídicos em
geral4.

A propósito, Cavali (2017) afirma que, ao prever a celebração de


acordos de colaboração premiada, a Lei de Organização Criminosa
ficou no “meio do caminho” entre um avanço tímido na previsibilidade
das consequências dos acordos e uma adoção declarada de uma
substancial ampliação do âmbito da justiça penal negociada.

1
Nessa linha de compreensão, Costa (2017, f. 173) assevera que: “São diversos os
mecanismos de blindagem existentes em grupos criminosos organizados, principalmente
de sua liderança, os quais dificultam sobremaneira a atuação dos órgãos responsáveis
pela persecução criminal. Dessa maneira, as investigações convencionais somente
levariam à possível responsabilização criminal de atores de baixa relevância no âmbito
da organização criminosa”.
2
Art. 3º “Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros
previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova: I - colaboração premiada”
(BRASIL, 2013).
3
Art. 3º-A “O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de
obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos” (BRASIL, 2013).
4
Essa linha de entendimento foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento
pertinente à Questão de Ordem levantada nos autos da PET 7074/DF, apresentada,
inicialmente, nos autos da Petição 7003, pertinente à homologação de acordos de
colaboração premiada no âmbito da denominada Operação Lava-Jato. No julgamento
da citada QO 7074, restou assentado que o acordo de colaboração premiada possui
natureza jurídica de negócio jurídico condicionado à eficácia da colaboração (BRASIL,
2017).

472 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022.
LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O
DIREITO À AMPLA DEFESA NA COLABORAÇÃO PREMIADA

Ainda assim, a Lei de Organização Criminosa preencheu uma


lacuna existente em textos legais anteriores e tornou viável a efetiva
existência da colaboração premiada como ferramenta de negociação
penal, com características semelhantes ao plea bargaining norte-
americano – sem que se confunda com este.

Assentadas essas premissas, o presente artigo objetiva examinar


se a ampla defesa tem lugar no procedimento de colaboração premiada,
instituto jurídico de suma importância na experiência brasileira de
combate ao crime organizado e que contribui para a ampliação dos
espaços de consenso na esfera penal.

Para tanto, adentrando a esfera da realização de acordos


em demandas criminais que envolvem a criminalidade organizada,
este artigo se desenvolve, essencialmente, com base na análise da
Lei de Organização Criminosa – Lei n. 12.850/2013 (BRASIL, 2013),
modificada pela Lei n. 13.964/2019 –, debruçando-se sobre a doutrina
e jurisprudência a respeito da colaboração premiada. A metodologia
utilizada, portanto, é a revisão bibliográfica qualitativa combinada com
a análise documental.

A propósito, há o exame da origem histórico-legislativa da


colaboração premiada até o momento em que surge no ordenamento
jurídico a Lei n. 12.850/2013 (BRASIL, 2013), quando se realiza um
estudo verticalizado do seu teor, a fim de identificar dispositivos que
se refiram ao exercício da ampla defesa no procedimento aplicável
à colaboração premiada, confrontando-o com estudos doutrinários
sobre o tema.

Por fim, são apresentadas as críticas feitas pela doutrina contra


a utilização da colaboração premiada no sistema de justiça penal
brasileiro, e que se fundamentam, basicamente, na alegação de
inobservância de princípios e garantias fundamentais. Em especial,

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022. 473
MARA LINA SILVA DO CARMO

nesse último tópico, caberá a abordagem das críticas pertinentes ao


(não) exercício da ampla defesa no procedimento negocial previsto na
Lei de Organização Criminosa – Lei n. 12.850/2013 (BRASIL, 2013).

Em suma, com base em toda a pesquisa realizada, a partir


da revisão bibliográfica qualitativa e análise documental, este
trabalho pretende obter um direcionamento quanto à possibilidade
de concretização da garantia da ampla defesa na utilização da
colaboração premiada para o enfrentamento da criminalidade
organizada no Brasil.

2 A COLABORAÇÃO PREMIADA NO SISTEMA JURÍDICO


BRASILEIRO: PANORAMA HISTÓRICO-LEGISLATIVO

Na legislação brasileira, os primeiros registros históricos


(SALOMI, 2017) que remetem à ideia de colaboração premiada podem
ser encontrados nas Ordenações Filipinas, de 1603, cujo Livro V, Título
VI, definia o crime de “Lesa Magestade”5 (sic); e, no item 126, trazia
elementos que revelam uma previsão embrionária do disposto no
art. 4º, § 4º, da Lei de Organização Criminosa.

5
Foi com base nas Ordenações Filipinas que houve a condenação de Joaquim José da
Silva Xavier, o Tiradentes, delatado por Joaquim Silvério dos Reis, como se extrai do
seguinte trecho do julgado prolatado nos autos de Devassa da Inconfidência Mineira:
“[…] mas prevalecendo no dito Joaquim Silvério a fidelidade e lealdade que devia ter
como vassalo da dita Senhora, delatou tudo ao governador da Capitania de Minas em
15 de março de 1789, como consta da atestação do mesmo governador, a folhas 177 da
continuação da Devassa de Minas, e depois por escrito, como se vê a folhas 5 da dita
Devassa, com a data de 19 de abril do mesmo ano” (CLETO, 1978).
6
Assim se encontrava redigido o item 12: “E quanto ao que fizer conselho e confederação
contra o Rey, se logo sem algum spaço, e antes que per outrem seja descoberto, elle
o descobrir, merece perdão. E ainda por isso lhe deve ser feita mercê, segundo o caso
merecer, se elle não foi o principal tratador desse conselho e confederação. E não o
descobrindo logo, se o descobrir depois per spaço de tempo, antes que o Rey seja
disso sabedor, nem feita obra por isso, ainda deve ser perdoado, sem outra mercê. E em
todo o caso que descobrir o tal conselho, sendo já per outrem descoberto, ou posto em
ordem para se descobrir, será havido por commettedor do crime de Lesa Magestade,
sem ser relevado da pena, que por isso merecer, pois o revelou em tempo, que o Rey já
sabia, ou stava de maneira para o não poder deixar saber” (LIVRO..., [20--]).

474 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022.
LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O
DIREITO À AMPLA DEFESA NA COLABORAÇÃO PREMIADA

Segundo o citado item 12 das Ordenações Filipinas (LIVRO...,


[20--]), para a concessão do perdão, exigia-se que o colaborador
não fosse “o principal tratador desse conselho e confederação” e que
prestasse a colaboração “antes que per outrem seja descoberto” (sic),
o que corresponde, essencialmente, aos requisitos para a concessão
da imunidade – ou não oferecimento da denúncia –, quais sejam, a
necessidade de o colaborador ser o primeiro a colaborar e não ser o
líder da organização criminosa7.

As Ordenações Filipinas regeram a persecução penal brasileira


de 1603 até 1830, quando entrou em vigor o Código Penal, mas,
somente com a Lei dos Crimes Hediondos – Lei n. 8.072/1990
(BRASIL, 1990a) –, surgiu nova previsão legal quanto à colaboração
premiada, com contornos mais próximos da versão atual desse
instrumento, como se constata do seu art. 8º, parágrafo único8.

Outrossim, após as Ordenações do Reino, podem ser citados os


seguintes dispositivos legais que remetem, de algum modo, ao atual
formato da colaboração premiada: Código Penal (art. 159, § 4º)9; Lei
n. 7.492/1986 – Crimes contra o Sistema Financeiro (art. 25, § 2º)10; Lei
n. 8.072/1990 – Lei dos Crimes Hediondos (art. 8º, parágrafo único);
Lei n. 8.137/1990 – Crimes contra a Ordem Tributária (art. 16, parágrafo

7
Lei n. 12.850/2013, art. 4º, § 4º: “Nas mesmas hipóteses do caput deste artigo, o Ministério
Público poderá deixar de oferecer denúncia se a proposta de acordo de colaboração
referir-se à infração de cuja existência não tenha prévio conhecimento e o colaborador
(Redação dada pela Lei n. 13.964, de 2019): I – não for o líder da organização criminosa;
II – for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo” (BRASIL, 2013).
8
Art. 8º, parágrafo único: “O participante e o associado que denunciar à autoridade o
bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a
dois terços” (BRASIL, 1990a).
9
Art.159, § 4º: “Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à
autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois
terços” (BRASIL, 1940).
10
Art. 25, § 2º: “Nos crimes previstos nesta lei, cometidos em quadrilha ou coautoria, o
coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial
ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços” (Incluído
pela Lei n. 9.080, de 19 de julho de 1995) (BRASIL, 1986).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022. 475
MARA LINA SILVA DO CARMO

único)11; Lei n. 9.613/1998 – Lei de Lavagem de Dinheiro (art. 1º, § 5º)12;


Lei n. 9.807/1999 – Lei de Proteção às Testemunhas (arts. 13 a 15)13;
Lei n. 11.343/2006 – Lei Antidrogas (art. 41)14; Lei n. 12.529/2011 –
Lei Antitruste (art. 87, parágrafo único)15; Lei n. 12.850/2013 – Lei de
Organização Criminosa (BRASIL, 2013).

Dentre os textos legais supramencionados, a Lei n. 12.850/2013


(Lei de Organização Criminosa), inegavelmente, ocupou-se da
colaboração premiada e de seu respectivo procedimento com maior
riqueza de detalhes.

11
Art. 16, parágrafo único: “Nos crimes previstos nesta lei, cometidos em quadrilha ou
coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade
policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços”
(Parágrafo incluído pela Lei n. 9.080, de 19 de julho de 1995) (BRASIL, 1990b).
12
Art. 1º, § 5º: “A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em
regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-
la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe
colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que
conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e
partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime” (Redação
dada pela Lei n. 12.683, de 2012) (BRASIL, 1998).
13
Art. 13: “Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão
judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha
colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que
dessa colaboração tenha resultado: I – a identificação dos demais coautores ou partícipes
da ação criminosa; II – a localização da vítima com a sua integridade física preservada;
III – a recuperação total ou parcial do produto do crime.
Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do
beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.
Art. 14: O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial
e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime, na
localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no
caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços. Art. 15: Serão aplicadas em
benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção
a sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual ou efetiva” (BRASIL, 1999).
14
Art. 41: “O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação
policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do
crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação,
terá pena reduzida de um terço a dois terços” (BRASIL, 2006b).
15
Art. 87: “Nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei n. 8.137, de 27 de
dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais
como os tipificados na Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do
Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, a celebração de acordo
de leniência, nos termos desta lei, determina a suspensão do curso do prazo prescricional
e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência.
Parágrafo único. Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se
automaticamente a punibilidade dos crimes a que se refere o caput deste artigo”
(BRASIL, 2011).

476 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022.
LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O
DIREITO À AMPLA DEFESA NA COLABORAÇÃO PREMIADA

Convém destacar que, no âmbito internacional, há dois


importantes textos contendo dispositivos que, antes mesmo da Lei
n. 12.850/2013, davam suporte constitucional à adoção da colaboração
premiada16 no sistema jurídico nacional, quais sejam, a Convenção das
Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional – Convenção
de Palermo (art. 26)17 –, internalizada no ordenamento jurídico brasileiro
pelo Decreto n. 5.015, de 12 de março de 2004; e a Convenção das

16
“[…] A constitucionalidade da colaboração premiada, instituída no Brasil por norma
infraconstitucional na linha das Convenções de Palermo (art. 26) e Mérida (art. 37),
ambas submetidas a procedimento de internalização (Decretos n. 5.015/2004 e
5.687/2006, respectivamente), encontra-se reconhecida por esta Corte (HC 90.688,
Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 12/02/2008, DJe-
074 divulg 24-04-2008 public 25-04-2008 ement vol-02316-04 PP-00756 RTJ VOL-
00205-01PP-00263 LEXSTF v. 30, n. 358, 2008, p. 389-414) desde antes da entrada
em vigor da Lei n. 12.850/2013, que exige como condição de validade do acordo de
colaboração a sua homologação judicial, que é deferida quando atendidos os requisitos
de regularidade, legalidade e voluntariedade” (BRASIL, 2015).
17
“Artigo 26. Medidas para intensificar a cooperação com as autoridades competentes
para a aplicação da lei:
1. Cada Estado-Parte tomará as medidas adequadas para encorajar as pessoas que
participem ou tenham participado em grupos criminosos organizados:
a) A fornecerem informações úteis às autoridades competentes para efeitos de
investigação e produção de provas, nomeadamente.
i) A identidade, natureza, composição, estrutura, localização ou atividades dos grupos
criminosos organizados;
ii) As conexões, inclusive conexões internacionais, com outros grupos criminosos
organizados;
iii) As infrações que os grupos criminosos organizados praticaram ou poderão vir a
praticar;
b) A prestarem ajuda efetiva e concreta às autoridades competentes, susceptível de
contribuir para privar os grupos criminosos organizados dos seus recursos ou do
produto do crime.
2. Cada Estado-Parte poderá considerar a possibilidade, nos casos pertinentes, de
reduzir a pena de que é passível um arguido que coopere de forma substancial na
investigação ou no julgamento dos autores de uma infração prevista na presente
convenção.
3. Cada Estado-Parte poderá considerar a possibilidade, em conformidade com
os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico interno, de conceder
imunidade a uma pessoa que coopere de forma substancial na investigação ou no
julgamento dos autores de uma infração prevista na presente convenção.
4. A proteção destas pessoas será assegurada nos termos do art. 24 da presente
convenção.
5. Quando uma das pessoas referidas no parágrafo 1º do presente artigo se encontre
num Estado-Parte e possa prestar uma cooperação substancial às autoridades
competentes de outro Estado-Parte, os estados-partes em questão poderão
considerar a celebração de acordos, em conformidade com o seu Direito Interno,
relativos à eventual concessão, pelo outro Estado-Parte, do tratamento descrito nos
parágrafos 2º e 3º do presente artigo” (BRASIL, 2004).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022. 477
MARA LINA SILVA DO CARMO

Nações Unidas contra a Corrupção – Convenção de Mérida (art. 37)18 –,


internalizada no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n. 5.687,
de 31 de janeiro de 2006.

3 A LEI N. 12.850/2013 E O INSTITUTO DA COLABORAÇÃO


PREMIADA

No cenário em que crimes praticados por organizações


criminosas estão cada vez mais bem estruturadas, a colaboração
premiada surge como um dos instrumentos à disposição do Estado
para a obtenção de provas sobre as atividades delitivas do grupo,
que se orienta, essencialmente, pela Lei do Silêncio19. A partir desse
negócio jurídico processual e do meio excepcional de obtenção de

18
“Artigo 37. Cooperação com as autoridades encarregadas de fazer cumprir a lei:
1. Cada Estado-Parte adotará as medidas apropriadas para restabelecer as pessoas que
participem ou que tenham participado na prática dos delitos qualificados de acordo
com a presente convenção que proporcionem às autoridades competentes informação
útil com fins investigativos e probatórios e as que lhes prestem ajuda efetiva e concreta
que possa contribuir a privar os criminosos do produto do delito, assim como recuperar
esse produto.
2. Cada Estado-Parte considerará a possibilidade de prever, em casos apropriados,
a mitigação de pena de toda pessoa acusada que preste cooperação substancial à
investigação ou ao indiciamento dos delitos qualificados de acordo com a presente
convenção.
3. Cada Estado-Parte considerará a possibilidade de prever, em conformidade com os
princípios fundamentais de sua legislação interna, a concessão de imunidade judicial
a toda pessoa que preste cooperação substancial na investigação ou no indiciamento
dos delitos qualificados de acordo com a presente convenção.
4. A proteção dessas pessoas será, mutatis mutandis, a prevista no artigo 32 da presente
convenção.
5. Quando as pessoas mencionadas no parágrafo 1º do presente artigo se encontrem
em um Estado-Parte e possam prestar cooperação substancial às autoridades
competentes de outro Estado-Parte, os estados-partes interessados poderão
considerar a possibilidade de celebrar acordos ou tratados, em conformidade com sua
legislação interna, a respeito da eventual concessão, por esse Estado-Parte, do trato
previsto nos parágrafos 2º e 3º do presente artigo” (BRASIL, 2006a).
19
“A inspiração do instituto reside, pois, na busca da efetividade da persecução
penal mediante um acordo entre as partes – acusador e acusado ou investigador e
investigado –, no intuito de aprimorar a proteção aos bens jurídicos tutelados pelo
Direito Penal. Para fazer frente à criminalidade moderna, que se vale de técnicas cada
vez mais sofisticadas, fez-se necessário recorrer a instrumentos de investigação mais
eficazes, diferentes dos meios tradicionais” (SALOMI, 2017, p. 151-184).

478 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022.
LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O
DIREITO À AMPLA DEFESA NA COLABORAÇÃO PREMIADA

prova, busca-se extrair informações via colaboração de integrantes da


própria organização criminosa, o que seria inatingível com base em
meios convencionais e fora do espaço de consenso.

Ocorre que, devido à probabilidade de colisão entre os


direitos fundamentais do colaborador/delator e do delatado, no
curso do procedimento de colaboração premiada, torna-se ainda
mais recomendável a parcimônia na opção por esse instrumento
de negociação penal, sob pena de causar sérios danos ao sistema
constitucional de garantias e prejudicar a consolidação dos espaços
de consenso no processo penal brasileiro.

3.1 Algumas questões controvertidas: a ampla defesa no


combate à criminalidade organizada

A Lei n. 12.850/2013 define o que é uma organização criminosa e


dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova,
as infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado,
além de dar outras providências (BRASIL, 2013).

Denotando a inovadora previsão de um procedimento específico


para a colaboração premiada, extrai-se do texto legal sob exame a
preocupação do legislador em assegurar a assistência de defensor
ao colaborador, durante todo o procedimento, possibilitando o
exercício da ampla defesa sob a vertente da defesa técnica. É o que
revela, por exemplo, o art. 4º, § 6º20, que, ao vedar a participação do
juiz nas negociações para a formalização do acordo de colaboração,

20
Art. 4º, § 6º: “O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para
a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia,
o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público ou, conforme o
caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor” (BRASIL,
2013).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022. 479
MARA LINA SILVA DO CARMO

exige a presença do defensor do investigado ou acusado colaborador,


juntamente aos demais atores dessa cena – Ministério Público e/ou
delegado de polícia, conforme a hipótese.

