HUNTINGTON, Samuel. O Choque de Civilizações

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SAMUEL P.

HuNnNGTON

O CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES
E A RECOMPOSIÇÃO
DA ORDEM MUNDIAL

Tradução de
· M. H. C. Côrtes

SBD-FFLCH-USP

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SUMÁRIO

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1
UM MUNDO DE CIVILIZAÇÕES

1. A Nova Era da Política Mundial . . . . . . . . 17


Bandeiras e Identidade Cultural . . . . . . 17
Um Mundo Multipolar e Multicivilizacional . . . . . 19
Outros Mundos? . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
A Comparação de Mundos: Realismo, Parcimônia e Previsões 38

2. As Civilizações na História e na Atualidade . . . . 44


A Natureza das Civilizações . . . 44
As Relações entre as Civilizações . . . . . . . 55

3. Uma Civilização Universal? Modernização e


Ocidentalização . . . . . . . . . . . . . . 65
Civilização Universal: Significados 65
Civilização Universal: Fontes . . . 78
O Ocidente e a Modernização 81
Reações ao Ocidente e à Modernização 86

II
A ALTERAÇÃO DO EQUIÚBRIO ENTRE AS CIVIUZAÇÕES

4. O Desvanecimento do Ocidente: Poder, Cultura e


Indigenização . . . . . . . . . . . . . . . ](. . . . 97
~ Poder Ocidental: Predomín~o e Declínio ?.... ... 97
Indigenização: o Ressurgimento das Culturas Não-ocidentais 110
La. Revanche de Dieu . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

5. Economia, Demografia e as Civilizações Desafiadoras 125


A Afirmação Asiática . . . 126
O Ressurgimento Islâmico 134
Desafios em Mutação 149
m
A ORDEM EMERGENTE DAS CIVILIZAÇÕES

6. A Reconfiguração Cultural da Política Mundial . . . 153


Em Busca de Agrupamentos: a Política da Identificação 153
A Cultura e a Cooperação Econômica . . . . . . . . . 160
A Estrutura das Civilizações . . . . . . . . . . . . . . 166
Países Divididos: o Fracasso da Mudança de Civilização 172

7. Estados-núcleos, Círculos Concêntricos e Ordem


Civilizacional . . . . . . . . . . . . . . . . 193
Civilizações e Ordem . . . . . . . 193
Demarcando o Ocidente . . . . . 195
':'~ Rússia e o seu Exterior Próximo 204
A Grande China e sua Esfera de Co-prosperidade 210
O Islã: Percepção sem Coesão . . . . . . . . . 218

IV
OS CHOQUES DAS CIVIIlZAÇÕES

8. O Ocidente e o Resto: Questões Intercivilizacionais 227


Universalismo Ocidental . . . . 227
Proliferação de Armas . . . . . 231
Direitos Humanos e Democracia 240
Imigração . . . . . . . . . . . 247

9. A Política Mundial das Civilizações . . . . . . . . 259


Estado-núcleo e Conflitos de Linha de Fratura 259
O Islã e o Ocidente 262
Ásia, China e Estados Unidos . . . . . . . . 273
Civilizações e Estados-núcleos: Alinhamentos que Surgem 302

10. Das Guerras de Transição às Guerras de Linha de Fratura 312


Guerras de Transição: Afeganistão e o Golfo 312
Características das Guerras de Linha de Fratura . 320
Incidência: as Fronteiras Ensangüentadas do Islã 324
Causas: História, Demografia, Política . . . . . . 329
11. A Dinâmica das Guerras de linha de Fratura . . . 338
Identidade: o Aumento da Consciência Civilizacional . 338
Civilizações que se Congregam: Países Afins e Diásporas . 346
Como se Param as Guerras de Linha de Fratura . . . . . 371
V
O FUTURO DAS CIVILIZAÇÕES

12. O Ocidente, as Civilizações e a Civilização . . 383


A Renovação do Ocidente? . . 383
O Ocidente e o Mundo . . . . . . . 392
~Guerra e Ordem Civilizacional . . . 398
Civilização: os Aspectos em Comum 405

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

QUADROS

2.1 Uso dos Termos: "Mundo Livre" e "o Ocidente", p. 63


3.1 Pessoas que Falam os Idiomas Principais, p. 71
3.2 Pessoas que Falam os Principais Idiomas Chineses e
Ocidentais, p. 71
3.3 Proporção da População Mundial que Segue as Principais Tradições
Religiosas, p. 76
4.1 Territórios sob o Controle Político das Civilizações/ 1990-1993,
p. 101
4.2 População dos Países Pertencentes às Principais Civilizações
do Mundo/ 1993, p. 102
4.3 Parcelas da População Mundial sob o Controle Político
das Civilizações/ 1900-2025, p. 103
4.4 Parcelas do Total da Produção Manufatureira Mundial
por Civilização ou País/ 1750-1980, p. 104
4.5 Parcelas por Civilização do Produto Econômico Bruto Mundial /
1950-1992, p. 105
4.6 Parcelas por Civilização do Total dos Efetivos Militares
Mundiais, p. 106
5.1 Bolsão de Jovens nos Países Islâmicos, p. 147
8.1 Transferências de Armas pela China/ 1980-1991 (dados
selecionados), p. 236
8.2 População dos Estados Unidos por Raça e Etnia, p. 257
10.1 Conflitos Etnopolíticos / 1993-1994, p. 327
10.2 Conflitos Étnicos/ 1993, p. 327
10.3 Militarismo em Países Muçulmanos e Cristãos, p. 328
10.4 Possíveis Causas da Propensão Muçulmana para o Conflito, p. 335

1,j\'
FIGURAS

2.1 Civilizações do Hemisfério Oriental, p. 57


3.1 Reações Alternativas ao Impacto do Ocidente, p. 90
3.2 Modernização e Ressurgimento Cultural, p. 91
5.1 O Desafio Econômico: a Ásia e o Ocidente, p. 127
5.2 O Desafio Demográfico: o Islã, a Rússia e o Ocidente, p. 146
5.3 Bolsões de Jovens Muçulmanos por Região, p. 148
9.1 A Política Mundial das Civilizações: Alinhamentos
Emergentes, p. 310
10.1 Sri Lanka: Bolsões de Jovens Cingaleses e Tâmiles, p. 330
11.1 A Estrutura de uma Complexa Guerra de Linha de Fratura, p. 348

MAPAS

,1.1 O Ocidente e o Resto: 1920, pp. 22-23


'1.2 O Mundo da Guerra Fria: Anos 60, pp. 24-25
1.3 O Mundo das Civilizações: Pós-1990, pp. 26-27
7.1 A Fronteira Oriental da Civilização Ocidental, p. 198 .
7 .2 Ucrânia: um País Rachado, p. 208
8.1 Os Estados Unidos em 2020: um País Rachado?, p. 258
PREFÁCIO

No verão de 1993, a revista Foreign Affairs publicou um artigo meu


intitulado "O Choque de Civilizações?". Segundo os editores da Foreign
Affairs, nos últimos três anos esse artigo provocou mais debates do que
qualquer outro por eles publicado desde a década de 40. Não há dúvida de
que ele foi por três anos um motivo de discussão mais forte do que qualquer
outro artigo que já escrevi. As reações e os comentários sobre ele vieram
de todos os continentes e de dezenas de países. As pessoas ficaram
impressionadas, intrigadas, indignadas, amedrontadas ou perplexas por meu
argumento de que a dimensão central e mais perigosa da política mundial
que estava emergindo seria o conflito entre grupos de civilizações
diferentes. À parte qualquer outro efeito, o artigo abalou os nervos de
pessoas de todas as civilizações.
Dados o interesse pelo artigo, sua deturpação e a controvérsia em
torno dele, pareceu-me desejável explorar mais além as questões por ele
suscitadas. Um modo construtivo de colocar uma questão é apresentá-la
como uma hipótese. O artigo, que continha um ponto de interrogação
que foi de forma geral ignorado, representava uma tentativa nesse
sentido. Este livro é uma tentativa de proporcionar uma resposta mais
ampla, mais profunda e mais minuciosamente documentada à questão
proposta no artigo. Procuro aqui elaborar, refinar, suplementar e, oca-
sionalmente, qualificar os temas expostos no artigo, bem como desen-
volver muitas idéias e cobrir muitos tópicos que, no artigo, não foram
tratados ou foram apenas citados. Dentre eles estão os seguintes: o
conceito de civilizações; a questão de uma civilização universal; o
relacionamento entre poder e cultura; o deslocamento do equilíbrio de
poder entre civilizações; a indigenização cultural nas sociedades não-oci-
dentais; a estrutura política das civilizações; os conflitos gerados pelo
universalismo ocidental, a militância muçulmana e a disposição de
afirmação chinesa; as reações de compensação e de adesão ao cresci-
mento do poder chinês; as causas e a dinâmica das guerras de linhas de
fratura e os futuros do Ocidente e de um mundo de civilizações. Um
tema importante que não constava do artigo refere-se ao impacto crucial
do crescimento populacional sobre a instabilidade e o equilíbrio de

11
poder. Um segundo tema muito importante também ausente do artigo
está sintetizado no título do livro e na frase final: "(. .. ) os choques das
civilizações são a maior ameaça à paz mundial, e uma ordem internacio-
nal baseada nas civilizações é a melhor salvaguarda contra a guerra
mundial."
Este livro não é, nem pretende ser, uma obra de ciência social. Ao
contrário, ele visa ser uma interpretação da evolução da política mundial
depois da Guerra Fria. Ele almeja apresentar uma moldura, um paradig-
ma, para o exame da política mundial que tenha significado para os
estudiosos e seja de utilidade para os formuladores de políticas. Õ teste
de seu significado e de sua utilidade não está em se ele explica tudo que
está acontecendo na política mundial. Evidentemente ele não faz isso. O
teste está em se ele fornece uma lente significativa e útil através da qual
se possa examinar os acontecimentos internacionais melhor do que
através de qualquer outra lente paradigmática. Além disso, nenhum
paradigma tem validade eterna. Conquanto um enfoque civilizacional
possa ajudar a compreender a política mundial no final do século XX e
no começo do século XXI, isso não significa que ele teria ajudado da
mesma maneira em meados do século XX ou que será de ajuda em
meados do século XXI.
As idéias que se transformaram no artigo e depois neste livro foram
expressas pela primeira vez numa conferência na série das Palestras
Bradley, no American Enterprise Institute, em Washington, em outubro
de 1992. Posteriormente, foram expostas numa monografia avulsa pre-
parada para o projeto do Instituto Olin sobre "O Ambiente de Segurança
em Mutação e os Interesses Naciçmais Norte-americanos", tornada pos-
sível pela Fundação Smith Richardson. Após a publicação do artigo,
envolvi-me em inúmeros seminários e encontros centrados no "choque"
com acadêmicos, autoridades governamentais, homens de negócios e
outros grupos, através dos Estados Unidos. Além disso, tive a satisfação
de poder participar de debates sobre o artigo e a tese nele apresent~da
em muitos outros países, incluindo a África do Sul, Alemanha, Arábia
Sa~dita, Argentina, Bélgica, China, Coréia; Espanha, Formosa, França,
Gra-Bretanha, Japão, Luxemburgo, Rússia, Singapura, Suécia e Suíça. Esses
debat:s me colocaram em contato com todas as principais civilizações, com
exceçao. do Hinduísmo, e me beneficiei imensamente das percepções e
perspeetivas dos que participaram dos mesmos. Em 1994 e 1995 ministrei um
seminário em Harvard b d , · '
so re a natureza o pos-Guerra Fria e os comentários
sempre vigorosos e às vezes bastante críticos que os alunos fizeram sobre

1 ')
minhas idéias constituíram um estímulo adicional. Meu trabalho neste livro
também se beneficiou muito do ambiente de apoio e coleguismo no
Instituto John M. Olin para Estudos Estratégicos e no Centro para Relações
Internacionais, ambos em Harvard.
O original foi lido na sua íntegra por Michael C. Desch, Robert O. .
Keohane, Fareed Zakaria e R. Scott Zimmerman, cujos comentários
levaram a melhoramentos significativos tanto na sua substância como na
sua organização. Durante todo o tempo de elaboração deste livro, Scott
Zimmerman proporcionou-me também uma assistência indispensável em
termos· de pesquisa e, sem seu auxílio dedicado, entusiástico e calcado
em amplas informações, este livro jamais poderia ter sido concluído com
a mesma rapidez. Nossos assistentes universitários, Peter Jun e Christiana
Briggs, também contribuíram de forma construtiva. Grace de Magistris
datilografou as partes iniciais do manuscrito e Carol Edwards, com grande
empenho e magnífica eficiência, refez o original tantas vezes que ela
deve saber quase de cor grandes trechos do mesmo. Denise Shannon e
Lynn Cox, na Georges Borchardt, e Robert Asahina, Robert Bender e
Johanna Li, na Simon & Schuster, encaminharam o manuscrito original,
de modo alegre e profissional, através do processo de publicação. Fico
imensamente grato a todas essas pessoas por sua ajuda em tornar este
livro uma realidade. Elas o fizeram muito melhor do que ele seria de
outra forma; as deficiências que restaram são responsabilidade minha.
Meu trabalho neste livro foi possibilitado pelo apoio financeiro da
Fundação John M. Olin e da Fundação Smith Richardson. Sem a assistência
de ambas a conclusão deste livro teria sofrido alguns anos de atraso e
fico-lhes muito agradecido pelo generoso endosso que deram aos meus
esforços. Enquanto outras fundações têm-se concentrado cada vez mais em
questões domésticas, a Olin e a Smith Richardson merecem aplausos por
manterem seu interesse em trabalhos sobre a guerra, a paz e a segurança
nacional e internacional e por darem seu apoio a eles.
S. P. H.

12
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I

UM MUNDO
DE CIVILIZAÇÕES
--~
CAPÍTULO 1

A Nova Era
da Política Mundial

BANDEIRAS E IDENTIDADE CULTURAL


m 3 de janeiro de 1992, realizou-se no auditório de um edifício

E público em Moscou um encontro de estudiosos russos e norte-


americanos. Duas semanas antes a União Soviética tinha deixado
de existir e a Federação Russa se tornara um país independente. Como
resultado disso, tinha desaparecido a estátua de Lênin que anteriormente
ornava o palco do auditório e, em vez dela, exibia-se agora a bandeira
da Federação Russa na parede da frente. Um dos norte-americanos notou
que o único problema estava em que a bandeira tinha sido pendurada
de cabeça para baixo. Depois que isso foi mencionado aos anfitriões
russos, eles rápida e discretamente retificaram o erro durante o primeiro
intervalo.
Nos anos que se seguiram à Guerra Fria, constatou-se o começo de
mudanças espetaculares nas identidades dos povos, nos símbolos dessas
identidades e, conseqüentemente, na política mundial. Bandeiras de cabeça
para baixo foram um sinal da transição, mas as bandeiras estão sendo
hasteadas cada vez mais alto e com autenticidade cada vez maior. Os
russos e outros povos estão-se mobilizando e caminham sob esses e
outros símbolos de suas novas identidades culturais.
Em 18 de abril de 1994, duas mil pessoas se concentraram em
Sarajevo, agitando as banqeiras da Arábia Saudita e da Turquia. Ao
desfraldarem essas bandeiras, em vez das da ONU, da OTAN ou dos
Estados Unidos, esses habitantes de Sarajevo se identificavam com seus
companheiros muçulmanos e indicavam ao mundo quem eram seus
verdadeiros amigos, bem como os não muito verdadeiros.
Em 16 de outubro de 1994, em Los Angeles, 70 mil pessoas
desfilaram debaixo de "um mar de bandeiras mexicanas", em protesto
contra a Proposta 187, uma disposição submetida a plebiscito que negaria
muitos benefícios estaduais aos imigrantes ilegais e. a seus filhos. Os
observadores se perguntaram por que estavam "indo pela rua com a
bandeira mexicana e exigindo que este país lhes dê ensino gratuito?
Deviam estar agitando a bandeira norte-americana". Duas semanas
depois, mais manifestantes de fato desfilaram pela rua levando uma
bandeira norte-americana - de cabeça para baixo. A exibição dessas
bandeiras assegurou a vitória da Proposta 187, que foi aprovada por 59
por cento dos eleitores da Califórnia.
No mundo pós-Guerra Fria, as bandeiras são importantes e o mesmo
ocorre com outros símbolos de identidade cultural, incluindo cruzes, luas
crescentes e até mesmo coberturas de cabeça, porque a cultura conta e
a identidade cultural é o que há de mais significativo para a maioria das
pessoas. As pessoas estão descobrindo identidades novas, e no entanto
antigas, e desfilando sob bandeiras novas, mas freqüentemente antigas,
que conduzem a guerras contra inimigos novos, mas freqüentemente
antigos.
Uma Weltanschauung sinistra dessa nova era foi muito bem
expressada pelo demagogo nacionalista veneziano no romance de
Michael Dibdin, Dead Lagoon: "Não é possível haver amigos verdadeiros
sem inimigos verdadeiros. A menos que odiemos o que não somos, não
podemos amar o que somos. Essas são as verdades antigas que estamos
penosamente redescobrindo depois de mais de um século de cantilenas
sentimentais. Aqueles que as negam, negam sua família, sua herança, sua
cultura, seu direito inato, seus próprios seres! Eles não serão perdoados."
A lamentável verdade contida nessas verdades antigas não pode ser
ignorada por estadistas e estudiosos. Os inimigos são essenciais para os
povos que estão buscando sua identidade e reinventando sua etnia e as
inimizades que têm um potencial mais perigoso estão situadas cruzando
as linhas de fratura entre as principais civilizações.
O tema central deste livro é o de que a cultura e as identidades
culturais - que, em nível mais amplo, são as identidades das civilizações
- estão moldando os padrões de coesão, desintegração e conflito no
mundo pós-Guerra Fria. Nas cinco partes deste livro elaboram-se os
corolários dessa proposição principal.
Parlei- Pela primeira vez na História, a política mundial é, ao mesmo
tempo, multipolar e multicivilizacional. A modernização econômica e
social não está produzindo nem uma civilização universal de qualquer
modo significativo, nem a ocidentalização das sociedades não-ocidentais.
Parle II- O equilíbrio de poder entre as civilizações está-se deslocan-
do: a influência relativa do Ocidente está em declínio, com as civilizações
asiáticas expandindo seu poderio econômico, militar e político; com o
Islã explodindo demograficamente, o que gera conseqüências deses-
tabilizadoras para os países islâmicos e seus vizinhos; e com as civiliza-
ções não-ocidentais, de forma geral, reafirmando o valor de suas próprias
culturas.
Parle III· Uma ordem mundial baseada na civilização está emergindo
- as sociedades que compartilham afinidades culturais cooperam umas
com as outras, os esforços para transferir sociedades de uma civilização
para outra não têm êxito e os países se agrupam em torno de Estados
líderes ou núcleos de suas civilizações.
Parle IV: As pretensões universalistas do Ocidente o levam cada vez
mais para o conflito com outras civilizações, de forma mais grave com o
Islã e a China. Enquanto isso, em nível local, guerras de linha de fratura,
precipuamente entre muçulmanos e não-muçulmanos, geram "o agrupa-
mento de países afins", a ameaça de uma escalada mais ampla e, por
conseguinte, os esforços dos Estados-núcleos para deter essas guerras.
Parle V: A sobrevivência do Ocidente depende de os norte-ameri-
canos reafirmarem sua identidade ocidental e de os ocidentais aceitarem
que sua civilização é singular e não universal, e se unirem para renová-la
e preservá-la diante de desafios por parte das sociedades não-ocidentais.
Evitar uma guerra global das civilizações depende de os líderes mundiais
aceitarem a natureza multicivilizacional da política mundial e cooperarem
para mantê-la.

UM MUNDO MULTIPOLAR E MULTICIVILIZACIONAL

No mundo pós-Guerra Fria, pela primeira vez na História, a política mundial


se tomou multipolar emulticivilizacional. Durante a maior pane da existência
da humanidade, os contatos entre as civilizações foram intermitentes ou
inexistentes. Depois, com o começo da Idade Moderna, por volta de 1500
d.C., a política mundial assumiu duas dimensões. Durante mais de 400 anos
'
os Estados-nações do Ocidente - Grã-Bretanha, França, Espanha,
Áustria, Prússia, Alemanha, Estados Unidos e outros - constituíram um
sistema internacional multipolar dentro da civilização ocidental e intera-
giram, competiram e travaram guerras uns com os outros. Ao mesmo
tempo, as nações ocidentais também se expandiram, conquistaram,
colonizaram outras civilizações ou nelas influíram de forma decisiva (Mapa
1.1). Durante a Guerra Fria, a política mundial tomou-se bipolar e o mundo
foi dividido em três partes. Um grupo de sociedades em sua maioria ricas
e democráticas, lideradas pelos Estados Unidos, engajou-se numa compe-
tição ideológica, política, econômica e, às vezes, militar, com um grupo de
sociedades comunistas um tanto mais pobres associadas com a União
Soviética e por ela lideradas. Grande parte desse conflito ocorreu no
Terceiro Mundo, fora daqueles dois campos, composto por países que,
na maioria dos casos, eram pobres, careciam de estabilidade política,
tinham recentemente se tomado independentes e se diziam não-ali-
nhados (Mapa 1.2).
No final da década de 80, o mundo comunista desmoronou e o
sistema internacional da Guerra Fria virou história passada. No mundo
pós-Guerra Fria, as distinções mais importantes entre os povos não são
ideológicas, políticas ou econômicas. Elas são culturais. Os povos e as
nações estão tentando responder à pergunta mais elementar que os seres
humanos podem encarar: quem somos nós? E estão respondendo a essa
pergunta da maneira pela qual tradicionalmente a responderam -
fazendo referência às coisas que mais lhes importam. As pessoas se
definem em termos de antepassados, religião, idioma, história, valores,
costumes e instituições. Elas se identificam com grupos culturais: tribos,
grupos étnicos, comunidades religiosas, nações e, em nível mais amplo,
civilizações. As pessoas utilizam a política não só para servir aos seus
interesses, mas também para definir suas identidades. Nós só sabemos
quem somos quando sabemos quem não somos e, muitas vezes, quando
sabemos contra quem estamos.
Os Estados-nações continuam sendo os principais atores no rela-
cionamento mundial. Seu comportamento é moldado, como no passado,
pela busca de poder e riqueza, mas é moldado também por preferências
culturais, aspectos comuns e diferenças. Os agrupamentos mais impor-
tantes de Estados não são mais os três blocos da Guerra Fria, mas sim as
sete ou oito civilizações principais do mundo (Mapa 1.3). As sociedades
não-ocidentais, especialmente na Ásia Oriental, estão desenvolvendo sua
riqueza econômica e criando as bases para um poder militar e uma
influência política maiores. À medida que aumenta seu poder e autocon-
fiança, as sociedades não-ocidentais cada vez mais afirmam seus próprios
valores culturais e repudiam aqueles que lhes foram impostos pelo
Ocidente. Henry Kissinger observou que "o sistema internacional do
século XXI (. .. ) conterá pelo menos seis potências principais - os
Estados Unidos, a Europa, a China, o Japão, a Rússia e, provavelmente,
a Índia - bem como uma multiplicidade de países de tamanho médio
e menor" .1 Os seis países principais a que se refere Kissinger pertencem
a cinco civilizações diferentes e, além disso, existem importantes Estados
islâmicos cujas localização estratégica, grande população e/ou reservas
de petróleo lhes conferem influência nos assuntos mundiais. Nesse
mundo novo, a política local é a política da etnia e a política mundial é
a política das civilizações. A rivalidade das superpotências é substituída
pelo choque das civilizações.
A política mundial está sendo reconfigurada seguindo linhas cultu-
rais e civilizacionais. Nesse mundo, os conflitos mais abrangentes,
importantes e perigosos não se darão entre classes sociais, ricos e pobres,
ou entre outros grupos definidos em termos econômicos, mas sim entre
povos pertencentes a diferentes entidades culturais. As guerras tribais e
os conflitos étnicos irão ocorrer no seio das civilizações. Entretanto, a
violência entre Estados e grupos de civilizações diferentes carrega
consigo o potencial para uma escalada na medida em que outros Estados
e grupos dessas civilizações acorrem em apoio a seus "países afins''.2 O
sangrento choque de clãs na Somália não apresenta nenhuma ameaça
de um conflito mais amplo. O sangrento choque de tribos em Ruanda
tem conseqüências para Uganda, Zaire e Burundi, mas não muito além
desses países. Os sangrentos choques de civilizações na Bósnia, no
Cáucaso, na Ásia Central e na Caxemira poderiam se transformar em
guerras maiores. Nos conflitos iugoslavos, a Rússia proporcionou apoio
diplomático aos sérvios, enquanto a Arábia Saudita, a Turquia, o Irã e a
Líbia forneceram fundos e armas para os bósnios, não por motivos de
ideologia, de política de poder ou de interesse econômico, mas devido
à afinidade cultural. Václav Havei assinalou que "os conflitos culturais
estão aumentando e são mais perigosos hoje em dia do que em qualquer
momento da História", e Jacques Delors concordou que "os futuros
conflitos serão deflagrados mais por fatores culturais do que pela
economia ou pela ideologia".3 E os conflitos culturais mais perigosos são
aqueles que ocorrem ao longo das linhas de fratura entre as civilizações.
O Ocidente e o Resto: 1920

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• Dominado pelo Ocidente
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D Efetivamente e nominalmente independente do Ocidente


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O Mundo da Guerra Fria: 1960

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• Mundo Livre

~ Bloco Comunista

D Países não-alinhados
O Mundo das Civilizações pós-1990

.Ocidental

Africana

~Islâmica

.Sínica

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Hindu
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O ortodoxa ~\~\·
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• Latino-Americana

.Budista

D japonesa
No mundo pós-Guerra Fria, a cultura é, ao mesmo tempo, uma força
unificadora e divisiva. Os povos separados pela ideologia mas unidos
pela cultura se juntam, como fizeram as duas Alemanhas, e como as duas
Coréias e as diversas Chinas estão começando a fazer. As sociedades
unidas pela ideologia ou por circunstâncias históricas, porém divididas
pela civilização, ou se partem, como aconteceu na União Soviética, na
Iugoslávia e na Bósnia, ou ficam sujeitas a fortes tensões, como é o caso
da Ucrânia, Nigéria, Sudão, Índia, Sri Lanka e muitos outros. Os países
'
que têm afinidades culturais cooperam em termos econômicos e políticos.
As organizações internacionais baseadas em Estados com aspectos
culturais em comum, tais como os da União Européia, têm muito mais
êxito do que aquelas que tentam transcender as culturas. Durante 45
anos, a Cortina de Ferro foi a linha divisória central na Europa. Essa linha
se moveu várias centenas de quilômetros para o Leste. Ela é agora uma
linha que separa os povos da Cristandade ocidental, de um lado, dos
povos muçulmanos e ortodoxos, do outro. Embora culturalmente partes
do Ocidente, a Áustria, a Suécia e a Finlândia tiveram que se manter
neutras e ficar separadas do Ocidente na Guerra Fria. Na nova era, elas
estão-se juntando a seus afins culturais na União Européia e a Polônia
a Hungria e a República Checa as estão seguindo. ' '
Os pressupostos filosóficos, os valores subjacentes, as relações
sociais, os costumes e as formas de ver a vida de forma geral se
diferenciam de modo significativo entre as civilizações. A revitalização
da religião em grande parte do mundo está reforçando essas diferenças
culturais. As culturas podem se modificar e a natureza de seu impacto sobre
a política e a economia pode variar de um período para outro. Contudo, as
principais diferenças em desenvo1vimento político e econômico entre as
civilizações estão nitidamente enraizadas em suas culturas diferentes. O êxito
econômico da Ásia Oriental tem sua origem na cultura asiática oriental da
mesma maneira que as sociedades asiáticas orientais têm tido dificulchdes
em estabelecer sistemas políticos democráticos estáveis. A cultura islâmica
explica em grande parte por que a democracia deixou de emergir na maior
parte do mundo muçulmano. A evolução dos acontecimentos nas socie-
dades pós-comunistas da Europa Oriental e na ex-União Soviética é
moldada por suas identidades civilizacionais. Aquelas que têm uma
herança cristã ocidental estão fazendo progresso na direção do desen-
volvimento econômico e da política democrática. Nos países ortodoxos
as perspectivas de desenvolvimento econômico e político são incertas.
Nas repúblicas muçulmanas, as perspectivas são sombrias.

28
O Ocidente é e continuará a ser por muitos anos a civilização mais
poderosa. Contudo, seu poder em relação ao de outras civilizações está
declinando. À medida que o Ocidente tenta impor seus valores e proteger
seus interesses, as sociedades não-ocidentais se defrontam com uma

' escolha. Algumas tentam emular o Ocidente e a ele se juntar ou "atrelar-se"


a ele. Outras sociedades confucianas e islâmicas tentam expandir seu próprio
poder econômico e militar para resistir e para "contrabalançar" o Ocidente.
Desse modo, um eixo central da política mundial pós-Guerra Fria é a
interação do poder e da cultura ocidentais com o poder e a cultura de
civilizações não-ocidentais.
Em suma, o mundo pós-Guerra Fria é um mundo de sete ou oito
civilizações principais. Os aspectos comuns e as diferenças moldam os
interesses, os antagonismos e as associações dos Estados. Os países mais
importantes do mundo provêm, em sua maioria, de civilizações diferen-
tes. Os conflitos locais que têm maior probabilidade de se transformarem
em guerras mais amplas são os que existem entre grupos e Estados de
civilizações diferentes. Os padrões predominantes de desenvolvimento
político e econômico diferem de uma civilização para outra. As questões-
chave do cenário internacional envolvem diferenças entre civilizações.
O poder está-se deslocando da civilização ocidental que há tanto tempo
predomina para civilizações não-ocidentais. A política mundial tornou-se
multipolar e multicivilizacional.

OUTROS MUNDOS?

Mapas e paradigmas. Esse quadro da política mundial do mundo


pós-Guerra Fria, moldado por fatores culturais e envolvendo as interações
entre Estados e grupos de civilizações diferentes, está aJtamente simpli-
ficado. Ele omite muitas coisas, deturpa algumas e torna outras obscuras.
No entanto, se formos pensar seriamente sobre o mundo e nele atuarmos
de forma eficaz, faz-se necessário algum tipo de mapa simplificado da
realidade, alguma teoria, conceito, modelo ou paradigma. Sem tal
construção intelectual, existe apenas, como diz William James, "uma
monumental e sonora confusão". Thomas Kühn mostrou no seu clássico
TbeStrnctureofScientificRevolutionsque o avanço intelectual e científico
consiste no deslocamento de um paradigma, que se tornou cada vez mais
incapaz de explicar fatos novos ou recém-descobertos, por um novo
paradigma, que de fato trata desses fatos de um modo mais satisfatório.
"Para ser aceita como um paradigma", escreveu Kühn, "uma teoria precisa
parecer melhor do que suas competidoras, mas não precisa - e, na

29
verdade, nunca o faz - explicar todos os fatos com os quais ela se
defronta. ,,4 John Lewis Gaddis também observou inteligentemente que
"encontrar o seu próprio caminho num terreno pouco conhecido geral-
mente requer algum tipo de mapa. A cartografia, como a própria
cognição, é uma simplificação necessária que nos permite ver onde
estamos e para onde podemos estar indo". A imagem, durante a Guerra
Fria, da competição entre as superpotências era, como ele assinala, um
modelo desse tipo, articulado pela primeira vez por Harry Truman como
"um exercício de cartografia geopolítica que representava o panorama
internacional em termos que qualquer um podia compreender e, dessa
forma, preparava o caminho para a sofisticada estratégia de contenção
que logo iria se seguir". As percepções do mundo e as teorias causais
são guias indispensáveis da política internacionaI.5
Durante 40 anos, os estudiosos e os profissionais das relações
internacionais pensaram e atuaram nos termos desse quadro altamente
simplificado, mas muito útil, dos assuntos mundiais - o paradigma da
Guerra Fria. Esse paradigma não podia explicar tudo que se passava na
política mundial. Havia muitas anomalias - para usar o termo de Kühn
- e, às vezes, o paradigma impedia que estudiosos e estadistas enxergas-
sem os desdobramentos principais, como por exemplo a ruptura sino-
soviética. Entretanto, como um modelo simples de política global, ele
explicava uma quantidade maior de fenômenos do que seus rivais,
chegou a ser aceito quase universalmente e moldou o pensamento sobre
política mundial durante duas gerações.
Os paradigmas ou mapas simplificados são indispensáveis para o
pensamento e para a ação do Homem. Por um lado, podemos formular
explicitamente tais teorias ou modelos e utilizá-los conscientemente para
guiar nosso comportamento. Por outro lado, podemos negar a neces-
sidade de tais guias e pressupor que agiremos apenas em termos de fatos
"objetivos" específicos, lidando com cada caso "em função de seus
méritos". Contudo, se aceitarmos isso, estaremos nos enganando, pois,
no fundo de nossas mentes, estão ocultas pressuposições, vieses e
preconceitos que determinam a forma pela qual nós percebemos a
realidade, para que fatos olhamos e como julgamos sua importância e
seus méritos. Necessitamos de modelos explícitos ou implícitos a fim de
sermos capazes de:

1. ordenar a realidade e sobre ela tecer generalizações;


2. compreender as relações causais entre os fenômenos;

30
3. antecipar e, se tivermos sorte, predizer desdobramentos futuros;
4. distinguir entre o que é importante e o que não é; e
5. ver os caminhos que devemos tomar para atingir nossos objetivos.

Cada modelo ou mapa é uma abstração e será mais útil para


determinadas finalidades do que para outras. Um mapa rodoviário nos
· de carro de A para B , mas não será muito útil se estivermos
mostra como lf
pilotando um avião, caso em que necessitaremos de ~m mapa que
destaque aeroportos, rádios-faróis, aerovias e a topografia. Entretanto,
sem mapa algum estaremos perdidos. Quanto mais detalhado for o ma.pa,
de forma mais completa refletirá a realidade. Porém, para mU1tos
propósitos, um mapa extremamente detalhado não será útil. S~ dese~a­
mos ir de uma cidade grande a outra numa auto-estrada principal, nao
é preciso e podemos mesmo achar confuso um mapa que inclua muitas
informações não relacionadas com o transporte automotor e no qual as
rodovias principais se percam numa massa complexa de estradas secun-
dárias. Por outro lado, um mapa que só contivesse uma auto-estrada
eliminaria muito da realidade e limitaria nossa capacidade de encontrar
rotas alternativas se a auto-estrada estivesse bloqueada por um acidente
grande. Em resumo, precisamos de um mapa que, ao mesmo tempo,
reproduza a realidade e a simplifique de tal modo que melhor at:n.da
aos nossos propósitos. No final da Guerra Fria foram apresentados vanos
mapas ou paradigmas da política mundial.

Um Só Mundo: Euforia e Harmonia. Um paradigma amplamente


articulado se baseava na pressuposição de que o fim da Guerra Fria
representava o fim de conflitos significativos na política glo~al e ~
surgimento de um mundo relativamente harmônico. A formulaçao mais
amplamente debatida de tal modelo foi a tese do "fim da História"
apresentada por Francis Fukuyama.* "Podemos estar testemunhando'',
argumentava Fukuyama, "(. .. )o fim da História como tal, ou seja, o ponto
final da evolução ideológica da Humanidade e a universalização da
democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano."
Sem dúvida, dizia ele, podem ocorrer alguns conflitos em lugares do
Terceiro Mundo, mas o conflito global está terminado e não apenas na

• No Capítulo 3, examina-se uma linha paralela de argumentação, baseada não no fin1 da ~uerr:1
Fria mas nas tendências econômicas e sociais de longo prazo que venham a produzir uma
"civilização universal".

31
Europa. "Foi precisamente no mundo não-europeu" que ocorreram as
grandes mudanças, especialmente na China e na União Soviética. A
guerra de idéias chegou ao fim. Ainda podem existir os que acreditam
no marxismo-leninismo "em lugares como Manágua, Pyongyang e Cam-
bridge, estado de Massachusetts", porém, de forma geral, a democracia
liberal triunfou. O futuro será dedicado não a grandes lutas estimulantes
sobre idéias mas sim à solução de mundanos problemas econômicos e
técnicos. E, concluía ele com certa tristeza, vai. ser tudo bastante
enfadonho. 6
A expectativa de harmonia era largamente partilhada. Líderes
políticos e intelectuais elaboraram opiniões similares. O Muro de
Berlim tinha caído, os regimes comunistas tinham desmoronado, as
Nações Unidas iriam assumir uma nova importância, os antigos rivais
da Guerra Fria se engajariam em "parceria" e numa "grande negocia-
ção", a ordem do dia seria a manutenção da paz e a imposição da paz.
O presidente do país líder mundial proclamou a "nova ordem mundial";
o decano da que talvez se possa chamar a universidade mais importante
do mundo vetou a nomeação de um professor de estudos de segurança
porque sua necessidade havia desaparecido: "Aleluia! Não estudamos
mais a guerra porque a guerra não existe mais."
O momento de euforia no fim da Guerra Fria gerou uma ilusão de
harmonia, que logo se viu não passar disso. O mundo ficou diferente no
início dos anos 90, mas não necessariamente mais pacífico. As mudanças
eram inevitáveis, o progresso não. Ilusões semelhantes ocorreram, por
breves períodos, ao final de cada um dos outros grandes conflitos do
século XX. A 1 Guerra Mundial foi "a guerra para acabar com todas as
guerras" e para tornar o mundo seguro para a democracia. A II Guerra
Mundial, na colocação de Franklin Roosevelt, iria "pôr fim ao sistema de
ações unilaterais, às alianças exclusivas, aos equilíbrios de poder e a
todos os outros expedientes que tinham sido tentados durante séculos
- e tinham fracassado sempre". Em vez disso, teríamos "uma organiza-
ção universal" de "Nações amantes da paz" e o começo de uma "estrutura
permanente de paz".7 No entanto, a I Guerra Mundial gerou o comunis-
mo, o fascismo e a inversão de uma tendência de mais de um século
rumo à democracia. A II Guerra Mundial produziu uma Guerra Fria que
foi realmente global. A ilusão de harmonia no fim da Guerra Fria logo
foi dissipada pela multiplicação de conflitos étnicos e de "limpeza étnica",
pela ruptura da lei e da ordem, pelo surgimento de novos padrões de
alianças e conflitos entre os Estados, pelo ressurgimento de movimentos

32
neocomunistas e neofascistas, pela intensificação do fundamentalismo
religioso, pelo fim da "diplomacia de sorrisos" e da "política do sim" nas
relações da Rússia com o Ocidente, pela incapacidade das Nações Unidas
e dos Estados Unidos de acabarem com sangrentos conflitos locais e pela
crescente disposição de afirmação de uma China emergente. Nos cinco
anos seguintes à queda do Muro de Berlim, a palavra "genocídio" foi
ouvida muito mais vezes do que em quaisquer cinco anos durante a
Guerra Fria. O paradigma de um só mundo harmônico está claramente
divorciado demais da realidade para ser um guia útil no mundo pós-
Guerra Fria.

Dois Mundos: Nós e Eles. Enquanto as expectativas de um mundo


único aparecem ao final de grandes conflitos, a tendência para pensar
em termos de dois mundos se repete através da história da Humanidade.
As pessoas ficam sempre tentadas a dividir as pessoas em nós e eles, o
grupo que está na onda e o outro, nossa civilização e aqueles bárbaros.
Os estudiosos analisaram o mundo em termos de Oriente e Ocidente,
Norte e Sul, centro e periferia. Os muçulmanos tradicionalmente dividem
o mundo em Dar al-Jslam e Dar al-Harb, o reino da paz e o reino da
guerra. Essa distinção se refletiu - e, num certo sentido, se inverteu-,--
ao fim da Guerra Fria por estudiosos norte-americanos que dividiram o
mundo em "zonas de paz" e "zonas de agitação". As primeiras abrangiam
o Ocidente e o Japão, com cerca de 15 por cento da população mundial,
e as últimas compreendiam todos os demais. 8
Dependendo de como se definam as partes, um quadro de um
mundo em duas partes pode, até certo ponto, corresponder à realidade.
A divisão mais comum, que aparece sob diversos nomes, é entre os países
ricos (modernos, desenvolvidos) e os países pobres (tradicionais, não-
desenvolvidos ou em desenvolvimento). Numa correlação histórica com
essa divisão econômica está a divisão cultural entre Leste e Oeste, na
qual a ênfase incide menos sobre as diferenças em termos de bem-estar
econômico e mais sobre as diferenças em filosofia subjacente, valores e
estilo de vida.9 Cada uma dessas imagens reflete alguns elementos da
realidade, porém também padece de limitações. Os países ricos moder-
nos compartilham características que os diferenciam dos países pobres
tradicionalistas, que também compartilham características entre si. As
diferenças em riqueza podem levar a conflitos entre as sociedades, porém
os dados concretos. indicam que isso ocorre sobretudo quando socieda-
des ricas e mais poderosas tentam conquistar e colonizar sociedades
pobres e mais tradicionais. O Ocidente fez isso durante 400 anos e então
algumas das colônias se rebelaram e travaram guerras de libertação contra
as potências coloniais, que possivelmente tinham perdido o gosto pelo
império. No mundo atual, já se deu a descolonização e as guerras coloniais
de libertação foram substituídas por conflitos entre os povos libertados.
Num nível mais geral, os conflitos entre ricos e pobres são impro-
váveis porque, a não ser em circunstâncias especiais, os países pobres
carecem da unidade política, do poder econômico e da capacidade militar
para desafiar os países ricos. O desenvolvimento econômico na Ásia e
na América Latina está tomando menos nítida a dicotomia simples dos
que "têm" e dos que "não têm". Os países ricos podem travar guerras de
comércio uns com os outros, os Estados pobres podem travar guerras
violentas uns com os outros, porém uma guerra internacional de classes
entre o Sul pobre e o Norte rico está quase tão distante da realidade
quanto um único mundo feliz e harmônico.
A bifurcação cultural da divisão do mundo tem utilidade ainda
menor. Em algum nível, o Ocidente é uma entidade. O que, entretanto,
as sociedades não-ocidentais têm em comum além do fato de que são
não-ocidentais? As civilizações japonesa, chinesa, hindu, muçulmana e
africana pouco compartilham em termos de religião, estrutura social,
instituições, valores predominantes. A unidade do não-Ocidente e a
dicotomia Leste-Oeste são mitos criados pelo Ocidente. Esse mitos sofrem
os defeitos do orientalismo, acertadamente criticado por Edward Said por
promover "a diferença entre o conhecido (Europa, o Ocidente, 'nós') e
o estranho (o Oriente, o Leste, 'eles')" e por pressupor a superioridade
inerente do primeiro sobre o segundo. 10 Durante a Guerra Fria, o mundo
estava, em grau considerável, polarizado de acordo com um espectro
ideológico. Não existe, porém, nenhum espectro cultural. A polarização
de "Leste" e "Oeste" em termos culturais é, em parte, uma outra porém
infeliz conseqüência da prática universal de chamar a civilização européia
de civilização ocidental. Em vez de "Leste e Oeste'', é mais apropriado
falar-se de "o Ocidente e o resto'', que, pelo menos, implica a existência
de muitos não-Ocidentes. O mundo é demasiado complexo para ser
visualizado de forma útil, para a maioria dos propósitos, como simples-
mente dividido, em termos econômicos, entre Norte e Sul ou, em termos
culturais, entre Leste e Oeste.

184 Estados, Mais ou Menos. Um terceiro mapa do mundo


pós-Guerra Fria se deriva da que é freqüentemente chamada teoria

34
"realista" das relações internacionais. De acordo com essa teoria, os
Estados são os atores principais - na verdade, os únicos atores impor-
tantes - dos assuntos mundiais, o relacionamento entre os Estados é de
anarquia e, por conseguinte, para assegurar sua sobrevivência e segu-
rança, os Estados invariavelmente tentam maximizar seu poder. Quando
um Estado vê outro Estado aumentando seu poder e, desse modo, se
tomando uma ameaça em potencial, ele tenta proteger sua própria
segurança fortalecendo seu poder e/ou aliando-se com outros Estados.
Os interesses e as ações dos mais ou menos 184 Estados do mundo
pós-Guerra Fria podem ser previstos a partir dessas pressuposições. 11
Esse quadro "realista" do mundo é um ponto de partida muito útil
para se analisar as relações internacionais e explicar grande parte do
comportamento dos Estados. Os Estados são e continuarão sendo as
entidades predominantes nos assuntos mundiais. Eles mantêm exércitos,
praticam diplomacia, negociam tratados, travam guerras, controlam os
organismos internacionais, influenciam e, em grau considerável, moldam
a produção e o comércio. Os governos dos Estados atribuem prioridade
a garantir a segurança externa dos seus Estados (embora, muitas vezes,
eles tenham que dar prioridade maior a garantir sua segurança como
governo contra ameaças internas). De forma ampla, esse paradigma
estatista de fato proporciona um quadro e um guia da política global mais
realista do que os paradigmas de um só mundo e de dois mundos.
Entretanto, também ele padece de sérias limitações.
Ele pressupõe que todos os Estados percebem seus interesses da
mesma maneira e agem do mesmo modo. Sua pressuposição simples de
que o poder é tudo constitui um ponto de partida para compreender o
comportamento dos Estados, mas não nos leva muito adiante. Os Estados
definem os seus interesses em termos de poder, mas também em termos
de muito mais. É claro que os Estados freqüentemente tentam conseguir
o equilíbrio de poder, porém se isso fosse tudo o que fizessem, os países
da Europa Ocidental teriam se coligado com a União Soviética contra os
Estados Unidos no final da década de 40. Os Estados reagem precipua-
mente às ameaças que percebem e os Estados da Europa Ocidental
naquela época viam uma ameaça política, ideológica e militar vindo do
Leste. Viam seus interesses de uma forma que não seria prevista pela
teoria realista clássica. Os valores, a cultura e as instituições influenciam
de forma ampla e profunda o modo pelo qual os Estados definem os
seus interesses. Os interesses dos Estados também são moldados não
apenas por seus valores e instituições domésticos, mas por normas e

2C
instituições internacionais. Acima e além da sua preocupação primária
com a segurança, diferentes tipos de Estados definem seus interesses de
maneiras diferentes. Os Estados com culturas e instituições semelhantes
verão um interesse comum. Os Estados democráticos têm aspectos
comuns com outros Estados democráticos e, por conseguinte, não lutam
uns com os outros. O Canadá não precisa se aliar com outra potência
para desestimular uma invasão pelos Estados Unidos.
Num nível básico, as pressuposições do paradigma estatista têm-se
confirmado através da História. Assim sendo, elas não nos ajudam a
compreender como a política mundial após a Guerra Fria diferirá da
política mundial durante a Guerra Fria e antes dela. No entanto, é evidente
que há diferenças e os Estados perseguem os seus interesses de forma
diferente de um período histórico para outro. No mundo pós-Guerra Fria,
os Estados cada vez mais definem os seus interesses em termos civiliza-
cionais. Eles cooperam e se aliam com Estados que têm culturas
semelhantes ou em comum e entram em conflito com maior freqüência
com países de culturas diferentes. Os Estados definem as ameaças em
termos das intenções dos outros Estados, e essas intenções e o modo
como elas são percebidas são profundamente moldados por considera-
ções de ordem cultural. Há menor probabilidade de que o público e os
estadistas vejam ameaças surgindo da parte de povos que eles acham
que compreendem e nos quais podem confiar devido a idioma, religião,
valores, instituições e cultura compartilhados. É muito mais provável que
vejam ameaças provindo de Estados cujas sociedades têm culturas
diferentes e que, por isso, não compreendem e nos quais sentem que
não podem confiar. Agora que uma União Soviética marxista-leninista
não mais representa uma ameaça para o Mundo Livre e que os Estados
Unidos não mais representam para o mundo comunista uma ameaça
contraposta, os países de ambos esses mundos cada vez mais vêem as
ameaças provindo de sociedades que são culturalmente diferentes.
Conquanto os Estados continuem sendo os atores principais nos
assuhtos mundiais, eles também estão sofrendo perdas de soberania,
funções e poder. As instituições internacionais agora afirmam seu direito
de julgar e de impor limitações ao que os Estados fazem em seus próprios
territórios. Em alguns casos, sobretudo na Europa, as instituições inter-
nacionais assumiram funções importantes que anteriormente eram
desempenhadas pelos Estados, e foram criadas poderosas burocracias
que operam diretamente sobre os cidadãos num plano individual. De
forma global, vem se verificando uma tendência para que os governos
dos Estados também percam poder através da devolução de poder para
entidades políticas abaixo do nível de Estado e nos âmbitos regionais,
provinciais e locais. Em muitos Estados, inclusive nos do mundo desen-
volvido, há movimentos regionais que estão promovendo uma autono-
mia substancial ou a secessão. Em grau considerável, os governos dos
Estados perderam a capacidade de controlar o fluxo de dinheiro que
entra em seus países e deles sai, e estão tendo dificuldade cada vez maior
para controlar o fluxo de idéias, de tecnologia, de bens e de pessoas. Em
resumo, as fronteiras dos Estados se tomaram cada vez mais permeáveis.
Todos esses desdobramentos levaram muitos a ver o fim progressivo do
Estado sólido, tipo "bola de bilhar'', que supostamente foi a regra desde
o Tratado de Westfália de 164812, e o surgimento de uma ordem
internacional complexa, de múltiplos níveis, que se parece mais com a
da Idade Média.

Puro Caos. O enfraquecimento dos Estados e a aparição de "Estados


fracassados" contribuem para uma quarta imagem de um mundo em
anarquia. Esse paradigma ressalta a quebra da autoridade governamental,
o esfacelamento dos Estados, a intensificação dos conflitos tribais, étnicos
e religiosos, o surgimento de máfias criminosas internacionais, o aumento
do número de refugiados para dezenas de milhões, a proliferação das
armas nucleares e outras de destruição em massa, a expansão do
terrorismo, a prevalência de massacres e de limpezas étnicas. Esse quadro
de um mundo caótico foi exposto de forma convincente e resumida nos
títulos de dois trabalhos penetrantes publicados em 1993: Out of Contrai,
de Zbigniew Brzezinski, e Pandaemonium, de Daniel Patrick Moynihan.13
Tal como o paradigma estatista, o paradigma do caos está próximo
da realidade. Ele fornece um quadro gráfico e preciso de muito do que
está acontecendo no mundo e, ao contrário do paradigma estatista, realça
as mudanças significativas que ocorreram na política mundial com o fim
da Guerra Fria. Assim, por exemplo, já em 1993 estimava-se que havia
cerca de 48 guerras étnicas em andamento pelo mundo afora e que havia
164 "reivindicações e conflitos étnico-territoriais a respeito de fronteiras"
na ex-União Soviética, dos quais 30 envolviam alguma forma de conflito
armado.1 4 Entretanto, o paradigma do caos é prejudicado ainda mais do
que o paradigma estatista por estar demasiado próximo da realidade. O
mundo pode ser caótico, mas não está inteiramente desprovido de
ordem. Uma imagem de anarquia universal e sem diferenciações propor-
ciona poucas indicações para se compreender o mundo, para se ordenar
os acontecimentos e avaliar sua importância, para predizer tendências na
anarquia, para distinguir entre tipos de caos e suas causas e conseqüên-
cias possivelmente diferentes e, finalmente, para desenvolver linhas de
orientação para os elaboradores de diretrizes governamentais.

A COMPARAÇÃO DE MUNDOS: REALISMO,


PARCIMÔNIA E PREVISÕES

Cada um desses quatro paradigmas oferece uma combinação um tanto


diferente de realismo e parcimônia. No entanto, cada um tem suas
deficiências e limitações. É possível que elas pudessem ser neutralizadas
combinando-se paradigmas e pressupondo-se, por exemplo, que o
mundo está engajado em processos simultâneos de fragmentação e
integração. 15 Ambas essas tendências de fato existem e um modelo mais
complexo se aproximará mais da realidade do que um modelo mais
simples. Contudo, isso sacrifica a parcimônia em troca do realismo e, se
levado muito longe, conduz à rejeição de todos os paradigmas ou teorias.
Além disso, ao abraçar simultaneamente duas tendências opostas, o
modelo de fragmentação-integração deixa de estabelecer sob que cir-
cunstâncias uma tendência prevalecerá e sob quais a outra é que
prevalecerá. O desafio está em desenvolver um paradigma que dê conta
de maior número de acontecimentos cruciais e forneça uma melhor
compreensão de tendências do que outros paradigmas num nível equi-
valente de abstração intelectual.
Esses quatro paradigmas também são incompatíveis uns com os
outros. O mundo não pode ser, ao mesmo tempo, um só e dividido de
maneira fundamental entre Leste e Oeste ou entre Norte e Sul. Nem o
Estado-nação pode ser a base sólida dos assuntos internacionais se estiver
se fragmentando e sendo dilacerado por lutas civis em proliferação. O
mundo é um ou dois ou 184 Estados, ou um número teoricamente infinito
de tribos, grupos étnicos e nacionalidades.
Visualizar o mundo em termos de sete ou oito civilizações evita
muitas dessas dificuldades. Com isso não se sacrifica a realidade em favor
da parcimônia, como ocorre com os paradigmas de um só mundo e de
dois mundos e, por outro lado, também não se sacrifica a parcimônia em
favor da realidade, como o fazem os paradigmas estatista e do caos. Essa
visualização proporciona uma moldura de apreensão fácil e facilmente
inteligível para se compreender o mundo, distinguindo dentre os confli-
tos os que são importantes dos que não o são, predizendo desdobra-
mentos futuros e fornecendo linhas de orientação para os elaboradores
de diretrizes. Ela também amplia e incorpora elementos dos outros
paradigmas. Ela é mais compatível com eles do que eles o são uns com
os outros. Por exemplo, um enfoque civilizacional sustenta que:

• As forças de integração no mundo são reais e são precisamente


0 que está gerando forças · contrárias de afirmação cultural e
consciência civilizacional.
• O mundo é, em certo sentido, duplo, mas a distinção fun-
damental se dá entre o Ocidente, como a civilização até aqui
dominante, e todas as demais, as quais, entretanto, têm pouco
ou nada em comum entre si. Em suma, o mundo está dividido
entre um ocidental e muitos não-ocidentais.
• Os Estados-nações são e continuarão a ser os atores mais
importantes nos assuntos mundiais, porém seus interesses, as-
sociações e conflitos são cada vez mais moldados por fatores
culturais e civilizacionais.
• O mundo é, de fato, anárquico, pleno de conflitos tribais e de
nacionalidade, porém os conflitos que representam os maiores
perigos para a estabilidade são aqueles entre Estados ou grupos
de diferentes civilizações.

Desse modo, um enfoque civilizacional apresenta um mapa relati-


vamente simples, mas não demasiado simples, para se compreender o
que está acontecendo no mundo. Ele fornece alguma base para se
distinguir entre o que é mais importante e o que é menos importante.
Pouco menos da metade dos 48 conflitos étnicos do mundo no início de
1993, por exemplo, era entre grupos de civilizações diferentes. A
perspectiva civilizacional levaria o secretário-geral da ONU e o secretário
de Estado dos Estados Unidos a concentrarem seus esforços pacificadores
em relação àqueles dentre esses conflitos que tivessem um potencial
muito maior do que outros de evoluírem para guerras mais amplas. Os
paradigmas também geram previsões, e um teste crucial da validade e
utilidade de um paradigma é o grau em que as previsões dele derivadas
se revelam mais corretas do que as de paradigmas alternativos. Um
paradigma estatista, por exemplo, leva John Mearsheimer a prever que
"a situação entre a Ucrânia e a Rússia está madura para o surto de uma
competição de segurança entre elas. Grandes potências que comparti-
lham uma fronteira comum longa e desprotegida, como a que corre entre
a Rússia e a Ucrânia, freqüentemente descambam para uma competição
movida por receios de segurança. A Rússia e a Ucrânia poderiam superar
essa dinâmica e aprender a conviver em harmonia, mas seria surpreen-
dente se o fizessem" .16 Por outro lado, um enfoque civilizacional enfatiza
os estreitos laços culturais, pessoais e históricos entre a Rússia e a Ucrânia
e a miscigenação de russos e ucranianos em ambos os países, concentran-
do-se na linha de fratura civilizacional que divide a Ucrânia oriental
ortodoxa da Ucrânia ocidental uniata, um fato histórico central, que vem
de longa data, e que Mearsheimer despreza inteiramente, em conformi-
dade com o conceito "realista" dos Estados como entidades unificadas e
com uma só identidade. Enquanto um enfoque estatista ressalta a
possibilidade de uma guerra russo~ucraniana, um enfoque civilizacional
a minimiza e, em vez disso, ressalta a possibilidade de a Ucrânia se partir
ao meio numa separação que fatores culturais levariam a que se
predissesse ser mais violenta do que a da Checoslováquia e muito menos
sangrenta do que a da Iugoslávia. Essas previsões diferentes, por seu
turno, suscitam diferentes prioridades de diretrizes. A previsão de Mears-
heimer de uma possível guerra e da conquista da Ucrânia pela Rússia
leva-o a apoiar a opção de que a Ucrânia tenha armas nucleares. Um
enfoque civilizacional encorajaria a cooperação entre a Rússia e a
Ucrânia, instaria a Ucrânia a abandonar suas armas nucleares, promoveria
uma substanciosa assistência econômica e outras medidas para ajudar a
manter a unidade e a independência da Ucrânia, e endossaria um
planejamento de contingência para a possível desagregação da Ucrânia.
Muitos acontecimentos posteriores ao fim da Guerra Fria foram
compatíveis com o paradigma civilizacional e poderiam ter sido previstos
por ele. Dentre eles estão os seguintes: a desagregação da União Soviética
e da Iugoslávia, as guerras que prosseguiram em seus antigos territórios,
o crescimento do fundamentalismo pelo mundo afora, as lutas dentro da
Rússia, da Turquia e do México por questões de identidade, a intensidade
dos conflitos por comércio entre os Estados Unidos e o Japão, os esforços
de Estados islâmicos e confucianos para adquirir armas nucleares e os
meios para lançá-las, a continuação do papel da China como uma grande
potência "de fora", a consolidação dos novos regimes democráticos em
alguns países e não em outros e a crescente corrida armamentista na Ásia
Oriental.
A relevância do paradigma civilizacional para o mundo que está
surgindo é ilustrada pelos acontecimentos que se encaixam nesse
paradigma e que ocorreram durante um período de seis meses em 1993:
• a continuação e a intensificação dos combates entre croatas,
muçulmanos e sérvios na antiga Iugoslávia;
• a omissão do Ocidente em proporcionar apoio significativo aos
muçulmanos da Bósnia ou em denunciar as atrocidades croatas
do mesmo modo como as atrocidades sérvias foram denunciadas;
• a falta de disposição da Rússia para se juntar a outros membros
do Conselho de Segurança da ONU a fim de fazer com que os
sérvios da Croácia estabelecessem a paz com o governo croata
e 0 oferecimento do Irã e de outras nações muçulmanas de
fornecer 18 mil soldados para proteger os muçulmanos da
Bósnia;
• a intensificação da guerra entre os armênios e os azeris, as
exigências turcas e iranianas de que os armênios abandonassem
as áreas conquistadas, o deslocamento de tropas turcas para a
fronteira com o Azerbaijão e de tropas iranianas através da
fronteira para o território do Azerbaijão e a advertência da Rússia
de que a ação iraniana contribuía para "a escalada do conflito"
e de que ela "o impelia para os limites perigosos da internacio-
nalização";
• a continuação dos combates na Ásia Central entre tropas russas
e guerrilheiros mujahedíns;
• a confrontação, na Conferência de Direitos Humanos em Viena,
entre o Ocidente, liderado pelo secretário de Estado Warren
Christopher, denunciando o "relativismo cultural'', e uma coliga-
ção de Estados islâmicos e confucianos rejeitando o "universalis-
mo ocidental";
• 0 redirecionamento, de modo paralelo, dos planejadores milita-
res da Rússia e da OTAN para "a ameaça do Sul";
• a votação, aparentemente seguindo quase que inteiramente
linhas civilizacionais, que designou Sydney em vez de Pequim
para sede das Olimpíadas do ano 2000;
• a venda de componentes de mísseis pela China para o Paquistão,
a resultante imposição de sanções pelos Estados Unidos contra
a China e a confrontação entre a China e os Estados Unidos por
causa da alegada transferência de tecnologia nuclear para o Irã;
• o rompimento da moratória e a realização de prova com um
artefato nuclear pela China, a despeito dos enérgicos protestos
dos Estados Unidos, e a recusa da Coréia do Norte de continuar

Á1
participando de conversações sobre o seu próprio programa de
armas nucleares;
• a revelação de que o Departamento de Defesa dos Estados
Unidos estava seguindo uma política de "contenção dupla"
dirigida contra o Irã e o Iraque;
• o anúncio pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos de
uma nova estratégia de se preparar para dois "conflitos regionais
principais'', um contra a Coréia do Norte e o outro contra o Irã
ou o Iraque;
• o apelo do presidente do Irã para que fossem feitas alianças com
a China e a Índia, a fim de que "nós possamos ter a última palavra
em acontecimentos internacionais";
• a nova legislação alemã que reduziu drasticamente a admissão
de refugiados;
• o acordo entre o presidente russo Boris Yeltsin e o presidente
ucraniano Leonid Kravchuk sobre o destino a ser dado à
esquadra do Mar Negro e outras questões;
• o bombardeio de Bagdá pelos Estados Unidos, o apoio virtual-
mente unânime dado pelos governos ocidentais e a condenação
do mesmo por quase todos os governos muçulmanos, como mais
um exemplo de "dois pesos e duas medidas" do Ocidente;
• a qualificação do Sudão pelos Estados Unidos como um país
terrorista e o julgamento do xeque Omar Abdel Rahman e seus
seguidores por conspirarem para "empreender uma guerra de
terrorismo urbano contra os Estados Unidos";
• as maiores perspectivas para o futuro ingresso da Polônia,
Hungria, República Checa e Eslováquia na OTAN;
• a eleição parlamentar russa, que demonstrou que a Rússia era,
de fato, um país "dividido'', com o povo e as elites incertas quanto
a se deviam juntar-se ao Ocidente ou desafiá-lo.

Poder-se-ia compilar uma lista comparável de acontecimentos que


demonstrariam a relevância do paradigma civilizacional para praticamen-
te qualquer período de seis meses rro início da década de 90.
Nos primeiros anos da Guerra Fria, o estadista canadense Lester
Pearson, de modo presciente, destacou o ressurgimento e vitalidade das
sociedades não-ocidentais. Ele alertou que "seria absurdo imaginar-se
que essas novas sociedades políticas que estão vindo à luz no Oriente
serão réplicas daquelas que conhecemos bem no Ocidente. O renasci-
menta dessas antigas civilizações assumirá novas formas". Assinalando
que as relações internacionais "durante muitos séculos" tinham sido as
relações entre os Estados da Europa, ele argumentou que "os problemas
de maior alcance surgem não mais entre nações no seio de uma única
civilização, mas sim entre as próprias civilizações". 17 A prolongada
bipolaridade da Guerra Fria retardou os desdobramentos que Pearson
via a caminho. O fim da Guerra Fria liberou as forças culturais e
civilizacionais que ele identificou na década de 50, e uma ampla gama
de estudiosos e observadores identificou e ressaltou o novo papel desses
fatores na política mundial. 18 Fernand Braudel fez a sábia advertência
de que, "no que se refere a qualquer pessoa interessada no mundo
contemporâneo e, mais ainda, qualquer pessoa que queira nele atuar,
'vale a pena' saber como identificar, num mapa do mundo, quais são as
civilizações que existem hoje em dia, ser capaz de definir seus limites,
seus centros e periferias, suas províncias e o tipo de ar que nelas se
respira, os 'formatos' gerais e particulares que existem e que se associam
em seu âmbito. Do contrário, nem pensar nos equívocos catastróficos
que se poderiam produzir!". 19
CAPÍTULO 2

As Civilizações na História
e na Atualidade

l
A NATUREZA DAS CIVILIZAÇÕES
História da humanidade ~ a História das civil~zações. É impossível

A pensar-se no desenvolvimento da Humanidade em quaisquer


outros termos. A narrativa se estende através de gerações de
civilizações, desde as antigas civilizações sumeriana e egípcia, passando
pela clássica e mesoamericana, até a ocidental e islâmica e através de
sucessivas manifestações de civilizações sínicas e hindus. Através da
História, as civilizações proporcionaram as identificações mais amplas
para os povos. Como resultado, as causas, o aparecimento, o crescimento,
as interações, as realizações, o declínio e a queda das civilizações foram
extensamente explorados por destacados historiadores, sociólogos e
antropólogos, incluindo, dentre outros, Max Weber, Emile Durkheim,
Oswald Spengler, Pitrim Sorokin, Arnold Toynbee, Alfred Weber, A. L.
Kroeber, Philip Bagby, Carroll Quigley, Rushton Coulborn, Christopher
Dawson, S. N. Eisenstadt, Fernand Braudel, William H. McNeill, Adda
Bozeman, Immanuel Wallerstein e Felipe Fernández-Armesto.1 Esses e
outros escritores produziram uma literatura volumosa culta e sofisticada
dedicada à análise comparativa das civilizações. Essa literatura está chei~
de diferenças de perspectiva, metodologia, enfoque e conceitos. No
e.m:nto, existe também uma concordância generalizada sobre as propo-
siçoes fundamentais a respeito de natureza, identidade e dinâmica das
civilizações.
Em primeiro lugar, há uma distinção entre civilização, no singular,
e civilizações, no plural. A idéia de civilização foi desenvolvida pelos
pensadores franceses do século XVIII, em oposição ao conceito de
"barbarismo". A sociedade civilizada diferia da sociedade primitiva
porque era estabelecida, urbana e alfabetizada. Ser civilizado era bom,
não ser civilizado era ruim. O conceito de civilização fornecia um padrão
pelo qual as sociedades podiam ser julgadas, e durante o século XIX os
europeus dedicaram muita energia intelectual, diplomática e política à
elaboração dos critérios pelos quais as sociedades não-européias pode-
riam ser julgadas suficientemente "civilizadas" para serem aceitas como

l membros do sistema internacional dominado pelos europeus. Ao mesmo


tempo, porém, as pessoas cada vez mais falavam de civilizações, no
plural. Isso significava "renunciar à civilização definida como um ideal,
ou melhor, como o ideal", e um afastamento da pressuposição de que
havia um único padrão para o que era civilizado, "confinado a umas
poucas pessoas ou grupos privilegiados, a 'elite' da humanidade", na
frase de Braudel. Em vez disso, havia muitas civilizações, cada uma das
quais era civilizada à sua própria maneira. Em suma, a civilização, no
singular, "perdeu um pouco do seu encanto", e uma civilização no
sentido plural podia na realidade ser bastante não-civilizada no sentido
singular. 2
Este livro se ocupa das civilizações no plural. Contudo, a distinção
entre o sentido singular e o plural continua sendo relevante e a idéia de
civilização no singular reapareceu no argumento de que existe uma
civilização mundial universal. Esse argumento não pode ser sustentado,
e é útil examinar, como será feito no último capítulo deste livro, se as
civilizações estão ou não ficando mais civilizadas.
Em segundo lugar, uma civilização é uma entidade cultural, com
exceção do que se pensa na Alemanha. Os pensadores alemães do século
XIX traçaram uma nítida distinção entre civilização, que envolvia mecâ-
nica, tecnologia e fatores materiais, e cultura, que envolvia valores, ideais
e as qualidades intelectuais, artísticas e morais de uma sociedade,
consideradas mais elevadas. Essa distinção persistiu no pensamento
alemão, mas não foi aceita em outros lugares. Alguns antropólogos
chegaram até a inverter a relação e conceberam as culturas como
características de sociedades primitivas, estáticas e não-urbanas, enquan-
to que as sociedades mais complexas, desenvolvidas, urbanas e dinâmi-
cas são civilizações. Entretanto, essas tentativas para distinguir entre
cultura e civilização não tiveram aceitação e, fora da Alemanha, existe
uma concordância generalizada com a colocação de Braudel de que é
"ilusório desejar, à maneira alemã, separar a cultura de seus alicerces, a
civilização". 3
Civilização e cultura se referem, ambas, ao estilo de vida em geral
de um povo, e uma civilização é uma cultura em escrita maior. As duas
envolvem "os valores, as normas, as instituições e os modos de pensar
aos quais sucessivas gerações numa determinada sociedade atribuíram
uma importância fundamental" .4 Para Braudel, uma civilização é "um
espaço, uma 'área cultural', (. .. ) uma coletânea de características e
fenômenos culturais". Wallerstein a define como "uma concatenação
especial de visão do mundo, de costumes, de estruturas e de cultura
(tanto a cultura material como a alta cultura), que forma alguma espécie
de totalidade histórica e que coexiste (ainda que nem sempre de forma
simultânea) com outras variedades desse fenômeno". Segundo Dawson,
uma civilização é o produto de "um processo especialmente original de
criatividade cultural que é o trabalho de um povo em particular",
enquanto que para Durkheim e Mauss ela é "uma espécie de ambiente
moral que abrange um certo número de nações, sendo cada cultura
nacional apenas uma forma especial do todo". Para Spengler, uma
civilização é "o destino inevitável da cultura (. .. ) os estados mais
exteriores e artificiais dos quais é capaz uma espécie de humanidade
desenvolvida (. .. ) uma conclusão, a coisa-que-é se sucedendo à coisa-
que-está-sendo". A cultura é o tema comum em praticamente todas as
definições de civilização.5
Os elementos culturais chave que definem uma civilização foram
expostos de forma clássica pelos atenienses, quando tranqüilizaram os
espartanos no sentido de que não os trairiam com os persas:

Pois há muitas e poderosas considerações que nos proíbem de assim


fazer, mesmo que a tanto estivéssemos inclinados. Primeiro e mais
importante que tudo, as imagens e as moradas dos deuses, queimadas
e deixadas em ruínas: isso requer de nós vingança no mais alto grau,
em vez de chegar a acordo com o homem que perpetrou tais atos. Em
segundo lugar, a raça grega, tendo o mesmo sangue e a mesma língua,
e em comum os templos dos deuses e os sacrifícios, e sendo nossos
costumes semelhantes, não estaria bem que os atenienses se tomassem
traidores disso.

Sangue, língua, religião, estilo de vida era o que os gregos tinham


em comum e o que os distinguia dos persas e dos outros não-gregos.6
Entretanto, de todos os elementos objetivos que definem as civilizações,
o mais importante geralmente é a religião, como enfatizaram os atenien-
ses. Em larga medida, as principais civilizações na História da Humani-
dade se identificaram intimamente com as grandes religiões do mundo,
e povos que compartilham etnia e idioma podem, como no Líbano, na
antiga Iugoslávia e no Subcontinente indiano, massacrar-se uns aos
outros porque acreditam em deuses diferentes. 7
Existe uma correspondência significativa entre a divisão dos povos
por características culturais em civilizações e sua divisão por caracterís-
ticas físicas em raças. No entanto, civilização e raça não são a mesma
coisa. Povos da mesma raça podem estar profundamente divididos pela
civilização e povos de raças diferentes podem estar unidos pela civiliza-
ção. Em especial as grandes religiões missionárias, o Cristianismo e o
Islã, abrangem sociedades com variedade de raças. As distinções cruciais
entre os grupos humanos se referem a seus valores, crenças, instituições
e estruturas sociais, não a seu tamanho físico, formato da cabeça e cor
da pele.
Em terceiro lugar, as civilizações são abrangentes, isto é, nenhuma
de suas unidades constituintes pode ser plenamente compreendida sem
alguma referência à civilização que a abrange. Toynbee argumentou que
as civilizações "compreendem sem serem compreendidas por outras".
Uma civilização é uma "totalidade". Melko prossegue dizendo que as
civilizações

têm um certo grau de integração. Suas partes são definidas por seu
relacionamento umas com as outras e com o conjunto delas. Se a
civilização se compõe de Estados, esses Estados guardarão mais relação
uns com os outros do que com Estados fora da sua civilização. Eles
podem lutar mais e se engajar com maior freqüência num relacionamen-
to diplomático. Eles terão maior interdependência econômica. Haverá
correntes estéticas e filosóficas profundas.8

Uma civilização é a entidade cultural mais ampla. As aldeias, as


regiões, os grupos étnicos, as nacionalidades, os grupos religiosos, todos
têm culturas distintas em diferentes níveis de heterogeneidade cultural.
A cultura de um vilarejo no sul da Itália pode ser diferente da de um
vilarejo no norte da Itália, mas ambos compartilharão uma cultura italiana
comum, que os distingue de vilarejos alemães. As comunidades euro-
péias, por sua vez, compartilharão aspectos culturais que as distinguem
de comunidades chinesas ou hindus. Os chineses, os hindus e os
ocidentais, entretanto, não são parte de nenhuma entidade cultural mais
ampla. Eles constituem civilizações. Uma civilização é assim o mais alto

À"7
agrupamento cultural de pessoas e o mais amplo nível de identidade
cultural que as pessoas têm aquém daquilo que distingue os seres
humanos das demais espécies. Ela é definida por elementos objetivos
comuns, tais como língua, história, religião, costumes, instituições e pela
auto-identificação subjetiva das pessoas. As pessoas têm níveis de
identidade: um morador de Roma pode se definir em graus variáveis de
intensidade como um romano, um italiano, um católico, um cristão, um
europeu, um ocidental. A civilização à qual ele pertence é o nível mais
amplo de identificação com o qual ele se identifica de forma intensa. As
civilizações são o maior "nós" dentro do qual nos sentimos culturalmente
à vontade, em contraste com todos os outros "eles" por aí afora. As
civilizações podem envolver um grande número de pessoas, tal como a
civilização chinesa, ou um número muito pequeno de pessoas, tal como
os caribenhos anglófonos. Através da História, existiram muitos grupos
pequenos de pessoas que possuíam uma cultura distinta e que careciam
de qualquer identificação cultural mais ampla. Têm-se feito distinções
em termos de tamanho e importância entre civilizações principais e
periféricas (Bagby), ou civilizações principais e paradas no tempo ou
abortivas (Toynbee). Este livro se ocupa das que são geralmente consi-
deradas como as principais civilizações da História humana.
As civilizações não têm fronteiras nitidamente definidas nem come-
ços e fins precisos. Os povos podem redefinir - e de fato o fazem -
suas identidades e, em conseqüência, a composição e as formas das
civilizações mudam com o tempo. As culturas dos povos interagem e se
superpõem. Também varia muito o grau em que as culturas das civiliza-
ções se assemelham ou diferem umas das outras. Não obstante, as
civilizações são entidades que têm um sentido e, conquanto as linhas
entre elas raramente sejam nítidas, elas são reais.
Em quarto lugar, as civilizações são mortais, porém duram muito
tempo. Elas evoluem, se adaptam e são as mais duradouras dentre as
associações humanas, "realidades de uma extrema tangue durée'. Sua
"essência única e particular" é "a sua longa continuidade histórica. A
civilização é, na verdade, a história mais comprida de todas." Os impérios
ascendem e caem, os governos vêm e vão, as civilizações perduram e
"sobrevivem às convulsões políticas, sociais, econômicas, até mesmo
ideológicas" .9 Bozeman conclui que "a história internacional documenta
com acerto a tese de que os sistemas políticos são expedientes transitórios
na superfície da civilização e de que o destino de cada comunidade
unificada lingüística e moralmente depende, em última análise, da
sobrevivência de certas idéias fundamentais de estruturação, em torno
das quais gerações sucessivas se congregaram e que assim simbolizam
a continuidade da sociedade" .10 Praticamente todas as principais civili-
zações do mundo no século XX ou já existem há um milênio ou, como
ocorre na América Latina, são o fruto imediato de uma outra civilização
de longa duração.
Ao mesmo tempo em que as civilizações perduram, elas também
evoluem. Elas são dinâmicas, ascendem e caem, se fundem e se dividem
e, como todo aluno de História sabe, elas também desaparecem e são
enterradas nas areias do tempo. As fases de sua evolução podem ser
especificadas de diversas maneiras. Quigley vê as civilizações passando
por sete estágios: mescla, gestação, expansão, era de conflito, império
universal, decadência e invasão. Melko generaliza um modelo de
mudanças a partir de um sistema feudal cristalizado para um sistema
feudal em transição, para um sistema de Estado cristalizado, para um
sistema de Estado em transição, para um sistema imperial cristalizado.
Toynbee vê uma civilização surgindo como uma resposta a desafios
e passando então por um período de crescimento que envolve um
crescente controle sobre seu ambiente produzido por uma minoria
criativa, seguido por um tempo de dificuldades, a ascensão de um Estado
universal e depois a desintegração. Conquanto existam diferenças signi-
ficativas, todas essas teorias vêem as civilizações evoluindo através de
um tempo de dificuldades ou conflito para um Estado universal e daí
para a decadência e a desintegração. 11
Em quinto lugar, como as civilizações são entidades culturais e não
políticas, elas, como tal, não mantêm a ordem, não estabelecem a justiça,
não arrecadam impostos, não travam guerras, não negociam tratados nem
fazem quaisquer das coisas que fazem os governos. A composição
política das civilizações varia entre elas e, dentro de uma mesma
civilização, varia com o tempo. Uma civilização pode assim conter uma
ou mais unidades políticas. Essas unidades podem ser cidades-Estados,
impérios, federações, confederações, Estados-nações, Estados multina-
cionais, todos eles podendo ter formas várias de governo. À medida que
uma civilização evolui, normalmente ocorrem mudanças na quantidade
e na natureza das unidades políticas que a constituem. Num extremo,
pode haver coincidência entre uma civilização e uma entidade política.
Lucian Pye comentou que a China é "uma civilização que pretende ser
um Estado''. 12 O Japão é uma civilização que é um Estado. Entretanto, a
maioria das civilizações contém mais de um Estado ou outra entidade
política. No mundo moderno, as civilizações ocidental, ortodoxa, latino-
americana, islâmica, hindu e até a chinesa contêm dois ou mais Estados,
embora em várias delas haja um Estado-núcleo ou líder: China, Índia,
Rússia. Historicamente, o Ocidente conteve um número grande de
Estados, mas também um número reduzido de Estados-núcleos (por
exemplo, França, Grã-Bretanha, Alemanha e Estados Unidos) cuja in-
fluência variou com o tempo. Nos seus grandes dias, o Império Otomano
era o Estado-núcleo da civilização islâmica; nos tempos modernos,
porém, não houve um Estado-núcleo islâmico, situação que também
ocorre na América Latina e na África.
Por último, de forma geral os estudiosos estão de acordo quanto à
identificação que fazem das principais civilizações da História e quanto
às que existem no mundo moderno. Entretanto, eles freqüentemente
discordam quanto ao número total de civilizações que existiram na
História. Quigley sustenta 16 nítidos casos históricos e muito provavel-
mente oito adicionais. Toynbee primeiramente colocou a cifra em 21,
depois em 23. Spengler especifica oito culturas principais. McNeill
examina nove civilizações na História toda. Bagby também vê nove
civilizações principais, ou 11, caso o Japão e a Ortodoxia sejam dis-
tinguidas da China e do Ocidente. Braudel identifica nove e Rostovanyi,
sete civilizações principais contemporâneas. 13 Essas diferenças depen-
dem em parte de se grupos culturais como os chineses e os indianos são
considerados como tendo tido uma única civilização ao longo da História
ou duas ou mais civilizações intimamente relacionadas, uma das quais é
fruto da outra. Apesar dessas diferenças, a identidade das civilizações
principais não é contestada. Após examinar trabalhos sobre o assunto,
Melko concluiu que existe uma "concordância razoável" a respeito de
pelo menos 12 civilizações principais, sete das quais não mais existem
(mesopotâmica, egípcia, cretense, clássica, bizantina, mesoamericana e
andina) e cinco ainda existentes (chinesa, japonesa, indiana, islâmica e
ocidental). 14 Para nossos propósitos, no mundo contemporâneo é útil
acrescentar a essas seis civilizações a latino-americana e, possivelmente,
a africana.
Assim, as principais civilizações contemporâneas são as seguintes:

Sínica. Todos os estudiosos reconhecem a existência ou de uma


única e distinta civilização chinesa que vem pelo menos de 1500 a.C., e
talvez de mil anos antes, ou de duas civilizações chinesas, uma sucedendo t
à outra nos primeiros séculos da era cristã. No meu artigo na Foreign
Affairs, rotulei essa civilização de confuciana. Entretanto, é mais correto
usar o termo "sínica". Conquanto o Confucionismo seja um dos compo-
nentes principais da civilização chinesa, ela é mais do que o Confucio-
nismo e também transcende a China como entidade política. O termo
"sínica'', que foi usado por muitos estudiosos, descreve de forma
apropriada a cultura comum da China e das comunidades chinesas do
Sudeste Asiático e em outros lugares fora da China, bem como as culturas
com ela relacionadas do Vietnã e da Coréia.

japonesa. Alguns estudiosos combinam as culturas japonesa e


chinesa sob o título de uma única civilização extremo-oriental. A maioria,
porém, não o faz e, ao contrário, reconhece o Japão como uma civilização
distinta que foi fruto da civilização chinesa, emergindo durante o período
entre 100 e 400 d.C.

Hindu. Reconhece-se de forma universal que existiram uma ou mais


civilizações sucessivas no Subcontinente desde pelo menos 1500 a.e. De
modo geral, elas são chamadas de indiana, índica ou hindu, sendo este
último termo preferido para se referir à civilização mais recente. De uma
ou de outra forma, o Hinduísmo foi fundamental para a cultura do
Subcontinente desde o segundo milênio antes da era Cristã. "Mais do que
uma religião ou um sistema social, ele é o núcleo da civilização indiana." 15
Ele continuou a desempenhar esse papel através dos tempos modernos,
embora a própria Índia tenha uma substanciosa comunidade muçulmana,
bem como várias minorias culturais mais reduzidas. Tal como sínica, o
termo "hindu" também separa o nome da civilização do nome do seu
Estado-núcleo, o que é desejável quando, como nesses casos, a cultura
da civilização se estende para além do Estado.

Islâmica. Todos os principais estudiosos reconhecem a existência


de uma civilização islâmica distinta. Originando-se na Península Arábica
no século VII d.C., o Islã se espalhou rapidamente através do norte da
África e da Península Ibérica, bem como, na direção do leste, pela Ásia
Central, pelo Subcontinente e pelo Sudeste Asiático. Em conseqüência,
existem dentro do Islã muitas culturas distintas, inclusive árabe, turca,
persa e malaia.

Ortodoxa. Alguns estudiosos distinguem uma civilização Ortodoxa,


centrada na Rússia e separada da Cristandade Ocidental, como resultado
t de sua ascendência Bizantina, religião distinta, 200 anos de leis Tártaras,
despotismo burocrático e exposição limitada ao Renascimento, Iluminis-
mo e outras experiências fundamentais do Ocidente
Ocidental. A civilização ocidental é geralmente dada como tendo
surgido por volta de 700 ou 800 d.C. De forma geral, ela é vista pelos
estudiosos como tendo três componentes principais na Europa, América
do Norte e América Latina.

Latino-americana. A América Latina, entretanto, evoluiu por um


caminho bastante diferente dos da Europa e da América do Norte. Um
produto da civilização européia, ela também incorpora, em graus varia-
dos, elementos de civilizações indígenas americanas que não se encon-
tram na América do Norte e na Europa. Ela teve uma cultura corporativis-
ta, autoritária, que existiu em muito menor grau na Europa e não existiu
em absoluto na América do Norte. A Europa e a América do Norte
sentiram, ambas, os efeitos da Reforma e combinaram as culturas católica
e protestante. Historicamente, embora isso possa estar mudando, a
América Latina sempre foi católica. A civilização latino-americana incor-
pora culturas indígenas, que não existiram na Europa, foram efetivamente
eliminadas na América do Norte e que variam de importância no México,
América Central, Peru e Bolívia, de um lado, até a Argentina e o Chile,
de outro. A evolução política e o desenvolvimento econômico latino-
americanos se diferenciaram muito dos padrões que prevaleceram nos
países do Atlântico Norte. Do ponto de vista subjetivo, os próprios
latino-americanos se encontram divididos no que se refere à sua auto-
ídentificação. Alguns dizem: "É, fazemos parte do Ocidente." Outros
afirmam: "Não, temos nossa própria cultura singular." E uma vasta
literatura de autores latino-americanos e norte-americanos desenvolve
suas diferenças culturais. 16 A América Latina poderia ser considerada ou
uma subcivilização dentro da civilização ocidental ou uma civilização
separada, intimamente afiliada ao Ocidente e dividida quanto a se seu
lugar é ou não no Ocidente. Esta última é a designação mais apropriada
e útil para uma análise que se concentre nas implicações políticas
internacionais das civilizações, inclusive as relações entre a América
Latina, de um lado, e a América do Norte e a Europa, do outro.
Dessa forma, o Ocidente inclui a Europa e a América do Norte, e
também outros países de colonização européia como a Austrália e a Nova
Zelândia. Contudo, a relação entre os dois componentes principais do
Ocidente se modificou com o tempo. Durante grande parte de sua
História, os norte-americanos definiram sua sociedade em oposição à
Europa. A América do Norte era a terra da liberdade, da igualdade, da
oportunidade, do futuro; a Europa representava a opressão, os conflitos
de classe, a hierarquia, o atraso. Dizia-se até que a América do Norte era
uma civilização distinta. Essa postulação de uma oposição entre a
América do Norte e a Europa era, em larga medida, resultante do fato de
que, pelo menos até o final do século XIX, a América do Norte tinha
apenas contatos limitados com civilizações não-ocidentais. Porém, depois
que os Estados Unidos saíram para o cenário mundial, desenvolveu-se
uma sensação de uma identidade mais ampla com a Europa. 17 Enquanto
a América do Norte do século XIX definia a si própria como diferente da
Europa e oposta a ela, a América do Norte do século XX se definiu como
parte e, na verdade, líder de uma entidade mais ampla, o Ocidente, que
inclui a Europa.
O termo "o Ocidente" é agora usado universalmente para se referir
ao que se costumava chamar de Cristandade Ocidental. O Ocidente é
assim a única civilização identificada por uma direção da bússola e não
pelo nome de um povo, religião ou área geográfica em particular.* Essa
identificação retira a civilização do seu contexto histórico, geográfico e
cultural. Historicamente, a civilização ocidental é a civilização européia.
Na era moderna, a civilização ocidental é a civilização euro-americana
ou do Atlântico Norte. A Europa, a América do Norte e o Atlântico Norte
podem ser localizados num mapa; o Ocidente não. O termo "o Ocidente"
também deu lugar ao conceito de "ocidentalização" e promoveu uma
fusão de ocidentalização e modernização: é mais fácil pensar no Japão
"ocidentalizando-se" do que "se euro-americanizando". Entretanto, a
civilização européia-americana é universalmente mencionada como civi-
lização ocidental e esta expressão, apesar de suas sérias deficiências, será
utilizada aqui.

Africana (possivelmente). Os principais estudiosos de civilização,


com exceção de Braudel, não reconhecem uma civilização africana
distinta. O norte do continente africano e sua costa leste pertencem à
civilização islâmica. Historicamente, a Etiópia, com suas instituições
distintas, igreja monofisista e língua escrita, constituiu uma civilização

• O uso de "Leste" e "Oeste" para identificar áreas geográficas causa confusão e é etnocêntrico.
"Norte" e "Sul" têm pontos de referência fixos, aceitos universalmente, nos pólos. "Leste" e
"Oeste" não dispõem de tais pontos de referência. A questão é: a leste e a oeste de quê? Tudo
depende de onde se está. Pode-se presumir que, originariamente, "Oeste" e "Leste" se referiam
às partes ocidental e oriental da Eurásia. Entretanto, de um ponto de vista norte-americano,
o Extremo Oriente é, na realidade, o Extremo Ocidente. Durante a maior parte da história
chinesa, o Ocidente significava a Índia, enquanto que, "no Japão, 'o Ocidente' geralmente
significava a China". William E. Naff, "Reflections on the Question of 'East and West' from the
Point of View of Japan" [Reflexões sobre a Questão de 'Leste e Oeste' do Ponto de Vista do
Japão]. Comparative Civilizations Review, 13-14 (Outono de 1985 e Primavera de 1986), 228.
própria. Em outros pontos, o imperialismo e os colonizadores europeus
trouxeram elementos da civilização ocidental. Na África do Sul, coloni-
zadores holandeses, franceses e, depois, ingleses, criaram uma cultura
européia multifragmentada. 18 Mais importante ainda, o imperialismo
europeu levou o Cristianismo para a maior parte do continente ao sul do
Saara. Contudo, pela África afora, as identidades tribais são profundas e
intensas, embora os africanos estejam também desenvolvendo cada vez
mais uma noção de identidade africana, sendo possível que a África
subsaárica se junte numa civilização distinta, sendo possivelmente a
África do Sul seu Estado-núcleo.
A religião é uma característica central definidora das civilizações e,
como disse Christopher Dawson, "as grandes religiões são os alicerces
sobre os quais repousam as civilizações" .19 Das cinco "religiões mundiais"
de Weber, quatro - Cristianismo, Islamismo, Hinduísmo e Confucionis-
mo - estão associadas com civilizações principais. A quinta, o Budismo,
não está. Por quê? Tal como o Islamismo e o Cristianismo, o Budismo
cedo se separou em duas subdivisões principais e, como o Cristianismo,
não sobreviveu na sua terra natal. A partir do século I d.C., o Budismo
maaiano foi exportado para a China e subseqüentemente para a Coréia,
Vietnã e Japão. Nessas sociedades, o Budismo foi adaptado de formas
diversas, assimilado à cultura indígena (na China, por exemplo, ao
Confucionismo e ao Taoísmo) e eliminado. Em conseqüência, embora o
Budismo continue sendo um componente importante de suas culturas,
essas sociedades não constituem parte de uma civilização budista nem
como tal se identificariam. Entretanto, o que pode ser descrito legitima-
mente como uma civilização budista therevada de fato existe em Sri
Lanka, Birmânia, Tailândia, Laos e Cambódia. Além disso, as populações
do Tibete, Mongólia e Butão historicamente se filiaram à variante lamaísta
do Budismo maaiano, e essas sociedades constituem uma segunda área
da civilização budista. De forma geral, porém, a virtual extinção do
Budismo na Índia e sua adaptação e incorporação às culturas existentes
na China e no Japão significam que o Budismo, embora sendo uma
religião importante, não foi a base de uma civilização importante.•20

• E a civilização judaica? A maioria dos estudiosos de civilização mal a mencionam. Em tennos


de quantidade de pessoas, obviamente o Judaísmo não é uma civilização importante. Toynbee
ª. ~escrev: co'.11º uma civilização parada no tempo, que evoluiu a partir da anterior civilização
s~aca. Historicamente ela está associada tanto com o Cristianismo como com o Islã e durante
secu 1os os JU
· d eus preservaram sua identidade cultural no seio das civilizações ' ocidental
ortodoxa e is . ram1ca.
. com a criação de Israel, os judeus têm todos os atributos de uma'

C:/,
AS RELAÇÕES ENTRE AS CIVILIZAÇÕES

Encontros: as Civilizações antes de 1500 d.C. As relações entre as


civilizações evoluíram através de duas fases e estão agora numa terceira.
Durante mais de três mil anos depois que as civilizações emergiram pela
primeira vez, com algumas exceções, não hou~e contatos entre elas ou
os contatos foram limitados ou intermitentes e intensos. A natureza desses
contatos está bem expressa pela palavra que os historiadores utilizam
para descrevê-los: "encontros". 21 As civilizações estiveram separadas pelo
tempo e pelo espaço. Apenas um pequeno número delas existiu a um
mesmo tempo determinado e há uma distinção significativa, como
apontaram Benjamin Schwartz e Shmuel Eisenstadt, entre as civilizações
da Era Axial e da Era Pré-axial em termos de se elas reconheciam ou não
uma distinção entre as "ordens mundanas e transcendentais". As civiliza-
ções da Era Axial, ao contrário das suas predecessoras, tinham mitos
transcendentais propagados por uma classe intelectual definida: "os
profetas e sacerdotes judeus, os filósofos e sofistas gregos, os literatos
chineses, os brâmanes hindus, os sangha budistas e os ulemás islâmi-
cos " .22 Al gumas reg1oes
·- testemun h aram d uas ou três gerações de civili-
zações afins, com o desaparecimento de uma civilização e um interregno
seguido pela ascensão de outra geração sucessora. A Figura 2.1 é uma
tabela simplificada (reproduzida de obra de Carrol! Quigley) das relações
entre as principais civilizações eurasianas através dos tempos.
As civilizações também estavam separadas geograficamente. Até
1500 d.C., as civilizações andina e mesoamericana não tinham contato
algum com outras civilizações ou uma com a outra. As primeiras
civilizações nos vales dos rios Nilo, Tigre-Eufrates, Indus e Amarelo
também não interagiram. Os contatos acabaram de fato por se multiplicar
no Mediterrâneo oriental, no Sudoeste Asiático e na Índia setentrional.
Entretanto as comunicações e as relações comerciais eram restringidas
pelas distâncias que separavam as civilizações e pelos limitados meios
de transporte disponíveis para superar as distâncias. Conquanto houvesse

civilização: religião, idioma, costumes, literatura, instituições e um lar territorial e político.


Mas e no que se refere à identificação subjetiva? Os judeus que vivem em outras culturas se
distribuíram ao longo de uma continuidade que se estende desde a identificação total com 0
Judaísmo e Israel até um Judaísmo nominal e plena identificação com a civilização dentro da
qu~l residem, estes últimos, contudo, ocorrendo precipuamente dentre os que vivem no
Ocidente. Ver Mordechai M. Kaplan, judaism as a Civilization [O Judaísmo como uma
Civilização] (Filadélfia: Reconstructionist Press, 1981; originalmente publicado em 1934),
especialmente pp. 173-208.
algum comerc10 por mar no Mediterrâneo e no Oceano Índico, "os
cavalos que atravessavam as estepes, não os navios à vela que cruzavam
oceanos, foram os meios de locomoção pelos quais as civilizações
isoladas do mundo de antes de 1500 d.C. se ligaram entre si - na
escassa medida em que efetivamente mantiveram contatos umas com
as outras". 23 As idéias e a tecnologia passaram de civilização para
civilização, mas isso freqüentemente demandou séculos. Talvez a
difusão cultural mais importante que não resultou de conquista tenha
sido a disseminação do Budismo para a China, que ocorreu cerca de
600 anos após sua origem na Índia setentrional. A imprensa foi inventada
na China no século VIII d.C. e os tipos móveis no século XI, porém essa
tecnologia só chegou à Europa no século XV. O papel foi introduzido
na China no século II d.C., chegou ao Japão no século VII e se difundiu,
na direção oeste, para a Ásia Central no século VIII, para o Norte da
África no X, para a Espanha no XI e para a Europa Setentrional no XIII.
Outra invenção chinesa, a pólvora, que ocorreu no século IX, dis-
seminou-se para os árabes algumas centenas de anos depois e atingiu a
Europa no século XIV. 24
Os contatos mais espetaculares e significativos entre as civilizações
se deram quando povos de uma civilização conquistaram e eliminaram
ou subjugaram os povos de outra. Normalmente, esses contatos foram
não só violentos como breves, e ocorreram apenas de modo intermitente.
A partir do século XVII d.C., contatos intercivilizacionais relativamente
continuados e às vezes intensos se desenvolveram entre o Islã e o
Ocidente e entre o Islã e a Índia. Entretanto, a maioria das interações
comerciais, culturais e militares se deram dentro de uma mesma civiliza-
ção. Embora a Índia e a China, por exemplo, tenham sido, ocasional-
mente, invadidas e subjugadas por outços povos (mogóis, mongóis),
ambas as civilizações também tiveram longos períodos de "Estados em
guerra" dentro de cada civilização. Analogamente, os gregos guerrearam
e comercializaram uns com os outros muito mais do que o fizeram com
os persas ou outros não-gregos.

Impacto: a Ascensão do Ocidente. A Cristandade européia começou


a emergir como uma civilização distinta nos séculos VIII e IX. Entretanto,
por várias centenas de anos, ela ficou atrás de muitas outras civilizações
no que se refere ao seu nível de civilização. A China sob as dinastias
Tang, Sung e Ming, o mundo islâmico do século VIII ao XII e Bizâncio
do século VIII ao XI ultrapassavam de muito a Europa em riqueza,
território, poder militar e realizações artísticas, literárias e científicas.25
FIGURA 2.1
CIVILIZAÇÕES DO HEMISFÉRIO ORIENTAL

[Culturas Neolíticas de Cultivo]


(nãocivilizaçõe~

Mesopotâmica (Sumeriana) / Índica Sínica

Egi' ""~
1
Cretense (Minoana) Hitita Canaanita

Clássica(Lterr\ ~
\lsl~ica
Hindu Chinesa

/ 1
J Japonesa

Ortodoxa (Russa) Ocidental Indiana(?) (?)

Fonte: Carrol! Quigley, The Evolution of Civilizations: An lntroduction to Historica/ Analysis [A Evolução das
Civilizações: Uma Introdução à Análise Histórica] (lndianápolis: Liberty Press, 2ª ed., 1979), p. 83.

Entre os séculos XI e XIII, a cultura européia começou a se desenvolver,


num processo facilitado pela "apropriação sequiosa e sistemática dos
elementos adequados de civilizações mais elevadas do Islã e de Bizâncio,
junto com a adaptação dessa herança às condições e interesses especiais
do Ocidente". Durante esse mesmo período, a Hungria, a Polônia, a
Escandinávia e a costa do Báltico foram convertidas ao Cristianismo
ocidental, com o Direito Romano e outros aspectos da civilização
ocidental vindo atrás, e os limites orientais da civilização ocidental foram
estabilizados onde iriam permanecer daí por diante, sem modificações
significativas. Durante os séculos XII e XIII, os ocidentais porfiaram por
expandir seu controle na Espanha e lograram estabelecer o efetivo
domínio do Mediterrâneo. Posteriormente, porém, a ascensão do poder
turco causou o colapso do "primeiro império ultramarino ocidental". 26 E,
no entanto, por volta de 1500, o Renascimento da cultura européia estava
bem adiantado e o pluralismo social, a expansão do comércio e as
realizações tecnológicas proporcionavam a base para uma nova era na
política mundial.
Encontros intermitentes ou limitados entre as civilizações cederam
lugar ao impacto continuado, avassalador e unidirecional do Ocidente

C:."7
sobre todas as outras civilizações. O final do século XV testemunhou a
reconquista final da Península Ibérica aos mouros, os primórdios da
penetração portuguesa na Ásia e a penetração espanhola nas Américas.
Durante os 250 anos subseqüentes, todo o Hemisfério Ocidental e
porções significativas da Ásia foram postas sob o governo ou a domina-
ção européia. O fim do século XVIII viu uma retração do controle direto
europeu, quando primeiro os Estados Unidos, logo o Haiti e depois a
maior parte da América Latina se rebelaram contra o domínio europeu e
conseguiram a independência. Contudo, na última parte do século XIX,
um renovado imperialismo ocidental estendeu o domínio ocidental por
quase toda a África, consolidou o controle ocidental no Subcontinente e
em outras partes da Ásia e, no início do século XX, submeteu virtualmente
todo o Oriente Médio, com exceção da Turquia, ao controle ocidental
direto ou indireto. Países europeus ou ex-colônias européias (nas
Américas) controlavam 35 por cento da superfície terrestre do planeta
em 1800, 67 por cento em 1878 e 84 por cento em 1914. Ao se chegar a
1920, a porcentagem era ainda maior, quando o Império Otomano foi
dividido entre a Grã-Bretanha, a França e a Itália. Em 1800, o Império
Britânico consistia de 3,9 milhões de quilômetros quadrados e de 20
milhões de pessoas. Em 1900, o Império Vitoriano, sobre o qual o sol
nunca se punha, abrangia 28,5 milhões de quilômetros quadrados e 390
milhões de pessoas. 27 Durante a expansão européia, as civilizações
andina e mesoamericana foram eliminadas, as civilizações indiana e
islâmica, juntamente com a África, foram subjugadas, e a China foi
invadida e subordinada à influência ocidental. Somente as civilizações
russa, japonesa e etíope, todas três governadas por autoridades imperiais
altamente centralizadas, foram capazes de resistir ao ataque do Ocidente
e manter uma autêntica existência independente. Durante 400 anos, as
relações intercivilizacionais consistiram na subordinação de outras socie-
dades à civilização ocidental.
As causas desse desdobramento único e espetacular abrangeram a
estrutura social e as relações de classes do Ocidente; a ascensão das
cidades e do comércio; a relativa dispersão do poder nas sociedades
ocidentais entre assembléias, monarcas e autoridades seculares e religio-
sas; a nascente noção de consciência nacional entre os povos ocidentais
e o desenvolvimento de burocracias de Estado. Entretanto, a fonte
imediata da expansão ocidental foi tecnológica: a invenção dos meios
de navegação oceânica para atingir povos distantes e o desenvolvimento
da capacidade militar para conquistar esses povos. Como Geoffrey Parker
assinalou, "numa larga medida 'a ascensão do Ocidente' dependeu do
uso da força, do fato de que o equilíbrio militar entre os europeus e seus
adversários no ultramar estava se inclinando de forma constante em favor
dos europeus; (. .. ) a chave para ·o êxito dos ocidentais para criarem,
entre 1500 e 1750, os primeiros impérios verdadeiramente globais
dependeu precisamente daqueles avanços na capacidade de empreender
a guerra que foram denominados 'a revolução militar'". A expansão do
Ocidente também foi facilitada pela superioridade de suas tropas em
organização, disciplina e treinamento e, posteriormente, por armas,
meios de transporte, logística e serviços médicos superiores como
conseqüência de sua liderança na Revolução Industrial.28 O Ocidente
conquistou o mundo não pela superioridade de suas idéias, valores ou
religião (para a qual poucos membros das outras civilizações se conver-
teram), mas sim por sua superioridade em aplicar a violência organizada.
Os ocidentais freqüentemente se esquecem desse fato, mas os não-oci-
dentais nunca.
Ao se chegar a 1910, o mundo era mais integrado política e
economicamente do que em qualquer outro momento da História da
Humanidade. O comércio internacional correspondia a 33 por cento do
produto mundial bruto, mais do que jamais fora ou veio a ser desde
então, não se chegando sequer perto desse nível até as décadas de 70 e
80. Os investimentos internacionais foram, como porcentagem do total
de investimentos, mais elevados do que em qualquer outra época.29
Civilização queria dizer civilização ocidental, e o Ocidente controlava ou
dominava a maior parte do mundo. O Direito Internacional era o Direito
Internacional ocidental, oriundo da tradição de Grotius. O sistema
internacional era o sistema ocidental westfaliano de Estados-nações
soberanos porém "civilizados" e dos territórios coloniais por eles contro-
lados.
O surgimento desse sistema internacional definido pelo Ocidente
foi o segundo desdobramento principal na política mundial nos séculos
a contar de 1500. Além de interagirem numa modalidade de dominação-
subordinação com as sociedades não-ocidentais, as sociedades ocidentais
também interagiam entre si numa base mais eqüitativa. Essas interações
entre entidades políticas dentro de uma única civilização se pareciam
muito com as que ocorreram no seio das civilizações chinesa, indiana e
grega. Elas estavam baseadas numa homogeneidade cultural que envol-
via "idioma, leis, religião, práticas administrativas, agricultura, proprieda-
de da terra, bem como, talvez, relacionamento familiar". Os povos
europeus "partilhavam de uma cultura comum e mantinham amplos
contatos através de uma rede de comércio, um movimento constante de
pessoas e um notável entrelaçamento das famílias dominantes". Eles
também lutavam uns com os outros praticamente de forma incessante.
Entre os Estados europeus, a paz era a exceção, não a regra.3° Embora
durante grande parte desse período o Império Otomano controlasse até
um quarto do que freqüentemente se considerava como sendo a Europa,
ele não era considerado um membro do sistema internacional europeu.
Durante 150 anos, a política intracivilizacional do Ocidente foi
dominada pelo grande cisma religioso e por guerras religiosas e dinás-
ticas. Durante outro século e meio, após o Tratado de Westfália, os
conflitos do mundo ocidental se deram sobretudo entre príncipes -
imperadores, monarcas absolutos e monarcas constitucionais que tenta-
vam expandir suas burocracias, seus exércitos, sua força econômica
mercantilista e, o mais importante, o território sobre o qual reinavam.
Nesse processo criaram os Estados-nações, e a partir da Revolução
Francesa, as principais linhas de conflito passaram a ocorrer entre nações
em vez de entre príncipes. No dizer de R. R. Palmer, em 1793 "as guerras
dos reis tinham terminado e as guerras dos povos tinham começado" _31
Esse padrão do século XIX durou até a I Guerra Mundial.
Em 1917, como resultado da Revolução Russa, o conflito de
Estados-nações foi substituído pelo conflito de ideologias, primeiro entre
o fascismo, o comunismo e a democracia liberal, e depois entre estes
dois últimos. Na Guerra Fria, essas ideologias foram personificadas pelas
duas superpotências, cada uma das quais definia a sua identidade por
sua ideologia e nenhuma das quais era um Estado-nação no sentido
europeu tradicional. A chegada do marxismo ao poder, primeiro na
Rússia e depois na China e no Vietnã, representou uma fase de transição
do sistema internacional europeu para um sistema multicivilizacional
pós-europeu. O marxismo foi um produto da civilização européia, mas
ele nem assentou raízes nem teve êxito nela. Em vez disso, elites
modemizadoras e revolucionárias importaram-no para a Rússia, China e
Vietnã: Lênin, Mao e Ho o adaptaram aos seus propósitos e o utilizaram
para desafiar o poderio ocidental, para mobilizar seus povos e para
afirmar a identidade e a autonomia nacionais de seus países contra o
Ocidente. Contudo, o desmoronamento dessa ideologia na União Sovié-
tica e a sua substanciosa adaptação na China e no Vietnã não significa
necessariamente que essas sociedades irão importar a outra ideologia
ocidental, a da democracia liberal. Os ocidentais que pressupõem que
assim será provavelmente serão surpreendidos pela criatividade, resiliên-
cia e individualismo das culturas não-ocidentais.

Interações: um Sistema Multicívilízacíonal. No século XX, as rela-


ções entre as civilizações passaram, portanto, de uma fase domina~a pelo
impacto unidirecional de uma civilização sobre todas as demais para
outra, de interações intensas, continuadas e multidirecionais entre todas
as civilizações. Ambas as características centrais da era anterior de
relações intercivilizacionais começaram a desaparecer.
Em primeiro lugar, para usar as expressões favoritas dos his-
toriadores, "a expansão do Ocidente" terminou e começou "a revolta
contra 0 Ocidente". De forma irregular e com pausas e inversões, o poder
ocidental declinou em relação ao poder de outras civilizações. O mapa
do mundo em 1990 guardava pouca semelhança com o mapa do mundo
em 1920. O equilíbrio de poder militar e econômico e de influência
política se deslocou (como será examinado em maior detalhe num
capítulo mais adiante). O Ocidente continuou a produzir impactos
significativos em outras sociedades, porém cada vez mais as relações
entre 0 Ocidente e as outras civilizações ficaram dominadas pelas reações
do Ocidente aos desdobramentos nessas civilizações. Longe de serem
simplesmente os objetos da História feita pelo Ocidente, as sociedades
não-ocidentais passaram cada vez mais a ser agentes de sua própria
História e da História do Ocidente.
Em segundo lugar, como resultado desses desdobramentos, o
sistema internacional se expandiu para além do Ocidente e se tomou
multicivilizacional. Simultaneamente, o conflito entre os Estados ociden-
tais - que dominara esse sistema durante séculos - foi desaparecendo.
Ao se chegar à parte final do século XX, o Ocidente tinha saído de sua
fase de "Estados em guerra" de seu desenvolvimento como uma civiliza-
ção e passado para sua fase de "Estado universal". No final do século,
essa fase ainda estava inconclusa, enquanto os Estados-nações do
Ocidente se congregavam em dois Estados semi-universais na Europa e
na América do Norte. Essas duas entidades e as unidades que as
constituem estão, contudo, ligadas por uma rede extraordinariamente
complexa de vínculos institucionais formais e informais. Os Estados
universais das civilizações anteriores eram impérios. Porém, como a
democracia é o formato político da civilização ocidental, o Estado
universal que está emergindo na civilização ocidental não é um império
mas sim uma composição de federações, confederações e regimes e
organismos internacionais.

61
As grandes ideologias políticas do século XX incluem o liberalismo
o socialismo, o anarquismo, o corporativismo, o marxismo, o comunismo:
a social-democracia, o conservadorismo, o nacionalismo, o fascismo, a
democracia cristã. Todos eles partilham de um ponto comum: são pro-
duto da civilização ocidental. Nenhuma outra civilização gerou uma
ideologia política importante. O Ocidente, contudo, nunca gerou uma re-
ligião importante. As grandes religiões do mundo são todas produto de
civilizações não-ocidentais e, na maioria dos casos, antecedem a civili-
zação ocidental. À medida que o mundo sai da sua fase ocidental as
ideologias que tipificaram a etapa final da civilização ocidental ent;am
em declínio, e seu lugar é tomado por religiões e outras formas de base
cultural de identidade e engajamento. A separação westfaliana da religião
e da política internacional, produto idiossincrático da civilização ociden-
tal, está chegando ao fim, e a religião, como sugere Edward Mortimer,
"tem probabilidade cada vez maior de se imiscuir nos assuntos interna-
cionais". 32 O choque intracivilizacional de idéias políticas gerado pelo
Ocidente está sendo substituído por um choque intracivilizacional de
cultura e religião.
Desse modo, um sistema multipolar ocidental de relações interna-
cionais cedeu lugar a um sistema bipolar semi-ocidental e, depois, a um
sistema multipolar e multicivilizacional. A geografia política mundial
deslocou-se do mundo único de 1920 para os três mundos dos anos 60
e para a meia dúzia de mundos dos anos 90. Concomitantemente os
impérios mundiais ocidentais de 1920 se encolheram para 0 muito ~ais
limitado "Mundo Livre" dos anos 60 (que abrangia muitos Estados
não-ocidentais que se opunham ao comunismo) e depois para 0 ainda
mais restrito "Ocidente" dos anos 90. Esse deslocamento refletiu-se
semanticamente, entre 1988 e 1993, no declínio do uso do termo
ideológico "Mundo Livre" e no aumento do uso do termo civilizacional
"o Ocidente" (ver Quadro 2.1). Ele também é visível no aumento das
referências ao Islã como um fenômeno político-cultural, à "China Maior"
à Rússia e seu "exterior próximo" e à União Européia, todos termos co~
um conteúdo civilizacional. As relações intercivilizacionais nessa terceira
fase são muito mais freqüentes e intensas do que na primeira fase e muito
mais equivalentes e recíprocas do que na segunda fase. Além disso ao
~o~trário do que houve durante a Guerra Fria, não há uma disse~são
urnca que predomine, e existem múltiplas dissensões entre o Ocidente
e outras civilizações, bem como entre muitas das civilizações não-oci-
dentais.

62
QUADRO 2.1
Uso DOS TERMOS "MUNDO LIVRE" E "O OCIDENTE"
Número de referências % de alteração nas
1988 1993 referências

New York Times


Mundo Livre ·71 44 -38
o Ocidente 46 144 + 213
Washington Post
Mundo Livre 112 67 -40
o Ocidente 36 87 + 142
Congressional Record
Mundo Livre 356 114 -68
o Ocidente 7 10 + 43
Fonte: Lexis!Nexis: O número de referências é o número de matérias que contêm os termos "Mundo Livre" e "o
Ocidente" ou deles tratam. As referências a "ocidente" foram examinadas quanto à sua aplicação contextual a
fim de garantir que o termo se referia a "ocidente" como uma civilização ou entidade política.

Hedley Bull sustentou que um sistema internacional existe "quando


dois ou mais Estados têm suficiente contato entre si e produzem suficiente
impacto um nas decisões do outro para levá-los a se comportarem -
pelo menos até certo ponto - como partes de um todo". Entretanto,
uma sociedade internacional só existe quando os Estados de um sistema
internacional têm "interesses comuns e valores comuns", "se consideram
obrigados por um conjunto comum de normas", "partilham do funciona-
mento de instituições comuns" e possuem "uma cultura ou civilização
comum". 33 Como seus predecessores sumeriano, grego, helênico, chinês,
indiano e islâmico, o sistema internacional europeu do século XVII até
o século XIX era também uma sociedade internacional. Durante os
séculos XIX e XX, o sistema internacional europeu se expandiu e passou
a abranger praticamente todas as sociedades de outras civilizações.
Algumas instituições e práticas européias também foram exportadas para
esses países. Não obstante, essas sociedades ainda carecem da cultura
comum que é subjacente à sociedade internacional européia. Nos termos
da teoria britânica das relações internacionais, o mundo é, portanto, um
sistema internacional bem desenvolvido, porém, na melhor das hipóte-
ses, não passa de uma sociedade internacional muito primitiva.
Toda civilização se considera o centro do mundo e escreve sua
História como a peça central da História da Humanidade. Isso talvez se
aplique ainda mais ao Ocidente do que a outras culturas. Entretanto,
esses pontos de vista monocivilizacionais têm relevância e utilidade
decrescentes num mundo multicivilizacional. Os estudiosos das civiliza-

63
ções há muito tempo reconheceram esse truísmo. Em 1918, Spengler
condenou a visão míope da História que prevalecia no Ocidente, com
sua cômoda divisão em fases antiga, medieval e moderna, que só eram
relevantes para o Ocidente. É necessário, disse ele, substituir esse
"enfoque ptolemaico da História" por um enfoque copérnico e substituir 1
"a ficção vazia de uma história linear pelo enredo espetacular de uma
quantidade de culturas poderosas".34 Algumas décadas depois, Toynbee
criticou o "provincianismo e a impertinência" do Ocidente, manifestados
nas "ilusões egocêntricas" de que o mundo girava ao seu redor, de que
havia um "Oriente estagnado" e de que "o progresso" era inevitável. Tal'
.'

como Spengler, ele não encontrava lugar para a pressuposição da


unidade da História, a pressuposição de que "só existe um rio de
civilização, o nosso próprio, e de que todos os demais são tributários
dele ou se perdem nas areias do deserto". 35 Cinco anos depois de
Toynbee, Braudel insistiu, de forma análoga, na necessidade de se buscar
uma perspectiva mais ampla e de se compreenderem "os grandes
conflitos culturais do mundo e a multiplicidade de suas civilizações''.36
Entretanto, as ilusões e os preconceitos contra os quais esses estudiosos
alertaram continuam vigentes e, na parte final do século XX, desabrocha-
ram na pretensão provinciana e muito difundida de que a civilização
européia do Ocidente é agora a civilização universal do mundo.

64
CAPÍTULO 3

1 Uma Civilização Universal?


Modernização e Ocidentalização
.'
Í

CIVILIZAÇÃO UNIVERSAL: SIGNIFICADOS

lgumas pessoas sustentam que esta era está testemunhando o

A surgimento do que V. S. Naipaul chamou de uma "civilização


universal" .1 O que se quer dizer com esse termo? Em geral, a idéia
implica a conjunção cultural da Humanidade e a crescente aceitação de
valores, crenças, orientações, práticas e instituições comuns por povos
pelo mundo afora. Mais especificamente, a idéia pode significar algumas
coisas que são profundas, porém irrelevantes, algumas que são relevantes
mas não profundas e algumas que são irrelevantes e superficiais.
Em primeiro lugar, os seres humanos em praticamente todas as
sociedades compartilham certos valores básicos, tais como o assassinato
ser uma perversidade, e certas instituições básicas, tais como alguma
forma de família. A maioria das pessoas na maioria das sociedades tem
um "sentido moral" parecido, uma "tênue" moralidade mínima de
conceitos básicos do que é certo e errado. 2 Se é isso que se quer dizer
com civilização universal, é ao mesmo tempo profundo e profundamente
importante, mas também não é nem novo nem relevante. Se as pessoas
partilharam de uns poucos valores e instituições fundamentais através da
História, isso pode explicar algumas constantes do comportamento
humano, porém não pode iluminar ou explicar a História, que consiste
de mudanças do comportamento humano. Além disso, se existe uma
civilização universal comum a toda a humanidade, então ~ue termo
vamos usar para identificar os principais agrupamentos culturais de seres
humanos que ficam aquém da raça humana toda? A Humanidade está
dividida em subgrupos - tribos, nações e entidades culturais mais
amplas normalmente chamadas de civilizações. Se o termo "civilização"
for elevado e restringido àquilo que for comum à Humanidade como um
todo, ou ter-se-á que inventar um novo termo para fazer referência aos
maiores agrupamentos culturais de pessoas aquém da Humanidade como
um todo ou ter-se-á que pressupor que esses agrupamentos grandes, mas
que não compreendem toda a Humanidade, se evaporarão. ;-'á.clav ~~~el,
por exemplo, argumentou que "nós agora vivemos num~ umca ~1~,i!tza­
ção global", a qual, entretanto, "não é mais do que um fmo vermz que
"cobre ou esconde a imensa variedade de culturas, de povos, de mundos
religiosos, de tradições históricas e de atitudes formadas historicamente,
tudo isso que, num certo sentido, está 'por debaixo' dele" .3 Entretanto,
só se consegue uma confusão semântica ao se restringir "civilização" a
um nível global e ao se designarem como "culturas" ou "subcivilizações"
aquelas entidades culturais maiores que historicamente sempre foram
chamadas de civilizações.*
Em segundo lugar, o termo "civilização universal" poderia ser
empregado para se fazer referência àquilo que as sociedades civilizadas
têm em comum, como as cidades e a alfabetização, e que as distingue
das sociedades primitivas e dos bárbaros. Obviamente, este é o signifi-
cado singular do termo no século XVIII e, neste sentido, uma civilização
universal está emergindo, para grande horror de diversos antropólogos
e outros que encaram com lástima o desaparecimento dos povos
primitivos. A civilização, neste sentido, vem se expandindo gradativa-
mente através da História da Humanidade, e a disseminação da civiliza-
ção, no singula~, tem sido perfeitamente compatível com a existência de
muitas civilizações, no plural.
Em terceiro lugar, o termo "civilização universal" pode se referir aos
pressupostos, valores e doutrinas atualmente mantidos por muitos povos

• Hayward Alker assinalou com exatidão que, no meu artigo na Foreign A.ffairs, foi "descartada
em termos de definição" a idéia de uma civilização mundial, ao se definir civilização como
"o mais elevado agrupamento cultural de pessoas e o mais amplo nível de identidade cultural
que as pessoas têm aquém daquilo que distingue os seres humanos das outras espécies". Isso
é, claro está, o modo pelo qual o tem10 tem sido usado pela maioria dos estudiosos das
civilizações. Neste capítulo, entretanto, eu flexiono essa definição para pemlitir a possibilidade
de povos que se identificam, através da História, com uma cultura global distinta, que substitui
ou suplanta as civilizações no sentido ocidental, islâmico ou sínico.

66
da civilização ocidental e por alguns povos de outras civilizações. Isso
poderia ser chamado de a Cultura de Davos. Todos os anos, cerca de mil
homens de negócios, banqueiros, funcionários de governos, intelectuais
e jornalistas, de dezenas de países, se encontram no Foro Econômico
Mundial em Davas, na Suíça. Quase todas essas pessoas têm diplomas
universitários em ciências exatas, em ciências sociais, em administração
ou em ciências jurídicas, trabalham com palavras e/ou números, são
razoavelmente fluentes em inglês, são empregadas por governos, empre-
sas e instituições acadêmicas com extenso envolvimento internacional e
viajam com freqüência para fora de seus próprios países. De forma geral,
partilham de crenças no individualismo, na economia de mercado e na
democracia política, que também são comuns entre os povos da civilização
ocidental. As pessoas de Davos controlam virtualmente todas as instituições
internacionais, muitos dos governos do mundo e o grosso da capacidade
econômica e militar do mundo. A Cultura de Davos tem, portanto, uma
tremenda importância. Entretanto, em escala mundial, quantas pessoas
partilham dessa cultura? Fora do Ocidente, provavelmente ela é comparti-
lhada por menos de 50 milhões de pessoas, ou seja, um por cento da
população mundial e, talvez, por não mais de um décimo de um por
cento da população mundial. Ela está longe de ser uma cultura universal,
e os líderes que partilham da Cultura de Davos não têm, necessariamente,
um controle firme do poder em suas próprias sociedades. Como aponta
Hedley Buli, "essa cultura intelectual comum existe somente no nível da
elite: suas raízes são, em muitas sociedades, superficiais(. .. ) [e] é duvidoso
se, mesmo no nível diplomático, ela abarca o que era chamado de uma
cultura moral comum ou de um conjunto de valores comuns, diferente
de uma cultura intelectual comum" .4
Em quarto lugar, propõe-se a noção de que a disseminação dos
padrões de consumo e da cultura popular ocidentais pelo mundo afora
está criando uma civilização universal. Essa argumentação não é nem
profunda nem relevante. Através da História, modas culturais foram
transmitidas de uma civilização a outra. As inovações de uma civilização
são regularmente adotadas por outras civilizações. Trata-se, porém, ou
de técnicas que carecem de quaisquer conseqüências culturais importan-
tes ou de modas que vêm e vão sem alterar a cultura subjacente da
civilização recipiente. Essas importações "pegam" na civilização recipien-
te, quer porque são exóticas quer porque lhes são impostas. Em séculos
anteriores, o mundo ocidental foi periodicamente varrido por entusias-
mos por diversos itens da cultura chinesa ou hindu. No século XIX, as
importações culturais do Ocidente tornaram-se populares na China e na
índia porque pareciam refletir o poderio ocidental. A argumentação feita
agora de que a disseminação da cultura pop e dos bens de consumo ao
redor do mundo representa o triunfo da civilização ocidental trivializa a
cultura ocidental. A essência da civilização ocidental é a Magna Carta e
não 0 Magno Mac. O fato de que não-ocidentais possam abocanhar este
último não tem quaisquer implicações de que possam aceitar a primeira.
Isso tampouco tem implicações nas suas atitudes em relação ao
Ocidente. Em algum ponto do Oriente Médio, uma meia dúzia de rapazes
bem poderia estar vestindo calças jeans, bebendo Coca-Cola, escutando
rap e, entre suas reverências na direção de Meca, estar montando uma
bomba para explodir um avião comercial norte-americano. Durante os
anos 70 e 80, os norte-americanos consumiram milhões de carros,
aparelhos de 1V, máquinas fotográficas e aparelhos eletrônicos japoneses
sem ficarem "japanizados"; na verdade, nesse período se tornaram
consideravelmente mais antagônicos em relação ao Japão. Somente a
arrogância ingênua pode levar os ocidentais a pressupor que os não-oci-
dentais ficaram "ocidentalizados" por adquirirem artigos ocidentais. Na
realidade, o que é que se diz ao mundo sobre o Ocidente quando os
ocidentais estabelecem uma identidade entre a sua civilização e as
bebidas gasosas, as calças desbotadas e as comidas gordurosas?
Uma versão ligeiramente mais sofisticada da argumentação da
cultura popular universal se concentra não nos bens de consumo em
geral, mas na mídia, em Hollywood mais do que na Coca-Cola. O controle
norte-americano em escala mundial das indústrias de cinema, televisão
e vídeo excede até seu predomínio na indústria aeronáutica. Oitenta e
oito dos 100 filmes mais vistos em todo o mundo em 1993 eram
norte-americanos, e duas organizações norte-americanas e duas euro-
péias dominam a coleta e a disseminação de notícias em bases globais.5
Esta situação reflete dois fenômenos. O primeiro é a universalidade do
interesse humano por amor, sexo, violência, mistério, heroísmo e riqueza,
e a capacidade das companhias motivadas pelo lucro, basicamente
norte-americanas, de explorar esses interesses em proveito próprio.
Entretanto, há pouca ou nenhuma prova que apóie a pressuposição de
que o surgimento das comunicações abrangentes em escala global está
produzindo uma convergência significativa de atitudes e crenças. Como
disse Michael Vlahos, "o entretenimento não equivale à conversão
cultural". O segundo é que as pessoas interpretam as comunicações em
termos de seus próprios valores e perspectivas preexistentes. Kishore
Mahbubani observou que "as mesmas imagens visuais transmitidas
simultaneamente às salas de estar pelo mundo afora desencadeiam
percepções opostas. As salas de estar ocidentais aplaudem quando
mísseis cruzeiro atingem Bagdá. A maioria dos que vivem fora dessas
salas vêem que o Ocidente aplicará castigo rápido a iraquianos e somalis
não-brancos, porém não a sérvios brancos, um sinal perigoso por
qualquer critério". 6
As comunicações globais são uma das mais importantes manifes-
tações contemporâneas do poderio ocidental. Contudo, essa hegemonia
ocidental estimula políticos populistas em sociedades não-ocidentais a
condenar o imperialismo cultural ocidental e a convocar seus públicos a
preservarem a sobrevivência e integridade de suas culturas autóctones.
Desse modo, o grau em que as comunicações globais são dominadas
pelo Ocidente é uma das principais fontes de ressentimento e hostilidade
dos povos não-ocidentais contra o Ocidente. Além disso, no início da
década de 90, a modernização e o desenvolvimento econômico das
sociedades não-ocidentais estavam levando ao surgimento de indústrias
de mídia locais e regionais que se dirigiam aos gostos diferentes dessas
sociedades.7 Em 1994, por exemplo, a CNN International estimava que
tinha uma audiência de 55 milhões de espectadores em potencial, ou
seja, cerca de um por cento da população mundial (notavelmente
equivalente em número e indubitavelmente idêntico, em larga escala, às
pessoas da Cultura de Davos), e seu presidente predizia que suas
transmissões em inglês poderiam eventualmente atrair de dois a quatro
por cento do mercado. Em conseqüência, iriam surgir redes regionais
(isto é, civilizacionais) transmitindo em espanhol, japonês, árabe, francês
(para a África Ocidental) e outros idiomas. Três estudiosos concluíram
que "a Sala de Notícias Global ainda se defronta com uma Torre de
Babel". 8 Ronald Dore desenvolve uma argumentação impressionante
para apontar o surgimento de uma cultura intelectual mundial entre
diplomatas e funcionários públicos. Mesmo ele, entretanto, chega a uma
conclusão profundamente condicionada a respeito do impacto das
comunicações intensificadas: "tudo o mais sendo igual [grifo dele], uma
densidade crescente de comunicações deveria assegurar uma base
crescente de sentimento de camaradagem entre as nações ou, pelo
menos, entre as classes médias, ou ainda, na pior das hipóteses, entre os
diplomatas do mundo", porém, acrescenta ele, "algumas das coisas que
podem não ser iguais podem de fato ser muito importantes".9
Idioma. Os elementos centrais de qualquer cultura ou civilização
são o idioma e a religião. Se uma civilização universal está emergindo,
deveria haver tendências em direção ao surgimento de um idioma
universal e de uma religião universal. Essa alegação é freqüentemente
feita com relação ao idioma. Como colocou o editor do Wall Street
journal, "o idioma do mundo é o inglês" .10 Isso pode significar duas
coisas, das quais só uma daria apoio à tese de uma civilização universal.
Poderia significar que uma proporção crescente da população mundial
fala inglês. Não há prova alguma que endosse esta proposição e as
indicações mais confiáveis que de fato existem, que reconhecidamente
não podem ser muito precisas, mostram exatamente o contrário. Os
dados disponíveis cobrindo mais de três décadas 0958-1992) sugerem
que o padrão geral de utilização de idiomas no mundo não mudou
drasticamente, que ocorreram diminuições significativas na proporção de
pessoas que falam inglês, francês, alemão, russo e japonês, que uma
diminuição menor ocorreu na proporção dos que falam mandarim, e que
houve aumentos na proporção de pessoas que falam hindi, malaio-in-
donésio, árabe, bengalês, espanhol, português e outros idiomas. Os
anglófonos do mundo caíram de 9,8 por cento do total de pessoas que,
em 1958, falavam idiomas que eram falados por pelo menos um milhão
de pessoas, para 7,6 por cento em 1992 (ver Quadro 3.1). A proporção
da população mundial que fala os cinco idiomas principais (inglês,
francês, alemão, português, espanhol) declinou de 24,1 por cento em
1958 para 20,8 por cento em 1992. Em 1992, o número de pessoas que
falavam mandarim, 15,2 por cento da população mundial, era aproxima-
damente o dobro das que falavam inglês, e mais 3,6 por cento falavam
outras versões de chinês (ver Quadro 3.2).
Em certo sentido, um idioma que é estranho a 92 por cento das
pessoas do mundo não pode ser o idioma mundial. Entretanto, num outro
sentido, ele poderá ser descrito assim se for o idioma empregado por
pessoas de grupos lingüísticos e culturas diferentes para se comunicarem
entre si, se for a língua franca do mundo ou, em termos lingüísticos, a
Língua de Comunicação Mais Ampla (LCMA) principal do mundo.11 As
pessoas que precisam se comunicar umas com as outras têm que
encontrar o meio de fazê-lo. Em certo nível, elas podem confiar em
profissionais especialmente treinados, que se tornaram fluentes em dois
ou mais idiomas a fim de servir como intérpretes e tradutores. Isso,
porém, é incômodo, toma tempo e custa caro. Por isso, através da
História, emergiu sempre uma língua franca: o latim nos mundos clássico
QUADRO 3.1
PESSOAS QUE FALAM OS IDIOMAS PRINCIPAIS
(Porcentagens da População Mundial*)

Idioma 1958 1970 1980 1992

Árabe 2,7 2,9 3,3 3,5


Bengalês 2,7 2,9 3,2 3,2
Espanhol 5,0 5,2 5,5 6,1
Hindi 5,2 5,3 5,3 6,4
Inglês 9,8 9,1 8,7 7,6
Mandarim 15,6 16,6 15,8 15,2
Russo 5,5 5,6 6,0 4,9
• Número total de pessoas que falam idiomas falados por um milhão ou mais de pessoas.

