Promoção e Defesa Dos Direitos Das Pessoas LGBTQIA+

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Promoção e Defesa dos

Direitos das Pessoas


LGBTQIA+

Direitos Humanos
Fundação Escola Nacional de Administração Pública

Diretoria de Desenvolvimento Profissional

Conteudista/s
Alexandre Bortolini (Conteudista, 2018).
Dayana Brunetto (Revisora, 2023)
Cecília Nunes Froemming (Revisora, 2023)

Curso desenvolvido no âmbito da Diretoria de Desenvolvimento Profissional – DDPRO

Enap, 2023
Fundação Escola Nacional de Administração Pública
Diretoria de Desenvolvimento Profissional
SAIS - Área 2-A - 70610-900 — Brasília, DF
Sumário
Módulo 1 – Identidade de Gênero
Unidade 1: Entendendo os conceitos de identidade de gênero,
cisnormatividade e orientação sexual................................................................... 6
1. Sobre meninas e meninos............................................................................................ 8
1.2 A invenção do conceito de gênero.......................................................................... 10
1.3 Educação generificante............................................................................................. 11
1.4 Cisgeneridade e Transgeneridade........................................................................... 13
1.5 Cisnormatividade....................................................................................................... 14
1.6 Resumo....................................................................................................................... 17

Módulo 2 – Orientação Afetiva-Sexual


Unidade 1: A sexualidade como liberdade e direito de todas,
todes e todos........................................................................................................... 20
1.1 Sexualidade: Dado da natureza ou construção social?........................................ 20
1.2 Orientação Afetiva – Sexual...................................................................................... 22
1.3 Heteronormatividade............................................................................................... 23
1.4 Bissexualidade........................................................................................................... 26
1.5 Para além dos binarismos........................................................................................ 27
1.6 Resumo....................................................................................................................... 27

Módulo 3 – Cultura e Políticas Públicas para LGBTQIA+: Avanços e


Desafios
Unidade 1: O panorama, os avanços e os desafios do Brasil
frente às questões das pessoas LGBTQIA+.......................................................... 29
1.1 Panorama brasileiro.................................................................................................. 29
1.2 Avanços e desafios.................................................................................................... 34
1.3 O reconhecimento das famílias lesboafetivas, homoafetivas,
biafetivas e transafetivas................................................................................................ 37
1.4 Reconhecimento civil de identidades de gênero................................................... 38
1.5 Muitas letras, muitas histórias, muitas vidas......................................................... 40
1.6 Para seguir avançando............................................................................................. 43

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Módulo 4 – Direito ao Corpo e à Saúde
Unidade 1: A saúde e a promoção dos direitos a saúde das
pessoas LGBTQIA+.................................................................................................. 45
1.1 Saúde integral de pessoas LGBTQIA+..................................................................... 45
1.2 Respeito e reconhecimento..................................................................................... 46
1.3 O enfrentamento à violência e a promoção em Saúde para
pessoas LGBTQIA+........................................................................................................... 49

Módulo 5 – Direito à Educação


Unidade 1: A escola como espaço e promotora dos direitos
de todas, todes e todos.......................................................................................... 52
1.1 LGBTQIA+ na escola.................................................................................................. 52
1.2 Educação: Direito de todas, todes e todos............................................................. 54
1.3 LGBTQIA+fobia na escola......................................................................................... 56
1.4 Virando o jogo: Construindo uma escola que respeita a diversidade................ 58
1.5 Pode falar sobre gênero e sexualidade na escola?............................................... 64

Módulo 6 – Direito a Trabalho e Renda


Unidade 1: A inserção de pessoas LGBTQIA+ no mercado
de trabalho e para geração de renda................................................................... 66
1.1 Pessoas LGBTQIA+ no mercado de trabalho......................................................... 66
1.2 LGBTQIA+fobia e as dificuldades no acesso ao trabalho e emprego................. 67
Referências ............................................................................................................. 70

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Olá!
O curso Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ foi desenvolvido
em 2023, pela Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, a partir da
atualização da versão ofertada em 2018, em parceria com a Escola Nacional de
Administração Pública (Enap).

A criação da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ é um fato


histórico extremamente importante para a garantia da promoção e defesa dos
direitos das pessoas LGBTQIA+. É uma conquista histórica dos movimentos sociais
LGBTQIA+.

Assista ao vídeo da Secretária Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ sobre a
importância desse momento histórico.

Vídeo 1 – Apresentação do curso

O PNEC-DH tem como objetivo ofertar cursos a distância, sobre diversos temas
voltados aos Direitos Humanos, disponibilizados na plataforma da Escola Virtual
de Governo (EV.G) para profissionais que atuam com grupos em situação de
vulnerabilidade, servidoras/es públicas/os, educadoras/es, conselheiras/os,
lideranças comunitárias e demais pessoas interessadas que buscam conhecimento
sobre a temática dos Direitos Humanos.

O curso investe na aproximação com a vivência de pessoas LGBTQIA+ para


compreensão dos principais desafios colocados à garantia de seus direitos. A
partir de suas experiências, faz uma revisão em aspectos específicos de violências,
exclusão, discriminação ou desigualdade vividos por pessoas LGBTQIA+, com ênfase
em estratégias para a garantia, promoção e defesa de seus direitos.

Com vistas a fortalecer uma cultura de direitos humanos a partir do reconhecimento,


valorização e respeito à diversidade, o curso oferece conteúdo com o objetivo de
sensibilizar e mobilizar pessoas que atuam na efetivação, promoção e defesa dos
direitos humanos para os desafios vivenciados por pessoas LGBTQIA+.

O objetivo do curso é fornecer subsídios para pessoas que atuam na efetivação,


promoção e defesa dos direitos humanos para pessoas LGBTQIA+.

Desejamos um excelente estudo!

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Módulo

1 Identidade de Gênero
O objetivo deste módulo é familiarizar você com conceitos básicos como gênero,
identidade de gênero e cisnormatividade. Em seguida, promover uma aproximação
com os conceitos de identidade de gênero e orientação sexual. O termo LGBTQIA+
abarca diferentes vivências relativas à orientação sexual e a identidade de gênero
(que não são sinônimos e nem querem dizer a mesma coisa) de pessoas que se
identificam como Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Queer, Intersex,
Assexuais ou mais (que representa a pluralidade das orientações sexuais e
identidades de gênero).

Unidade 1: Entendendo os conceitos de


identidade de gênero, cisnormatividade e
orientação sexual

Conhecer os conceitos de gênero, identidade de gênero e


cisnormatividade e compreender que o termo LGBTQIA+ abarca
diferentes vivências relativas à orientação sexual e a identidade
de gênero e, portanto, representa a pluralidade das orientações
sexuais e identidades de gênero.

CONTEÚDOS EM COMUM Antes de iniciarmos, é importante dizer


que todo esse conteúdo perpassa por conceitos que estruturam
a organização social da sociedade e são mais potentes para
a transformação das desigualdades se entendermos eles
juntos. Estamos falando da interseccionalidade entre gênero,
sexualidade, raça, etnia, classe, idade e capacidades.

O que isso significa?

A interseccionalidade investiga como as relações


interseccionais de poder influenciam as relações
sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem

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como as experiências individuais na vida cotidiana.
Como ferramenta analítica, a interseccionalidade
considera que as categorias de raça, classe, gênero,
orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia
e faixa etária – entre outras – são inter-relacionadas
e moldam-se mutuamente. A interseccionalidade é
uma forma de entender e explicar a complexidade
do mundo, das pessoas e das experiências humanas.
(Patricia Hill Collins e Silma Bilge, 2021, p.16)

Como ferramenta analítica, ela auxilia na possibilidade de compreensão das questões


sociais que organizam as interações sociais a partir do gênero, da sexualidade, da
raça, da etnia, da classe, da religiosidade, da territorialidade, da idade, da deficiência
e de como o pertencimento a um ou mais destes grupos organiza as maneiras
específicas pelas quais vivenciamos os preconceitos, as discriminações e os privilégios.
Os pertencimentos a essas categorias-experiências determinam uma posição da
pessoa na hierarquia social. A transformação das condições objetivas de uma vida
com direitos humanos para todas, todos e todes passa pelo reconhecimento desse
panorama sociocultural.

Assista ao vídeo do Ministro de Direitos Humanos e Cidadania,


Dr. Silvio Almeida, sobre racismo estrutural:

https://www.youtube.com/watch?v=PD4Ew5DIGrU

Neste vídeo, a Dra. Patricia Hill Collins debate a coalizões políticas


entre raça, gênero e classe a partir do feminismo negro:

https://www.youtube.com/watch?v=i12FyjinY9k

Nesta entrevista, concedida quando esteve no Brasil, Angela


Davis debate a construção do futuro da luta contra as opressões:

https://www.youtube.com/watch?v=3104j-ioEUs

(...) Não existe hierarquia de opressão. Eu não posso


me dar ao luxo de lutar por uma forma de opressão
apenas. Não posso me permitir acreditar que ser livre
de intolerância é um direito de um grupo particular. E

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eu não posso tomar a liberdade de escolher entre as
frontes nas quais devo batalhar contra essas forças de
discriminação, onde quer que elas apareçam para me
destruir. E quando elas aparecem para me destruir,
não demorará muito a aparecerem para destruir
você. Audre Lorde (In: Geledés, 2015)

1. Sobre meninas e meninos

Imagine a cena: duas mulheres grávidas, cada uma em uma sala de um hospital,
fazendo um ultrassom. Com certeza você conhece essa cena, seja por experiência
própria ou por alguém próximo. Durante o procedimento, a médica pergunta a cada
mãe se elas querem saber o sexo da criança - as duas respondem que sim e criam
uma expectativa de gênero nesse processo. A médica movimenta a imagem até
encontrar um pênis ou uma vagina. Então, vêm as clássicas frases para cada uma
das mães, respectivamente: “É uma menina!”; “É um menino!”. As duas mães ficam
contentes com a resposta (ou talvez um pouco decepcionadas) e começam a espalhar
a notícia para a família, para pessoas amigas, para o pessoal do trabalho. Cada pessoa
que recebe a notícia reage de um jeito, mas essas reações têm algumas coisas em
comum. A mãe do menino ouve que ele vai ser forte. A da menina, que ela vai ser
linda. A família do menino começa a comprar e ganhar roupas azuis, vermelhas,
com super-heróis estampados. A família da menina compra roupas rosas, amarelas,
com bichinhos fofos e princesas. Os brinquedos: carrinho para ele, boneca para ela.
Antes mesmo de a criança nascer, recebe um nome: masculino para o menino;
feminino para a menina. Depois do parto, mesmo que os dois bebês, enrolados
na manta, sejam indistinguíveis, todas as pessoas que têm contato com as crianças
falam com elas de jeitos diferentes: “ele é o garotão”; “ela é a princesinha”.

Uma prática cultural da nossa sociedade inclusive consiste em fazer chás de


revelação do sexo/gênero da criança. Ainda que não exista nada escrito sobre isso,
os artefatos culturais acionados nesses eventos definem fronteiras bem nítidas
para meninas e meninos, sendo que nos chás de revelação de meninas, a cor que
predomina é o rosa e nos de meninos é o azul. Por que isso acontece?

Ao olhar para o rosto dos bebês, não dá para diferenciar o seu sexo. Mas, pelas
roupas, nomes e artefatos culturais como brincos, a partir da construção social do
gênero é possível diferenciar os bebês. Por isso, escrevemos aqui sexo/gênero. Uma
designação (sexo) vem acompanhada de uma construção (gênero). E quando alguém,
inadvertidamente, troca o sexo/gênero dos bebês, isso parece incomodar bastante a
família da criança. Então, cada família vai se esforçar, desde muito cedo, em marcar
essa diferença, especialmente, pelas roupas e também pelo corpo: cabelo, brincos,
jeito de sentar, tom de voz. Mãe, família, pessoas conhecidas e desconhecidas; toda

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a sociedade começa a ensinar para essas crianças qual é a “caixa” delas: cada uma
será educada para se reconhecer e agir como uma menina ou como um menino,
conforme as pessoas e as instituições que as educam entendem que um menino ou
uma menina deve se comportar.

Em pouco tempo, cada criança vai ter aprendido que é um menino ou uma menina,
que isso é parte fundamental de quem é e que ser uma menina ou um menino lhe
coloca em lugares bastante diferentes no mundo. Vai aprender que, na sua família,
comunidade, na cultura, ser mulher significa tal conjunto de coisas, enquanto ser
homem significa um conjunto diferente. Além disso, as diferenças entre mulheres
e homens perpassam por quase todos os aspectos: o jeito de se vestir, a relação
com o próprio corpo, a divisão do trabalho As crianças aprenderão que ser
homem é não ser mulher e vice-versa. Que há coisas no universo feminino que são
proibidas para os homens e coisas no universo masculino que as mulheres não
podem acessar. Que ser mulher e ser homem são experiências diferentes, opostas
e mutuamente excludentes, que em algum momento da vida devem se cruzar, pois
uma complementa a outra que em algum momento da vida devem se cruzar, pois
uma complementa a outra.

De acordo com o sexo/gênero designado no nascimento, em


geral pelo olhar médico, nossa sociedade organiza as pessoas em
mulheres e homens, criando expectativas de como vão crescer,
quem serão, como viverão e se comportarão. Essas expectativas
são acompanhadas de práticas que ensinam as diferenças entre
ser homem e ser mulher e que vão inserindo as pessoas, desde
crianças, no universo feminino ou masculino.

Essa correlação entre sexo/gênero-identidade-comportamento é tão reiterada na


nossa cultura que chega a parecer natural, espontânea e até mesmo inata. Será? Há
algo na biologia da mulher que a torne mais propensa a usar cabelos compridos,
a ser meiga e delicada do que os homens? Há algo na biologia dos homens que os
torna mais suscetíveis a manter os cabelos curtos, a ser viris, agressivos ou que os
impeça de se constituírem sensíveis? Se essas diferenças existem, não são inatas,
não estão relacionadas à nossa condição física, nem são um comportamento que
se manifesta espontaneamente. Se essas distinções existem, foram (e são)
culturalmente construídas.

Há bastante conhecimento acumulado pela História (quando olhamos para o


passado da nossa sociedade) e pela Antropologia (quando olhamos para outras
sociedades) que permite afirmar que o modo como compreendemos e vivemos o
feminino e o masculino não é universal nem atemporal, mas se transforma ao longo

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do tempo e das culturas. Portanto, se há uma diferença na configuração dos nossos
corpos, relacionada diretamente ao modo sexuado da reprodução humana, a forma
como percebemos e lidamos com essa diferença, criando identidades, divisões e
padrões de comportamento, é social e culturalmente construída.

Para falar dessa dimensão social, histórica e cultural da produção


do feminino e do masculino em diferentes sociedades, usamos a
palavra: GÊNERO.

1.2 A invenção do conceito de gênero

Ao observar as diferentes culturas e as formas de se colocar no mundo de diferentes


povos, é possível se deparar com formas diferentes de entender o feminino e o
masculino nas diversas sociedades. Assim, as características que atribuímos a
mulheres e homens não são determinadas pela biologia ou pelas genitálias, mas
sim definidas pela cultura.

Simone de Beauvoir, escritora e ativista feminista francesa, lançou, no seu livro “O


segundo sexo”, em 1949, a ideia de que “não se nasce mulher, torna-se mulher”.
Essa afirmação chamou atenção para a dimensão social da experiência feminina,
ao questionar que é preciso se fazer mulher apesar do mundo ser construído com
desigualdade de gênero, a partir do olhar masculino e com o objetivo de perpetuar
uma posição superior para os homens. A ideia de Simone também pode remeter
questionar que é preciso se fazer mulher apesar do mundo ser construído com
desigualdade de gênero, a partir do olhar masculino e com o objetivo de perpetuar
uma posição superior para os homens. A ideia de Simone também pode remeter a
uma distinção entre como nascemos e quem nos tornamos, a partir da vivência na
nossa cultura.

Para Raewyn Connell e Rebecca Pearse (In: Gênero, uma perspectiva global,
2015), tornamos o gênero no cotidiano algo dado, natural e que sempre esteve lá;
reconhecendo pessoas como homens e mulheres imediatamente e organizando
nossos afazeres em torno desta distinção hierárquica. Ideias sobre comportamentos
adequados a homens e mulheres são difundidas a partir desta organização social
por instituições como a ciência, o judiciário, as religiões e suas doutrinas, as escolas,
a família, a mídia e a cultura, dentre outras… criando feminilidades e masculinidades
ideais. Todas estas instituições sociais funcionam de modo a manter um projeto
social de poder que atua pelo binarismo de gênero, instituindo padrões fixos para
se colocar no mundo como mulher ou homem. Tudo muito separado e cada uma/
um em seu lugar. No entanto, este projeto também produz pessoas que se colocam
no mundo em desacordo com essas normas. Ser mulher ou homem, portanto, não é
um estado predeterminado: é uma condição em permanente construção (CONNELL
e PEARSE, 2015).

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O termo “gênero” foi rapidamente apropriado por várias teorias que buscavam
demonstrar a experiência das mulheres e a ineficiência de se sustentar as
desigualdades entre mulheres e homens a partir das diferenças entre os corpos.
Gênero passou a ser - e segue sendo - um vocábulo recorrente no pensamento
científico, usado de formas variadas, mas sempre para se referir à dimensão social,
cultural, histórica, econômica e política da construção do feminino/masculino.

Gênero é um conceito utilizado para pensar sobre a construção dos nossos corpos e
da nossa identidade, mas que também extrapola a experiência individual e nos ajuda
a compreender como se organizam nossas relações e nossa sociedade: a divisão do
trabalho, a distribuição da riqueza e da propriedade, o sistema político, a educação,
a saúde, as violências, entre outras questões sociais. A nossa própria linguagem,
a forma como pensamos o mundo e sobre nós mesmas/os estão profundamente
marcadas por ideias e distinções entre feminino e masculino. Isso acaba orientando
também o modo como as pessoas agem e interagem, que expectativas criam, como
percebem a relação entre si e as outras pessoas.

Um dos aspectos importantes para entendermos o conceito de gênero se relaciona


ao patriarcado. A contestação do patriarcado como um sistema de opressões parte
do movimento feminista na década de 1970, denunciando este como um amplo
sistema de opressões que subjugam as mulheres como cidadãs de categoria inferior
em relação aos homens. Esse sistema privilegia os homens, em especial brancos
e heterossexuais, e conduz a lógica social LGBTQIA+fóbica. É necessário repensar
práticas e perspectivas culturais assentadas no patriarcado e na lesbofobia,
homofobia, bifobia e transfobia naturalizada na organização social. Para Debora
Diniz (2015), o gênero é um regime político onde o patriarcado atua para manter
as desigualdades sob a justificativa de que haveria uma hierarquia de gênero
sustentada pela diferença entre os corpos de mulheres e homens. Desta forma,
podemos pensar na LBTQIA+fobia como um dos resultados do machismo e do
patriarcado e efeito das assimetrias de gênero.