Fora da mesa de negociações, o juiz examina a possibilidade de


homologação do acordo de colaboração premiada21, momento em que
a observância da ampla defesa deve estar evidenciada, tanto sob o
enfoque da defesa técnica quanto da defesa efetiva. O juiz verifica,
portanto, se, além de estar formalmente presente, o defensor atuou
na defesa do colaborador. Tendo atuado, certamente, o defensor o fez
de modo a inibir qualquer tipo de coação ao colaborador, bem como
a prática de algum ato apto a desbordar o procedimento legalmente
previsto ou configurar ofensa a alguma garantia constitucional –
inclusive no pertinente à ampla defesa.

Um outro meio de se concretizar a garantia da ampla defesa está


previsto no art. 4º, § 1322, da Lei do Crime Organizado (BRASIL, 2013),
que diz respeito à obrigatoriedade de registro das tratativas e dos
atos de colaboração premiada pelos meios ou recursos de gravação
magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual.

Nesse ponto, resta clara a finalidade de se assegurar um registro


fidedigno do procedimento, medida esta que, inegavelmente, propiciará
ao colaborador – e ao delatado – o posterior exercício da ampla defesa

21
Art. 4º, § 7º: “Realizado o acordo na forma do § 6º deste artigo, serão remetidos
ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da
investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu
defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação”.
(Redação dada pela Lei n. 13.964, de 2019) (BRASIL, 2013).
22
Art. 4º, § 13: “O registro das tratativas e dos atos de colaboração deverá ser feito
pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar,
inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações, garantindo-
se a disponibilização de cópia do material ao colaborador”. (Redação dada pela Lei
n. 13.964, de 2019) (BRASIL, 2013).

480 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022.
LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O
DIREITO À AMPLA DEFESA NA COLABORAÇÃO PREMIADA

e, mais ainda, do contraditório, tendo por base o conteúdo real das


declarações então coletadas pela autoridade legitimada.

Quanto ao delatado, tem-se, ainda, a vedação de se decretar


medidas cautelares pessoais ou reais, receber denúncia ou queixa-
crime, bem como prolatar sentença condenatória com base,
exclusivamente, nas declarações do agente colaborador – art. 4º,
§ 1623, da lei em tela. Com isso, traduz-se o respeito ao devido processo
legal, bem como à ampla defesa e ao contraditório no curso da ação
penal que vier a ser proposta com base nas declarações do acusado/
réu colaborador.

Em uma espécie de síntese do que foi objeto de análise e


discussão, quanto à indispensável assistência de defensor ao acusado
ou réu colaborador, em todos os atos de negociação, confirmação e
execução da colaboração premiada, tem-se o teor do § 15 do citado
art. 4º24, o que serve para ratificar a presença dos meios inerentes ao
exercício da ampla defesa nesse procedimento.

Em reforço à concretização da ampla defesa, bem como do


exercício do contraditório e, consequentemente, do devido processo de
colaboração premiada, merece destaque o art. 6º da Lei n. 12.850/2013
que, no caput, determina a adoção da forma escrita para o termo de
acordo e, em seu inciso III, exige que a declaração de aceitação do
colaborador e de seu defensor conste desse termo (BRASIL, 2013).

23
Lei n. 12.850/2013, art. 4º, § 16: “Nenhuma das seguintes medidas será decretada ou
proferida com fundamento apenas nas declarações do colaborador”. (Redação dada
pela Lei n. 13.964, de 2019) (BRASIL, 2013).
24
Lei n. 12.850/2013, art. 4º, § 15: “Em todos os atos de negociação, confirmação e
execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor” (BRASIL,
2013).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022. 481
MARA LINA SILVA DO CARMO

Além disso, o termo do acordo deverá conter25: o relato da


colaboração e seus possíveis resultados; as condições da proposta do
Ministério Público ou do delegado de polícia; a declaração de aceitação
do colaborador e de seu defensor; as assinaturas do representante do
Ministério Público ou do delegado de polícia, do colaborador e de seu
defensor; a especificação das medidas de proteção ao colaborador e à
sua família, quando necessário.

Denota-se que, ao estabelecer a forma escrita do termo de


colaboração premiada, a Lei de Organização Criminosa afasta a
possibilidade dos chamados acordos informais, priorizando a segurança
jurídica quanto ao cumprimento das condições pactuadas pelas partes.
Ademais, a especificação do respectivo conteúdo viabiliza a devida
análise judicial quanto à comprovação da voluntariedade, efetividade
e eficácia do acordo, bem como da efetiva defesa ao colaborador e
eventual adoção de medidas de proteção em seu favor e/ ou de sua
família.

4 CRÍTICAS À COLABORAÇÃO PREMIADA: TENSIONAMENTO


DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Apesar de todos os dispositivos que preveem a presença do


defensor no curso do respectivo procedimento, como examinado
no tópico anterior, há críticas à adoção da colaboração premiada,

25
Discorrendo sobre a forma e o conteúdo do termo de colaboração premiada, Mendonça
(2013, p. 16) faz interessante o apontamento: “Adotou-se a prática, desenvolvida
inicialmente na força-tarefa do caso Banestado e inspirada no Direito norte-americano,
de se realizar um verdadeiro “contrato”, com cláusulas contratuais entre as partes.
Há basicamente quatro vantagens do acordo escrito: (i) traz maior segurança para
os envolvidos; (ii) estabelece com maior clareza os limites do acordo; (iii) permite o
consentimento informado do imputado, assegurando a voluntariedade; (iv) dá maior
transparência e permite o controle não apenas pelos acusados atingidos, mas do
magistrado, dos órgãos superiores e pela própria população em geral. Assim, o acordo
escrito traz maior eficiência para a investigação, ao tempo que melhor assegura os
interesses do colaborador e dos imputados”.

482 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022.
LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O
DIREITO À AMPLA DEFESA NA COLABORAÇÃO PREMIADA

sob o argumento de que esse instrumento gera uma espécie de


tensionamento dos direitos fundamentais e, até mesmo, ofensa à
garantia da ampla defesa.

Como um dos principais alvos dessa controvérsia, destacamos o §


14 do supracitado art. 4º26, do qual consta que, ao prestar depoimentos
na presença de seu defensor, o colaborador renunciará ao direito ao
silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade
(BRASIL, 2013).

Sob a perspectiva dessa corrente contrária ao instituto da


colaboração premiada, o dispositivo legal retromencionado ofende o
princípio da presunção de inocência, porquanto obriga o colaborador
a renunciar ao seu direito constitucional ao silêncio e lhe impõe o dever
de dizer a verdade, o que pode ensejar a sua autoincriminação.

Argumenta-se, também, que a presença do defensor é


insuficiente para assegurar a observância dos direitos fundamentais
do colaborador, tendo em vista a verdadeira barganha que se opera
entre acusação e defesa, que agiriam no intuito de satisfazer objetivos
de cunho particular.

4.1 A limitação dos direitos fundamentais

Uma interpretação apressada da Lei n. 12.850/2013 em confronto


com os direitos fundamentais supramencionados, de fato, pode levar
à conclusão de que o colaborador é posto em situação de absoluta
desvantagem frente ao Estado, bem como se vê obrigado a assumir a

26
“Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor,
ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade” (BRASIL,
2013).

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MARA LINA SILVA DO CARMO

culpabilidade por fatos delituosos e, ainda, a produzir prova contra si


mesmo, autoincriminando-se.

Ocorre que essa leitura açodada parece estar embasada em duas


premissas falsas: a primeira, no sentido de que os direitos fundamentais
são absolutos, ilimitáveis; a segunda, acerca da aceitação do acordo de
colaboração, refere-se a uma imposição da celebração desse acordo
ao colaborador.

Com efeito, tornou-se pacífico o entendimento no sentido de que


os direitos fundamentais são limitáveis, inexistindo direito fundamental
absoluto (NUNES JÚNIOR, 2009, p. 39-41). A propósito, no Brasil, há
limitações a direitos fundamentais (NUNES JÚNIOR, 2009, p. 49-51),
constantes, inclusive, do próprio texto constitucional, como é o caso
do art. 5º, inciso XLVII, a, que prevê a pena de morte em caso de guerra
formalmente declarada, traduzindo uma limitação ao direito à vida.

Nessa linha de entendimento quanto à limitação dos direitos


fundamentais, pode ser citada a Súmula Vinculante n. 1127 cujo teor
se refere à utilização de algemas em réu preso, durante a audiência.
Vê-se que, nas circunstâncias constantes do verbete em comento,
realizada a ponderação entre as garantias fundamentais em potencial
conflito, as algemas poderão ser mantidas, e o direito fundamental à
integridade física do preso sofrerá limitação em favor do mesmo direito
fundamental pertencente aos demais presentes ao ato, bem como à
segurança do próprio preso.

27
“Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou
de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros,
justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar,
civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual
a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado” (BRASIL, 2008).

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LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O
DIREITO À AMPLA DEFESA NA COLABORAÇÃO PREMIADA

Diante desse contexto, o procedimento de colaboração premiada


pode ensejar a realização de um juízo de ponderação entre os direitos
fundamentais que se encontrem em rota de colisão, sendo viável
uma conclusão no sentido de que devem ter precedência, no caso
concreto, determinados direitos fundamentais, como segurança,
ordem, liberdade, vida e saúde – conforme o tipo de crime praticado
pela organização criminosa investigada.

A segunda premissa – falsa – que parece orientar a crítica à


colaboração premiada consiste na ideia de haver ofensa à presunção
de inocência, porquanto o colaborador estaria obrigado a aceitar o
acordo de colaboração premiada, produzindo provas contra si mesmo,
ao observar a imposição legal de falar e, mais ainda, de falar a verdade.

A partir de um raciocínio raso de lógica, tendo por base o texto


da Lei n. 12.850/2013 (BRASIL, 2013), constatam-se que o afastamento
do direito ao silêncio e a obrigação de dizer a verdade são inerentes
a qualquer tipo de negociação; não poderia, portanto, ser diferente
com a colaboração premiada que, inegavelmente, configura-se como
instrumento de negociação penal e, ao mesmo tempo, decorre da
estratégia defensiva.

Admitir a possibilidade de um acordo de colaboração premiada


baseado em respostas falsas – ou inexistentes – levaria ao seu completo
esvaziamento, tornando-o um meio ineficaz de obtenção de prova.
Nesse sentido, Cavali (2017) assevera que o descumprimento desse
dever de dizer a verdade28 pode ensejar a rescisão ou anulação do

28
Cavali (2017, p. 255-274) ressalta, ainda, que: “A previsão legal do dever de dizer a
verdade não transmuta o colaborador em testemunha, dado o seu evidente interesse no
caso, mas apenas torna legítima a aplicação das consequências mencionadas, afastando
a possibilidade de que o colaborador se escude no direito à não autoincriminação para
mentir”.

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MARA LINA SILVA DO CARMO

acordo de colaboração premiada, bem como a configuração do crime


descrito no art. 19 da Lei de Organização Criminosa.

Registre-se que a obrigação de falar, limitando o direito


constitucional ao silêncio, não configura, por si só, uma ofensa à garantia
da ampla defesa, porquanto esta, na sua vertente da autodefesa, é
opcional, podendo ou não ser exercida, segundo a estratégia defensiva
adotada.

Some-se a isto o fato de que a presunção de inocência somente


pode ser afastada com base em conjunto probatório que confirme o
teor das declarações contidas no acordo de colaboração premiada,
vedando-se a condenação nelas fundamentada, de modo exclusivo –
art. 4º, § 16, da Lei n. 12.850/2013 (BRASIL, 2013).

Observa-se, também, que a afirmação genérica de que o


colaborador se vê coagido a aceitar a proposta de acordo de
colaboração premiada, motivado pelo temor de ser condenado a penas
mais severas, não se sustenta.

No acordo de colaboração premiada, o que se constata é uma


verdadeira negociação entre a defesa e o Estado, mediante concessões
recíprocas – como é típico dessa espécie de procedimento – que se
destinam à formação de um negócio jurídico processual entre os
envolvidos, no intuito de solucionar o conflito, de modo consensual.
Nessa negociação, diante das sérias concessões feitas pelo Estado,
como o não oferecimento de denúncia e o perdão judicial, logicamente,
exige-se algum sacrifício por parte do beneficiado, que, de forma
voluntária e assistido por defensor, decide ou não pela colaboração
premiada.

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LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O
DIREITO À AMPLA DEFESA NA COLABORAÇÃO PREMIADA

Vê-se, portanto, que a colaboração premiada é meio de obtenção


de prova e não a própria prova. O seu resultado, inegavelmente, terá o
peso correspondente ao que for confirmado pelo conjunto probatório
produzido sob o crivo do devido processo legal, o que afasta a alegação
abstrata de que sua adoção, no sistema jurídico brasileiro, ocasionará
ofensa à presunção constitucional de inocência.

Igualmente, inexiste prejuízo à garantia da ampla defesa em


razão da obrigação de dizer a verdade, ainda que exista o consequente
risco de se autoincriminar, na medida em que a celebração do acordo
de colaboração premiada decorre, inexoravelmente, de uma estratégia
defensiva. Nesse passo, o próprio colaborador, voluntariamente
e assistido por seu defensor, fornece informações sobre fatos e
circunstâncias que são do seu conhecimento ao Ministério Público ou
delegado de polícia, construindo a base essencial para realizar sua
defesa, de acordo com a estratégia que melhor lhe aprouver.

Possuindo o domínio do conteúdo das informações constantes


do acordo celebrado entre as partes, o agente colaborador poderá
exercer sua ampla defesa, com os meios e os recursos inerentes
ao estágio processual em que ocorrer a colaboração premiada. A
depender, portanto, da fase processual em que for negociado o acordo
e do prêmio correlato, o exercício da ampla defesa poderá se restringir
à esfera da investigação criminal, percorrer toda instrução penal ou
referir-se à execução da pena.

À vista de todo arcabouço examinado, pode-se afirmar que o


procedimento de colaboração premiada propicia o exercício da ampla
defesa, também, ao eventual delatado.

Destaque-se que a supramencionada obrigação de dizer a


verdade, imposta ao colaborador, constitui relevante providência legal

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022. 487
MARA LINA SILVA DO CARMO

para propiciar a ampla defesa ao delatado, buscando resguardá-lo de


consequências nefastas decorrentes de declarações inverídicas que
lhe imputem práticas delitivas. Em reforço dessa garantia, vale repisar
que a Lei de Organização Criminosa veda a condenação com base,
exclusivamente, no teor das declarações do agente colaborador29,
providência esta que, indubitavelmente, propicia o exercício do
contraditório e da ampla defesa ao delatado, garantindo-lhe a
oportunidade de se valer dos recursos necessários à comprovação da
sua tese defensiva. Não é demais relembrar que, como outro ponto
crucial para resguardar o direito à ampla defesa – assim como a
segurança jurídica das negociações –, a Lei n. 12.850/2013 (BRASIL,
2013) exige a forma escrita do termo de colaboração premiada e que
o registro das declarações do colaborador seja feito por meios que
garantam, o máximo possível, a sua fidedignidade.

A partir do registro do teor do acordo de colaboração premiada,


será viável ao delatado tomar conhecimento dos fatos que lhe são
imputados pelo colaborador e dos elementos de prova mencionados
como substrato para tais imputações. De posse dessas informações
essenciais, o delatado poderá exercer o direito à ampla defesa, mesmo
na hipótese de procedimento sob sigilo. Considerando o teor da
Súmula Vinculante n. 14 do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2009),
evidentemente, o respectivo defensor terá acesso a todo arsenal
probatório materializado nos autos e que diga respeito ao delatado,
salvo em casos de diligência em curso.

Do quadro delineado, extrai-se que a negociação penal via


colaboração premiada é permeada por tensões entre os direitos
fundamentais do colaborador, do delatado e da sociedade. Porém,

29
Sobre a necessidade de corroboração das informações trazidas pelo colaborador por
meio de outros elementos de prova, Badaró (2017, p. 127-149) ressalta que “o legislador
não estabeleceu, abstratamente, o que é necessário para condenar, mas apenas, em
reforço à presunção de inocência, o que é insuficiente para superar a dúvida razoável”.

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LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O
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essa característica é insuficiente para, por si só, negar a significativa


importância desse negócio jurídico processual na persecução penal,
processo e julgamento das demandas relacionadas aos crimes
cometidos por organizações criminosas.

No intuito de equilibrar essa balança, eliminando – ou, ao menos,


reduzindo – o mencionado tensionamento de direitos fundamentais, a
utilização desse instituto importante e inovador de negociação penal
deve ocorrer com base nos parâmetros fixados na lei e na Constituição,
de forma cuidadosa, comedida e quando for extremamente necessário.

Portanto, independentemente da finalidade objetivada com a


realização do acordo de colaboração premiada – que, definitivamente,
não se confunde com o plea bargaining –, o sistema negocial penal
brasileiro não confere ampla discricionariedade ao Ministério Público
para negociar prêmios e condições não previstos em lei, atuando com
base em uma visão arrojada e, negativamente, utilitarista da negociação
penal.

Compreender de modo diverso, tomando a colaboração


premiada como uma espécie de remédio para todos os males que
decorrem do crime organizado, incrementa o risco de ofensa a
garantias constitucionais do colaborador e do eventual delatado, bem
como ocasiona a banalização do instituto e o consequente descrédito
quanto à sua aptidão para funcionar como instrumento de negociação
penal.

5 CONCLUSÃO

Seguindo a tendência mundial de expansão das soluções


consensuais no processo penal, a Lei n. 12.850/2013 (BRASIL, 2013)

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022. 489
MARA LINA SILVA DO CARMO

surgiu com significativa importância, na medida em que define o


procedimento necessário para a efetiva utilização da colaboração
premiada no combate ao crime organizado. Supriu-se, nesse ponto, a
lacuna existente em diplomas legais anteriores que, embora previssem
alguma forma de colaboração premiada, muito pouco informavam
quanto ao respectivo procedimento.

Nesse caminho em construção, a solução para as questões


interpretativas pertinentes à colaboração premiada vem sendo
obtida a partir da doutrina e da jurisprudência, inclusive dos tribunais
superiores, tendo por base uma análise densa quanto à observância
do devido processo constitucional e convencional. Como vetores
desse percurso hermenêutico, indubitável e prioritariamente, devem
ser observados os direitos e as garantias fundamentais, bem como os
princípios constitucionais que regem o processo penal.

Diante desse cenário, algumas justificativas podem ser


apresentadas acerca da necessidade de conformação constitucional
do procedimento de colaboração premiada, no intuito de garantir o
exercício da ampla defesa, à luz do Estado Democrático de Direito e,
assim, aperfeiçoar essa prática negocial que tem sido de significativa
importância no combate à criminalidade organizada no Brasil.

1. Tratando-se de imposição constitucional vocacionada à


proteção da dignidade da pessoa humana, da observância das
garantias da ampla defesa, do contraditório e do devido processo
legal, é inafastável, ainda que se trate de procedimento caracterizado
pela possibilidade de negociação entre as partes, como é o caso da
colaboração premiada.

