Artigo A Favor Da Tabuada, Mas Contra A Decoreba

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Artigo

A Favor da Tabuada, mas Contra a Decoreba¹

Antônio José Lopes


Professor, Escola Vera Cruz
Pesquisador, CEM/SP
Doutorando, UAB
[email protected]

Resumo
Este artigo trata de discutir algumas concepções e crenças sobre o ensino-aprendizagem da tabuada na
escola primária, resgatando seu significado como representação tabular de uma função linear, bem
como das raízes históricas das primeiras tabelas e etimológicas de termos correlatos. Por fim procura
estabelecer as nuances que distinguem duas ações, memorizar e decorar, cujos verbos são comumente
tratados como sinônimos.

Palavras-Chaves: Tabuada, tabelas, fatos da multiplicação, memorização.

In Favour of Times Tables, but Against Know-It-


By-Heart

Abstract
This paper discusses conceptions and beliefs about the teaching of basic arithmetic facts ("the times
tables", specifically) in primary school, revisiting both its meaning as a tabular representation of linear
functions and the historical roots of the first tables. To conclude I argue that there are subtle but
important differences between the actions of memorizing and learning by heart, although those terms
are usually treated as synonyms.

Keywords: Tables, facts of multiplication, memorizing.

¹ Texto base da palestra proferida pelo autor no Gepem em 03/08/2007.

BOLETIM GEPEM / Nº 51 - JUL. / DEZ. 2007 / 13-23


Antônio José Lopes

Introdução

Antes de abrir a discussão, o primeiro aspecto a ser destacado é o


significado da tabuada.
O que é uma tabuada ?

Uma lista de Operações Multiplicação


Contas
números de vezes

Contas até 10 Uma tabela


de números
Coletado de depoimentos de professores

Antes de reponder, pense na raiz das palavras “tabuada”, “tábua” e “tabela”.

Tab uada
Tábua
Tab ela

Ahá! É isto! Uma tabuada não passa de uma tabela.

A tabuada é um tipo especial de tabela, que no ensino primário está


associada à memorização de fatos aritméticos e, em especial, dos fatos da
multiplicação.

É comum a associação do termo tabuada somente à tabela da multiplicação.


Esquece-se, porém, de uma diversidade de outras “tabuadas”: adição, subtração,
divisão, quadrados perfeitos, potências de 2, etc.

As Tábuas de logaritmos e as
Tábuas trigonométricas também
são tabelas, ainda que usualmente
as chamemos de “tábuas”.

A etimologia da palavra “tabuada” não deixa margem a dúvidas.

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A Favor da Tabuada, mas Contra a Decoreba

Em outras línguas ...

A palavra “ table” do vocabulário


inglês é a palavra usada para se
referir indistintamente às tabelas,
tábuas, tabuadas, mesas ou pedaços
de madeira, o mesmo ocorre com a
palavra “ tableaux” do francês,
“távola” do italiano e “ tabla” no
espanhol, com a ressalva de que usam
“tablas de multiplicar” para se referir
às tabelas que chamamos de
tabuadas.

Moisés e suas Tábuas da Lei, uma


tabela com 10 mandamentos.

Do ponto de vista estritamente matemático, pode-se admitir que as


tabuadas são representações de funções na forma tabular.

Uma tabela é uma representação matricial, formada por linhas e coluna, o


número de linhas ou colunas vai depender da aplicação que se pretende.
Neste sentido, uma tabela unidimensional pode ser representada apenas
por uma coluna. As tabuadas tradicionais podem ser expressas como
tabelas bidimensionais, com linhas e colunas. Pode-se imaginar tabelas
com mais dimensões, como se pode ver em planilhas como o Excel.
Entretanto, nas séries iniciais, tal visualização é mais difícil para as
crianças.

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?
? “três vezes um, três, três vezes dois,
seis, três vezes três, nove ...” ?
?

A “tabuada do 3”, por exemplo, associa a cada número do conjunto dos


números inteiros² um correspondente que é seu triplo, mas, infelizmente, a relação
“número” “seu triplo”, perde-se pelo modo mecânico de seu ensino, baseado
exclusivamente na decoreba de uma cantinela na maior parte das vezes sem
significado.

x3
1 3

2 6

3 9
4 12
. .