Alguns elementos para pensarmos a LGBTQIA+fobia e o


patriarcado:

https://blogdaboitempo.com.br/2021/05/31/o-patriarcado-e-um-
tigre-de-papel- fascismo-genero-e-luta-de-classes/

1.3 Educação generificante

O que a ciência nos diz hoje é que as ideias que temos sobre masculino e feminino,
tão incorporadas à nossa vida cotidiana, que orientam a construção da nossa
identidade e nossas interações sociais, não podem ser resultado simplesmente da

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natureza ou da biologia dos corpos. A forma como nossa sociedade define uma
mulher e um homem - e mesmo a necessidade de se fazer essa distinção - é algo
socialmente construído, próprio de cada tempo e de cada cultura. Cada sociedade,
ao longo da sua história, vai definir, de forma mais ou menos rígida, os termos dessa
distinção e organizar as relações sociais por meio do gênero.

Esta “ordem de gênero” não é espontânea, mas produzida. Justamente por isso,
este conjunto de ideias, valores, expectativas e normas, que organizam o mundo
a partir do feminino e do masculino, precisa ser repetido e reiterado pelas várias
instituições sociais a cada nova geração. Em nossa cultura não é diferente. Crianças
são ensinadas e relembradas insistentemente do que é feminino e do que é
masculino a todo momento nas instituições sociais das quais participam: família,
escola, comunidade, redes sociais, entre outros.

Quando essas crianças crescerem, a maior parte desses conceitos terá sido
incorporada por repetição se constituindo num referencial normativo a ser cumprido.
Então, ser homem e ser mulher vai parecer o destino natural daqueles dois bebês.
Será?

As diferenças entre meninas e meninos, mulheres e homens,


podem se transformar em questões impeditivas de acesso à
direitos sociais, trabalhistas e a outras questões cotidianas que
envolvem o lazer e a cultura.

Assista aqui este vídeo da ONU sobre igualdade de gênero:


https://www.youtube.com/watch?v=ZCGLC-vziRc

E aqui, a história de Laurinha, uma menina do Espírito Santo que


foi impedida de jogar futebol apenas pelo seu gênero: https://
www.youtube.com/watch?v=DCIavK2M89g

Importante lembrar que tudo isso pode ser transformado por


meio das nossas ações cotidianas!

A entrada no universo feminino ou no universo masculino - determinada a partir


de como produzimos as desigualdades a partir das diferenças dos nossos corpos -
não é opcional, nem natural. Ela é intencional. Ou seja, as pessoas serão ensinadas
e cobradas a se posicionarem em um lado ou outro, de acordo com o sexo/gênero
que lhe foi designado no nascimento.

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Este, no entanto, não é um processo que acontece sem resistência, afinal, cada ser
humano, embora viva e cresça imerso numa determinada sociedade, estabelecerá
uma relação própria com a sua cultura. Se a nossa sociedade tem um jeito de
ensinar o que é ser homem e o que é ser mulher, cada um de nós, a partir da sua
vivência, desenvolverá uma relação particular com o universo feminino/masculino e
construirá a sua própria identidade de gênero.

Identidade de gênero é a compreensão pessoal que cada pessoa


constrói sobre si em relação às definições sociais de feminilidade
e masculinidade que funcionam como normas regulatórias e
destinam uma posição na hierarquia social a ser ocupada nesse
universo de gênero.

Vamos entender

Pense no seu próprio caso: você recebeu uma série de ensinamentos da sua família,
da sua comunidade, da sociedade, mas construiu uma relação própria com tudo
isso e definiu o seu jeito específico de ser mulher ou homem (ou nada disso): a sua
identidade de gênero.

É importante compreender que a identidade de gênero não tem relação com a


orientação sexual.

Assista ao vídeo que Louie Ponto, uma youtuber brasileira, fez


relatando sua vivência e perceba como ela encontrou um lugar
próprio na relação com as “caixinhas” para meninas e meninos,
no link: https://youtu.be/LV7l13SZcw8

1.4 Cisgeneridade e Transgeneridade

Muitas vezes nossa identidade de gênero corresponde, em maior ou menor grau, às


expectativas sociais que depositaram sobre a pessoa, a partir do sexo/gênero que
atribuíram a ela quando nasceu. Quando isso acontece, dizemos que esta pessoa
é cisgênera. Isso mesmo! Cisgênera, ou simplesmente cis, trata-se de uma pessoa
cujo pertencimento de gênero, que a sociedade projeta para que ela assuma, e a
identidade/compreensão que ela tem de si mesma coincidem. Uma criança, que
disseram ser do sexo/gênero feminino, ensinada a ser uma mulher, entende-se e

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identifica-se como mulher. Uma criança que disseram ser do sexo/gênero masculino,
ensinada a ser um homem, entende-se e identifica-se como homem.

Ainda que possam existir, numa mesma sociedade e ao mesmo tempo, formas
diferentes de ser mulher e de ser homem, se o gênero que lhe identificaram no
nascimento coincide com a identidade de gênero que você construiu para si, então
você é uma pessoa cisgênera. A cisgeneridade é a identificação com o gênero que
atende às expectativas relacionadas ao sexo/gênero atribuído no nascimento.

Vamos dar uma olhada neste vídeo em que Bryanna Nask,


youtuber, explica de um jeito bem didático o que significa
cisgênero. https://youtu.be/lC-8ioRfjXo

Algumas vezes, o sexo/gênero que nos atribuíram no nascimento, as expectativas


sociais quanto ao nosso pertencimento ao universo feminino/masculino, a percepção
e a identidade que construímos são diferentes. Há pessoas, por exemplo, que não
se identificam de maneira alguma com a identidade masculina ou feminina que lhe
atribuíram no nascimento e constroem uma identidade de gênero diametralmente
oposta. Há pessoas que se posicionam entre ou fora dessas categorias. Há pessoas
que transitam entre elas, sem necessariamente se identificarem com uma ou outra. A
esse grupo diverso de pessoas, chamamos pessoas trans. Elas podem se reconhecer
como Travestis, Mulheres Transexuais, Homens Trans, Pessoas Transmasculines e
Pessoas Trans, por exemplo.

Pessoas trans é um termo amplo usado para falar de uma


diversidade de pessoas cujas histórias, corpos e formas de se
reconhecer podem ser bem diferentes, mas que compartilham
o fato de não se identificarem com o sexo/gênero que lhes foi
atribuído no nascimento.

1.5 Cisnormatividade

Do mesmo jeito que as pessoas cisgêneras, cada pessoa trans vive uma experiência
própria de vida, constrói uma identidade única, que não se reduz, de forma alguma,
ao seu pertencimento de gênero. Mas há algo que todas elas compartilham, de
formas e intensidades diferentes: toda pessoa, trans ou cis, tem que lidar com o
fato de viver numa sociedade cisnormativa e precisa dialogar com essa norma para
se colocar no mundo.

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Dizemos que nossa sociedade é cisnormativa porque pressiona toda e cada pessoa,
a partir do sexo/gênero que lhe foi atribuído no nascimento, a uma determinada e
correspondente identificação como homem ou mulher. A crianças com vulva e vagina,
atribui-se um nome, uma identidade, espera-se e ensina-se um comportamento
feminino. A crianças com pênis, atribui-se um nome, uma identidade, espera-se e
ensina-se um comportamento masculino.

Na lógica cisnormativa, quem tem vulva e vagina – e só quem tem vulva e vagina –
deve ser mulher. Quem tem pênis - e só quem tem pênis - deve ser homem. E ser
homem e ser mulher significa um conjunto de coisas pré-definidas pela cultura.

Uma sociedade cisnormativa (como a nossa) encoraja e estimula todas as pessoas


a serem cisgêneras, e organiza-se como se todas as pessoas fossem, de fato e antes
de mais nada, cisgêneras. Dessa forma, a sociedade discrimina, não reconhecendo,
ou até mesmo violentando, quem não corresponde às expectativas sociais.

A cultura cisnormativa estabelece uma série de obstáculos a pessoas trans: lhes


nega a identidade, erotiza seus corpos, as discrimina no que diz respeito ao acesso a
direitos básicos, como educação e saúde, restringe suas possibilidades de trabalho
e, até mesmo, ameaça a sua vida. Resistência, portanto, é a palavra que guia a
experiência de vida de muitas pessoas trans. Resistência para serem donas do seu
próprio corpo, para definirem sua própria identidade, para terem seus direitos
garantidos e respeitados. São histórias de luta e de muitas conquistas, muitas
vivências e diferentes formas de se identificar: travestis, mulheres transexuais,
homens trans, pessoas não binárias (que não se identificam com feminino ou
masculino). São diferentes relações com o próprio corpo, distintas maneiras de
dialogar com as normas regulatórias e de enfrentar uma sociedade cisnormativa.

É importante ressaltar a centralidade da linguagem flexionada de gênero (as/os) e a


linguagem neutra ou inclusiva (a/e/o). Ambas são utilizadas para evitar o domínio da
linguagem no masculino e para incluir tanto quem não se sente representada pelo
masculino plural, norma da língua portuguesa que anula as mulheres do discurso,
quanto para inserir pessoas que não se sentem confortáveis em se associar a
gêneros binários (para além do feminino e do masculino).

Neste link, você assiste um vídeo da ativista Rosa Laura sobre


linguagem neutra e inclusiva: https://www.youtube.com/
watch?v=sXxxhDa0u3E

Para entender capacitismo, escute o que esta pesquisadora e


ativista travesti tem a dizer: Leandrinha Du Art (Midialivrista,
artivista, fotógrafa, produtora, blogueira, comunicadora e

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militante nas causas de pessoas com deficiência e LGBTQIA+):
https://www.youtube.com/watch?v=LDD2zZkj_0Y

Assista a esse documentário chamado Metamorfose, que fala


sobre vivências de mulheres trans e travestis: https://youtu.be/
cALZKgCU8iQ

A Secretária Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do


Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, Symmy Larrat,
conversa sobre a diferença entre pessoas trans e travestis:
https://www.youtube.com/watch?v=dA3VRBGWcDY

No universo de pessoas LGBTQIA+, há também aquelas que não se definem nem


como homens nem como mulheres, mas constroem sua identidade fora dessas
caixas de gênero: as pessoas não-binárias. O termo não-binário ou não-binárie é um
termo “guarda-chuva”, que abarca várias formas de identificação fora do binarismo
de gênero. Estas pessoas enfrentam o desafio de viver numa sociedade binária, que
classifica praticamente tudo - das roupas aos gestos - em feminino ou masculino e
que insiste em lhes encaixar também. Muitas vezes o binarismo está tão arraigado
ao nosso pensamento que é difícil até mesmo imaginar a possibilidade de uma
pessoa viver sem se definir como mulher ou homem. Mas o fato é que pessoas
não-binárias existem, estão aí enfrentando os desafios da vida e fazendo valer sua
identidade.

Há, ainda, pessoas que utilizam o termo queer para referir-se às experiências que
provocam as normas de gênero. Segundo Guacira Lopes Louro (2001), queer pode
ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário e por
muito tempo foi utilizado (em especial nos Estados Unidos) como forma pejorativa
com a qual são designadas pessoas LGBTQIA+. Porém, este termo foi assumido por
uma vertente dos movimentos sociais LGBTQIA+ precisamente para caracterizar
sua perspectiva de oposição e de contestação.

“Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de
onde vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade
compulsória da sociedade” (LOURO, 2001, p. 546). O queer, conforme Louro (2001),
busca empreender uma mudança epistemológica que efetivamente rompa com
a lógica binária e com seus efeitos: a hierarquia, a classificação, a dominação e
a exclusão, conhecimento e de identidade. As reivindicações a partir do queer
pretendem subverter a norma de compreensão, ressaltando que as diferenças (de
gênero, de orientação sexual, de raça/ etnia) não devem ser toleradas ou entendidas
como curiosidades exóticas, mas sim colocadas em xeque a partir da naturalização
e da pseudo superioridade da heterossexualidade.

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Por isso, é importante nos perguntarmos: por que algumas diferenças entre nossos
corpos - como o órgão genital ou a cor da pele - tornam-se um fator de distinção tão
forte, definindo quem somos, nos colocando em um grupo específico de pessoas e
determinando qual lugar podemos (ou não podemos) ocupar na sociedade? Por que
nós percebemos tanto essas diferenças e não outras? Por que é tão difícil para nossa
sociedade lidar com o fato de que determinada pessoa não se sente pertencente ao
universo feminino ou masculino que lhe foi atribuído quando nasceu? Por que é
tão incompreensível que uma pessoa não se encaixe nas expectativas que criaram
sobre ela e que construa sua identidade fora dessas caixas?

O fato é que as pessoas LGBTQIA+ existem, estão vivendo suas vidas e merecem
respeito, reconhecimento e acesso a todos os direitos que são compartilhados por
todas as pessoas. A começar pelo direito à personalidade, pelo direito de definirem,
elas mesmas, quem são e como querem viver, pelo direito de construírem sua
trajetória, sem ter que se submeter a imposições arbitrárias sobre seu corpo ou sua
identidade.

Dê uma olhada nesse clip de Triz, rapper não-binária, que tem


uma mensagem forte sobre o direito de ser quem você é: https://
youtu.be/npGrq2lFmls

Documentário “ Homens Trans” que apresenta alguns relatos:


https://youtu.be/p7dbHcMg3fo

Assista ao documentário “Homens Invisíveis” sobre pessoas


transmasculinas em situação de cárcere - Promovida pelo
Instituto Brasileiro de Transmasculinidades - IBRAT em parceria
com o Coletivo de Artistas Transmasculines: https://youtu.be/
fKW2fkCFmfs

1.6 Resumo

Ao longo deste módulo, você aprendeu que nossa sociedade se organiza a partir de
uma definição binária de gênero, formando as pessoas como mulheres ou homens a
partir do sexo/gênero identificado no nascimento. Esta “ordem de gênero” atravessa
não só a formação do nosso corpo e da nossa identidade, mas também o modo
como se organiza toda a sociedade, da economia à linguagem. Você pode conhecer

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a história do conceito de gênero e como esse é um conceito fundamental usado
pela ciência para compreender a sociedade atual.

Você aprendeu também que pessoas LGBTQIA+ apresentam marcadores sociais da


diferença em seus corpos que devido a intersecção entre sistemas de opressão,
como machismo, sexismo, LGBTQIA+fobia, racismo, capacitismo, classicismo,
xenofobia, preconceito geracional e intolerância religiosa, por exemplo, produzem
mais negação de direitos sociais básicos, exclusões e violências. mais negação de
direitos sociais básicos, exclusões e violências.

Você aprendeu, também, que embora a sociedade imponha determinados padrões


de identificação e comportamento, cada pessoa constrói sua própria identidade
de gênero. Para isso, foi apresentada a diferença entre pessoas cisgêneras e
transgêneras, mostrando o quanto a nossa sociedade cisnormativa cria barreiras
para quem não segue as expectativas sociais.

Por fim, você teve contato com as especificidades e desafios da vivência de


pessoas trans e pode conhecer um pouco sobre como elas enfrentam a transfobia,
preconceito e discriminação em relação a pessoas trans, e constroem sua vida e sua
identidade em uma sociedade discriminatória e violenta como a nossa.

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Módulo

2 Orientação Afetiva-Sexual
A sexualidade é uma das dimensões mais relevantes da nossa vida. Ela diz respeito
a nossas formas de sentir desejo, prazer, construir afetos, nos relacionarmos
com outras pessoas e com o nosso próprio corpo. A forma como construímos e
vivenciamos a nossa sexualidade marca definitivamente nossa experiência de vida,
produzindo histórias de amor e de prazer, mas também de opressão, discriminação
e violências. Afinal, nós não vivemos nossa sexualidade apenas numa dimensão
“privada”, mas, desde cedo, ela será construída na relação com toda a sociedade. Uma
sociedade que define uma forma apenas de sexualidade como “natural”, “aceitável”,
“reconhecível” e “legítima” de se vivenciar a sexualidade, ao mesmo tempo em que
patologiza, aniquila, invisibiliza, proíbe e exclui outras possibilidades de vivência.

Começamos este módulo discutindo “o que é a sexualidade”. Seria um dado da


natureza? Uma produção da nossa cultura? O que há de social nisso que nos parece
ser uma experiência tão íntima e particular?

Em seguida, vamos entender o significado da palavra heteronormatividade e


perceber como ela é imposta através de várias instituições e práticas sociais, inclusive
pela violência, criando barreiras para o acesso a direitos.

A partir das suas vivências, vamos conhecer um pouco mais sobre a vida e a trajetória
de pessoas lésbicas, gays, bissexuais e assexuais, suas lutas e conquistas diárias.
Vamos ver também como esses sujeitos constroem seus laços de afeto, lidam com
seu desejo e lutam por seus direitos em um contexto extremamente lesbo-homo-
bifóbico. A partir daí, iremos discutir como podemos rever nosso jeito de pensar e
agir para além dos preconceitos e discriminações.

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Unidade 1: A sexualidade como liberdade e
direito de todas, todes e todos

Compreender e aprender a respeitar a diversidade sexual,


identificando que a sexualidade, o desejo e o afeto são experiências
muito diversificadas, múltiplas e que podem produzir uma série
de possibilidades e, portanto, não podendo ser reduzidas a
somente uma orientação sexual.

1.1 Sexualidade: Dado da natureza ou construção


social?

A maioria de nós aprendeu a pensar a sexualidade como uma coisa “que vem de
dentro”, um instinto (natural?), uma pulsão (inconsciente?), uma manifestação
biológica gravada no nosso código genético para garantir a sobrevivência da espécie.
A sexualidade estaria localizada no nosso corpo e, por isso, seria algo natural, que
existe “independente da cultura”. Como um destino divino ou uma determinação
biológica, a sexualidade seria essa força interior que “se desenvolve” e “aflora” em
algum momento. Seria uma potência que emerge do íntimo do nosso corpo (ou
da nossa “alma”) e que à sociedade caberia apenas reconhecer, respeitar ou, ao
contrário, conter, oprimir, corrigir, patologizar, aniquilar.

Se, obviamente, a sexualidade envolve o corpo, não se restringe a ele nem é uma
simples derivação do seu funcionamento. Boa parte da experiência da sexualidade
se dá através do corpo, mas também a partir de outros lugares e práticas, e de como
essas práticas definem a nossa relação com o corpo.

A sexualidade está na lei, na regulação das relações conjugais, dos modelos de


família, das práticas sexuais que são permitidas ou proibidas. Está também nas
políticas de natalidade, nos cartórios de registro civil, na proibição e criminalização
do aborto e na polêmica sobre a educação para a sexualidade nas escolas.

A sexualidade está na ciência, que se dedica a investigar sua história, que define
as etapas do seu “desenvolvimento”, que cria categorias para explicar suas várias
expressões e, a partir daí, procura definir o que é “normal ou anormal”, “precoce
ou tardio”, “saudável ou patológico”. Várias palavras e conceitos que usamos para
pensar e falar sobre sexualidade derivam do pensamento científico. É possível dizer,
com pouca margem de dúvida, que hoje a ciência - especialmente a biologia e a
psicologia - é o discurso mais acionado (que mais gente usa) e mais legitimado (que
mais gente reconhece como válido) para falar da sexualidade.