2. Em que pese sua inegável importância para a solução de


demandas envolvendo organizações criminosas, a colaboração

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LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O
DIREITO À AMPLA DEFESA NA COLABORAÇÃO PREMIADA

premiada não é a solução para todos os males e todas as dificuldades


estruturais enfrentadas pelos órgãos de persecução penal do Estado.
A utilização desse meio de obtenção de prova deve ocorrer com
parcimônia, inegavelmente, devido à potencial tensão entre os direitos
fundamentais e aos prejuízos decorrentes da banalização no emprego
dessa ferramenta de negociação penal.

3. Efetivamente, a Lei n. 12.850/2013 contém dispositivos


destinados à concretização da garantia constitucional da ampla defesa.
Cabe, outrossim, ao juízo competente o papel precípuo de zelar pela
obediência do procedimento de colaboração premiada à Constituição
e ao Estado Democrático de Direito, sem se imiscuir, propriamente, na
seara das tratativas do acordo de colaboração premiada.

Em conclusão, apesar da apontada timidez inicial, é inegável a


aptidão da Lei n. 12.850/2013 para ampliar os espaços de consenso
na esfera penal, porquanto fixa um verdadeiro procedimento de
negociação traduzido pela colaboração premiada, instrumento este
que se revela de expressiva importância para o enfrentamento da
criminalidade organizada.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 477-506, jan./jul. 2022. 491
MARA LINA SILVA DO CARMO

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CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA
EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO BRASIL: UM
MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE
ÍNDOLE TRANSNACIONAL
ORGANIZED CRIMINALITY IN THE EXPLORATION OF
WOOD IN BRAZIL: A MODUS OPERANDI AIMED AT
TRANSNATIONAL ILLEGALITY

MARCELO GUERRA MARTINS


Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP. Mestre em
Direito Civil e doutor em Direito do Estado pela Universidade de São
Paulo – USP. Professor de Direito Financeiro e Tributário, com ênfase em
Análise Econômica do Direito – AED. Pesquisador do Grupo de Pesquisa
Direito, Desenvolvimento e Impacto das Decisões Judiciais, do mestrado
da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados –
Enfam. Autor de livros e artigos publicados em revistas especializadas.
Juiz federal em São Paulo. Atuou como juiz auxiliar e instrutor no Supremo
Tribunal Federal – STF.
https://orcid.org/0000-0002-3176-229X

RESUMO

O presente artigo trata da atuação da criminalidade organizada na


exploração da madeira no Brasil que, além de estar em crescimento,
vem apresentando um modus operandi voltado à transnacionalidade,
causando graves prejuízos, principalmente ambientais. Além da
legislação aplicável à correta exploração da madeira (extração,
transporte, comércio e industrialização), são abordados os vários
crimes perpetrados pelo crime organizado “madeireiro”, tais como:
delitos ambientais, organização criminosa, corrupção e lavagem
de dinheiro, em redes cujos tentáculos usualmente extrapolam as

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 499
MARCELO GUERRA MARTINS

fronteiras nacionais. São apresentados fatos e dados relevantes, como,


por exemplo, a estimativa de que ao menos 50% da madeira extraída
das florestas brasileiras não observa a lei. São também descritas as
ferramentas jurídicas de combate a essa modalidade de “empresa
criminosa”, com destaque para as ações de cooperação jurídica
internacional, bem como abordadas as recomendações da Ação
n. 10/2021 da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem
de Dinheiro – Enccla, cujo escopo é o aprimoramento das políticas
voltadas ao combate da criminalidade ambiental. Em termos de
metodologia, trata-se de um estudo teórico (revisão bibliográfica e de
legislação), com conclusões obtidas precipuamente por indução.

Palavras-chave: exploração da madeira; crimes ambientais; corrupção;


organizações criminosas; lavagem de dinheiro.

ABSTRACT

This paper deals with the role of organized crime in the exploitation
of wood in Brazil, which, in addition to being growing, has been
presenting a modus operandi focused on transnationality, with serious
environmental and other damages. In addition to the legislation
applicable to the correct exploitation of wood (extraction, transport,
trade and industrialization), the various crimes perpetrated by “timber”
organized crime are addressed, such as: environmental crimes, criminal
organization, corruption and money laundering, in networks whose
tentacles usually extrapolate national boundaries. Relevant facts and
data are presented, such as, for example, the estimate that at least 50%
of the wood extracted from Brazilian forests does not comply with the
law. The legal tools to combat this type of “criminal enterprise” are also
described, with emphasis on international legal cooperation actions, as
well as the recommendations of National Strategy to Combat Corruption
and Money Laundering - Enccla’s action n. 10/2021, whose scope is
the improvement of policies aimed at combating environmental crime.

500 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022.
CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

In terms of methodology, it is a theoretical study (bibliographic and


legislation review), with conclusions obtained primarily by induction.

Keywords: wood exploration; environmental crimes; corruption;


criminal organizations; money laundry.

Recebido: 13-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 Regime legal da exploração da madeira no Brasil.


3 Criminalidade organizada na exploração da madeira; 3.1 Crimes
ambientais; 3.2 Crimes de organização criminosa; 3.3 Crimes de
corrupção ativa e corrupção passiva; 3.4 Crimes de lavagem de
dinheiro; 3.5 Vocação para a transnacionalidade da exploração ilegal
da madeira no Brasil. 4 Combate à criminalidade organizada de índole
ambiental; 4.1 Instrumental normativo e cooperação internacional;
4.2 As recomendações da Ação n. 10/2021 da Enccla. 5 Conclusão.
Referências.

1 INTRODUÇÃO

O artigo trata da criminalidade organizada na exploração da


madeira no Brasil, dentro de uma conjuntura “empresarial” com alto
poder lesivo aos interesses da sociedade, não apenas pelos extensos
danos ambientais resultantes, mas também pelas consequências
nefastas decorrentes de crimes como organização criminosa, corrupção
e lavagem de dinheiro.

Levando em conta o interesse pela madeira brasileira em outros


países, surge o caráter transnacional desse conjunto delituoso, tanto

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 501
MARCELO GUERRA MARTINS

pela exportação ilegal da madeira quanto pelas peculiaridades do


modus operandi das organizações criminosas atuantes que, não
raramente, utilizam-se de empresas e/ou entidades “de fachada”
localizadas em jurisdições offshore para dificultar eventual
investigação acerca da lavagem de dinheiro.

A exploração ilegal da madeira se revela um fenômeno


deletério em crescimento, sendo certo que a estrutura “empresarial”
voltada ao ilícito usualmente gera lucros de alta monta. Nesse
tópico, apenas como exemplo, segundo o Grupo de Ação Financeira
Internacional – Gafi, “estima-se que os crimes ambientais estejam entre
os delitos mais lucrativos do mundo, gerando cerca de US$ 110 a 281
bilhões em ganhos anualmente” (FINANCIAL ACTION TASK FORCE,
2021, p. 5)1.

Destarte, dentre os assuntos aqui tratados, o texto encontra-


se dividido em três capítulos, na seguinte ordem: 1) o regime legal
da exploração da madeira no Brasil, com a explanação sumária das
principais normas que regem essa atividade (extração, transporte,
comércio e industrialização); 2) a criminalidade organizada na
exploração da madeira brasileira, com a apresentação do conjunto de
crimes mais usualmente perpetrados em tais circunstâncias (crimes
ambientais, organização criminosa, corrupção e lavagem de dinheiro);
e 3) o combate à criminalidade organizada de índole ambiental,
descrevendo-se as ferramentas e o instrumental normativo pertinente,
bem como questões ligadas à cooperação jurídica internacional e,
ainda, as recomendações da Ação n. 10/2021 da Enccla (ESTRATÉGIA
NACIONAL DE COMBATE À CORRUPÇÃO E À LAVAGEM DE DINHEIRO,
2021), que dizem respeito justamente ao aprimoramento das políticas

1
Tradução livre. Texto original: “Environmental crime is estimated to be among the most
profitable proceeds-generating crimes in the world, generating around USD 110 to 281
billion in criminal gains each year”.

502 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022.
CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

públicas de combate à criminalidade organizada na seara ambiental.


Segue a conclusão e as referências.

São raros os artigos que tratam da ligação entre crimes


ambientais, organizações criminosas, corrupção e lavagem de dinheiro,
não obstante acreditarmos ser o tema de elevada relevância. Aliás,
ao que parece, os diversos países ainda não despertaram verdadeiro
interesse pelo combate a essa espécie de criminalidade. Segundo
alerta o Gafi, “o combate à lavagem de dinheiro muitas vezes não faz
parte do diálogo de políticas públicas sobre proteção ambiental. [...] as
jurisdições estão abordando principalmente o crime ambiental como
uma questão de conservação, e não como um crime financeiro grave”
(FINANCIAL ACTION TASK FORCE, 2021, p. 51)2.

Optamos por confeccionar um texto “panorâmico”, quer dizer,


nossa intenção foi demonstrar, em linhas gerais, o cenário do problema
da exploração ilegal da madeira no Brasil, suas consequências,
ferramentas de combate e possíveis aperfeiçoamentos. Nesse sentido,
a exposição focou mais “no todo” e menos na exploração aprofundada
de cada delito especificamente considerado ou mesmo na exposição
de casos específicos.

Em termos de metodologia, o texto se constitui num estudo


teórico (revisão bibliográfica e de legislação) com apresentação de
dados de forma qualitativa e conclusões obtidas precipuamente por
indução, ficando advertido não ser nossa intenção firmar certezas ou
palavras finais, muito pelo contrário, eventuais críticas são muito bem-
vindas.

2
Tradução livre. Texto original: “Anti-money laundering is often not part of the public
policy dialog]ue on environmental protection. Despite the significant proceeds involved
in many cases, jurisdictions are mostly addressing environmental crime as a conservation
issue rather than a serious financial crime”.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 503
MARCELO GUERRA MARTINS

2 REGIME LEGAL DA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO BRASIL

A preservação do meio ambiente, em suas mais diversificadas


matizes e manifestações, é indispensável à manutenção da vida. Daí
ser essencial a aprimorada regulação jurídica do tema, a começar pela
Constituição Federal de 1988, cujo caput do art. 225 estabelece que
todos “têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (BRASIL, 1988).

Cabe mencionar também que o inciso VI, do art. 170, da


Constituição de 1988, estipula como um dos princípios da ordem
econômica a “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento
diferenciado, conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e
de seus processos de elaboração e prestação” (BRASIL, 1988). Noutras
palavras, as respectivas políticas públicas devem ser direcionadas “à
realização de desenvolvimento que propicie melhoria de vida de todos
os indivíduos, conjugando economia, meio ambiente e fatores sociais”
(BRITO, 2017, p. 97).

Desse modo, toda legislação que visa regulamentar e, sobretudo,


tornar efetivos os preceitos constitucionais, sejam leis ou mesmo
normas de índole administrativa, necessita conciliar os interesses
privados (que, aliás, são legítimos) com a envergadura maior da
preservação ambiental3. Nessa seara, a exploração da madeira é um

3
A doutrina extrai dos preceitos constitucionais e da legislação ordinária diversos
princípios que, em seu todo, compõem a complexa normatização jurídica do meio
ambiente no Brasil. Assim, merecem destaque: a) princípio do desenvolvimento
sustentável (FIORILLO, 2012, p. 87; LIMA, 2012, p. 131; PRADO, 2011, p. 120);
b) princípio da precaução (DERANI, 1997, p. 166; ABI-EÇAB, 2011, p. 927); c) princípios
da participação e da ubiquidade (FIORILLO, 2012, p. 132, 137); d) princípio do poluidor
pagador (DERANI, 1997, p. 158); e) princípio do acesso à informação (THOMÉ, 2018,
p. 80); e f) princípio do preservador recebedor (THOMÉ, 2018, p. 86).

504 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022.
CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

ramo empresarial que carece de normatização adequada, inclusive


porque é fonte de recursos que auxiliam a movimentar a economia de
várias regiões do Brasil. Nesse sentido, cabe destacar:

Com relação à economia de base florestal, a extração


vegetal madeireira e não madeireira movimentou
em 2018 um total de R$ 20,5 bilhões e em 2017 os
madeireiros processados somados representaram
mais R$ 109,5 bilhões. Parte destes produtos da
floresta foram exportados: R$ 14,2 bilhões em
produtos florestais em 2018. Ainda ocorreu para
setores específicos a necessidade de importação de
alguns produtos de origem florestal correspondendo a
R$ 1,65 bilhão. O trabalho formal relacionado às
florestas foi responsável por 1,25% dos empregos
gerados no país. (BRASIL, 2019, p. 3).

Portanto, nada mais esperado do que as cadeias produtivas


que envolvem a madeira – notadamente a extração, o transporte, o
comércio e a industrialização – sejam disciplinadas pela lei, ainda mais
quando representarem supressão de florestas4, visto que tais locais
abrigam biomas específicos, muitas vezes em delicado equilíbrio, além
de contribuírem de forma relevante para a manutenção das condições
climáticas da Terra5.

4
Segundo o Serviço Florestal Brasileiro: “O Brasil é um país florestal, com 498 milhões
de hectares de florestas, composto de florestas naturais (98%) e plantadas (2%), sendo
aproximadamente 55% em áreas públicas e 45% em áreas privadas” (BRASIL, 2019, p. 3).
Aliás, a exploração excessiva de florestas vem gerando “profundo impacto no sistema
de produção de alimentos no mundo, com repercussões negativas para a soja sul-
americana e outros cultivos, além de potencial inflação e, em alguns locais do planeta, o
incremento da fome” (CHADE, 2022).
5
O Ministério do Meio Ambiente assevera: “Além de contribuir para o efeito estufa,
o desmatamento gera outros impactos negativos para a sociedade e o meio ambiente.
Ameaçando espécies da fauna e da flora com a destruição de habitats, afetando
diretamente o meio de vida de milhões de pessoas, comprometendo a oferta hídrica
de outros tantos milhões e contribuindo para a perda de solos férteis e a erosão. O
desmatamento e as queimadas afetam também o clima local reduzindo a umidade nas
áreas atingidas e podendo afetar o fluxo das chuvas no território.” (BRASIL, 2016).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 505
MARCELO GUERRA MARTINS

Em termos de regulação da exploração da madeira, um primeiro


destaque é a Lei n. 12.651, de 25 de maio de 2012 (BRASIL, 2012a),
conhecida como Código Florestal Brasileiro – CFB que, dentre outros
diversos preceitos, disciplina “o suprimento de matéria-prima florestal,
o controle da origem dos produtos florestais e o controle e prevenção
dos incêndios florestais, e prevê instrumentos econômicos e financeiros
para o alcance de seus objetivos” (art. 1º-A do CFB).

A teor do art. 31 do CFB (BRASIL, 2012a), a exploração de florestas


nativas e formações sucessoras, de domínio público ou privado,
dependerá de licenciamento pelo órgão competente do Sistema
Nacional de Meio Ambiente – Sisnama6, mediante aprovação prévia do
Plano de Manejo Florestal Sustentável – PMFS, “que contemple técnicas
de condução, exploração, reposição florestal e manejo compatíveis
com os variados ecossistemas que a cobertura arbórea forme”.

Empresas industriais que utilizam grande quantidade de matéria-


prima florestal (v.g. siderúrgicas, metalúrgicas ou outras que consumam
grandes quantidades de carvão vegetal ou lenha) são obrigadas a
elaborar e implementar o Plano de Suprimento Sustentável – PSS, a
ser submetido à aprovação do órgão competente do Sisnama (art. 34
do CFB) que, entre outros requisitos, necessita assegurar “produção
equivalente ao consumo de matéria-prima florestal pela atividade
industrial” (§ 1º do art. 34 do CFB) (BRASIL, 2012a).

A partir da combinação entre o previsto na Lei n. 11.284, de 2 de


março de 2006 (BRASIL, 2006b), com a Lei Complementar n. 140, de 8
de dezembro de 2011 (BRASIL, 2011), constatamos que a União teve seu

6
Acerca do Sisnama: “Criado pela Lei n. 6.938/1981, regulamentada pelo Decreto
n. 9.9274/1990, o Sisnama é a estrutura adotada para a gestão ambiental no Brasil, e
é formado pelos órgãos e entidades da União, dos estados, do Distrito Federal e dos
municípios responsáveis pela proteção, melhoria e recuperação da qualidade ambiental
no Brasil” (BRASIL, 2017).

506 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022.
CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

papel reformulado no que se refere à gestão dos recursos florestais.


Nesse diapasão, é competência da União a gestão de empreendimentos
e atividades localizadas ou desenvolvidas: 1) conjuntamente no Brasil
e em país limítrofe; 2) no mar territorial, na plataforma continental ou
na zona econômica exclusiva; 3) em terras indígenas; 4) em unidades
de conservação instituídas pela União, exceto em Áreas de Proteção
Ambiental – APAs; e 5) em dois ou mais estados.

Os estados e municípios ficaram incumbidos de gerir os temas


que digam respeito ao: 1) licenciamento ambiental de propriedades
rurais; 2) licenciamento de desmatamento; 3) licenciamento do manejo
florestal para produção de madeira ou produtos não madeireiros;
4) licenciamento para plantio e corte (reflorestamentos); 5) controle do
fluxo da madeira e de produtos florestais não madeireiros; 6) reposição
florestal; 7) monitoramento e fiscalização; 8) fomento, assistência
técnica e incentivos à produção florestal; e 9) compensação ambiental.

Além das licenças retro, o Código Florestal Brasileiro – CFB


determina a existência de controle da origem da madeira, do carvão e
de outros produtos ou subprodutos florestais, em sistema nacional que
integre os dados dos diferentes entes federativos, de acesso público
por meio da internet (art. 35 do CFB). Dentro do ciclo econômico
desses produtos, o art. 36 do CFB estipula que o transporte, por
qualquer meio, e o armazenamento de madeira, lenha, carvão e outros
produtos ou subprodutos florestais oriundos de florestas de espécies
nativas, para fins comerciais ou industriais, necessitam de licença do
órgão competente do Sisnama (BRASIL, 2012a).