² Os “inteiros” são aqui adotados no senso comum dos números naturais positivos, aqueles que usamos naturalmente para
contar, e não no sentido que a teoria dos conjuntos atribui aos elementos do conjunto Z.

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A Favor da Tabuada, mas Contra a Decoreba

Essa perda de significatividade fica evidente nas palavras da professora


Regina Buriasco da UEL³, em palestra proferida no EPEM 4:

“Como é que se pode esperar que uma criança esteja aprendendo tabuada
quando é adestrada a escrever: três, três, três, três, ... vezes, vezes, vezes,
vezes, ... um, dois, três, quatro, ... igual, igual, igual, igual, ...”

3 3x 3x1 3x1=
3 3x 3x2 3x1=
3 3x 3x3 3x1=
3 3x 3x4 3x1=
3 3x 3x5 3x1=
3 3x 3x6 3x1=
. . . .
. . . .

Trata-se, sem dúvida, de um alerta importante, Esse tipo de


construção encobre e inibe o essencial no processo de compreensão das
tabuadas, ou seja, as relações e propriedades aritméticas. Esse tipo de
“construção” descaradamente mecânica não passa de um esquema de
registro pobre de significado e com pouca eficácia para a consecução do
objetivo maior; o de levar os alunos a aprender de fato os fatos da
multiplicação e conseqüentemente memorizá-los para resolver problemas,
avaliar dados e tomar decisões.
Tabela e tabuadas no dia-a-dia

Estamos cercados por tabelas e sem perceber, também por tabuadas

3 Universidade Estadual de Londrina, Paraná.


4 Encontro Pernambucano de Educação Matemática, realizado na cidade de Garanhuns (PE) em 2002.

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Numa padaria, perto de minha casa, tinha pregada na parede5 uma tabela
que, no fundo, não passava de uma tabuada do “0,35”; trinta e cinco centavos era o
preço de cada pãozinho6 .

Pães Preço Total


1 R$ 0,35
2 R$ 0,70
3 R$ 1,05
4 R$ 1,40
5 R$ 1,75
Cada vez que alguém pedia uma certa quantidade de pães, o padeiro, quase
sempre, anotava o valor total num pedaço de papel sem o auxílio de qualquer
recurso material, como o cálculo escrito ou uma calculadora. Tudo indicava que ele
sabia alguns valores de cabeça, ou como dizia meu avô, “decor”.

Em geral, nosso padeiro não consultava a tabuada da parede quando os


fregueses pediam quantidades como 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 10 ou 12 pãezinhos, pois se
tratava dos pedidos mais comuns. Mas, se alguém pedia, ...

Por favor, quero levar 17 pãezinhos.

... nosso padeiro, que não tinha a obrigação de saber de cabeça quanto é 17
multiplicado por 0,35 , virava-se para a parede às suas costas e consultava a linha 17
para ver qual era o valor de 17 pãezinhos.

16 5,60

17 5,95

18 6,30

Em seguida anotava o preço num papel


Total a pagar
R$ 5,95

5 Isso antes de 2006, quando foi imposta a obrigatoriedade da venda de pãezinhos por quilo.
6 Pão francês, cacetinho, pão de trigo, pão d'água ou pão de sal, dependendo da região.

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Se o freguês voltasse no dia seguinte e pedisse a mesma quantidade de pães,


é provável que nosso padeiro repetisse a consulta. Talvez ele a consultasse
novamente na terceira vez, mas, no quarto dia, logo que avistasse o freguês, poderia
pensar.

“Lá vem o cara dos


17 pãezinhos”

Mas desta vez seu procedimento seria diferente: ele contaria e ensacaria os
pães e anotaria o valor de R$ 5,95 diretamente no papel, sem precisar consultar a
tabela.
O que teria ocorrido ?

Tudo indica que nosso padeiro memorizou o fato numérico da 17ª linha da
tabuada do “0,35”.

E por que memorizou ?