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A sexualidade está na religião, nos seus mitos de origem, nas regras que estabelecem,
nos comportamentos que induzem, definindo o limite do moral e do imoral, do
pecado e da virtude, do “natural” e do ”antinatural” segundo alguma doutrina. E,
mesmo que você não professe qualquer religião, seu modo de pensar sobre sexo/
gênero, amor, família, casamento, certamente é influenciado, em alguma medida,
pelo pensamento religioso.

A sexualidade está nos meios de comunicação, na produção cultural que acessamos


todos os dias, nos corpos “perfeitos” que se exibem na TV, nos casamentos de novela,
na polêmica do “beijo lésbico”, na erotização de crianças, na construção de modelos
estéticos que definem o que é bonito e o que é feio, o que é desejável ou repulsivo,
o que pode ser visto e o que precisa ser apagado e censurado.

A sexualidade está no “mercado”, empacotada para vender, da indústria pornográfica


à família “modelo” do comercial de margarina. Está na indústria farmacêutica, do
anticoncepcional ao viagra, dos remédios para perder peso aos que aumentam a
massa muscular. Está nas campanhas “ousadas” que transformam a transgressão
sexual em estratégia de marketing, na imagem anoréxica das capas de revista e na
publicidade infantil. Está nos processos seletivos do pessoal dos recursos humanos,
definindo quem entra e quem adquire mobilidade (ou não) e sobe (ou não) de cargo
no mercado de trabalho.

Assim, embora o corpo seja o território privilegiado da sexualidade, ela não se


resume a um aspecto do seu funcionamento, nem é uma expressão “natural” da
sua fisiologia. Mais que isso, a sexualidade é uma das formas pelas quais trazemos
o corpo para a cultura. Inserimos o corpo nas relações de poder, nas experiências,
tornamos o corpo pensável e compreensível por meio da linguagem, formamos
esse corpo nos discursos e nas práticas sociais.

A sexualidade não é um dado da natureza que a ciência tenta desvendar, um impulso


interior que a religião tenta conter ou que a lei aparece para regular. A sexualidade,
tal qual nós a vivemos, é justamente o produto de todas essas práticas e discursos
científicos, religiosos, legais, morais, estéticos, entre tantos outros. Práticas e
discursos que, mais do que descobrir, proibir ou controlar, vão efetivamente
produzindo a nossa sexualidade. A sexualidade é uma produção social e, como tal,
é construída de formas distintas em diferentes sociedades e momentos históricos.
Portanto, o que percebemos, entendemos e experienciamos como sexualidade tem
a ver com o corpo e como construímos esse corpo na cultura e nas relações em que
estamos inseridas/os, no tempo histórico em que vivemos.

Se a sexualidade é um produto histórico, construído socialmente, isso significa que


a forma como a compreendemos e experienciamos se transforma de cultura para
cultura e ao longo do tempo. A sexualidade já recebeu muitos nomes, já foi vivida
de muitas maneiras com o passar dos séculos, de forma que é possível pensarmos
mesmo em uma “história da sexualidade”. Uma história de como cada sociedade,

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ao longo do tempo, foi construindo e reconstruindo formas de viver e pensar a
sexualidade. Um movimento de conservação e subversão em que o tradicional e
o novo se encontram, recorrentemente se confrontam e vão, sucessivamente,
dando novas formas a isso que chamamos sexualidade. Isso significa que a forma
como vivemos hoje o desejo, o afeto, as relações, o prazer e o corpo não é a única,
nem a primeira, nem a última. E o que parece constante e imutável pode estar se
transformando radicalmente nesse exato momento.

1.2 Orientação Afetiva – Sexual

A partir dessa perspectiva histórica e sociológica, como pensamos e vivemos a


sexualidade na nossa sociedade nos dias de hoje? Há uma única forma “natural”
de vivenciar a sexualidade? Ou múltiplas formas? Certamente, em quase todas as
sociedades, há regras e normas que tentam se impor e definir modelos, ao mesmo
passo que há muitas vivências que escapam, transbordam e até contradizem essas
normas.

Afinal, dizer que a sexualidade é socialmente construída não significa que uma
entidade abstrata chamada “sociedade” simplesmente impõe para as pessoas
uma determinada forma de viver a sexualidade. É mais que isso, significa que a
sexualidade é construída pelas nossas relações sociais de poder e pela forma como
nos posicionamos nessas relações. Não somos pessoas autônomas descoladas
da vida social, nem meros objetos a serem moldados pela sociedade. Nós somos
sujeitos ativos na construção do nosso corpo, dos nossos desejos, afetos e do nosso
prazer, e fazemos isso a partir do lugar social e do momento histórico em que
vivemos em diálogo com as normas regulatórias de sexualidade.

Exatamente para dar conta dessa diversidade de possibilidades de vivências da


sexualidade, precisamos introduzir aqui um conceito chamado orientação afetiva-
sexual.

Orientação afetiva e sexual diz respeito às várias formas como


se constrói o desejo e o afeto, ao modo como nos sentimos
atraídas/os por outras pessoas e como nos relacionamos com
elas. É um conceito que chama atenção para o fato de que não
existe uma única forma de desejo, afeto ou de prazer, mas
múltiplas. Embora geralmente se classifiquem as orientações
sexuais em homossexual, heterossexual e bissexual, o desejo e
o afeto são mais complexos e envolvem outras dimensões para
além de sexo e gênero, de forma que há muitas formas de viver
a nossa sexualidade.

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Além disso, quando falamos homossexual, nem sempre estamos incluindo as
lésbicas, pois os movimentos de lésbicas feministas nos ensinam que o prefixo
homo por muito tempo foi acionado a partir de um machismo, representando
majoritariamente homens gays como superiores. Portanto, dizemos lésbicas e gays,
em vez de homossexuais, de forma genérica, pois entendemos que quando falamos
homossexualidade estamos nos referindo a homens gays, especificamente.

É bom lembrar que essas categorias não foram criadas num movimento de crítica
ao modelo binário de gênero (feminino em oposição ao masculino), nem numa
perspectiva de empoderamento ou reconhecimento de grupos subalternizados.
Essas categorias – acompanhadas do “ismo” no final – vão surgir no século XIX, dentro
de um processo de construção de uma sexualidade medicalizada, psiquiatrizada e, em
grande parte, para marcar cientificamente a diferença entre o que era considerado
“saudável e patológico”, “normal e anormal”. Então, podemos entender que essas
categorias (lesbianidade, homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade)
foram, como todo conhecimento produzido pela humanidade, inventadas em um
determinado contexto histórico e político. Não são categorias neutras – como
nenhuma é – e não apenas descrevem uma realidade que está no mundo, mas
fazem essa realidade, compondo um jogo de relações de poder que vem, desde há
alguns séculos, construindo a sexualidade como a entendemos hoje.

Estas categorias, assim como todas as classificações, não dão conta da enorme
diversidade de experiências humanas. E o fato de estarmos numa mesma categoria
não significa que vivemos a sexualidade do mesmo jeito. Podemos então pensar
de fato que existem heterossexualidades, lesbianidades, homossexualidades,
bissexualidades, etc. Além disso, podemos pensar também que essas práticas e
desejos sexuais e afetivos não são algo sólido e monolítico o qual, uma vez construído,
se mantém rígido por toda a vida. Nossa sexualidade, nosso modo de desejar, amar
e de nos relacionarmos é algo em permanente construção e transformação.

1.3 Heteronormatividade

Não há um consenso sobre como se constitui a orientação sexual de uma pessoa,


mas não é difícil perceber como nossa sociedade, por meio de várias práticas sociais,
legitima a heterossexualidade como norma. Apesar de algumas vozes dissonantes, a
lição que todas, todes e todos nós aprendemos, desde cedo e todos os dias, é que a
heterossexualidade é o destino “natural” de todas as pessoas. Os modelos de família
estampados na televisão ou nos livros didáticos são heterossexuais. As histórias de
afeto, na literatura, no cinema ou na telenovela, são, em sua esmagadora maioria,
heterossexuais. O desejo sexual da pornografia, massivamente representado
pela publicidade, é heterossexual. Os padrões de moralidade de grande parte das

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religiões praticadas no Brasil ainda sustentam a heterossexualidade como única
orientação sexual válida e condenam quaisquer outras possibilidades.

Não há no Brasil qualquer lei que estabeleça a heterossexualidade como orientação


sexual a ser seguida, praticada ou ensinada. Mas, como nos modelos de gênero,
existe uma forte pressão social para que as pessoas sejam heterossexuais. Então,
ainda que não tenha nada escrito regulamentando isso, as instituições sociais deixam
nítido desde muito cedo nas nossas vidas que para atender aos padrões sociais de
sexualidade, ter acesso a humanidade e aos direitos, é preciso ser heterossexual.
Este é o modelo de relacionamento exibido e ensinado a todo momento, em
praticamente todos os espaços sociais. Todas as formas de relacionamento e
desejo afetivo-sexual que fogem do modelo heterossexual sofrem algum tipo de
discriminação. É o que chamamos de heteronormatividade.

Há uma série de ideias e discursos, difundidos na nossa cultura, que dizem sobre
como mulheres e homens sentem (ou deveriam sentir) desejo e prazer, como lidam
(ou deveriam lidar) com seus sentimentos e como e com quem se relacionam (ou
deveriam se relacionar). Se quando nasceu você foi colocada na caixa das mulheres,
provavelmente você aprendeu que mulheres são mais sentimentais, destinadas à
maternidade e que fazer-se bonita é fundamental para conquistar seu único objeto
de desejo afetivo-sexual possível: os homens. Se a caixa foi a dos meninos, desde
cedo você foi ensinado que homens devem reprimir suas emoções, que homens
podem e devem dar vazão à sua libido e virilidade e que o objeto de desejo do
homem é a mulher. Ou seja, a linearidade entre corpo-gênero-desejo (vulva-vagina-
mulher-heterossexual) se alinha à complementaridade entre os gêneros (mulheres
devem desejar homens e vice-versa). Dentre o conjunto de coisas que definem
socialmente o que é ser mulher ou homem está a dimensão sexual e afetiva. Em uma
sociedade heteronormativa, há um intenso e cotidiano investimento em promover
a heterossexualidade como norma, impô-la como prática compulsória, naturalizá-
la como inata, marcando todas as outras possibilidades de vivência do afeto, do
desejo e do prazer como “desvio, doença, anormalidade”.

Ainda que as várias áreas do conhecimento científico, da medicina à psicologia, da


psiquiatria às ciências sociais, já tenham ratificado que não há qualquer caráter
patológico nas lesbianidades, homossexualidade ou nas bissexualidades, o estigma
social persiste e é cotidianamente alimentado por discursos e práticas de ódio
que insistem em caracterizar de forma negativa vivências que se distanciam da
heterossexualidade.

A despeito de todo esse esforço social em promover e ensinar a heterossexualidade,


várias pessoas fogem a essas expectativas e vivem sua sexualidade, seu afeto e prazer
de formas muito diferentes. Lésbicas, gays, bissexuais, são algumas possibilidades
de vivência e identificação que compõem esse largo espectro de orientações sexuais.
Esses grupos e pessoas, cada qual dentro de sua especificidade, lidam com uma
sociedade heteronormativa que lhes cria barreiras para o acesso a direitos básicos,

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como saúde, educação e segurança. Além disso, enfrentam pesados processos de
estigmatização, anulação, invisibilidade, discriminação e exclusão. Tais processos
se constituem em violências. Vamos então conhecer um pouco da vivência dessas
pessoas a partir dos seus próprios relatos nos vídeos abaixo?

Neste vídeo do canal de Loui Ponto, algumas mulheres falam


sobre o que é ser lésbica: https://youtu.be/j3Wi9QVQi1I

Assista ao video: Pergunte a Ela #11 - Porque NÃO chamar


mulheres lésbicas de “gays”? - https://www.youtube.com/
watch?v=DAQT8v2RFX4

Qual a relação entre as categorias de gênero, raça, classe, etnia,


sexualidade, geração? Assista ao vídeo de Heliana Hemetério:
https://www.youtube.com/watch?v=MjMRBD30HMU

A partir dos vídeos é possível compreender que essas histórias de vida são marcadas
por violências dentre as quais a violação de direitos. Os preconceitos e as atitudes
violentas e discriminatórias direcionados às lésbicas e sapatão consistem na
lesbofobia e no lesbo-ódio. Uma das questões relacionadas ao lesbo-ódio é que
lésbicas e sapatão não estão à disposição dos prazeres masculinos e se constituem
apesar, e em distanciamento dos homens. Essa constituição das lésbicas e sapatão
desencadeia a lesbofobia e o lesbo-ódio que levam a tentativa de lesbocídio e
algumas consumam o lesbocídio.

Já os preconceitos e as atitudes violentas e discriminatórias direcionados aos homens


gays ou às bichas, consistem na homofobia.

Assista aqui o vídeo da Léo Ribas, Sapatão ativista articuladora nacional da Liga
Brasileira de Lésbicas - LBL e da Rede Nacional de Ativistas e Pesquisadoras
Lésbicas e Bissexuais – Rede LésBi Brasil; sobre o significado do lesbo-ódio e suas
consequências:

Vídeo 2 - O significado do lesbo-ódio e suas consequências

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1.4 Bissexualidade

Há um recorrente preconceito de se entender bissexuais como se fossem pessoas


mal resolvidas, pessoas LGTQIA+ que não se aceitam ou heterossexuais indecisas/os.
Isto é bifobia, preconceito e discriminação destinada às pessoas bissexuais. É difícil
para muitas pessoas entenderem a bissexualidade, porque a gente ainda trabalha
muito com uma ideia dicotômica e complementar da sexualidade, pela qual as
pessoas só podem se interessar por pessoas com o gênero oposto, estabelecendo
relações heterossexuais. Ninguém precisa se encaixar nesse ou naquele lugar, nem
decidir por qualquer lado que seja. Uma pessoa simplesmente pode sentir atração
por homens e mulheres. E isso não quer dizer que uma pessoa bissexual precisa
estar permanentemente se relacionando com ambos. Isso significa que essa pessoa
é capaz de se relacionar afetiva e sexualmente com pessoas de ambos os gêneros.

Compreender e aprender a respeitar a diversidade sexual não é apenas incluir mais


alguns modelos de relacionamento na nossa “caixinha de aceitáveis”, mas entender
que a sexualidade, o desejo e o afeto são experiências muito diversificadas, múltiplas
e que podem produzir uma série de possibilidades.

É importante lembrar que orientação sexual e identidade de gênero são coisas


diferentes. Identidade de gênero diz respeito a como você se percebe, se entende,
se identifica. Orientação sexual tem a ver com a atração que você sente por outras
pessoas. Isso significa que tanto pessoas cisgêneras quanto pessoas trans podem
vivenciar sua sexualidade de formas diversas.

Neste link, você assiste a entrevista do canal Barraco da Rosa, em que


duas mulheres trans contam sobre a vivência de se relacionarem:
https://www.youtube.com/watch?v=QKA5u6eWgr4&t=16s

Assista ao vídeo: Pergunte a Ela #12 - Porque as mulheres


bissexuais não estão confusas? No link: https://www.youtube.
com/watch?v=6JQRtACbCoM

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1.5 Para além dos binarismos

Se você prestar atenção, todas as classificações mais conhecidas para a orientação


sexual e afetiva (lésbica/gay, heterossexual e bissexual) estão baseadas em gêneros
binários, ou seja, são variadas combinações entre mulheres e homens, entre
feminino e masculino. Mas e quando a identificação da pessoa está fora dessas
duas caixas? Como podemos pensar a orientação sexual de pessoas não-binárias,
por exemplo?

Assista a este vídeo de Hugo Nasck para ampliar a compreensão


sobre não-binariedade: https://youtu.be/R8983bhMuL8

Afinal, o que é não binário? Quais os mitos sobre a não-


binariedade? Assista o vídeo da ativista Isa Ribeiro: https://youtu.
be/4GD3_JpQEaY

Para refletir sobre preconceitos, assista a esse vídeo sobre a


experiência de pessoas assexuais: https://youtu.be/n8ZrIna1X18

Além disso, quando discutimos vivências da sexualidade, em geral, partimos do


pressuposto de que todas as pessoas querem, ainda que de diferentes formas,
relacionar-se sexual e afetivamente com outras. Mas essa também é uma ideia
socialmente construída e, em certa medida, imposta a todas as pessoas. Não fazer,
ou mais, não querer fazer sexo ainda é enxergado, pela maioria de nós, como um
problema. E se alguém simplesmente não tem vontade de estabelecer uma relação
sexual ou romântica? Por que o sexo ou uma relação romântica tem de ser um
desejo de todas as pessoas?

1.6 Resumo

Nos últimos anos, uma série de avanços somaram-se a essas conquistas, como a
regulamentação da união estável e do casamento entre pessoas do mesmo sexo/
gênero, o reconhecimento dessa união como uma entidade familiar, assim como
a extensão do direito à adoção para casais e pessoas LGBTQIA+. Essas conquistas

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 27


reiteram direitos, garantindo mais equidade e diminuindo desigualdades
sociais (materiais e simbólicas), deixando pessoas LGBTQIA+ mais protegidas e
empoderadas para confrontarem os desafios de viver em uma sociedade (ainda em
muitos aspectos) heteronormativa.

Depois de ler e de assistir tudo isso, você provavelmente consegue perceber que a
sexualidade pode ser vivida de formas bastante diversas e que reduzi-la apenas à
heterossexualidade é preconceituoso, discriminatório e violento, pois consiste num
desrespeito a todas as outras formas de viver o desejo sexual e o afeto.

Mais ainda, impor a heterossexualidade a pessoas que não se sentem confortáveis


com esta orientação sexual é uma violência que produziu e segue produzindo muito
sofrimento. Essa imposição não acontece só de forma direta, mas também quando
invisibilizamos, estigmatizamos e atacamos as lesbianidades, homossexualidades,
bissexualidades ou assexualidades e todas as orientações sexuais que se constroem
fora do binarismo de gênero.

Negar o direito das pessoas ao acesso à informação sobre práticas que se


distanciam da heterossexualidade assim como impedir que se discuta sobre
sexualidades diversas na escola, ou em outras insituições sociais, ou ainda censurar
uma obra de arte que fala do assunto é uma forma heteronormativa de impor a
heterossexualidade às pessoas.

A Constituição Federal de 1988 nos garante liberdade e direito à personalidade.