No caso, a licença em epígrafe é formalizada por meio da emissão


do Documento de Origem Florestal – DOF, que deverá acompanhar o
material até o beneficiamento final (§ 1º do art. 36), sendo certo que
qualquer um que receba ou adquira, para fins comerciais ou industriais,

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 507
MARCELO GUERRA MARTINS

madeira, lenha, carvão e outros produtos ou subprodutos de florestas


de espécies nativas está obrigado a exigir a apresentação do DOF e
munir-se da via que deverá acompanhar o material até o beneficiamento
final (§ 1º do art. 36). Destacamos ainda o seguinte:

O sistema DOF funciona como uma ferramenta


contábil que registra o fluxo dos créditos concedidos
em autorizações de exploração florestal, em sistema
de conta-corrente, desde o lançamento do volume
inicial, no local de extração do produto florestal ou de
entrada no país via importação, até o ponto de saída do
fluxo, onde o material encontra seu consumo final ou
deixa de ser objeto de controle florestal. (INSTITUTO
BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS
NATURAIS RENOVÁVEIS, 2016).

É de rigor que, ainda, seja respeitada a chamada Reserva Legal


que, em suma, impede a exploração de toda a área do imóvel, para
fins de “assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos
naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos
processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade”
(art. 3º do CFB) (BRASIL, 2012a). Por exemplo, a teor do art. 12 do CFB,
caso o imóvel encontre-se localizado na Amazônia Legal7 e situado em
área de florestas, 80% da respectiva área deverá ser preservada, sendo
possível a exploração sobre os 20% restantes8.

Aliás, imóveis localizados em área de preservação permanente


estão praticamente excluídos do ciclo econômico exploratório, visto

7
Segundo o art. 3º, inciso I, do CFB, a Amazônia Legal compreende “os Estados do Acre,
Pará, Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e as regiões situadas ao
norte do paralelo 13º S, dos Estados de Tocantins e Goiás, e ao oeste do meridiano de
44º W, do Estado do Maranhão” (BRASIL, 2012a).
8
Ainda dentro da Amazônia Legal, o percentual de preservação é de 35% para os imóveis
situados em áreas de cerrado; 20% para os localizados em áreas de campos gerais e, por
fim, igualmente 20% para os imóveis das demais regiões do país (art. 3º, inciso I e II do
CFB) (BRASIL, 2012a).

508 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022.
CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

que “a vegetação situada em APAs deverá ser mantida pelo proprietário


da área, possuidor ou ocupante a qualquer título, pessoa física ou
jurídica, de direito público ou privado” (art. 7º do CFB) (BRASIL,
2012a), destacando-se que, em caso de supressão, “o proprietário da
área, possuidor ou ocupante a qualquer título, é obrigado a promover
a recomposição da vegetação” (§ 1º do art. 7º) (BRASIL, 2012a).

É importante frisar que não estamos aqui criticando as limitações


à exploração das florestas para fins lucrativos, muito pelo contrário. A
própria Constituição de 1988, como visto, exige um equilíbrio entre as
expectativas dos agentes privados e o interesse público consistente na
proteção e conservação ambiental, inclusive em prol da qualidade de
vida das gerações vindouras (BRASIL, 1988).

Porém, não se pode negar que a regulação, ao impor custos de


conformidade aos produtores e diminuir a área explorável, acaba por
tornar o produto (em suma, a madeira) mais caro e, por isso, mais raro
e valioso. E, como sabido, produtos em tais situações costumam atrair
a ganância de pessoas dispostas a cometer ilícitos em busca de um
lucro maior, como ocorre, por exemplo, com o tráfico de entorpecentes.
Trata-se de um efeito colateral da regulação que, evidentemente,
carece de ser, ao máximo possível, neutralizado pelos órgãos estatais
criados para tal desiderato.

3 CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA


MADEIRA

Como visto no item anterior, a exploração da madeira no Brasil,


notadamente aquela proveniente de florestas, exige a observância
de diversas normas específicas que, por implicarem em limitações ao
produtor, acabam por restringir os potenciais resultados do negócio.
Assim, ainda mais porque, dependendo da espécie, o preço da madeira

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 509
MARCELO GUERRA MARTINS

chega a ser bastante elevado, as florestas brasileiras vêm sendo alvo


da criminalidade organizada, cujo objetivo é a obtenção do maior lucro
possível mediante a prática de diversos ilícitos de ordem civil e criminal.

Em que pese haver certa variação nos dados disponíveis para


pesquisa, não se pode negar que a situação é preocupante, sendo que
diversas fontes apontam para uma quantidade expressiva da madeira
extraída das florestas brasileiras (quiçá mais da metade) não observe
a lei. Focando a Amazônia, por exemplo, “especialistas apontam que
50% da madeira extraída do bioma é ilegal” (NEHER, 2020). Relatório
publicado pela Human Rights Watch – HRW assevera:

A extração ilegal de madeira na Amazônia brasileira é


em grande parte impulsionada por redes criminosas que
têm a capacidade logística de coordenar a extração, o
processamento e a venda da madeira em larga escala,
enquanto empregam homens armados para proteger
seus interesses. Alguns agentes ambientais chamam
esses grupos de “máfias do ipê”, referindo-se à árvore
do ipê, cuja madeira está entre as mais valiosas e
procuradas pelos madeireiros. No entanto, a extração
pelos madeireiros inclui muitas outras espécies de
árvores e seu objetivo final é frequentemente derrubar
a floresta totalmente para dar espaço ao gado ou ao
cultivo. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2019).

Considerando apenas o Estado do Pará, estima-se que 70% da


extração da madeira ocorra de modo ilegal. Nesse sentido:

Um estudo recém-publicado pela ONG Imazon mostra


que 70% da madeira explorada no Pará de agosto de
2017 a julho de 2018 é ilegal. São os dados mais recentes
disponíveis. Os pesquisadores cruzaram informações
oficiais dos órgãos responsáveis, como a Secretaria de
Meio Ambiente do Pará, com imagens de satélite. Os
resultados revelaram que 38 mil hectares de florestas

510 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022.
CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

foram explorados pela atividade madeireira no período


citado. A grande maioria, cerca de 27 mil hectares, não
possuía autorização. (ÂNGELO, 2020).

O caráter “empresarial” presente em muitas organizações, com


tentáculos que usualmente extrapolam as fronteiras nacionais, torna
a situação ainda mais dramática a reclamar uma atuação estatal
contundente e precisa. Não estamos tratando aqui de delitos de baixo
potencial ofensivo, cometidos isoladamente por pessoas sem ligação
entre si, mas, ao contrário, a exploração ilegal da madeira no Brasil vem
se tornando, cada vez mais, uma complexa e intrincada rede organizada
voltada para o ilícito em que, via de regra, são praticados vários crimes,
de modo conjunto e cadenciado, como os a seguir destacados.

3.1 Crimes ambientais

Evidentemente, se estamos tratando de exploração ilegal de


madeira, é forçoso reconhecer que o primeiro bem jurídico protegido
a ser agredido é o próprio meio ambiente, principalmente as florestas
onde se concentram as espécies vegetais mais apropriadas e valorizadas
para o comércio e indústria. A Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998
(BRASIL, 1998a), dispõe sobre as sanções penais para condutas e
atividades lesivas ao meio ambiente. No que tange à degradação das
florestas, destacam-se os delitos previstos nos arts. 38 a 53 (dos crimes
contra a flora), nos termos da tabela abaixo:

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 511
MARCELO GUERRA MARTINS

Tabela 1 – Crimes Ambientais

Art. Texto legal Penalidade


38 Destruir ou danificar floresta Detenção, de um a
considerada de preservação três anos, ou multa,
permanente, mesmo que em ou ambas as penas
formação, ou utilizá-la com cumulativamente.
infringência das normas de proteção.
38-A Destruir ou danificar vegetação Detenção, de um a
primária ou secundária, em estágio três anos, ou multa,
avançado ou médio de regeneração, ou ambas as penas
do Bioma Mata Atlântica, ou utilizá- cumulativamente.
la com infringência das normas de
proteção.
39 Cortar árvores em floresta Detenção, de um a
considerada de preservação três anos, ou multa,
permanente, sem permissão da ou ambas as penas
autoridade competente. cumulativamente.
40 Causar dano direto ou indireto Reclusão, de um a
às unidades de conservação e às cinco anos.
áreas de que trata o art. 27 do
Decreto n. 99.274, de 6 de junho de
1990, independentemente de sua
localização.
41 Provocar incêndio em mata ou Reclusão, de dois a
floresta. quatro anos, e multa.
44 Extrair de florestas de domínio Detenção, de seis
público ou consideradas de meses a um ano, e
preservação permanente, sem multa.
prévia autorização, pedra, areia, cal
ou qualquer espécie de minerais.
45 Cortar ou transformar em carvão Reclusão, de um a dois
madeira de lei, assim classificada anos, e multa.
por ato do Poder Público, para
fins industriais, energéticos ou
para qualquer outra exploração,
econômica ou não, em desacordo
com as determinações legais.

512 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022.
CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

46 Receber ou adquirir, para fins Detenção, de seis


comerciais ou industriais, madeira, meses a um ano, e
lenha, carvão e outros produtos de multa.
origem vegetal, sem exigir a exibição
de licença do vendedor, outorgada
pela autoridade competente, e
sem munir-se da via que deverá
acompanhar o produto até final
beneficiamento.
48 Impedir ou dificultar a regeneração Detenção, de seis
natural de florestas e demais formas meses a um ano, e
de vegetação multa.
50 Destruir ou danificar florestas nativas Detenção, de três
ou plantadas ou vegetação fixadora meses a um ano, e
de dunas, protetora de mangues, multa.
objeto de especial preservação.
50-A Desmatar, explorar economicamente Reclusão, de dois a
ou degradar floresta, plantada ou quatro anos, e multa.
nativa, em terras de domínio público
ou devolutas, sem autorização do
órgão competente.
51 Comercializar motosserra ou utilizá- Detenção, de três
la em florestas e nas demais formas meses a um ano, e
de vegetação, sem licença ou multa.
registro da autoridade competente.
52 Penetrar em unidades de Detenção, de seis meses
conservação conduzindo a um ano, e multa.
substâncias ou instrumentos
próprios para caça ou para
exploração de produtos ou
subprodutos florestais, sem licença
da autoridade competente
Fonte: (BRASIL, 1998a).

Na mesma lei, igualmente, estão previstos os crimes contra a


administração ambiental (arts. 66 a 69-A) que, na linha dos acima
indicados, também são usuais no contexto da exploração ilegal da
madeira, conforme consta da tabela abaixo:

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 513
MARCELO GUERRA MARTINS

Tabela 2 – Crimes Ambientais II

Art. Texto legal Penalidade


66 Fazer o funcionário público Reclusão, de um a três
afirmação falsa ou enganosa, anos, e multa.
omitir a verdade, sonegar
informações ou dados técnico-
científicos em procedimentos de
autorização ou de licenciamento
ambiental.

67 Conceder o funcionário público Detenção, de um a três


licença, autorização ou permissão anos, e multa.
em desacordo com as normas
ambientais, para as atividades,
obras ou serviços cuja realização
depende de ato autorizativo do
Poder Público.
68 Deixar, aquele que tiver o dever Detenção, de um a três
legal ou contratual de fazê-lo, de anos, e multa.
cumprir obrigação de relevante
interesse ambiental.
69 Obstar ou dificultar a ação Detenção, de um a três
fiscalizadora do Poder Público no anos, e multa.
trato de questões ambientais.
69-A Elaborar ou apresentar, no Reclusão, de três a seis
licenciamento, concessão florestal anos, e multa.
ou qualquer outro procedimento
administrativo, estudo, laudo
ou relatório ambiental total ou
parcialmente falso ou enganoso,
inclusive por omissão.

Fonte: (BRASIL, 1998a).

514 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022.
CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

3.2 Crimes de organização criminosa

Conforme aventado acima, a criminalidade organizada vem


atuando no ramo da exploração da madeira no Brasil, o que gera
preocupação adicional visto que, via de regra, a capacidade financeira
dessas organizações é colossal. Para se ter uma ideia do tamanho
dessa força, “estima-se que o mercado envolvendo a criminalidade
organizada é aproximadamente 1/4 de todo o dinheiro em circulação
no mundo” (CONSERINO, 2011, p. 12). Levando em conta que quase
sempre o poder econômico anda de “mãos dadas” com o poder
político, é possível aventar que a própria democracia, com eleições
livres, isentas e confiáveis, passa a correr riscos.

Dessa forma, independentemente das áreas em que atuam, é


inegável que as organizações criminosas ostentam elevado potencial
para gerar nefastas consequências no âmbito social, ainda mais
porque essas “empresas” quase sempre são voltadas ao cometimento
de crimes bastante graves. Nesse cenário, é possível separar a maneira
peculiar de agir do crime organizado daqueles delitos convencionais
ou comuns. A chave dessa distinção é o que se pode denominar de
“governança”, existente no primeiro e ausente no segundo. Nesse
diapasão, percebe-se que:

[...] o crime organizado tem a pretensão de controlar de


modo ilegal a produção de algum bem ou commodity
em determinada área. Esse modus operandi gera
conflitos com as instituições estatais e outros grupos
criminosos. Em muitos casos, a violência é utilizada
para resolver tais conflitos, especialmente entre as
organizações que atuam à margem da lei. (CASTRO;
GIURA; RICCIO, 2020, p. 79).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 515
MARCELO GUERRA MARTINS

A tipificação penal do crime de organização criminosa, no Brasil,


veio a lume apenas em 2013, com a Lei n. 12.850, de 2 de agosto
(BRASIL, 2013). O § 1º do art. 1º preceitua que:

Considera-se organização criminosa a associação de


4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada
e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que
informalmente, com objetivo de obter, direta ou
indiretamente, vantagem de qualquer natureza,
mediante a prática de infrações penais cujas penas
máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que
sejam de caráter transnacional. (BRASIL, 2013).

A teor do art. 2º da aludida norma, a pena prevista aos infratores


é de reclusão, de três a oito anos, e multa, sem prejuízo das penas
correspondentes às demais infrações penais praticadas pela
organização no desenrolar de suas atividades para as quais tenham
sido concebidas.

É fato que a inserção desse crime no ordenamento jurídico


nacional ocorreu primordialmente em atendimento à Convenção
de Palermo de 2000 (United Nations Convention on Transnational
Organized Crime – Untoc), a qual o Brasil ratificou em 20049. Todavia,
enquanto que pela Untoc exige-se a associação de apenas três pessoas
para a configuração do delito, a lei brasileira requer a presença de
quatro elementos. Com isso, infelizmente, “há potencial risco de
dificuldades na cooperação internacional (mutual legal assistance e
extradição) com tais nações e com países da União Europeia, quando
for necessário verificar a dupla incriminação” (ARAS, 2015, p. 11).

Evidentemente, mesmo que não presentes todos os elementos


para a configuração do delito de organização criminosa, nada impede

9
Trata-se do Decreto n. 5.015, de 2004 (BRASIL, 2004).

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CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
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a condenação dos infratores por outros crimes cometidos (v.g.


ambientais, corrupção, ativa e passiva, lavagem de dinheiro, fraudes,
evasão fiscal etc.), inclusive, se for o caso, o crime de associação
criminosa (art. 288 do Código Penal) (BRASIL, 1940).

3.3 Crimes de corrupção ativa e corrupção passiva

Como visto acima, a exploração da madeira requer uma série


de licenças e certificados emitidos por órgãos públicos, de maneira
a enquadrar-se a atividade aos termos legais. Daí, para fugir ou
contornar a rigidez das medidas oficiais de controle é quase que
obrigatória a entrada em cena da prática da corrupção, tanto na forma
passiva quanto ativa. Aliás, a corrupção de agentes públicos é outra
característica presente no crime organizado (CASTRO; GIURA; RICCIO,
2020, p. 89).

A corrupção implica consequências bastante desfavoráveis aos


países como um todo. Tanto é que Kofi Annan, ex-secretário geral das
Nações Unidas, afirmou em discurso que a corrupção “é uma ‘ameaça
insidiosa’ e um obstáculo ao desenvolvimento econômico e social
em todo o mundo, e levou as Nações Unidas a fortalecer seu próprio
mecanismo para garantir que a integridade e a ética guiem todos os
seus empreendimentos.”10 (UNITED NATIONS, 2003).

O problema é efetivamente grave. Em termos mundiais, “de


acordo com as Nações Unidas, US$ 1 trilhão são pagos em subornos
anualmente, enquanto outros US$ 2,6 trilhões são roubados por causa
da corrupção” (NAÇÕES UNIDAS, 2018). As causas para a ocorrência

10
Tradução livre. Texto original: “Corruption is an ‘insidious menace’ and obstacle to
economic and social development around the world, and has prompted the United
Nations to strengthen its own mechanism to ensure that integrity and ethics guide all
its undertakings”.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 517
MARCELO GUERRA MARTINS

desse deletério fenômeno encontram-se inseridas na cultura


institucional de cada país. No Brasil, por exemplo, entre vários fatores
que podem explicar a presença de um nível elevado de corrupção nas
esferas governamentais,

[...] destacam-se a cultura do compadrio nas relações


dos agentes públicos com seus amigos e familiares,
que deu origem a práticas de empreguismo,
nepotismo e clientelismo, sob diversas formas; a falta
de percepção clara dos limites que separam o público
do privado; a falta de um efetivo compromisso, pelos
agentes públicos e políticos, com a transparência de
seus atos; a ineficiência dos mecanismos de controle
da máquina estatal; a lenta resposta da Justiça aos
casos de corrupção; a tolerância social em relação a
pequenos atos de corrupção. (CRUZ, 2005, p. 27).

Não se trata de um fenômeno recente. Infelizmente, “a história


da humanidade está marcada por práticas corruptas” (MENDONÇA,
2020, p. 75). Nesse sentido, por exemplo, “Aristóteles observava com
pesar que os seus contemporâneos queriam sempre obter cargos
públicos, ‘movidos pelos lucros a serem obtidos dos cargos e do trato
da propriedade pública.’” (STARR, 2005, p. 68).

Em termos atuais, são frequentes as notícias divulgadas pela


imprensa que retratam a ocorrência de corrupção em órgãos de controle
ambiental no Brasil11. Aliás, o Índice de Percepção da Corrupção – IPC
2021, anualmente divulgado pela Transparência Internacional, alerta
que “como mostra o relatório deste ano, países percebidos como
altamente corruptos têm maior probabilidade de reduzir seu espaço

11
Apenas como exemplo: “O ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que foi
exonerado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), nesta quarta-feira (23), foi um
dos alvos da operação Akuanduba da Polícia Federal, realizada no dia 19 de maio de
2021. As investigações apuram suspeita de facilitação à exportação ilegal de madeira do
Brasil para os Estados Unidos e Europa” (ALVES, 2021).

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CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

cívico e democrático e atacar direitos da população.” (TRANSPARÊNCIA


INTERNACIONAL BRASIL, 2022).