Fonte: Porcentagens calculadas a partir de dados compilados pelo professor Sidney S. Culbert, Departamento
de Psicologia, Universidade de Washington, Seattle, sobre o número de pessoas que falam idiomas falados por
um milhão ou mais de pessoas e constantes anualmente do World Almanac and Book of Facts [Almanaque e
Livro de Fatos do Mundo]. Suas estimativas incluem tanto os que falam o "idioma matemo" como os que falam
o "idioma não-matemo" e foram derivadas de recenseamentos nacionais, levantamentos por amostragem de
população, levantamentos de transmissões de rádio e de televisão, dados sobre crescimento populacional,
estudos secundários e outras fontes.

QUADRO 3.2
PESSOAS QUE FALAM OS PRINCIPAIS IDIOMAS CHINESES E OCIDENTAIS
Idioma 1958 1992
Número de Porcentagem da Número de Porcentagem da
Pessoas Pop. Mundial Pessoas Pop. Mundial
(em milhões) (em milhões)
Mandarim 444 15,6 907 15,2
Cantonês 43 1,5 65 1, 1
Wu 39 1,4 64 1, 1
Min 36 1,3 50 0,8
Hakka 19 0,7 33 0,6
Idiomas chineses 581 20,5 1.119 18,8
Inglês 278 9,8 456 7,6
Espanhol 142 5,0 362 6,1
Português 74 2,6 177 3,0
Alemão 120 4,2 119 2,0
Francês 70 2,5 123 2,1
Idiomas ocidentais 684 24,1 1.237 20,8
Total mundial 2.845 44,5 5.979 39,4
Fonte: Porcentagens calculadas a partir de dados sobre idiomas compilados pelo professor Sidney S. Culbert,
Departamento de Psicologia, Universidade de Washington, Seattle, e constantes anualmente do World Almanac
and Book of Facts [Almanaque e Livro de Fatos do Mundo] dos anos de 1959 e 1993.

.,,
e medieval; o francês, durante séculos, no Ocidente; o suaíle em muitas
partes da África e o inglês em grande parte do mundo na segunda metade
do século XX. Os diplomatas, os homens de negócios, os cientistas, os
turistas e os serviços que os atendem, os pilotos comerciais e os
controladores de tráfego aéreo precisam de algum meio de comunicações
eficientes entre si e atualmente usam sobretudo o inglês.
Nesse sentido, o inglês é o meio mundial de comunicação intercul-
tural, do mesmo modo que o calendário cristão· é o meio mundial
de acompanhar o tempo, os algarismos arábicos são o meio mundial de
J
contar e o sistema métrico é, para a maior parte, o meio mundial de medir.
Entretanto, o uso do inglês dessa maneira é a comunicação intercultural
e pressupõe a existência de culturas separadas. Uma língua franca é um
modo de lidar com as diferenças lingüísticas e culturais, não um modo
de eliminá-las. É uma ferramenta para comunicações, não uma fonte de
identidade e comunidade. Só porque um banqueiro japonês e um homem
de negócios indonésio falam um com o outro em inglês não quer dizer
que qualquer dos dois esteja inglesado ou ocidentalizado. O mesmo pode
ser dito de suíços que falam alemão e francês e que têm tanta proba-
bilidade de se comunicar entre si em inglês como em qualquer dos seus
idiomas nacionais. Analogamente, a manutenção do inglês como um
idioma nacional suplementar da Índia, apesar dos planos em contrário
de Nehru, demonstra o forte desejo dos povos da Índia que não falam
hindi de preservar seus próprios idiomas e culturas nacionais, e a
necessidade de a Índia continuar sendo uma sociedade multilíngüe.
Como observou o destacado filólogo Joshua Fishman, um idioma
tem maior probabilidade de ser aceito como língua franca ou LCMA se
não for identificado com nenhum grupo étnico, religião ou ideologia em
particular. No passado, o inglês padecia de muitas dessas identificações.
Mais recentemente, o inglês foi "desetnicizado" (ou ficou minimamente
"etnicizado"), como ocorreu no passado histórico com o acadiano, o
aramaico, o grego e o latim. "Faz parte da relativa sorte que tem o inglês
como uma segunda língua que suas fontes originais britânica ou norte-
americana, durante mais ou menos o último quartel de século, não tenham
sido consideradas de forma ampla ou profunda num contexto étnico ou
ideológico." 12 Assim sendo, o uso do inglês para a comunicação inter-
cultural ajuda a manter - e, na verdade, reforça - as distintas identida-
des culturais dos povos. Precisamente porque as pessoas querem preser-
var sua própria identidade cultural, elas utilizam o inglês para se
comunicar com povos de outras culturas.

,...,
Além disso, as pessoas que falam inglês pelo mundo afora estão
cada vez mais falando diferentes "ingleses". O inglês fica indigenizado e
assume colorações locais que o distinguem do inglês britânico ou
norte-americano e que, em casos extremos, tornam esses "ingleses" quase
ininteligíveis entre si, como também ocorre com variantes do chinês. O
inglês pidgin nigeriano, o inglês indiano e outras formas de inglês estão
sendo incorporados em suas respectivas culturas anfitriãs, e é de se
J presumir que continuarão a se diferenciar de modo a se tornarem idiomas
aparentados mas distintos, do mesmo modo que as línguas latinas
evoluíram a partir do latim. Contudo, ao contrário do italiano, do francês
e do espanhol, esses idiomas derivados do inglês serão falados apenas
por uma pequena porção das pessoas de uma sociedade ou serão usados
precipuamente para a comunicação entre grupos lingüísticos especiais.
Todos esses processos podem ser vistos em funcionamento na
Índia. Por exemplo, consta que, em 1983, havia 18 milhões de pessoas
que falavam inglês numa população de 733 milhões e, em 1991, havia
20 milhões numa população de 867 milhões. Por conseguinte, a propor-
ção de pessoas que falam inglês no total da população indiana se manteve
relativamente estável em cerca de dois a quatro por cento. 13 Afora uma
elite relativamente reduzida, o inglês não serve sequer como língua
franca. Dois professores de inglês na Universidade de Nova Delhi alegam
que "a realidade prática é que, quando se viaja de Caxemira até a ponta
meridional do país, em Kanyakumari, o elo de comunicação se mantém
melhor através de uma forma de hindi do que através do inglês". Além
disso, o inglês indiano está assumindo muitas características diferentes
próprias: está sendo indianizado, ou melhor, está ficando localizado à
medida que se desenvolvem diferenças entre as diversas pessoas que
falam inglês e que têm idiomas locais diferentes. 14 O inglês está sendo
absorvido na cultura indiana do mesmo modo como o foram anterior-
mente o sânscrito e o persa.
Através da História, a distribuição dos idiomas pelo mundo refletiu
a distribuição do poder no mundo. Os idiomas mais falados - inglês,
mandarim, espanhol, francês, árabe, russo - são ou foram os idiomas
de Estados imperiais, que promoveram ativamente o uso de seus idiomas
por outros povos. Mudanças na distribuição do poder produziram
mudanças no uso de idiomas. "Dois séculos de poder britânico e
norte-americano em termos coloniais, comerciais, industriais, científicos
e financeiros deixaram um legado substancioso no ensino superior, na
administração pública, no comércio internacional e na tecnologia" pelo
mundo afora. 15 A Grã-Bretanha e a França insistiam no uso de seus
idiomas nas suas colônias. Entretanto, após a independência, a maioria
das ex-colônias tentou, com graus diferentes de empenho e de êxito,
substituir o idioma imperial por idiomas autóctones. Durante o apogeu
da União Soviética, o russo era a língua franca de Praga a Hanói. O
declínio do poder russo foi acompanhado por um declínio paralelo no
uso do russo como segunda língua. Como acontece com outras formas
de cultura, o poder maior gera tanto uma maior afirmação lingüística por
parte dos que têm o idioma como língua materna, como mais incentivos
para aprender esse idioma por parte de outros. Nos dias inebriantes logo
após a queda do Muro de Berlim e quando parecia que uma Alemanha

l
unida era o novo gigante, registrou-se uma tendência perceptível para
que alemães que eram fluentes em inglês falassem em alemão em
reuniões internacionais. O poder econômico japonês estimulou o apren-
dizado do japonês por não-japoneses, e o desenvolvimento econômico
da China está produzindo um surto semelhante em relação ao chinês.
Este idioma está rapidamente superando o inglês como a língua predo-
minante em Hong Kong 16 e, dado o papel dos chineses de ultramar no
Sudeste Asiático, o chinês tomou-se o idioma no qual é conduzida grande
parte dos negócios internacionais nessa área. À medida que vai gradual-
mente declinando o poder do Ocidente em relação ao de outras
civilizações, o uso do inglês e de outros idiomas ocidentais em outras
sociedades e para a comunicação entre sociedades também irá se

1
erodindo lentamente. Se, em algum ponto do futuro distante, a China
substituir o Ocidente como a civilização predominante no mundo, o
inglês cederá lugar ao mandarim como língua franca mundial.
À medida que as antigas colônias se moviam no rumo da indepen-
dência e se tornavam independentes, a promoção ou o uso dos idiomas
nativos e a supressão dos idiomas imperiais eram uma forma pela qual
as elites nacionalistas se distinguiam dos colonizadores ocidentais e
definiam sua própria identidade. Entretanto, após a independência, as
elites dessas sociedades precisavam se distinguir das pessoas comuns das
mesmas sociedades. Isso era conseguido pela fluência em inglês, francês
ou outro idioma ocidental. Em conseqüência, as elites das sociedades
não-ocidentais freqüentemente têm maior capacidade para se comunica-
rem com os ocidentais e entre si do que com as pessoas de suas próprias
sociedades (numa situação semelhante à que se deu no Ocidente nos
séculos XVII e XVIII, quando os aristocratas de diferentes países podiam
se comunicar facilmente entre si em francês, mas não conseguiam falar

74
0 vernáculo de seus próprios países). Duas tendências opostas parecem
estar em andamento nas sociedades não-ocidentais. Por um lado, o inglês
está sendo cada vez mais utilizado no nível universitário para habilitar
os diplomados a atuarem de modo eficiente na competição global por
capitais e fregueses. Por outro lado, as pressões sociais e políticas levam
cada vez mais ao uso mais generalizado dos idiomas autóctones, com o
árabe substituindo o francês no norte da África, o urdu substituindo o
inglês como o idioma do governo e do ensino no Paquistão, e a mídia
no idioma nativo substituindo a mídia em inglês na Índia. Esse desdo-
bramento foi previsto pela Comissão de Educação indiana em 1948,
quando ela sustentou que "o uso do inglês (. .. ) divide o povo em duas

l nações, os poucos que governam e os muitos que são governados, uns


incapazes de falar o idioma dos outros e sem se compreenderem
mutuamente". Quarenta anos depois, a persistência do inglês como o
idioma da elite confirmou essa previsão e criou "uma situação antinatural
numa democracia em funcionamento, baseada no sufrágio adulto(. .. ). A
Índia que fala inglês e a Índia politicamente consciente divergem cada
vez mais" estimulando "tensões entre a minoria no topo, que sabe inglês,
e os muit~s milhões - armados com o voto-, que não o sabem". 17 Na
medida em que as sociedades não-ocidentais implantem instituições
democráticas e as pessoas dessas sociedades participem de forma mais
ampla do governo, o uso de idiomas ocidentais declinará e os idiomas
autóctones irão predominar.

1 O fim do império soviético e da Guerra Fria promoveu a proliferação


e o rejuvenescimento de idiomas que tinham sido suprimidos ou
esquecidos. Na maioria das ex-repúblicas soviéticas, vêm sendo envida-
dos grandes esforços por ressuscitar os idiomas tradicionais. O estoniano,
o letão, o lituano, o ucraniano, o georgiano e o armênio são atualmente
os idiomas nacionais de Estados independentes. Entre as repúblicas
muçulmanas ocorreu uma afirmação lingüística análoga e o azerbaijano,
o quirguízio, o turcomano e o uzbeque passaram dos caracteres cirílicos
dos seus antigos senhores russos para os caracteres ocidentais de seus
parentes turcos, enquanto que no Tadjiquistão, onde se fala persa,
adotaram-se os caracteres árabes. Os sérvios, por outro lado, agora
denominam seu idioma de sérvio em vez de servo-croata, e passaram
dos caracteres ocidentais de seus inimigos católicos para os caracteres
cirílicos de seus parentes russos. Em ações paralelas, os croatas agora
chamam seu idioma de croata e estão tentando expurgá-lo das palavras
turcas e de outras palavras estrangeiras, enquanto que "os mesmos
empréstimos turcos e árabes, um sedimento lingüístico deixado pela
presença de 450 anos do Império Otomano nos Bálcãs, voltaram a ser
moda" na Bósnia. 18 O idioma é realinhado e reconstruído a fim de ficar
de acordo com as identidades e os perfis das civilizações. À medida que
o poder se difunde, o mesmo ocorre com a Babelização.

Religião. O surgimento de uma religião universal tem uma proba-


bilidade apenas ligeiramente maior do que o de um idioma universal. Na
parte final do século XX constatou-se um ressurgimento global de
religiões em todo o mundo (verpp. 115-124). Esse ressurgimento implicou
a intensificação da consciência religiosa e a ascensão de movimentos
fundamentalistas. Reforçaram-se assim as diferenças entre as religiões.
Isso não envolve, necessariamente, mudanças significativas nas propor-
ções da população mundial que seguem as diferentes religiões. Os dados
disponíveis sobre os seguidores das religiões são ainda mais fragmentá-
rios e menos confiáveis do que os dados disponíveis sobre os que falam
determinados idiomas. O Quadro 3.3 apresenta cifras extraídas de uma
fonte amplamente usada. Esses e outros dados sugerem que a força
numérica relativa das religiões ao redor do mundo não mudou de forma
espetacular neste século. A maior mudança registrada por essa fonte foi
o aumento da proporção de pessoas classificadas como "sem religião" e
"ateus", de 0,2 por cento em 1900 para 20,9 por cento em 1980. Pode-se
supor que isso reflete um afastamento importante da religião e o fato de

QUADRO 3.3
PROPORÇÃO DA POPULAÇÃO MUNDIAL QUE SEGUE AS PRINCIPAIS TRADIÇÕES RELIGIOSAS
(em porcentagens)
Religião 1900 1970 1980 1985(est.) 2000(est.)
Cristã ocidental 26,9 30,6 30,0 29,7 29,9
Cristã ortodoxa 7,5 3,1 2,8 2,7 2,4
Muçulmana 12,4 15,3 16,5 17,1 19,2
Sem religião 0,2 15,0 16,4 16,9 17,1
Hindu 12,5 12,8 13,3 13,5 13,7
Budista 7,8 6,4 6,3 6,2 5,7
Chinesa popular 23,5 5,9 4,5 3,9 2,5
Tribal 6,6 2,4 2,1 1,9 1,6
Ateus 0,0 4,6 4,5 4,4 4,2
Fonte: World Christian Encyclopedia: A comparative study of churches and religions in the modem world /A.D.
1900-2000 [Enciclopédia Cristã Mundial: um estudo comparativo de igrejas e religiões no mundo moderno/
1900-2000 d.C.], organizado por David B. Barrei (Oxford: Oxford University Press, 1982).

76
que, e m 1980 , 0 ressurgimento religioso estava apenas dcomeçando
- a
tomar ,impe to. No entanto , esse aumento de 20,7 por cento e nao-crentes
, companhado de perto por um decréscimo de 19 por cento daqueles
~l:ssificados como seguidores de "religiões populares chinesas", de 23,5
por cento em 1900 para 4,5 por cento em 1980. Esse aumento e esse
decréscimo, praticamente iguais, sugerem que, com o advento do
comunismo, 0 grosso da população da China foi simplesmente reclas-
"f" cado de seguidores de religiões populares para não-crentes.
Sl 1 d" l
Os dados mostram aumentos nas proporções da população mun ta
d os q u e seguem as duas maiores religiões proselitistas, o Islamismo
d e .o
Cristianismo, durante 80 anos. Estimava-se que os cristãos oci enta1s
eram 26,9 por cento da população mundial em 1900 e 30 por cento em
1980. Os muçulmanos aumentaram de forma mais notável, de 12,4 por
cento em 1900 para 16,5 por cento - ou, segundo outras estimativas, 18
por cento_ em 1980. Durante as últimas décadas d~ _séc~lo XX,_ tanto
0 Islã como 0 Cristianismo expandiram de modo sigmf1cattvo o numero
de fiéis na África, e na Coréia do Sul ocorreu um grande deslocamento
na direção do Cristianismo. Nas sociedades que se estão modernizando
rapidamente, nas quais a religião tradicional não foi capa_z de ~e a~aptar
às exigências da modernização, há um potencial para a dissemm~çao do
Cristianismo ocidental e do Islã. Nessas sociedades, os protagonistas da
cultura ocidental mais bem-sucedidos não são os economistas neoclás-
sicos, nem os pregadores democratas, nem os dirigentes de empresas
multinacionais. São, e muito provavelmente continuarão sendo, os
missionários cristãos. Nem Adam Smith nem Thomas Jefferson satisfarão
as necessidades psicológicas, emocionais, morais e sociais dos migrantes
urbanos e da primeira geração de formados do 2º Grau. É possível que
Jesus Cristo tampouco as satisfaça, mas Ele tenderá a ter maiores
possibilidades.
A longo prazo, entretanto, Maomé sai ganhando. O Cristianismo se
difunde precipuamente pela conversão, o Islamismo pela conversão e
pela reprodução. A porcentagem de cristãos no mundo chegou. ~o seu
auge - em torno de 30 por cento - na década de 80, se estabilizou e
agora está declinando, devendo provavelmente se aproximar de ~~s ~5
por cento da população mundial ao se chegar a 2025." Em conseque,ncia
de suas elevadíssimas taxas de crescimento populacional (ver Capitulo
9), a proporção de muçulmanos no mundo continuará a aumentar ~e
forma notável, devendo totalizar 20 por cento da população mundial
perto da virada do século, ultrapassando o número de cristãos alguns

77
anos depois e provavelmente respondendo por cerca de 30 por cento da
população mundial por volta de 2025.19

CIVILIZAÇÃO UNIVERSAL: FONTES

O conceito de uma civilização universal é um nítido produto da civiliza-


ção ocidental. No século XIX, a idéia do "fardo do homem branco" ajudou
a justificar a expansão do domínio político e econômico ocidental sobre
as sociedades não-ocidentais. No final do século XX, o conceito de uma
civilização universal ajuda a justificar o predomínio cultural do Ocidente
sobre outras sociedades e a necessidade para essas sociedades de imitar
as práticas e as instituições ocidentais. O universalismo é a ideologia do
Ocidente para confrontações com culturas não-ocidentais. Como cos-
tuma acontecer com elementos fronteiriços e convertidos, dentre os
proponentes mais entusiásticos da idéia de uma civilização única estão
os imigrantes intelectuais do Ocidente, tais como Naipaul e Fouad Ajami,
para quem o conceito proporciona uma resposta altamente satisfatória
para a pergunta central: quem sou eu? Entretanto, um intelectual que não
abandonou seu legado não-ocidental denominou aqueles que o fizeram
de "o tipo de negro predileto do homem branco".20 Além disso, a noção
de uma civilização universal encontra pouco apoio em outras civilizações.
Os não-ocidentais vêem como ocidental o que d Ocidente vê como
universal. Aquilo que os ocidentais alardeiam como uma benfazeja
integração global, tal como a proliferação da mídia em escala mundial,
os não-ocidentais condenam como pernicioso imperialismo ocidental.
Na medida em que não-ocidentais vêem o mundo como um só, eles o
consideram uma ameaça.
Os argumentos de que algum tipo de civilização universal está
emergindo se baseiam em uma ou mais pressuposições sobre por que
deve ser assim. Inicialmente, existe a pressuposição, examinada no
Capítulo 1, de que o desmoronamento do comunismo soviético significou
o fim da História e a vitória universal da democracia liberal no mundo
todo. Esta colocação padece da Falácia da Alternativa Única. Ela tem suas
raízes na perspectiva da Guerra Fria de que a única alternativa para o
comunismo é a democracia liberal, e que o fracasso do primeiro produz
a universalidade da segunda. Obviamente, porém, há muitas formas de
autoritarismo, de nacionalismo, de corporativismo e de comunismo de
mercado (como na China) que estão indo muito bem no mundo atual.
Mais importante ainda, há todas aquelas alternativas religiosas que se

7R
situam fora do mundo que é percebido em termos de ideologias
seculares. No mundo moderno, a religião é uma força central, talvez a
força central, que motiva e mobiliza as pessoas. É pura arrogância pensar
que, porque 0 comunismo soviético desmoronou, o Ocidente. ga~hou o
mundo para sempre e que os muçulmanos, os chi~eses, os md1a~o~ e
outros vão se precipitar para abraçar o liberalismo ocidental como a umca
alternativa. A divisão da Humanidade em termos de Guerra Fria acabou.
As divisões mais fundamentais da Humanidade em termos de etnias,
religiões e civilizações permanecem e geram novos conflitos.
Em segundo lugar, existe a pressuposição de que uma maior
interação entre os povos - de forma geral, o comércio exterior, os
investimentos, 0 turismo, a mídia, as comunicações eletrônicas - está
gerando uma cultura mundial comum. Os avanços na tecnologia de
transportes e comunicações de fato tornaram mais fácil e mais barato
movimentar dinheiro, bens, pessoas, conhecimento, idéias e imagens ao
redor do mundo. Não há dúvida alguma quanto ao aumento do tráfego
internacional desses itens. Entretanto, existem muitas dúvidas quanto ao
impacto desse tráfego mais intenso. O comércio exterior aumenta ou
diminui a probabilidade de conflito? A pressuposição de que ele reduz
a probabilidade de guerra, no mínimo, ainda não está provada, e existem
muitos indícios no sentido contrário. O comércio internacional se expan-
diu de forma significativa nos anos 60 e 70 e, ao se chegar a 1980,
representava 15 por cento do produto bruto internacional. Na década
seguinte, a Guerra Fria acabou. Em 1913, porém, o comércio internacional
representava 33 por cento do produto bruto internacional, e, nos anos
imediatamente posteriores, as nações cometeram carnificinas umas con-
tra as outras, atingindo cifras sem precedentes. 21 Se o comércio interna-
cional nesse nível de intensidade não pode impedir a guerra, então
quando poderá? As provas simplesmente não confirmam a pressuposição
liberal, internacionalista, de que o comércio promove a paz. Análises
realizadas nos anos 90 ainda aumentam as dúvidas quanto a essa
pressuposição. Um estudo concluiu que "o aumento dos níveis de
comércio exterior pode constituir uma força altamente divisionista C. .. )
para a política internacional" e que "o aumento do comércio no sistema
internacional tem, por si só, pouca probabilidade de aliviar as tensões
22
internacionais ou promover maior estabilidade internacional". Um
outro estudo sustenta que níveis elevados de interdependência econô-
mica "tanto podem induzir à paz como podem induzir à guerra, depen-
dendo das expectativas do comércio futuro". A interdependência econô-

70
mica só propicia a paz "quando os Estados esperam que os altos níveis
de comércio exterior sejam mantidos no futuro previsível". Se os Estados
não esperam que elevados níveis de interdependência sejam mantidos,
é provável que se termine numa guerra. 23
O fato de que o comércio exterior e as comunicações não foram
capazes de produzir a paz ou um sentimento comum está acorde com
as constatações a que chegaram as ciências sociais. Na psicologia social,
a teoria da diferenciação sustenta que as pessoas se definem por aquilo
que as torna diferentes das demais num contexto em especial: "Uma
pessoa tem uma percepção de si mesma em termos das características
que a distinguem de outros seres humanos, principalmente dos demais
no círculo social habitual dessa pessoa(. .. ) uma psicóloga, na companhia
de uma dezena de mulheres que trabalham em outros ramos de atividade,
pensará em si mesma como uma psicóloga; se estiver junto com uma
dezena de psicólogos (todos do sexo masculino), ela pensará em si como
uma mulher". 24 As pessoas definem sua identidade pelo que não são. À
medida que uma maior intensificação das comunicações, do comércio
exterior e das viagens internacionais multiplicam as interações entre as
civilizações, as pessoas atribuem uma importância cada vez maior à sua
identidade civilizacional. Dois europeus - um alemão e um francês - ,
interagindo um com o outro, identificarão um ao outro como alemão e
francês. Dois europeus - um alemão e um francês - , interagindo com
dois árabes - um saudita e um egípcio - , se definirão como europeus
e árabes. A emigração de pessoas do Norte da África para a França gera
hostilidade dos franceses e, ao mesmo tempo, uma maior receptividade
à imigração de europeus poloneses católicos. Os norte-americanos
reagem de forma muito mais negativa aos investimentos japoneses do
que aos investimentos maiores do Canadá e de países europeus. Analo-
gamente, como ressaltou Donald Horowitz, "um Ibo pode ser (. .. ) um
Ibo Owerri ou um Ibo Onitsha no que era a região oriental da Nigéria.
Em Lagos, ele é simplesmente um Ibo. Em Londres, ele é um nigeriano.
Em Nova York, ele é um africano". 25 Na sociologia, a teoria da globali-
zação chega a uma conclusão semelhante: "num mundo crescentemente
globalizado - caracterizado por graus historicamente excepcionais de
interdependência civilizacional, societária e de outras modalidades, e de
uma ampla percepção delas-, há uma exacerbação da autoconsciência
civilizacional, societária e étnica". O renascimento religioso em escala
mundial, "a volta ao que é sagrado", é uma resposta à percepção popular
do mundo como "um único lugar".26

Rfl
0 OCIDENTE E A MODERNIZAÇÃO
O terceiro e mais generalizado argumento em apoio da tese do surgi-
mento de uma civilização universal a vê como resultante dos amplos
processos de modernização que estão se desenvolvendo desde o século
XVIII. A modernização envolve industrialização, urbanização, níveis
crescentes de alfabetização, educação, riqueza e mobilidade social e
estruturas ocupacionais mais complexas e diversificadas. A modernização
é um produto da tremenda expansão do conhecimento científico e de
engenharia que começou no século XVIII e que habilitou os seres
humanos a controlar e moldar seu meio ambiente de modos inteiramente
sem precedentes. A modernização é um processo revolucionário somente
comparável à mudança das sociedades primitivas para as civilizadas, ou
seja, o surgimento da civilização (no singular), que começou nos vales
do Tigre e do Eufrates, do Nilo e do Indus por volta de 5000 a.c. 27 As
atitudes, os valores, o conhecimento e a cultura das pessoas numa
sociedade moderna diferem enormemente dos de uma sociedade tradi-
cional. Na condição de primeira civilização a se modernizar, o Ocidente
lidera a aquisição da cultura da modernidade. À medida que outras
sociedades adquirirem padrões semelhantes de educação, trabalho,
riqueza e estrutura de classes, prossegue a argumentação, essa moderna
cultura ocidental se transformará na cultura universal do mundo.
É indiscutível que existem diferenças significativas entre as culturas
modernas e tradicionais. Isso, entretanto, não quer necessariamente dizer
que as sociedades com culturas modernas se parecem mais umas com
as outras do que com as sociedades tradicionais. Obviamente, um mundo
em que algumas sociedades sejam altamente modernas e outras ainda
sejam tradicionais será um mundo menos homogêneo do que um mundo
no qual todas as sociedades se encontrem em níveis de modernidade
comparativamente altos. Porém, o que dizer de um mundo no qual todas
as sociedades fossem tradicionais? Esse mundo existiu há algumas
centenas de anos. Seria ele algo menos homogêneo do que poderá ser
um futuro mundo de modernidade universal? Possivelmente não. Braudel
sustenta que "a China da dinastia Ming (. .. ) certamente estava mais perto
da França dos reis Valais do que a China de Mao Tsé-tung está da França
da Quinta República".28
No entanto, as sociedades modernas poderiam se parecer umas com
as outras mais do que as sociedades tradicionais, por duas razões. A
primeira é que uma maior interação entre sociedades modernas pode
não gerar uma cultura comum, porém ela de fato facilita a transferência
de técnicas, invenções e práticas de uma sociedade para outra com uma
velocidade e num grau impossíveis num mundo tradicional. A segunda
é que a sociedade tradicional estava baseada na agricultura, enquanto
que a sociedade moderna está baseada na indústria, a qual pode evoluir
de manufaturas para a indústria pesada clássica e, depois, para a indústria
baseada no conhecimento. Os padrões da agricultura e a estrutura social
que os acompanha dependem muito mais do ambiente natural do que
os padrões da indústria. Eles variam com o solo e o clima e podem assim
dar origem a formas diferentes de propriedade da terra, de estrutura social
e de governo. Quaisquer que sejam os méritos gerais da tese de Wittfogel
da civilização hidráulica, a agricultura dependente da construção e
operação de extensos sistemas de irrigação de fato propicia o surgimento
de autoridades burocráticas e centralizadas. Dificilmente poderia ser de
outro modo. Solos férteis e clima bom têm a probabilidade de estimular
o desenvolvimento da agricultura de plantio em larga escala e uma
conseqüente estrutura social que envolva uma pequena classe de ricos
proprietários de terras e uma grande classe de camponeses, escravos ou
servos que trabalham nas plantações. Condições adversas para a agricul-
tura em larga escala podem estimular o surgimento de uma sociedade
de fazendeiros independentes. Em suma, nas sociedades agrícolas, a
estrutura social é moldada pela geografia. A indústria, ao contrário,
depende muito menos do meio ambiente natural do lugar. As diferenças
da organização industrial provavelmente decorrerão das diferenças de
cultura e de estrutura social em vez da geografia, sendo que as primeiras
têm a possibilidade de convergir, enquanto que a segunda não.
As sociedades modernas têm portanto muito em comum. Mas será
que elas necessariamente se fundem na homogeneidade? O argumento de
que assim é se apóia na pressuposição de que a sociedade moderna deve
se aproximar de um tipo único, o tipo ocidental, de que a civilização moderna
é a civilização ocidental e de que a civilização ocidental é a sociedade moderna.
Isso, porém, é uma identificação totalmente falsa. A civilização ocidental
emergiu nos séculos VIII e IX e desenvolveu suas características diferencia-
doras nos séculos que se seguiram. Ela só começou a se modernizar nos
séculos XVII e XVIII. O Ocidente era o Ocidente muito antes de ser moderno.
As características fundamentais do Ocidente, aquelas que o distinguem
das demais civilizações, antecedem a modernização do Ocidente.
Quais eram essas características diferenciadoras da sociedade oci-
dental durante as centenas de anos anteriores à sua modernização?
Diversos estudiosos apresentaram a essa pergunta respostas que diferem
em alguns pontos específicos, mas coincidem a respeito de umas quantas
instituições, práticas e crenças que podem legitimamente ser identificadas
como o cerne da civilização ocidental. Dentre elas estão as expostas a
seguir. 29
O legado clássico. Na condição de uma civilização de terceira
geração, o Ocidente herdou muito de civilizações anteriores, dentre elas
sobretudo da civilização clássica. São muitos os legados recebidos pelo
Ocidente da civilização clássica, inclusive a filosofia e o racionalismo
gregos, o Direito Romano, o latim e o Cristianismo. As civilizações
islâmica e ortodoxa também herdaram da civilização clássica, porém
longe do grau herdado pelo Ocidente.
Catolicismo e Protestantismo. O Cristianismo ocidental, primeiro
Catolicismo e depois Catolicismo e Protestantismo, é, do ponto de vista
histórico, a característica isolada mais importante da civilização ocidental.
De fato, durante a maior parte do primeiro milênio, o que é atualmente
conhecido como civilização ocidental era chamado de Cristandade
ocidental. Nela havia um sentimento bem desenvolvido de comunidade
entre os povos cristãos ocidentais, de que eram diferentes dos turcos,
mouros, bizantinos e outros, e foi tanto por Deus como pelo ouro que
os ocidentais partiram para conquistar o mundo no século XVI. A Reforma
e a Contra-Reforma, bem como a divisão da Cristandade ocidental num
norte protestante e num sul católico, são também aspectos característicos
da história ocidental, inteiramente inexistentes na Ortodoxia oriental e
em larga margem distanciados da experiência latino-americana.
Idiomas europeus. O idioma só fica em segundo lugar para a religião
como um fator que distingue as pessoas de uma cultura das de outra. O
Ocidente se diferencia da maioria das outras civilizações por sua multi-
plicidade de idiomas. O japonês, o hindi, o mandarim, o russo e até
mesmo o árabe são reconhecidos como os idiomas-núcleos de suas
civilizações. O Ocidente herdou o latim, porém surgiu uma variedade de
nações e com elas os idiomas nacionais, agrupados de forma ampla nas
grandes categorias de línguas latinas e línguas germânicas. Ao se chegar
ao século XVI, esses idiomas haviam, de maneira geral, assumido sua
forma contemporânea. Na qualidade de idioma internacional comum ao
Ocidente, o latim cedeu lugar ao francês, o qual, por sua vez, foi no
século XX superado pelo inglês.
Separação da autoridade espiritual e temporal. Através de toda a
História ocidental, primeiro a Igreja e depois as muitas igrejas viveram

O?
separadas do Estado. Deus e César, Igreja e Estado, autoridade espiritual
e autoridade temporal foram um dualismo que prevaleceu na cultura
ocidental. Somente na civilização hindu a religião e a política estavam
também separadas de forma tão nítida. No Islã, Deus é César; na China
e no Japão, César é Deus; na Ortodoxia, Deus é o sócio menor de César.
A separação e os repetidos choques entre Igreja e Estado, que tipificaram
a civilização ocidental, jamais ocorreram em qualquer outra civilização.
Essa divisão da autoridade contribuiu de forma incomensurável para o
desenvolvimento da liberdade no Ocidente.
Império da lei. A noção de que a lei é um elemento essencial da
existência civilizada foi herdada dos romanos. Os pensadores medievais
elaboraram a idéia do direito natural, segundo o qual os monarcas deviam
exercer seu poder, e uma tradição de direito comum se desenvolveu na
Inglaterra. Durante a fase do Absolutismo, nos séculos XVI e XVII, o
império da lei foi mais violado do que respeitado, porém persistiu a idéia
da subordinação do poder dos homens a algum controle externo: "Non
sub homine sed sub Deo et lege." A tradição do império da lei assentou
as bases para o constitucionalismo e a proteção dos direitos humanos,
inclusive os direitos de propriedade, e também contra o exercício do
poder arbitrário. Na maioria das civilizações, a lei foi um fator muito
menos importante na formação do pensamento e do comportamento.
Pluralismo social. Historicamente, a sociedade ocidental tem sido
altamente pluralista. Como observa Deutsch, o que é específico do
Ocidente "é a ascensão e persistência de diversos grupos autônomos não
baseados em relações de sangue ou casamento".30 A partir dos séculos
VI e VIII, esses grupos inicialmente incluíam mosteiros, ordens monás-
ticas e ligas, porém depois se expandiram para incluir, em muitas áreas
da Europa, uma variedade de outras associações e sociedades.31 O
pluralismo associativo foi suplementado pelo pluralismo de classes. A
maioria das sociedades européias ocidentais incluiu uma aristocracia
relativamente forte e autônoma, um campesinato substancioso e uma
classe pequena porém importante de mercadores e comerciantes. A força
da aristocracia feudal foi especialmente importante para a limitação do
grau com que o Absolutismo conseguiu firmar raízes na maioria das
nações européias. Esse pluralismo europeu contrasta de forma aguda
com a pobreza da sociedade civil, a debilidade da aristocracia e a força
dos impérios burocráticos centralizados que existiram simultaneamente
na Rússia, na China, em terras otomanas e em outras sociedades
não-ocidentais.


Corpos representativos. O pluralismo social logo levou ao surgimen-
to de assembléias, parlamentos e outras instituições para representar os
interesses da aristocracia, do clero, dos comerciantes e outros grupos.
Esses órgãos proporcionavam formas de representação que, no curso
do processo de modernização, evoluíram para as instituições da
democracia moderna. Em alguns casos, esses órgãos foram abolidos
ou seus poderes ficaram muito limitados durante o período do
Absolutismo. Contudo, mesmo quando isso aconteceu, eles puderam,
como na França, ser ressuscitados para proporcionar o meio para uma
participação política ampliada. Nenhuma outra civilização contemporâ-
nea tem um legado comparável de corpos representativos que exista há
um milênio. Também em nível local, a partir do século IX, nas cidades
italianas desenvolveram-se movimentos no sentido do estabelecimento
de governo próprio, que depois se estenderam para o norte, "forçando
bispos, barões locais e outros grandes nobres a partilhar o poder com os
burgueses e, no final, muitas vezes acabaram por entregá-lo por comple-
to".32 A representação em nível nacional foi assim suplementada por uma
dose de autonomia em nível local que não se repetiu em outras partes
do mundo.
Individualismo. Muitos dos aspectos da civilização ocidental men-
cionados acima contribuíram para o surgimento de uma noção de
individualismo e uma tradição de direitos e liberdades individuais únicos
dentre as sociedades civilizadas. O individualismo se desenvolveu nos
séculos XIV e XV e a aceitação do direito de escolha individual - aquilo
que Deutsch denomina de "a revolução de Romeu e Julieta" - se impôs
no Ocidente ao se chegar ao século XVII. Até mesmo as reivindicações
de direitos iguais para todos os indivíduos - "o homem mais pobre da
Inglaterra tem uma vida a viver tanto quanto o homem mais rico" -
foram enunciadas, ainda que não aceitas universalmente. O indivi-
dualismo continua sendo uma marca típica do Ocidente dentre as
civilizações do século XX. Numa análise que envolve amostragens
semelhantes em 50 países, os 20 primeiros em que se registrou o índice
de individualismo mais alto incluíram todos os países ocidentais, com
exceção de Portugal e o acréscimo de Israel.33 O autor de outro
levantamento, em diferentes culturas, de individualismo e coletivismo
também sublinhou, de modo análogo, o predomínio do individualismo
no Ocidente, em comparação com a prevalência do coletivismo em outras
áreas, e chegou à conclusão de que "os valores que são mais importantes
no Ocidente são menos importantes no resto do mundo". De forma
reiterada, tanto os ocidentais como os não-ocidentais apontam o in-
dividualismo como a principal marca típica do Ocidente.34
A listagem feita acima não pretende ser uma enumeração exaustiva
das características próprias da civilização ocidental. Nem pretende impli-
car que essas características estejam presentes sempre e de modo
universal na sociedade ocidental. É evidente que não estão: os muitos
déspotas da História ocidental ignoraram sistematicamente o império da
lei e suspenderam o funcionamento de órgãos representativos. Nem
pretende ela sugerir que nenhuma dessas características apareceu em
outras civilizações. É claro que aparecem: o Corão e a shari'a constituem
a lei básica nas sociedades islâmicas; o Japão e a Índia têm sistemas de
classes paralelos aos do Ocidente (e talvez, como resultado disso, sejam
as duas únicas grandes sociedades não-ocidentais que mantiveram
governos democráticos por algum tempo). Individualmente, quase ne-
nhum desses fatores foi exclusivo do Ocidente. Entretanto, a combinação
deles, sim, e foi isso que atribuiu ao Ocidente sua condição singular.
Essas concepções, práticas e instituições simplesmente foram mais pre-
dominantes no Ocidente do que em outras civilizações. Elas formam pelo
menos parte do núcleo ininterrupto essencial da civilização ocidental.
Elas são o que é ocidental porém não moderno no Ocidente. Elas são
também, em grande medida, os fatores que habilitaram o Ocidente a
assumir a liderança no processo de modernizar a si próprio e ao mundo.

REAÇÕES AO OCIDENTE E À MODERNIZAÇÃO

A expansão do Ocidente promoveu ao mesmo tempo a modernização e


a ocidentalização das sociedades não-ocidentais. Os líderes políticos e
intelectuais dessas sociedades reagiram ao impacto ocidental de uma
dessas três formas: rejeitando tanto a modernização como a ocidentali-
zação, abraçando ambas ou abraçando a primeira e rejeitando a segun-
da. 35
Rejeicionismo. O Japão seguiu um curso substancialmente rejei-
cionista desde os seus primeiros contatos com o Ocidente, em 1542, até
meados do século XIX. Só foram permitidas formas limitadas de moder-
nização, tais como a aquisição de armas de fogo, e foi severamente
restringida a importação da cultura ocidental, inclusive e principalmente
o Cristianismo. Os ocidentais foram todos expulsos em meados do século
XVII. Essa postura rejeicionista chegou ao fim com a abertura forçada do
Japão pelo comodoro Perry em 1854 e com os notáveis esforços para
aprender com o Ocidente após a Restauração Meiji em 1868. Durante
vários séculos, também a China tentou barrar qualquer modernização ou
ocidentalização de monta. Embora tivesse sido permitido o ingresso na
China de emissários cristãos em 1601, eles foram depois excluídos de
forma efetiva em 1722. Ao contrário do Japão, a política rejeicionista da
China estava em grande parte fundada na imagem que a China fazia de
si própria como o Reino do Meio e na firme crença da superioridade da
cultura chinesa em relação à de todos os outros povos. O isolamento
chinês, tal como o isolamento japonês, foi encerrado pelas armas
ocidentais, usadas na China pelos britânicos durante a Guerra do Ópio
de 1839-1842. Como esses casos indicam, durante o século XIX, o poderio
ocidental tornou cada vez mais difícil e acabou por tornar impossível
para as sociedades não-ocidentais manter estratégias puramente exclu-
sionistas.
No século XX, os avanços em transportes e comunicações e a
interdependência global aumentaram tremendamente o custo da exclu-
são. Com exceção de comunidades rurais pequenas e isoladas, dispostas
a viver num nível de subsistência, a rejeição total da modernização, bem
como da ocidentalização, mal chega a ser possível num mundo que se
está tornando predominantemente moderno e profundamente interliga-
do. Daniel Pipes escreve, referindo-se ao Islã, que "somente os fun-
damentalistas mais extremados rejeitam a modernização, bem como a
ocidentalização. Eles atiram aparelhos de televisão nos rios, proíbem
relógios de pulso e rejeitam o motor de combustão interna. Entretanto,
a impraticabilidade de seu programa limita enormemente a capacidade
de atração desses grupos e, em vários casos - tais como os Yen Izala
de Kano, os assassinos de Sadat, os atacantes da mesquita em Meca e
alguns grupos dakwah na Malásia - , suas derrotas em confrontos
violentos com as autoridades fizeram com que eles desaparecessem
deixando poucos vestígios".36 O desaparecimento com poucos vestígios
resume, de forma geral, o destino das políticas puramente rejeicionistas
ao se chegar ao final do século XX. O fanatismo, para usar o termo de
Toynbee, simplesmente não é uma opção viável.
Kemalismo. Uma segunda possível reação ao Ocidente é o hero-
dianismo a que se refere Toynbee, ou seja, abraçar tanto a modernização
como a ocidentalização. Essa reação está baseada nas pressuposições de
que a modernização é desejável e necessária, de que a cultura autóctone
deve ser abandonada ou abolida e de que a sociedade deve se ociden-
talizar por completo, a fim de ter êxito na sua modernização. A moderni-
zação e a ocidentalização se reforçam mutuamente e têm que ir juntas.
Esse enfoque foi sintetizado na argumentação de alguns intelectuais
japoneses e chineses do final do século XIX no sentido de que, a fim de
se modernizarem, suas sociedades deviam abandonar seus idiomas
históricos e adotar o inglês como idioma nacional. Não é de surpreender
que esse ponto de vista tenha sido mais popular entre as elites ocidentais
do que entre as não-ocidentais. Sua mensagem é: "Para serem bem-su-
cedidos, vocês têm que ser como nós; nosso modo é o único modo." O
argumento é de que "os valores religiosos, os pressupostos morais e as
estruturas sociais dessas sociedades [não-ocidentais] são, na melhor das
hipóteses, estranhas, e por vezes hostis, aos valores e às práticas do
industrialismo." Por conseguinte, o desenvolvimento econômico irá
"exigir uma reformulação radical e destrutiva da vida e da sociedade e,
muitas vezes, uma reinterpretação do significado da própria existência
1
tal como foi entendida pelas pessoas que vivem nessas civilizações".37
Pipes faz o mesmo raciocínio referindo-se explicitamente ao Islã:
l
Para escapar à anomia, os muçulmanos só têm uma escolha, pois a
modernização requer a ocidentalização (. .. ). O Islamismo não oferece
um meio alternativo para se modernizar(. .. ). O secularismo não pode
ser evitado. A ciência e a tecnologia modernas exigem uma absorção
dos processos de raciocínio que as devem acompanhar; o mesmo se dá
com as instituições políticas. Como é preciso emular o conteúdo tanto
quanto a forma, o predomínio da civilização ocidental deve ser reco-
nhecido para que se possa aprender com ela. Os idiomas europeus e os
estabelecimentos de ensino ocidentais não podem ser evitados, mesmo
que esses últimos encorajem o livre pensamento e a vida fácil. Só quando
os muçulmanos aceitarem explicitamente o modelo ocidental, estarão
em posição de se tecnicalizar e, então, se desenvolver.38

Sessenta anos antes de que essas palavras fossem escritas, Mustafá


Kemal Ataturk chegou a conclusões semelhantes, criou uma nova
Turquia das ruínas do Império Otomano e desencadeou um esforço
maciço tanto para ocidentalizá-la como para modernizá-la. Ao embarcar
nessa rota e rejeitar o passado islâmico, Ataturk fez da Turquia um "país
dividido", uma sociedade que era muçulmana na sua religião, na sua
herança, nos seus costumes e nas suas instituições, porém com uma elite
dirigente decidida a torná-la moderna, ocidental e em sintonia com o
Ocidente. No final do século XX, vários países estão perseguindo a opção
kemalista e tentando substituir uma identidade não-ocidental por uma
ocidental. Seus esforços serão examinados no Capítulo 6.

00
Reformismo. A rejeição envolve a tarefa impossível de isolar uma
sociedade do mundo moderno que está encolhendo. O kemalismo
envolve a tarefa difícil e traumática de destruir uma cultura que existira
durante séculos e colocar em seu lugar uma cultura inteiramente nova,
importada de outra civilização. Uma terceira opção é tentar combinar a
modernização com a preservação dos valores, práticas e instituições
centrais da cultura autóctone dessa sociedade. Essa opção, como se pode
compreender, tem sido a mais popular entre as elites não-ocidentais. Na
China, nas últimas etapas da dinastia Ching, o slogan era Ti-Yang: "Ensino
chinês para os princípios fundamentais, ensino ocidental para uso
prático." No Japão era Wakon, Yosei: "Espírito japonês, técnica ocidental."
No Egito, na década de 1830, Muhammad Ali "tentou a modernização

1 técnica sem uma ocidentalização cultural excessiva". Entretanto, essa


tentativa fracassou quando os britânicos o forçaram a abandonar a

l maioria de suas reformas modernizadoras. Em conseqüência, observa Ali


Mazrui, "o destino do Egito não foi um destino japonês de modernização
sem a ocidentalização cultural, nem foi um destino tipo Ataturk de
modernização técnica através da ocidentalização cultural".39 Na parte
final do século XIX, porém, Jamal al-Din al-Afghani, Muhammad 'Abduh
e outros reformadores tentaram uma nova reconciliação do Islã com a
modernidade, sustentando "a compatibilidade do Islã com a ciência
moderna e o que há de melhor no pensamento ocidental", e oferecendo
as "razões do Islã para aceitar idéias e instituições modernas, sejam
científicas, tecnológicas ou políticas (constitucionalismo e governo repre-
sentativo)" _4o Tratava-se de um reformismo de grande amplitude, tenden-
do para o kemalismo, que aceitava não só a modernidade, como também
algumas das instituições ocidentais. O reformismo desse tipo foi a reação
ao Ocidente que predominou entre as elites muçulmanas durante 50
anos, da década de 1870 até a de 1920, quando ela foi contestada pela
ascensão do kemalismo e, posteriormente, a de um reformismo muito
mais puro, sob a forma do fundamentalismo.
O rejeicionismo, o kemalismo e o reformismo se baseiam em
pressupostos diferentes quanto ao que é possível e o que é desejável.
Para o rejeicionismo, tanto a modernização quanto a ocidentalização são
indesejáveis, e é possível rejeitar ambas. Para o kemalismo, tanto a
modernização quanto a ocidentalização são desejáveis, a segunda porque
é indispensável para lograr a primeira, e ambas são possíveis. Para o
reformismo, a modernização é desejável e possível sem uma ocidentali-
zação substancial, que é indesejável. Existem portanto conflitos entre o

QO
rejeicionismo e o kemalismo quanto à desejabilidade da modernização
e da ocidentalização, e entre o kemalismo e o reformismo quanto a se a
modernização pode ocorrer sem a ocidentalização.
A Figura 3.1 apresenta um diagrama desses três cursos de ação. O
rejeicionista permaneceria no Ponto A; o kemalista se deslocaria ao longo
da diagonal para o Ponto B; o reformista se moveria horizontalmente
para o Ponto C. Entretanto, ao longo de que caminho as -sociedades de
fato se moveram? Obviamente, cada sociedade não-ocidental seguiu o
seu próprio curso, que pode diferir de modo substancial desses três
caminhos prototípicos. Mazrui chega até a sustentar que o Egito e a África
se moveram em direção ao Ponto D através de um "penoso processo de
ocidentalização cultural sem a modernização técnica". Na medida em que
exista qualquer padrão generalizado de modernização e ocidentalização
nas reações das sociedades não-ocidentais ao Ocidente, ele pareceria
estar ao longo da curva A - E. No princípio, a ocidentalização e a

FIGURA3.1
REAÇÕES ALTERNATIVAS AO IMPACTO DO ÜCIDENTE

o
""~
.!::! E
~
eCJ)
"'O

Modernização
modernização estão intimamente ligadas, com a sociedade não-ocidental
absorvendo elementos substanciais da cultura ocidental e progredindo
lentamente rumo à modernização. Entretanto, à medida que o ritmo de
modernização aumenta, a taxa de ocidentalização diminui e a cultura
autóctone passa por um período de renascimento. Modernização adicio-
nal então altera o equilíbrio de poder civilizacional entre o Ocidente e a
sociedade não-ocidental, revigora o poder e a autoconfiança dessa
sociedade e reforça o compromisso com a cultura autóctone.
Assim sendo, nas fases iniciais da mudança, a ocidentalização
promove a modernização. Nas fases posteriores, a modernização promo-
ve a desocidentalização e o ressurgimento da cultura autóctone de duas
maneiras. No nível societário, a modernização amplia o poder econômi-
co, militar e político da sociedade como um todo e incentiva as pessoas
dessa sociedade a terem confiança na sua cultura e se tornarem cultural-
mente afirmativas. No nível individual, a modernização gera sentimentos
de alienação e anomia, à medida que laços tradicionais e relações sociais
são rompidos, e conduz a crises de identidade, para as quais a religião
dá uma resposta. Esse fluxo causal está apresentado de uma forma
simples na Figura 3.2.
Esse modelo geral hipotético é congruente tanto com as teorias das
ciências sociais como com a experiência histórica. Examinando em
profundidade as indicações disponíveis relativas à "hipótese da invaria-
bilidade", Rainer Baum chega à conclusão de que "a contínua busca pelo
Homem de uma autoridade efetiva e de uma autonomia pessoal efetiva
se dá de maneiras culturalmente distintas. Nessas matérias não há
convergência na direção de um mundo homogeneizante das culturas.
Em vez disso, parece haver uma invariabilidade nos padrões que foram
desenvolvidos em formas distintas durante a etapa histórica e o início da
etapa moderna do desenvolvimento" .4 1 Tal como comentaram Frobenius,

FIGURA3.2
MODERNIZAÇÃO E RESSURGIMENTO CULTURAL

<~ ""-
Sociedade Maior poder econômico,
~ militar, político ~

Moder,;zação Ressurgimento cultural


e religioso

Indivíduo Alienação e crise d e /


identidade

01
Spengler e Bozeman, entre outros, o tomar emprestada uma teoria
acentua o grau em que as civilizações recipientes tomam emprestados,
de forma seletiva, elementos de outras civilizações e os adaptam,
transformam e assimilam, de modo a reforçar e assegurar a sobrevivência
dos valores-núcleos ou "paideuma" de sua cultura.42 Quase todas as
civilizações não-ocidentais do mundo existem há pelo menos um milênio
e, em alguns casos, há vários milênios. Elas demonstraram um índice de
empréstimos tomados de outras civilizações cujo objetivo é melhorar suas
próprias condições de sobrevivência. Os estudiosos concordam em que
a absorção pela China do Budismo vindo da Índia não produziu a
"indianização" da China. Os chineses adaptaram o Budismo aos propó-
sitos e necessidades chineses. A cultura chinesa continua chinesa. Até
hoje os chineses derrotaram de modo consistente os intensos esforços
ocidentais para cristianizá-los. Se, em algum momento, eles de fato
importarem o Cristianismo, é de se esperar que ele será adaptado e
absorvido de uma maneira que reforce o ininterrupto paideuma chinês.
Analogamente, os árabes muçulmanos receberam seu "legado helênico,
a ele deram valor e dele se serviram por motivos essencialmente
utilitários. Estando sobretudo interessados em tomar emprestadas certas
formas exteriores ou aspectos técnicos, eles sabiam como descartar todos
os elementos no corpo do pensamento grego que entrariam em conflito
com 'a verdade' tal como estabelecida pelas normas e preceitos fun-
damentais corânicos". 43 O Japão seguiu o mesmo padrão. No século VII,
o Japão importou a cultura chinesa e promoveu a "transformação por
sua própria iniciativa, isenta de pressões econômicas e militares", para
uma alta civilização. "Durante os séculos que se seguiram, houve uma
alternância entre períodos de relativo isolamento das influências conti-
nentais, durante os quais o que havia sido tomado de empréstimo era
processado e assimilado ao que era útil, e períodos de novos contatos e
novos empréstimos culturais." 44 Através de todas essas fases, a cultura
japonesa permaneceu nitidamente japonesa.
A forma moderada da argumentação kemalista de que as sociedades
não-ocidentais podem se modernizar ao se ocidentalizar continua sem
ter sido provada. A argumentação extremada de que as sociedades
não-ocidentais têm que se ocidentalizar a fim de se modernizar não se
sustenta como uma proposição de alcance universal. Contudo, ela de
fato suscita a indagação: existem algumas sociedades não-ocidentais nas
quais os obstáculos que a cultura autóctone opõe à modernização são
tão grandes que é preciso substituir essa cultura de forma significativa
pela cultura ocidental para que a modernização possa se dar? Em teoria,
isso deveria ser mais provável em culturas consumistas do que em
culturas instrumentais. As culturas instrumentais são "caracterizadas por
um grande setor de fins intermediários, separada e independentemente
dos fins últimos". Esses sistemas "inovam com facilidade estendendo o
manto da tradição por cima da própria mudança. (. .. ) Esses sistemas
podem inovar sem parecer que estejam alterando de maneira fun-
damental suas instituições sociais. Na verdade, faz-se com que a inovação
sirva à imemorialidade". Os sistemas consumistas, ao contrário, "se
caracterizam por uma estreita relação entre fins intermediários e últimos.
(. .. )a sociedade, o Estado, a autoridade e coisas semelhantes são todos
parte de um sistema de alta solidariedade, mantida de forma elaborada,
no qual é profunda a função da religião como guia cognitivo. Esses
sistemas têm sido infensos à inovação".45 Apter emprega essas categorias
para analisar as mudanças em tribos africanas. Eisenstadt aplica uma análise
paralela às grandes civilizações asiáticas e chega a conclusão semelhante. As
transformações internas são "grandemente facilitadas pela autonomia das
instituições sociais, culturais e políticas" .46 Por essa razão, as sociedades
japonesa e hindu moveram-se mais cedo e com maior facilidade para a
modernização do que as sociedades confuciana e islâmica. Elas tiveram mais
capacidade para importar a tecnologia moderna e utilizá-la para aprimorar
sua cultura preexistente. Isso quer dizer que as sociedades chinesa e islâmica
têm que abandonar tanto a modernização como a ocidentalização ou
abraçar ambas? Não parece que as opções sejam assim tão limitadas. Além
do Japão, também Singapura, Taiwan, Arábia Saudita e, em menor grau, o
Irã se tomaram sociedades modernas sem se tomar ocidentais. Na realidade,
os esforços do xá por seguir um curso kemalista e fazer ambas as coisas
gerou uma reação intensamente antiocidental mas não antimoderna. A
China está visivelmente engajada num caminho reformador.
As sociedades islâmicas têm tido dificuldades com a modernização,
e Pipes, em apoio à sua afirmação de que a ocidentalização é um
pré-requisito, aponta para os conflitos entre o Islã e a modernidade em
questões econômicas como os juros, o jejum, as leis sobre herança e a
participação da mulher na força de trabalho. Contudo, mesmo ele cita
de forma aprobatória Maxine Rodinson no sentido de que "não há nada
que indique, de forma convincente, que a religião muçulmana impediu
que o mundo muçulmano se desenvolvesse pela estrada do capitalismo
moderno", e argumenta que, na maioria das questões fora do campo
econômico,

93
o Islã e a modernidade não se chocam. Muçulmanos praticantes podem
cultivar as ciências, trabalhar com eficiência em fábricas ou empregar
armas sofisticadas. A modernização não exige nenhuma ideologia
política específica nem um conjunto de instituições determinadas.
Eleições, fronteiras nacionais, associações cívicas e outras marcas regis-
tradas da vida ocidental não são necessárias para o crescimento econô-
mico. Na condição de um credo, o Islã satisfaz tanto os consultores de
gerenciamento quanto os camponeses. A shari 'a nada tem a dizer quanto
às mudanças que acompanham a modernização, tais como a mudança
da agricultura para a indústria, do campo para a ddade·ou da estabilidade
social para a mobilidade social, nem ela interfere em assuntos como
educação de massa, comunicações rápidas, novas formas de transporte
ou saúde pública.47

Analogamente, até mesmo proponentes extremados do antiocidentalis-


mo e da revitalização das culturas autóctones não hesitam em utilizar
técnicas modernas de correio eletrônico, cassetes e televisão para pro-
mover sua causa.
Em resumo, modernização não quer necessariamente dizer ocidenta-
lização. As sociedades não-ocidentais podem se modernizar, e têm se
modernizado, sem abandonar suas próprias culturas e sem adotar de forma
generalizada os valores, as instituições e as práticas ocidentais. Na verdade,
esta última proposição pode ser quase impossível: quaisquer que sejam os
obstáculos que as culturas não-ocidentais opõem à modernização, são
insignificantes se comparados com os obstáculos que opõem à ocidentali-
zação. Como observa Braudel, seria quase "infantil" pensar-se que a
modernização ou o "triunfo da ciVilizaçâo (no singular)" levaria ao fim
da pluralidade das culturas históricas corporificadas durante séculos nas
grandes civilizações do mundo.48 Ao contrário, a modernização reforça
essas culturas e reduz o poder relativo do Ocidente. De modos fun-
damentais, o mundo está ficando mais moderno e menos ocidental.

94
II

A ALTERAÇÃO DO EQUILÍBRIO
ENTRE AS CIVILIZAÇÕES
CAPÍTULO 4

O Desvanecimento do Ocidente:
Poder, Cultura e lndigenização

O PODER OCIDENTAL: PREDOMÍNIO E DECLÍNIO


á duas imagens do poderio do Ocidente em relação às outras

H civilizações. A primeira é a de um predomínio ocidental avas-


salador, triunfante, quase total. A desintegração da União Sovié-
-e,
( tica afastou o único desafiante sério do Ocidente como conseqÜênda,
i o munc:lo _estLsc:nd()_ e será moldado pelos objetivos,_ prioridades e
\ interesses das principais nações ocidentais, com talvez uma participação .
: ocasional do Japão. Na condição da única superpotência que restou, os
/ Estados Unidos, junto com a Grã-Bretanha e a França, tomam as decisões
cruciais sobre questões políticas e de segurança, os Estados Unidos junto
com a Alemanha e o Japão tomam as decisões cruciais sobre questões
1econômicas. O Ocidente é a única civilização que tem interesses subs-
/ tanciais em todas as outras civilizações ou regiões e tem a capacidade de
' afetar a política, a economia e a segurança de todas as outras civilizações
ou regiões. As sociedades das outras civilizações geralmente precisam de
ajuda ocidéntal para atingir os seus objetivos e proteger os seus interesses.
Como foi resumido por um autor, as nações ocidentais:
\

4. São donas e operadoras do sistema bancário internacional.


• Controlam todas as moedas fortes.
• São o principal cliente do mundo.

97
• Fornecem a maioria dos bens acabados do mundo.
• Dominam os mercados internacionais de capitais.
• Exercem considerável liderança moral dentro de muitas so-
ciedades.
• São capazes de maciça intervenção militar.
• Controlam as rotas marítimas.
• Realizam a maior parte da pesquisa e desenvolvimento
de tecnologia de ponta.
• Controlam o ensino técnico de ponta.
• Dominam o acesso ao espaço.
• Dominam a indústria aeroespacial. 1
• Dominam as comunicações internacionais.
• Dominam a indústria de armamentos de alta tecnologia. 1

A segunda imagem do Ocidente é muito diferente. É a de uma


civilização em declínio, com sua parcela de poder político, econômico e
militar mundial baixando em relação ao de outras civilizações. A vitóri~_
do Ocidente na Guerra Fria produziu não o triunfo, mas a exaust~o_._9
Ocidente está cada vez mais preocupado com seus problemas e neces-
sidades internos, ao mesmo tempo em que enfrenti \.milénto crescimento__
~conômico, o desemprego, enormes deficits públicos, uínà éUca_~~-t@Q_ªlhg
em declínio, baixas taxas de poupança e, em muitos países, inclusive_ nos
Estados Unidos, desintegração social, drogas e criminali<!a_ge~..O poder
conômico está se deslocando rapidamente para a Ásia Oriental e o poder
militar e a influência política estão começando a ir pelo mesmo caminho.
A índia está na iminência de uma decolagem econômica e o mundo
islâmico está cada vez mais hostil para com o Ocidente. Está se
evaporando rapidamente a disposição de outras sociedades de aceitar os
ditames do Ocidente ou de acatar seus sermões, bem como a autocon-
fiança e a vontade de dominar do Ocidente. O final da década de 80 viu
muitos debates sobre a tese do declínio no que se refere aos Estados
Unidos e em meados da década de 90, Aaron Fridberg concluiu que,
'
em muitos aspectos importantes, seu [dos Estados Unidos] poder relativo
irá declinar num ritmo crescente. Em termos de sua capacidade econô-
mica pura, a posição dos Estados Unidos em relação ao Japão e,
finalmente, à China provavelmente irá se deteriorar ainda mais. No
campo militar, o equilíbrio da capacidade real entre os Estados Unidos
e um número cada vez maior de potências regionais (incluindo, talvez,
o Irã, a Índia e a China) se deslocará do centro para a periferia. Uma
parcela do poder estrutural dos Estados Unidos fluirá para outras nações;

98
outra (bem como uma parcela do seu poder aparente) passará para as
mãos de agentes não-estatais, como as empresas multinacionais. 2 ·

Qual dessas duas imagens contrastantes do lugar que o Ocidente


ocupa no mundo corresponde à realidade? É claro que a resposta é:
ambas. Atualmente, o Ocidente tem um predomínio absoluto e continua-
rá a ser o número um em termos de poder e de influência até bem adiante
no século XXI. Entretanto, mudanças graduais, inexoráveis e fundamen-
tais também estão ocorrendo nos equilíbrios de poder entre as civiliza-
ções, e o poder do Ocidente em relação ao das outras civilizações

1 continuará a declinar. À medida que a primazia do Ocidente se deteriora,


muito do seu poder irá simplesmente se evaporar e o resto dele será
difundido numa base regional entre as várias civilizações principais e
seus Estados-núcleos. Os aumentos de poder mais significativos estão se
dando e continuarão a se dar nas civilizações asiáticas, com a China
emergindo gradualmente como a sociedade com maior probabilidade de
desafiar o Ocidente pela influência mundial. Esses deslocamentos de
poder entre as civilizações estão levando e irão levar à revitalização e a
uma maior afirmação cultural das sociedades não-ocidentais e à sua
rejeição cada vez maior da cultura ocidental.
O_ declínio do ()cide!lt~_tef!l__três carac~~r:ístiq1s _Q!i!lÇiQª!?:.
A primeira é que se trata de um processo lento. A ascensão do
poderio ocidental levou 400 anos. Sua retroversão poderia levar o mesmo
tempo. Na década de 80, o insigne estudioso britânico Hedley Buli
sustentou que "pode-se dizer que o predomínio europeu ou ocidental
da sociedade internacional universal atingiu seu apogeu por volta de
1900".3 O primeiro volume da obra 'de Spengler apareceu em 1918 e o
"declínio do Ocidente" constituiu um tema central da História do século
XX. O próprio processo se estendeu durante a maior parte deste século.
Entretanto, é concebível que ele possa se acelerar. O crescimento
econômico e outros aumentos da capacidade de um país freqüentemente
seguem uma curva em S: um começo lento, depois uma aceleração
rápida, seguida por taxas reduzidas de expansão, e se estabilizando. O
declínio dos países pode também seguir uma curva em S no sentido
inverso, como aconteceu com a União Soviética: moderado a princípio,
depois se acelerando rapidamente, antes de se nivelar no fundo. O
declínio do Ocidente ainda está na lenta primeira fase, porém ele poderia,
em algum momento, acelerar de forma dramática.
{ ~~~.fill!lda ê <:JB€ o declínio não segue uma linha reta. Ele . é
altamente irregular, com pausas, inversões e reafirmações do podeno

00
ocidental, depois de manifestações de fraqueza ocidental. As sociedades
democráticas abertas do Ocidente têm uma grande capacidade de
renovação. Além disso, ao contrário de muitas civilizações, o Ocidente
teve dois centros principais de poder. O declínio que Bull viu começando
por volta de 1900 era essencialmente o declínio do componente europeu
da civilização ocidental. De 1910 a 1945, a Europa ficou dividida contra
si mesma e preocupada com os seus problemas econômicos, sociais e
políticos internos. Na década de 40, contudo, os Estados Unidos, por um
curto período, quase dominaram o mundo num grau comparável ao
domínio conjunto das Potências Aliadas em 1918. A descolonização no
pós-guerra reduziu ainda mais a influência européia, mas não a dos
Estados Unidos, que substituíram o tradicional império territorial por um
novo imperialismo transnacional. Durante a Guerra Fria, entretanto, o
poder militar norte-americano ficou equiparado ao dos soviéticos e o
poder econômico norte-americano declinou em relação ao do Japão.
Contudo, verificaram-se esforços periódicos de renovação militar e
econômica. De fato, em 1991, um outro destacado estudioso britânico,
Barry Buzan, sustentou que "a realidade mais profunda é a de que o
centro é atualmente mais predominante e a periferia mais subordinada
do que em qualquer momento desde que começou a descolonização". 4
Entretanto, a exatidão dessa percepção se desvanece na medida em que
a vitória militar que lhe deu lugar também se desvanece na História.
A terceira é a capacidade de uma pessoa ou de um grupo de mudar
o comportamento de outra pessoa ou de outro grupo. O comportamento
pode ser mudado por meio de indução, coerção ou exortação, que exige
que quem detém o poder possua recursos econômicos, institucionais,
demográficos, políticos, tecnológicos, sociais ou de outro tipo. O poder
de um Estado ou de um grupo é, por conseguinte, normalmente avaliado
medindo-se os recursos de que dispõe contra os de que dispõem os
outros Estados ou grupos que ele está tentando influenciar. A parcela
que o Ocidente detém da maioria, porém não de todos, os recursos de
poder importantes, chegou ao seu ápice no século XX e então começou
a declinar em relação aos de outras civilizações.

Território e população. Em 1490, as sociedades ocidentais controla-


vam a maior parte da península européia, com exceção dos Bálcãs, ou
cerca de 3,8 milhões de quilômetros quadrados de uma área terrestre
global (afora a Antártica) de 136 milhões de quilômetros quadrados. No
auge de sua expansão territorial, em 1920, o Ocidente governava de

100
forma direta cerca de 66 milhões de quilômetros quadrados, ou quase
metade de todas as terras da Terra. Ao se chegar a 1993, esse controle
territorial tinha sido reduzido à metade, para cerca de 32,8 milhões de
quilômetros quadrados. O Ocidente tinha revertido ao seu núcleo
europeu original, mais suas vastas terras povoadas por colonizadores na
América do Norte, Austrália e Nova Zelândia. Em contraste, o território
das sociedades islâmicas independentes elevou-se de 4,6 milhões de
quilômetros quadrados em 1920 para mais de 28,5 milhões de quilôme-
tros quadrados em 1933. Mudanças semelhantes ocorreram no controle
de populações. Em 1900, os ocidentais representavam aproximadamente
30 por cento da população mundial e os governos ocidentais exerciam
sua autoridade sobre quase 45 por cento dessa mesma população então
e sobre 48 por cento em 1920. Em 1993, com exceção de uns poucos e
pequenos remanescentes imperiais, como Hong Kong, os governos
ocidentais não exerciam sua autoridade sobre ninguém além dos próprios
ocidentais. Estes somavam pouco mais de 13 por cento da Humanidade,
total que deve cair para cerca de 11 por cento no princípio do próximo
século e para 10 por cento em 2025.s Em termos de população total, em
1993 o Ocidente estava em quarto lugar, atrás das civilizações sínica,
islâmica e hindu.
Assim sendo, quantitativamente os ocidentais constituem uma
minoria, em decréscimo constante, da população mundial. Também
QUADRO 4.1
TERRITÓRIOS SOB O CONTROLE POLÍTICO DAS CIVILIZAÇÕES/ 1900-1993
ESTIMATIVA DE TERRITÓRIOS AGREGADOS DAS CIVILIZAÇÕES EM MILHARES DE QUILÓMETROS QUADRADOS

Ano Ocidental Africana Sínica Hindu Islâmica Japonesa Latino- Ortodoxa Outras
americana
1900 52.551,10 424,76 11.181,03 139,86 9.303,28 416,99 19.997,39 22.618,47 19.342,12
1920 65.907,73 1.036,00 10.134,67 139,86 4.690,49 675,99 20.973,82 26.568,22 5.848,22
1971 33.167,54 12.007,24 5.014,24 3.408,44 23.783,97 367,78 20.287,47 26.796,14 5.962,18
1993 32.921,49 14.716,38 10.160,57 3.312,61 28.629,86 375,55 20.251,21 18.567,71 7.039,62
ESTIMATIVA DE PORCENTAGENS DO TERRITÓRIO MUNDIAL*
1900 38,7 0,3 8,2 0,1 6,8 0,3 14,7 16,6 16,6
1920 48,5 0,8 7,5 0,1 3,5 0,5 15,4 19,5 4,3
1971 24,4 8,8 7,5 2,5 17,5 0,3 14,9 19,7 4,4
1993 24,2 10,8 7,5 2,4 21,1 0,3 14,9 13,7 5,2
Nota: As parcelas do território mundial foram baseadas nas fronteiras internacionais vigentes no ano indicado.

*O território mundial foi estimado em 164,68 km2 e não inclui a Antártica.

Fontes: Statesman's Year·Book (Nova York: St. Martin's Press, 1901-1927); World Book Atlas (Chicago: Field
Enterprises Educational Corp., 1970); Britannica Book of the Year (Chicago: Encyclopaedia Britannica lnc.,
1992-1994).
QUADRO 4.2
POPULAÇÃO DOS PAÍSES PERTENCENTES ÀS PRINCIPAIS CIVILIZAÇÕES DO MUNDO/ 1993
(em milhares de pessoas)
Sínica 1.340.900 Latino-americana 507.500
Islâmica 927.600 Africana 392.100
Hindu 915.800 Ortodoxa 261.300
Ocidental 805.400 Japonesa 124.700

qualitativamente está mudando o equilíbrio entre os ocidentais e outras


populações. Os povos não-ocidentais estão ficando mais saudáveis, mais
urbanizados, mais alfabetizados, mais instruídos. No início da década de
90, as taxas de mortalidade infantil na América Latina, África, Oriente
Médio, Ásia Meridional, Ásia Oriental e Sudeste Asiático tinham caído
para um terço ou um quarto do que eram 30 anos antes. A expectativa
de vida nessas regiões tinha aumentado de modo significativo, com
ganhos que variavam de 11 anos na África para 23 na Ásia Oriental. No
princípio da década .de 60, na maior parte do Terceiro Mundo, menos
de um terço da população adulta era alfabetizada. No começo da década
de 90, em poucos países, com exceção da África, o número de alfabeti-
zados era inferior à metade da população. Cinqüenta por cento dos
indianos e quase 75 por cento dos chineses sabiam ler e escrever. Em
1970, as taxas de alfabetização nos países em desenvolvimento eram, em
média, 41 por cento das taxas dos países desenvolvidos; em 1992, essa
média era de 71 por cento. No começo dos anos 90, em todas as regiões,
salvo na África, praticamente todo o grupo etário correspondente estava
matriculado no ensino primário. Mais importante ainda, no começo dos
anos 60, na Ásia, América Latina, Oriente Médio e África, menos de um
terço do grupo etário correspondente estava matriculado no ensino
secundário; ao se chegar ao início da década de 90, metade desse grupo
etário estava matriculado, exceto na África. Em 1960, os moradores
urbanos compunham menos de um quarto da população do mundo
menos desenvolvido. Entre 1960 e 1992, entretanto, a porcentagem
urbana da população cresceu de 49 por cento para 73 por cento na
América Latina, de 34 para 55 por cento nos países árabes, de 14 para
29 por cento na África, de 18 para 27 por cento na China e de 19 para
26 por cento na Índia.6

Essas alterações em alfabetização, ensino e urbanização criaram


ulações socialmente mobilizadas, com capacidade aumentada e
ores expectativas, que podiam ser mobilizadas para fins políticos de

1 rn
QUADRO 4.3
PARCELAS DA POPULAÇÃO MUNDIAL SOB o CONTROLE POLÍTICO DAS CIVILIZAÇÕES/ 1900-2025* (em
porcentagens)
Ano Total Ocidental Africana Sínica Hindu Islâmica Japo- Latino- Ortodoxa Outras
mundial nesa americana
1900 [1,6] 44,3 0,4 19,3 0,3 4,2 3,5 3,2 8,5 16,3
1920 [1,9] 48,1 0,7 17,3 0,3 2,4 4,1 4,6 13,9 8,6
1971 [3,7] 14,4 5,6 22,8 15,2 13,0 2,8 8,4 10,0 5,5
1990 [5,3] 14,7 8,2 24,3 16,3 13,4 2,3 9,2 6,5 5,1
1995 [5,8] 13,1 9,5 24,0 16,4 15,9t 2,2 9,3 6,1:j: 3,5
2010 {7,2] 11,5 11,7 22,3 17,1 17,9t 1,8 10,3 5,4t 2,0
2025 (8,5) 10,1 14,4 21,0 16,9 19,2t 1,5 9,2 4,9± 2,8
Nota: As estimativas da população mundial relativa estão baseadas nas fronteiras internacionais vigentes no ano
indicado. As estimativas para os anos de 1995 a 2025 pressupõem as fronteiras de 1994.
* Estimativa da população mundial em bilhões de pessoas.
t - As estimativas não incluem os membros da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) nem a Bósnia.
i - As estimativas incluem a Comunidade dos Estados Independentes (CEI), a Geórgia e a antiga Iugoslávia.
Fontes: Nações Unidas, Divisão de População, Departamento de Informação Econômica e Social e de Análise
de Políticas. World Population Prospects. The 1992 Revision (Nova York: United Nations, 1992). Statesman's
Year-Book(Nova York: St. Martin's Press, 1901-1927); World Almanac and Book ofFacts (Nova York: Press Pub.
Co., 1970-1993).

modos em que não era possível mobilizar camponeses analfabetos.


Sociedades socialmente mobilizadas são sociedades mais poderosas. Em
1953, quando menos de 15 por cento dos iranianos eram alfabetizados
e menos de 17 por cento urbanizados, Kermit Roosevelt e uns poucos
operadores da CIA acabaram com uma insurreição com relativa facilidade
e restauraram o xá no trono. Em 1979, quando 50 por cento dos iranianos
eram alfabetizados e 47 por cento viviam nas cidades, não havia dose de
poder militar norte-americano que pudesse ter mantido o xá no trono.
Ainda existe um hiato significativo que separa chineses, indianos, árabes
e africanos dos ocidentais, japoneses e russos. Porém esse hiato está
diminuindo rapidamente. Ao mesmo tempo, um hiato diferente está se
abrindo. A média de idade de ocidentais, japoneses e russos está
aumentando sistematicamente e a proporção maior da população que
não mais trabalha impõe uma carga crescente sobre aqueles que ainda
estão empregados produtivamente. Outras civilizações têm a carga de
grande número de crianças, mas as crianças são futuros trabalhadores e
soldados.

* Produto econômico. A parcela ocidental do produto econômico


mundial também pode ter atingido seu ápice na década de 20 e vem
declinando visivelmente desde a II Guerra Mundial. Em 1750, a China
respondia por quase um terço da produção manufatureira do mundo, a
Índia por quase um quarto e o Ocidente por menos de um quinto. Ao

11\?
QUADRO 4.4
PARCELAS DO TOTAL DA PRODUÇÃO MANUFATUREIRA MUNDIAL POR CIVILIZAÇÃO OU PAÍS/ 1750-1980
(em porcentagens. Mundo::: 100%)
Região ou 1750 1800 1830 1860 1880 1900 1913 1928 1938 1953 1963 1973 1980
País(es}
Ocidente 18,2 23,3 31,1 53,7 68,8 77,4 81,6 84,2 78,6 74,6 65,4 61,2 57,8
China 32,8 33,3 29,8 19,7 12,5 6,2 3,6 3,4 3,1 2,3 3,5 3,9 5,0
Japão 3,8 3,5 2,8 2,6 2,4 2,4 2,7 3,3 5,2 2,9 5,1 8,8 9,1
Índia/ Paquistão 24,5 19,7 17,6 8,6 2,8 1,7 1,4 1,9 2.4 1,7 1,8 2,1 2,3
Rússia/ URSS' 5,0 5,6 5,6 7,0 7,6 8,8 8,2 5,3 9,0 16,0 20,9 20,1 21,1
Brasil & México 0,8 0,6 0,7 0,8 0,8 0,8 0,9 1,2 1,6 2,2
Outros 15,7 14,6 13,1 7,6 5,3 2,8 1,7 1,1 0,9 1,6 2,1 2,3 2,5
' Inclui os países do Pacto de Varsóvia durante os anos da Guerra Fria.

Fonte: Paul Bairoch, "lntemational lndustrialization Leveis from 1750 to 1980", Joumal of European Economic
H1story, 11 (Outono de 1982), pp. 269-334.

se chegar a 1830, o Ocidente tinha passado ligeiramente à frente da China.


Nas décadas seguintes, como assinala Paul Bairoch, a industrialização do
Ocidente levou à desindustrialização do resto do mundo. Em 1913, a
produção manufatureira de países não-ocidentais representava aproxi-
madamente dois terços do que fora em 1800. A partir de meados do
século XIX, a participação do Ocidente cresceu de forma espetacular,
chegando ao seu ápice em 1928, com 84,2 por cento da produção
manufatureira mundial. Daí por diante, a parcela do Ocidente declinou,
na medida em que sua taxa de crescimento permaneceu modesta, e
países menos industrializados expandiram rapidamente sua produção
depois da II Guerra Mundial. Ao se chegar a 1980, o ocidental respondia
por 57,8 por cento da produção manufatureira mundial, aproximadamen-
te a parcela que tivera 120 anos antes, na década de 1860.7
Não se dispõe de dados confiáveis sobre o produto econômico
bruto para o período anterior à II Guerra Mundial. Entretanto, em 1950,
o Ocidente respondia por aproximadamente 64 por cento do produto
bruto mundial; nos anos 80, essa proporção tinha caído para 49 por cento
(ver Quadro 4.5). Em 1991, segundo uma estimativa, quatro das sete
maiores economias do mundo eram de nações não-ocidentais: Japão (em
segundo lugar), China (terceiro), Rússia (sexto) e Índia (sétimo). Em 1992,
os Estados Unidos tinham a maior economia do mundo e as maiores
economias incluíam as de cinco países ocidentais, mais os Estados mais
adiantados de cinco outras civilizações: China, Japão, Índia, Rússia e
Brasil. Projeções plausíveis indicam que a China, em 2020, terá a maior
economia do mundo, as cinco maiores economias estarão em cinco
QUADRO 4.5
PARCELAS POR CIVILIZAÇÃO DO PRODUTO ECONÔMICO BRUTO MUNDIAL / 1950-1992
(em porcentagens)
Ano Ocidental Africana Sínica Hindu Islâmica Japonesa Latino- Ortodoxa' Outrast
americana

1950 64,1 0,2 3,3 3,8 2,9 3,1 5,6 16,0 1,0
1970 53,4 1,7 4,8 3,0 4,6 7,8 6,2 17,4 1, 1
1980 48,6 2,0 6,4 2,7 6,3 8,5 7,7 16,4 1,4
1992 48,9 2,1 10,0 3,5 11,0 8,0 8,3 6,2 2,0
•As estimativas para a civilização ortodoxa no ano de 1992 incluem a antiga União Soviética e a antiga Iugoslávia.

t Em Outras estão incluídas outras civilizações e arredondamento de cifras.

Fontes: As percentagens para 1950, 1970 e 1980 foram calculadas a partir de dados de valor constante do dólar
por Herbert Block. The Planetary Product in 1980: A Creative Pause? [O Produto Planetário em 1980: Uma Pausa
Criadora? J (Washington, D.C.: Bureau oi Public Affairs, U.S. Dept. oi State, 1981), pp. 30-45. As percentagens
para 1992 foram calculadas pelas estimativas do Banco Mundial da paridade do poder aquisitivo, no Quadro 30
do World Development Report 1994 (Nova York: Oxford University Press, 1994).

civilizações diferentes e as 10 maiores economias incluirão três socieda-


des sínicas (China, Coréia do Sul e Taiwan), três sociedades ocidentais
(Estados Unidos, Alemanha e França) e mais Japão, Índia, Indonésia e
Tailândia. Sete das maiores economias do mundo estarão na Ásia, seis
delas na Ásia Oriental. Em 1960, a Ásia Oriental respondia por quatro
por cento e a América do Norte por 37 por cento do produto bruto
mundial; em 1995, cada uma delas respondia por cerca de 24 por cento.
Segundo uma estimativa, ao se chegar a 2013 o Ocidente responderá por
30 por cento e as sociedades asiáticas por 40 por cento do produto
econômico global. 8
As cifras brutas sobre produção econômica ocultam parcialmente a
vantagem qualitativa do Ocidente. O Ocidente e o Japão dominam quase
por completo as indústrias de tecnologia de ponta. Entretanto, as· )
_tecnologias estão sendo disseminadas e, se o Ocidente deseja_manter ~ua (.
superioridade, fará o que puder para minimizar essa disseminação.]
Graças ao mundo interconectado que o Ocidente criou, porém, é cada
vez mais difícil retardar a difusão de tecnologias para outras civilizações.
Isso é complicado ainda mais pela ausência de uma ameaça única,
absoluta e aceita por todos, como existia durante a Guerra Fria, o que
dava às medidas de controle de tecnologias uma modesta eficácia.
Parece provável que, durante a maior parte da História, a China
tenha tido a maior economia do mundo. A difusão de tecnologias e o
desenvolvimento econômico das sociedades não-ocidentais na segunda
metade do século XX estão produzindo atualmente uma volta ao padrão
histórico. Esse processo será lento; porém, por volta de meados do século
XXI, se não antes, a distribuição do produto econômico e da produção
manufatureira pelas principais civilizações provavelmente lembrará a de
1800. O blip ocidental de 200 anos na economia mundial terá terminado.

Capacidade militar. O poder militar tem quatro . difI1<:~


quantitativa - a quantidade de homens, armas, equipamentos e recursos;
a tecnológica - a eficácia e sofisticação de armas e equipamentos; a
organizacional - a coerência, disciplina, treinamento e moral da tropa.
e a eficácia dos relacionamentos de comando e controle; e a societária
- a capacidade e disposição da sociedade de empregar a força militar
de modo efetivo. Na década de 20, o Ocidente estava muito à frente de
todos os demais em todas essas dimensões. Nos anos subseqüentes, o poder
militar do Ocidente declinou em relação ao de outras civilizações, declínio
esse que se reflete na mudança do equilíbrio em termos de efetivos militares,
uma das medidas, embora obviamente não a mais importante, da capaci-
dade militar.(Á modernização e o desenvolvimento econômico geram os
recursos e o desejo para que os Estados desenvolvam sua capacidade militar,
e poucos são os Estados que deixam de fazê-loros anos 30, o Japão e a
União Soviética criaram forças armadas muito poderosas, como ficou
demonstrado na II Guerra Mundial. Durante a Guerra Fria, a União Soviética
possuía uma das duas forças armadas mais poderosas do mundo. Atual-
mente, o Ocidente monopoliza a capacidade de dispor de quantidade
considerável de forças convencionais em qualquer parte do mundo. Não
há certeza se ele continuará tendo essa capacidade. O que parece certo,

QUADRO 4.6
PARCELAS POR CIVILIZAÇÃO DO TOTAL DOS EFETIVOS MILITARES MUNDIAIS (em porcentagens)

Ano [Total Ocidental Africana Sínica Hindu Islâmica Japonesa Latino- Ortodoxa Outras
mundial] americana
1900 [10.086] 43,7 1,6 10,0 0,4 16,7 1,8 9,4 16,6 0,1
1920 [8.645] 48,5 3,8 17,4 0,4 3,6 2,9 10,2 12,8' 0,5
1970 [23.991] 26,8 2,1 24,7 6,6 10,4 0,3 4,0 25,1 2,3
1991 [25.797) 21,1 3,4 25,7 4,8 20,0 1,0 6,3 14,3 3,5
Notas: As estimativas foram baseadas nas fronteiras nacionais vigentes no ano indicado.

•.ºcomponente da URSS dessa cifra é uma estimativa para o ano de 1924 feita por J. M. Mackintosh, em B.H.
Lldell-Hart, The Red Anny: The Red Anny 1918 to 1945, The Soviet Anny 1946 to present (Nova York: Harcourt,
Brace, 1956).

Fonte~: U.S. Arms Control and Disarmament Agency, Wor/d Military Expenditures and Anns Transfers
(Washington, D.C.: TheAgency, 1971-1994); Statesman's Year-Book(Nova York: St. Martin's Press, 1901-1927).

106
contudo, é que nenhum Estado ou grupo de Estados ocidentais criará
uma capacidade comparável durante as próximas décadas. .
De forma geral, os anos depois <l<:_~ria foram dominados _Eor
cinco tendências principais na-~Y:?.~~Çã<?_~ capacidade militar no mundo.
-iPrimeira: ~5· forças·;~adas da União Soviética deixaram de existir
pouco depois que a União Soviética deixou de existir. Afora a Rússi~,
somente a Ucrânia herdou capacidade milita~~ific~JiY-ª, __.A~Jorças rus~~s
foram muito reduzidas em tamanho e foram ret~~~~-~a E_~l!:.O.Pª _Ç~_g!!:_<!_l_ <:
dos países bálticos. O Pacto de Varsóvia acabou. A meta de d~s~iar ~
marinha dos Estados Unidos foi abandonada. O equipamento militar f01
vendido ou deixou-se que se deteriorasse e se tomasse não-operacional. As
verbas orçamentárias para as forças armadas foram_reduz_~d~s ?:ras~~~~:nte.
A desmoralização se espalhou pdàs fíle1ras,.târito-rio.ii1vel de oficiais como
no de graduados e soldados. Ao mesmo tempo, os militares russos estavam
tratando de redefinir suas missões e doutrina, bem como se reestruturando
para seu novo papel de proteger os russos e lidar com conflitos region~is
no "exterior próximo".
Segunda: a redução vertiginosa da C:ª~~cidade militaL.russa_~s­
timulou um declínio mais Ieiito, por~ftc.~.!~V.Q~2s.8?st9s mj_!i_!?.res,
das forças arm.adas e da cap;~id-;._dt:: ~ifüar _90 Qç!dente. D~ acordo co_m
os pfanos,.d~;--governos Bush_ -e_ CliI1t()f1:1.2S. gastQ~ milit::tres...d.oÂ._E.~!;!dos
Unidos deviam cair em 35 por centq,_de US$ 3.4f.J.1?ilhões_(.qQ!ªr~~ com
valor constante de 1994) em 1990 para US$ 222,3 bilhões em 1998.fÁ
estrutura das forças nesse an()_S.~rj~_:ª-_f!leracie--C5:li~Qo1§~j~':Ç-§~~-?05!~e era
no fim da Guerra Fria. O total de efetivos militares desceria de 2, 1 milhões
para 1,4 milhão. M~ttos prog~m!...~J.~---- __ antes de armamen_tos for_am_ <?~
estão sendo cancelados. (Enfre 1985 e 1995 as compras anuais de
arffiamentos-princii)ãiS- caíram e para seis navios, de 943 para 127
aviões, de 720 tanques para zero e de 48 para 18 mísseis estratégicos. A
partir do final dos anos 80, a Grã-Bretanha, a Alemanha e, em menor
grau, a França passaram por reduções análogas em gastos com forças
armadas e capacidade militar. Em meados da década de 90, estava
programado que as forças armadas alemãs diminuiriam de 370 mil para
340 mil e, provavelmente, para 320 mil homens; o exército francês devia
reduzir seus efetivos de 290 mil em 1990 para 225 mil em 1997. O pessoal
militar britânico caiu de 377.100 em 1985 para 274.800 em 1993. Além_
disso, países membros da OTAN no continente europeu encurtaram.'?.
tempo de serviço militar ~_:ig~~~~~-e examinaram a possi~i!ic!acic;'!__cl~
aboli-lo por completo.

1f\/
Terceira: as tendências na Ásia Oriental foram significativamente
diferentes das observadas na Rússia e no Ocidente. Maiores gastos
militares e melhoramentos nas forças estavam na ordem do dia. A China
marcou o compasso, concentrando-se na criação da capacidade de
projeção de poder, de acordo com sua nova doutrina militar que acentua
a probabilidade de instabilidade regional e guerras limitadas. Estimuladas
tanto por sua crescente riqueza econômica como pelo rearmamento
chinês, outras nações da Ásia Oriental estão modernizando e expandindo
suas forças armadas. Taiwan, Coréia do Sul, Tailândia, Malásia, Singapura
e Indonésia estão todas despendendo mais com seus militares e adquirin-
do aviões, tanques e navios na Rússia, Estados Unidos, Grã-Bretanha,
França, Alemanha e outros países.{Enquanto os gastos militares da OTAN
diminuíram em cerca de 10 por c~nto entre 1985 e 1993 (de US$ 539,6
bilhões para US$ 485,0 bilhões) (dólares com valor constante de 1993),
os gastos na Ásia Oriental aumentaram em 50 por cento, de US$ 89,8
bilhões para US$ 134,8 bilhões durante o mesmo período.V
~uarta: a capacidade militar, inclusive no tocante a armas de
destruição er.n massa, está-se espalhando de forma ampla pelo mundo.
(Ã. medida que os paÍse-s se desenvolvem economicamente, eles geram a
~apacidade de produzir armamentos. Entre os anos 60 e os anos 80, por
exemplo, o número de países do Terceiro Mundo que produziam aviões
de caça aumentou de um para oito; tanques, de um para seis; helicóp-
teros, de um para seis; e mísseis táticos, de nenhum para sete. Os anos
90 viram, no rumo da globalização da indústria de equipamento militar,
uma tendência importante, que deverá provavelmente reduzir ainda mais
as vantagens militares do Ocidente. !O Muitas sociedades não-ocidentais
possuem armas nuclear~~-(RiISSià, China, Israel, Índia, Paquistão e,
possivelmente, Coréia do Norte), vêm desenvolvendo grandes esforços
para obtê-las (Irã, Iraque, Líbia e, possivelmente, Argélia) ou estão-se
colocando em posição para obtê-las rapidamente caso vejam necessidade
disso (Japão). Armas nucleares e os sistemas para lançá-las, bem como
armas químicas e biológicas, são os meios pelos quais os Estados-que
são muito inferiores aos Estados Unidos e ao Ocidente em termos-de
poder militar convenciOnaCpodem~ á custos relativamente ba!Xos, ficar
~gualdade de condições. ----·------
. Por último: todos-ês;~s desdobramentos fazem da regionalização a
tendência çentral no que se rerere--aesrratégia e ao poder militar no
mundo pós-Guerra Fria. A regionalização dá a justificativa para....as
reduções das forças armadas russas e ocidentais e para os aumentos das