Esses são direitos básicos garantidos a todas, todes e todos nós, seja qual for a
forma que temos de desejar, amar ou de nos relacionar.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 28


Módulo

3 Cultura e Políticas Públicas para


LGBTQIA+: Avanços e Desafios
Neste módulo, vamos pensar sobre as mudanças culturais e os avanços nas políticas
públicas voltadas para pessoas LGBTQIA+, como o reconhecimento do casamento
entre pessoas do mesmo sexo/gênero e o direito à mudança do nome de registro
civil para pessoas trans. Vamos discutir como essas mudanças convivem ainda com
a cultura do estigma e do preconceito e como esses avanços são vividos de formas
diferentes por toda essa comunidade LGBTQIA+, a partir das suas diferenças.

Unidade 1: O panorama, os avanços e os desafios


do Brasil frente às questões das pessoas
LGBTQIA+

Identificar as mudanças culturais e os avanços nas políticas


públicas voltadas para pessoas LGBTQIA+ e compreender como
esses avanços são vividos de formas diferentes pela comunidade
LGBTQIA+, a partir das suas diferenças.

1.1 Panorama brasileiro

Nas últimas décadas, tem ocupado espaço, no debate público brasileiro, questões
ligadas a como vivemos e expressamos nossas relações afetivas e sexuais e nossa
identidade de gênero. Embora novos sentidos tenham sido elaborados, persiste um
ordenamento que define um número bastante restrito de identidades e práticas
como norma regulatória, enquanto aquelas/es que não atendem o padrão ficam
sujeitos à invisibilidade social, ao estigma, ao preconceito, à discriminação e às
violações de direitos e violências.

O Brasil mantém, no comparativo com outros países, posição frágil quanto à


superação da violência e à garantia dos direitos de pessoas LGBTQIA+. Como mostra
a pesquisa por Gustavo Venturi e Vilma Bokany (2011), intitulada Diversidade Sexual

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 29


e Homofobia no Brasil – Intolerância e Respeito às Diferenças Sexuais, realizada pela
Fundação Perseu Abramo em todo o país, o estigma ainda marca as percepções
de grande parte da população brasileira. No levantamento, cerca de um terço das
pessoas que responderam admitem ter preconceito contra pessoas LGBTQIA+. Este
é um percentual bastante elevado na comparação com levantamentos semelhantes
sobre outros grupos, como pessoas negras e idosas, por exemplo. Quando indagada
sobre a existência ou não de preconceito contra as pessoas LGBTQIA+ no Brasil,
quase a totalidade da população responde que sim: o preconceito existe. Ou seja, a
LGBTQIA+fobia é uma realidade na vida cotidiana dessas pessoas.

Embora a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersex


(ILGA) enquadre o Brasil entre os países que garantem direitos ligados à orientação
sexual e desenvolvem políticas de reconhecimento e enfrentamento à violência
LGBTQIA+fobia, este não é um dado que pode ser celebrado em si mesmo
considerando os números de casos de violência registrados. Mesmo com o descaso
na produção de dados oficiais e com as subnotificações, é importante destacar
iniciativas sobre a visibilidade do tema. A falta de dados consolidados é um problema
das políticas públicas destacado por toda a sociedade civil organizada em prol de
direitos LGBTQIA+ há décadas. Neste sentido, apresentamos iniciativas de coleta de
dados que trazem à tona a necessidade emergencial de políticas públicas sociais de
segurança e proteção.

Segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde - PNS, na qual foi incluída pela primeira
vez a pergunta sobre orientação sexual autoidentificada da população adulta, em
2022, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, no Brasil,
2,9 milhões de pessoas de 18 anos ou mais se declaram LGBTQIA+. No entanto, o
IBGE destaca que este número registrado na pesquisa pode estar subnotificado,
considerando que o estigma e o preconceito por parte da sociedade são fatores
que podem fazer com que as pessoas não se sintam seguras em declarar a própria
orientação sexual. Além disso, só é possível registrar essa informação se a pessoa
reside em união estável ou casamento com a pessoa responsável pelo domicílio. Ou
seja, pessoas que residem sozinhas, ou que residem com a família e não tem sua
orientação sexual respeitada no domicílio não constarão desses dados.

É importante também destacar que a identidade de gênero não é uma categoria


desta pesquisa, o que leva a subnotificação de pessoas trans, binárias e não- bináries.

De acordo com dados da então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da


República, hoje Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, só em 2012, foram
registradas pelo poder público, em um contexto de acentuada subnotificação, 3.084
denúncias de 9.982 violações relacionadas a pessoas LGBTQIA+, envolvendo 4.851
vítimas e 4.784 suspeitos. Ao longo dos anos que se seguiram a este, é possível
identificar um descaso ainda maior com os dados referentes às pessoas LGBTQIA+,
o que remete às produções da sociedade civil.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 30


A violência contra a população LGBTQIA+ apresentou significativo crescimento,
conforme evidenciado pelos dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022):
35,2% a mais de agressões, 7,2% a mais de homicídios e 88,4% a mais de estupros
das pessoas autoidentificadas como tais (FBSP, 2022).

Segundo o Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras


em 2021, elaborado pela ANTRA - Associação Nacional de Travestis e Transexuais,
apenas no ano de 2021 ocorreram pelo menos 140 (cento de quarenta) assassinatos
de pessoas trans, sendo 135 (cento e trinta e cinco) travestis e mulheres transexuais,
e 05 (cinco) casos de homens trans e pessoas transmasculinas.

O Atlas da Violência (2021), produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada


- Ipea - e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública - FSB destaca um capítulo
sobre “Violência contra a população LGBTQI+”, indicando denúncias registradas pelo
Disque 100, do à época denominado Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos, e dos registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação
(Sinan), do Ministério da Saúde. Um dos destaques é a subnotificação que indica
a necessidade emergencial de mensuração e incidência sobre o fenômeno da
violência LGBTQIA+fóbica. O relatório apresenta uma redução do registro de
denúncias do Disque 100 no ano de 2019. A análise dessa redução atenta para que
os números estão subestimados, considerando que esta curva não representa a
série histórica mantida desde 2011, e em contraponto com o SINAN, plataforma que
registra em âmbito nacional as notificações de violência na área da saúde e que os
dados não tiveram redução. Portanto, esta queda não representa que a violência
LGBTQIA+fóbica tenha reduzido, mas que as pessoas que sofreram violência não
denunciaram a este serviço, ora pela falta de prioridade política ou financeira dada
ao órgão ao Disque 100 como um espaço de denúncias de violência contra pessoas
LGBTQIA+, considerando a perspectiva conservadora e a negação de direitos às
pessoas LGBTQIA+ do último período.

O SINAN registra dados separados de identidade de gênero e orientação sexual,


visando respeitar estas diferenciações. O Atlas da Violência (2021) destaca que
nem sempre estes campos são preenchidos na notificação das violências, o que
causa uma evidente subnotificação nos dados consolidados. Estas duas variáveis
foram incorporadas ao SINAN em 2014, e ainda pode ser um período recente para a
compreensão das pessoas responsáveis pelo preenchimento da importância desta
dimensão.

No campo da orientação sexual, o Atlas da Violência (2021) apresentou um


crescimento bruto de 5% nas violências contra homossexuais e 37,1% nas violências
contra bissexuais, passando de 4.855 registros no SINAN em 2018 para 5.330 em
2019. Entre a população trans verifica-se aumento do valor bruto das notificações
de violência física em 5,6%, quanto à psicológica, de 13,5%. Notificações de tortura
reduziram 3,4% e outros tipos de violência aumentaram em 30%. Quanto á idade das
vítimas LGBTQIA+, os dados do SINAN demonstram que a juventude é o período de

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 31


maior vulnerabilidade à violência havendo concentração muito maior de violências
contra jovens homossexuais e bissexuais, do que contra heterossexuais. Enquanto
jovens heterossexuais de 10 a 19 anos compõem 44,6% das vítimas heterossexuais
de violências registradas pelo Sinan, bissexuais adolescentes e jovens de 10 a 19 anos
correspondem a 59,5% das vítimas, e homossexuais a 44,7% das vítimas. Os dados
não apresentaram preenchimento dos campos cis e trans afim de ser possível realizar
esta comparação. em 2019. Entre a população trans verifica-se aumento do valor
bruto das notificações de violência física em 5,6%, quanto à psicológica, de 13,5%.
Notificações de tortura reduziram 3,4% e outros tipos de violência aumentaram em
30%. Quanto á idade das vítimas LGBTQIA+, os dados do SINAN demonstram que a
juventude é o período de maior vulnerabilidade à violência havendo concentração
muito maior de violências contra jovens homossexuais e bissexuais, do que contra
heterossexuais. Enquanto jovens heterossexuais de 10 a 19 anos compõem 44,6% das
vítimas heterossexuais de violências registradas pelo Sinan, bissexuais adolescentes
e jovens de 10 a 19 anos correspondem a 59,5% das vítimas, e homossexuais a
44,7% das vítimas. Os dados não apresentaram preenchimento dos campos cis e
trans afim de ser possível realizar esta comparação.

O I LesboCenso Nacional (2022) é uma pesquisa ativista-acadêmica realizada em


sua primeira etapa quantitativa pelas organizações Liga Brasileira de Lésbicas - LBL
e Associação Lésbica Feminista Coturno de Vênus de Brasília - DF, com o objetivo
de mapear o perfil sociodemográfico de lésbicas e sapatão do Brasil. Sapatão foi
utilizado na pesquisa como um termo de empoderamento dessas pessoas. É uma
pesquisa ativista-acadêmica porque foi pensada pelas ativistas dos movimentos
sociais lésbicas feministas e suas ativistas que estão fora da academia e ativistas
pesquisadoras que são professoras universitárias. Passou pelo comitê de ética
universitário, o que garantiu a cientificidade dos dados. A pesquisa prevê ainda mais
duas etapas, a serem realizadas pela Liga Brasileira de Lésbicas - LBL, Articulação
Brasileira de Lésbicas - ABL, Rede Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais
Negras Feministas Autônomas - Rede Candaces, pela Rede Nacional de Ativistas
e Pesquisadoras Lésbicas e mulheres Bissexuais - Rede LésBi Brasil, organizações
nacionais do movimento lésbico feminista, e pela Associação Brasileira de Lésbicas,
gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos - ABGLT, sendo uma pesquisa
qualitativa, com entrevistas em profundidade e outra de incidência política nos
estados e Distrito Federal.

A primeira etapa consistiu em um formulário com informações sobre


autoidentificação, trabalho, educação, saúde, relacionamentos, relações familiares
e redes de apoio que as lésbicas e sapatão possuem nas diversas regiões do país. A
iniciativa busca alterar o cenário de subnotificações de crimes, violação de direitos
e a falta de políticas públicas específicas para lésbicas e sapatão. Foram obtidas
21.051 respostas em diferentes territórios, como bairros centrais, de classe média
e periferias das cidades, favelas, povos do campo, terras quilombolas e indígenas,
povos de terreiro, população em situação de rua e presídios. A média de idade das
respondentes é de 29 anos.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 32


Os dados demonstram que 8 em cada 10 lésbicas e sapatão foram vítimas de
lesbofobia. Além disso, 8 em cada 10 das respondentes conhecem lésbicas ou sapatão
que sofreram lesbofobia. 6,26% das respondentes conhecem alguma lésbica ou
sapatão que foi assassinada por ser lésbica ou sapatão. 63,93% das respondentes já
foram obrigadas a ter relações sexuais com ou sem penetração.

Para a Transgender Europe, associação europeia que coordena um monitoramento


internacional sobre a situação de pessoas transgêneras, o Brasil está entre os
países que não reconhecem uma série de direitos quanto à identidade de gênero e
é apontado, em levantamento próprio, como campeão mundial no assassinato de
pessoas trans, pelo 14⁰ ano consecutivo, com mais de 800 casos reportados entre
2008 e 2015.

Esse estado de coisas vem sendo enfaticamente questionado nas últimas décadas,
a partir da ação de instâncias internacionais, organizações da sociedade civil,
pesquisadoras/es das mais diversas áreas e diferentes movimentos sociais - entre
eles o ativismo LGBTQIA+, que romperam a dicotomia público-privado e investiram
em atuar na dimensão política do sexo/gênero em busca da garantia de direitos. Um
questionamento público que demanda respostas do Estado e da iniciativa privada
e se articula a um conjunto mais amplo de micro atuações cotidianas realizadas por
uma diversidade de pessoas nos mais diferentes espaços sociais.

Atlas da Violência 2021, IPEA/ FSB: https://www.ipea.gov.br/


atlasviolencia/publicacoes

Dossiê da ANTRA sobre assassinatos e violências contra travestis


e transexuais brasileiras em 2021: https://antrabrasil.files.
wordpress.com/2022/01/dossieantra2022-web.pdf

Endereço eletrônico do Lesbocenso com o I Relatório de dados e


outras notícias: https://lesbocenso.com.br/

Notas e dados do Trangender Europe (em espanhol): https://


transrespect.org/es/tmm-update-tdor-2017/

Acesse o Relatório sobre Discriminação e violência contra a


população LGBTQIA+ do Conselho Nacional de Justiça: https://
www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/08/relatorio-pesquisa-
discriminacao-e-violencia-contra-lgbtqia.pdf

Dados abertos do DISQUE 100 sobre denúncias de violação


de direitos humanos contra a população LGBTQIA+: https://
www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/
disque100/balanco-geral-2011-a-2019-populacao-lgbt

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 33


1.2 Avanços e desafios

Desde o processo de reabertura democrática, vem ganhando espaço, no campo


das políticas públicas, iniciativas voltadas para o reconhecimento e enfrentamento
de desigualdades produzidas a partir do modo como nossa sociedade regula as
relações de gênero-sexualidade. Nas últimas décadas, nos governos progressistas
especialmente de 2003 a 2016, foram postas em curso pelo governo federal (com
repercussões regionais e locais) políticas voltadas especificamente para a promoção
dos direitos das pessoas LGBTQIA+.

Se nos anos 1980 elas ainda se restringiam às políticas de saúde, especialmente as


voltadas ao enfrentamento da epidemia de HIV/aids, nos anos 1990 elas começaram a
alcançar outros campos. Embasadas pela Constituição Federal de 1988 e fortalecidas
pelo Ciclo Social da ONU dos anos 1990, essas políticas vão se expandir ao longo dos
anos 2000 com a criação de estruturas no Estado dedicadas especificamente a elas.
Nesses anos, ampliaram-se as políticas voltadas ao reconhecimento da diversidade
sexual e de gênero, com foco na promoção dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais e no combate à discriminação e à violência por orientação
sexual ou identidade de gênero.

Em 2002 foi aprovada a segunda versão do Programa Nacional de Direitos


Humanos (PNDH-II), onde já se pode encontrar tópicos, dentro dos capítulos sobre
“garantia do direito à livre expressão” e “garantia do direito à igualdade”, dedicados
especificamente a “Gays, Lésbicas, Travestis, Transexuais e Bissexuais – GLTTB”. O
PNDH-II propôs ações em diferentes áreas da política pública, desde produção de
dados sociodemográficos, passando pelo enfrentamento à violência e chegando a
políticas de formação de profissionais de educação. Orientação sexual ainda aparece
em outros tópicos do documento, como em tópicos sobre adoção, mercado de
trabalho e políticas de enfrentamento ao HIV (Vírus da Imunodeficiência Adquirida).
O documento já propunha também o apoio à regulamentação de uma “lei de
redesignação de sexo e mudança de registro civil para transexuais”. A versão mais
recente do Programa, o PNDH III (2009) ampliou o conjunto de ações voltadas a
pessoas LGBT, tornando a promoção dos seus direitos uma política transversal.

Em 2004, foi lançado pelo governo federal o Programa “Brasil sem Homofobia (BSH)”,
com o objetivo de “promover a cidadania de gays, lésbicas, travestis, transgêneros
e bissexuais, a partir da equiparação de direitos e do combate à violência e à
discriminação homofóbicas”. O programa mobilizou instituições públicas e privadas
em diferentes campos, da saúde pública ao mercado de trabalho, da segurança à
educação. Algumas ações realizadas a partir do BSH:

• criação dos Centros de Referência em Direitos Humanos de Combate à


Homofobia;
• realização de duas Conferências Nacionais LGBT;

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 34


• criação da Coordenação Nacional de Promoção dos Direitos LGBT;
• estabelecimento do Dia Nacional de Combate à Homofobia (17 de maio);
• formulação da Política Nacional da Saúde LGBT;
• parecer da Advocacia-Geral da União favorável ao reconhecimento da
união estável homoafetiva para o pagamento de benefícios
previdenciários;
• resolução acerca do tratamento a pessoas LGBT em situação de privação
de liberdade;
• ampliação de cirurgias de redesignação e tratamento hormonal seguro
para pessoas trans no Brasil;
• lançamento do Relatório de Assassinatos e Violência contra LGBTs no
país;
• inclusão de denúncias de violência contra LGBTs no Disque Direitos
Humanos;
• estabelecimento da obrigatoriedade do cadastro de violência homofóbica
e transfóbica no Sistema Único de Saúde;
• reconhecimento pelo MEC da identidade de gênero de pessoas trans na
educação básica e no ensino superior.

Toda essa atuação do Estado, a partir do governo federal e em parceria com estados
e municípios, precisa ser contextualizada no processo histórico de disputa cultural.
Os preconceitos, discriminações e as desigualdades ainda arraigadas na nossa
sociedade são o alvo e um dos maiores desafios para a própria execução de políticas
públicas voltadas a pessoas LGBTQIA+.

A invisibilidade institucional nas políticas públicas no Brasil e a inserção das


demandas dos grupos organizados em prol dos direitos pela livre orientação sexual
e identidade de gênero são fatores que vêm sendo enfrentados principalmente
a partir da década de 2000 no Brasil, através da organização do programa “Brasil
Sem Homofobia” (2004), transformado após a I Conferência Nacional LGBT (2008),
em Plano Nacional de Políticas Públicas e Promoção da Cidadania LGBT (2009),
ancorado na também na criação da Coordenação Nacional LGBT. Em 2009, com
a criação da “Coordenação Geral de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais” (Decreto nº 6.980, de 13 de outubro de 2009),
da então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o Programa
“Brasil sem Homofobia” deixa de existir. Atualmente, esta Coordenação é, desde o
início de 2023, a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ alocada no
Ministério de Direitos Humanos e Cidadania. Sua estrutura regimental foi publicada
no Decreto nº 11.341, de 1º de Janeiro de 2023.

Outro destaque na busca e na conquista de direitos de pessoas LGBTQIA+ são


as Conferências Nacionais realizadas nos anos de 2008, 2011 e 2016. Estes
documentos expressam as deliberações das pessoas LGBTQIA+ considerando suas
especificidades de raça, gênero e regionalidades e são importantes instrumentos
para as políticas públicas. Incluir as demandas das pessoas LGBTQIA+ em políticas

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 35


sociais públicas, em especial assistência social, educação, saúde, trabalho, cultura,
habitação, segurança pública, trabalho e renda é crucial para o enfrentamento das
discriminações e consolidação da proteção social.