No caso, o IPC avalia 180 países e territórios e os atribui notas em


uma escala entre 0 e 100. Quanto mais alta a nota, maior é a percepção
de integridade do país. Nesse tópico, a Dinamarca ficou com a nota 88,
o que a colocou como o país menos corrupto do ranking. O Brasil, com
nota 38, ficou na pouco prestigiosa 96ª posição. De fato, analisando-
se o ranking do IPC, constata-se que, em geral, existe uma relação
inversamente proporcional entre o estágio de desenvolvimento de
determinado país e o nível de corrupção atribuída aos agentes públicos.

3.4 Crimes de lavagem de dinheiro

Lavagem de dinheiro e crime organizado são faces de uma mesma


moeda. Com efeito, “é inconcebível separar o crime organizado da
lavagem de dinheiro” (CONSERINO, 2011, p. 40). É fato incontroverso
que as organizações criminosas lidam com quantidades gigantescas de
dinheiro, bem como auferem lucros expressivos a partir dos diversos
ilícitos que cometem.

Nesse ponto, destacamos que “apesar das óbvias dificuldades


de se chegar a dados muito confiáveis, nas análises mais pessimistas,
segundo a ONU, ‘lava-se’ mundialmente a bagatela de US$ 2 trilhões
a cada ano” (PINTO, 2007, p. 109). No mesmo sentido, o Conselho de
Controle de Atividades Financeiras – Coaf alerta que “o valor estimado
de dinheiro lavado anualmente no mundo está entre 2% e 5% do PIB
mundial, ou seja, algo entre US$ 800 bilhões e US$ 2 trilhões, de acordo
com dados divulgados pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas
e Crime – UNODC” (CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES
FINANCEIRAS, 2019).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 519
MARCELO GUERRA MARTINS

Os notoriamente elevados recursos financeiros obtidos pelas


diversas organizações criminosas, sem uma “adequada maquiagem”,
não podem simplesmente ser depositados em instituições financeiras
ou mesmo empregados em aquisições de bens como edifícios, galpões,
fazendas, veículos, aeronaves, barcos etc., sob pena de as autoridades
governamentais detectarem a origem ilegal do dinheiro com maior
facilidade e, por conseguinte, confiscarem os respectivos ganhos.
O problema se torna mais grave se pensarmos que “são inúmeros
os efeitos deletérios da lavagem de capitais, que são mais gravosos
quando considera a economia das nações subdesenvolvidas” (ARAS,
2008, p. 162).

As ferramentas utilizadas na lavagem de dinheiro são bastante


diversas. É que, de um modo geral, “a execução do delito passa por
processos amiúde complexos e sofisticados, por intermédio de atos
concatenados e fracionados, que ao final vão conferir aparência
lícita a dinheiro sujo” (SANCTIS, 2015, p. 18). Aliás, “o próprio sistema
econômico e financeiro, tal como concebido, representa um fator que
acaba por favorecer a dissimulação da origem do capital, tanto no
Brasil como no estrangeiro” (CRUZ, 2021, p. 345). Com efeito, nessa
era de sociedade informacional e em rede, não é raro que a abertura,
movimentação e extinção de contas bancárias, em diversas instituições
financeiras, inclusive no exterior12, sejam levadas a efeito com relativa
facilidade, bastando para tanto o acesso à internet.

12
Com efeito: “A partir das empresas offshore, com a lavagem das quantias ilícitas, os
criminosos podem facilmente financiar suas operações internacionalmente [...]. Por
não serem submetidas a inúmeros regulamentos como ocorre com as empresas em
território nacional, são utilizadas na primeira fase da lavagem de dinheiro, ou seja, na
colocação, também conhecida por placement, viabilizando assim operações financeiras
extraterritoriais. Com a transferência do dinheiro para uma offshore (consequentemente
para outro país), tentam afastar o dinheiro de sua origem ilícita”. (CÂNDIDO, 2019,
p. 165).

520 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022.
CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

Desta feita, vem-se percebendo que as “tradicionais” etapas da


lavagem de dinheiro, conforme concebidas e bem explicitadas pela
doutrina (colocação, ocultação e integração), não necessariamente
ocorrem sempre, nem tampouco nessa ordem, uma vez que para o
cometimento do ilícito basta a configuração de algumas das previsões
constantes da Lei n. 9.613, de 3 de março de 1998, cujo caput do
art. 1º estipula: “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização,
disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores
provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.” (BRASIL,
1998b)13.

Trata-se de um crime acessório, quer dizer, a configuração da


lavagem de dinheiro depende “da prática de uma infração penal
antecedente, da qual tenha ocorrido a obtenção de vantagem financeira
ilegal” (MOURA, 2021, p. 268). Até a edição da Lei n. 12.683, de 9 de
julho de 2012 (BRASIL, 2012b), apenas determinados crimes poderiam
ser antecedentes da lavagem de dinheiro. Após a aludida lei, com a
revogação dos incisos I a VIII do art. 1º, não há mais essa restrição,
podendo qualquer infração penal servir de delito antecedente.

Tendo a exploração ilegal da madeira despertado o interesse


de várias organizações criminosas, automaticamente colocou-se a
questão da lavagem dos recursos financeiros oriundos dessa espécie
de ilícito, tema que, até o momento, não mereceu grande atenção das
autoridades. De fato, “a maioria dos países não considerou os riscos
de lavagem de dinheiro representados por crimes ambientais em
suas avaliações de risco nacionais, incluindo aqueles que ocorrem no
exterior” (BARRILARI, 2021, p. 86-87)14. E tem mais:

13
O art. 1º em tela ainda descreve outras condutas em seus parágrafos que não serão aqui
reproduzidas de maneira a não estender demasiadamente o presente texto.
14
Aliás, segundo o Gafi: “Anti-money laundering is often not part of the public policy
dialogue on environmental protection. Despite the significant proceeds involved in
many cases, jurisdictions are mostly addressing environmental crime as a conservation
issue rather than a serious financial crime.” (FINANCIAL ACTION TASK FORCE, 2021,
p. 51).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 521
MARCELO GUERRA MARTINS

O Gafi identificou que o crime ambiental constitui a


nova frente de ganho fácil para o crime organizado,
propiciado não só pela grande diversidade de
atividades, como a extração ilegal de minérios,
comércio de silvícola e desmatamento ilegal, como
também pela ausência de uma regulação efetiva que
identifique e relacione os crimes ambientais com a
lavagem de dinheiro. (BARRILARI, 2021, p. 87).

Em suma, a lavagem de dinheiro a partir do cometimento de


crimes ambientais é algo em acentuado crescimento e, portanto,
carece de maior atenção e preocupação por parte dos diversos países,
sobretudo aqueles mais propensos a sofrerem esse tipo de delito, como
é, por exemplo, o caso do Brasil, cuja diversidade e riqueza ambiental
está entre as maiores do mundo.

3.5 Vocação para a transnacionalidade da exploração ilegal da


madeira no Brasil

É oportuno ressaltar que o “fenômeno da criminalidade


organizada, nos chamados delitos ambientais, em geral, guarda feição
de transnacionalidade” (SUXBERGER; REIS, 2020, p. 135). Com efeito,
“o desmatamento ou a supressão vegetal em uma área pode afetar a
dinâmica hidrológica e a regulação climática não só do país em que
ocorreu o delito, mas igualmente as de seus vizinhos” (SUXBERGER;
REIS, 2020, p. 146), sendo certo que “o crime transnacional está
fortemente associado ao crime organizado”15 (BOISTER, 2012, p. 6).

Além disso, é sabido que a madeira brasileira é exportada para


vários países onde encontra grande aceitação. Aliás, as “exportações de
madeira bruta registraram um crescimento superior a 9.500% nos últimos

15
Tradução livre. Texto original: “Transnational crime is heavily associated with organized
crime”.

522 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022.
CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

dez anos” (FLORENTINO, 2020). Diversas apreensões policiais revelam


que parte do conteúdo desse comércio é ilegal, fruto de fraudes/
falsificação de documentos ou certificações, corrupção e outros delitos
coligados.

Líderes da Europa sabiam que empresas sediadas em


seus países eram compradoras de madeira extraída de
forma ilegal da região Amazônica. A informação foi
repassada por autoridades brasileiras durante a visita
de três dias que embaixadores fizeram à Amazônia
no início deste mês. A missão foi liderada pelo vice-
presidente Hamilton Mourão, que também é presidente
do Conselho Nacional da Amazônia Legal, e contou
com a participação de autoridades da Espanha, Suécia,
Alemanha, União Europeia, Reino Unido, França e
Portugal. Representantes da África do Sul, Peru,
Canadá e Colômbia também participaram do encontro.
A comercialização de madeira ilegal foi desarticulada
pela Operação Arquimedes, deflagrada pela Polícia
Federal, em parceria com o Ibama e Ministério Público
Federal – MPF, em 2017, que identificou uma série de
comerciantes de países na Europa, América do Norte
e Ásia como integrantes do esquema. (BOSA, 2020)16.

Destarte, a vocação para transnacionalidade da exploração


irregular da madeira no Brasil torna o tema mais sensível e carecedor
de atenção em nível de cooperação internacional, seja porque há
agressão a bens jurídicos protegidos em outros países, seja porque
deixa a persecução aos infratores mais árdua, sendo mais intrincado
descobrir a integralidade da cadeia de ilicitudes cometidas.

16
Outra notícia, igualmente preocupante, dá conta de que a “Embaixada dos Estados
Unidos informou nesta sexta-feira (21) à Polícia Federal sobre a apreensão de três
carregamentos de madeira nobre brasileira exportada ilegalmente para o país.”
(VLADIMIR NETTO, 2021).

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 523
MARCELO GUERRA MARTINS

Finalizando este capítulo, não se pode negar que o cometimento


de todos esses diversos crimes é extremamente prejudicial não apenas
ao meio ambiente, que sofre com a exploração predatória, mas ao
próprio desenvolvimento econômico e social do Brasil, principalmente
das regiões mais atingidas por tal estado deletério de coisas17.

4 COMBATE À CRIMINALIDADE ORGANIZADA DE ÍNDOLE


AMBIENTAL

Visto o conjunto dos ilícitos frequentemente praticados pela


criminalidade organizada ambiental, passamos a descrever os principais
instrumentos normativos empregados no combate a tais atividades
delituosas, bem como possíveis medidas de aperfeiçoamento do
sistema investigativo/persecutório.

4.1 Instrumental normativo e cooperação internacional

Existe vasta legislação utilizada pelas autoridades ambientais


no combate à exploração ilegal da madeira e atividades correlatas, a
começar pelo próprio Código Florestal Brasileiro (Lei n. 12.651/2012)
(BRASIL, 2012a) que estabelece normas gerais sobre a proteção da
vegetação, as áreas de Preservação Permanente e as áreas de Reserva
Legal; a exploração florestal, o suprimento de matéria-prima florestal,
o controle da origem dos produtos florestais e o controle e a prevenção
dos incêndios florestais, e prevê instrumentos econômicos e financeiros
para o alcance de seus objetivos.

17
Segundo o Índice de Progresso Social – IPS 2021, publicado pelo instituto Imazon:
“Entre os 15 municípios com os piores IPSs, estão alguns fortemente associados com
desmatamento, degradação florestal e conflitos sociais, como é o caso dos municípios
paraenses de Pacajá, Pau D’Arco, Nova Ipixuna e Nova Conceição do Piriá. Há também
municípios com forte presença de garimpo ilegal, como é o caso de Jacareacanga
(PA). Por fim, o município de São Félix das Balsas (MA) tem o pior IPS Amazônia 2021”
(SANTOS et al., 2021, p. 9).

524 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022.
CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

Há também a Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981 (BRASIL,


1981), que estatui a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e
mecanismos de formulação e aplicação, constitui o Sistema Nacional do
Meio Ambiente – Sisnama e institui o Cadastro de Defesa Ambiental; a
Lei n. 11.428, de 22 de dezembro de 2006 (BRASIL, 2006c), que dispõe
sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata
Atlântica; a Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000 (BRASIL, 2000), que
institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.

As normas retro também preveem em seu bojo penalidades


pecuniárias (multas) aos infratores, destacando-se também a
possibilidade de as autoridades competentes embargarem obras ou
atividades que estejam causando danos ambientais (art. 51 da Lei
n. 12.651/2012) (BRASIL, 2012a).

Na mesma linha e com objetivos congruentes, caminha a


legislação penal que inclusive foi referenciada acima (itens 2.1 a 2.4
retro). Assim, entram em cena os vários tipos penais a serem aplicados
de modo conjunto e integrado (observado o devido processo legal,
evidentemente), sendo que as penas, notadamente quando de
reclusão, funcionam como elemento dissuasório do comportamento
ilícito. As normas penais igualmente ostentam sanções de natureza
patrimonial, tais como as multas a serem aplicadas juntamente com
as penas de privação de liberdade, bem como a perda dos bens e
recursos adquiridos ilicitamente (art. 91, II, do Código Penal; art. 7º
da Lei n. 9.613) (BRASIL, 1940; BRASIL, 1998b). Aos agentes públicos,
além das sanções retro, é possível que a condenação leve à perda do
cargo, função ou emprego público (art. 92, I, do Código Penal; § 6º do
art. 2º da Lei n. 12.850) (BRASIL, 1940; BRASIL, 2013).

A eficácia da legislação, seja de ordem civil ou criminal, depende,


em grande medida, de instrumentos investigativos e processuais, tendo

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 525
MARCELO GUERRA MARTINS

o ordenamento pátrio, dentre outras medidas, colocado à disposição


do Ministério Público o inquérito civil (§ 1º do art. 8º da Lei n. 7.347/1985)
(BRASIL, 1985), com objetivo de instruir futura Ação Civil Pública –
ACP. Aliás, um dos objetivos da ACP é a reparação por danos causados
ao meio ambiente (art. 1º, inciso I), sendo admissível o deferimento
de medidas liminares (art. 12), a fixação de multas diárias pelo juiz
(art. 11), além de, em caso de procedência, a condenação na reparação
propriamente dita que poderá ser em dinheiro ou no cumprimento de
obrigação de fazer ou não fazer (art. 3º).

Dentro da esfera processual/investigativa, merecem menção


as chamadas Técnicas Especiais de Investigação – TEIs, que são
“ferramentas sigilosas postas à disposição da Polícia, dos órgãos de
inteligência e do Ministério Público, para a apuração de crimes graves,
que exijam o emprego de estratégias investigativas distintas das
tradicionais.” (ARAS, 2012, p. 405).

As TEIs são sigilosas, ou seja, servem para a coleta de indícios ou


provas sem que o suspeito, investigado ou réu tenha conhecimento de
sua ocorrência. Como exemplos, citamos: ação controlada e entrada
vigiada, vigilância eletrônica, uso de recompensas, colaboração
premiada, proteção a vítimas e testemunhas, infiltração de agentes,
interceptação ambiental, interceptação telefônica e telemática,
interceptação postal, exploração de local, equipes conjuntas de
investigação, testemunhas sem rosto, uso de informantes, investigação
proativa (ARAS, 2012).

No Direito pátrio, em se tratando de organizações criminosas


(como visto, cada vez mais comuns na seara dos delitos ambientais),
a Lei n. 12.850 (BRASIL, 2013), em seu art. 3º, prevê as seguintes
TEIs, sem prejuízo de outros meios de prova previstos em distintas
normas: I – colaboração premiada; II – captação ambiental de sinais

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CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

eletromagnéticos, ópticos ou acústicos; III – ação controlada; IV – acesso


a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais
constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações
eleitorais ou comerciais; V – interceptação de comunicações telefônicas
e telemáticas, nos termos da legislação específica; VI – afastamento dos
sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica;
VII – infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do
art. 11; VIII – cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais,
estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse
da investigação ou da instrução criminal.

Levando em conta que a exploração ilegal da madeira, como visto,


possui vocação para a transnacionalidade, merece destaque a questão
da cooperação internacional que é “o instrumento por meio do qual
um Estado, para fins de procedimento no âmbito da sua jurisdição,
solicita a outro Estado medidas administrativas ou judiciais que tenham
caráter judicial em pelo menos um desses estados” (BRASIL, 2014,
p. 7). Nesse ponto:

Em seu dever de prover a justiça, o Estado precisa


desenvolver mecanismos que possam atingir bens e
pessoas que podem não mais estar em seu território.
Até mesmo meros atos processuais, mas necessários
à devida instrução do processo, podem ser obtidos
mediante auxílio externo, de modo que a cooperação
jurídica internacional torna-se um imperativo para a
efetivação dos direitos fundamentais do cidadão nos
tempos atuais. (PIRES JÚNIOR, 2012, p. 17).

Via de regra, esse tipo de cooperação é exercido pelos diversos


países com esteio em acordos bilaterais, tratados regionais e
multilaterais e, para alguns países e em determinados casos, com base
na promessa de reciprocidade. Com efeito:

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 527
MARCELO GUERRA MARTINS

O Brasil é parte de uma ampla gama de acordos e


tratados e também coopera mediante promessa
de reciprocidade em casos análogos por parte do
Estado estrangeiro. Por meio desses instrumentos
internacionais, o Brasil não apenas adquire o
direito de solicitar cooperação jurídica aos outros
estados-partes, como também se compromete a dar
cumprimento aos pedidos que aqui aportem oriundos
desses países. (BRASIL, 2014, p. 8).

Em se tratando de crimes de corrupção, cuja presença é usual


no âmbito da atuação da criminalidade organizada ambiental, a
cooperação internacional encontra-se disciplinada na Convenção de
Mérida, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 31 de
outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003,
em vigor internamente por força do Decreto n. 5.687, de 31 de janeiro
de 2006 (BRASIL, 2006a) (arts. 43 a 50).

Estando em cena delitos ambientais, o art. 77 da Lei n. 9.605


estipula que o governo brasileiro prestará a necessária cooperação a
outro país, sem qualquer ônus, quando solicitado para: I – produção de
prova; II – exame de objetos e lugares; III – informações sobre pessoas
e coisas; IV – presença temporária da pessoa presa, cujas declarações
tenham relevância para a decisão de uma causa; V – outras formas de
assistência permitidas pela legislação em vigor ou pelos tratados de
que o Brasil seja parte (BRASIL, 1998a).

Em termos de cooperação jurídica internacional, dentre as


diversas medidas que podem ser reciprocamente solicitadas pelos
estados, desde que exista previsão no acordo/tratado celebrado,
destacamos as seguintes: assistência judicial recíproca, extradição,
investigações conjuntas, interrogatórios, oitiva de testemunhas,
fornecimento de informações bancárias, financeiras e patrimoniais,
Técnicas Especiais de Investigação – TEIs, apreensão de bens e

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CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

recursos objeto de crime para fins de repatriação e recuperação de


ativos etc.