108
forças armadas de outros Estados. A Rússia já não dispõ,e . de uma
~crdãde-miHfar global, mas está concentrando sua estrat~g~a e suas
forças no exterior próximo. A China redirecionou sua estrate~1a e suas
forças para enfatizar a projeção de poder local e a defesa dos mte~esses
chineses na Ásia OrientaLDs países europeus estão, de forma analoga,
redirecionando suas forças, tanto através da OTAN como da União
Européia Ocidental, a fim de lidar com a instabilidade na periferia da
Éuropa Ocidental., Os Estados Unidos explicitamente alteraram su.a
diretriz militar de conter e combater a União Soviética em termos globais
para se preparar a fim de lidar simultaneamente com contingê~cia~
regionais no Golfo Pérsico e no Noroeste Asiático. Entretanto, n~o ~
provável que os Estados Unidos consigam ter a capacidade de atingir
essa meta. Para derrotar o Iraque, os Estados Unidos dispuseram no Golfo
Pérsico de 75 por cento de seus aviões táticos em serviço, 42 por cento
de seus tanques pesados modernos, 46 por cento de seus porta-aviões,
37 por cento dos efetivos do exército e 46 por cento dos de fuzileiros
navais. No futuro, com forças significativamente reduzidas, os Estados
Unidos terão muita dificuldade para levar a cabo uma intervenção, muito
menos duas, contra potências regionais de peso fora do Hemisfério
Ocidental.(l segurança militar em todo o mundo ~epende cada veAz ~ais
não da distribuição mundial de poder e das açoes de superpotenc1as,
mas sim da distribuição de poder dentro de cada região do mundo e d3-_s
;Ções ·dosEstados-núçleos das civilizações/
~~~esumo de forma geral, o Ocidente continuará sendo a civil_i-
zação ~~is pod~~q~~~~~-bem adiante nas primeiras décadas do século
Xxi. Além de então, é provável que ele continue a ter uma dianteira
~tancial em talento, pesquisa e capacidade de desenvolvimento
científicos, bem como na inovação tecnológica civil e militar. Entretanto,
o controle de outros meios d~p_ocier está ficandp caçla vez mais difundido .
entre Estados.:i-iúcleo~ e países avançados de civiliz_açfü~s i:i_~o::9c!c:lentais.
o controle desses meios pelo Ocidente chegou ao auge na década de
20 e desde então vem declinando de forma irregular, porém significativa.
Na década de 2020, 100 anos depois daquele apogeu, o Ocidente
provavelmente controlará cerca de 24 por cento do território do mundo
(baixando de um auge de 49 por cento), 10 por cento do total da
população mundial (baixando de 48 por cento) e talvez 15 a 20 por cento
da população mobilizada socialmente, cerca de 30 por cento do produto
econômico mundial (baixando de um auge de provavelmente 70 por

1f\0
cento), talvez 25 por cento da produção manufatureira (baixando de um
apogeu de 84 por cento) e menos de 10 por cento dos efetivos militares
mundiais (baixando de 45 por cento).
Em 1919, Woodrow Wilson, Lloyd George e Georges Clemenceau
juntos praticamente controlavam o mundo. Sentados em Paris, eles
determinaram quais países iriam existir e quais não, quais novos países
seriam criados, quais iriam ser suas fronteiras e quem os governaria, e
como o Oriente Médio e outras partes do mundo seriam divididos entre
as potências vitoriosas. Eles também decidiram sobre a intervenção militar
na Rússia e as concessões econômicas a serem extraídas da China. Cem
anos depois, nenhum pequeno grupo de estadistas será capaz de exercer
poder comparável e, na medida em que algum grupo o consiga, ele não
será composto por três ocidentais, mas sim pelos líderes dos Estados-nú-
cleos das sete ou oito civilizações principais do mundo. Os sucessores
de Reagan, Thatcher, Mitterrand e Kohl serão rivalizados pelos de Deng
Xiaoping, Nakasone, Gandhi, Yeltsin, Khomeini e Suharto.UÀ era do
predomínio do Ocidente terá acabado. Nesse meio tempo, o declínio do
Ocidente e a ascensão de outros centros de poder está promovendo os
processos globais de indigenização e do ressurgimento das culturas
não-ocidentais)

lNDIGENIZAÇÃO: O RESSURGIMENTO DAS CULTURAS


NÃO-OCIDENTAIS

A distribuição das culturas pelo mundo reflete a distribuição do poder.


O comércio pode ou não seguir a bandeira, mas a cultura quase sempre
segue o poder. Através da História, a expansão do poder de uma
civilização geralmente ocorreu ao mesmo tempo que o florescimento de
sua cultura e quase sempre requereu dela usar seu poder para estender
seus valores, práticas e instituições a outras sociedades. Uma civilização
universal requer um poder universal. O poder romano criou uma
civilização quase universal dentro dos espaços limitados do mundo
clássico. O poder ocidental, sob a forma do colonialismo europeu do
século XIX e da hegemonia norte-americana do século XX, estendeu a
cultura ocidental por grande parte do mundo contemporâneo. O colo-
nialismo europeu terminou; a hegemonia norte-americana está retro-
cedendo. Segue-se a erosão da cultura ocidental, enquanto se reafirmam
costumes, idiomas, crenças e instituições indígenas com raízes históricas.
O crescente poder das sociedades não-ocidentais produzido pela moder-

110
nização está gerando um renascimento das culturas não-ocidentais pelo
mundo afora.•
Joseph Nye sustentou que existe uma distinção entre "poder duro",
que é o poder de comandar apoiado na força econômica e militar, e o
"poder suave", que é a capacidade de um Estado de conseguir com que
"outros países queiram o que ele quer" através de um apelo à sua cultura
e ideologia. Como reconhece Nye, está ocorrendo no mundo uma ampla
difusão de poder duro, e as principais nações "têm atualmente menos
capacidade do que no passado para empregar seus meios de poder
tradicionais a fim de atingir seus objetivos". Nye prossegue dizendo que,
se "a cultura e a ideologia [de um Estado] são atraentes, outros estarão
mais do que dispostos a seguir" sua liderança e, assim sendo, o poder
11
suave é "exatamente tão importante quanto o poder duro de comando" .
Mas o que torna uma cultura e uma ideologia atraentes? Elas ficam
atraentes quando são vistas como fundamentadas no sucesso material e
na influência. O poder suave só é poder quando se apóia numa base de
poder duro. Aumentos no poder duro econômico e militar produzem
maior autoconfiança, arrogância e crença na superioridade da cultura
própria ou do poder suave próprio, em comparação com os de outros
povos, e aumentam grandemente a atração que exerce sobre outros
povos. Decréscimos de poder econômico e militar conduzem à dúvida
sobre si mesmo, a crises de identidade e a tentativas de encontrar em
outras culturas as chaves para o êxito econômico, militar e político. À
medida que sociedades não-ocidentais aumentam sua capacidade eco-
nômica, militar e política, elas cada vez mais trombeteiam as virtudes de
seus próprios valores, instituições e cultura.
A ideologia comunista atraiu pessoas em todo o mundo nas décadas
de 50 e 60, quando estava associada com o êxito econômico e o poderio
militar da União Soviética. Essa atração se evaporou quando a economia
soviética estagnou e se tornou incapaz de sustentar o poderio militar
soviético. Os valores e as instituições ocidentais atraíram pessoas de

• O vínculo entre poder e cultura é ignorado de modo quase universal por aqueles que
sustentam que uma civilização universal está emergindo, como devia ser, e também por
aqueles que sustentam que a ocidentalização é um pré-requisito para a modernização. Eles
se recusam a admitir que a lógica de sua argumentação exige que eles apóiem a expansão e
a consolidação do domínio ocidental do mundo, bem como que, se outras sociedades forem
deixadas em liberdade para traçar seus próprios destinos, elas revigorarão seus velhos credos,
hábitos e práticas, os quais, segundo os universalistas, são avessos ao progresso. Entretanto,
as pessoas que defendem as virtudes de uma civilização universal geralmente não defendem
as virtudes de um império universal.
outras culturas porque eram vistos como a fonte do poder e da riqueza
ocidentais. Esse processo vem se repetindo há séculos. Como assinala
William McNeill, entre os anos 1000 e 1300, o Cristianismo, o Direito
Romano e outros elementos da cultura ocidental foram adotados por
húngaros, poloneses e lituanos, e essa "aceitação da civilização ocidental
foi estimulada por um misto de medo e admiração da eficiência militar
dos príncipes ocidentais" .12 À medida que for declinando o poder
ocidental, também irá declinando a capacidade do Ocidente de impor a
outras civilizações as concepções ocidentais de direitos humanos, libe-
ralismo e democracia, bem como declinará o poder de atração desses
valores para outras civilizações.
Isso já aconteceu. Durante vários séculos, os povos não-ocidentais
invejaram a prosperidade econômica, a sofisticação tecnológica, o pode-
rio militar e a coesão política das sociedades ocidentais. Eles buscaram
o segredo desse sucesso nos valores e instituições ocidentais e, quando
identificaram o que acharam que seria a chave, tentaram aplicá-lo em
suas próprias sociedades. Para ficar ricos e poderosos, teriam que ficar
como o Ocidente. Atualmente, porém, essas atitudes kemalistas desapa-
receram na Ásia Oriental. Os asiáticos orientais atribuem seu estupendo
desenvolvimento econômico não à importação por eles da cultura
ocidental, mas sim à fidelidade à sua própria cultura. Eles argumentam
que estão tendo êxito porque são diferentes do Ocidente. Analogamente,
quando as sociedades não-ocidentais se sentiam fracas em relação ao
Ocidente, invocavam os valores ocidentais de autodeterminação, de
liberalismo, de democracia e de independência para justificar sua oposi-
ção à dominação ocidental. Agora que não mais são fracos e sim cada
vez mais poderosos, não hesitam em atacar esses mesmos valores que
anteriormente usavam para promover seus interesses. A revolta contra o
Ocidente era inicialmente legitimada através da afirmação da universali-
dade dos valores ocidentais, mas agora ela é legitimada pela afirmação
da superioridade dos valores não-ocidentais.
:91
O surgimento dessas atitudes é uma manifestação daquilo que
Ronald Dore denominou de "o fenômeno da indigenização da segunda
geração". Tanto nas ex-colônias ocidentais como em países indepen-
dentes como a China e o Japão, "a primeira geração 'modernizadora' ou
'pós-independência' muitas vezes foi treinada em universidades es-
trangeiras (ocidentais), num idioma ocidental cosmopolita. Em parte
li
porque eles foram pela primeira vez ao exterior como adolescentes muito
impressionáveis, sua absorção de valores e estilos de vida ocidentais pode

11 '> l
ser profunda". A segunda geração, muito maior do que a primeira, ao
contrário dessa, em sua_ maioria recebe sua educação em seus países de
origem, em universidades criadas pela primeira geração, e o idioma local
em vez do idioma colonial é cada vez mais utilizado no ensino. Essas
universidades "proporcionam um contato muito mais diluído com a
cultura mundial metropolitana" e "o conhecimento é indigenizado por
meio de traduções - geralmente de amplitude limitada e de baixa
qualidade". Os formados por essas universidades têm ressentimento do
predomínio da geração anterior, de formação ocidental e, em conseqüên-
cia, freqüentemente "sucumbem aos chamamentos de movimentos de
oposição nativistas" .13 À medida que a influência ocidental se reduz,
jovens líderes com aspirações não podem voltar-se para o Ocidente em
busca de poder e riqueza. Eles têm que encontrar os meios de ter êxito
dentro de sua própria sociedade e, por conseguinte, têm que se acomodar
aos valores e à cultura dessa sociedade.
O processo de indigenização não precisa esperar pela segunda
geração. Líderes da primeira geração que sejam capazes, com dons de
percepção e de adaptação, se indigenizam por iniciátiva própria. Três
exemplos notáveis são Mohammad Ali Jinnah, Harry Lee e Solomon
Bandaranaike. Eles se formaram com brilho em Oxford, Cambridge e
Lincoln's Inn, respectivamente, foram excelentes advogados e membros
completamente ocidentalizados das elites de suas sociedades. Jinnah era
um secularista convicto. Lee era, nas palavras de um ministro de um
Gabinete britânico, "o melhor danado dum inglês a leste de Suez".
Bandaranaike foi criado como cristão. No entanto, para liderar suas
nações rumo à independência e depois dela, eles tinham que se
indigenizar. Eles reverteram para suas culturas ancestrais e, nesse proces-
so, em algumas ocasiões mudaram de identidades, nomes, forma de vestir

1 e crenças. O advogado inglês M. A. Jinnah tornou-se Quaid-i-Azam do


Paquistão, Harry Lee passou a ser Lee Kuan Yew. O secularista Jinnah
tornou-se o apóstolo fervoroso do Islã como a base para o Estado
paquistanês. O anglicizado Lee aprendeu mandarim e tornou-se um
propagandista articulado do Confucionismo. O cristão Bandaranaike se
converteu ao Budismo e invocou o nacionalismo cingalês.
A indigenização passou a ser a ordem do dia em todo o mundo

i não-ocidental nas décadas de 80 e 90. O ressurgimento do Islã e a


"reislamização" são os temas centrais das sociedades muçulmanas. Na
Índia, prevalece a tendência à rejeição das formas e valores ocidentais e
à "hinduização" da política e da sociedade. Na Ásia Oriental, os governos
estão promovendo o Confucionismo, e líderes políticos e intelectuais
falam da "asianização" de seus países. Em meados da década de 80, o
Japão ficou obcecado com a "Nihonjinron, ou a teoria do Japão e os
japoneses". Posteriormente, um intelectual japonês argumentou que,
historicamente, o Japão passou por "ciclos de importação de culturas
externas" e "de 'indigenização' dessas culturas através da reprodução e
do refinamento, com um inevitável tumulto resultante da exaustão do
impulso importado e criativo, e acabando por reabrir-se para o mundo
exterior". Atualmente, o Japão está "embarcando na segunda fase desse
ciclo". 14
Com o fim da Guerra Fria, a Rússia tornou-se novamente um país
"dividido", com o ressurgimento da clássica luta entre os ocidentalizado-
res e o eslavófilos. Durante uma década, porém, a tendência foi dos
primeiros para os últimos, com o ocidentalizado Gorbachev cedendo
lugar para Yeltsin, russo pelo estilo, ocidental nas suas crenças articuladas
e que, por sua vez, era ameaçado por Zhirinovsky e outros nacionalistas,
que personificavam a síntese da indigenização russa ortodoxa.
A indigenização é beneficiada pelo paradoxo da democracia: a
adoção pelas sociedades não-ocidentais das instituições democráticas
incentiva e dá acesso ao poder a movimentos nativistas e antiocidentais.
Nas décadas de 60 e 70, governos ocidentalizados e pró-Ocidente em
países em desenvolvimento foram ameaçados por golpes e revoluções;
nas décadas de 80 e 90, o perigo cada vez maior para eles é o de serem
afastados através de eleições. A democratização entra em conflito com a
ocidentalização e a democracia é, de forma inerente, um processo de
provincianização e não de cosmopolitização. Nas sociedades não-oci-
dentais, os políticos não ganham eleições demonstrando o quanto são
ocidentais. Pelo contrário, a competição eleitoral os incentiva a compor
sua plataforma com os elementos que eles acham que serão mais
populares, e estes geralmente são de natureza étnica, nacionalista e
religiosa.
O resultado disso é uma mobilização popular contra as elites de
formação e orientação ocidentais. Os grupos fundamentalistas islâmicos
saíram-se bem nas poucas eleições que foram realizadas em países
muçulmanos e teriam chegado ao poder na Argélia se os militares não
tivessem cancelado as eleições de 1992. Na Índia, pode-se considerar
que a disputa pelo apoio eleitoral estimulou apelos comunitários e
violência comunitária. 15 Em Sri Lanka, a democracia possibilitou ao
Partido da Liberdade de Sri Lanka afastar, em 1956, o Partido Nacional
Unido, elitista e de orientação ocidental, e criou a oportunidade para a
ascensão, na década de 80, do movimento nacionalista cingalês Pathika
Chintanaya. Antes de 1949, as elites tanto sul-africanas como ocidentais
viam a África do Sul como um Estado ocidental. Depois da implantação
do regime do apartheid, as elites ocidentais passaram, pouco a pouco,
a enxergar a África do Sul como estando fora do campo ocidental,
enquanto que os sul-africanos brancos continuaram a se considerar como
ocidentais. Entretanto, para reassumirem seu lugar na ordem internacio-
nal ocidental, tiveram que introduzir instituições democráticas ocidentais,
que resultaram na chegada ao poder de uma elite negra altamente
ocidentalizada. Contudo, se funcionar o fator da indigenização da
segunda geração, seus sucessores terão uma visão muito mais xossa zulu
e africana, e a África do Sul irá cada vez mais definir-se como um E~tado
africano.
Em diversas épocas antes do século XIX, os bizantinos, os árabes,
os chineses, os mogóis e os russos tinham enorme confiança no seu
poderio e nas suas realizações em comparação com o Ocidente. Nessas
épocas, eles também sentiam desprezo pela inferioridade cultural, atraso
institucional, corrupção e decadência do Ocidente. À medida que os
êxitos do Ocidente se desvanecerem em termos relativos, essas atitudes
tenderão a aparecer. O aumento de poder traz o aumento da confiança
cultural. As pessoas sentem que "não precisam mais agüentar isso". O
Irã é um caso extremo, porém, como assinalou um observador, "os
valores ocidentais são rejeitados de maneiras diferentes, mas com a
mesma firmeza, na Malásia, Indonésia, Singapura, China e Japão" .16 Nós
estamos testemunhando "o fim da era progressista", dominada pelas
ideologias ocidentais, e estamos ingressando numa era na qual civiliza-
ções múltiplas e diversas irão interagir, competir, coexistir e se acomodar
umas com as outras. 17 Esse processo global de indigenização se manifesta
de forma ampla no renascimento de religiões que está ocorrendo em
tantas partes do mundo e, de modo mais específico, no ressurgimento
cultural nos países asiáticos e islâmicos, gerado em parte por seu
dinamismo econômico e demográfico.

LA REVANCHE DE DIEU

Na primeira metade do século XX, as elites intelectuais pressupunham,


de forma geral, que a modernização econômica e social estava levando
ao fenecimento da religião como elemento importante da existência
humana. Essa pressuposição era partilhada pelos que viam essa tendência
com agrado e pelos que a deploravam. Os secularistas modernizadores
aplaudiam o grau com que a ciência, o racionalismo e o pragmatismo
estavam eliminando as superstições, os mitos, as irracionalidades e os
rituais que constituíam o cerne das religiões existentes. A sociedade que
estava emergindo iria ser tolerante, racional, pragmática, progressista,
humanística e secular. Os conservadores preocupados, por seu lado,
alertavam sobre as graves conseqüências do desaparecimento das cren-
ças religiosas, das instituições religiosas e da orientação moral que a
religião dava para o comportamento humano individual e coletivo. O
resultado final seria a anarquia, a depravação e o solapamento da vida
civilizada. T. S. Elliot disse: "Se você não quiser ter Deus (e Ele é um
Deus ciumento); você terá de render homenagens a Hitler ou a Stalin." 18
A segunda metade do século XX provou que essas esperanças e
esses receios não tinham fundamento. A modernização econômica e
social assumiu uma amplitude global e, ao mesmo tempo, produziu-se
uma revitalização global da religião. Essa revitalização, que Gilles Kepel
chamou de la revanche de Dieu, espalhou-se por todos os continentes,
todas as civilizações e praticamente todos os países. Em meados da
década de 70, como observa Kepel, a tendência à secularização e a um
direcionamento rumo à acomodação da religião com o secularismo
"passou a andar de marcha à ré. Formou-se um novo enfoque religioso,
que visava não mais a se adaptar aos valores seculares, mas sim a
recompor alicerces sagrados para a organização da sociedade - mudan-
do ela própria se fosse preciso. Expresso numa variedade de formas, esse
enfoque advogava o afastamento de um modernismo que tinha fracas-
sado, atribuindo seus reveses e becos sem saída ao distanciamento de
Deus. O tema não era mais o aggiornamento, mas sim uma 'segunda
evangelização da Europa', a meta não era mais modernizar o Islã, mas
sim 'islamizar a modernidade"'_ 19
Essa revitalização religiosa envolveu em parte a expansão de
algumas religiões, que conquistaram novos recrutas em sociedades nas
quais não os tinham tido anteriormente. Entretanto, num grau muito
maior, o ressurgimento religioso redundou em que as pessoas voltassem
para as religiões tradicionais de suas comunidades, revigorando e dando
novo significado a essas mesmas religiões. O Cristianismo, o Islamismo,
o Judaísmo, o Hinduísmo, o Budismo, a Ortodoxia, todos tiveram novos
surtos de engajamento, de relevância e de prática por fiéis que, até então,
eram apenas praticantes ocasionais. Em todas essas religiões, surgiram

1 1 '-
movimentos fundamentalistas dedicados à purificação militante das
doutrinas e das instituições religiosas, bem como à reformulação do
comportamento pessoal, social e governamental de acordo com os
preceitos religiosos. Os movimentos fundamentalistas são espetaculares
e podem ter um impacto político significativo. Não obstante, eles são
apenas ondas da maré religiosa, muito mais ampla e mais fundamental,
que está dando um formato diferente à vida humana no final do século
XX. A renovação da religião pelo mundo afora transcende em muito as
atividades dos extremistas fundamentalistas. Ela se manifesta, em todas
as sociedades, na vida e no trabalho quotidiano das pessoas e nas
preocupações e projetos dos governos. O ressurgimento cultural, que na
cultura secular confuciana assume a forma da afirmação dos valores
asiáticos, no resto do mundo se manifesta pela afirmação dos valores
religiosos. Como observou George Weigel, a "dessecularização do mun-
do é um dos fatores sociais preponderantes na parte final do século XX". 20
A ubiqüidade e relevância da religião ficaram evidenciadas de forma
impressionante nos ex-Estados comunistas. Esses países, da Albânia ao
Vietnã, foram varridos por uma revitalização religiosa, que preencheu o
vácuo deixado pelo desmoronamento da ideologia. Na Rússia, a Orto-
doxia passou por um grande ressurgimento. Em 1994, 30 por cento dos
russos com menos de 25 anos de idade disseram que tinham passado do
ateísmo para a fé em Deus. O número de igrejas em funcionamento na
área de Moscou aumentou de 50 em 1988 para 250 em 1993. Os líderes
políticos passaram, de modo uniforme, a demonstrar respeito pela
religião, e o governo passou a dar-lhe apoio. Como um observador arguto
relatou em 1993, nas cidades russas "o som dos sinos das igrejas voltou
a encher o ar. Cúpulas recém-pintadas de dourado brilham sob a luz do
sol. Igrejas que até há pouco tempo estavam em ruínas voltam a
reverberar com cânticos magníficos. As igrejas são os locais mais movi-
mentados da cidade". 21 Simultaneamente com a revitalização da Ortodo-
xia nas repúblicas eslavas, uma revitalização islâmica varreu a Ásia
Central. Em 1989, havia na Ásia Central 160 mesquitas e um medressah
(seminário islâmico); ao começar o ano de 1993, havia cerca de 10 mil
mesquitas e 10 medressabs. Embora essa revitalização envolvesse alguns
movimentos políticos fundamentalistas e fosse estimulada de fora pela
Arábia Saudita, Irã e Paquistão, ela consistiu essencialmente de um
movimento cultural de maiorias, com uma base extremamente ampla. 22
Como se pode explicar esse ressurgimento religioso mundial?
Obviamente, houve causas especiais em países e civilizações considera-

117
dos individualmente. Entretanto, é esperar demais achar que um número
elevado de causas diferentes tivesse produzido desdobramentos simul-
tâneos e análogos na maioria das partes do mundo. Um fenômeno global
exige uma explicação global. Por mais que os acontecimentos em países
determinados possam ter sido influenciados por fatores únicos, deve ter
havido algumas causas gerais. Quais foram elas?
A causa mais óbvia, mais visível e mais poderosa do ressurgimento
religioso global é precisamente aquilo que deveria ter causado a morte
da religião: os processos de modernização social, econômica e cultural
que cobriram o mundo na segunda metade do século XX. Antigas fontes
de identidade e antigos sistemas de autoridade foram destroçados. As
pessoas se transferiram do campo para a cidade, ficaram separadas de
suas raízes e assumiram novos empregos ou ficaram desempregadas. Elas
interagiram com grande número de estranhos e ficaram expostas a novos
conjuntos de relacionamentos. Precisaram de novas fontes de identidade,
novas formas de comunidade estável e novos conjuntos de preceitos
morais para dar-lhes alguma sensação de relevância e de propósitos. A
religião, tanto a da corrente principal como a fundamentalista, atende a
essas necessidades. Como explicou Lee Kuan Yew referindo-se à Ásia
Central:

Nós somos sociedades agrícolas que se industrializaram no espaço de


uma ou duas gerações. O que aconteceu no Ocidente no curso de 200
anos ou máis, está acontecendo aqui em cerca de 50 anos ou menos.
Está tudo apertado e comprimido numa moldura cronológica muito
estreita, de modo que se tenderá a ter perturbações e disfunções.
Quando se olha para os países que estão crescendo rapidamente -
Coréia, Tailândia, Hong Kong e Singapura-, constata-se que houve um
único fenômeno notável: a ascensão da religião. (. .. ) Os antigos
costumes e religiões - adoração dos antepassados, xamanismo - já
não satisfazem completamente. Há uma busca por certas explicações
mais elevadas sobre os propósitos do Homem, sobre por que estamos
aqui. Isso está ligado a períodos de grande tensão na sociedade.23

As pessoas não vivem apenas em função da razão. Elas não podem


fazer cálculos e agir de forma racional na busca de seus próprios
interesses até que definam suas próprias personalidades. A política de
interesses pressupõe a identidade. Em épocas de mudanças sociais
rápidas, as identidades estabelecidas se desfazem, a personalidade
precisa ser redefinida e novas identidades precisam ser criadas. As
questões de identidade têm precedência sobre questões de interesse. As
pessoas se defrontam com a necessidade de determinar: quem sou eu?

11 o
Onde me encaixo? A religião fornece respostas atraentes e os grupos
religiosos oferecem pequen.as comunidades sociais para substituir as que
se perderam em função da urbanização. Hassan Al-Turabi comentou que
todas as religiões dão "às pessoas uma sensação de identidade e de rumo
na vida". Nesse processo, elas também redescobrem ou criam novas
identidades históricas. Quaisquer que sejam as metas universalistas que
possam ter as pessoas, as religiões lhes dão uma identidade ao es-
tabelecer uma distinção básica entre crentes e não-crentes, entre um
grupo "de dentro", superior, e um grupo "de fora", diferente e inferior.24
Bernard Lewis sustenta que, no mundo muçulmano, tem havido,
"em períodos de emergência, uma repetida tendência entre os muçulma-
nos de encontrar sua identidade e lealdade básicas na comunidade
religiosa - ou seja, numa entidade definida mais pelo Islamismo do que
por critérios técnicos ou territoriais". Gilles Kepel ressalta, de modo
análogo, a centralidade da busca de uma identidade: "A reislamização
'de baixo para cima' é, antes de mais nada, um meio de reconstruir uma
identidade num mundo que perdeu seu sentido e se tornou amorfo e
alienante." 25 Na Índia, "uma nova identidade hindu está sendo cons-
truída" em resposta às tensões e alienações geradas pela modemização.26
Na Rússia, a revitalização religiosa é o resultado de "um desejo apaixo-
nado por uma identidade que somente a Igreja Ortodoxa, o único vínculo
ininterrupto com o passado de mil anos dos russos, é capaz de propor-
cionar", enquanto que, nas repúblicas islâmicas, a revitalização provém
"da mais forte aspiração dos centro-asiáticos: a afirmação de suas
identidades, suprimidas por Moscou durante décadas".27 Os movimentos
fundamentalistas, em especial, são "uma maneira de lidar com a expe-
riência do caos, da perda de identidade, de sentido e de estruturas sociais
seguras, criadas pela introdução rápida de políticas e padrões sociais
modernos, secularismo, cultura científica e desenvolvimento econômi-
co". William H. McNeill concorda com que "os movimentos funda-
mentalistas que têm importância (. .. ) são aqueles que fazem seu recru-
tamento na sociedade em geral e que se espalham porque respondem,
ou parecem responder, às necessidades humanas recém-percebidas. (. .. )
Não é por acaso que esses movimentos estão todos baseados em países
nos quais a pressão populacional sobre a terra está tomando impossível
para a maioria da população manter a continuidade dos antigos hábitos
das cidadezinhas, e nos quais os meios de comunicação de massa, ao
penetrar nas cidadezinhas, começaram a corroer uma estrutura muito
antiga da vida do campo". 28

11Q
De modo mais amplo, o ressurgimento religioso em todo o mundo
é uma reação contra o secularismo, o relativismo moral e a auto-in-
dulgência, bem como uma reafirmação dos valores de ordem, disciplina,
trabalho, auxílio mútuo e solidariedade humana. Os grupos religiosos
satisfazem necessidades sociais deixadas carentes pelas burocracias do
Estado. Dentre elas se incluem a prestação de serviços médico-hos-
pitalares, jardins de infância e escolas, assistência aos idosos, socorro
imediato em terremotos e outras catástrofes e assistência social durante
períodos de privação econômica. O colapso da ordem e da sociedade
civil cria vácuos que são às vezes preenchidos por grupos religiosos,
freqüentemente fundamentalistas. 29
Quando as religiões tradicionalmente dominantes não satisfazem as
necessidades emocionais e sociais dos desarraigados, outros grupos
religiosos se apresentam para fazê-lo e, nesse processo, aumentam muito
a quantidade de seguidores e a proeminência da religião na vida social
e política. A Coréia do Sul foi, historicamente, um país predominante-
mente budista, com os cristãos totalizando, em 1950, talvez de um a três
por cento da população. À medida que a Coréia do Sul deslanchou num
desenvolvimento econômico acelerado, com uma urbanização maciça e
grande diferenciação ocupacional, o Budismo passou a deixar a desejar.
"Para os milhões de pessoas que se despejaram nas cidades e para muitas
que permaneceram onde estavam, na zona rural alterada, o Budismo
quiescente do período agrário coreano perdeu sua capacidade de
atração. O Cristianismo, com sua mensagem de salvação pessoal e destino
individual, oferecia maior conforto e segurança numa época de confusão
e mudanças."30 Ao se chegar aos anos 80, os cristãos, na sua maioria
presbiterianos e católicos, constituíam pelo menos 30 por cento da
população sul-coreana.
Uma alteração semelhante e paralela ocorreu na América Latina. O
número de protestantes na América Latina aumentou de aproximadamen-
te sete milhões em 1960 para cerca de 50 milhões em 1990. Os bispos
católicos latino-americanos reconheceram em 1989 que, dentre as razões
para tal êxito, estavam a "lentidão com que [a Igreja Católica] está se
adaptando às tecnicalidades da vida urbana" e "sua estrutura, que às
vezes a toma incapaz de responder às necessidades psicológicas das
pessoas dos dias atuais". Um sacerdote brasileiro observou que, ao
contrário da Igreja Católica, as igrejas protestantes atendem "às neces-
sidades básicas da pessoa - calor humano, cura espiritual, uma profunda
experiência espiritual". A disseminação do Protestantismo no meio dos

120
pobres na América Latina não consiste, basicamente, na substituição de
uma religião por outra, mas sim num aumento líquido importante de
engajamento e participação religiosos à medida que católicos passivos,
católicos só no nome, se tornam evangélicos ativos e fervorosos. Assim,
por exemplo, no Brasil, no início dos anos 90, 20 por cento da população
se identificavam como protestantes e 73 por cento como católicos. No
entanto, aos domingos, 20 milhões de pessoas estavam em igrejas
protestantes e cerca de 12 milhões estavam em igrejas católicas.3 1 Tal
como as demais religiões mundiais, o Cristianismo está passando por um
ressurgimento ligado à modernização e, na América Latina, ele assumiu
mais a feição protestante do que a católica.
Essas mudanças na Coréia do Sul e na América Latina refletem a
incapacidade do Budismo e do Catolicismo tradicionais de atender às
necessidades psicológicas, emocionais e sociais das pessoas colhidas
pelos traumas da modernização. Se vão ocorrer em outros lugares
alterações importantes em termos de observância religiosa, isso depen-
derá do grau com que a religião predominante seja capaz de satisfazer
a essas necessidades. Dada sua aridez emocional, o Confucionismo
poderia ser especialmente vulnerável. Nos países confucianos, o Protes-
tantismo e o Catolicismo poderiam exercer uma atração semelhante à
que tem o Protestantismo evangélico para os latino-americanos, o
Cristianismo para os sul-coreanos e o fundamentalismo para os muçul-
manos e hindus. Na China, no final dos anos 80, enquanto o crescimento
econômico estava a pleno vapor, o Cristianismo também se espalhou,
"especialmente entre os jovens". Talvez 50 milhões de chineses sejam
cristãos. O governo tentou impedir que esse número crescesse, pondo
na prisão pastores, missionários e evangelizadores, proibindo e reprimin-
do cerimônias e atividades religiosas, e aprovando, em 1994, uma lei que
proíbe os estrangeiros de fazerem proselitismo ou de criarem escolas
religiosas ou outras organizações religiosas, e proíbe que grupos religio-
sos se dediquem a atividades independentes ou financiadas do exterior.
Em Singapura, como na China, cerca de cinco por cento da população
são cristãos. No final da década de 80 e no início da de 90, ministros do
governo singapuriano advertiram os evangelizadores para que não
perturbassem "o delicado equilíbrio religioso" do país, detiveram ativistas
religiosos, inclusive funcionários de organizações católicas, e hostilizaram
de diversas maneiras grupos e indivíduos cristãos.32 Com o término da
Guerra Fria e as aberturas que se seguiram, as igrejas ocidentais também
ingressaram nas ex-repúblicas soviéticas ortodoxas, competindo com as

1 ?1
igrejas ortodoxas revitalizadas. Nesses lugares, tal como na China,
também foi feita uma tentativa de se cercear seu proselitismo. Em 1993,
por insistência da Igreja Ortodoxa, o Parlamento russo aprovou legislação
que exige que grupos religiosos estrangeiros sejam credenciados pelo
Estado ou se filiem a uma organização religiosa russa a fim de poderem
se dedicar a atividades missionárias ou de ensino. Entretanto, o presiden-
te Yeltsin recusou-se a sancionar o projeto, que assim não se transformou
em lei.33 De forma geral, constata-se que, sempre que houve um conflito,
la revanche de Dieu ganhou da indigenização: caso as necessidades
religiosas da modernização não possam ser satisfeitas por suas crenças
tradicionais, as pessoas se voltam para importações religiosas que
proporcionem satisfação emocional.
Além dos traumas psicológicos, emocionais e sociais da moderni-
zação, dentre outros fatores que estimulam a revitalização religiosa
encontram-se o recuo do Ocidente e o fim da Guerra Fria. A partir do
século XIX, de forma geral, as reações das civilizações não-ocidentais
ao Ocidente foram passando por uma série de ideologias importadas
do Ocidente. No século XIX, as elites não-ocidentais absorveram os
valores liberais ocidentais, e suas primeiras manifestações de oposição
ao Ocidente assumiram a forma de nacionalismo liberal. No século
XX, o socialismo e o marxismo foram importados, adaptados às
condições e finalidades locais e combinados com o nacionalismo em
oposição ao imperialismo ocidental. Na Rússia, na China e no Vietnã, o
marxismo-leninismo foi desenvolvido, adaptado e utilizado para desafiar
o Ocidente. O colapso do comunismo na União Soviética, sua profunda
modificação na China e o fracasso das economias socialistas que não
conseguiram atingir um desenvolvimento sustentado criaram o atual
vácuo ideológico. Governos ocidentais, grupos e instituições interna-
cionais, como o FMI e o Banco Mundial, tentaram preencher esse
vácuo com as doutrinas da economia neo-ortodoxa e da política
democrática. É incerto o grau em que essas doutrinas produzirão um
impacto duradouro nas culturas não-ocidentais. Enquanto isso, porém,
as pessoas vêem o comunismo como apenas o mais recente deus
secular que fracassou e, na ausência de novas divindades seculares
atraentes, voltam-se com alívio e paixão para o que é religião de verdade.
A religião toma o lugar da ideologia e o nacionalismo religioso substitui
o nacionalismo secular. 34
Os movimentos de revitalização religiosa são anti-seculares, anti-
universais e, com exceção de suas manifestações cristãs, antiocidentais.
Além disso, se opõem ao relativismo, ao egoísmo e ao consumismo,
associados com o que Bruce B. Lawrence denominou de "modernismo"
em contraste com "modernidade". De forma geral, eles não rejeitam a
urbanização, a industrialização, o desenvolvimento, o capitalismo, a
ciência e a tecnologia, e o que isso implica para a organização da
sociedade. Nesse sentido, eles não são antimodernos. Como observa Lee
Kuan Yew, eles aceitam a modernização e a "inevitabilidade da ciência
e da tecnologia e as mudanças que elas trazem para os estilos de vida",
porém não são "receptivos à idéia de serem ocidentalizados". Al-Turabi
sustenta que nem o nacionalismo nem o socialismo produziram desen-
volvimento no mundo islâmico. Entretanto, "a religião é o motor do
desenvolvimento", e um Islã purificado desempenhará, na idade contem-
porânea, um papel comparável ao da ética protestante na História do
Ocidente. Tampouco a religião é incompatível com o desenvolvimento
de um Estado moderno.35 Os movimentos fundamentalistas islâmicos
têm se mostrado vigorosos nas sociedades muçulmanas mais avançadas
e aparentemente mais seculares, como Argélia, Irã, Egito, Líbano e
Tunísia.36 Os movimentos religiosos, inclusive os que são particularmen-
te fundamentalistas, são altamente competentes na utilização das comu-
nicações e técnicas organizacionais modernas para difundir sua mensa-
gem, o que é ilustrado de modo muito espetacular pelo êxito do
televangelismo protestante na América Central.
Os participantes do ressurgimento religioso provêm de todos os
níveis sociais, porém, de forma majoritária, vêm de duas clientelas, ambas
urbanas e móveis. Os que migraram há pouco tempo para as cidades
geralmente necessitam de apoio e orientação emocional, social e material,
que os grupos religiosos têm mais condições de proporcionar do que
qualquer outra fonte. Como diz Régis Debray, para eles a religião não é
"o ópio do povo, mas sim a vitamina dos fracos".37 A outra clientela
principal é a nova classe média, que personifica o "fenômeno da
indigenização da segunda geração" de que fala Dore. Como Kepel
assinala, os ativistas dos grupos fundamentalistas islâmicos não são
"conservadores idosos nem camponeses analfabetos". Eles são predomi-
nantemente jovens, com bom nível de instrução, freqüentemente da
primeira geração de suas famílias a cursar universidade ou escola técnica,
e trabalham como médicos, advogados, engenheiros, técnicos, cientistas,
professores, funcionários públicos e militares.3 8 Entre os muçulmanos,
os jovens são religiosos e seus pais seculares. Muito disso acontece com
o Hinduísmo, no qual os líderes de movimentos de revitalização também

1?::t
provêm da segunda geração indigenizada e freqüentemente são "homens
de negócios e administradores bem-sucedidos", rotulados pela imprensa
indiana como "scuppies' - yuppies com mantos cor de laranja. No início
dos anos 90, os que apoiavam esses movimentos eram, cada vez mais,
"hindus da sólida classe média indiana - comerciantes e contadores,
advogados e engenheiros" - e "funcionários públicos, intelectuais e
jornalistas experientes".39 Na Coréia do Sul, os mesmos tipos de pessoas
encheram progressivamente as igrejas católicas e presbiterianas durante
os anos 60 e 70.
A religião, autóctone ou importada, proporciona os meios e o rumo
para as elites emergentes nas sociedades que se estão modernizando.
Ronald Dore observou que "a atribuição de valor a uma religião
,;-• tradicional é uma reivindicação de paridade de respeito afirmada contra
outras nações 'dominantes' e, muitas vezes, de modo simultâneo e mais
imediato, contra a classe dominante local, que abraçou os valores e estilos
de vida dessas outras nações dominantes". William McNeill observa que,
"mais do que nada, a reafirmação do Islã, independentemente da forma
sectária, representa o repúdio à influência européia e norte-americana
sobre a sociedade, a política e a moral locais".40 Nesse sentido, a
revitalização das religiões não-ocidentais é a mais forte manifestação de
antiocidentalismo nas sociedades não-ocidentais. Essa revitalização não
é uma rejeição da modernidade, mas sim uma rejeição do Ocidente e da
cultura secular, relativista e degenerada, associada com o Ocidente. É
uma rejeição do que se denominou a "ocidentalização" das sociedades
não-ocidentais. É uma declaração de independência cultural em relação
ao Ocidente, uma declaração altiva de que "nós seremos modernos, mas
não seremos vocês".

124
CAPÍTULO 5

Economia, Demografia
e as Civilizações Desafiadoras

indigenização e a revitalização da religião .são f:nômenos globais.

A Entretanto, eles são mais nítidos na af1rmaçao cultural e nos


desafios ao Ocidente que têm vindo da Ásia e do Islã. Em ambos
estão as civilizações mais dinâmicas do último quarto do século XX. O
desafio islâmico se evidencia no amplo ressurgimento cultural, social e
político do Islamismo no mundo muçulmano e na rejeição paralela dos
valores e instituições ocidentais. O desafio asiático se manifesta em todas
as civilizações da Ásia Oriental - sínica, japonesa, budista e muçul-
mana - enfatiza suas diferenças culturais do Ocidente e, às vezes, os
aspectos' em comum que elas compartilham, freqüentemente identifica-
dos com o Confucionismo. Tanto os asiáticos como os muçulmanos
ressaltam a superioridade de suas culturas em relação à cultura ocidental.
Por contraste, os povos de outras civilizações não-ocidentais - hindu,
ortodoxa, latino-americana, africana - podem afirmar o caráter próprio
de suas culturas, porém, ao se chegar a meados dos anos 90, hesitavam
em proclamar sua superioridade sobre a cultura ocidental. A Ásia e o
Islã, às vezes juntos, ficam isolados nos desafios que contrapõem ao
Ocidente.
Por trás desses desafios, existem causas relacionadas entre si, porém
diferentes. A disposição afirmativa da Ásia se fundamenta no crescimento
econômico, enquanto que a do Islã provém, em grande parte, da
mobilização social e do crescimento populacional. Cada um desses

125
desafios, ao se entrar no século XXI, está tendo e continuará a ter um
impacto altamente desestabilizador sobre a política mundial. Entretanto,
a natureza desses impactos difere de maneira significativa. O desenvol-
vimento econômico da China e de outras sociedades asiáticas dá aos
respectivos governos tanto os estímulos como os recursos para serem
mais exigentes em seus relacionamentos com outros países. O crescimen-
to populacional nos países muçulmanos, e em especial a expansão das
coortes de 15 a 25 anos de idade, proporcionam a massa de recrutamento
para o fundamentalismo, o terrorismo, a subversão e a migração. O
crescimento econômico fortalece os governos asiáticos; o crescimento
populacional cria uma ameaça para os governos muçulmanos e para as
sociedades não-muçulmanas.

A AFIRMAÇÃO ASIÁTICA

O desenvolvimento econômico da Ásia Oriental é um dos desdobramen-


tos mais importantes do mundo na segunda metade do século XX. Esse
processo começou no Japão, na década de 50, e durante algum tempo
pensou-se que o Japão era uma grande exceção: um país não-ocidental,
que tinha tido êxito em se modernizar e em se tornar economicamente
desenvolvido. Entretanto, o processo de desenvolvimento econômico se
estendeu aos Quatro Tigres (Hong Kong, Taiwan, Coréia do Sul, Singa-
pura) e depois para a China, Malásia, Tailândia e Indonésia, e está se
firmando nas Filipinas, na Índia e no Vietnã. Muitas vezes, esses países
mantiveram, durante uma década ou mais, taxas médias de crescimento
anual de oito a 10 por cento, ou mais. Verificou-se uma expansão
igualmente espetacular do comércio internacional entre a Ásia e o resto
do mundo primeiro e, depois, dentro da Ásia. Esse desempenho econô-
mico asiático contrasta de maneira impressionante com o modesto
crescimento das economias européia e norte-americana, bem como com
a estagnação que se espalhou por grande parte do resto do mundo.
Portanto, a exceção não é mais apenas o Japão e sim, cada vez
mais, toda a Ásia. A identificação da riqueza com o Ocidente e do
subdesenvolvimento com o não-Ocidente não sobreviverá ao século XX.
A velocidade dessa transformação tem sido avassaladora. Como assinalou
Kishore Mahbubani, a Grã-Bretanha levou 58 anos e os Estados Unidos
47 para dobrarem sua produção per capita, porém o Japão o fez em 33
anos, a Indonésia, em 17, a Coréia do Sul, em 11 e a China, em 10. No
momento atual, como vimos, a segunda e a terceira maiores economias

126
FIGURA5.1
0 DESAFIO ECONÔMICO: A ÁSIA E O OCIDENTE

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Fonte: Banco Mundial, World Tables 1995, 1991 ~Baltimore: J.oh.ns Hopki~s Unive~s~ Press, 1995, 1~1);
Diretoria-geral de Orçamento, Contabilidade e Estat1sticas, Republica da China, Stat1st1cal Abstra~t of Nat!~al
lncome, Taiwan Area, Repub/ic of China, 1991-1995 (1995). Nota: As representações dos dados sao as médias
ponderadas de três anos.

do mundo são asiáticas. A economia chinesa cresceu a taxas anuais que


ficaram, em média, em oito por cento durante a década de 80 e a primeira
metade da de 90, com os Tigres logo atrás (ver Figura 5.1). Segundo
declarou o Banco Mundial em 1993, a "Área Econômica Chinesa" tinha
se transformado no "quarto pólo de crescimento" do mundo, juntamente
com os Estados Unidos, o Japão e a Alemanha. Com a segunda e a terceira
maiores economias do mundo nos anos 90, é provável que, ao se chegar
a 2020, a Ásia tenha quatro das cinco maiores economias do mundo e
sete se tomarmos as 10 maiores. Provavelmente também será asiática a
maioria das economias mais competitivas. 1 Mesmo que os níveis asiáticos
de crescimento econômico se estabilizem antes e de forma mais abrupta
do que o esperado, as conseqüências do crescimento que já ocorreu são
imensas tanto para a Ásia como para o resto do mundo.
O desenvolvimento econômico da Ásia Oriental está alterando o
equilíbrio de poder entre ela e o Ocidente, mais especificamente entre
ela e os Estados Unidos. O desenvolvimento econômico bem-sucedido
gera autoconfiança e disposição afirmativa por parte daqueles que o

127
geram e dele se beneficiam. A riqueza, como o poder, é vista como prov~
de virtude, como demonstração de superioridade moral e cultural. A
medida que se tornaram mais bem-sucedidos economicamente, os
asiáticos orientais não hesitaram em realçar o caráter próprio da sua
cultura e alardear a superioridade dos seus valores e do seu estilo de
vida em comparação com os do Ocidente e de outras sociedades. As
sociedades asiáticas estão cada vez menos receptivas às exigências e aos
interesses dos Estados Unidos e com capacidade cada vez maior para
resistir às pressões dos Estados Unidos e de outros países ocidentais.
O embaixador Tommy Koh observou, em 1993, que um "renasci-
mento cultural está varrendo" a Ásia. Ele abrange uma "crescente
autoconfiança", que significa que os asiáticos "não mais consideram que
tudo o que é ocidental ou norte-americano é necessariamente o melhor". 2
Esse renascimento, propulsionado pelo êxito econômico asiático, se
manifesta com cada vez maior ênfase tanto nas identidades culturais
próprias de cada país asiático como nos aspectos comuns às culturas
1'I asiáticas, que as distinguem da cultura ocidental. O significado dessa
revitalização cultural está marcado na interação em processo de mutação
das duas principais sociedades da Ásia Oriental com a cultura ocidental.
Quando o Ocidente se impôs à China e ao Japão, em meados do
século XIX, depois de um pequeno namoro com o kemalismo, as elites
predominantes optaram por uma estratégia reformadora. Com a Res-
tauração Meiji, um dinâmico grupo de reformadores chegou ao poder no
Japão, estudou e tomou emprestadas técnicas, práticas e instituições
ocidentais, e iniciou o processo de modernização do Japão. Porém,
fizeram isso de modo a preservar os aspectos essenciais da cultura
japonesa tradicional, o que, em muitos pontos, contribuiu para a
modernização e possibilitou ao Japão invocar e reformular elementos
dessa cultura, baseando-se neles para despertar apoio e montar jus-
tificativas para seu imperialismo nos anos 30 e 40. Na China, por outro
lado, a decadente dinastia Ching não foi capaz de se adaptar com êxito
ao impacto do Ocidente. A China foi derrotada, espoliada e humilhada
pelo Japão e pelas potências européias. O colapso da dinastia em 1910
foi seguido pela divisão, pela guerra civil e pela invocação de concepções
rivais pelos líderes políticos e intelectuais rivais: os três princípios de
"Nacionalismo, Democracia e Vida das Pessoas" de Sun Yat Sen, o
liberalismo de Liang Ch'i-ch'ao e o marxismo-leninismo de Mao Tsé-tung.
No final da década de 40, a concepção que fora importada da União
Soviética venceu as importadas do Ocidente - nacionalismo, liberalismo,

128
democracia, Cristianismo - e a China foi definida como uma sociedade
socialista.
No Japão, a derrota completa na II Guerra Mundial produziu uma
confusão completa. Um ocidental, profundamente envolvido com o
Japão, comentou em 1994 que, "atualmente, é muito difícil para nós
avaliarmos o grau em que tudo - religião, cultura, todos os aspectos da
estrutura mental desse país - foi posto a serviço da guerra. A perda da
guerra produziu um choque total para o sistema. Nas suas mentes, tudo
aquilo se revelou inútil e foi alijado" .3 Em seu lugar, tudo que estivesse
ligado com o Ocidente e especialmente com os Estados Unidos vitoriosos
passou a ser visto como bom e desejável. Desse modo, o Japão tentou
emular os Estados Unidos como a China emulou a União Soviética.
No final da década de 70, o fracasso do comunismo ao não gerar
o desenvolvimento econômico e o êxito do capitalismo no Japão e, cada
vez mais, nas outras sociedades asiáticas, levou a nova liderança chinesa
a se afastar do modelo soviético. O desmoronamento da União Soviética ~
uma década depois acentuou ainda mais os fracassos dessa concepção
importada. Assim sendo, os chineses se defrontaram com a questão de
se deviam voltar-se para o Ocidente ou para dentro de si mesmos. Muitos
intelectuais e algumas outras pessoas advogaram uma completa ociden-
talização, uma tendência que atingiu seus ápices culturais e populares
na telenovela A elegia do rio e na estátua da Deusa da Democracia erigida
na Praça de Tiananmen. Entretanto, essa orientação ocidental não
conquistou o apoio nem das poucas centenas de pessoas que contavam
em Pequim nem dos 800 milhões de camponeses que viviam nas áreas
rurais. A plena ocidentalização era tão inviável no final do século XX
como o fora no final do século XIX. A liderança do país escolheu uma
nova versão do Ti-Yong: por um lado, capitalismo e envolvimento com
a economia mundial, combinados; por outro lado, com o autoritarismo
político e a rededicação à cultura chinesa tradicional. Em vez da
legitimidade revolucionária do marxismo-leninismo, o regime adotou a
legitimidade do desempenho proporcionado pelo desenvolvimento eco-
nômico em ascensão e a legitimidade nacionalista proporcionada pela
invocação das características próprias da cultura chinesa. Um comentaris-
ta observou que "o regime pós-Tiananmen abraçou sofregamente o
nacionalismo chinês como uma nova fonte de legitimidade", e conscien-
temente incitou o antiamericanismo para justificar o seu poder e o seu
comportamento.4 Nessas circunstâncias, está emergindo um nacionalis-
mo cultural chinês, sintetizado nas palavras de um líder de Hong Kong

129
· · 1. t s como i·amais nos
em 1994 .· "Nós , chineses ' nos sentimos nac1ona 1s a ,, ,, ·
ntíramos antes. Somos chineses e temos orgulho diss~. Na propna
sCeh. no início dos anos 90, desenvolveu-se um "deseJO popular de
ma, . - · 1
utenticamente chinês, que muitas vezes e patnarca ,
retornar ao que era a . ,
nativista e autoritário. Nesse ressurgimento histórico, a democrac.1a esta
desacreditada, tal como 0 leninismo, na condição de apenas mais uma
imposição estrangeira"· 5 .
No início do século XX, intelectuais chineses, seguindo paralela-
Weber cada um por si, identificaram o Confucionismo como a
mente a ' r.
fonte do atraso chinês. No final do século XX, ~s. líd~res p~ iticos
chineses, seguindo paralelamente aos cientistas soC1a1s oc1denta1s, lou-
varam 0 Confucionismo como a fonte do progresso chinês. Nos .ªn~s 80,
rno chinês começou a promover interesse pelo Confuc1omsmo,
o gove . · l" d
com os dirigentes partidários proclamando-o "a corrente prm:1pa a
cultura chinesa.6 É claro que o Confucionismo passou tambem a ser
motivo de entusiasmo para Lee Kuan Yew, que o viu como uma fonte
do êxito de Singapura, e ele se tornou um missionário dos valores
confucianos para 0 resto do mundo. Nos anos 90, o governo de Taiwan
se proclamou "o herdeiro do pensamento confuciano" e o p~esidente Lee
Teng-hui identificou as raízes na democratizaç~o de Ta1wa~ no seu
"legado cultural" chinês, recuando no tempo ate Kao Yao (seculo XXI
a.C.), Confúcio (século V a.C.) e Mêncio (século III a.C.). Os líder~s
7

chineses, queiram eles justificar quer o autoritarismo quer a demo~rac1a,


procuram a legitimação na sua cultura chinesa em comum e nao em
concepções ocidentais importadas.
o nacionalismo promovido pelo regime é o nacionalismo Han, que
ajuda a neutralizar as diferenças lingüísticas, regionais e econômi.cas em
90 por cento da população chinesa. Ao mesmo tempo, ele sublinha as
diferenças com as minorias étnicas não-chinesas, que constituem menos
de 10 por cento da população da China, mas ocupam 60 por cento do
seu território. Ele também fornece a base para a oposição do regime ao
Cristianismo, às organizações cristãs e ao proselitismo cristão, que at.rai
talvez cinco por cento da população e oferece uma fé ocidental alternativa
para preencher 0 vazio deixado pelo colapso do maoísmo-leninismo.
Enquanto isso, no Japão dos anos 80 o desenvolvimento econômico
contrastou com o que se percebia como fracassos e "declínio" da
economia e do sistema social norte-americanos, e levou os japoneses a
ficare~ cada vez mais desencantados com os modelos ocidentais e cada
vez mais convencidos de que as fontes de seu êxito tinham que estar em

130
sua própria cultura. A cultura japonesa, que produziu o desastre militar
em 1945 e, em conseqüência, teve que ser rejeitada, tinha produzido o
triunfo econômico ao se chegar a 1985 e, por conseguinte, podia ser
abraçada. A crescente familiaridade dos japoneses com a sociedade
ocidental os levara a "se dar conta de que ser ocidental não é magica-
mente maravilhoso em si e por si mesmo. Eles se livraram disso". Durante
o auge do êxito econômico japonês, no final dos anos 80, as virtudes
japonesas eram louvadas em comparação com os vícios norte-america-
nos. Enquanto os japoneses da Restauração Meiji tinham adotado uma
política de "desengajar-se da Ásia e juntar-se à Europa", os japoneses da
revitalização cultural do final do século XX endossaram uma política de
"se distanciar dos Estados Unidos e se engajar na Ásia" .8 Essa tendência
envolveu, em primeiro lugar, uma reidentificação com as tradições
culturais japonesas e uma renovada afirmação dos valores dessas tradi-
ções e, em segundo lugar e de modo mais problemático, um esforço para
"asianizar" o Japão e identificá-lo, apesar de sua civilização própria, com
uma cultura asiática geral. Dado o grau em que, depois da II Guerra
Mundial, o Japão, ao contrário da China, se identificou com o Ocidente,
e dado o grau em que o Ocidente, quaisquer que sejam suas deficiências,
não desmoronou por completo, como aconteceu com a União Soviética
'
os estímulos para que o Japão rejeitasse por completo o Ocidente não
foram, de forma alguma, tão fortes quanto os estímulos para que a China
se distanciasse dos modelos tanto soviéticos quanto ocidentais. Por outro
lado, a peculiaridade da civilização japonesa, as recordações em outros
países do imperialismo japonês e a enorme importância econômica dos
chineses na maioria dos demais países asiáticos também significam que
será mais fácil para o Japão se distanciar do Ocidente do que se misturar
com a Ásia.9 Ao reafirmar sua identidade cultural própria, o Japão enfatiza
sua peculiaridade e suas diferenças, tanto da cultura ocidental quanto
das demais culturas asiáticas.
Enquanto chineses e japoneses encontraram um novo valor em suas
culturas, eles também partilharam de uma reafirmação mais ampla do
valor da cultura asiática em geral, por comparação com a do Ocidente.
A industrialização e o crescimento que acompanharam esse fenômeno
produziram nos anos 80 e 90 uma articulação entre os asiáticos orientais
do que pode ser adequadamente denominado de "afirmação asiática".
Esse complexo de atitudes tem quatro componentes principais.
Primeiro: os asiáticos acreditam que a Ásia Oriental está se desen-
volvendo economicamente depressa, logo superará o Ocidente em

1 ~1
produto econômico e, por conseguinte, será cada vez mais poder~sa nos
assuntos mundiais em comparação com o Ocidente. O crescimento
econômico estimula no meio das sociedades asiáticas uma sensação de
poder e uma afirmação de sua capacidade de enfrentar o Ocidente. ~m
1993, um destacado jornalista japonês declarou que "acabaram-se os dias
em que os Estados Unidos espirravam e a Ásia ficava resfriada". Um
funcionário público malásio acrescentou à metáfora médica que "mesmo
uma febre alta nos Estados Unidos não fará a Ásia tossir". Um líder asiático
disse que os asiáticos, no seu relacionamento com os Estados Unidos,
"estão no final da era de ficarem assombrados e no início da era de
retrucar". o vice-primeiro-ministro da Malásia afirmou que "a crescente
prosperidade da Ásia significa que ela está agora em posição de oferecer
alternativas sérias aos arranjos mundiais predominantes nos campos
político, social e econômico".10 Isso também quer dizer, sustentam os
asiáticos orientais, que o Ocidente está perdendo rapidamente sua
capacidade de fazer as sociedades asiáticas se ajustarem aos padrões
ocidentais no que se refere a direitos humanos e outros valores.
Segundo: os asiáticos consideram que esse êxito econômico é, em
grande parte, um produto da cultura asiática, que é superior à do
Ocidente, o qual está decadente cultural e socialmente. Nos tempos
inebriantes da década de 80, quando, no Japão, a economia, as expor-
tações, a balança comercial e as reservas em moedas estrangeiras estavam
a pleno vapor, os japoneses, como os sauditas antes deles, se vangloria-
vam de seu novo poderio econômico, falavam com desprezo do declínio
do Ocidente e atribuíam o seu êxito e o insucesso ocidentais à supe-
rioridade de sua cultura e à decadência da cultura ocidental. No começo
dos anos 90, o triunfalismo asiático foi novamente articulado no que só
pode ser descrito como a "ofensiva cultural singapuriana". Os líderes
singapurianos, de Lee Kuan Yew para baixo, alardeavam a ascensão da
Ásia em relação ao Ocidente e contrastavam as virtudes da cultura
asiática, basicamente confuciana, responsáveis por esse êxito - ordem,
disciplina, família, responsabilidade, trabalho duro, coletivismo, abs-
tinência-, com a auto-indulgência, indolência, individualismo, crimina-
lidade, educação de qualidade inferior, desrespeito pela autoridade e
"calcificação mental" responsáveis pelo declínio do Ocidente. Argumen-
tava-se que, para competir com o Oriente, os Estados Unidos "precisam
questionar suas pressuposições fundamentais sobre as disposições so-
ciais e políticas e, nesse processo, aprender algumas coisas com as
sociedades da Ásia Oriental" .11

132
Para os asiáticos orientais, seu êxito é resultado em especial da ênfase
atribuída pela cultura asiática oriental à coletividade em vez de ao indivíduo.
Lee Kuan Yew sustenta que "os valores e práticas mais comunitários dos
asiáticos orientais - os japoneses, os sul-coreanos, os taiwanenses, os de
Hong Kong e os singapurianos - se revelaram nítidos trunfos no processo
de alcançar [o Ocidente). Os valores que a cultura asiática oriental defende,
tais como a primazia dos interesses do grupo sobre os do indivíduo, dão
sustentação ao esforço total de grupo necessário para o rápido desenvol-
vimento". O primeiro-ministro da Malásia concorda: "A ética de trabalho dos
japoneses e dos sul-coreanos, que consiste em disciplina, lealdade e
diligência, serviu como força motriz para o desenvolvimento econômico e
social de seus respectivos países. Essa ética de trabalho nasce da filosofia
de que o grupo e o país são mais importantes do que o indivíduo." 12
Terceiro: conquanto reconheçam as diferenças entre as sociedades
e as civilizações asiáticas, os asiáticos orientais sustentam que também
existem importantes aspectos em comum. Um dissidente chinês assinalou
que numa posição central dentre eles se encontra "o sistema de valores
do Confucionismo - consagrado pela História e compartilhado pela
maioria dos países da região", em especial a ênfase que atribui à
parcimônia, à família, ao trabalho e à disciplina. Igualmente importante
é o repúdio ao individualismo e o predomínio de um autoritarismo
"suave" ou formas muito limitadas de democracia, que compartilham
esses países. As sociedades asiáticas têm interesses em comum em
relação ao Ocidente na defesa desses valores próprios e na promoção
de seus próprios interesses econômicos. Os asiáticos argumentam que
isso exige o desenvolvimento de novas formas de cooperação intra-asiá-
tica, tais como a expansão da Associação das Nações do Sudeste Asiático
(ASEAN) e a criação do Foro Econômico Asiático Oriental (EAEC).
Embora o interesse econômico imediato das sociedades asiáticas orientais
seja manter o acesso aos mercados ocidentais, a longo prazo o regiona-
lismo econômico provavelmente prevalecerá e, em conseqüência, a Ásia
Oriental precisa promover cada vez mais o comércio e os investimentos
intra-asiáticos.13 Em especial, é preciso que o Japão, como líder do
desenvolvimento asiático, se afaste da sua histórica "política de
desasianização e pró-ocidentalização" e passe a buscar "um caminho
de reasianização" ou, de forma mais ampla, a promover "a asianização
da Ásia'', um caminho que é apoiado pelos dirigentes singapurianos.14
Quarto: os asiáticos orientais sustentam que o desenvolvimento
asiático e os valores asiáticos são modelos que outras sociedades
não-ocidentais deveriam emular em seus esforços por alcançar o Ociden-
te, e que 0 próprio Ocidente deveria adotar a fim de se renov~r. Os
asiáticos orientais alegam que "o modelo anglo-saxão de desenvolvimen-
to, tão reverenciado durante as quatro últimas décadas como o ~elhor
meio de modernização das economias dos países em desenvolvimento
e de construção de um sistema político viável, não está funci~nando". O
modelo asiático oriental está assumindo seu lugar na medida em que
países como 0 México e o Chile, até o Irã e a Turquia, e ma!s ~ecentemente
as ex-repúblicas soviéticas, tentam aprender com aquele ex1:0,_da m~sma
maneira que gerações anteriores tentaram aprender com o exito o~;~en­
tal. A Ásia deve "transmitir para o resto do mundo os valores asiaticos
que têm uma utilidade universa~. (. .. ) a transmi~são de~s~ idea~ sign~,fic~
exportar 0 sistema social da Asia, em especial da Asia Orienta~ . E
necessário que 0 Japão e outros países asiáticos promovam o "globalismo
do Pacífico" a fim de "globalizar a Ásia" e, a partir disso, "moldar de forma
decisiva a feição da nova ordem mundial". 15
. As sociedades poderosas são universalistas; as sociedades fracas são
particularistas. A crescente autoconfiança da Ásia Oriental deu l~gar a
um emergente universalismo asiático comparável ao que caracterizou o
Ocidente. O primeiro-ministro Mahatir proclamou para os chefes de
governo europeus em 1996 que "os valores asiáticos são valores univer-
sais. Os valores europeus são valores europeus". 16 Junto com isso vem
também um "ocidentalismo" asiático, retratando o Ocidente pratica-
mente da mesma maneira uniforme e negativa com que o orientalismo
ocidental alegadamente retratava o Oriente. Para os asiáticos orientais,
a prosperidade econômica é prova de superioridade moral. Se, em
algum momento, a Índia superar a Ásia Oriental como a área que se
está desenvolvendo mais rapidamente no mundo, o mundo deve estar
preparado para longas exposições sobre a superioridade da cultura
hindu, as contribuições do sistema de castas para o desenvolvimento
econômico e como, revertendo às suas raízes e superando o mortífero
legado ocidental deixado pelo imperialismo britânico, a Índia finalmente
alcançou o lugar que lhe era devido na primeira linha das civilizações.
A afirmação cultural se segue ao êxito material; o poder duro gera o
poder suave.

0 RESSURGIMENTO ISLÂMICO
Enquanto os asiáticos ficavam cada vez mais afirmativos como resultado
do desenvolvimento econômico, os muçulmanos, em números maciços,

134
estavam simultaneamente se voltando para o Islamismo como uma fonte
de identidade, sentido, estabilidade, legitimidade, desenvolvimento, po-
der e esperança - esperança sintetizada no slogan "O Islamismo é a
solução". Esse Ressurgimento Islâmico• é, na sua amplitude e profun-
didade, a última fase do ajuste da civilização islâmica ao Ocidente, um
esforço por encontrar a "solução" não nas ideologias ocidentais mas no
Islamismo. Ele personifica a aceitação da modernidade, a rejeição da
cultura ocidental e o reengajamento no Islamismo como um guia cultural,
religioso, social e político para a vida no mundo moderno. Como um
alto funcionário saudita explicou em 1994, "as 'importações estrangeiras'
são boas na condição de 'coisas' reluzentes e de alta tecnologia. Porém,
as instituições sociais e políticas intangíveis importadas de outros lugares
podem ser mortais - basta perguntar ao xá do Irã. (. .. ) Para nós, o
Islamismo não é apenas uma religião, mas um estilo de vida. Nós,
sauditas, queremos nos modernizar, mas não necessariamente nos
ocidentalizar" .17
O Ressurgimento Islâmico é o esforço dos muçulmanos por chegar
a essa meta. É um amplo movimento intelectual, cultural, social e político
que predomina em todo o mundo islâmico. O "fundamentalismo"
islâmico, comumente concebido como o Islamismo político, é apenas
um dos componentes numa revitalização muito mais extensa das idéias,
práticas e retórica islâmicas e no reengajamento no Islamismo pelas
populações muçulmanas. O Ressurgimento pertence à corrente principal
e não à extremista, é generalizado e não isolado.
O Ressurgimento afetou os muçulmanos em todos os países e a
maioria dos aspectos da sociedade e da política na maioria dos países
muçulmanos. Julio L. Esposito escreveu que "são muitos os indícios de
um despertar islâmico na vida pessoal":

maior atenção para com as observâncias religiosas (comparecimento à


mesquita, prece, jejum), proliferação de programas e publicações reli-
giosos, maior ênfase no modo de vestir e nos valores islâmicos, a
revitalização do Sufismo (misticismo). Essa renovação de base mais

• Alguns leitores podem se perguntar por que Ressurgimento e Ressurgimento Islâmico estão
com letrns maiúsculas. A razão é que esses termos se referem a um acontecimento histórico
extremamente importante, que afeta um quinto ou mais da Humanidade, que é pelo menos
tão importante quanto a Revolução Americana, a RevoluçJ.o Francesa e a Revolução Russa,
cujos "erres" são geralmente escritos com maiúsculas, e que é semelhante e comparável à
Refom1a Protestante da sociedade ocidental, cujo "erre" é, quase que invariavelmente, escrito
com maiúscula.

135
ampla foi acompanhada também pela reafirmação do Islamismo na vida
pública: um aumento de governos, organizações, legislação, bancos,
serviços de assistência social e instituições de ensino de orientação
islâmica. Tanto os governos quanto os movimentos de oposição se
voltaram para o Islamismo a fim de acentuar sua autoridade e obter
apoio popular. (. .. ) A maioria dos dirigentes e dos governos, inclusive
em Estados mais seculares como a Turquia e a Tunísia, tomando
consciência da força potencial do Islamismo, têm demonstrado maior
sensibilidade e preocupação em relação a questões islâmkas.

Um outro destacado estudioso do Islã, Ali E. Hillal Dessouki, vê em


termos análogos o Ressurgimento como implicando esforços para reins-
tituir a legislação islâmica em vez da legislação ocidental, a maior
utilização de linguagem e simbolismo religiosos, a expansão do ensino
islâmico (manifestada na multiplicação de escolas islâmicas e na islami-
zação dos currículos em escolas públicas comuns), maior observância
dos códigos islâmicos de comportamento social (por exemplo, as vestes
cobrindo as mulheres, a abstinência do álcool) e uma maior participação
em cerimônias religiosas, o domínio por grupos islâmicos da oposição
aos governos seculares em sociedades muçulmanas, e expansão dos
esforços por desenvolver uma solidariedade internacional entre os
Estados e as sociedades islâmicas. 18 La revanche de Dieu é um fenômeno
global, porém Deus, ou melhor, Alá tornou Sua vingança muito ampla e
satisfatória na ummah, a comunidade do Islã.
Nas suas manifestações políticas, o Ressurgimento Islâmico guarda
certa semelhança com o marxismo, com os textos bíblicos, uma visão da
sociedade perfeita, um compromisso com as mudanças fundamentais, a
rejeição dos poderes existentes e do Estado-nação e uma diversidade
doutrinária que vai do reformador moderado ao revolucionário violento.
Entretanto, a melhor analogia é com a Reforma protestante. Ambos são
reações à estagnação e corrupção das instituições existentes, advogam
uma volta para uma forma mais pura e mais exigente de sua religião,
pregam o trabalho, a ordem e a disciplina e atraem as pessoas da classe
média emergente e dinâmica. Ambos são também movimentos comple-
xos, com variantes diversas, porém duas principais - Luteranismo e
Calvinismo, fundamentalismo sunita e xiita - , podendo mesmo ser
traçados paralelos entre Jean Calvin e o Aiatolá Khomeini e a disciplina
monástica que tentaram impor às suas respectivas sociedades. O espírito
central tanto da Reforma como do Ressurgimento é a reforma fun-
damental. Um pastor puritano declarou que "a Reforma tem que ser
universal, (. .. ) reformar todos os lugares, todas as pessoas e vocações,
reformar as bancas de julgamento, os magistrados subalternos. (. .. )
Reformar as universidades, reformar as cidades, reformar os países,
reformar as escolas de ensino básico, reformar o Sabbath, reformar as
ordenanças, o culto de Deus". Em termos análogos, Al-Turabi afirma que
"esse despertar é abrangente - não se trata apenas de devoção in-
dividual, ele não é apenas intelectual e cultural, nem é apenas político.
Ele é tudo isso, uma reconstrução abrangente da sociedade de alto a
baixo" .19 Ignorar o impacto do Ressurgimento Islâmico sobre a política
no Hemisfério Oriental no final do século XX equivale a ignorar o impacto
da Reforma protestante na política européia no final do século XVI.
O Ressurgimento difere da Reforma num aspecto-chave. O impacto
desta última ficou essencialmente limitado à Europa Setentrional, tendo,
de forma geral, avançado pouco na Espanha, na Itália, na Europa Oriental
e nas terras dos Habsburgo. O Ressurgimento, ao contrário, atingiu quase
todas as sociedades muçulmanas. A partir dos anos 70, os símbolos, as
crenças, as práticas, as instituições, as políticas e as organizações islâmicas
conquistaram um engajamento e um apoio crescentes por todo o mundo
de um bilhão de muçulmanos, que se estende do Marrocos à Indonésia
e da Nigéria ao Casaquistão. A islamização tende a ocorrer primeiro no
âmbito cultural, deslocando-se depois para as esferas social e política.
Os líderes intelectuais e políticos, quer fossem ou não a seu favor, não
podiam ignorá-la nem deixar de se adaptar a ela de uma ou de outra
forma. As generalizações amplas são sempre perigosas e muitas vezes
erradas. Uma, entretanto, parece justificada. Em 1995, todos os países
com uma população predominantemente muçulmana, à exceção do Irã,
eram mais islâmicos e mais fundamentalistas cultural, social e politica-
mente do que 15 anos antes.20
Na maioria dos países, um elemento central da islamização foi o
desenvolvimento de uma organização social islâmica e a captura de
organizações preexistentes por grupos islâmicos. Os fundamentalistas
islâmicos dedicaram uma atenção especial tanto à abertura de escolas
islâmicas quanto à expansão da influência islâmica nas escolas públicas.
De fato, os grupos islâmicos trouxeram à realidade uma "sociedade civil"
islâmica que seguia paralelamente, ultrapassava e muitas vezes suplan-
tava, em amplitude e em atuação, as instituições freqüentemente débeis
da sociedade civil secular. No Egito, no início dos anos 90, as organiza-
ções islâmicas tinham desenvolvido uma extensa rede de entidades que,
preenchendo o vazio deixado pelo governo, prestavam serviços de
saúde, assistência, educacionais e outros, para um grande número dos

137
1

pobres do país. Depois do terremoto de 1992 no Cairo, essas organiza-


ções "estavam nas ruas em poucas horas, distribuindo alimentos e mantas,
enquanto que os esforços de socorro do governo demoraram". Na
Jordânia, a Fraternidade Muçulmana seguiu conscientemente uma polí-
tica de desenvolvimento da "infra-estrutura social e cultural de uma
república islâmica" e, no começo dos anos 90, nesse pequeno país de
quatro milhões de habitantes, ela estava operando um grande hospital,
20 clínicas, 40 escolas islâmicas e 120 centros de estudos corânicos. Ao
lado, na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza, as organizações islâmicas
instalaram e operaram "sindicatos de estudantes, organizações de jovens
e associações religiosas, sociais e educativas", inclusive estabelecimentos
de ensino que iam de jardins de infância até uma universidade islâmica,
clínicas, orfanatos, um asilo para idosos e um sistema de juízes e árbitros
islâmicos. As organizações islâmicas se espalharam por toda a Indonésia
nas décadas de 70 e 80. No começo dos anos 80, a maior delas, a
Muhhammadijah, contava com seis milhões de membros, constituía um
"Estado-religioso-paternalista-dentro-de-um-Estado-secular", e prestava
serviços "do-berço-à-sepultura" para todo o país através de uma complexa
rede de escolas, clínicas, hospitais e instituições de nível universitário.
Nessas e em outras sociedades muçulmanas, as organizações fun-
damentalistas islâmicas, proibidas de exercer atividades políticas, mesmo
assim estavam prestando serviços sociais comparáveis aos dos mecanis-
mos políticos nos Estados Unidos no começo do século x:x.21
As manifestações políticas do Ressurgimento têm sido menos
amplas do que as suas manifestações sociais e culturais, porém, mesmo
assim, ainda são, isoladamente, o mais importante desdobramento
político nas sociedades muçulmanas no último quartel do século XX. A
extensão e a feição do apoio político aos movimentos fundamentalistas
islâmicos variou de um país para outro. Contudo, existem certas tendências
amplas. De forma geral, esses movimentos não recebem muito apoio das
elites rurais, dos camponeses e dos idosos. Seus adeptos são, de forma
majoritária, participantes e produto dos processos de modernização. São
pessoas mais jovens, com grande mobilidade e orientadas para a
modernidade, provenientes em grande parte de três grupos.
Como ocorre com a maioria dos movimentos revolucionários, seu
núcleo consiste de estudantes e intelectuais. Na maioria dos países, a
conquista do controle dos sindicatos de estudantes e organizações
semelhantes foi a primeira fase no processo de islamização política, com
o "surto" de fundamentalismo islâmico ocorrendo nos anos 70 no Egito,

138
1

Paquistão e Afeganistão, movendo-se depois para outros países muçul-


manos. A atração pelo fundamentalismo islâmico foi especialmente intensa
entre os alunos de escolas técnicas, faculdades de Engenharia e departa-
mentos científicos. Nos anos 90, na Arábia Saudita, na Argélia e em outros
lugares, a "indigenização da segunda geração" se manifesta na proporção
crescente de estudantes universitários estudando em seus idiomas nativos
e desse modo expostos cada vez mais às influências fundamentalistas. 22
F~eqüentemen~e, os fundamentalistas também desenvolveram considerável
atração para as mulheres e, na Turquia, constatou-se uma profunda luta
entre a geração mais velha de mulheres secularistas e suas filhas e netas,
orientadas para o fundamentalismo islâmico. 23 Um estudo feito sobre os
líderes militantes dos grupos fundamentalistas egípcios revelou que eles
possuíam cinco características principais, que parecem ser típicas dos
fundamentalistas islâmicos em outros países. Eles eram jovens, predomi-
nantemente na faixa de 20 a 30 anos de idade. Oitenta por cento deles
eram alunos ou diplomados universitários. Mais da metade veio de
colégios de elite ou das áreas intelectualmente mais exigentes de
especialização técnica, como Medicina e Engenharia. Mais de 70 por
cento provinham da classe média baixa, "de meios modestos, mas não
pobres", e eram a primeira geração de suas famílias a receber educação
superior. Tinham passado suas infâncias em cidades pequenas ou em
zonas rurais, mas tinham passado a viver em cidades grandes. 24
Enquanto os estudantes e os intelectuais formavam os quadros
militantes e as tropas de choque dos movimentos fundamentalistas, as
pessoas da classe média urbana compunham o grosso dos seus membros
ativos. Até certo ponto, elas provinham do que é freqüentemente
denominado de grupos "tradicionais" de classe média: comerciantes,
importadores-exportadores, proprietários de pequenas empresas, ba-
zaaris. Eles desempenharam um papel crucial na Revolução Iraniana e
deram importante apoio aos movimentos fundamentalistas na Argélia,
Turquia e Indonésia. Entretanto, em grau ainda maior, os fundamentalis-
tas pertenciam aos setores mais "modernos" da classe média. Os ativistas
fundamentalistas islâmicos "provavelmente incluem um número des-
proporcionalmente elevado dos jovens mais instruídos e mais inteligentes
das suas respectivas populações", inclusive médicos, advogados, enge-
nheiros, professores e funcionários públicos. 25
O terceiro elemento-chave da clientela fundamentalista islâmica está
nos contingentes que migraram recentemente para as cidades. Em todo o
mundo islâmico, nos anos 70 e 80, as populações urbanas cresceram a taxas
espetaculares. Comprimidos em áreas faveladas em decadência e muitas
vezes primitivas, esses migrantes urbanos precisavam e se beneficiavam
dos serviços sociais prestados pelas organizações fundamentalistas islâ-
micas. Além disso, assinala Ernest Gellner, o Islamismo ofereceu "uma
identidade condigna" a essas "massas desenraizadas recentemente". Em
Istambul e Ancara, no Cairo e Asyut, em Argel e Fez, e na Faixa de Gaza,
os partidos fundamentalistas islâmicos tiveram êxito em organizar e atrair
"os pobres e miseráveis". Oliver Roy comentou que "a massa do Islã
revolucionário é um produto da sociedade moderna (. .. ), os recém-che- '
gados urbanos, os milhões de camponeses que triplicaram a população
das grandes metrópoles muçulmanas". 26
· ,.. Ao se chegar a meados dos anos 90, só no Irã e no Sudão tinham
chegado ao poder governos explicitamente fundamentalistas islâmicos.
Num pequeno número de países muçulmanos, como a Turquia e o
Paquistão, havia regimes que podiam de algum modo invocar legitimi-
dade democrática. Os governos em cerca de 40 outros países muçulma-
nos eram amplamente não-democráticos: monarquias, sistemas de parti-
do único, regimes militares, ditaduras pessoais ou algumas combinações
desses tipos, geralmente apoiados numa base limitada de família, clã ou
tribo e, em alguns casos, profundamente dependentes de apoio do
exterior. Dois regimes, no Marrocos e na Arábia Saudita, tentaram invocar
alguma forma de legitimidade islâmica. A maioria desses governos,
porém, carecia de qualquer base para justificar estar no poder em termos
de valores islâmicos, democráticos ou nacionalistas. Eram "regimes de
bunker', para usar a expressão de Clement Henry Moore, repressores,
corruptos, divorciados das necessidades e aspirações de suas sociedades.
Esses regimes podem se manter por longos períodos de tempo e não
estão necessariamente fadados ao fracasso. No mundo moderno, contu-
do, é alta a probabilidade de que eles mudarão ou desmoronarão.
Conseqüentemente, em meados da década de 90, uma questão central
se refere às alternativas prováveis: quem ou o que os irá suceder? Em
quase todos os países, em meados dos anos 90, o regime que mais
provavelmente os substituirá será fundamentalista islâmico.
Durante as décadas de 70 e 80, uma onda de democratização varreu
o mundo, abrangendo várias dezenas de países. Essa onda teve um
impacto nas sociedades muçulmanas, porém de proporções limitadas.
Enquanto movimentos democráticos estavam ganhando força e chegan-
do ao poder na Europa Meridional, na América Latina, na periferia da
Ásia Oriental e na Europa Central, os movimentos fundamentalistas

140
islâmicos estavam simultaneamente ganhando força nos países muçul-
manos. O Islamismo foi o substituto funcional da oposição democrática
ao autoritarismo nas sociedades cristãs e, em grande parte, foi o resultado
de causas análogas: mobilização social, perda de legitimidade de de-
sempenho por regimes autoritários e um ambiente internacional em
mutação, inclusive com aumentos dos preços de petróleo, o que, no
mundo islâmico, incentivou tendências fundamentalistas islâmicas em vez
de tendências democráticas. Nas sociedades cristãs, padres, pastores e
! grupos religiosos leigos desempenharam papéis importantes na oposição a
regimes autoritários e, nos países muçulmanos, os ulemás, os grupos
baseados nas mesquitas e os fundamentalistas islâmicos tiveram papéis
semelhantes. O Papa foi uma figura central para acabar com o regime
comunista na Polônia, e os aiatolás, para derrubar o regime do xá no Irã.
Nos anos 80 e 90, os movimentos fundamentalistas islâmicos
estavam influindo na política não por controlarem governos, mas sim por
dominarem - e muitas vezes monopolizarem - a oposição aos gover-
nos. A força dos movimentos fundamentalistas islâmicos era, em parte,
função da debilidade das fontes alternativas de oposição. Os movimentos
esquerdistas e comunistas tinham ficado desacreditados e depois seria-
mente solapados pelo colapso da União Soviética e do comunismo
internacional. Os grupos de oposição liberais e democráticos tinham
existido na maioria das sociedades muçulmanas, mas geralmente estavam
confinados a números restritos de intelectuais e outras pessoas com raízes
ou ligações ocidentais. Com apenas algumas exceções ocasionais, os
democratas liberais foram incapazes de conseguir apoio popular conti-
nuado nas sociedades muçulmanas, e até mesmo o liberalismo islâmico
não conseguiu firmar raízes. Fouad Ajami observa que "nas sociedades
muçulmanas, uma após outra, escrever sobre liberalismo e sobre uma
tradição burguesa nacional é escrever os necrológios de homens que
aceitaram probabilidades impossíveis e depois fracassaram". 27 O fato de
que a democracia liberal, de forma geral, não conseguiu se firmar nas
sociedades muçulmanas é um fenômeno contínuo e repetido durante
todo um século a partir do final de 1800. Esse insucesso tem sua origem,
pelo menos em parte, na natureza inóspita da cultura e da sociedade
islâmica para as concepções liberais ocidentais.
O êxito que tiveram os movimentos fundamentalistas islâmicos para
dominar a oposição e se implantar como a única alternativa viável aos
regimes em exercício também foi muito ajudado pelas políticas desses
regimes. Em uma ou em outra ocasião durante a Guerra Fria, muitos

1À1
governos - inclusive os da Argélia, Turquia, Jordânia, Egito e Israel -
incentivaram e apoiaram os fundamentalistas islâmicos como contrapo-
sição aos movimentos comunistas ou nacionalistas hostis. Pelo menos
até a Guerra do Golfo, a Arábia Saudita e outros Estados do Golfo proviam
fundos em grande quantidade para a Fraternidade Muçulmana e grupos
fundamentalistas islâmicos em vários países. A capacidade dos grupos
fundamentalistas islâmicos de dominarem a oposição também foi aumen-
tada com a eliminação pelos governos das oposições seculares. De forma
geral, a força do fundamentalismo islâmico variou na razão inversa da
dos partidos seculares democráticos ou nacionalistas e era menor em
países como Marrocos e Turquia, que permitiam certo grau de competi-
ção multipartidária, do que nos que eliminavam toda e qualquer oposi-
ção. 28 Entretanto, a oposição secular é mais vulnerável à repressão do
que a oposição religiosa. Esta última pode operar dentro e por detrás de
uma rede de mesquitas, organizações de assistência, fundações e outras
instituições muçulmanas que o governo considera que não pode eliminar.
Os democratas liberais não dispõem desse tipo de cobertura e, por
conseguinte, são mais fáceis de controlar ou de serem eliminados pelo
governo.
Num esforço para esvaziar o crescimento das tendências fun-
damentalistas islâmicas, os governos expandiram o ensino religioso nas
escolas controladas pelo Estado, que freqüentemente passaram a ser
dominadas por professores e idéias fundamentalistas islâmicos, e amplia-
ram seu apoio à religião e às instituições educacionais religiosas. Essas
ações eram, em parte, prova da dedicação dos governos ao Islã e, através
da provisão de fundos, elas estenderam o controle governamental de
instituições islâmicas e do ensino islâmico. Não obstante, elas também
levaram grande número de estudantes e de pessoas a aprenderem os
valores islâmicos, fazendo-os mais abertos aos chamamentos fundamentalis-
tas islâmicos, e formaram militantes que se lançaram ao trabalho em favor
dos objetivos fundamentalistas islâmicos.
A força do Ressurgimento e a atração dos movimentos funda-
mentalistas islâmicos induziu os governos a promoverem as instituições
e práticas islâmicas, bem como a incorporarem os símbolos e as práticas
islâmicas aos seus regimes. No nível mais amplo, isso significou afirmar
ou reafirmar o caráter islâmico de seus Estados e sociedades. Nos anos
70 e 80, os líderes políticos se apressaram em identificar seus regimes e
a si próprios com o Islã. O rei Hussein, da Jordânia, convencido de que
os governos seculares tinham pouco futuro no mundo árabe, falou da

147
necessidade de se \criar uma "d emocrac1a . IAam1ca
. 1s . " e um "I s1-a mo d erm-
.
zador". o rei Hassan, do Marrocos, enfatizou sua descendência do Profeta
e seu papel como "Comandante da Fé". O rei de Brunei, que não se
notabilizara anteriormente por práticas islâmicas, tornou-se "cada vez
mais devoto" e definiu seu regime como uma "monarquia muçulmana
malaia". Na Tunísia, Ben Ali começou a invocar Alá regularmente nos
seus discursos e "enrolou-se no manto do Islã" para conter a crescente
atração exercida por grupos fundamentalistas islâmicos. 29 No começo
dos anos 90, Suharto adotou explicitamente uma política de se tomar
"mais muçulmano." Em Bangladesh, o princípio do "secularismo" foi
retirado da Constituição em meados da década de 70 e, ao se chegar ao
início da de 90, a identidade kemalista, secular, da Turquia estava, pela
primeira vez, sendo alvo de uma contestação séria.30 A fim de sublinhar
sua devoção islâmica, dirigentes governamentais - Ozal, Suharto,
Karimov - se apressaram em fazer sua hajh.
Os governos dos países muçulmanos também tomaram providên-
cias para islamizar sua legislação. Na Indonésia, concepções e práticas
legais islâmicas foram incorporadas ao sistema legal secular. A Malásia,
pelo contrário, refletindo sua considerável população não-muçulmana,
moveu-se na direção do desenvolvimento de dois sistemas legais sepa-
rados, um islâmico e outro secular.3 1 No Paquistão, durante o regime do
general Zia ul-Haq, foram feitos grandes esforços para islamizar a
legislação e a economia. Foram introduzidas penas islâmicas, foi implan-
tado um sistema de tribunais sbari'a e a sbari'a foi declarada a lei
suprema do país.
O Ressurgimento Islâmico é, ao mesmo tempo, um produto da
modernização e um esforço para lidar com ela. Suas causas subjacentes
são as mesmas que, de forma geral, são responsáveis, nas sociedades
não-ocidentais, pelas tendências à indigenização: urbanização, mobiliza-
ção social, níveis mais elevados de alfabetização e educação, comunica-
ções e consumo da mídia intensificados e uma interação expandida com
a cultura ocidental e outras culturas. Esses desdobramentos solapam os
laços tradicionais de aldeias e clãs e criam uma alienação e uma crise de
identidade. Os símbolos, compromissos e crenças islâmicos satisfazem
essas necessidades psicológicas, enquanto que as organizações de
assistência islâmicas satisfazem as necessidades sociais, culturais e eco-
nômicas dos muçulmanos colhidos pelo processo de modernização. O
Ressurgimento é também uma resposta ao impacto do Ocidente. Como as
soluções ocidentais fracassaram para os muçulmanos, eles sentiram ª
necessidade de voltar para suas raízes e confiar nas idéias, práticas e
instituições islâmicas, para delas auferirem a bússola e o motor da
modernização. Esse afastamento do Ocidente foi mais acentuado pela
interação intensificada com o Ocidente, que tomou ainda mais reais as
diferenças de valores e instituições entre as duas civilizações. O Res-
surgimento é uma reação contra a ocidentalização, não contra a modemi-
zação. 32
Argumentou-se que a revitalização islâmica foi também "um produ-
to do declínio do poder e prestígio do Ocidente. (. .. )À medida que o
Ocidente deixou de ter plena ascendência, seus ideais e instituições
perderam o brilho". Mais especificamente, o Ressurgimento foi es-
timulado e alimentado pelo surto do petróleo dos anos 70, que aumentou
enormemente a riqueza e o poder de muitas nações muçulmanas e
habilitou-as a fazer retroceder as relações de dominação e subordinação
que tinham existido com o Ocidente. Como John B. Kelly observou nessa
ocasião, "para os sauditas, há indubitavelmente uma dupla satisfação a
ser extraída de infligir aos ocidentais castigos humilhantes, pois estes não
só são uma expressão do poder e da independência da Arábia Saudita,
como também demonstram, como se deseja, o desprezo pelo Cris-
tianismo e a preeminência do Islã". As ações dos Estados muçulmanos
ricos em petróleo, "se colocadas no seu contexto histórico, religioso,
racial e cultural, não são nada mais do que tentativas ousadas de submeter
o Ocidente cristão a pagar tributo ao Oriente muçulmano".33 Os governos
saudita, líbio e outros utilizaram sua riqueza em petróleo para estimular
e financiar a revitalização muçulmana, e a riqueza muçulmana levou os
muçulmanos a passarem do fascínio pela cultura ocidental para um
profundo envolvimento na sua própria cultura e para uma disposição de
asseverar o lugar e a importância do Islã em sociedades não-islâmicas.
Da mesma forma que a riqueza ocidental tinha anteriormente sido vista
como prova da superioridade da cultura ocidental, a riqueza do petróleo
foi vista como prova da superioridade do Islã.
O ímpeto proporcionado pelos aumentos dos preços do petróleo
nos anos 80 se desfez, mas o crescimento populacional continuou
provendo uma força motriz. Enquanto a ascensão na Ásia Oriental foi
alimentada por espetaculares taxas de crescimento econômico, o Res-
surgimento Islâmico foi alimentado por taxas igualmente espetaculares
de crescimento populacional. A expansão populacional nos países
islâmicos, especialmente nos Bálcãs, no Norte da África e na Ásia Central
foi significativamente maior do que a dos países vizinhos e do mundo

144
'
em geral. Entre 196~ e 1990, a população total da Terra subiu de 3,3
bilhões para 5,3 bilhões de pessoas, ou seja, uma taxa de crescimento
anual de 1,85 por cento. Nas sociedades muçulmanas, as taxas de
crescimento quase sempre estiveram acima de dois por cento, passando
freqüentemente de 2,5 por cento e, às vezes, ficando acima de três por
cento. Entre 1965 e 1990, por exemplo, a população do Maghreb
aumentou a uma taxa de 2,65 por cento ao ano, passando de 29,8 milhões
para 59 milhões, com os argelinos se multiplicando a uma taxa anual de
três por cento. Durante esses mesmos anos, o número de egípcios subiu
a uma taxa de 2,3 por cento, de 29,4 milhões para 52,4 milhões de
pessoas. Na Ásia Central, entre 1970 e 1993, as populações cresceram a
taxas de 2,9 por cento no Tadjiquistão, 2,6 por cento no Uzbequistão,
2,5 por cento no Turcomemistão, 1,9 por cento na Quirguízia, porém
apenas 1, 1 por cento no Casaquistão, onde quase metade da população
é russa. O Paquistão e Bangladesh tiveram taxas de crescimento popu-
lacional excedendo 2,5 por cento ao ano, enquanto a da Indonésia ficou
acima de dois por cento ao ano. De forma geral, os muçulmanos, como
mencionamos, constituíam talvez 18 por cento da população mundial em
1980 e provavelmente representarão 23 por cento no ano 2000 e 31 por
cento em 2025.34
As taxas de crescimento populacional no Maghreb e em outras
regiões chegaram ao seu ápice e estão começando a declinar, porém o
crescimento, em números absolutos, continuará sendo grande e o
impacto desse crescimento se fará sentir durante toda a primeira parte
do século XXI. Por muitos anos ainda, as populações muçulmanas serão
compostas de modo desproporcional por pessoas jovens, com um bolsão
demográfico notável de adolescentes e pessoas na faixa etária dos 20
anos (Figura 5.2). Além disso, as pessoas nessas coortes etárias serão
predominantemente urbanas e terão, em sua grande maioria, pelo menos
educação secundária. Essa combinação de tamanho e mobilidade social
tem três conseqüências políticas significativas.
Em primeiro lugar, as pessoas jovens são os protagonistas dos
protestos, da instabilidade, da reforma e da revolução. Historicamente, a
existência de grandes coortes de jovens tendeu a coincidir com movi-
mentos dessa natureza. Já foi dito que "a Reforma protestante é um
exemplo de um dos mais destacados movimentos de jovens da História".
Jack Goldstone sustentou, de forma convincente, que o crescimento
demográfico foi um fator fundamental nas duas ondas de revoluções que
ocorreram na Eurásia em meados do século XVII e no final do século
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FIGURA 5.2
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1965 1970 1980 1990 2000 2010 2020 2025


-USA - - - Países muçulmanos - -+ - Europa Federação Russa
Fonte: Nações Unidas, Divisão de População, Departamento de lnfonnação Econômica e Social e Análise de
Políticas, World Population Prospects, The 1994 Revision (Perspectivas para a População Mundial, a Revisão de
1994] (Nova York: Nações Unidas, 1995); Nações Unidas, Divisão de População, Departamento de lnfonnação
Econômica e Social e Análise de Políticas, Sex and Age Distribution of the World Popu/a#ons, The 1994 Revision
[Distribuição das Populações do Mundo por Sexo e Idade, a Revisão de 1994] (Nova York: Nações Unidas, 1994).

XVIII.35 Uma expansão notável da proporção de jovens nos países


ocidentais coincidiu com a "Idade da Revolução Democrática" nas duas
últimas décadas do século XVIII. No século XIX, o êxito da indus-
trialização e a emigração reduziram o impacto político das populações
jovens das sociedades européias. Contudo, a proporção de jovens subiu
de novo na década de 20, provendo recrutas para o fascismo e outros
movimentos extremistas. 36 Quatro décadas depois, a geração do surto de
bebês após a II Guerra Mundial deixou sua marca, do ponto de vista
político, nas manifestações de rua e protestos dos anos 60.
A juventude do Islã está deixando sua marca no Ressurgimento
Islâmico. Quando o Ressurgimento se iniciou, nos anos 70, e tomou
velocidade nos anos 80, a proporção de jovens (isto é, pessoas entre 15
e 24 anos de idade) cresceu de modo significativo nos principais países
muçulmanos e começou a ultrapassar os 20 por cento do total da
população. Em muitos países muçulmanos, o bolsão de jovens chegou
ao ápice nas décadas de 70 e 80 e, em outros, irá atingir seu ápice no
início do próximo século (ver Quadro 5.1). Os ápices atingidos ou

.....-..
i prognosticados em todos esses países estão acima de 20 por cento, com
uma única exceção. O ápice prognosticado para a Arábia Saudita na
primeira década do século XXI fica pouco aquém desse nível.
Esses jovens fornecem os recrutas para as organizações e os
movimentos políticos fundamentalistas islâmicos. Talvez não seja intei-
ramente por coincidência que a proporção de jovens na população
iraniana subiu de forma espetacular nos anos 70, atingindo 20 por cento
i
na última metade daquela década, e que a Revolução Iraniana ocorreu
1 em 1979, ou que essa proporção foi atingida na Argélia no início dos
anos 90, justamente quando a FIS fundamentalista islâmica estava
conquistando o apoio popular e logrando vitórias eleitorais.
Também ocorrem algumas variações regionais no bolsão de jovens,
que podem ter algum significado (ver Figura 5.3). Embora esses dados
tenham que ser tratados com cautela, as projeções sugerem que as
proporções de jovens bósnios e albaneses vão declinar de forma abrupta
na virada do século, o que poderia facilitar a paz com a antiga Iugoslávia
ou encorajar mais violências sérvias e croatas contra os muçulmanos. o
bolsão de jovens irá, por outro lado, permanecer grande nos Estados do
Golfo. Em 1988, o príncipe herdeiro Abdullah, da Arábia Saudita, disse
que a maior ameaça para o seu país era o crescimento do fun-
damentalismo islâmico entre a juventude.37 Segundo essas projeções,
essa ameaça persistirá até bem adiante no século XXI.

QUADRO 5.1
BOLSÃO DE JOVENS NOS PAÍSES ISLÃMICOS
1970 1980 1990 2000 2010
Bahrein Azerbaijão Bangladesh Arábia Saudita Afeganistão
Bósnia Quirguízia Indonésia Kuwait Líbia
Casaquistão Tadjiquistão Iraque Tadjiquistão Omã
EAU Turcomenistão Jordânia Turcomenistão Quirguízia
Egito Malásia Marrocos Egito Malásia
Irã Paquistão Argélia Irã Paquistão
Turquia Sudão Síria
lêmen lêmen
Albânia Jordânia
Siria Iraque
Tunísia
Décadas nas quais o número de jovens de 15 a 24 anos de idade chegou ou deve chegar ao ápice em relação
ao total da população.

Fonte: Ver Figura 5.2.

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FIGUAAS.3
Boi.SÕES DE JOVENS MUÇULMANOS POR REGIÃO
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1965 1970
Bálcãs
Ásia Central
1980 1990

- -+ - Oriente Médio
2000
Países do Golfo --• - Norte da África
2010
- <>- • Sudeste Asiático
--.- - Ásia Meridional
2020 2025

Fonte: Nações Unidas, Divisão de População, Departamento de Informação Econômica e Social e Análise de
Políticas, Wor1d Population Prospects, The 1994 Revision [Perspectivas para a População Mundial, A Revisão de
'
1994] (Nova York: Nações Unidas, 1995); Nações Unidas, Divisão de População, Departamento de Informação
Econômica e Social e Análise de Políticas, Sex and Age Distribution ofthe World Populations, The 1994 Revision
[Distribuição das Populações do Mundo por Sexo e Idade, a Revisão de 1994] (Nova York: Nações Unidas, 1994).

As taxas de crescimento populacional natural nos principais países


muçulmanos (Argélia, Egito, Marrocos, Síria, Tunísia) chegaram ao ápice
entre 1970 e 1990 e, por conseguinte, a quantidade de pessoas no começo
da faixa dos 20 anos de idade à procura de emprego irá se expandir até
2010. Por comparação com 1990, os que ingressam no mercado de
trabalho aumeritarão em 30 por cento na Tunísia, em cerca de 50 por
cento na Argélia, Egito e Marrocos e em mais de 100 por cento na Síria.
A rápida expansão da alfabetização nas sociedades árabes também cria
um hiato entre a geração mais moça alfabetizada e uma geração mais
velha em grande parte analfabeta e, desse modo, produz "uma dis-
sociação entre conhecimento e poder" capaz de "gerar pressão sobre o
sistema político". 38
Populações maiores necessitam de mais recursos e, por conseguin-
te, as pessoas em sociedades com populações densas ou em rápido
crescimento tendem a um movimento centrífugo, a ocupar territórios e
a exercer pressão sobre outros povos menos dinâmicos demograficamen-
te. Desse modo, o crescimento populacional islâmico é um importante
fator, que contribui para os conflitos ao longo das fronteiras do mundo
islâmico, entre muçulmanos e outros povos. A pressão populacional,
combinada com a estagnação econômica, promove a migração muçul-
mana para a sociedade ocidental e outras sociedades não-ocidentais,
elevando a imigração à condição de um problema nas mesmas. A
justaposição de um povo em rápido crescimento de uma cultura e um
povo crescendo pouco ou estagnado de outra cultura gera pressões por
ajustes econômicos e/ou políticos em ambas as sociedades. Nos anos 70,
por exemplo, o equilíbrio demográfico na ex-União Soviética alterou-se
de forma espetacular com os muçulmanos aumentando em 24 por cento, ,
enquanto os russos aumentaram em 6,5 por cento, o que causou grande
preocupação nos dirigentes comunistas centro-asiáticos, e o aumento de
26 por cento dos chechenos durante a década de 80 não facilitou seu
relacionamento com os russos.39 De forma análoga, o rápido crescimento
da quantidade de albaneses não tranqüiliza os sérvios, gregos ou
italianos. Os israelenses estão preocupados com as altas taxas de
crescimento dos palestinos. A Espanha, com uma população que cresce
a menos de um quinto de um por cento ao ano, está inquieta ao se ver
confrontada pelos vizinhos do Maghreb, com populações que estão
crescendo mais de 10 vezes mais rápido e com PNBs per capita crescendo
a apenas um décimo da taxa de aumento do PNB espanhol.

DESAFIOS EM MUTAÇÃO

Nenhuma sociedade pode manter indefinidamente um crescimento


econômico de dois dígitos, e o surto econômico asiá.tico irá se estabilizar
em algum momento no começo do século XXI. As taxas de crescimento
econômico japonês caíram substancialmente em meados dos anos 70 e,
daí por diante, não foram significativamente mais elevadas do que as dos
Estados Unidos e países europeus. Um por um, os Estados asiáticos com
"milagres econômicos" verão suas taxas de crescimento declinarem e se
aproximarem dos níveis "normais" mantidos em economias complexas.
Analogamente, nenhuma revitalização religiosa ou movimento cultural
dura indefinidamente e, em algum momento, o Ressurgimento Islâmico
irá diminuir e desaparecer na História. A maior probabilidade é a de que
isso aconteça quando o impulso demográfico que o está movendo se
enfraquecer na segunda e terceira décadas do século XXI. Nessa ocasião,
as fileiras de militantes, guerreiros e migrantes diminuirão e os altos níveis
de conflito no seio do Islã e entre muçulmanos e outros povos (ver
Capítulo 10) provavelmente declinarão. O relacionamento entre o Islã e
o Ocidente não se estreitará, mas ficará menos conflituoso, e uma situação
de quase guerra (ver Capítulo 9) provavelmente cederá lugar a uma
guerra fria ou, talvez, a uma paz fria.
Entretanto, durante as próximas décadas, o crescimento econômico
asiático e a pressão populacional muçulmana terão efeitos profun-
damente desestabilizadores sobre a ordem internacional existente, de
'
predomínio ocidental. O aumento mais significativo de recursos de poder
e de influência nas questões mundiais irá para as sociedades asiático-
orientais, que estão passando por um rápido crescimento econômico. Se
isso continuar por cerca de mais outra década, o desenvolvimento da
China produzirá uma alteração imensa do poder entre as civilizações.
Além disso, nessa ocasião a Índia poderia estar em meio a um rápido
desenvolvimento econômico e emergindo como um ator principal no
cenário mundial. Enquanto isso, o crescimento populacional muçulmano
também terá efeitos desestabilizadores significativos sobre o equilíbrio
de poder mundial. As grandes quantidades de jovens com educação
secundária continuarão a impelir o Ressurgimento Islâmico e a promover
maior militância, militarismo e migração muçulmanos. Como resultado,
as décadas vindouras verão o continuado ressurgimento de poder e
cultura não-ocidentais e o choque de povos de civilizações não-ociden-
tais com o Ocidente e entre si.
III

'
A ÜRDEM EMERGENTE
DAS CIVILIZAÇÕES
1
"'

J
.. ~

CAPÍTULO 6

A Reconfiguração Cultural
da Política Mundial

EM BUSCA DE AGRUPAMENTOS: A POLÍTICA DA IDENTIFICAÇÃO

sporeada pela modernização, a política mundial está sendo recon-

E figurada segundo linhas culturais. Os povos e os países com cul-


turas parecidas estão se juntando. Os povos e países com culturas
diferentes estão se afastando. Os alinhamentos definidos pela ideologia
e pelos relacionamentos de superpotências estão dando lugar aos
alinhamentos definidos pela cultura e pela civilização. As fronteiras

1 políticas estão cada vez mais sendo redesenhadas para coincidir com as
fronteiras culturais: étnicas, religiosas e civilizacionais. As comunidades
culturais estão substituindo os blocos da Guerra Fria, e as linhas de fratura
entre as civilizações estão se tornando as linhas fundamentais de conflito
na política mundial.
Durante a Guerra Fria, um país podia ser não-alinhado, como
muitos eram, ou, como faziam alguns, podia mudar seu alinhamento de
um lado para outro. Os dirigentes de um país podiam fazer essas opções
em função das suas percepções dos seus interesses de segurança, suas
avaliações do equilíbrio de poder e suas preferências ideológicas. No
mundo novo, entretanto, a identidade cultural é o fator essencial para
moldar as associações e os antagonismos de um país. Enquanto que um
país podia evitar se alinhar no contexto da Guerra Fria, ele não pode
prescindir de identidade. A pergunta "De que lado você está?" foi
substituída pela pergunta muito mais fundamental "Quem você é?". Todos
os Estados precisam ter uma resposta para essa pergunta. A resposta -
sua identidade cultural - define o lugar desse Estado na política mundial,
seus amigos e seus inimigos.
Os anos 90 viram a erupção de uma crise mundial de identidade.
Praticamente, para onde quer que se olhe, depara-se com as pessoas se
perguntando "Quem somos?", "Qual o nosso lugar?" e "Quem não é como
nós?". Essas indagações são essenciais não apenas para os povos que
estão tentando forjar novos Estados-nações, como na antiga Iugoslávia,
mas também de forma muito mais genérica. Em meados dos anos 90, os
países nos quais as questões referentes à identidade nacional eram
debatidas de forma ativa incluíam, entre outros, os seguintes: Argélia,
Canadá, China, Alemanha, Grã-Bretanha, Índia, Irã, Japão, México,
Marrocos, Rússia, África do Sul, Síria, Tunísia, Turquia, Ucrânia e Estados
Unidos. As questões de identidade são, é claro, particularmente impor-
tantes em países fendidos, que contam com grupos consideráveis de
pessoas de civilizações diferentes.
Ao lidar com uma crise de identidade, o que conta para as pessoas
é sangue e crença, fé e família. As pessoas se congregam com as que
têm semelhanças de ascendência, religião, idioma, valores e instituições,
e se distanciam daquelas com diferenças nesses aspectos. Na Europa, a
Áustria, a Finlândia e a Suécia, culturalmente parte do Ocidente, tiveram
que se manter divorciadas do Ocidente e neutras durante a Guerra Fria
'
e atualmente estão em condições de se juntar a seus semelhantes culturais
na União Européia. Os países católicos e protestantes do antigo Pacto de
Varsóvia - Polônia, Hungria, República Checa e Eslováquia - estão se
encaminhando para ingressarem na União Européia e na OTAN, e os
Estados bálticos estão entrando na fila atrás deles. As potências européias
deixam claro que não querem um Estado muçulmano, a Turquia, na
União Européia, e não vêem com agrado a existência de um segundo
Estado muçulmano, a Bósnia, no continente europeu. Ao norte, o fim da
União Soviética estimulou o surgimento de novos (e antigos) padrões de
associação entre as repúblicas do Báltico e também entre estas, a Suécia
e a Finlândia. O primeiro-ministro sueco recordou expressamente à
Rússia que as repúblicas do Báltico fazem parte do "exterior próximo"
da Suécia e que esta não poderia permanecer neutra na eventualidade
de uma agressão russa contra elas.
Nos Bálcãs, ocorrem realinhamentos semelhantes. Durante a Guerra
Fria, a Grécia e a Turquia pertenciam à OTAN, a Bulgária e a Romênia

1CÀ
pertenciam ao Pacto de Varsóvia, a Iugoslávia era não-alinhada e a
Albânia era um país isolado em algum momento associado à China
comunista. Atualmente, esses alinhamentos da época da Guerra Fria estão
cedendo lugar a alinhamentos civilizacionais baseados no Islamismo e
na Ortodoxia. Os líderes balcânicos falam de concretizar uma aliança
ortodoxa greco-sérvio-búlgara. O primeiro-ministro grego alega que as
"guerras balcânicas (. .. ) trouxeram à tona a reverberação dos laços
ortodoxos.(. .. ) isso constitui um vínculo. Ele estava latente, porém, com
os acontecimentos nos Bálcãs, está assumindo substância concreta. Num
mundo muito fluido, as pessoas estão em busca de identidade e de
segurança. As pessoas estão procurando raízes e ligações para se
defenderem do desconhecido". Essas opiniões são repetidas pelo líder
do principal partido de oposição na Sérvia: "A situação no sudeste
europeu logo exigirá a formação de uma nova aliança balcânica de países
ortodoxos, inclusive a Sérvia, a Bulgária e a Grécia, a fim de resistir aos
avanços do Islã." Olhando para o norte, a Sérvia e a Romênia ortodoxas
cooperam intimamente com a Hungria católica. Com o desaparecimento
da ameaça soviética, a aliança "antinatural" entre Grécia e Turquia fica
sem sentido, à medida que se intensificam os conflitos entre elas por
causa do Mar Egeu, de Chipre, do seu equilíbrio militar, seus papéis na
OTAN e na União Européia, e seus respectivos relacionamentos com os
Estados Unidos. A Turquia reafirma seu papel de protetora dos muçul-
manos balcânicos e proporciona apoio à Bósnia. Na antiga Iugoslávia, a
Rússia apóia a Sérvia ortodoxa, a Alemanha promove a Croácia católica,
os países muçulmanos acorrem em apoio do governo da Bósnia e os
sérvios combatem os croatas, os muçulmanos bósnios e os muçulmanos
albaneses. De modo generalizado, os Bálcãs voltaram a ficar balcanizados
segundo linhas religiosas. Como assinalou Misha Glenny, "estão surgindo
dois eixos, um envergando o traje da ortodoxia oriental e o outro coberto
com as vestes islâmicas", e existe a possibilidade de "uma luta cada vez
maior por influência entre o eixo Belgrado-Atenas e a aliança Albânia-
Turquia" .1
Enquanto isso, na antiga União Soviética, a Bielo-Rússia, a Moldova
e a Ucrânia ortodoxas gravitam em direção à Rússia, e os armênios e azeris
lutam entre si enquanto seus parentes russos e turcos tentam, ao mesmo
tempo, apoiá-los e conter o conflito. O exército russo luta contra fun-
damentalistas muçulmanos no Tadjiquistão e nacionalistas muçulmanos na
Chechênia. As ex-repúblicas soviéticas muçulmanas trabalham para desen-
volver e expandir seus laços com seus vizinhos muçulmanos, enquanto

1 'i'i
--~

Turquia, Irã e Arábia Saudita dedicam grande esforço para cultivar as


relações com esses novos Estados. No Subcontinente, permanece o
desentendimento entre a Índia e o Paquistão por causa de Caxemira e
da relação de poder militar entre os dois países. Além disso, os combates
em Caxemira se intensificam e surgem novos conflitos entre os fun-
damentalistas muçulmanos e os hindus.
Na Ásia Oriental, onde vivem povos de seis civilizações diferentes,
o rearmamento está ganhando impulso e as disputas territoriais estão
surgindo. As três Chinas menores e as comunidades chinesas nos países
do Sudeste Asiático estão ficando cada vez mais orientadas para a China
continental, envolvidas com ela e dela dependentes. As duas Coréias se
movem de forma titubeante, porém significativa, no rumo da unificação.
As relações nos Estados do Sudeste Asiático entre os muçulmanos, de
um lado, e os chineses e cristãos, do outro, se tornam cada vez mais
tensas e, às vezes, ficam violentas.
Na América Latina, as associações econômicas - Mercosul, o Pacto
Andino, o pacto tripartite (México, Colômbia e Venezuela), o Mercado
Comum Centro-americano - estão tendo uma nova vitalidade, reafir-
mando a tese, demonstrada de forma mais nítida pela União Européia, de
que a integração econômica caminha mais depressa e vai mais longe quando
está baseada em aspectos culturais em comum. Ao mesmo tempo, os Estados
Unidos e o Canadá tentam absorver o México no NAFTA (Acordo Norte-
americano de Livre Comércio) num processo cujo êxito a longo prazo
depende essencialmente da capacidade do México de se redefinir
culturalmente de latino-americano pa,ra norte-americano.
Com o fim do ordenamento da Guerra Fria, os países pelo mundo
afora estão assim desenvolvendo novos antagonismos e filiações e
revigorando os antigos. Estão em busca de agrupamentos e os estão
encontrando com países de culturas parecidas e da mesma civilização.
Os políticos invocam comunidades culturais "grandes" - com as quais
as pessoas se identificam - , que transcendem as fronteiras dos Estados-
nações, dentre as quais estão a "Grande Sérvia", a "Grande China", a
"Grande Turquia", a "Grande Hungria", a "Grande Croácia", o "Grande
Azerbaijão", a "Grande Rússia", a "Grande Albânia'', o "Grande Irã" e o
"Grande Uzbequistão".
Irão os alinhamentos políticos e econômicos coincidir sempre com
os culturais e civilizacionais? É claro que não. Considerações relativas ao
equilíbrio de poder levarão, algumas vezes, a alianças que cortarão as
fronteiras civilizacionais, como aconteceu quando Francisco I se juntou

156
aos otomanos contra os Habsburgos. Além disso, padrões de associação
formados para atender aos propósitos de Estados numa era persistirão
na era seguinte. Entretanto, eles têm a probabilidade de se tornarem mais
fracos e terem menos sentido, sendo então adaptados para atender os
propósitos da nova era. A Grécia e a Turquia continuarão, sem dúvida
alguma, como membros da OTAN, porém seus vínculos com outros
membros da OTAN provavelmente irão se atenuar. O mesmo acontecerá
com as alianças dos Estados Unidos com o Japão e com a Coréia do Sul,
sua aliança defacto com Israel e seus laços de segurança com o Paquistão.
Organizações internacionais multicivilizacionais, como a ASEAN, podem
defrontar-se com dificuldade crescente para manter sua coerência. Países
como a Índia e o Paquistão, que eram parceiros de diferentes superpo-
tências durante a Guerra Fria, agora redefinem seus interesses e procuram
novas associações que reflitam as realidades da política cultural. Os países
africanos que dependiam do apoio ocidental, configurado para se
contrapor à influência soviética, olham agora cada vez mais para a África
do Sul em busca de liderança e ajuda.
Por que devem os aspectos culturais em comum facilitar a coope-
ração e a coesão entre os povos e devem as diferenças culturais promover
fissuras e conflitos?
Em primeiro lugar, todos têm identidades múltiplas que podem
competir umas com as outras e reforçar umas em relação às outras:
identificações por parentesco, ocupação, cultura, instituição, território,
educação, partidarismo, ideologia, entre outras. Identificações em função
de uma dimensão podem se chocar com as relativas a outra dimensão.
Um caso clássico é o dos trabalhadores alemães em 1914, que tiveram
que escolher entre a identificação de classe com o proletariado interna-
cional e sua identificação nacional com o povo e o império alemães. No
mundo contemporâneo, a identificação por cultura está aumentando de
importância de forma espetacular em comparação com outras dimensões
de identificação.
No contexto de qualquer dimensão isolada, a identificação geral-
mente tem mais significação no nível imediato de pessoa para pessoa.
Entretanto, identificações mais estreitas não entram necessariamente em
conflito com identificações mais amplas. Um oficial pode se identificar,
em termos institucionais, com sua companhia, regimento, divisão e força.
Analogamente, uma pessoa pode se identificar culturalmente com seu
clã, grupo étnico, nacionalidade, religião e civilização. A maior proemi-
nência da identificação cultural nos níveis inferiores bem pode reforçar

157
sua proeminência em níveis superiores. Como sugeriu Burke, "o amor
pelo todo não se extingue por essa simpatia subordinada. (. . .) Sentir-se
ligado à subdivisão, amar o pequeno pelotão a que pertencemos na
sociedade, é o primeiro princípio (a semente, por assim dizer) das afeições
das pessoas". Num mundo em que a cultura conta, os pelotões são as tribos
e os grupos étnicos, os regimentos são as nações e os exércitos são as
civilizações. O grau maior com que as pessoas, pelo mundo afora, se
diferenciam entre si segundo linhas culturais significa que os conflitos entre
os grupos culturais são cada vez mais importantes. As civilizações são as
entidades culturais mais amplas e, por conseguinte, os conflitos entre os grupos
de diferentes civilizações se tomam fundamentais para a política mundial.
Em segundo lugar, como se expõe nos Capítulos 3 e 4, a maior
proeminência da identificação pela cultura é, em grande parte, resultado
da modernização sócio-econômica tanto no nível individual, no qual o
transtorno e a alienação criam a necessidade de identificações mais
significativas, como no nível societário, no qual a maior capacidade e o
maior poder das sociedades não-ocidentais estimulam a revitalização das
identidades e cultura autóctones. O surgimento simultâneo de movimen-
tos "fundamentalistas" em praticamente todas as religiões principais é
uma manifestação desse desdobramento, e la revanche de Dieu não está
restrita aos grupos fundamentalistas.
Em terceiro lugar, a identificação em qualquer nível - pessoal,
tribal, racial, civilizacional - só pode ser definida em relação a uma "outra"
- uma pessoa, tribo, raça ou civilização diferente. Historicamente, as
relações entre Estados ou outras entidades de uma mesma civilização
diferem das relações entre Estados ou outras entidades de civilizações
diferentes. Códigos separados governam o comportamento para com
aqueles que são "como nós" e os "bárbaros", que não são. As regras das
nações da Cristandade para lidarem umas com as outras eram diferentes
daquelas para lidarem com os turcos e outros "pagãos". Os muçulmanos
agiam de forma diferente para com os do Dar al-Islam e os do Dar al-harb.
Os chineses tratavam os estrangeiros chineses e os estrangeiros não-chineses
de maneira diferente. O "nós" civilizacional e o "eles" extracivilizacional
é uma constante na História da Humanidade. Essas diferenças de
comportamento intracivilizacional e extracivilizacional provêm de:

1. sentimentos de superioridade (e, ocasionalmente, de inferiorida-


de) em relação às pessoas que são percebidas como sendo muito
diferentes;

158
j
2. receio de tais pessoas e falta de confiança nelas;
3. dificuldade de comunicação com elas em decorrência de diferen-
ças de idiomas e do que se considera como comportamento
educado;
4. falta de familiaridade com os pressupostos, as motivações, os
relacionamentos sociais e as práticas sociais de outras pessoas.

No mundo atual, os progressos em transportes e comunicações


produziram interações mais freqüentes, mais intensas, mais simétricas e mais
abrangentes entre pessoas de civilizações diferentes. Em conseqüência, suas
identidades civilizacionais tornam-se cada vez mais proeminentes. Os
franceses, os alemães, os belgas e os holandeses cada vez mais pensam em
si como europeus. Os muçulmanos do Oriente Médio se identificam com
os bósnios e os chechênios e acorrem em seu apoio. Os chineses em todo
o Sudeste Asiático identificam os seus interesses com os da China continen-
tal. Os russos se identificam com os sérvios e outros povos ortodoxos, e os
apóiam. Esses níveis mais amplos de identificação civilizacional significam
uma percepção mais profunda das diferenças civilizacionais e da neces-
sidade de proteger aquilo que distingue "nós" de "eles".
Em quarto lugar, as fontes de conflito entre Estados e grupos de
civilizações diferentes são, em grande medida, aquelas que sempre
geraram conflito entre grupos de pessoas: o controle de pessoas, de
território, de riqueza, de recursos naturais e de poder relativo. Poder
relativo é a capacidade que alguém tem de impor seus próprios valores,
cultura e instituições a outro grupo, comparada com a capacidade desse
grupo de fazer a mesma coisa no sentido inverso. Entretanto, o conflito
entre grupos culturais pode também envolver questões culturais. As
diferenças em termos de ideologia secular entre o marxismo-leninismo
e a democracia liberal podem pelo menos ser debatidas, ainda que não
resolvidas. As diferenças em termos de interesses materiais podem ser
negociadas e muitas vezes acertadas por meio de uma acomodação de
uma maneira que não é possível nas questões culturais. É improvável
que hindus e muçulmanos resolvam a questão sobre se deve ser
construído um templo ou uma mesquita em Ayodhya edificando ambos,
nenhum dos dois ou um prédio sincrético que servisse de mesquita e de
templo. Nem tampouco pode ser resolvida com facilidade o que poderia
parecer uma questão territorial simples entre muçulmanos albaneses e
sérvios ortodoxos a respeito de Kosovo, ou entre judeus e áraoes a
respeito de Jerusalém, porque cada um desses lugares tem um profundo

159
significado histórico, cultural e emocional para ambos os povos em cada
uma dessas questões. Analogamente, não é provável que ou as autori-
dades francesas ou os pais muçulmanos aceitem uma fórmula de acomo-
dação que permitiria que as meninas usassem vestimentas muçulmanas dia
sim e outro não para ir às aulas. Questões culturais como essas envolvem
uma escolha entre sim e não, uma opção entre extremos opostos.
Em quinto e último lugar, está a ubiqüidade do conflito. Odiar é
humano. Para sua autodefinição e motivação, as pessoas precisam de
inimigos: concorrentes nos negócios, rivais nas realizações, adversários
na política. Elas naturalmente desconfiam daqueles que são diferentes e
que têm a capacidade de lhes causar prejuízo e as vêem como ameaças.
A resolução de um conflito e o desaparecimento de um inimigo geram
forças pessoais, sociais e políticas que fazem surgir outros. Como disse
Ali Mazrui, "a tendência do 'nós' contra 'eles' é, na arena política, quase
universal". 2 No mundo contemporâneo, o "eles" tem uma probabilidade
cada vez maior de se referir a pessoas de uma civilização diferente. O
fim da Guerra Fria não acabou com os conflitos, fez surgirem novas
identificações enraizadas na cultura e novos padrões de conflitos entre
grupos de culturas diferentes que, em seu nível mais amplo, são
civilizações. Simultaneamente, a cultura em comum também estimula a
cooperação entre Estados e grupos que compartilham dessa cultura,
como pode ser visto nos padrões que estão surgindo de associação
regional entre países, especialmente no campo econômico.

A CULTURA E A COOPERAÇÃO ECONÔMICA

No início dos anos 90, muito se ouviu falar de regionalismo e de


regionalização da política mundial. Os conflitos regionais substituíram o
conflito global na agenda de segurança do mundo. As grandes potências,
como a Rússia, a China e os Estados Unidos, bem como as potências
secundárias, como a Suécia e a Turquia, redefiniram seus interesses de
segurança em termos explicitamente regionais. O comércio internacional
dentro das regiões se expandiu mais depressa do que o comércio
internacional entre as regiões, e muitos predisseram o surgimento de
blocos econômicos regionais - europeu, norte-americano, asiático-
oriental e talvez outros.
O termo "regionalismo", entretanto, não descreve de modo adequa-
do o que está acontecendo. As regiões são entidades geográficas, não
políticas ou culturais. Como ocorre nos Bálcãs ou no Oriente Médio, elas

160
podem ser rachadas por conflitos intercivilizacionais e intracivilizacionais.
As regiões são a base para a cooperação entre os Estados, unicamente
na medida em que a geografia coincida com a cultura. Divorciada da cultura,
a propinqüidade não gera por si só aspectos em comum e pode mesmo
induzir exatamente o oposto. As alianças militares e as associações econô-
micas requerem a cooperação entre os seus membros, a cooperação
depende da confiança e a confiança brota mais facilmente de valores e
cultura em comum. Em conseqüência, embora o tempo de existência e
a finalidade também tenham relevância, a eficácia total das organizações
regionais em geral varia na proporção inversa da diversidade civilizacio-
nal de seus membros. De forma generalizada, as organizações de uma
só civilização fazem e conseguem mais coisas do que as organizações
multicivilizacionais. Isso se aplica tanto a organizações políticas e de
segurança, de um lado, como a organizações econômicas, de outro.
O êxito da OTAN resultou em grande parte do fato de ela ser a
organização de segurança fundamental de países ocidentais com valores
e pressupostos filosóficos em comum. A União Européia Ocidental é o
produto de uma cultura européia comum. A Organização para a Segu-
rança e a Cooperação na Europa, por outro lado, inclui países de pelo
menos três civilizações, com valores e interesses bastante diferentes, o
que cria grandes obstáculos a que ela desenvolva uma identidade
institucional importante e uma vasta gama de atividades importantes. A
Comunidade do Caribe (Caricom), de uma única civilização, composta
de 13 ex-colônias britânicas anglófonas, criou grande variedade de
arranjos de cooperação, com uma cooperação mais intensa entre alguns
subgrupos. Entretanto, as tentativas de criação de organizações caribe-
nhas mais amplas, passando por cima da linha de fratura anglo-hispânica
no Caribe, fracassaram de modo sistemático. Analogamente, a Associação
para a Cooperação Regional da Ásia Meridional, formada em 1985 e
abrangendo sete Estados hindus, muçulmanos e budistas, foi quase
inteiramente ineficiente, chegando mesmo ao ponto de não conseguir
realizar reuniões.3
A relação da cultura com o regionalismo fica mais evidente no
contexto da integração econômica. Partindo da menor para a maior
integração, reconhecem-se quatro níveis de associação econômica entre
países:

1. área de livre comércio


2. união aduaneira

1/;;1
3. mercado comum
4. união econômica
A União Européia foi a que avançou mais longe pela estrada da
integração, com um mercado comum e muitos dos elementos de uma
união econômica. Os países relativamente homogêneos do Mercosul e
do Pacto Andino estavam, em 1994, em vias de estabelecer uma união
aduaneira. Na Ásia, a ASEAN, multicivilizacional, só começou a se mover
na direção de desenvolver uma área de livre comércio em 1992. Outras
organizações econômicas multicivilizacionais ficaram ainda mais para
trás. Em 1995, com a exceção marginal da NAFTA, nenhuma organização
desse tipo havia criado uma área de livre comércio, muito menos
qualquer forma mais ampla de integração econômica.
Na Europa Ocidental e na América Latina, os aspectos civilizacionais
em comum induzem à cooperação e à organização regional. Os europeus
ocidentais e os latino-americanos sabem que têm muito em comum. Na
Ásia Oriental, há cinco civilizações (seis se for incluída a Rússia).
Conseqüentemente, a Ásia Oriental constitui o caso-teste para o desen-
volvimento de organizações efetivas que não estejam baseadas em
civilização em comum. Ao se chegar ao começo dos anos 90, não havia
na Ásia Oriental nenhuma organização de segurança ou aliança militar
multilateral comparável à OTAN. Uma organização regional multicivili-
zacional, a ASEAN, foi criada em 1967, com um Estado sínico, dois
muçulmanos, um budista e um cristão, todos eles confrontados por ativos
desafios de subversão comunista e de desafios em potencial por parte
do Vietnã do Norte e da China.
A ASEAN é mencionada freqüentemente como um exemplo de uma
organização multicivilizacional eficaz. Contudo, ela é um exemplo dos
limites de uma organização desse tipo. Ela não é uma aliança militar.
Conquanto seus membros às vezes cooperem numa base bilateral, eles
também estão expandindo seus orçamentos militares e estão engajados
em programas de rearmamento, num contraste flagrante com as reduções
que estão fazendo os países europeus ocidentais e latino-americanos. Na
frente econômica, a ASEAN foi desde o início projetada para conseguir
"a cooperação econômica mais do que a integração econômica"; em
conseqüência, o regionalismo se desenvolveu em um "ritmo modesto" e
até mesmo uma área de livre comércio não está contemplada antes do
século XXI.4 Em 1978, a ASEAN criou as Conferências Pós-ministeriais,
nas quais os seus ministros do Exterior se encontram com os dos

162
"Parceiros do Diálogo": Estados Unidos, Japão, Canadá, Austrália, Nova
Zelândia, Coréia do Sul e a União Européia. Essa conferência, entretanto,
tem sido essencialmente um foro para conversações bilaterais e não foi
capaz de lidar com "quaisquer questões de segurança importantes".5 Em
1993, a ASEAN gerou uma arena ainda maior, o Fórum Regional da ASEAN,
que inclui os seus membros e os parceiros de diálogo, e mais Rússia, China,
Vietnã, Laos e Papua Nova Guiné. Contudo, como seu nome indica, esse
órgão é um local para conversas coletivas, não para ação coletiva. Os
membros usaram sua primeira reunião, em julho de 1994, para "ventilar
suas opiniões sobre questões regionais de segurança", porém foram
evitadas questões controvertidas porque, como comentou um funcioná-
rio, se elas fossem suscitadas, "os participantes envolvidos começariam a
se atacar mutuamente". 6 A ASEAN e seus filhotes demonstram as limitações
inerentes às organizações regionais multicivilizacionais.
Só surgirão organizações regionais de peso na Ásia Oriental se
houver aspectos culturais comuns asiático-orientais suficientes para
sustentá-las. As sociedades asiático-orientais sem dúvida compartilham
de algumas coisas em comum, que as diferenciam do Ocidente. O
primeiro-ministro da Malásia, Mahatir Mohammad, afirma que esses
aspectos culturais em comum proporcionam uma base para associação e,
fundamentando-se nela, promoveu a formação do Foro Econômico Asiáti-
co-oriental [East Asian Economic Caucus - EAEC]. Ele incluiria os países
da ASEAN, Myanmar, Taiwan., Hong Kong, Coréia do Sul e, o que é mais
importante, a China e o Japão. Mahatir sustenta que o EAEC está baseado
numa cultura comum. Ele deve ser considerado "não apenas como um
grupo geográfico, porque está na Ásia Oriental, mas também como um grupo
cultural. Embora os asiático-orientais possam ser japoneses, coreanos ou
indonésios, eles têm certas semelhanças do ponto de vista cultural. (. .. )Os
europeus tendem a se congregar e os norte-americanos tendem a se congregar.
Nós, asiáticos, também deveríamos nos congregar". Segundo disse um dos
correligionários de Mahatir, o objetivo do EAEC é aumentar "o comércio
internacional entre países que têm aspectos em comum aqui na Ásia".7
A premissa subjacente do EAEC é, portanto, a de que a economia
segue a cultura. A Austrália, a Nova Zelândia e os Estados Unidos estão
excluídos do EAEC porque, culturalmente, eles não são asiáticos. Entre-
tanto, o êxito do EAEC depende sobretudo da participação do Japão e
da China. Mahatir implorou aos japoneses que ingressassem na organi-
zação. Dirigindo-se a uma platéia japonesa, assinalou que "O Japão é
asiático. O Japão pertence à Ásia Oriental. Vocês não podem desviar-se

163
desse fato geocultural. O seu lugar é aqui". 8 Mas o governo japonês
relutou em entrar para o EAEC, em parte por receio de irritar os Estados
Unidos e em parte porque estava dividido quanto a se o Japão devia se
identificar com a Ásia. Se o Japão ingressar no EAEC, irá dominá-lo, o
ue provavelmente causará receios e incertezas entre seus membros, bem
q h. D , .
como intenso antagonismo por parte da C ma. urante vanos a~os,
muito se falou sobre a criação pelo Japão de um "bloco do iene" na Asia
a fim de contrabalançar a União Européia e o NAFTA. O Japão, contudo,
é um país solitário, com poucas ligações culturais com seus vizinhos e,
ao se chegar a 1995, não se havia concretizado nenhum bloco do iene.
Apesar de a ASEAN evoluir lentamente, o bloco do iene contin_uar
sendo um sonho e o EAEC não decolar, a interação econômica na Asia
Oriental se intensificou de forma espetacular. Essa expansão deu origem
a uma "ininterrupta integração informal" de uma economia internacional
de base chinesa, em muitos aspectos comparável à Liga Hanseática e
"talvez conduzindo a um mercado comum chinês de facto" 9 (ver PP·
210-218). Na Ásia Oriental, como em outras áreas, os aspectos culturais
em comum foram o pré-requisito para uma integração econômica
significativa.
O fim da Guerra Fria estimulou esforços para a criação de novas
organizações econômicas regionais e a revitalização de outras dessas
organizações. O êxito desses esforços dependeu sobretudo da homogenei-