Uma data importante para a luta pelos direitos das pessoas LGBTQIA+ é o 17 de Maio,
Dia Internacional de Combate a LGBTQIA+fobia. Nesta data, em 1990, a Organização
Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da lista de distúrbios mentais da
Classificação Internacional de Doenças (CID). Nestes tempos de fundamentalismos
exacerbados, econômicos e religiosos, é importante que programas e projetos
reconheçam a diversidade a partir da perspectiva dos direitos humanos e possam
ter, para além da regulação, uma processualidade para que sua execução contribua
para uma institucionalidade democrática.

A expressão da maturidade do movimento internacional de direitos humanos, e em


específico, dos direitos sexuais, é afirmada nos Princípios de Yogyakarta (2007), sobre
a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação
sexual e identidade de gênero, aplicadas em situações de discriminação, estigma e
violência experimentadas por pessoas ou grupos em razão da sua orientação sexual
e identidade de gênero. O princípio 13, que trata do “Direito à Seguridade Social e
a outras medidas de proteção social” cita que os Estados deverão: “Tomar todas as
medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar
o acesso a estratégias e programas de redução da pobreza, sem discriminação por
motivo de orientação sexual ou identidade de gênero” (Princípios de Yogyakarta,
2007, p.22).

Esse documento foi atualizado em 2017, pela inserção de 9 princípios e de obrigações


estatais adicionais. Assim, em seu princípio 30, intitulado “O Direito à Proteção do
Estado”, defende que: “Toda pessoa, independentemente da sua orientação sexual,
identidade de gênero, expressão de gênero ou características sexuais, tem direito à
proteção do Estado contra qualquer forma de violência, discriminação ou qualquer
outro dano, seja cometido por agentes estatais ou por qualquer indivíduo ou grupo.”
(Princípios de Yogyakarta, 2017, p.9).

Leia na íntegra os princípios de yogyakarta: http://www.clam.


org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf

https://www.mpf.mp.br/pfdc/midiateca/outras-publicacoes-
de-direitos-humanos/pdfs/principios-de-yogyakarta-
mais-10-2017-1/view

Decreto que instituiu o dia nacional de combate à LGBTQIA+fobia:


https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/dnn/
dnn12635.htm

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 36


1.3 O reconhecimento das famílias lesboafetivas,
homoafetivas, biafetivas e transafetivas

Avaliar o impacto dessas políticas é difícil, especialmente na sua dimensão simbólica,


mas algumas transformações parecem evidentes. As relações lesbohomoafetivas,
por exemplo, estão hoje mais reconhecidas e protegidas juridicamente que antes.
Provocado pela Procuradoria Geral da República e pelo governo do Estado do Rio de
Janeiro, em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu como entidade
familiar a união estável entre pessoas do mesmo sexo/gênero, garantindo-lhes os
mesmos direitos conferidos às uniões heterossexuais. Em 2013 o Conselho Nacional
de Justiça (CNJ) aprovou a resolução que obriga todos os cartórios do país a celebrar
casamentos entre pessoas do mesmo sexo/gênero, removendo os obstáculos
administrativos à efetivação da decisão do Supremo. O Censo de 2010, que pela
primeira vez abriu a oportunidade de registrar uma/um cônjuge do mesmo sexo/
gênero da pessoa responsável pelo domicílio, identificou cerca de 58 mil residências
ocupadas por casais de lésbicas ou de gays. No Brasil, desde 2011, duas pessoas do
mesmo sexo/gênero já podem se casar e adotar filhas/os, e sua união é reconhecida
como uma família.

O Supremo Tribunal Federal reconheceu a união lesbohomoafetiva (julgamento da


ADI 4277 e da ADPF 132), promulgando a união estável para casais do mesmo sexo/
gênero. A decisão tem efeito vinculante e se estende para toda a sociedade.

Outro importante avanço no campo jurídico é a Resolução nº 175 do Conselho


Nacional de Justiça - CNJ, publicada em 2013. O texto proíbe as autoridades
competentes de se recusarem a habilitar, celebrar casamento civil ou converter
união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo/gênero.

Esse avanço no campo jurídico não corresponde, no entanto, às disputas na esfera


legislativa. Desde as discussões sobre a regulação da união civil entre pessoas do
mesmo sexo/gênero nos anos 1990, até o atual debate acerca do casamento civil
igualitário, nenhum projeto de lei ou emenda constitucional foi, até o momento,
posto em votação no plenário da Câmara ou do Senado.

Acesse a Resolução do CNJ: https://www.cnj.jus.br/wp- content/


uploads/2013/07/resolucao_175_14052013_16052013105518.pdf

Ouça a música Duas Mães e leia a reportagem que segue sobre


diversas famílias lesboafetivas: https://www.youtube.com/
watch?v=ROoAhKaBQJ8

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 37


https://www.uol.com.br/universa/colunas/2021/10/22/
representatividade-familia- nanda-costa-lan-lanh.htm

Conheça o grupo Mães pela Diversidade: https://www.youtube.


com/watch?v=UBnyl87G-QA

1.4 Reconhecimento civil de identidades de gênero

O reconhecimento civil de diferentes identidades de gênero é hoje tema em franco


debate público. Pessoas trans têm experimentado maior visibilidade positiva
nos meios de comunicação e conquistado mais espaço na disputa política. O
reconhecimento do nome, a mudança do registro civil e o tratamento de acordo
com sua identidade de gênero vêm sendo reconhecidos na administração pública
e no setor privado, não sem considerável resistência. Ao mesmo tempo, a exclusão
civil e social, a dificuldade em acessar os serviços públicos e o mercado formal de
trabalho, a desigualdade socioeconômica e a violência física - recorrentemente fatal
- ainda marcam a experiência de pessoas trans no Brasil.

É importante lembrar que identidade de gênero é a dimensão da


identidade de uma pessoa que diz respeito a como ela se relaciona
com as representações de feminilidade e masculinidade padrão
vigentes em cada cultura e momento histórico, e como isso
se traduz na autopercepção que tem de si, na sua expressão e
identificação social. A construção dessa dimensão da identidade
é um processo permanente, complexo e dinâmico realizado por
todas as pessoas - mesmo que isso não seja evidente -, o que
significa que todas as pessoas têm uma identidade de gênero.
A identidade de gênero não necessariamente guarda relação
com o sexo/gênero atribuído no nascimento e não tem nenhuma
relação com orientação sexual.

Essa identidade pode ou não corresponder à expectativa da maioria das pessoas e


instituições sociais com quem a pessoa tem de se relacionar na vida em sociedade, o
que, aliado a processos históricos de hierarquização nas relações sociais de gênero,
faz com que a identidade de gênero de algumas pessoas seja reconhecida, enquanto
a de outras não. Esse não reconhecimento se materializa inclusive em processos
violentos. O conceito de identidade de gênero permite que se possa reconhecer
o direito de cada pessoa à livre construção da sua personalidade na relação com
as concepções de feminilidade e masculinidade disponíveis na cultura. Além disso,
reitera o direito ao próprio corpo e se constitui num conceito fundamental para
compreender a experiência de pessoas travestis e transexuais - embora não se
restrinja a elas.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 38


No processo de construção de sua identidade de gênero, grande parte das pessoas
trans assumem um nome que vem substituir, em suas relações sociais, o nome de
registro civil. A assunção desse nome social não é mera superficialidade ou capricho.
Nome social não é apelido! Pelo contrário, o nome faz parte da afirmação de sua
identidade. Quando alguém ou alguma instituição não se dirige a uma pessoa
trans usando o nome com o qual ela se identifica e que reflete sua identidade de
gênero, estão negando o reconhecimento de sua própria identidade e cometendo
transfobia. A ausência do reconhecimento e do respeito do nome pelo qual a
pessoa trans se reconhece é um dos fatores que contribui para que essa pessoa se
torne mais vulnerável e exposta a situações de violência e discriminação. Quando
as instituições sociais não respeitam o nome social, como é denominado, acabam
expulsando as pessoas trans de instituições importantes para a inserção social e
acesso aos direitos básicos, como a escola e as unidades de saúde, por exemplo.
Reconhecer e Respeitar o nome social de pessoas trans é uma questão ética de
humanidade que deve ser colocada em prática em todos os espaços.

Em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade,


autorizar pessoas trans a alterarem o nome no registro civil. Com a decisão, qualquer
pessoa trans poderá se dirigir diretamente a um cartório e solicitar a mudança,
atestada por autodeclaração, sem precisar de laudos médicos e sem necessidade
de qualquer intervenção cirúrgica, sendo suficiente o procedimento realizado no
cartório de registro civil.

Outro importante avanço quanto aos direitos de pessoas LGBTQIA+ é a equiparação,


realizada pelo Supremo Tribunal Federal - STF, do enquadramento de crimes previstos
na Lei Federal nº 7.716/2018, que define os crimes decorrentes de preconceito de
raça ou de cor. Ainda que sejam sistemas de opressão historicamente diferentes, a
decisão do STF foi no sentido de atuar num vácuo do legislativo brasileiro. Ou seja:
até que o Congresso Nacional edite uma lei específica, as condutas de LGBTQIA+fobia
serão enquadradas como crime de racismo. A decisão foi tomada no julgamento
da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de
Injunção (MI) 4733.

O Decreto n. 8727 assinado pela Presidenta Dilma Rousseff em


2016 dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento
da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no
âmbito da administração pública federal direta, autárquica e
fundacional: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2016/decreto/d8727.htm

Lei n. 14.382/ 2022 - Dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 39


Registros Públicos (Serp) e permite que qualquer pessoa acima de
18 anos possa modificar o próprio nome diretamente no cartório
de registro civil: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2022/lei/L14382.htm

Conheça o Diagnóstico sobre o acesso à retificação de nome e


gênero de travestis e demais pessoas trans no Brasil - ANTRA:
https://antrabrasil.files.wordpress.com/2022/11/diagnostico-
retificao-antra2022.pdf

Assista ao vídeo sobre a importância do respeito ao nome social


e do reconhecimento civil: https://portal.trt12.jus.br/videos/
nome-social-e-direito-de-todos-e-todas

https://youtu.be/yjXSU53pZAc

Assista aqui a íntegra do julgamento do Supremo Tribunal


Federal (STF), que entendeu que houve omissão inconstitucional
do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize
atos de LGBTQIA+fobia: https://www.youtube.com/
watch?v=qZUGC_l_0GY

1.5 Muitas letras, muitas histórias, muitas vidas

Esses avanços não foram vividos da mesma forma por toda a comunidade LGBTQIA+,
e grupos diferentes dentro dessa comunidade se deparam ainda hoje com desafios
por vezes distintos. Existem disparidades significativas entre pessoas LGBTQIA+
quanto ao acesso a direitos, aos serviços públicos e ao mercado de trabalho, tanto
pelas especificidades dos segmentos sociais que compõem esse grupo, quanto pela
intersecção da identidade de gênero e da orientação sexual com outros marcadores
sociais da diferença, como raça, etnia, classe social, deficiência, territorialidade,
religiosidade e geração.

A branquitude, assim como a heterossexualidade e a cisgeneridade, consiste num


regime de poder que institui normas regulatórias de raça que opõe hierarquicamente
pessoas de cor de pele distintas, garantindo e sustentando o privilégio das pessoas
brancas numa sociedade racista como a nossa. A branquitude foi o que criou e faz
funcionar o racismo estrutural e estruturante que nega direitos às pessoas negras
e indígenas enquanto privilegia pessoas brancas. A branquitude foi responsável
também por um dos maiores crimes contra a humanidade, a escravização de
pessoas negras. Até hoje, a violência desse processo se faz sentir todos os dias nas
vidas de pessoas negras em nosso país.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 40


Embora as vivências de pessoas LGBTQIA+ questionem o mesmo grande sistema
heterocisnormativo, fazem isso a partir de argumentações e de ações distintas - o
que gera experiências, demandas e desafios diferentes. As sexualidades diversas
questionam a matriz de “naturalização” da heterossexualidade, os modelos
tradicionais de família e os tabus relacionados a práticas sexuais e a outras formas
de conjugalidade, além de problematizar as hierarquias entre masculinidade
e feminilidade. A vivência de pessoas LGBTQIA+ questiona a “naturalização” da
cisnormatividade, a imposição de um gênero a partir de um determinado corpo e as
definições do que é ser homem e ser mulher. Corpos LGBTQIA+ negros e indígenas
também questionam a “naturalização” da branquitude.

Entender a diferença conceitual entre orientação sexual e identidade de gênero


é o início, mas não é suficiente para compreender as diferenças que marcam a
experiência de pessoas LGBTQIA+. O primeiro movimento é entender que isso a que
chamamos de “comunidade LGBTQIA+” é um grupo muito amplo, não homogêneo,
que reúne pessoas cuja vivência é muito diversa. Não existe uma “pessoa LGBTQIA+”.
Existem pessoas lésbicas, pessoas gays, pessoas bissexuais, pessoas trans, pessoas
queer, pessoas assexuais, pessoas não-bináries… E ainda não existe uma única
forma de se colocar no mundo como lésbica, gay, bissexual, trans, queer, assexual
ou não-binárie. Enfim, uma série de pessoas que compartilham certos aspectos nas
suas vivências e que na história recente se organizaram em um ativismo conjunto.
Enquanto para lésbicas, gays e bissexuais, por exemplo, o ponto de convergência é a
sexualidade, para pessoas trans, a questão central é a identidade de gênero. Isso faz
com que existam, dentro deste grande grupo LGBTQIA+, experiências e demandas
diferentes. Por exemplo, enquanto a possibilidade do casamento civil entre pessoas
do mesmo sexo/gênero foi por muito tempo uma questão importante para pessoas
Lésbicas, gays e bissexuais, o reconhecimento da identidade de gênero e o acesso a
saúde, educação e emprego já era o foco de pessoas trans.

O segundo passo é entender que, embora organizados em grupos diferentes, estes


grupos não são mutuamente excludentes, mas eventualmente se entrecruzam.

Identidade de gênero e orientação sexual são dimensões distintas.


Isso significa que pessoas trans, tanto quanto pessoas cis, podem
ser lésbicas, gays, bissexuais, pansexuais, assexuais ou, dizendo
de outro jeito, que também existem lésbicas, gays, bissexuais,
pansexuais e assexuais trans. Na vida concreta, as diferentes
combinações possíveis entre identidade de gênero e orientação
sexual produzem experiências distintas e, a depender do contexto
e da situação, colocam desafios que não são simplesmente o
resultado da soma dessas duas dimensões.

Mulheres trans lésbicas, por exemplo, vão enfrentar o desafio de vivenciar relações
afetivas e sexuais em uma comunidade lésbica majoritariamente cis e transfóbica,
em que ainda proliferam discursos que vão rejeitar os seus corpos, excluí-los da

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 41


possibilidade de desejo ou afeto, ou exoticizá-los e objetificá-los sexualmente. Embora
mulheres trans lésbicas compartilhem com outras pessoas trans as dificuldades de
acesso ao mercado de trabalho ou aos processos processos de transição de gênero
e possam, tal qual lésbicas cis, serem alvo de violência lesbofóbica ou ao lesbo-ódio
na rua, há vivências que são produzidas especificamente na intersecção entre se
autoidentificar e autoafirmar lésbica lésbicas e trans - e que não são compartilhadas
por outras lésbicas ou por outras pessoas trans.

O terceiro passo é perceber que esses grupos também não são homogêneos
no seu interior. Lésbica, gay, bissexual, pansexual e assexual são algumas das
possibilidades de identificação que não dão conta de todas as experiências não-
heterossexuais, lesbobihomoafetivas ou lesbobihomoeróticas. E há sempre novas
formas de expressão e identificação surgindo, o que faz com que o reconhecimento
seja um exercício permanente.

O quarto e último movimento é entender que identidade de gênero e orientação


sexual se interseccionam com outras dimensões da nossa vida em sociedade. O fato
de as experiências de pessoas LGBTQIA+ coincidirem em uma dimensão (a orientação
sexual ou a identidade de gênero, por exemplo), não significa que elas coincidem em
outros aspectos, como o pertencimento racial, a deficiência ou a condição econômica,
por exemplo. E estas outras dimensões podem ser mais significativas na experiência
de uma pessoa do que sua orientação sexual ou identidade de gênero. Estes outros
pertencimentos, em conexão, vão produzir vivências específicas, que não podem
ser entendidas se olhamos apenas as categorias-experiência de orientação sexual/
identidade de gênero de forma isolada.

A experiência de ser lésbica é consideravelmente distinta se


você for uma lésbica negra ou branca, uma mulher cis ou trans,
adolescente, adulta ou idosa, nascida numa família rica ou
pobre, vivendo no campo ou na periferia de uma grande cidade,
com ou sem deficiência, adepta de religião cristã ou de matriz
africana. Uma pessoa trans com alto poder econômico pode
acessar processos de transformação corporais de transição
mais difíceis, ou mesmo inviáveis, para quem não tem recursos
financeiros suficientes para tal. Para uma travesti que cresce
longe dos centros urbanos, a falta de acesso à informação ou
a serviços especializados de saúde pode significar a diferença
entre um tratamento seguro e o uso de técnicas agressivas e
danosas (como injetar silicone industrial ou tomar hormônios
sem orientação médica), o que pode trazer consequências ainda
mais severas para a saúde.

Como você pode ver, não existe UMA experiência LGBTQIA+, mas várias. E quando
pensamos de forma generalizada, o que estamos fazendo é analisar UMA ENTRE
VÁRIAS vivências possíveis e, com isso, acabamos por invisibilizar e excluir outras

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 42


que deveriam ter a mesma importância.

Se quando pensamos em pessoas LGBTQIA+ a única imagem que nos vem à cabeça
é a de um casal de homens gays brancos, jovens, malhados de academia, com
emprego e bom salário, vivendo na área nobre da cidade, estamos alcançando
apenas a vivência de um percentual muito pequeno do universo de pessoas
LGBTQIA+. Imagine quantas outras vivências ficaram de fora desse pensamento.

Se você agora conhece melhor os avanços na garantia dos direitos de pessoas


LGBTQIA+ nos últimos anos, tenha em mente que esses avanços e desafios são
vividos de formas diferentes por essa grande comunidade, e que há vivências
diferenciadas que precisam ser consideradas quando pensamos em ações e políticas
públicas sociais para seguir avançando na promoção dos direitos dessas pessoas.

1.6 Para seguir avançando

A partir de tudo o que lemos e vimos, é possível perceber que vivemos um histórico
de avanços no que diz respeito aos direitos de pessoas LGBTQIA+, embora ainda
permaneça um quadro contraditório. Se estes grupos e pessoas estão, hoje,
mais protegidos e reconhecidos, persistem percepções negativas sobre práticas
e identidades que fujam à heterocisnorma, e têm se organizado e mobilizado
movimentos sociais contrários às recentes conquistas e mudanças nesse campo. Ao
mesmo tempo, os acontecimentos das últimas décadas produziram transformações
estruturais no campo da cultura e das relações sociais que nos colocam em um outro
patamar no que diz respeito às relações de gênero e sexualidade. Se na comparação
com um quadro ideal de acesso a direitos ainda há muito o que percorrer, quando
analisamos o ambiente cultural, político e jurídico do século XX, avançamos
consideravelmente no reconhecimento das diferenças de orientação sexual e
identidade de gênero. E é desse novo patamar, com grupos sociais historicamente
marginalizados mais reconhecidos e empoderados, que iniciamos um novo período
de intensa disputa cultural.