Porque necessitou; porque aquela conta esquisita 17 x 0,35 passou a ter


significado na sua rotina diária. Ou alguém acha que ele levou a tabela para decorar
em casa ?

Muito provavelmente ele nunca mais precise consultar aquela tabuada de


padaria, nem mesmo se alguém lhe encomendar 170 pães, que pode ser facilmente
calculado quando se sabe o preço de 17, a não ser que um dia apareça alguém
pedindo:

Por favor, quero levar 43 pãezinhos.

E lá vai nosso padeiro de volta à tabuada do 0,35.

Pronto, agora já estamos em condições de perguntar:

Para que servem as tabuadas ?

Para fazer as Para


Para contas
decorar multiplicar

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Tabelas existem para serem consultadas, não para serem decoradas ou


reconstruídas a cada momento. Tabuadas, como qualquer tabela, deveriam ser
construídas e ensinadas para serem consultadas e, no âmbito escolar, se as
atividades de construção e consulta forem significativas, é grande a probabilidade
de a maioria dos alunos as memorizarem naturalmente, sem esforço ou cara feia.
Dessa perspectiva, os fatos aritméticos da multiplicação tendem a ser apreendidos e
internalizados pelos alunos, tal como já o fizeram com seus nomes e endereços e
telefones de parentes e amigos.

Se você ainda não se convenceu dos argumentos e propósitos deste texto,


vamos seguir um pouco mais.

Atente para os seguintes fatos. As primeiras tábuas de logaritmos.7 levaram


cerca de 20 anos para serem construídas. Depois disso, o bom senso fez com que
fossem impressas e vendidas livremente para serem consultadas por todos que a
necessitassem, sem ter que reconstruí-las novamente.

Neste ponto, cabe uma discussão de valor pedagógico que considero


importante.

Existe diferença entre decorar e memorizar ou significam a mesma coisa?

Antes de responder a esta questão pense na seguinte história como


metáfora.

Dona Lílian foi contratada para ser secretária em uma escola. Dentre suas
principais tarefas diárias, está a função de telefonista. Durante um dia de trabalho,
ela faz cerca de 80 telefonemas para diversos órgãos e pessoas: secretaria de
educação, editoras, outras escolas, professores, contador, papelaria, etc.

Obviamente, como funcionária nova, ela provavelmente não sabe de


cabeça nenhum dos números telefônicos que terá que discar para fazer as ligações.
O que você acha mais sensato ?
1) Ela leva a lista de telefones da empresa para casa, e só depois de decorá-los
começa a trabalhar para valer.
2) Ela trabalha normalmente consultando a lista de telefones sempre que
necessitar fazer uma ligação.

7 Os logaritmos foram inventados pelo escocês John Napier (1550-1617) que trabalhou durante 20 anos na sua criação.

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É claro que a primeira opção é absurda, improvável e inverossímil no


mundo real do trabalho. Também é claro que o hábito e a rotina de ter que fazer
telefonemas para um mesmo número contribui para que a funcionária memorize os
números mais importantes. Em outras palavras, há memorização quando se recorre
com certa freqüência e ritmo a fatos e/ou informações em situações significativas
que enfrentamos, por desejo ou necessidade.
Meu avô sempre se gabava de saber “decor e salteado” a escalação do time
do Corinthians que ganhou o Campeonato Paulista do IV Centenário em 1954.
Duvido que ele tenha decorado a lista de jogadores do mesmo modo como muitos
professores ainda querem que os alunos decorem as tabuadas.
A este propósito cabe aqui mais uma incursão etimológica sobre os termos
decor e uma de suas derivações, a decoreba.

Etimologia: 1decor- (< prep. lat. de + subst. lat. cor,cordis 'coração,


sede da afetividade e tb. da inteligência e da memória') + -ar;ver
cor(d)-; f.hist. sXIII de cor

De acordo com a etimologia, saber decor deveria remeter a algo afetivo e


mentalmente sadio, está associado ao coração e à mente. Entretanto o ato decorar
por obrigação e sem motivação tornou-se um tormento, que derivou para a
“decoreba”.
Estariam errados os mais respeitados filólogos brasileiros no tratamento do
verbete decoreba dos principais dicionários da língua portuguesa ?