dade cultural dos Estados envolvidos. O plano de Shimon Peres, em 1994,
de um mercado comum do Oriente Médio, provavelmente continuará sendo
uma "miragem do deserto" ainda por algum tempo. Um funcionário árabe
comentou que "o mundo árabe não tem necessidade alguma de uma
instituição ou de um banco de desenvolvimento do qual Israel partici-
pe" .10 A Associação dos Estados Caribenhos, criada em 1994 para vincular
o Caricom ao Haiti e aos países de língua espanhola da região, mostra
poucos sinais de estar superando as diferenças lingüísticas e culturais de
seus membros diversos e a insularidade das ex-colônias britânicas, com sua
predominante orientação na direção dos Estados Unidos. 11
Por outro lado, esforços que envolvem organizações culturalmente
mais homogêneas estão progredindo. Embora divididos segundo linhas
subcivilizacionais, o Paquistão, o Irã e a Turquia reavivaram em 1985 a
moribunda Cooperação Regional para o Desenvolvimento, que tinham
criado em 1977, redesignando-a Organização de Cooperação Econômica.
Posteriormente lograram-se acordos sobre reduções tarifárias e uma
variedade de outras providências. Em 1992, a participação na OCE foi

164
expandida para incorporar o Afeganistão e as seis ex-repúblicas soviéticas
muçulmanas. Enquanto isso, em 1991, as cinco ex-repúblicas soviéticas
da Ásia Central acordaram em princípio criar um mercado comum e, em
1994, os dois maiores desses países - o Uzbequistão e o Casaquistão
- assinaram um acordo para permitir "a livre circulação de bens, serviços
e capitais" e para coordenar suas políticas fiscais, monetárias e aduanei-
ras. Em 1991, o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai se uniram no
Mercosul, com o objetivo de saltar por cima dos estágios normais de
integração econômica e, ao se chegar a 1995, havia sido implantada uma
união aduaneira parcial. Em 1990, o até então estagnado Mercado Comum
Centro-americano implantou uma área de livre comércio e, em 1994, o antes
igualmente passivo Grupo Andino criou uma união aduaneira. Em 1992, os
países de Visegrad (Polônia, Hungria, República Checa e Eslováquia)
acordaram em estabelecer uma Área de Livre Comércio Centro-Européia e,
em 1994, aceleraram o cronograma de sua concretização. 12
A expansão do comércio internacional acompanha a integração
econômica e, durante os anos 80 e começo dos anos 90, o comércio
intra-regional se tornou cada vez mais importante em relação ao comércio
inter-regional. O comércio no âmbito da (então) Comunidade Européia
correspondia a 50,6 por cento do total do comércio internacional da
Comunidade em 1980, e aumentou para 58,9 ao se chegar a 1989. Na
América do Norte e na Ásia Oriental, ocorreram alterações análogas no
comércio regional. Na América Latina, a criação do Mercosul e a
revitalização do Pacto Andino estimularam um surto do comércio intra-
latino-americano no começo dos anos 90 e, no período de 1990 a 1993,
o comércio entre Brasil e Argentina triplicou e o comércio entre Colômbia
e Venezuela quadruplicou. Em 1994, o Brasil substituiu os Estados Unidos
como o principal parceiro comercial da Argentina. A criação do NAFTA
também foi acompanhada, de modo análogo, por um aumento signifi-
cativo do comércio entre o México e os Estados Unidos. O comércio no
âmbito da Ásia Oriental também se expandiu com maior rapidez do que
o comércio extra-regional, porém essa expansão foi prejudicada pela
tendência do Japão de manter fechados os seus mercados. Por outro
lado, o comércio entre os países da zona cultural chinesa (ASEAN,
Taiwan, Hong Kong, Coréia do Sul e China) cresceu de menos de 20 por
cento do seu total em 1970 para quase 30 por cento do total em 1992,
enquanto a parcela desse comércio correspondente ao Japão declinou
de 23 para 13 por cento. Em 1992, as exportações dos países da zona
chinesa para países de outras zonas ultrapassaram tanto suas exportações
para os Estados Unidos como a soma de suas exportações para o Japão
e a Comunidade Européia. 13
o Japão, na condição de sociedade e civilização com características
próprias, enfrenta dificuldades para desenvolver seus laços econômicos
com a Ásia Oriental e para lidar com suas divergências econômicas com
os Estados Unidos e a Europa. A despeito do vigor dos vínculos de
comércio e de investimentos que o Japão possa forjar com outros países
da Ásia Oriental, suas diferenças culturais com esses países e, em especial,
com suas elites econômicas predominantemente chinesas o impedem de
criar um agrupamento econômico regional de liderança japonesa com-
parável ao NAFTA ou à União Européia. Ao mesmo tempo, suas
diferenças culturais com o Ocidente exacerbam os mal-entendidos e os
antagonismos no seu relacionamento econômico com os Estados Unidos
e a Europa. Se, como parece ser o caso, a integração econômica depende
de aspectos culturais em comum, o Japão, na condição de país cultural-
mente isolado, poderia ter um futuro economicamente isolado.
No passado, os padrões· do comércio internacional entre as
nações acompanharam e espelharam os padrões das alianças entre
elas.14 No mundo que está surgindo, os padrões do comércio interna-
cional sofrerão de forma decisiva a influência dos padrões de cultura.
Os homens de negócios fazem transações com pessoas que eles
podem compreender e em quem podem confiar; os Estados cedem
soberania a associações internacionais compostas de Estados de
mentalidade semelhante, os quais podem compreender e nos quais
podem confiar. As raízes da cooperação econômica se encontram nos
aspectos culturais em comum.

A ESTRUTURA DAS CIVILIZAÇÕES

Durante a Guerra Fria, os países se relacionavam com as duas superpo-


tências como aliados, satélites, clientes, neutros, não-alinhados. No
mundo pós-Guerra Fria, os países se relacionam com as civilizações como
Estados-membros, Estados-núcleos, países isolados, países fendidos,
países divididos. Como as tribos e as nações, as civilizações têm estruturas
políticas. Um Estado-membro é um país que está plenamente identificado
culturalmente com uma civilização, tal como está o Egito com a civilização
arábico-islâmica e a Itália com a civilização européia ocidental. Uma
civilização também pode incluir pessoas que compartilham de sua cultura
e com ela se identificam, vivendo porém em Estados dominados por

166
membros de outra civilização. Geralmente as civilizações têm um ou mais
lugares considerados por seus membros como a principal fonte ou fontes
da cultura dessa civilização. Essas fontes estão freqüentemente localizadas
dentro do Estado-núcleo ou dos Estados-núcleos da civilização respectiva,
ou seja, seus Estados mais poderosos e culturalmente importantes.
O número e o papel dos Estados-núcleos variam de uma civilização
para outra e podem se modificar ao longo do tempo. A civilização
japonesa é virtualmente idêntica ao único Estado-núcleo. japonês. As
civilizações sínica, ortodoxa e hindu têm, cada uma, um único Estado-
núcleo amplamente predominante, outros Estados-membros e pessoas
filiadas à sua civilização vivendo em Estados dominados por pessoas de
uma civilização diferente (os chineses de ultramar, os russos do "exterior
próximo", os tâmiles de Sri Lanka). Historicamente, o Ocidente em geral
teve vários Estados-núcleos. Atualmente ele possui dois núcleos - os
Estados Unidos e um núcleo franco-germânico na Europa, com a
Grã-Bretanha sendo um centro de poder adicional vagando entre os dois.
O Islã, a América Latina e a África carecem de Estados-núcleos. Isso se
deve em parte ao imperialismo das potências ocidentais, que dividiram
entre si a África, o Oriente Médio e, em séculos anteriores e de forma
menos decisiva, a América Latina.
A inexistência de um Estado-núcleo islâmico representa um proble-
ma grande tanto para as sociedades muçulmanas como para as não-mu-
çulmanas, como se examina no Capítulo 5. Com relação à América Latina,
pode-se conceber que a Espanha poderia ter se tomado o Estado-núcleo
de uma civilização de fala hispânica ou até mesmo de uma civilização
ibérica, porém seus líderes optaram conscientemente por se tomar um
Estado-membro da civilização européia, mantendo ao mesmo tempo
vínculos culturais com suas antigas colônias. Tamanho, recursos naturais,
população, capacidade militar e econômica qualificam o Brasil para ser
o líder da América Latina e é concebível que ele possa vir a sê-lo.
Entretanto, o Brasil está para a América Latina como o Irã está para o
Islã. Embora tenha outras boas qualificações para ser um Estado-núcleo,
há diferenças subcivilizacionais (religiosas no caso do Irã e lingüísticas
no do Brasil) que tornam difícil para ele assumir esse papel. A América
Latina possui vários Estados - Brasil, México, Venezuela e Argentina -
que partilham uma liderança e competem por ela. A situação latino-ame-
ricana é também complicada pelo fato de que o México tentou se
redefinir, passando de uma identidade latino-americana para outra,
norte-americana, e o Chile e outros Estados podem segui-lo. No final, a
civilização latino-americana poderia fundir-se com uma civilização oci-
dental de três pontas, tomando-se uma subvariante dela.
A capacidade que tem qualquer Estado-núcleo em potencial de
prover uma liderança na África fica limitada pela divisão entre países
francófonos e anglófonos. Durante certo tempo, a Costa do Marfim foi o
Estado-núcleo da África francófona. Contudo, em certa medida, o
Estado-núcleo da África francesa tem sido a França, que, depois da
independência, manteve estreitas ligações econômicas, militares e polí-
ticas com suas antigas colônias. Os dois Estados africanos mais qualifi-
cados para se tomarem Estados-núcleos são, ambos, anglófonos. Tama-
nho, recursos naturais e localização fazem da Nigéria um Estado-núcleo
em potencial, porém sua desunião intercivilizacional, corrupção maciça,
instabilidade política, governos repressivos e problemas econômicos
limitaram drasticamente sua capacidade de desempenhar esse papel,
embora o tenha feito em algumas ocasiões. A transição negociada e
pacífica do apartheid da África do Sul, seu vigor industrial, seu nível mais
alto de desenvolvimento econômico comparado com os outros países
africanos, sua capacidade militar, seus recursos naturais e sua sofisticada
liderança política negra e branca, tudo isso assinala nitidamente a África
do Sul como o líder da África Meridional, como o provável líder da África
anglófona e o possível líder de toda a África subsaárica.
Um país solitário carece de aspectos culturais em comum com outras
sociedades. A Etiópia, por exemplo, é isolada culturalmente por seu
idioma predominante, o amárico, escrito com caracteres etíopes, por sua
religião predominante, a Ortodoxia Copta, por sua história imperial e por
sua diferenciação dos povos circunvizinhos, predominantemente muçul-
manos. Conquanto a elite do Haiti tenha tradicionalmente tido prazer nos
seus laços culturais com a França, o idioma crioulo, a religião Vodu, as
origens de escravos revolucionários e a história de brutalidades do Haiti
fazem dele um país solitário. Sidney Mintz assinalou que "toda nação é
singular, porém o Haiti ocupa uma categoria só sua". Como conseqüên-
cia, durante a crise haitiana de 1994, os países latino-americanos não
encararam o Haiti como um problema latino-americano e não se dis-
puseram a aceitar refugiados haitianos, embora recebessem refugiados
cubanos. Como colocou o presidente eleito do Panamá, "na América
Latina, o Haiti não é reconhecido como um país latino-americano. Os
haitianos falam uma língua diferente. Eles têm raízes étnicas diferentes,
uma cultura diferente. Eles são, de forma geral, muito diferentes". O Haiti
está igualmente separado dos países negros anglófonos do Caribe. Um

1t-;Q
comentarista observou que os haitianos parecem "exatamente tão estra-
nhos para alguém de Granada ou Jamaica como para alguém de Iowa
ou Montana". O Haiti, "o vizinho que ninguém quer ter", é verdadeira-
mente um país sem parentes.15
O país solitário mais importante é o Japão, que é também o
Estado-núcleo e único da civilização japonesa. Nenhum outro país
compartilha de sua cultura própria, e os imigrantes japoneses não são
nem numericamente significativos em outros países nem foram assimilados
pelas culturas desses países (por exemplo, os nipo-americanos). A solidão
do Japão é acentuada ainda mais pelo fato de que sua cultura é profun-
damente particularista e não envolve uma religião potencialmente universal
(Cristianismo, Islamismo) ou ideologia (liberalismo, comunismo) passível
de ser exportada para outras sociedades e assim estabelecer uma ligação
cultural com pessoas nessas sociedades.
Quase todos os países são heterogêneos pela circunstância de
incluírem dois ou mais grupos étnicos, raciais e religiosos. Muitos países
estão divididos pelo fato de que as diferenças e conflitos entre esses
grupos desempenham um papel importante na política do país. A
importância dessa divisão geralmente se modifica com o tempo. Divisões
profundas dentro de um mesmo país podem levar à ampla violência ou
a ameaçar a existência do país. Essa última ameaça e os movimentos por
autonomia ou separação são os que têm maior probabilidade de aparecer
quando as diferenças culturais coincidem com diferenças em localização
geográfica. Se a cultura e a geografia não coincidem, elas podem ser
obrigadas a coincidir quer através de genocídio quer de migração forçada.
Países que contêm agrupamentos culturais distintos e pertencem a
uma mesma civilização podem ficar profundamente divididos, com a
separação vindo a ocorrer (Checoslováquia) ou sendo uma possibilidade
(Canadá). Entretanto, as divisões profundas têm muito mais proba-
bilidade de surgir dentro de um país fendido, no qual grupos grandes
pertencem a civilizações diferentes. As divisões e tensões que lhes são
características muitas vezes se desenvolvem quando um grupo majoritá-
rio pertencente a uma civilização tenta definir o Estado como o seu
instrumento político e tornar seu idioma, religião e símbolos como sendo
os do Estado. Assim tentaram fazer os hindus, os cingaleses e os
muçulmanos na Índia, em Sri Lanka e na Malásia, respectivamente.
Os países fendidos que territorialmente ficam por cima das linhas
de fratura entre civilizações se defrontam com problemas específicos para

lfi<)
preservar sua unidade. No Sudão, a guerra civil se arrasta há décadas
entre o Norte muçulmano e o Sul predominantemente cristão. A mesma
divisão civilizacional tem perseguido a política nigeriana durante período
semelhante, estimulando uma grande guerra de secessão, além de golpes,
agitações e outros tipos de violência. Na Tanzânia, a parte continental,
onde predomina um animismo cristão, e Zanzibar, que é árabe-muçul-
mana, foram se afastando e, em muitos aspectos, tornaram-se dois países
separados, tendo Zanzibar, em 1992, se unido secretamente à Organiza-
ção da Conferência Islâmica e sido induzida pela Tanzânia a se retirar
no ano seguinte. 16 A mesma divisão cristão-muçulmana gerou tensões e
conflitos no Quênia. No chifre da África, a Etiópia, predominantemente
cristã, e a Eritréia, predominantemente muçulmana, se separaram em
1993. Entretanto a Etiópia ficou com considerável minoria muçulmana
entre o seu povo Oramo. Dentre outros países divididos por linhas de
fratura civilizacionais estão: Índia (muçulmanos e hindus), Sri Lanka
(budistas cingaleses e hindus tâmiles), Malásia e Singapura (chineses e
muçulmanos malaios), China (chineses Han, budistas tibetanos, muçulma-
nos túrquicos), Filipinas (cristãos e muçulmanos) e Indonésia (muçul-
manos e cristãos timorenses).
O efeito divisório das linhas de fratura civilizacionais foi mais
notável nos países fendidos que foram mantidos coesos durante a Guerra
Fria por regimes comunistas autoritários, legitimados pela ideologia
marxista-leninista. Com o colapso do comunismo, a cultura substituiu a
ideologia como o pólo de atração ou repulsão, e a Iugoslávia e a União
Soviética se esfacelaram e se dividiram em novas entidades agrupadas
segundo linhas civilizacionais: as repúblicas bálticas (protestantes e
católicas), ortodoxas e muçulmanas na antiga União Soviética; a Eslovênia
e a Croácia católicas, a Bósnia-Herzegovina parcialmente muçulmana e
a Sérvia-Montenegro e a Macedônia ortodoxas na antiga Iugoslávia. Nos
casos em que essas entidades sucessoras ainda abrangiam grupos
multicivilizacionais, ocorreram divisões de segunda etapa. A Bósnia-Her-
zegovina foi dividida por uma guerra entre segmentos sérvios, muçulma-
nos e croatas, e a Croácia foi partida entre sérvios e croatas. É altamente
duvidoso que se preserve a posição pacífica de Kosovo, muçulmano
albanês, dentro de uma Sérvia ortodoxa eslava. Na Macedônia, cresceram
as tensões entre a minoria de muçulmanos albaneses e a maioria ortodoxa
eslava. Muitas das ex-repúblicas soviéticas também estão sobre linhas de
fratura civilizacionais, em parte porque o governo soviético traçava os
limites visando a criar repúblicas divididas: a Criméia russa passou para

170
a Ucrânia, o Nagomo-Karabakh armênio passou para o Azerbaijão. A
Rússia possui várias minorias muçulmanas, relativamente pequenas,
principalmente no Cáucaso setentrional e na região do Volga. A Estônia,
a Letônia e o Casaquistão possuem consideráveis minorias russas,
também criadas em boa medida por diretrizes soviéticas. A Ucrânia está
dividida entre o ocidente que fala ucraniano, é uniata e nacionalista, e o
oriente que fala russo e é ortodoxo.
Num país fendido, os grupos principais de duas ou mais civiliza-
ções, na prática, dizem "nós somos povos diferentes e pertencemos a
lugares diferentes". As forças de repulsão os separam e eles gravitam na
direção dos ímãs civilizacionais de outras sociedades. Um país dividido,
ao contrário, possui uma única cultura predominante, que o coloca numa
única civilização, porém seus dirigentes decidiram mudá-lo para outra
civilização. Na realidade, eles dizem "nós somos um povo e pertencemos,
juntos, a um lugar, porém queremos mudar esse lugar". Ao contrário das
pessoas de países fendidos, as pessoas de países divididos concordam a
respeito de quem são, porém discordam quanto a qual é a civilização
que lhes é mais apropriada. É típico que uma parcela significativa dos
dirigentes abrace uma estratégia kemalista e resolva que sua sociedade
deve repudiar sua cultura e suas instituições não-ocidentais, deve juntar-
se ao Ocidente e deve modernizar-se e ocidentalizar-se. A Rússia é um
país dividido desde Pedro, o Grande, indecisa em torno da questão de
se ela é parte da civilização ocidental ou se é o núcleo de uma
civilização eurasiana ortodoxa própria. O país de Mustafá Kemal é,
evidentemente, o país dividido clássico, que, desde os anos 20, vem
tentando se modernizar, se ocidentalizar e se tornar parte do Ocidente.
Quase dois séculos depois de o México ter se definido como um país
latino-americano em oposição aos Estados Unidos, na década de 80
seus dirigentes o transformaram num país dividido ao tentar redefini-lo
como uma sociedade norte-americana. Nos anos 90, os dirigentes da
Austrália tentaram, ao contrário, desligar seu país do Ocidente e
torná-lo parte da Ásia, criando assim um país-dividido-no-sentido-in-
verso. Podem-se identificar os países divididos por dois fenômenos.
Seus dirigentes se referem a eles como uma "ponte" entre duas culturas,
e os observadores os descrevem como Janus de duas faces. "A Rússia
olha para o Ocidente - e para o Oriente'', "Turquia: Leste, Oeste, qual
é o melhor?", "Nacionalismo australiano: lealdades divididas" - são
títulos típicos que realçam os problemas de identidade de um país
dividido. 17

1 "'11
PAÍSES DIVIDIDOS: O FRACASSO DA MUDANÇA DE CIVILIZAÇÃO

Para que um país dividido possa ter êxito na redefinição de sua


identidade civilizacional, é preciso satisfazer pelo menos três requisitos.
Primeiro, a elite política e econômica do país precisa, de forma geral,
apoiar essa ação e se entusiasmar por ela. Segundo, o público tem que,
pelo menos, aquiescer com essa redefinição de identidade. Terceiro, os
elementos predominantes na civilização anfitriã, na maioria dos casos o
Ocidente, precisam estar dispostos a abraçar os convertidos. O processo
de redefinição de identidade será prolongado, interrompido e doloroso
do ponto de vista político, social, institucional e cultural. Alem disso, com
base nos registros históricos, ele vai fracassar.

Rússia. Nos anos 90, o México era um país dividido havia vários
anos e a Turquia havia várias décadas. A Rússia, ao contrário, era um
país dividido havia vários séculos e, ao contrário do México ou da Turquia
republicana, era também o Estado-núcleo de uma grande civilização. Se
a Turquia ou o México tivessem se redefinido com êxito como membros
da civilização ocidental, o efeito sobre a civilização islâmica ou latino-
americana seria pequeno ou moderado. Se a Rússia se tornasse ocidental
a civilização ortodoxa deixaria de existir. O colapso da União Soviética'
gerou duas questões fundamentais: como deveria a Rússia se definir em
relação ao Ocidente? Quais deveriam ser as relações da Rússia com seus
parentes ortodoxos e com os novos países que haviam sido parte do
império soviético?
As relações da Rússia com a civilização ocidental evoluíram através
de quatro fases. Na primeira fase, que durou até o reinado de Pedro, o
Grande 0689-1725), Kievan Rus e Moscovy existiram separadamente do
Ocidente e tinham pouco contato com as sociedades européias ociden-
tais. A civilização russa se desenvolveu como um fruto da civilização
bizantina e depois, durante 200 anos, de meados do século XIII até
meados do século XV, a Rússia ficou sob a suserania mongol. A Rússia
não foi exposta, ou foi muito pouco exposta, aos fenômenos históricos
que definiram a civilização ocidental: o Catolicismo Romano, o feudalis-
mo, o Renascimento, a Reforma, a expansão e colonização ultramarina,
0
Iluminismo e o surgimento do Estado-nação. Das oito características
próprias da civilização ocidental anteriormente identificadas sete -
r~ligião, idiomas, separação entre Igreja e Estado, império da lei, plura-
lismo social, órgãos representativos, individualismo - estiveram pratica-
mente ausentes por completo da experiência russa. A única exceção

1 /"J
possível é a herança clássica que, contudo, chegou à Rússia através de
Bizâncio e, por conseguinte, foi bastante diferente da que chegou ao
Ocidente diretamente de Roma. A civilização russa foi um produto de
suas raízes autóctones em Kievan Rus e Moscovy, de um considerável
impacto bizantino e de um longo período de dominação mongol. Essas
influências moldaram uma sociedade e uma cultura que tinha pouca
semelhança com as que se desenvolveram na Europa ocidental, sob a
influência de forças muito diferentes.
No final do século XVII, a Rússia não só era diferente da Europa,
mas também era atrasada em relação à Europa, como Pedro, o Grande,
constatou durante seu giro pela Europa em 1697-1698. Ele regressou à
Rússia decidido a modernizar e ocidentalizar seu país. Para fazer com
que seu povo parecesse europeu, Ataturk proibiu o uso do fez. Com
objetivo semelhante, a primeira coisa que Pedro fez ao regressar a
Moscou foi obrigar os nobres a rasparem a barba e proibir o uso de
túnicas compridas e chapéus cônicos. Ataturk substituiu o alfabeto árabe
pelo latino; Pedro não aboliu o alfabeto cirílico, mas reformou-o e
simplificou-o, além de introduzir palavras e expressões ocidentais.
Entretanto, ele atribuiu prioridade máxima ao desenvolvimento e moder-
nização das forças armadas russas, criando uma marinha, adotando o
serviço militar obrigatório, implantando indústrias de material bélico,
criando escolas técnicas, enviando pessoas para estudar no Ocidente e
importando do Ocidente os últimos conhecimentos a respeito de arma-
mentos, navios e construção naval, navegação, administração burocrática
e outros assuntos essenciais para a eficácia militar. Para prover os recursos
para essas inovações, ele reformou e expandiu drasticamente o sistema
tributário e além disso, perto do final do seu reinado, reorganizou a
estrutura do governo. Decidido a fazer da Rússia não só uma potência
européia, como também uma potência na Europa, abandonou Moscou,
criou uma nova capital em São Petersburgo e desencadeou a Grande
Guerra do Norte contra a Suécia, a fim de estabelecer a Rússia como a
força predominante no Báltico e criar presença na Europa.
Entretanto, ao tentar fazer seu país moderno e ocidental, Pedro
também reforçou as características asiáticas da Rússia, ao aperfeiçoar o
despotismo e eliminar qualquer possível fonte de pluralismo social ou
político. A nobreza russa nunca fora poderosa. Pedro reduziu-a ainda
mais, expandindo a nobreza militar e estabelecendo uma Tabela de Graus
baseada no mérito e não no nascimento nem na posição social. Os
nobres, como os camponeses, eram convocados para o serviço do Estado,
formando a "aristocracia servil" que mais tarde enfureceu Custine. 18 A
autonomia dos servos foi ainda mais restringida na medida em que
ficaram vinculados de modo mais permanente tanto à terra quanto ao
seu senhor. A Igreja Ortodoxa, que sempre estivera debaixo de um
controle amplo do Estado, foi reorganizada e colocada sob um sínodo
que era designado diretamente pelo tzar. O tzar também passou a ter o
poder de designar seu sucessor sem referência às práticas vigentes de
herança. Com essas mudanças, Pedro iniciou e exemplificou a íntima
ligação na Rússia entre modernização e ocidentalização, por um lado, e
o despotismo por outro. Seguindo esse modelo petrino, Lênin, Stalin e,
em menor grau, Catarina II e Alexandre II também tentaram, de diversos
modos, modernizar e ocidentalizar a Rússia e fortalecer o poder autocrá-
tico. Pelo menos até os anos 80, os democratizadores da Rússia eram
geralmente ocidentalizadores, porém os ocidentalizadores não eram
democratizadores. A lição da história russa é a de que a centralização do
poder é o pré-requisito para as reformas sociais e econômicas. No final
dos anos 80, correligionários de Gorbachev lamentaram não terem
apreciado esse fato ao criticar os obstáculos que a glasnost havia criado
para a liberalização econômica.
Pedro teve mais êxito em tornar a Rússia parte da Europa do que
em tornar a Europa parte da Rússia. Ao contrário do Império Otomano,
o Império Russo veio a ser aceito como um participante importante e
legítimo do sistema internacional europeu. Internamente, as reformas de
Pedro introduziram algumas mudanças, porém sua sociedade continuou
híbrida: à parte uma pequena elite, os modos asiáticos e bizantinos, as
instituições e as crenças predominaram na sociedade russa, e assim se
percebia tanto por europeus como por russos. De Maistre assinalou que
"arranhe-se a pele de um russo e se encontra um tártaro". Pedro criou
um país dividido e, durante o século XIX, os eslavófilos e os ocidentali-
zadores lamentavam juntos essa situação infeliz e discordavam vigorosa-
mente a respeito de se deviam acabar com ela tornando-se inteiramente
ocidentalizados, ou eliminando as influências européias e retornando à
verdadeira alma da Rússia. Um ocidentalizador como Chaadaev sus-
tentava que "o sol é o sol do Ocidente" e a Rússia devia utilizar sua luz
para iluminar e modificar as instituições que herdara. Um eslavófilo como
Danilevskiy, com palavras que também foram ouvidas nos anos 90,
condenou os esforços europeinizadores por "deturparem a vida das
pessoas e substituírem suas formas com formas estranhas, estrangeiras",
"tomando emprestadas instituições estrangeiras e transplantando-as para

1""7Á
o solo russo" e "considerando as relações internas e externas, bem como
as questões da vida russa, através de uma ótica estrangeira, européia,
vendo-as, por assim dizer, através de uma lente moldada para um ângulo
de refração europeu". 19 Na história russa subseqüente, Pedro tornou-se
o herói dos ocidentalizadores e o satã dos seus oponentes, representados
em seu extremo pelos eurasianos dos anos 20, que o condenaram como
traidor e aplaudiram os bolcheviques por repudiarem a ocidentalização,
desafiarem a Europa e mudarem a capital de volta para Moscou.
A revolução bolchevista deu início a uma terceira fase do relacio-
namento entre a Rússia e o Ocidente, muito diferente do relacionamento
ambivalente que existira durante dois séculos. Ela criou um sistema
político-econômico que não podia existir no Ocidente, em nome de uma
ideologia que foi criada no Ocidente. Os eslavófilos e os ocidentalizado-
res tinham debatido se a Rússia podia ser diferente do Ocidente sem ser
atrasada em comparação com o Ocidente. O comunismo resolveu essa
questão de maneira brilhante: a Rússia era diferente do Ocidente e a ele
se opunha de forma fundamental, porque era mais avançada do que ele.
Ela estava assumindo a liderança da revolução proletária, que acabaria
por varrer o mundo. A Rússia personificava não um passado asiático
atrasado, mas sim um futuro soviético progressista. De fato, a Revolução
permitiu à Rússia saltar por cima do Ocidente, diferenciando-se dele não
porque "vocês são diferentes e nós não ficaremos como vocês", como
tinham argumentado os eslavófilos, mas porque "nós somos diferentes e
vocês acabarão ficando como nós", como dizia a mensagem da Interna-
cional Comunista.
Contudo, ao mesmo tempo em que o comunismo permitiu aos
líderes soviéticos diferenciar-se do Ocidente, ele também criou fortes
laços com o Ocidente. Marx e Engels eram alemães. A maioria dos
principais expositores de suas opiniões, no final do século XIX e começo
do século XX, eram europeus ocidentais. Ao se chegar a 1910, muitos
sindicatos de trabalhadores e partidos trabalhistas e social-democratas
das sociedades ocidentais estavam engajados na ideologia deles e
estavam se tornando atores poderosos na política européia. Depois da
revolução bolchevista, os partidos de esquerda se dividiram em partidos
comunistas e partidos socialistas, e os dois tipos muitas vezes foram forças
poderosas em países europeus. A ótica marxista prevaleceu em boa parte
do Ocidente. O comunismo e o socialismo eram vistos como a onda do
futuro e amplamente abraçados, de uma forma ou de outra, pelas elites
políticas e intelectuais. Em conseqüência, o debate na Rússia entre os

17<;
eslavófilos e os ocidentalizadores a respeito do futuro da Rússia foi
substituído por um debate na Europa entre a esquerda e a direita a
respeito do futuro do Ocidente, e sobre se a União Soviética sintetizava
ou não esse futuro. Depois da II Guerra Mundial, o poderio da União
Soviética reforçou a atração que o comunismo exercia tanto no Ocidente
como, o que era mais importante, naquelas civilizações não-ocidentais que
estavam então reagindo ao Ocidente. As elites nas sociedades não-ocidentais
dominadas pelo Ocidente que queriam seduzir o Ocidente falavam em
termos de autodeterminação e democracia, enquanto as que desejavam
confrontar o Ocidente invocavam a revolução e a liberação nacional.
Ao adotar uma ideologia ocidental e utilizá-la para desafiar o
Ocidente, os russos, em certo sentido, ficaram mais próximos e mais
intimamente envolvidos com o Ocidente do que em qualquer outro
período anterior de sua história. Embora as ideologias da democracia
liberal e do comunismo fossem muito diferentes, ambos os lados estavam,
de certo modo, falando a mesma língua. O colapso do comunismo e da
União Soviética puseram fim a essa interação político-ideológica entre o
Ocidente e a Rússia. O Ocidente esperava e acreditava que o resultado
seria o triunfo da democracia liberal em todo o antigo império soviético.
Isso, entretanto, não estava necessariamente predeterminado. Ao se
chegar a 1995, o futuro da democracia liberal na Rússia e nas outras
repúblicas ortodoxas era incerto. Além disso, à medida que os russos
deixaram de se comportar como marxistas e começaram a se comportar
como russos, o hiato entre a Rússia e o Ocidente se ampliou. O conflito
entre a democracia liberal e o marxismo-leninismo se dava entre ideolo-
gias que, a despeito de suas principais diferenças, eram modernas e
seculares e compartilhavam ostensivamente os objetivos finais de liber-
dade, igualdade e bem-estar material. Um democrata ocidental poderia
manter um debate intelectual com um marxista soviético. Seria impossível
para ele fazer isso com um nacionalista russo ortodoxo.
Durante os anos soviéticos, a luta entre os eslavófilos e os ociden-
talizadores ficou em suspenso, enquanto tantos os Solzhenitsyns como os
Sakharovs desafiavam a síntese comunista. Com o colapso dessa síntese, o
debate a respeito da verdadeira identidade da Rússia reemergiu com pleno
vigor. Deveria a Rússia adotar os valores, as instituições e as práticas
ocidentais e tentar se tomar parte do Ocidente? Ou encarnaria a Rússia uma
civilização ortodoxa e eurasiana distinta, diferente da do Ocidente com um
destino singular de ligar a Europa e a Ásia? As elites intelectuais e políticas
e o público em geral estavam seriamente divididos a respeito dessas

17h
questões. De um lado estavam os ocidentalizadores, "cosmopolitas" ou
"atlanticistas", e de outro os sucessores dos eslavófilos, mencionados de
forma variada como "nacionalistas", "eurasianistas" ou "derzhavnikf'
(firmes defensores do Estado).20
As principais diferenças entre esses grupos se centravam em política
externa e, em menor grau, reforma econômica e estrutura do Estado. As
opiniões estavam distribuídas sobre um continuum, de um extremo ao
outro. Agrupados perto de uma extremidade do espectro estavam aqueles
que articulavam "o novo pensamento" esposado por Gorbachev e
sintetizado na sua meta de um "lar europeu em comum", e muitos dos
principais assessores de Yeltsin, expressando seu desejo de que a Rússia
se tornasse "um país normal" e fosse aceito como o oitavo membro do
clube do G-7 das principais democracias industrializadas. Os nacionalis-
tas mais moderados, como Sergei Stankevich, sustentavam que a Rússia
devia rejeitar o curso "atlanticista" e devia dar prioridade à proteção dos
russos em outros países, enfatizar suas conexões túrquicas e muçulmanas
e promover "uma redistribuição apreciável de nossos recursos, nossas
opções, nossos laços e nossos interesses em favor da Ásia ou da direção
oriental". 21 As pessoas dessa corrente de opinião criticavam Yeltsin por
subordinar os interesses da Rússia aos do Ocidente, por reduzir o poderio
militar russo, por deixar de apoiar amigos tradicionais como a Sérvia e
por forçar as reformas econômicas e políticas de maneira prejudicial ao
povo russo. A nova popularidade das idéias de Piotr Savitsky, que
argumentara nos anos 20 que a Rússia era uma singular civilização
eurasiana, era indicativa dessa tendência.
Os nacionalistas mais extremados estavam divididos entre, de um
lado, os nacionalistas russos como Solzhenitsyn, que advogavam uma
Rússia abrangendo todos os russos, os bielo-russos e os ucranianos
ortodoxos eslavos, intimamente ligados a eles, porém a ninguém mais,
e, do outro lado, os nacionalistas imperiais como Vladimir Zhirinovsky,
que queriam recriar o império soviético e o poderio militar russo. As
pessoas neste segundo grupo às vezes eram anti-semitas tanto quanto
antiocidentais e queriam reorientar a política externa russa em direção
ao Leste e ao Sul, quer dominando o Sul muçulmano (como instava
Zhirinovsky), quer cooperando com os Estados muçulmanos e a China
contra o Ocidente. Os nacionalistas também endossavam um apoio maior
aos sérvios na sua guerra contra os muçulmanos. As diferenças entre
cosmopolitas e nacionalistas se refletiam institucionalmente nos pontos
de vista do Ministério do Exterior e dos militares. Elas também se refletiam
nas ~udanças das políticas externa e de segurança de Yeltsin, primeiro
numa direção e depois na outra.
o povo russo estava tão dividido quanto as elites russas. Uma
pesquisa de opinião de 1992, com uma amostragem de 2.06~ russos •
europeus, revelou que 40 por cento dos entrevistados estavam abertos
ao Ocidente", 36 por cento "fechados ao Ocidente" e 24 por cento ;}
"indecisos". Nas eleições parlamentares de dezembro de 1993, os partidos
reformistas conquistaram 34,2 por cento dos votos, os partidos anti-re-
formas e nacionalistas, 43,3 por cento, e os partidos centristas, 13,7 por
cent0 .22 Analogamente, na eleição presidencial de junho de 1996, o
~i.
público russo se dividiu novamente, com 43 por cento apoiando o
candidato do Ocidente, Yeltsin, e 52 por cento votando pelos candidatos
nacionalista e comunista. A respeito da questão fundamental de sua
identidade, a Rússia dos anos 90 continua sendo um país nitidamente
dividido, com a dualidade ocidental-eslavófila como "um traço inaliená-
vel do (. .. ) caráter nacional" .23

Turquia. Através de uma série cuidadosamente calculada de refor-


mas nos anos 20 e 30, Mustafá Kemal Ataturk tentou afastar seu povo do
seu passado otomano e muçulmano. Os princípiÜs básicos ou "as seis
flechas" do kemalismo eram populismo, republicanismo, nacionalismo,
secularismo, estatismo e reformismo. Rejeitando a idéia de um império
multinacional, Kemal visava a produzir um Estado-nação homogêneo,
expulsando e matando armênios e gregos no processo. Em seguida, ,~i,,,,
depôs o sultão e implantou um sistema republicano de autoridade 1

política, de tipo ocidental. Ele aboliu o califado, que era a fonte


fundamental da autoridade religiosa, acabou com a educação tradicional
e os ministérios religiosos, aboliu as escolas e faculdades religiosas
separadas, implantou um sistema secular unificado de ensino público e
eliminou as cortes religiosas que aplicavam a lei islâmica, substituindo-as
por um novo sistema legal baseado no código civil suíço. Ele também j
proibiu o uso do fez, porque era um símbolo do tradicionalismo religioso,
incentivando as pessoas a usarem chapéu; substituiu o calendário 1
tradicional pelo calendário gregoriano; retirou formalmente do Islamismo
a condição de religião do Estado e decretou que o turco seria escrito com
caracteres latinos em vez dos caracteres arábicos. Esta última reforma
teve uma importância fundamental. "Ela tornou virtualmente impossível f;

l
para as novas gerações, educadas com caracteres latinos, ter acesso à '

vasta massa da literatura tradicional, estimulou o aprendizado dos


idiomas europeus e facilitou enormemente o problema de incrementar
a alfabetização." 24 Tendo redefinido a identidade nacional, política,
religiosa e cultural do povo turco, nos anos 30, Kemal tentou com todo
o vigor promover o desenvolvimento econômico turco. A ocidentalização
foi de mãos dadas com a modernização e constituiu o meio para atingi-la.
Durante a guerra civil do Ocidente, entre 1939 e 1945, a Turquia
permaneceu neutra. Depois da guerra, porém, ela rapidamente tratou de
se identificar ainda mais com o Ocidente. Emulando explicitamente as
políticas ocidentais, mudou do regime de partido único para um sistema
partidário competitivo. Fez campanha para ingressar na OTAN, o que
acabou por conseguir em 1952, confirmando-se assim como membro do
Mundo Livre. Tornou-se recipiente de bilhões de dólares do Ocidente
em assistência econômica e de segurança, suas forças armadas foram
treinadas e equipadas pelo Ocidente e integradas na estrutura de
comando da OTAN, e passou a ser anfitriã de bases militares norte-ame-
ricanas. A Turquia passou a ser vista pelo Ocidente como seu bastião
oriental de contenção, impedindo a expansão da União Soviética na
direção do Mediterrâneo, do Oriente Médio e do Golfo Pérsico. Essa
vinculação e auto-identificação com o Ocidente levou a que os turcos
fossem condenados pelos países não-ocidentais e não-alinhados, na
Conferência de Bandung em 1955, e fossem atacados como blasfemos
pelos países islâmicos.25
Após a Guerra Fria, a elite turca continuou a apoiar de forma
,,i predominante a tese de que a Turquia deve ser ocidental e européia.
1 Continuar sendo membro da OTAN é para ela indispensável, porque essa
condição proporciona um vínculo organizacional íntimo com o Ocidente
e é necessária para contrabalançar a Grécia. O envolvimento da Turquia
com o Ocidente, encarnado na sua participação na OTAN, foi, contudo,
um produto da Guerra Fria. O fim da Guerra Fria afasta a razão principal
para esse envolvimento e leva a um enfraquecimento e a uma redefinição
dessa ligação. A Turquia não é mais necessária para o Ocidente como
j um bastião contra a principal ameaça do Norte, mas sim, como na Guerra
1 do Golfo, como um possível parceiro para lidar com as ameaças menores
vindas do Sul. Nessa guerra, a Turquia proporcionou um auxílio crucial
à coligação contra Sadam Hussein ao fechar o oleoduto que passa por
seu território, através do qual o petróleo iraquiano chegava ao Mediter-
râneo, e ao permitir que aviões norte-americanos operassem contra o
Iraque a partir de bases na Turquia. Entretanto, essas decisões do

l
'
'
presidente ôzal estimularam consideráveis críticas à Turquia e con-
<luziram à renúncia do ministro do Exterior, do ministro da Defesa e do
chefe do Estado-maior, bem como grandes manifestações de rua protes-
tando contra a estreita colaboração de ózal com os Estados Unidos.
Posteriormente, tanto o presidente Demirel quanto a primeira-ministra
Ciller instaram à antecipação do término das sanções das Nações Unidas
contra 0 Iraque, que também impunham considerável carga econômica
à Turquia. 26 A disposição da Turquia de trabalhar com o Ocidente para
lidar com ameaças islâmicas provenientes do Sul é mais incerta do que
era sua disposição de se postar junto com o Ocidente contra a ameaça
soviética. Durante a crise do Golfo, a recusa da Alemanha, uma amiga
tradicional da Turquia, em encarar um ataque de mísseis iraquianos
contra a Turquia como um ataque contra a OTAN, também demonstrou
que a Turquia não poderia contar com o apoio ocidental contra ataques
vindos do Sul. As confrontações na Guerra Fria com a União Soviética
não suscitaram a questão da identidade civilizacional da Turquia, mas as
relações com os países árabes no pós-Guerra Fria o fazem.
A partir dos anos 80, uma das metas principais - talvez a principal
- da política externa da elite turca de orientação ocidental tenha sido a
de conseguir o ingresso na União Européia. A Turquia requereu formal-
mente sua admissão em abril de 1987. Em dezembro de 1989, foi dito à
Turquia que seu requerimento não podia ser examinado antes de 1993.
Em 1994, a União Européia aprovou os requerimentos da Áustria,
Finlândia, Suécia e Noruega, havendo amplas previsões de que nos
próximos anos serão tomadas medidas favoráveis em relação aos reque-
rimentos da Polônia, Hungria e República Checa e, mais tarde, pos-
sivelmente, da Eslovênia, Eslováquia e das repúblicas bálticas. Os turcos
ficaram especialmente decepcionados com o fato de que, novamente, a :I

Alemanha, o membro mais influente da União Européia, não tivesse apoiado
de forma ativa o seu ingresso e, em vez disso, desse prioridade à admissão
dos Estados centro-europeus. 27 Pressionada pelos Estados Unidos, a União
Européia de fato negociou uma união aduaneira com a Turquia, porém
a participação plena é uma possibilidade remota e duvidosa.
Por que se passou por cima da Turquia e por que ela sempre parece
estar no fim da fila? Em público, os funcionários europeus se referiram
ao baixo nível de desenvolvimento econômico da Turquia e ao seu
respeito menos do que escandinavo pelos direitos humanos. Em parti-
cular, tanto europeus quanto turcos concordam em que as verdadeiras
razões foram a intensa oposição dos gregos e, o que é mais importante,
o fato de que a Turquia é um país muçulmano. Os países europeus não
queriam encarar a possibilidade de abrir suas fronteiras à imigração de
um país de 60 milhões de muçulmanos e muito desemprego. Ainda mais
significativo foi o fato de que eles achavam que, do ponto de vista
cultural, os turcos não pertencem à Europa. Como disse o presidente
ózal em 1992, o desempenho da Turquia em relação aos direitos
humanos "é uma razão artificial para que a Turquia não possa ingressar
na UE. A verdadeira razão é que nós somos muçulmanos e eles são
cristãos", porém, acrescentou, "eles não dizem isso". Os funcionários
europeus, por seu lado, concordaram em que a União Européia é "um
clube cristão" e que "a Turquia é pobre demais, populosa demais,
muçulmana demais, dura demais, culturalmente diferente demais, tudo
demais". Um comentarista assinalou que o "pesadelo particular" dos
europeus é "a memória histórica das pilhagens dos guerreiros sarracenos
na Europa Ocidental e dos turcos às portas de Viena". Essas atitudes, por
sua vez, geraram a "percepção comum entre os turcos" de que "o Ocidente
não vê um lugar para uma Turquia muçulmana dentro da Europa". 28
Tendo rejeitado Meca e sendo rejeitada por Bruxelas, a Turquia
agarrou a oportunidade aberta pela dissolução da União Soviética para
se voltar para o Tashkent. O presidente Õzal e outros líderes turcos
expuseram sua visão de uma comunidade de povos túrquicos e envida-
ram grandes esforços para desenvolver laços com os "turcos exteriores"
no "exterior próximo" da Turquia, que se estende "do Adriático às
fronteiras da China". Uma atenção especial foi dedicada ao Azerbaijão e
às quatro repúblicas centro-asiáticas em que se falam idiomas túrquicos
- Uzbequistão, Turcomenistão, Casaquistão e Quirguízia. Em 1991 e
1992, a Turquia desencadeou uma vasta gama de atividades destinadas
I, a ampliar seus laços com essas novas repúblicas e sua influência nas
mesmas. Dentre essas medidas se incluíram empréstimos de longo prazo
e a juros baixos no total de um bilhão e meio de dólares, 79 milhões de
dólares em auxt1io direto para programas sociais, televisão por satélite
(substituindo um canal em idioma russo), comunicações por telefonia,
serviços aéreos comerciais, milhares de bolsas para jovens estudarem na
Turquia e treinamento na Turquia para banqueiros, empresários, diplo-
matas e centenas de oficiais das forças armadas desses países centro-asiá-
ticos e do Azerbaijão. Foram enviados professores para as novas repú-
blicas a fim de ensinar turco e foram iniciadas cerca de duas mil parcerias
empresariais. Os aspectos culturais em comum facilitaram esses relacio-
namentos econômicos. Segundo comentou um empresário turco, "a coisa
mais importante para se ter êxito no Azerbaijão ou no Turcomenistão é
encontrar o parceiro certo. Para os turcos, isso não é tão difícil. Nós temos
a mesma cultura, mais ou menos o mesmo idioma e comemos os mesmos
pratos". 29
A reorientação da Turquia em direção ao Cáucaso e à Ásia Central
foi alimentada não só por seu sonho de se tornar líder da comunidade
túrquica de nações, como também por seu desejo de se contrapor a que
o Irã e a Arábia Saudita expandissem sua influência e promovessem o
fundamentalismo islâmico nessa região. Os turcos se viam como ofere-
cendo o "modelo turco" ou a "idéia da Turquia" - um Estado muçulmano
secular e democrático, com uma economia de mercado - como alter-
nativa. Além disso, a Turquia tinha a esperança de conter o ressurgimento
da influência russa. Ao fornecer uma alternativa à Rússia e ao Islã, a
Turquia também reforçaria sua reivindicação do apoio da União Européia
e de uma futura admissão a ela.
O surto inicial de atividades da Turquia com as repúblicas túrquicas
ficou mais limitado em 1993 devido às limitações de seus recursos, à
ascensão de Suleyman Demirel à presidência, em seguida à morte de
ôzal, e à reafirmação da influência da Rússia no que esta considerava o
seu "exterior próximo". Logo que as ex-repúblicas soviéticas túrquicas se
tornaram independentes, seus líderes acorreram a Ancara para cortejar a
Turquia. Posteriormente, quando a Rússia aplicou pressões e incentivos,
elas retrocederam e, de forma geral, sublinharam a necessidade de
relacionamentos "equilibrados" entre o seu primo cultural e seu ex-senhor
imperial. Entretanto, os turcos continuaram a tentar utilizar suas afinidades
culturais para expandir suas vinculações econômicas e políticas e, no seu
golpe mais importante, conseguiram um acordo com os governos e as
empresas petrolíferas pertinentes para a construção de um oleoduto, a fim
de trazer o petróleo da Ásia Central e do Azerbaijão através da Turquia
até o Mediterrâneo.30
Enquanto a Turquia trabalhava para desenvolver seus vínculos com
as ex-repúblicas soviéticas túrquicas, sua própria identidade secular
kemalista estava sob ataque no plano interno. Em primeiro lugar, para a
Turquia, como para tantos outros países, o fim da Guerra Fria, junto com
as perturbações geradas pelo desenvolvimento econômico e social,
suscitou importantes questões de "identidade nacional e identificação
étnica",3 1 e a religião ali estava para prover uma resposta. O legado
secular de Ataturk e da elite turca após dois terços de século ficou sob
fogo. A experiência dos turcos no exterior tendia a estimular os senti-
mentos fundamentalistas islâmicos dentro do país. Os turcos que retor-
navam da Alemanha Ocidental "reagiram à hostilidade que encontraram
lá retomando para o. que lhes era familiar. E isso era o Islã". A corrente
de opinião e a prática dominantes ficaram cada vez mais fundamentalistas
islâmicas. Em 1993, reportou-se "que as barbas de estilo islâmico e as
mulheres cobertas com véu proliferaram na Turquia, que as mesquitas
estão atraindo multidões cada vez maiores e que algumas llvrarias estão
transbordando de livros, revistas, cassetes, CDs e videocassetes glorifican-
do a história, os preceitos e o estilo de vida islâmicos, e exaltando o papel
do Império Otomano de preservar os valores do Profeta Maomé".
Segundo se informou, "nada menos do que 290 editoras e gráficas, 300
publicações, inclusive quatro jornais, cerca de uma centena de estações
de rádio sem licença e cerca de 30 canais de televisão também sem licença
estão todos divulgando a ideologia islâmica".32
Confrontados por um crescente sentimento fundamentalista islâmi-
co, os dirigéntes turcos tentaram adotar as práticas fundamentalistas e
aliciar o apoio fundamentalista. Nos anos 80 e 90, o governo turco,
supostamente secular, manteve um Departamento de Assuntos Religio-
sos, com um orçamento maior do que o de alguns ministérios, financiou
a construção de mesquitas, exigiu o ensino religioso em todas as escolas
públicas e proporcionou fundos para escolas islâmicas. O número dessas
escolas quintuplicou durante a década de 80, estando nelas matriculados
cerca de 15 por cento dos alunos de nível secundário; nelas se pregavam
as doutrinas fundamentalistas islâmicas e se formaram milhares de jovens,
muitos dos quais entraram para o serviço público. Num contraste com a
França, simbólico mas espetacular, o governo permitiu na prática que as
moças usassem o tradicional lenço de cabeça muçulmano, 70 anos depois
de Ataturk ter proibido o fez. 33 Essas ações governamentais, em grande
parte motivadas pelo desejo de tirar o vento das velas dos fundamentalis-
tas islâmicos, são testemunho de como esse vento era forte na década
de 80 e no início dos anos 90.
Em segundo lugar, o ressurgimento do Islã mudou o caráter da
política turca. Os líderes políticos, notadamente Turgo ôzal, se identifi-
caram de modo muito explícito com os símbolos e as políticas muçul-
manas. Na Turquia, como em outros lugares, a democracia reforçou a
indigenização e a volta para a religião. "No seu afã de angariar a simpatia
do povo e conquistar votos, os políticos - e até mesmo os militares, que
eram o próprio bastião e os guardiães do secularismo - tiveram de levar
em conta as aspirações religiosas da população. Muitas das concessões
feitas por eles cheiravam a demagogia." Os movimentos populares

Hl::t
tinham um pendor religioso. Enquanto a elite e os grupos burocráticos,
especialmente os militares, tinham uma orientação secular, os sentimen-
tos fundamentalistas islâmicos se manifestaram no seio das forças arma-
das, e várias centenas de cadetes foram expurgados das academias
militares em 1987 sob suspeita de sentimentos fundamentalistas islâmicos.
Os principais partidos políticos cada vez mais sentiam a necessidade de
buscar apoio eleitoral das reativadas tarikas muçulmanas, ou sociedades
seletas, que Ataturk tinha proscrito.34 Nas eleições municipais de março
de 1994, o Partido do Bem-Estar, fundamentalista, foi o único dentre os
cinco partidos principais a aumentar sua participação nos votos, receben-
do aproximadamente 19 por cento do total, comparados com 21 por
cento para o Partido Caminho Verdadeiro, da primeira-ministra Ciller, e
20 por cento para o Partido da Pátria, do falecido Ôzal. O Partido do
Bem-Estar conquistou o controle das duas principais cidades da Turquia,
Istambul e Ancara, e competiu com posição muito forte na parte sudeste
do país. Nas eleições de dezembro de 1995, o Partido do Bem-Estar teve
mais votos e assentos no Parlamento do que qualquer outro partido, e
os dois principais partidos seculares, que tinham estado em confronto,
tiveram de montar uma coalizão para impedir que os fundamentalistas
islâmicos assumissem o governo. Como em outros países, o apoio aos
fundamentalistas veio dos jovens, dos emigrantes que retornaram, dos
"perseguidos e miseráveis" e dos "novos migrantes urbanos, os sans
culottes das grandes cidades".35
Em terceiro lugar, o ressurgimento do Islã afetou a política externa
turca. Sob a liderança do presidente Ôzal, a Turquia havia se postado
decididamente do lado do Ocidente na Guerra do Golfo, contando com
que essa ação favoreceria sua candidatura a membro da União Européia.
Entretanto, essa conseqüência não se concretizou e foi intensa a oposição
à guerra dentro da Turquia. Com o colapso da União Soviética rompendo
o principal elo entre a Turquia e o Ocidente, a hesitação da OTAN quanto
a que reação teria caso a Turquia fosse atacada pelo Iraque durante
aquela guerra não tranqüilizou os turcos quanto a como a OTAN reagiria
a uma ameaça não-russa a seu país.36 Durante a década de 80, a Turquia
expandiu cada vez mais as suas relações com os países árabes e outros
países muçulmanos e, nos anos 90, promoveu ativamente os interesses
islâmicos ao proporcionar apoio significativo aos muçulmanos da Bósnia,
bem como ao Azerbaijão. Com relação aos Bálcãs, à Ásia Central e ao
Oriente Médio, a política externa turca estava se tornando cada vez mais
islamicizada.
Durante muitos anos a Turquia preencheu dois dos três requisitos
mínimos para um país dividido mudar sua identidade civilizacional. As
elites turcas apoiaram de forma majoritária essa linha de ação e seu povo
assentiu. Entretanto, as elites da recipiente - a civilização ocidental -
não foram receptivas. Enquanto a questão estava pendente, o res-
surgimento do Islã dentro da Turquia começou a solapar a orientação
secularista e pró-ocidental das elites turcas. Os obstáculos a que a Turquia
se torne plenamente européia, as limitações da sua capacidade de
desempenhar um papel dominante com relação às ex-repúblicas sovié-
ticas túrquicas e a ascensão das tendências fundamentalistas islâmicas
erodindo o legado de Ataturk, tudo isso parecia assegurar que a Turquia
permanecerá sendo um país dividido.
Refletindo essas forças de atração contrapostas, os líderes turcos
repetidamente descreviam seu país como uma "ponte" entre as culturas.
Em 1993, a primeira-ministra Tansu Ciller argumentou que a Turquia é,
ao mesmo tempo, uma "democracia ocidental" e "parte do Oriente
Médio", e "serve de ponte a duas civilizações, física e filosoficamente".
Espelhando essa ambivalência, Ciller freqüentemente aparecia em públi-
co, em seu próprio país, como muçulmana, porém, quando se dirigia à
OTAN, ela afirmava que "o fato geográfico e político é que a Turquia é
um país europeu". De modo análogo, o presidente Suleyman Demirel
chamou a Turquia de "uma ponte muito importante, numa região que
se estende de oeste para leste, ou seja, da Europa para a China" .37
Entretanto, uma ponte é uma criação artificial que liga duas entidades
sólidas, mas não é parte de nenhuma delas. Quando os líderes da Turquia
chamam seu país de uma ponte, eles estão eufemisticamente confirman-
do que ela é um país dividido.

México. A Turquia se tornou um país dividido nos anos 20 e o


México só depois dos anos 80. No entanto, suas relações históricas com
o Ocidente têm certas semelhanças. Tal como a Turquia, o México
possuía uma cultura nitidamente não-ocidental. Mesmo no século XX, como
colocou Octávio Paz, "o cerne do México é índio. É não-europeu".38 No
século XIX, o México, como o Império Otomano, foi desmembrado por
mãos ocidentais. Na segunda e na terceira décadas do século XX, o
México, como a Turquia, passou por uma revolução que estabeleceu
uma nova base de identidade nacional e um novo sistema político de
partido único. Na Turquia, porém, a revolução envolveu tanto uma
rejeição da cultura tradicional islâmica e otomana como um esforço por

101:
importar a cultura ocidental e juntar-se ao Ocidente. No México, como
na Rússia, a revolução envolveu a incorporação e a adaptação de
elementos da cultura ocidental, o que gerou um novo nacionalismo,
oposto ao capitalismo e à democracia do Ocidente. Assim, durante 60
anos, a Turquia tentou se definir como européia, enquanto que o México
tentou se definir em oposição aos Estados Unidos. Da década de 30 à de
80, os dirigentes do México perseguiram. políticas econômica e externa
que desafiavam os interesses norte-americanos.
Nos anos 80, isso mudou. O presidente Miguel de la Madrid deu
início a novas políticas, que seu sucessor, Carlos Salinas, expandiu numa
redefinição de larga escala dos objetivos, práticas e identidade mexica-
nos, no mais amplo esforço de mudanças desde a Revolução de 1910.
Salinas se tornou, de fato, o Mustafá Kemal do México. Ataturk promoveu
o secularismo e o nacionalismo, temas predominantes no Ocidente do
seu tempo. Salinas promoveu o liberalismo econômico, um dos dois
temas predominantes no Ocidente do seu tempo (o outro, a democracia
política, não foi abraçada por ele). Como aconteceu com Ataturk, essas
opiniões eram compartilhadas de forma geral pelas elites políticas e
econômicas, muitos membros das quais, como Salinas e de la Madrid,
tinham se formado nos Estados Unidos. Salinas reduziu a inflação de
modo espetacular, privatizou grande quantidade de empresas estatais,
promoveu o investimento estrangeiro, reduziu as tarifas e os subsídios,
reestruturou a dívida externa, desafiou o poder dos sindicatos, aumentou
a produtividade e levou o México para o Acordo de Livre Comércio
Norte-americano (NAFTA) com os Estados Unidos e o Canadá. Tal como
as reformas de Ataturk se destinavam a transformar a Turquia de país
muçulmano do Oriente Médio em país secular europeu, as reformas de
Salinas se destinavam a mudar o México de país latino-americano em
país norte-americano.
Não se tratava de uma escolha inevitável para o México. É conce-
bível que as elites mexicanas pudessem ter continuado a seguir um
caminho anti-EUA, nacionalista, terceiro-mundista e protecionista, como
as suas predecessoras tinham seguido durante a maior parte do século.
Como alternativa, conforme instado por alguns mexicanos, elas poderiam
ter tentado desenvolver, com a Espanha, Portugal e os países sul-ameri-
canos, uma associação ibérica de nações.
Terá o México êxito na sua busca norte-americana? A enorme
maioria das elites política, econômica e intelectual é favorável a esse
rumo. Além disso, ao contrário da situação da Turquia, a grande maioria

10.C.
das elites política, econômica e intelectual da civilização rec1p1ente
também é favorável ao realinhamento cultural do México. A questão
intercivilizacional crucial da imigração realça essa diferença. O medo de
uma imigração turca maciça gerou resistências tanto das elites como do
público europeu a deixar' a Turquia ingressar na Europa. Ao contrário, a
maciça imigração mexicana, legal e ilegal, para os Estados Unidos fez
parte da argumentação de Salinas em relação ao NAFTA: "Ou bem vocês
aceitam nossos bens ou aceitam nossa gente." Além disso, a distância
cultural entre o México e os Estados Unidos é muito menor do que a que
existe entre a Turquia e a Europa. O México é, em parte, ocidental: sua
religião é o Catolicismo, seu· idioma é o espanhol, suas elites estavam
orientadas historicamente para a Europa (para onde enviavam seus filhos
para estudar) e, mais recentemente, para os Estados Unidos (para onde
atualmente enviam seus filhos). A acomodação entre a América do Norte
anglo-americana e o México hispano-indígena deveria ser consideravel-
mente mais fácil do que entre a Europa cristã e a Turquia muçulmana.
A despeito desses aspectos em comum, depois da ratificação do NAFTA,
desenvolveu-se nos Estados Unidos uma oposição a qualquer envolvi-
mento mais estreita com o México, com reclamos de restrições sobre a
imigração, queixas sobre fábricas que se transferiam para o Sul e
questionamentos sobre a capacidade do México de aderir às concepções
norte-americanas de liberdade e do império da lei.39
O terceiro pré-requisito para uma mudança de identidade bem-su-
cedida por um país dividido é a aquiescência generalizada, embora não
necessariamente o apoio, por parte do seu povo. A importância desse
fator depende, em certa medida, do grau de import~ncia das opiniões
do povo para os processos de tomada de decisão do país. Ao se chegar
a 1995, a postura pró-ocidental do México não havia sido testada pela
democratização. A revolta no dia do Ano-novo de alguns milhares de
guerrilheiros bem organizados e com apoio externo em Chiapas não foi,
por si só, uma indicação de resistência considerável à norte-americani-
zação. Entretanto, a resposta favorável que ela gerou no meio dos
intelectuais, jornalistas e outros formadores de opinião mexicanos sugeriu
que a norte-americanização em geral e o NAFTA em particular poderiam
encontrar resistência cada vez maior por parte das elites e do povo
mexicano. O presidente Salinas, de modo muito deliberado, atribuiu
prioridade às reformas e à ocidentalização em relação à reforma política
e à democratização. Contudo, tanto o desenvolvimento econômico como
o crescente envolvimento com os Estados Unidos irão aumentar as forças

Hl7
que promovem uma verdadeira democratização do sistema político
mexicano. A questão-chave para o futuro do México é a seguinte: até
que ponto a modernização e a democratização irão estimular a desoci-
dentalização, sintetizada numa retirada ou num enfraquecimento radical
do NAfTA e em mudanças paralelas nas políticas impostas ao México
por suas elites orientadas para o Ocidente dos anos 80 e 90? A
norte-americanização do México é compatível com sua democratização?

Austrália. Em contraste com a Rússia, a Turquia e o México, a


Austrália foi, desde suas origens, uma sociedade ocidental. Através de
todo o século XX, ela esteve intimamente aliada primeiro à Grã-Bretanha
e depois aos Estados Unidos e, durante a Guerra Fria, ela foi não apenas
um membro do Ocidente como também do núcleo ocidental militar e de
inteligência Estados Unidos-Reino Unido-Canadá-Austrália. Entretanto,
no começo dos anos 90, os dirigentes políticos australianos decidiram na
realidade que a Austrália devia afastar-se do Ocidente, se redefinir como
uma sociedade asiática e cultivar íntimos laços com seus vizinhos
geográficos. O primeiro-ministro Paul Keating declarou que a Austrália
devia deixar de ser uma "sucursal do Império", tornar-se uma república
e visar a se "entremear" com a Ásia. Ele argumentou que isso era
necessário a fim de estabelecer a identidade da Austrália como um país
independente. "A Austrália não pode se apresentar ao mundo como uma
sociedade multicultural, s·e engajar na Ásia, criar esse vínculo e fazê-lo
de forma persuasiva enquanto, de algum modo, pelo menos em termos
.constitucionais, permanece sendo uma sociedade derivada." Keating
declarou ainda que a Austrália havia padecido durante inúmeros anos
de "anglofilia e torpor" e que continuar sua associação com a Grã-Breta-
nha seria "debilitante para nossa cultura nacional, nosso futuro econô-
mico e nosso destino na Ásia e no Pacífico". O ministro do Exterior Gareth
Evans expressou idéias análogas.40
A proposição de redefinir a Austrália como um país asiático se
fundamentava no pressuposto de que a economia sobrepuja a cultura na
formação do destino das nações. O ímpeto essencial era o crescimento
dinâmico das economias da Ásia Oriental, as quais, por sua vez,
esporearam a rápida expansão do comércio da Austrália com a Ásia. Em
1971, absorveram 39 por cento das exportações australianas e contribuí-
ram com 21 por cento das importações australianas. Em 1994 a Ásia
Oriental e o Sudeste Asiático estavam recebendo 62 por ce~to das
exportações da Austrália e contribuindo com 41 por cento de suas

188
importações. Em contraste, em 1991, 11,8 por cento das exportações
australianas foram para a Comunidade Européia e 10,1 por cento para
os Estados Unidos. Esse vínculo econômico que se ia aprofundando com
a Ásia era reforçado na mente dos australianos por uma crença de que
0 mundo estava se movendo na direção de três blocos econômicos
principais e que o lugar da Austrália estava no bloco da Ásia Oriental.
Apesar dessas ligações econômicas, o projeto asiático da Austrália
parece ter pouca probabilidade de satisfazer qualquer dos requisitos para
0 êxito de uma mudança de civilização por um país dividido. Em primeiro
lugar, em meados da década de 90, as elites australianas estavam longe
de ter um grande entusiasmo por esse rumo. Em certa medida, isso
constituía uma questão partidária, com os dirigentes do Partido Liberal
assumindo uma postura ambivalente ou de oposição. O governo traba-
lhista também recebeu consideráveis críticas de vários intelectuais e
jornalistas. Não havia nenhum consenso nítido da elite quanto à opção
asiática. Em segundo lugar, a opinião pública estava indecisa. De 1987 a
1993, a proporção do povo australiano favorável a acabar com a
monarquia subiu de 21 para 46 por cento. A essa altura, entretanto, o
apoio para a idéia começou a vacilar e a erodir. A proporção do povo
que apoiava a retirada da bandeira britânica do canto da bandeira
australiana caiu de 42 por cento em maio de 1992 para 35 por cento em
agosto de 1993. Segundo comentou em 1992 uma autoridade australiana,
"é difícil para o público engolir isso. Quando eu digo, periodicamente,
que a Austrália devia fazer parte da Ásia, nem lhe posso dizer quantas
cartas de ódio recebo".41
Em terceiro lugar - e o que é mais importante - , as elites dos
países asiáticos se mostraram menos receptivas às propostas aus-
tralianas do que as elites européias em relação às da Turquia.
Deixaram claro que, se a Austrália deseja fazer parte da Ásia, ela
precisa se tornar realmente asiática, o que consideram improvável se
não impossível. Uma autoridade indonésia disse que "o êxito da
integração da Austrália na Ásia depende de uma coisa - até que ponto
os Estados asiáticos acolhem de bom grado a intenção australiana. A
aceitação da Austrália na Ásia depende do grau com que o governo e o
povo da Austrália compreendem a cultura e a sociedade asiática". Os
asiáticos vêem um hiato entre a retórica asiática da Austrália e sua
realidade perversamente ocidental. Segundo um diplomata australiano,
os tailandeses tratam a insistência da Austrália de que ela é asiática com
uma "tolerância perplexa".42 O primeiro-ministro Mahatir, da Malásia,

189
declarou em outubro de 1994 que, "culturalmente, a Austrália ainda é
européia, (. .. ) nós achamos que é européia" e, por conseguinte, a
Austrália não deve ser membro do Foro Econômico Asiático-oriental
(EAEC). Nós, asiáticos, "temos menos tendência a criticar abertamente
outros países ou a julgá-los. Mas a Austrália, sendo culturalmente
européia, acha que tem o direito de dizer a outros o que fazer, o que
não fazer, o que está certo, o que está errado. Assim sendo, é claro,
ela não é compatível com o grupo. Essa é a minha razão [para me
opor a seu ingresso no EAEC]. Não é pela cor da pele, mas pela
4
cultura". 3 Em suma, os asiáticos estão decididos a excluir a Austrália
do seu clube pela mesma razão que os europeus, a Turquia: eles são
diferentes de nós. O primeiro-ministro Keating gostava de dizer que ia
mudar a Austrália de "o estranho de fora para o estranho de dentro" na
Ásia. Isso, porém, é um oxímoro: os estranhos não entram.
Como expôs Mahatir, a cultura e os valores são o obstáculo básico
para que a Austrália se junte à Ásia. Regularmente ocorrem choques
devido ao engajamento da Austrália com a democracia, direitos humanos,
liberdade de imprensa e a seus protestos quanto a violações desses
direitos por parte dos governos de praticamente todos os seus vizinhos.
Um veterano diplomata australiano assinalou que "o verdadeiro proble-
ma para a Austrália na região não é nossa bandeira, mas nossos valores
sociais fundamentais. Desconfio que não se encontrará nenhum aus-
traliano disposto a abrir mão de qualquer desses valores para ser aceito
na reg1ao . As d"C
·- "44 llerenças de caráter, estilo e comportamento também
são acentuadas. Como insinuou Mahatir, de forma geral os asiáticos
perseguem seus objetivos com os outros por maneiras que são sutis
i~diretas, moduladas, sinuosas, sem fazer julgamentos, sem fazer prega~
çoes e sem ser confrontacionistas. Os australianos, ao contrário, são as
pessoas mais diretas, francas, desabridas e, diriam alguns, insensíveis do
mundo anglófono. Esse choque de culturas fica evidenciado de modo
mais espetacular nas próprias tratativas de Paul Keating com os asiáticos.
Keating encarna as características nacionais australianas num grau extre-
mo. Ele foi descrito como "um político do tipo bate-estaca" com um
estilo que é "intrinsicamente provocador e brigão", e ele não 'hesita em
atacar seus adversários políticos como "sacos de lixo", "gigolôs perfuma-
dos" e "delinqüentes birutas com lesão cerebral".45 Ao mesmo tempo em
que sustenta que a Austrália tem que ser asiática, Keating sistematica-
mente irritou, chocou e antagonizou líderes asiáticos por sua brutal
franqueza. O hiato entre as culturas era tão grande que cegava o

190
proponente da convergência cultural ao ponto de seu próprio compor-
tamento repelir aqueles de quem ele se dizia irmão cultural. ,
A opção de Keating-Evans poderia ser vista como o resultado miope
de superestimar os fatores econômicos e ignorar, em vez d_e resgatar~ a
cultura do país, e como uma jogada política tática para desviar a at~nçao
dos problemas econômicos da Austrália. Por outro lado,. ela pod_ena ser
considerada como uma iniciativa de longo alcance, destinada a iuntar e
identificar a Austrália com os centros emergentes de poder econômico,
político e, por fim, militar da Ásia Oriental._ Ness~ conte~to, a. Austrália
poderia ser 0 primeiro de possivelmente mU1tos paise~ ~~ide~tais ~ tent~r
abandonar 0 Ocidente e atrelar-se às emergentes civilizaçoes nao-oci-
dentais. No começo do século XXII, os historiadores poderiam olhar para
a opção de Keating-Evans como um dos marcos principais _do declín!o
do Ocidente. Contudo, mesmo que essa opção seja persegU1da, ela nao
eliminará 0 legado ocidental da Austrália, e o "país de sorte" será
permanentemente um país dividido, ao mesmo tempo a "sucursal do
Império" que Paul Keating criticou, e a "nova escória branca da Ásia",
, ~
como Lee Kuan Yew a chamou com desprezo. )
Esse não foi e não é o destino inevitável da Austrália. Aceitando
seu desejo de romper com a Grã-Bretanha, em vez de definir a Austrália
como uma potência asiática, seus líderes poderiam defini-la como um
país do Pacífico, como, na realidade, o antecessor de Keating,, B~b
Hawke tentou fazer. Se a Austrália deseja se tornar uma republica
separada da Coroa britânica, ela poderia se alinhar com o primeiro país
do mundo a fazer isso, um país que, como a Austrália, é de origem
britânica, é um país de imigração, tem dimensões continentais, fala inglês,
foi aliado da Grã-Bretanha em três guerras e possui uma população
predominantemente européia, ainda que, também como a Austrália, cada
vez mais asiática. Culturalmente, os valores da Declaração da Indepen-
dência, de 4 de julho de 1776, se coadunam muito mais com os valores
australianos do que os de qualquer país asiático. Economicamente, em
vez de tentar abrir caminho para dentro de um grupo de sociedades às
quais é estranha culturalmente e que, por essa razão, a rejeitam, os líd,e~es
da Austrália poderiam propor expandir o NAFTA para um acordo Amenca
do Norte-Pacífico Sul (North America-South Pacific - NASP), abrangen-
do os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. Um
agrupamento assim conciliaria cultura e economia e proporcion:ria u~a
identidade sólida e duradoura para a Austrália, que não sera obtida
através de esforços vãos de tornar a Austrália asiática.

191
O vírns ocidental e a esquizofrenia cultural. Enquanto os dirigentes
da Austrália embarcavam numa busca da Ásia, os de outros países
divididos - Turquia, México, Rússia - tentavam incorporar o Ocidente
às suas sociedades e incorporar suas sociedades ao Ocidente. Ao se
chegar a 1995, nenhuma dessas tentativas de redefinição cultural tinha
alcançado êxito. Os fatos demonstram claramente a força, a resistência
e a viscosidade das culturas autóctones e sua capacidade de se renovar
e de resistir, conter e absorver o que foi importado do Ocidente. Os
líderes imbuídos da ilusão de pensar que podem refazer suas sociedades
parecem fadadas ao fracasso. Conquanto eles possam introduzir elemen-
tos da cultura ocidental, não são capazes de reprimir ou eliminar de modo
permanente os elementos centrais de suas culturas autóctones. Inversa-
mente, o vírus ocidental, uma vez alojado em outra sociedade, é difícil
de expulsar. O vírus persiste, mas não é fatal - o paciente sobreviverá,
mas nunca mais será o mesmo. Os líderes políticos podem fazer História,
mas não podem escapar da História. Eles produzem países divididos;
eles não criam sociedades ocidentais. Eles contaminam seu país com uma
esquizofrenia cultural que se transforma na sua característica constante
e definidora.

192
CAPÍTULO 7

Estados-núcleos, Círculos
Concêntricos e Ürdem Civilizacional

CIVILIZAÇÕES E ORDEM

a política mundial que está surgindo, as duas superpotências da

N Guerra Fria estão sendo suplantadas pelos Estados-núcleos das


principais civilizações como os principais pólos de atração e
repulsão de outros países. Esses processos são mais nitidamente visíveis
em relação às civilizações ocidental, ortodoxa e sínica. Nesses casos,
estão surgindo agrupamentos civilizacionais que envolvem Estados-nú-
cleos, Estados-membros, populações minoritárias culturalmente pareci-
das em Estados vizinhos e, de modo mais controvertido, povos vizinhos
culturalmente distintos que os Estados-núcleos desejam dominar por
motivos de segurança. Os Estados desses blocos civilizacionais tendem
freqüentemente a estar distribuídos em círculos concêntricos em tomo
do Estado ou Estados-núcleos, refletindo seu grau de identificação e
integração com esse bloco. Carecendo de um Estado-núcleo, o Islã está
intensificando sua percepção comum, porém até agora só desenvolveu
uma rudimentar estrutura política comum.
Os países tendem a atrelar-se a países de cultura semelhante e a
manter um equilíbrio com os países com os quais não têm aspectos
culturais em comum. Isso é especialmente verdadeiro com relação aos
Estados-núcleos. Seu poderio atrai aqueles que são culturalmente seme-
lhantes a eles e repele aqueles que são culturalmente diferentes. Por

102.
-,
motivos de segurança, os Estados-núcleos podem tentar incorporar ou
dominar alguns povos de outras civilizações, os quais, por sua vez, tentam
resistir ou escapar a tal controle (China versus tibetanos e uigures; Rússia
versustártaros, chechenos e muçulmanos centro-asiáticos). Os relaciona-
mentos históricos e considerações de equilíbrio de poder também levam
alguns países a resistir à influência de seu Estado-núcleo. Tanto a Geór~ia
como a Rússia são países ortodoxos, porém, historicamente, os georgia-
nos resistiram à dominação russa e a uma íntima associação com a Rússia.
o Vietnã e a China são ambos países confucianos e, no entanto, um
padrão comparável de inimizade histórica sempre existiu entre os dois.
Ao longo do tempo, porém, os aspectos culturais em comum e o
desenvolvimento de uma percepção civilizacional mais ampla e mais
forte têm a probabilidade de fazer esses países se juntarem, como se
juntaram os países da Europa Ocidental.
Durante a Guerra Fria, a ordem que possa ter existido era fruto da
dominação pelas superpotências de seus respectivos blocos e da influên-
cia das superpotências no Terceiro Mundo. No mundo que está surgindo,
o poder global tomou-se obsoleto, a comunidade global, um sonho
longínquo. Nenhum país, inclusive os Estados Unidos, tem importantes
interesses globais de segurança. Os componentes da ordem no mundo
atual, mais complexo e heterogêneo, se encontram dentro das civiliza-
ções e entre elas. O mundo será ordenado com base nas civilizações ou
não será ordenado de forma alguma. Nesse mundo, os Estados-núcleos
das civilizações assumem o lugar das superpotências. Eles são a fonte da
ordem no seio das civilizações e, através de negociações com outros
Estados-núcleos, entre as civilizações. A ordem, se é que existe alguma
na Bósnia, requer a cooperação dos Estados Unidos, das potências
européias e da Rússia.
Um mundo no qual os Estados-núcleos desempenham um papel
de liderança ou predominante é um mundo de esferas de influência. Mas
é também um mundo no qual o exercício da influência pelo Estado-nú-
cleo é temperado e moderado pela cultura em comum que ele comparti-
lha com Estados-membros de sua civilização. Os aspectos culturais em
comum legitimam a liderança e o papel de impor a ordem que o
Estado-núcleo desempenha, tanto em relação aos Estados-membros
como às potências e instituições externas. Entretanto, em 1994, o
secretário-geral das Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali, promulgou
uma regra de "manutenção de esfera de influência" no sentido de que a
potência regional predominante não pode prover mais de um terço da

194
,
força de paz das Nações Unidas. Essa ex1gencia contraria a realidade
geopolítica de que, em qualquer região onde exista um Estado predomi-
nante, a paz só pode ser conseguida e mantida através da liderança desse
Estado. As Nações Unidas não constituem uma alternativa do poder regional
e o poder regional se toma responsável e legítimo quando é exercido por
Estados-núcleos em relação a outros membros de sua civilização.
Um Estado-núcleo pode desempenhar sua função de ordenamento
porque os Estados-membros o vêem como seu parente cultural. Uma
civilização é uma família ampliada e, como os membros mais velhos de
uma família, os Estados-núcleos proporcionam a seus parentes apoio e
disciplina. Na ausência desse laço de parentesco, fica limitada a capaci-
dade de um Estado mais poderoso de resolver conflitos e de impor a ordem
na sua região. O Paquistão, Bangladesh e até mesmo Sri Lanka não aceitarão
a Índia como a provedora da ordem na Ásia Meridional e nenhum Estado
da Ásia Oriental aceitará que o Japão desempenhe tal papel nessa região.
Quando as civilizações carecem de Estados-núcleos, os problemas
de criar a ordem no seio dessas civilizações ou negociar a ordem entre
civilizações se torna mais difícil. A ausência de um Estado-núcleo islâmico
que pudesse, com legitimidade e autoridade, relacionar-se com a Bósnia,
como a Rússia fez com os sérvios e a Alemanha, com os croatas, impeliu
os Estados Unidos a tentar desempenhar esse papel. A ineficácia com
que o fez derivou da falta de interesse estratégico norte-americano quanto
às fronteiras traçadas na ex-Iugoslávia, da inexistência de qualquer
ligação cultural entre os Estados Unidos e a Bósnia e da oposição
européia à criação de um Estado muçulmano na Europa. Analogamente,
a ausência de um Estado-núcleo latino-americano obrigou os Estados
Unidos a desempenharem o papel principal na questão do Haiti, quando
suas ações foram, por sua vez, criticadas pelos países latino-americanos
como sendo as de um interventor extracivilizacional. A ausência de
Estados-núcleos tanto na África como no mundo árabe complicou
enormemente os esforços por resolver a continuada guerra civil no
Sudão. Por outro lado, onde existem Estados-núcleos, eles constituem os
elementos fundamentais da nova ordem internacional baseada nas
civilizações.

DEMARCANDO O OCIDENTE

Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos estavam no centro de um


agrupamento grande, variado e multicivilizacional de países que com-
partilhavam do objetivo de impedir uma maior expansão da União

1oc;
Soviética. Esse agrupamento, conhecido por várias designações como o
"Mundo Livre", o "Ocidente" ou os "Aliados", incluía muitas das socieda-
des ocidentais, mas não todas, além de Turquia, Grécia, Japão, Coréia
do Sul, Filipinas, Israel e, de forma mais flexível, outros países como
Taiwan, Tailândia e Paquistão. A ele se opunha um agrupamento de países
apenas ligeiramente heterogêneos, que incluía todos os países ortodoxos
com exceção da Grécia, vários países que tinham sido historicamente
ocidentais, além de Vietnã, Cuba, em menor grau a Índia e, às vezes, um
ou mais países african,os. Com o término da Guerra Fria, esses agrupa-
mentos multicivilizacionais e de diversas culturas se fragmentaram. A
dissolução do sistema soviético, especialmente do Pacto de Varsóvia, foi
espetacular. De modo mais lento, porém análogo, o "Ocidente" multici-
vilizacional da época da Guerra Fria está sendo reconfigurado como um
novo agrupamento, que mais ou menos coincide com a civilização
ocidental. Um processo de demarcação está em curso, envolvendo a
definição dos membros dos organismos internacionais ocidentais.
Os Estados-núcleos da União Européia - França e Alemanha -
estão rodeados primeiro por um agrupamento interior composto por
Bélgica, Holanda e Luxemburgo, que concordaram em eliminar todas as
barreiras ao trânsito de bens e pessoas; depois os outros países-membros
como a Itália, Espanha, Portugal, Dinamarca, Grã-Bretanha, Irlanda e
Grécia; Estados que se tomaram membros em 1995 (Áustria, Finlândia e
Suécia) e pelos países que até então eram membros associados (Polônia,
Hungria, República Checa, Eslováquia, Bulgária e Romênia). Refletindo
essa realidade, no outono de 1994 o partido no poder na Alemanha e
altas autoridades francesas apresentaram propostas para uma União
diferenciada. O plano alemão propôs que o "núcleo central" consistisse
dos membros originais menos a Itália e que "a Alemanha e a França
formassem o núcleo do núcleo central". Os países do núcleo central iriam
tentar implantar rapidamente uma união monetária e integrar suas
políticas exterior e de defesa. Quase simultaneamente, o primeiro-minis-
tro Edouard Balladur sugeriu uma União de três níveis, com os cinco
Estados pró-integração formando o núcleo, os outros Estados-membros
atuais um segundo círculo e os novos Estados a caminho de se tomarem
membros compondo um círculo exterior. Posteriormente, o ministro do
Exterior francês, Alain Juppé, elaborou mais esse conceito, propondo
"um círculo exterior de Estados 'parceiros', incluindo a Europa Central e
Oriental, um círculo intermediário de Estados-membros que seriam
obrigados a aceitar disciplinas comuns em certos campos (mercado

196
único, união aduaneira, etc.) e vários círculos interiores de 'solidariedade
reforçada', que incorporariam aqueles que tivessem a disposição e a
capacidade de avançar mais depressa do que outros em áreas como
defesa, integração monetária, política externa e assim por diante" .1 Outros
líderes políticos propuseram outros tipos de acordos, todos, entretanto,
envolviam um agrupamento interior de Estados associados mais intima-
mente e depois agrupamentos exteriores de Estados integrados de forma
menos ampla com o Estado-núcleo, até que se chega à linha que separa
os membros dos não-membros.
O estabelecimento dessa linha na Europa tem sido um dos princi-
pais desafios com que se defronta o Ocidente no mundo pós-Guerra Fria.
Durante a Guerra Fria, a Europa não existia como um todo. Entretanto,
com o colapso do comunismo, tornou-se necessário enfrentar e respon-
der a pergunta: o que é a Europa? As fronteiras da Europa ao Norte, a
Oeste e ao Sul são delimitadas por grandes massas d'água, que, ao Sul,
coincidem com nítidas diferenças de cultura. Porém, onde fica a fronteira
leste da Europa? Que países devem ser considerados como europeus e,
por conseguinte, membros em potencial da União Européia, da OTAN e
de organizações análogas?
A resposta mais atraente e abrangente a essas indagações é dada
pela grande linha histórica que existiu durante séculos separando os
povos cristãos ocidentais dos povos muçulmanos e ortodoxos. Essa linha
data da divisão do Sacro Império Romano no século X. Ela esteve
aproximadamente no mesmo lugar que ocupa atualmente há pelo menos
SOO anos. Começando no Norte, ela corre ao longo do que são hoje as
fronteiras entre a Finlândia e a Rússia, entre esta e os Estados bálticos
(Estônia, Letônia e Lituânia), passando pela Bielo-Rússia ocidental,
através da Ucrânia, onde separa o oeste uniata e o leste ortodoxo,
cruzando a Romênia entre a Transilvânia, com sua população húngara
católica, e o resto do país, e depois pela ex-Iugoslávia, ao longo da
fronteira que separa a Eslovênia e a Croácia das outras repúblicas. Nos
Bálcãs, é claro, essa linha coincide com a divisão histórica entre os
Impérios Austro-húngaro e Otomano. Ela é a fronteira cultural da Europa
e, no mundo pós-Guerra Fria, ela é também a fronteira política e
econômica da Europa e do Ocidente.
Um enfoque civilizacional fornece uma resposta precisa e atraente
para a questão com que se defrontam os europeus ocidentais: onde
termina a Europa? A Europa termina onde o Cristianismo ocidental
termina e começam o Islamismo e a Ortodoxia. Esta é a resposta que os

10'7
Cristianismo Cristianismo
Ocidental por Ortodoxo
volta de 1500 e Islã

• •

A Fronteira
Leste Oriental da
Civilização Ocidental
MILHA
. Fonte:
W. Woll..,e. A Transforma\i).o da Europa Ocidental
~ f'km.mo.
...... fti~twl'OllD:lN .Amm.
europeus ocidentais desejam ouvir, que eles apóiam majoritariamente
em voz baixa e que diversos intelectuais e líderes políticos endossaram
explicitamente. Como Michael Howàrd sustentou, é preciso reconhecer
a distinção, um tanto nebulosa durante os anos soviéticos, entre a Europa
Central ou Mitteleuropa e a Europa Oriental propriamente dita. A Europa
Central inclui "aquelas terras que outrora formavam parte da Cristandade
ocidental, as antigas terras do Império Habsburgo -Áustria, Hungria e
Checoslováquia, juntamente com a Polônia e as regiões orientais da
Alemanha. O termo 'Europa Oriental' devia ficar reservado para aquelas
regiões que se desenvolveram sob a égide da Igreja Ortodoxa: as
comunidades do Mar Negro na Bulgária e na Romênia, que só emergiram
da dominação otomana no século XIX, e as partes 'européias' da União
Soviética". A primeira prova da Europa Ocidental, argumentou ele, deve
ser "reabsorver os povos da Europa Central na nossa comunidade cultural
e econômica, à qual eles devidamente pertencem: reatar os laços entre
Londres, Paris, Roma e Munique, de um lado, e Leipzig, Varsóvia, Praga
e Budapeste, de outro. Dois anos depois, Pierre Behar comentou que
está surgindo "uma nova linha de fratura, uma divisória basicamente
cultural entre uma Europa marcada pelo Cristianismo ocidental (Católico
Romano ou Protestante), por um lado, e uma Europa marcada pelas
tradições do Cristianismo oriental e do Islamismo, por outro". Um
destacado finlandês viu de modo análogo a divisão crucial da Europa
substituindo a Cortina de Ferro como "a antiga linha de fratura cultural
entre Leste e Oeste", que coloca "as terras do antigo Império Austro-hún-
garo, bem como a Polônia e os Estados bálticos" dentro da Europa do
Ocidente e os outros países da Europa Oriental e os países balcânicos fora
dela. Um inglês ilustre concordou com que essa era "a grande divisória(. .. )
entre as Igrejas oriental e ocidental: de forma genérica, entre aqueles povos
que receberam o seu Cristianismo diretamente de Roma ou através de seus
intermediários celtas ou germânicos, e aqueles no Leste e no Sudeste
para quem ele veio atrayés de Constantinopla (Bizâncio)". 2
As pessoas na Europa Central também salientam a importância
dessa linha divisória. Os países que conseguiram um progresso notável
em se desvencilhar dos legados do comunismo e em se mover na direção
de uma política democrática e de economias de mercado estão separados

1
daqueles que não o conseguiram "pela linha que divide o Catolicismo e
o Protestantismo, de um lado, e a Ortodoxia, de outro". O presidente da
Lituânia argumentou que, séculos atrás, os lituanos tiveram que escolher
entre "duas civilizações" e "optaram pelo mundo Latino, se converteram

100
ao Catolicismo Romano e escolheram uma forma de organização do
Estado fundamentada na lei". Com palavras análogas, os poloneses dizem
que eles fazem parte do Ocidente desde a escolha que fizeram no século
X do Cristianismo latino contra Bizâncio.3 Em contraste, as pessoas dos
países ortodoxos da Europa Oriental vêem com ambivalência a nova
ênfase que é atribuída a essa linha de fratura cultural. Os búlgaros e os
romenos vêem grandes vantagens em fazer parte do Ocidente e em se
incorporarem às suas instituições, porém eles também se identificam com
a sua própria tradição ortodoxa e, por parte dos búlgaros, com sua
associação historicamente estreita com a Rússia.
A identificação da Europa com a Cristandade ocidental fornece um
critério claro para a admissão de novos membros nas organizações
ocidentais. A União Européia é a principal entidade do Ocidente na
Europa, e a expansão do número de seus membros foi retomada em 1994
com a admissão da Áustria, da Finlândia e da Suécia, culturalmente
ocidentais. Na primavera de 1994, a União decidiu em caráter provisório
vedar o acesso como membros a todas as ex-repúblicas soviéticas, com
exceção dos Estados bálticos. Ela também celebrou "acordos de as-
sociação" com quatro Estados da Europa Central (Polônia, Hungria,
República Checa e Eslováquia) e dois da Europa Oriental (Romênia e
Bulgária). Entretanto, nenhum desses Estados tem probabilidade de se
tornar membro pleno da UE até algum momento no século XXI, e os
Estados da Europa Central sem dúvida atingirão essa condição antes da
Romênia e da Bulgária, caso, na realidade, estas algum dia cheguem a
atingi-la. Nesse ínterim, a futura admissão dos Estados bálticos e da
Eslovênia parece promissora, enquanto que as solicitações feitas pela
Turquia muçulmana, pela diminuta Malta e pelo Chipre ortodoxo ainda
estavam pendentes em 1995. Na expansão do número de membros da
UE, há uma nítida preferência por aqueles Estados que são culturalmente
ocidentais e que também tendem a ser mais desenvolvidos economica-
mente. Se esse critério for aplicado, os Estados de Visegrad (Polônia,
República Checa, Eslováquia e Hungria), as repúblicas bálticas, a Eslo-
vênia, a Croácia e Malta acabarão se tornando membros da UE e esta
será coincidente· com a civilização ocidental tal como ela exis~iu his-
toricamente na Europa.
A lógica das civilizações determina um desfecho análogo para a
expansão da OTAN. A Guerra Fria começou com a extensão do controle
político e militar da União Soviética sobre a Europa Central. Os Estados
Unidos e os países da Europa Ocidental formaram a OTAN para deter e,
se necessário, derrotar novas agressões soviéticas. No mundo pós-Guerra
Fria, a OTAN é o organismo de segurança da civilização ocidental. Com
a Guerra Fria terminada, a OTAN tem um objetivo fundamental e atraente:
assegurar que a Guerra Fria continue terminada por meio do impedimen-
to da reimposição do controle político e militar russo sobre a Europa
Central. Na qualidade de organismo de segurança do Ocidente, a OTAN
está, como é apropriado, aberta à admissão de países ocidentais que desejem
nela ingressar e que satisfaçam os requisitos básicos em termos de compe-
tência militar, democracia política e controle civil das forças armadas.
A política norte-americana em relação aos arranjos de segurança
europeus pós-Guerra Fria incorporava inicialmente um enfoque mais
universalista, encarnado na Parceria para a Paz, que estaria aberta, de
forma geral, aos países europeus e, na realidade, aos países eurasianos.
Esse enfoque também realçava o papel da Organização sobre Segurança
e Cooperação na Europa (OSCE). Ele se refletiu nas observações do
presidente Clinton quando visitou a Europa em janeiro de 1994: "As
fronteiras da liberdade devem agora ser definidas por um novo compor-
tamento, não pela história antiga. Digo a todos (. .. ) que irão traçar uma
nova linha na Europa: não devemos excluir previamente a possibilidade do
melhor futuro para a Europa - democracia por toda parte, economias de
mercado por toda parte, países cooperando pela segurança mútua por toda
parte. Precisamos nos resguardar contra um desfecho menor." Entretanto,
um ano depois, o governo tinha chegado ao reconhecimento da importân-
cia das fronteiras definidas pela "história antiga", e tinha chegado à
aceitação de um "desfecho menor" refletindo as realidades das diferenças
civilizacionais. O governo agiu de modo incisivo para desenvolver os
critérios e um cronograma para a expansão do número de membros da
OTAN, primeiro incluindo a Polônia, a Hungria, a República Checa e a
Eslováquia e depois, provavelmente, as repúblicas bálticas.
A Rússia se opôs firmemente a qualquer expansão da OTAN, com
aqueles dentre os russos que eram presumivelmente mais liberais e
pró-ocidentais argumentando que a expansão iria fortalecer muito as
forças políticas nacionalistas e antiocidentais na Rússia. Contudo, a
expansão da OTAN limitada aos países que historicamente fizeram parte
da Cristandade ocidental também garantia à Rússia que seriam excluídas
a Sérvia, a Bulgária, a Romênia, a Moldova, a Bielo-Rússia e a Ucrânia,
enquanto esta última permanecesse unida. A expansão da OTAN limitada
aos Estados ocidentais também sublinharia o papel da Rússia como o
Estado-núcleo de uma civilização ortodoxa à parte e, portanto, como um

201
país que deveria ser responsável pela ordem dentro e ao longo das
fronteiras da Ortodoxia, e que poderia e deveria lidar numa base de
igualdade com a OTAN e com os Estados-núcleos ocidentais.
A utilidade de se fazer uma diferenciação entre os países em termos
de civilização fica evidenciada no caso das repúblicas bálticas. Elas são
as únicas ex-repúblicas soviéticas que são claramente ocidentais em
termos de história, cultura e religião, e seu destino foi sempre uma grande
preocupação para o Ocidente. Os Estados Unidos nunca reconheceram
sua incorporação pela União Soviética, apoiaram sua ação pela indepen-
dência quando a União Soviética começou a desmoronar e insistiram em
que a Rússia tinha que observar o cronograma acordado para a retirada
de suas tropas dessas repúblicas. A mensagem para os russos foi de que
1

eles tinham que reconhecer que os países bálticos estão fora de qualquer
esfera de influência que desejem estabelecer em relação a outras
ex-repúblicas soviéticas. Esse resultado positivo do governo Clinton foi,
como disse o primeiro-ministro da Suécia, "uma de suas mais importantes
contribuições para a segurança e a estabilidade européias", e ajudou os
democratas russos ao determinar que quaisquer desígnios revanchistas
de nacionalistas extremados russos eram inúteis diante de um com-
promisso explícito ocidental para com essas repúblicas. 4
Embora se tenha dedicado muita atenção à expansão da União
Européia e da OTAN, a reconfiguração cultural dessas organizações
também suscita a questão de sua possível contração. Um país não-oci-
dental, a Grécia, é membro de ambas as organizações, e outro, a Turquia,
é membro da OTAN e candidato a membro da União. Esses relaciona-
mentos foram fruto da Guerra Fria. Será que eles têm cabimento no
mundo das civilizações pós-Guerra Fria?
A Turquia é um país dividido. Sua participação plena na União
Européia é problemática e improvável e sua participação na OTAN foi
atacada pelo Partido do Bem-Estar. Entretanto, é provável que a Turquia
continue como membro da OTAN, a menos que o Partido do Bem-Estar
consiga uma vitória eleitoral retumbante e/ou a Turquia, por alguma
outra forma, rejeite o legado de Ataturk e se redefina como líder do Islã.
Isso é concebível e poderia ser desejável para a Turquia, mas também é
improvável no futuro imediato. Qualquer que seja o seu papel na OTAN,
é provável que a Turquia cada vez mais busque seus próprios interesses
com relação aos Bálcãs, ao mundo árabe e à Ásia Central.
A Grécia não faz parte da civilização ocidental, porém foi a sede da
civilização clássica que, por sua vez, foi uma fonte importante da

202
civilização ocidental. Na sua oposição aos turcos, os gregos hist~~i­
camente se consideraram como os lanceiros do Cristianismo. Ao contrano
de sérvios, romenos e búlgaros, sua história está intimamente entrelaçada
com a do Ocidente. No entanto, a Grécia também é uma anomalia, o
estranho ortodoxo nas organizações ocidentais. Nunca foi fácil para ela
ser membro quer da UE quer da OTAN, e ela teve dificuldades em se
adaptar aos princípios e costumes de ambas. De meados da década de
60 a meados da de 70, ela foi governada por uma junta militar e só pôde
entrar para a Comunidade Européia depois de passar a ser uma demo-
cracia. Seus dirigentes freqüentemente parecem se esforçar por desviar-se
das normas ocidentais e por antagonizar os governos ocidentais. Ela era
mais pobre do que os outros membros da Comunidade e da OTAN e,
muitas vezes, adotava políticas que pareciam desrespeitar os padrões
vigentes em Bruxelas. Seu comportamento na presidência do Conselho
da UE em 1994 exasperou outros membros, e autoridades européias
ocidentais, em privado, consideram um erro tê-la como membro.
No mundo pós-Guerra Fria, as políticas da Grécia se afastam cada
vez mais das do Ocidente. O bloqueio que impôs à Macedônia teve a
encarniçada oposição dos governos ocidentais e resultou na moção, pela
Comissão Européia, de uma ação cominatória contra a Grécia na Corte
Européia de Justiça. No contexto de seus conflitos com a ex-Iugoslávia,
a Grécia se separou das políticas adotadas pelas principais potências
ocidentais, apoiou ativamente os sérvios e violou flagrantemente as
sanções das Nações Unidas a eles impostas. Com o fim da União Soviética
e da ameaça comunista, a Grécia tem interesses mútuos com a Rússia em
oposição a seu inimigo comum, a Turquia. Ela permitiu que a Rússia
estabelecesse uma presença importante na parte grega de Chipre e, como
resultado de "sua religião ortodoxa oriental compartilhada", os cipriotas
gregos acolheram tanto russos como sérvios na ilha.5 Em 1995, cerca de
duas mil empresas de propriedade russa estavam operando em Chipre,
ali se publicavam jornais russos e servo-croatas e o governo cipriota grego
estava comprando grandes quantidades de armamento da Rússia. A
Grécia também explorou com a Rússia a possibilidade de trazer petróleo
do Cáucaso e da Ásia Central até o Mediterrâneo, por meio de um
oleoduto búlgaro-grego contornando a Turquia e outros países muçul-
manos. De modo geral, as diretrizes da política externa grega assumiram
uma orientação com forte teor ortodoxo. A Grécia indubitavelmente
continuará sendo, formalmente, membro da OTAN e da União Européia.
Entretanto, à medida que se intensifique o processo de reconfiguração

')(12
cultural, essas participações sem dúvida ficarão mais tênues, menos
significativas e mais difíceis para as partes envolvidas. O antagonista da
União Soviética na Guerra Fria está evoluindo para o aliado pós-Guerra
Fria da Rússia.

A RÚSSIA E O SEU EXfERIOR PRÓXIMO

A Rússia é um país dividido, mas também é o Estado-núcleo de uma


importante civilização. O sistema que sucedeu aos impérios tzarista e
comunista é um bloco civilizacional, que em muitos aspectos segue em
paralelo ao do Ocidente na Europa. No seu núcleo, a Rússia - o
equivalente da França e da Alemanha - está intimamente ligada com
um círculo interior que inclui as duas repúblicas predominantemente
ortodoxas eslavas da Bielo-Rússia e de Moldova, o Casaquistão, com 40
por cento da população compostos por russos, e a Armênia, his-
toricamente um íntimo aliado da Rússia. Em meados dos anos 90, todos
esses países possuíam governos pró-russos, que, de forma geral, tinham
chegado ao poder pelas urnas. Há relações estreitas, porém mais tênues,
entre a .Rússia e a Geórgia (predominantemente ortodoxa) e a Ucrânia
Cem grande parte ortodoxa), mas que têm também fortes sentimentos de
identidade nacional e de independência no passado. Nos Bálcãs ortodo-
xos, a Rússia tem relações estreitas com a Bulgária, a Grécia, a Sérvia e
Chipre, e um tanto menos estreitas com a Romênia. As repúblicas
muçulmanas da antiga União Soviética desenvolveram alguns mecanis-
mos de cooperação entre si, e têm sido cortejadas pela Turquia e por
outros Estados muçulmanos. Contudo, elas continuam muito depen-
dentes da Rússia, tanto economicamente quanto no campo da segurança.
Em contraste, as repúblicas bálticas, respondendo à atração gravitacional
da Europa, efetivamente se retiraram da esfera de influência russa.
De modo geral, a Rússia está criando sob sua liderança um bloco
com um coração ortodoxo e uma zona tampão de Estados islâmicos
relativamente fracos que ela irá, em graus diferentes, dominar, e nos quais
ela tentará excluir a influência de outras potências. Além disso, a Rússia
espera que o mundo aceite e aprove esse sistema. Como disse Yeltsin
em fevereiro de 1993, os governos estrangeiros e os organismos interna-
cionais precisam "outorgar à Rússia poderes especiais como uma garantia
da paz e da estabilidade nas regiões que eram parte da antiga URSS".

l
Enquanto a União Soviética era uma superpotência com interesses
g!o.~ais,. a Rússia é uma potência importante com interesses regionais e
c1vtl1zac1onais.

?f\A
Os países ortodoxos da antiga União Soviética são fundamentais
para o desenvolvimento de um bloco russo coerente nas questões
eurasianas e mundiais. Durante o desmembramento da União Soviética,
todos esses cinco países se moveram inicialmente numa direção altamen-
te nacionalista, enfatizando sua nova independência e seu distanciamento
de Moscou. Posteriormente, o reconhecimento das realidades econômi-
cas, geopolíticas e culturais levou os eleitores em quatro deles a eleger
governos pró-russos e a apoiar políticas pró-russas. Nesse países as
pessoas olham para a Rússia em busca de apoio e proteção. No quinto,
a Geórgia, a intervenção militar russa obrigou a uma mudança análoga
na posição do governo.
Historicamente, a Armênia identificou seus interesses com a Rússia,
e esta se orgulhava de ser a defensora da Armênia contra seus vizinhos
muçulmanos. Esse relacionamento foi revigorado nos anos pós-soviéticos.
Os armênios dependem da assistência econômica e militar russa e apoiaram
a Rússia em questões vinculadas às relações com as antigas repúblicas
soviéticas. Os dois países têm interesses estratégicos convergentes.
Ao contrário da Armênia, a Bielo-Rússia tem um reduzido sentimen-
to de identidade nacional. Além disso, ela é ainda mais dependente da
assistência russa. Muitos de seus habitantes parecem se identificar tanto
com a Rússia quanto com seu próprio país. Em janeiro de 1994, o
Legislativo substituiu no cargo de chefe de Estado um nacionalista
moderado, de centro, por um conservador pró-russo. Em julho de 1994,
80 por cento dos eleitores escolheram para presidente um pró-russo
extremado, aliado de Vladimir Zhirinovsky. A Bielo-Rússia logo aderiu à
Comunidade dos Estados Independentes (CEI), foi membro fundador da
união ec;~ôrnica-criada.-em-199".)com a Rússia e a Ucrânia, concordou
com uma união monetária com a Rússia, entregou suas armas nucleares
à Rússia e concordou com o aquartelamento de tropas russas em seu
território até o final deste século. Na realidade, a Bielo-Rússia só não é
parte da Rússia no nome.
Depois que, com o colapso da União Soviética, a Moldava ficou
independente, muitos esperavam que ela acabasse por se reintegrar à
Romênia. O medo de que isso acontecesse, por sua vez, estimulou um
movimento secessionista no leste russificado, com o apoio tácito de
Moscou e o apoio ativo do 14° Exército russo, e que levou à criação da
República do Trans-Dniestr. Entretanto, os desejos dos moldóvios de
união com a Romênia arrefeceram, em decorrência dos problemas
econômicos dos dois países e da pressão econômica russa. A Moldava
aderiu à CEI e o comércio com a Rússia se expandiu. Em fevereiro de 1994,
os partidos pró-russos tiveram amplo êxito nas eleições parlamentares.
Nesses três Estados, a opinião pública, respondendo a uma certa
combinação de interesses estratégicos e econômicos, produziu governos
que favoreciam um alinhamento estreito com a Rússia. Um padrão algo
semelhante acabou ocorrendo na Ucrânia. Na Geórgia, o curso dos
acontecimentos foi diferente. A Geórgia foi um país independente até
1801, quando seu monarca, o rei George XIII, pediu a proteção russa
contra os turcos. Durante três anos depois da Revolução Russa, de 1918
a 1921, a Geórgia ficou mais uma vez independente, porém os bolchevis-
tas a incorpora;a~ à força à Uniã~ Soviética.\Qua~do a Uni:o Soviética
acabou, a Georgia uma vez mais declarou sua mdependencia. Uma
coalizão nacionalista ganhou as eleições, porém seu líder se engajou
numa repressão autodestrutiva e foi derrubado pela força. Edvard A.
Shevarnadze, que tinha sido ministro do Exterior da União Soviética
retornou para dirigir seu país e foi confirmado no poder nas eleições'
presidenciais, em 1992 e em 1995. Entretanto, foi confrontado por um
movimento separatista em Abkhásia, que recebeu considerável apoio
russo, bem como por uma insurreição pelo líder deposto, Gamsakhurdia.
Emulando o rei George, Shevarnadze chegou à conclusão de que "não
temos uma grande escolha" e voltou-se para Moscou em busca de auxílio.
As tropas russas intervieram para apoiá-lo, em troca do ingresso da
Geórgia na CEI. Em 1994, os georgianos concordaram em permitir que
os russos mantivessem três bases militares por um período indeter-
minado. Desse modo, a intervenção militar russa, primeiro para debilitar
o governo georgiano e depois para preservá-lo, trouxe a Geórgia, apesar
do seu espírito de independência, para o campo russo.
Afora a Rússia, a maior e mais importante ex-república soviética é
a Ucrânia. Em diversos momentos da História, a Ucrânia foi indepen-
dente. Contudo, durante a maior parte da era moderna ela fez parte de
uma entidade política governada de Moscou. O acontecimento decisivo
teve lugar em 1654, quando Bohdan Khmelnytsky, o líder cossaco de um
levante contra o domínio polonês, concordou em jurar lealdade ao tzar
em troca de ajuda contra os poloneses. A partir de então, até 1991, exceto
por um breve período como república independente, entre 1917 e 1920,
0
que é agora a Ucrânia foi controlado politicamente por Moscou.
Entretanto, a Ucrânia é um país rachado, com duas culturas distintas. A
linha de fratura civilizacional entre o Ocidente e a Ortodoxia passa através
J
do seu coração, e é assim há séculos. Em alguns momentos no passado,
a Ucrânia ocidental foi parte da Polônia, da Lituânia e do Império
Austro-húngaro. Uma grande parcela da sua população pertence à Igreja
Uniata, que pratica os ritos ortodoxos, mas reconhece a autoridade do
Papa. Historicamente, os ucranianos ocidentais sempre falaram ucraniano
e adotaram uma perspectiva fortemente nacionalista. As pessoas da
Ucrânia oriental, por outro lado, são predominantemente ortodoxas e,
em grande parte, falam russo. Os russos representam 22 por cento e os
que têm o russo como língua materna, 31 por cento do total da população
ucraniana. A maioria dos alunos das escolas primárias e secundárias têm
suas aulas em russo.6 A Criméia é predominantemente russa e fez parte
da Federação Russa até 1954, quando Krushchev a transferiu para a
Ucrânia, ostensivamente como reconhecimento pela decisão de Khmel-
nytsky de 300 anos antes.
As diferenças entre a Ucrânia oriental e ocidental se manifestam nas
atitudes de suas populações. No final de 1992, por exemplo, um terço
dos russos da Ucrânia ocidental disse que era alvo de animosidade
anti-russa, em comparação com apenas 10 por cento em Kiev.7 A divisão
entre leste e oeste ficou evidenciada de modo espetacular nas eleições
presidenciais de julho de 1994. O presidente no cargo, Leonid Kravchuk,
que se identificava como nacionalista apesar de trabalhar intimamente
com os dirigentes da Rússia, ganhou nas 13 províncias da Ucrânia
ocidental com maiorias que chegavam a até 90 por cento dos votos. Seu
adversário, Leonid Kuchma, que tomou aulas de ucraniano durante a
campanha, ganhou nas 13 províncias orientais por maiorias comparáveis.
No cômputo final, Kuchma ganhou com 52 por cento dos votos. Na
realidade, uma pequena maioria do povo ucraniano confirmou em 1994
a opção de Khmelnytsky em 1654. Como um perito norte-americano
comentou, a eleição "refletiu, cristalizou mesmo, a divisão entre os
eslavos europeizados da Ucrânia ocidental e a visão russo-eslava do que
a Ucrânia deveria ser. Não se trata tanto de polarização étnica, mas
sobretudo de culturas diferentes". 8
Como resultado dessa divisão, as relações entre a Ucrânia e a Rússia
poderiam se desenvolver de uma de três maneiras. No início dos anos
90, havia questões seriamente importantes entre os dois países a respeito
de armas nucleares, a Criméia, os direitos do russos na Ucrânia, a
esquadra do Mar Negro e as relações econômicas. Muitas pessoas
achavam que havia a probabilidade de um conflito armado, o que levou
alguns analistas ocidentais a argumentar que o Ocidente devia apoiar a

?f\7
\
UCRÂNIA: um país rachado

RÚSSIA

Resultados preliminares oficiais


Regiões que votaram por:
CJ leoníd Kuchma
CJ leonid Kravchuk
' Dados mostram final de percentagem•
de votos para Kuchma e Kravdiuk
*Totn! inch1i volt'!S nulos.

tese de a Ucrânia possuir um arsenal nuclear a fim de deter uma agressão


russa.9 Entretanto, se o que conta é a civilização, a probabilidade de
violência entre ucranianos e russos deve ser baixa. São dois povos
eslavos, basicamente ortodoxos, que têm um relacionamento íntimo há
séculos, e são comuns os casamentos entre eles. A despeito de questões
profundamente controvertidas e da pressão de nacionalistas extremados
de ambos os lados, os dirigentes dos dois países têm trabalhado com
empenho, e com grande dose de êxito, para moderar essas controvérsias.
A eleição na Ucrânia, em meados de 1994, de um presidente declarada-
mente orientado para a Rússia, reduziu ainda mais a probabilidade de
um conflito exacerbado entre os dois países. Enquanto, em outras partes
da antiga União Soviética, ocorreram sérias lutas entre muçulmanos e
cristãos, e houve muita tensão e algumas lutas entre cristãos ocidentais
e ortodoxos nos Estados bálticos, ao se chegar a 1995 não havia ocorrido
praticamente nenhuma violência entre ucranianos e russos.
Uma segunda e maior possibilidade é a de que a Ucrânia possa se
partir, seguindo sua linha de fratura, em duas entidades separadas, das
quais a oriental poderia se fundir com a Rússia. A questão da secessão

20R
primeiro apareceu em relação à Criméia. O povo da Criméia, cujo
percentual de russos está em 70 por cento, apoiou de forma ampla a
independência da Ucrânia da União Soviética num plebiscito em dezem-
bro de 1991. Em maio de 1?92, o Parlamento da Criméia também aprovou
uma moção para declarar sua independência da Ucrânia e depois, sob
pressão ucraniana, rescindiu essa decisão. Entretanto, o Parlamento russo
decidiu por votação cancelar a cessão da Criméia à Ucrânia feita em 1954.
Em janeiro de 1994, o povo da Criméia elegeu como presidente um
homem que fizera sua campanha com a plataforma de "união com a
Rússia". Isso induziu algumas pessoas a levantarem a questão: "Irá a
Criméia ser o próximo Nagomo-Karabakh ou Abkhásia?" 1º A resposta foi
um rotundo "Não!", enquanto o novo presidente da Criméia recuava de
seu compromisso de realizar um plebiscito sobre a independência e, em
vez disso, negociou com o governo de Kiev. Em maio de 1994, a situação
voltou a esquentar quando o Parlamento da Criméia votou a restauração
da Constituição de 1992, que a tomava virtualmente independente da
Ucrânia. Entretanto, uma vez mais, a moderação dos dirigentes russos e
ucranianos impediu que essa questão acabasse em violência e a vitória
nas eleições realizadas dois meses depois de Kuchma, pró-russo, como
presidente da Ucrânia, solapou a pressão pela secessão da Criméia.
Não obstante, essa eleição suscitou a possibilidade de que a parte
ocidental do país se separasse de uma Ucrânia que estava cada vez mais
chegada à Rússia. Alguns russos podiam ver isso com bons olhos. Como
comentou um general russo, "a Ucrânia, ou melhor, a Ucrânia oriental voltará
em cinco, 10 ou 15 anos. A Ucrânia ocidental pode ir para o infemo!". 11
Entretanto, tal pedaço remanescente de uma Ucrânia uniata e orientada para
o Ocidente só seria viável se tivesse um apoio forte e eficaz do Ocidente.
Por seu lado, esse apoio só teria probabilidade de se concretizar se as
relações entre o Ocidente e a Rússia se deteriorassem seriamente e viessem
a se parecer com as que existiam na época da Guerra Fria.
O terceiro e mais provável cenário é o de que a Ucrânia permanecerá
unida, permanecerá rachada, permanecerá independente e, de modo geral,
cooperará estreitamente com a Rússia. Uma vez resolvidas as questões
transitórias a respeito de armas nucleares e de forças armadas, as questões
de longo prazo mais graves serão as econômicas, cuja solução será facilitada
por uma cultura parcialmente compartilhada e por íntimos laços pessoais.
John Morrison assinalou que o relacionamento russo-ucraniano representa
para a Europa Oriental o que o relacionamento franco-alemão representa
para a Europa Ocidental.12 Da mesma forma que este constitui o núcleo
\
da União Européia, o primeiro é o núcleo essencial para a união do mundo
ortodoxo.

A GRANDE CHINA E SUA ESFERA DE CO-PROSPERIDADE

Através da História, a China concebeu a si mesma como abrangendo uma


"Zona Sínica", que incluía a Coréia, o Vietnã, as ilhas Liu Chiu e, às vezes,
0 Japão; uma "Zona Asiática Interior" de não-chineses - manchus,
mongóis, uigures, turcos e tibetanos, que tinham que ser controlados por
motivos de segurança-; e depois uma "Zona Exterior" de bárbaros, que,
não obstante, "deviam pagar tributos e reconhecer a superioridade da
China" .13 A civilização sínica contemporânea está ficando estruturada de
maneira semelhante: o núcleo central da China Han, as províncias
periféricas que fazem parte da China, mas detêm considerável autonomia,
províncias que legalmente fazem parte da China mas com grande parte
da população formada por não-chineses de outras civilizações (Tibete,
Xinxiang), sociedades chinesas que irão ser ou têm probabilidade de vfr
a ser parte de uma China centrada em Pequim segundo determinadas
condições (Hong Kong, Taiwan), um Estado predominantemente chinês
cada vez mais orientado para Pequim (Singapura), populações chinesas
muito influentes na Tailândia, Vietnã, Malásia, Indonésia e Filipinas, e
sociedades não-chinesas (Coréias do Norte e do Sul, Vietnã) que, mesmo
assim, compartilham muito da cultura confuciana da China.
Durante a década de 50, a China se definia como aliada da União
Soviética. Então, após a ruptura sino-soviética, ela passou a se ver como
líder do Terceiro Mundo contra ambas as superpotências. Disso resulta-
ram grandes custos e poucos dividendos e, depois da mudança da política
norte-americana no governo Nixon, a China procurou ser o terceiro
elemento num jogo de equilíbrio de poder entre as duas superpotências,
alinhando-se com os Estados Unidos durante os anos 70, quando os Estados
Unidos pareciam fracos, e depois passando para uma posição mais eqüidis-
tante nos anos 80, quando o poder militar dos Estados Unidos aumentou e
a União Soviética declinou economicamente, ficando atolada no
Afeganistão. Entretanto, com o fim da competição das superpotências, a
"carta da China" perdeu todo o seu valor e a China se viu obrigada uma
vez mais a redefinir seu papel nas questões mundiais. Ela se fixou duas
metas: tornar-se a defensora da cultura chinesa, o pólo de atração
civilizacional de Estado-núcleo em direção ao qual iriam se orientar todas
J
1
as outras comunidades chinesas, e retomar sua posição histórica, que
perdera no século XIX, como potência hegemônica na Ásia Oriental.
Pode-se distinguir o papel emergente da China como o Estado-nú-
cleo e o pólo de atração da civilização sínica nos seguintes aspectos:
primeiro, no modo como a China descreve sua posição nas questões·
mundiais; segundo, no grau em que os chineses de ultramar se envolve-
ram economicamente na China; e terceiro, nas crescentes ligações
econômicas, políticas e diplomáticas com a China das outras três princi-
pais entidades chinesas - Hong Kong, Taiwan e Singapura - , bem
como na mais acentuada orientação na direção da China por parte dos
países do Sudeste Asiático em que os chineses têm uma influência política
significativa (Tailândia, Malásia).
O governo chinês vê a China continental como o Estado-núcleo de
uma civilização chinesa na direção da qual todas as outras comunidades
chinesas deveriam se orientar. Tendo há muito abandonado seus esforços
para promover seus interesses no exterior através de partidos comunistas
locais, o governo atualmente busca "posicionar-se como o representante
da 'chinesidade' em todo o mundo" .14 Para o governo chinês, as pessoas
de ascendência chinesa, mesmo que sejam cidadãos de um outro país,
são membros da comunidade chinesa e, por conseguinte, estão em
alguma medida sujeitas à autoridade do governo chinês. A identidade
chinesa vem a ser definida em termos raciais. Como expôs um estudioso
da República Popular da China (RPC), os chineses são pessoas da mesma
"raça, sangue e cultura". Em meados dos anos 90, esse tema era cada vez
mais mencionado por fontes chinesas governamentais e particulares. Para
os chineses e os de ascendência chinesa que vivem em sociedades
não-chinesas, a "prova do espelho" passa assim a ser a prova de quem
eles são: "Vá se olhar no espelho", é a advertência feita pelos chineses
orientados para Pequim aos de ascendência chinesa que tentam ser
assimilados no seio de sociedades estrangeiras. Os chineses da diáspora,
ou seja, os huaren ou pessoas de origem chinesa, por diferenciação dos
zhongguoren ou pessoas do Estado chinês, cada vez mais articulam a
concepção da "China cultural" como uma manifestação de sua gonshi ou
percepção em comum. A identidade chinesa, sujeita a tantos ataques do
Ocidente no século XX, está atualmente sendo reformulada em termos
dos elementos ininterruptos da cultura chinesa.15
Historicamente, essa identidade também foi compatível com os
diferentes relacionamentos com as autoridades centrais do Estado chinês.
Essa noção de identidade cultural facilita a expansão dos relacionamentos
econômicos entre as várias Chinas, ao mesmo tempo em que é reforçada
por ela. Por sua vez, essas várias Chinas têm sido importante elemento
para a promoção do rápido crescimento econômico da China continental
'
e de outras áreas, as quais, por seu turno, proporcionaram o ímpeto
material e psicológico para ressaltar a identidade cultural chinesa.
Assim sendo, a "Grande China" não é apenas uma concepção
abstrata. É uma realidade cultural e econômica que cresce rapidamente,
e que está começando a se tornar uma realidade política. Os chineses
foram responsáveis pelo espetacular desenvolvimento econômico dos
anos 80 e 90: na China continental, nos Tigres (dos quatro, três eram
chineses) e nos países do Sudeste Asiático, cujas economias estavam
dominadas por chineses. A economia da Ásia Oriental está cada vez mais
centrada na China e dominada pela China. Os chineses de Hong Kong,
Taiwan e Singapura aportaram muito do capital responsável pelo cresci-
mento da China continental nos anos 90. Em outras áreas do Sudeste
Asiático, os chineses de ultramar dominaram as economias dos seus
respectivos países. No começo da década de 90, os chineses repre-
sentavam um por cento da população das Filipinas, mas respondiam por
35 por cento das vendas das empresas de propriedade nacional. Na
Indonésia, em meados da década de 80, os chineses eram de dois a três
por cento da população, porém eram donos de cerca de 70 por cento do
capital privado doméstico. Dezessete das 25 maiores empresas eram
controladas por chineses, e consta que um conglomerado chinês respondia
por cinco por cento do PNB da Indonésia. No início dos anos 90, os chineses
formavam 10 por cento da população da Tailândia, mas eram donos de
nove dos 10 maiores grupos empresariais e respondiam por 50 por cento
do seu PNB. Os chineses são cerca de um terço da população da Malásia,
porém dominam quase totalmente a economia do país. 16 Fora Japão e
Coréia, a economia da Ásia Oriental é basicamente uma economia chinesa.
O surgimento da esfera de co-prosperidade da Grande China foi
muito facilitado por uma "rede de bambu" de relacionamentos pessoais
e de família e por uma cultura em comum. Os chineses de ultramar têm
uma capacidade muito maior do que ocidentais ou japoneses para fazer
negócios na China. Na China, a confiança e a obrigação dependem dos
relacionamentos pessoais, não de leis, contratos ou outros documentos
legais. Os homens de negócios ocidentais têm maior facilidade em fazer
transações na Índia do que na China, onde a observância de um acordo
se baseia no relacionamento pessoal entre as partes. Um japonês
proeminente comentou com inveja, em 1993, que a China se beneficiava
de "uma rede sem fronteiras de comerciantes chineses em Hong Kong,
em Taiwan e no Sudeste Asiático" .17 Um homem de negócios norte-ame-
ricano concordou, dizendo que os chineses de ultramar "têm os dotes
empresariais, têm o idioma e combinam a rede de bambu das relações
de família aos contratos. É uma enorme vantagem sobre alguém que
precisa se reportar para Akron ou Filadélfia". As vantagens dos chineses
de fora para tratar com a China continental também foram bem expostas
por Lee Kuan Yew: "Nós somos chineses étnicos. Nós compartilhamos
de certas características através de uma ascendência e uma cultura em
comum. (. .. )As pessoas sentem uma empatia natural por aqueles que
compartilham de seus atributos físicos. Esse sentimento de proximidade
é reforçado quando elas também compartilham de uma base para a
cultura e o idioma. Isso cria as condições para entrosamento e confiança
fáceis, que são os alicerces de todas as relações de negócios." 18 Na
segunda metade dos anos 80 e 90, os chineses étnicos de ultramar
puderam "demonstrar a um mundo cético que as ligações de quanxi,
através do mesmo idioma e da mesma cultura, compensam a falta de um
reinado da lei e da transparência de normas e regulamentos". As raízes
do desenvolvimento econômico numa cultura em comum foram realça-
das na Segunda Conferência Mundial de Empresários Chineses, realizada
em Hong Kong em 1993, descrita como "uma celebração do triunfalismo
chinês a que compareceram homens de negócios chineses étnicos de
todas as partes do mundo". 19 No mundo sínico, como em outras áreas,
os aspectos culturais em comum promovem o engajamento econômico.
A redução do envolvimento ocidental na China depois dos episó-
dios na Praça Tiananmen, após uma década de rápido crescimento
econômico chinês, criou as oportunidades e o incentivo para que os
chineses de ultramar capitalizassem sobre sua cultura em comum e seus
contatos pessoais para investir maciçamente na China. O resultado foi
uma expansão espetacular dos laços econômicos em geral entre as
comunidades chinesas. Em 1992, 80 por cento dos investimentos es-
trangeiros diretos na China (11,3 bilhões de dólares) vieram de chineses
de ultramar, sobretudo de Hong Kong (68,3 por cento), mas também de
Taiwan (9,3 por cento), Singapura, Macau e outras áreas. Em contraste,
o Japão participou em 6,6 por cento e os Estados Unidos em 4,6 por
cento do total. Do total dos investimentos estrangeiros acumulados de
50 bilhões de dólares, 67 por cento vieram de fontes chinesas. O
crescimento do comércio internacional foi igualmente impressionante.
As exportações de Taiwan para a China subiram de quase nada em 1986
para oito por cento do total das exportações de Taiwan em 1992,
expandindo-se nesse ano cerca de 35 por cento. As exportações de
Singapura para a China aumentaram em 22 por cento em 1992, em
comparação com um crescimento geral de suas exportações de menos
de dois por cento. Como assinalou MurrayWeidenbaum em 1993, "apesar
do atual predomínio japonês na região, a economia asiática baseada na
China está emergindo rapidamente como um novo epicentro da indústria,
do comércio e das finan\:aS. Essa área estratégica contém doses subs-
tanciais de capacidade tecnológica e manufatureira (Taiwan), uma ex-
traordinária perspicácia empresarial, de comercialização e de serviços
(Hong Kong), uma ótima rede de comunicações (Singapura), um tremen-
do manancial de capital financeiro (todos os três) e dotes muito grandes
em terras, recursos naturais e mão-de-obra (China continental)".20 Além
disso, é claro, a China continental era, em termos potenciais, o maior de
todos os mercados em expansão e, em meados dos anos 90, os
investimentos na China estavam cada vez mais orientados para as vendas
nesse mercado, bem como para as exportações a partir dele.
Os chineses nos países do Sudeste Asiático se assimilaram em graus
diferentes às populações locais, estas últimas freqüentemente nutrindo
sentimentos antichineses que, em determinadas ocasiões, como nos
distúrbios de Medan, na Indonésia, em abril de 1994, irromperam em
violência. Alguns malásios e indonésios criticaram como "fuga de capi-
tais" o fluxo de investimentos chineses para a China continental, e os
dirigentes políticos, encabeçados pelo presidente Suharto, tiveram que
tranqüilizar seus povos no sentido de que isso não iria causar danos às
suas respectivas economias. Os chineses do Sudeste Asiático, por sua
vez, insistiam em que suas lealdades eram estritamente para com seus
países de nascimento e não o de seus ancestrais. No começo dos anos
90, o fluxo de capitais chineses do Sudeste Asiático para a China
continental foi contrabalançado por investimentos taiwaneses nas Filipi-
nas, na Malásia e no Vietnã.
A combinação de um crescente poderio econômico e de uma
cultura chinesa compartilhada levou Hong Kong, Taiwan e Singapura a
se envolverem cada vez mais com a terra natal chinesa. Acomodando-se
à transferência de poder que se aproxima, os chineses de Hong Kong
começaram a se adaptar a ser governados de Pequim em vez de Londres.
Os homens de negócios e outros elementos influentes passaram a relutar
em criticar a China ou a fazer coisas que pudessem ofender a China.
Quando ofendiam, o governo chinês não hesitava em retaliar prontamen-
te. Em 1994, centenas de homens de negócios estavam cooperando com
Pequim e servindo como '.'Assessores de Hong Kong" no que era de fato
um governo paralelo. No começo dos anos 90, a influência econômica
chinesa em Hong Kong também se expandiu de forma espetacular, com
os investimentos provenientes do continente em 1993, ao que se informa,
superando os do Japão e dos Estados Unidos combinados. 21 Em meados
dos anos 90, a integração econômica entre Hong Kong e a China
continental estava praticamente concluída, com a integração política a
ser consumada em 1997.
A expansão dos laços de Taiwan com a China continental ficou mais
atrasada em comparação com a de Hong Kong. Não obstante, nos anos
80, começaram a ocorrer mudanças significativas. Durante as três décadas
seguintes a 1949, as duas repúblicas chinesas se recusavam a reconhecer
a existência ou a legitimidade uma da outra, não tinham nenhuma
comunicação entre si e estavam num virtual estado de guerra, manifes-
tado de tempos em tempos por uma troca de tiros de canhão nas ilhas
ao largo da costa. Depois que Deng Xiaoping consolidou seu poder e
começou o processo de reformas econômicas, porém, o governo da China
continental deu início a uma série de gestos conciliatórios em relação a
Taiwan. Em 1981, o governo de Taiwan respondeu e começou a mudar de
sua política anterior dos "três nenhuns": nenhum contato, nenhuma nego-
ciação e nenhuma acomodação com a parte continental. Em maio de
1986, ocorreram as primeiras negociações entre representantes dos dois
lados a respeito da restituição à República da China de um avião que
tinha sido seqüestrado para a parte continental e, no ano seguinte, a
República da China anulou a proibição de viagens ao continente.22
A rápida expansão das relações econômicas entre Taiwan e a China
continental que se seguiu foi muito facilitada por sua "chinesidade
compartilhada" e pela confiança mútua que dela resultava. Como comen-
tou o principal negociador de Taiwan, as pessoas de Taiwan e da China
têm "um sentimento de que o sangue fala mais forte" e se orgulhavam
das realizações de cada lado. Em 1993, mais de 4,2 milhões de taiwaneses
tinham visitado a parte continental, e 40 mil pessoas desta tinham visitado
Taiwan; diariamente eram trocadas 40 mil cartas e 13 mil telefonemas. O
comércio entre as duas Chinas, pelo que se informou, atingiu 14,4 bilhões
de dólares em 1993, e 20 mil empresas de Taiwan tinham investido algo
entre 15 e 30 bilhões de dólares na parte continental. A atenção de Taiwan
cada vez mais se concentrou na China continental e seu êxito cada vez
mais foi dependente desta. Uma autoridade taiwanesa comentou em 1993

?1"
que, "antes de 1980, o mercado mais importante para Taiwan eram os
Estados Unidos, mas nos anos 90 sabemos que o fator mais crítico para
0 êxito da economia de Taiwan está no continente". A mão-de-obra
barata da parte continental constituía a principal atração para os inves-
tidores taiwaneses, que enfrentavam uma escassez de mão-de-obra em
seu país. Em 1994, entrou em andamento um processo inverso de
retificação do desequilíbrio capital-mão-de-obra entre as duas Chinas,
com as companhias pesqueiras taiwanesas contratando pessoas da parte
continental para tripular suas embarcações. 2 3
As ligações econômicas em desenvolvimento conduziram a nego-
ciações entre os dois governos. Em 1991, Taiwan criou a Fundação de
Intercâmbio dos Estreitos e a China continental criou a Associação para
as Relações através do Estreito de Taiwan, para as comunicações
recíprocas. Sua primeira reunião foi realizada em Singapura em abril de
1993, com reuniões posteriores realizadas na parte continental e em
Taiwan. Em agosto de 1994, chegou-se a um acordo "de abrir caminho",
que cobria uma série de questões-chave, e iniciou-se a especulação a
respeito de uma possível reunião de cúpula entre as principais autorida-
des dos dois governos.
Em meados dos anos 90, ainda havia questões importantes entre
Taipé e Pequim, inclusive as da soberania, da participação de Taiwan em
organismos internacionais e da possibilidade de que Taiwan se redefinisse
como um Estado independente. Entretanto, a probabilidade de que esta
hipótese se concretizasse tornou-se cada vez mais remota quando o principal
advogado da independência, o Partido Democrático Progressista, constatou
que os eleitores taiwaneses não queriam perturbar as relações existentes
com a China continental, e que suas perspectivas eleitorais seriam prejudi-
cadas se persistisse com essa questão. Os dirigentes do PDP enfatizaram
então que, se chegassem ao poder, a independência não seria um item
imediato do seu programa. Os dois governos também compartilhavam um
interesse comum em afirmar a soberania chinesa sobre as Ilhas Spratly e
outras, no Mar do Sul da China, e em assegurar o tratamento de nação
mais favorecida por parte dos Estados Unidos para o comércio da China
continental. Em meados dos anos 90, de forma lenta porém perceptível
e inelutável, as duas Chinas estavam se aproximando entre si e
desenvolvendo interesses comuns a partir de suas relações econômicas
em expansão e de sua identidade cultural compartilhada.
Esse movimento no rumo da acomodação foi sustado de forma
abrupta em 1995, quando o governo de Taiwan empreendeu agressiva

216
campanha pelo reconhecimento diplomático e admissão em organismos
internacionais, o presidente Lee Teng-hui fez uma visita "particular" aos
Estados Unidos e foram realizadas eleições legislativas no Estado-núcleo
em dezembro de 1995, seguidas por eleições presidenciais em março de
1996. Em resposta, o governo chinês fez provas de lançamento de mísseis
em águas próximas dos principais portos taiwaneses e efetuou manobras
militares ao largo da costa chinesa perto das ilhas controladas por Taiwan.
Esses desdobramentos suscitaram duas questões-chave: no momento
atual, é possível para Taiwan permanecer democrática sem se tornar
formalmente independente? No futuro, poderia Taiwan ser democrática
sem continuar sendo de fato independente?
Na prática, as relações de Taiwan com a China continental passaram
por duas fases e poderiam entrar numa terceira. Durante décadas, o
governo nacionalista afirmou que era o governo de toda a China. Essa