A afirmação da diversidade e da igualdade, em articulação, tem sido o princípio


orientador das políticas públicas sociais no Brasil, nas últimas décadas. O processo
de superação de hierarquizações, discriminações e desigualdades traz consigo,
invariavelmente, algum tensionamento, na medida em que afeta privilégios de
pessoas e instituições que se constituíram como hegemônicas no campo material,
político e simbólico. Nesse sentido é fundamental que as instituições públicas
continuem progredindo na direção de garantir os direitos de todas as pessoas, em
igualdade de condições de acesso, de permanência e equidade como preconiza a
Constituição Federal Brasileira de 1988.

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Para refletir, conheça a história de Neon Cunha:

https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/lgbt/ele-e-ela-ou-
nao-sera-ninguem- por-debora-diniz/

https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/
causadores-neon- cunha/#page1

Conheça a história de Anderson Herzer, primeiro homem trans


que teve sua autobiografia e um livro de poemas publicado no
Brasil (A Queda para o Alto):

https://diplomatique.org.br/herzer-queria-que-as-pessoas-
fossem-mais-humanas/

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Módulo

4 Direito ao Corpo e à Saúde


Você já parou para pensar nas barreiras que as pessoas LGBTQIA+ têm de enfrentar
na sua vida cotidiana? Ou, talvez, que alguns direitos básicos lhes são negados ou
são de difícil acesso, como a saúde por exemplo? Pois é. Vamos falar sobre como a
LGBTQIA+fobia cria barreiras para essas pessoas acessarem os serviços básicos de
saúde e serem compreendidas como usuárias da política pública social de saúde
integral. Vamos discutir o assunto a partir da perspectiva do direito ao próprio corpo.

É importante destacar que no campo dos direitos humanos, os Direitos sexuais e


reprodutivos são uma pauta ampla que trata da saúde de pessoas cisgenêras e de
pessoas trans. No entanto, questões como pobreza menstrual, reprodução assistida,
violência ginecológica e/ou obstétrica, hormonioterapias e demais intervenções
necessárias ou desejadas pelas pessoas LGBTQIA+ ainda são pautas invisibilizadas
para políticas públicas sociais. É necessário incluir de forma ampla na agenda pública
os direitos aos cuidados e atendimento relativos à saúde integral; e visibilizar as
demandas de pessoas LGBTQIA+ que são específicas em cada segmento.

Unidade 1: A saúde e a promoção dos direitos a


saúde das pessoas LGBTQIA+

Compreender as questões que envolvem a saúde e o direito ao


próprio corpo das pessoas LGBTQIA+.

1.1 Saúde integral de pessoas LGBTQIA+

Quando se pensa em saúde das pessoas LGBTQIA+, muitas vezes vêm à cabeça
questões relacionadas aos estigmas da sexualidade, como infecções sexualmente
transmissíveis - ISTs, e HIV/aids considerando o histórico atribuído de forma
preconceituosa, discriminatória e violenta a homens gays quando se deu a epidemia

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 45


de aids no Brasil. Mas a sexualidade - e os problemas de saúde a ela relacionados
- é apenas uma parte das vidas das pessoas LGBTQIA+. Apesar de parecer óbvio,
vale lembrar que as pessoas LGBTQIA+ também enfrentam problemas de saúde
como todas as outras. Mulheres cis lésbicas e bissexuais, assim como homens
trans, precisam de atendimento ginecológico. Homens gays e bissexuais cisgêneros,
mulheres trans e travestis precisam fazer exames preventivos para o câncer de
próstata. E todas as pessoas LGBTQIA+ têm que se preocupar com viroses, diabetes,
hipertensão etc. Os cuidados de saúde voltados a homens gays e bissexuais não se
resumem a HIV/aids, hepatites virais e outras infecções sexualmente transmissíveis.
A relação de pessoas trans com a saúde não se limita a hormonioterapia e
transgenitalização, ou cirurgia para adequação do corpo ao gênero identificado: as
pessoas LGBTQIA+ precisam ser vistas na sua integralidade.

Se existem questões específicas de saúde que demandam políticas e serviços


especializados, é preciso garantir o acesso de pessoas LGBTQIA+ aos serviços de
saúde como um todo. Por isso é importante que profissionais de todas as unidades,
áreas e tipos de serviço compreendam e considerem que há usuárias/os de diferentes
identidades de gênero e orientações sexuais, as/os quais têm direito à saúde, a um
atendimento humanizado, ético e livre de preconceitos e discriminações, isto é, a
um atendimento profissional qualificado e humanizado.

As categorias profissionais que atuam majoritariamente na área da saúde proíbem


quaisquer tratamentos que se oponham a defesa dos direitos humanos e a autonomia
dos sujeitos sociais, como é o caso da discriminação de pessoas LGBTQIA+. Além
da retirada do CID pela OMS explicitada no módulo anterior, o Conselho Federal
de Psicologia do Brasil proibiu todas/os as/os profissionais da área de realizarem
qualquer tipo de tratamento que vise corrigir ou redefinir a orientação sexual da/o
usuária/o. A/O profissional que fizer isso pode até mesmo ter seu registro cassado.
Por isso, é importante que profissionais que atuam nos serviços, sejam eles públicos
ou privados, ajam com responsabilidade por meio da ética profissional.

1.2 Respeito e reconhecimento

A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e


Transexuais, instituída pelo Ministério da Saúde por meio da Portaria nº 2.836/2011,
(que também está em processo de atualização) reafirma o direito das pessoas
LGBTQIA+ à saúde integral, humanizada e de qualidade no Sistema Único de Saúde
(SUS), tanto na rede de atenção básica como nos serviços especializados. Os eixos
operativos desta política tratam de: Acesso da população LGBTQIA+ à Atenção
Integral à Saúde, Ações de Promoção e Vigilância em Saúde para a população
LGBTQIA+ , Educação permanente e educação popular em saúde com foco na
população LGBTQIA+ e Monitoramento e avaliação das ações de saúde para a

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população LGBTQIA+. Conheça as Diretrizes da Política Nacional de Saúde Integral
de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais:

Art. 3º Na elaboração dos planos, programas, projetos e ações de saúde, serão


observadas as seguintes diretrizes:
I - respeito aos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais, contribuindo para a eliminação do estigma, do preconceito
e da discriminação decorrentes da lesbofobia, homofobia, bifobia,
travestifobia e transfobia, consideradas como fatores agravantes na
determinação social de sofrimento e de doença;
II - contribuição para a promoção da cidadania e da inclusão da população
LGBTQIA+ por meio da articulação com as diversas políticas sociais, de
educação, trabalho e segurança, dentre outras;
III - inclusão da diversidade populacional nos processos de formulação,
implementação de outras políticas e programas voltados para grupos
específicos no SUS, envolvendo orientação sexual, identidade de gênero,
ciclos de vida, raça, etnia e território;
IV - eliminação da LGBTQIA+fobia e demais formas de discriminação que
geram a violência contra essas pessoas no âmbito do SUS, contribuindo
para as mudanças na sociedade em geral;
V - implementação de ações, serviços e procedimentos no SUS, com vistas
ao alívio do sofrimento, dor e adoecimento relacionados aos aspectos
de inadequação de identidade, corporal e psíquica relativos às pessoas
transexuais e travestis;
VI - difusão das informações pertinentes ao acesso, à qualidade da atenção
e às ações para o enfrentamento da discriminação, em todos os níveis de
gestão do SUS;
VII - inclusão da temática da orientação sexual e identidade de gênero de
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais nos processos de educação
permanente desenvolvidos pelo SUS, incluindo as/os trabalhadoras/es da
saúde, as/os integrantes dos Conselhos de Saúde e as lideranças sociais;
VIII - produção de conhecimentos científicos e tecnológicos visando à melhoria
da condição de saúde da população LGBTQIA+; e
IX - fortalecimento da representação do movimento social organizado em
defesa dos direitos das pessoas LGBTQIA+ nos Conselhos de Saúde,
Conferências e demais instâncias de participação social.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 47


🔗 Portaria nº 2.836/2011. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/
saudelegis/gm/2011/prt2836_01_12_2011.html

Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais,


travestis e transexuais

https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_
saude_lesbicas_gays.pdf

O primeiro passo para a garantia do direito à saúde de pessoas LGBTQIA+ é o


reconhecimento e o respeito pela pessoa que está usando o serviço. O atendimento
hostil destinado às pessoas LGBTQIA+ na saúde prejudica diretamente a saúde física
e mental dessas pessoas.

De acordo com os dados do I LesboCenso Nacional (2022), 24,98% das lésbicas


e sapatão que responderam a pesquisa afirmaram ter sofrido lesbofobia no
atendimento ginecológico. 72, 94% afirmaram ter medo, receio ou constrangimento
em falar sobre sua orientação sexual em atendimentos de saúde. Isto impacta
diretamente no acesso à saúde, uma vez que em relação a frequência com que
realizam exame ginecológico 26,07% responderam sem regularidade. 12,53%
disseram que nunca fizeram, e 12,28% afirmam que realizam o exame a cada 2 anos.

Desde 2009 é garantida, a pessoas trans, a identificação pelo nome com o qual se
reconhecem – nome social - no Sistema Único de Saúde - Portaria nº 1.820, de 13
de Agosto de 2009. Esse direito independe do registro civil ou de decisão judicial: é
direito de toda pessoa usuária do SUS ser identificada e atendida nas unidades de
saúde pelo nome com o qual se identifica. Desde 2012, o Sistema de Cadastramento
de Usuários do SUS permite a impressão do Cartão SUS somente com o nome social.
Quando um/a profissional da saúde não reconhece a identidade de gênero de
pessoas trans, além de desrespeito e constrangimento, está criando uma barreira
para o acesso de homens e mulheres trans e travestis aos serviços de saúde.

O mesmo vale para orientação sexual: é preciso superar uma perspectiva


heteronormativa, que pressupõe que todas as pessoas são heterossexuais. Os
serviços de saúde devem ser capazes de atender e orientar pessoas das mais
diferentes orientações sexuais. À/Ao profissional de saúde não cabe qualquer
julgamento ou lição moral, isto é antiético e anti profissional. O atendimento em
saúde deve primar pelo respeito à autodeterminação da/o usuária/o.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 48


1.3 O enfrentamento à violência e a promoção em
Saúde para pessoas LGBTQIA+

Conforme a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais,


Travestis e Transexuais a discriminação por orientação sexual e por identidade
de gênero incide na determinação social da saúde, no processo de sofrimento e
adoecimento decorrente do preconceito, da discriminação e do estigma social
reservado às pessoas LGBTQIA+; e o processo de atenção integral à saúde deve
incidir sobre a redução das desigualdades.

Na trajetória histórica da luta por direitos sexuais e reprodutivos da população


LGBTQIA+, o reconhecimento e a proteção são questões centrais. Mesmo com as
especificidades de cada orientação sexual e/ou identidade de gênero, a luta centra-
se na ampliação da promoção à saúde integral.

Como exemplos, podemos pensar nas pessoas trans que, ao assumirem sua
identidade de gênero, desejam iniciar um processo de transição, em direção ao
gênero identificado, que utilize terapias hormonais ou outras intervenções no
campo da saúde. Esse processo é vivenciado de modo particular pelas pessoas trans
e pode incluir (ou não) mudanças na forma como elas expressam o gênero e no seu
corpo. Hoje já existem tecnologias que permitem que pessoas trans transformem
seu corpo de modo a alcançarem uma imagem corporal mais próxima do que
desejam. Desde tratamento hormonal até cirurgias de transgenitalização, são
muitas as possibilidades. Mas atenção: submeter-se a determinadas transformações
corporais não é, de modo algum, o que define uma pessoa trans. Muitas mulheres
e trans e travestis não têm interesse em intervenções cirúrgicas ou mesmo no
tratamento hormonal. Entre as pessoas trans atendidas pelo Transcidadania, por
exemplo, apenas 2% afirmam já ter realizado a cirurgia de transgenitalização e só
26% afirmam ter interesse em realizá-la.

Pesquisadoras/es e ativistas trans têm chamado atenção para o quanto o processo


de transição muitas vezes se dá sob uma perspectiva cisnormativa, convertendo-
se em uma busca por um ideal de corpo feminino ou masculino que tem por
padrão o corpo cisgênero. Reconhecer a autonomia de cada pessoa para definir
sua identidade de gênero significa reconhecer que é possível a uma pessoa com
qualquer corpo se identificar com qualquer gênero. Não há UM corpo feminino ou
masculino, mas vários corpos. É preciso reconhecer e respeitar esta diversidade de
corpos, especialmente se estamos preocupadas/os em cuidar da saúde.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 49


Leia aqui um texto da Dra. Amara Moira: http://midianinja.org/
amaramoira/quem-tem-medo-do-movimento-trans/

Assista a história de paternidades trans: https://www.youtube.


com/watch?v=Hq8Sgbue8YE

Vamos conhecer um pouco dos desafios que as pessoas trans


enfrentam quando o assunto é saúde. Assista este documentário
produzido pelo Ministério da Saúde sobre a experiência de
pessoas trans no SUS: https://youtu.be/luxUb7YaIrc

Para saber mais, acesse a Cartilha Transexualidade e Travestilidade


na Saúde (Ministério da Saúde, 2015): https://bvsms.saude.gov.
br/bvs/publicacoes/transexualidade_travestilidade_saude. pdf

Na questão da saúde de mulheres lésbicas ou bissexuais, uma das maiores


demandas é pela visibilidade. Muitas/os profissionais da saúde lidam com mulheres
pressupondo imediatamente que elas são heterossexuais. Considerando o que já
aprendemos anteriormente sobre a heterossexualidade compulsória, é possível
compreender que essa suposição é resultado de toda a reiteração das normas
de sexualidade as quais essas/es profissionais tiveram acesso nas diferentes
instituições sociais por onde passaram, como na família, na escola, na igreja, na
ciência, no cinema, na televisão, na internet, dentre outras. E muitas vezes, as/os
profissionais da saúde não orientam ou atendem adequadamente uma mulher
lésbica ou bissexual. Reiteramos que segundo dados do I LesboCenso Nacional
(2022), 72.94% das mulheres lésbicas/sapatão relataram que possuíam medo/
receio/constrangimento de falar sobre sua sexualidade/orientação afetivo- sexual
ou falar que é sapatão/lésbica em algum atendimento de saúde.

Para aumentar a informação sobre as violências sofridas pelas pessoas LGBTQIA+,


o SUS atualizou a ficha de notificação de violências do Sistema de Informação de
Agravos de Notificação (SINAN) e incluiu campos para nome social, orientação
sexual e identidade de gênero, além de um campo para reportar qualquer violência
motivada por LBGTBQIA+fobia.

Acesse o estudo da pesquisadora Fernanda Calderaro: Políticas


de saúde voltadas às lésbicas: um estudo sobre as possibilidades de
reverter um quadro histórico de invisibilidade : https://tede2.pucsp.
br/handle/handle/16942

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 50


Acesse o resultado da Oficina sobre atenção integral à saúde de
mulheres lésbicas e bissexuais: https://www.gov.br/mdh/pt-br/
navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/central-
de-conteudos/publicacoes/publicacoes/2014/livreto-atencao-a-
saude-de-mulheres-lesbicas-versao-web.pdf

Assista aqui o programa sobre saúde de mulheres lésbicas e


bissexuais, realizado pela FIOCRUZ: https://www.canalsaude.
fiocruz.br/canal/videoAberto/saude-da-mulher-lesbica-e-
bissexual-les-2007

Assista o filme sobre a história da luta contra HIV/


Aids e seu enfrentamento: https://www.youtube.com/
watch?v=ShaCZ9b1MKs

Assista o debate de especialistas com o Dr. Drauzio Varela


sobre sobre direitos, acolhimento e saúde mental das pessoas
LGBTQIA+ com os convidados Vinícius Borges (infectologista),
Rico Vasconcelos (pesquisador e infectologista), Madalena Soares
(Assistente Social da Casa 1) e Adelmo Filho (psicólogo): https://
www.youtube.com/watch?v=IdhezxGln7Q

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 51


Módulo

5 Direito à Educação
Vamos falar sobre a garantia de um dos direitos básicos a todas as pessoas: a
educação. A educação pública brasileira já havia se aproximado da universalização
do acesso ao Ensino Fundamental. Entretanto, com a pandemia da Covid-19, vimos
as desigualdades de acesso à educação se potencializarem. Com esta questão se
torna urgente também compreender que ainda existem importantes barreiras
que dificultam, quando não inviabilizam, a permanência e o aprendizado de
certos grupos sociais na escola. Da chamada despretensiosamente “brincadeira”,
aparentemente inofensiva, até a violência física ou a exclusão, vamos discutir a
experiência de discriminação vivida por pessoas LGBTQIA+ em espaços educativos,
pensando estratégias para a garantia do seu direito à educação, da educação básica
ao ensino superior.

Unidade 1: A escola como espaço e promotora


dos direitos de todas, todes e todos

Saber identificar os desafios para garantia do acesso à educação


as pessoas LGBTQIA+ e compreender como a educação, em
especial o espaço escolar, pode ser promotora dos direitos das
pessoas LGBTQIA+.

1.1 LGBTQIA+ na escola

Como as nossas escolas lidam com a diversidade sexual e de gênero? Muitas


pesquisas demonstram ambientes escolares marcados pelo machismo, sexismo,
misoginia, LGBTQIA+fobia, heterocisnormatividade, racismo, capacitismo,
preconceito geracional, xenofobia e intolerância religiosa.

Diversos estudos argumentam que estudantes LGBTQIA+, em especial aquelas/


es que transgridem de forma mais expressiva as expectativas sociais de gênero e

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 52


sexualidade, enfrentam processos de discriminação e exclusão em sua trajetória
escolar que prejudicam seu desempenho escolar, quando não inviabilizam seu
direito à educação.

A experiência educacional dessas pessoas é descrita em diferentes estudos como


atravessada por várias formas de violência física e simbólica (agressões físicas e
verbais, discriminação, isolamento, negligência, assédio) que acontecem dentro do
espaço escolar, perpetradas não só por estudantes, como também por gestoras/es
e profissionais da educação.

É importante compreender que brincadeiras e piadas só são saudáveis quando


todas as pessoas envolvidas se divertem. Quando alguém se sente agredida/o, não
se trata de brincadeira ou piada, mas sim de violência e violação de direitos.