Entretanto, “passados mais de dez anos de vigência da Lei


n. 9.605/1998, pode-se dizer que a experiência judiciária brasileira
em relação a crimes ambientais ainda é modesta, e a doutrina, em se
considerando a relevância do tema, escassa” (BARANDIER, 2012, p. 134).
O que se quer dizer é que, não obstante os esforços das autoridades,
do Ministério Público, e da atuação judicial18, remanesce a necessidade
de aprimoramento e criação de novas ferramentas capazes de majorar
a eficiência ao combate à criminalidade organizada ambiental que, ao
que tudo indica, ainda persiste em níveis elevados.

4.2 As recomendações da Ação n. 10/2021 da Enccla

O Grupo de Ação Financeira Internacional – Gafi19, em julho


de 2021, publicou o relatório sobre crimes ambientais e lavagem de
dinheiro, cujas conclusões, dentre outras assertivas, afirmou “existir
uma necessidade geral de maior conscientização sobre a exposição
à lavagem de dinheiro por meio de crimes ambientais” (FINANCIAL
ACTION TASK FORCE, 2021, p. 51).

Nesse passo, no que concerne ao aperfeiçoamento dos institutos


voltados ao combate da criminalidade organizada ambiental, pensamos
ser importante expor as recomendações da Ação n. 10/2021 da

18
Apenas como exemplo, citamos algumas operações bastante conhecidas e divulgadas
pela mídia, dada a magnitude dos delitos e a expressividade social das pessoas
envolvidas: Operação Ouro Verde II, Operação Arquimedes, Operação Akuanduba,
Operação Floresta S/A, Operação Onda Verde, dentre outras tantas.
19
Em inglês utiliza-se a sigla Financial Action Task Force – FAFT. O Gafi foi criado em
1989, no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico –
OCDE, constitui-se num foro de alta relevância nas discussões internacionais referentes
ao combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 529
MARCELO GUERRA MARTINS

Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro –


Enccla, 20 que teve por escopo justamente a proposição de medidas para
fortalecer o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro relacionadas
aos ilícitos ambientais. Acerca da Enccla, destacamos:

O trabalho é concretizado nas chamadas ações, as


quais são elaboradas e pactuadas anualmente pelos
membros da Enccla. Para cada uma delas, cria-se
um grupo de trabalho composto por vários órgãos
e instituições, o qual tem como mandato o alcance
de um ou mais produtos predefinidos, por meio de
atividades como realizar estudos e diagnósticos
legais-normativos e de composição de bancos de
dados, elaborar propostas legislativas, averiguar o
estado da arte de sistemas de cadastros, indagar
necessidades e promover soluções em TI, buscar
eficiência na geração de estatísticas e realizar eventos
voltados à evolução dos temas por meio de debates. Os
grupos de trabalho costumam reunir-se mensalmente.
No cenário mundial, a Enccla tem cumprido papel
essencial para atender, ainda, as recomendações
internacionais. (ESTRATÉGIA NACIONAL DE
COMBATE À CORRUPÇÃO E À LAVAGEM DE
DINHEIRO, [20--]).

A Ação n. 10/2021 da Enccla, após diversas reuniões com a oitiva


das entidades participantes, bem como de várias autoridades/entidades
envolvidas com a questão ambiental, formulou oito recomendações,
nos termos delineados na tabela abaixo (ENCCLA, 2021):

20
A Enccla é uma rede de órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário das
esferas federal e estadual e, em alguns casos, municipal, bem como do Ministério
Público de diferentes esferas, cujo objetivo é a discussão conjunta para a formulação
de políticas públicas e soluções voltadas ao combate a crimes como lavagem de
dinheiro e corrupção. A Ação n. 10/2021 foi proposta pelo Instituto Ethos de Empresas
e Responsabilidade Social. A coordenação coube ao MPF. Teve os seguintes órgãos
colaboradores: Abin, Aeal-MJSP, AGU, Ajufe, AMPCON, ANPR, BCB, BNDES, Caixa, CJF,
CNJ, CASA CIVIL/PR, Coaf, Conaci, CONCPC, CVM, DRCI, Febraban, MD, MP/GO, MP/
MG, MP/MS, MP/SP, MPF, PF, PG/DF, RFB e os seguintes órgãos convidados: Abema,
Anoreg, Correios, Ethos, Ibama, ICMBio, Incra, TI BR.

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CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

Tabela 3 – Recomendações da Enccla

Destinatário Recomendação – Resumo


I Estados do Mato Procedam a integração plena dos sistemas
Grosso e Pará estaduais com o sistema federal Sistema
Nacional de Controle da Origem dos
Produtos Florestais – Sinaflor, bem como a
plena transparência dos sistemas.
II Ministério da Disponibilizem na internet outras
Agricultura/ informações do Cadastro Ambiental
Serviço Florestal Rural – CAR, além daquelas relacionadas
Brasileiro às geometrias do imóvel, observadas as
restrições legais.
III Poderes a) Normatizem, observando a legislação
Executivos federal, elaborem e publicizem o manual
Estaduais de validação do CAR;
b) Iniciem o processo de validação
de todos os cadastros ambientais
existentes, divulgando um cronograma de
implementação.
IV Ibama e Órgãos Normatizem, aprimorem e ampliem o uso
Estaduais de de tecnologias de imagens por satélite.
Meio Ambiente
V Ibama e Órgãos Normatizem e desenvolvam ferramenta de
Estaduais de pesquisa pública utilizando os dados de
Meio Ambiente latitude e longitude das áreas embargadas,
para que todos os atores, notadamente
o mercado e as instituições financeiras,
possam consultar as restrições ambientais
existentes, a partir das coordenadas
geográficas e não apenas pelo nome ou
Cadastro de Pessoas Físicas – CPF.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 531
MARCELO GUERRA MARTINS

VI Ministério da Disponibilizem para os órgãos de


Agricultura e fiscalização a íntegra dos dados contidos
Órgãos Sanitários nas Guias de Trânsito Animais – GTAs
Estaduais por meio do fornecimento de chave de
acesso ou planilha editável e que analisem
a possibilidade de dar publicidade às
informações, nos moldes do que ocorre
com o Sinaflor, observadas as restrições
legais e os riscos inerentes à divulgação
dos dados.
VII ICMBio e Poderes Promovam e concluam estudo com
Executivos propostas de destinação de terras
Estaduais públicas para a conservação ou para uso
sustentável de seus recursos, em especial,
pelas populações originárias e tradicionais.
VIII Coaf, Mapa, MMA Realizem estudos para a regulamentação
e Ibama das obrigações dos setores que atuam na
comercialização de bens de alto valor de
origem rural ou animal.
Fonte: (ENCCLA, 2021).

De um modo geral, as recomendações em epígrafe demandam


maior transparência e efetividade na atuação dos diversos órgãos
públicos, de alguma forma envolvidos com a questão do meio ambiente,
com vistas a majorar a eficácia do controle pelas diversas autoridades,
cada uma na sua respectiva esfera de competência. Isso fica claro, por
exemplo, com recomendações como a necessidade de maior integração
entre os sistemas eletrônicos estaduais e federais; a ampliação das
informações do CAR disponíveis na internet; a ampliação do uso de
imagens por satélite; a criação de uma ferramenta de pesquisa pública
utilizando os dados de latitude e longitude das áreas embargadas.

A Ação n. 10/2021 da Enccla também elaborou uma minuta de


anteprojeto de lei para a modificação do art. 299 do Código Penal e
inclusão do § 2º, estabelecendo que incorre nas mesmas penas “quem

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CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

inserir informação ou dados falsos, alterar ou excluir indevidamente


dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da
administração pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou
para outrem ou para causar dano”. Como justificativa, foi argumentado
que:

A prática investigativa ambiental demonstra que é


cada vez mais comum a inserção de informações
falsas nesses sistemas e formulários eletrônicos por
parte das pessoas físicas ou jurídicas interessadas.
Não obstante isso, há grande divergência se essa
conduta criminosa pode ser considerada falsidade
ideológica, visto que o sistema e/ou formulários
disponíveis podem não ser considerados, exatamente,
“documentos” para efeito de incidência do art. 299
do CP. (ESTRATÉGIA NACIONAL DE COMBATE À
CORRUPÇÃO E À LAVAGEM DE DINHEIRO, 2021).

Por fim, a Ação n. 10/2021 ainda elaborou outra minuta


anteprojeto de lei para a modificação na Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro
de 1998 (BRASIL, 1998a), passando a constar a obrigação expressa
de restauração dos danos ocorridos, com retorno ao estado anterior,
sempre que possível. Como justificativa, foi ponderado que “sem a
reparação in natura do dano, há casos em que o crime ambiental, não
obstante sentença condenatória prolatada, continua a ser praticado”.

5 CONCLUSÃO

A proteção do meio ambiente, nos termos do art. 225 da


Constituição de 1988, além de ser um valor de alta relevância, é
indispensável à preservação da vida, inclusive para as futuras gerações
(BRASIL, 1988). Assim, os interesses econômicos necessitam de se
amoldarem à envergadura maior da questão ambiental.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 533
MARCELO GUERRA MARTINS

Nesse diapasão, como visto no texto, existe uma vasta legislação


que, ao regular pormenorizadamente a exploração dos recursos
ambientais (incluindo a madeira, obviamente), impõe diversos
requisitos e limitações aos agentes econômicos interessados nesse tipo
de atividade, tornando mais custosa a produção e, por conseguinte,
mais caro e valioso o produto final.

Disso resulta que as florestas brasileiras vêm sendo alvo da


criminalidade organizada, cujo objetivo é a obtenção do maior lucro
possível, mediante a prática de diversos ilícitos de ordem civil e
criminal. Estima-se que mais de 50% da madeira extraída das florestas
brasileiras não observe a lei, sendo que no Pará esse percentual chegue
a 70%. Aliás, o Gafi identificou que o crime ambiental constitui a nova
frente de ganho fácil para o crime organizado.

O modus operandi do crime organizado ambiental implica no


cometimento de um conjunto de delitos graves (tais como: crimes
ambientais, organização criminosa, corrupção e lavagem de dinheiro),
estando presente, ainda, o caráter transnacional, tanto pela destinação
de parte da madeira ao exterior quanto pela utilização de empresas
e ou entidades “de fachada” em jurisdições offshore para tornar mais
difícil apuração da lavagem de dinheiro.

Considerando que, por razões óbvias, não se pode afrouxar a


regulação e simplesmente liberar a exploração ambiental sob regras
economicamente mais amenas, é de rigor constante fiscalização e
severo combate estatal aos delitos perpetrados. Para tanto, existem
ferramentais jurídicas de cunho investigativo, processual e punitivo,
nos termos explanados ao longo do texto.

Todavia, não obstante os esforços empreendidos pelas


autoridades ambientais e pelo próprio Ministério Público, nota-se que

534 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022.
CRIMINALIDADE ORGANIZADA NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA NO
BRASIL: UM MODUS OPERANDI VOLTADO À ILICITUDE DE ÍNDOLE TRASNACIONAL

a criminalidade organizada não recrudesce facilmente, sendo sempre


necessário aperfeiçoar as ferramentas disponíveis para o respectivo
combate. Como exemplo de aprimoramento, sem prejuízo da
implantação de outras ações, descrevemos no texto as recomendações
da Ação n. 10/2021 da Enccla, cujo escopo é justamente a proposição
de medidas destinadas à melhoria das políticas de combate à
criminalidade organizada na seara ambiental.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 507-551, jan./jul. 2022. 535
MARCELO GUERRA MARTINS

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https://doi.org/10.54795/rejub.n.1.193

A UTILIZAÇÃO DO MALWARE COMO


FERRAMENTA DA INFILTRAÇÃO VIRTUAL
NA INVESTIGAÇÃO DA CRIMINALIDADE
ORGANIZADA: UMA REALIDADE NORMATIVA
POSSÍVEL?
THE USE OF MALWARE AS A VIRTUAL INFILTRATION
TOOL IN THE INVESTIGATION OF ORGANIZED CRIME: IS
ITS REGULATION A POSSIBLE REALITY?

ULISSES AUGUSTO PASCOLATI JUNIOR


Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP.
Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo – PUC/SP. Especialização em Direito Público pela Escola
Paulista da Magistratura – EPM, em Direito Penal pela Universidade de
Salamanca – USAL e em Raciocínio Probatório pela Universidade de
Girona – UDG. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo.
https://orcid.org/0000-0003-4647-4028

RESUMO

O Estado está diante de uma moderna criminalidade organizada. As


organizações criminosas atualmente se utilizam de avançada tecnologia
para garantir o desenvolvimento de suas atividades. Os tradicionais
meios de produção de prova disponíveis ao Estado não são suficientes
para ultrapassar as barreiras de proteção tecnológica utilizadas pelas
organizações para ocultamento das atividades e dos bens. O Estado
não pode continuar a depender da apreensão física dos dispositivos
informáticos para ter conhecimento integral das organizações

ReJuB
544 - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 553-580, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO MALWARE COMO FERRAMENTA DA INFILTRAÇÃO VIRTUAL NA
INVESTIGAÇÃO DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA: UMA REALIDADE NORMATIVA POSSÍVEL?

criminosas. O presente texto tem a finalidade de tentar demonstrar


que o malware – como meio de prova atípico – é importante ferramenta
para o enfrentamento da criminalidade organizada e que sua utilização
pelo Estado é uma realidade normativa possível quando conjugadas
as disposições internacionais e nacionais relativas à possibilidade da
infiltração virtual.

Palavras-chave: investigação; crime organizado; novas tecnologias;


malware; infiltração virtual.

ABSTRACT

The State is faced with a modern organized crime. Criminal organizations


currently use advanced technology to ensure the development of their
activities. The traditional ways to produce evidence that are available
to the State are not enough to overcome the technological protection
barriers used by organizations to conceal activities and assets. The
State cannot continue to depend on the physical seizure of computer
devices in order to have full knowledge of criminal organizations. The
purpose of this article is to try to demonstrate that malware - as an
atypical form of evidence - is an important tool to fight the organized
crime and that its use by the State is a possible normative reality when
combined with international and national rules regarding the possibility
of virtual infiltration.

keywords: investigation; organized crime; new technologies; malware;


virtual infiltration.

Recebido: 14-3-2022
Aprovado: 28-4-2022

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SUMÁRIO

1 Introdução. 2 Falso dilema: eficácia e garantia. 3 Algumas tecnologias


à disposição do crime organizado. 4 Definição e espécies de malware.
5 Dimensão internacional e o Direito Comparado. 6 Proposta de solução:
ferramenta autorizada na infiltração virtual. 7 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea enfrenta uma dicotomia: como


aceitar os bônus de uma sociedade global na qual há um intercâmbio de
facilidades, representadas pelo fácil trânsito de mercadorias, serviços
e, sobretudo, dados de informação e, ao mesmo tempo, conviver com
o fato de que estas mesmas facilidades fomentam e facilitam o crime
organizado numa dimensão de cybercriminalidade.

A globalização é um dado objetivo, realidade para a qual não


há retrocesso. Há necessidade, portanto, de convivermos com esse
fenômeno que cada vez mais aproxima as pessoas e colabora com o
próprio crime organizado. O problema das sociedades modernas é como
enfrentar, dentro desse contexto, o crime organizado caracterizado
por uma delinquência não convencional, que se expande por todos os
continentes, fomentado por redes de intercâmbio de informações e
atividades ilícitas facilitado pela evolução tecnológica.

O crime organizado também se globalizou, pois ultrapassou as


fronteiras físicas dos países. Atualmente, a criminalidade organizada
“navega” em uma “realidade” informacional, impulsionada pela internet,
utilizando-se de sistemas e programas que são obstáculos – verdadeiras
barreiras virtuais – às investigações criminais, pois dificultam a
identificação e a localização do usuário. São utilizados diferentes tipos

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A UTILIZAÇÃO DO MALWARE COMO FERRAMENTA DA INFILTRAÇÃO VIRTUAL NA
INVESTIGAÇÃO DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA: UMA REALIDADE NORMATIVA POSSÍVEL?

de aplicativos de encriptação de ponta a ponta, comunicações que se


assentam no protocolo IP e que correspondem às denominadas Voice
Over Internet Protocol – VoIP, programas anonimizadores a exemplo
do navegador TOR – The Onion Router, o que propicia o acesso a “deep
web”, e, por sua vez, torna mais dificultosa a localização de ativos que
trafegam entre paraísos fiscais, offshore ou, especialmente, na forma
de criptoativos.

As diversas aplicações e programas, em que pese não tenham


sido criados para utilização ilícita, pelo contrário, são ferramentas
enormemente utilizadas pelas organizações criminais uma vez que
permitem técnicas antirrastreamento e antiforenses. Assim, ao mesmo
tempo em que o ambiente digital impulsiona o crime organizado,
sua utilização deixa rastros digitais, os quais são fonte de prova para
que o Estado possa desvendar não apenas a estrutura do próprio
crime organizado, como exige a legislação (art. 2º c/c art. 1º, § 1º, da
Lei n. 12.850/2013), bem como a localização de ativos confiscáveis
vinculados ao delito, ou de ativos não vinculados a determinado delito,
mas adquiridos com dinheiro oriundo do ilícito e, ainda, os sofisticados
mecanismos de operação de branqueamento de capital.

Diante desse quadro, a verdade é que os institutos tradicionais


disponíveis para persecução penal se mostram obsoletos a enfrentar
esta delinquência contemporânea e não convencional. Ainda, diante da
constante evolução da tecnologia, os modernos meios de investigação
autorizados pelo art. 3º da Lei n. 12.850/2013 também se mostram, em
determinada medida, ultrapassados. Não obstante a possibilidade de
quebras de sigilo telefônico, de dados e telemáticos em clouds, e-mails,
captação ambiental, buscas e apreensões etc. O fato é que a persecução
penal ainda depende, em muito, da apreensão física dos dispositivos
nos quais as informações são gravadas (quando são gravadas), como

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telefones celulares, tablets, computadores, notebooks, pen drives, HDs


externos, cartões de memória, máquinas fotográficas etc.

É neste cenário que se propõe a utilização do malware como


ferramenta de investigação a ser utilizada pelas agências de persecução
penal no afã de romper as barreiras encriptadoras e anonimizadoras
utilizadas pela criminalidade organizada. Entretanto, é dever consignar
que, diferentemente de outros países que possuem a autorização legal
para a utilização desse meio excepcional, e aqui registramos, a título
de exemplos, Espanha e Itália, a legislação brasileira, até o presente
momento, é silente. Contudo, temos que, conjugando-se disposições
internacionais estabelecidas na Convenção de Palermo e de Budapeste,
com a regulamentação atinente a infiltração virtual – meio este de
produção de provas autorizado pelo art. 10-A e seguintes da Lei
n. 12.850/2013 – é possível a utilização desta importante ferramenta
de investigação representada pelo malware quando o objeto de
investigação for eventual organização criminosa.