afirmação obviamente significava um conflito com o governo que de fato
constituía o governo de toda a China, com exceção de Taiwan. Na década
de 80, o governo em Taipé abandonou aquela pretensão e se definiu
como o governo de Taiwan, o que proporcionou a base para a
acomodação com a concepção da China continental de "um país, dois
sistemas". Diversos indivíduos e grupos, entretanto, enfatizavam cada vez
mais a identidade cultural própria de Taiwan, a relativa brevidade do
período sob o domínio chinês e seu idioma local, incompreensível para
os que falavam mandarim. Na realidade, eles estavam tentando definir a
sociedade taiwanesa como não-chinesa e, portanto, legitimamente in-
dependente da China. Além disso, à medida que o governo de Taiwan
se tornava mais atuante internacionalmente, também ele parecia estar
sugerindo que era um país independente e não parte da China. Em suma,
a autodefinição do governo de Taiwan parecia evoluir de governo de
toda a China para governo de parte da China e daí para governo de
nenhuma parte da China. Essa última posição, formalizando sua indepen-
dência de facto, seria inteiramente inaceitável para o governo de Pequim,
que afirmou repetidamente sua disposição de fazer uso da força para
impedir que ela se materializasse. Os dirigentes do governo chinês
também declararam que, após a incorporação à RPC de Hong Kong em
1997 e de Macau em 1999, iriam atuar a fim de reassociar Taiwan com a
parte continental. É de se presumir que a maneira como isso vai ocorrer
dependerá do grau com que cresça em Taiwan o apoio à independência
formal, o desfecho da luta pela sucessão em Pequim, que induz os líderes
políticos e militares a serem acentuadamente nacionalistas, e o desenvol-
vimento da capacidade militar chinesa a ponto de tornar factível o
bloqueio ou a invasão de Taiwan. Parece provável que, no começo do
século XXI, através de coerção, acomodação ou, mais provavelmente,
uma combinação de ambas, Taiwan ficará integrada mais intimamente
com a China continental.
Até o final da década de 70, eram frias as relações entre uma
Singapura firmemente anticomunista e a República Popular, e Lee Kuan
Yew e outros líderes singapurianos menosprezavam o atraso chinês.
Entretanto, quando o desenvolvimento econômico chinês decolou nos
anos 80, Singapura começou a se reorientar em direção à China conti-
nental, num clássico comportamento de se atrelar. Em 1992, Singapura
tinha investido 1,9 bilhão de dólares na China e, no ano seguinte, foram
anunciados planos para a construção de uma cidade industrial, "Singa-
pura II", nos arredores de Xangai, envolvendo bilhões de dólares de
investimento. Lee se tornou entusiasmado incentivador das perspectivas
econômicas da China e admirador do seu poderio. Em 1993, ele disse
que "a China é onde as coisas estão acontecendo".24 Os investimentos
externos de Singapura, que se tinham concentrado fortemente na Malásia
e na Indonésia, se deslocaram para a China. Metade dos projetos no exterior
assistidos pelo governo singapuriano em 1993 estavam na China. Na sua
primeira visita a Pequim, nos anos 70, consta que Lee Kuan Yew insistiu
em falar com os dirigentes chineses em inglês em vez de em mandarim. É
improvável que ele tivesse feito isso duas décadas depois.

0 ISLÃ: PERCEPÇÃO SEM COESÃO


A estrutura da lealdade política entre os árabes e, de forma geral, entre
os muçulmanos, tem sido o oposto da do Ocidente moderno. Para este
último, o Estado-nação é o ápice da lealdade política. Lealdades mais
limitadas ficam subordinadas a ela e ficam subordinadas à lealdade ao
Estado-nação. Os grupos que transcendem os Estados-nações - comu-
nidades lingüísticas ou religiosas, ou civilizações - obtiveram lealdade
e devotamento menos intensos. Ao longo de um continuum de entidades
mais limitadas para entidades mais amplas, as lealdades ocidentais
tendem assim a atingir seu auge no meio, com a curva de intensidade
da lealdade formando de algum modo um U de cabeça para baixo. No
mundo islâmico, a estrutura de lealdade é quase exatamente o inverso.
O Islã teve um meio oco na sua hierarquia de lealdades. Como assinalou
Ira Lapidus, "as duas estruturas fundamentais, originais e que persistem",
são a família, o clã e a tribo, de um lado, e "as unidades de cultura,
religião e império numa escala sempre maior", do outro. 25 Um estudioso
líbio observou de modo análogo que "o tribalismo e a religião (Islamis-
mo) desempenharam e ainda desempenham importante e determinante
papel nos desdobramentos sociais, econômicos, culturais e políticos das
sociedades e sistemas políticos árabes e na mentalidade política árabe".
As tribos foram fundamentais para a política nos Estados árabes, muitos
dos quais, como expôs Tahsin Bashir, são simplesmente "tribos com
bandeiras". O fundador da Arábia Saudita em grande parte teve êxito por
sua habilidade em criar uma coalizão tribal através de casamentos e
outros meios, e a política saudita continuou sendo intensamente tribal,
lançando Sudaris contra Shammars e outras tribos. Pelo menos 18 tribos
principais desempenharam papéis importantes no desenvolvimento da
Líbia, e diz-se que, no Sudão, vivem cerca de 500 tribos, a maior das
quais abrange 12 por cento da população do país.26
Na Ásia Central, historicamente, não houve identidades nacionais.
"A lealdade é à tribo, ao clã e à família ampla, não ao Estado." No outro
extremo, as pessoas tinham "idioma, religião, cultura e estilos de vida"
em comum, e "o Islamismo era a força unificadora mais forte entre as
pessoas, mais ainda do que o poder do Emir". Entre os chechenos e
povos aparentados com eles do Cáucaso Setentrional, existiam cerca de
100 clãs "das montanhas" e 70 "das planícies'', e eles controlavam a
política e a economia a tal ponto que, em contraste com a economia
planificada soviética, dizia-se que os chechenos possuíam uma economia
"danificada". 27
Em todo o Islã, o grupo pequeno e a grande fé, a tribo e a ummah,
foram os principais focos de lealdade e devotamento, e o Estado-nação foi
menos importante. No mundo árabe, os Estados existentes têm problemas
de legitimidade porque, na sua maioria, eles são produtos arbitrários,
quando não caprichosos, do imperialismo europeu, e suas fronteiras muitas
vezes nem sequer coincidem com as dos grupos étnicos, como os bérberes
e os curdos. Esses Estados dividiram a nação árabe, mas, por outro lado,
um Estado pan-arábico jamais se materializou. Além disso, a idéia de
Estados-nações soberanos é incompatível com a crença na soberania de Alá
e o primado da ummah. Na condição de movimento revolucionário, o
fundamentalismo islâmico rejeita o Estado-nação em favor da unidade do
Islã, exatamente do mesmo modo como o marxismo o rejeitava em favor
da unidade do proletariado internacional. A fraqueza do Estado-nação
no Islã se reflete também no fato de que, enquanto ocorreram numerosos

')10
conflitos entre grnpos muçulmanos durante os anos após a II Guerra
Mundial, só ocorreram duas guerras maiores diretamente entre Estados
muçulmanos, ambas envolvendo invasões pelo Iraque a seus vizinhos.
Nos anos 70 e 80, os mesmos fatores que ensejaram o Ressurgimento
islâmico dentro dos países também fortaleceram a identificação com a
ummah ou civilização islâmica como um todo. Como um estudioso
observou em meados dos anos 80:

Uma profunda preocupação com a identidade e a unidade muçulmanas


foi estimulada ainda mais pela descolonização, pelo crescimento demo-
gráfico, pela industrialização, pela urbanização e por uma ordem
econômica internacional em mutação, associados, entre outras coisas, à
riqueza do petróleo em terras muçulmanas. (. .. ) As modernas comuni-
cações fortaleceram e tornaram mais elaborados os laços entre os povos
muçulmanos. Houve um crescimento pronunciado na quantidade de
homens que fazem a peregrinação a Meca, criando uma noção mais
intensa de identidade comum entre os muçulmanos de lugares tão
distantes quanto a China e o Senegal, o Iêmen e Bangladesh. Um número
cada vez maior de estudantes da Indonésia, da Malásia, do sul das
Filipinas e da África está cursando universidades do Oriente Médio
espalhando idéias e estabelecendo contatos pessoais, passando por cim~
de fronteiras nacionais. São realizadas conferências e consultas regulares,
cada vez mais freqüentes, entre os intelectuais muçulmanos e os ulemás
(estudiosos da religião) em centros como Teerà, Meca e Kuala Lumpur.
(. .. ) Cassetes (de som e agora de vídeo) difundem os sermões das
mesquitas por cima das fronteiras internacionais, de modo que prega-
dores influentes atualmente atingem audiências muito além de suas
comunidades locais.28

A noção de unidade muçulmana também se refletiu nas ações dos


Estados e das organizações internacionais, e foi por eles estimulada. Em
1969, os dirigentes da Arábia Saudita, trabalhando com os do Paquistão,
do Marrocos, do Irã, da Tunísia e da Turquia, organizaram a primeira
reunião de cúpula islâmica em Rabat. Dela emergiu a Organização da
Conferência Islâmica, que foi formalmente estabelecida com uma sede
em Jeddah em 1972. Praticamente todos os Estados que possuem uma
população muçulmana substancial pertencem agora à conferência, que
é a única organização desse tipo entre Estados. Os governos cristãos,
ortodoxos, budistas ou hindus não têm organizações entre Estados cuja
participação seja baseada na religião, mas os governos muçulmanos, sim.
Além disso, os governos da Arábia Saudita, Paquistão, Irã e Líbia
patrocinaram e apoiaram organizações não-governamentais como o
Congresso Mundial Muçulmano (uma criação paquistanesa) e a Liga

220
Mundial Muçulmana (uma criação saudita), bem como "numerosos, e
muitas vezes muito distantes, regimes, partidos, movimentos e causas
que, se acredita, compartilham de suas orientações ideológicas" e que
estão "enriquecendo o fluxo de informações e recursos entre os muçul-
manos". 29
Entretanto, o movimento da percepção islâmica para a coesão
islâmica envolve dois paradoxos. O primeiro é que o Islã está dividido
entre centros de poder competitivos, cada um tentando capitalizar sobre
a identificação muçulmana com a ummah a fim de promover a coesão
islâmica sob sua liderança. Essa competição prossegue entre os regimes
instalados e suas organizações, por um lado, e os regimes fundamentalis-
tas islâmicos e suas organizações, por outro. A Arábia Saudita assumiu a
liderança ao criar a Organização da Conferência Islâmica (OCI), em parte
para ter um contrapeso da Liga Árabe, que na época era dominada por
Nasser. Em 1991, depois da Guerra do Golfo, o líder sudanês Hassan
al-Turabi criou a Conferência Popular Árabe e Islâmica (CPAI), para
contrabalançar a OCI dominada pelos sauditas. À terceira reunião da
CPAI, em Cartum, no início de 1995, compareceram várias centenas de
delegados de organizações e movimentos fundamentalistas islâmicos de
80 países.30 Além dessas organizações formais, a guerra no Afeganistão
gerou uma extensa rede de grupos informais e clandestinos de veteranos,
que apareceram lutando por causas muçulmanas ou fundamentalistas
islâmicas na Argélia, Chechênia, Egito, Tunísia, Bósnia, Palestina, Filipi-
nas e em outros lugares. Depois da guerra, suas fileiras se renovaram
com combatentes treinados na Universidade de Dawa Jihad, nos ar-
redores de Peshawar, e em campos patrocinados por diversas facções e
pelos estrangeiros que os apoiavam no Afeganistão. Os interesses
comuns compartilhados pelos regimes e movimentos radicais superaram,
em certas ocasiões, antagonismos mais tradicionais e, com o apoio
iraniano, foram estabelecidas vinculações entre os grupos fundamentalis-
tas sunitas e xiitas. Há uma estreita colaboração militar entre o Sudão e
o Irã, a força aérea e a marinha iranianas utilizam instalações sudanesas,
e os dois governos cooperaram no apoio a grupos fundamentalistas na
Argélia e em outros lugares. Consta que Hassan al-Turabi e Saddam
Hussein desenvolveram laços estreitos em 1994, e Irã e Iraque se
encaminharam para a reconciliação.3 1
O segundo paradoxo é o de que a ummah pressupõe a ile-
gitimidade do Estado-nação e, no entanto, a ummah só pode ser
unificada através das ações de um ou mais Estados-núcleos fortes, que

221
atualmente não existem. A concepção do Islã como uma comunidade
religiosa e política fez com que, no passado, os Estados-núcleos tivessem
geralmente se materializado somente quando a liderança religiosa e
política - o califado e o sultanato - se combinavam numa única
instituição governante. A rápida conquista árabe, no século VII, do Norte
da África e do Oriente Médio, culminou no califado Omaiada, com sua
capital em Damasco. A ele se seguiu, no século VIII, o califado Abassida,
com sede em Bagdá e sob influência persa, com califados secundários
surgindo no Cairo e em Córdoba no século X. Quatrocentos anos depois,
os turcos otomanos varreram o Oriente Médio, conquistaram Cons-
tantinopla em 1453 e estabeleceram um novo califado em 1517. Mais ou
menos nessa época, outros povos túrquicos invadiram a Índia e fundaram
o império Mogol. A ascensão do Ocidente solapou os impérios Otomano
e Mogol, e o fim do Império Otomano deixou o Islã sem um Estado-nú-
cleo. Seus territórios foram, de modo considerável, divididos entre as
potências ocidentais, as quais, quando se retiraram, deixaram atrás de si
Estados frágeis, formados segundo um modelo ocidental, estranho às
tradições do Islã. Em conseqüência, durante a maior parte do século XX,
nenhum país muçulmano teve poder suficiente ou suficiente legitimidade
cultural e religiosa para assumir o papel de líder do Islã e ser como tal
aceito pelos demais países islâmicos e não-islâmicos.
A inexistência de um Estado-núcleo islâmico muito contribui para
os generalizados conflitos internos e externos que caracterizam 0 Islã. A
percepção sem a coesão é uma fonte de fraqueza do Islã e uma fonte de
ameaça para as outras civilizações. Terá essa condição alguma proba-
bilidade de se manter?
Um Estado-núcleo islâmico precisa possuir os recursos econômicos
o poderio militar, a capacidade organizacional e a identidade e ~
engajamento islâmicos para prover a liderança política e religiosa da
ummah. De tempos em tempos, seis Estados são mencionados como
po,ssíveis líderes do Islã. No momento atual, nenhum deles, contudo,
reune todos os requisitos para ser um Estado-núcleo eficaz. A Indonésia
é o maior país muçulmano e está crescendo economicamente com
rapidez. Entretanto, está situada na periferia do Islã, muito afastada do
seu centro árabe; seu Islamismo tem a feição mais tranqüila do Sudeste
Asiático, e seu povo e cultura são um misto de influências autóctones
muçulmanas,' hindus, chinesas e cristãs. O Egito é um país árabe, co~
u~a grande população, uma localização geográfica central e estrate-
gicamente importante e a principal instituição de ensino islâmico, a

222
Universidade Al-Azhar. Entretanto, é um país pobre, que depende
economicamente dos Estados Unidos, de instituições internacionais
controladas pelo Ocidente e pelos Estados árabes ricos em petróleo.
Irã, Paquistão e Arábia Saudita se definiram, todos, explicitamente
como países muçulmanos e tentaram de forma ativa exercer influência
sobre a ummah e a ela proporcionar liderança. Assim fazendo, compe-
tiram entre si patrocinando organizações, financiando grupos islâmicos,
dando apoio aos combatentes no Afeganistão e cortejando os povos
muçulmanos da Ásia Central. O Irã possui a dimensão, a localização
central, a população, as tradições históricas, os depósitos de petróleo e
um nível médio de desenvolvimento econômico que o qualificariam para
ser um Estado-núcleo islâmico. Contudo, 90 por cento dos muçulmanos
são sunitas e o Irã é xiita, o persa fica em um distante segundo lugar do
árabe como idioma do Islã, e as relações entre persas e árabes his-
toricamente sempre foram antagônicas.
O Paquistão tem dimensão, população e competência militar, e seus
líderes têm, de modo razoavelmente consistente, tentado reivindicar um
papel de promotor da cooperação entre os Estados islâmicos e de
porta-voz do Islã para o resto do mundo. Entretanto, o Paquistão é
relativamente pobre e padece de graves divisões internas étnicas e
regionais, um passado de instabilidade política e uma fixação no
problema de sua segurança diante da Índia, o que explica em grande
parte seu interesse por desenvolver relações íntimas com os outros países
islâmicos, bem como com potências não-muçulmanas como a China e
os Estados Unidos.
A Arábia Saudita foi o lar original do Islã, os santuários mais
sagrados do Islã estão lá, seu idioma é o idioma do Islã, ela detém as
maiores reservas de petróleo do mundo e a decorrente influência
financeira no mundo, e seu Governo moldou a sociedade saudita
segundo linhas estritamente islâmicas. Durante os anos 70 e 80, a Arábia
Saudita foi, isoladamente, a força mais influente no mundo muçulmano.
Ela despendeu bilhões de dólares apoiando causas muçulmanas pelo
mundo afora, de mesquitas e livros de estudo a partidos políticos,
organizações fundamentalistas islâmicas e movimentos terroristas, e o fez
de modo relativamente indiscriminado. Por outro lado, sua população
relativamente peq1,1ena e sua vulnerabilidade geográfica a fazem depen-
der do Ocidente no que se refere à sua segurança.
Finalmente, a Turquia tem a história, população, desenvolvimento
econômico de nível médio, coerência nacional e tradição e competência

223
militares para ser o Estado-núcleo do Islã. Entretanto, ao definir explici-
tamente a Turquia como uma sociedade secular, Ataturk impediu que a
República Turca sucedesse ao Império Otomano naquele papel. A
Turquia não conseguiu sequer se tornar membro fundador da OCI devido
ao compromisso com o secularismo incorporado à sua Constituição.
Enquanto a Turquia continuar a se definir como um Estado secular, a
liderança do Islã lhe estará vedada.
Contudo, o que aconteceria se a Turquia se redefinisse? Em algum
momento, a Turquia pode estar pronta para abandonar seu papel
frustrante e humilhante de mendiga que implora para ser admitida no
Ocidente, e retomar seu papel histórico, muito mais respeitável e
altaneiro, de principal interlocutor e antagonista islâmico do Ocidente.
O fundamentalismo tem estado em ascensão na Turquia; durante o
governo de ôzal, a Turquia fez grandes esforços para se identificar com
o mundo árabe, capitalizou sobre seus laços étnicos e lingüísticos para
desempenhar um papel modesto na Ásia Central e deu estímulo e apoio
aos muçulmanos da Bósnia. Dentre os países muçulmanos, a Turquia é
a única a ter amplas vinculações históricas com os muçulmanos dos
Bálcãs, do Oriente Médio, do Norte da África e da Ásia Central. É
concebível que a Turquia possa, na realidade, "dar uma de África do Sul":
abandonar o secularismo como sendo estranho ao seu modo de ser, tal
como a África do Sul abandonou o apartheid, e assim se transformar de

'
Estado pária na sua civilização em Estado líder dessa civilização. Tendo
experimentado o que há de melhor e de pior no Ocidente com o
Cristianismo e o apartheid, a África do Sul está qualificada de modo
especial para liderar a África. Da mesma maneira, tendo experimentado
o que há de pior e de melhor no Ocidente com o secularismo e a
democracia, a Turquia pode igualmente se qualificar para liderar o Islã.
Porém, para fazer isso, ela teria de rejeitar o legado de Ataturk de forma
1
mais radical do que a Rússia rejeitou o de Lênin. Seria também preciso
um líder do calibre de Ataturk, e que combinasse a legitimidade religiosa
e política, para transformar a Turquia de país dividido em Estado-núcleo.

224
IV

Os CHOQUES
DAS CIVILIZAÇÕES

'
1
CAPÍTULO 8

O Ocidente e o Resto:
Questões lntercivilizacionais

UNIVERSALISMO OCIDENTAL

nquanto as relações entre grupos de civilizações diferentes não

E serão íntimas e freqüentemente serão antagônicas, algumas rela-


ções intercivilizacionais têm maior tendência para o conflito do
que outras. No nível micro, as linhas de fratura mais violentas estão entre
o Islã e seus vizinhos ortodoxos, hindus, africanos e cristãos ocidentais.
No nível macro, a divisão predominante está entre "o Ocidente e o resto",
com os conflitos mais intensos ocorrendo entre as sociedades muçulmana
e asiática, de um lado, e o Ocidente, do outro. Os choques mais perigosos
do futuro provavelmente surgirão da interação da arrogância ocidental,
da intolerância islâmica e da postura afirmativa sínica.
O Ocidente foi a única dentre as civilizações que exerceu um
impacto grande - e, por vezes, devastador - sobre cada uma das outras
civilizações. Em conseqüência, a relação entre o poderio e a cultura do
Ocidente e o poderio e a cultura das outras civilizações é a característica
mais generalizada do mundo das civilizações. À medida que cresce o
poder relativo das outras civilizações, a atração da cultura ocidental
diminui e os povos não-ocidentais têm cada vez mais confiança nas suas
respectivas culturas indígenas e se dedicam mais a elas. O problema
fundamental nas relações entre o Ocidente e o resto é, conseqüentemente,
a disparidade entre os esforços do Ocidente - especialmente dos Estados

??7
Unidos - para promover uma cultura ocidental universal, e a sua
decrescente capacidade para fazê-lo.
O colapso do comunismo exacerbou essa disparidade ao reforçar
no Ocidente a noção de que sua ideologia de liberalismo democrático
tinha triunfado em escala global e que, portanto, tinha validade universal.
o Ocidente - e em especial os Estados Unidos, que sempre foram uma
nação missionária - está convencido de que os povos não-ocidentais
deviam se dedicar aos valores ocidentais de democracia, mercados livres,
governos limitados, direitos humanos, individualismo e império da lei, e
de que deviam incorporar esses valores às suas instituições. Nas outras
civilizações, há minorias que abraçam e promovem esses valores, porém
as atitudes predominantes em relação a eles nas culturas não-ocidentais
variam de um ceticismo generalizado a uma intensa oposição. O que é
universalismo para o Ocidente é imperialismo para o resto.
O Ocidente está tentando e continuará a tentar manter sua posição
de preeminência e defender seus interesses, definindo-os como os
interesses da "comunidade mundial". Esta expressão se tomou o subs-
tantivo coletivo eufemístico (substituindo "o Mundo Livre") para dar
legitimidade global às ações que refletem os interesses dos Estados
Unidos e das outras potências ocidentais. O Ocidente está, por exemplo,
tentando integrar as economias das sociedades não-ocidentais num
sistema econômico global que é dominado por ele. Através do FMI e de
outras instituições econômicas internacionais, o Ocidente promove seus
interesses econômicos e impõe a outras nações as políticas econômicas
que ele considera apropriadas. Entretanto, em qualquer pesquisa de
opinião com povos não-ocidentais, o FMI sem dúvida receberia o apoio
dos ministros de Finanças e de algumas pessoas mais, porém teria um
resultado majoritariamente desfavorável de quase todos os demais, que
concordariam com a descrição feita por Georgi Arbatov das autoridades
do FMI como "neobolchevistas que adoram desapropriar o dinheiro das
outras pessoas, impondo regras estranhas e não-democráticas de conduta
econômica e política, e sufocando a liberdade econômica" .1
Tendo conquistado a independência política, as sociedades não-
ocidentais desejam se libertar do que consideram como dominação
econômica, militar e cultural pelo Ocidente. As sociedades da Ásia
Oriental estão bem adiantadas no caminho de se igualar economicamente
ao Ocidente. Os países asiáticos e islâmicos estão buscando atalhos para
contrabalançar militarmente o Ocidente. Eles também não hesitam em
apontar os hiatos entre os princípios ocidentais e as práticas ocidentais.

')')Q
A hipocrisia, os dois pesos e duas medidas e os "porém não" são o preço
das pretensões universalistas. Promove-se a democracia, porém não se
ela for levar os fundamentalistas islâmicos ao poder; prega-se a não-pro-
liferação em relação ao Irã e ao Iraque, porém não em relação a Israel;
o livre comércio é o elixir do crescimento econômico, porém não para
a agricultura; os direitos humanos constituem uma questão com a China,
porém não com a Arábia Saudita; a agressão contra os kuwaitianos donos
de petróleo encontra uma repulsa maciça, porém não a agressão contra
os bósnios desprovidos de petróleo. As aspirações universais da civiliza-
ção ocidental, o poder relativo decrescente do Ocidente e a postura
afirmativa cada vez maior das outras civilizações levam a relações de
modo geral difíceis entre o Ocidente e o resto. A natureza dessas relações
e o grau em que são antagônicas, porém, varia consideravelmente e cai
em três categorias. Com as civilizações desafiadoras - Islã e China-,
o Ocidente provavelmente terá relações invariavelmente tensas e muitas
vezes altamente antagônicas. Nas relações com a América Latina e com
a África, civilizações mais fracas que têm de alguma forma dependido
do Ocidente, os níveis de conflito serão muito mais baixos, especialmente
com a América Latina. As relações da Rússia, do Japão e da Índia com o
Ocidente provavelmente ficarão entre as dos outros dois grupos,
envolvendo elementos de cooperação e de conflito, na medida em que
esses três Estados-núcleos às vezes se alinham com as civilizações
desafiadoras e outras vezes com o Ocidente. Elas são as civilizações
"pêndulos" entre o Ocidente, de um lado, e as civilizações islâmica e
sínica, do outro.
O Islã e a China encarnam grandes tradições culturais muito'
diferentes das do Ocidente - e, aos. seus olhos, muito superiores a elas.
O poderio e a disposição afirmativa de ambos em relação ao Ocidente
estão aumentando, e os conflitos entre os seus valores e interesses e os
do Ocidente estão-se multiplicando e se intensificando. Como o Islã .....1
carece de um Estado-núcleo, suas relações com o Ocidente variam
grandemente de país para país. Entretanto, desde os anos 70 existe uma
tendência antiocidental razoavelmente consistente, marcada pela ascen-
são do fundamentalismo, mudanças do poder dentro dos países muçul-
manos de governos mais pró-ocidentais para mais antiocidentais, o
surgimento de uma quase-guerra entre alguns grupos islâmicos e o
Ocidente e o enfraquecimento dos vínculos de segurança que existiam
entre alguns Estados muçulmanos e os Estados Unidos no contexto da
Guerra Fria. Questões específicas entre o Ocidente e o Islã abrangeram

')'){\
a proliferação de armamentos, direitos humanos, terrorismo, imigração
e acesso ao petróleo. Com a China, elas abrangeram a proliferação de
armamentos, direitos humanos, comércio internacional, direitos de pro-
priedade e política econômica. Entretanto, por baixo dessas controvérsias
está a questão fundamental do papel que essas civilizações desempe-
nharão em relação com o Ocidente para moldar o futuro do mundo. Irão
as instituições mundiais, a distribuição do poder e a política e a economia
das nações em meados do século XXI refletir precipuamente os valores
e interesses ocidentais, ou irão elas ser precipuamente moldadas pelos
do Islã e da China?
A teoria realista das relações internacionais prediz que os Estados-
núcleos das civilizações não-ocidentais devem se congregar para contra-
balançar o poder dominante do Ocidente. Em algumas áreas, isso já
ocorreu. Contudo, uma coalizão antiocidental generalizada parece im-
provável no futuro imediato. As civilizações islâmica e sínica contêm, na
raiz de seu estilo de vida, muitas diferenças fundamentais em termos de
religião, cultura, estrutura social, tradições, política e pressupostos bási-
cos. É provável que, intrinsecamente, cada uma das duas tenha menos
em comum uma com a outra do que com a civilização ocidental. No
entanto, em política um inimigo comum cria um interesse comum. As
sociedades islâmicas e sínicas que vêem o Ocidente como seu antagonista
têm, assim, razões para cooperar entre si contra o Ocidente, da mesma
maneira como os Aliados e Stalin o fizeram contra Hitler. Essa cooperação
ocorre em torno de um leque de questões, inclusive direitos humanos,
economia e, mais notadamente, os esforços das sociedades em ambas as
civilizações para desenvolver sua capacidade militar, especialmente
armas de destruição em massa e os mísseis para lançá-las, a fim de se
contrapor à superioridade militar convencional do Ocidente. No início
dos anos 90, "havia-se estabelecido uma ligação confuciano-islâmica
entre a China e a Coréia do Norte, de um lado, e, em diferentes graus, o
Paquistão, o Irã, a Síria, a Líbia e a Argélia, do outro, a fim de confrontar
o Ocidente nessas questões".
As questões cada vez mais importantes na agenda internacional são
aquelas que dividem o Ocidente e essas outras sociedades. Três dessas
questões envolvem os esforços do Ocidente: (1) para manter sua
superioridade militar através de política de não-proliferação e contra pro-
liferação com relação a armas nucleares, biológicas e químicas e os meios
de lançá-las; (2) para promover os valores e as instituições políticas do
Ocidente através de pressões sobre as outras sociedades para que

2~0
respeitem os direitos humanos tal como concebidos no Ocidente e
adotem a democracia segundo as linhas ocidentais e (3) para proteger a
integridade cultural, social e étnica das sociedades ocidentais, através da
restrição do número de não-ocidentais admitidos como imigrantes ou
refugiados. Em todas essas três áreas, o Ocidente teve e é provável que
continue a ter dificuldades para defender os seus interesses contra os das
sociedades não-ocidentais.

PROLIFERAÇÃO DE ARMAS

A disseminação da capacidade militar é conseqüência do desenvolvimen-


to econômico e social mundial. À medida que ficam economicamente
mais ricos, o Japão, a China e outros países asiáticos vão ficando
militarmente mais poderosos, como também acabarão ficando as socie-
dades islâmicas. Também assim acontecerá com a Rússia, se tiver êxito
na reforma de sua economia. Nas últimas décadas do século XX, muitas
nações não-ocidentais obtiveram armas sofisticadas através de transfe-
rências de armamentos pelas sociedades ocidentais, pela Rússia, por
Israel e pela China, e também criaram instalações para a produção
autóctone de armamentos destinadas a armas altamente sofisticadas.
Esses processos vão continuar e provavelmente se acelerar durante os
primeiros anos do século XXI. Não obstante, ainda bem adiante nesse
século, o Ocidente - o que quer dizer precipuamente os Estados Unidos,
com alguns elementos suplementares da Grã-Bretanha e da França -
será capaz de intervir militarmente em praticamente qualquer parte do
mundo. E somente os Estados Unidos terão o poder aéreo capaz de
bombardear virtualmente qualquer lugar no mundo. Esses são os ele-
mentos essenciais da posição militar dos Estados Unidos como potência
global, e do Ocidente como a civilização predominante no mundo. No futuro
imediato, a balança de poder militar convencional entre o Ocidente e o
resto irá pender predominantemente para o Ocidente.
O tempo, esforço e gastos requeridos para desenvolver um poderio
militar de primeira classe geram enormes incentivos para que os Estados
não-ocidentais busquem outros meios de se contrapor ao poder militar
convencional ocidental. O atalho visualizado é a obtenção de armas
nucleares, biológicas ou químicas e os meios para lançá-las. Os Estados-
núcleos das civilizações e os países que são ou aspiram a ser potências
dominantes no âmbito regional têm um estímulo especial para obter essas
armas de destruição em massa. Em primeiro lugar, essas armas habilita-
riam esses Estados a estabelecer seu predomínio sobre outros Estados
em suas respectivas civilização e região, e, em segundo lugar, lhes dariam
os meios de deter a intervenção em suas respectivas civilização e região
pelos Estados Unidos ou outras potências externas. Se Saddam Hussein
tivesse retardado sua invasão do Kuwait por dois ou três anos, até que
o Iraque possuísse armas nucleares, é muito provável que ele lograsse a
posse do Kuwait e, muito possivelmente, também dos campos de
petróleo sauditas. Os Estados não-ocidentais extraíram da Guerra do
Golfo lições evidentes. Para os militares norte-coreanos elas foram as
seguintes: "Não deixe os norte-americanos concentrarem suas forças; não
deixe que eles adensem o seu poder aéreo; não deixe que eles assumam
a iniciativa; não deixe que eles empreendam uma guerra com reduzidas
baixas norte-americanas." Para uma alta autoridade militar indiana, a lição
foi ainda mais explícita: "Não lute contra os Estados Unidos a menos que
disponha de armas nucleares. "2 Esta lição foi adotada pelos líderes
políticos e militares em todo o mundo não-ocidental, bem como um
corolário plausível: "Se você possuir armas nucleares, os Estados Unidos
não lutarão contra você."
Lawrence Freedman assinalou que "as armas nucleares, em vez de
reforçar a política de poder como de costume, na realidade confirmam
a tendência em direção à fragmentação do sistema internacional, na medida
em que as antigas grandes potências desempenham um papel reduzido".
No mundo pós-Guerra Fria, para o Ocidente o papel das armas nucleares
é, assim, o oposto do que foi durante a Guerra Fria. Naquela época, como
acentuou Les Aspin, secretário de Defesa dos Estados Unidos, as armas
nucleares compensavam a inferioridade convencional frente à União Sovié-
tica. Elas eram "o equalizador". Entretanto, no mundo pós-Guerra Fria,
os Estados Unidos têm "um poder militar convencional inigualável e são
os nossos adversários em potencial que podem chegar às armas nuclea-
res. Nós é que somos os que podem acabar sendo os equalizados".3
Nessas condições, não é de surpreender que a Rússia tenha dado
ênfase ao papel das armas nucleares no seu planejamento de defesa e,
em 1995, tenha conseguido comprar da Ucrânia novos bombardeiros e
mísseis intercontinentais. Um perito norte-americano em armamentos
comentou que "ouvimos agora o que costumávamos dizer a respeito dos
russos na década de 50. Agora os russos estão dizendo: 'Precisamos de
armas nucleares para compensar a superioridade convencional deles."'
Numa inversão relacionada com isso, há uma outra situação. Durante a
Guerra Fria, os Estados Unidos, para efeitos de dissuasão, se recusaram
a renunciar à possibilidade de serem os primeiros a usar armas nucleares.
Em conformidade com a nova função dissuasória das armas nucleares
no mundo pós-Guerra Fria, a Rússia, em 1993, efetivamente renunciou
ao compromisso anterior soviético de não as usar em primeiro lugar.
Simultaneamente, a China, ao desenvolver no pós-Guerra Fria sua
estratégia nuclear de dissuasão limitada, também começou a questionar
e a atenuar seu compromisso de 1964 de não ser a primeira a usar armas
nucleares.4 À medida que obtenham armas nucleares e outras armas de
destruição em massa, é prováv~l que outros Estados-núcleos e potências
regionais sigam esses exempios a fim de maximizar o efeito dissuasório
de suas armas sobre ações militares convencionais ocidentais contra eles.
As armas nucleares também podem ameaçar o Ocidente de modo
mais direto. A China e a Rússia possuem mísseis balísticos que podem
atingir a Europa e a América do Norte com ogivas nucleares. A Coréia
do Norte, o Paquistão e a Índia estão expandindo o raio de alcance de
seus mísseis e, em algum ponto, é provável que também tenham a
capacidade de poder atingir alvos no Ocidente. Além disso, as armas
nucleares podem ser lançadas por outros meios. Os analistas militares
traçam um espectro de violência, desde guerra de baixa intensidade,
como terrorismo e ação guerrilheira esporádica, passando por guerras
limitadas, até guerras de maiores proporções, envolvendo forças conven-
cionais, e a guerra nuclear. Historicamente, o terrorismo é a arma dos
fracos, isto é, daqueles que não possuem poder militar convencional.
Desde a II Guerra Mundial, as armas nucleares também foram as armas
pelas quais os fracos compensaram sua inferioridade convencional. No
mundo pós-Guerra Fria, a arma definitiva dos fracos é a combinação dos
dois extremos do espectro de violência, compondo o terrorismo nuclear.
No passado, os terroristas só podiam perpetrar violência limitada, matan-
do algumas pessoas aqui ou destruindo uma instalação ali. Para produzir
violência maciça eram necessárias forças militares maciças. Entretanto,
em algum momento, uns poucos terroristas serão capazes de produzir
violência maciça e destruição maciça. Tomados em separado, o ter-
rorismo e as armas nucleares são as armas dos fracos não-ocidentais. Se
e quando elas forem combinadas, os não-ocidentais fracos ficarão fortes.
No mundo pós-Guerra Fria, os esforços para desenvolver armas de
destruição em massa e os meios de lançá-las se concentraram em Estados
islâmicos e confucianos. O Paquistão e provavelmente a Coréia do Norte
possuem uma pequena quantidade de armas nucleares ou, pelo menos,
têm a capacidade de montá-las em pouco tempo, e também são capazes
de desenvolver ou adquirir mísseis de maior alcance para seu lançamen-
to. O Iraque possuía significativa capacidade de guerra química e estava
desenvolvendo grandes esforços para obter armas nucleares e biológicas.
O Irã tem um amplo programa de desenvolvimento de armas nucleares
e vem expandindo sua capacidade de lançá-las. Em 1988, o presidente
Rafsanjani declarou que "nós, iranianos, precisamos nos equipar por
completo no uso ofensivo e defensivo das armas químicas, bacteriológi-
cas e radiológicas", e, três anos depois, seu vice-presidente declarou
perante uma conferência islâmica que, "já que Israel continua a possuir
armas nucleares, nós, os muçulmanos, precisamos cooperar para produ-
zir uma bomba atômica, independentemente das tentativas das Nações
Unidas de impedir a proliferação". Em 1992 e 1993, as maiores autorida-
des de inteligência dos Estados Unidos disseram que o Irã estava
buscando a obtenção de armas nucleares e, em 1995, Warren Christopher,
secretário de Estado, declarou de forma taxativa que "o Irã está atual-
mente engajado num esforço acelerado para desenvolver armas nuclea-
res". Ao que consta, dentre outros Estados muçulmanos interessados em
desenvolver armas nucleares estão a Líbia, a Argélia e a Arábia Saudita.
Segundo a vívida expressão de Ali Mazrui, "o crescente paira sobre a
nuvem em forma de cogumelo" e pode ameaçar outros além do Ocidente.
O Islã poderia acabar "jogando roleta russa com duas outras civilizações
- com o Hinduísmo na Ásia Meridional e com o Sionismo e o Judaísmo
politizado no Oriente Médio". 5
É na proliferação de armas que a ligação confuciano-islâmica tem
sido mais ampla e mais concreta, com a China desempenhando o papel
fundamental na transferência de armas, tanto convencionais quanto
não-convencionais, para muitos Estados muçulmanos. Essas transferên-
cias abrangem: a construção de um reator nuclear fortemente defendido
no deserto argelino, ostensivamente destinado à pesquisa, mas que a
maioria dos peritos ocidentais acredita ser capaz de produzir plutônio; a
venda para a Líbia de substâncias para armas químicas; o fornecimento
à Arábia Saudita de mísseis de médio alcance CSS-2; o fornecimento de
tecnologia ou substâncias nucleares ao Iraque, Líbia, Síria e Coréia do
Norte e a transferência de grandes quantidades de armas convencionais
para o Iraque. Suplementando as transferências pela China, nos primeiros
anos da década de 90, a Coréia do Norte forneceu à Síria mísseis Scud-C,
entregues através do Irã, e depois os chassis móveis para o seu lançamento.6
Entretanto, o ponto central da conexão confuciano-islâmica sobre J
armas tem sido o relacionamento entre a China - e, em menor escala,

234
da Coréia do Norte-, de um lado, e o Paquistão e o Irã, do outro. Entre
1980 e 1991, os dois principais recipientes de armas chinesas foram o Irã
e 0 Paquistão, com o Iraque vindo atrás. A partir da década de 70, a
China e 0 Paquistão desenvolveram um relacionamento militar extrema-
mente íntimo. Em 1989, os dois países assinaram um memorando de
entendimento, com validade de 10 anos, para a "cooperação militar em
todos os campos de compra, pesquisa e desenvolvimento conjuntos,
produção conjunta, transferência de tecnologia, bem como exportação
para terceiros países através de acordo mútuo". Em 1991 foi assinado um
acordo suplementar prevendo créditos chineses para as compras de
armas pelo Paquistão. Em conseqüência, a China se tomou "o maior e
mais confiável fornecedor de equipamento militar para o Paquistão,
transferindo material de utilização militar de praticamente todos os tipos
e destinados a todos os ramos das forças armadas paquistanesas". A China
também ajudou o Paquistão a criar fábricas de aviões a jato, tanques,
canhões e mísseis. De importância muito maior foi o fato de a China ter
proporcionado ao Paquistão auxílio essencial para o desenvolvimento
de sua capacidade em armas nucleares, aparentemente fornecendo ao
Paquistão urânio para enriquecimento, prestando assessoramento para o
desenho de bombas e possivelmente permitindo ao Paquistão detonar
um artefato nuclear num campo de provas chinês. Posteriormente, a
China forneceu ao Paquistão mísseis balísticos M-11, com um alcance de
300km, capazes de lançar ogivas nucleares, violando desse modo um
compromisso que assumira com os Estados Unidos. Em troca, a China
obteve do Paquistão tecnologia de reabastecimento em vôo e de mísseis
do tipo "Stinger". 7
Ao se chegar aos anos 90, haviam-se intensificado as conexões em
tomo de armamentos também entre a China e o Irã. Durante a Guerra
Irã-Iraque, nos anos 80, a China forneceu ao Irã 22 por cento de seus
armamentos e, em 1989, se tomou seu maior fornecedor individual. A
China também colaborou ativamente com os esforços abertamente
declarados do Irã de obter armas nucleares. Depois de assinar "um acordo
inicial de cooperação sino-iraniano", os dois países acordaram, em
janeiro de 1990, um entendimento, com validade de 10 anos, sobre
cooperação científica e transferências de tecnologia militar. Em setembro
de 1992, o presidente Rafsanjani, acompanhado por peritos nucleares
iranianos, visitou o Paquistão. Daí prosseguiu viagem até a China, onde
,\ assinou outro acordo para a cooperação na área nuclear e, em fevereiro
Jl
de 1993, a China concordou em construir no Irã dois reatores nucleares
QUADRO 8.1
TRANSFERÊNCIAS DE ARMAS PELA CHINA/ 1980-1991 (dados selecionados)

Irã Paquistão Iraque


Tanques pesados 540 1.100 1.300
Viaturas blindadas de transporte de tropas 300 650
Mísseis teleguiados antitanque 7.500 100
Canhões ! Lança-foguetes 1.200* 50 720
Aviões de caça 140 212
Mísseis antinavio 332 32
Mísseis terra-ar 788* 222*
* Indicam entregas não confirmadas integralmente.

Fonte: Karl W. Eikenberry, Explaining and lnfluencing Chinese Anns Transfer[Para Explicar as Transferências
de Armas pela China e Influir sobre Elas] (Washington: National Defense University, lnstitute for National Strategic
Studies, McNair Paper No. 36, fevereiro, 1995), p. 12.

de 300 MW. Em conformidade com esses acordos, a China transferiu


tecnologia e informações nucleares para o Irã, treinou cientistas e
engenheiros iranianos e forneceu ao Irã um dispositivo para enriqueci-
mento do tipo calutron. Em 1995, depois de constante pressão dos
Estados Unidos, a China concordou em "cancelar", segundo Washington,
ou "suspender", segundo Pequim, a venda dos dois reatores de 300 MW.
A China também foi o maior fornecedor de mísseis e de tecnologia de
mísseis para o Irã, inclusive, no final da década de 80, de mísseis
Silkworm, entregues através da Coréia do Norte e de "dezenas, talvez
centenas, de sistemas de direção de mísseis e máquinas-ferramentas
computadorizadas" em 1994-95. A China também permitiu a produção
sob licença no Irã de mísseis chineses superfície-superfície. A Coréia do
Norte suplementou essa assistência embarcando mísseis Scud para o Irã,
ajudando o Irã a desenvolver suas próprias fábricas e depois, em 1993,
concordando em fornecer ao Irã seu míssil Nodong 1, com um alcance
de 970km. No terceiro lado do triângulo, o Irã e o Paquistão também
desenvolveram uma ampla cooperação na área nuclear, com o Paquistão
treinando cientistas iranianos e Paquistão, Irã e China acordando, em
novembro de 1992, trabalhar em conjunto em projetos nucleares.s
Em decorrência desses desdobramentos e das ameaças em potencial
que eles encerram para os interesses ocidentais, a proliferação das armas
de destruição em massa passou para o topo da agenda de segurança do
Ocidente. Em 1990, por exemplo, 59 por cento da opinião pública
norte-americana considerava que impedir a disseminação das armas
nucleares era uma importante meta de política externa. Em 1994, 82 por
cento da opinião pública e 90 por cento das autoridades no campo da
política externa assim pensavam. O presidente Clinton destacou a
prioridade da não-proliferação em setembro de 1993 e, no outono de
1994, declarou "emergência nacional" tratar da "inusitada e extraordinária
ameaça para a segurança, a política externa e a economia nacionais dos
Estados Unidos" representada pela "proliferação de armas nucleares, bioló-
gicas e químicas e dos meios de lançá-las". Em 1991, a CIA criou um Centro
de Não-proliferação, com um quadro de 100 pessoas e, em dezembro de
1993, o secretário de Defesa Aspin anunciou uma nova Iniciativa de
Contraproliferação do Departamento de Defesa e a criação de um novo
cargo de secretário-assistente para Segurança Nuclear e Contraproliferação.9
Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos e a União Soviética se
engajaram numa clássica corrida armamentista, desenvolvendo armas
nucleares e meios de lançamento cada vez mais sofisticados tecnologi-
camente. Era um caso de aumento contra aumento. No mundo pós-Guer-
ra Fria, a competição fundamental em termos de armamentos é de outro
tipo. Os antagonistas do Ocidente estão tentando obter armas de
destruição em massa e o Ocidente está tentando impedi-los. Não é um
caso de aumento versus aumento, mas sim de aumento versus contenção.
A dimensão e a capacidade do arsenal nuclear do Ocidente não fazem,
posta a retórica de lado, parte da competição. O desfecho de uma corrida
armamentista de aumento versus aumento depende de recursos, empe-
nho e competência tecnológica de ambos os lados. Ele não está
predeterminado. O desfecho de uma corrida entre aumento e contenção
é mais previsível. Os esforços do Ocidente pela contenção podem
retardar o aumento de armamentos de outras sociedades, mas não irão
detê-lo. Tudo contribui para subverter os esforços de contenção feitos
pelo Ocidente: o desenvolvimento econômico e social das sociedades
não-ocidentais, os incentivos comerciais para todas as sociedades -
ocidentais e não-ocidentais - para ganhar dinheiro através da venda de
armas, de tecnologia e de conhecimento especializado, e os motivos
políticos dos Estados-núcleos e das potências regionais para proteger
suas hegemonias locais.
O Ocidente promove a não-proliferação como se ela refletisse os
interesses de todas as nações pela ordem e estabilidade internacionais.
Entretanto, outras nações vêem a não-proliferação como servindo aos
interesses da hegemonia ocidental. Essa realidade se reflete nas diferen-
ças de preocupação entre o Ocidente - e os Estados Unidos em
particular - , de um lado, e as potências regionais cuja segurança seria
afetada pela proliferação, do outro. Isso ficou patente com relação à
Coréia. Em 1993 e 1994, os Estados Unidos chegaram a um estado "crítico"
ante a perspectiva de armas nucleares norte-coreanas. Em novembro de
1993, o presidente Clinton afirmou taxativamente que "não se pode
permitir que a Coréia do Norte desenvolva uma bomba nuclear. Temos
que ser muito firmes quanto a isso". Senadores, deputados e ex-altos
funcionários do governo Bush debateram a possível necessidade de
ataque preventivo contra instalações nucleares norte-coreanas. A preo-
cupação dos Estados Unidos quanto ao programa norte-coreano se
fundamentava, em boa medida, na sua preocupação com a proliferação
mundial: não só a obtenção dessa capacidade iria impor limitações e
complicações a possíveis ações norte-americanas na Ásia Oriental, como
também, se a Coréia do Norte vendesse sua tecnologia e/ou armas
nucleares, isso poderia ter efeitos semelhantes para os Estados Unidos
na Ásia Meridional e no Oriente Médio.
A Coréia do Sul, por outro lado, encarava a bomba no contexto de
seus interesses regionais. Muitos sul-coreanos viam uma bomba norte-
coreana como uma bomba coreana, que nunca seria usada contra outros
coreanos, mas que poderia ser usada para defender a independência e
os interesses coreanos contra o Japão e outras ameaças em potencial.
Autoridades civis e militares sul-coreanas viam com nítido agrado que
uma Coréia unificada tivesse essa capacidade. Os interesses sul-coreanos
estavam bem servidos: a Coréia do Norte arcaria com os gastos e 0
opróbrio internacional do desenvolvimento da bomba, a Coréia do Sul
acabaria por herdá-la e a combinação de armas nucleares do Norte e a
capacidade industrial do Sul habilitariam uma Coréia unificada a assumir
seu papel apropriado de um dos atores principais no cenário da Ásia
Oriental. Em conseqüência, havia nítidas diferenças entre a gravidade
com que Washington via uma grande crise na península coreana em 1994
e a inexistência de qualquer sensação de crise em Seul gerando um
"hiato de pânico" entre as duas capitais. No auge da "crise':, em junho de
1994, um jornalista assinalou que uma das "peculiaridades do impasse
nuclear norte-coreano, desde o seu começo vários anos atrás, está em que
a sensação de crise aumenta em função da distância a que se está da Coréia".
Um hiato análogo entre os interesses de segurança dos Estados Unidos
e os de potências regionais ocorreu na Ásia Meridional com os Estados
um'dos mais. preocupados com a proliferação nuclear ' nessa região do
que os que nela vivem. Era mais fácil para a Índia e para o Paquistão
aceitarem a ameaça nuclear um do outro do que as propostas norte-ame-
ricanas de conter, reduzir ou eliminar a ameaça mútua de ambos. 10
Os esforços dos Estados Unidos e de outros países ocidentais para
impedir a proliferação de armas "equalizadoras" de destruição em massa
tiveram e é provável que continuem a ter êxito limitado. Um mês depois
que o presidente Clinton disse que não se podia permitir que a Coréia do
Norte tivesse armas nucleares, os serviços de inteligência norte-americanos
informaram-no de que provavelmente ela já possuía uma ou duas. 11 Em
decorrência, a política dos Estados Unidos foi alterada, passando a oferecer
aos norte-coreanos atrativos a fim de induzi-los a não expandir seu arsenal
nuclear. Os Estados Unidos também não conseguiram fazer recuar nem
deter o desenvolvimento de armas nucleares pela Índia e pelo Paquistão,
e foram incapazes de deter os avanços do Irã no campo nuclear.
Na conferência de abril de 1995 sobre o Tratado de Não-proliferação
Nuclear, a questão-chave era se ele devia ser renovado por um período
indefinido ou por 25 anos. Os Estados Unidos lideraram o esforço pela
prorrogação permanente. Entretanto, muitos países recusaram tal pror-
rogação, a menos que fosse acompanhada por uma redução muito mais
drástica das armas nucleares pelas cinco potências nucleares declaradas.
Além disso, o Egito se opôs à prorrogação a menos que Israel assinasse
o tratado e aceitasse inspeções de salvaguardas. No final, os Estados
Unidos conquistaram um consenso avassalador para a prorrogação por
tempo indeterminado através de uma estratégia altamente bem-sucedida
de pressões, subornos e ameaças. Nem Egito nem México, por exemplo,
que eram ambos contra a prorrogação indefinida, puderam manter suas
posições diante da sua dependência econômica dos Estados Unidos.
Embora o tratado tivesse sido prorrogado por consenso, os repre-
sentantes de sete países muçulmanos (Síria, Jordânia, Irã, Iraque, Líbia,
Egito e Malásia) e uma nação africana (Nigéria) expressaram opiniões
discordantes no debate finaI.12
Em 1993, as metas primordiais do Ocidente, tal como definidas pela
política norte-americana, mudaram da não-proliferação para a contrapro-
liferação. Essa mudança foi um reconhecimento realista do grau em que
uma certa proliferação nuclear não podia ser evitada. No devido tempo,
a política dos Estados Unidos irá mudar: da postura de se contrapor à
proliferação, passará a se acomodar com a proliferação. Além disso, se
o governo puder escapar do tipo de raciocínio moldado na Guerra Fria,
passará a entender como a promoção da proliferação pode de fato

2'..\9
atender aos interesses dos Estados Unidos e do Ocidente. Entretanto, em
1995, os Estados Unidos e o Ocidente continuavam engajados numa
política de contenção que, no final, tenderá a fracassar. A proliferação
das armas nucleares e outras armas de destruição em massa é um
fenômeno essencial da lenta porém inelutável disseminação do poder
num mundo multicivilizacional.

DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA

Durante as décadas de 70 e 80, mais de 30 países passaram de sistemas


políticos autoritários para democráticos. Essa onda de transições se deveu
a várias causas. O desenvolvimento econômico foi, sem dúvida, o
principal fator subjacente que gerou essas mudanças políticas. Além
disso, porém, as políticas e ações dos Estados Unidos e das principais
potências e instituições européias ocidentais ajudaram a levar a demo- 1
.· . ' '

cracia à Espanha e a Portugal, a muitos países latino-americanos, às


Filipinas, à Coréia do Sul e à Europa Oriental. A democratização foi mais
bem-sucedida em países onde as influências cristãs e ocidentais eram
fortes. Novos regimes democráticos pareciam ter maior probabilidade de
se estabilizar nos países da Europa Central e Meridional que eram
1·:
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1
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predominantemente católicos ou protestantes e, com menos certeza, em
países latino-americanos. Na Ásia Oriental, as Filipinas, católicas e com
forte influência norte-americana, retornaram à democracia na década de
80, enquanto líderes cristãos promoveram movimentos na direção da
democracia na Coréia do Sul e em Taiwan. Como foi apontado anterior-
1
mente, na ex-União Soviética as repúblicas bálticas parecem estar tendo
êxito em estabilizar a democracia; o grau e a estabilidade da democracia
nas repúblicas ortodoxas variam consideravelmente e são incertos; as
perspectivas democráticas nas repúblicas muçulmanas são sombrias. Ao
se chegar aos anos 90, com exceção de Cuba, haviam ocorrido transições
democráticas na maioria dos países, afora nos africanos, nos quais os povos
esposavam o Cristianismo ocidental ou havia grande influência cristã.
Essas transições e o colapso da União Soviética geraram no Oci-
dente, especialmente nos Estados Unidos, a crença de que uma revolução
democrática mundial estava em andamento e de que, dentro de pouco
tempo, as concepções ocidentais de direitos humanos e as formas
ocidentais de democracia política iriam prevalecer em todo o mundo.
Por conseguinte, a promoção dessa disseminação da democracia se
tornou um objetivo de alta prioridade para os ocidentais. Ela foi

?40
endossada pelo governo Bush e o secretário de Estado James Baker
declarou, em abril de 1990, que "para lá da contenção está a democracia"
e que, para o mundo pós-Guerra Fria, "o presidente Bush definiu nossa
nova missão como sendo a promoção e a consolidação da democracia".
Na sua campanha eleitoral de 1992, Bill Clinton disse repetidas vezes que
a promoção da democracia iria ter alta prioridade no governo Clinton, e
a democratização foi o único tópico de política externa ao qual ele
devotou inteiramente um dos principais discursos da campanha. Uma
vez no cargo, ele recomendou um aumento de dois terços dos recursos
financeiros do Fundo Nacional para a Democracia, seu assistente para
Segurança Nacional definiu o tema central da política externa de Clinton
como sendo "a ampliação da democracia" e seu secretário de Defesa
identificou a promoção da democracia como um dos quatro objetivos
principais, e tentou criar um cargo de alto nível no seu Departamento
1
' '
para promovê-lo. Em menor grau e de modo menos óbvio, a promoção
dos direitos humanos e da democracia assumiu um papel de destaque
na política-externa dos Estados europeus e nos critérios utilizados pelas
instituições econômicas internacionais controladas pelo Ocidente para a
1 concessão de empréstimos e doações aos países em desenvolvimento.
Ao se chegar a 1995, os esforços europeus e norte-americanos para
atingir esses objetivos tinham tido um êxito limitado. Quase todas as
civilizações não-ocidentais resistiram a essa pressão do Ocidente. Aí se

1 incluíram países hindus, ortodoxos, africanos e, de algum modo, até


mesmo latino-americanos. Contudo, a maior resistência aos esforços
ocidentais pela democratização vieram do Islã e da Ásia. Essa resistência
tinha suas raízes nos movimentos mais amplos de afirmação cultural
corporificados no Ressurgimento Islâmico e na Afirmação Asiática.
Os fracassos dos Estados Unidos com respeito à Ásia provieram
precipuamente da crescente riqueza econômica e autoconfiança dos
governos asiáticos. Autores asiáticos repetidamente recordaram ao Oci-
dente que a antiga era da dependência e da subordinação tinha acabado
e que o Ocidente, que produzia metade do produto econômico do
mundo na década de 40, dominava as Nações Unidas e escrevera a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, tinha desaparecido nas
brumas da História. Uma autoridade singapuriana argumentou que "os
esforços para promover os direitos humanos na Ásia precisam também
levar em conta a distribuição de poder diferente no mundo pós-Guerra
Fria. (. .. ) A capacidade de influência do Ocidente em relação à Ásia
Oriental e ao Sudeste Asiático ficou grandemente reduzida". 13

... ~.
Ele tem razão. Conquanto o acordo sobre assuntos nucleares entre
os Estados Unidos e a Coréia do Norte possa ser apropriadamente
denominado de "rendição negociada", a capitulação dos Estados Unidos
sobre as questões de direitos humanos com a China e outras potências
asiáticas foi uma rendição incondicional. Depois de ameaçar a China com
a denegação do tratamento de nação mais favorecida caso ela não se
mostrasse mais efetiva quanto aos direitos humanos, o governo Clinton
primeiro viu seu secretário de Estado humilhado erri Pequim, tendo-lhe
sido negado até mesmo um gesto para "salvar as aparências", e depois
reagiu a esse comportamento, renunciando à sua diretriz anterior,
separando a condição de nação mais favorecida das preocupações com
direitos humanos. A China, por sua vez, reagiu a essa demonstração de
fraqueza continuando e intensificando o comportamento a que o governo
Clinton objetara. O governo empreendeu retiradas análogas nas suas
1
tratativas com Singapura, a propósito da sentença de surra de vara
aplicada a um cidadão norte-americano, e com a Indonésia, em relação
à repressão violenta em Timor Oriental.
A capacidade dos governos asiáticos de resistir a pressões ocidentais
vinculadas a direitos humanos foi reforçada por vários fatores. Empresas
norte-americanas e européias, desesperadamente ansiosas por expan-
direm seus negócios e seus investimentos nesses países em rápido
crescimento, submeteram seus próprios governos a intensas pressões
para não prejudicarem as relações econômicas com aqueles países. Além
disso, os países asiáticos encararam as pressões ocidentais como uma
violação da sua soberania e acorreram em apoio uns dos outros quando
essas questões foram levantadas. Homens de negócios de Taiwan, Japão
e Hong Kong, que haviam investido na China, tinham um grande
interesse em que a China retivesse os privilégios de nação mais favorecida
nos Estados Unidos. O governo japonês distanciou-se, de forma genera-
lizada, das diretrizes norte-americanas sobre direitos humanos. O primei-
ro-ministro Kiichi Miyazawa disse, pouco depois do episódio da Praça
Tiananmen, que não permitiremos que "noções abstratas de direitos
humanos" afetem nossas relações com a China. Os países da ASEAN não
se mostraram dispostos a exercer pressão sobre Myanmar e, na realidade,
em 1994 acolheram a junta militar à sua reunião, enquanto que a União
Européia, como disse seu porta-voz, teve que reconhecer que sua política
"não tinha tido muito êxito" e que teria de acompanhar a postura da
ASEAN em relação a Myanmar. Além disso, o crescente poder econômico
de Estados como a Malásia e a Indonésia permitiu-lhes aplicar "con-
dicionalidades ao revés" a países e empresas que os criticassem ou
adotassem outras formas de comportamento que elas julgassem objetá-
veis.14
De modo geral, o crescente poder econômico dos países asiáticos
os torna cada vez mais imunes às pressões ocidentais no que se refere
aos direitos humanos e à democracia. Em 1994, Richard Nixon comentou
que, "atualmente, o poder econômico da China torna imprudentes
sermões dos Estados Unidos sobre direitos humanos. Dentro de uma
década, ele os tornará irrelevantes. Dentro de duas décadas, os tomará
risíveis". 15 Entretanto, quando se chegar a essa altura, o desenvolvimento
econômico chinês bem pode tornar os sermões ocidentais desnecessários.
O crescimento econômico está fortalecendo os governos asiáticos em
1 relação aos governos ocidentais. Num prazo mais longo, ele também
fortalecerá as sociedades asiáticas em relação aos governos asiáticos. Se
a democracia chegar a outros países asiáticos, isso se dará porque as cada
vez mais fortes burguesias e classes médias asiáticas assim o terão
desejado.
Contrastando com a concordância quanto à prorrogação indefinida
do tratado de não-proliferação, de modo geral em nada resultaram os
esforços ocidentais para promover os direitos humanos e a democracia
nos órgãos das Nações Unidas. Com poucas exceções, como as que
condenaram o Iraque, as resoluções sobre direitos humanos foram quase
sempre derrotadas nas votações nas Nações Unidas. Afora alguns países
latino-americanos, os demais governos relutaram em aderir a esforços
pela promoção do que muitos viam como "imperialismo dos direitos
humanos". Em 1990, por exemplo, a Suécia apresentou, em nome de 20
nações ocidentais, uma resolução condenando o regime militar de
Myanmar, porém ela foi liquidada pela oposição dos asiáticos e de outros
países. As resoluções condenando o Irã por abusos contra os direitos
humanos também foram derrotadas nas votações. Durante cinco anos
consecutivos na década de 90, a China conseguiu mobilizar o apoio
asiático para derrotar resoluções patrocinadas pelo Ocidente que expres-
savam preocupação quanto às suas violações dos direitos humanos. Em
1994, o Paquistão apresentou uma resolução na Comissão de Direitos
Humanos das Nações Unidas condenando as violações de direitos
humanos perpetradas pela Índia em Caxemira. Os países com simpatias
pela Índia se uniram contra ela, mas também o fizeram dois dos melhores
amigos do Paquistão, a China e o Irã, que tinham sido alvo de medidas
similares e que persuadiram o Paquistão a retirar o projeto. A revista 1be
Economist comentou que, ao deixar de condenar a brutalidade indiana
em Caxemira, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas "as
havia aprovado por omissão. Outros países também estão cometendo
atrocidades impunemente: Turquia, Indonésia, Colômbia e Argélia esca-
param todos das críticas. Desse modo, a Comissão está endossando os
governos que praticam carnificina e tortura, o que é exatamente o oposto
do que seus criadores pretendiam" .16
As divergências quanto a direitos humanos· entre o Ocidente e
outras civilizações, bem como a capacidade limitada do Ocidente de
atingir seus objetivos, ficaram claramente reveladas na Conferência
Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, realizada em Viena
em junho de 1993. De um lado estavam os países europeus e norte-ame-
ricanos e do outro estava um bloco de cerca de 50 Estados não-ocidentais,
dos quais os 15 mais atuantes incluíam os governos de um país
latino-americano (Cuba), um país budista (Myanmar), quatro países
confucianos com ideologias políticas, sistemas econômicos e níveis de
desenvolvimento muito diversos (Singapura, Vietnã, Coréia do Norte e
China) e nove países muçulmanos (Malásia, Indonésia, Paquistão, Irã,
Iraque, Síria, Iêmen, Sudão e Líbia). A liderança desse agrupamento
asiático-islâmico veio da China, da Síria e do Irã. A meia distância desses
dois agrupamentos estavam os países latino-americanos que, com exce-
ção de Cuba, freqüentemente apoiavam o Ocidente, e os países africanos
e ortodoxos que às vezes davam apoio, mas freqüentemente se opunham
1
às posições ocidentais.
As questões em tomo das quais os países se dividiam segundo as
linhas civilizacionais compreendiam as seguintes: universalidade versus
relativismo cultural com respeito a direitos humanos, a relativa prioridade
dos direitos econômicos e sociais (inclusive o direito ao desenvolvimen-
to) versus os direitos políticos e civis, a condicionalidade política com
respeito à assistência econômica, a criação de um Comissário das Nações
Unidas para Direitos Humanos, o grau em que as organizações não-go-
vernamentais que estavam reunidas simultaneamente em Viena deviam
poder participar da Conferência governamental, os direitos específicos
que deveriam ser endossados pela Conferência, bem como questões mais
específicas tais como se o dalai-lama devia ter permissão para se dirigir
à Conferência e se os abusos contra os direitos humanos na Bósnia
deviam ser condenados de forma explícita.
Havia grandes divergências entre os países ocidentais e o bloco
asiático-islâmico sobre essas questões. Dois meses antes da Conferência

?ÁÁ
de Viena, os países asiáticos se reuniram em Bangcoc e aprovaram uma
declaração que enfatizava que os direitos humanos deviam ser conside-
rados "no contexto (. .. )das particularidades nacionais e regionais e dos
diversos antecedentes históricos, religiosos e culturais", que o monitora-
mento dos direitos humanos violava a soberania dos Estados e que o
condicionamento da assistência econômica ao desempenho quanto aos
direitos humanos era contrário ao direito ao desenvolvimento. As diver-
gências sobre essas e outras questões foram tão grandes que quase todo
o texto do documento produzido no final da reunião preparatória da
Conferência de Viena, realizada em Genebra no início de maio, estava
entre colchetes, indicando discordância por parte de um ou mais países.
As nações ocidentais estavam mal preparadas para Viena, .estavam
em inferioridade numérica na Conferência e, durante os seus trabalhos,
fizeram mais concessões do que seus oponentes. Como resultado, afora
um firme endosso dos direitos das mulheres, a declaração aprovada pela
Conferência teve um conteúdo mínimo. Como assinalou um defensor
dos direitos humanos, era um documento "falho e contraditório" e
representava uma vitória da coalizão asiático-islâmica e uma derrota do
Ocidente. 17 A declaração de Viena não continha nenhum endosso
explícito dos direitos de liberdade de expressão, de imprensa, de reunião
ou de religião, e ficou assim, em muitos aspectos, mais fraca do que a

1 Declaração Universal dos Direitos Humanos que as Nações Unidas


tinham aprovado em 1948. Essa mudança refletiu o declínio do poder do
Ocidente. Um norte-americano defensor dos direitos humanos observou
que "o regime internacional de direitos humanos de 1945 não existe mais.
A hegemonia norte-americana se erodiu. A Europa, mesmo com os acon-
tecimentos de 1992, é pouco mais do que uma península. O mundo agora
é tanto árabe, asiático e africano quanto é ocidental. Atualmente, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos e as convenções internacionais
são menos relevantes para grande parte do planeta do que na era
imediatamente posterior à II Guerra Mundial". Um asiático crítico do
Ocidente tem opiniões análogas: "Pela primeira vez desde que a Declaração
Universal foi aprovada em 1948, estão na primeira linha os países que não
têm uma profunda formação baseada nas tradições judeu-cristãs e do direito
natural. Essa situação sem precedentes definirá a nova política internacional
de direitos humanos e também multiplicará as ocasiões para conflitos." 18
Em Viena, um outro observador comentou que "o grande vencedor
foi, nitidamente, a China, pelo menos se o êxito for medido em termos
de dizer aos outros que saiam do seu caminho. Pequim continuou
ganhando durante toda a reunião simplesmente fazendo valer o seu peso
específico a torto e a direito". 19 O Ocidente, derrotado nas votações e
nas manobras em Viena, conseguiu mesmo assim marcar uma vitória
significativa contra a China. Conseguir que as Olimpíadas de verão do
ano 2000 se realizassem em Pequim era uma meta importante para o
governo chinês, que investiu enormes recursos para tentar obter esse
resultado. Na China foi dada imensa publicidade à candidatura à sede
das Olimpíadas e as expectativas da opinião pública eram altas. O
governo fez gestões junto a outros governos para que pressionassem seus
respectivos Comitês Olímpicos, e Taiwan e Hong Kong se juntaram a
essa campanha. No campo adversário, o Congresso dos Estados Unidos,
o Parlamento Europeu e organizações de direitos humanos se opuseram
vigorosamente, todos, à escolha de Pequim. Embora a votação no Comitê
Olímpico Internacional seja por voto secreto, nesse caso ela seguiu
claramente as linhas civilizacionais. No primeiro escrutínio, Pequim,
segundo consta, com amplo apoio africano, ficou em primeiro lugar e
Sydney em segundo. Nos escrutínios subseqüentes, quando Istambul foi
eliminada, a conexão confuciano-islâmica levou maciçamente os seus
votos para Pequim; quando Berlim e Manchester foram eliminadas, seus
votos foram maciçamente para Sydney, dando-lhe a vitória no quarto
escrutínio e impondo uma derrota humilhante à China, que por ela
culpou diretamente os Estados Unidos.* Lee Kuan Yew comentou que
"os Estados Unidos e a Grã-Bretanha conseguiram pôr a China no seu
lugar. (. .. )A razão aparente foi 'direitos humanos'. A razão verdadeira
foi política, para mostrar o poderio político ocidental".20 Inegavelmente,
há muito mais gente no mundo interessada em esportes do que em
direitos humanos, porém, dadas as derrotas que o Ocidente sofreu em
Viena e em outros lugares, essa demonstração isolada da "influência"
ocidental foi também um lembrete da fraqueza ocidental.

•A votação nos quatro escrutínios foi a seguinte:

Pequim
Sydney
Manchester
Berlim
Primeiro
32
30
11
Segundo
37
30
13
Terceiro
40
37
11
Quarto
43
45 !
9 9
Istambul 7
abstenção
TOTAL 89 89 89 89
Não só a influência ocidental está menor, como também o paradoxo
da democracia enfraquece ·a vontade ocidental de promover a democra-
cia no mundo pós-Guerra Fria. Durante a Guerra Fria, o Ocidente e os
Estados Unidos em especial se defrontavam com o problema do "tirano
amistoso": os dilemas de cooperar com ditadores e juntas militares que
eram anticomunistas e por isso parceiros úteis na Guerra Fria. Essa
cooperação produziu mal-estar e, às vezes, embaraços quando esses
regimes cometiam violações revoltantes dos direitos humanos. Entretan-
to, a cooperação podia ser justificada como o mal menor: esses governos
geralmente eram menos repressivos do que os regimes comunistas e se
podia supor que seriam menos duráveis e também mais suscetíveis às
influências norte-americanas e de outras origens externas. Por que não
trabalhar com um tirano amistoso menos brutal se a alternativa era outro
mais brutal e inamistoso? No mundo pós-Guerra Fria, a escolha pode ser
mais difícil: entre um tirano amistoso e uma democracia inamistosa. A
suposição gratuita do Ocidente de que governos eleitos democraticamen-
te serão cooperativos e pró-ocidentais não se confirma em sociedades
não-ocidentais em que a competição eleitoral pode levar ao poder
nacionalistas e fundamentalistas antiocidentais. O Ocidente ficou aliviado
quando os militares argelinos intervieram em 1992 e suspenderam as
eleições em que a fundamentalista FIS ia indubitavelmente sair vitoriosa.
Os governos ocidentais também se tranqüilizaram quando o funda-
mentalista Partido do Bem-Estar, na Turquia, e o nacionalista BJP, na
Índia, foram alijados do poder depois de lograr vitórias eleitorais em 1995
e 1996, respectivamente. Por outro lado, em alguns aspectos, o Irã possui,
dentro do contexto da sua revolução, um dos regimes mais democráticos
do mundo islâmico, e eleições livres em muitos países árabes, inclusive
Arábia Saudita e Egito, iriam quase certamente produzir governos muito
menos simpáticos aos interesses ocidentais do que seus predecessores
não-democráticos. Um governo eleito pela via popular na China bem
poderia ser profundamente nacionalista. À medida que os líderes ociden-

!
tais se dão conta de que os processos democráticos nas sociedades
não-ocidentais freqüentemente produzem governos hostis ao Ocidente,
tentam exercer influência nessas eleições, bem como perdem seu entu-
~ siasmo por promover a democracia nessas sociedades.

IMIGRAÇÃO

Se a demografia é o destino da História, os movimentos populacionais


são o seu motor. Em séculos passados, taxas diferenciais de crescimento,

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condições econômicas e políticas governamentais produziram migrações
maciças de gregos, judeus, tribos germânicas, nórdicos, turcos, russos,
chineses e outros. Em alguns casos, esses movimentos foram relativa-
mente pacíficos em outros, bastante violentos. Entretanto, os europeus
do século XIX foram a raça superior em termos de invasão demográfica.
Entre 1821e1924, aproximadamente 55 milhões de europeus emigraram
para o ultramar, dos quais 34 milhões para os Estados Unidos. Os
ocidentais conquistaram e, algumas vezes, obliteraram outros povos,
exploraram e colonizaram terras menos densamente povoadas. A expor-
tação de pessoas foi talvez a mais importante dimensão da ascensão do
Ocidente entre os séculos XVI e XX.
O final do século XX presenciou um surto diferente e ainda maior
de migrações. Em 1990, os migrantes legais internacionais totalizavam
cerca de 100 milhões, os refugiados cerca de 19 milhões e os migrantes
ilegais provavelmente mais 10 milhões, no mínimo. Essa nova onda de
migrações foi, em parte, fruto da descolonização, da criação de novos
Estados e de políticas oficiais que encorajavam ou forçavam as pessoas
a se mudar. Contudo, foi também fruto da modernização e do desenvol-
vimento tecnológico. Os avanços nos meios de transporte tornaram as
migrações mais fáceis, mais rápidas e mais baratas; os avanços nas
comunicações aumentaram os incentivos para buscar oportunidades
econômicas e promoveram as relações entre os imigrantes e suas famílias
nos países de origem. Além disso, do mesmo modo que o crescimento
econômico do Ocidente estimulou a emigração no século XIX, o
desenvolvimento econômico das sociedades não-ocidentais estimulou a
emigração no século XX. As migrações passam a ser um processo que
se autofortalece. Myron Weiner argumenta que "se existe uma única 'lei'
sobre migrações, é a de que o fluxo migratório, uma vez iniciado, induz
seu próprio fluxo. Os imigrantes habilitam seus amigos e familiares no
país de origem a imigrarem ao lhes proporcionarem informações sobre
como imigrar, recursos para facilitar o seu deslocamento e assistência
para encontrar emprego e moradia". O resultado é, nas suas palavras,
"uma crise mundial de migrações''.21
Os ocidentais têm se oposto, de modo consistente e amplo, à
proliferação nuclear e apoiado a democracia e os direitos humanos. Suas
posturas quanto à imigração, pelo contrário, têm sido ambivalentes e têm
mudado com sua evolução, alterando-se de forma significativa nas
últimas duas décadas do século XX. Até os anos 70, os países europeus
tinham, de forma geral, uma disposição favorável à imigração e, em

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alguns casos, notadamente Alemanha e Suíça, a encorajavam a fim de
remediar a escassez de mão-de-obra. Em 1965, os Estados Unidos
aboliram as quotas orientadas para os europeus, que datavam dos anos
20, e reviram de modo drástico sua legislação, possibilitando enormes
aumentos de quantidade e novas fontes de imigrantes nas décadas de 70
e 80. Entretanto, no final dos anos 80, as altas taxas de desemprego, o
número elevado de imigrantes e a característica de serem predominan-
temente "não-europeus" produziram severas mudanças nas atitudes e na
política dos países europeus. Alguns anos depois, preocupações análogas
levaram a uma mudança comparável nos Estados Unidos.
A maioria dos migrantes e refugiados do final do século XX
deslocaram-se de uma sociedade não-ocidental para outra. O fluxo de
migrantes para as sociedades ocidentais, entretanto, se aproximou, em
números absolutos, da emigração ocidental do século XIX. Em 1990,
estimava-se que havia 20 milhões de imigrantes nos Estados Unidos, 15,5
milhões na Europa e 8 milhões na Austrália e no Canadá. A proporção
de imigrantes no total da população atingiu de sete a oito por cento nos
principais países europeus. Nos Estados Unidos, os imigrantes cons-
tituíam 8,7 por cento da população em 1994, o dobro de 1970, e
compunham 25 por cento da população da Califórnia e 16 por cento da
de Nova York. Cerca de 8,3 milhões de pessoas entraram nos Estados
Unidos nos anos 80 e 4,5 milhões nos primeiros quatro anos da década
de 90.
Em sua maioria, os novos imigrantes vieram de sociedades não-oci-
dentais. Na Alemanha, os residentes estrangeiros turcos somavam
1.675.000 em 1990, com a Iugoslávia, Itália e Grécia fornecendo os
seguintes maiores contingentes. Na Itália, as principais fontes eram o
Marrocos, os Estados Unidos (presumivelmente, sobretudo ítalo-ameri-
canos regressando), a Tunísia e as Filipinas. Em meados de 1990,
aproximadamente quatro milhões de muçulmanos viviam na França e
até 13 milhões em toda a Europa Ocidental. Na década de 50, dois terços
dos imigrantes nos Estados Unidos provinham da Europa e do Canadá;
na década de 80, cerca de 35 por cento de um número muito maior de
imigrantes provinham da Ásia, 45 por cento da América Latina e menos
de 15 por cento da Europa e do Canadá. O crescimento natural da
população nos Estados Unidos é baixo e praticamente zero na Europa.
Os migrantes têm altas taxas de fertilidade e por isso respondem pela
maior parte do futuro crescimento populacional nas sociedades ociden-
tais. Em conseqüência, os ocidentais cada vez mais receiam "estarem
atualmente sendo invadidos, não por exércitos e tanques, mas por
migrantes que falam outros idiomas, adoram outros deuses, pertencem
a outras culturas e, temem eles, irão tomar seus empregos, ocupar suas
terras, viver à custa do sistema de previdência social e ameaçar seu estilo
de vida".22 Stanley Hoffmann assinala que essas fobias, com raízes no
declínio demográfico relativo, "estão baseadas em choques culturais
genuínos a respeito da identidade nacional". 23
Nos primeiros anos da década de 90, dois terÇos dos migrantes na
Europa eram muçulmanos e a preocupação européia com a imigração
era sobretudo com a imigração muçulmana. O desafio é demográfico -
os migrantes respondem por 10 por cento dos nascimentos na Europa
Ocidental, os árabes por 50 por cento dos nascimentos em Bruxelas -
e cultural. As comunidades muçulmanas, quer sejam turcos na Alemanha,
quer argelinos na França, não se integraram nas respectivas culturas
anfitriãs e, para a preocupação dos europeus, dão poucos sinais de virem
a se integrar. Jean Marie Domenach disse em 1991 que "há um medo
crescente em toda a Europa de uma comunidade muçulmana que
atravesse as linhas européias, uma espécie de décima terceira nação na
Comunidade Européia". Com relação aos imigrantes, um jornalista nor-
te-americano comentou que

a hostilidade européia é curiosamente seletiva. Poucas pessoas na França


se preocupam com uma invasão vinda do Leste - os poloneses são,
afinal de contas, europeus e católicos. E, na sua maioria, os imigrantes
africanos não-árabes não são temidos nem menosprezados. A hostilidade
se dirige sobretudo aos muçulmanos. A palavra immigré é praticamente
sinônimo de Islamismo, atualmente a segunda maior religião na França,
e reflete um racismo cultural e étnico profundamente enraizado na
história francesa.24

Entretanto os franceses são mais culturistas do que racistas em


qualquer sentido estrito. Aceitaram na sua legislatura africanos negros
que falam francês perfeito, mas não aceitam meninas muçulmanas que
usam lenços de cabeça nas suas escolas. Em 1990, 76 por cento do povo
francês achava que havia árabes demais na França; 46 por cento, que
havia negros demais; 40 por cento, que havia asiáticos demais e 24 por
cento que havia judeus demais; em 1994, 47 por cento dos alemães
disseram que prefeririam não ter árabes vivendo em seus bairros, 39 por
cento não queriam poloneses, 36 por cento não queriam turcos e 22 por
cento não queriam judeus. 25 Na Europa Ocidental, o anti-semitismo
dirigido contra os judeus foi em grande parte substituído por um
anti-semitismo dirigido contra os árabes.
A oposição popular à imigração e a hostilidade para com os
imigrantes se manifestam, em casos extremos, em atos de violência contra
as comunidades de imigrantes e imigrantes individuais. Tais atos de
violência se tomaram um problema na Alemanha no início da década de
90. Mais significativo foi o aumento de votos dados aos partidos de direita,
nacionalistas e antiimigração. Entretanto, raramente essa votação foi
elevada. Na Alemanha, o Partido Republicano teve mais de sete por cento
dos votos nas eleições européias de 1989, porém apenas 2,1 por cento
nas eleições nacionais de 1990. Na França, a votação obtida pela Frente
Nacional, que tinha sido desprezível em 1981, subiu para 9,6 por cento
em 1988 e, daí por diante, se estabilizou entre 12 e 15 por cento nas
eleições regionais, parlamentares e presidenciais. Em 1995, a Frente
conseguiu, contudo, eleger os prefeitos de várias cidades, inclusive
Toulon e Nice. Na Itália, a votação da Aliança Nacional/MSI analogamen-
te se elevou de cerca de cinco por cento nos anos 80 para de 10 a 15
por cento no início da década de 90. Na Bélgica, a votação do Bloco
Flamengo/Frente Nacional aumentou para nove por cento nas eleições
municipais de 1994, com o Bloco conseguindo 28 por cento dos votos
em Antuérpia. Na Áustria, a votação obtida nas eleições gerais pelo
Partido da Liberdade aumentou de menos de 10 por cento em 1986 para
mais de 15 por cento em 1990 e quase 23 por cento em 1994,26
Esses partidos europeus que se opõem à imigração muçulmana
eram, em grande parte, o espelho dos partidos fundamentalistas islâmicos
dos países muçulmanos. Ambos eram grupos de fora que condenavam uma
estrutura corrupta e seus partidos, explorando as queixas quanto à econo-
mia, especialmente o desemprego, fazendo chamamentos étnicos e religio-
sos e atacando as influências forâneas em suas respectivas sociedades. Em
ambos os casos, uma fímbria extremista se engajou em atos de violência e
terrorismo. Na maioria das situações, tanto os partidos fundamentalistas
islâmicos quanto os nacionalistas europeus tenderam a ter um melhor
desempenho nas eleições locais do que nas de âmbito nacional. As
estruturas políticas tradicionais muçulmanas e européias reagiram a esses
desdobramentos de modo análogo. Nos países muçulmanos, como já
vimos, os governos, de forma geral, se tornaram mais islâmicos em suas
orientações, símbolos, políticas e práticas. Na Europa, os partidos tradi-
cionais àdotaram a retórica e promoveram as medidas dos partidos de
direita e contrários à imigração. Nos países em que havia uma política
democrática em funcionamento efetivo e onde havia dois ou mais
partidos como alternativas ao partido fundamentalista islâmico ou na-
cionalista, a votação dos mesmos chegou a um teto de cerca de 20 por
cento. Os partidos de protesto só conseguiram superar esse índice onde não
havia nenhuma alternativa válida para o partido ou coligação no poder,
como aconteceu na Argélia, na Áustria e, em grau razoável, na Itália.
No início da década de 90, os líderes políticos europeus estavam
competindo entre si para responder aos sentimentos antiimigração. Na
França, Jacques Chirac declarou em 1990 que "é preciso parar totalmente
a imigração", o ministro do Interior Charles Pasqua defendeu em 1993 a
"imigração zero" e François Mitterrand, Edith Cresson, Valéry Giscard
d'Estaing e outros políticos de correntes majoritárias assumiram posturas
contrárias à imigração. Nas eleições parlamentares de 1993, a imigração
foi uma das questões principais e aparentemente contribuiu para a vitória
dos partidos conservadores. Durante os primeiros anos da década de 90,
a política do governo francês foi modificada a fim de tornar mais difícil
a aquisição da cidadania francesa pelos filhos de estrangeiros, a imigração
de famílias de estrangeiros, a solicitação de direito de asilo por estrangeiros
e a obtenção do visto de entrada na França por argelinos. Os imigrantes
ilegais foram deportados, e foram ampliados os poderes da polícia e de
outras autoridades governamentais que lidavam com imigração.
Na Alemanha, o chanceler Helmut Kohl e outros líderes políticos
também manifestaram preocupações quanto à imigração e, na sua
providência mais importante, o governo emendou o artigo XVI da
Constituição alemã, que garantia o asilo a "pessoas perseguidas por
motivos políticos" e cortou os benefícios dos candidatos a asilo. Em 1992,
438 mil pessoas chegaram à Alemanha em busca de asilo, enquanto que
em 1994 esse número foi de apenas 127 mil. Em 1980, a Grã-Bretanha
tinha reduzido drasticamente sua imigração para cerca de 50 mil pessoas
por ano e, em conseqüência, a questão suscitou lá menos comoção e
oposição do que no continente. Contudo, entre 1992 e 1994, a Grã-Breta-
nha reduziu drasticamente de 20 mil para menos de 1O mil o número de
candidatos a asilo que tinham permissão para permanecer no país. A
medida que iam caindo as barreiras aos deslocamentos dentro da União
Européia, as preocupações britânicas se concentraram em boa medida nos
perigos da migração não-européia proveniente do continente. Em meados
dos anos 90, ·de modo geral, os países europeus ocidentais estavam se
movendo inexoravelmente no sentido de reduzir a um mínimo, quando não
eliminar totalmente, a imigração de fontes não-européias.

2'\7.
A questão da imigração veio à tona um tanto mais tarde nos Estados
Unidos do que na Europa e não chegou a gerar a mesma crise emocional.
Os Estados Unidos sempre foram país de imigrantes, assim se considera e,
historicamente, desenvolveu processos muito bem-sucedidos para a as-
similação dos recém-chegados. Além disso, nos anos 80 e 90, o desemprego
era consideravelmente menor nos Estados Unidos do que na Europa, e o
medo de perda do emprego não foi um fator decisivo para moldar as atitudes
quanto à imigração. Ademais, as fontes da imigração nos Estados Unidos
foram mais diversificadas do que na Europa e, desse modo, o medo de
serem inundados por um único grupo estrangeiro foi menor em âmbito
nacional, embora fosse muito concreto em algumas localidades em
particular. A distância cultural entre os dois maiores grupos de imigrantes
e a cultura anfitriã também foi menor do que na Europa: os mexicanos
são católicos e falam espanhol; os filipinos são católicos e falam inglês.
Apesar desses fatores, no quarto de século depois da passagem da
lei de 1965 que permitiu uma imigração muito maior de asiáticos e
latino-americanos, a opinião pública norte-americana mudou de maneira
decisiva. Em 1965, apenas 33 por cento do povo queriam menos
imigração. Em 1972, 42 por cento queriam sua redução, em 1986 eram
49 por cento e em 1990 e 1993 esse número subiu para 62 por cento. As
pesquisas de opinião feitas nos anos 90 revelaram de maneira sistemática
que 60 por cento ou mais do povo eram a favor de uma redução na
imigração. 27 Conquanto as preocupações econômicas e as condições
econômicas afetem as atitudes para com a imigração, a oposição que
cresce de modo sistemático em tempos bons e ruins sugere que cultura,
criminalidade e estilo de vida foram mais importantes para essa mudança
de opinião. Um observador comentou em 1994 que "muitos norte-ame-
ricanos, talvez a maioria deles, ainda vêem sua nação como um país de
colonização européia, cujas leis são uma herança da Inglaterra, cujo
idioma é (e deve continuar a ser) o inglês, cujas instituições e edifícios
públicos foram inspirados por normas clássicas ocidentais, cuja religião
tem raízes judaico-cristãs, e cuja grandeza surgiu inicialmente da ética de
trabalho protestante". Refletindo essas preocupações, 55 por cento de
uma amostragem da opinião pública disseram que consideravam a
imigração uma ameaça para a cultura norte-americana. Enquanto os
europeus vêem a ameaça da imigração como muçulmana ou árabe, os
norte-americanos a vêem como latino-americana e asiática, mas sobretu-
do como mexicana. Em 1990, uma amostragem de norte-americanos,
perguntados sobre de quais países os Estados Unidos estavam admitindo

2"i~
1m1grantes em demasia, revelou que o México era citado o dobro de 1
vezes do que qualquer outro país, seguido, em ordem decrescente, por
Cuba, Oriente (não especificados os países), América do Sul e América
Latina (não especificados os países), Japão, Vietnã, China e Coréia do Sul.28
Uma crescente oposição do povo à imigração nos primeiros anos
da década de 90 induziu uma reação política análoga à que ocorreu na
Europa. Dada a natureza do sistema político norte-americano, partidos
direitistas e antiimigração não conquistaram votos, .porém autores e
grupos de pressão antiimigração ficaram mais numerosos, mais atuantes
e mais vociferantes. Muito do ressentimento se centrava no total de três
e meio a quatro milhões de imigrantes ilegais, e os políticos responderam
a isso. Tal como na Europa, a reação mais forte se deu nos níveis estadual
e municipal, que arcam com a maior parte dos custos sociais dos
imigrantes. Em conseqüência, em 1994, a Flórida, à qual depois se
juntaram outros seis Estados, moveu uma ação contra o governo federal
exigindo 884 milhões de dólares por ano para cobrir os gastos com
educação, assistência social, policiamento e outras despesas acarretadas
pelos imigrantes ilegais. Na Califórnia, o estado que tem a maior
quantidade de imigrantes, em números absolutos e proporcionais, 0 1
governador Pete Wilson conquistou o apoio popular ao instar que se
vedasse o acesso à rede de ensino público aos filhos dos imigrantes
ilegais, recusar cidadania aos filhos nascidos nos Estados Unidos de
imigrantes ilegais e terminar com os pagamentos com verbas estaduais
do atendimento médico de emergência a imigrantes ilegais. Em novem-
bro de 1994, os californianos aprovaram por grande maioria a Proposição
1
187, pela qual se denegavam benefícios de saúde, educação e assistência
social a estrangeiros ilegais e seus filhos.
Ainda em 1994, o governo Clinton, invertendo uma postura anterior
tomo~ pro~idências para tornar mais severos os controles de imigraçã~
e ma1~ estr~tas as regras a respeito de asilo político, expandir 0 Serviço
de In_11gra?~º e Naturalização, reforçar a Patrulha de Fronteira e erigir
barreiras f1s1cas ao longo da fronteira com o México. Em 1995, a Comissão
sobre Reforma da Imigração, autorizada pelo Congresso em 1990,
recomendou a redução anual da imigração legal de mais de 800 mil
pessoa_s para 550 mil, dando preferência a crianças pequenas e cônjuges
mas nao a outros parentes de atuais cidadãos e residentes. Essa dis-
pos_ição "inflamou as famílias asiático-americanas e hispânicas".29 Um
projeto de lei que incorporava muitas das recomendações da Comissão
e outras medidas que restringiam a imigração estava tramitando pelo

254
1 Congresso em 1995-96. Em meados da década de 90, a imigração tinha
assim se tornado uma importante questão política nos Estados Unidos e,
em 1996, Patrick Buchanan fez da oposição à imigração um ponto
fundamental de sua campanha pela Presidência. Os Estados Unidos estão
seguindo a Europa ao tomarem providências para reduzir de modo
substancial a entrada de não-ocidentais em sua sociedade.
Será possível à Europa ou aos Estados Unidos sustar a corrente
migratória? A França passou por uma versão importante do pessimismo
demográfico, indo desde o cáustico romance de Jean Raspai! na década
de 70 até a análise erudita de Jean-Claude Chesnais nos anos 90, e que
está resumida nos comentários feitos, em 1991, por Pierre Lellouche: "A
história, a proximidade e a pobreza garantem que a França e a Europa
estão destinadas a serem invadidas pelas pessoas das sociedades fracas-
sadas do Sul. O passado da Europa foi branco e judaico-cristão. O futuro
não o é."•30 Entretanto, o futuro não está determinado de modo ir-
revogável, nem há um único futuro permanente. A questão não é se a
Europa será islamizada ou se os Estados Unidos serão hispanizados. A
questão é, sim, se a Europa e os Estados Unidos se transformarão em
sociedades partidas em duas comunidades distintas e em grande parte
separadas, oriundas de duas civilizações diferentes, o que, por sua vez,
depende do número total de imigrantes e do grau em que sejam
assimilados nas culturas ocidentais que prevalecem na Europa e nos
Estados Unidos.
De forma geral, as sociedades européias ou não querem assimilar
os imigrantes ou têm grandes dificuldades para fazê-lo, e não está claro
o grau com que os imigrantes muçulmanos e seus filhos desejam ser
assimilados. Em conseqüência disso, uma continuada imigração subs-
tancial provavelmente produzirá países divididos em comunidades cristã
e muçulmana. Esse resultado pode ser evitado na medida em que os
governos e os povos europeus estejam dispostos a arcar com os custos
de restringir esse tipo de imigração, o que inclui os custos orçamentários

• O livro de Raspai!, Le Camp des Saints, foi publicado inicialmente em 1973 (Paris, Éditions
Robert Laffront) e foi impresso numa nova edição em 1985, quando se intensificou na França
a preocupação com a imigração. O romance foi levado de fonna espetacular à atenção dos
norte-americanos quando essa preocupação se intensificou nos Estados Unidos, em 1994, por
Matthew Connelly e Paul Kennedy no artigo "Must It Be the Rest Against the West?" [Tem que
ser o Resto contra o Ocidente?], Atlantic Monthly, v. 274 (dez. 1994), p. 61 e ss. O prefácio
de Raspai! da edição francesa de 1985 foi publicado em inglês na revista 1be Social Contract,
v. 4 (inverno 1993-94), pp. 115-117.

255
diretos de medidas antiimigratórias, os custos sociais de alienar ainda
mais as atuais comunidades de imigrantes e os custos econômicos em
potencial, a longo prazo, da escassez de mão-de-obra e de taxas de
crescimento mais baixas.
Entretanto, é provável que o problema da invasão demográfica
muçulmana diminua à medida que as taxas de crescimento populacional
nas sociedades do Norte da África e do Oriente Médio cheguem ao seu
ápice, como já ocorreu em alguns países, e comecem a declinar. Pelo
menos algumas projeções sugerem que esse declínio será bastante
considerável nas primeiras décadas do século XXI.3 1 Na medida em que
a pressão demográfica estimula a imigração, a imigração muçulmana
poderia ser muito menor em 2025. Isso não se aplica à África Subsaárica.
Se houver desenvolvimento econômico e se for promovida a mobilidade
social na África Central e Ocidental, aumentarão os incentivos e a
capacidade para migrar, e a ameaça de "islamização" da Europa será
substituída pela de "africanização". o' grau em que essá ameaça se irá
concretizar sofrerá grande influência do grau em que as populações
africanas sejam reduzidas pela AIDS e outras pestes, bem como do grau
de atração que a África do Sul exerça sobre imigrantes de outras áreas
da África.
Enquanto os muçulmanos representam o problema imediato para
a Europa, os mexicanos representam tal problema para os Estados
Unidos. Pressupondo-se a continuidade das tendências e políticas atuais,
a população norte-americana irá, como mostra o Quadro 8.2, modificar-se
de forma espetacular na primeira metade do século XXI, ficando aproxi~
maciamente 50 por cento branca e quase 25 por cento hispânica. Como
na Europa, mudanças na política de imigração e a eficácia na aplicação
de medidas antíimigratórias podem alterar essas projeções. Mesmo assim,
a questão fundamental continuará sendo o grau em que os hispânicos
sejam assimilados na sociedade norte-americana, como grupos anteriores
de imigrantes o foram. Os hispânicos de segunda e terceira geração se
vêem diante de uma ampla gama de incentivos e pressões para isso. A
imigração mexicana, por outro lado, se diferencia de modos pos-
sivelmente importantes da imigração de outras fontes. Em primeiro lugar,
os imigrantes oriundos da Europa ou da Ásia cruzam oceanos; os
mexicanos cruzam apenas uma fronteira ou, no máximo, um rio. Isso,
somado à facilidade cada vez maior dos meios de transporte e comuni-
cações, os habilita a manter contatos estreitos e a identidade com suas
comunidades de origem. Em segundo lugar, os imigrantes mexicanos

256
QUADRO 8.2
POPULAÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS POR RAÇA E ETNIA
(em porcentagens)
1993 2020 2050
(est.) (est.)
brancos não-hispânicos 74 63 51
hispânicos 10 16 23
negros 13 14 16
asiáticos e ilhéus do Pacífico 3 7
indígenas norte-americanos e do Alasca <1 <1
Total (em milhões de pessoas) 259 326 392

estão concentrados no sudoeste dos Estados Unidos e fazem parte de


uma sociedade mexicana ininterrupta, que se estende do Yucatan até
Nevada (ver Mapa 8.1). Em terceiro lugar, há indícios que sugerem que
a resistência à assimilação é mais forte nos imigrantes mexicanos do que
foi em outros grupos de imigrantes, e que os mexicanos tendem a manter
sua identidade mexicana, como ficou evidenciado na luta em torno da
Proposição 187 na Califórnia, em 1994. Em quarto lugar, a área em que
se instalaram os imigrantes mexicanos foi anexada pelos Estados Unidos,
depois de terem derrotado o México em meados do século XIX. É
praticamente certo que o desenvolvimento econômico mexicano gerará
sentimentos revanchistas mexicanos. No seu devido tempo, os resultados
da expansão militar norte-americana do século XIX poderão ser amea-
çados pela expansão demográfica do século XXI.
A mutação da balança de poder entre as civilizações toma cada vez
mais difícil para o Ocidente atingir os seus objetivos com relação à
proliferação de armamentos, direitos humanos, imigração e outras ques-
tões. Para que o Ocidente possa minimizar suas perdas nessa situação
ele precisa, ao lidar com outras sociedades, empregar com habilidade
seus recursos econômicos a título de incentivos e penalidades, aumentar
sua unidade e coordenar suas políticas para dificultar que outras socie-
dades joguem um país ocidental contra outro, e promover e explorar as
diferenças entre as nações não-ocidentais. A capacidade do Ocidente de
implementar essas estratégias será, por um lado, condicionada pela
natureza e intensidade de seus conflitos com as civilizações desafiantes
e, por outro, pelo grau com que consiga identificar e desenvolver
interesses comuns com as civilizações oscilantes.

257
ll[l[J
CAPÍTULO 9

A Política Mundial
das Civilizações

ESTADO-NÚCLEO E CONFLITOS DE LINHA DE FRATURA

o mundo que está surgindo, os Estados e os grupos de duas

N civilizações diferentes podem formar conexões e coligações


táticas, ad hoc, limitadas a fim de desenvolver os seus interesses
contra entidades de uma terceira civilização ou para outras finalidades
compartilhadas. Entretanto, as relações entre grupos de civilizações
diferentes quase nunca serão íntimas, geralmente serão frias e muitas
vezes hostis. Conexões entre Estados de civilizações diferentes herdadas
do passado, tais como alianças militares da época da Guerra Fria,
provavelmente se atenuaram ou se evaporarão. As esperanças de íntimas
"parcerias" intercivilizacionais, como as que foram num momento arti-
culadas pelos respectivos dirigentes entre a Rússia e os Estados Unidos,
não se concretizarão. As relações intercivilizacionais que surgirão nor-
malmente variarão de distanciadas a violentas, situando-se a maioria em
algum ponto entre esses dois extremos. Em muitos casos, elas provavel-
mente se parecerão com a "paz fria" que Boris Yeltsin advertiu que
poderia ser o futuro das relações entre a Rússia e o Ocidente. Outras
relações intercivilizacionais poderiam se parecer com uma condição de
"guerra fria". A expressão la guerra fria foi inventada pelos espanhóis
no século XIII para descrever sua "coexistência inquieta" com os muçul-
manos no Mediterrâneo, e, nos anos 90, muitas pessoas viram uma "guerra
fria civilizacional" mais uma vez se desenvolvendo entre o Islã e o Ocidente .1
Em 1992, Deng Xiaoping falou de uma "guerra fria" que estava
surgindo entre os Estados Unidos e a China. Mais ou menos na mesma
época, vários comentaristas falaram de uma guerra fria entre os Estados
Unidos e o Japão. Paz fria, guerra fria, guerra comercial, quase-guerra,
paz inquieta, relações conturbadas, rivalidade intensa, coexistência com-
petitiva, corridas armamentistas: essas expressões são as mais prováveis
descrições das relações entre entidades de civilizações diferentes. A
confiança e a amizade serão raras. As civilizações são as últimas
modalidades de tribos humanas e o choque das civilizações é o conflito
tribal numa escala mundial.
Esse choque assume duas formas. No nível local ou micro, ocorrem
os conflitos de linha 'de fratura entre Estados vizinhos de civilizações
diferentes, entre grupos de civilizações diferentes dentro de um mesmo
Estado e entre grupos que estão tentando criar novos Estados com os
destroços do antigo Estado (como na antiga União Soviética e na antiga
.Iugoslávia). Os conflitos de linha de fratura são especialmente freqüentes
entre muçulmanos e não-muçulmanos. As razões para esses conflitos,
bem como sua natureza e dinâmica, são examinadas nos Capítulos 10 e
11. No nível global ou macro, os conflitos de Estados-núcleos ocorrem
entre os principais Estados de civilizações diferentes. As questões nesses
conflitos são as clássicas da política internacional, dentre as quais figuram:

1. Influência relativa sobre a forma de acontecimentos mundiais e


as ações das organizações internacionais mundiais, como as Nações
Unidas, o FMI e o Banco Mundial;
2. Poder militar relativo, que se manifesta nas controvérsias a
respeito de não-proliferação e controle de armamento e nas corridas
armamentistas;
3. Poder econômico e bem-estar, que se manifestam em' disputas a
respeito de comércio internacional, investimentos e outras questões;
4. Pessoas, envolvendo os esforços de um Estado de uma civilização
para proteger as pessoas afins em outra civilização, para discriminar
pessoas de outra civilização ou para excluir de seu território pessoas
de outra civilização;
5. Valores e cultura, em torno dos quais surgem conflitos quando
um Estado tenta promover ou impor os seus valores às pessoas de
outra civilização;
6. Ocasionalmente, território, quando Estados-núcleos se tornam
participantes da linha de frente em conflitos de linha de fratura.
Essas questões são, é claro, as fontes de conflito entre os seres
humanos ao longo de toda a História. Entretanto, quando estão envolvi-
dos Estados de civilizações diferentes, as diferenças culturais aguçam o
conflito. Questões econômicas ou territoriais concretas e muitas vezes
negociáveis são redefinidas em termos culturais e, em conseqüência,
ficam mais difíceis de resolver, surgindo questões culturais e simbólicas
que reforçam estereótipos hostis.
Em sua competição entre si, os Estados-núcleos tentam congregar
suas legiões civilizacionais, fazer alianças com Estados de terceiras
civilizações, promover a divisão e defecções nas civilizações adversárias
e empregar a combinação apropriada de ações diplomáticas, políticas,
econômicas e clandestinas, bem como instigações por propaganda e
forma de coerção, para atingir seus objetivos. Entretanto, é improvável
que os Estados-núcleos empreguem a força militar diretamente uns contra
os outros, exceto em situações como as que existem no Oriente Médio
e no subcontinente indiano, onde eles estão apostos uns aos outros sobre
uma linha de fratura civilizacional. Em outros casos, as guerras entre
Estados-núcleos têm probabilidade de surgir apenas em duas circuns-
tâncias. Na primeira, elas podem se desenvolver a partir da escalada de
conflitos de linha de fratura entre grupos locais, quando grupos relacio-
nados entre si, inclusive Estados-núcleos, acorrem em apoio dos comba-
tentes locais. Essa possibilidade, porém, cria um forte incentivo para que
os Estados-núcleos das civilizações contrapostas contenham ou solucio-
nem o conflito de linha de fratura.
Na segunda, a guerra de Estados-núcleos decorre de mudanças na
balança mundial de poder entre civilizações. No seio da civilização grega,
o crescente poder de Atenas, como argumentou Tucídides, levou à
Guerra do Peloponeso, e a história da civilização ocidental é uma história
de "guerras hegemônicas" entre potências em ascensão e em declínio. O
grau em que fatores análogos estimulam conflitos entre Estados-núcleos
em ascensão e em declínio de civilizações diferentes depende, em parte,
de se o contrabalançar ou o atrelar-se é a modalidade preferida nessas
civilizações para que os Estados se ajustem à ascensão de uma nova
potência. Conquanto o atrelar-se possa ser mais característico das civiliza-
ções asiáticas, a ascensão do poder chinês poderia gerar esforços de
contrabalanceamento por parte de Estados de outras civilizações, como os
Estados Unidos, a Índia e a Rússia. A guerra hegemônica que faltou na
história ocidental foi entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, podendo-se
supor que a transição pacífica da Pax Britannica para a Pax Americana se
deveu em grande parte à íntima afinidade cultural entre as duas socie-
dades. A inexistência de tal afinidade na balança de poder em mutação
entre o Ocidente e a China não torna o conflito armado inevitável, porém
o faz mais provável. O dinamismo do Islã é, assim, a fonte contínua de
muitas guerras de linha de fratura relativamente pequenas; já a ascensão
da China é a fonte em potencial de uma grande guerra intercivilizacional
de Estados-núcleos.

O ISLÃ E O OCIDENTE

Alguns ocidentais, dentre eles o presidente Bill Clinton, têm afirmado


que o Ocidente não tem problemas com o Islã, mas apenas com os
violentos extremistas fundamentalistas islâmicos. Mil e quatrocentos anos
de História provam o contrário. As relações entre o Islamismo e o
Cristianismo, tanto Ortodoxo como Ocidental, foram freqüentemente
tempestuosas. Cada um foi o Outro do outro. O conflito do século XX
entre a democracia liberal e o marxismo-leninismo é apenas um fenô-
meno histórico fugaz e superficial, se comparado com a relação conti-
nuada e profundamente conflitiva entre o Islamismo e o Cristianismo.
Em alguns períodos, prevaleceu uma coexistência pacífica, mas na
maioria das vezes essa relação foi de la guerra fria e de diversos graus
de guerra quente. John Esposito comenta que sua "dinâmica histórica
(. .. )freqüentemente encontrou as duas comunidades em competição e,
às vezes, engajadas em combates mortais por poder, terras e almas" .2
Através dos séculos, a sorte das duas religiões subiu e caiu numa
seqüência de momentosos surtos, pausas e contra-surtos.
A primeira expansão centrífuga arábico-islâmica, do início do século
VII até meados do século VIII, implantou o domínio muçulmano no Norte
da África, na Ibéria, no Oriente Médio, na Pérsia e na Índia Setentrional.
Durante cerca de dois séculos, as linhas divisórias entre o Islamismo e o
Cristianismo ficaram estabilizadas. Depois, no final do século XI, os
cristãos restabeleceram seu controle do Mediterrâneo ocidental, conquis-
taram a Sicília e capturaram Toledo. Em 1095, a Cristandade lançou as
Cruzadas e, durante um século e meio, potentados cristãos tentaram, com
êxito decrescente, estabelecer a autoridade cristã na Terra Santa e nas
áreas adjacentes do Oriente Próximo, perdendo São João d'Acre, seu
último ponto de apoio nesta região, em 1291. Enquanto isso, apareceram
em cena os turcos otomanos. Eles primeiro enfraqueceram Bizâncio e
depois conquistaram grande parte dos Bálcãs, bem como do Norte da
África, capturaram Constantinopla em 1453 e sitiaram Viena em 1529.
Bernard Lewis assinala que "durante quase mil anos, do primeiro
desembarque mouro na Espanha até o segundo sítio de Viena pelos
turcos, a Europa esteve sob a ameaça constante do Islã".3 O Islã é a única
civilização que pôs em dúvida a sobrevivência do Ocidente, e o fez por
duas vezes pelo menos.
Entretanto, ao se chegar ao século XV, a maré tinha começado a
recuar. Os cristãos foram gradualmente recuperando a Ibéria, completan-
do a tarefa em Granada em 1492. Enquanto isso, as inovações em
navegação oceânica habilitaram os portugueses, e depois outros, a
contornar o coração do mundo muçulmano e penetrar no Oceano Índico
e ir além. Simultaneamente, os russos puseram fim a dois séculos de
domínio tártaro. Subseqüentemente, os otomanos empreenderam um
último avanço, tornando a sitiar Viena em 1683. O fracasso que aí tiveram
marcou o começo de uma longa retirada, envolvendo a luta dos povos
ortodoxos nos Bálcãs para se livrarem do do_mínio otomano, a expansão
do Império Habsburgo e o espetacular avanço dos russos até o Mar Negro
e o Cáucaso. No decurso de aproximadamente um século, "o flagelo da
Cristandade" foi transformado no "velho doente da Europa".4 Ao se
concluir a I Guerra Mundial, a Grã-Bretanha, a França e a Itália lhe
aplicaram o golpe de misericórdia e impuseram seu domínio, direto ou
indireto, por todo o resto das terras otomanas, com exceção do território
da República Turca. Por volta de 1920, apenas quatro países muçulmanos
- Turquia, Arábia Saudita, Irã e Afeganistão - continuavam indepen-
dentes de alguma forma de domínio não-muçulmano.
Por sua vez, o recuo do colonialismo ocidental começou lentamente
nas décadas de 20 e 30 e se acelerou de forma notável no período
posterior à II Guerra Mundial. O colapso da União Soviética levou a
independência a muitas sociedades muçulmanas. Segundo um levanta-
mento, no período entre 1757 e 1919 ocorreram 92 aquisições de território
muçulmano por governos não-muçulmanos. Ao se chegar a 1995, 69
desses territórios estavam de novo sob domínio muçulmano e cerca de
45 Estados independentes tinham populações majoritariamente muçul-
manas. A natureza violenta desses relacionamentos em mutação se reflete
no fato de que 50 por cento das guerras que envolveram pares de Estados
de religiões diferentes no período de 1820 a 1929 foram guerras entre
muçulmanos e cristãos.5
As causas desse padrão ininterrupto de conflitos não estão em
fenômenos transitórios como o fervor cristão do século XII ou o
fundamentalismo muçulmano do século XX. Elas decorrem da natureza
dessas duas religiões e das civilizações nelas baseadas. Os conflitos eram,
por um lado, fruto das diferenças, especialmente da concepção muçul-
mana do Islamismo como um estilo de vida que transcendia e unia
religião e política versus a concepção cristã ocidental da separação dos
reinos de Deus e de César. Entretanto, os conflitos também se originavam
de suas similitudes. Ambas são religiões monoteístas, que, ao contrário
das politeístas, não podem assimilar com facilidade outras divindades e
que vêem o mundo em termos dualistas, do nós-e-eles. Ambas são
universalistas, afirmando serem a única fé verdadeira à qual devem aderir
todos os seres humanos. Ambas são religiões missionárias, acreditando
que seus seguidores têm a obrigação de converter os não-crentes a essa
única fé verdadeira. Desde suas origens, o Islamismo se expandiu pela
conquista e, quando surgiram oportunidades, o mesmo se deu com o
Cristianismo. As concepções paralelas de "jihad" e de "cruzada" não só
se parecem como distinguem esses dois credos de outras grandes
religiões do mundo. O Islamismo e o Cristianismo, junto com o Judaísmo,
têm uma visão teleológica da História, em contraste com a visão cíclica
ou estática que prevalece nas outras civilizações.
O nível de conflito violento entre o Islamismo e o Cristianismo variou
ao longo do tempo, influenciado por crescimento e declínio demográfico,
desenvolvimento econômico, mudanças tecnológicas e intensidade de
dedicação religiosa. A expansão do Islã no século VII foi acompanhada por
migrações maciças de povos árabes, numa "escala e velocidade" sem
precedentes, para as terras dos impérios bizantino e sassa·niano. Alguns
séculos depois, as Cruzadas foram, em grande parte, fruto do crescimento
econômico, expansão populacional e da "ressurreição clunaica" na Europa
do século XI, que possibilitou a mobilização de grandes números de
cavaleiros e camponeses para a marcha sobre a Terra Santa. Quando a
Primeira Cruzada chegou a Constantinopla, um observador bizantino
escreveu que ela dava a impressão de que "todo o Ocidente, inclusive
algumas tribos dos bárbaros que viviam além do Mar Adriático até as Colunas
de Hércules, tinha começado uma migração em massa e estava em marcha,
explodindo para dentro da Ásia numa massa sólida, com todos os seus
pertences". 6 No século XIX, um crescimento populacional espetacular
mais uma vez produziu uma erupção européia, gerando a maior migração
da História, que fluiu para as terras muçulmanas como para outras terras.
Uma combinação comparável de fatores incrementou os conflitos
entre o Islã e o Ocidente no final do século XX. Primeiro, o crescimento
populacional muçulmano gerou grande quantidade de jovens desempre-
gados e descontentes que se tornam recrutas das causas fundamentalistas
islâmicas, exercem pressão sobre sociedades vizinhas e migram para o
Ocidente. Segundo, o Ressurgimento islâmico deu aos muçulmanos uma
confiança renovada no caráter e na qualidade próprios de sua civilização
e nos valores comparáveis aos do Ocidente. Terceiro, os esforços
simultâneos do Ocidente para universalizar seus valores e instituições,
para manter sua superioridade econômica e militar e para intervir nos
conflitos do mundo muçulmano geram um intenso ressentimento no
meio dos muçulmanos. Quarto, o colapso do comunismo acabou com
um inimigo comum do Ocidente e do Islã, deixando cada um como a
ameaça percebida do outro. Quinto, os crescentes contatos e entremescla
de muçulmanos e ocidentais estimulam em cada lado uma nova percep-
ção de sua própria identidade e de como ela difere da identidade do
outro. A interação e a entremescla também exacerbam as diferenças em
relação aos direitos dos membros de uma civilização num país dominado
por membros de outra civilização. Dentro das sociedades muçulmanas e
cristãs, a tolerância de uma para com a outra diminuiu de forma aguda
nos anos 80 e 90.
As causas dos renovados conflitos entre o Islã e o Ocidente residem
assim nas questões fundamentais de poder e cultura. Kto? Kovo? Quem
vai dominar? Quem vai ser dominado? A questão fundamental da política,
definida por Lênin, é a raiz do confronto entre o Islã e o Ocidente. Há,
entretanto, o conflito adicional, que Lênin teria considerado sem sentido,
entre duas versões diferentes do que é certo e do que é errado e, como
conseqüência, quem está certo e quem está errado. Enquanto o Islã
continuar sendo o Islã (como continuará) e o Ocidente continuar sendo
o Ocidente (o que é mais duvidoso), esse conflito fundamental entre
duas grandes civilizações e estilos de vida continuará a definir suas
relações no futuro do mesmo modo como as definiu durante os últimos
14 séculos.
Essas relações são complicadas ainda mais por uma quantidade de
questões substantivas sobre as quais suas posições divergem ou estão
em conflito. Do ponto de vista histórico, uma das questões principais foi
o controle de território, porém isso é, hoje em dia, relativamente
insignificante. Dezenove dos 28 conflitos de linha de fratura, em meados
da década de 90, entre muçulmanos e não-muçulmanos foram entre
muçulmanos e cristãos. Onze deles com cristãos ortodoxos e sete com
seguidores do Cristianismo ocidental na África e no Sudeste Asiático.
Apenas um desses conflitos violentos ou com potencial de violência
ocorreu diretamente ao longo da linha de fratura entre o Ocidente e o
Islã - o que se deu entre croatas e bósnios. O efetivo encerramento do
imperialismo territorial ocidental e a inexistência, até agora, de uma nova
í
expansão territorial muçulmana produziram uma segregação geográfica,
de modo que apenas em alguns lugares nos Bálcãs as comunidades
ocidentais e muçulmanas de fato fazem fronteira direta umas com as
outras. Os conflitos entre o Ocidente e o Islã estão assim centrados menos
em território do que em questões intercivilizacionais mais amplas, como
a proliferação de armamentos, direitos humanos e democracia, migração,
terrorismo fundamentalista islâmico e intervenção ocidental.
Na esteira da Guerra Fria, esse antagonismo histórico assumiu novo
ímpeto e a intensidade crescente desse choque foi amplamente reco-
nhecida por membros de ambas as comunidades. Em 1991, por exemplo,
o insigne estudioso inglês Bany Buzan viu muitas razões pelas quais uma
guerra fria societária estava surgindo "entre o Ocidente e o Islã, na qual
a Europa estaria na linha de frente".

Esse desdobramento tem parcialmente a ver com valores seculares versus


valores religiosos, parcialmente com a rivalidade histórica entre a
Cristandade e o Islã, parcialmente com inveja do poderio ocidental,
parcialmente com ressentimentos pela dominação ocidental da es-
truturação política pós-colonial do Oriente Médio e parcialmente com a
amargura e a humilhação da comparação nada invejável entre as
realizações das civilizações islâmica e ocidental nos últimos dois séculos.

Além disso, ele assinalou que "uma guerra fria societária com o Islã
serviria para reforçar a identidade européia de modo geral, num momen-
to crucial para o processo de unificação européia". Por conseguinte, "bem
pode haver uma comunidade substancial no Ocidente disposta não só a
apoiar uma guerra fria societária contra o Islã, mas também a adotar
políticas que a estimulem".
Em 1990, Bernard Lewis, destacado estudioso ocidental do Islã,
analisou "As Raízes da Fúria Muçulmana" e chegou à conclusão de que:

Devia agora estar claro que estamos diante de um estado de ânimo e de


um movimento que transcende em muito o nível das questões e das
políticas, bem como dos governos que as perseguem. Isso não é nada
menos do que um choque de civilizações - aquela reação, talvez
irracional porém certamente histórica, de um velho rival contra nossa
herança judaico-cristã, nosso presente secular e a expansão de ambos
por todo o mundo. É de importância crucial que nós, do nosso lado,
não sejamos provocados a uma reação igualmente histórica, porém
igualmente irracional, contra esse rival.7
í' Observações análogas vieram da comunidade islâmica. Um co-
nhecido jornalista egípcio, Mohamed Sid-Ahmed, argumentou em 1994
que "há sinais inequívocos de um crescente choque entre a ética ocidental
judaico-cristã e o movimento de revitalização islâmica, que atualmente
está-se estendendo do Atlântico, a Oeste, até a China, a Leste". Um
proeminente muçulmano indiano previu em 1992 que "a pró~ma
confrontação do Ocidente virá sem dúvida do mundo muçulmano. E no
arco de nações islâmicas do Maghreb ao Paquistão que começará a luta
pela nova ordem mundial". Para um destacado advogado tunisiano, a
luta já está em andamento: "O colonialismo tentou deturpar todas as
tradições culturais do Islã. Eu não sou um fundamentalista islâmico. Não
acho que exista um conflito entre religiões. Existe um conflito entre
civilizações. "8
Nos anos 80 e 90, a tendência generalizada no Islã seguiu numa
direção antiocidental. Isso é, em parte, uma conseqüência natural do
Ressurgimento islâmico e da reação contra a "gharbzadegt" ou "ociden-
toxicação" percebida pelas sociedades muçulmanas. A "reafirmação do
Islã, qualquer que seja sua forma sectária específica, significa o repúdio
da influência européia e norte-americana sobre a sociedade, a política e
a moral locais".9 No passado, em algumas ocasiões, os líderes muçulma-
nos de fato disseram à sua gente: "Precisamos nos ocidentalizar."
Entretanto, nos 25 anos finais do século XX, qualquer líder muçulmano
que tenha dito isso é uma figura isolada. Na realidade, é difícil encontrar
declarações por qualquer muçulmano, seja político, alto funcionário,
acadêmico, homem de negócios ou jornalista, que elogie os valores e as
instituições ocidentais. Ao contrário, eles acentuam as diferenças entre
sua civilização e a civilização ocidental, a superioridade da sua cultura e
a necessidade de manter a integridade dessa cultura contra o ataque
ocidental. Os muçulmanos receiam e detestam o poderio ocidental e a
ameaça que ele representa para sua sociedade e suas crenças. Eles vêem
a cultura ocidental como materialista, corrupta, decadente e imoral. Eles
também a vêem como sedutora e, em conseqüência, acentuam ainda
mais a necessidade de resistir ao seu impacto sobre seu estilo de vida.
Os muçulmanos cada vez mais atacam os ocidentais não por professarem
uma religião imperfeita e errônea, que é, não obstante, uma "religião do
Livro", mas por não professarem nenhuma religião em absoluto. Aos
olhos muçulmanos, o secularismo, a irreligiosidade e, portanto, a imora-

?h.7
lidade ocidentais são males piores do que o Cristianismo ocidental, que
os produziu. Na Guerra Fria, o Ocidente rotulou seu adversário de
"comunismo ateu"; no conflito de civilizações pós-Guerra Fria, os mu-
çulmanos vêem seu adversário como "o Ocidente ateu".
Essas imagens do Ocidente como arrogante, materialista, repressor,
brutal e decadente são mantidas não só pelos imãs fundamentalistas
como também por aqueles a quem muitos no Ocidente considerariam
seus aliados e correligionários naturais. Poucos dos livros de autores
muçulmanos publicados nos anos 90, por exemplo, receberam os elogios
dados à obra de Fatima Mernissi, Jslam and Democracy, saudado de
modo geral pelos ocidentais como o depoimento corajoso de uma mulher
muçulmana moderna e liberal. 10 Entretanto a representação do Ocidente
feita nesse livro dificilmente poderia ser menos elogiosa. O Ocidente é
"militarista" e "imperialista" e "traumatizou" outras nações através do
"terror colonial" (pp. 3, 9). O individualismo, marca registrada da cultura
ocidental, é "a fonte de todos os problemas" (p. 8). O poderio ocidental
é tenúvel. O Ocidente "é o único que decide se os satélites serão
empregados para ensinar os árabes ou para fazer cair bombas sobre eles.
C. .. ) Ele esmaga nossas potencialidades e invade nossas vidas, com seus
produtos importados e filmes de televisão que inundam as ondas de
transmissão. (. .. )É um poder que nos esmaga, sitia nossos mercados e
controla nossos mais simples recursos, iniciativas e potencialidades. Era
assim que percebíamos nossa situação, e a Guerra do Golfo transformou
nossa percepção em certeza" (pp. 146-147). O Ocidente "cria o seu
poderio através de pesquisas militares" e depois vende os produtos dessa
pesquisa aos países subdesenvolvidos, que são os seus "consumidores
passivos". Para se liberar dessa subserviência, o Islã precisa desenvolver
os seus próprios engenheiros e cientistas, construir sua próprias armas
(nucleares ou convencionais, ela não especifica) e "se libertar da
dependência militar do Ocidente" (pp. 43-44). Essas, para repetir, não
são as opiniões de algum aiatolá barbudo, de turbante.
Quaisquer que sejam suas opiniões religiosas ou políticas, os
muçulmanos estão de acordo em que existem diferenças entre a sua
cultura e a cultura ocidental. Como definiu o xeque Chanoushi, "o cerne
da questão é que nossas sociedades estão baseadas em valores diversos
dos do Ocidente". Um funcionário do governo egípcio disse que "os
norte-americanos vêm aqui e querem que nós sejamos como eles. Eles
não entendem nada de nossos valores e de nossa cultura". Um jornalista
egípcio concordou: "Nós somos diferentes. Nós temos origens diferentes,
uma história diferente. Por conseguinte, temos o direito a futuros
diferentes." As publicações muçulmanas, tanto populares como intelec-
tualmente sérias, repetidamente descrevem o que se diz serem complôs
e desígnios ocidentais para subordinar, humilhar e solapar as instituições
e a cultura islâmicas. 11
A reação contra o Ocidente pode ser vista não só no ímpeto cultural
fundamental do Ressurgimento islâmico com9 também na mudança de
atitude em relação ao Ocidente por parte dos governos de países
muçulmanos. No período imediato pós-colonial, os governos eram, de
forma geral, ocidentais em suas ideologias e diretrizes políticas e econô-
micas e pró-ocidentais em suas políticas externas, com exceções parciais,
como a Argélia e a Indonésia, onde a independência resultara de
revoluções nacionalistas. Entretanto, um a um, os governos pró-ociden-
tais deram lugar a governos menos identificados com o Ocidente ou
explicitamente antiocidentais no Iraque, Líbia, Iêmen, Síria, Irã, Sudão,
Líbano e Afeganistão. Ocorreram mudanças na mesma direção, porém
menos espetaculares, na orientação e no alinhamento de outros Estados,
inclusive a Tunísia, Indonésia e Malásia. Os dois mais firmes aliados
militares muçulmanos dos Estados Unidos na Guerra Fria - Turquia e
Paquistão - estão sob pressão fundamentalista islâmica internamente, e
seus laços com o Ocidente estão sujeitos a uma crescente tensão.
Em 1995, o único Estado muçulmano claramente mais pró-ocidental
do que tinha sido 10 anos antes era o Kuwait. Atualmente, os amigos
íntimos do Ocidente no mundo islâmico são ou como o Kuwait, Arábia
Saudita e os emirados do Golfo - dependentes militarmente dos Estados
Unidos-, ou como o Egito e a Argélia - deles dependentes economi-
camente. No final da década de 80, os regimes comunistas da Europa
Oriental desmoronaram quando ficou claro que a União Soviética não
mais lhes proporcionaria apoio econômico e militar. Se ficar claro que o
Ocidente não mais manterá seus regimes satélites muçulmanos, é prová-
vel que eles tenham destino semelhante.
O crescente antiocidentalismo muçulmano foi acompanhado para-
lelamente por uma preocupação crescente com a "ameaça islâmica",
representada em especial pelo extremismo muçulmano. O Islã é visto
como fonte de proliferação nuclear, terrorismo e, na Europa, imigrantes
indesejados. Essas preocupações são compartilhadas tanto pelo povo
como pelos líderes. Assim, por exemplo, quando perguntados, em
novembro de 1994, sobre se a "revitalização muçulmana" constituía uma
ameaça para os interesses dos Estados Unidos no Oriente Médio, 61 por
cento de uma amostragem de 35 mil norte-americanos interessados em
política externa disseram que sim e apenas 28 por cento que não. Um
ano antes, à pergunta de qual país representava o maior perigo para os
Estados Unidos, uma amostragem aleatória da opinião pública apontara
0 Irã, a China e o Iraque como os três primeiros. Analogamente, ao
pedido feito em 1994 para que identificassem "ameaças críticas" aos
Estados Unidos, 72 por cento do povo e 61 por cento das autoridades
em política externa apontaram a proliferação nuclear e 69 por cento do
povo e 33 por cento das autoridades apontaram o terrorismo internacio-
nal - duas questões amplamente associadas com o Islã. Além disso, 33
por cento do povo e 39 por cento das autoridades viam uma ameaça na
possível expansão do fundamentalismo islâmico. Os europeus tinham
atitudes semelhantes. Na primavera de 1991, por exemplo, 51 por cento
do povo francês disseram que a. principal ameaça para a França vinha
do Sul, com apenas oito por cento dizendo que viria do Leste. Os quatro
países que o povo francês mais temia eram todos muçulmanos: Iraque
(52 por cento), Irã (35 por cento), Líbia (26 por cento) e Argélia (22 por
cento).12 Os líderes políticos ocidentais, inclusive o chanceler alemão e
o primeiro-ministro francês, expressaram preocupações semelhantes,
tendo o secretário-geral da OTAN declarado em 1995 que o fun-
damentalismo islâmico era "pelo menos tão perigoso quanto o comunis-
mo" tinha sido para o Ocidente, e "uma autoridade muito alta" do governo
Clinton apontado o Islã como o rival mundial do Ocidente.13
Com o virtual desaparecimento de uma ameaça militar vinda do
Leste, o planejamento da OTAN está cada vez mais dirigido contra
ameaças em potencial provenientes do SuL Um analista do Exército
norte-americano assinalou em 1992 que "a Linha Meridional" está subs-
tituindo a Frente Central e "está rapidamente se tornando a nova linha
de frente da OTAN". Para enfrentar essas ameaças meridionais, os
membros da OTAN situados ao sul - Itália, França, Espanha e Portugal
- começaram um planejamento e manobras militares conjuntas e, ao
mesmo tempo, convidaram os governos do Maghreb para consultas sobre
formas de se contrapor aos extremistas islâmicos. Essas ameaças perce-
bidas também ensejaram uma justificativa para a manutenção de subs-
tancial presença militar dos Estados Unidos na Europa. Um antigo alto
funcionário norte-americano assinalou que "conquanto as forças norte-
americanas na Europa não sejam uma panacéia para os problemas criados
pelo Islã fundamentalista, elas efetivamente lançam uma sombra pode-

270
rosa sobre o planejamento militar em toda a área. Lembram-se do
bem-sucedido desdobramento de forças norte-americanas, francesas e
britânicas da Europa na Guerra do Golfo em 1990-91? As pessoas nessa
região se lembram''.14 E, poderia ele ter acrescentado, elas se lembram
com medo, ressentimento e ódio.
Tendo em vista as percepções que muçulmanos e ocidentais têm
uns dos outros e mais a ascensão do extremismo islâmico, não é de
surpreender que, logo após a Revolução Iraniana de 1979, te?ha-se
desenvolvido uma quase-guerra entre o Islã e o Ocidente. E uma
quase-guerra por três motivos. Primeiro, não é todo o Islã que está
lutando contra todo o Ocidente. Dois Estados fundamentalistas (Irã e
Sudão), três Estados não-fundamentalistas (Iraque, Líbia e Síria), mais
uma larga faixa de organizações fundamentalistas islâmicas, com apoio
financeiro de outros países muçulmanos, como a Arábia Saudita, vêm
lutando contra os Estados Unidos e, algumas vezes, contra a Grã-Breta-
nha, a França e outros Estados e grupos ocidentais, bem como Israel e
os judeus de forma geral. Segundo, é uma quase-guerra porque, fora a
Guerra do Golfo de 1990-91, ela foi travada com meios limitados:
terrorismo de um lado e poder aéreo, ações clandestinas e sanções
econômicas do outro. Terceiro, é uma quase-guerra porque, embora a
violência tenha persistido, ela não foi contínua, envolvendo ações intermi-
tentes de um lado, que provocam respostas do outro. Contudo, uma
quase-guerra é, mesmo assim, uma guerra. Mesmo excluindo-se as dezenas
de milhares de soldados e civis iraquianos mortos pelos bombardeios
ocidentais em janeiro-fevereiro de 1991, as mortes e outras baixas totalizam
muitos milhares e ocorreram praticamente todos os anos desde 1979. Um
número muito maior de ocidentais foram mortos nessa quase-guerra, em
relação aos que foram mortos na guerra "de verdade" no Golfo.
Além disso, ambos os lados identificaram esse conflito como uma
guerra. Logo no início, Khomeini declarou, com muito acerto, que "o Irã
está de fato em guerra com os Estados Unidos", l5 e Khadafi proclama
com regularidade uma guerra santa contra o Ocidente. Líderes muçulma-
nos de outros grupos e Estado~ extremistas se pronunciaram em termos
semelhantes. Do lado ocidental, os Estados Unidos classificaram sete
países como "Estados terroristas", cinco dos quais são muçulmanos (Irã,
Iraque, Síria, Líbia e Sudão). Cuba e Coréia do Norte são os outros dois.
Isso, na realidade, os identifica como inimigos, porque eles estão
atacando os Estados Unidos e seus amigos com a arma mais eficaz de
que dispõem, e assim reconhecem a existência de um estado de guerra
com eles. Funcionários norte-americanos repetidamente se referem a
esses países como Estados "fora da lei", "de desforra" e "desgarrados" -
desse modo colocando-os fora da ordem civilizada internacional e
tornando-os alvos legítimos para contramedidas unilaterais ou multilate-
rais. O governo dos Estados Unidos acusou os que colocaram a bomba
no World Trade Center de terem a intenção de "desencadear uma guerra
de terrorismo urbano contra os Estados Unidos" e afirmou que os
conspiradores acusados de planejar outras bombas em Manhattan eram
"soldados" numa luta "que envolve uma guerra" contra os Estados
Unidos. Se os muçulmanos alegam que o Ocidente faz guerra contra o
Islã e se os ocidentais alegam que grupos islâmicos fazem guerra contra
o Ocidente, parece razoável concluir que algo muito parecido com uma
1
guerra está em andamento.
Nessa quase-guerra, cada lado capitalizou sobre suas próprias forças
e as fraquezas do outro lado. Do ponto de vista militar, ela tem sido
sobretudo uma guerra de terrorismo versus poder aéreo. Dedicados
militantes fundamentalistas islâmicos se aproveitam das sociedades aber-
tas do Ocidente e colocam carros-bombas em alvos selecionados. Os
profissionais militares ocidentais se aproveitam dos céus abertos do Islã
e lançam bombas inteligentes sobre alvos selecionados. Os participantes