Entre 2006 e 2009, foi desenvolvida, pelo Ministério da Educação e pela Universidade
de São Paulo, uma pesquisa nacional sobre discriminação no ambiente escolar.
Orientação sexual era uma das temáticas investigadas, ao lado das discriminações
étnico-racial, geracional, socioeconômica, territorial, por deficiência e por gênero.
A pesquisa, aplicada em 501 escolas de 27 estados, com a participação de 18.599
pessoas (estudantes, responsáveis, professoras/es, diretoras/es e outras/os
profissionais), mediu o distanciamento social de diretoras/es, professoras/es,
funcionárias/os, estudantes e responsáveis em relação a determinados grupos.
Entre pessoas pobres, negras, indígenas, ciganas, moradoras de periferia/favela,
moradoras de áreas rurais e pessoas com deficiência, foi em relação a pessoas
LGBTQIA+ os maiores percentuais de preconceito: 93,5% das/os entrevistadas/os
apresentaram algum nível de preconceito com relação a gênero e 87,3% quanto à
orientação sexual.

A pesquisa mostrou também uma relação entre a discriminação no ambiente escolar


e o rendimento das escolas na Prova Brasil. Segundo o estudo, “escolas em que os
escores que medem o preconceito e o conhecimento de práticas discriminatórias
apresentam valores mais elevados tendem a apresentar médias menores para
as avaliações na Prova Brasil”. Ou seja, quanto mais discriminatório é o ambiente
escolar, pior o rendimento de toda a escola. Ou seja, o preconceito, a discriminação
e as violências além de atingir diretamente suas vítimas, acabam prejudicando o
aprendizado de todo o conjunto de estudantes.

Além disso, é importante entender também que as pessoas LGBTQIA+ e outras


que se constituem em distanciamento das normas precisam se concentrar não
apenas no conteúdo escolar, mas nas próximas violências anunciadas das quais
serão vítimas. Com isso, as pessoas LGBTQIA+ e outras que compõem grupos não
normativos têm condições mais ou menos equitativas de acesso, mas não têm
condições equitativas de aprendizagem em relação a estudantes que atendem as
normas (brancas/os, heterossexuais, cisgêneras/os, cristã/ãos, sem deficiência, por
exemplo) e que, portanto, não se constituem em alvos preferenciais de violação de
direitos e violências.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 53


Acesse aqui a apresentação e relatório da Pesquisa Nacional
sobre Preconceito no Ambiente Escolar: http://portal.mec.gov.
br/dmdocuments/diversidade_apresentacao.pdf

Se é recorrente que estudantes lésbicas, gays e bissexuais vivenciem situações de


discriminação dentro da escola, pessoas trans vão viver um processo intenso de
exclusão que recorrentemente lhes expulsa do espaço escolar e interrompe seu
processo de escolarização. Em pesquisas realizadas durante as paradas do orgulho
LGBTQIA+, por exemplo, identificamos um nível de escolaridade inferior entre
pessoas travestis e transexuais em relação aos outros grupos sociais que compõem
o universo presente nas marchas. Em levantamento realizado entre as pessoas
trans atendidas pelo Programa Transcidadania, ação da Prefeitura de São Paulo, em
2016, 71% pararam de estudar com mais de 15 anos de idade, 24% entre 11 e 14
anos e 5% deixaram os estudos entre 7 e 11 anos. Destas, 55% pararam de estudar
entre o quinto e nono ano do Ensino Fundamental, 23% entre o primeiro e quarto
ano do Ensino Fundamental e 22% no Ensino Médio. A transfobia foi o motivo pela
evasão dos estudos segundo 45% das/os participantes, seguido de trabalho (33%)
e conflito familiar (17%). Mas é possível supor que estes outros motivos estejam
também associados a dinâmicas transfóbicas, que retiram da pessoa o apoio
familiar e forçam uma entrada prematura no mundo do trabalho na maioria das
vezes informal; situações em que a escola poderia se constituir como um espaço
de apoio, mas, muitas vezes, acaba sendo mais um lugar de exclusão, violação de
direitos e violências.

Esses dados, ainda que não alcancem a totalidade da população de pessoas travestis
e transexuais, configuram uma situação de vulnerabilidade deste grupo quanto à
garantia do seu direito à educação.

1.2 Educação: Direito de todas, todes e todos

Embora não faça menção explícita aos conceitos de gênero e orientação sexual,
a Constituição Federal de 1988 - CF/1988 é enfática na garantia das liberdades
individuais e da igualdade de direitos. O texto constitucional indica recorrentemente
o enfrentamento a toda forma de discriminação.

A CF/88 fala explicitamente em preconceitos e discriminações de


origem, raça, sexo, cor e idade, e soma a esses “quaisquer outras
formas de discriminação”. Sexismo, misoginia, LGBTQIA+fobia são

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 54


hoje formas de discriminação já suficientemente identificadas e
compreendidas, reconhecidas no campo acadêmico, jurídico e
das políticas públicas.

É, portanto, obrigação constitucional do Estado (a partir de todas/os as/os suas/


seus agentes) desenvolver ações para enfrentar discriminações que se conectam
de diferentes maneiras e ameaçam os invioláveis direitos à liberdade, à igualdade,
à segurança, à propriedade e à própria vida. Diante de processos discriminatórios
e violentos que carregam dimensão simbólica tão significativa quanto esses, é
difícil imaginar estratégias integrais de enfrentamento que dispensem políticas
educacionais.

O Brasil possui, hoje, um dos maiores sistemas de educação do mundo. Quase


cinquenta milhões de estudantes e cerca de dois milhões de profissionais de
educação entram todos os dias em cerca de 264 mil escolas, distribuídas em todo
o território nacional (Censo Escolar, IBGE, 2021). A educação pública brasileira é,
sem dúvida, pelo seu tamanho, distribuição e finalidade, espaço privilegiado e
imprescindível no enfrentamento às desigualdades, discriminações e violências
as quais a Constituição Federal de 1988 afirma que precisam ser superadas e dos
princípios que ela estabelece. A universalidade do direito à educação é evidente
tanto no texto constitucional quanto na lei que define suas bases.

Pode parecer óbvio, mas é importante reforçar: a lei não garante o direito à
educação apenas a pessoas de determinada orientação sexual ou identidade de
gênero. Pessoas LGBTQIA+ possuem o mesmo direito à educação que quaisquer
outras/os cidadãs/ãos brasileiras/os, em “igualdade de condições para o acesso e
permanência na escola”. A educação é direito de todas, todes e todos!

Mas atenção: muitas vezes se confunde direito à educação com


direito a se matricular na escola. A matrícula é um procedimento
relativamente rápido, que se faz no início do ano, antes mesmo
de começarem as aulas. Ela, por si, não garante nada. O desafio
é permanecer na escola. E, permanecendo, aprender, progredir
e alcançar cada vez níveis mais avançados de escolarização.
Para que isso ocorra é preciso trabalhar pedagogicamente não
só os conteúdos escolares como também o reconhecimento, a
valorização e o respeito à diversidade na escola, realizando ações
de prevenção e enfrentamento às violências LGBTQIA+fóbicas na
escola.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 55


1.3 LGBTQIA+fobia na escola

O preconceito, a discriminação e as violências contra pessoas LGBTQIA+ na escola


podem se manifestar de várias maneiras. Vamos pensar especificamente sobre
algumas delas:

Estigma
Estudantes e profissionais muitas vezes vão olhar e julgar pessoas LGBTQIA+ a
partir dos seus preconceitos. Isso faz com que essas/es estudantes sejam mais
recorrentemente tachadas/os como indisciplinados, problemáticos, agressivos,
menos capazes ou até mesmo uma ameaça para outras/os alunas/os. Por conta do
estigma, LGBTQIA+ s vão ser mais culpabilizadas/os em situações de conflito, e as
ações disciplinares sobre elas/es tendem a ser mais severas.

Constrangimento
“Anda como homem”, “se comporta como uma menina”, “que coisa ridícula”, “você
é um menino e eu vou te tratar como um menino”. Esses são alguns exemplos de
como professoras/es e outras/os profissionais da escola podem criar situações de
constrangimento público para pessoas LGBTQIA+.

Vale lembrar que o direito à personalidade é um direito básico de todas as pessoas.


Constranger alguém pela sua orientação sexual ou sua identidade de gênero,
ainda mais em espaços públicos, não só produz sofrimento no ato, mas aumenta a
vulnerabilidade dessa pessoa, deixando-a mais suscetível a outras violências.

Agressão verbal
Que professora nunca ouviu alguém sendo chamado de “veado” ou “sapatão” na
hora do recreio? Que professor nunca presenciou as mesmas palavras sendo usadas
por colegas para se referir a estudantes na sala das/os professoras/es? Agressões
LGBTQIA+fóbicas infelizmente ainda são bastante comuns nas nossas escolas.
Muitas vezes subestimamos o poder ofensivo dessas palavras e o sofrimento que
elas podem produzir. Agressão verbal não é brincadeira nem uma forma aceitável de
tratamento entre pares, muito menos entre profissionais da educação e estudantes.

Agressão física
Não são raros os casos de agressão física motivada por LGBTQIA+fobia que acontecem
dentro da escola ou no seu entorno imediato, muitas vezes protagonizadas por

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grupos contra uma única vítima. Não basta encarar essas situações apenas como
um desentendimento entre crianças ou adolescentes. A violência física não faz
parte da “natureza” dos meninos, nem das meninas. A escola precisa agir de forma
firme para garantir a segurança e integridade física da sua comunidade (inclusive
das/os profissionais da educação) e encarar também as raízes da LGBTQIA+fobia
que motivam essas agressões. Quando uma situação assim ocorre, além das
providências cabíveis (como acionar o serviço de saúde e a polícia se for o caso),
toda a comunidade escolar deve refletir sobre isso e decidir sobre um plano de ação
coletivo para o enfrentamento e a prevenção dessas violências na escola, de forma
que não voltem a se repetir.

Negligência/omissão
Muitas vezes a equipe de profissionais da escola percebe situações de discriminação
ou mesmo de violência em curso e prefere não interferir. “Ah, eu estou aqui para
dar a minha aula, não para resolver conflito entre estudantes”. Grande engano.
Toda a equipe de profissionais da escola é legalmente obrigada a intervir diante de
situações que violam os direitos de crianças e adolescentes. Além de prevista em
lei, esta é uma responsabilidade ética das/os profissionais da educação. E a escola e
suas/seus gestoras/es são diretamente responsáveis sobre o que acontece dentro
da sua instituição. Omitir-se ou negligenciar a situação é tornar-se cúmplice.

Exclusão
O preconceito e a discriminação de profissionais pode motivar e autorizar
simbolocamente práticas sociais que chegam a excluir pessoas LGBTQIA+ da
instituição escolar. Há casos em que profissionais criam dificuldades na matrícula
para travestis e transexuais - vagas que existiam e de repente não existem mais -
ou sugerem a transferência para o período noturno ou para a educação de jovens
e pessoas adultas. A percepção é de que aquela pessoa representa uma ameaça
ou um problema para a escola. No entanto, ela tem todo o direito de se matricular,
permanecer e ter garantida uma trajetória escolar segura e livre de preconceito,
discriminação e violências.

Invisibilidade
A invisibilidade acontece quando a escola se nega a falar sobre o assunto, condena
a orientação sexual, não reconhece a identidade de gênero de um/a estudante,
obriga profissionais a “se manterem no armário”, ignora a diversidade de famílias e
impõe apenas o padrão heterocisnormativo a todas as pessoas. Ainda que pessoas
LGBTQIA+ não sejam diretamente vítimas de alguma violência, elas precisam se sentir
reconhecidas, valorizadas e seguras na escola. Essa atitude deve ser tomada tanto

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por outras/os estudantes quanto pela equipe de profissionais. Invisibilizar pessoas
e suas histórias é também uma forma de violência, que aumenta a vulnerabilidade
e alimenta outras práticas de discriminação e exclusão.

Outra questão importante é nomear as violências sofridas por


pessoas LGBTQIA+. Utilizar o conceito de bullying não contribui
para a promoção e a defesa dos direitos das pessoas LGBTQIA+
na escola. Além de ser um conceito importado, e justamente por
isso, esse termo genérico não identifica precisamente a violação
de direitos das pessoas LGBTQIA+. Portanto, quando a gente
fala de preconceito e discriminação contra pessoas LGBTQIA+,
utilizamos LGBTQIA+fobia.

Essas são apenas algumas formas (dentre várias) de como a LGBTQIA+fobia se


materializa na escola. Essas dinâmicas violentas produzem graves danos à trajetória
escolar de pessoas LGBTQIA+ e se constituem numa barreira ao seu direito à
educação. Ser capaz de perceber e identificar essas formas de violência é o primeiro
passo para superá-las.

1.4 Virando o jogo: Construindo uma escola que


respeita a diversidade

Mas, então, o que fazer? Como transformar um ambiente escolar discriminatório (e


violento) em um espaço acolhedor, afetuoso e que respeite o direito à educação e
ao aprendizado de toda a comunidade?

Dá uma olhada também nessa matéria da Nova Escola sobre


como enfrentar a LGBTQIA+fobia na escola

Acesse o livro “Diversidade Sexual na Educação: problematizações


sobre a homofobia nas escolas”: http://pronacampo.mec.gov.
br/images/pdf/bib_volume32_diversidade_sexual_na_educacao_
problematizacoes_sobre_a_homofobia_nas_escolas.pdf

Neste artigo, Debora Diniz e Rosana Oliveira falam sobre a injustiça


epistêmica nos materiais escolares, considerando o marco
heteronormativo que resiste em reconhecer a LGBTQIA+fobia
como violação de direitos humanos: https://www.scielo.br/j/
edreal/a/PnX3KXWJR3HJCvYsf4FwK5c/?format=pdf&lang=pt

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O enfrentamento destas desigualdades se torna mais eficaz quanto maior for o
entendimento de que não cabe responsabilizar determinadas pessoas ou grupos
sociais pelas dificuldades que enfrentam nas suas trajetórias escolares. Escolas
e sistemas de ensino é que devem assumir a responsabilidade de identificar nas
suas práticas sociais e pedagógicas aquilo que produz obstáculos à efetivação do
direito educacional dessas pessoas e grupos – e, a partir daí, se reestruturarem
para se tornarem capazes de garantir esse direito a todas as pessoas. É importante
potencializar a escola como espaço de transformação social, de acolhida, de
afetividade, de reconhecimento, valorização e respeito à diversidade.

Veja, a seguir, algumas atitudes que a escola pode tomar:

☑ Respeito à personalidade de cada pessoa


Cada profissional de educação traz consigo um conjunto de representações sobre
feminilidade e masculinidade, resultantes da educação pela heterocisnormatividade,
que interferem na forma como desenvolvem o seu trabalho pedagógico com cada
estudante. Há expectativas (de sexualidade e gênero) distintas, conduzidas muitas
vezes por preconceitos e discriminações, que produzem efeitos negativos na
trajetória escolar das/os estudantes. Há modelos de comportamento atribuídos a
mulheres e homens que, embora não instituídos por nenhuma diretriz pedagógica,
são recorrentemente reforçados e insistentemente cobrados das/os estudantes.

Não há qualquer lei ou diretriz que proíba ou obrigue modos de falar, de vestir, de
mexer o corpo, muito menos distinguindo mulheres e homens. Portanto, quando
uma professora constrange uma aluna coibindo suas expressões de gênero e lhe
impondo outro modo que não o dela de viver e se colocar no mundo, está lhe negando
o direito constitucional à liberdade. E sim, apesar do que muitas pessoas pensam
ou desejam, crianças e adolescentes gozam dos mesmos direitos fundamentais que
estão escritos na Constituição Federal Brasileira de 1988.

Também não cabe à escola interferir na orientação sexual das/os estudantes, nem
tomar como seu objetivo didático ensinar as pessoas a serem heterossexuais.
Essas práticas atentam diretamente contra a Constituição Federal de 1988, por
coagir sujeitos livres, a partir de juízos de valor e da exigência de comportamentos
predeterminados.

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☑ Reconhecimento de todas as famílias
Crianças que vivem só com a mãe ou só com o pai. Criadas pelos avós. Convivendo
com filhas/os da madrasta e do padrasto. Com duas mães ou com dois pais. Filhas/
os de mães ou pais trans. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE, 2019), o modelo tradicional formado por um casal heterossexual e cisgênero
com filhas/os representa hoje menos da metade (42,9%) das famílias brasileiras.
Essa pluralidade já chegou à escola e, hoje, profissionais da educação precisam ser
capazes de lidar com essa diversidade de configurações familiares.

Muitas escolas já perceberam que impor um modelo único de família contraria


a própria realidade das crianças, das/os adolescentes e pode inclusive produzir
sofrimento naquelas cujas famílias não se encaixam nesse padrão. Famílias
lesbohomoparentais, de mães e pais trans, assim como todas as outras famílias,
têm o direito de serem reconhecidas e respeitadas pela escola onde suas crianças
e adolescentes estudam. O caminho é o reconhecimento, a valorização e o respeito
a todas as famílias, sem distinção. Uma atitude que precisa acontecer tanto nas
relações entre a escola e as famílias, quanto no currículo, nas atividades escolares,
nos livros didáticos. Um exemplo simples disso é realizar o dia das famílias na
escola enviar comunicados dirigidos às famílias, em vez de enviar aos pais. Mudar
as práticas discursivas altera também as realidades.

Assista ao vídeo da Onu - Campanha Livres e Iguais sobre a função


social da escola e da família na proteção dos direitos fundamentais
de crianças e adolescentes a uma vida livre de violência e
discriminação: https://www.youtube.com/watch?v=gniErZlyzbA

Quando a direção propõe trocar o dia dos pais pelo dia da família, para garantir
que todas as famílias, nas suas diferentes configurações, sejam reconhecidas e
valorizadas, ela não está sendo transgressora. Quando uma professora ou professor
lê para sua turma um livro que fala sobre os diferentes tipos de família, incluídas
aí famílias com duas mães, mãe solo, dois pais, sem mãe nem pai, ela não está
cometendo um ato repreensível. Ambas estão cumprindo o que dizem as diretrizes
educacionais que orientam o seu trabalho. Quem segue impondo um modelo único
de família, de sexualidade ou de comportamento é que está descumprindo as
diretrizes pedagógicas vigentes.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 60


☑ Reconhecer a identidade de gênero na escola
Em outubro de 2009, o Conselho Universitário da Universidade Federal do Amapá
deliberou pela primeira vez sobre o reconhecimento do nome social. Hoje diversas
Instituições Públicas de Ensino Superior do país já possuem alguma regulamentação
que visa facilitar a permanência dessas/es estudantes por meio da possibilidade
de utilização do nome social. Outras instituições de ensino superior estão, neste
momento, em processo de normatização do uso do nome social. Na educação básica,
das 27 unidades federativas, dezoito já regulam, através dos conselhos e secretarias
estaduais de educação, a implementação do nome social em suas redes de ensino.
Vale também destacar que, em 2014, pela primeira vez, travestis e transexuais
puderam usar seu nome social no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

Em janeiro de 2018, foi homologada resolução do Conselho Nacional


de Educação que autoriza o uso do nome social de travestis e
transexuais nos registros escolares da educação básica. Com o
documento, pessoas trans maiores de 18 anos podem solicitar
que a matrícula nas instituições de ensino seja feita usando o
nome que reconhecem como seu, independente do registro civil.
No caso de estudantes menores de idade, a solicitação deve
ser apresentada pelas/os suas/seus representantes legais. Mas
já há precedentes que indicam, em caso de conflito com as/os
responsáveis, a prioridade à decisão da/o adolescente.