2 FALSO DILEMA: EFICÁCIA E GARANTIA

Não há um verdadeiro dilema estabelecido entre eficácia da


persecução penal e preservação de direitos e garantias do acusado.
Esse modo de ver eficiência e garantia na busca de segurança social e
preservação de direitos objetivando um “justo equilíbrio” (FERNANDES,
2009, p. 226) decorre de equivocada premissa relativa aos fins do
processo penal, ou seja, que processo eficiente é aquele que, de modo
célere, alcança a condenação de determinada pessoa.

O sistema jurídico processual se mostrará eficiente na medida


em que preservar os direitos do acusado ou investigado. Não se trata
de escolha de uma dimensão ou outra. Processo dito garantista não

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implica impunidade, da mesma forma que processo eficiente não


espelha necessária condenação. Processo eficiente é aquele que,
respeitando a ordem jurídica, consegue alcançar uma reconstrução
histórico-fática que permita ao Estado a imposição da pena. Portanto,
trata-se da escolha de outra premissa consistente em se perguntar
qual a finalidade do processo penal?

Saliente-se, inicialmente, que a apuração da verdade “é o objetivo


fundamental da atividade probatória no processo judicial” (FERRER-
BELTRÁN, 2021, p. 46). Nesse sentido, a finalidade epistêmica do
processo penal é a busca da verdade, não de uma verdade adjetivada
como de real ou material, mas sim de uma verdade que seja aproximada
e que corresponda (verdade como correspondência) (RAMOS, 2021,
p. 42) a uma determinada reconstrução fática demonstrada pelas provas
legalmente apresentadas aos autos, as quais, portanto, permitem,
após devida valoração, a superação do postulado da presunção de
inocência, sempre com respeito aos direitos e às garantias individuais
assegurados pelo ordenamento.

A verdade como correspondência é o próprio fim do procedimento


probatório; em outras palavras, “a prova tem com a verdade uma
relação teleológica (é um meio para se obter o fim verdade)” (RAMOS,
2021, p. 42; FERRER-BELTRÁN, 2017, p. 72-77). Essa relação de
instrumentalidade somente é alcançada quando todas as regras
escolhidas democraticamente pelo legislador forem respeitadas. O
limite à descoberta da verdade fática aproximada está no respeito
aos postulados legais e constitucionais. A descoberta da verdade,
destarte, não sugere desrespeito às regras processuais nem deve ser
buscada a qualquer custo, como um fim em si mesma. Isto é prática
em processos autoritários, como instrumentos de estados igualmente
autoritários. Em estados democráticos, a verdade é trazida ao sistema
jurídico processual por meio de provas (e meios) legalmente produzidas

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pelos atores processuais e, com base nelas, é que o juiz profere as


respectivas decisões. Portanto, não vemos incompatibilidade entre
“garantismo” e “eficiência” que um processo é tanto mais eficiente na
busca da verdade ou de eventual defesa social quanto mais respeitar
os direitos dos sujeitos processuais dentro do esquadrinhamento legal
trazido tanto pela Constituição quanto pelo legislador ordinário.

No caso da criminalidade organizada, não há dúvidas de


que se trata de uma moderna criminalidade que a cada dia se
utiliza mais e mais de meios tecnológicos para, com a utilização
de ferramentas anonimizadoras e encriptadoras, não apenas
garantir a própria existência, mas também para garantir maior
desenvolvimento das atividades lícitas e, acima de tudo, tornar
seguro o proveito do crime. Assim, para esse tipo de criminalidade,
o legislador estabeleceu e permitiu meios probatórios excepcionais.
Para situação excepcional, meio excepcional de enfrentamento. Eis
uma relação de proporcionalidade estabelecida. Respeitar as balizas
do legislador nestes meios de prova excepcionais, que buscam
maior eficiência, é dimensão garantista, até porque, o respeito aos
cânones dito garantistas não é sinal de impunidade, mas de Estado
Democrático comprometido com os Direitos Humanos.

Portanto, o que se tem, em verdade, é um falso dilema, visto que a


persecução penal para ser eficiente não induz o desrespeito a direitos e
a integral observância dos postulados constitucionais traduzidos pelo
legislador ordinário, mesmo no universo da criminalidade organizada
excepcional, deve levar a responsabilidade penal daquele é que
culpável e a não responsabilização do sujeito inocente. O inverso até
pode acontecer, mas por erro, infelizmente, e não porque o processo
deve ser mais eficiente e a verdade buscada a qualquer preço.

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3 ALGUMAS TECNOLOGIAS À DISPOSIÇÃO DO CRIME


ORGANIZADO

As organizações criminais antes vistas como associações estáveis


de pessoas cuja atividade era “artesanal” e restrita a determinado
território sempre existiram e continuarão existindo, agora moduladas
pelas novas tecnologias. Conforme observa Callegari (2016, p. 12),
esse fenômeno criminal “sofreu um desenvolvimento extraordinário
como consequência das novas tecnologias, avanços tecnológicos em
informática e telecomunicações”. Assim, as atividades empresariais
ilícitas levadas a cabo pelas organizações criminosas passaram de
negócios localizados a negócios gerenciados internacionalmente.

O Estado encontra dificuldades em enfrentar – e às vezes até


mesmo compreender – esta nova realidade. Pode-se citar, a fim de se
demonstrar as dificuldades encontradas pelo Estado na persecução
desta nova dimensão das organizações criminosas, algumas tecnologias
que, em que pesem sejam voltadas a fins lícitos eis que permitem
maior proteção da privacidade do usuário, também estão a serviço
das organizações criminosas. Chama-se atenção para as tecnologias
de anonimização, as quais permitem às pessoas – e aqui nos referimos
aos integrantes das organizações ou a quem com elas estabelecem
negócios – não apenas manterem contato seguro e anônimo por meio
de troca de mensagens, como também acessar o ambiente virtual sem
deixar rastro. Também não se pode deixar de citar as possiblidades de
negócios por meio de criptomoedas.

A encriptação representa o “processo de transformação da


informação num formato seguro para protegê-la do acesso não
autorizado ou de modificações por parte de terceiros” (CAMPOS, 2021,
p. 43). Trata-se de tecnologia utilizada pelos principais aplicativos de
troca de mensagens instantâneas, como, principalmente, WhatsApp e

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Telegram, dentre outros. Representam, em verdade, um obstáculo para


a investigação criminal no ambiente digital, posto que, diferentemente
das comunicações telefônicas, as quais, segundo Campos (2021,
p. 44), assentam-se no protocolo Global System for Mobile
Communications – GSM e, por esta razão, ainda que haja encriptação,
os “fornecedores de serviços espelham a informação desencriptada”,
o mesmo não acontece com os:

[...] e-mails que utilizam diferentes tipos


de encriptação, com as comunicações que
assentam no Protocolo IP e que correspondem
às denominadas Voice Over Internet
Protocol – VoIP, bem como com o
envio de mensagens escritas e de
outros dados através de aplicações de
mensagens instantâneas. (CAMPOS, 2021,
p. 44).

Logo, à exceção do e-mail que permite interceptação telemática


e, portanto, o acesso ao conteúdo da comunicação, inclusive, por
exemplo, se estiver armazenado em determinada cloud:

[...] as principais plataformas de comunicação


utilizadas recorrem a denominada “end-to-end
encryptions” (encriptação de ‘ponta-a-ponta’), o
que significa que, mesmo que a comunicação passe
através de um servidor, este não tem acesso ao seu
conteúdo, pois só o dispositivo receptor tem a chave
para a desencriptação daquele. (CAMPOS, 2021,
p. 44).

Destarte, qualquer tentativa de interceptação do conteúdo


destas comunicações, a exemplo do que acontece com as escutas
telefônicas, “é desprovida de efeito útil” (CAMPOS, 2021, p. 45). Nesse
sentido, a única forma de lograr o conhecimento do conteúdo da troca

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de mensagens, o que pode ajudar não apenas na compreensão da


estrutura da organização e o conhecimento da função de cada membro,
mas também saber o destino dos bens e valores, é apreendendo os
dispositivos, com o acesso físico. Estes dispositivos, ainda, cumpre
anotar, em determinados casos são protegidos com senha e com
programas de autodestruição, os quais apagam o conteúdo antes da
análise forense (wiping).

No tocante a programas anonimizadores que permitem


navegação na rede mundial sem deixar rastros destaca-se o The Onion
Router – TOR, o qual surgiu em 2003 e consiste:

[...] en un servicio online que mediante un software


específico, de código abierto y multi-plataforma, permite
conectarse a una rede de comunicaciones de baja
latencia que brinda anonimato para consumir y publicar
contenido en internet a quien lo desee. (SALLIS, 2021,
p. 604).

A rede TOR é dinâmica e composta por máquinas (roteadores)


conectadas à internet, distribuídas ao redor do mundo que
constantemente mudam, sendo que esse serviço é responsável
por desenhar a rede e seus componentes a cada momento que um
navegador TOR exigir. Assim, o navegador TOR seleciona máquinas de
entrada, máquinas intermediárias e máquinas de saída. Os conteúdos
são consumidos e publicados a partir das máquinas, nunca de forma
direta com o destino da comunicação. As máquinas se comunicam
entre si, cifrando a comunicação de modo que cada máquina do
percurso informacional somente conheça uma porção de tráfego na
internet que lhe corresponda. “De esta manera, técnicamente, no hay
forma de rehacer el camino hacia atrás, por lo que el anonimato del
origen de la comunicación está garantizado” (SALLIS, 2021, p. 605).
A rede TOR permite uma conexão tipo “cebola”, pois a mensagem

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trafega por distintos roteadores, o que gera a proteção da identidade


“de várias capas” – daí surge o nome “cebola” (TEMPERINI; MACEDO,
2021, p. 485). Ademais, a rede TOR muda a cada dez minutos e nunca
utiliza as máquinas de saída que estejam em um mesmo país que o
restante das demais máquinas fazendo com que, se alguém (agências
de persecução, p. ex.) possui alguma forma de escutar o tráfego na
rede TOR, nunca irá escutar a “história completa”. Somente quem tem
acesso aos dados completos da informação é o navegador TOR que
está justamente instalado no dispositivo da pessoa que quer resguardar
o anonimato (SALLIS, 2021, p. 606). Assim, graças a esse complexo
mecanismo de intercomunicabilidade, o TOR oculta a identidade do
sujeito, eis que mascara os endereços de IP e oculta dados pessoais,
além de ser capaz de bloquear a tentativa de acesso ao computador
por meio de hackers. Portanto, somente com o acesso físico ao
equipamento, via medida de busca e apreensão ou eventual prisão
em flagrante, torna-se possível ao Estado conhecer toda a atividade
desenvolvida pelo alvo da investigação.

O navegador TOR também permite o acesso ao ambiente da


deep web – outro mecanismo muito utilizado pelas organizações
para o fomento de suas atividades. Ao contrário da clear web, cujo
conteúdo pode ser acessado por qualquer pessoa por meio de
qualquer buscador, como Google, por exemplo, na deep web encontra-
se todo conteúdo, em geral ilícito, que, além de não ser encontrado por
qualquer meio de busca (não há indexação), as pessoas que publicam
e oferecem são acobertadas pelo anonimato. É neste ambiente que o
crime organizado encontra seu “habitat natural” uma vez que, por meio
dos “black markets”, é possível a comercialização de drogas, armas,
dinheiro, documentação, metais preciosos, informação, malwares,
contratação de matadores, pornografia infantil, entre outros (SALLIS,
2021, p. 611). Assim, sendo a navegação livre, anônima, criptografada
e dificilmente detectável é que urge ao Estado a utilização de novas
ferramentas. Nesse sentido, Sallis (2021, p. 609):

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[...] el conjunto de personas y organizaciones


criminales que se mueven en este entorno hacen
que sea muy complejo utilizar los mismos métodos
y técnicas de investigación que se usan en la web
superficial, haciendo que sea muy difícil saber quién
consume contenidos ilegales, o quién o quiénes los
publican.

Não pode passar despercebido, eis que é ferramenta deveras


importante não apenas para fomento dos negócios ilícitos, mas,
especialmente, para se garantir o proveito do crime e a transformação
do dinheiro em criptoativos. A utilização de criptomoedas pelas
organizações criminosas vem crescendo exponencialmente. As moedas
virtuais (criptomoedas) operam mediante um sistema criptográfico
por fora do circuito financeiro tradicional e não pertencem a nenhum
governo ou banco central (SAIN, 2021, p. 256). O sistema, conforme
assevera Silveira (2018, p. 98), “permite pagamentos através da internet,
de uma parte a outra parte, sem a intervenção de qualquer instituição
financeira”. Nesse sentido, tais moedas trafegam em um mercado
desregulado e descentralizado, o que permite relativo anonimato.
Nesse sentido:

[...] la idea es ofrecer un sistema de pago seguro


y anónimo a los usuarios para que acrediten su
identidad para la realización operaciones de
compraventa y tanferencias. Las transaciones se
realizan de usuario a usuario sin intermediación de
bancos u otras instituciones oficiales, son públicas y
quedan registradas con un código alfanumérico único
y irrepetible, sin dejar rastros. (SAIN, 2021, p. 257).

Ainda que haja um sistema de blockchain reconhecido por


instituições financeiras que funciona como um banco de dados
público que registra o histórico de movimentações dos usuários
de criptomoedas, não se pode olvidar que tais moedas podem se

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movimentar semelhantemente a um título ao portador, bastando que


a pessoa entregue sua wallets a outra pessoa ou mesmo realize uma
troca. Segundo Silveira (2018, p. 98):

[...] a possibilidade de anonimato, entretanto, pode


vir a assegurar que sua rastreabilidade venha a
ser minimizada, caso, v.g., determinado portador
de criptomoedas viesse a ter inúmeras carteiras
eletrônicas (wallets), a ponto de estas mesmas
servirem de objeto de escambo ou entrega.

Não obstante, estas tecnologias, saliente-se novamente, não


tenham sido desenvolvidas genuinamente para atividades ilícitas,
não há dúvidas de que elas, em primeiro lugar, apresentam grande
interação entre si e, em segundo lugar, tornaram as organizações
criminosas potencialmente mais perigosas e cada vez mais distantes
da persecução penal tradicional dos estados.

4 DEFINIÇÃO E ESPÉCIES DE MALWARE

As tecnologias referidas anteriormente dificultam o acesso aos


dados de comunicação, quando esses estão em trânsito, uma vez
que durante a transmissão da mensagem ponto a ponto esta está
encriptada. Assim, é necessário para as agências de investigação
a apreensão do dispositivo antes do envio da mensagem ou após
o recebimento, visto que, nesse caso, o dispositivo receptor
desencriptará o conteúdo da comunicação. Deve ser levado em conta
também que os programas anonimizadores dificultam a localização
do usuário e a verificação das atividades desenvolvidas. Sem contar,
como referido anteriormente, a possibilidade da existência de
programas que apagam o conteúdo armazenado nos dispositivos
eletrônicos. Nesse sentido, visando superar estas barreiras, mostra-

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se necessário o acesso virtual a esses dispositivos para que se possa


conhecer as atividades desenvolvidas sem necessidade de apreensão.

Uma solução possível seria a autorização judicial para uma


espécie de “hackeamento estatal”. O Estado, independentemente da
apreensão física do dispositivo, poderia explorar as vulnerabilidades
do sistema ou do usuário, por meio de software de vigilância, e,
assim, acessar o conteúdo das mensagens ou mesmo as operações
realizadas, por exemplo, com criptoativos. Uma das vantagens é que
todas as informações aportadas no processo penal teriam uma fonte
que fora autorizada judicialmente. Essa forma de investigação deixaria
de lado qualquer ideia de secretismo e, especialmente, malabarismos
processuais das agências de investigação para legalizar determinada
informação que adredemente possui, até porque estas tecnologias
(programas espiões) são facilmente encontradas no mercado.
Interessante a observação de Blanco (2020, p. 94):

[...] por el contrario, la intervención de dichas


comunicaciones es posible para quien cuente con
las capacidades técnicas necesarias para “infectar”
los puntos de entrada o salida (esto es, el celular o
computadora usada por alguna de las personas
involucradas en la conversación) con un software de
vigilancia especialmente designado para ello, para
capturar las comunicaciones en formato de áudio,
vídeo y texto sin encriptar (toda vez que los datos se
encriptan cuando están en trânsito, no cuando entran
o salen del dispositivo receptor o emissor). No se
trata de uma mera hipótesis: de hecho, las agencias
policiales y de inteligência de EE.UU y otros paíeses ya
están recurriendo a este método.

O malware – neste contexto, com base nas lições de Campos (2021)


e nos conceitos do manual básico da Europol (EUROPEAN CYBERCRIME
CENTER, [20--]) – trata-se de um programa informático malicioso que

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se aproveita de vulnerabilidades existentes no sistema informático e,


em alguns casos, do próprio utilizador. Ele pode ser instalado in loco
ou remotamente (pela internet), sem consentimento e esclarecimento
do alvo. O interessante é que, uma vez instalado, o programa pode
levar a efeito um conjunto de tarefas e funcionalidades, em função do
que se busca, por exemplo, desvendar a estrutura da organização ou
mesmo as formas nas quais ela lava o capital e, sobretudo, a localização
dos bens dos integrantes. Por meio do programa, é possível recolher
informação interna do sistema informático (dados armazenados, não
armazenados – exemplo de um e-mail que seria escrito e o armazenador
resolveu apagar – ou produzidos em tempo real ou informação externa,
p.ex. ativação da webcam ou do microfone de modo a captar o que
está ao redor.

O malware – meio atípico de produção de provas – destarte,


com autorização judicial, é uma ferramenta “camaleônica” que
permite “uma extensa possibilidade de monitoramento da atividade
do alvo e de recolha de dados do sistema informático de forma sub-
reptícia (surreptitious surveillance), “consoante o tipo e respetivas
funcionalidades que estejam a ser utilizados” (CAMPOS, 2021, p. 40).