fundamentalistas islâmicos planejam o assassinato de ocidentais proemi-
nentes; os Estados Unidos planejam a derrubada dos regimes fun-
damentalistas islâmicos extremistas. Segundo o Departamento de Defesa
dos Estados Unidos, nos 15 anos entre 1980 e 1995, os Estados Unidos
se engajaram em 17 operações militares no Oriente Médio, todas elas
dirigidas contra muçulmanos. Até esta data, afora a Guerra do Golfo, cada
lado manteve a intensidade da violência em níveis razoavelmente baixos
e se absteve de rotular atos violentos como atos de guerra que exigiriam
uma resposta total. A revista Tbe Economist assinalou que "se a Líbia
ordenasse a um de seus submarinos que afundasse um navio de
passageiros norte-americano, os Estados Unidos tratariam isso como um
ato de guerra por um governo e não pediriam a extradição do capitão
do submarino. Em princípio, fazer explodir uma bomba em um avião de
passageiros por meio do serviço secreto da Líbia não é em nada
diferente" .16 Os participantes dessa guerra empregam uns contra os
outros táticas muito mais violentas do que os Estados Unidos e a União
Soviética empregaram entre si na Guerra Fria.
Os dirigentes norte-americanos afirmam que os muçulmanos envol-
vidos na quase-guerra são pequena minoria, cujo uso da violência é
repudiado pela grande maioria dos muçulmanos moderados. Pode ser
assim, mas faltam provas para apoiar essa tese. Os protestos contra a
violência antiocidental inexistem por completo nos países muçulmanos.
Até mesmo os entrincheirados governos amigos e dependentes do
Ocidente têm-se mostrado extraordinariamente reticentes quando se trata
de condenar atos de terrorismo contra o Ocidente. Do outro lado, os
governos europeus e a opinião pública têm de forma geral apoiado e
raramente criticado as ações que os Estados Unidos empreenderam
contra seus adversários muçulmanos, em flagrante contraste com a

1 vigorosa oposição que muitas vezes expressaram às ações norte-ameri-


canas contra a União Soviética e o comunismo durante a Guerra Fria.
Nos conflitos civilizacionais, ao contrário dos ideológicos, as pessoas
ficam do lado daquelas com as quais têm afinidades.
O problema subjacente para o Ocidente não é o fundamentalismo
islâmico. É o Islã, uma civilização diferente, cujas pessoas estão conven-
cidas da superioridade de sua cultura e obcecadas com a inferioridade
de seu poderio. O problema para o Islã não é a CIA ou o Departamento
de Defesa dos Estados Unidos. É o Ocidente, uma civilização diferente
cujas pessoas estão convencidas da universalidade de sua cultura e
acreditam que seu poderio superior, mesmo que em declínio, lhes impõe
a obrigação de estender sua cultura por todo o mundo. Esses são os
ingredientes básicos que alimentam o conflito entre o Islã e o Ocidente.

ÁSIA, CHINA E ESTADOS UNIDOS

O Cadinho de Civilizações. As mudanças econômicas na Ásia, es-


pecialmente na Ásia Oriental, são um dos desdobramentos mais impor-
tantes do mundo na segunda metade do século XX. Ao se chegar aos
anos 90, esse desenvolvimento econômico tinha gerado uma euforia
econômica entre muitos observadores, que viam a Ásia Oriental e toda
a Bacia do Pacífico vinculadas em redes comerciais em expansão
constante e que iriam assegurar a paz e a harmonia entre as nações. Esse
otimismo estava baseado na pressuposição altamente duvidosa de que
o intercâmbio comercial é invariavelmente uma força em prol da paz.
Isso, porém, não é verdade. O crescimento econômico cria instabilidade
política dentro dos países e entre países, alterando a balança de poder
entre países e regiões. O intercâmbio econômico põe as pessoas em
contato, não as põe de acordo. Historicamente, ele muitas vezes produziu
uma percepção mais profunda das diferenças entre os povos e estimulou
medos recíprocos. O comércio entre os países produz conflitos ao mesmo
--------

tempo que lucros. Se a experiênc~a do passado se m,a.ntiver, a ~si~ do


esplendor econômico gerará uma Asia de sombras pohttcas, uma As1a de
instabilidade e de conflito.
o desenvolvimento econômico da Ásia e a crescente autoconfiança
das sociedades asiáticas estão perturbando a política internacional de
pelo menos três modos. Primeiro, o desenvolvimento econômic~ habilita
os Estados asiáticos a expandir sua capacidade militar, promove incerteza
quanto às futuras relações entre esses países e traz à tona. questões e
rivalidades que haviam sido reprimidas durante a Guerra Fna, lançando
assim uma sombra de instabilidade e conflito em potencial sobre a região.
Segundo, 0 desenvolvimento econômico aumenta a intensidade de
conflitos entre as sociedades asiáticas e o Ocidente, principalmente os
Estados Unidos, e reforça a capacidade das sociedades asiáticas de levar
a melhor nesses embates. Terceiro, o crescimento econômico da maior
potência da Ásia aumenta a influência chinesa na r~gião e a probab~lidade
1
de a China reafirmar sua tradicional hegemonia na Asia Oriental, obrigando
assim outras nações a "se atrelarem" e se acomodarem a esse desdobra-
mento, ou a "contrabalançarem" e tentarem conter a influência chinesa.
Durante os vários séculos de ascendência ocidental, as relações
1
internacionais que tinham importância eram um jogo ocidental que se
desenrolava entre as principais potências ocidentais, suplementado, até
certo ponto, primeiro pela Rússia, no século XVIII, e depois pelo Japão,
no século XX. A Europa era a principal arena dos grandes conflitos de
poder e cooperação, e mesmo durante a Guerra Fria, a principal linha
de confrontação entre as superpotências estava no coração da Europa.
Se é que as relações internacionais importantes no pós-Guerra Fria têm
uma área primordial, ela está na Ásia e, em especial, na Ásia Oriental. A
Ásia é o cadinho de civilizações. A Ásia Oriental sozinha contém
sociedades que pertencem a seis civilizações - japonesa, sínica, ortodo-
xa budista muçulmana e ocidental - e a Ásia Meridional acrescenta o
' '
hinduísmo. Os Estados-núcleos de quatro civilizações - Japão, China,
Rússia e Estados Unidos - são atores principais na Ásia Oriental; a Ásia
Meridional acrescenta a Índia, e a Indonésia é uma potência muçulmana
emergente. Além disso, a Ásia Oriental contém várias potências de nível
médio, com crescente poderio econômico, como a Coréia do Sul, Taiwan
e Malásia, além de um Vietnã potencialmente forte. O resultado é um
quadro altamente complexo de relações internacionais, comparável de
muitos modos às que existiram na Europa nos séculos XVIII e XIX, e cheia
de toda a fluidez e incerteza que caracteriza as situações multipolares.
O fato de ter múltiplas potências e de ser multicivilizacional
distingue a Ásia Oriental da Europa Ocidental, e as diferenças econômicas
e políticas reforçam esse contraste. Todos os países da Europa Ociden-
tal são democracias estáveis, possuem economias de mercado e estão
num alto nível de desenvolvimento econômico. Em meados dos anos
90, a Ásia Oriental incluía uma democracia estável, várias democracias
novas e instáveis, quatro das cinco ditaduras comunistas que restam no
mundo, além de governos militares, ditaduras pessoais e sistemas auto-
ritários, com dominação de um só partido. Os níveis de desenvolvimento
econômico variam dos do Japão e Singapura até os do Vietnã e da Coréia
do Norte. Havia uma tendência generalizada na direção da criação de
mercados e da abertura econômica, mas os sistemas econômicos ainda
cobriam uma larga faixa, desde a economia estatizada da Coréia do Norte,

1 passando por diversas combinações de controle estatal e empresa


privada, até o laissez-faire de Hong Kong.
Exceto pela ocasional ordem, algumas vezes estabelecida na região
pela hegemonia chinesa, não existiu na Ásia Oriental uma sociedade
1 internacional (no sentido sociológico do termo) como houve na Europa
OcidentaI. 17 No final do século XX, a Europa está ligada por um
complexo extraordinariamente denso de instituições internacionais: a
União Européia, a OTAN, a União Européia Ocidental, o Conselho da
Europa, a Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa,
entre outras. A Ásia Oriental não teve nada comp~rável, com exceção
da ASEAN, que não inclui as potências principais, tem, de modo geral,
se esquivado de questões de segurança e está apenas começando a se
mover na direção das formas mais primitivas de integração econômica. Nos
anos 90, foi criada a APEC, organização muito mais ampla, que incorpora
a maioria dos países da Bacia do Pacífico, porém ela é ainda mais fraca do
que a ASEAN no que se refere a debater questões concretas. Não há
nenhuma outra instituição multilateral importante que reúna as principais
potências asiáticas.
Ainda em contraste com a Europa Ocidental, são muitas as sementes
de conflito entre Estados na Ásia Oriental. Dois pontos de perigo
amplamente identificados envolvem as duas Coréias e as duas Chinas.
Eles são, porém, resquícios da Guerra Fria. As diferenças ideológicas têm
uma importância decrescente e, ao se chegar a 1995, as relações
tinham-se expandido de forma significativa entre as duas Chinas e tinham
começado a se desenvolver entre as duas Coréias. A probabilidade de

27'\
coreanos lutarem contra coreanos existe, porém é baixa. As perspectivas
de chineses lutarem contra chineses são maiores, mas ainda limitadas, a
menos que os taiwaneses renunciem à sua identidade chinesa e formal-
mente constituam uma República de Taiwan independente. Um do-
cumento militar chinês citou, em tom de aprovação, um general dizendo
que "deve haver limites para as brigas entre membros de uma família" .18
Conquanto a violência entre as duas Coréias ou as duas Chinas continue
sendo possível, um enfoque civilizacional sugere que os aspectos
culturais em comum irão, com o tempo, erodir essa probabilidade.
Na Ásia Oriental, os conflitos herdados da Guerra Fria estão sendo
suplementados e suplantados por outros possíveis conflitos que reflitam
antigas rivalidades e novos relacionamentos econômicos. As análises da
segurança da Ásia Oriental no começo dos anos 90 se referiam de modo
regular à Ásia Oriental como "uma vizinhança perigosa", como "madura
para as rivalidades", como uma região de "várias guerras frias", como
"caminhando de volta para o futuro", no qual prevalecerão a guerra e a
instabilidade.19 Em contraste com a Europa Ocidental, nos anos 90, a
Ásia Oriental tinha disputas territoriais não resolvidas, das quais as mais
importantes abrangem disputas entre a Rússia e o Japão em torno das
ilhas ao norte, e entre a China, o Vietnã, as Filipinas e, possivelmente,
outros Estados do Sudeste Asiático na área do Mar do Sul da China. As
divergências sobre fronteiras entre a China, de um lado, e a Rússia e a
Índia, do outro, diminuíram em meados dos anos 90, mas poderiam
ressurgir, como também poderia acontecer com as reivindicações chine-
sas na Mongólia. Havia movimentos de insurgência ou secessão, em
alguns casos apoiados de fora, em Mindanao, Timor Oriental, Tibete, sul
da Tailândia e leste de Myanmar. Além disso, embora houvesse paz entre
os Estados da Ásia Oriental em meados dos anos 90, durante os 50 anos
precedentes ocorreram guerras de grandes proporções na Coréia e no
Vietnã, e a potência principal da Ásia - a China - lutou contra os
norte-americanos e contra quase todos os seus vizinhos, incluindo
coreanos, vietnamitas, chineses nacionalistas, indianos, tibetanos e rus-
sos. Em 1993, uma análise feita por militares chineses identificou oito
pontos "quentes" regionais que ameaçavam a segurança militar da China,
e a Comissão Militar Central da China chegou à conclusão de que, de
modo geral, a perspectiva de segurança na Ásia Oriental era "muito
sombria". Depois de séculos de lutas, a Europa Ocidental está em paz e
a guerra é impensável. Na Ásia Oriental não o é e, como sugeriu Aaron
Friedberg, o passado da Europa poderia ser o futuro da Ásia. 20

?7f..
O dinamismo econômico, as disputas territoriais, as rivalidades
reativadas e as incertezas políticas alimentaram aumentos significativos
nos orçamentos militares e na capacidade militar dos países da Ásia
Oriental nos anos 80 e 90. Aproveitando-se de sua nova riqueza e, na
maioria dos casos, de populações com bom nível de instrução, os
governos da Ásia Oriental tomaram providências para substituir exércitos
"de camponeses", grandes e pobremente equipados, por forças armadas
menores, mais profissionais e tecnologicamente sofisticadas. Ante dúvi-
das crescentes quanto ao grau de engajamento dos Estados Unidos na
Ásia Oriental, esses países visam a poder contar consigo próprios em
termos militares. Embora os países da Ásia Oriental continuassem a
importar grandes quantidades de armamentos da Europa, dos Estados
Unidos e da antiga União Soviética, passaram a dar preferência à
importação de tecnologias que os habilitassem a produzir internamen-
te aviões sofisticados, mísseis e equipamento eletrônico. O Japão e os
Estados sínicos - China, Taiwan, Singapura e Coréia do Sul -
possuem indústrias de armamentos cada vez mais sofisticadas. Dada
a configuração geográfica litorânea da Ásia Oriental, a ênfase tem sido
na projeção de forças e na capacidade aérea e naval. Em conseqüência,
nações que anteriormente não estavam militarmente capacitadas a
lutar umas contra as outras estão cada vez mais adquirindo essa
capacidade. Esses aumentos de poder militar têm tido pouca trans-
parência e, conseqüentemente, induziram mais suspeitas e incertezas.21
Numa situação de relações de poder em mutação, cada governo, legítima
e necessariamente, se pergunta: "Daqui a 10 anos, quem será meu inimigo
e quem, se houver algum, será meu amigo?"

As Guerras Frias Ásia-Estados Unidos. No final dos anos 80 e começo


dos 90, os relacionamentos entre os Estados Unidos e os países asiáticos,
com exceção do Vietnã, se tornaram cada vez mais antagônicos, enquan-
to diminuía a capacidade dos Estados Unidos de levar a melhor nessas
controvérsias. Essas tendências foram especialmente marcadas com
respeito às principais potências da Ásia Oriental, e as relações norte-ame-
ricanas com a China e o Japão evoluíram ao longo de linhas paralelas.
Chineses e norte-americanos e japoneses e norte-americanos falaram do
desenvolvimento de guerras frias entre os seus respectivos países. 22 Essas
tendências simultâneas começaram durante o governo Bush e se acele-
raram no governo Clinton. Ao se chegar a meados da década de 90, as
relações dos Estados Unidos com as duas principais potências asiáticas
poderiam ser, na melhor das hipóteses, descritas como "tensas", e parecia
haver poucas perspectivas de que essa tensão diminuísse.•
No começo dos anos 90, as relações entre o Japão e os Estados
Unidos ficaram cada vez mais aquecidas por controvérsias a respeito de
uma ampla gama de questões, incluindo o papel do Japão na Guerra do
Golfo, a presença militar norte-americana no Japão, as atitudes japonesas
quanto à política norte-americana sobre direitos humanos em relação à
China e outros países, a participação japonesa em missões de manuten-
ção da paz e, o que era mais importante, as relações econômicas,
principalmente o comércio internacional. As referências a guerras comer-
ciais viraram lugar-comum. 23 Autoridades norte-americanas, sobretucio
no governo Clinton, exigiram mais e mais concessões do Japão; autori-
dades japonesas resistiram a essas exigências de maneira cada vez mais
enérgica. Cada controvérsia comercial Japão-Estados Unidos ficava mais
azeda e mais difícil de ser resolvida do que a anterior. Em março de 1994,
por exemplo, o presidente Clinton assinou um decreto que lhe conferia
poderes para impor ao Japão sanções comerciais mais severas, o que
causou protestos não só dos japoneses como também do secretário-geral
do GATI, a principal organização mundial de comércio. Pouco tempo
depois, o Japão respondeu com um "cáustico ataque" contra a política
norte-americana e, logo em seguida, os Estados Unidos "acusaram
formalmente o Japão" de discriminar empresas norte-americanas ao
celebrar contratos do governo. Na primavera de 1995, o governo Clinton
ameaçou impor tarifas de 100 por cento aos carros de luxo de fabricação
japonesa, chegando-se a um acordo que evitou essa medida pouco antes

• Deve-se observar que, pelo menos nos Estados Unidos, existe uma confusão de terminologia
a respeito das relações entre os países. Considera-se que "boas" relações são as de amizade
e cooperação; "más" relações são as hostis e antagônicas. Esse emprego dos termos conjumina
duas dimensões muito diferentes: amizade versus hostilidade e desejável versus indesejável.
Isso reflete a pressuposição tipicamente norte-americana de que a harmonia nas relações
internacionais é sempre boa e de que o conflito é sempre mau. Entretanto, a identificação de
boas relações com relações de amizade só é válida se o conflito nunca for desejável. A maioria
dos norte-americanos achou que foi "bom" o governo Bush ter transformado em "más" as
relações dos Estados Unidos com o Iraque ao ir à guerra por causa do Kuwait. A fim de evitar
confusões sobre se "boas" quer dizer desejáveis ou harmoniosas e "más" quer dizer
indesejáveis ou hostis, empregarei "boas" e "más" apenas para significar desejáveis ou
indesejáveis. É interessante, embora cause perplexidade, que os norte-americanos endossem
a competição, na sociedade norte-americana, entre opiniões, grupos, partidos, órgãos do
governo e empresas. Por que os norte-americanos acham que o conflito é bom no seio de
sua própria sociedade mas é mau entre sociedades, constitui uma questão fascinante que, até
onde eu sei, ninguém jamais estudou com seriedade.
que as sanções entrassem em vigor. Algo muito parecido com uma guerra
comercial estava nitidamente em andamento entre os dois países. Ao se
chegar a meados dos anos 90, a acrimônia das relações tinha chegado a
um ponto tal que os principais políticos japoneses começaram a ques-
tionar a presença militar norte-americana no Japão.
Durante esses anos, a opinião pública em cada um dos dois países
foi sistematicamente assumindo uma disposição menos favorável para
com o outro. Em 1985, 87 por cento do povo norte-americano diziam ter
uma atitude de forma geral amistosa para com o Japão. Em 1990, esse
total caiu para 67 por cento e, ao se chegar a 1993, apenas 50 por cento
dos norte-americanos tinham uma disposição favorável para com o Japão,
e quase dois terços disseram que procuravam evitar comprar produtos
japoneses. Em 1985, 73 por cento dos japoneses descreviam as relações
Japão-Estados Unidos como amistosas; ao se chegar a 1993, 64 por cento
diziam que elas eram inamistosas. O ano de 1991 marcou o ponto crucial
de inflexão na mudança da opinião pública, saindo do formato da Guerra
Fria. Nesse ano, cada país substituiu a União Soviética na percepção do
outro. Pela primeira vez, os norte-americanos classificaram o Japão à
frente da União Soviética como uma ameaça à segurança norte-americana
e, pela primeira vez, os japoneses classificaram os Estados Unidos à frente
da União Soviética como uma ameaça à segurança do Japão. 24
As mudanças nas atitudes do povo foram acompanhadas por
mudanças nas percepções da elite. Nos Estados Unidos, surgiu um grupo
significativo de acadêmicos, intelectuais e revisionistas políticos que
enfatizaram as diferenças culturais e estruturais entre os dois países e a
necessidade de que os Estados Unidos adotassem uma linha muito mais
dura ao tratar com o Japão questões econômicas. As imagens do Japão
na mídia popular, nas publicações de não-ficção e nos romances
populares ficaram cada vez mais pejorativas. De modo paralelo, apareceu
no Japão uma nova geração de líderes políticos que não tinham tido a
experiência do poderio norte-americano durante a II Guerra Mundial
nem da benevolência norte-americana após a mesma, que se orgulhavam
muito dos êxitos econômicos japoneses e que estavam perfeitamente
dispostos a resistir às exigências norte-americanas por meios que não
ocorreriam aos seus antecessores. Esses "elementos de resistência"
japoneses eram a contrapartida dos "revisionistas" norte-americanos e,
em ambos os países, os candidatos descobriram que advogar uma
linha-dura em questões que afetavam as relações Japão-Estados Unidos
caía bem com os eleitores.

..,..,.n
Durante o final da década de 80 e início da de 90, as relações dos
Estados Unidos com a China também ficaram cada vez mais antagônicas.
Os conflitos entre os dois países, disse Deng Xiaoping em setembro de
1991, constituíam "uma nova guerra fria", expressão repetida com
regularidade na imprensa chinesa. Em agosto de 1995, a agência de
notícias do governo declarou que "as relações China-Estados Unidos
estão no seu nível mais baixo desde que os dois países estabeleceram
relações diplomáticas" em 1979. As autoridades chinesas denunciavam
com regularidade uma alegada intromissão nos assuntos chineses. Um
documento interno do governo chinês, de 1992, argumentou que "nós
devíamos ressaltar que, desde que se tornaram a única superpotência,
os Estados Unidos estão tentando, de forma descontrolada, adotar uma
nova conduta hegemônica e uma nova política de poder, bem como que
o seu poderio está em declínio relativo e que há limites para o que eles
podem fazer". Em agosto de 1995, o presidente Jiang Zemin disse que
"as forças ocidentais hostis não abandonaram por um só momento sua
trama de ocidentalizar e 'dividir' nosso país". Ao se chegar a 1995, dizia-se
haver um amplo consenso entre os líderes e os estudiosos chineses no
sentido de que os Estados Unidos estavam tentando "dividir territorial-
mente a China, subvertê-la politicamente, contê-la estrategicamente e
frustrá-la economicamente". 25
Havia fundamento para todas essas acusações. Os Estados Unidos
permitiram que o presidente Lee, de Taiwan, fosse aos Estados Unidos,
venderam 150 F-16 para Taiwan, designaram o Tibete um "território
soberano ocupado", condenaram a China por seus abusos contra os
direitos humanos, negaram a Pequim as Olimpíadas do ano 2000,
normalizaram suas relações com o Vietnã, acusaram a China de exportar
componentes de armas químicas para o Irã, impuseram sanções comer-
ciais à China pela venda de equipamento para mísseis para o Paquistão
e ameaçaram a China com sanções adicionais em função de questões
econômicas e, ao mesmo tempo, barraram a admissão da China na
Organização Mundial do Comércio. Cada lado acusou o outro de má fé:
segundo os norte-americanos, a China violou entendimentos sobre a
exportação de mísseis, direitos de propriedade intelectual e trabalho de
detentos; segundo os chineses, os Estados Unidos violaram enten-
dimentos ao permitir que o presidente Lee viajasse aos Estados Unidos
e ao vender aviões de caça sofisticados a Taiwan.
O grupo mais importante na China com uma postura antagônica
para com os Estados Unidos era o dos militares, que, aparentemente,

'>01\
exerciam sistematicamente pressão sobre o governo a fim de que
assumisse uma linha mais dura para com os Estados Unidos. Em junho
de 1993, ao que consta, 100 generais chineses remeteram uma carta a
Deng reclamando da política "passiva" do governo em relação aos
Estados Unidos e do fato de não ter resistido às tentativas norte-ameri-
canas de "chantagear" a China. No outono desse ano, um documento
confidencial do governo chinês delineou as razões militares para um
conflito com os Estados Unidos: "Devido ao fato de que a China e os
Estados Unidos têm antigos conflitos em torno de suas ideologias,
sistemas sociais e políticas externas diferentes, será impossível melhorar
de forma fundamental as relações sino-norte-americanas." Como os
norte-americanos acreditam que a Ásia Oriental se tomará "o coração da
economia mundial, (. .. ) os Estados Unidos não podem tolerar um
adversário poderoso na Ásia Oriental". 26 Em meados dos anos 90, as
autoridades e os órgãos chineses apresentavam de modo rotineiro os
Estados Unidos como uma potência hostil.
O crescente antagonismo entre a China e os Estados Unidos foi em
parte impulsionado pela política interna em ambos os países. Tal como
aconteceu com o Japão, a opinião pública norte-americana bem-infor-
mada ficou dividida. Muitas personalidades do establishment propugna-
vam por um engajamento construtivo com a China, expandindo as
relações econômicas e atraindo a China para a chamada comunidade das
nações. Outros enfatizavam a ameaça em potencial da China para os
interesses norte-americanos, argumentavam que medidas conciliatórias
em relação à China produziam resultados negativos e instavam por uma
política de firme contenção. Em 1993, a opinião pública norte-americana
colocava a China em segundo lugar, perdendo apenas para o Irã, como
o país que representava o maior perigo para os Estados Unidos. A política
norte-americana muitas vezes operou de modo a produzir gestos simbó-
licos, como a visita de Lee a Cornell e o encontro de Clinton com o
dalai-lama, que deixaram os chineses indignados, enquanto, ao mesmo
tempo, levou o governo a sacrificar considerações de direitos humanos
por interesses econômicos, como na prorrogação do tratamento de Nação
Mais Favorecida. Do lado chinês, o governo precisava de um novo
inimigo para reforçar os chamamentos ao nacionalismo chinês e para
legitimar seu poder. Enquanto se estendia a luta pela sucessão, aumentou
a influência dos militares, e o presidente Jiang e outros concorrentes ao
poder pós-Deng não podiam se dar ao luxo de parecer frouxos na
promoção dos interesses chineses.

'}Q1
Nessas condições, no transcurso de uma década, as relações dos
Estados Unidos se "deterioraram" tanto com o Japão como com a China.
Essa mudança nas relações asiático-norte-americanas foi tão ampla e
abrangeu tantas áreas diferentes de questões que parece improvável que
suas causas possam ser encontradas em conflitos de interesses individuais
a propósito de peças de automóvel, vendas de câmeras fotográficas ou
bases militares por um lado, ou prisão de dissidentes, transferências de
armamentos ou pirataria intelectual do outro. Além disso, era claramente
contrário ao interesse nacional norte-americano permitir que suas rela-
ções ficassem mais conflituosas com as duas principais potências asiáti-
cas. As regras elementares de diplomacia e de política de poder deter-
minam que os Estados Unidos deviam tentar jogar uma contra a outra
ou, pelo menos, tentar suavizar as relações com uma se elas estivessem
ficando mais conflituosas com a outra. No entanto, tal não aconteceu.
Havia fatores mais amplos atuando para promover conflitos nas relações
asiático-norte-americanas e tornar mais difícil a solução de questões
individuais que surgiam nessas relações. Esse fenômeno generalizado
tinha causas generalizadas.
Em primeiro lugar, uma maior interação entre as sociedades asiáti-
cas e os Estados Unidos, sob a forma de expansão de comunicações, de
comércio, de investimentos e de conhecimento mútuo, multiplicou as
questões e os assuntos nos quais os interesses podiam se chocar, como
de fato aconteceu. Essa maior interação tornou ameaçadoras, para cada
uma dessas sociedades, práticas e concepções da outra que, à distância,
tinham parecido inofensivamente exóticas. Em segundo lugar, a ameaça
soviética da década de 50 levara ao tratado de segurança mútua Estados
Unidos-Japão. O crescimento do poderio soviético nos anos 70 levara ao
estabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a
China em 1979 e à cooperação ad hoc entre os dois países a fim de
promover seu interesse comum na neutralização daquela ameaça. O fim
da Guerra Fria retirou esse interesse comum predominante dos Estados
Unidos e das potências asiáticas, não deixando coisa alguma em seu
lugar. Conseqüentemente, vieram à tona outras questões em que havia
significativos conflitos de interesse. Em terceiro lugar, o desenvolvimento
econômico dos países da Ásia Oriental alterou a balança de poder entre
eles e os Estados Unidos. Como vimos, os asiáticos cada vez mais
afirmavam a validade de seus valores e instituições, bem como a
superioridade de sua cultura em relação à cultura ocidental. Por outro
lado, os norte-americanos tendiam a supor, especialmente depois da sua

'lO'l
vitória na Guerra Fria, que os seus valores e instituições tinham relevância
universal e que eles ainda dispunham do poder para moldar as políticas
interna e externa das sociedades asiáticas.
Esse ambiente internacional em mutação trouxe à baila as diferenças
culturais fundamentais entre as civilizações asiática e norte-americana.
No seu nível mais amplo, a ética confuciana, que permeia muitas das
sociedades asiáticas, ressalta os valores de autoridade, hierarquia,
subordinação dos direitos e interesses individuais, importância do
consenso, evitar a confrontação, "salvar a face" e, de modo geral,
supremacia do Estado sobre a sociedade e da sociedade sobre o
indivíduo. Além disso, os asiáticos tendiam a pensar na evolução de
suas sociedades em termos de séculos e milênios e a dar prioridade à
maximização dos ganhos a longo prazo. Essas atitudes contrastam com
a primazia nas concepções norte-americanas de liberdade, igualdade,
democracia e individualismo, e a propensão norte-americana para des-
confiar do governo, opor-se à autoridade, promover pesos e contrapesos,
encorajar a competição, tornar sacrossantos os direitos do indivíduo e
esquecer o passado, ignorar o futuro e se concentrar na maximização
dos ganhos imediatos. As fontes de conflito estão nas diferenças fun-
damentais de sociedade e de cultura.
Essas diferenças tiveram conseqüências especiais para as relações
entre os Estados Unidos e as principais sociedades asiáticas. Os diplo-
matas desenvolveram grandes esforços para resolver os conflitos norte-
americanos com o Japão a propósito de questões econômicas, es-
pecialmente o superávit comercial japonês e a resistência do Japão aos
produtos e investimentos norte-americanos. As negociações comerciais
Estados Unidos-Japão assumiram muitas das características das negociações
sobre controle de armamentos soviético-norte-americanas durante a Guerra
Fria. Ao se chegar a 1995, as primeiras tinham produzido ainda menos
resultados do que estas últimas porque esses conflitos provinham das
diferenças fundamentais das duas economias, especialmente da natureza
singular da economia japonesa no âmbito da economia dos principais países
industrializados. As importações pelo Japão de artigos manufaturados
totalizaram cerca de 3,1 por cento do seu PNB, comparados com uma
média de 7,4 por cento nas outras principais potências industriais. Os
investimentos estrangeiros diretos no Japão somaram um diminuto 0,7
por cento do PIB, comparado com 28,6 por cento nos Estados Unidos e
38,5 por cento na Europa. O Japão foi o único dos países industrializados
a ter superávits orçamentários nos primeiros anos da década de 90. 27
De modo geral, a economia japonesa não se comportou como ditam
as leis universais de economia ocidental. A suposição simplista dos
economistas ocidentais nos anos 80 de que a desvalorização do dólar
reduziria o superávit comercial japonês revelou-se errada. Embora o
acordo do Plaza, de 1985, tivesse retificado o déficit comercial norte-ame-
ricano com a Europa, ele teve pouco efeito sobre o déficit com o Japão.
Enquanto o iene ficou com seu valor a menos de 100 por dólar, o
superávit comercial japonês permaneceu alto e até mesmo aumentou. Os
japoneses puderam assim manter, ao mesmo tempo, uma moeda forte e
um superávit comercial. O pensamento econômico ocidental tende a
definir uma compensação negativa entre desemprego e inflação, achan-
do-se que, com uma taxa de desemprego significativamente abaixo de
cinco por cento, se desencadeariam pressões inflacionárias. No entanto,
durante anos, o Japão teve uma taxa de desemprego em média inferior
a três por cento e uma inflação de um e meio por cento em média. Ao
se chegar à década de 90, os economistas tanto norte-americanos como
japoneses tinham chegado a identificar e conceituar as diferenças básicas
entre esses dois sistemas econômicos. Um estudo cuidadoso chegou à
conclusão de que o baixo nível de importações de manufaturados
peculiar ao Japão "não pode ser explicado através de fatores econômicos
padrão". Um outro analista argumentou que "a economia japonesa não
segue a lógica ocidental, independentemente do que digam os que fazem
prognósticos no Ocidente, pela simples razão de que ela não é uma
economia livre de mercado do tipo ocidental. Os japoneses (. .. ) inven-
taram um tipo de economia que se comporta de modos que enganam
os poderes de previsão dos observadores ocidentais". 28
O que explica o caráter próprio da economia japonesa? Entre os
principais países industrializados, a economia japonesa é única porque
a sociedade japonesa é não-ocidental de um modo único. A sociedade
e cultura japonesas diferem das ocidentais, e especialmente da sociedade
e cultura norte-americanas. Essas diferenças foram ressaltadas em todas
as análises comparativas sérias do Japão e Estados Unidos.29 A solução
das questões econômicas entre Japão e Estados Unidos depende de
mudanças fundamentais na natureza de uma, ou de ambas, dessas
economias, o que, por sua vez, depende de mudanças básicas na
sociedade e na cultura de um ou de ambos os países. Tais mudanças não
são impossíveis. As sociedades e as culturas de fato mudam. Isso pode
decorrer de um importante fato traumático: a derrota total na II Guerra
Mundial transformou dois dos países mais militaristas do mundo em dois
dos mais pacifistas. Entretanto, parece improvável que Estados Unidos
ou Japão venham a impor uma Hiroxima econômica um ao outro. O
desenvolvimento econômico também pode mudar profundamente a
estrutura social e a cultura, como ocorreu na Espanha entre o início da
década de 50 e o final da de 70, e talvez a riqueza econômica faça do Japão
uma sociedade mais parecida com a norte-americana, orientada para o
consumo. No final da década de 80, tanto no Japão como nos Estados Unidos
havia quem sustentasse que seu país devia ficar mais parecido com o outro.
De uma forma limitada, o acordo nipo-norte-americano de Iniciativas
sobre Impedimentos Estruturais foi planejado para promover essa con-
vergência. Seu insucesso, bem como o de outras tentativas análogas,
demonstra o grau em que as diferenças econômicas estão profundamente
enraizadas nas culturas das duas sociedades.
Enquanto os conflitos entre os Estados Unidos e a Ásia têm suas
fontes nas diferenças culturais, os desfechos desses conflitos refletiram a
mudança nas relações de poder entre os Estados Unidos e a Ásia. Nessas
disputas, os Estados Unidos lograram algumas vitórias, mas a tendência
foi na direção da Ásia e a mudança no poderio exacerbou ainda mais
esses conflitos. Os Estados Unidos esperavam que os governos asiáticos
os aceitariam como o líder da "comunidade internacional" e anuíssem à
aplicação dos princípios e valores ocidentais a suas culturas. Os asiáticos,
por outro lado, como disse o secretário-assistente de Estado Winston
Lord, estavam "cada vez mais cônscios e orgulhosos de suas realizações",
esperavam ser tratados de igual para igual, e tendiam a ver os Estados
Unidos como "uma babá internacional, se não um brutamontes". Entre-
tanto, no seio da cultura norte-americana, imperativos profundos impul-
sionam os Estados Unidos para ser pelo menos uma babá, se não um
brutamontes, nas relações internacionais e, em conseqüência, as expec-
tativas norte-americanas estavam cada vez mais em contradição com as
asiáticas. Numa ampla gama de questões, os dirigentes japoneses e de
outros países asiáticos aprenderam a dizer não aos seus interlocutores
norte-americanos, dito às vezes em versões asiáticas polidas de "vá
passear". O ponto de inflexão simbólico das relações asiático-norte-
americanas foi talvez o que uma alta autoridade japonesa denominou
de o "primeiro grande desastre de trem" das relações nipo-norte-ame-
ricanas, que se deu em fevereiro de 1994, quando o primeiro-ministro
Morihiro Hosokawa rejeitou com firmeza a exigência do presidente
Clinton de que se fixassem metas numéricas para as importações pelo
Japão de artigos manufaturados norte-americanos. Uma outra autoridade
japonesa comentou que "não poderíamos ter imaginado que algo assim
acontecesse até mesmo um ano atrás". O ministro do Exterior japonês,
um ano depois, sublinhou essa mudança ao declarar que, numa era de
competição econômica entre nações e regiões, o interesse nacional
japonês era mais importante do que sua "mera identidade" como um
membro do Ocidente.30
A paulatina adaptação norte-americana à alterada balança de poder
se refletiu na política norte-americana em relação à Ásia nos anos 90. Em
primeiro lugar, de fato reconhecendo que careciam da vontade e/ou da
capacidade para pressionar as sociedades asiáticas, os Estados Unidos
separaram áreas de questões sobre as quais poderiam ter algum poder
de influência das áreas de questões nas quais ocorriam conflitos.
Embora Clinton tivesse proclamado que os direitos humanos cons-
tituíam uma das primeiras prioridades da política externa norte-ame-
ricana para com a China, em 1994 ele respondeu às pressões dos
empresários norte-americanos, de Taiwan e de outras fontes desvin-
culando os direitos humanos das questões econômicas e abandonando
a tentativa de empregar a prorrogação da condição de Nação Mais
Favorecida como meio para influenciar o comportamento chinês em
relação ~os dissidentes políticos. Numa providência paralela, 0 gover-
no desvinculou formalmente sua política de segurança para com 0
Japão, na qual presumivelmente teria capacidade de influência das
questões comerciais e de outras questões econômicas, em cujo 'con-
texto suas relações com o Japão eram altamente conflituosas. Dessa
forma, os Estados Unidos abandonaram armas que poderiam ter empre-
gado para promover os direitos humanos na China e concessões comer-
ciais no Japão.
Em segundo lugar, os Estados Unidos perseguiram reiteradamente
um rumo de reciprocidade antecipada com as nações asiáticas fazendo
co~cessões na expectativa de que elas induziriam concessões ~ompará­
veis por parte dos asiáticos. Muitas vezes essa linha de ação foi justificada
por referências à necessidade de manter um "engajamento construtivo"
ou "diálogo" com o país asiático em pauta. Entretanto, na maioria das
vezes, esse país asiático interpretou a concessão como sinal da fraqueza
norte-americana e, por conseguinte, concluiu que poderia ir ainda mais
longe na reieiçao
· · - d as exigencias
· A •
norte-americanas. Esse padrão de
comportam:nto foi particularmente notável em relação à China, que
:s~ondeu a ~esvinculação pelos Estados Unidos da condição de Nação
ais Favorecida com uma nova e intensa rodada de violações de direitos

?su:;
humanos. Devido à predileção norte-americana por identificar "boas"
relações com relações "amistosas", os Estados Unidos ficam em conside-
rável desvantagem para competir com as sociedades asiáticas, que
identificam como "boas" as relações que produzem vitórias para si. Para
os asiáticos, as concessões norte-americanas não devem ser objeto de
reciprocidade; devem ser exploradas.
Em terceiro lugar, desenvolveu-se um padrão nos renitentes confli-
tos Estados Unidos-Japão por questões comerciais, nos quais os Estados
Unidos faziam exigências ao Japão e ameaçavam com sanções caso elas
não fossem atendidas. Seguiam-se longas negociações e então, no último
momento antes que as sanções entrassem em vigor, anunciava-se um
acordo. Os acordos eram geralmente redigidos de modo tão ambíguo
que os Estados Unidos podiam bradar vitória de princípio e os japoneses
podiam implementar ou não o acordo como bem entendessem, e tudo
prosseguia como antes. De maneira análoga, os chineses assentiam com
relutância a declarações de princípios amplos a respeito de direitos
humanos, propriedade intelectual ou proliferação e simplesmente as
interpretavam de modo muito diferente dos Estados Unidos, e continua-
vam seguindo suas diretrizes anteriores.
Essas diferenças de cultura e as alterações na balança de poder entre
a Ásia e os Estados Unidos encorajaram as sociedades asiáticas a apoiar
umas às outras em seus conflitos com os Estados Unidos. Em 1994, por
exemplo, praticamente todos os países asiáticos, "da Austrália à Malásia
e à Coréia do Sul", se congregaram em apoio ao Japão na sua resistência
contra a exigência norte-americana de metas numéricas para as impor-
tações. Uma congregação semelhante se deu, simultaneamente, em apoio
ao tratamento de Nação Mais Favorecida para a China, com o primeiro-
ministro Hosokawa na dianteira, argumentando que os conceitos ociden-
tais de direitos humanos não podiam ser "aplicados cegamente", e Lee
Kuan Yew, de Singapura, advertindo que, se pressionarem a China, "os
Estados Unidos se verão inteiramente isolados no Pacífico".31 Em outra
demonstração de solidariedade, asiáticos, africanos e outros povos se
congregaram atrás do Japão em apoio à reeleição de um japonês que
ocupava o cargo de diretor da Organização Mundial de Saúde, contra a
oposição do Ocidente, e o Japão promoveu a candidatura de um
sul-coreano para dirigir a Organização Mundial do Comércio, contra o
candidato dos Estados Unidos, Carlos Salinas, ex-presidente do México.
Os registros mostram de forma indiscutível que ao se chegar aos anos
90, com respeito a questões relacionadas ao além-Pacífico, cada país da

287
Ásia Oriental sentia que tinha muito mais em comum com outros países
da Ásia Oriental do que com os Estados Unidos.
O fim da Guerra Fria, a crescente interação entre a Ásia e a América
e o declínio relativo do poderio norte-americano trouxeram assim à tona
o choque de culturas entre os Estados Unidos e o Japão e as outras
sociedades asiáticas, capacitando estes últimos a resistir às pressões
norte-americanas. A ascensão da China representava um problema mais
fundamental para os Estados Unidos. Os conflitos dos Estados Unidos
com a China cobriam uma gama muito mais ampla de questões do que
com o Japão, abrangendo questões econômicas, direitos humanos,
Tibete, Taiwan, o Mar do Sul da China e a proliferação de armamentos.
Os Estados Unidos e a China não partilhavam objetivos comuns em
nenhuma das principais questões de política. As diferenças vão de uma
ponta à outra do quadro. Tal como no caso do Japão, esses conflitos
estavam, em grande parte, baseados nas culturas diferentes das duas
sociedades. Os conflitos entre os Estados Unidos e a China, porém,
também envolviam questões fundamentais de poder. A China não está
disposta a aceitar a liderança ou hegemonia norte-americana no mundo;
os Estados Unidos não estão dispostos a aceitar a liderança ou hegemonia
chinesa na Ásia. Durante mais de 200 anos os Estados Unidos tentaram
impedir o surgimento de uma potência com predomínio absoluto na
Europa. Durante quase 200 anos, a começar por sua política de "Portas
Abertas" em relação à China, os Estados Unidos tentaram fazer o mesmo
na Ásia Oriental. Para atingir esses objetivos, os Estados Unidos travaram
duas guerras mundiais e uma guerra fria contra a Alemanha imperial, a
Alemanha nazista, o Japão imperial, a União Soviética e a China
comunista. Esse interesse norte-americano persiste e foi reafirmado pelos
presidentes Reagan e Bush. A ascensão da China como potência regional
dominante na Ásia Oriental, caso prossiga, põe em risco esse interesse
norte-americano fundamental. A causa subjacente do conflito entre os
Estados Unidos e a China está na sua diferença básica quanto a como
deve ficar a futura balança de poder na Ásia Oriental.

Hegemonia Chinesa: Contrabalançar e Atrelar-se. Com seis civili-


zações, 18 países, economias crescendo rapidamente e grandes diferen-
ças políticas, econômicas e sociais entre as suas sociedades, a Ásia
Oriental poderia desenvolver qualquer um de vários padrões de relações
internacionais no início do século XXI. É concebível que surja um
conjunto extremamente complexo de relações de cooperação e confli-

288
tuosas, envolvendo a maioria das principais potências e as de nível médio
da região. Ou poder-se-ia formar um grande sistema internacional
multipolar de poder, com China, Japão, Estados Unidos, Rússia e,
possivelmente, Índia se contrabalançando e competindo uns com os
outros. Outra variante poderia ser com a política da Ásia Oriental sendo
dominada por uma rivalidade bipolar continuada entre a China e o Japão,
ou entre a China e os Estados Unidos, com outros países se alinhando com
um lado ou o outro, ou optando pelo não-alinhamento. Possivelmente,
ainda, a política da Ásia Oriental poderia reverter ao seu padrão unipolar
tradicional, com uma hierarquia de poder centrada em Pequim.
Se a China mantiver seus altos níveis de crescimento econômico ao
entrar no século XXI, mantiver sua unidade na era pós-Deng e não for
tolhida por lutas de sucessão, é provável que tente concretizar o último
desses desfechos. Seu êxito dependerá das reações dos demais partici-
pantes do jogo político do poder na Ásia Oriental.
A história, a cultura, as tradições, as dimensões, o dinamismo
econômico e a auto-imagem da China são, todos, fatores que a impul-
sionam para assumir uma posição hegemônica na Ásia Oriental. Durante
a década de 50, a China era a aliada comunista da União Soviética. Com
a ruptura sino-soviética, ela tentou, na década de 60, se estabelecer como
líder do Terceiro Mundo, tanto contra os Estados Unidos como contra a
União Soviética. Quando essa tentativa fracassou, a China buscou, nos anos
70 e 80, com razoável grau de êxito, colocar-se numa posição de equilíbrio
entre as duas superpotências, jogando uma contra a outra. O final da Guerra
Fria acabou com essa possibilidade. Na sua última fase, a China fixou
para si a meta de se tornar uma potência hegemônica na Ásia Oriental.
Essa meta é a conseqüência natural de seu rápido desenvolvimento
econômico. Cada uma das demais potências principais - Grã-Bretanha
e França, Alemanha e Japão, Estados Unidos e União Soviética -
engajou-se em expansão externa, afirmação e imperialismo, coinciden-
temente durante os anos em que passou por industrialização e cresci-
mento econômico acelerados, ou logo em seguida a tal período. Não há
nenhuma razão para se pensar que a obtenção de poderio econômico e
militar não terá efeitos análogos na China. Durante dois mil anos, a China
foi a potência proeminente na Ásia Oriental. Atualmente, os chineses
estão cada vez mais afirmando sua intenção de retomar esse papel
histórico e pôr um fim ao demasiado longo século de humilhação e
subordinação ao Ocidente e ao Japão, que começou com a imposição
pela Grã-Bretanha do Tratado de Nanquim, em 1842.

289
No final dos anos 80, a China começou a converter seus crescentes
recursos econômicos em poder militar e influência política. Se o seu
desenvolvimento econômico continuar, esse processo de conversão
assumirá grandes proporções. Segundo dados oficiais, durante a maior
parte da década de 80, os gastos militares chineses diminuíram. Contudo,
entre 1988 e 1993, os gastos militares dobraram em moeda corrente e
aumentaram em 50 por cento em termos reais. Em 1995, planejava-se um
aumento de 21 por cento. As estimativas dos gastos militares chineses
para o ano de 1993 variam de aproximadamente 22 bilhões para 37
bilhões de dólares, a taxas oficiais de câmbio, e até 90 bilhões em termos
de paridade de poder de compra. No final dos anos 80, a China
reformulou sua estratégia militar, mudando de defesa contra uma invasão
numa guerra de grandes proporções com a União Soviética, para uma
estratégia regional que enfatiza a projeção de poder. De acordo com essa
mudança, ela começou a desenvolver sua capacidade naval, adquirindo
modernos aviões de combate de longo raio de ação, desenvolvendo a
capacidade de reabastecimento em vôo e resolvendo adquirir um porta-
aviões. A China também ingressou num relacionamento mutuamente
benéfico de compra de armamentos com a Rússia e passou com afinco
a exportar armamentos, inclusive tecnologia e mísseis capazes de trans-
portar ogivas nucleares, para o Paquistão, o Irã e outros países.
A China está a caminho de se tornar a potência dominante na Ásia
Oriental. O desenvolvimento econômico da Ásia Oriental está se toman-
do cada vez mais orientado para a China, alimentado pelo rápido
crescimento da parte continental e das outras três Chinas, além do papel
fundamental desempenhado por elementos da etnia chinesa no desen-
volvimento da economia da Tailândia, Malásia, Indonésia e Filipinas. De
modo mais ameaçador, a China está afirmando com vigor cada vez maior
suas reivindicações no Mar do Sul da China: ampliando sua base nas
Ilhas Paracel; disputando com os vietnamitas um punhado de ilhas em
1988; estabelecendo uma presença militar no Recife do Engano, ao largo
da costa das Filipinas; e reclamando para si as jazidas submarinas de gás
junto da Ilha Natuna, que pertence à Indonésia. A China também
abandonou o apoio discreto que dava à manutenção de uma presença
militar norte-americana na Ásia Oriental, e começou a se opor de forma
ativa a esse desdobramento. Analogamente, embora durante a Guerra
Fria a China tivesse discretamente instado o Japão a reforçar seu poderio
militar, nos anos pós-Guerra Fria ela tem manifestado crescente preo-
cupação com o aumento do poder militar japonês. Atuando na maneira

290
clássica de um país hegemônico regional, a China está tratando de reduzir
os obstáculos à consecução de sua superioridade militar regional.
Com raras exceções - como, possivelmente, no Mar do Sul da
China - , a hegemonia chinesa na Ásia Oriental provavelmente não
envolverá uma expansão de controle territorial através do emprego direto
da força armada. Entretanto, ela provavelmente significará que a China
esperará que os demais países da Ásia Oriental, em diferentes graus de
intensidade, implementem algumas, ou todas, das seguintes proposições:

• apoiar a integridade territorial chinesa, o controle pela China do


Tibete e de Xinjiang e a integração de Hong Kong e de Taiwan
à China Continental;
• assentir com a soberania chinesa sobre o Mar do Sul da China e,
possivelmente, sobre a Mongólia;
• apoiar, de modo geral, a China nos conflitos com o Ocidente em
torno de questões econômicas, de direitos humanos, de prolife-
ração de armamentos, entre outras;
• aceitar o predomínio militar chinês na região e se abster de
adquirir armas nucleares ou forças convencionais capazes de
contestar esse predomínio;
• adotar políticas de comércio internacional e de investimentos
compatíveis com os interesses chineses e conducentes ao desen-
volvimento econômico chinês;
• acatar a liderança chinesa no tratamento de problemas regionais;
• ser aberto, de modo geral, à imigração proveniente da China;
• proibir ou reprimir movimentos contra a China e contra os
chineses no âmbito das suas respectivas sociedades;
• respeitar os direitos dos chineses dentro das suas sociedades,
inclusive seu direito de manter relacionamentos estreitos com
seus familiares e com suas províncias de origem na China;
• abster-se de alianças militares ou coligações contra a China com
outras potências;
• promover o emprego do mandarim como suplemento e, final-
mente, como substituto do inglês como a Língua de Comunicação
Mais Ampla (LCMA) na Ásia Oriental.

Os analistas comparam a ascensão da China à da Alemanha imperial


como a potência dominante na Europa no final do século XIX. O
surgimento de novas grandes potências é sempre altamente deses-

?Ql
tabilizador, e o da China, na condição de uma das principais potências,
caso assim aconteça, será um fenômeno muito maior do que qualquer
outro comparável da metade final do segundo milênio. Lee Kuan Yew
comentou em 1994 que "a dimensão do deslocamento que a China
produz no mundo é tal que será preciso encontrar-se um novo
equilíbrio mundial dentro de 30 ou 40 anos. Não é possível se
pretender que ela é apenas mais um grande ator. Ela é o maior ator
da História da Humanidade". 32 Se o desenvolvimento econômico
chinês prosseguir por mais uma década, como parece possível, e se a
China mantiver sua unidade durante o período da sucessão, como parece
provável, os países da Ásia Oriental e do mundo terão de se defrontar
com um desempenho cada vez mais afirmativo 'desse maior ator da
História da Humanidade.
De modo geral, os Estados podem reagir de uma de duas maneiras,
ou numa combinação de ambas, ao surgimento de uma nova potência.
Isoladamente ou em coligação com outros Estados, podem tentar garantir
sua segurança através de um processo de contrabalançar a potência que
surge, contê-la e, se necessário, ir à guerra para derrotá-la. Ou então os
Estados podem tentar atrelar-se à potência que surge, se acomodar a ela
e assumir uma posição secundária ou subordinada em relação à potência
em ascensão, com a expectativa de que seus interesses básicos serão
protegidos. Ou ainda, é concebível que os Estados tentem alguma mescla
de contrabalançar e de se atrelar, embora isso acarrete o risco de, ao
mesmo tempo, antagonizar a potência em ascensão e não ter proteção
alguma contra ela. Segundo a teoria ocidental das relações internacionais,
geralmente contrabalançar é uma opção mais desejável e, na realidade,
tem sido adotada com mais freqüência do que a de se atrelar. Como
argumentou Stephen Walt,

de modo geral, as avaliações de intenção deveriam encorajar os Estados a


contrabalançar. Atrelar-se é arriscado porque exige confiança - um Estado
presta assistência a uma potência dominante na esperança de que ela se
manterá benévola. É mais seguro contrabalançar, para o caso de a potência
dominante se mostrar agressiva. Além disso, o alinhamento com o lado mais
fraco aumenta a influência de um Estado no âmbito da coligação resultante,
porque o lado mais fraco tem maior necessidade de assistência.33

A análise feita por Walt da formação de alianças no Sudoeste


Asiático revelou que quase sempre os Estados tentaram contrabalançar
diante de ameaças externas. Também se supôs, de modo geral, que o
comportamento de contrabalanceamento era a norma durante a maior

292
parte da história européia, com várias potências alterando suas alianças
de modo a contrabalançar e conter as ameaças que viam configuradas
em Felipe II, Luís XIV, Frederico, o Grande, Napoleão, o Kaiser e Hitler.
Walt admite, entretanto, que os Estados podem optar por atrelar-se "sob
algumas condições" e, como argumenta Randall Schweller, "há uma
probabilidade de que Estados revisionistas se atrelem a uma potência em
ascensão por estarem descontentes e terem a esperança de se beneficia-
rem com as mudanças do status quo".34 Além disso, como indica Walt,
o atrelar-se de fato requer um certo grau de confiança nas intenções
não-malévolas do Estado mais poderoso.
Ao contrabalançar poder, os Estados podem desempenhar um
papel primário ou secundário. O Estado A pode tentar contrabalançar
poder contra o Estado B, que ele considera como um adversário real ou
potencial, estabelecendo alianças com os Estados C e D, desenvolvendo
seu próprio poder militar e de outra natureza (o que provavelmente levará
a uma corrida armamentista), ou através de uma combinação dessas
linhas de ação. Nessa situação, os Estados A e B são os contrabalancea-
dores primários um do outro. Na outra hipótese, o Estado A pode não
considerar nenhum outro Estado como um adversário imediato, mas
pode ter interesse em promover um equilíbrio de poder entre os Estados
B e C, pois se qualquer deles ficasse forte demais poderia se constituir
numa ameaça para o Estado A. Nessa situação, o Estado A atua como
um contrabalanceador secundário em relação aos Estados B e C, que
podem ser contrabalanceadores primários um do outro.
Como irão os países reagir à China se ela começar a surgir como
potência hegemônica na Ásia Oriental? As reações, sem dúvida, variarão
amplamente. Pelas razões indicadas aqui e porque a China definiu os
Estados Unidos como o seu inimigo principal, a inclinação norte-ameri-
cana predominante será a de agir como contrabalanceador primário e
evitar a hegemonia chinesa. A adoção de tal papel estaria acorde com a
preocupação tradicional norte-americana de evitar a dominação quer da
Europa quer da Ásia por qualquer potência isolada. Esse objetivo já não
é relevante na Europa, mas ainda poderia sê-lo na Ásia. Uma federação
flexível na Europa Ocidental, intimamente ligada aos Estados Unidos
cultural, política e economicamente, não constituirá ameaça para a
segurança norte-americana. Uma China unificada, poderosa e assertiva
poderia ser uma ameaça. Será do interesse norte-americano estar pronto
para ir à guerra, se necessário, para impedir a hegemonia chinesa na Ásia
Oriental? Se o desenvolvimento econômico chinês se mantiver no atual

')Q~
ritmo, isso poderia vir a ser a mais grave questão de segurança com que
se depararão os responsáveis por traçar a política norte-americana no
começo do século XXI. Se os Estados Unidos de fato quiserem impedir
a dominação da Ásia Oriental pela China, precisarão redirecionar sua
aliança com o Japão para essa finalidade, desenvolver estreitos laços
militares com outras nações asiáticas e aumentar sua presença militar na
Ásia, bem como o poder militar que possa empregar na região. Se os
Estados Unidos não estiverem dispostos a lutar contra a hegemonia
chinesa, terão que abrir mão de seu universalismo, aprender a viver com
essa hegemonia e se conformar com uma redução acentuada de sua
capacidade de moldar os acontecimentos no lado oposto do Pacífico.
Qualquer dessas linhas de ação acarreta grandes custos e riscos. O maior
perigo é o de que os Estados Unidos não façam uma opção clara e acabem
se vendo em guerra com a China sem terem avaliado cuidadosamente
se isso atende ao seu interesse nacional e sem estarem preparados para
travar de modo eficaz uma guerra desse tipo.
Teoricamente, os Estados Unidos poderiam tentar conter a China
desempenhando um papel de contrabalanceamento secundário, se algu-
ma outra potência importante atuasse como o contrabalanceador primá-
rio da China. A única possibilidade concebível é o Japão, e isso exigiria
grandes mudanças na política japonesa: intensificação do rearmamento
japonês, obtenção de armas nucleares e uma ativa competição com a
China em busca de apoio das outras potências asiáticas. Embora o Japão
pudesse estar disposto a participar de uma coligação encabeçada pelos
Estados Unidos para se contrapor ã China, ainda que isso também seja

'
incerto, é improvável que ele se torne o contrabalanceador primário da
China. Além disso, os Estados Unidos não mostraram grande interesse
ou capacidade num papel de contrabalanceamento secundário. Quando
ainda eram um país jovem e pequeno; tentaram fazer isso durante a era
napoleônica e acabaram em guerra tanto com a Grã-Bretanha como com
a França. Durante a primeira parte do século XX, os Estados Unidos
fizeram apenas esforços mínimos para promover contrabalanceamentos
entre países europeus e asiáticos e, em conseqüência, se viram engajados
em guerras mundiais para restabelecer equilíbrios que tinham sido
desfeitos. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos não tiveram alterna-
tiva senão serem o contrabalanceador primário da União Soviética.
Portanto, como grande potência, os Estados Unidos nunca foram um
'
contrabalanceador secundário. Para sê-lo é preciso desempenhar um
papel sutil, flexível, ambíguo e até mesmo insincero. Isso poderia implicar

294
mudar o apoio de um lado para outro, recusar-se a apoiar ou se opor a
um Estado que, pelos valores norte-americanos, parecesse estar moral-
mente certo e apoiar um Estado que estivesse moralmente errado. Mesmo
que 0 Japão emergisse como o contrabalanceador primário da China na
Ásia, fica em aberto a questão da capacidade dos Estados Unidos de
apoiar esse contrabalanceamento. Os Estados Unidos são muito mais
capazes de se mobilizar diretamente contra uma ameaç;,i existente do que
de contrabalançar uma contra a outra duas ameaças em potencial. Por
último, é provável que exista entre as potências asiáticas uma propensão
a se atrelar, o que inviabilizaria qualquer tentativa norte-americana de
contrabalanceamento secundário.
Na medida em que o atrelar-se depende de confiança, apresentam-
se três proposições. Em primeiro lugar, há mais probabilidade de que o
atrelar-se ocorra entre Estados que pertencem à mesma civilização ou
compartilham de alguma outra maneira aspectos culturais comuns, do
que entre Estados que carecem de tais aspectos em comum. Em segundo
lugar, é provável que os níveis de confiança variem conforme o contexto.
Um menino pequeno se atrelará ao irmão mais velho quando eles
enfrentarem outros meninos; é menos provável que ele confie no irmão
mais velho quando estiverem sozinhos em casa. Por conseguinte, as
interações mais freqüentes entre Estados de civilizações diferentes es-
timularão ainda mais o atrelar-se no seio de cada civilização. Em terceiro
lugar, a propensão para atrelar-se e para contrabalançar pode variar de uma
civilização para outra, porque os níveis de confiança entre seus integrantes
são diferentes. A predominância do contrabalanceamento no Oriente
Médio, por exemplo, pode refletir os níveis proverbialmente baixos de
confiança que existem na cultura árabe e nas outras culturas dessa região.
Além dessas influências, a propensão para atrelar-se ou para
contrabalançar será condicionada pelas expectativas e preferências no
que se refere à distribuição do poder. As sociedades européias passaram
por uma fase de absolutismo, porém evitaram os longos impérios
burocráticos ou "despotismos orientais" que caracterizaram a Ásia duran-
te grande parte de sua história. O feudalismo proporcionou uma base
para o. pluralismo e para o pressuposto de que uma certa dispersão de
poder era tanto natural como desejável. Assim, também no nível inter-
nacional um equilíbrio de poder era considerado natural e desejável, e
a responsabilidade dos estadistas era protegê-lo e sustentá-lo. Em con-
seqüência, quando o equilíbrio ficava ameaçado, precisava-se de uma
conduta de contrabalanceamento para restabelecê-lo. Em resumo, 0
modelo európeu de sociedade internacional refletia o modelo europeu
de sociedade doméstica.
Em contraste, os impérios burocráticos da Ásia não deixavam muito
espaço para o pluralismo político e a divisão de poder. Dentro da China,
o atrelar-se parece ter sido muito mais importante em comparação com
o contrabalanceamento do que na Europa. Lucian Pye assinala que,
durante a década de 20, "os chefes guerreiros procuraram, primeiro, ver
o que poderiam ganhar se identificando com os fortes, e só depois
exploraram as vantagens de se aliar com os fracos. (. .. ) para os chefes
guerreiros chineses, a autonomia não era o valor definitivo, como era
nos cálculos tradicionais europeus de equilíbrio de poder. Ao contrário,
eles baseavam suas decisões na associação com o poder". Em sentido
semelhante, Avety Goldstein argumenta que o atrelar-se caracterizou a
política na China comunista enquanto a estrutura de autoridade era
relativamente clara, de 1949 a 1966. Quando a Revolução Cultural criou
as condições de quase anarquia e incerteza a respeito da autoridade e
ameaçou a sobrevivência dos atores políticos, começou a prevalecer o
comportamento de contrabalanceamento.35 Pode-se supor que o res-
tabelecimento de uma estrutura de autoridade definida com maior clareza
depois de 1978 também restabeleceu o atrel~r-se como o padrão domi-
nante de comportamento político.
Historicamente, os chineses jamais fizeram uma distinção nítida
entre os assuntos internos e externos. Sua "imagem da ordem mundial
não passava de um corolário da ordem interna chinesa e, assim, era uma
projeção ampliada da identidade civilizacional chinesa", que "se pres-
supunha que se repetia em círculos concêntricos cada vez maiores, como

'
a correta ordem cósmica". Ou, como expressou Roderick MacFarquhar, "a
visão chinesa tradicional do mundo era vm reflexo da visão confuciana de
uma sociedade hierárquica cuidadosamente articulada. Pressupunha-se que
os monarcas e Estados estrangeiros eram tributários do Reino do Meio: 'Não
há dois sóis no céu; não pode haver dois imperadores na Terra"'. Como
conseqüência, os chineses não mostraram apreço por "concepções de
segurança multipolares nem mesmo multilaterais". De modo geral, os
asiáticos estão dispostos a "aceitar a hierarquia" nas relações internacio-
nais, e as guerras hegemônicas do tipo europeu não aparecem na história
da Ásia Oriental. Um sistema de equilíbrio de poder em funcionamento,
que historicamente era típico na Europa, foi estranho à Ásia. Até a
chegada dos europeus em meados do século XIX, as relações interna-
cionais na Ásia Oriental eram sinocêntricas, com as demais sociedades

?Oh
dispostas em diferentes graus de subordinação, cooperação ou autonomia
com relação a Pequim. 36 O ideal confuciano da ordem mundial, evidente-
mente, nunca se concretizou na prática. Não obstante, o modelo asiático
de relações internacionais baseadas numa hierarquia de poder contrasta
de forma espetacular com o modelo europeu de equilíbrio de poder.
Em conseqüência dessa imagem da ordem mundial, a propensão
chinesa para atrelar-se no campo da política interna também ocorre nas
relações internacionais. O grau em que isso molda a política externa de
cada Estado tende a variar de acordo com o grau com que compartilham
da cultura confuciana e do seu relacionamento histórico com a China. A
Coréia tem muito em comum no campo cultural com a China, e
historicamente se inclinou para a China, motivada em boa medida por
seu antagonismo e medo em relação ao Japão. Para Singapura, a China
comunista era um inimigo durante a Guerra Fria. Nos anos 80, porém,
Singapura começou a mudar sua posição e, ao se chegar a meados da
década de 90, tinha se tornac_lo um dos grandes investidores na China.
Seus dirigentes sustentavam de forma incisiva a necessidade de que os
Estados Unidos e outros países se adaptassem às realidades do poderio
chinês. A. Malásia, com sua grande população chinesa e a tendência
antiocidental de seus dirigentes, também se inclina fortemente na direção
da China. A Tailândia manteve sua independência nos séculos XIX e XX
acomodando-se ao imperialismo europeu e ao japonês, e tem demons-
trado a firme intenção de fazer o mesmo em relação à China, numa
tendência que é reforçada pela ameaça de segurança em potencial que
ela vê no Vietnã.
A Indonésia e o Vietnã são os dois países do Sudeste Asiático mais

'
indinados a contrabalançar e conter a China. A Indonésia é grande,
muçulmana e está distante da China, mas, sem o auxílio de outros países,
não pode impedir que a China afirme o seu controle sobre o Mar do Sul da
China. No outono de 1995, a Indonésia e a Austrália estabeleceram um
acordo de segurança pelo qual se comprometeram a consultas mútuas na
eventualidade de "confronçações adversas" à sua segurança. Embora ambas
as partes negassem que se tratava de um acordo contra a China, na realidade
identificaram-na como a fonte mais provável de confrontações adversas.3 7
O Vietnã possui uma cultura predominantemente confuciana, porém teve
historicamente um relacionamento antagônico com a China e, em 1979,
travou com ela uma curta guerra. Tanto o Vietnã como a China
reivindicam a soberania sobre as Ilhas Spratly, e suas marinhas de guerra
travaram escaramuças esporádicas nas décadas de 70 e 80.

?Q7
Nos anos 90, a capacidade militar do Vietnã estava em declínio em
relação à da China. Conseqüentemente, mais do que qualquer outro país
da Ásia Oriental, o Vietnã tinha motivos para buscar parceiros a fim de
contrabalançar a China. Sua admissão na ASEAN e a normalização de
suas relações com os Estados Unidos em 1995 representaram dois passos
nessa direção. Entretanto, as dissensões no seio da ASEAN e a relutância
dessa associação em confrontar a China tomam improvável que a ASEAN
possa vir a ser uma aliança contra a China ou que dê muito apoio ao
Vietnã numa confrontação com ela. Os Estados Unidos teriam mais
disposição para conter a China, porém, em meados dos anos 90, não
estava claro até que ponto iriam para contestar a afirmação do controle
chinês sobre o Mar do Sul da China. No final, para o Vietnã "a alternativa
menos ruim" poderia ser a de se acomodar com a China e aceitar sua
finlandização, a qual, embora "ferisse o orgulho vietnamita( ... ) poderia
assegurar sua sobrevivência".38
Nos anos 90, praticamente todas as nações da Ásia Oriental, afora
China e Coréia do Norte, expressavam seu apoio à manutenção de uma
presença militar norte-americana na região. Entretanto, na prática, a não
ser o Vietnã, todas elas tendiam a se acomodar com a China. As Filipinas
puseram termo às bases aérea e naval norte-americanas em seu território.
Em Okinawa, aumentou a oposição à enorme quantidade de efetivos
militares norte-americanos baseados na ilha. Em 1994, a Tailândia, a
Malásia e a Indonésia rejeitaram os pedidos norte-americanos para
ancorar em suas águas seus navios de suprimento, como uma espécie
de base flutuante para facilitar uma intervenção militar pelos Estados
Unidos, quer no Sudeste quer no Sudoeste Asiático. Numa outra demons-
tração de deferência, na sua primeira reunião o Foro Regional da ASEAN
concordou com a solicitação chinesa de que as questões envolvendo
as Ilhas Spratly fossem mantidas fora da agenda. Além disso, a
ocupação pela China do Recife do Engano, ao largo da costa das
Filipinas, em 1995, não suscitou protestos de nenhum outro país da
ASEAN. Em 1995-96, quando a China ameaçou verbal e militarmente
Taiwan, os governos asiáticos mais um vez responderam com um silêncio
ensurdecedor. Michael Oksemberg sintetizou muito bem a propensão
desses países para se atrelarem: "Os dirigentes asiáticos de fato se
preocupam com que a balança de poder possa se inclinar a favor da
China, porém, numa angustiada antecipação do futuro, não querem
confrontar Pequim agora" e "não se juntarão aos Estados Unidos numa
cruzada anti-China."39

298
A ascensão da China criará um grande desafio para o Japão, e os
japoneses estão profundamente divididos quanto a que estratégia ~eu
país deveria adotar. Será que ele deveria tentar se acomodar :~m a C~~na,
talvez com certa contrapartida, reconhecendo seu predomm10 poht1co-
militar em troca do reconhecimento da primazia do Japão em assuntos
econômicos? Será que ele deveria dar um novo significado à aliança
nipo-norte-americana como o núcleo de uma coligação para contraba-
lançar e conter a China? Será que ele deveria tentar desenvolver seu
próprio poderio militar a fim de defender seus interesses contra quaisquer
incursões chinesas? Provavelmente, o Japão evitará o máximo que puder
dar uma resposta clara a qualquer dessas perguntas.
O núcleo de qualquer esforço significativo para contrabalançar
e conter a China teria que ser a aliança militar nipo-norte-americana.
É concebível que o Japão possa, lentamente, assentir no redireciona-
mento da aliança para essa finalidade. Se o Japão fará isso ou não,
dependerá de o Japão confiar: (1) na capacidade geral dos Estados
Unidos de se manterem como a única superpotência do mundo e de
manterem sua liderança ativa nos assuntos mundiais; (2) no empenho
dos Estados Unidos de manterem sua presença na Ásia e de comba-
terem de forma ativa os esforços da China por expandir sua influência;
e (3) a capacidade dos Estados Unidos e do Japão de conterem a China
sem altos custos em termos de recursos ou altos riscos em termos de
guerra.
Na ausência de uma grande e improvável demonstração de deter-
minação e empenho dos Estados Unidos, é provável que o Japão trate
de se acomodar com a China. Com exceção dos anos 30 e 40, quando
adotou uma política unilateral de conquista na Ásia Oriental, com
conseqüências desastrosas, historicamente o Japão buscou sua segurança
através de alianças com o que ele percebia como sendo a potência
dominante relevante. Mesmo na década de 30, ao se juntar ao Eixo, ele
estava se alinhando com o que parecia então ser a força militar-ideológica
mais dinâmica na política mundial. Mais no começo do século, o Japão
havia, de modo muito consciente, estabelecido uma aliança nipo-britâ-
nica porque a Grã-Bretanha era a potência líder em assuntos mundiais.
Nos anos 50, o Japão analogamente se associou com os Estados Unidos
como o país mais poderoso do mundo e que podia garantir a segurança
do Japão. Tal como os chineses, os japoneses vêem a política internacio-
nal em termos hierárquicos, porque assim é sua política interna. Como
assinalou um estudioso japonês:
Quando os japoneses pensam na sua nação dentro da sociedade
internacional, muitas vezes os modelos internos japoneses oferecem
analogias. Os japoneses tendem a ver uma ordem internacional expres-
sando externamente os padrões culturais que se manifestam internamen-
te no ãmbito da sociedade japonesa, que se caracteriza pela relevância
de estruturas organizadas verticalmente. Tal imagem da ordem interna-
cional foi influenciada pela longa experiência do Japão com o relacio-
namento sino-japonês pré-moderno (um sistema tributário).

Conseqüentemente, o comportamento japonês quanto a alianças tem


sido "basicamente o de se atrelar, não o de contrabalançar", e "de
alinhamento com a potência dominante".40 Um ocidental que vive há
muito tempo no Japão confirmou que os japoneses "mais depressa do
que outros povos se curvam à force majeure e cooperam com os que
eles percebem como lhes sendo moralmente superiores. (. .. ) e mais
depressa detestam abusos de uma potência hegemônica moralmente
frouxa e em retirada". À medida que o papel dos Estados Unidos na Ásia
declina e o da China é cada vez mais predominante, a política japonesa
se adaptará de acordo com essa evolução. Na realidade, ela já começou
a se desenvolver nesse sentido. Kishore Mahbubani assinalou que a
questão-chave no relacionamento sino-japonês é: "Quem é o número
um?". E a resposta está ficando clara. "Não vai haver nenhuma declaração
e nenhum acordo explícitos, mas foi significativo que o imperador do
Japão tenha resolvido visitar a China em 1992, numa época em que
Pequim. ainda estava relativamente isolada no âmbito internacionaI."41
Do ponto de vista ideal, os dirigentes e o povo japoneses sem
dúvida prefeririam os padrões das várias décadas recentes e continuar sob
o ~raço protetor dos Estados Unidos, que manteriam uma posição predo-
rrunante. Entretanto, à medida que diminui o envolvimento norte-americano
na Ásia, as forças que no Japão insistem para que o país se "reasiatize"
ganharão vigor e os japoneses acabarão aceitando como inevitável o
renovado predomínio da China no cenário da Ásia Oriental. Assim, por
exemplo, ante a indagação, em 1994, sobre que nação iria exercer maior
~nfluência na Ásia no século XXI, 44 por cento da opinião pública
Japonesa responderam China, 30 por cento responderam Estados Unidos
e apenas 16 por cento disseram Japão. 42 Como previu em 1995 um alto
funcionário japonês, o Japão terá a "disciplina" de se adaptar à ascensão
~~ ~h~a. Ele então perguntou se os Estados Unidos a teriam. Sua proposição
m1c1al e plausível; a resposta à pergunta que se seguiu é incerta.
A hegemonia chinesa reduzirá a instabilidade e os conflitos na Ásia
Oriental. Ela também reduzirá a influência norte-americana e ocidental
na reg1ao e obrigará os Estados Unidos a aceitarem o que eles,
historicamente, tentaram impedir: a dominação de uma região-chave
do mundo por outra potência. Contudo, o grau em que essa hegemo-
nia ameaçará os interesses de outros países asiáticos ou dos Estados
Unidos dependerá, em parte, do que acontecer na China. O cresci-
mento econômico gera poder militar e influência política, mas também
pode estimular um desenvolvimento político e um movimento na
direção de uma forma de política mais aberta, pluralista e, pos-
sivelmente, democrática. Pode-se admitir que isso já funcionou na
Coréia do Sul e em Taiwan. Entretanto, nesses países, os líderes mais
atuantes na promoção da democracia eram cristãos.
O legado confuciano da China, com a ênfase que atribui autoridade,
ordem, hierarquia e supremacia da coletividade sobre o indivíduo, cria
obstáculos à democratização. No entanto, o crescimento econômico está
criando no sul da China níveis cada vez mais elevados de riqueza, uma
burguesia dinâmica, o acúmulo de poder econômico fora do controle
.governamental e uma classe média em rápida expansão. Além disso, o
povo chinês está profundamente envolvido com o mundo exterior em
termos de comércio, investimentos e instrução. Tudo isso cria uma base
social para um movimento na direção do pluralismo político.
Geralmente, o pré-requisito para a abertura política é a chegada ao
poder de elementos reformistas dentro do sistema autoritário. Será que
isso acontecerá na China? Provavelmente não na primeira sucessão
depois de Deng, mas possivelmente na segunda. O novo século poderia
ver a criação, no sul da China, de grupos com programas políticos, os
quais, na realidade, se não no nome, seriam partidos políticos embrio-
nários, e que têm probabilidade de ter laços estreitos com os chineses
em Taiwan, Hong Kong e Singapura, e ser por eles apoiados. Se surgirem
tais movimentos no sul da China e se uma facção reformista tomar o
poder em Pequim, poderia ocorrer alguma forma de transição política.
O resultado não seria uma democracia ocidental, mas possivelmente um
sistema político pluralista e mais aberto, com o qual os Estados Unidos,
o Japão e outros países poderiam coexistir com maior facilidade do que
seria possível com uma ditadura opressora.
Talvez, como aventou Friedberg, o passado da Europa seja o futuro da
Ásia. O mais provável, porém, é que o passado da Ásia seja o futuro
da Ásia. A opção para a Ásia está entre o poder contrabalançado ao custo
de conflitos ou a paz obtida ao preço da hegemonia. A era que começou
com as intrusões ocidentais nas décadas de 1840 e 1850 está terminando,
a China está retomando seu lugar como potência hegemônica regional
e o Leste está assumindo a posição que lhe cabe.

CMLIZAÇÕES E ESTADOS-NÚCLEOS: ALINHAMENTOS QUE SURGEM

O mundo pós-Guerra Fria, multipolar e multicivilizacional, carece de uma


divisória predominante como existia na Guerra Fria. Entretanto, enquanto
prosseguirem os ímpetos demográfico muçulmano e econômico asiático,
os conflitos entre o Ocidente e as civilizações desafiantes serão mais
fundamentais para a política mundial do que outras linhas divisórias. É
provável que os governos dos países muçulmanos continuem a ficar
menos amistosos com o Ocidente e que ocorram atos violentos intermi-
tentes, de baixa intensidade e talvez, algumas vezes, de alta intensidade,
entre grupos islâmicos e sociedades ocidentais. As relações entre os
Estados Unidos, de um lado, e a China, o Japão e outros países asiáticos,
do outro, terão uma feição altamente conflituosa, e poderá eclodir uma
grande guerra se os Estados Unidos contestarem a ascensão da China
como a potência hegemônica na Ásia.
Nessas condições, a conexão confuciano-islâmica será mantida e
talvez se amplie e se aprofunde. Tem sido fundamental para essa conexão
a cooperação entre as sociedades muçulmana e sínica na oposição ao
Ocidente a respeito de proliferação de armamentos, direitos humanos e
outras questões. No centro dessa conexão, situam-se as íntimas relações
entre Paquistão, Irã e China. Elas se cristalizaram no início dos anos 90
com a visita do presidente Yang Shangkun ao Irã e ao Paquistão em
outubro de 1991 e do presidente Rafsanjani ao Paquistão e à China em
setembro de 1992, que "apontaram para o surgimento de uma aliança
embrionária entre Paquistão, Irã e China". A caminho da China, Rafsanjani
declarou em Islamabad que havia "uma aliança estratégica" entre o Irã
e o Paquistão e que um ataque contra o Paquistão seria considerado
um ataque contra o Irã. Reforçando esse quadro, Benazir Bhutto
visitou o Irã e a China logo depois de se tornar primeiro-ministro em
outubro de 1993. A cooperação entre os três países incluiu diálogos
regulares entre autoridades políticas, militares e burocráticas, bem
como esforços conjuntos numa variedade de campos civis e militares,
abrangendo produção de material bélico, além de transferências de
armamentos pela China para os outros dois países. O desenvolvimento
dessas relações foi apoiado com vigor por aqueles no Paquistão que
pertencem às escolas de pensamento "independente" e "muçulmano"
no âmbito da política externa, que visavam a um eixo "Teerã-Islamabad-
Pequim", enquanto que, em Teerã, sustentava-se que "a natureza diversa
do mundo contemporâneo" exigia "uma cooperação íntima e consis-
tente" entre Irã, China, Paquistão e Casaquistão. Em meados da década
de 90, tinha se estabelecido algo parecido com uma aliança de facto
entre os três países, alicerçada na oposição ao Ocidente, nas preocu-
pações de segurança quanto à Índia e no desejo de se contrapor à
influência da Turquia e da Rússia na Ásia Central. 43
Será que existe a possibilidade de que esses três países se tomem
0 núcleo de um agrupamento mais amplo, envolvendo outros países
muçulmanos e asiáticos? Graham Fuller argumenta que "se poderia
materializar uma aliança confuciano-fundamentalista islâmica, não por-
que Maomé e Confúcio sejam contra o Ocidente, mas porque essas
culturas oferecem um veículo para a expressão de queixas pelas quais o
Ocidente é em parte responsabilizado - um Ocidente cuja dominação
política, militar, econômica e cultural é cada vez mais ressentida num
mundo em que os países sentem que 'não têm mais que aturar isso de
ninguém"'. O chamamento mais apaixonado por uma cooperação desse
tipo veio de Mu'ammar Khadafi, que declarou em março de 1994:

A nova ordem mundial significa que os judeus e os cristãos contro-


larão os muçulmanos se puderem, que eles, depois disso, irão dominar
o Confucionismo e outras religiões na índia, na China e no Japão. (. .. )
Atualmente, o que os cristãos e os judeus estão dizendo é: "Nós
estávamos decididos a esmagar o comunismo, e o Ocidente agora tem
que esmagar o Islamismo e o Confucionismo."
Nós esperamos agora ver uma confrontação entre a China, que
encabeça o campo confucionista, e os Estados Unidos, que encabeçam
o campo dos cruzados cristãos. Não temos nenhuma justificativa para
não termos preconceito contra os cruzados. Estamos do lado do
Confucionismo e, ao nos aliarmos com ele e lutarmos ao seu lado numa
única frente internacional, eliminaremos nosso adversário mútuo.
De modo que nós, como muçulmanos, apoiaremos a China na sua
luta contra nosso inimigo mútuo. (. .. )
Fazemos votos pela vitória da China. (. .. )44

Entretanto, o entusiasmo por uma estreita aliança antiocidental dos


países confucianos e islâmicos tem sido um tanto silencioso por parte da
China, tendo o presidente Jiang Zemin declarado em 1995 que a China
não estabeleceria uma aliança com qualquer outro país. É de supor-se
que essa posição refletia a visão clássica chinesa de que o Reino do Meio,
a potência central, a China, não precisava de aliados formais, e que os
outros países veriam que era do seu interesse cooperar com a China. Por
outro lado, os conflitos da China com o Ocidente significam que ela dará
valor a parcerias com outros países antiocidentais, dos quais o maior
número e os mais influentes provêm do Islã. Além disso, as necessidades
crescentes da China em petróleo provavelmente a impelirão a expandir
suas relações com Irã, Iraque e Arábia Saudita, bem como com o
Casaquistão e o Azerbaijão. Um perito em assuntos de energia assinalou
em 1994 que um eixo armamentos-por-petróleo desse tipo "não precisará
mais acatar as ordens emanadas de Londres, Paris ou Washington" _45
As relações de outras civilizações e seus Estados-núcleos com o
Ocidente, bem como os seus desafiantes, passarão por grandes variações.
As civilizações meridionais - a latino-americana e a africana - carecem
de Estados-núcleos, têm sido dependentes do Ocidente e são relativa-
mente fracas militar e economicamente (embora isso esteja mudando
rapidamente no caso da América Latina). Nas suas relações com o
Ocidente, provavelmente elas se moverão em direções opostas. A
América Latina está culturalmente mais próxima do Ocidente. Durante
os anos 80 e 90, seus sistemas político e econômico passaram a se parecer
cada vez mais com os ocidentais. Os dois países latino-americanos que
em certo período buscaram obter armas nucleares abandonaram essas
tentativas. Apresentando níveis mais baixos de esforço militar em geral
do que qualquer outra civilização, os latino-americanos podem não
gostar da dominação militar dos Estados Unidos, mas não demonstram
nenhuma intenção de contestá-la. A rápida ascensão do Protestantismo
em muitas sociedades latino-americanas está, ao mesmo tempo, toman-
do-as mais parecidas com as sociedades com um misto de católicos e
protestantes do Ocidente e expandindo os laços religiosos entre a
América Latina e o Ocidente, além daqueles que passam por Roma. Em
compensação, o fluxo de ingresso nos Estados Unidos de mexicanos
centro-americanos e caribenhos, e o decorrente impacto hispânico sobre'
a sociedade norte-americana, também promove uma convergência cul-
tural. As principais questões conflituosas entre a América Latina e o
Ocidente, este último significando na prática os Estados Unidos, são
imigração, drogas e terrorismo relacionado com drogas, e integração
econômica (isto é, admissão de países latino-americanos no NAFTA
versus expansão de agrupamentos latino-americanos, como o Mercosul
e o Pacto Andino). Como indicam os problemas que surgiram com
respeito à participação do México no NAFTA, o casamento das civilizações
latino-americana e ocidental não será fácil, devendo provavelmente ir
tomando forma por boa parte do século XXI e podendo jamais se
consumar. No entanto, as diferenças entre o Ocidente e a América Latina
continuam sendo pequenas se comparadas com as que existem entre o
Ocidente e outras civilizações.
As relações do Ocidente com a África deveriam envolver níveis de
conflito apenas ligeiramente mais altos, basicamente por causa da
fraqueza da África. Contudo, há algumas questões importantes. A África
do Sul não abandonou, como o fizeram Brasil e Argentina, um programa
para desenvolver armas nucleares, apenas destruiu as armas nucleares
que já havia produzido. Essas armas foram fabricadas para impedir
ataques do exterior contra o apartheid por um governo branco, governo
esse que não queria legá-las a um governo negro, o qual poderia
empregá-las para outras finalidades. Entretanto, não se pode destruir a
capacidade de fabricar armas nucleares e é possível que um governo
pós-apartheid venha a produzir um novo arsenal nuclear para garantir
seu papel como Estado-núcleo da África e impedir o Ocidente de intervir
na África. Direitos humanos, imigração, questões econômicas e ter-
rorismo também estão na contenda entre a África e o Ocidente. Apesar
dos esforços da França para manter íntimos laços com suas ex-colônias,
parece que um processo de desocidentalização a longo prazo está em
andamento na África, os interesses e as influências das potências
ocidentais estão diminuindo, a cultura autóctone está-se reafirmando e,
na África do Sul, com o passar tempo, os componentes africâneres e
ingleses da cultura estão-se subordinando aos componentes africanos.
Enquanto a América Latina está ficando mais ocidental, a África está
ficando menos. Não obstante, ambas permanecem, de modos diferentes,
dependentes do Ocidente e incapazes, sal:ro nas votações nas Nações
Unidas, de afetar de forma decisiva o equilíbrio entre o Ocidente e os
que o desafiam.
Sem dúvida não é isso que acontece com as três civilizações
"oscilantes". Seus Estados-núcleos são atores importantes nos assuntos
mundiais e geralmente têm um relacionamento misto, ambivalente e
variável com o Ocidente e os desafiantes. Eles também têm um relacio-
namento variável entre si. Como expusemos, é provável que o Japão,
com o passar do tempo e depois de grande ansiedade e auto-análises,
se afaste dos Estados Unidos na direção da China. Tal como outras
alianças transcivilizacionais da Guerra Fria, os vínculos de segurança do
Japão com os Estados Unidos se enfraquecerão, embora seja provável
que nunca sejam formalmente abolidos. Seu relacionamento com a Rússia
continuará difícil enquanto esta se recusar a chegar a um entendimento
sobre as Ilhas Kurilas, por ela ocupadas em 1945. O momento, no final
da Guerra Fria, em que essa questão poderia ter sido resolvida, passou
logo, com o aumento do nacionalismo russo, e não há nenhuma razão
para que os Estados Unidos apóiem a reivindicação japonesa no futuro,
como o fizeram no passado.
Nas últimas décadas da Guerra Fria, a China jogou de forma eficaz
a "carta chinesa" contra a União Soviética e os Estados Unidos. No mundo
pós-Guerra Fria, a Rússia dispõe de uma "carta russa" para jogar. A Rússia
e a China unidas iriam fazer pesar de forma decisiva a balança euro-asiá-
tica contra o Ocidente e despertar todas as preocupações que existiam
na década de 50 a respeito do relacionamento sino-soviético. Uma Rússia
trabalhando intimamente com o Ocidente proporcionaria uma contrape-
so adicional à conexão confuciano-islâmica no contexto de questões
mundiais e reacenderia na China seus receios da Guerra Fria quanto a
uma invasão vinda do Norte. Entretanto, a Rússia também tem problemas
com ambas essas civilizações vizinhas. Com relação ao Ocidente, eles
tendem a ser de mais curto prazo - conseqüência do fim da Guerra Fria
e da necessidade de uma redefinição da balança de poder entre a Rússia
e o Ocidente e de um acordo entre ambos sobre sua igualdade básica e
suas respectivas esferas de influência. Na prática isso significaria:

1. a aceitação pela Rússia da expansão da União Européia e da


OTAN, a fim de incluir os países cristãos ocidentais da Europa
Central e Oriental, e um compromisso ocidental de não expandir a
OTAN mais além, a menos que a Ucrânia se parta em dois países;
2. um tratado de parceria entre a Rússia e a OTAN, se comprometen-
do à não-agressão, consultas regulares sobre questões de segurança,
esforços conjuntos para evitar uma corrida armamentista e a nego-
ciação de acordos de controle de armamentos adequados às suas
necessidades de segurança pós-Guerra Fria;
3. o reconhecimento ocidental da Rússia como precipuamente
responsável pela manutenção da segurança entre os países ortodo-
xos e nas áreas em que predomine a Ortodoxia;
4. reconhecimento ocidental dos problemas de segurança, atuais e
em potencial, com que a Rússia se depara diante dos povos
muçulmanos ao Sul e disposição para rever o Tratado sobre Forças
Convencionais na Europa, além de uma postura favorável em
relação às medidas que a Rússia poderia ter que tomar a fim de
lidar com essas ameaç1ls;
5. acordo mútuo entre a Rússia e o Ocidente a fim de cooperar, em
condições de igualdade, no tratamento de certas questões, como a
Bósnia, que envolvam interesses tanto ocidentais como ortodoxos.

Caso surja um acordo ao longo dessas linhas ou de outras análogas,


não é provável que a Rússi;i ou o Ocidente representem uma ameaça à
segurança um do outro. A Huropa e a Rússia são sociedades demografi-
camente maduras, com baücas taxas de nascimentos e populações em
processo de envelhecimento. Esse tipo de sociedade não tem o vigor
jovem para ser expansionista ou de orientação ofensiva.
No período imediatamente posterior ao fim da Guerra Fria, as
relações russo-chinesas ficaram muito mais cooperativas. As controvér-
sias de fronteiras foram resolvidas, as forças armadas de ambos os lados
da fronteira foram reduzidas; o comércio bilateral se expandiu; cada uma
parou de programar seus mísseis nucleares para atingir alvos na outra;
os respectivos ministros do Exterior conversaram sobre seus interesses
comuns no combate ao I~lamismo fundamentalista. Mais importante
ainda foi que a Rússia encontrou na China um cliente ansioso e de grande
porte para seu equipamento e tecnologia militares, inclusive tanques,
aviões de caça, bombardeiros de longo alcance e mísseis terra-ar. 46 Do
ponto de vista da Rússia, esse aquecimento das relações representou uma
decisão consciente de trabalhar com a China como seu "parceiro" asiático,
dada a frieza estagnada de suas relações com o Japão, bem como uma
reação aos seus conflitos com o Ocidente a propósito da expansão da
OTAN, da reforma econômica, do controle de armamentos, da assistência
econômica e da admissão a instituições internacionais do Ocidente. De
seu lado, a China pode assim demonstrar ao Ocidente que não estava
isolada no mundo e que poderia obter a capacidade militar necessária
para implementar sua estr;Hégia regional de projeção de poder. Para
ambos os países, uma conexão russo-chinesa é, tal como a conexão
confuciano-islâmica, um meio de contrabalançar o poderio e o univer-
salismo ocidentais.
A sobrevivência a longo prazo dessa conexão depende sobretudo,
primeiro, do grau em que as relações da Rússia com o Ocidente se
estabilizem numa base mutuamente satisfatória e, segundo, do grau em
que a ascensão da China à hegemonia na Ásia Oriental ameace os
interesses russos dos pontos de vista econômico, demográfico e militar.

2("\'"7
O dinamismo econômico da China alastrou-se para a Sibéria e homens
de negócios chineses, junto com sul-coreanos e japoneses, estão ex-
plorando e aproveitando as oportunidades aí existentes. Os russos na
Sibéria cada vez mais visualizam seu futuro econômico como mais ligado
à Ásia Oriental do que à Rússia européia. Mais ameaçadora para a Rússia
é a imigração chinesa na Sibéria, com migrantes ilegais chineses somando
em 1995, ao que consta, de três a cinco milhões, em comparação com
uma população russa na Sibéria oriental totalizando sete milhões. O
ministro da Defesa russo, Pavel Grachev, advertiu que "os chineses estão
em processo de efetuar uma conquista pacífica do Extremo Oriente
russo". A mais alta autoridade russa na área de imigração fez eco de suas
palavras, dizendo que "precisamos resistir ao expansionismo chinês". 47
Além disso, o fato de a China estar desenvolvendo as relações econômi-
cas com as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central pode exacerbar seu
relacionamento com a Rússia. A expansão chinesa poderia também
assumir uma feição militar se a China decidisse que deveria tentar retomar
a Mongólia, que os russos desmembraram da China depois da I Guerra
Mundial e que, durante décadas, foi um satélite soviético. Em algum
momento, as "hordas amarelas" que atormentaram a imaginação russa
desde as invasões mongóis podem voltar a ser uma realidade.
As relações da Rússia c~m o Islã são moldadas pela herança histórica
de séculos de expansão, por meio de guerras contra os turcos, os povos
do Cáucaso Setentrional e os emirados centro-asiáticos. Atualmente, a
Rússia colabora com seus aliados ortodoxos, Sérvia e Grécia, para se
contrapor à influência turca nos Bálcãs, e com seu aliado ortodoxo, a
Armênia, para restringir essa influência no Transcáucaso. A Rússia tentou
com muito empenho manter sua influência política, econômica e militar
nas repúblicas da Ásia Central, atraiu-as para a Comunidade dos Estados
Independentes e mantém tropas baseadas em todas elas. No centro das
preocupações russas estão as reservas de petróleo e de gás no Mar Cáspio
e as rotas pelas quais esses recursos chegarão ao Ocidente e à Ásia
Oriental. A Rússia está engajada numa guerra no Cáucaso Setentrional,
contra o povo muçulmano da Chechênia, e numa outra guerra no
Tadjiquistão, apoiando o governo contra uma insurreição que inclui
fundamentalistas islâmicos. Essas preocupações de segurança constituem
incentivo adicional para a cooperação com a China, a fim de conter "a
ameaça islâmica" na Ásia Central, e são também parte dos motivos
principais para a reaproximação da Rússia com o Irã. A Rússia vendeu
ao Irã submarinos, aviões de caça sofisticados, caça-bombardeiros,
/

mísseis terra-ar e equipamento para reconhecimento e guerra eletrônica.


Além disso, a Rússia concordou em construir reatores nucleares de água
leve no Irã e em fornecer-lhe equipamento para enriquecimento de urânio.
Em troca, a Rússia espera, de modo muito explícito, que o Irã contenha a
disseminação do fundamentalismo na Ásia Central e, de modo implícito,
que coopere para deter a expansão da influência turca nessa região e no
Cáucaso. Nas próximas décadas, as relações da Rússia com o Islã serão
certamente moldadas por suas percepções das ameaças criadas pela
explosão populacional muçulmana ao longo de sua periferia meridional.
Durante a Guerra Fria, a Índia, o terceiro dos Estados-núcleos
"oscilantes", era aliada da União Soviética e travou uma guerra contra a
China e várias contra o Paquistão. Suas relações com o Ocidente,
especialmente com os Estados Unidos, eram distantes, quando não
acrimoniosas. No mundo pós-Guerra Fria, as relações da índia com o
Paquistão provavelmente continuarão altamente conflituosas por causa
de Caxemira, das armas nucleares e, de modo geral, da balança de poder
militar no Subcontinente. Na medida em que o Paquistão consiga obter
o apoio de outros países muçulmanos, as relações da Índia com o Islã
serão, em geral, difíceis. Para enfrentar essa situação, é provável que a
Índia desenvolva esforços especiais, como fez no passado, a fim de
persuadir, numa base individual, países muçulmanos a se distanciarem
do Paquistão. Com o término da Guerra Fria, os esforços da China para
estabelecer relações mais amistosas com seus vizinhos se estenderam à
Índia e assim diminuíram as tensões entre as duas. É improvável, porém,
que essa tendência continue por muito tempo. A China se envolveu
ativamente na política da Ásia Meridional e é de se presumir que continue
a agir assim: mantendo uma íntima relação com o Paquistão, reforçando
a capacidade militar convencional e nuclear do Paquistão e cortejando
Myanmar com assistência econômica, investimentos e ajuda militar, ao
mesmo tempo em que possivelmente esteja desenvolvendo instalações
navais nesse país. No momento, o poderio chinês está-se expandindo e
o poderio da Índia poderia crescer de modo substancial no início do
século XXI. O conflito parece altamente provável. Um analista comentou
que "a rivalidade subjacente de poder entre os dois gigantes asiáticos e
as imagens que fazem de si mesmos, como grandes potências e centros
de civilização e cultura por natureza, continuarão a levá-los a apoiar
países e causas diferentes. A Índia se esforçará por emergir não só como
um centro de poder independente no mundo multipolar, mas também
como um contrapeso ao poderio e influência da China". 48
A Índia, confrontando pelo menos uma aliança China-Paquistão,
quando não uma conexão mais ampla confuciano-islâmica, considerará
claramente do seu interesse manter seu íntimo relacionamento com a
Rússia e continuar sendo um dos principais compradores de equipamen-
to militar tusso. Em meados dos anos 90, a Índia estava obtendo da Rússia
quase todos os principais tipos de armamentos, inclusive um porta-aviões
e tecnologia criogênica para foguetes, o que levou à aplicação de sanções
pelos Estados Unidos. Além da proliferação de armamentos, outras
questões entre a Índia e os Estados Unidos abrangeram direitos humanos,
Caxemira e a liberalização econômica. Entretanto, com o passar do
tempo, as relações Estados Unidos-Paquistão e seus interesses em comum
na contenção da China provavelmente aproximarão mais a Índia e os
Estados Unidos. A expansão do poderio indiano na Ásia Meridional não
pode prejudicar os interesses dos Estados Unidos e poderia até ser-lhes útil.
As relações entre as civilizações e seus Estados-núcleos são complica-
das, muitas vezes ambivalentes, e de fato se modificam. A maioria dos países
numa mesma civilização geralmente seguirão a liderança do Estado-núcleo
no desenvolvimento de suas relações com os países de uma outra civilização.
Porém nem sempre é assim e, obviamente, nem todos os países de uma

FIGURA 9.1
A POLÍTICA MUNDIAL DAS CIVILIZAÇÕES: ALINHAMENTOS EMERGENTES

- - - Mais Conflituosa
= Menos Conflituosa
mesma civilização têm relações idênticas com todos os países de uma
segunda civilização. Interess~s em comum, geralmente um m1m1go
comum de uma terceira civilização, podem gerar cooperação entre países
de civilizações diferentes. Obviamente, também ocorrem conflitos dentro
das civilizações, especialmente do Islã. Além disso, as relações entre os
grupos situados ao longo de linhas de fratura podem diferir de modo
significativo das relações entre os Estados-núcleos dessas mesmas civiliza-
ções. Não obstante, tendências amplas ficam evidentes e podem-se fazer
generalizações plausíveis a respeito do que parecem ser os alinhamentos e
antagonismos que estão surgindo entre civilizações e Estados-núcleos. Eles
estão resumidos na Figura 9.1. A bipolaridade relativamente simples da
Guerra Fria está dando lugar aos relacionamentos muito mais complexos
de um mundo multipolar e multicivilizacional.

~11
CAPÍTULO 10

Das Guerras de Transição


às Guerras de Linha de Fratura

GUERRAS DE TRANSIÇÃO: AFEGANISTÃO E O GOLFO

O
destacado estudioso marroquino Mahdi Elmandjra denominou
a Guerra do Golfo, quando ela ainda estava se desenrolando ,
de la premiere guerre civilizationnelle. l Na verdade, ela foi a
segunda. A primeira foi a Guerra Soviético-afegã de 1979-89. Ambas
começaram como invasões simples e diretas de um país por outro, mas
se transformaram e, em grande parte, se redefiniram como guerras de
civilizações. Elas foram, na realidade, guerras de transição para uma era
dominada por conflitos étnicos e guerras de linha de fratura entre grupos
de civilizações diferentes.
A Guerra do Afeganistão começou C01Il()__l:l_m esforço da União
Soviética para sustentar um regime satélite_._ Ela se-~u-uma guerra
dentro da Gu.erra Fria quando os Estados Unidos reagiram de modo
vigoroso e organizaram, financiaram e equiparam os insurgentes afegãos
que resistiram às forças soviéticas. Para os norte-americanos, a derrota
soviética foi a confirmação da doutrina Reagan de promover a resistência
armada aos regimes comunistas, e constituiu uma tranqüilizadora humi-
lhação dos soviéticos, comparável à que os Estados Unidos tinham
sofrido no Vie!Jlã. Ela foi também uma derrota cujas ramificações se
espalharam por toda a sociedade e estrutura política soviéticas, con-
tribuindo de modo significativo para a desintegração do império sovié-

312
tico. Para os norte-americanos e para os ocidentais em geral, o Afeganis-
tão foi a vitória final e decisiva, o Waterloo da Guerra Fria.
Entretanto, para aqueles que lutaram contra os soviéticos, a Guerra
do Afeganistão foi algo diferente. Um estudioso ocidental assinalou 2 que
ela foi "a primeira resistência bem-sucedida a uma potência estrangeira
que não estava baseada em princípios quer nacionalistas quer ~~cialistas",
mas sim em princípios islâmicos, que foi travada como uma jthad e que
deu um enorme ímpeto à autoconfiança e ao poderio islâmicos. De fato,
seu impacto sobre o mundo islâmico foi comparável ao que a derrota
imposta pelos japoneses aos russos em 1905 teve sobre o mundo oriental.
o que 0 Ocidente vê como uma vitória para o Mundo Livre, os
muçulmanos vêem como uma vitória para o Islã.
Os dólares e os mísseis norte-americanos foram indispensáveis para
a derrota dos soviéticos. Entretanto, também indispensável foi o esforço
coletivo do Islã, através do qual uma variedade de governos e de grupos
competiam entre si, tentando derrotar os soviéticos e produzir uma vitória
que iria servir aos seus interesses. O apoio financeiro muçulmano para
a guerra veio basicamente da Arábia Saudita. Entre 1984 e 1986, os
sauditas deram 525 milhões de dólares à resistência; em 1989, concorda-
ram em fornecer 61 por cento de um total de 715 milhões de dólares, ou
seja, 436 milhões, ficando o saldo por conta dos Estados Unidos. Em
1993, os sauditas proporcionaram 193 milhões de dólares para o governo
afegão. A soma total das contribuições sauditas durante o transcurso da
guerra foi pelo menos igual, e provavelmente superior, à quantia de três
a 3,3 bilhões de dólares despendidos pelos Estados Unidos. Durante a
guerra, cerca de 25 mil voluntários de outros países islâmicos, basica-
mente árabes, participaram da guerra. Recrutados em grande parte na
Jordânia, esses voluntários foram treinados pela agência de inteligência
integrada das três forças armadas do Paquistão. Este país também
proporcionou a indispensável base no exterior para a resistência, bem
como apoio logístico e de outros tipos. Além disso, o Paquistão foi o
agente e o conduto para o desembolso do dinheiro norte-americano e,
propositadamente, dirigiu 75 por cento desses fundos para os grupos
islâmicos mais fundamentalistas, com a metade dessa parte indo para a
facção fundamentalista sunita mais extremada, liderada por Gulbuddin
Hekmaryar. Embora estivessem lutando contra os soviéticos, os árabes
participantes da guerra eram predominantemente antiocidentais e con-
denavam as agências ocidentais de ajuda humanitária como imorais e
subversoras do Islamismo. No final, os soviéticos foram derrotados por

212
três fatores que não tinham como igualar ou neutralizar de forma eficaz:
a tecnologia norte-americana, o dinheiro saudita e a devoção e de-
mografia muçulmanas.3

'
A guerra deixou atrás de si uma coligação instável de organizações
fundamentalistas islâmicas empenhadas na promoção do Islamismo
contra todas as forças não-muçulmanas. Deixou também uma herança
de combatentes especializados e experimentados, acampamentos, cam-
pos de treinamento e instalações logísticas, sofistic.adas redes transislâ-
micas de relacionamentos de pessoal e de organizações, considerável
quantidade de equipamento militar, inclusive de 300 a 500 mísseis Stinger,
de que não se tem registro, e, o que é mais importante, uma inebriante
sensação de poder e autoconfiança pelo que haviam conseguido, assim
como um intenso desejo de seguir adiante, rumo a novas vitórias. Uma
autoridade norte-americana disse, em 1994, que "as credenciais dajihad,
religiosas e políticas", dos voluntários afegãos, "são impecáveis. Eles
derrotaram uma das duas superpotências mundiais e agora estão traba-
lhando em cima da segunda".4
A Guerra do Afeganistão tornou-se uma guerra de civilizações
porque os muçulmanos em todas as partes a viram como tal e se juntaram
contra a União Soviética. A Guerra do Golfo tornou-se uma guerra de
civilizações porque o Ocidente interveio militarmente ~um conflito
muçulmano, os ocidentais apoiaram de forma majoritária essa interven-
ção e os muçulmanos pelo mundo afora acabaram por ver tal intervenção
como uma guerra contra eles e se juntaram contra aquilo que viram como
mais um exemplo do imperialismo ocidental.
Inicialmente, os governos árabes e muçulmanos ficaram divididos
a respeito dessa guerra. Saddam Hussein tinha violado a intocabilidade
das fronteiras e, em agosto de 1990, a Liga Árabe decidiu, por uma maioria
e~pressiva de votos (14 a favor, dois contra e cinco abstenções ou
nao-participação na votação), condenar sua ação. O Egito e a Síria
concorda~a1?1 em contribuir com uma quantidade considerável de tropas,
e o Paqu~stao, Marrocos e Bangladesh com quantidades menores, para
a f~rmaçao de uma coligação contra o Iraque organizada pelos Estados
Unidos. A Turquia fechou o oleoduto que atravessava seu território indo
do Iraque até o Mediterrâneo, e permitiu que a coligação utilizass~ suas
bases aéreas. Em troca dessas ações, a Turquia fortaleceu sua pretensão
de ser admitida na Europa, o Paquistão e o Marrocos reafirmaram seu
íntimo relacionamento com a Arábia Saudita, o Egito conseguiu o
cancelamento da dívida externa e a Síria obteve o Líbano. Em contraste
'
os governos do Irã, Jordânia, Líbia, Mauritânia, Iêmen, Sudão e Tunísia,
bem como organizações como a OLP, o Hamas e a FIS [Frente Islâmica
de Salvação], apesar do apoio financeiro que muitas tinham recebido da
Arábia Saudita, apoiaram o Iraque e condenaram a intervenção ocidental.

' Outros governos muçulmanos, como o da Indonésia, assumiram posições


de acomodação ou tentaram evitar adotar qualquer posição.
Enquanto os governos muçulmanos ficaram inicialmente divididos, a
opinião pública árabe e muçulmana se mostrou, desde o princípio, maci-
çamente antiocidental. Um observador norte-americano informou, depois
de visitar o Iêmen, a Síria, o Egito, a Jordânia e a Arábia Saudita três semanas
depois da invasão do Kuwait, que "o mundo árabe está (. .. ) fervilhando de
ressentimento contra os Estados Unidos, mal conseguindo disfarçar sua
satisfação ante a perspectiva de um líder árabe suficientemente audaz
para desafiar a maior potência da Terra".5 Do Marrocos à China, milhões
de muçulmanos se congregaram em apoio a Saddam Hussein e "sauda-
ram-no como um herói muçulmano" .6 O paradoxo da democracia foi "o
grande paradoxo desse conflito": o apoio a Saddam Hussein foi "mais
fervoroso e amplo" naqueles países árabes onde a política era mais aberta
e a liberdade de expressão sofria menos limitações.7 No Marrocos,
Paquistão, Jordânia, Indonésia e em outros países, houve imensas
demonstrações de rua condenando o Ocidente e os dirigentes políticos
rei Hassan, Benazir Bhutto e Suharto, que eram vistos como lacaios do
Ocidente. A oposição à coligação surgiu até na Síria, onde "um amplo
espectro de cidadãos se opôs à presença de forças estrangeiras no Golfo",
e Hafez al-Assad teve que justificar seu envio de tropas como necessário
para equilibrar e finalmente substituir as forças aliadas. Setenta e cinco
por cento dos 100 milhões de muçulmanos da Índia culparam os Estados
Unidos pela guerra, e os 171 milhões de muçulmanos da Indonésia
ficaram "quase unanimemente" contra a ação militar dos Estados Unidos
no Golfo. Os intelectuais árabes se alinharam de modo análogo e
formularam complicados raciocínios para não tomar conhecimento da
brutalidade de Saddam e condenar a intervenção ocidental.8
Os árabes e os muçulmanos de modo geral concordavam que
Saddam Hussein podia ser um tirano sanguinário, porém, imitando o
pensamento de Franklin Delano Roosevelt, "ele é o nosso tirano sangui-
nário". Na opinião deles, a invasão tinha sido um assunto de família a
'
ser resolvido no seio da família, e aqueles que intervieram em nome de
alguma grandiosa teoria de justiça internacional estavam agindo assim
para proteger seus próprios interesses egoístas e para manter a subordi-

315
nação árabe ao Ocidente. Um estudo informou que os intelectuais árabes
"têm desprezo pelo regime iraquiano e lamentam sua brutalidade e
autoritarismo, mas o consideram como um centro de resistência ao
grande inimigo do mundo árabe, o Ocidente". Um professor palestino
disse que "o que Saddam fez estava errado, mas não podemos condenar
o Iraque por enfrentar a intervenção militar ocidental". Os muçulmanos
no Ocidente e em outras áreas condenaram a presença de tropas
não-muçulmanas na Arábia Saudita e a decorrente "violação" dos lugares
sagrados muçulmanos.9 Em síntese, a opinião predominante era: Saddam
esteve errado ao invadir, o Ocidente esteve mais errado em intervir, por
conseguinte, Saddam esteve certo em lutar contra o Ocidente e nós
estamos certos em apoiá-lo.
Saddam Hussein, como os participantes principais em outras guer-
ras de linha de fratura, identificou seu regime, até então secular, com a
causa que exerceria o máximo de atração: o Islamismo. Embora a Arábia
Saudita seja estritamente muçulmana nas suas práticas e instituições, com
as possíveis exceções do Irã e do Sudão, e embora ela tenha financiado
grupos fundamentalistas islâmicos pelo mundo afora, nenhum movimen-
to fundamentalista islâmico em qualquer país apoiou a coligação ociden-
tal contra o Iraque e praticamente todos condenaram a intervenção
ocidental. Dado o formato em U da distribuição de identidades no
mundo islâmico, Saddam não tinha muita opção senão se identificar com
o Islamismo. Um comentarista egípcio assinalou que essa escolha do
Islamismo em vez tanto do nacionalismo árabe quanto de um vago .
antiocidentalismo terceiro-mundista "demonstra o valor do Islamismo
como ideologia política para mobilizar apoio" .10
Para os muçulmanos, essa guerra rapidamente passou a ser uma
guerra entre civilizações, na qual a inviolabilidade do Islã estava em jogo.
Os grupos fundamentalistas islâmicos do Egito, Síria, Jordânia, Paquistão,
Malásia, Afeganistão, Sudão e outros países condenaram-na como uma
guerra contra "o Islã e sua civilização" por uma aliança de "cruzados e
sionistas" e proclamaram seu apoio ao Iraque diante da "agressão militar
e econômica contra o seu povo". No outono de 1990, o decano do
Colégio Islâmico de Meca, Safar al-Hawali, declarou numa gravação em
fita, que circulou amplamente pela Arábia Saudita, que a guerra "não é
o mundo contra o Iraque. Ela é o Ocidente contra o Islã". Em termos
semelhantes, o rei Hussein sustentou que ela era "uma guerra contra
todos os árabes e todos os muçulmanos, e não apenas contra o Iraque".
Além disso, como ressalta Fatima Mernissi, as freqüentes invocações

316
retóricas de Deus feitas pelo presidente Bush em nome dos Estados
Unidos reforçaram a percepção árabe de que era "uma guerra religiosa",
com as observações de Bush dando a aparência "dos ataques mercenários
e calculistas das hordas pré-islâmicas do século VII e as cruzadas cristãs
que vieram depois". Por sua vez, os argumentos de que a guerra era uma
cruzada produzida por uma conspiração ocidental e sionista justificaram,
e até exigiram, a mobilização de uma jihad em resposta. 11
A definição muçulmana da guerra como sendo Ocidente versus Islã
facilitou a diminuição ou a suspensão de antagonismos no seio do mundo
islâmico. Velhas diferenças entre muçulmanos perderam sua importância
em comparação com a diferença maior entre o Islã e o Ocidente. No
decurso da guerra, governos e grupos muçulmanos se moveram sis-
tematicamente no sentido de se afastarem do Ocidente. Como a sua
antecessora no Afeganistão, a Guerra do Golfo reuniu muçulmanos que
anteriormente tinham muitas vezes estado se esganando mutuamente:
secularistas árabes, nacionalistas e fundamentalistas; o governo jordania-
no e os palestinos; a OLP e o Hamas; Irã e Iraque; partidos de oposição
e governos, de modo geral. Como colocou Safar al-Hawali, "esses
ba 'athistas do Iraque são nossos inimigos por algumas horas, mas Roma
é nossa inimiga até o Dia do Juízo Final" .1 2 A guerra também deu início
ao processo de reconciliação entre o Iraque e o Irã. Os líderes religiosos
xiitas do Irã condenaram a intervenção ocidental e conclamaram a uma
jihad contra o Ocidente. O governo iraniano se distanciou das medidas
dirigidas contra seu antigo inimigo, e à guerra seguiu-se uma melhoria
gradual das relações entre os dois regimes.
Um inimigo externo também reduz os conflitos dentro de um país.
Em janeiro de 1991, por exemplo, informou-se que o Paquistão estava
"inundado de polêmicas antiocidentais" que produziram a união, pelo
menos por pouco tempo, dentro do país. "O Paquistão nunca esteve tão
unido. Na província meridional de Sind, onde os sindhis autóctones e os
imigrantes vindos da Índia vêm se matando há cinco anos, as pessoas
de ambos os lados participam de braços dados das demonstrações contra
os Estados Unidos. Nas áreas ultraconservadoras da Fronteira do Noroes-
te, até mesmo as mulheres saem às ruas para protestar, muitas vezes em
locais onde as pessoas nunca se congregaram a não ser para as preces
de sexta-feira."13
À medida que a opinião pública ficou mais decidida contra a guerra,
os governos que se tinham inicialmente associado com a coligação deram
marcha à ré, ficaram divididos ou desenvolveram racionalizações com-

317
plicadas para suas ações. Governos de líderes como Hafiz al-Assad que
tinham contribuído com tropas argumentaram que elas eram necessárias
para equilibrar e acabar por substituir as forças ocidentais na Arábia
Saudita, e que, de qualquer modo, elas seriam usadas unicamente para
fins defensivos e para a proteção dos lugares santos. Na Turquia e no
Paquistão, os principais líderes militares condenaram publicamente 0
alinhamento de seus governos com a coligação. Os governos egípcio e
sírio, que contribuíram com a maior parte das tropas, tinham controle
suficiente sobre suas sociedades para serem capazes de reprimir e ignorar
pressões antiocidentais. Os governos de países muçulmanos um tanto mais
abertos foram induzidos a se afastar do Ocidente e adotar posições cada
vez mais antiocidentais. No Maghreb, "a explosão de apoio ao Iraque" foi
"uma das maiores surpresas da guerra". A opinião pública tunisiana era
fortemente contra o Ocidente e o presidente Ben Ali apressou-se em
condenar a intervenção ocidental. O governo do Marrocos inicialmente
contribuiu com 1.500 homens para a coligação, mas depois, à medida que
grupos antiocidentais se mobilizaram, também endossou uma greve geral
em favor do Iraque. Na Argélia, uma demonstração pró-Iraque de 400 mil
pessoas levou o presidente Bendjedid, que inicialmente se inclinara para 0
Ocidente, a mudar sua posição, condenar o Ocidente e declarar que "a
Argélia ficará ao lado do seu irmão, o Iraque".14 Em agosto de 1990 os
três governos do Maghreb tinham votado na Liga Árabe para cond~nar
o Iraque. No outono, respondendo aos intensos sentimentos de seus
povos, votaram a favor de uma moção para condenar a intervenção
norte-americana, que foi derrotada pela estreita margem de 10 a 11.
O esforço militar ocidental também atraiu pouco apoio das pessoas
de civilizações não-ocidentais e não-muçulmanas. Em janeiro de 1991,
53 por cento dos japoneses entrevistados se opunham à guerra, enquanto
25 por cento a apoiavam. Os hindus se dividiram exatamente ao meio
entre os que culpavam Saddam Hussein e os que culpavam George Bush
pela guerra, a qual, segundo alertava o Tbe Times o/Jndia, poderia levar
a :·u~a confrontação muito mais abrangente entre um mundo judaico-
cnstao forte e arrogante e um mundo muçulmano fraco, incendiado pelo
fervor religioso". A Guerra do Golfo começou assim como uma guerra
entre ~ Iraque e o Kuwait, depois se tornou uma guerra entre o Iraque
e o _ocidente, depois entre o Islã e o Ocidente, e acabou sendo vista por
muitos não-ocidentais como uma guerra Oriente versus Ocidente, "uma
guerra do homem branco, um novo surto do imperialismo à moda
antiga".15

318
Excetuados os kuwaitianos, nenhum povo islâmico se entusiasmou
com a guerra, e a maioria deles demonstrou uma oposição majoritária à
intervenção ocidental. Quando a guerra terminou, os desfiles da vitória
realizados em Londres e em Nova York não foram repetidos em nenhum
outro lugar. Sohail H. Hashmi assinalou que "a conclusão da guerra não
deu motivos para júbilo" em meio aos árabes. Em vez disso, a atmosfera
predominante foi de intensa decepção, desilusão, humilhação e res-
sentimento. Uma vez mais o Ocidente tinha ganho. Novamente, o mais
recente Saladin que havia elevado as esperanças árabes tinha caído em
derrota diante do poderio maciço do Ocidente, que havia sido introdu-
zido pela força na comunidade do Islã. Fatima Mernissi indagou: "O que
de pior poderia ter acontecido aos árabes do que aquilo que a guerra
produziu, o Ocidente inteiro, com toda a sua tecnologia, lançando
bombas sobre nós? Foi o horror definitivo." 16
Logo após a guerra, a opinião pública árabe fora do Kuwait criticou
cada vez mais a presença militar norte-americana no Golfo. A liberação
do Kuwait eliminou qualquer racionalização ·para se opor a Saddam
Hussein e deixou pouca justificativa para uma continuação da presença
militar norte-americana no Golfo. Em conseqüência, até mesmo em
países como o Egito, a opinião pública ficou mais favorável ao Iraque.
Os governos árabes que se haviam juntado à coligação alteraram suas
posturas.17 O Egito e a Síria, além de outros, se opuseram à imposição,
em agosto de 1992, de uma zona de vôo proibido no sul do Iraque. Os
governos árabes e a Turquia também objetaram aos ataques aéreos contra
o Iraque em janeiro de 1993. Se o poder aéreo ocidental podia ser
empregado em resposta a ataques contra muçulmanos xiitas e curdos
por muçulmanos sunitas, por que ele também não era empregado para
responder aos ataques contra os muçulmanos bósnios por sérvios
ortodoxos? Em junho de 1993, quando o presidente Clinton ordenou um
bombardeio de Bagdá em represália à tentativa iraquiana de assassinar
o ex-presidente Bush, a reação internacional obedeceu estritamente às
linhas civilizacionais. Israel e os governos europeus ocidentais apoiaram
firmemente o ataque aéreo; a Rússia o aceitou como autodefesa "jus-
tificada"; a China expressou sua "profunda preocupação"; a Arábia
Saudita e os emirados do Golfo nada disseram; outros governos muçul-
manos, inclusive o egípcio, o condenaram como outro exemplo dos dois
pesos e duas medidas do Ocidente, enquanto o Irã classificou-o de
"flagrante agressão" impulsionada pelo "neo-expansionismo e egoísmo"
norte-americano. 18 Reiteradamente foi feita a pergunta: por que os

319
Estados Unidos e a "comunidade internacional" (ou seja, o Ocidente) não
reagem de modo análogo ao comportamento abusivo de Israel e às suas
violações das Resoluções das Nações Unidas?
A Guerra do Golfo foi a primeira guerra por recursos naturais no
pós-Guerra Fria travada entre civilizações. Estava em jogo a questão de
se as maiores reservas mundiais de petróleo ficariam sob o controle dos
governos sauditas e dos emirados, dependentes do poderio militar
ocidental para sua segurança, ou de regimes independentes antiociden-
tais que teriam a capacidade e poderiam ter a disposição de empregar a
arma do petróleo contra o Ocidente. Embora não tendo conseguido
derrubar Saddam Hussein, o Ocidente, de certo modo, logrou uma vitória
ao marcar a dependência do Ocidente em que estão os Estados do Golfo
em matéria de segurança, bem como ao conseguir uma maior presença
militar no Golfo em tempo de paz. Antes da guerra, o Irã, o Iraque, o
Conselho de Cooperação do Golfo e os Estados Unidos disputavam a

'
influência sobre o Golfo. Depois da guerra, o Golfo Pérsico virou um
lago norte-americano.

CARACTERÍSTICAS DAS GUERRAS DE LINHA DE FRATURA

As guerras entre clãs, tribos, grupos étnicos, comunidades religiosas e


nações predominaram em todas as eras e em todas as civilizações porque
elas têm suas raízes nas identidades das pessoas. Esses conflitos tendem
a ser particularistas no sentido de que não envolvem questões ideológicas
ou políticas mais amplas de interesse direto para não-participantes,
embora possam despertar preocupações humanitárias em grupos de fora.
Esses conflitos tendem também a ser perversos e sanguinários, uma vez
que estão em jogo questões fundamentais de identidade. Além disso, eles
tendem a ser prolongados, podendo ser interrompidos por tréguas ou
acordos, que, entretanto, tendem a se desfazer, e então os conflitos são
reiniciados. Por outro lado, uma vitória decisiva por um dos lados numa
guerra civil por identidade aumenta a probabilidade de um genocídio.19
Os conflitos de linha de fratura são conflitos comunitários entre
Estados ou grupos de civilizações diferentes. As guerras de linha de
fratura são conflitos que se tornaram violentos. Essas guerras podem
ocorrer entre Estados, entre grupos não-governamentais e entre Estados
e grupos não-governamentais. Os conflitos de linha de fratura no seio
de um mesmo Estado podem envolver grupos que estão predominante-
mente localizados em áreas geográficas distintas, caso em que o grupo

320
que não detém o controle do governo normalmente luta pela indepen-
dência e pode ou não estar disposto a aceitar uma solução por algo
menos do que ela. Os conflitos no seio de um Estado podem também
envolver grupos que estão entremeados geograficamente, caso em que
as relações continuamente tensas irrompem em violência de tempos em
tempos, como se dá com os hindus e os muçulmanos na Índia e com os
muçulmanos e os chineses na Malásia; ou então podem ocorrer lutas em
larga escala, especialmente quando estão sendo estabelecidos novos
Estados e suas fronteiras, podendo resultar em tentativas, muitas vezes
brutais, de se separar povos pela força.
Algumas vezes, os conflitos de linha de fratura são lutas pelo
controle de pessoas. Com maior freqüência, a questão é o controle de
território. O objetivo de pelo menos um dos participantes é conquistar
território e livrá-lo de outras pessoas, expulsando-as, matando-as ou
fazendo ambas as coisas, ou seja, praticando a "limpeza étnica". Esses

'
conflitos tendem a ser violentos e cruéis, com ambos os lados perpetran-
do massacres, atos de terrorismo, estupros e torturas. O território em
questão muitas vezes passa a ser para um ou para ambos os lados um
símbolo de alto significado de sua história ou identidade, uma terra
sagrada à qual eles têm um direito inviolável: a Margem Ocidental,
Caxemira, Nagorno-Karabakh, o Vale do Drina, Kosovo.
As guerras de linha de fratura compartilham de algumas, mas não
de todas, características das guerras comunitárias em geral. Elas são
conflitos prolongados. Quando elas se desenrolam no seio de um Estado,
duram em média seis vezes mais do que as guerras entre Estados. Como
elas envolvem questões fundamentais de poder e de identidade de grupo,
são difíceis de resolver através de negociações e acomodações. Quando
se chega a acordos, muitas vezes eles não são assinados por todas as
partes de cada lado e geralmente não duram muito tempo. As guerras
de linha de fratura são do tipo pára-e-recomeça, que pode eclodir numa
imensa violência e depois ir diminuindo para uma guerra de baixa
intensidade ou hostilidade soturna, para novamente eclodir. As chamas
da identidade e do ódio comunitário raramente são extintas por comple-
to, a não ser através do genocídio. Em conseqüência da sua natureza
prolongada, as guerras de linha de fratura, como outras guerras comu-
nitárias, tendem a gerar grande quantidade de mortos e de refugiados.
As estimativas de uns e de outros devem ser tratadas com cautela, mas
as cifras comumente aceitas de mortos em guerras de linha de fratura em
curso no início dos anos 90 compreendiam: 50 mil nas Filipinas, 50 mil

321
a 100 mil em Sri Lanka, 20 mil em Caxemira, 500 mil a um milhão e meio
no Sudão, 100 mil no Tadjiquistão, 50 mil na Croácia, 50 mil a 200 mil
na Bósnia, 30 mil a 50 mil na Chechênia, 100 mil no Tibete, 200 mil em
Timor Oriental. 20 Praticamente todos esses conflitos geraram cifras muito
mais elevadas de refugiados.
Muitas dessas guerras contemporâneas são simplesmente a rodada
mais recente de uma longa história de conflitos sangrentos e, no final do
século XX, a violência resistiu aos esforços para se· acabar com ela de
modo p~rmanente. As lutas no Sudão, por exemplo, irromperam em
1956, continuaram até 1972, quando se chegou a um acordo que atribuía
certa autonomia ao Sudão meridional, porém recomeçaram em 1983. A
rebelião dos tâmiles em Sri Lanka começou em 1983; as negociações de
paz para pôr-lhe fim se interromperam em 1991 e foram retomadas em
1994, chegando-se a um acordo sobre cessar-fogo em janeiro de 1995.
Entretanto, quatro meses depois, os insurgentes, autodenominados de
Tigres, romperam a trégua, se retiraram das conversações de paz e a
guerra recomeçou com violência ainda maior. A rebelião dos Moras nas
Filipinas começou no início da década de 70 e diminuiu em 1976, depois
de se chegar a um acordo concedendo certa autonomia a algumas áreas
de Mindanao. Em 1993, porém, novos atos de violência vinham ocorren-
do com freqüência e numa escala crescente, quando grupos insurgentes
dissidentes repudiaram as tentativas de pacificação. Os dirigentes russos
e chechenos chegaram a um acordo de desmilitarização em julho de
1995, destinado a pôr termo à violência que começara em dezembro do
ano anterior. A guerra se atenuou por algum tempo, mas logo foi
reativada com ataques chechenos contra indivíduos russos ou líderes
pró-Rússia, represálias russas, a incursão chechena no Daguestão em
janeiro de 1996 e a maciça ofensiva russa do início de 1996.
Conquanto as guerras de linha de fratura compartilhem das
características de longa duração, altos níveis de violência e ambivalência
ideológica que têm as outras guerras comunitárias, elas também diferem
destas em dois pontos. Primeiro, as guerras comunitárias podem ocorrer
entre grupos étnicos, religiosos, raciais ou lingüísticos. Entretanto, como
a religião é a principal característica definitória das civilizações, as guerras
de linha de fratura são travadas quase sempre entre povos de religiões
diferentes. Alguns analistas minimizam a importância desse fator. Eles
apontam, por exemplo, para a etnia e o idioma compartilhados, a coexis-
tência pacífica no passado e a grande quantidade de casamentos entre
sérvios e muçulmanos na Bósnia, e descartam o fator religioso com

322
referências ao "narcisismo das pequenas diferenças" de Freud. 21 Essa
avaliação, porém, está baseada numa miopia secular. Milênios de História
da Humanidade demonstraram que a religião não é uma "pequena diferen-
ça", mas sim talvez a diferença mais profunda que possa existir entre as
pessoas. A freqüência, a intensidade e a violência das guerras de linha de
fratura são muito aumentadas pelas crenças em deuses diferentes.
Segundo, as outras guerras comunitárias tendem a ser pluralistas e,
em conseqüência, há relativamente pouca probabilidade de que se
alastrem e envolvam participantes adicionais. As guerras de linha de
fratura, ao contrário, são por definição travadas entre grupos que formam
parte de entidades culturais maiores. No conflito comunitário costumeiro,
o Grupo A está lutando contra o Grupo B, e os Grupos C, D e E não têm
razão alguma para se envolver, a menos que A ou B ataquem diretamente
os interesses de C, D ou E. Numa guerra de linha de fratura, ao contrário,
o Grupo Al está lutando contra o Grupo Bl e cada um deles tentará
expandir a guerra e mobilizar apoio de grupos afins da mesma civilização
-A2, A3, A4 e B2, B3 e B4-, e esses grupos, por sua vez, se identificarão
com seus afins em luta. A expansão dos meios de transporte e comuni-
cações do mundo moderno facilitou o estabelecimento dessas conexões
e, em conseqüência, a "internacionalização" dos conflitos de linha de
fratura. A migração criou diásporas em terceiras civilizações. As comuni-
cações facilitam a grupos em litígio apelarem por auxílio, e a seus grupos
afins tomarem conhecimento imediatamente do destino que estão tendo
aquelas partes em conflito. O encolhimento generalizado do mundo
habilita assim os grupos afins a proporcionar apoio moral, diplomático,
financeiro e material aos grupos em litígio - e torna muito mais difícil
não fazê-lo. Desenvolvem-se redes internacionais para prestar esse apoio,
e o apoio, por sua vez, dá sustentação aos participantes e prolonga o
conflito. Essa "síndrome de país-afim", para usar a expressão de H. D. S.
Greenways, é uma faceta fundamental das guerras de linha de fratura do
final do século XX. 22 De forma mais genérica, até mesmo pequenas doses
de violência entre pessoas de civilizações diferentes têm ramificações e
conseqüências que inexistem na violência intercivilizacional. Quando
pistoleiros sunitas mataram 18 fiéis xiitas numa mesquita em Karachi em
fevereiro de 1995, eles além disso perturbaram a paz na cidade e criaram
um problema para o Paquistão. Quando, exatamente um ano depois, um
colono judeu matou 29 muçulmanos que estavam rezando na Caverna
dos Patriarcas, em Hebron, ele perturbou a paz no Oriente Médio e criou
um problema para o mundo.
INCIDÊNCIA: AS FRONTEIRAS ENSANGÜENTADAS DO ISLÃ

Os conflitos comunitários e as guerras de linha de fratura fazem parte da


História e, segundo um levantamento, durante a Guerra Fria ocorreram
32 conflitos étnicos, inclusive as guerras de linha de fratura entre árabes
e israelenses, indianos e paquistaneses, muçulmanos e cristãos do Sudão,
budistas e tâmiles de Sri Lanka e xiitas e maronitas do Líbano. As guerras
de identidade constituíram cerca da metade de todas as guerras civis
durante as décadas de 40 e 50, porém representaram cerca de três quartos
das guerras civis durante as décadas seguintes, e a intensidade das
rebeliões envolvendo grupos étnicos triplicou entre o começo da década
de 50 e o final da de 80. 23 Entretanto, dada a abrangência predominante
da rivalidade entre as duas superpotências, esses conflitos, com algumas
notáveis exceções, atraíram relativamente pouca atenção e foram vistos
pelo prisma da Guerra Fria. Quando se encerrou a Guerra Fria, os
conflitos comunitários se tornaram mais proeminentes e, pode-se dizer,
mais importantes do que tinham sido anteriormente. Na realidade,
aconteceu algo muito parecido com um "surto" de conflitos étnicos.
Esses conflitos étnicos e guerras de linha de fratura não se dis-
tribuíram de maneira uniforme entre as civilizações do mundo. Os
principais embates se deram entre sérvios e croatas na antiga Iugoslávia
e entre budistas e hindus em Sri Lanka, enquanto que conflitos menos
violentos tiveram lugar entre grupos não-muçulmanos em outros pontos.
Contudo, a enorme maioria dos conflitos de linha de fratura ocorreram ao
longo dos limites sinuosos que, através da Eurásia e da África, separam os
muçulmanos dos não-muçulmanos. Enquanto, no nível global ou macro da
política mundial, o choque central das civilizações se situa entre o Ocidente
e o resto, no nível local ou micro, ele se situa entre o Islã e os outros.
Intensos antagonismos e conflitos violentos se espraiam entre povos