Dicionário Verbete
Aurélio Decoreba [De decorar2.] S. f. Bras. Gír.
1. Hábito ou mania de decorar1, de aprender de cor, sem assimilar.
Houaiss Decoreba
n substantivo feminino Regionalismo: Brasil. infrm.pej.
1. ação de decorar dados, ger. para prestar exames escolares, mas sem a
preocupação de entendê-los ou relacioná-los Ex.: nossas provas passam a
exigir mais raciocínio e menos decoreba. v substantivo de dois gêneros
2. pessoa que decora sem se preocupar em aprender ou assimilar n apositivo
Regionalismo: Brasil. Uso: informal, pejorativo.
3. que se decora sem assimilar Ex.: chega de tanto estudo d.!
Etimologia comp. hibr. de 1decorar + -eba; ver cor(d)- e 1decor-
É isso o que desejamos para nossos alunos ? Que decorem sem assimilar,
sem entender ? Que decorem hoje o que provavelmente vão esquecer amanhã ?

Não. Esse não é o objetivo de qualquer educador que se preze, seja ele
construtivista ou não. E também não deveria ser o desejo de pais, governantes e até
mesmo dos alunos.

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O culto à decoreba que tem sido apregoado nos últimos dias é um equívoco
grave, um desserviço à educação. Não deve ser estimulado.

Recentemente, o governador do Estado de São Paulo manifestou, por meio


da mídia, sua obsessão pela decoreba, usando o neologismo “memorex”.

“Estou insistindo muito na volta de procedimentos tradicionais de ensino,


como memorizar a tabuada, que é uma coisa que saiu de moda. Não vejo
outra maneira de saber quanto é 9 vezes 7 senão memorizando que é 63. Os
jornalistas aqui são jovenzinhos e estudaram pelos métodos
construtivistas. A pessoa entende como chega lá, mas não sabe de memória.
Defendo que se memorize a tabuada. É memorex”. (OESP 8 de março de
2007)

Sobre essas declarações, com todo o respeito que sua posição exige, mas
usando a linguagem das salas de aula, o que temos a dizer é:

Menos governador, menos. Falta-lhe um pouco mais de intimidade com a


sala de aula real e as diretrizes curriculares propostas para o ensino da matemática
durante os governos de que o senhor participou. Além disto cabe lembrá-lo de que
há muitas maneiras de saber o resultado de 9 × 7 sem recorrer ao memorex (sic).

10 - 1 = 9 9x7=
9x7=
Então 9 x 7 é 9x5+9x2=
3x3x7=
70 - 7 = 63 45 + 18 = 63
3 x 21 = 63

Não tem memorex nesses raciocínios. Mas raciocínios como esses só


podem ser produzidos por alunos que estão acostumados a estabelecer relações, que
estão habituados a inquirir e produzir seus “porquês” num ambiente didático em que
isto é estimulado, por quem aprendeu a construir, sim construir, e controlar seu
pensamento lógico. Não precisa chamar de construtivismo, chame de pedagogia do
bom senso, mas não chame de memorex.

Experimente calculando 7 × 99, de modo autêntico e sem memorex. Estou


certo que esta conta não estava na tabuada decorada.

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A Favor da Tabuada, mas Contra a Decoreba

Para finalizar o texto, mas não o debate, reafirmamos nosso posicionamento


de que, ao invés da decoreba ou do “memorex”, o que propomos são seqüências
didáticas que desenvolvam as competências de cálculo dos alunos, por meio de
situações significativas que não se esvaem após o sinal para o recreio.

Bibliografia

IZQUIERDO, I. A arte de esquecer: cérebro, memória, esquecimento. Rio de


Janeiro: Vieira & Lent. 2004

SQUIRE, L. R.; Kandel, E. R. Memória: da mente às moléculas. Porto Alegre:


ArtMed, 2003

MOREIRA, M. A. A teoria da aprendizagem significativa e sua implementação


na sala de aula. Brasília: Editora da UnB. 2006

Artigo encomendado
Recebido pelo Comitê Editorial em 20/07/2007

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