Chamo a atenção a dois grupos de malware: a) aqueles que,


para a instalação, dependem da interação do alvo (utilizador),
p.ex. cavalo de Troia, rootkis e o spyware; e b) aqueles no qual a
interação não é necessária (p.ex. worm). Em resumo, no primeiro
caso, o malware surge com a aparência de um software legítimo ou
verificado e leva o alvo investigado a proceder à instalação, a qual,
por sua vez, depende da abertura de um anexo de um e-mail, do
download ou da execução de um arquivo de determinado website
(uma imagem, p.ex.). Na segunda forma, o programa se autorreplica
sem a interação do utilizador. Ele invade os computadores que
estejam ligados à mesma rede e ainda não infectados. Pode eliminar

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arquivos, enviar documentos via e-mail, realizar downloads e


instalar outros tipos de malware.

Nessa senda, a técnica intrusiva, seja a vigilância na fonte


ou a captação de dados, poderá, como fonte de provas, trazer
ao conhecimento do Estado elementos para que seja possível
ao magistrado uma aproximada demonstração das hipóteses
fáticas descritas pela acusação e, por conseguinte, afastar o
postulado da presunção de inocência. Considerando que direitos
constitucionais serão restringidos em prol da investigação,
como a intimidade, a privacidade pessoal – art. 5º, inciso X – às
vezes a privacidade familiar, esta na dimensão da “invasão
domiciliar virtual” – art. 5º, inciso XI –, a autodeterminação
comunicacional – art. 5º, inciso XII – e a autodeterminação
informacional – necessidade de proteção de dados nos meios digitais
(art. 5º, inciso LXXIX, inserido pela Emenda Constitucional n. 115, de
10 de fevereiro de 2022), a pergunta a ser formulada é se o sistema
jurídico nacional, nos moldes atuais, permitiria referida técnica?

5 DIMENSÃO INTERNACIONAL E O DIREITO COMPARADO

Como mencionado anteriormente, uma das características da


criminalidade organizada é a transnacionalidade. As fronteiras não
são mais os limites físicos, pois a execução dos delitos não encontra
qualquer limitação territorial, especialmente por conta do tráfego de
informações propiciadas pela intercomunicabilidade de dados. Nesse
sentido, é que houve a necessidade de imposições internacionais
objetivando entre os estados democráticos certa uniformidade do
tratamento penal e processual penal do crime organizado.

O enfrentamento do crime organizado e dos delitos conexos


(lavagem de ativos, tráficos de pessoas, órgãos, drogas, armas e

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animais), os quais movimentam quantias astronômicas de valores,


sem dúvida é um dos maiores desafios do mundo moderno. Em razão
disso, e objetivando estândares normativos comuns, é que houve
a necessidade da transnacionalização das regulações jurídicas e,
portanto, da ingerência internacional na busca de uma harmonização
penal e processual penal.

A Convenção das Nações Unidas contra a delinquência organizada


transnacional (Convenção de Palermo, aprovada em dezembro de
2000, com vigência em 29 de setembro de 2003), assinada pelo Brasil
em 12 de dezembro de 2000, ratificada pelo Congresso Nacional em
29 de janeiro de 2004, com caráter vinculante, em resumo, buscou
harmonizar as leis penais e processuais penais em todo o mundo e, o
que é mais importante, evitar paraísos de impunidade, vale dizer, locais
nos quais o crime organizado possa fincar bandeira e desenvolver
atividades ilícitas.

A Convenção de Palermo alinhou cinco eixos sobre os quais


deveria haver a atuação legislativa dos estados. São eles:

a) la tipificación ordenada y conjunta de conductas


vinculadas con esa forma de criminalidad organizada;
b) la tipificación de conductas relacionadas de manera
conexa con las actividades llevadas a cabo por esas
organizaciones criminales; c) el incremento sustancial
de las medidas de injerencia en él ámbito de la
privacidad de los indivíduos mediante la aplicación
de las nuevas tecnologícas; d) el endurecimento de
las condiciones de libertad procesal y la limitación
en el ejercício del derecho de defensa, y, por último,
e) el agravamento de las condiciones de ejecución
de la pena mediante la regulación de medidas
postdelictuales. (ABOSO, 2019, p. 84).

560 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 553-580, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO MALWARE COMO FERRAMENTA DA INFILTRAÇÃO VIRTUAL NA
INVESTIGAÇÃO DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA: UMA REALIDADE NORMATIVA POSSÍVEL?

Considerando a finalidade do presente trabalho, vale notar o


eixo da letra “c” que é referente às técnicas especiais de investigação
previstas no art. 20, cujo objetivo é “combater eficazmente a
criminalidade organizada”. Determinou a normativa internacional
dentro dessa linha de autuação mudanças no processo com o
incremento de medidas de ingerência no âmbito da privacidade,
mediante a utilização de novas tecnologias (vigilância eletrônica
e outras fontes de vigilância), além de operações de infiltração de
agentes.

Outro documento internacional que merece destaque é a


Convenção de Budapeste – Convenção sobre Delitos Cibernéticos –
de 23 de janeiro de 2001 – que fora promulgada no Brasil por meio
do Decreto-Legislativo n. 37/2021, em 12 de dezembro de 2021. Esta
Convenção também é um marco importante no âmbito de luta contra
a cibercriminalidade tendo em conta abordar problemas ligados a
delitos praticados por meio das redes telemáticas. A convenção, ainda,
traça as linhas principais de uma política criminal destinada a sentar as
bases de uma harmonização integradora das leis penais e processuais
nos países subscritores (ABOSO, 2018, p. 59-60). Esta convenção,
com os olhos voltados também à lavagem de dinheiro, ao tráfico de
pessoas, drogas e terrorismo, tratou de questões atinentes à produção
de prova eletrônica. E, nessa seara, depreende-se dos arts. 19 a 21 que
devem os estados estabelecerem medidas relativas ao acesso e busca
e apreensão de dados armazenados; à coleta em tempo real dos dados
de tráfego e, ainda, à interceptação de dados de conteúdo. Essas
medidas podem e devem ser alcançadas com a utilização pelo Estado
de malware como ferramenta de investigação, eis que com isto se torna
possível ultrapassar as barreiras de proteção tecnológica utilizadas no
desenvolvimento das atividades ilícitas pelas organizações criminosas.

ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 553-580, jan./jul. 2022. 561
ULISSES AUGUSTO PASCOLATI JUNIOR

Diferentemente do Brasil que, a despeito da necessária


observância dos dois documentos internacionais mencionados, não
possui uma legislação expressa sobre essa forma de intervenção na
privacidade, essa técnica de investigação é realidade em alguns países
e aqui, a título de ilustração, serão citados Espanha e Itália1.

A Espanha, por meio da reforma legislativa de 2015 (Ley Orgánica


13/2015, de 5 de ocutubre), mesmo admitindo o maior alcance e
potencial de vulneração da intimidade pessoal, previu e permitiu, para
alguns crimes – relacionados em numerus clausus –, o que garante a
proporcionalidade da medida (SALT, 2021, p. 165) o acesso remoto a
sistemas informáticos. No art. 588, septies a) no qual estabelece os
pressupostos, estabeleceu-se que o juiz poderá autorizar a utilização
de dados de identificação e códigos, assim como a instalação de
um software que permita, de forma remota e telemática, o exame a
distância e sem conhecimento do seu titular ou usuários do conteúdo
de um computador, dispositivo eletrônico, sistema informático,
instrumento de armazenamento de dados informáticos em massa ou
base de dados, sempre que se persiga determinados delitos, dentre
eles, delitos cometidos por organizações criminosas. O legislador,
ainda, estabeleceu os requisitos necessários para a medida determinada
judicialmente, notadamente o esclarecimento do software que será
utilizado para a medida de intrusão.

A Itália caminhou no mesmo sentido. Por meio da Reforma


de Orlando (2016, aprovada em 2017), previu-se de forma expressa
a utilização do malware como meio de obtenção de provas. Esta
medida procurou dar ao Estado ferramentas mais modernas para
o enfrentamento de uma criminalidade igualmente moderna, mais

1
A Alemanha também permite referida técnica. Remetemos o leitor para as lições de Salt
(2021, p. 166-169); Aboso (2018, p. 489-508) e Campos (2021, p. 105-142). Em relação
à professora Juliana Campos, frise-se que há importantes considerações também
referentes a Itália, Estados Unidos e Espanha.

562 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 553-580, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO MALWARE COMO FERRAMENTA DA INFILTRAÇÃO VIRTUAL NA
INVESTIGAÇÃO DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA: UMA REALIDADE NORMATIVA POSSÍVEL?

agressiva e sofisticada, como é o caso da criminalidade organizada.


Nesse sentido:

foi contemplada no n. 2 do artigo 266 e n. 2-bis do


art. 266 do CPPenale, no Cap. IV, relativo à
‘intercettazioni di conversazioni o comunicazioni’ sob
a designação de ‘captatore informatico’ (sensor ou
coletor informático). (CAMPOS, 2021, p. 109).

Tal qual o legislador espanhol, o italiano também estabeleceu


o rol de crimes – os menos nos quais é possível a interceptação
telefônica – e os requisitos aos quais deve estar adstrita a autorização
judicial.

6 PROPOSTA DE SOLUÇÃO: FERRAMENTA AUTORIZADA NA


INFILTRAÇÃO VIRTUAL

Como mencionado, no Brasil não há previsão expressa da


utilização do malware como meio de investigação. Entretanto, temos
que, a título de proposta, essa novel forma de investigação, adotada em
outros países, poderia aqui ser utilizada considerando os dispositivos
e as autorizações legais em vigor, sem prejuízo de, em uma visão
multinível, considerarmos que a autorização para a produção deste
meio de prova atípico decorra das convenções internacionais adrede
mencionadas.

A verdade é que o Estado brasileiro, que tem o dever de


investigar as organizações criminosas, não pode ficar à mercê
simplesmente da sorte, vale dizer, contar que, seja na realização de
uma prisão em flagrante, seja no cumprimento de eventual mandado
de busca e apreensão, em algum dispositivo informático apreendido,
haja informações relevantes em relação à estrutura de determinada

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ULISSES AUGUSTO PASCOLATI JUNIOR

organização, aos crimes por ela praticados ou, ainda, sobre o destino
do produto dos crimes ou bens adquiridos com o dinheiro oriundo
do ilícito. A persecução penal deve ser feita de maneira legal, sem
secretismos, inteligente, organizada e contando com os instrumentos
adequados. A sorte – como evento incerto – é deveras importante,
entretanto, não pode ser o centro de qualquer investigação.

Nesse sentido, temos que toda normativa atinente à infiltração


de agentes, com destaque para a infiltração virtual, pode ser utilizada
objetivando dar segurança jurídica e justificar a flexibilização dos
direitos individuais que certamente serão atingidos com esta medida
de investigação que é sobremaneira invasiva.

Antes, todavia, cumpre salientar que essa medida somente pode


ser utilizada quando, de fato, tratar-se de crime organizado e houver
elementos robustos de provas que demonstrem que a autoridade está
defronte a uma criminalidade organizada nos moldes exigidos pela lei
(art. 1º da Lei n. 12.850/2013). Esta medida não pode ser utilizada para
qualquer tipo de criminalidade sob pena de banalização desse meio
de produção de provas. Conforme aduz Hassemer (apud COUTINHO,
2017, p. 112) ao tratar dos limites do Estado de Direito para o combate à
criminalidade organizada, não se deve utilizar canhões contra pardais
(“no se deberia – justo en el campo de los ataques jurídicos del derecho
estatal – disparar con cañones a los gorriones”).

E mais, em atenção ao princípio da subsidiariedade, essa medida


jamais poderá ser a primeira adotada pelo Estado na persecução.
Somente após esgotadas todas as medidas possíveis de investigação e
sendo, ainda, necessária a continuação da persecução investigativa para
desvendar e comprovar a estrutura da organização, sua composição,
os crimes praticados ou o destino dos bens, é que se torna possível ao
Estado socorrer-se do malware.

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A UTILIZAÇÃO DO MALWARE COMO FERRAMENTA DA INFILTRAÇÃO VIRTUAL NA
INVESTIGAÇÃO DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA: UMA REALIDADE NORMATIVA POSSÍVEL?

A Lei n. 12.850/2013 (BRASIL, 2013), no art. 10 e seguintes,


estabelece toda a regulamentação da infiltração de agentes. A lei, a seu
turno, prevê dois tipos de infiltração: a) a presencial; e b) a virtual. O
procedimento da infiltração virtual não difere muito do procedimento
da infiltração presencial. Tornam-se necessárias a observância dos
pressupostos relativos a: i – legitimidade; ii – autorização judicial;
iii – distribuição sigilosa; iv – prazo de duração; v – fixação de limites;
vi – controle judicial e do Ministério Público; e vii – apresentação
de relatórios circunstanciados (NUCCI, 2021, p. 135-138; MASSON;
MARÇAL, 2020, p. 406-447).

A infiltração presencial é mecanismo de produção de provas


deveras custoso para o Estado na medida em que é necessária a
formação do agente, além de um treinamento social e psicológico, até
porque o agente de polícia dependerá da interação dissimulada – com
identidade oculta – com membros da organização visando ganhar a
confiança para, a partir de então, passar a recolher elementos de prova.
Não se pode perder de vista, portanto, que se trata de meio altamente
perigoso ainda mais se considerarmos que um dos mecanismos de
manutenção da omertà das organizações criminosas é a prática da
violência. Nesse sentido, é clara a alta probabilidade de insucesso da
medida. Destarte, neste contexto, a infiltração virtual mostra-se um
meio mais econômico e seguro para o Estado persecução.

A infiltração virtual, no que interessa e nos limites do presente


texto, está disposta especialmente no art. 10-A no qual o legislador
estabelece os requisitos necessários para a medida (BRASIL, 2013).
Assim, devem ser demonstrados os elementos que indiquem tratar-
se de uma organização criminosa e os crimes por ela praticados,
incluindo os conexos como a lavagem de dinheiro; o alcance das
tarefas dos policiais; dados indicativos das pessoas investigadas
(nomes e apelidos) e, sendo possível, dados de conexão ou cadastral.

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Além desses requisitos, para a autorização judicial, é necessário que


a autoridade policial ou o Ministério Público apresentem um plano
operacional para a realização da infiltração virtual. Neste plano,
salientamos, a autoridade deverá delimitar a espécie de malware que
utilizará e quais os objetivos que pretende alcançar com a infiltração
virtual mediante a utilização de determinado malware.

Cumpre anotar que, a título de argumentação, caso se tratasse de


infiltração presencial, no mandado de infiltração o juiz delimitaria (ou
deveria fazê-lo) as atividades que o agente poderia realizar, como, por
exemplo, a possibilidade de apreensão de documentos. Todavia, não
é incomum, a depender da especificidade da infiltração, que o agente
tenha que utilizar outros meios de investigação, como a realização de
escutas e/ou filmagens ambientais em locais públicos ou privados,
eis que, ressalte-se, não haveria tempo, diante da dinamicidade da
infiltração, para, toda vez que necessitasse o agente realizar referidas
investigações, parasse a produção probatória e pedisse autorização
do magistrado. Nesse caso, o magistrado também estabeleceria no
mandado de infiltração quais métodos de captação de provas estaria
o agente infiltrado autorizado a fazer. Assim, se na infiltração pessoal
é possível a busca de provas por outros meios igualmente invasivos da
intimidade do sujeito, por que haveria óbice na infiltração virtual com
a utilização de malware?

E mais, além dos limites fixados pelo magistrado, nos termos do


art. 10-D, todos os atos eletrônicos – e aqui a recolha da prova por
meio do software – devem ser registrados, gravados, armazenados e
encaminhados ao juiz. Neste ponto, a fim de se garantir minimamente
a cadeia de custódia digital, deverá haver um código hash que
assegurará que o que foi recompilado é efetivamente o apresentado
ao magistrado.

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A UTILIZAÇÃO DO MALWARE COMO FERRAMENTA DA INFILTRAÇÃO VIRTUAL NA
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Sem contar, outrossim, que dentro do prazo da infiltração (até


6 meses) a critério do magistrado, poderá, como medida de controle,
serem requisitados relatórios circunstanciados pelo magistrado ou
pelo Ministério Público para aferição das atividades desenvolvidas ou
em curso.

Cumpre anotar também que, além da infiltração ser mantida em


sigilo, somente as provas produzidas que interessarem à investigação
serão mantidas nos autos. Quanto às demais, notadamente as que
tragam situações relativas à intimidade, deverão ser destruídas. Por
fim, qualquer ato do agente que ultrapasse os limites da investigação
e atente contra o interesse público deverá ser reprimido pelos meios
legais.

7 CONCLUSÃO

Para o Estado enfrentar delitos cada vez mais complexos,


sobretudo quando os ilícitos são praticados por organizações
criminosas que se utilizam da tecnologia para desenvolver suas
atividades e para tornar seguro o proveito do crime, mostra-se
necessária uma adaptação e atualização tecnológica das ferramentas
de investigação utilizadas pelos órgãos de persecução.

Os meios tradicionais de produção de prova cada vez mais


se tornam obsoletos para superarem as barreiras impostas pela
tecnologia. São softwares e aplicativos que, não obstante tenham sido
desenvolvidos com finalidade lícita, utilizados pelas organizações para
fomentar e ocultar a atividade delitiva.

Nesse sentido é que se insere o malware como método atípico


de produção de provas. Por meio da utilização do malware é possível
ao Estado superar os obstáculos criados pelos programas e aplicativos

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anonimizadores e de criptografia e, por conseguinte, alcançar o


desiderato que é descobrir a localização dos membros da organização,
suas funções, estrutura do concerto delitivo e o destino que fora dado
aos bens oriundos ou adquiridos com os proventos do crime.

Entretanto, em que pese não haja uma autorização expressa


para utilização do malware, como se vê em outros países, temos que
o emprego é possível se esse meio for utilizado como ferramenta da
infiltração virtual, meio este de produção de provas autorizado pela
lei. Ainda, não é despiciendo afirmar que as convenções internacionais,
numa tentativa de harmonização das regulações penais e processuais
penais, dispõem sobre estas novas técnicas de vigilância e captura de
dados.

Com este novel meio de produção de provas, nos limites estritos


da infiltração virtual e da autorização judicial, somente para casos nos
quais haja elementos que, de fato, mostrem se tratar de organização
criminosa, tendo o Estado esgotado os meios de investigação, será
possível ao magistrado autorizar a medida que buscará elementos
de prova, os quais, posteriormente valorados, tornarão possíveis ao
magistrado uma reconstrução histórica dos fatos, dentro das regras do
Estado de Direito.

568 ReJuB - Rev. Jud. Bras., Brasília, Ano 2, n. 1, p. 553-580, jan./jul. 2022.
A UTILIZAÇÃO DO MALWARE COMO FERRAMENTA DA INFILTRAÇÃO VIRTUAL NA
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