muçulmanos e não-muçulmanos em áreas localizadas. Na Bósnia, os
muçulmanos travaram uma guerra sangrenta e desastrosa com os sérvios
ortodoxos e se engajaram em outras ações violentas com os croatas
católicos. Em Kosovo, os muçulmanos albaneses padecem, descontentes,
sob a autoridade sérvia e mantêm seu próprio governo paralelo clandes-
tino, havendo grande expectativa ante a probabilidade de violência entre
os dois grupos. Os governos da Albânia e da Grécia estão às turras em
relação aos direitos de suas respectivas minorias no território da outra.
Os turcos e os gregos estão historicamente engalfinhados e seu relacio-
namento é dominado pelos conflitos em torno de Chipre, das reivin-
dicações incompatíveis de soberania no Mar Egeu e de seu poder militar
relativo. Em Chipre, os turcos muçulmanos e os gregos ortodoxos
mantêm Estados adjacentes hostis. No Cáucaso, a Turquia e a Armênia
são inimigos históricos, e os azeris e os armênios estão em guerra pelo
controle de Nagorno-Karabakh. No Cáucaso setentrional, há 200 anos,
os chechenos, os ingushes e outros povos muçulmanos lutam de forma
intermitente por sua independência da Rússia, uma luta que foi reiniciada
de forma sangrenta pela Rússia e pela Chechênia em 1994. Também
houve luta entre os ingushes e os ossécios ortodoxos. Na bacia do Volga,
os tártaros muçulmanos lutaram contra os russos no passado, e chegaram
atualmente a uma acomodação instável com a Rússia por uma soberania
limitada.
Durante todo o século XIX, a Rússia estendeu gradualmente, pela
força, seu controle sobre os povos muçulmanos da Ásia Central. Na
década de 80, os afegãos e os russos lutaram numa guerra de vulto e,
com a retirada russa, sua seqüência prossegue no Tadjiquistão, entre
forças russas, que apóiam o atual governo, e os insurgentes, em sua
maioria fundamentalistas islâmicos. Em Xinjiang, os uigures e outros
grupos muçulmanos lutam contra a sinificação e estão desenvolvendo
suas relações com seus afins étnicos e religiosos nas ex-repúblicas
soviéticas. No Subcontinente, o Paquistão e a Índia travaram três guerras,
uma insurreição muçulmana contesta a autoridade indiana em Caxemira,
imigrantes muçulmanos lutam contra povos tribais no Assam, e muçul-
manos e hindus se engajam periodicamente em distúrbios de rua e
violência por toda a Índia, em erupções alimentadas pela ascensão de
movimentos fundamentalistas em ambas as comunidades religiosas. Em
Bangladesh, os budistas protestam contra a discriminação pela maioria
muçulmana, enquanto que, em Myanmar, os muçulmanos protestam
contra a discriminação pela maioria budista. Na Malásia e na Indonésia,
periodicamente os muçulmanos fazem distúrbios de rua contra os
chineses, protestando contra seu domínio da economia. No sul da
Tailândia, grupos muçulmanos se envolveram numa insurreição intermi-
tente contra um governo budista, enquanto que, no sul das Filipinas, uma
insurreição muçulmana luta pela independência de um país e governo
católico. Na Indonésia, por outro lado, os timorenses orientais lutam
contra a repressão de um governo muçulmano.
No Oriente Médio, onde o conflito entre árabes e judeus na Palestina
data do estabelecimento da pátria judia, ocorreram quatro guerras entre
Israel e Estados árabes, e os palestinos estão engajados na intifada contra
a autoridade israelense. No Líbano, os cristãos maronitas travaram uma
guerra malsucedida contra os xiitas e outros muçulmanos. Na Etiópia, os
amharas ortodoxos reprimiram historicamente os grupos étnicos muçul-
manos e atualmente enfrentam uma insurreição dos oromos muçulma-
nos. Por todo o bolsão africano, vêm se desenrolando vários conflitos
entre povos árabes e muçulmanos ao norte e povos negros animistas-
cristãos ao sul. A mais sangrenta das guerras muçulmano-cristãs se
desenrola no Sudão, arrastando-se há décadas e tendo produzido
centenas de milhares de baixas. A vida política nigeriana foi dominada
pelo conflito entre fulani-hausa muçulmanos ao norte e as tribos cristãs
ao sul, com freqüentes distúrbios de rua, golpes e urna guerra de vulto.
No Chade, no Quênia e na Tanzânia, ocorreram lutas semelhantes entre
grupos muçulmanos e cristãos.
Em todos esses lugares, as relações entre os muçulmanos e os povos
de outras civilizações - católica, protestante, ortodoxa, hindu, chinesa,
budista, judaica - têm de modo geral sido antagônicas. A maioria dessas
relações tomou-se violenta em algum momento do passado e muitas
fie.aram violentas nos anos 90. Para onde quer que se olhe ao longo do
perímetro do Islã, os muçulmanos tiveram problemas para viver em paz
com seus vizinhos. Surge naturalmente a indagação de se esse padrão
de conflitos no final do século XX entre grupos muçulmanos e não-mu-
çulmanos também se aplica às relações entre grupos de outras civiliza-
ções. Na realidade, não. Os muçulmanos compõem cerca de um quinto
da população mundial, porém, nos anos 90, eles se envolveram mais em
violências entre grupos do que os povos de qualquer outra civilização.
As provas são avassaladoras.

1. Os muçulmanos participaram de 26 dos 50 conflitos etnopolíticos


no período de 1993-1994, analisado em profundidade por Ted
Robert Gurr (Quadro 10.1). Vinte desses conflitos ocorreram entre
grupos de civilizações diferentes, dos quais 15 foram entre muçul-
manos e não-muçulmanos. Em resumo, houve três vezes mais
conflitos intercivilizacionais envolvendo muçulmanos do que os
que ocorreram entre todas as civilizações não-muçulmanas. O
número de conflitos no seio do Islã também foi maior do que os
ocorridos dentro de qualquer outra civilização, incluindo os confli-
tos tribais na África. Em contraste com o Islã, o Ocidente se envolveu
em apenas dois conflitos intracivilizacionais e dois intercivilizacio-
nais. Os conflitos envolvendo muçulmanos também tenderam a ter
QUADRO 10.1
CONFLITOS ETNOPOLÍTICOS / 1993 - 1994
lntracivilizacional lntercivilizacional Total
Islã 11 15 26
Outros 19. 5 24
Total 30 20 50
•Dos quais 10 eram conflitos tribais na África.

Fonte: Ted Robert Gurr, "Peoples Against States: Ethnopolitical Conflict and lhe Ch~nging Wo~d System" [Povos
Contra Estados: Conflitos Etnopolíticos e o Sistema Mundial em Mutação], lntemat1ona/ Stud1es Qu~rterly, v. '.38
(setembro de 1994), pp. 347-78. Utilizei a classificação dos conflitos de. Gurr., exc~t~ .ªº ~ransf~r!r o confht~
sino-tibetano, que ele classifica como não-civilizacional, para a ?alegoria de .1nterc1v1hz~c1onal, ia que ele e
claramente um conflito entre os chineses han confucionistas e os tibetanos budistas lama1stas.

quantidade elevada de baixas. Dos seis nos quais Gurr avalia que
200 mil ou mais pessoas foram mortas, três (Sudão, Bósnia, Timor
Oriental) foram entre muçulmanos e não-muçulmanos, dois (Somália,
Iraque-curdos) foram entre muçulmanos e apenas um (Angola)
envolveu apenas não-muçulmanos.
2. O New York Times identificou 48 lugares nos quais, em 1993,
estavam ocorrendo cerca de 59 conflitos étnicos. Na metade desses
lugares, muçulmanos estavam se batendo contra outros muçulma-
nos ou contra não-muçulmanos. Trinta e um dos 59 conflitos se
davam entre grupos de civilizações diferentes, e traçando um
paralelo com os dados de Gurr, dois terços (21) desses conflitos
intercivilizacionais eram entre muçulmanos e outros povos (Quadro
10.2).
3. Numa outra análise ainda, Ruth Leger Sivard identificou 29 guerras
(definidas como conflitos que envolviam mil ou mais mortos num
ano) em curso durante 1992. Nove dos 12 conflitos intercivilizacio-
nais foram entre muçulmanos e não-muçulmanos e, uma vez mais,
os muçulmanos estavam travando mais guerras do que os povos de
qualquer outra civilização. 24

QUADRO 10.2
CONFLITOS ÉTNICOS/ 1993
lntracivilizacional lntercivilizacional Total
Islã 7 21 28
Outros 21 • 10 31
Total 28 31 59
•Dos quais 10 eram conflitos tribais na África.

Fonte: New York Times, 07102193, pp. 1, 14.

2')"7
Portanto, três compilações diversas de dados produzem a mesma
conclµsão: no início dos anos 90, os muçulmanos estavam engajados em
mais violência entre grupos do que os não-muçulmanos, e de dois terços
a três quartos das guerras intercivilizacionais se travaram entre muçulma-
nos e não-muçulmanos. As fronteiras do Islã são sangrentas, como
também o são suas entranhas.•
A propensão muçulmana para o conflito violento também é in-
dicada pelo grau em que as sociedades muçulmanas são militarizadas.
Na década de 80, os países muçulmanos tinham proporções de forças
armadas (isto é, o número de militares por mil habitantes) e índices de
esforço militar (proporção das forças armadas ajustada à riqueza do país)
significativamente mais altos do que os de outros países. Em contraste,
os países cristãos tinham proporções de forças armadas e índices de
esforço militar significativamente mais baixos do que os de outros países.
A média das proporções de forças armadas e índices de esforço militar
dos países muçulmanos era aproximadamente o dobro da dos países
cristãos (Quadro 10.3). James Payne conclui que, "de modo muito claro,
há uma conexão entre o Islã e o militarismo". 25

QUADRO 10.3
MILITARISMO EM PAÍSES MUÇULMANOS E CRISTÃOS

Média da proporção das forças Média do esforço militar


armadas
Países muçulmanos (n =25) 11,8 17,7
Outros países (n =112) 7,1 12,3
Países cristãos (n =57) 5,8 8,2
Outros países (n =80) 9,5 16,9
Fonte: James L. Payne, Why Nations Arm [Por que as Nações se Armam] (Ox1ord: Basil Blackwell, 1989), pp.
125, 138·39. Os países muçulmanos e cristãos são aqueles em que mais de 80 por cento da população professa
a religião respectiva.

Os países muçulmanos também tiveram alta propensão a recorrer


à violência em crises internacionais, empregando-a para resolver 76 crises
de um total de 142 nas quais estiveram envolvidos entre 1928 e 1979. Em
25 casos, a violência foi o principal meio para lidar com a crise; em 51

• Nenhum comentário isolado no meu artigo na Foreign Ajfairs provocou mais comentários
críticos do que "o Islã tem fronteiras sangrentas". Formei esse juízo com base num
levantamento casual de conflitos intercivilizacionais. As provas quantitativas de todas as fontes
desinteressadas demon6tram, de modo conclusivo, sua validade.
crises, os países muçulmanos empregaram a violência em acréscimo a
outros meios. Quando empregaram a violência, os países muçulmanos
adotaram violência de alta intensidade, recorrendo a guerras plenas em
41 por cento dos casos em que se empregou violência e se engajando
em grandes choques em outros 38 por cento dos casos. Enquanto os
países muçulmanos recorreram à violência em 53,5 por cento de suas
crises, a violência foi empregada pelo Reino Unido em apenas 11,5 por
cento, pelos Estados Unidos em 17,9 por cento e pela União Soviética
em 28,5 por cento das crises em que cada um deles esteve envolvido.
Dentre as principais potências, apenas a propensão da China para a violência
excedeu a dos países muçulmanos: ela empregou a violência em 76,9 por
cento de suas crises. 26 A belicosidade e a violência muçulmanas são fatos
do final do século XX que nem muçulmanos nem não-muçulmanos
podem negar.

CAUSAS: HISTÓRIA, DEMOGRAFIA, POLÍTICA

O que causou o surto, no final do século XX, das guerras de linha de


fratura e o papel fundamental que tiveram os muçulmanos nesses
conflitos? Primeiro, essas guerras tinham suas raízes na História. A
violência intermitente de linha de fratura entre grupos civilizacionais
diferentes ocorreu no passado, e continuou existindo nas lembranças
atuais do passado, o que, por sua vez, gerou temores e inseguranças em
ambos os lados. Muçulmanos e hindus no Subcontinente, russos e
caucasianos no Cáucaso Setentrional, armênios e turcos no Transcáucaso,
árabes e judeus na Palestina, católicos, muçulmanos e ortodoxos nos
Bálcãs, russos e turcomanos na Ásia Central, cingaleses e tâmiles em Sri
Lanka, árabes e negros pela África afora: são todos eles relacionamentos
que, através dos séculos, envolveram alternâncias de coexistência des-
confiada e violência perversa. Um legado histórico de conflitos existe
para ser explorado e utilizado por aqueles que encontram razões para
isso. Nesses relacionamentos, a história está viva, pujante e aterrorizadora.
Entretanto, uma história de matanças intermitentes não explica por
si só por que a violência voltou a imperar no final do século XX. Afinal
de contas, como muitos ressaltaram, durante décadas, sérvios, croatas e
muçulmanos viveram muito pacificamente juntos na Iugoslávia. O mesmo
fizeram muçulmanos e hindus na Índia. Os muitos grupos étnicos e
religiosos coexistiram na União Soviética, com poucas exceções dignas
de nota criadas pelo governo soviético. Os tâmiles e os cingaleses

~?O
também viveram tranqüilamente numa ilha com freqüência descrita como
um paraíso tropical. A História não impediu que esses relacionamentos
relativamente pacíficos prevalecessem por consideráveis períodos de
tempo. Por copseguinte, a História não pode, por si só, explicar o
desmoronamento da paz. Outros fatores têm que se haver intrometido
nas últimas décadas do século XX. As mudanças na balança demográfica
foram um desses fatores. A expansão quantitativa de um grupo gera
pressões políticas, econômicas e sociais sobre outros grupos e induz
reações para contrabalançá-las. Mais importante ainda, ela produz pres-
sões militares sobre grupos menos dinâmicos demograficamente. o
colapso no começo da década de 70 da ordem constitucional que existia
havia 30 anos no Líbano foi, em grande parte, fruto do aumento
espetacular da população xiita em relação aos cristãos maronitas. Gary
Fuller mostrou que, em Sri Lanka, o auge da insurreição nacionalista
cingalesa em 1970 e da insurreição tâmil no final dos anos 80 coincidiu
exatamente com os anos em que o "bolsão de jovens" de 15 a 24 anos
de idade desses grupos excedeu os 20 por cento do total da população
do grupo 27 (ver Fig. 10.1). Um diplomata norte-americano que serviu em
'
Sri Lanka observou que os insurretos cingaleses tinham praticamente
todos menos de 24 anos de idade, e, segundo se informou, os Tigres
Tâmiles eram "singulares no fato de confiarem no que equivale a um
exército de crianças'', recrutando "meninos e meninas até de 11 anos de
idade", e os que morreram em combates "ainda nem eram adolescentes
quando morreram, apenas alguns com mais de 18 anos". 1be Economist
assinalou que os Tigres estavam conduzindo uma "guerra de menores
FIGURA 10.1
SRI lANKA: BoLSÕES DE JOVENS CINGALESES E TÃMILES

PO!t:entagem sobre o total da população. faixa etária 15-24

Insurreição cilgalesa Prilcipal dstúrbio de rua em Colombo


Ápice da insooaição tâmil. seternbro/1985
23
22

21

20
Nível crítico'
19

ffli~ M ro ~ ro n oo ~ oo 95 2000 05
'O nível crilic:o é o ponto no qual os jovens COll"espondem a 20% ou mais da população.
de idade".28 De modo semelhante, as guerras de linha de fratura entre
os russos e os povos muçulmanos ao sul foram alimentadas por grandes
diferenças no crescimento populacional. No início dos anos 90, a taxa
de fertilidade das mulheres na Federação Russa era de 1,5, enquanto que
nas ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central, predominantemente muçul-
manas, a taxa de fertilidade era de cerca de 4,4 e o índice de aumento
líquido da população (taxa bruta de natalidade menos taxa bruta de
mortandade) no final dos anos 80 era, nestas últimas, seis vezes maior
do que na Rússia.29 A Chechênia era um dos lugares mais densamente
povoados da Rússia, suas altas taxas de natalidade produzindo migrantes
e combatentes. De modo análogo, altas taxas de natalidade em Caxemira
e a migração do Paquistão para lá estimularam uma resistência renovada
à autoridade indiana.
Os complicados processos que levaram a guerras intercivilizacionais
na antiga Iugoslávia tiveram muitas causas e muitos pontos de partida.
Entretanto, o fator mais importante, tomado isoladamente, que levou a
esses conflitos, provavelmente foi a mudança demográfica que ocorreu
em Kosovo. Kosovo era uma província autônoma dentro da República
Sérvia, com os poderes de facto das seis repúblicas da Iugoslávia, exceto
o direito à secessão. Em 1961, sua população se compunha de 67 por cento
de albaneses muçulmanos e 24 por cento de sérvios ortodoxos. Contudo,
a taxa de natalidade albanesa era a mais alta da Europa, e Kosovo se tomou
a área de maior densidade populacional da Iugoslávia. Correspondendo a
quatro por cento do território iugoslavo, Kosovo tinha oito por cento de
iugoslavos. Ao se chegar aos anos 80, perto de 50 por cento dos albaneses
tinham menos de 20 anos de idade. Defrontados com essa quantidade,
os sérvios emigraram de Kosovo em busca de oportunidades econômicas
em Belgrado e em outros lugares. Em conseqüência, em 1991 Kosovo tinha
90 por cento de muçulmanos e 10 por cento de sérvios.30 Não obstante, os
sérvios consideravam Kosovo como sua "terra santa", ou ''Jerusalém", o local,
entre outras coisas, da grande batalha de 28 de junho de 1389, quando
foram derrotados pelos turcos otomanos e, como resultado, padeceram
o regime otomano durante quase cinco séculos.
No final de década de 80, a mudança na balança demográfica levou
os albaneses a exigirem que Kosovo fosse elevada à condição de
república iugoslava. Os sérvios e o governo iugoslavo resistiram, teme-
rosos de que uma vez que tivesse o direito à secessão, Kosovo se
separaria da Iugoslávia e possivelmente se uniria à Albânia. Em março
de 1981, albaneses irromperam em protestos e distúrbios de rua com
reivindicações pelo status de república. Segundo os sérvios, intensifica-
ram-se então a discriminação, a perseguição e a violência contra os
sérvios. Um croata protestante assinalou que "em Kosovo, a partir do
final da década de 70, (. .. ) ocorreram numerosos incidentes violentos,
que incluíram danos à propriedade, perda de emprego, provocações,
estupros, brigas e assassinatos". Em conseqüência, "os sérvios alegaram
que a ameaça a eles tinha proporções genocidas e que não iriam mais
tolerar esse estado de coisas". As agruras dos sérvios de Kosovo
repercutiram em outras áreas da Sérvia e, em 1986, geraram uma
declaração de 200 destacados intelectuais, personalidades políticas,
líderes religiosos e oficiais das forças armadas sérvios, inclusive os
editores da revista de oposição liberal Praxis, exigindo do governo
medidas enérgicas para pôr fim ao genocídio dos sérvios em Kosovo. À
luz de qualquer definição razoável de genocídio, essa acusação era muito
exagerada, embora, segundo um observador estrangeiro simpático aos
albaneses, "durante os anos 80, os nacionalistas albaneses fossem
responsáveis por uma quantidade de ataques violentos contra os sérvios
e pela destruição de algumas propriedades de sérvios".31
Tudo isso exacerbou o nacionalismo sérvio, e Slobodan Milosevic
vislumbrou sua oportunidade. Em 1987, ele pronunciou importante
discurso em Kosovo, apelando aos sérvios para que resgatassem sua
própria terra e sua história. "Imediatamente, um grande número de
sérvios - comunistas, não-comunistas e até anticomunistas - começou
a se congregar ao seu redor, decididos não só a proteger a minoria sérvia
em Kosovo, mas também a reprimir os albaneses e transformá-los em
cidadãos de segunda classe. Em pouco tempo, Milosevic estava sendo
reconhecido como líder nacional."3 2 Dois anos depois, Milosevic retor-
nou a Kosovo, junto com de um a dois milhões de sérvios, para celebrar
o 600º aniversário da grande batalha que simbolizava sua guerra ininter-
rupta contra os muçulmanos.
Os temores e o nacionalismo sérvios, provocados pela quantidade
e poder crescentes dos albaneses, foram acentuados ainda mais pelas
mudanças demográficas na Bósnia. Em 1961, os sérvios constituíam 43
por cento e os muçulmanos 26 por cento da população da Bósnia-Her-
zegovina. Ao se chegar a 1991, as proporções eram quase exatamente o
oposto: os sérvios tinham caído para 31 por cento e os muçulmanos
tinham subido para 44 por cento. Durante esses 30 anos, os croatas
passaram de 22 por cento para 17 por cento. A expansão étnica de um
grupo levou à limpeza étnica do outro. "Por que matamos meninos?",
perguntou em 1992 um combatente sérvio, e ele próprio respondeu:
"Porque um dia eles irão crescer e nós teremos que matá-los então." De
forma menos brutal, as autoridades croatas na Bósnia agiram a fim de
impedir que suas localidades fossem "ocupadas demograficamente"
pelos muçulmanos.33
Alterações de 20 por cento ou mais nas balanças demográficas e
nos bolsões de jovens respondem por muitos dos conflitos interciviliza-
cionais do final do século XX. Entretanto, elas não explicam todos eles.
As lutas entre sérvios e croatas, por exemplo, não podem ser explicadas
pela demografia e, aliás, só parcialmente pela História, já que esses dois
povos viveram juntos numa forma relativamente pacífica até que os
utachis croatas trucidaram sérvios na II Guerra Mundial. Aqui e ali a
política também foi uma das causas da luta. O colapso dos impérios
austro-húngaro, otomano e russo ao final da 1 Guerra Mundial estimulou
os conflitos étnicos e civilizacionais entre os povos e Estados que os
sucederam. O final dos impérios britânico, francês e holandês produziu
resultados semelhantes depois da II Guerra Mundial. A queda dos
regimes comunistas na União Soviética e na Iugoslávia fez o mesmo no
final da Guerra Fria. As pessoas, que não mais podiam se identificar como
comunistas, cidadãos soviéticos ou iugoslavos, necessitavam deses-
peradamente encontrar novas identidades e as acharam nos velhos
recursos habituais da etnia e da religião. A ordem opressora, mas pacífica,
dos Estados devotados à proposição de que não há deus foi substituída
pela violência dos povos devotados a deuses diferentes.
Esse processo foi exacerbado pela necessidade das entidades
políticas que surgiam de adotar procedimentos democráticos. Quando a
União Soviética e a Iugoslávia começaram a se desagregar, as elites que
estavam no poder não organizaram eleições nacionais. Se o tivessem
feito, os líderes políticos teriam competido pelo poder no centro e
poderiam ter tentado desenvolver apelos multiétnicos e multicivilizacio-
nais ao eleitorado, formando assim no Parlamento coligações majoritárias
de composição análoga. Em vez disso, tanto na União Soviética como na
Iugoslávia, as eleições foram primeiramente organizadas no âmbito das
repúblicas, o que criou o incentivo irresistível para que os líderes políticos
fizessem campanha contra o centro, apelassem para o nacionalismo
étnico e promovessem a independência de suas repúblicas. Até mesmo
dentro da Bósnia o eleitorado votou segundo linhas estritamente étnicas
nas eleições de 1990. O Partido Reformista, multiétnrco, e o antigo Partido
Comunista obtiveram cada um menos de 10 por cento dos votos. Os

333
totais de votos recebidos pelo Partido Muçulmano de Ação Democrática
(34 por cento), pelo Partido Democrático Sérvio (30 por cento) e pela
União Democrática Croata (18 por cento) reproduziram as proporções
de muçulmanos, sérvios e croatas na população. As primeiras eleições
razoavelmente disputadas em quase todas as ex-repúblicas soviéticas e
iugoslavas foram ganhas por líderes políticos que apelaram para os
sentimentos nacionalistas e prometeram ação enérgica para defender sua
nacionalidade contra outros grupos étnicos. A competição eleitoral
encoraja os chamamentos nacionalistas e, desse modo, promove a
intensificação dos conflitos de linha de fratura e as guerras de linha de
fratura. Quando, na frase de Bogdan Denitch, "etnos se toma demos',34
o resultado é polemos (guerra). Posteriormente, porém, quando uma ou
mais partes em guerra se exaurem, os eleitores podem favorecer os líderes
políticos que promovam as negociações e uma acomodação, como
aconteceu nas eleições de 1994 em Sri Lanka.
Persiste a indagação de por que, quando o século XX chega ao fim,
os muçulmanos estão envolvidos em muito mais violência intergrupos
do que os povos de outras civilizações. Será que sempre foi assim? No
passado, cristãos mataram cristãos e outras pessoas em quantidades
maciças. Avaliar a propensão para a violência das civilizações através da
História exigiria imensa pesquisa, que é impossível aqui. Contudo, o que
se pode fazer é identificar as possíveis causas da atual violência de grupo
dos muçulmanos, tanto dentro do Islã como fora dele, e distinguir entre
aquelas causas que explicam uma propensão maior para os conflitos de
grupos através da História, quando ela tiver existido, daquelas que
explicam uma propensão assim no final do século XX. Seis causas
possíveis se apresentam. Três delas explicam apenas a violência entre
muçulmanos e não-muçulmanos, e três explicam tanto essa como a
violência interna do Islã. Três também explicam apenas a propensão
contemporânea dos muçulmanos para a violência, enquanto as outras
três explicam essa e uma propensão muçulmana histórica, caso ela exista.
Entretanto, se inexiste essa propensão histórica, então suas supostas
causas, que não são capazes de explicar uma propensão histórica
inexistente também, supõe-se, não explicam a comprovada propensão
contemporânea dos muçulmanos para a violência de grupo. Esta última
só pode ser explicada por causas do século XX que não existiam nos
séculos anteriores (Quadro 10.4).
Em primeiro lugar, há quem sustente que o Islamismo foi, desde o
seu começo, uma religião da espada e que ele glorifica as virtudes
QUADRO 10.4
POSSÍVEIS CAUSAS DA PROPENSÃO MUÇULMANA PARA O CONFLITO

Conflito Extramuçulmano I Conflito Intra e


Muçulmano Extramuçulmano

Conflitos históricos e Proximidade Militarismo


contemporâneos lndigestabilidade
Conflitos contemporâneos Condição de vítima Bolsão demográfico
Inexistência de Estado-núcleo

militares. O Islamismo se originou em meio a "tribos beduínas nômades


sempre em guerra", e "essa origem violenta está estampada na fundação
do Islamismo. O próprio Maomé é recordado como um guerreiro
empedernido e um hábil comandante militar" .35 (Ninguém diria o mesmo
de Cristo ou de Buda.) Argumenta-se que as doutrinas do Islamismo
ditam a guerra contra os infiéis e, quando a expansão inicial do Islã se
exauriu, os grupos muçulmanos, muito ao contrário da doutrina, pas-
saram a lutar entre si. A proporção da fitna, ou conflitos internos, para
a jihad mudou de forma espetacular em favor da primeira. O Corão e
outros textos do credo muçulmano contêm poucas proibições à violência,
e não há na doutrina e na prática muçulmanas uma concepção de
não-violência.
Em segundo lugar, desde as suas origens na Arábia, o Islamismo se
espalhou logo pelo Norte da África e grande parte do Oriente Médio e,
mais tarde, pela Ásia Central, pelo Subcontinente e pelos Bálcãs. Essa
expansão pôs os muçulmanos em contato direto com muitos povos
diferentes, que foram conquistados e convertidos, e o legado desse
processo persiste. Na esteira das conquistas otomanas nos Bálcãs, muitas
vezes os urbanizados eslavos do Sul se converteram ao Islamismo,
enquanto que os camponeses das zonas rurais não se converteram, e
assim nasceu a distinção entre os bósnios muçulmanos e os sérvios
ortodoxos. Inversamente, a expansão do Império Russo até o Mar Negro,
o Cáucaso e a Ásia Central colocou-o em conflitos ininterruptos durante
vários séculos com vários povos muçulmanos. O patrocínio pelo Ociden-
te, no auge do seu poderio em relação ao Islã, de uma pátria judaica no
Oriente Médio lançou a base para um continuado antagonismo arábico-
israelense. A expansão por terra de muçulmanos e não-muçulmanos
resultou assim em que muçulmanos e não-muçulmanos vivam em íntima
proximidade física através de toda a Eurásia. Em contraste, a expansão
do Ocidente por mar em geral não levou os povos ocidentais a viverem
em proximidade territorial de povos não-ocidentais, que ou ficaram
submetidos à autoridade da Europa ou, com exceção da África do Sul,
foram praticamente dizimados pelos colonizadores ocidentais.
Uma terceira possível fonte de conflito entre muçulmanos e não-
muçulmanos envolve o que um estadista, referindo-se a seu próprio país,
denominou de "indigestibilidade" dos muçulmanos. Entretanto a indiges-
tibilidade funciona nos dois sentidos: os países muçulmanos têm proble-
mas com as minorias não-muçulmanas comparáveis aos que os países
não-muçulmanos têm com minorias muçulmanas. Mais até do que o
Cristianismo, o Islamismo é uma fé absolutista. Ela funde religião e
política e traça uma linha nítida entre aqueles do Dar al-Jslam e aqueles
do Dar al-harb. Em conseqüência, confucianos, budistas, hindus, cristãos
ocidentais e cristãos ortodoxos têm menos dificuldade para se adaptar
uns aos outros e viver uns com os outros do que qualquer deles tem para
se adaptar aos muçulmanos e viver com os muçulmanos. Os chineses
étnicos, por exemplo, são uma minoria economicamente predominante
na maioria dos países do Sudeste Asiático. Eles foram assimilados com
êxito nas sociedades da Tailândia budista e das Filipinas católicas;
praticamente não há exemplos significativos de violência antichinesa por
parte dos grupos majoritários nesses países. Em contraste, ocorreram
distúrbios de rua e/ou violência antichinesa na Indonésia muçulmana e
na Malásia muçulmana, e o papel dos chineses nessas sociedades
continua sendo uma questão potencialmente delicada e explosiva, de
uma maneira que não se observa na Tailândia nem nas Filipinas.
Militarismo, indigestibilidade e proximidade de grupos não-muçul-
manos são características persistentes do Islã, e poderiam explicar a
propensão muçulmana para o conflito ao longo da História, se for o caso.
Três outros fatores temporariamente limitados poderiam contribuir para
essa propensão no final do século XX. Uma explicação, exposta por
muçulmanos, é a de que o imperialismo ocidental e a sujeição de
sociedades muçulmanas nos séculos XIX e XX produziram uma imagem
de debilidade militar e econômica muçulmana e, por conseguinte,
encorajam os grupos não-islâmicos a encarar os muçulmanos como um
alvo atraente. Segundo esse raciocínio, os muçulmanos são vítimas de
um preconceito muito difundido, comparável ao anti-semitismo que
historicamente permeou as sociedades ocidentais. Akbar Ahmed afirma
que grupos muçulmanos como os palestinos, os bósnios, os caxemiren-
ses e os chechenos são como "os peles-vermelhas, grupos deprimidos,
destituídos de dignidade, presos em reservas extraídas de suas terras
ancestrais".36 Contudo, o argumento dos muçulmanos como vítimas não
explica os conflitos entre maiorias muçulmanas e minorias não-muçul-
manas em países como Sudão, Egito, Irã e Indonésia.
Um fator mais convincente que possivelmente explica os conflitos
tanto intra como extra-islâmicos é a inexistência de um ou mais Estados-
núcleos no Islã. Os países que aspiram a ser líderes do Islã, como a Arábia
Saudita, o Irã, o Paquistão, a Turquia e, potencialmente, a Indonésia,
competem por influência no mundo muçulmano. Nenhum deles está
numa posição forte para mediar os conflitos dentro do Islã. E nenhum
deles é capaz de atuar com autoridade em nome do Islã ao lidar com
conflitos entre grupos muçulmanos e não-muçulmanos.
Finalmente, e de maior importância, a explosão demográfica nas
sociedades muçulmanas e a disponibilidade de grande quantidade de
homens freqüentemente desempregados, entre as idades de 15 e 30 anos,
é uma fonte natural de instabilidade e violência, tanto no seio do Islã
como contra não-muçulmanos. Quaisquer outras causas podem estar
operando, mas esse fator sozinho muito serviria para explicar a violência
nos anos 80 e 90. O envelhecimento dessa geração de filhotes de tigre
ao se chegar à terceira década do século XXI e o desenvolvimento
econômico. das sociedades muçulmanas, se e quando ele ocorrer,
poderiam conseqüentemente levar a uma redução significativa da pro-
pensão muçulmana para a violência e, por conseguinte, a uma diminui-
ção geral da freqüência e intensidade das guerras de linha de fratura.
CAPÍTULO 11

A Dinâmica das Guerras


de Linha de Fratura

IDENTIDADE: O AUMENTO DA CONSCIÊNCIA CIVILIZACIONAL


s guerras de linha de fratura passam por processos de intensificação,

A expansão, contenção, interrupção e, raramente, solução. Esses


processos geralmente começam em forma seqüencial, porém muitas
vezes também se superpõem e podem ser repetidos. Uma vez iniciadas, as
guerras de linha de fratura, tal como outros conflitos comunitários, tendem
a adquirir vida própria e a se desenvolver num padrão de ação e reação.
Identidades que anteriormente tinham sido múltiplas e descontraídas pas-
sam a ser intensas e enrijecidas - é muito apropriado que os conflitos
comunitários sejam denominados "guerras de identidade". 1 À medida que
a violência aumenta, as questões que estavam inicialmente em pauta tendem
a ser redefinidas de modo mais exclusivo como "nós" contra "eles", e
aumentam a coesão e dedicação do grupo. Os líderes políticos ampliam e
aprofundam seus apelos a lealdades étnicas e religiosas, e a consciência da
civilização se reforça em relação a outras identidades. Surge uma "dinâmica
de ódio", comparável ao "dilema da segurança" nas relações internacionais,
na qual os temores, a desconfiança e o ódio recíprocos se alimentam
mutuamente. 2 Cada lado dramatiza e amplia a distinção entre as forças
da virtude e as forças do mal, e acaba tentando transformar essa distinção
na que irá ser a definitiva, entre a rapidez e a morte.
À medida que as revoluções evoluem, os moderados, os girondinos
e os mencheviques perdem para os radicais, os jacobinos e os bolchevi-
ques. Um processo análogo tende a ocorrer nas guerras de linha de
fratura. Os moderados, que têm metas mais limitadas, como autonomia
em vez de independência, não as atingem através da negociação, que
quase sempre fracassa inicialmente, e são suplementados ou suplantados
por radicais dedicados a atingir metas mais extremadas através da
violência. No conflito moro-filipino, o principal grupo insurreto, a Frente
Moro de Libertação Nacional, foi primeiro suplementada pela Frente
Moro Islâmica de Libertação, que tinha uma posição mais extremada, e
depois por Abu Sayyaf, que era ainda mais extremado e rejeitou os
cessar-fogo que outros grupos haviam negociado com o governo filipino.
No Sudão, durante a década de 80, o governo adotou posições fun-
damentalistas islâmicas cada vez mais extremadas e, no começo dos anos
90, a insurreição cristã se rachou, com um novo grupo, o Movimento de
Independência do Sudão Meridional, advogando a independência em
vez de apenas a autonomia. No conflito contínuo entre israelenses e
árabes, à medida que a Organização de Libertação Palestina, da maioria,
se movia no sentido das negociações com o governo israelense, o Hamas,
da Irmandade Muçulmana, entrou em disputa com ela pela lealdade dos
palestinos. Simultaneamente, o engajamento do governo israelense em
negociações gerou protestos e violência por parte de grupos religiosos
extremados em Israel. Quando o conflito checheno com a Rússia se
intensificou em 1992-93, o governo Dudayev passou a ser dominado
"pelas facções mais radicais dos nacionalistas chechenos que se opunham
a qualquer acomodação com Moscou, e as forças mais moderadas foram
empurradas para a oposição". No Tadjiquistão ocorreu uma alteração
semelhante. "Quando o conflito entrou numa escalada durante 1992, os
grupos nacionalistas e democratas tadjiques gradualmente cederam
influência para os grupos fundamentalistas islâmicos, que haviam tido
mais êxito na mobilização dos pobres da zona rural e dos jovens
descontentes nas áreas urbanas. A mensagem fundamentalista islâmica
também se tornou progressivamente mais radicalizada, à medida que
emergiam líderes mais jovens para contestar a hierarquia religiosa mais
tradicional e pragmática." Um dos líderes tadjiques declarou: "Estou
fechando o dicionário da diplomacia. Estou começando a usar a lingua-
gem do campo de batalha, que é a única apropriada, dada a situação
criada pela Rússia na minha pátria."3 Na Bósnia, no seio do Partido
Muçulmano de Ação Democrática (SDA), a facção nacionalista mais
extremada, liderada por Alija Izetbegovic, passou a ter mais influência
do que a facção mais tolerante, de orientação multicultural, liderada por
Haris Silajdzic. 4
A vitória dos extremistas não é necessariamente permanente. A
violência extremista não tem maior probabilidade do que a acomodação
moderada de pôr termo a uma guerra de linha de fratura. À medida que
aumentam os custos em mortes e destruição, com poucos resultados para
serem mostrados em troca, há probabilidade de que reapareçam os
moderados de cada lado, mais uma vez apontando a "falta.de sentido"
de tudo isso e instando para que se faça outra tentativa de terminar o
conflito através de negociações.
No curso da guerra, as identidades múltiplas se desvanecem e a
identidade mais relevante em relação ao conflito passa a predominar.
Essa identidade quase sempre é definida pela religião. Psicologicamente,
a religião proporciona a justificativa mais tranqüilizadora e revigorante
para a luta contra as forças "sem deus", que são vistas como ameaçadoras.
Em termos práticos, a comunidade religiosa ou civilizacional é a comu-
nidade mais ampla à qual pode recorrer, em busca de apoio, o grupo
envolvido no conflito. Se, numa guerra local entre duas tribos africanas,
uma tribo puder se definir como muçulmana e a outra como cristã, a
primeira pode ter a esperança de ser reforçada por dinheiro saudita,
mujahedfns afegãos e armas e assessores militares iranianos, enquanto
que a segunda pode procurar ajuda econômica e humanitária ocidental
e apoio político e diplomático de governos ocidentais. A menos que um
grupo possa fazer como os muçulmanos da Bósnia e se apresentar, de
modo convincente, como vítima de genocídio e com isso suscitar apoio
do Ocidente, ele só pode esperar receber assistência significativa de seus
afins civilizacionais, e assim tem sido, com exceção dos muçulmanos da
Bósnia. As guerras de linha de fratura são, por definição, guerras locais
entre grupos locais com conexões mais amplas, e, portanto, promovem
as identidades civilizacionais entre os que delas participam.
O fortalecimento de identidades civilizacionais ocorreu entre parti-
cipantes de guerras de linha de fratura de outras civilizações, mas
aconteceu com especial intensidade entre muçulmanos. Uma guerra de
linha de fratura pode ter origem em conflitos de família, clã ou tribo, mas
como as identidades no mundo muçulmano tendem a ter o formato de U,
à medida que a luta progride os participantes muçulmanos logo buscam
ampliar sua identidade e apelar para todo o Islã. Até mesmo um antifun-
damentalista secularista como Saddam Hussein, quando engajado num
conflito com o Ocidente, rapidamente adota uma identidade muçulmana
e tenta congregar apoio através de toda a ummah. Um ocidental assinalou
que, de modo análogo, o governo do Azerbaijão recorreu ao "trunfo
islâmico". No Tadjiquistão, numa guerra que começou como um conflito
regional, os insurretos cada vez mais definiram sua causa como a causa
do Islã. Nas guerras do século XIX entre os povos do Cáucaso Setentrional
e os russos, Shamil se intitulou um fundamentalista islâmico e uniu
dezenas de grupos étnicos e lingüísticos "com base no Islamismo e na
resistência à conquista russa". Nos anos 90, Dudayev capitalizou sobre o
Ressurgimento Islâmico que tinha ocorrido no Cáucaso na década de 80
para adotar uma estratégia semelhante. Ele recebeu o apoio de sacerdotes
muçulmanos e de partidos fundamentalistas islâmicos, fez seu juramento
de posse sobre o Corão (do mesmo modo que Yeltsin o fez sobre a
Bíblia) e, em 1994, propôs que a Chechênia se tornasse um Estado
islâmico governado segundo a sharl'a. As tropas chechenas usavam
lenços verdes, "inscritos com a palavra 'Gavazaf, que quer dizer guerra
santa em checheno", e gritavam "Allahu Akbar" quando se lançavam ao
combate.5 De maneira semelhante, a autodefinição de muçulmanos de
Caxemira mudou de uma identidade regional que abrangia muçulmanos,
hindus e budistas, ou uma identificação com o secularismo indiano, para
uma terceira identidade que se refletia "na ascensão do nacionalismo
muçulmano em Caxemira e na difusão de valores fundamentalistas
islâmicos transnacionais, que fizeram com que os muçulmanos caxemi-
renses se sentissem parte tanto do Paquistão islâmico como do mundo
islâmico". A insurreição de 1989 contra a Índia foi originariamente
liderada por uma organização "relativamente secular", apoiada pelo
governo paquistanês. O apoio do Paquistão depois passou para grupos
fundamentalistas islâmicos, que passaram a predominar. Esses grupos
incluíam "insurretos convictos" que pareciam "dedicados a prosseguir na
sua jihad por si mesma, qualquer que fosse a esperança e o desenlace".
Um outro observador informou que "os sentimentos nacionalistas foram
acentuados pelas diferenças religiosas; a ascensão mundial da militância
islâmica deu estímulo aos insurretos caxemirenses e erodiu a tradição de
tolerância hindu-muçulmana da Caxemira".6
Um acirramento espetacular de identidades civilizacionais ocorreu
na Bósnia, especialmente em sua comunidade muçulmana. Historica-
mente, as identidades comunitárias na Bósnia não foram fortes: sérvios,
croatas e muçulmanos viviam juntos pacificamente como vizinhos, eram
comuns os casamentos entre eles, as identificações religiosas eram

2Á1
tênues. Dizia-se que os muçulmanos eram bósnios que não iam à
mesquita, os croatas eram bósnios que não iam à catedral e os sérvios
eram bósnios que não iam à igreja ortodoxa. Contudo, quando a
identidade iugoslava, mais genérica, se desfez, essas descontraídas
identidades religiosas adquiriram nova relevância e, quando os combates
começaram, intensificaram-se. O multicomunitarismo se evaporou e cada
grupo se identificou cada vez mais com sua comunidade cultural ampla,
definindo-se em termos religiosos. Os sérvios da Bósnia se tomaram
nacionalistas sérvios extremados, identificando-se com a Grande Sérvia,
a Igreja Ortodoxa Sérvia e toda a comunidade ortodoxa. Os croatas da
Bósnia passaram a ser os mais fervorosos nacionalistas croatas, se
consideraram cidadãos da Croácia, acentuaram seu Catolicismo e, junta-
mente com os croatas da Croácia, sua identidade com o Ocidente católico.
A mudança dos muçulmanos no sentido da consciência civilizacio-
nal foi ainda mais marcada. Até que a guerra começasse, os muçulmanos
da Bósnia eram profundamente seculares em suas concepções, se viam
como europeus e eram os mais firmes defensores de uma sociedade e
de um Estado bósnios multiculturais. Entretanto, isso começou a mudar
com o esfacelamento da Iugoslávia. Tal como os croatas e os sérvios, nas
eleições de 1990, os muçulmanos repudiaram os partidos multicomuni-
tários, votando maciçamente pelo Partido Muçulmano de Ação Demo-
crática (SDA), liderado por Izetbegovic. Trata-se de um muçulmano
praticante, posto na prisão por seu ativismo fundamentalista islâmico pelo
governo comunista, que num livro - 1be Islamic Declaration [A
Declaração Islâmica]-, publicado em 1970, sustentou "a incompatibili-
dade do Islamismo com sistemas não-islâmicos. Não pode haver nem
paz nem coexistência entre a religião islâmica e as instituições sociais e
políticas não-islâmicas". Quando o movimento islâmico for suficiente-
mente forte, ele tem que assumir o poder e criar uma república islâmica.
Nesse novo Estado, é particularmente importante que a educação e a
mídia "estejam nas mãos de pessoas cujas autoridade intelectual e moral
islâmica sejam indiscutíveis" .7
Quando a Bósnia ficou independente, Izetbegovic promoveu um
Estado multiétnico, no qual os muçulmanos seriam o grupo dominante,
embora sem conseguir ser maioria. Entretanto, ele não era a pessoa para
resistir à islamização de seu país produzida pela guerra. Ele nunca
repudiou publicamente o que escrevera em 1be Islamic Declaration, o
que gerou temores entre os não-muçulmanos. À medida que prosseguia
a guerra, sérvios e croatas da Bósnia se mudaram das áreas controladas

2/.'"l
pelo governo bósnio, e aqueles que permaneceram nelas se viram
gradualmente excluídos dos empregos desejáveis e de participação nas
instituições sociais. "O Islamismo adquiriu maior importância no seio da
comunidade muçulmana nacional e (. .. ) uma forte identidade nacional
0

muçulmana se tomou parte da política e da religião." O nacionalismo


muçulmano, em contraposição ao nacionalismo multicultural bósnio, pas-
sou a ser cada vez mais expresso na mídia. O ensino religioso se expandiu
nas escolas e os novos livros didáticos enfatizavam os benefícios do regime
otomano. O idioma bósnio foi promovido como distinto do servo-croata, e
mais e mais palavras turcas e árabes foram a ele incorporadas. Os
funcionários do governo atacavam os casamentos mistos e a transmissão de
música "agressora" ou sérvia. O governo incentivou a religião islâmica e deu
preferência aos muçulmanos nas admissões e promoções de pessoal. Mais
importante ainda, o exército bósnio ficou islamicizado, com os muçul-
manos constituindo mais de 90 por cento de seus efetivos em 1995. Um
número cada vez maior de unidades do exército se identificou com o
Islamismo, se dedicou a práticas islâmicas e fazia uso de símbolos
muçulmanos, com as unidades de elite sendo as mais profundamente
islamicizadas e em maior quantidade. Essa tendência levou a um protesto
por cinco membros (dos quais dois croatas e dois sérvios) da Presidência
da Bósnia a Izetbegovic, que o rejeitou, e levou também à renúncia em
1995 do primeiro-ministro Haris Silajdzic, 8 de orientação multicultural.
No campo político, o partido muçulmano de Izetbegovic, o SDA,
ampliou seu controle sobre o Estado e a sociedade bósnios. Ao se chegar
a 1995, ele dominava "o exército, o serviço público e as empresas
estatais". Segundo se informou, "os muçulmanos que não pertencem ao
partido, para não mencionar os não-muçulmanos, têm dificuldade para
encontrar bons empregos". Os que criticavam o partido acusaram-no de
"se haver transformado no veículo de um autoritarismo islâmico marcado
pelos hábitos do governo comunista".9 Um outro observador informou
que, de forma geral,

o nacionalismo muçulmano está ficando mais extremado. Atualmente


ele não leva absolutamente em consideração outras sensibilidades
nacionais. Ele é propriedade, privilégio e instrumento político da
recém-predominante nação muçulmana.(. .. )
O principal resultado desse novo nacionalismo muçulmano é um
movimento em direção à homogeneização nacional. (. .. )
Cada vez mais, o fundamentalismo islâmico também está ganhando
preponderância na determinação dos interesses nacionais muçulma-
nos.10
A intensificação da identidade religiosa produzida pela guerra e pela
limpeza étnica, as preferências de seus líderes e o apoio e pressão de
outros Estados muçulmanos estavam, de forma lenta mas clara,
transformando a Bósnia, da Suíça dos Bálcãs, no Irã dos Bálcãs.
Psicológica e pragmaticamente, cada lado tem incentivos para
enfatizar não só sua própria identidade civilizacional como também a do
outro lado. Em sua guerra local, ele se vê combatendo não apenas um
outro grupo étnico local, mas uma outra civilização. A ameaça é assim
ampliada e acentuada pelos recursos de uma grande civilização, e a
derrota tem conseqüências não só para o grupo como para toda a sua
própria civilização. Daí a necessidade imperiosa para sua própria civili-
zação de se congregar em seu apoio no conflito. A guerra local passa a
ser redefinida como uma guerra de religiões, um choque de civilizações,
pleno de conseqüências para enormes segmentos da Humanidade. No
começo dos anos 90, quando a religião e a Igreja Ortodoxa voltaram a
ser elementos fundamentais da identidade nacional russa, que "es-
premeram outros credos russos, dos quais o Islamismo é o mais
importante", 11 os russos concluíram que era do seu interesse classificar
a guerra entre clãs e regiões no Tadjiquistão e a guerra com a Chechênia
como partes de um choque mais amplo, que remontava a séculos atrás,
entre a Ortodoxia e o Islamismo, com os seus adversários locais agora
dedicados ao fundamentalismo islâmico e à jihad e representando
Islamabad, Teerã, Riade e Ancara.
Na antiga Iugoslávia, os croatas se consideram os valorosos guar-
diães da fronteira do Ocidente contra o ataque da Ortodoxia e do
Islamismo. Os sérvios reconhecem como seus inimigos não apenas os ,.;

croatas e os muçulmanos da Bósnia, mas "o Vaticano" e "fundamentalistas


islâmicos" e "turcos infames" que vêm ameaçando o Cristianismo há
séculos. Um diplomata ocidental disse, referindo-se ao líder dos sérvios
da Bósnia: "Karadzic encara isso como a guerra antiimperialista na
Europa. Ele fala de ter a missão de erradicar os últimos vestígios do
império turco-otomano na Europa." 12 Os muçulmanos da Bósnia, por
sua vez, se identificam como as vítimas do genocídio, ignorado pelo
Ocidente por causa de sua religião, e, portanto, merecedores do apoio
do mundo muçulmano. Todas as partes envolvidas nas guerras iugoslavas
- e a maioria dos observadores de fora - passaram assim a considerá-las
como guerras religiosas ou étnico-religiosas. Misha Glenny destacou que
o conflito "assimilou cada vez mais as características de uma luta religiosa,
definida pelos três grandes credos europeus - Catolicismo Romano,
Ortodoxia Oriental e Islamismo - as sobras das crenças religiosas dos
impérios cujas fronteiras colidiram na Bósnia" .13
A percepção das guerras de linha de fratura como choques civili-
zacionais também deu novo alento à teoria do dominó, que existira
durante a Guerra Fria. Atualmente, porém, são os principais Estados das
civilizações que vêem a necessidade de evitar a derrota num conflito
local, que poderia desencadear uma seqüência de perdas em escalada
que levaria ao desastre. A dura postura assumida pela Índia a respeito
de Caxemira derivou em grande parte do receio de que sua perda
estimulasse outras minorias étnicas e religiosas a buscar a independência
e , assim , conduzisse ao esfacelamento do Índia. O ministro russo do
Exterior, Kozyrev, advertiu que, se a Rússia não pusesse fim à violência
política no Tadjiquistão, esta provavelmente se alastraria para o Casa-
quistão e para o Uzbequistào. Argumentou-se que isso poderia então
promover movimentos secessionistas nas repúblicas muçulmanas da
Federação Russa, com algumas pessoas aventando a hipótese de que o
resultado final poderia ser o fundamentalismo islâmico na Praça Verme-
lha. Por conseguinte, disse Yeltsin, a fronteira tadjique-afegã é, "na
realidade, a da Rússia". Os europeus, por sua voz, expressaram a
preocupação de que o estabelecimento de um Estado muçulmano na
antiga Iugoslávia criasse uma base para a disseminação de imigrantes
muçulmanos e do fundamentalismo islâmico, reforçando aquilo a que
Jacques Chirac se referiu como "les odeurs d1slam" na Europa. 14 A
fronteira da Croácia é, na realidade, a da Europa.
À medida que uma guerra de linha de fratura se intensifica, cada
lado pinta com as piores tintas seus adversários, freqüentemente
apresentando-os como subumanos e, assim, tornando legitimo matá-los.
Referindo-se às guerrilhas chechenas, Yeltsin disse que "os cães raivosos
devem ser abatidos a bala". O general indonésio Try Sutrisno, referindo-
se ao massacre de timorenses orientais em 1991 disse: "Essas pessoas
malformadas têm que ser abatidas a bala (. .. ) e nós as abateremos a
bala." Os demônios do passado são ressuscitados no presente: os croatas
se tornam "ustachis"; os muçulmanos, "turcos"; e os sérvios, "chetniks".
Assassinatos em massa, torturas, estupros e brutais expulsões de civis são
todos justificáveis à medida que o ódio comunitário se alimenta do ódio
comunitário. Os símbolos e artefatos fundamentais da cultura adversária
passam a ser alvos. Os sérvios destruíram sistematicamente mesquitas e
mosteiros franciscanos, enquanto que os croatas fizeram explodir mos-
teiros ortodoxos. Como repositórios de cultura, os museus e as bibliotecas
são vulneráveis. Assim, as forças de segurança cingalesas incendiaram a
biblioteca pública de Jaffna, destruindo "documentos históricos e literá-
rios insubstituíveis" relacionados com a cultura tâmil, e artilheiros sérvios
bombardearam e destruíram o Museu Nacional em Sarajevo. Os sérvios
"limparam" a cidade bósnia de Zvomik de seus 40 mil muçulmanos e
fincaram uma cruz no local da torre otomana que acabavam de mandar
pelos ares e que substituíra a igreja ortodoxa arrasada pelos turcos em
1463. 15 Nas guerras entre culturas, a cultura perde. ·

CMLIZAÇÕES QUE SE CONGREGAM: PAÍSES AFINS E DIÁSPORAS

Durante os 40 anos da Guerra Fria, os conflitos foram se espalhando num


sentido descendente à medida que as superpotências tentavam recrutar
aliados e parceiros, bem como subverter, converter ou neutralizar os
aliados e parceiros da outra superpotência. Evidentemente, a competição
era mais intensa no Terceiro Mundo, onde Estados novos e fracos eram
pressionados pelas superpotências para se juntarem à grande competição
mundial. No mundo pós-Guerra Fria, inúmeros conflitos comunitários
substituíram o conflito isolado das superpotências. Quando esses confli-
tos comunitários envolvem grupos de civilizações diferentes, tendem a
se expandir e a entrar numa escalada. À medida que o conflito se toma
mais intenso, cada lado tenta reunir apoio de países e grupos que
pertencem à sua civilização. Apoio de uma ou outra forma, oficial ou
não-oficial, ostensivo ou clandestino material humano diplomático
' ' ' '
financeiro, simbólico ou militar, está sempre vindo de um ou mais países
ou grupos afins. Quanto mais tempo durar um conflito, maior a proba-
bilidade de que mais países afins fiquem envolvidos em papéis de apoio,
de contenção e de mediação. Em conseqüência dessa "síndrome de país
afim", os conflitos de linha de fratura têm um potencial muito maior para
a escalada do que os conflitos intracivilizacionais, e geralmente requerem
a cooperação intercivilizacional para serem contidos ou terminados. Em
contraste com a Guerra Fria, o conflito não flui de cima para baixo, mas
borbulha de baixo para cima.
Nas guerras de linha de fratura, os Estados e grupos têm níveis
diferentes de envolvimento. No nível primário, estão as partes que
efetivamente estão combatendo e matando umas às outras. Elas podem
ser Estados, como nas guerras entre a Índia e o Paquistão e entre Israel
e seus vizinhos, mas também podem ser grupos locais, que não são
Estados ou, na melhor das hipóteses, são Estados embrionários, como
foi o caso na Bósnia e dos armemos em Nagorno-Karabakh. Esses
conflitos também podem envolver participantes de um nível secundário,
geralmente Estados diretamente relacionados com as partes primárias,
tais como os governos da Sérvia e da Croácia na antiga Iugoslávia, e os
da Armênia e do Azerbaijão no Cáucaso. Vinculados de modo ainda mais
remoto com o conflito se encontram os Estados terciários, mais afastados
dos combates em si, porém com laços civilizacionais com os participan-
tes, tais como a Alemanha, a Rússia e os Estados islâmicos em relação à
antiga Iugoslávia, e a Rússia, a Turquia e o Irã no caso da disputa
armênio-azeri. Esses participantes de terceiro nível freqüentemente são
os Estados-núcleos de suas respectivas civilizações.
As diásporas dos participantes do nível primário, quando existem,
também desempenham um papel nas guerras de linha de fratura. Dadas
as quantidades pequenas de pessoas e armas geralmente envolvidas no
nível primário, quantidades relativamente modestas de ajuda externa, sob
a forma de dinheiro, armas ou voluntários, muitas vezes podem ter um
impacto significativo no desfecho da guerra.
O que as outras partes têm em jogo no conflito não é idêntico ao
que têm os participantes do nível primário. O apoio mais dedicado e
sincero para os participantes do nível primário normalmente vem das
comunidades da diáspora, que se identificam intensamente com a causa
de seus afins e se tornam "mais católicos do que o Papa". Os interesses
dos governos no segundo e no terceiro níveis são mais complicados.
Geralmente, eles também proporcionam apoio aos participantes do
primeiro nível e, mesmo que não o façam, os grupos adversários
suspeitam que o fazem, o que justifica que estes últimos apóiem seus
afins respectivos. Além disso, entretanto, os governos nos segundo e
terceiro níveis têm interesse em conter os combates e não se envolver
diretamente eles próprios. Por isso, embora apoiando os participantes do
nível primário, eles também tentam contê-los e induzi-los a moderar seus
objetivos. Geralmente, eles tentam negociar com seus correspondentes
de segundo e terceiro níveis situados do outro lado da linha de fratura
e, desse modo, evitar que uma guerra local se transforme numa guerra
mais ampla que envolva Estados-núcleos. A Figura 11.1 delineia os
relacionamentos entre os que podem ser participantes em guerras de
linha de fratura. Nem todas essas guerras têm todo esse elenco de
personagens, porém muitas o têm, inclusive as na antiga Iugoslávia e no
Transcáucaso, e quase todas as guerras de linha de fratura poderiam se
expandir para vir a envolver todos os níveis de participantes.

~47
FIGURA 11.1
l
A ESTRUTURA DE UMA CoMPLEXA GUERRA DE UNHA DE FRATURA

Civilização A Civilização B

violência
apoio
pontenção
negociação

De um modo ou de outro, diásporas e países afins estiveram


envolvidos em todas as guerras de linha de fratura dos anos 90. Dado o
amplo papel primário de grupos muçulmanos nesse tipo de guerras, os
governos e associações muçulmanos são os mais freqüentes participantes
secundários e terciários. Os mais atuantes foram os governos da Arábia
Saudita, Paquistão, Irã, Turquia e Líbia, que proporcionaram juntos, e às
vezes com outros Estados muçulmanos, diferentes graus de apoio aos
muçulmanos que lutavam contra não-muçulmanos na Palestina, Líbano,
Bósnia, Chechênia, Transcáucaso, Tadjiquistão, Caxemira, Sudão e Filipi-
nas. Além do apoio governamental, muitos grupos muçulmanos do nível
primário foram reforçados pela internacional fundamentalista islâmica
composta, de modo informal, pelos combatentes oriundos da Guerra do
Afeganistão, que participaram de conflitos que vão da guerra civil na Argélia
e da luta na Chechênia até o conflito nas Filipinas. Um analista observou
que essa internacional islâmica esteve envolvida "no envio de voluntários
a fim de estabelecer um regime fundamentalista islâmico no Afeganistão,

~48
em Caxemira e na Bósnia; em guerras de propaganda conjunta contra
governos que se opunham aos fundamentalistas islâmicos num ou noutro
país; no estabelecimento de centros islâmicos na diáspora, que ~ervem de
quartel-general conjunto para todas essas partes "·16 A. Liga Arabe .e a
Organização da Conferência Islâmica também proporcionaram apoio e
tentaram coordenar os esforços de seus membros para reforçar os grupos
muçulmanos em conflitos intercivilizacionais.
A União Soviética foi um participante primário na Guerra do
Afeganistão e, nos anos pós-Guerra Fria, a Rússia foi um ,p.articipante
primário na Guerra da Chechênia, um participante secundano nas lu~as
no Tadjiquistão e um participante terciário nas guerras n~ antiga
Iugoslávia. A índia tem um envolvimento primário em Cax~m~a e ~m
secundário em Sri Lanka. Os principais Estados ocidentais tem sido
participantes terciários nos embates iugoslavos. As diásporas desem-
penharam papel importante em ambos os lad~s das lo~g~s lutas entre
israelenses e palestinos, bem como ao dar apoio a armemos, croatas e
chechenos em seus respectivos conflitos. Através da televisão, por faxes
e pelo correio eletrônico, "os engajamentos das diásporas são revigorados
e às vezes polarizados pelo contato constante com seus antigos lares;
'antigos' não tem mais o mesmo sigm · r" .17
· 'f'icad o ant eno
Na guerra de Caxemira, o Paquistão deu explícito apoio político e
diplomático aos insurretos e, segundo fontes militares paquistanesas,
considerável quantidade de armas e dinheiro, bem como treinamento,
apoio logístico e um lugar de refúgio. Também fez gestões junto a
governos muçulmanos em nome deles. Ao se chegar a 1995, segundo se
informou, os insurretos haviam sido reforçados por 1.200 combatentes
mujahedins pelo menos, provenientes do Afeganistão, Tadjiquistão e
Sudão, equipados com mísseis Stinger e outras armas fornecidas pelos
18
norte-americanos para sua guerra contra a União Soviética. A insur-
reição dos Moras nas Filipinas se beneficiou, durante um certo tempo,
de fundos e equipamento da Malásia, governos árabes proporcionaram
fundos adicionais, vários milhares de insurretos foram treinados na Líbia
e 0 grupo insurreto extremista Abu Sayyaf foi organizado por fun-
damentalistas paquistaneses e afegães.19 Na África, o Sudão ajudou
sistematicamente os rebeldes muçulmanos da Eritréia que lutavam contra
a Etiópia e, em represália, a Etiópia forneceu "apoio logístico e áreas de
refúgio" para os "rebeldes cristãos" que lutavam no Sudão. Estes últimos
também receberam ajuda semelhante de Uganda, o que refletia em parte
"seus fortes laços religiosos, raciais e étnicos com os rebeldes sudaneses"·
O governo sudanês, por outro lado, recebeu do Irã armamento chinês
no valor de 300 milhões .de dólares e treinamento ministrado por
assessores militares iranianos, que o habilitaram a lançar uma grande
ofensiva contra os rebeldes em 1992. Várias organizações cristãs ociden-
tais forneceram alimentos, medicamentos, material diverso e, segundo o
governo sudanês, armas para os rebeldes cristãos. 20
Em Sri Lanka, na guerra entre os insurretos tâmiles hindus e o
governo cingalês budista, o governo indiano inicialmente deu apoio
considerável aos insurretos, treinando-os na Índia meridional e dando-
lhes armas e dinheiro. Em 1987, quando as forças governamentais
cingalesas estavam prestes a derrotar os Tigres Tâmiles, a opinião pública
indiana se levantou contra esse "genocídio" e o governo indiano organi-
zou uma ponte aérea para levar alimentos para os tâmiles, "na realidade
indicando ao [presidente] Jayewardene que a Índia pretendia impedi-lo
do esmagar os Tigres pela força". 21 Os governos indiano e cingalês
chegaram então a um acordo pelo qual Sri Lanka outorgaria um grau
considerável de autonomia às áreas tâmiles e os insurretos entregariam
suas armas ao exército indiano. A· Índia enviou 50 mil homens para a
ilha a fim de garantir a implementação do acordo, porém os Tigres se
recusaram a entregar as armas e os militares indianos logo se viram eles
próprios engajados numa guerra contra as forças guerrilheiras que tinham
apoiado anteriormente. As forças indianas foram retiradas a partir de
1988. Em 1991, o primeiro-ministro indiano, Rajiv Gandhi, foi assas-
sinado, segundo os indianos, por uma partidária dos insurretos tâmiles
e a atitude do governo indiano para com a insurreição ficou cada ve~
~ais hostil. Mesmo assim, o governo não podia deter a simpatia pelos
~nsurretos e o apoio aos mesmos no meio dos 50 milhões de tâmiles da
India meridional. Refletindo essa postura, funcionários do governo de
T~m~l Nadu, em desobediência a Nova Délhi, permitiram que os Tigres
~amiles operassem nesse estado com "virtual liberdade" ao longo do seu
litoral de 800km e enviassem suprimentos e armas para os insurretos em
Sri Lanka através do curto Estreito de Palk.22
A partir de 1979, os soviéticos e depois os russos ficaram envolvidos
em três grandes guerras de linha de fratura com seus vizinhos muçulma-
nos ao sul: a Guerra do Afeganistão de 1979-89, sua seqüela - a guerra
no .T~~jiquistão - , que começou em 1992, e a guerra na Chechênia, que
se m1c1~u em 1994. Depois do colapso da União Soviética, um governo
comumsta chegou ao poder no Tadjiquistão. Esse governo foi contestado
na primavera de 1992, por uma oposição composta de grupos étnicos~

350
regionais rivais, abrangendo tanto seculares como fundamentalistas
islâmicos. Essa oposição, reforçada por armas recebidas do Afeganistão,
em setembro de 1992, expulsou da capital, Dushanbe, o governo
pró-russo. Os governos russo e uzbeque reagiram de maneira enérgica,
advertindo contra o alastramento do fundamentalismo islâmico. A 201 !!
Divisão de Infantaria Motorizada, que havia permanecido no Tadjiquis-
tão, forneceu armas às forças pró-governo e a Rússia enviou mais tropas
para guardar a fronteira com o Afeganistão. Em novembro de 1992, a
Rússia, o Uzbequistão, o Casaquistão e a Quirguízia concordaram com a
intervenção militar russa e uzbeque, ostensivamente para a manutenção
da paz, mas na realidade para participar da guerra. Com esse apoio e
mais as armas e o dinheiro russos, as forças do antigo governo conse-
guiram recapturar Dushanbe e estabelecer o controle sobre grande parte
do país. Seguiu-se um processo de limpeza étnica, e os refugiados e as
tropas da oposição recuaram para o Afeganistão.
Governos muçulmanos do Oriente Médio protestaram contra a
intervenção militar russa. Irã, Paquistão e Afeganistão deram assistência
à oposição, cada vez mais dominada pelos fundamentalistas islâmicos,
fornecendo dinheiro, armas e treinamento. Segundo se informou, em
1993 havia muitos milhares de combatentes sendo treinados pelos
mujahedins afegães e, na primavera e verão de 1993, os insurretos
tadjiques desfecharam vários ataques através da fronteira, a partir do
Afeganistão, matando muitos guardas de fronteira russos. A Rússia reagiu
mandando mais tropas para o Tadjiquistão e lançando uma barragem
"maciça de artilharia e morteiros" e ataques aéreos contra alvos no
Afeganistão. Entretanto, governos árabes forneceram aos insurretos
fundos para adquirir mísseis Stinger para se defender dos aviões. Ao se
chegar a 1995, a Rússia tinha cerca de 25 mil homens no Tadjiquistão e
estava fornecendo bem mais da metade dos fundos necessários para
sustentar seu governo. Por outro lado, os insurretos estavam sendo
ativamente apoiados pelo governo afegão e por outros Estados muçul-
manos. Como acentuou Barnett Rubin, o fato de as agências internacio-
nais ou o Ocidente não terem dado nenhuma ajuda significativa quer ao
Tadjiquistão quer ao Afeganistão fez com que o primeiro ficasse total-
mente dependente dos russos e o segundo dependente dos seus afins
civilizacionais muçulmanos. "Atualmente, qualquer comandante afegão
que espere por ajuda externa precisa satisfazer os desejos dos financia-
dores árabes e paquistaneses, que querem estender a jihad para a Ásia
Central, ou se juntar ao tráfico de drogas." 23

351
A terceira guerra antimuçulmana dos russos, que ocorreu no Cáu-
caso Setentrional contra os chechenos, teve prólogo nas lutas em 1992-93
entre os ossécios ortodoxos e os vizinhos ingushes muçulmanos. Estes
últimos, junto com os chechenos e outros povos muçulmanos, foram
deportados para a Ásia Centrai durante a II Guerra Mundial. Os ossécios
permaneceram e tomaram propriedades dos ingushes. Em 1956-57, os
povos deportados tiveram permissão para retornar, e as disputas come-
çaram em torno da propriedade de terras e imóveis e do controle do
território. Em novembro de 1992, os ingushes desfecharam ataques a
partir de sua república para retomar a região de Prigorodny, que o
governo soviético havia atribuído aos ossécios. Os russos reagiram com
uma intervenção maciça, inclusive com unidades cossacas, em apoio aos
ossécios ortodoxos. Um comentarista de fora fez a seguinte descrição:
"Em novembro de 1992, as aldeias ingushes na Ossécia foram cercadas
e bombardeadas por tanques russos. Os que sobreviveram ao bombar-
deio foram mortos ou levados embora. O massacre foi levado a cabo por
pelotões da OMON [polícia especial] ossécia, mas as tropas russas
enviadas para a região 'a fim de manter a paz' lhes deram cobertura."24
The Economist informou que era '"difícil compreender que tanta des-
truição tivesse ocorrido em menos de uma semana". Essa foi "a primeira
operação de limpeza étnica na Federação Russa". A Rússia recorreu a
esse conflito para ameaçar os aliados chechenos dos ingushes, o que,
por sua vez, "levou à imediata mobilização da Chechênia e da [majorita-
riamente muçulmana] Confederação dos Povos do Cáucaso (KNK). A
KNK ameaçou enviar 500 mil voluntários contra as forças russas caso elas 1
não se retirassem do território checheno. Depois de um tenso impasse, .~
Moscou recuou a fim de evitar a escalada do conflito entre ossécios
setentrionais e ingushes, numa conflagração em toda a região".25
Uma conflagração mais intensa e ampla eclodiu em dezembro de
1
1994, quando a Rússia desfechou um ataque militar em grande escala
contra a Chechênia. Os dirigentes das duas repúblicas ortodoxas, a
Geórgia e a Armênia, apoiaram a ação russa, enquanto o presidente da
Ucrânia se mostrou "diplomaticamente vago, apelando apenas por uma
solução pacífica da crise". A ação russa foi endossada pelo governo
ortodoxo da Ossécia do Norte e por 55 a 60 por cento do povo ossécio
setentrionaI. 26 Em contraste, os muçulmanos dentro e fora da Federação
Russa se puseram majoritariamente do lado dos chechenos. A interna-
cional fundamentalista islâmica imediatamente contribuiu com comba-
tentes do Azerbaijão, Afeganistão, Paquistão, Sudão e de outros países.

352
Os Estados muçulmanos endossaram a causa chechena e, ao que consta,
a Turquia e o Irã forneceram ajuda material, dando à Rússia mais
incentivo para tentar se reconciliar com o Irã. Um fluxo contínuo de armas
para os chechenos começou a entrar na Federação Russa vindo do
Azerbaijão, levando os russos a fechar sua fronteira com esse país,
vedando desse modo a chegada à Chechênia de suprimentos de medi-
camentos e de outros tipos.27
Os muçulmanos dentro da Federação Russa se congregaram do lado
dos chechenos. Embora os chamamentos para uma guerra santa muçul-
mana contra a Rússia em todo o Cáucaso não tenham surtido efeito, os
dirigentes das seis repúblicas da região Volga-Urais exigiram que a Rússia
cessasse com sua ação militar, e representantes das repúblicas muçulma-
nas do Cáucaso conclamaram por uma campanha de desobediência civil
contra a autoridade russa. O presidente da república Chuvash isentou os
jovens chuvashes que estivessem prestando serviço militar de atuar contra
seus co-muçulmanos. Os "maiores protestos contra a guerra" surgiram
nas duas repúblicas vizinhas à Chechênia - Ingushécia e Daguestão. Os
ingushes atacaram tropas russas que estavam se deslocando para a
Chechênia, levando o ministro da Defesa russo a afirmar que o governo
ingushe "tinha praticamente declarado guerra à Rússia". Também no
Daguestão ocorreram ataques contra forças russas. Os russos respon-
deram com bombardeios de artilharia sobre aldeias ingushes e dagues-
tanenses. 28 Depois do ataque relâmpago checheno contra a cidade de
Kizlyar, em janeiro de 1996, os russos arrasaram a aldeia de Pervornaiskoye,
o que acirrou ainda mais a hostilidade dos daguestanenses contra eles.
A causa chechena também foi auxiliada pela diáspora chechena,

1 que tinha sido criada, em grande parte, pela agressão russa no século
XIX contra os povos das montanhas do Cáucaso. A diáspora levantou
fundos, obteve armas e forneceu voluntários para as forças chechenas.
Essa diáspora era particularmente numerosa na Jordânia e na Turquia, o
que levou a Jordânia a assumir urna postura enérgica contra os russos e
reforçou a disposição da Turquia de dar assistência aos chechenos. Em
janeiro de 1996, quando a guerra se alastrou para a Turquia, a opinião
pública turca manifestou sua simpatia pela captura de uma barca de travessia
e de reféns russos por membros da diáspora. Com a ajuda de dirigentes
chechenos, o governo turco negociou a solução da crise de um modo
que agravou ainda mais as já tensas relações entre a Turquia e a Rússia.
A incursão chechena no Daguestão, a reação russa e a captura da
barca no início de 1996 ressaltaram a possibilidade da expansão do
conflito para um plano generalizado entre os russos e os povos das
montanhas, seguindo as linhas da luta que durou décadas no século XIX.
Fiona Hill advertiu em 1995 que "o Cáucaso Setentrional é um barril de
pólvora, em que um conflito numa república tem º,potencial de det~nar
uma conflagração regional que se alastrará para alem de suas fronteiras,
para 0 resto da Federação Russa, e conduzirá ao envolvimento da
Geórgia, Azerbaijão, Turquia e Irã, bem como das diásporas dos cauca-
sianos setentrionais. Como demonstrou a guerra ·na Chechênia, os
conflitos nessa região não são fáceis de conter (. .. ) e a luta se espraiou
para as repúblicas e territórios adjacentes à Chechênia". Um analista russo
concordou, argumentando que se estavam desenvolvendo "coligações
informais" obedecendo a linhas civilizacionais. "Geórgia, Armênia, Na-
gomo-Karabakh e Ossécia do Norte - cristãs - estão-se alinhando
contra Azerbaijão, Abkhásia, Chechênia e Ingushécia - muçulmanas."
A Rússia, que já estava combatendo no Tadjiquistão, estava "correndo o
- com o mun d o muçu lmano ,,z9
risco de ser envolta numa longa confrontaçao .
Numa outra guerra de linha de fratura entre ortodoxos e muçulma-
nos, os participantes primários eram os armênios do enclave de Nagor-
no-Karabakh e o governo e povo azerbaidjanos, com aqueles lutando
por sua independência destes. O governo da Armênia era um participante
secundário, e Rússia, Turquia e Irã tinham envolvimentos terciários. Além
disso, a considerável diáspora armênia na Europa Ocidental e na América
do Norte desempenhou um papel importante. As lutas começaram em
1988, antes do fim da União Soviética, se intensificaram durante 1992-93
e diminuíram depois da negociação de um cessar-fogo em 1994. Os turcos
e outros muçulmanos apoiaram o Azerbaijão, enquanto que a Rússia
apoiou os armênios, mas depois usou da sua influência junto a eles
também para contestar a influência turca no Azerbaijão. Essa guerra foi
o mais recente episódio na luta que data de séculos, desde os embates
entre o Império Russo e o Império Otomano pelo controle da região do
Mar Negro e do Cáucaso, bem como no intenso antagonismo entre
armênios e turcos, que vem desde os massacres dos primeiros pelos
segundos no início do século XX.
Nessa guerra, a Turquia, de maneira consistente, apoiou o Azerbai-
jão e se opôs aos armênios. A Turquia, ao dar seu reconhecimento formal
ao Azerbaijão, foi o primeiro país a reconhecer a independência de uma
república soviética não-báltica. Durante todo o conflito, a Turquia deu
apoio financeiro e material ao Azerbaijão e treinou soldados desse país.
Quando, em 1991-92, a violência se intensificou e os armênios avançaram

354
para o território do Azerbaijão, a opinião pública turca se inflamou e o
governo turco ficou sob pressão para apoiar aquele povo com o qual
tinha afinidades étnicas e religiosas. O governo turco receou também que
isso iria ressaltar a divisória entre muçulmanos e cristãos, produzir uma
avalanche de apoio ocidental para a Armênia e antagonizar seus aliados
na OTAN. A Turquia se defrontava assim com as clássicas pressões
cruzadas de um participante secundário numa guerra de linha de fratura.
Entretanto o governo turco viu que era do seu interesse apoiar o
Azerbaijão e confrontar a Armênia. Um funcionário turco disse que "é
impossível não se sentir afetado quando seus afins são mortos", e um
outro acrescentou: "Estamos sob pressão. Nossos jornais estão cheios de
fotografias de atrocidades. (. .. ) Talvez devêssemos mostrar à Armênia
que existe uma grande Turquia nesta região." O presidente Turgut ôzal
concordou, dizendo que a Turquia "devia amedrontar um pouquinho os
armênios". A Turquia, juntamente com o Irã, advertiu os armênios de que
não toleraria qualquer alteração de fronteiras. ôzal impôs um bloqueio
para impedir que alimentos e outros suprimentos chegassem à Armênia
através da Turquia, em conseqüência do que a população da Armênia
ficou à beira da fome no inverno de 1992-93. Também como resultado
disso, o marechal russo Yevgeny Shaposhnikov advertiu que, "se um
outro lado [ou seja, a Turquia] se envolver" nessa guerra, "estaremos à
beira da III Guerra Mundial". Um ano depois, ôzal ainda se mostrava
belicoso e lançou a provocação: "O que podem fazer os armênios se
acontecer de tiros serem disparados? (. .. ) Marchar para dentro da
Turquia?" Nesse caso, a Turquia "mostrará suas presas" .3°
No verão e outono de 1993, a ofensiva armênia, que estava se
aproximando da fronteira iraniana, produziu mais reações tanto da
Turquia como do Irã, que estava competindo por influência dentro do
Azerbaijão e nos Estados muçulmanos da Ásia Central. A Turquia
declarou que a ofensiva constituía uma ameaça para sua segurança,
exigiu que as forças armênias se retirassem do território do Azerbaijão
"imediata e incondicionalmente" e enviou reforços para sua fronteira com
a Armênia. Ao que consta, tropas turcas e russas trocaram tiros através
dessa fronteira. A primeira-ministra da Turquia, Tansu Ciller, afirmou que
solicitaria uma declaração de guerra se tropas armênias entrassem no
enclave azerbaijano de Nakhichevan, próximo da Turquia. O Irã também
deslocou forças para diante e para dentro do território do Azerbaijão,
supostamente para estabelecer acampamentos para os refugiados que
haviam fugido das ofensivas armênias. Ao que consta, a ação iraniana
levou os turcos a acharem que podiam tomar medidas adicionais sem
provocar contramedidas russas, e também lhes deu incentivo adicional
para competir com o Irã em dar proteção ao Azerbaijão. A crise acabou
sendo atenuada por negociações em Moscou entre os dirigentes da
Turquia, da Armênia e do Azerbaijão, por pressão norte-americana sobre
0 governo armênio e por pressão do governo armênio sobre os armênios
de Nagorno-Karabakh. 31
Os armênios vivem num pequeno país mediterrâneo, com escassos
recursos naturais, cercados por povos túrquicos hostis e, historicamente,
buscaram proteção junto a seus afins ortodoxos, a Geórgia e a Rússia.
Esta, em especial, tem sido vista como um irmão maior. Contudo, quando
a União Soviética estava se esfacelando e os armênios de Nagorno-Ka-
rabakh desencadearam seu movimento pela independência, o governo
Gorbachev rejeitou suas exigências e enviou tropas para a região a fim
de apoiar o que era considerado um governo comunista fiel em Baku.
Depois do fim da União Soviética, essas considerações cederam lugar a
outras mais antigas, de índole histórica e cultural, com o Azerbaijão
acusando "o governo russo de dar uma volta de 180 graus" e apoiar
ativamente a Armênia cristã. A ajuda militar russa aos armênios tinha, na
realidade, começado antes no exército soviético, no qual os armênios
eram promovidos a postos mais altos e designados para unidades de
combate com muito maior freqüência do que os muçulmanos. Depois
que começou a guerra, o 366º Regimento de Infantaria Motorizado do
Exército russo, baseado em Nagorno-Karabakh, teve um papel destacado
no ataque armênio à cidade de Khodjali, no qual se diz que mil azeris

e,
,

.,
/,_

foram massacrados. Posteriormente, tropas spetsnaz russas também


tomaram parte nos combates. Durante o inverno de 1992-93, quando a
Armênia padeceu devido ao bloqueio turco, foi "salva do completo
colapso econômico por uma injeção de bilhões de rublos em créditos
abertos pela Rússia". Nessa primavera, tropas russas se juntaram a forças
regulares armênias para abrir um corredor ligando a Armênia a Nagor-
no-Karabakh. Uma força blindada russa de 40 tanques participou então,
ao que consta, da ofensiva em Karabakh no verão de 1993.32 Conforme
assinalam Hill e Jewett, a Armênia por sua vez "praticamente não tinha
opção senão se aliar intimamente com a Rússia. Ela depende da Rússia
para obter matérias-primas, energia e alimentos, além de defesa contra
seus inimigos históricos sobre suas fronteiras, como o Azerbaijão e a
Turquia. A Armênia assinou todos os acordos econômicos e militares da
CEI, permitiu que tropas russas ficassem aquarteladas em seu território
e abriu mão de todas as reivindicações de bens anteriormente soviéticos
em favor da Rússia."33
O apoio russo aos armênios aumentou a influência da Rússia junto
ao Azerbaijão. Em junho de 1993, o dirigente nacionalista desse país,
Abulfez Elchibei, foi derrubado por um golpe e substituído por Gaider
Aliyev, ex-comunista e supostamente pró-russo. Aliyev reconhecia a
necessidade de agradar a Rússia a fim de conter a Armênia. Ele
abandonou a recusa do Azerbaijão de aderir à Comunidade dos Estados
Independentes e de permitir o aquartelamento de tropas russas em seu
território. Também abriu caminho para a participação russa num consór-
cio internacional para desenvolver a exploração do petróleo do país .. Em
troca, a Rússia começou a treinar tropas azerbaijanas e pressionou a
Armênia para cessar seu apoio às forças em Karabakh e induzi-las a se
retirar de território azerbaijano. Mudando de um lado para o outro, a
Rússia conseguiu também produzir resultados para o Azerbaijão e se
contrapor à influência iraniana e turca nesse país. Assim, o apoio russo
à Armênia não só fortaleceu seu melhor aliado no Cáucaso, como também
enfraqueceu seus principais rivais muçulmanos nessa região.
Afora a Rússia, a principal fonte de apoio da Armênia era sua


diáspora grande, rica e influente na Europa Ocidental e na América do
Norte, inclusive cerca de um milhão de armênios nos Estados Unidos e
450 mil na França. Eles proporcionaram dinheiro e suprimentos para
ajudar a Armênia a sobreviver ao bloqueio turco, funcionários para o
governo armênio e voluntários para as forças armadas armênias. As
contribuições para o socorro aos armênios por parte da comunidade
norte-americana totalizou de 50 a 75 milhões de dólares por ano em
meados da década de 90. Os membros da diáspora também exerceram
considerável influência política junto aos governos dos países onde
viviam. As maiores comunidades armênias nos Estados Unidos se encon-
tram em estados-chave como Califórnia, Massachusetts e Nova Jersey.
Em conseqüência, o Congresso proibiu qualquer ajuda externa ao
Azerbaijão e transformou a Armênia no terceiro maior recipiente per
capita de assistência norte-americana. Esse apoio do exterior foi essencial
para a sobrevivência da Armênia e lhe valeu o apropriado apelido de
"Israel do Cáucaso".34 Do mesmo modo como os ataques russos no
século XIX sobre o Cáucaso Setentrional geraram a diáspora que ajudou
os chechenos a resistir aos russos, os massacres turcos de armênios no
início do século XX produziram uma diáspora que permitiu à Armênia
resistir à Turquia e derrotar o Azerbaijão.
A antiga Iugoslávia foi o lugar do mais complexo, confuso ·e
completo conjunto de guerras de linha de fratura do começo dos anos'
90. No nível primário, na Croácia o governo croata e os croatas
combateram os sérvios da Croácia, e na Bósnia-Herzegovina, o governo
bósnio combateu os sérvios da Bósnia e os croatas da Bósnia, que
também lutaram entre si. No nível secundário, o governo sérvio promo-
veu uma "Grande Sérvia", ajudando os sérvios da Bósnia e da Croácia,
e 0 governo croata aspirou a uma "Grande Croácia" e apoiou os croatas
da Bósnia. No nível terciário, um apoio maciço de civilizações incluiu
Alemanha, Áustria, Vaticano, outros países e grupos europeus católicos
e mais tarde os Estados Unidos em favor da Croácia; a Rússia, a Grécia
' '
e outros países e grupos ortodoxos se colocaram do lado dos sérvios; o
Irã, a Arábia Saudita, a Turquia, a Líbia, a internacional fundamentalista
islâmica e os países islâmicos em geral ficaram a favor dos muçulmanos
da Bósnia. Estes últimos receberam auxílio dos Estados Unidos, uma
anomalia não-civilizacional no que, no restante, formou um padrão de
afim apoiando afim. A diáspora croata na Alemanha e a diáspora bósnia
da Turquia foram em apoio de suas pátrias de origem. As igrejas e os
grupos religiosos estiveram atuantes em todos os três lados. As ações,
pelo menos, dos governos alemão, turco, russo e norte-americano foram
influenciadas de modo significativo por grupos de pressão e pela opinião
pública em suas respectivas sociedades.
O apoio prestado pelas partes secundárias e terciárias foi essencial
para a condução da guerra, e as limitações que elas impuseram foi essencial
para fazê-la cessar. Os governos croata e sérvio forneceram armas, supri-
mentos, fundos, refúgios e, às vezes, efetivos militares para sua gente que
estava combatendo em outras repúblicas. Sérvios, croatas e muçulmanos
receberam, todos, ajuda substancial de seus afins civilizacionais que estavam
fora da antiga Iugoslávia, sob a forma de dinheiro, armas, suprimentos,
voluntários, treinamento militar e apoio político e diplomático. Os sérvios e
os croatas situados no nível primário não-governamental eram, de modo
geral, mais extremados em seu nacionalismo, irredutíveis em suas exigências
e militantes na perseguição de seus objetivos. Os governos sérvio e croata,
no segundo nível, inicialmente apoiaram vigorosamente seus afins do
nível primário, porém depois seus próprios interesses, mais diversifica-
dos, levaram-nos a desempenhar papéis mais de mediação e contenção.
De maneira paralela, os governos russo, alemão e norte-americano, no
terceiro nível, pressionaram os governos do segundo nível, que vinham
apoiando, na direção da contenção e da acomodação.
O esfacelamento da Iugoslávia começou em 1991, quando a
Eslovênia e a Croácia se movimentaram rumo à independência e
pleitearam o apoio das potências européias ocidentais. A resposta do
Ocidente foi definida pela Alemanha, e essa resposta foi, em grande parte,
definida pela conexão católica. O governo de Bonn foi pressionado a
atuar pela hierarquia católica alemã, pelo partido União Social Cristã, da
Bavária, parceiro da coalizão situacionista, e pelo Franlefutter Allgemeine
Zeitung e outros órgãos da mídia. A mídia bávara em especial desempe-
nhou um papel crucial no desenvolvimento de um sentimento pelo
reconhecimento daqueles países na opinião pública alemã. Flora Lewis
observou que "a TV bávara, sob grande pressão do governo bávaro
ultraconservador, e a Igreja Católica bávara, muito afirmativa e que tinha
íntimas ligações com a igreja da Croácia, forneceram as informações
televisionadas para toda a Alemanha quando a guerra [com os sérvios]
começou de fato. A cobertura foi muito parcial". O governo alemão estava
hesita!ldo quanto a conceder seu reconhecimento, porém, dadas as
pressões da sociedade alemã, não teve muita escolha. "O apoio ao
reconhecimento da Croácia pela Alemanha foi empurrado pela opinião
pública e não suscitado pelo governo." A Alemanha pressionou a União
Européia para que reconhecesse a independência da Eslovênia e da
Croácia e depois, tendo obtido essa decisão, prosseguiu por conta própria
e a reconheceu antes que a União o fizesse em dezembro de 1991. Um
estudioso alemão assinalou em 1995 que, "durante todo o conflito, Bonn
considerou a Croácia e seu líder Franjo Tudjman como algo parecido
com um protegido da política externa alemã, o qual, apesar de um
comportamento errático que causava irritação, ainda podia contar com
o firme apoio da Alemanha".35
A Áustria e a Itália prontamente agiram no sentido de reconhecer
os dois novos Estados e, com grande rapidez, o mesmo fizeram os demais
países ocidentais, inclusive os Estados Unidos. O Vaticano também
desempenhou um papel fundamental. O Papa declarou que a Croácia
era "a muralha do Cristianismo [Ocidental]", e apressou-se em dar
reconhecimento diplomático aos dois Estados antes que a União Européia
o fizesse.36 Desse modo, o Vaticano tomou partido no conflito, o que
teve suas conseqüências em 1994, quando o Papa planejava visitas às
três repúblicas. A oposição da Igreja Ortodoxa Sérvia impediu-o de ir a
Belgrado, e a falta de disposição da Sérvia para garantir sua segurança
levou ao cancelamento de sua visita a Sarajevo. Contudo, ele foi a Zagreb,
onde homenageou o cardeal Alojzieje Septinac, que era associado com
o regime fascista croata: na II Guerra Mundial, o qual perseguira e
massacrara sérvios, ciganos e judeus.
Tendo assegurado o reconhecimento pelo Ocidente de sua in-
dependência, a Croácia começou a desenvolver seu poderio militar,
apesar do boicote de armamentos imposto em setembro de 1991 pelas
Nações Unidas a todas as antigas repúblicas iugoslavas. Houve um fluxo
de armamentos para a Croácia proveniente de países católicos europeus,
como Alemanha, Polônia e Hungria, bem como de países latino-ameri-
canos como Panamá, Chile e Bolívia. Quando a guerra entrou numa
escalada em 1991, as exportações de armamentos pela Espanha, supos-
tamente "controladas em grande parte pela Opus Dei", aumentaram seis
vezes num curto período de tempo, a maioria delas presumivelmente
chegando até Ljubliana e Zagreb. Ao que consta, em 1993 a Croácia
adquiriu vários Mig-21 na Alemanha e na Polônia, com o conhecimento
dos respectivos governos. As forças armadas croatas receberam centenas,
e talvez milhares, de voluntários "da Europa Ocidental, da diáspora croata
e dos países católicos da Europa Oriental", que estavam ansiosos por
lutar "numa cruzada cristã contra tanto o comunismo sérvio como o
fundamentalismo islâmico". Militares profissionais de países ocidentais
proporcionaram assistência técnica. Em parte graças a esse auxílio de países
afins, os croatas puderam fortalecer seu segmento militar e criar uma
força para se contrapor ao exército iugoslavo dominado pelos sérvios.37
O apoio ocidental à Croácia também incluiu não tomar conheci-
mento da limpeza étnica e das violações de direitos humanos e das leis
da guerra pelas quais os sérvios foram constantemente denunciados. O
Ocidente ficou em silêncio quando, em 1995, o recomposto exército
croata desfechou um ataque contra os sérvios de Krajina, que lá estavam
havia séculos, e expulsou centenas de milhares deles para o exílio na
Bósnia e na Sérvia. A Croácia também se beneficiou de sua considerável
diáspora. Croatas ricos na Europa Ocidental e na América do Norte
contribuíram com fundos para aquisição de armas e equipamentos. As
associações de croatas nos Estados Unidos fizeram lobby no Congresso
e junto ao presidente em favor de sua pátria de origem. De especial
importância e influência foram os 600 mil croatas na Alemanha. Fornecen-
do centenas de voluntários para o exército croata, "as comunidades
croatas no Canadá, nos Estados Unidos, na Austrália e na Alemanha se
mobilizaram para defender sua pátria recém-independente".38
Em 1994, os Estados Unidos aderiram, apoiando o rearmamento
croata. Ignorando as numerosíssimas violações do boicote de armas das
Nações Unidas, os Estados Unidos proporcionaram treinamento militar
aos croatas e autorizaram generais norte-americanos reformados do mais
alto nível a prestar-lhes assessoramento. Os governos norte-americano e
alemão deram luz verde para a ofensiva croata sobre Krajina em 1995.
Assessores militares norte-americanos participaram do planejamento
desse ataque no estilo norte-americano, o qual, segundo os croatas,
também se beneficiou de inteligência fornecida por satélites espiões
norte-americanos. Um funcionário norte-americano declarou que a Croá-
cia se tornara "nosso aliado de facto". Argumentou-se que esse desdo-
bramento refletia "um cálculo de longo prazo, segundo o qual, no final,
duas potências locais dominarão essa parte do mundo, uma em Zagreb
e outra em Belgrado - uma vinculada a Washington e a outra presa a
um bloco eslavo que se estenderá até Moscou".39
As guerras iugoslavas também fizeram com que o mundo ortodoxo
se congregasse ao lado da Sérvia. Nacionalistas, oficiais das forças
armadas, parlamentares e líderes da Igreja Ortodoxa russos abertamente
expressavam seu apoio à Sérvia, menosprezavam os "turcos" bósnios e
criticavam o imperialismo ocidental e da OTAN. Os nacionalistas russos
e sérvios atuaram juntos para insuflar em ambos os países oposição à
"nova ordem mundial" ocidental. Num grau considerável, esses senti-
mentos eram compartilhados pelo povo russo, com mais de 60 por cento
dos moscovitas, por exemplo, se opondo aos ataques aéreos da OTAN
no verão de 1995. Grupos nacionalistas russos conseguiram recrutar
jovens russos em várias cidades grandes para que se juntassem "à causa
da fraternidade eslava". Ao que consta, mil ou mais de mil russos,
juntamente com voluntários da Romênia e da Grécia, se alistaram nas
forças armadas sérvias para combater o que descreviam como "os
fascistas católicos" e "os militantes fundamentalistas islâmicos". Em 1992,
informou-se que uma unidade russa "com uniformes de cossacos" estava
operando na Bósnia. Em 1995, havia russos servindo em unidades
militares de elite sérvias e, segundo um relatório das Nações Unidas,
combatentes russos e gregos participaram do ataque sérvio contra a área
protegida pelas Nações Unidas em Zepa.40
Apesar do boicote de armamentos, os amigos ortodoxo~ da Sérvia
lhe forneceram as armas e os equipamentos de que ela necessitava. No
início de 1993, órgãos militares e de inteligência da Rússia aparentemente
venderam aos sérvios tanques T-55, mísseis antimísseis e mísseis antiaé-
reos no valor de 300 milhões de dólares. Segundo consta, técnicos
militares russos foram enviados à Sérvia a fim de operar esses equipa-

361
mentos e treinar os sérvios no seu emprego. A Sérvia adquiriu armamen-
tos de outros países ortodoxos, sendo a Romênia e a Bulgária os
fornecedores "mais ativos" e a Ucrânia também figurando como fonte.
Além disso, tropas russas de manutenção da paz que se encontravam na
Eslavônia desviaram para os sérvios suprimentos das Nações Unidas,
facilitaram os deslocamentos militares sérvios e ajudaram as forças sérvias
a obter armas. 41
Apesar das sanções econômicas, a Sérvia conseguiu se sustentar
razoavelmente bem em conseqüência do gigantesco contrabando de
combustível e outros suprimentos de Timisoara organizado por funcio-
nários do governo romeno e da Albânia, neste caso organizado primeiro
por empresas italianas e depois por empresas gregas, com a conivência
do governo grego. Os envios de alimentos, produtos químicos, compu-
tadores e outros artigos provenientes da Grécia entravam na Sérvia
através da Macedônia e por aí saíam quantidades correspondentes de
exportações sérvias. 42 A combinação da atração dos dólares e da simpatia
pelos afins culturais transformou em piada as sanções econômicas das
Nações Unidas contra a Sérvia, assim como ocorreu com o boicote de
armas das Nações Unidas contra todas as antigas repúblicas iugoslavas.
Durante todas as guerras iugoslavas, o governo grego se distanciou
das medidas endossadas pelos membros ocidentais da OTAN, se opôs
à ação militar da OTAN na Bósnia, apoiou os sérvios nas Nações
Unidas e fez lobby junto ao governo norte-americano para que
suspendesse as sanções econômicas contra a Sérvia. Em 1994, o
primeiro-ministro grego, Andreas Papandreou, ressaltando a importância
da conexão ortodoxa com a Sérvia, atacou publicamente o Vaticano, a
Alemanha e as Nações Unidas por sua pressa em conceder reco-
nhecimento diplomático à Eslovênia e à Croácia no final de 1991.43
Como dirigente de um participante terciário, Boris Yeltsin sofreu
pressões em sentidos contrários: por um lado, pelo desejo de manter,
ampliar e aproveitar as boas relações com o Ocidente e, por outro lado,
pelo desejo de ajudar os sérvios e neutralizar sua oposição política, que
o acusava sistematicamente de se curvar ao Ocidente. No cômputo geral,
esta última preocupação se impôs e a Rússia deu aos sérvios um apoio
diplomático freqüente e consistente. Em 1993 e em 1995, o governo russo
se opôs energicamente a que fossem aplicadas à Sérvia sanções econô-
micas mais severas e o Parlamento russo aprovou, quase por unanimi-
dade, resoluções a favor da suspensão das sanções em vigor contra os
sérvios. A Rússia também pressionou pelo fortalecimento do bloqueio

362
de armas contra os muçulmanos e pela aplicação de sanções econômicas
contra a Croácia. Em dezembro de 1993, a Rússia instou pelo abran-
damento das sanções econômicas contra a Sérvia a fim de que lhe fosse
permitido suprir esse país com gás natural para o inverno, proposta que
foi bloqueada pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha. Em 1994 e
novamente em 1995, a Rússia se opôs tenazmente aos ataques aéreos
contra os sérvios da Bósnia. Neste último ano, a Duma russa condenou
o bombardeio por uma votação quase unânime e exigiu a renúncia do
ministro do Exterior, Andrei Kozyrev, pela defesa ineficaz dos interes-
ses nacionais russos nos Bálcãs. Ainda em 1995, a Rússia acusou a
OTAN de cometer "genocídio" contra os sérvios e o presidente Yeltsin
advertiu que a continuação dos bombardeios afetaria de modo drástico
a cooperação da Rússia com o Ocidente, inclusive sua participação na
Parceria para a Paz da OTAN. Perguntou retoricamente: "Como
podemos celebrar um acordo com a OTAN, quando ela está bom-
bardeando sérvios?" Segundo ele, o Ocidente estava claramente usan-
do dois pesos e duas medidas: "Como pode ser que, quando os
muçulmanos atacam, nenhuma ação é empreendida contra eles? Quando
os croatas atacam tampouco." 44 A Rússia também se opôs de modo
consistente aos esforços por suspender o boicote de armas contra as antigas
repúblicas iugoslavas, que produzia impacto principalmente sobre os
muçulmanos da Bósnia, e tentou sistematicamente reforçar esse boicote.
A Rússia utilizou por várias outras formas sua posição nas Nações
Unidas e em outros foros para defender os interesses sérvios. Em dezembro
de 1994, ela vetou uma resolução do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, proposta por países muçulmanos, que teria vedado o forneci-
mento de combustível pela Sérvia aos sérvios da Bósnia e da Croácia.
Em abril de 1994, a Rússia bloqueou uma resolução das Nações Unidas
que condenava os sérvios por perpetrarem limpeza étnica. Ela também
impediu a designação de qualquer pessoa de país integrante da OTAN
como promotor das Nações Unidas para crimes de guerra, devido a uma
provável prevenção contra os sérvios, objetou à indiciação do comandante
militar sérvio da Bósnia, Ratko Mladic, pelo Tribunal Internacional de Crimes
de Guerra e ofereceu-lhe asilo na Rússia.45 Em setembro de 1993, a Rússia
'
reteve a renovação da autorização das Nações Unidas para a permanência
dos 22 mil integrantes da força de paz das Nações Unidas na antiga
Iugoslávia. No verão de 1995, a Rússia se opôs, porém sem recorrer ao
veto, a uma resolução do Conselho de Segurança que autorizava o envio
de mais 12 mil elementos para a força de paz, e atacou tanto a ofensiva

363
croata contra os sérvios em Krajina como o fato de os governos ocidentais
não terem tomado qualquer medida contra essa ofensiva.
A congregação civilizacional mais ampla e mais eficaz foi a do
mundo islâmico em favor dos muçulmanos da Bósnia. A causa bósnia
era universalmente popular nos países muçulmanos. A ajuda para os
bósnios provinha de várias fontes, públicas e privadas. Os governos
muçulmanos, mais notadamente os do Irã e da Arábia Saudita, competiam
entre si para dar apoio aos bósnios e para obter a influência que o mesmo
gerava. As sociedades sunitas e xiitas, fundamentalistas e seculares,
muçulmanas árabes e não-árabes, do Marrocos à Malásia, todas aderiram.
As modalidades de apoio muçulmano para os bósnios variaram de ajuda
humanitária (inclusive 90 milhões de dólares levantados em 1995 na
Arábia Saudita), passando por apoio diplomático e enorme assistência
militar, até atos de violência, como o assassinato de 12 croatas em 1993,
na Argélia, por extremistas fundamentalistas islâmicos "em resposta ao
massacre de nossos confrades muçulmanos cujas gargantas foram corta-
das na Bósnia". 46 Essa congregação teve grande impacto sobre o curso
da guerra. Ela foi fundamental para a sobrevivência do Estado bósnio e
para seu êxito em reconquistar território depois das amplas vitórias
iniciais dos sérvios. Ela estimulou enormemente a islamização da socie-
dade bósnia e a identificação dos muçulmanos da Bósnia com a
comunidade islâmica mundial. E ela deu aos Estados Unidos um incentivo
para ser compreensivo para com as necessidades bósnias.
Os governos muçulmanos, individual e coletivamente, expressaram
repetidas vezes sua solidariedade aos bósnios irmãos na religião. O Irã
tomou a frente em 1992, descrevendo a guerra como um conflito religioso
com sérvios cristãos engajados no genocídio dos muçulmanos da Bósnia.
Fouad Ajami assinalou que, ao assumir essa liderança, o Irã fez "um
pagamento inicial pela gratidão do Estado bósnio" e estabeleceu o
modelo e criou o estímulo para que outras potências muçulmanas, como
a Turquia e a Arábia Saudita, o seguissem. Por insistência do Irã, a
Organização da Conferência Islâmica assumiu a questão e criou um grupo
para empreender um lobby pela causa bósnia nas Nações Unidas. Em
agosto de 1992, representantes islâmicos condenaram o alegado genocí-
dio na Assembléia Geral das Nações Unidas e, em nome da OCI, a
Turquia apresentou um projeto de resolução pleiteando a intervenção
militar nos termos do Artigo 7 da Carta das Nações Unidas. No início de
1993, os países muçulmanos fixaram um prazo para que o Ocidente
agisse a fim de proteger os bósnios, após a expiração do qual eles se
considerariam livres para fornecer armas à Bósnia. Em maio de 1993, a
OCI condenou o plano montado pelas nações ocidentais e pela Rússia
para proporcionar áreas de refúgio para os muçulmanos e para monitorar
a fronteira com a Sérvia, mas afastando qualquer intervenção militar. Ela
exigiu o término do boicote de armamentos, o emprego da força contra
as armas pesadas dos sérvios, um patrulhamento agressivo da fronteira
sérvia e a inclusão de tropas muçulmanas nas forças de paz. No mês
seguinte, a OCI, passando por cima das objeções ocidentais e russas, fez
com que a Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos
aprovasse uma resolução condenando a agressão sérvia e croata e
pedindo o término do boicote de armamentos. Em julho de 1993, para
um certo embaraço do Ocidente, a OCI ofereceu fornecer 18 mil homens
para as forças de paz das Nações Unidas, com soldados provenientes do
Irã, Turquia, Malásia, Tunísia, Paquistão e Bangladesh. Os Estados Unidos
vetaram o Irã e os sérvios objetaram energicamente às tropas turcas. Não
obstante, estas últimas chegaram à Bósnia no verão de 1994 e, em 1995,
o efetivo de 25 mil homens da Força de Proteção das Nações Unidas
compreendia sete mil homens da Turquia, Paquistão, Malásia, Indonésia
e Bangladesh. Em agosto de 1993, uma delegação da OCI, chefiada pelo
ministro do Exterior turco, fez gestões junto a Boutros Boutros-Ghali e
Warren Christopher a fim de que apoiassem ataques aéreos imediatos da
OTAN para proteger os bósnios de ataques sérvios. Ao que se informou,
·o fato de o Ocidente não haver adotado essa linha de ação criou graves
tensões entre a Turquia e seus aliados da OTAN. 47
Posteriormente, os primeiros-ministros da Turquia e do Paquistão
fizeram uma visita, que teve ampla divulgação, a Sarajevo a fim de
ressaltar a preocupação muçulmana, e a OCI voltou a repetir suas
exigências de assistência militar aos bósnios. No verão de 1995, o fato
de o Ocidente não ter defendido as áreas de refúgio contra ataques sérvios
levou a Turquia a aprovar a prestação de ajuda à Bósnia e a treinar tropas
bósnias, a Malásia a se comprometer a vender-lhe armas em violação do
boicote decretado pelas Nações Unidas e os Emirados Árabes Unidos a
concordarem em proporcionar fundos para fins militares e humanitários.
Em agosto de 1995, os ministros do Exterior de nove países-membros da
OCI aprovaram a assistência econômica e em armas à Bósnia.
Enquanto nenhuma outra questão gerou apoio tão unânime em
todo o Islã, o sofrimento dos muçulmanos da Bósnia teve especial
repercussão na Turquia. A Bósnia fizera parte do Império Otomano até 1878,
na prática, e até 1908 em teoria, e os imigrantes e refugiados bósnios

365
compõem aproximadamente cinco por cento da população da Turquia.
A simpatia pela causa bósnia e a indignação pelo que se percebia como
inação do Ocidente para proteger os bósnios se estenderam por todo o
povo turco, e o Partido Fundamentalista Islâmico de Bem-Estar, de
oposição, explorou essa questão contra o governo. Funcionários turcos,
por sua vez, ressaltaram as responsabilidades especiais da Turquia com
relação a todos os muçulmanos dos Bálcãs e o governo fez gestões de
forma sistemática pela intervenção militar das Nações Unidas, a fim de
salvaguardar os muçulmanos da Bósnia.48
De longe o tipo de ajuda mais importante que a ummah deu aos
muçulmanos da Bósnia foi a assistência militar: armas, dinheiro para
comprar armas, treinamento militar e voluntários. Logo que a guerra
começou, o governo bósnio abriu as portas para o envio de mujahedins
e, ao que consta, o total de voluntários chegou a quatro mil, mais do que
os estrangeiros que combateram do lado dos sérvios ou dos croatas. Aí
se incluíam unidades da Guarda Republicana Iraniana e muitos que
haviam combatido no Afeganistão. Dentre eles havia cidadãos do Paquis-
tão, Turquia, Irã, Argélia, Arábia Saudita, Egito e Sudão, além de albaneses
e turcos que estavam, como imigrantes temporários, trabalhando na
Alemanha, Áustria e Suíça. Organizações religiosas sauditas patrocinaram
muitos voluntários; mais de duas dezenas de sauditas foram mortos logo
nos primeiros meses da guerra, em 1992; e a Assembléia Mundial da
Juventude Islâmica transportou combatentes feridos de avião para aten-
dimento médico em]edah. No outono de 1992, guerrilheiros do Hezbol-
lah xiita libanês chegaram a fim de treinar o exército bósnio, treinamento
que foi posteriormente assumido pela Guarda Republicana Iraniana. Na
primavera de 1994, serviços de inteligência ocidentais informaram que
uma unidade da Guarda Republicana Iraniana, com 400 homens, estava
organizando unidades extremistas de guerrilha e terrorismo. Um funcio-
nário norte-americano disse que "os iranianos vêem nisso um meio de
atingir o ventre vulnerável da Europa". Segundo as Nações Unidas, os
mujahedins treinaram de três a cinco mil bósnios para as brigadas
especiais fundamentalistas islâmicas. O governo bósnio empregou os
mujahedinsem "atividades terroristas e ilegais e como tropas de choque",
embora essas unidades muitas vezes molestassem as populações locais
e criassem outros problemas para o governo. Os acordos de Dayton
exigiram que todos os combatentes estrangeiros saíssem da Bósnia,
porém o governo bósnio ajudou alguns combatentes a ficar, outorgan-
do-lhes cidadania bósnia e contratando homens da Guarda Republicana

366
Iraniana como trabalhadores. Um funcionário norte-americano advertiu
no início de 1996 que "o governo bósnio muito deve a esses grupos e
especialmente aos iranianos. O governo se mostrou incapaz de confron-
tá-los. Dentro de 12 meses, nós teremos partido, mas os mujahedins
pretendem ficar". 49
Os países ricos da ummah, encabeçados pela Arábia Saudita e pelo
Irã contribuíram com enormes quantias para desenvolver o poderio
'
militar bósnio. Nos primeiros meses da guerra, em 1992, o governo
saudita e fontes privadas forneceram 150 milhões de dólares em ajuda
para os bósnios, ostensivamente para fins humanitários, que, porém,
como se admitia amplamente, foram utilizados sobretudo para fins
militares. Segundo consta, os bósnios receberam armas no valor de 160
milhões de dólares durante os primeiros dois anos da guerra. No período
1993-95, os bósnios receberam dos sauditas mais 300 milhões de dólares
para comprar armas, além de 500 milhões de dólares supostamente em
ajuda humanitária. O Irã também foi uma grande fonte de assistência
militar e, segundo funcionários norte-americanos, despendeu centenas
de milhões de dólares por ano em armas para os bósnios. Segundo um
outro relatório, do valor total de dois bilhões de dólares em armas que
foram para a Bósnia nos primeiros anos de luta, de 80 a 90 por cento
foram para os muçulmanos. Graças a essa ajuda financeira, os bósnios
puderam comprar milhares de toneladas de armamentos. Dentre os
embarques interceptados, havia um de quatro mil fuzis e um milhão de
tiros de munição, um segundo de 11 mil fuzis, 30 morteiros e 750 mil
tiros de munição, e um terceiro com foguetes terra-terra, munição, jipes
e pistolas. Todos esses embarques se originavam no Irã, que era a
principal fonte de armamentos, mas a Turquia e a Malásia também eram
importantes fornecedores de armas. Algumas armas foram transportadas
por via aérea diretamente para a Bósnia, mas a maioria chegou através
da Croácia, quer por via aérea até Zagreb e depois, por terra ou por mar,
para Split e outros portos croatas, e finalmente por terra. Em troca de
permitir esse procedimento, os croatas ficavam com uma parte, ao que
consta um terço, das armas e, pensando na possibilidade de ter que vir
a combater a Bósnia no futuro, proibiam o transporte de tanques e
artilharia pesada através de seu território.SO
O dinheiro, os homens, o treinamento e as armas do Irã, Arábia
Saudita, Turquia e outros países muçulmanos possibilitaram aos bósnios
converter o que todos chamavam de um exército "improvisado" numa
competente força militar modestamente bem equipada. Ao se chegar ao
inverno de 1994, observadores de fora informaram constatar aumentos
espetaculares na sua coerência organizacional e na sua eficácia militar.5 1
Pondo sua nova força militar para funcionar, os bósnios romperam o
cessar-fogo e desencadearam ofensivas bem-sucedidas, primeiro contra
as milícias croatas e depois, mais no final da primavera, contra os sérvios.
No outono de 1994, o Quinto Corpo bósnio se deslocou da área de
refúgio das Nações Unidas em Bihac e fez recuar as forças sérvias,
produzindo a maior vitória bósnia até então e retomando considerável
parte de território dos sérvios, que foram prejudicados pela proibição
imposta pelo presidente Milosevic de que lhes fosse dado auxílio. Em
março de 1995, o exército bósnio tornou a romper a trégua e iniciou uma
grande ação perto de Tuzla, a que se seguiu uma ofensiva em junho em
torno de Sarajevo. O apoio de seu afins muçulmanos foi fator imprescin-
dível e decisivo para possibilitar ao governo bósnio fazer essas alterações
na balança de poder militar na Bósnia.
A guerra na Bósnia foi uma guerra de civilizações. Os três partici-
pantes primários provinham de civilizações diferentes e professavam
religiões diferentes. Com uma exceção parcial, a participação dos atores
secundários e terciários seguiu exatamente o modelo civilizacional. De
maneira universal, os Estados e organizações muçulmanos se congrega-
ram em apoio dos muçulmanos da Bósnia e em oposição aos croatas e
aos sérvios. De maneira universal, os Estados e organizações ortodoxos
apoiaram os sérvios e se opuseram a croatas e muçulmanos. Os governos
e as elites ocidentais apoiaram os croatas, fustigaram os sérvios e, de
modo geral, se mostraram indiferentes aos muçulmanos, ou temerosos.
À medida que prosseguia a guerra, os ódios e as divisões entre os grupos
se aprofundaram e suas identidades religiosas e civilizacionais se inten-
sificaram, sobretudo entre os muçulmanos. De modo genérico, as lições
que se podem extrair da guerra na Bósnia são: primeiro, os participantes
primários em guerras de linha de fratura podem contar com a ajuda, que
pode ser considerável, de seus afins civilizacionais; segundo, essa ajuda
pode afetar de modo significativo o curso da guerra; e terceiro, os governos
e povos de uma civilização não despendem sangue ou riquezas para
ajudar povos de outra civilização a lutar numa guerra de linha de fratura.
A única exceção parcial desse padrão civilizacional foram os Estados
Unidos, cujos dirigentes favoreceram retoricamente os muçulmanos. Na
prática, entretanto, o apoio norte-americano foi limitado. O governo
Clinton autorizou o emprego de poder aéreo norte-americano, mas não
de tropas no solo, para proteger as áreas de refúgio das Nações Unidas,

368
e advogou o término do boicote de armas. Ele não pressionou com
energia seus aliados para que apoiassem essa diretriz, mas coonestou
tanto os embarques iranianos de armas para os bósnios como o finan-
ciamento saudita para as compras de armamentos pelos bósnios, e, em
1994, parou de acatar o boicote.52 Com esse comportamento, os Estados
Unidos antagonizaram seus aliados e deram lugar ao que se via de maneira
geral como uma grande crise dentro da OTAN. Depois que foram assinados
os acordos de Dayton, os Estados Unidos concordaram em cooperar com
a Arábia Saudita e outros países muçulmanos para treinar e equipar as forças
bósnias. A pergunta então é a seguinte: por que, durante e depois da guerra,
os Estados Unidos foram o único país a romper com o molde civilizacional
e se tornar o único país não-muçulmano a promover os interesses dos
muçulmanos da Bósnia e trabalhar com os países muçulmanos em seu
favor? O que explica essa anomalia norte-americana?
Uma possibilidade é a de que, na realidade, não tenha sido uma
anomalia, mas sim uma conduta cuidadosamente calculada de realpolitik
civilizacional. Ao se pôr do lado dos bósnios e propor, sem êxito, que
se terminasse o boicote, os Estados Unidos estavam tentando reduzir a
influência de países muçulmanos fundamentalistas, como Irã e Arábia
Saudita, junto aos bósnios, até então seculares e orientados para a Europa.
Gontudo, se esse foi o motivo por que os Estados Unidos assentiram à
ajuda iraniana e saudita, por que não se empenharam com mais vigor
para que se terminasse o boicote, que teria legitimado a ajuda ocidental?
Por que os funcionários norte-americanos não fizeram advertências
públicas sobre os perigos do fundamentalismo islâmico nos Bálcãs? Uma
explicação alternativa para o comportamento norte-americano é que o
governo norte-americano estava sob pressão de seus amigos no mundo
islâmico, mais especialmente a Turquia e a Arábia Saudita, e aquiesceu
aos seus desejos a fim de preservar as boas relações com eles. Entretanto,
essas relações estão baseadas nas convergências de interesses que não
têm nenhuma vinculação com a Bósnia, e provavelmente não seriam
prejudicadas pelo fato de os Estados Unidos não ajudarem a Bósnia. Além
disso, esse raciocínio não explica por que os Estados Unidos aprovaram
implicitamente que enormes quantidades de armamentos iranianos en-
trassem na Bósnia numa época em que estavam confrontando o Irã em
outras frentes e a Arábia Saudita estava competindo com o Irã por adquirir
influência na Bósnia.
Conquanto considerações de realpolitik civilizacional possam ter
tido algum papel na definição das atitudes norte-americanas, outros
fatores parecem ter tido maior influência. Em qualquer conflito entre
terceiros, os norte-americanos querem identificar as forças do bem e as
forças do mal e se alinhar com as primeiras. As atrocidades dos sérvios
no início da guerra levaram-nos a serem retratados como os "maus",
matando inocentes e perpetrando genocídio, enquanto os bósnios
conseguiram promover uma imagem de si mesmos como vítimas impo-
tentes. Durante toda a guerra, a imprensa norte-americana dedicou pouca
atenção às limpezas étnicas e crimes de guerra por· parte de croatas e
muçulmanos, ou às violações de áreas de refúgio das Nações Unidas e
de acordos de cessar-fogo pelas forças bósnias. Para os norte-americanos,
os bósnios se tornaram, para usar a expressão de Rebecca West, seu
"povo balcânico favorito, implantado nos seus corações como sofredores
e inocentes, eternamente sendo massacrados e nunca massacradores".53
As elites norte-americanas tinham uma predisposição favorável para
com os bósnios porque gostavam da idéia de um país multicultural e,
nas etapas iniciais da guerra, o governo bósnio conseguiu promover essa
imagem. Durante toda a guerra, a .política norte-americana se manteve
teimosamente empenhada por uma Bósnia multiétnica, apesar do fato de
que os sérvios da Bósnia e os croatas da Bósnia a rejeitaram de forma ampla.
Embora a criação de um Estado multiétnico fosse obviamente impossível se
um grupo étnico estava cometendo genocídio contra outro, como elas
também acreditavam, as elites norte-americanas combinaram em suas
mentes essas imagens contraditórias para chegar a uma simpatia generali-
zada pela causa bósnia. O idealismo, o moralismo, os instintos humani-
tários, a ingenuidade e a ignorância dessas elites norte-americanas a
respeito dos Bálcãs levaram-nas assim a serem pró-bósnios e anti-sérvios.
Ao mesmo tempo, a falta tanto de significativos interesses de segurança
norte-americanos na Bósnia como de qualquer conexão cultural não dava
ao governo norte-americano razão alguma para fazer muito no sentido de
ajudar os bósnios, a não ser permitir que os iranianos e os sauditas os
armassem. Ao se recusar a identificar a guerra pelo que ela era, o governo
norte-americano alienou seus aliados, prolongou a luta e ajudou a criar nos
Bálcãs um Estado muçulmano fortemente influenciado pelo Irã. No final,
os bósnios sentiam uma profunda amargura para com os Estados Unidos,
que tinham falado bonito mas feito pouco, e uma profunda gratidão por
seus afins muçulmanos, que tinham comparecido com o dinheiro e as armas
necessários para que eles sobrevivessem e conseguissem vitórias militares.
Bernard-Henri Lévy comentou, e um editor saudita concordou, que
"A Bósnia é a nossa Espanha. A guerra na Bósnia-Herzegovina tornou-se
o equivalente emocional da luta contra o fascismo na Guerra Civil
Espanhola. Os que morreram são considerados mártires que tentaram
salvar seus irmãos muçulmanos."54 A comparação é apropriada. Numa
era das civilizações, a Bósnia é a Espanha de todos. A Guerra Civil
Espanhola foi uma guerra entre ideologias e sistemas políticos; a Guerra
da Bósnia é uma guerra entre civilizações e religiões. Democratas,
comunistas e fascistas foram para a Espanha a fim de lutar ao lado de
seus irmãos ideológicos, e os governos democráticos, comunistas e, de
forma mais ativa, fascistas proporcionaram ajuda. As guerras iugoslavas
viram uma maciça mobilização análoga de apoio externo pelos cristãos
ocidentais, cristãos ortodoxos e muçulmanos em favor de seus afins
civilizacionais. As principais potências da Ortodoxia, do Islã e do
Ocidente ficaram todas profundamente envolvidas. Depois de quatro
anos, a Guerra Civil Espanhola chegou ao seu final com a vitória das
forças de Franco. As guerras entre as comunidades religiosas nos Bálcãs
podem se reduzir e até cessar temporariamente, porém não há proba-
bilidade de que qualquer lado consiga uma vitória decisiva, e a falta de
vitória significa a falta de final. A Guerra Civil Espanhola foi o prelúdio
da II Guerra Mundial. A Guerra da Bósnia é mais um episódio sangrento
de um choque continuado de civilizações.

COMO SE PARAM AS GUERRAS DE LINHA DE FRATURA

"Toda guerra tem que terminar." Esta é a sabedoria convencional. Ela se


aplica a guerras de linha de fraturá? Sim e não. A violência de linha de
fratura pode cessar por completo durante certo período de tempo, porém
raramente ela termina de modo permanente. As guerras de linha de
fratura são marcadas por freqüentes tréguas, cessar-fogos, armistícios,
mas não por tratados abrangentes de paz que solucionem questões
políticas fundamentais. Elas têm essa característica de pára-e-recomeça
porque têm suas raízes em conflitos profundos de linha de fratura, que
envolvem relações antagônicas duradouras entre grupos de civilizações
diferentes. Os conflitos, por sua vez, provêm de proximidade geográfica,
religiões e culturas diferentes, estruturas sociais separadas e recordações
históricas das duas sociedades. No decurso de séculos, tudo isso pode
evoluir e o conflito subjacente pode se evaporar. Ou o conflito pode
desaparecer de forma rápida e brutal se um grupo extermina o outro.
Entretanto, se nenhuma dessas duas hipóteses acontecer, o conflito
prossegue, bem como os repetidos períodos de violência. As guerras de

7.71
linha de fratura são intermitentes; os conflitos de linha de fratura são
intermináveis.
Até mesmo uma parada temporária numa guerra de linha de fratura
geralmente depende de duas ocorrências. A primeira é a exaustão dos
participantes primários. Em algum momento, quando as baixas subiram
a dezenas de milhares, os refugiados a centenas de milhares e as cidades
_Beirute, Grozny, Vukovar -foram reduzidas a escombros, as pessoas
gritam "isso é loucura, isso é loucura, já basta", os radicais de ambos os
lados já não conseguem mobilizar a fúria popular, as negociações que
vinham se arrastando improdutivamente há anos recobram vitalidade e
os moderados se reafirmam e chegam a algum tipo de entendimento para
deter a carnificina. Ao se chegar à primavera de 1994, a guerra de seis
anos em torno de Nagorno-Karabakh tinha "exaurido" tanto armênios
como azerbaijanos e, por conseguinte, eles concordaram com uma
trégua. No outono de 1995, analogamente noticiou-se que, na Bósnia,
"todos os lados estão exaustos", e vieram os acordos de Dayton.55
Entretanto essas paradas são autolimitativas, elas apenas habilitam ambos
os lados a descansar e recompletar seus recursos. Então, quando um dos
lados vê a oportunidade de ganho, a guerra recomeça.
Para se conseguir uma pausa temporária também é necessário um
segundo fator: o envolvimento de participantes de outro nível que não
o primário, com o interesse e a força para obrigar as partes em luta a
dialogarem. As guerras de linha de fratura quase nunca são detidas por
negociações diretas entre as partes primárias isoladamente e só raramente
através de mediação de partes desinteressadas. O distanciamento cultural,
os ódios intensos e a violência mútua que se infligiram uma à outra
tornam extremamente difícil para as partes primárias sentar-se e se
engajar num debate produtivo em busca de alguma forma de cessar-fogo.
As questões políticas subjacentes, quem controla que território e pessoas,
e em que termos, ficam vindo à tona e impedem um acordo sobre
questões mais limitadas.
Os conflitos entre países ou grupos com uma cultura comum
podem, às vezes, ser resolvidos através da mediação por uma terceira
parte desinteressada que compartilhe dessa cultura, tenha uma legitimi-
dade reconhecida no âmbito dessa cultura e, por conseguinte, possa ter
a confiança de ambas as partes de que encontrará uma solução baseada
nos valores dessa cultura. O Papa pôde mediar com êxito na controvérsia
de fronteira argentino-chilena. Em conflitos entre grupos de civilizações
diferentes, entretanto, não há partes desinteressadas. É extremamente
difícil encontrar uma pessoa, uma instituição ou um Estado que ambas
as partes considerem ser de confiança. Qualquer mediador em potencial
pertence a uma das civilizações em conflito ou a uma terceira civilização,
ainda com uma outra cultura ou outros interesses, que não inspira
confiança em nenhuma das partes em conflito. O Papa não será chamado
pelos chechenos e pelos russos, ou pelos tâmiles e cingaleses. Geralmen-
te, também os organismos internacionais não são aceitáveis porque
carecem da capacidade de impor custos significativos ou de oferecer
benefícios significativos às partes.
As guerras de linha de fratura são terminadas não por indivíduos,
grupos ou organizações desinteressados, mas sim por partes secundárias
e terciárias interessadas, que acorreram em apoio de seus afins e têm a
capacidade, por um lado, de negociar acordos com suas contrapartes e,
por outro, de induzir seus afins a aceitarem esses acordos. Conquanto o
congregar intensifique e prolongue a guerra, de modo geral é uma
condição necessária, embora não suficiente, para limitar e fazer cessar a
guerra. Os elementos secundários e terciários que se congregam geral-
mente não querem ser transformados em combatentes de nível primário
e por isso tentam manter a guerra sob controle. Eles também têm
interesses mais diversificados do que os participantes primários, que
estão exclusivamente concentrados na guerra, e se preocupam com
outras questões em suas relações mútuas. Portanto, em algum momento
eles provavelmente verão que é do seu interesse parar a luta. Como eles
se congregaram do lado de seus afins, têm influência sobre estes. Os que
se congregam se transformam assim nos que contêm e fazem parar.
Guerras em que não haja partes secundárias nem terciárias têm
menor probabilidade de se expandir do que as outras, mas são mais
difíceis de serem paradas, como o são as guerras entre grupos de
civilizações que carecem de Estados-núcleos. As guerras de linha de
fratura que envolvem uma insurreição dentro de um Estado estabelecido
e que carecem de elementos significativos que se congreguem também
constituem problemas especiais. Se a guerra prossegue por um determi-
nado período, as exigências dos insurretos tendem a aumentar de alguma
forma de autonomia para a independência completa, que o governo
rejeita. Geralmente, o governo exige que os insurretos deponham as
armas como um primeiro passo para fazer cessar a luta, o que é rejeitado
pelos insurretos. O governo, também naturalmente, resiste ao envolvi-
mento de elementos de fora no que ele considera um problema
puramente interno, envolvendo "criminosos". A definição de questão

2"72
interna também dá a outros Estados o pretexto para não se envolverem,
como foi o caso das potências ocidentais em relação à Chechênia.
Esses problemas se complicam quando as civilizações envolvidas
carecem de Estados-núcleos. A guerra no Sudão, por exemplo, que
começou em 1956, foi parada em 1972, quando as partes estavam
exaustas, e o Conselho Mundial de Igrejas e o Conselho Pan-africano de
Igrejas, numa conquista virtualmente única para organizações internacio-
nais não-governamentais, tiveram êxito em negociar o acordo de Adis-
Abeba, que outorgou autonomia ao Sudão meridional. Entretanto, uma
década depois, o governo revogou o acordo, a guerra recomeçou, os
insurretos ampliaram seus objetivos, a posição do governo se endureceu
e os esforços por negociar outra parada fracassaram. Nem o mundo árabe
nem a África tinham Estados-núcleos com o interesse e a força para
pressionar os participantes. Os esforços de mediação de Jimmy Carter e
diversos líderes africanos não teve resultado, como tampouco tiveram os
esforços de uma comissão de Estados da África Oriental, composta por
Quênia, Eritréia, Uganda e Etiópia. Os Estados Unidos, que têm relações
profundamente antagônicas com o Sudão, não podiam atuar diretamente,
e tampouco podiam pedir ao Irã, ao Iraque ou à Líbia, que têm estreitas
relações com o Sudão, que desempenhassem papéis ativos. Em conse-
qüência, eles ficaram reduzidos a recorrer à Arábia Saudita, mas a
influência saudita sobre o Sudão era limitada.56
De modo geral, as negociações para um cessar-fogo são beneficia-
das na medida em que haja um envolvimento relativamente paralelo e
equilibrado das partes secundárias e terciárias de ambos os lados.
Contudo, em algumas circunstâncias, um único Estado-núcleo pode ser
suficientemente forte para produzir uma parada. Em 1992, a Conferência
sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE) tentou mediar na guerra
Armênia-Arzebaijão. Uma comissão - o Grupo de Minsk - foi criada,
incluindo partes primárias, secundárias e terciárias do conflito (armênios
de Nagorno-Karabakh, a Armênia, o Arzebaijão, a Rússia e a Turquia), e
mais a França, a Alemanha, a Itália, a Suécia, a República Checa, a
Bielo-Rússia e os Estados Unidos. Afora os Estados Unidos e a França,
com consideráveis diásporas armênias, esses últimos países tinham
pouco interesse, e pouca ou nenhuma capacidade, de produzir um fim
para a guerra. Quando as duas partes terciárias - a Rússia e a Turquia-,
além dos Estados Unidos, se puseram de acordo sobre um plano, ele foi
rejeitado pelos armênios de Nagorno-Karabakh. Entretanto a Rússia
patrocinou independentemente uma longa sene de negociações em
Moscou entre a Armênia e o Azerbaijão, que "criou uma alternativa para
o Grupo de Minsk e(. .. ) desse modo dissipou o esforço da comunidade
internacional". 57 No final, depois que os litigantes primários tinham ficado
exaustos e os russos haviam obtido o apoio do Irã para as negociações,
o esforço russo produziu um cessar-fogo. Na condição de partes secun-
dárias, a Rússia e o Irã também cooperaram nas tentativas, com êxitos
intermitentes, para conseguir um cessar-fogo no Tadjiquistão.
A Rússia será uma presença constante no Transcáucaso e terá a
capacidade de fazer respeitar o cessar-fogo por ela patrocinado enquanto
ela tiver interesse em fazê-lo. Isso contrasta com a situação dos Estados
Unidos em relação à Bósnia. Os acordos de Dayton foram montados
sobre propostas que tinham sido desenvolvidas pelo Grupo de Contato
dos Estados-núcleos interessados (Alemanha, Grã-Bretanha, França, Rús-
sia e Estados Unidos), porém nenhuma das outras partes terciárias esteve
intimamente envolvida na elaboração do acordo final, e duas das três
partes primárias da guerra ficaram à margem das negociações. A impo-
sição da observância do acordo fica a cargo de uma força da OTAN
dominada pelos norte-americanos. Se os Estados Unidos retirarem suas
tropas da Bósnia, nem as potências européias nem a Rússia terão
incentivos para continuar a implementar o acordo; o governo bósnio, os
sérvios e os croatas terão todos os incentivos para reiniciar a luta uma
vez que se tenham recuperado; e os governos sérvio e croata serão
tentados a aproveitar a oportunidade de concretizar seus sonhos de uma
Grande Sérvia e de uma Grande Croácia.
Robert Putnam salientou a medida em que as negociações entre os
Estados são "jogos em dois níveis", nos quais os diplomatas negociam
simultaneamente com os grupos de interesse dentro de seu próprio país
e com seus equivalentes no outro país. Numa análise paralela, Huntington
demonstrou que, num governo autoritário, os reformistas que estejam
negociando uma transição para a democracia com moderados na oposi-
ção também precisam negociar com os linhas-duras de dentro do
governo, ou então neutralizá-los, da mesma forma que os moderados
precisam negociar com os radicais na oposição.58 Esses jogos em dois
níveis envolvem no mínimo quatro participantes e pelo menos três linhas
de relacionamento entre si, e muitas vezes quatro dessas linhas. Entre-
tanto, uma guerra de linha de fratura complexa é um jogo em três níveis,
com pelo menos seis partes e pelo menos sete relações entre elas (ver
Figura 11.1). As relações horizontais que atravessam as linhas de fratura
existem entre pares de partes primarias, secundárias e terciárias. As
relações verticais existem entre as partes nos diferentes níveis dentro de
cada civilização. Assim sendo, para se conseguir uma parada na luta
numa guerra de "modelo completo", é preciso:

• envolvimento ativo das partes secundárias e terciárias;


• negociação pelas partes terciárias dos termos amplos para fazer
parar a luta;
• emprego pelas partes terciárias de recompensas e penalidades
para conseguir que as partes secundárias aceitem esses termos e
pressionem as partes primárias para que os aceitem;
• retirada pelas partes secundárias do seu apoio às partes primárias,
e, na realidade, traição a estas últimas;
• como resultado dessa pressão, a aceitação dos termos pelas
partes primárias, os quais, evidentemente, elas violarão quando
acharem que é do seu interesse fazê-lo.

O processo de paz na Bósnia envolveu todos esses elementos. Os


esforços de atores individuais, dos Estados Unidos, da Rússia, da União
Européia, para produzir um acordo se notabilizaram pelo fracasso. As
potências ocidentais relutavam em incluir a Rússia como parceiro pleno
no processo. Os russos protestaram energicamente contra sua exclusão,
argumentando que tinham laços históricos com os sérvios e também
interesses mais diretos nos Bálcãs do que qualquer outra das principais
potências. A Rússia insistiu em participar plenamente dos esforços para
resolver os conflitos e condenou energicamente a "tendência por parte
dos Estados Unidos de ditar seus próprios termos". A necessidade de
incluir os russos ficou clara em fevereiro de 1994. Sem consultar a Rússia,
a OTAN deu um ultimato aos sérvios da Bósnia para que retirassem seu
armamento pesado do perímetro em tomo de Sarajevo sob pena de
ataques aéreos. Os sérvios resistiram a essa exigência e parecia provável
um encontro violento com a OTAN. Yeltsin advertiu que "algumas
pessoas estão tentando resolver a questão da Bósnia sem a participação
da Rússia" e "nós não permitiremos isso". O governo russo então tomou
a iniciativa e persuadiu os sérvios a retirarem seu armamento caso a
Rússia colocasse tropas de manutenção de paz na área de Sarajevo. Esse
golpe diplomático evitou a escalada da violência, demonstrou ao Oci-
dente o poder russo sobre os sérvios e levou tropas russas para o coração
da área em disputa entre os muçulmanos da Bósnia e os sérvios da
Bósnia.59 Por meio dessa manobra, a Rússia de fato fez valer sua
reivindicação de "parceria em igualdade de condições" com o Ocidente
no tratamento da questão da Bósnia.
Não obstante, em abril, a OTAN mais uma vez autorizou o bombar-
deio de posições sérvias sem consultar a Rússia. Isso produziu uma
imensa reação negativa em todo o espectro político russo e reforçou a
oposição nacionalista contra Yeltsin e Kozyrev. Imediatamente depois
disso, as potências terciárias relevantes - Grã-Bretanha, França, Alema-
nha, Rússia e Estados Unidos - constituíram o Grupo de Contato para
estruturar um acordo. Em junho de 1994, o grupo produziu um plano
que atribuía 51 por cento da Bósnia a uma federação muçulmano-croata
e 49 por cento aos sérvios da Bósnia. Esse plano tomou-se a base para
o posterior acordo de Dayton. No ano seguinte, foi preciso acertar
providências para a participação de tropas russas na imposição da