É importante compreender que, de acordo com o Estatuto da


Criança e do Adolescente (1990), crianças e adolescentes têm
o direito a uma vida livre de preconceito, discriminação e de
exposição a situações vexatórias e toda a sociedade precisa
garantir esse direito trabalhando junto.

Para saber mais: Nome Social - Ministério da Educação (mec.gov.


br)

Reconhecer o nome é um passo importante, mas apenas o começo. Em 2015, o


Conselho Nacional de Combate a Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT) publicou uma resolução com
orientações aos sistemas e instituições de ensino para a garantia das condições
de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais - e todas aquelas
que tenham sua identidade de gênero não reconhecida em diferentes espaços
sociais, formulando orientações amplas quanto ao reconhecimento institucional
da identidade de gênero e sua operacionalização. As recomendações da resolução
já descrevem detalhadamente as principais ações que precisam ser tomadas para
garantir que a instituição de ensino seja efetivamente um espaço seguro e de
reconhecimento para pessoas trans. Vamos ver o que recomenda a Resolução:

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Art. 1° Deve ser garantido pelas instituições e redes de ensino, em todos os níveis
e modalidades, o reconhecimento e adoção do nome social àqueles e àquelas
cuja identificação civil não reflita adequadamente sua identidade de gênero,
mediante solicitação do próprio interessado.

Art. 2° Deve ser garantido, àquelas e àqueles que o solicitarem, o direito ao


tratamento oral exclusivamente pelo nome social, em qualquer circunstância,
não cabendo qualquer tipo de objeção de consciência.

Art. 3° O campo “nome social” deve ser inserido nos formulários e sistemas
de informação utilizados nos procedimentos de seleção, inscrição, matrícula,
registro de frequência, avaliação e similares.

Art. 4° Deve ser garantido, em instrumentos internos de identificação, uso exclusivo


do nome social, mantendo registro administrativo que faça a vinculação entre o
nome social e a identificação civil.

Art. 5° Recomenda-se a utilização do nome civil para a emissão de documentos


oficiais, garantindo concomitantemente, com igual ou maior destaque, a
referência ao nome social.

Art. 6° Deve ser garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços


segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero
de cada sujeito.

Art. 7° Caso haja distinções quanto ao uso de uniformes e demais elementos de


indumentária, deve ser facultado o uso de vestimentas conforme a identidade de
gênero de cada sujeito.

Art. 8° A garantia do reconhecimento da identidade de gênero deve ser estendida


também a estudantes adolescentes, sem que seja obrigatória autorização do
responsável.

Art. 9° Estas orientações se aplicam, também, aos processos de acesso às


instituições e sistemas de ensino, tais como concursos, inscrições, entre outros,
tanto para as atividades de ensino regular ofertadas continuamente quanto para
atividades eventuais.

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Leia a Resolução n. 12/ 2015 do CNCD/ LGBT: https://www.gov.br/
mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/old/cncd-
lgbt/resolucoes/resolucao-012

O reconhecimento da diversidade de identidades de gênero é um processo que


dificilmente acontece sem alguma resistência. É importante que gestão e equipe, seja
da escola, da universidade ou da secretaria de educação, estejam preparadas para
enfrentar o debate junto à comunidade, disseminando informação, desconstruindo
preconceitos e discriminações e, mais importante, posicionando-se na defesa e
proteção dos direitos das pessoas trans que são usuárias/os dessa política.

☑ Respeitar a diversidade na equipe


A diversidade sexual e de gênero não está apenas entre estudantes. Nós também
temos professoras/es, técnicas/os, gestoras/es que não são pessoas heterossexuais
e/ou cisgêneras. Essas/es profissionais podem ser vítimas de agressões,
discriminações e mesmo violências, por parte de alunas, alunos e alunes, famílias ou
colegas de trabalho. Recorrentemente são coagidas/os pela direção ou por colegas
a se manterem no armário. Não são poucos os relatos de professoras/es afastadas/
os de escolas particulares que afirmam que a LGBTQIA+fobia foi o principal motivo
da demissão. Demitir uma/um profissional por sua orientação sexual ou identidade
de gênero constitui violação de direitos garantidos pela Constituição e cabe recurso
à justiça.

Assista essa entrevista com Júlia Dutra, mulher transexual e


diretora de uma escola pública no Rio de Janeiro, que fala sobre
os enfrentamentos de ser uma profissional da educação que
pertence a comunidade LGBTQIA+: https://youtu.be/YpkJvSi4PpY

☑ Formar a equipe de profissionais da educação


Para poder desenvolver ações contínuas que enfrentem a LGBTQIA+fobia na escola,
é fundamental que a equipe de profissionais esteja capacitada para entender
e trabalhar esses temas. É a formação que permite perceber e repensar práticas
pedagógicas heterocisnormativas que restringem as possibilidades identitárias,

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 63


estigmatizam ou invisibilizam pessoas e reforçam discursos e práticas machistas,
misóginas, lesbofóbicas, homofóbicas, bifóbicas e transfóbicas.

☑ Trabalhar junto com as famílias


Enfrentar a LGBTQIA+fobia na escola é uma ação que precisa ser construída junto
com (todas) as famílias e toda a comunidade escolar. Essas discussões mexem
com questões que têm o apoio da maior parte das famílias, mas eventualmente
se chocam com valores morais de algumas. Escola e família não são antagonistas
nesse processo. Pelo contrário, é imprescindível envolver as/os responsáveis nesse
debate, inclusive as/os que são resistentes, estabelecer um diálogo construtivo e
encontrar alternativas que respeitem as diferentes visões de mundo, ao mesmo
tempo em que se constrói um ambiente escolar livre de preconceitos, discriminações
e violências, reconhecendo, valorizando e respeitando a diversidade.

1.5 Pode falar sobre gênero e sexualidade na


escola?

Sexualidade é assunto na escola pelo menos desde a década de 1920. Desde os


anos 1980, já existem políticas públicas, projetos e ações que promovem a discussão
sobre gênero e sexualidade de forma sistemática para a escola. Seja em aulas sobre a
realidade das mulheres, seja em projetos de educação para a sexualidade, seja numa
discussão sobre identidade de gênero, faz tempo que esses são temas presentes
nas nossas escolas. Esse nunca foi um debate fácil e sempre suscitou resistências.
Fato é que essas questões fazem parte do cotidiano escolar e, querendo ou não,
elas precisam ser enfrentadas, na perspectiva de promoção e defesa dos direitos
sociais fundamentais.

“Mas o Plano Nacional de Educação não retirou esses temas?”. Não. O texto final do
PNE, aprovado em 2014 para o decênio até 2024, embora não faça menção explícita,
mantém a obrigatoriedade de se enfrentar todas as formas de discriminação. E não
há como enfrentar a discriminação sem falar dela; sem evidenciar os preconceitos,
as discriminações, os estigmas, os estereótipos e as práticas injustas que eles
alimentam; sem discutir os processos (históricos) que lhes produzem. Não há como
falar de discriminação sem falar das pessoas que são discriminadas.

Como acabar com a violência sem falar na violência, nas suas tantas formas, nas
pessoas que são violentadas e nas que violentam? Ignorar esses temas, ou pior,
propositalmente restringir sua abordagem na escola, constitui não apenas omissão

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 64


e negligência, mas desrespeito aos princípios que regem a educação brasileira,
fundamentados na Constituição Federal de 1988 e em leis específicas.

Vale lembrar que mesmo a ausência dos termos gênero ou orientação sexual em
um plano de educação não exime o poder público municipal, estadual ou distrital,
suas redes de ensino e respectivas escolas de seguirem as recomendações e
normativas descritas nas diretrizes nacionais para a educação básica que incluem,
sim, a abordagem destes temas e o enfrentamento a toda e qualquer forma de
discriminação.

É importante destacar também que em junho de 2019, por omissão do Congresso


Nacional em elaborar e promulgar uma lei que defenda os direitos das pessoas
LGBTQIA+ a uma vida sem violências, criminalizando atos de lesbofobia, homofobia,
bifobia e transfobia, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou os crimes de
LGBTQIA+fobia aos crimes de racismo, pela alteração da Lei Caó, no. 7716/1989.
LGBTQIA+fobia, portanto, se constitui num crime passível de punições previstas
em lei.

Plano Nacional de Educação

(...)

Escola ensinou, ensina, a lidar com as diferenças


ninguém fala, ninguém fala, só risada, só risada
aqueles e aquelas, relegadas do lado de fora

muitos deles, muitas delas, ainda que fossem jovens


deixaram de ser presença do lado de cima do solo

onde os que creem as ordens, padrões, leis, diretrizes


disparam, grotescos, incólumes, troças, socos, mísseis.

É para ler estes versos com lágrimas assim como eles


foram paridos.

É para não esquecermos, meus pares digam o que


digam, debochem ou nos rebaixem somos incríveis,
sublimes, brilhantes, milhares.

Ana Ladeira. In: Cai na Prova? Editora Urutau, 2022.

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Módulo

6 Direito a Trabalho e Renda


Você já parou para pensar como as pessoas LGBTQIA+ estão inseridas no mercado
de trabalho? Será que essas pessoas se sentem à vontade para ser quem são nos
seus espaços profissionais? Vamos agora compreender os principais desafios
enfrentados por pessoas LGBTQIA+ no mercado de trabalho e para geração de
renda, com atenção especial à LGBTQIA+fobia que restringe as oportunidades de
emprego formal para essas pessoas.

Vamos também identificar caminhos para sua inserção produtiva e conhecer


algumas ações afirmativas e estratégias de geração de renda voltadas à (re)inserção
de pessoas LGBTQIA+ no mercado formal de trabalho.

Unidade 1: A inserção de pessoas LGBTQIA+ no


mercado de trabalho e para geração de renda

Identificar os mecanismos de exclusão e discriminação vividos


por pessoas LGBTQIA+ no mundo do trabalho e saber relacionar
as estratégias para inserção produtiva e geração de renda.

1.1 Pessoas LGBTQIA+ no mercado de trabalho

Pensar na inserção de pessoas LGBTQIA+ no mercado de trabalho é pensar em


múltiplas trajetórias. A discriminação e exclusão por orientação sexual e identidade
de gênero marcam de formas distintas cada um dos grupos que compõem essa
comunidade.

Enquanto a maioria das lésbicas, gays e bissexuais cisgêneras/os sofrem


LGBTQIA+fobia dentro do ambiente de trabalho formal muitas vezes, pessoas trans
enfrentam um processo de discriminação intenso e são excluídas de praticamente

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 66


todo o mercado formal e informal. Lésbicas não feminilizadas (sapatão) e gays
afeminados (bichas) também tem o processo de discriminação potencilizado. Além
disso, na combinação com outros sistemas de opressão - como o racismo ou o
classicismo - vão se produzindo trajetórias diferenciadas que nos colocam uma série
de desafios específicos.

Você consegue se imaginar sem ter como gerar renda para pagar suas despesas?
É difícil, não é mesmo? O trabalho possui função social central em nossas vidas. É
por meio dele que conseguimos nossa fonte de renda que, numa sociedade como
a nossa, é o que garante necessidades básicas, como alimentação e moradia. A
não ser que você seja uma pessoa com fontes privilegiadas de renda, você terá de
exercer algum trabalho, seja como trabalhadora autônoma, seja como funcionária,
para garantir sua subsistência. Quanto menos preparo você tiver, ou quanto menos
opções dentro do mercado você puder acessar, maiores as chances de você ter
de se submeter a condições precárias, a ambientes discriminatórios ou mesmo a
violências para poder trabalhar e gerar seu sustento.

Assista esse vídeo sobre pessoas LGBTQIA+ e o mercado de


trabalho: https://youtu.be/8o-HdAfm0H0

1.2 LGBTQIA+fobia e as dificuldades no acesso ao


trabalho e emprego

Em um levantamento feito pelo Center for Talent Innovation (2016), que ouviu mais
de 12 mil profissionais de países como China, Rússia, África do Sul, Estados Unidos
e Brasil, 61% das/os funcionárias/os LGBTQIA+ do Brasil disseram esconder sua
sexualidade para colegas e gestoras/es nas empresas em que trabalham. Outros
49% disseram que não escondem sua orientação sexual, mas não falam abertamente
sobre o assunto no ambiente de trabalho e alteram o próprio comportamento para
se integrar entre as/os colegas.

Embora o levantamento esteja restrito a determinadas empresas, essa é uma


realidade que se repete em muitas organizações. No setor privado, identificar-se
como LGBTQIA+ pode diminuir as chances de contratação ou promoção e aumentar
o risco de demissão. A LGBTQIA+fobia, às vezes explícita, às vezes velada, também
está na causa de várias situações de assédio moral. E não são poucos os casos em
que, denunciada a discriminação, as vítimas não encontram apoio ou pelo contrário,
são hostilizadas ou culpabilizadas pelas chefias.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 67


Já no setor público, embora estejam mais protegidas do risco de não serem admitidas
ou de serem demitidas em razão de sua orientação sexual, servidoras/es LGBTQIA+
não estão livres da discriminação. Se a entrada por concurso diminui as chances de
exclusão no processo de admissão, e o regime jurídico do funcionalismo público
garante certa estabilidade no emprego, a LGBTQIA+fobia pode se manifestar de
outras formas. Por exemplo: no assédio moral LGBTQIA+fóbico praticado por
colegas ou chefias, no isolamento do restante da equipe em razão do preconceito
e da discriminação, e em dificuldades na progressão para cargos de destaque.
Ademais, vale lembrar que instituições públicas hoje contam cada vez mais com
trabalhadoras/es contratadas/os via outros regimes de trabalho, como CLTistas
ou no modelo de terceirização, que provavelmente essas pessoas estarão mais
expostas e menos protegidas da discriminação e do assédio LGBTQIA+fóbico.

Diferente de colegas heterossexuais, que cotidianamente expõem sua orientação


sexual - seja em um bate papo informal ou colocando a foto da esposa ou do esposo
sobre a mesa - identificar-se abertamente como LGBTQIA+ é uma decisão que pode
trazer consequências negativas para a vida profissional cotidiana.

Alguns campos profissionais, como o restante da sociedade, combinam ainda mais


práticas misóginas e LGBTQIA+fóbicas que afastam as pessoas LGBTQIA+ e podem
levar a experiência violenta de manter-se no armário para continuar no emprego.

Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais - ANTRA, as


informações sobre a situação educacional das pessoas trans estimam que cerca
de 70% não concluiu o ensino médio e que apenas 0,02% encontram-se no ensino
superior. Precisamos refletir sobre como isto interfere no acesso ao trabalho e ao
emprego formal, considerando sua relação intrínseca com o processo educativo.

Não existem dados nacionais, ou mesmo regionais, que possam retratar com
precisão a participação de pessoas trans no mercado de trabalho. No entanto, é
possível recorrer a algumas fontes específicas que, embora não espelhem todo o
universo de pessoas trans, dão indícios da realidade vivida por elas. O que não é
difícil de perceber é a existência de uma transfobia generalizada no mercado formal
e informal de trabalho, que exclui pessoas trans das possibilidades de emprego.

Leia aqui o Manifesto da ANTRA sobre a possibilidade de


acesso à Universidade para pessoas trans: https://antrabrasil.
org/2020/12/17/nota-antra-cotas-universidades-pessoas-trans/

Conheça melhor o TRANSCIDADANIA: Práticas e Trajetórias de


um Programa Transformador: https://youtu.be/do4wVxi3Jqc e
https://youtu.be/cjo7ZDnZ5ao

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 68


A transfobia generalizada, associada à ausência de recursos materiais, a uma
formação precária (em muitos casos consequência de uma interrupção nos estudos
motivada pela transfobia) e a falta de suporte familiar - fatores bastante recorrentes
na vivência de pessoas trans - contribuem diretamente nesse processo de exclusão.

No momento em que a sociedade passa a percebê-las como trans, muitas dessas


pessoas começam a vivenciar dinâmicas de discriminação transfóbica que, a despeito
de sua formação ou experiência, vão excluí-las de uma série de oportunidades de
trabalho, inclusive de oportunidades que estavam antes disponíveis. Profissionais
de nível técnico, ensino superior ou com pós-graduação, com anos de experiência,
também podem não conseguir emprego.

Assista a essa matéria da TVT sobre barreiras para a inserção


de LGBTQIA+ no mercado de trabalho: https://youtu.be/
HoVkTd8f6ek

Esperamos que depois de ter realizado todo o curso, você tenha


compreendido que as pessoas LGBTQIA+ são sujeitos de direitos
e merecem respeito em todos os espaços. Da mesma forma,
esperamos que você tenha entendido que pessoas LGBTQIA+ são
cidadãs e devem ter seu direito de acesso às políticas públicas
sociais garantido. Convidamos você a se somar nessa luta! Não
discrimine, acolha!

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Referências
ANTRA. Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Diagnóstico sobre o acesso
à retificação de nome e gênero de travestis e demais pessoas trans no Brasil. Brasília,
DF: Distrito Drag, 2022.

______. Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em


2021. Brasília: 2021.

ATLAS da Violência 2021 / Daniel Cerqueira et al., — São Paulo: FBSP, 2021.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1949.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Discriminação e violência contra a população


LGBTQIA+ : relatório da pesquisa / Conselho Nacional de Justiça; Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento. – Brasília: CNJ, 2022.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de 5 de outubro de


1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 5 out. 1988.

BRASIL. Dados abertos do DISQUE 100 sobre denúncias de violação de direitos


humanos contra a população LGBTQIA+. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/
pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/disque100/balanco-geral-2011-a-2019-
populacao-lgbt. Ministério de Direitos Humanos e Cidadania: Brasília, 2023.

BRASIL. DECRETO DE 4 DE JUNHO DE 2010. Institui o Dia Nacional de Combate à


Homofobia. Brasília: 2010.

BRASIL. Decreto nº 11.341, de 1º de Janeiro de 2023. Aprova a Estrutura Regimental


e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e remaneja cargos em comissão e
funções de confiança. Brasília: 2023.

BRASIL. Decreto nº 8.727 de 27 de Abril de 2016. Dispõe sobre o uso do nome social
e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no
âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

BRASIL. Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas


escolas / Rogério Diniz Junqueira (organizador). – Brasília : Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Pesquisa Nacional


de Saúde - PNS. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/
saude/9160-pesquisa-nacional-de-saude.html, 2022.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 70


BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Escolar 2021. Disponível
em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pesquisa/13/5908.

BRASIL. Lei Federal nº 7.716/1989. Define os crimes resultantes de preconceito de


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