Observância dos acordos de Dayton.
É preciso convencer as partes secundárias e primárias dos acordos
entre as partes terciárias. Como disse o diplomata russo Vitaly Churkin,
os norte-americanos precisam aplicar pressão sobre os bósnios, os
alemães sobre os croatas e os russos sobre os sérvios.60 Nas etapas iniciais
das guerras iugoslavas, a Rússia fez uma monumental concessão ao
concordar com as sanções econômicas contra a Sérvia. Na qualidade de
país afim, no qual os sérvios podiam confiar, a Rússia também foi algumas
vezes capaz de impor limitações aos sérvios e pressioná-los a aceitar
acomodações que de outro modo eles rejeitariam. Em 1995, por exemplo,
a Rússia, juntamente com a Grécia, intercedeu junto aos sérvios da Bósnia
para obter a libertação de soldados holandeses da força de paz que
tinham sido tomados como reféns. Em algumas ocasiões, porém, os
sérvios da Bósnia voltaram atrás em acordos que tinham feito sob pressão
russa, com o que criaram embaraços para a Rússia, por não ter sido capaz
de levar seus afins a cumprirem o acordado. Em abril de 1994, por
exemplo, a Rússia obteve a concordância dos sérvios da Bósnia para
cessarem seu ataque a Goradze, mas depois os sérvios violaram o acordo.
Os russos ficaram furiosos. Um diplomata russo disse que os sérvios da
Bósnia "tinham ficado loucos pela guerra", Yeltsin insistiu que "a
liderança sérvia precisa cumprir com a obrigação que assumiu com a
Rússia" e a Rússia retirou suas objeções aos ataques aéreos pela OTAN.6 1
Embora apoiassem e fortalecessem a Croácia, a Alemanha e outros
Estados ocidentais também eram capazes de conter o comportamento
croata. O presidente Tudjman estava profundamente empenhado em que
seu país católico fosse aceito como um país europeu e admitido em
organizações européias. As potências ocidentais exploraram o apoio
diplomático, econômico e militar que davam à Croácia e o desejo croata
de ser aceito no "clube" para induzir Tudjman a aceitar acomodações em
relação a muitas questões. Em março de 1995, foi dito a Tudjman que,
se ele queria fazer parte do Ocidente, precisava permitir que a Força de
Proteção das Nações Unidas permanecesse em Krajina. Um diplomata
ocidental comentou que "é muito importante para Tudjman poder
juntar-se ao Ocidente. Ele não quer ser deixado sozinho com os sérvios
e os russos". Ele também foi advertido a restringir a limpeza étnica
quando suas tropas conquistassem território em Krajina e em outras áreas
habitadas por sérvios e a abster-se de estender sua ofensiva à Eslavônia
Oriental. Numa outra questão, foi dito aos croatas que, se eles não
integrassem a federação com os muçulmanos, "a porta para o Ocidente
lhes será fechada para sempre", nas palavras de um funcionário norte-
americano. 62 Na condição de principal fonte externa de apoio financeiro
da Croácia, a Alemanha estava numa posição particularmente forte para
influir sobre o comportamento croata. O estreito relacionamento que os
Estados Unidos haviam desenvolvido com a Croácia também ajudou a
evitar, pelo menos durante 1995, que Tudjman implementasse seu desejo,
freqüentemente expressado, de efetuar a partição da Bósnia-Herzegovina
entre a Croácia e a Sérvia.
Ao contrário da Rússia e da Alemanha, os Estados Unidos careciam
de aspectos culturais em comum com seu cliente bósnio e por isso estavam
numa posição fraca para pressionar os muçulmanos a aceitarem uma
acomodação. Além disso, à parte a retórica, os Estados Unidos apenas
ajudaram os bósnios fazendo vistas grossas às violações do boicote de armas
pelo Irã e por outros Estados muçulmanos. Conseqüentemente, os muçul-
manos da Bósnia se sentiam cada vez mais gratos à comunidade islâmica
em geral e cada vez mais identificados com ela. Ao mesmo tempo,
condenavam os Estados Unidos por adotar "dois pesos e duas medidas" e
não repelir a agressão contra eles como haviam feito no Kuwait. O fato de
se fazerem de vítimas tomou ainda mais difícil para os Estados Unidos
pressioná-los a acederem a acomodações. Nessas circunstâncias, eles
puderam rejeitar as propostas de paz, aumentar seu poderio militar com
a ajuda de seus amigos muçulmanos e acabaram por tomar a iniciativa
e retomar parte considerável do território que haviam perdido.
A resistência à acomodação é intensa entre as partes primárias. Na
Guerra do Transcáucaso, a ultranacionalista Federação Revolucionária

2"'70
Armênia (Dashnak), que tinha muita força na diáspora armênia, dominou
a entidade Nagomo-Karabakh, rejeitou a proposta de paz turco-russo-
norte-americana de maio de 1993 - aceita pelos governos da Armênia
e do Azerbaijão - , empreendeu ofensivas militares que provocaram
acusações de limpeza étnica, suscitaram a perspectiva de uma guerra
mais ampla e pioraram seu relacionamento com o governo armênio, mais
moderado. O êxito da ofensiva em Nagorno-Karabakh causou problemas
para a Armênia, que estava ansiosa por melhorar suas relações com a
Turquia e o Irã a fim de atenuar a escassez de alimentos e energia
resultante da guerra e do bloqueio turco. Um diplomata ocidental
comentou que "quanto melhor vão as coisas em Karabakh, mais difícil
fica para Yerevan".63 O presidente da Armênia, Levon Ter-Petrossian, tal
como o presidente Yeltsin, tinha que equilibrar as pressões dos na-
cionalistas em sua legislatura com os interesses mais amplos da política
externa em apaziguar outros países e, no final de 1994, seu governo
expulsou da Armênia o partido Dashnak.
Do mesmo modo que os armênios de Nagorno-Karabakh, os sérvios
da Bósnia e os croatas da Bósnia adotaram posições de linha-dura. Em
conseqüência, quando os governos croata e sérvio foram pressionados
para ajudar no processo de paz, surgiram problemas nas suas relações
com seus afins na Bósnia. Com os croatas esses problemas foram menos
graves, quando os croatas da Bósnia concordaram na forma, senão na
prática, em se juntar à federação com os muçulmanos. Em contraste, o
conflito entre o presidente Milosevic e o líder sérvio da Bósnia, Radovan
Karadzic, se tornou mais intenso e público, impelido por antagonismo
pessoal. Em agosto de 1994, Karadzic rejeitou o plano de paz que havia
sido aprovado por Milosevic. O governo sérvio, ansioso para que
acabassem as sanções, anunciou que estava cortando todo o comércio
com os sérvios da Bósnia, com exceção de alimentos e medicamentos.
Em troca, as Nações Unidas atenuaram suas sanções contra a Sérvia. No
ano seguinte, Milosevic permitiu que o exército croata expulsasse os
sérvios de Krajina, e forças croatas e muçulmanas os forçaram a retornar
para o noroeste da Bósnia. Ele também concordou com Tudjman para
permitir o restabelecimento gradual do controle croata sobre a Eslavônia
Oriental, ocupada pelos sérvios. Com a aprovação das grandes potências,
ele então de fato "levou" os sérvios da Bósnia para as negociações de
Dayton, incorporando-os à sua delegação.
As ações de Milosevic conduziram ao fim das sanções das Nações
Unidas contra a Sérvia. Elas também lhe valeram a aprovação de uma

~79
comunidade internacional um tanto surpresa. O belicoso nacionalista,
agressivo, promotor da limpeza étnica e da Grande Sérvia de 1992
transformara-se no promotor da paz de 1995. Entretanto, para muitos
sérvios, ele havia se transformado num traidor. Ele foi condenado em
Belgrado por nacionalistas sérvios e líderes da Igreja Ortodoxa e foi
duramente acusado de traição pelos sérvios da Bósnia e de Krajina. Nisso, ·,,
é claro, eles reproduziram as acusações dos colonos da Margem Ociden- 1
tal desferidas contra o governo israelense por seu acordo com a OLP. A
traição dos afins é o preço da paz numa guerra de linha de fratura.
A exaustão da guerra e os incentivos e pressões de partes terciárias
obrigam a mudanças nas partes secundárias e primárias. Ou os modera-
dos substituem no poder os extremistas, ou os extremistas, como
Milosevic, vêem que é do seu interesse tomar-se moderados. Eles o
fazem, porém, correndo certos riscos. Aqueles que são vistos como
traidores despertam ódio muito mais apaixonado do que os inimigos. Os
líderes dos muçulmanos de Caxemira, dos chechenos e dos cingaleses
em Sri Lanka tiveram o destino de Sadat e Rabin por trair a causa e tentar
encontrar uma solução de acomodação com o arquiinimigo. Em 1914,
um nacionalista sérvio assassinou um arquiduque austríaco. Na esteira
de Dayton, seu alvo mais provável seria Slobodan Milosevic.
Um acordo para pôr termo a uma guerra de linha de fratura terá
êxito, ainda que apenas temporário, na medida em que refletir o
equilíbrio de poder local entre as partes primárias e os interesses das
partes terciárias e secundárias. A divisão da Bósnia em 51 e 49 por cento
não era viável em 1994, quando os sérvios controlavam 70 por cento do
país. Ela se tornou viável quando as ofensivas croata e muçulmana
reduziram o controle sérvio a quase a metade. O processo de paz também
foi auxiliado pela limpeza étnica que foi realizada, com os sérvios
reduzidos a menos de três por cento da população da Croácia e membros
de todos os três grupos ficando separados dentro da Bósnia, violenta ou
voluntariamente. Além disso, as partes secundárias e terciárias, estas
últimas muitas vezes os Estados-núcleos das civilizações, precisam ter
reais interesses de segurança ou comunitários numa guerra, a fim de
patrocinarem uma solução viável. Os participantes primários não podem,
sozinhos, fazer parar guerras de linha de fratura. Fazê-las parar ou
impedir sua escalada em guerras globais depende precipuamente dos
interesses e das ações dos Estados-núcleos das principais civilizações do
mundo. As guerras de linha de fratura borbulham de baixo para cima,
as pazes de linha de fratura escorrem em gotas de cima para baixo.

380
V

0 FUTURO
DAS CIVILIZAÇÕES
CAPÍTULO 12

O Ocidente, as Civilizações
e a Civilização

A RENOVAÇÃO DO OCIDENTE?
história chega ao fim pelo menos uma vez e, ocasionalmente, com

A maior freqüência na história de cada civilização. Quando surge o


Estado universal de uma civilização, seu povo fica cego pelo que
Toynbee denominou "a miragem da imortalidade", e convicto de que a
sua é a forma definitiva da sociedade humana. Assim foi com o Império
Romano, o Califado dos Abassidas, o Império Mogol e o Império
Otomano. Os cidadãos de um desses Estados universais, "desafiando
fatos aparentemente óbvios,(. ..) tendem a considerá-lo não apenas como
um abrigo noturno no descampado, mas como a Terra Prometida, a meta
dos empreendimentos humanos". O mesmo se aplicava no auge da Pax
Britannica. Para a classe média inglesa em 1897, "a História, tal como a
viam, tinha terminado. (. .. ) E tinham todos os motivos para se felicitar
pelo estado permanente de felicidade ante essa conclusão que a História
lhes havia outorgado". 1 Entretanto, as sociedades que supõem que a sua
história chegou ao fim geralmente são as sociedades cuja história está
prestes a entrar em declínio.
Será o Ocidente uma exceção a esse padrão? As duas indagações-
chave foram formuladas por Melko:

\ 383
/.

Primeira: será a civilização ocidental uma nova espécie, numa


categoria própria, incomparavelmente diferente de todas as outras
civilizações que existiram até hoje?
Segunda: será que sua expansão por todo o mundo apresenta o risco
(ou a promessa) de acabar com a possibilidade de desenvolvimento de
quaisquer outras civilizações?2

Muito naturalmente, a inclinação da maioria dos ocidentais é de respon-


der afirmativamente a ambas as perguntas. E tal_vez tenham razão.
Entretanto, no passado, os povos de outras civilizações pensaram da
mesma forma, e pensaram errado.
É óbvio que o Ocidente difere de todas as outras civilizações
anteriores pelo fato de que ele produziu um impacto avassalador sobre
todas as outras civilizações que existiram a partir de 1500. Ele também
inaugurou os processos de modernização e de industrialização, que se
tornaram mundiais, e, em conseqüência, as sociedades em todas as outras
civilizações têm tentado alcançar o Ocidente em riqueza e modernidade.
Contudo, será que essas características do Ocidente significam que os
seus padrões prevaleceram em todas as outras civilizações? As provas da
História e os julgamentos dos estudiosos da história comparativa das
civilizações sugerem algo diferente. O desenvolvimento do Ocidente até
hoje não se afastou de modo significativo dos padrões evolutivos comuns
às civilizações ao longo da História. O Ressurgimento Islâmico e o
dinamismo econômico da Ásia demonstram que outras civilizações estão
vivas e atuantes e, pelo menos em termos potenciais, constituindo uma
ameaça para o Ocidente. Uma guerra de grandes proporções entre o
Ocidente e os Estados-núcleos de outras civilizações não é inevitável,
mas poderia ocorrer. Alternativamente, o declínio gradual e irregular do
Ocidente, que se iniciou no começo do século XX, poderia continuar
durante as próximas décadas ou os próximos séculos. Ou o Ocidente
poderia passar por um período de revitalização, inverter o declínio de
sua influência nos assuntos mundiais e reconfirmar sua posição de líder
que as outras civilizações seguem e emulam.
Carroll Quigley, na que provavelmente é a mais útil periodização
da evolução das civilizações históricas, vê um padrão comum de sete
fases3 (ver p. 49). Segundo sua argumentação, a civilização ocidental
começou gradualmente a tomar forma entre 370 e 750 d.C., através da
mescla de elementos das culturas clássica, semítica, sarracena e bárbara.
Seu período de gestação, que durou de meados do século VIII até o final
do século X, foi seguido por um movimento, incomum entre as civiliza-

384
ções, de alternância das fases de expansão e fases de conflito. Segundo
os seus termos, bem como os de outros estudiosos das civilizações, o
Ocidente parece atualmente estar saindo de sua fase de conflito. A
civilização ocidental tomou-se uma zona de segurança. As guerras
"internas" no Ocidente, afora uma guerra fria ocasional, são virtualmente
impensáveis. Como se argumentou no Capítulo 2, o Ocidente está
desenvolvendo o seu equivalente de um império universal sob a forma
de um complexo sistema de confederações, federações, regimes e outros
tipos de instituições cooperativas que encarnam, no nível civilizacional,
sua dedicação à política democrática e pluralista. Em suma, o Ocidente
tomou-se uma sociedade madura que está entrando no que as gerações
futuras, segundo o padrão repetitivo das civilizações, considerarão como
uma "idade de ouro", um período de paz decorrente, nos termos de
Quigley, "da ausência de quaisquer unidades competidoras dentro do
âmbito da própria civilização e do distanciamento, ou até mesmo
inexistência de lutas com outras sociedades de fora". É também um
período de ~rosperidade que decorre "do fim da destruição pela belige-
rância interna, da redução das barreiras ao comércio interno, do es-
tabelecimento de um sistema comum de pesos, medidas e moeda e de
um extenso sistema de gastos governamentais associado com o es-
tabelecimento de um império universal".
Em civilizações anteriores, essa fase de uma feliz idade de ouro,
com suas visões de imortalidade, terminou de forma dramática e rápida
com a vitória de uma sociedade externa, ou lentamente e de modo
igualmente doloroso pela desagregação interna. O que acontece dentro de
uma civilização é tão crucial para sua capacidade de resistir à destruição
proveniente de fontes externas como para conter a deterioração vinda de
dentro. Quigley argumentou em 1961 que as civilizações crescem porque
dispõem de um "instrumento de expansão", ou seja, organização militar,
religiosa, política ou econômica que acumula os excedentes e os investe
em inovações produtivas. As civilizações entram em declínio quando cessa
"a aplicação dos excedentes a novas maneiras de fazer as coisas. Em termos
modernos, dizemos que a taxa de investimentos diminui". Isso acontece
porque os grupos sociais que controlam os excedentes têm um interesse
próprio em utilizá-los para "fins não-produtivos, mas que satisfazem ao
ego (. .. ), os quais destinam os excedentes para o consumo mas não
proporcionam métodos de produção mais eficazes". As pessoas vivem
do seu capital e a civilização passa do estágio de Estado universal para
o estágio de decadência. É um período de

385
depressão econômica aguda, padrões de vida em declínio, guerras civis
entre os diversos interesses próprios e uma crescente falta de cultura. A
sociedade fica cada vez mais fraca. Fazem-se em vão tentativas de parar
com o desperdício através de legislação. Mas o declínio continua. Os
segmentos religioso, intelectual, social e político da sociedade começam
a perder a lealdade das massas em larga escala. Novos movimentos
1
religiosos começam a se espalhar pela sociedade. Há uma relutância
crescente em lutar pela sociedade ou até mesmo em sustentá-la pelo 1
pagamento de impostos.

A decadência leva então ao estágio da invasão, "quando a civilização,


que já não é capaz de se defender porque não está mais disposta a se
defender, fica inteiramente aberta a 'invasores bárbaros"', que muitas
vezes provêm de "uma outra civilização, mais nova e mais poderosa".4
Entretanto, a lição mais importante da história das civilizações é a
de que muitas coisas são prováveis, mas nada é inevitável. As civilizações
podem se reformar e se renovar, como de fato já aconteceu. A questão
fundamental para o Ocidente é se, inteiramente à parte de quaisquer desafios
externos, ele é capaz de sustar e inverter os processos internos de
decadência. Será o Ocidente capaz de se renovar ou a deterioração interna
simplesmente acelerará o seu fim e/ou sua subordinação a outras
civilizações mais dinâmicas econômica e demograficamente?*
Em meados dos anos 90, o Ocidente tinha muitas características
identificadas por Quigley como as de uma civilização madura à beira da
decadência. Economicamente, o Ocidente era muito mais rico do que
qualquer outra civilização, mas ele também tinha baixas taxas de
crescimento econômico, de poupança e de investimentos, especialmente
em comparação com as sociedades da Ásia Oriental. O consumo
individual e coletivo tinha prioridade sobre a criação da capacidade para
futuro poder econômico e militar. O crescimento natural da população
era baixo, especialmente em comparação com o dos países islâmicos.
Entretanto, nenhum desses problemas teria inevitavelmente conseqüên-
cias catastróficas. As economias ocidentais ainda estavam crescendo. De

• Numa previsão que bem pode estar correta, mas que, na realidade, não é sustentada por sua
análise teórica e empírica, Quigley conclui: "A civilização ocidental não existia por volta de
500 d.C., existia em pleno vigor por volta do ano 1500 d.C. e certamente terá deixado de
existir em algum ponto do futuro, talvez antes de 2500 d.C.." Segundo ele, novas civilizações
na China e na índia, que substituirão as que o Ocidente destruiu, passarão então para seus
estágios de expansão e ameaçarão as civilizações ocidental e ortodoxa. Carroll Quigley, 1be
Evolution ofCtvilizations: An Introduction to Histortcal Analysis [A Evolução das Civilizações:
uma Introdução ã Análise Histórica] (Indianápolis: Liberty Press, 1979; inicialmente publicada
por Macmillan em 1961), pp. 127, 164-66.

386
1
torma geral, o:::. puvu:::. uuuc1"'""' estavam vivendo melhor. O Ocidente
ainda era o líder em pesquisa científica e inovação tecnológica. Era
improvável que as baixas taxas de nascimento fossem sanadas pelos
governos (cujos esforços nesse sentido geralmente são ainda menos bem-
sucedidos do que os esforços para reduzir o crescimento populacional). A
1 imigração, porém, era uma fonte em potencial de novo vigor e capital humano,
desde que fossem satisfeitas duas condições: a primeira, que se desse
prioridade às pessoas capazes, qualificadas e empreendedoras, com os
talentos e os conhecimentos de que necessitasse o país anfitrião; a segunda,
que os novos imigrantes e seus filhos fossem assimilados nas culturas do
P~~s respectivo e do Ocidente. Os Estados Unidos tinham uma proba-
bilidade de ter problemas para satisfazer a primeira condição e os países
euro?e~s para satisfazer a segunda. No entanto, adotar diretrizes regendo
os mveis, fontes, características e assimilação de imigrantes está perfei-
tamente dentro da experiência e competência dos governos ocidentais.
Muito mais importantes do que a economia e a demografia são os
pr~blemas de declínio moral, suicídio cultural e desunião política no
Ocidente. As manifestações freqüentemente apontadas de declínio moral
abrangem:

1. aumento de formas de comportamento anti-social como crime


uso de drogas e violência em geral; ' '
2. decadência da família, inclusive índices mais elevados de divór-
cio, ilegitimidade, gravidez de adolescentes e famílias de pai ou mãe
sozinhos;

~- pelo menos nos Estados Unidos, um declínio de "capital social",


isto é, participação em associações voluntárias e confiança entre as
pessoas ligadas a essa participação;
4. um debilitamento generalizado da "ética de trabalho" e aumento
do culto à satisfação pessoal;
~- diminuição no empenho pelo aprendizado e pela atividade
intelectual, manifestado nos Estados Unidos por níveis mais baixos
de realização acadêmica.

A futura saúde do Ocidente e sua influência sobre outras sociedades


dependem, em grau considerável, do êxito que tenha em lidar com essas
tendências, as quais, é claro, dão lugar a afirmações de superioridade
moral por parte de muçulmanos e asiáticos.

~87
A cultura ocidental é contestada por grupos dentro das sociedades
ocidentais. Uma dessas contestações vem de imigrantes de outras dvili-
zações, que repudiam a assimilação e continuam a esposar e propagar
os valores, costumes e culturas de suas sociedades de origem. Esse
fenômeno é mais notável entre os muçulmanos na Europa, que cons-
'
tituem, contudo, pequena minoria. Ele também se manifesta, em menor
grau, entre os hispânicos nos Estados Unidos, que compõem uma grande
minoria. Neste caso, se a assimilação fracassar, os Estados Unidos se
tornarão um país rachado, com todo o potencial para a discórdia e a
desunião internas que isso acarreta. Na Europa, a civilização ocidental
também pode ser solapada pelo enfraquecimento de seu componente
fundamental, o Cristianismo. Uma quantidade cada vez menor de euro-
peus professa crenças religiosas, respeita práticas religiosas e participa
de atividades religiosas.5 Essa tendência reflete não tanto hostilidade para
com a religião, mas sim uma indiferença por ela. Não obstante, os
conceitos, práticas e valores cristãos permeiam a civilização européia.
Um sueco comentou que "os suecos provavelmente são o povo menos
religioso da Europa, mas não se pode de modo algum compreender esse
país a menos que se perceba que nossas instituições, práticas sociais,
famílias, política e estilo de vida são essencialmente moldados por nossa
herança luterana". Os norte-americanos, ao contrário dos europeus, de
forma preponderante acreditam em Deus, se consideram um povo
religioso e freqüentam a igreja em grande número. Embora não houvesse
indícios de um ressurgimento da religião nos Estados Unidos em meados
da década de 80, a década seguinte pareceu testemunhar uma intensifi-
cação da atividade religiosa.6 A erosão do Cristianismo entre os ocidentais
provavelmente será, na pior das hipóteses, uma ameaça de muito longo
prazo para a saúde da civilização ocidental.
Nos Estados Unidos, há um desafio mais imediato e mais perigoso.
Do ponto de vista histórico, a identidade nacional norte-americana foi
definida culturalmente pelo legado da civilização ocidental e politicamen-
te pelo Credo norte-americano com o qual os norte-americanos concor-
dam amplamente: liberdade, democracia, individualismo, igualdade pe-
rante a lei, constitucionalismo, propriedade privada. No final do século
XX, ambos os componentes da identidade norte-americana passaram a
sofrer o ataque concentrado e contínuo de um número pequeno, porém
influente, de intelectuais e editores. Em nome do multiculturalismo,
atacaram a identificação dos Estados Unidos com a civilização ocidental,
negaram a existência de uma cultura comum norte-americana e promo-
veram outras identidades e agrupamentos rac1a1s, étnicos e de outras
culturas subnacionais. Nas palavras de um de seus relatórios, eles..,
condenaram "o viés sistemático em direção à cultura européia e seus
derivados" na educação e "o predomínio da perspectiva monocultura!
europeu-norte-americana". Como disse Arthur Schlesinger Jr., os mul-
ticulturalistas são "muitas vezes separatistas etnocêntricos, que vêem
pouca coisa no legado ocidental além dos crimes ocidentais". Seu "estado
de espírito é livrar os norte-americanos da pecaminosa herança européia
e buscar infusões redentoras de culturas não-ocidentais". 7
A tendência multicultural também se manifestou em vanos dis-
positivos legais que se seguiram às leis sobre direitos civis da década de 60
e, nos anos 90, o governo Clinton fez do estímulo à diversidade uma de
suas metas principais. O contraste com o passado é impressionante. Os Pais
da Pátria viam a diversidade como uma realidade e como um problema: daí
o lema nacional - e pluribus unum - escolhido por um comitê do
Congresso Continental composto por Benjamin Franklin, Thomas Jefferson
e John Adams. Líderes políticos posteriores, que também receavam os
perigos da diversidade racial, sectária, étnica, econômica e cultural (a qual,
na verdade, produziu a maior guerra do século entre 1815 e 1914),
responderam ao chamamento para que "nos unamos", e fizeram da
promoção da unidade nacional sua responsabilidade fundamental. Theo-
dore Roosevelt advertiu que "o único meio seguro de levar este país à
ruína, de impedir de forma absoluta qualquer possibilidade de que ele
continue sendo uma nação, seria permitir que ele se tornasse um
emaranhado de nacionalidades em querelas" .8 Entretanto, nos anos 90,
os dirigentes dos Estados Unidos não só permitiram como promoveram
assiduamente a diversidade em vez da unidade do povo que governam.
Como vimos, os dirigentes de outros países tentaram algumas vezes
repudiar sua herança cultural e mudar a identidade de seu país de uma
civilização para outra. Eles não tiveram êxito em nenhum caso até hoje
e, em vez disso, criaram esquizofrênicos países divididos. De modo
análogo, os multiculturalistas norte-americanos rejeitam a herança cultu-
ral de seu país. Em vez de tentar identificar os Estados Unidos com outra
civilização, porém, eles desejam criar um país de muitas civilizações, o que
equivale a dizer um país que não pertence a nenhuma civilização e que
carece de um núcleo cultural. A História mostra que nenhum país
constituído desse modo pode manter por muito tempo uma sociedade
coerente. Uns Estados Unidos multicivilizacionais não serão os Estados
Unidos, e sim as Nações Unidas.
Os multiculturalistas também contestaram um elemento funda-
mental do Credo norte-americano, ao substituir os direitos dos indivíduos
pelos direitos dos grupos, definidos sobretudo em termos de raça, etnia,
sexo e preferência sexual. Na década de 40, Gunnar Myrdal disse,
reforçando os comentários de observadores estrangeiros recuando até
Hector St. John de Crevecoeur e Alexis de Tocqueville, que o Credo tinha
sido "o cimento na estrutura dessa grande e diversificada nação". Richard
Hofstader concordou, dizendo que "foi nosso destino como nação não
ter ideologias, mas ser uma ideologia" .9 O que acontecerá, então, aos
Estados Unidos se essa ideologia for repudiada por uma parcela signifi-
cativa de seus cidadãos? O destino da União Soviética, o outro grande
país cuja unidade, mais ainda do que a dos Estados Unidos, foi definida
em termos ideológicos, é um exemplo que deveria incutir sensatez nos
norte-americanos. O filósofo japonês Takeshi Umehara aventou que "o
completo fracasso do marxismo (. .. ) e o espetacular esfacelamento da
União Soviética são apenas os precursores do colapso do liberalismo
ocidental, a principal corrente da modernidade. Longe de ser a alternativa
do marxismo e a ideologia dominante no final da História, o liberalismo
º
será a próxima pedra de dominó a cair". 1 Numa era em que, por toda parte,
os povos se definem em termos culturais, que lugar haverá para uma
sociedade desprovida de um núcleo cultural e definida apenas por um credo
político? Os princípios políticos são uma base volúvel para que sobre ela se
construa uma comunidade duradoura. Num mundo multicivilizacional em
que a cultura faz diferença, os Estados Unidos poderiam simplesmente
ser o último remanescente de um mundo ocidental em que a ideologia
fazia diferença, e que se está apagando.
O repúdio do Credo e da civilização ocidental significa o fim dos
Estados Unidos como nós o conhecemos. Ele também significa de fato
o fim da civilização ocidental. Se os Estados Unidos forem desocidenta-
lizados, o Ocidente ficará reduzido à Europa e a alguns países ultrama-
rinos de colonização européia, de escassa população. Sem os Estados
Unidos, o Ocidente se toma uma parte minúscula e em declínio da
população mundial, numa península pequena e inconseqüente na extre-
midade da massa continental eurasiana.
O choque entre os multiculturalistas e os defensores da civilização
ocidental e do Credo norte-americano é, para usar a expressão de James
Kurth, "o choque verdadeiro" dentro do segmento norte-americano da
civilização ocidental. 11 Os norte-americanos não podem se esquivar da
pergunta: somos um povo ocidental ou somos alguma outra coisa? O
futuro dos Estados Unidos e o do Ocidente dependem de os norte-ame-
ricanos reafirmarem sua dedicação à civilização ocidental. Internamente,
isso implica rejeitar os divisivos cantos de sereia do multiculturalismo.
Internacionalmente, isso implica rejeitar os chamamentos enganosos e
ilusórios para identificar os Estados Unidos com a Ásia. Quaisquer que
sejam as conexões econômicas que possam existir entre eles, o hiato
cultural fundamental entre as sociedades asiática e norte-americana
impede que elas se unam num lar comum. Os norte-americanos cultu-
ralmente fazem parte da família ocidental. Os multiculturalistas podem
prejudicar e até destruir esse relacionamento, mas não podem substituí-
lo. Quando os norte-americanos buscam suas raízes culturais, eles as
encontram na Europa.
Em meados da década de 90, ocorreu um novo debate sobre a
natureza e o futuro do Ocidente, surgiu um reconhecimento renovado
de que tal realidade existia e aumentou a preocupação com o que poderia
assegurar a continuidade de sua existência. Em parte isso germinou da
percepção da necessidade de expandir a principal instituição ocidental,
a OTAN, para incluir os países ocidentais do Leste, e da séria divisão que
surgiu dentro do Ocidente sobre como responder ao esfacelamento da
Iugoslávia. Isso também refletiu, de modo mais amplo, a ansiedade sobre
a unidade futura do Ocidente na ausência de uma ameaça soviética
e, em especial, o que isso significava para o engajamento dos Estados
Unidos na Europa. À medida que os países ocidentais interagem cada
vez mais com sociedades não-ocidentais cada vez mais poderosas, eles
adquirem maior consciência do núcleo cultural ocidental em comum
que os mantém unidos. Líderes de ambos os lados do Atlântico
ressaltaram a necessidade de rejuvenescer a comunidade atlântica. No
final de 1994 e em 1995, os ministros da Defesa alemão e britânico,
os ministros do Exterior francês e norte-americano, Henry Kissinger e
diversas outras figuras destacadas esposaram todos essa causa. Sua
situação foi resumida pelo ministro da Defesa da Grã-Bretanha, Malcolm
Rifkind, que, em novembro de 1994, sustentou a necessidade de "uma
Comunidade Atlântica", apoiada em quatro pilares: defesa e segurança
corporificadas na OTAN, "crença compartilhada no império da lei e na
democracia parlamentar", "capitalismo liberal e livre comércio" e "a
herança cultural européia compartilhada que emanou da Grécia e de
Roma, passando pelo Renascimento, até os valores, crenças e civilização
compartilhados de nosso próprio século". 12 Em 1995, a Comissão Euro-
péia lançou um projeto para "renovar" o relacionamento transatlântico,
que levou à assinatura de um amplo pacto entre a União Européia e os
Estados Unidos. Simultaneamente, muitos líderes políticos e empresariais
europeus endossaram a criação de uma zona de livre comércio transa-
tlântica. Embora a AFL-CIO se opusesse ao NAFfA e a outras medidas
liberalizantes do comércio, seu dirigente apoiou calorosamente um
acordo transatlântico de livre comércio desse tipo, que não ameaçaria os
empregos norte-americanos com a competição vinda de países de baixos
salários. Ele também foi apoiado por conservadores europeus (Margaret
Thatcher) e norte-americanos (Newt Gingrich), assim como por líderes
canadenses e britânicos.
Como se argumentou no Capítulo 2, o Ocidente passou por uma
primeira fase européia de desenvolvimento e expansão que durou vários
séculos, e depois por uma segunda fase norte-americana no século XX.
Se a América do Norte e a Europa renovarem sua vida moral, ampliarem
seus aspectos culturais em comum e desenvolverem formas estreitas de
integração econômica e política para suplementar sua colaboração em
matéria de segurança na OTAN, elas poderiam gerar uma terceira fase
euramericana de afluência econômica e influência política ocidental. Uma
integração política significativa deteria de algum modo o declínio relativo
da quota do Ocidente na população, no produto econômico e na
capacidade militar do mundo, e revitalizaria o poderio do Ocidente aos
olhos das outras civilizações. O primeiro-ministro Mahatir advertiu os
asiáticos de que, "com seu poderio comercial, a confederação UE-NAFrA
poderia ditar suas condições para o resto do mundo".13 Entretanto o
Ocidente vir a se unir política e economicamente dependerá sobretudo
de os Estados Unidos reafirmarem sua identidade como uma nação
ocidental e definirem seu papel global como líder da civilização ocidental.

0 OCIDENTE E O MUNDO
Um mundo no qual as identidades culturais - étnicas, nacionais,
religiosas, civilizacionais - são fundamentais e as afinidades e diferenças
culturais moldam as alianças, os antagonismos e as políticas dos Estados
tem três implicações amplas para o Ocidente em geral e os Estados
Unidos em particular.
Em primeiro lugar, os estadistas só podem alterar a realidade de
modo construtivo se a reconhecerem e a compreenderem. A política de
cultura que está surgindo, o crescente poderio das civilizações não-oci-
dentais e a atitude cada vez mais afirmativa dessas sociedades em termos
de sua cultura indicam as forças culturais que estão fazendo os povos se

~Q?
juntarem e as que os estão separando. As elites norte-americanas,
contudo, têm demorado a aceitar essas realidades que estão emergin-
do e a lidar com elas. Os governos Bush e Clinton deram apoio à unidade
da União Soviética, da Iugoslávia, da Bósnia e da Rússia multicivilizacio-
nais, em vãs tentativas de deter as poderosas forças étnicas e culturais
que impeliam para a desunião. Eles promoveram planos de integração
econômica multicivilizacional que ou são inócuos, como a APEC, ou que
envolvem grandes custos econômicos e políticos imprevistos, como
aconteceu com o NAFrA e o México. Eles tentaram desenvolver íntimas
relações com os Estados-núcleos de outras civilizações sob a forma de
uma "parceria global". com a Rússia ou um "engajamento construtivo"
com a China, desafiando os naturais conflitos de interesses entre os
Estados Unidos e esses países. Ao mesmo tempo, o governo Clinton
deixou de incluir a Rússia de forma plena na busca pela paz na Bósnia,
apesar dos grandes interesses da Rússia nessa guerra na sua condição de
Estado-núcleo da Ortodoxia. Perseguindo a quimera de um país multici-
vilizacional, o governo Clinton negou a autodeterminação às minorias
sérvia e croata e ajudou a que se formasse nos Bálcãs um parceiro do
Irã, com um sistema de partido único fundamentalista islâmico. De modo
semelhante, o governo norte-americano também apoiou a sujeição de
muçulmanos à autoridade ortodoxa, sustentando que "é fora de questão
que a Chechênia faz parte da Federação Russa".14
Embora os europeus reconheçam de forma universal a importância
fundamental da linha divisória entre a Cristandade Ocidental, de um lado,
e a Ortodoxia e o Islã, do outro, os Estados Unidos, como disse seu
secretário de Estado, "não reconheceriam a existência de qualquer
divisória fundamental entre as partes católica, ortodoxa e islâmica da
Europa". Entretanto, aqueles que não reconhecem divisórias funda-
mentais estão fadados a serem frustrados por elas. O governo Clinton
pareceu inicialmente não dar importância às mudanças na balança de
poder entre os Estados Unidos e as sociedades da Ásia Oriental e, em
conseqüência, repetidas vezes proclamou objetivos relativos a comércio
exterior, direitos humanos, proliferação nuclear e outras questões que
foi incapaz de concretizar. De modo geral, o governo norte-americano
vem tendo extraordinária dificuldade para se adaptar a uma era na qual
a política mundial é moldada pelas marés culturais e civilizacionais.
Em segundo lugar, o pensamento norte-americano sobre política
externa também padeceu de uma relutância em abandonar, alterar ou,
às vezes, até mesmo reconsiderar diretrizes adotadas para atender a
~
necessidades da Guerra Fria. Em alguns casos, isso assumiu a forma de
ainda enxergar uma União Soviética ressurrecta como uma ameaça em
potencial. De maneira mais generalizada, as pessoas tendiam a endeusar
1
as alianças e os acordos de controle de armamentos da Guerra Fria. A
OTAN precisa ser mantida tal como era na Guerra Fria. O Tratado de
Segurança Japão-Estados Unidos é fundamental para a segurança da Ásia
Oriental. O tratado ABM é intocável. O tratado CFE precisa ser respeitado.
Evidentemente, nenhuma dessas ou outras heranças da Guerra Fria
deveria ser impensadamente descartada. Nem, tampouco, será neces-
sariamente do interesse dos Estados Unidos ou do Ocidente que eles
continuem sob a forma que tinham durante a Guerra Fria. As realidades
de um mundo multicivilizacional sugeririam que a OTAN deveria ser
expandida a fim de incluir outras sociedades ocidentais que desejem
integrar-se a ela, e deveria reconhecer a falta absoluta de sentido em ter
como membros dois países que são os piores inimigos um do outro e
que carecem, ambos, de afinidade cultural com outros membros. Um
tratado ABM destinado a atender à necessidade, durante a Guerra Fria,
de assegurar a vulnerabilidade recíproca das sociedades soviética e
norte-americana, e assim evitar uma guerra nuclear soviético-norte-ame-
ricana, bem pode criar obstáculos para a capacidade dos Estados Unidos
e de outras sociedades de se protegerem contra as imprevisíveis ameaças
ou ataques nucleares por movimentos terroristas e ditadores irracionais.
O tratado de segurança Japão-Estados Unidos ajudava a dissuadir uma
agressão soviética contra o Japão. Qual se supõe que seja sua finalidade
na era pós-Guerra Fria? Conter e dissuadir a China? Retardar uma
acomodação japonesa com uma China em ascensão? Impedir uma maior
militarização japonesa? No Japão, estão sendo suscitadas dúvidas cada
vez maiores quanto à presença militar norte-americana naquele país e,
nos Estados Unidos, quanto à necessidade de um compromisso sem
reciprocidade de defender o Japão. O acordo sobre Forças Convencionais
na Europa (CFE) se destinava a moderar a confrontação OTAN-Pacto de
Varsóvia na Europa Central, que desapareceu por completo. O principal
impacto do acordo agora é o de criar dificuldades para a Rússia para lidar
com o que ela percebe como ameaças de segurança provenientes dos
povos muçulmanos ao sul.
Em terceiro lugar, a diversidade cultural e civilizacional contesta a
crença ocidental - e particularmente norte-americana - da relevância
universal da cultura ocid~ntal. Essa crença é expressada de maneira tanto
descritiva como normativa. De modo descritivo, ela sustenta que as

394
pessoas em todas as sociedades querem adotar os valores, as i~stituições
e as práticas ocidentais. Caso pareçam não ter esse deseJO e estar
dedicadas a suas próprias culturas tradicionais, elas estão sendo vítimas
1
de uma "percepção falsa" comparável àquela que os marxistas encontra-
ram entre proletários que apoiavam o capitalismo. De modo normativo,
a crença universalista ocidental sustenta que as pessoas em todo o mundo
deveriam abraçar os valores, as instituições e a cultura ocidentais porque
elas encarnam a mais elevada, mais esclarecida, mais liberal, mais
racional, mais moderna e mais civilizada forma de pensamento humano.
No mundo que está surgindo de conflitos étnicos e choques
civilizacionais, a crença ocidental na universalidade da cultura ocidental
padece de três problemas: ela é falsa, ela é imoral e ela é perigosa. Que
ela é falsa constituiu a tese central deste livro, tese bem resumida por
Michael Howard: "( .. .) a pressuposição comum ocidental de que a
diversidade cultural é uma curiosidade histórica que está sendo rapida-
mente erodida pelo crescimento de uma cultura mundial comum,
orientada para o Ocidente e anglófona, que está moldando nossos valores
básicos(. .. ) simplesmente não corresponde à verdade." 15 Um leitor que,
a esta altura, ainda não esteja convencido do acerto da observação de
Sir Michael está vivendo num mundo muito afastado do que é descrito
neste livro.
A crença de que os povos não-ocidentais deveriam adotar os
valores, as instituições e a cultura ocidentais é imoral devido ao que seria
necessário fazer para que isso pudesse acontecer. O alcance quase
universal do poderio europeu no final do século XIX e o predomínio
global dos Estados Unidos no final do século XX espalharam muito da
civilização ocidental pelo mundo afora. Entretanto o globalismo europeu
não existe mais. A hegemonia norte-americana está retrocedendo, quanto
mais não seja porque ela não é mais necessária para proteger os Estados
Unidos contra uma ameaça militar soviética no estilo da Guerra Fria. Como
sustentamos, a cultura acompanha o poder. As sociedades não-ocidentais
só poderiam ser uma vez mais moldadas pela cultura ocidental como
resultado da expansão, do desdobramento e do impacto do poderio
ocidental. O imperialismo é a conseqüência lógica necessária do universa-
lismo. Além disso, na condição de uma civilização madura, o Ocidente não
mais dispõe do dinamismo econômico ou demográfico exigido para impor
sua vontade a outras sociedades, e qualquer esforço nesse sentido também
é contrário aos valores ocidentais de autodeterminação e democracia. À
medida que as civilizações asiática e muçulmana começam cada vez mais a
afinnar a relevância universal de suas respectivas culturas, os ocidentais
irão dar cada vez mais valor à vinculação entre universalismo e imperia-
lismo.

1
O universalismo ocidental é perigoso para o mundo porque ele
poderia levar a uma grande guerra intercivilizacional entre Estados-nú
cleos, e é perigoso para o Ocidente porque poderia levar à derrota de·
Ocidente. Com o colapso da União Soviética, os ocidentais vêem sua
civilização numa posição de predomínio sem precedente, enquanto, ac.
mesmo tempo, as sociedades asiática, muçulmana e outras, mais fracas
estão começando a ganhar força. Por conseguinte, eles poderiam ser levado.e
a aplicar a conhecida e poderosa lógica de Brutus:

Nossas legiões estão cheias até a borda, nossa causa madura.


O inimigo aumenta a cada dia;
Nós, no cimo, estamos prontos a entrar em declínio.
Há uma maré nos negócios dos homens,
Que, tomada na cheia, leva à fortuna;
Omitida, toda a viagem de suas vidas
Está presa aos baixios e misérias.
Numa tal maré cheia estamos agora flutuando,
E precisamos pegar a corrente quando ela é boa,
Ou perder nossas empreitadas.

Essa lógica, porém, produziu a derrota de Brutus em Filipéia, e o curso


prudente para o Ocidente não é o de tentar fazer parar a alteração do
poder, mas aprender a navegar nos baixios, suportar as misérias, moderar
suas empreitadas e salvaguardar sua cultura.
Todas as civilizações passam por processos análogos de surgimen-
to, ascensão e declínio. O Ocidente difere de outras civilizações não na
maneira como se desenvolveu, mas no caráter próprio de seus valores e
instituições. Aqui se incluem principalmente seu Cristianismo, pluralismo,
individualismo e império da lei, que tornaram possível para o Ocidente
inventar a modernidade, expandir-se por todo o mundo e tornar-se alvo
da inveja de outras sociedades. No seu conjunto, essas características são
peculiares ao Ocidente. Como disse Arthur Schlesinger Jr., a Europa "é a
fonte - a fonte singular" das "idéias de liberdade individual democracia
política, império da lei, direitos humanos e liberdade cultural.(: .. ) Essas são
idéias européias, não idéias asiáticas, nem africanas, nem do Oriente Médio,
a não ser por adoção" .16 Elas tomam a civilização ocidental única, e a
civilização ocidental é valiosa não porque seja universal, mas porque é
única. Conseqüentemente, a responsabilidade principal dos líderes oci-
dentais não é a de tentar reformular outras civilizações à imagem do
Ocidente, o que está fora do seu poderio em declínio, mas preservar,
proteger e renovar as qualidades únicas da civilização ocidental. Como
os Estados Unidos são o mais poderoso país ocidental, essa responsa-
bilidade lhes cabe de forma absolutamente preponderante.

1 Para preservar a civilização ocidental ante um poderio ocidental em


declínio, é do interesse dos Estados Unidos e dos países europeus:

conseguir maior integração política, econômica e militar e coordenar suas


políticas de modo a impedir que Estados de outras civilizações
explorem as diferenças entre eles;
incorporar à União Européia e à OTAN os países ocidentais da Europa
Central, ou seja, os países de Visegrad, as repúblicas bálticas, a
Eslovênia e a Croácia;
estimular a "ocidentalização" da América Latina e, no máximo que for
possível, um estreito alinhamento dos países latino-americanos com
o Ocidente;
restringir o desenvolvimento do poder militar convencional e não-con-
vencional dos países islâmicos e sínicos;
retardar o deslocamento do Japão para longe do Ocidente e na direção
de uma acomodação com a China;
aceitar a Rússia como o Estado-núcleo da Ortodoxia e uma grande
potência regional, com legítimos interesses de segurança em suas
fronteiras meridionais;
manter a superioridade tecnológica e militar ocidental sobre as outras
civilizações;
e, o que é mais importante, reconhecer que a intervenção ocidental nos
assuntos de outras civilizações provavelmente constitui a mais
perigosa fonte de instabilidade e de um possível conflito global num
mundo multicivilizacional.

No período pós-Guerra Fria, os Estados Unidos ficaram consumidos


por imensos debates sobre o curso adequado para a política externa
norte-americana. Nessa era, porém, os Estados Unidos não podem nem
dominar o mundo nem escapar dele. Nossos interesses não serão mais
bem servidos nem pelo internacionalismo nem pelo isolacionismo, nem
pelo multilateralismo nem pelo unilateralismo. O que os servirá da
melhor forma será evitar esses extremos contrapostos e, ao contrário,
adotar uma política atlanticista de íntima cooperação com seus parceiros

~Q7
europeus a fim de proteger e promover os interesses e valores da singular
civilização de que compartilham.

GUERRA E ORDEM CIVILIZACIONAL

Uma guerra global que envolva os Estados-núcleos das principais


civilizações do mundo é altamente improvável, mas não impossível.
Como sugerimos, uma guerra desse tipo poderia surgir da escalada de
uma guerra de linha de fratura entre grupos de civilizações diferentes,
mais provavelmente envolvendo muçulmanos de um lado e não-muçul-
manos do outro. A probabilidade da escalada será maior se Estados-nú-
cleos muçulmanos ambiciosos estiverem competindo para dar assistência
a povos da mesma religião que estejam em luta. A probabilidade será
menor em função dos interesses que países afins secundários e terciários
possam ter em não se envolver profundamente eles próprios nessa
guerra. Uma fonte mais perigosa de uma guerra intercivilizacional global
é a alteração da balança de poder entre as civilizações e seus Estados-
núcleos. Se ela continuar, a ascensão da China e a atitude cada vez mais
afirmativa desse "maior ator da História da Humanidade" exercerão
tremenda pressão sobre a estabilidade internacional no começo do século
XXI. O surgimento da China como potência dominante na Ásia Oriental
e no Sudeste Asiático seria contrário aos interesses norte-americanos tal
como eles foram concebidos através da história.17
Dados esses interesses norte-americanos, como seria possível que
se desenvolvesse uma guerra entre os Estados Unidos e a China?
Suponhamos o ano 2010. As tropas norte-americanas saíram da Coréia
que foi reunificada, e os Estados Unidos reduziram enormemente su~
presença militar no Japão. Taiwan e a China continental chegaram a uma
icomodação, segundo a qual Taiwan continua a ter a maior parcela de
;ua independência de facto, porém reconhece explicitamente a suserania
:le Pequim e, com o patrocínio da China, foi admitida como membro das
'fações Unidas segundo o modelo da Ucrânia e da Bielo-Rússia em 1946.
A exploração dos recursos petrolíferos do Mar do Sul da China prosseguiu
~m bom ritmo, sobretudo sob os auspícios chineses, mas com algumas

areas sob controle vietnamita sendo exploradas por companhias norte-
americanas. Com sua· confiança aumentada por sua nova capacidade de
projeção de poder, a China anuncia que vai implantar seu controle
integral sobre todo esse mar, sobre o qual ela sempre reivindicou
soberania. Os vietnamitas resistem e há combates entre belonaves
chinesas e vietnamitas. Os chineses, ansiosos por se vingar da humilhação

398
sofrida em 1979, invadem o Vietnã. Os vietnamitas pedem a ajuda
norte-americana. Os chineses advertem os Estados Unidos para que não
se metam. O Japão e outras nações da Ásia ficam temerosamente
indecisos. Os Estados Unidos dizem que não podem aceitar a conquista
do Vietnã pela China, advogam sanções econômicas contra a China e
enviam uma das poucas forças-tarefas de porta-aviões que lhes restam
para o Mar do Sul da China. Os chineses qualificam esse ato como uma
violação das águas territoriais chinesas e lançam ataques aéreos contra a
força-tarefa. Os esforços do secretário-geral das Nações Unidas e do
primeiro-ministro japonês para negociar um cessar-fogo fracassam, e a
luta se espalha para outras partes da Ásia Oriental. O Japão proíbe o uso
das bases norte-americanas nesse país para ações contra a China, os
Estados Unidos resolvem ignorar essa proibição e o Japão anuncia sua
neutralidade e impõe uma quarentena às bases. Submarinos e aviões
baseados em terra chineses, operando de Taiwan e da parte continental,
infligem graves danos a navios e instalações norte-americanos na Ásia
Oriental. Enquanto isso, forças terrestres chinesas entram em Hanói e
ocupam grandes áreas do Vietnã.
Como tanto a China quanto os Estados Unidos possuem mísseis
capazes de transportar ogivas nucleares até o território um do outro, dá-se
um impasse tácito e essas armas não são usadas nas fases iniciais da
guerra. Entretanto, em ambas as sociedades existe o receio de tais
ataques, que é especialmente intenso nos Estados Unidos. Isso leva
muitos norte-americanos a começar a se perguntar por que estão sendo
submetidos a esse perigo. Que diferença faz se a China controlar o Mar
do Sul da China, o Vietnã ou todo o Sudeste Asiático? A oposição à guerra
é especialmente vigorosa nos estados do sudoeste dos Estados Unidos,
dominados pelos hispânicos; e suas populações e governos dizem que
"essa guerra não é nossa" e tentam ficar de fora segundo o modelo da
Nova Inglaterra na guerra de 1812. Depois que os chineses consolidam
suas vitórias iniciais na Ásia Oriental, a opinião pública norte-americana
começa a se mover na direção que o Japão esperou que ela escolhesse
em 1942: os custos para derrotar essa mais recente afirmação de poder
hegemônico são demasiado elevados; vamos nos contentar com uma
solução negociada para os combates esporádicos ou "guerra de mentiri-
nha" que está atualmente ocorrendo no Pacífico Ocidental.
Nesse meio tempo, porém, a guerra está tendo um impacto sobre
os principais Estados de outras civilizações. A Índia aproveita a oportu-
nidade de a China estar engajada na Ásia Oriental para desfechar um ataque
devastador contra o Paquistão, visando a degradar inteiramente a capa-
cidade militar nuclear e convencional desse país. Ela tem êxito inicial-
mente, mas a aliança militar entre Paquistão, Irã e China é posta em
funcionamento, e o Irã vem em auxílio do Paquistão com forças armadas
modernas e sofisticadas. A Índia fica atolada lutando contra tropas
iranianas e guerrilhas paquistanesas formadas de vários grupos étnicos
diferentes. Tanto o Paquistão como a Índia apelam aos países árabes
por apoio - a Índia advertindo sobre o perigo da dominação do
Sudoeste Asiático pelo Irã - , porém os êxitos iniciais da China contra
os Estados Unidos estimularam grandes movimentos antiocidentais nas
sociedades muçulmanas. Um a um, os poucos governos pró-ocidentais
que restavam em países árabes e na Turquia são derrubados por
movimentos fundamentalistas islâmicos impulsionados pelas últimas
coortes do bolsão de jovens muçulmanos. O surto de antiocidentalismo
provocado pela fraqueza ocidental leva a um ataque maciço dos árabes
contra Israel, que a Sexta Esquadra norte-americana, muito reduzida, não
é capaz de deter.
A China e os Estados Unidos tentam congregar apoio de outros
Estados-chave. À medida que a China consegue êxitos militares, o Japão
começa nervosamente a se atrelar à China, alterando sua posição de
neutralidade formal para uma neutralidade positiva pró-chinesa, e,
depois, cedendo às solicitações da China e se tornando um co-beligeran-
te, manda suas forças ocuparem as remanescentes bases norte-america-
nas no Japão, enquanto os Estados Unidos retiram suas tropas apres-
sadamente. Os Estados Unidos declaram um bloqueio do Japão, e
belonaves norte-americanas e japonesas se engajam em duelos es-
porádicos no Pacífico Ocidental. No começo da guerra, a China propôs
um pacto de segurança mútua à Rússia (lembrando vagamente o pacto
Hitler-Stalin). Os êxitos chineses, porém, têm sobre a Rússia o efeito
diametralmente oposto ao que tiveram sobre o Japão. A perspectiva da
vitória chinesa e de uma completa dominação chinesa na Ásia Oriental
aterroriza Moscou. À medida que a Rússia se move numa direção
antichinesa e começa a reforçar suas tropas na Sibéria, os numerosos
colonos chineses na Sibéria interferem com essa movimentação. A China
então intervém militarmente para proteger seus cidadãos e ocupa
Vladivostok, o vale do Rio Amur e outras áreas-chave da Sibéria Oriental.
Enquanto os combates se espalham entre tropas russas e chinesas na
Sibéria Central, ocorrem levantes na Mongólia, que a China havia
anteriormente colocado numa condição de "protetorado".

400
O controle do petróleo e o acesso a ele é de importância fun-
damental parà todos os combatentes. Apesar de seus enormes inves-
timentos em energia nuclear, o Japão ainda é altamente dependente das
importações de petróleo, e isso reforça sua inclinação a se acomodar com
a China e garantir o fluxo de petróleo do Golfo Pérsico, da Indonésia e
do Mar do Sul da China. Durante o curso da guerra, quando os países
árabes passam a ficar sob o controle dos militantes fundamentalistas
islâmicos, os suprimentos de petróleo do Golfo Pérsico para o Ocidente
se reduzem a um filete e, conseqüentemente, o Ocidente fica cada vez
mais dependente das fontes russas, do Cáucaso e da Ásia Central. Isso
leva o Ocidente a intensificar seus esforços para ter a Rússia do seu lado
e para apoiar a extensão pela Rússia de seu controle sobre os países
muçulmanos ao sul, ricos em petróleo.
Enquanto isso, os Estados Unidos estiveram ansiosamente tentando
mobilizar o pleno apoio de seus aliados europeus. Embora dêem
assistência econômica e diplomática, eles se mostram relutantes em se
envolver militarmente. Contudo, a China e o Irã receiam que os países
ocidentais acabem por se congregar do lado dos Estados Unidos, do
mesmo modo como os Estados Unidos foram em apoio da Grã-Bretanha
e da França em duas guerras mundiais. A fim de impedir que isso
aconteça, eles transferem secretamente mísseis de alcance médio, com
capacidade de portar ogivas nucleares, para a Bósnia e para a Argélia, e
advertem as potências européias para que se mantenham fora da guerra.
Como quase sempre se deu com as tentativas chinesas de intimidar outros
países, exceto o Japão, essa ação tem conseqüências exatamente opostas
ao que desejava a China. Os serviços de inteligência norte-americanos
detectam o desdobramento dos mísseis e informam ao Conselho da
OTAN, que declara que os mesmos têm que ser retirados imediatamente.
Entretanto, antes que a OTAN possa agir, a Sérvia, desejando retomar
seu papel histórico de defensora do Cristianismo contra os turcos, invade
a Bósnia. A Croácia se junta a ela e os dois países ocupam e partilham a
Bósnia, capturam os mísseis e passam a se empenhar por completar
a limpeza étnica que tinham sido obrigadas a sustar nos anos 90. A
Albânia e a Turquia tentam ajudar os bósnios, a Grécia e a Bulgária
lançam invasões da Turquia européia e o pânico irrompe em Istambul
quando os turcos fogem para o outro lado do Bósforo. Nesse ínterim,
um míssil com uma ogiva nuclear, lançado da Argélia, explode nos
arredores de Marselha, e a OTAN retalia com ataques aéreos devastadores
contra alvos no Norte da África.

401
Os Estados Unidos, a Europa, a Rússia e a índia ficaram assim
engajados numa luta verdadeiramente global contra a China, o Japão
e a maior parte do Islã. Como iria terminar uma guerra assim? Os dois
lados possuem grande capacidade nuclear e, evidentemente, se ela
fosse empregada além de um nível mínimo, os principais países de
ambos os lados poderiam sofrer uma destruição substancial. Se a
dissuasão mútua funcionasse, a exaustão mútua poderia levar a um
armistício negociado, o qual, entretanto, não resolveria a questão
fundamental da hegemonia chinesa na Ásia Oriental. Alternativamente,
o Ocidente poderia tentar derrotar a China com o emprego do poder
militar convencional. O alinhamento do Japão com a China, porém,
deu a esta a proteção de um cordão sanitário insular, que impediria
os Estados Unidos de empregar seu poder naval contra os centros
populacionais e industriais chineses ao longo do litoral. A alternativa
é avançar sobre a China do Oeste. A luta entre a Rússia e a China leva
a OTAN a acolher a Rússia como membro da organização e a cooperar
com ela para conter as incursões chinesas na Sibéria, mantendo o
controle russo sobre o petróleo e o gás dos países muçulmanos da
Ásia Central, promovendo insurreições contra o regime chinês por
parte de tibetanos, uigures e mongóis, e gradualmente mobilizando e
desdobrando forças ocidentais e russas rumo ao Leste na Sibéria, para o
ataque final através da Grande Muralha até Pequim, a Manchúria e o
coração da terra han.
Qualquer que fosse o desenlace final dessa guerra civilizacional
global - devastação nuclear mútua, cessação negociada como resultado
da exaustão mútua ou eventual marcha das forças russas e ocidentais até
a Praça de Tiananmen - , o resultado mais amplo a longo prazo seria
quase inevitavelmente o drástico declínio do poderio econômico, demo-
gráfico e militar de todos os principais participantes da guerra. Em
conseqüência, o poder global que havia, ao longo dos séculos, se
deslocado do Leste para o Oeste, e depois tinha começado a se deslocar
de volta do Oeste para o Leste, iria agora se deslocar do Norte para o
Sul. As grandes beneficiárias da guerra das civilizações são aquelas
civilizações que se abstiveram de entrar nela. Com o Ocidente, a Rússia,
a China e o Japão devastados, em graus diferentes, o caminho está aberto
para a Índia, se ela tivesse escapado a essa devastação, embora tivesse
sido um dos participantes, para tentar reformular o mundo segundo
linhas hindus. Grandes segmentos do povo norte-americano culpariam
pelo extremo enfraquecimento dos Estados Unidos a míope orientação

Áf"\')
ocidental das elites W ASP, e os líderes hispânicos chegariam ao poder
apoiados por promessas de uma ampla ajuda do tipo Plano Marshall dos
prósperos países latino-americanos, que ficaram postados à margem da
guerra. A África, por outro lado, tem pouco a oferecer para a reconstrução
da Europa e, em vez disso, despeja hordas de pessoas mobilizadas
socialmente para pilhar o que restou. Na Ásia, se a China, o Japão e a
Coréia estão devastados pela guerra, o poder também se desloca para o
Sul, com a Indonésia, que se mantivera neutra, se tornando o país
dominante e, sob a orientação de assessores australianos, atuando para
conduzir o curso dos acontecimentos da Nova Zelândia, a leste, até
Myanmar e Sri Lanka, a oeste, e o Vietnã, ao norte. Tudo isso pressagia
um futuro conflito com a Índia e uma revitalizada China. De qualquer
modo, o centro da política mundial se move para o Sul.
Caso esse cenário pareça ao leitor uma fantasia alucinadamente
nada plausível, tanto melhor. Esperemos que nenhum outro cenário de
guerra civilizacional global tenha plausibilidade maior. Contudo, o que
esse cenário tem de mais plausível e, portanto, de mais inquietante, é a
causa da guerra: intervenção pelo Estado-núcleo de uma civilização (Es-
tados Unidos) numa disputa entre o Estado-núcleo de outra civilização
(China) e um Estado-membro dessa civilização (Vietnã). Para os Estados
Unidos, uma intervenção assim teria sido necessária para manter o respeito
ao Direito Internacional, repelir uma agressão, proteger a liberdade dos
mares, manter seu acesso ao petróleo do Mar do Sul da China e impedir a
dominação da Ásia Oriental por uma única potência. Para a China, essa
intervenção teria sido uma tentativa totalmente intolerável, mas tipicamente
arrogante, do principal Estado ocidental para humilhar e intimidar a China,
provocar oposição à China dentro de sua legítima esfera de influência e
negar à China o papel a que tem direito nos assuntos mundiais.
Em resumo, na era que se aproxima, para se evitarem grandes
guerras intercivilizacionais, será preciso que os Estados-núcleos se abs-
tenham de intervir em conflitos no interior de outras civilizações. Esta é
uma verdade que muitos países, especialmente os Estados Unidos, terão
sem dúvida dificuldade para aceitar. Essa regra de abstenção, que
determina que os Estados-núcleos se absterão de intervir em conflitos
em outras civilizações, é o primeiro requisito da paz num mundo
multicivilizacional e multipolar. O segundo requisito é o da regra de
mediação conjunta, pela qual os Estados-núcleos negociarão entre si
para conter ou fazer cessar guerras de linha de fratura entre Estados ou
grupos de suas próprias civilizações.
A aceitação dessas regras e de um mundo com mais igualdade entre
as civilizações não será fácil para o Ocidente ou para aquelas civilizações
que podem estar visando a suplementar ou suplantar o Ocidente em seu
papel dominante. Em tal mundo, por exemplo, os Estados-núcleos bem
podem considerar prerrogativa sua possuir armas nucleares e negá-las a
outros membros da sua civilização. Fazendo uma retrospectiva de seus
esforços para dotar o Paquistão de "plena capacidade nuclear", Zulfikar
Ali Bhutto os justificou da seguinte maneira: "Sabemos que Israel e a
África do Sul têm plena capacidade nuclear. Só a civilização islâmica
não a tinha, mas essa situação estava prestes a mudar." 18 A competição
pela liderança dentro das civilizações que carecem de um único
Estado-núcleo pode também estimular a competição por armas nuclea-
res. Embora tenha um relacionamento altamente cooperativo com o
Paquistão, o Irã nitidamente considera que necessita de armas nucleares
tanto quanto o Paquistão. Por outro lado, o Brasil e a Argentina
abandonaram seus programas nessa direção, e a África do Sul destruiu suas
armas nucleares, embora ela bem possa desejar voltar a tê-las se a Nigéria
começar a desenvolver capacidade desse tipo. Como Scott Sagan e outros
assinalaram, conquanto a proliferação nuclear obviamente acarrete riscos,
um mundo no qual um ou dois Estados-núcleos em cada civilização
principal tivessem armas nucleares e nenhum outro Estado as tivesse seria
um mundo razoavelmente estável.
A maioria das instituições internacionais data de pouco depois da
II Guerra Mundial e sua conformação obedeceu aos interesses, valores
e práticas ocidentais. À medida que o poderio ocidental se reduzir em
relação ao de outras civilizações, se desenvolverão pressões para a
reformulação dessas instituições a fim de que atendam também os
interesses dessas civilizações. A questão mais óbvia, mais importante e
provavelmente mais controvertida se refere à posição de membro
permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Essa posição
pertence às principais potências vitoriosas na II Guerra Mundial e guarda
cada vez menos relação com a realidade do poder no mundo. A mais
longo prazo, ou se introduzem modificações na participação atual ou
outros procedimentos menos formais provavelmente se desenvolverão
para lidar com questões de segurança, do mesmo modo como as reuniões
do G-7 têm tratado de questões econômicas mundiais. Num mundo
multicivilizacional, o ideal seria que cada civilização principal tivesse pelo
menos um assento permanente no Conselho de Segurança. Atualmente
apenas três têm. Os Estados Unidos endossaram a participação japonesa
e alemã, mas está claro que eles serão membros permanentes apenas se
outros países também passarem a sê-lo. O Brasil sugeriu cinco novos
membros permanentes, ainda que sem poder de veto - Alemanha,
Japão, Índia, Nigéria e ele próprio. Isso, porém, deixaria sem repre-
sentação um bilhão de muçulmanos do mundo, salvo na medida em que
a Nigéria pudesse assumir essa responsabilidade. Do ponto de vista
civilizacional, é claro que o Japão e a Índia deveriam ser membros
permanentes, e a África, a América Latina e o mundo islâmico deveriam
ter assentos permanentes, que poderiam ser ocupados numa base
rotativa pelos principais Estados dessas civilizações, com as seleções
sendo feitas pela Organização da Conferência Islâmica, pela Organi-
zação da Unidade Africana e pela Organização dos Estados Americanos
(com os Estados Unidos se abstendo). Seria também apropriado que se
consolidassem os lugares da Grã-Bretanha e da França num único
assento da União Européia, cujo ocupante rotativo seria selecionado
pela União. Dessa maneira, sete civilizações teriam cada uma um
assento permanente e o Ocidente teria dois, numa distribuição de forma
amplamente representativa da distribuição das pessoas, da riqueza e do
poder no mundo.

CIVILIZAÇÃO: OS ASPECTOS EM COMUM

Alguns norte-americanos promoveram o multiculturalismo em seu país,


alguns promoveram o universalismo no exterior, e alguns fizeram ambas
as coisas. O multiculturalismo doméstico ameaça os Estados Unidos e o
Ocidente. O universalismo externo ameaça o Ocidente e o mundo. Ambos
negam a singularidade da cultura ocidental. Os multiculturalistas globais
querem fazer o mundo ser como os Estados Unidos. Os multiculturalistas
domésticos querem fazer os Estados Unidos serem como o mundo. Estados
Unidos multiculturais são impossíveis porque os Estados Unidos não-oci-
dentais não são os Estados Unidos. Um mundo multicultural é inevitável,
porque o império global é impossível. A preservação dos Estados Unidos
e do Ocidente requer a renovação da identidade ocidental. A segurança
do mundo requer a aceitação da multiculturalidade global.
Será que a futilidade do universalismo ocidental e a realidade da
diversidade cultural global conduzem inevitável e irrevogavelmente ao
relativismo moral e cultural? Se o universalismo legitima o imperialismo,
isso quer dizer que o relativismo legitima a repressão? Mais uma vez, a
resposta a estas perguntas é sim e não. As culturas são relativas, a
moralidade é absoluta. Como sustentou Michael Waltzer, as culturas são
"espessas", elas prescrevem instituições e padrões de comportamento
para guiar os seres humanos pelos caminhos que são os corretos dentro
de uma determinada sociedade. Entretanto, acima, além e brotando dessa
moralidade maximalista existe uma "delgada" moralidade minimalista,
que encarna "aspectos reiterados das moralidades espessas ou maximalis-
tas". Conceitos minimalistas morais de verdade e justiça são encontrados
em todas as moralidades espessas e não podem ser divorciados delas. Há
também "injunções negativas" de moralidade minimalista, "mais provavel-
mente regras contra assassinato, fraude, tortura, opressão e tirania". O que
as pessoas têm em comum é "mais o sentido de um inimigo [ou mall comum
do que uma dedicação a uma cultura comum". A sociedade humana é
"universal porque ela é humana, particular porque é uma sociedade". Às
vezes caminhamos com os outros, na maioria das vezes caminhamos
sozinhos.19 No entanto, uma moralidade minimalista "delgada" deriva da
condição humana comum, e em todas as culturas se encontram "dis-
posições universais".20 Em vez de promover os aspectos supostamente
universais de uma civilização, os requisitos para a coexistência cultural
exigem uma busca do que é comum à maioria das civilizações. Num
mundo multicivilizacional, o caminho construtivo reside em renunciar ao
universalismo, aceitar a diversidade e buscar os aspectos em comum.
Uma tentativa de identificar tais aspectos em comum num lugar
muito pequeno foi feita em Singapura no início dos anos 90. O povo de
Singapura se compõe de aproximadamente 76 por cento de chineses, 15
por cento de malaios e muçulmanos e seis por cento de indianos hindus
e sikhs. No passado, o governo tentou promover os "valores confucianos"
entre seu povo, mas também insistiu em que todos deveriam estudar em
inglês e ser fluentes nesse idioma. Em janeiro de 1989, o presidente Wee
Kim Wee, no seu discurso de abertura do Parlamento, assinalou a ampla
exposição dos 2, 7 milhões de singapurianos às influências culturais
forâneas do Ocidente, que "os haviam colocado em íntimo contato com
novas idéias e tecnologias do exterior", mas que também os "haviam
exposto a estilos de vida e valores estranhos a eles". Ele advertiu que "as
idéias asiáticas tradicionais de moralidade, dever e sociedade, que nos
sustentaram no passado, estão cedendo lugar a uma visão da vida mais
ocidentalizada, individualista e egocêntrica". Ele argumentou que era
necessário identificar os valores fundamentais que as diferentes comuni-
dades étnicas e religiosas de Singapura tinham em comum e que
"captavam a essência de ser singapuriano".
O presidente Wee aventou quatro desses valores: "colocar a socie-
dade acima de si mesmo, sustentar a família como o elemento básico de
construção da sociedade, resolver as principais questões através do
consenso em vez da contestação e acentuar a tolerância e a harmonia
religiosas." Seu discurso levou a um amplo debate dos valores singapurianos
e, dois anos depois, a um Livro Branco que expunha a posição do governo.
O Livro Branco endossou todos os quatro valores aventados pelo presidente,
porém acrescentou um quinto em apoio do indivíduo, em grande parte
devido à necessidade de enfatizar a prioridade atribuída ao mérito
individual na sociedade singapuriana, em oposição aos valores confucia-
nos de hierarquia e farru1ia, que levariam ao nepotismo. O Livro Branco
definiu os "Valores Compartilhados" dos singapurianos como sendo:

A Nação antes da comunidade [étnica] e a sociedade acima do


indivíduo;
A Família como a unidade básica da sociedade;
Respeito pelo indivíduo e apoio da comunidade a ele;
Consenso em vez de contestação;
Harmonia racial e religiosa.

Embora citasse a dedicação de Singapura à democracia parlamentar e à


excelência no governo, a declaração dos "Valores Compartilhados"
excluía explicitamente de seu âmbito os valores políticos. O governo
ressaltou que Singapura era "em aspectos cruciais uma sociedade asiáti-
ca", e devia continuar como tal. "Os singapurianos não são norte-ameri-
canos ou anglo-saxões, embora possamos falar inglês e usar roupas
ocidentais. Se, a mais longo prazo, os singapurianos não pudessem se
distinguir de norte-americanos, britânicos ou australianos, ou, pior ainda,
se tornassem uma pobre imitação deles [ou seja, um país dividido],
perderíamos nossa margem de vantagem sobre essas sociedades ociden-
tais, a qual nos permite manter nossa posição internacionalmente."21
O projeto singapuriano foi uma tentativa ambiciosa e iluminada de
definir uma identidade cultural singapuriana, que fosse compartilhada
por suas comunidades étnicas e religiosas e que as distinguisse do
Ocidente. Certamente uma declaração de valores ocidentais - e, es-
pecialmente, norte-americanos - atribuiria muito mais peso aos direitos
do indivíduo sobre os da comunidade, à liberdade de expressão e à
verdade brotando da contestação de idéias, à participação e à competição
políticas e ao império da lei em contraposição à autoridade de governan-
tes capazes, sábios e responsáveis. No entanto, mesmo assim, embora
pudessem suplementar os valores singapurianos e atribuir a alguns uma

407
prioridade mais baixa, poucos ocidentais rejeitariam esses valores como
desprezíveis. Pelo menos num nível básico de moralidade "delgada", há
alguns aspectos em comum entre a Ásia e o Ocidente. Além disso, como
muitos assinalaram, qualquer que fosse o grau em que dividiam a
Humanidade, as principais religiões do mundo - Cristianismo Ocidental,
Ortodoxia, Hinduísmo, Budismo, Islamismo, Confucionismo, Taoísmo,
Judaísmo - também compartilhavam de valores-chaves comuns. Se os
seres humanos irão algum dia desenvolver uma civilização universal, ela
surgirá gradualmente através da exploração e da expansão desses
aspectos em comum. Assim sendo, além da regra de abstenção e da regra
de mediação conjunta, uma terceira regra para a paz num mundo
multicivilizacional é a regra dos aspectos em comum: os povos de todas
as civilizações deveriam buscar e tentar expandir os valores, instituições
e práticas que têm em comum com os povos de outras civilizações.
Esse esforço contribuiria não só para limitar o choque das civiliza-
ções, mas também para reforçar a Civilização no singular (daqui por
diante com maiúscula para fins de clareza). A Civilização no singular
supostamente se refere a uma mescla complexa de níveis superiores de
moralidade, religião, conhecimento, arte, filosofia, tecnologia, bem-estar
material e provavelmente outras coisas mais. Tudo isso não varia
necessariamente em conjunto. No entanto, os estudiosos identificam
pontos altos e pontos baixos no nível de C~vilização nas histórias das
\
civilizações. A questão então é: como se podem traçar os altos e baixos do
desenvolvimento da Civilização pela Humanidade? Existirá uma tendência
geral, secular, que transcende as civilizações individuais, rumo a níveis mais
elevados de Civilização? Se existe tal tendência, será ela fruto dos processos
de modernização que aumentam o controle dos seres humanos sobre
seu meio ambiente e daí geram níveis cada vez mais altos de sofisticação
tecnológica e de bem-estar material? Na era contemporânea, será assim
um nível mais alto de modernidade um pré-requisito para um nível mais
alto de Civilização? Ou será que o nível de Civilização varia precipua-
mente dentro da história das civilizações individuais?
Essa questão é uma outra manifestação do debate sobre a natureza
linear ou cíclica da História. Supostamente, a modernização e o desen-
volvimento moral humano produzidos por melhor educação, percepção
e compreensão da sociedade humana e de seu meio ambiente natural
geram um movimento continuado rumo a níveis cada vez mais elevados
de Civilização. Alternativamente, os níveis de Civilização podem simples-
mente refletir fases da evolução das civilizações. Quando as civilizações
começam a surgir, sua gente geralmente é vigorosa, dinâmica, brutal,
móvel e expansionista. Ela é relativamente não-Civilizada. À medida que
a civilização evolui, ela fica mais assentada e desenvolve técnicas e
habilidades que a tornam mais Civilizada. À medida que a competição
entre seus elementos constituintes se esvai e surge um Estado universal,
a civilização atinge seu mais alto nível de Civilização, sua "idade de ouro",
com um desabrochar de moralidade, arte, literatura, filosofia, tecnologia
e competência marcial, econômica e política. À medida que ela entra em
decadência como civilização, seu nível de Civilização também declina,
até que desaparece sob o ataque de uma civilização diferente e impe-
tuosa, com um nível mais baixo de Civilização.
De modo geral, a modernização melhorou o nível material de
Civilização em todo o mundo. Mas será que ela também melhorou as
dimensões moral e cultural de Civilização? Isso parece ser verdade em
alguns aspectos. Escravidão, tortura, abuso cruel das pessoas ficaram
cada vez menos aceitáveis no mundo contemporâneo. Entretanto, será
isso apenas o resultado do impacto da civilização ocidental sobre outras
culturas e, portanto, irá ocorrer uma inversão moral à medida que decline
o poderio ocidental? Na década de 90, há muitos indícios da relevância
do paradigma do "puro caos" dos assuntos mundiais: uma quebra no
mundo inteiro da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente
em muitas partes do mundo, uma onda global de criminalidade, máfias
transnacionais e cartéis de drogas, crescente número de viciados em
drogas em muitas sociedades, um debilitamento generalizado da família,
um declínio na confiança e na solidariedade social em muitos países,
violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver predominam
em grande parte do mundo. Numa cidade atrás da outra - )\foscou, Rio
de Janeiro, Bangcoc, Xangai, Londres, Roma, Varsóvia, Tóquio, Johan-
nesburgo, Délhi, Karachi, Cairo, Bogotá, Washington-, a criminalidade
parece estar subindo vertiginosamente, e os elementos básicos da
Civilização estão-se esvanecendo. Fala-se de uma crise global de gover-
nabilidade. A ascensão das corporações transnacionais que produzem
bens econômicos está cada vez mais sendo igualada pela ascensão de
máfias criminosas transnacionais, cartéis de drogas e gangues terroristas
que estão atacando violentamente a Civilização. A lei e a ordem são o
primeiro pré-requisito da Civilização e em grande parte do mundo - na
África, na América Latina, na antiga União Soviética, na Ásia Meridional,
no Oriente Médio - elas parecem estar evaporando, estando sob séria
ameaça na China, no Japão e no Ocidente. Numa base mundial, a

40Q
Civilização parece, em muitos aspectos, estar cedendo diante da barbárie,
gerando a imagem de um fenômeno sem precedente, uma Idade das
Trevas mundial, que se abate sobre a Humanidade.
Na década de 50, Lester Pearson advertiu que os seres humanos
estavam entrando "numa era em que as diferentes civilizações terão que
aprender a viver lado a lado num intercâmbio pacífico, aprendendo umas
com as outras, estudando a história e os ideais e a arte e cultura umas
das outras, enriquecendo-se mutuamente com as vidas umas das outras.
A alternativa, nesse pequeno mundo superpovoado, é a incompreensão,
a tensão, o choque e a catástrofe." 22 O futuro da paz e o futuro da
Civilização dependem da compreensão e da cooperação entre os líderes
políticos, espirituais e intelectuais das principais civilizações do mundo.
No choque das civilizações, a Europa e os Estados Unidos se juntarão
ou serão destruídos separadamente. No choque maior, o "choque
verdadeiro'', global, entre a Civilização e a barbárie, as grandes civiliza-
ções do mundo, com suas ricas realizações em religião, arte, literatura,
filosofia, ciência, tecnologia, moralidade e compaixão, também se junta-
rão ou serão destruídas separadamente. Na era que está emergindo, os
choques das civilizações são a maior ameaça à paz mundial, e uma ordem
internacional baseada nas civilizações é a melhor salvaguarda contra a
guerra mundial. '

/.1 /'\
NOTAS

Capítulo 1
1. Henry A. Kissinger, Diplomacy (Nova York: Simon & Schuster, 1994), pp. 23-24.
2. Expressão de H. D. S. Greenway, Boston Globe, 03/12/92, p. 19.
3. Václav Havei, "The New Measure of Man", New York Times, 08/07/94, p. A27; Jacques
Delors, "Questions Conceming European Security", Palestra, Instituto Internacional para
Estudos Estratégicos, Bruxelas, 10/09/93, p. 2.
4. Thomas S. Kühn, 11.Je Structure o/ Scíentific Revolutions (Chicago, University of Chicago
Press, 1962), pp. 17-18.
5. John Lewis Gaddis, "Toward the Post-Cold War World", Foreign Ajfairs, 70 (primavera de
1991), 101; Judith Goldstein e Roben O. Keohane, "ldeas and Foreign Policy: An Analytical
Framework", em Ideas and Foreign Policy: Belieft, Institutions and Political Change, org.
Goldstein e Keohane Othaca: Comell University Press, 1993), pp. 8-17.
6. Francis Fukuyama, "The End of History", 11.Je National lnterest, 16 (verão de 1989), 4, 18.
7. "Mensagem ao Congresso Informando sobre a Conferência de !alta", 01/03/45, em Public
PapersandAddressesofFranklinD. Roosevelt, org. Samuel!. Rosenman (Nova York: Russell
& Russell, 1969), XIII, 586.
8. Ver Marx Singer e Aaron Wildavsky, 11.Je Real World Order: Zones ofPeace, Zones ofTurmoil
(Chatham, Nova Jersey: Chatham House, 1993); Roben O. Keohane e Joseph S. Nye,
"Introduction: The End of the Cold War in Europe", em A/ter the Cold War. International
lnstitutions and State Strategies in Europe, 1989-91, org. Keohane, Nye e Stanley Hoffmann
(Cambridge: Harvard University Press, 1993), p. 6; e James M. Goldgeier e Michael McFault,
"A Tale of Two Worlds: Core and Periphery in the Post-Cold War Era", International
Organization, 46 (primavera de 1992), pp. 467-491.
9. Ver F. S. C. Nonhrop, 11.Je Meeting of East and West: An Inquiry Concerning World
Understanding (Nova York, Macmillan, 1946).
10. Edward W. Said, Orientalism (Nova York: Pantheon Books, 1978), pp. 43-44.
11. Ver Kenneth N. Waltz, "The Emerging Structure of Intemational Politics", 18 (outono de
1993), 44-79; John]. Mearsheimer, "Back to the Future: Instability in Europc after the Cold
War", lnternational Security, 15 (verão de 1990), 5-56.
12. Stephen D. Krasner questiona a imponãncia de Westfália como ponto divisor. Ver seu
"Westphalia and Ali That", em Ideas and Foreign Policy, org. Goldstein e Keohane, pp.
235-264.
13. Zbigniew Brzezinski, Out of Contrai: Global Turmoil on tbe Eve of tbe Twenty-jirst Century
(Nova York: Scribner, 1993); Daniel Patrick Moynihian, Pandaemonium: Etbnicity in Inter-
national Politics (Oxford: Oxford University Press, 1993); ver tb. Roben Kaplan, "The Coming
Anarchy", Atlantic Monthly, 273 (fev./44), 44-76.
14. Ver New York Times, 07/02/93, pp. 1, 14; e Gabriel Schoenfeld, "Outer Limits", Post-Soviet
Prospects, 17 (jan./93), 3, citando dados do Ministério da Defesa russo.
15. Ver Gaddis, "Toward the Post-Cold War World"; Benjamin R. Barber, 'Jihad vs. McWorld";
Atlantic Monthly, 269 (mar./92), 53-63, e]ibadvsMcWorld(Nova York: Times Books, 1995);
Hans Mark, "After Victory in the Cold War: The Global Village or Tribal Warfare", em Europe

411
in Transition: Political, Economic and Security Prospects for the 1990s, org. ]. ]. Lee e
Walter Korter (LBJ Schoc! of Public Affairs, University of Texas em Austin, mar./90),
pp. 19-27.
16. John]. Mearsheimer, "The Case for a Nuclear Deterrent", Foreign A.ffairs, 72 (verão de
1993), pp. 82-83.
17. :bester B. Pearson, Democracy in World Politics (Princeton: Princeton University Press,
1955), pp. 82-83.
18. De maneira completamente independente, Johan Galtung desenvolveu uma análise que
segue de perto um rumo paralelo à minha no que se refere à relevância para a política
mundial das sete ou oito civilizações principais e seus Estados-núcleos. Ver seu "The
Emerging Conflict Formations", em Restructuringfor World Peace: Ón the 1bresbold of the
Twenty-First Century, org. Katharine e Majid Tehranian (Cresskill, Nova Jersey: Hampton
Press, 1992), pp. 23-24. Galtung vê sete agrupamentos regionais emergindo, dominados
por países hegemônicos: os Estados Unidos, a Comunidade [União) Européia, o Japão, a
China, a Rússia, a Índia e um "núcleo islâmico". Dentre outros autores que, no início dos
anos 90, expuseram argumentos análogos, estão os seguintes: Michael Lind, "America as
an Ordinary Country", American Enterprise, 1 (set.-out./90), 19-23; Barry Buzan, "New
Patterns of Global Security in the Twenty-First Century", International A.ffairs, 67 (1991),
441, 448-449; Robert Gilpin, "The Cycle of Great Powers: Has It Finally Been Broken?"
(Princeton University, monografia não publicada, 19/05/93), p. 6 e ss.; William s. Lind,
"North-South Relations: Retuming to a World of Cultures in Contlict", Current World
Leaders, 35 (dez./92), 1073-1080, e "Defending Westem Culture", Foreign Policy, 84 (outono
de 1994)'. "Looking Back from 2992: A World History, cap. 13: The Disastrous 21st Century",
Economist, 26/dez.-08/jan./93, pp. 17-19; "The New World Order: Back to the Future"
Economist, 08101194, pp. 21-23; "A Survey of Defence and the Democracies", Economis;,
01/09<90; Zsolt Rostova~yi, "Clash of Civilizations and Cultures: Unity and Disunity ofWorld
Order,, (mo~ografia. nao publicada, 29/03/93); Michael Vlahos, "Culture and Foreign
Po!Jcy , Foreign Pohcy, 82 (primavera de 1991), 59-78; Donald]. Puchala, "The History of
the F~ture of Internattonal Relations", Etbics and International A.ffairs, 8 (1994), 177-202;
Mahd1 Eln:-an~jra, "Cultural Diversity: Key to Survival in the Future" (monografia apresen-
tada no Pnme1ro Congresso Mexicano sobre Estudos do Futuro, Cidade do México, set./94).
E~ 1991, Elman~jra publicou em árabe um livro que apareceu em francês no ano seguinte,
mt1tulado Premtere Guerre Civilisationnelle (Casablanca: Ed. Toubkal, 1994).
19. Fernand Braudel, On History (Chicago: University of Chicago Press, 1980), pp. 210-212.

Capítulo 2
1. "World history is the history of large cultures." Oswald Spengler, Decline of the West (Nova
Yor~: A. A. Knopf, 192~-1?28), II, 1~0 ...os principais trabalhos desses estudiosos que
ana~1sam a natu:e.za e a dmam1ca das c1v1hzações abrangem os seguintes: Max Weber, 1be
Socwlogy ofReltgwn (Boston: Beacon Press, trad. Ephraim Fischoff, 1968); Emile Durkheim
e Marcel Mauss, "Note .ºn the Notion of Civilization", Social Research, 38 (1971), 808-813;
Oswald Spe~gler, Decline ofthe West,· Pitrim Sorokin, Social and Cultural Dynamics (Nova
York: Amencan Book Co., 4 v., 1937-1985); Arnold Toynbee, Stttdy of History (Londres:
O~ord ~niversity Press, 12 v., 1934-1961); Alfred Weber, KulturgeschichtealsKultursozio-
log~ (Le1den: A. W. Sijthoff's Uitgervermaatschappij N. V., 1935); A. L. Kroeber, Configu-
rati°':s º( Culture Growth (Berkeley: University of California Press, 1944) e Style and
Ctmltzatwns CWestport, Connecticut: Greenwood ~s, 1973); Philip Bagby, Culture and
7istory: ~rolegomena to the Comparative Study ofCivilizations (Londres: Longmans, Green,
958), Carroll Qu1gle:, 1be Evolution o/Civilizations: An Introduction to Histon'calAnalysis
(Nova York: Macnullan, 1961); Rushton Coulborn, 1be Ortgin of Civilized Societies

412
(Princeton: Princeton University Press, 1959); S. N. Eisenstadt, "Cultural Traditions and
Political Dynamics: The Origins and Modes of Ideological Politics'', British journal of
Sociology, 32 (jun./81), 155-181; Fernand Braudel, Historyo/Civilizations(Nova York: Allen
Lane-Penguin Press, 1944) e On History (Chicago: University of Chicago Press, 1980);
William H. McNeill, 1be Rise ofthe West: A History ofthe Human Communtty (Chicago:
University of Chicago Press, 1963); Adda B. Bozeman, "Civilizations Under Stress", Virginia
Qttarterly Review, 51 (inverno de 1975), 1-18; Strategic lntelligence and Statecraft (Was-
hington: Brassey's [US], 1992) e Politics and Culture in lnternational History: From the
Ancient Near East to the opening of tbe Modem Age (Nova Brunswick, Nova Jersey:
Transaction Publishers, 1994); Christopher Dawson, Dynamics of World History (LeSalle,
Illinois: Sherwood Sugden Co., 1978) e 1be Movement of World Revolution (Nova York:
Sheed and Ward, 1959); Immanuel Wallerstein, Geopolitics and Geocultttre: Essays on 1be
Changing World-system (Cambridge: Cambridge University Press, 1992); Felipe Fernández-
Armesto, Millenium: A History of the Last 1bousand Years (Nova York, Scribners, 1995). A
esses trabalhos poderia ser acrescentado o último e tragicamente marcado trabalho de
Louis Hartz, A SynthesisofWorldHistory(Zurique: Humanity Press, 1983), o qual, segundo
comentou Samuel Beer, "prevê com admirável presciência uma divisão da humanidade
muito parecida com o padrão atual do mundo pós-Guerra Fria, em cinco grandes 'áreas
de cultura': cirstã, muçulmana, hindu, confuciana e africana". Memoria/Minute, Louis Hartz,
Haroard University Gazette, 89 (27/05/94). Uma visão resumida e introdução à análise das
civilizações está em Matthew Melko, 1be Nature of Civilizations (Boston: Porter Sargent,
1%9). Também fico agradecido pela úteis sugestões feitas sobre o meu artigo na Foreign
A.ffairs na monografia de crítica de autoria de Hayward W. Alker Jr.: "If Not Huntington's
'Cívilizations', Then Whose?" (monografia não publicada, Massachusetts Instítute of Tech-
nology, 25/03/94).
2. Braudel, OnHistory, pp. 177-181, 212-214, e Historyo/Civilization, pp. 4-5; Gerrit W. Gong,
1be Standard of "Civilization" in International Society (Oxford: Clarendon Press, 1984), p.
81 e ss., 97-100; Wallerstein, Geopolitics and Geoculture, p. 160 e ss. e 215 e ss.; Arnold].
Toynbee, Studyo/History, X, 274-275, e Civilizationon Trial(Nova York: Oxford University
Press, 1948), p. 24.
3. Braudel, On History, p. 205. Para um exame extenso das definições de cultura e de
civilização, principalmente a distinção alemã, ver A. L. Kroeber e Clyde Kluckhohn, Culture:
A CriticalReviewofConceptsandJJe.ftnitions(Cambridge: Papers ofthe Peabody Museum
of American Archaelogy and Ethnology, Harvard University, v. XLVII, n. 1, 1952), em geral,
mas especialmente pp. 15-29.
4. Bozeman, "Civilizations Under Stress", p. 1.
5. Durkheim e Mauss, "Notion of Civilization", p. 811; Braudel, On History, pp. 177, 202;
Melko, Nature of Civilizations, p. 8; Wallerstein, Geopolitics and Geoculture, p. 215;
Dawson, Dynamics o/World History, pp. 51, 402; Spengler, Decline of the West, I, p. 31. É
interessante notar que a International Encyclopedia of the Social Sciences (Nova York:
Macmillan and Free Press, organizada por David L. Sills, 17 v., 1968) não contém nenhum
item sobre a "civilização" de "civilizações". O "conceito de civilização" (no singula~) é
tratado numa subseção do item denominado "Revolução Urbana", enquanto as civilizações
(no plural) são mencionadas de forma passageira num item denominado "Cultura".
6. Heródoto, 1be Persian Wars (Harmondsworth, Inglaterra: Penguin Books, 1972),
pp. 543-544.
7. Edward A. Tiryakian, "Reflections on the Sociology of Civilizations", Sociological Analysis,
35 (verão de 1974), 125.
8. Toynbee, Study of History, I, 455, citado em Melko, Nature of Civilizations, pp. 8 e 9; e
Braudel, On History, p. 202.
9. Braudel, History o/ Civilizations, p. 35, e On History, pp. 209-210.
10. Bozeman, Strategic Intelligence and Statecraft, p. 26.

413
11. Quigley, Evolution ofCivilizations, p. 146 e ss.; Melko, NatureofCtvilizations, p. 101 e ss.
Ver D. C. Somervell, "Argument", na sua versão resumida de Arnold]. Toynbee, A Study
ofHistory, v. I-VI (Oxford: Oxford University Press, 1946), p. 569 e ss.
12. Lucian W. Pye, "China: Erratic State, Frustrated Society", Foreign Ajfairs, 69 (outono de
1990), 58.
l
13. Ver Quigley, Evolution ofCivilizations, cap. 3, especialmente pp. 77, 84; Max Weber, "The
Social Psychology of the World Religions", em From Max Weber: Essays in Sociology
(Londres: Routledge, transcrito e org. H. H. Gerth e C. Wright Mills, 1991), p. 267; Bagby,
Culture and History, pp. 165-174; Spengler, Decline ofthe West, II, 31 e ss.; Toynbee, Stttdy
of History, 1, 133; XII, 546-547; Braudel, History of Civilizations, vários trechos; McNeill,
1be Rise of the West, vários trechos; e Rostovanyi, "Clash of Civilizations", pp. 8-9.
14. Melko, Nature of Civilizations, p. 133.

-
15. Braudel, On History, p. 226.
16. Para obter um acréscimo importante, na década de 90, aos trabalhos sobre a matéria por
alguém que conhece bem ambas as culturas, ver Claudio Véliz, 1be New World ofthe Gothic
Fox (Berkeley: University of California Press, 1994).
17. Ver Charles A. e Mary R. Beard, The Rise ofAmerican Civilization (Nova York: Macmillan,
2 v., 1927) e Max Lerner, America as a Civilization (Nova York: Simon & Schuster, 1957).
Com jactância patriótica, Lerner diz que, "para o bem ou para o mal, a América do Norte
é o que ela é - uma cultura em si mesma, com muitas linhas características de poder e
de significado próprio, alinhando-se com a Grécia e Roma como uma das grandes
civilizações distintas da História". Contudo, ele reconhece que, "quase sem exceçâo, as
grandes teorias da História não encontram espaço para qualquer concepção da América
do Norte como uma civilização por si mesma" (pp. 58-59).
18. Sobre o papel de fragmentos da civilização européia criando novas sociedades na América
do Norte, América Latina, África do Sul e Austrália, ver Louis Hartz, 7be Founding of New
Societies: Studies in the History ofthe United States, I.atin America, South Africa, Canada, and
Australia (Nova York: Harcourt, Brace & World, 1964).
19. Dawson, Dynamicso/WorldHistory, p. 128. Vertb. Mary C. Bateson, "Beyond Sovereignty:
An Emerging Global Civilization" [Além da Soberania: uma Civilização Global Emergente],
em Contending Sovereignties: Redefining Political Community, org. R. B. ). Walker e Saul
H. Mendlovitz (Boulder: Lynne Rienner, 1990), pp. 148-149.
20. Toynbee classifica o Budismo Theravada e o Lamaísta como civilizações fósseis - Study
o/History, I, 35, 91-92.
21. Ver, por exemplo, Bernard Lewis, Islam and tbe West(Nova York: Oxford University Press,
1993); Toynbee, Study of History, cap. IX, "Contacts between Civilizations in Space
(Encounters between Contemporaries)", VIII, 88 e ss; Benjamin Nelson, "Civilizational
Complexes and Intercivilizational Encounters", Sociological Analysis, 34 (verão de 1973)
79-105. '
22. S. N. Eisenstadt, "Cultural Traditions and Political Dynamics: The Origins and Modes of
Ideological Politics", Britishjournal o/Sociology, 32 (jun./1981), 157, e "The Axial Age: The
Emergence of Transcendental Vision and the Rise of Clerics", Arcbives Européennes de
Sociologie, 22 (n. 1, 1982), 298. Ver tb. Benjamin I. Schwartz, "The Age of Transcendence
in Wisdom, Revolution, and Doubt: Perspectives on the First Milennium B. C.", Daedalus,
104 (primavera de 1975), 3. O conceito da Era Axial se deriva de Karl Jaspers, Vom Ursprung
und Ziel der Geschichte (Zurique: Artemisverlag, 1949).
23. Toynbee, Cívilization on Triai, p. 69. Cf. William H. McNeill, 7be Rise of the West, pp.
295-298, que enfatiza o grau em que o advento da Era Cristã "organizou as rotas de
comércio, tanto por terra como por mar, (. .. ) ligou as quatro grandes culturas do
continente".
24. Braudel, On History, p. 14: "(. .. )a influência cultural v.eio em pequenas doses, retardadas
pela extensão e lentidão das jornadas que tinham que empreender. Se dermos crédito aos
historiadores, as modas chinesas do período Tang (618-907) se deslocaram tão lentamente

414
l que só chegaram à ilha de Chipre e ã brilhante corte de Lusignan no século XV. Dali se
espalharam, na velocidade maior do comércio do Mediterrâneo, para a França e para a
excêntrica corte de Carlos VI, onde chapéus femininos antigos e sapatos com longos bicos
pontudos se tomaram imensamente populares, a herança de um mundo há muito
desaparecido - de forma muito semelhante a como a luz ainda nos chega vinda de estrelas
já extintas."
25. Ver Toynbee, Study of History, VIII, 347-348.
26. McNeill, Rise ofthe West, p. 547.
27. D. K. Fieldhouse, Economícs and Empire, 1830-1914 (Londres: Macmillan, 1984), p. 3; F.
J. e. Hearnshaw, Sea Powerand Empire (Londres: George Harrap and Co., 1940), p. 179.
28. Geoffrey Parker, The Military Revolution: Müitary /nnovation and the Rise of tbe West
(Cambridge: Cambridge University Press, 1988), p. 4; Michael Howard, "The Military Factor

-
in European Expansion" [O Fator Militar na Expansão Européia], em 7be Expansion of
Internatíonal Society, org. Hedley Buli e Adam Watson (Oxford: Clarendon Press, 1984),
p. 33 e ss.
29. A. G. Kenwood e A. L. Lougheed, 7be Growth of the International Economy 1820-1990
(Londres: Routledge, 1992), pp. 78-79, e as observações de Alan S. Blinder, reproduzidas
no New York Times, 12/03/1995, p. SE. Ver tb. Simon Kuznets, "Quantitative Aspects of the
Economic Growth of Nations - X. Levei and Structure of Foreign Trade: Long-Term
Trends", Economic Development and Cultural Change, 15 (jan./1967, parte II), pp. 2-10.
30. Charles Tilly, "Reflections on the History of European State-making", em 7be Formation of
National States in Western Europe, org. Tilly (Princeton: Princeton University Press, 1975),
p. 18.
31. R. R. Palmer, "Frederick the Great, Guibert, Bulow: From Dynastic to National War", em
Makers ofModem Strategy from Machiavelli to the Nuclear Age, org. Peter Pare! (Princeton:
Princeton University Press, 1986), p.119.
32. Edward Mortimer, "Christiany and Islam", International Ajfairs, 67 (jan./1991), 7.
33. Hedley Buli, The Anarcbical Society (Nova York: Columbia University Press, 1977), pp.
9-13. Ver tb. Adam Watson, The Evolution of International Society (Londres: Routledge,
1992) e Barry Buzan, "From lnternational System to lnternational Society: Structural Realism
and Reime Theory Meet the English School", International Organization, 47 (verão de
1993), 327-352, que distingue entre modelos "civilizacional" e "funcional" de sociedade
internacional e conclui que "parece nào haver nenhum caso de socidedade internacional
funcional" (p. 336).
34. Spengler, Decline of tbe West, 1, 93-94.
35. Toynbee, Stitdy o/ History, 1, 149 e ss., 154, 157 e ss.
36. Braudel, On History, p. xxxii.

Capítulo]
1. V. S. Naipaul, "Our Universal Civilization", The 1990 Wriston Lecture, The Manhattan
Institute, New York Review ofBooks, 30/10/1990, p. 20.
2. Ver James Q. Wilson, 7beMoralSense(Nova York: Free Press, 1993); Michael Walzer, Thick
and 1bin: Moral Argument at Home and Abroad (Notre Dame: University of Notre Dame
Press, 1994), especialmente os capítulos 1e4; e, para um breve resumo, Frances V. Harbour,
"Basic Moral Values: A Shared Core", Ethics and International Ajfairs, 9 (1995), 155-170.
3. Václav Havei, "Civilization's Thin Venner", Haroard Magazine, 97 (jul.-ago./1995), 32.
4. Hedley Buli, The Anarcbical Society: A Study of Order in World Politics (Nova York:
Columbia University Press, 1977), p. 317.
5. John Rockwell, "The New Colossus: American Culture as Power Export", e vários autores,
"Channel-Surfing Through U.S. Culture in 20 Lands", New York Times, 30/01/1994, seção

415
2, p. 1 e ss.; Davied Rieff, "A Global Culture", WorldPolicyfournal, 10 (inverno de 1993-94),
73-81.
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Kishore Mahbubani, "The Dangers of Decadence: What the Rest Can Teach the West",
Foreign Ajfairs, 72 (set.-out./1993), 12.
7. Aaron L. Friedberg, "The Future of American Power", Political Science Quarterly, 109
(primavera de 1994), 15.
8. Richard Parker, "The Myth of Global News", New Perspectives Quarterly, 11 (inverno de
1994), 41-44; Michael Gurevitch, Mark R. Levy e Itzhak Roeh, "The Global Newsroom:
convergences and diversities in the globalization oftelevision news", em Communications
and Citizenship: fournalism and the Public Spbere in the New Media, org. Peter Dahlgren
e Colin Sparks (Londres: Routledge, 1991), p. 215.
9. Ronald Dore, "Unity and Diversity in World Culture", em 1be Expa,nsion of International
Society, org. Hedley Buli e Adam Watson (Oxford: Oxford University Press, 1984), p. 423.
10. Robert L. Bartley, "The Case for Optimism - The West Should Believe in Itself", Foreign
Ajfairs, 72 (set.-out./1993), 16.
11. Ver Joshua A. Fishman, "The Spread of English as a New Perspective for the Study of
Language Maintenance and Language Shift", em Joshua Fishman, Robert L. Cooper e
Andrew W. Conrad, 1be Spread of English: 1be Sociology of English as an Additional
Language (Rowley, MA: Newbury House, 1977), p. 108 e ss.
12. Fishman, "Spread of English as a New Perspective", pp. 118-119.
13. Randolph Quirk, em Barj B. Kachru, 1be Indianization of English (Delhi: Oxford, 1983),
p. i; English in India - lssues and problems, org. R. S. Gupta e Kapil Kapoor (Delhi:
Academic Foundation, 1991), p. 21. Cf. Sarvepalli Gopal, "The English Language in India",
Encounter, 73 (jul.-ago./1989), p. 16, que estima que 35 milhões de indianos "falam e
escrevem algum tipo de inglês". Banco Mundial, World Development Report 1985, 1991
(Nova York: Oxford University Press), quadro 1.
14. Kapoor e Gupta, "lntroduction", em English in India, org. Gupta e Kapoor, p. 21; Gopal,
"English Language", p. 16.
15. Fishman, "Spread of English as a New Perspective", p. 115.
16. Ver Newsweek, 19/07/1993, p. 22.
17. Citado por R. N. Srivastava e V. P. Sharma, "Indian English Today", em English in India,
org. Gupta e Kapoor, p. 191; Gopal, "English Language", p. 17.
18. New York Times, 16/07/1993, p. A9; Boston Globe, 15/07/1993, p.13.
19. Além das projeções na World Christian Encyclopedia, ver as de Jean Bourgeois-Pichat, "Le
nombre des hommes: État et prospective", em AlbertJacquard et ai., LesScientiftques Parlent
(Paris: Hachette, 1987), pp. 140, 143, 151, 154-156.
20. Edward Said sobre V. S. Naipaul, citado por Brent Staples, "Con Men and Conquerors",
New York Times Book Review, 22/05/1994, p. 42.
21. A. G. Kenwood e A. L. Lougheed, 1be Growth of the lnternational Economy 1820-1990
(Londres: Routledge, 3. ed., 1992), pp. 78-79; Angus Maddison, Dynamic Forces in Capitalist
Development (Nova York: Oxford University Press, 1991), pp. 326-327; Alan S. Blinder,
New York Times, 12/03/1995, p. 5E.
22. David M. Rowe, "The Trade and Security Paradox in International Politics" (manuscrito não
publicado, Ohio State University, 15/09/1994), p. 16.
23. Dale C. Copeland, "Economic Interdependence and War: A Theory ofTrade Expectations",
lnternational Security 20 (primavera de 1996), 25.
24. William]. McGuire e Claire V. McGuire, "Content and Process in the Experience of Self'',
Advances in Experimental Social Psychology, 21 (1988), 102.
25. Donald L. Horowitz, "Ethnic Contlict Management for Policy-Makers", em Conflict and
Peacemaking in Multiethnic Societies, org. Joseph V. Montville e Hans Binnendijk (Lexing-
ton, MA: Lexington Books, 1990), p. 121.

416
26. Roland Robertson, "Globalization Theory and Civilizational Analysis", Comparative Civili-
zations Review, 17 (outono de 1987), 22; Jeffery A. Shad Jr., "Globalization and Islamic
Resurgence", Comparative Studies in Society and History, 9 (abr./1967), 292-293.
27. Ver Cyril E. Black, 1be Dynamics ofModernization: A Study in Comparative History (Nova
York: Harper & Row, 1966), pp. 1-34; Reinhard Bendiz, "Tradition and Modernity
Reconsidered", Comparative Studies in Society and History, 9 (ab.r/1967), 292-293.
28. Fernand Braudel, On History (Chicago: University of Chicago Press, 1980), p. 213.
29. Os trabalhos sobre as características que distinguem a civilização ocidental são, evidente-
mente, muito numerosos. Ver, entre outros, William H. McNeill, Rise of the West.· A History
of the Human Community (Chicago: University of Chicago Press, 1963); Braudel, On
History, e outras obras anteriores; lmmanuel Wallerstein, Geopolitics and Geoculture: Essays
on the Changing World System (Cambridge: Cambridge University Press, 1991). Karl W.
Deutsch fez uma comparação abrangente, sucinta e muito sugestiva do Ocidente e de nove
outras civilizações em termos de 21 fatores geográficos, culturais, econômicos, tecnológi-
cos, sociais e políticos, ressaltando o grau em que o Ocidente difere das outras civilizações.
Ver Karl W. Deutsch, "On Nationalism, World Regions, and the Nature of the West", em
Mobilization, Center-Periphery Stntctures, and Nation-building: A Volume in Commemo-
ration ofStein Rokkan, org. Per Torsvik (Bergen: Universitetforlaget, 1981), pp. 51-93. Para
um resumo sucinto dos aspectos principais e específicos da civilização ocidental em 1500,
ver Charles Tilly, "Reflections on the History of European State-making", em 1be Formation
ofNational States in WesternEurope, org. Tilly (Princeton: Princeton University Press, 1975),
p. 18 e ss.
30. Deutsch, "Nationalism, World Religions, and the West", p. 77.
31. Ver Robert D. Putnam, Making Democracy Work: Civil Traditions in Modem Italy
(Princeton: Princeton University Press, 1993), p. 12 e ss.
32. Deutsch, "Nationalism, World Religions, and the West", p. 78. Ver tb. Stein Rokkan,
"Dimensions of State Formation and Nation-building: A Possible Paradigm for Research on
Variations within Europe", em Charles Tilly, 1be Formation of National States in Western
Europe (Princeton: Princeton University Press, 1975), p. 576, e Putnam, Making Democracy
Work, pp. 124-127.
33. Geert Hofstede, "National Cultures in Four Dimensions: A Research-based Theory of Cultural
Differences among Nations", International Stttdies of Management and Organization, 13
0983), 52.
34. Harry C. Triandis, "Cross-Cultural Studies of Individualism and Collectivism", in Nebraska
Symposittm on Motivation, 1989 (Lincoln: University of Nebraska Press, 1990), 44-133, e
New York Times, 25/12/1990, p. 41. Ver também. Ideology and National Competitiveness:
An Analysis of Nine Countries, org. George C. Lodge e Ezra F. Vogel (Boston: Harvard
Business School Press, 1987), várias.
35. É quase inevitável que surjam debates sobre a interação das civilizações com algumas
variações dessa tipologia de respostas. Ver Arnold]. Toynbee, Stttdy of History (Londres:
Oxford University Press, 1935-61), II, pp. 187 e ss., VIII, 152-153, 214; John L. Esposito, 1be
Islamic 1breat: Myth or Reality (Nova York: Oxford University Press, 1992), pp. 53-62;
Daniel Pipes, ln the Path ofGod· Islam and Political Power (Nova York: Basic Books, 1983),
p. 105-142.
36. Pipes, Path of God, p. 349.
37. William Pfaff, "Reflections: Economic Development", New Yorker, 25/12/1978, p. 47.
38. Pipes, Path of God, pp. 197-198.
39. Ali Al-Amin Mazrui, Cultura/Forces in World Politics (Londres: James Currey, 1990), pp. 4-5.
40. Esposito, Islamic 1breat, p. 55; ver, de modo geral, pp. 55-62; e Pipes, Path of God,
pp. 114-120.
41. Rainer C. Baum, "Authority and Identity - The Invariance Hypothesis li", Zeitschriftfür
Soziologie, 6 (out./1977), 368-369. Ver tb. Rainer C. Baum, "Authority Codes: The Invariance
Hypothesis", Zeitschri.ft für Soziologie, 6 (jan./1977), 5-28.

417
42. Ver Adcla B. Bozeman, "Civilizations Under Stress", Virginia Quarterly Review, 51 (inverno de
1975), 5 e ss.; Leo Frobenius, Paideuma: Umrisseeiner Kultur- und Seelenlehre(Munique: C.h.
beck, 1921), p. 11 e ss.; Oswald Spengler, 7be Decline of the West (Nova York: Alfred A.
Knopf, 2 vs., 1926, 1928), II, 57 e ss.
43. Bozeman, "Civilizations Under Stress", p. 7.
44. William E. Naff, "Reflections on thc Question of 'East and West' from the Point of View of
Japan", Comparative Civilizati-Ons Review, 13/14 (outono de 1985 e primavera de 1986),
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45. David E. Apter, "The Role of Traditionalism in the Political Modernization of Ghana and
Uganda", World Politics, 13 (out./1960), 47-68.
46. s. N. Eisenstadt, "Transformation of Social, Political, and Cultural Ordérs in Modernization",
American Sociological Review, 30 (out./1965), 659-673.
47. Pipes, Path ofGod, pp. 107, 191.
48. Braudel, On Hístory, pp. 212-213.

Capítulo 4
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1994), 54.
2. Aaron L. Friedberg, "The Future of American Power", Political Sci.ence Quarterly, 109
(primavera de 1994), 20-21.
3. Hedley Buli, "The Revolt Against the West", em Expansi-On of International Society, org.
Hedley Buli e Adam Waltson (Oxford: Oxford University Press, 1984), p. 219.
4. Barry G. Buzan, "New Patterns of Global Security in the Twenty-first Century", International
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(Nova York: Oxford University Press, 1994), pp. 136-137, 207-211; Banco Mundial, "World
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24. Hassan Al-Turabi, "The Islamic Awakening's Second Wave", New Perspectives Quarterly, 9
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York: Praeger, 1991), p. 55 e ss.
25. Bernard Lewis, "Islamic Revolution", New York Review of Books, 21/01/1988, p. 47; Kepel,
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26. Sudhir Kakar, "The Colors of Violence: Cultural Jdentities, Religion, and Conflict" (manus-
crito não publicado), cap. 6, "A Ncw Hindu Identity'', p. 11.
27. Suzanne Massie, "Back to the Future", p. 72; Rupert, "Dateline Tashkent", p. 180.
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35. Zakaria, "Conversations with Lee Kuan Yew", p. 118; Al-Turabi, "Islamic Awakening's
Second Wave", p. 53. Ver Terrance Carroll, "Secularization and States of Modernity'', World
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37. Régis Debray, "God and the Política! Planet", New Perspectives Qttarterly, 11 (primavera de
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38. Esposito, Jslamic 1breat, p. 10; Gilles Kepel, citado em Sophie Lannes, "La Revanche de
Dieu - Jnterview with Gilles Kepel", Geopolitique, 33 (primavera de 1991), 14; Moore,
Jmages ofDevelopment, pp. 214-216.

419
39. Juergensmeyer, 7be New Cold War, p. 71; Edward A. Gargan, "Hindu Rage Against Muslims
Transforming Indian Policies", New York Times, 17/07/1993, p. Al; Kushwath Singh, "India,
the Hindu State", New York Times, 03/08/1993, p. Al7.
40. Dore, em Expansíon of lntematíonal Society, org. Buli e Watson, p. 411; McNeill, em
Fundamentalisms and Society, org. Marty e Appleby, p. 569.

Capítulo5
l. Kishore Mahbubani, "The Pacific Way", Foreign Ajfairs, 74 (jan.-fev./1995), 100-103; IMD
Executive Opinion Survey, Economist, o6/05/1995, p. 5; Banco Mundial, Global Economic
Prospects and the Developing Cottntries 1993 (Washington: 1993), pp. 66-67.
2. Tommy Koh, America's Role in Asia: Asian Views (Asia Foundation, Center for Asian Pacific
Affairs, Report n. 13, nov./1993), p. l.
3. Alex Kerr, japan Times, 06/11/1994, p. 10.
4. Yasheng Huang, "Why China Will Not Collapse'', Foreign Policy, 95 (verão de 1995), 57.
5. Cable News Network, 10/05/1994; Edward Friedman, "A Failed Chinese Modernity",
Daeda!ttS, 122 (primavera de 1993), 5; Perry Link, "China's 'Core' Problem", id., pp. 201-204.
6. Economist, 21/01/1995, pp. 38-39; William Theodore de Bary, "The New Confucianism in
Beijing'', American Sebo/ar, 64 (primavera de 1995), 175 e ss.; Benjamin L. Self, "Changing
Role for Confucianism in China", Woodrow Wilson Center Report, 7 (set./1995), 4-5; New
York Times, 26/08/1991, A19.
7. Lee Teng-hui, "Chinese Culture and Political Renewal'',jottrnalo/Democracy, 6 (out./1995),
6-8.
8. Alex Kerr,japan Times, 06/11/1994, p. 10; Kazuhiko Ozawa, "Ambivalence in Asia",japan
Update, 44 (mai./1995), 18-19.
9. Sobre alguns desses problemas, ver Ivan P. Hall, ''.Japan's Asia Card", Natíonal lnterest, 38
(inverno de 1994-95), 19 e ss.
10. Casimir Yost, "America's Role in Asia: One Year Later" (Asia Foundation, Center for Asian
Pacific Affairs, Report n. 15, fev./1994), p. 4; Yoichi Funabashi, "The Asianization of Asia",
Foreign Ajfairs, 72 (nov.-dez./1993), 78; Anwar Ibrahim, lnternational Hera/d Tribttne,
31/01/1994, p. 6.
11. Kishore Mahbubani, "Asia anda United States in Decline", Washington Qttarterly, 17
(primavera de 1994), 5-23; sobre uma contra-ofensiva, ver Eric Jones, "Asia's Fate: A
Response to the Singapore School", Natíonal lnterest, 35 (primavera de 1994), 18-28.
12. Mahatir bin Mohamad, Mare jirenma (O Dilema Malaio) (Tóquio: !mura Bunka Jigyo, trad.
Takata Masayoshi, 1983), p. 267, citado em Ogura Kazuo, "A Cal! for a New Concept of
Asia", japan Echo, 20 (outono de 1993), 40.
13. Li Xiangiu, "A Post-Cold War Alternative from East Asia", Straits Times, 10/02/1992, p. 24.
14. Yotaro Kabayashi, "Re-Asianize Japan", New Perspectives Qttarterly, 9 (inverno de 1992),
20; Funabashi, "1be Asianization of Asia", p. 75 e ss.; George Yong-Soon Yee, "New East
Asia in a Multicultural World", lntematíonal Hera/d Tribttne, 15/07/1992, p. 8.
15. Yoichi Funabashi, "Globalize Asia", New Perspectives Qttarterly, 9 (inverno de 1992), 23-24;
Kishore M. Mahbubani, "Thew West and the Rest", Natíonal Jnterest, 28 (verão de 1992),
7; Hazuo, "New Concept of Asia", p. 41.
16. Economist, 09/03/1996, p. 33.
17. Bandar bin Sultan, New York Times, 10/07/1994, p. 20.
18. John L. Esposito, 7be Jslamíc 7breat.· Myth or Reality (Nova York: Oxford University Press,
1992), p. 12; Ali E. Hillal Dessouki, "The Islamic Resurgence", em Jslamic Resurgence in the
Arab World, org. Ali E. Hillal Dessouki (Nova York: Praeger, 1982), pp. 9-13.
19. Thomas Case, citado em Michael Walzer, 7be Revolutíon ofthe Saints: A Study in the Origins
ofRadicalPo/itics(Cambridge: Harvard University Press, 1965), pp. 10-11; Hassan Al-Turabi,
"The Islamic Awakening's Second Wave", New Perspectives Quarterly, 9 (verão de 1992),

420
52. O estudo feito por Walzer do puritanismo calvinista inglês dos séculos XVI e XVII
possivelmente é o melhor trabalho isolado para se compreender o caráter, a atração, as
limitações e o papel histórico do fundamentalismo islãmico do final do século XX.
20. Donald K. Emerson, "Islam and Regime in Jndonesia: Who's Coopting Whom?" (monografia
não publicada, 1989), p. 16; M. Nasir Tamara, Jndonesia in the Wake of Jslam, 1965-1985
(Kuala Lumpur: Instituto de Estudos Internacionais e Estratégicos da Malásia, 1986), p. 28;
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Jnternational Hera/d Tribttne, 2710611987, pp. 7-8; Sabri Sayari, "Politicization of Islamic
Re-traditionalism: Some Preliminary Notes", em Jslam and Politics in the Modem Middle
East, org. Metin Heper e Raphael Israeli (Londres: Croom Helm, 1984), p. 125; New York
Times, 26/03/1989, p. 14; 02/03/1995, p. AS. Ver, por exemplo, relatórios sohre esses países
no New York Times, 17/11/1985, p. 2E; 15/11/1987, p. 13; 06/03/1991, p. All; 20/10/1990,
p. 4; 26/12/1992, p. l; 08/03/1994, p. Al5; e Economist, 15/06/1985, pp. 36-37, e 18/09/1992,
pp. 23-25.
21. New York Times, 04/10/1993, p. AS; 29/11/1994, p. A4; 03/02/1994, p. 1; 26/12/1992, p. 5;
Erika G. Alin, "Dynamics of the Palestinian Uprising: An Assessment of Causes, Characters,
and Consequences", Comparative Politics, 26 (07/1994), 494; New York Times, 08/03/1994,
p. A15; James Peacock, "The Impact of Islam", Wilson Qttarterly, 5 (primavera de 1981),
142; Tamara, lndonesia in the Wake oflslam, p. 22.
22. Olivier Roy, 7be Failttre of Political Jslam (Londres: Tauris, 1994), p. 49 e ss.; New York
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Revenge of God: 7be Resurgence of lslam, Cbristianity, and jttdaism in tbe Modem World
(University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 1994), p. 32; Farida Faouzia Charfi,
"When Galileo Meets Allah", New Perspective Qttarterly, 11 (primavera de 1994), 30;
Esposito, Jslamíc 7breat, p. 10.
23. Mahnaz Ispahani, "Varieties of Muslim Experience", Wilson Qttarterly, 13 (outono de 1989),
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24. Saad Eddin Ibrahim, "Appeal of Islamic Fundamentalism" (monografia apresentada à
Conferência sobre o Islamismo e a Política no Mundo Muçulmano Contemporâneo, Harvard
University, 15-16/10/1985), pp. 9-10, e "Islamic Militancy as a Social Movement: The Case
of Two Groups in Egypt", em Jslamic Resttrgence, org. Dessouki, pp. 128-131.
25. Washington Post, 26/10/1980, p. 23; Peacock, "Impact of Islam", p. 140; Ilkay Sunar e
Binnaz Toprak, "Islam in Politics: The Case of Turkey", Government and üppositíon, 18
(outono de 1983); Richard W. Bulliet, "The lsraeli-PLO Accord: The Future of the Islamic
Movement", Foreígn Ajfaírs, 72 (nov.-dez./1993), 42.
26. Ernest Gellner, "Up from Imperialism", New Republic, 22/05/1989, p. 35; John Murray
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(outono de 1994), 58; Roy, Failttre of Political Jslam, p. 53.
27. Fouad Ajami, "The Impossible Life of Muslim Liberalism", New Republic, 02/06/1986, p. 27.
28. Clement Moore Henry, "The Mediterranean Debt Crescent" (manuscrito não publicado), p.
346; Mark N. Katz, "Emerging Pattems in the lnternational Relations of Central Asia", Central
AsianMonitor(n. 2, 1994), 27; Mehrdad Haghayeghi, "Islamic Reviva! in the Central Asian
Republics", Central Asian Survey, 13 (n. 2, 1994), p. 255.
29. New York Times, 10/04/1989, p. A3; 22/12/1992, p. 5; Economist, 10/10/1992, p. 41.
30. Economist, 20/07/1991, p. 35; 21/12/1991-03/01/1992, p. 40; Mahfulzul Hoque Choudhury,
"Nationalism, Religion and Politics in Bangladesh", em Bangladesh: Society, Religíon and
Politics, org. Rafiuddin Ahmed (Chittagong: South Asia Studies Group, 1985), p. 68; New
York Times, 30/11/1994, p. Al4; Wall Streetjournal, 01/03/1995, pp. 1, A6.
31. Donald L. Horowitz, "The Qur'an and the Common Law: Islamic Law Reform and the
Theory of Legal Change", Americanjourna/ of Comparative Law, 42 (primavera e verão
de 1994), 234 e ss.
32. Dessouki, "Islamic Resurgence", p. 23.

á?1
33. Daniel Pipes, ln the Path ofGod: lslam and Political Power(Nova York: Basic Books, 1983),
pp. 282-283, 290-292;John Barrett Kelly, Arabia, theGutfandthe West(Nova York: Basic
Books, 1980), pp. 261, 423, como citado em Pipes, Path of God, p. 291.
34. Divisão de População das Nações Unidas, World Population Prospects: 1be 1992 Revision
(Nova York: Nações Unidas, 1993), quadroA18; Banco Mundial, WorldDevelopmentReport
1995 (Nova York: Oxford University Press, 1995), Quadro 25; Jean Bourgeois-Pichat, "Le
Nombre des Hommes: État et Prospective", em Les ScientifiquesParlent, org. AlbertJacquard
(Paris: Hachette, 1987), pp. 154,156.
35. Jack A. Goldstone, Revoltttion and Rebellion in tbe Early Modem World (Berkeley:
University of California Press, 1991), várias, mas especialmente pp ..24-39.
36. Herbert Moeller, "Youth as a Force in the Modem World", Gomparative Studies in Society
and History, 10 (abr/1968), 237-260; Lewis S. Feuer, "Generations and the Theory of
Revolution", Survey, 18 (verão de 1972), pp. 161-188.
37. Peter W. Wilson e Douglas F. Graham, SaudiArabia: 7be Coming Storm (Armonk, NY: M.
E. Sharpe, 1994), pp. 28-29.
38. Philippe Fargues, "Demographic Explosion or Social Upheaval", em Democracy Without
Democrats? 1be Renewal ofPolitics in the Muslim World, org. Ghassen Salame (Londres: 1.
B. Tauris, 1994), pp. 158-162, 175-177.
39. Economi.st, 29/08/1981, p. 40; Denis Dragounski, "Threshold ofViolence", FreedomReview,
26 (mar.-abr./1995), 11.

Capítulo 6
1. Andreas Papandreou, "Europe Turns Left", NewPerspectives Quarterly, 11 (inverno de 1994),
53; Vuk Draskovic, citado em ]anice A. Brown, "Islam in the Balkans", Freedom Review, 22
(nov.-dez./1991), 31; F. Stephen Larrabee, "Instability and Change in the Balkans", Suroival,
34 (verão de 1992), 43; Misha Glenny, "Heading OffWar in the Southern Balkans", Foreign
A.ffairs, 74 (mai.-jun./1995), 102-103.
2. Ali Al-Amin Mazrui, Cultural Forces in World Politics (Londres: James Currey, 1991), p. 13.
3. Ver, por exemplo, Economist, 16/11/1991, p. 45; 06/05/1995, p. 36.
4. Ronald B. Palmer e Thomas ]. Reckford, Building ASEAN: 20 Years of Southeast Asian
Cooperation (Nova York: Praeger, 1987), p. 109; Economi.st, 23/07/1994, pp. 31-32.
5. Barry Buzan e Gerald Segai, "Rethinking East Asian Security", Survival, 36 (verão de 1994),
16 .
6. Far Bastem Economic Review, 11/08/1994, p. 34.
7. Entrevista de Datsuk Seri Mahatir bin Mohamada, da Malásia, com Kenichi Ohmae, pp. 3,
7; Rafidah Azia, New York Times, 12/02/1991, p. 06.
8. fapan Times, 07/11/1994, p. 19; Economi.st, 19/11/1994, p. 37.
9. Murray Weidenbaum, "Greater China: A New Economic Colossus?", Washington Quarterly,
16 (outono de 1993), 78-80. '
10. Wall Streetjoumal, 3010911994, p. A8; New York Times, 17/02/1995, p. A6.
11. Economi.st, 08/10/1994, p. 44; Andres Serbin, "Towards an Association of Caribbean States:
Raising Some Awkward Questions" ,]oumal oflnteramerican Studies, 36 (inverno de 1994)
61-90. '
12. F~r Eastern Economic Review, 05107/1990, pp. 24-25; 05/09/1991, pp. 26-27; New York
Times, 16/02/1992, p. 16; Economi.st, 15/01/1994, p. 38; Robert D. Horrnats, "Making
Reg1onahsm Safe", Foreign A.ffairs, 73 (mar.-abr./1994), 102-103; Economi.st, 10/06/1994,
PP'. ~7-48; Boston Globe, 05/02/1994, p. 7. Sobre o Mercosul, ver Luigi Manzetti, "The
Poht1cal Economy of MERCOSUR", ]oumal of lnteramerican Studies, 35 (inverno de
1993-94), 101-141, e Felix Pena, "New Approaches to Economic Integration in the Southem
Cone", Washington Quarterly, 18 (verão de 1995), pp. 113-122.
13. New York Times, 08/04/1994, p. A3; 13/06/1994, p. Dl, D5; 04/01/1995, p. A8; entrevista
de Mahatir com Ohmae, pp. 2, 5; "Asian Trade Directions", AMEX Bank Review, 20
(22/03/1993), 1-7.
14. Ver Brian Pollins, "Does Trade Still Follow the Flag?", American Política[ Science Review,
83 (jun./1989), 465-480; Joanne Gowa e Edward D. Mansfield, "Power Politics and Interna-
tional Trade", American Political Science Revtew, 87 (jun./1993), 408-421; e David M. Rowe,
"Trade and Security in International Relations, (monografia não publicada, Ohio State
University, 15/09/1994), várias.
15. Sidney W. Mintz, "Can Haiti Change?", Foreign A.ffatrs, 75 (jan. -fev ./1995), 73; Ernesto Perez
Balladares e Joycelyn McCalla, citados em "Haiti's Traditions of Isolation Makes U.S. Task
Harder", Washington Post, 25/07/1995, p. AI.
16. Economíst, 23/08/1993, p. 53.
17. Boston Globe, 21/03/1993, pp. l, 16, 17; Economi.st, 19/11/1994, p. 23; 11/06/1994, p. 90.
A semelhança entre a Turquia e o México nesse aspecto foi assinalada por Barry Buzan,
"New Patterns of Global Security in the Twentieth-first Century", International A.ffairs, 67
(jul./1991), 449, e Jagdish Bhagwati, 1be World Trading System at Ri.sk(Princeton: Princeton
University Press, 1991), p. 72.
18. Ver Marquês de Custine, Empire ofthe Czar: Ajourney 1brough Eternal Russia (Nova York:
Doubleday, 1989, originalmente publicado em Paris em 1844), várias.
19. P. Ya. Chaadayev, Artigos e Cartas [Statyi i pi.sma] (Moscou: 1989), p. 178, e N. Ya.
Danilevskiy, Rússia e Europa [Rossrya I Yevropa] (Moscou: 1991), pp. 267-268, citados em
Sergei Vladislavovich Chugrov, "Russia Between East and West", em MEMO 3: ln Search
ofAnswers in the Post-Soviet Era, org. Steve Hirsch (Washington, D.C.: Bureau of National
Affairs, 1992), p. 138.
20. Ver Leon Aron, "The Battle for the Sou! of Russian Foreign Policy", 1be American Enterprise,
3 (nov.-dez./1992), 10 e ss.; Alexei G. Arbatov, "Russia's Foreign Policy Alternatives",
International Security, 18 (outono de 1993), 5 e ss.
21. Sergei Stankevich, "Russia in Search of Itself", National lnterest, 28 (verão de 1992), 48-49.
22. Albert Motivans, '"Openness in the West' in European Russia", RFF/RL Research Report, 1
(27/11/1992), 60-62. Os estudiosos calcularam a distribuição de votos de maneiras
diferentes, com pequenas diferenças nos resultados. Apoiei-me na análise de Sergei
Chugrov, "Política! tendencies in Russia's Regions: Evidence from the 1993 Parliamentary
Elections" (monografia não publicada, Harvard University, 1994).
23. Chugrov, "Russia Between", p. 140.
24. Samuel P. Huntington, Political Order in Changing Societies (New Haven: Yale University
Press, 1968), pp. 350-351.
25. Duygo Bazoglu Sezer, "Turkey's Grand Strategy Facing a Dilemma", International Spectator,
27 (jan.-mar./1992), 24.
26. Clyde Haberman, "On Iraq's Other Front", New York Times Magazine, 18/11/1990, p. 42;
Bruce R. Kuniholm, "Turkey and the West", ForeignA.ffairs, 70 (primavera de 1991), 35-36.
27. Ian Lesser, "Turkey and the West after the Gulf War", lnternational Spectator, 27
(jan.-mar./1992), 33.
28. Financial Times, 09/03/1992, p. 2; New York Times, 05/04/1992, p. E3; Tansu Ciller, "The
Role of Turkey in 'the New World", Strategic Review, 22 (inverno de 1994), p. 9; Haberman,
Iraq's Other Front", p. 44; John Murray Brown, "Tansu Ciller and the Question ofTurkish
Identity", World Policyfoumal, 11 (outono de 1994), 58.
29. Sezer, "Turkey's Grand Strategy", p. 27; Washington Post, 22/03/1992; New York Times,
19/06/1994, p. 4.
30. New York Times, 04/08/1993, p. A3; 19/06/1994, p. 4; Philip Robins, "Between Sentiment
and Self-Interest: Turkey's Policy toward Azerbaijan and the Central Asian States", Middle
Eastfoumal, 47 (outono de 1993), pp. 593-610; Economist, 17/06/1995, pp. 38-39.
31. Bahri Yilmaz, "Turkey's New Role in International Politics", Aussenpolitik, 45 (jan./1994),
94.

423
"""'
32. Eric Rouleau, "The Challenges to Turkey", Foreign Affairs, 72 (nov.-dez./1993), 119.
33. Rouleau, "Challenges", pp. 120-121; New York Times, 26/03/19989, p. 14.
34. Ibid.
35. Brown, "Question of Turkish identity'', p. 58.
36. Sezer, "Turkey's Grand Strategy", pp. 29-30.
37. Ciller, "Turkey in 'the New World"', p. 9; Brown, "Question of Turkish Identity", p. 56;
Tansu Ciller, "Turkey and NATO: Stability in the Vortex of Change'', NAW Review, 42
(abr./1995), 6; Suleyman Demice!, BBC Summary of World Broadcasts, 02/02/1994. Sobre
outras utilizações da metáfora da ponte, ver Bruce R. Kuniholm, "Turkey and the West",
Foreign Affairs, 70 (primavera de 1991), 39; Lesser, "Turkey and the West'', p. 33.
38. Octavio Paz, "The Border of Time", entrevista com Nathan Gar<Íels, New Perspectives
Qu.arterly, 8 (inverno de 1991), 36.
39. Sobre uma manifestação desta última preocupação, ver Daniel Patrick Moyniham, "Free
Trade with an Unfree Society: A Commitment and its Consequences", Nationa/ Interest
(verão de 1995), 28-33.
40. Financial Times, 23/07/1994, p. 35; New York Times, 16/08/1992, p. 3.
41. Economist, 23/07/1994, p. 35; Irene Moss, Comissária para Direitos Humanos (Austrália),
New York Times, 16/08/1992, p. 3; Economist, 23/07/1994, p. 35; Boston Globe, 07/07/1993,
p. 2; Cable News Network, News Report, 16/12/1993; Richard Higgott, "Closing a Branch
Office of Empire: Australian Foreign Policy and the UK at Century's End", Internationa/
Affairs, 70 (jan./1994), 58.
42. Jat Sujamiko, 1be Au.stralian, 05/05/1993, p. 18, citado em Higgott, "Closing a Branch", p.
62; Higgott, "Closing a Branch", p. 63; Economist, 12/12/1993, p. 34.
43. Transcrição, entrevista com Keniche Ohmae, 24/10/1994, pp. 5-6. Ver tb. japan· Times,
07/11/1994, p. 19.
44. Ex-embaixador Richard Woolcott (Austrália), New York Times, 16/08/1992, p. 3.
45. Paul Kelly, "Reinventing Australia'', National Interest, 30 (inverno de 1992), 66; Economist,
11/12/1993, p. 34; Higgott, "Closing a Branch", p. 58.
46. Lee Kuan yew, citado em Higgott, "Closing a Branch'', p. 49.

Capítulo 7
l. Economist, 14/01/1995, p. 45; 26/11/1994, p. 56, resumindo o artigo deJuppé no LeMonde,
18/11/1994; New York Times, 04/0911994, p. 11.
2. Michael Howard, "Lessons of the Cold War'', Survival, 36 (inverno de 1994), 102-103; Pierre
Behar, "Central Europe: The New Lines of Fracture", Geopolitiqu.e, 39 (ed. em inglês,
ago./1992), 42; Max Jakobson, "Collective Security in Europe Today", Washington Qu.ar-
terly, 18 (primavera de 1995), 69; Max Beloff, "Fault Lines and Steeples: The Divided
Loyalties of Europe", National Interest, 23 (primavera de 1991), 78.
3. Andreas Oplatka, "Vienna and the Mirror of History", Geopolitique, 35 (ed. em inglês,
outono de 1991), 25; Vytautas Landsbergis, "The Choice'', Geopolitique, 35 (ed. em inglês,
outono de 1991), 3; New York Times, 23/04/1995, 5E.
4. Carl Bildt, "The Baltic Litmus Test", Foreign Affairs, 73 (set.-out./1994), 84.
5. New York Times, 15/06/1995, p. Ato.
6. RFF/RL Research Bulletin, 10 (16/03/1993), 1, 6.
7. William D. Jackson, "Imperial Temptations: Ethnics Abroad'', Orbis, 38 (inverno de 1994),
5.
8. lan Brzezinski, New York Times, 13/07/1994, p. A8.
9. John F. Mearsheimer, "The Case for a Ukarinian Nuclear Deterrent: Debate", ForeignAjfairs,
72 (verão de 1993), 50-66.
10. New York Times, 31/01/1994, p. A8.

424
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Capítulo 8
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p. 88; New York Times, 22/06/1995, p. l; Gill, "Curbing Beijing's Armas", p. 388; New York
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14/11/1994. Essas duas ampliaram a Executive Order 12735, de 16/11/1990, baixada pelo
presidente Bush ao declarar uma emergência nacional com relação a armas químicas e
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10. James Fallows, "The Panic Gap: Reactions to North Korea's Bomb", National lnterest, 38
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21. Os dados e citações são de Myron Weiner, Global Migration Crisis (Nova York: Harper
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24. Ver B. A. Robertson, "Islam and Europe: An Enigma ora Myth?", Middle Eastjournal, 48
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25. lnternational Hera/d Tribune, 29/05/1990, p. 5; New York Times, 15/09/1994, p. A21. A
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Judeu Norte-americano.
26. Ver Hans-George Betz, "The New Politics of Resentment: Radical Right-Wing Populist
Parties in Western Europe", Comparative Politics, 25 (jul./1993), 413-427.
27. International Hera/d Tribune, 28/06193, p. 3; Wall Street fournal, 23/05/1994, p. Bl;
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29. New York Times, 11/06/1995, p. E14.
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Capítulo 9
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2. John L. Esposito, 7be Islamic 7breat: Myth or Reality? (Nova York: Oxford University Press,
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9. William H. McNeill, "Epilogue: Fundamentalism and the World of the 1990's", em
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10. Fatima Mernissi, Islam and Democracy: Fear of the Modem World (Reading, MA: Addison-
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11. Para ter uma seleção desses relatórios, ver Economist, 01/08/1992, pp. 34-35.
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16. Economist, 23/11/1991, p. 15.
17. Barry Buzan e Gerald Segai, "Rethinking East Asian Security", Survival, 36 (verão de 1994),
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Doesn't'', Orbis, 38 (verão de 1994), 365. Os autores desse texto concluíram dizendo que
o emprego da força armada contra Taiwan "seria uma decisão muito pouco inteligente".
19. Buzan e Segai, "Rethinking East Asian Security'', p. 7; Richard K. Betts, "Wealth, Power and
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20. Can China's Anned Forces Win the Ne:x:t War?, trechos traduzidos por Munro em
"Eavesdropping on the Chinese (. .. )", p. 355 e ss.; New York Times, 16/11/1993, p. A6;
Friedberg, "Ripe for Rivalry'', p. 7.
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/.10
22. Ver, por exemplo, Economist, 26/06/1993, p. 75; 24/07/1995, p. 25; Time, 03/07/1995, pp.
30-31; e sobre a China, Jacob Heilbrunn, "The Next Cold War", New Republic, 20/11/1995,
27 e ss.
23. Sobre debates das variedades de guerras comerciais e quando elas podem levar a guerras
militares, ver David Rowe, Trade Wars and International Security: 1be Political Economy
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Harvard University, jul./1994), p. 7 e ss.
24. New York Times, 06/07/1993, p. Al;Time, 10/02/1992, p. 16 e ss.; Economist, 17/02/1990,
pp. 21-24, Boston Globe, 25/11/1991, p. 1, 8; Dan Oberdorfer, WashingtonPost, 01/03/1992,
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25. Citado no New York Times, 21/04/1992, p. AlO; New York Times,, 22/09/1991, p. E2;
21/04/1992, p. Al; 19/09/1991, p. A7; 01/08/1995, p. A2; International Hera/d Tribune,
24/08/1995, p. A2, citando relato de David Shambaugh sobre entrevistas em Pequim.
26. Donald Zagoria, American Foreign Policy Newsletter, out./1993, p. 3; Can China'sAnned
Forces Wín the Next War?, em Munro, "Eavesdropping on the Chinese Military", p. 355 e ss.
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30. Washington Post, 05/05/1994, p. A38; Daily Telegraph, 06/05/1994, p. 16; Boston Globe,
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(out./1995), 18; Nicholas D. Kristof, "The Rise of China", Foreign Ajfairs, 72 (nov.-
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08/09/1995, p. 2; 12/09/1995, p. l; 10/09/1995, p. 28.
45. Boston Globe, 16/12/1995, p. 8; New York Times, 09107/1994, p. 2.
46. Margaret Blunden, "Insecurity on Europe's Southern Flank", Suroival, 36 (verão de 1994),
145; New York Times, 16/12/1993, p. A7.
47. Fouad Ajami, "Under Western Eyes': The Fate of Bosnia" (Relatório preparado para a
Comissão Internacional sobre os Bálcãs da "Carnegie Endowment for International Peace"
e do "Aspen Institute", abr./1996), p. 5 e ss.; Boston Globe, 14/08/1993, p. 2, Watt Street
journal, 17/08/1992, p. A4.
48. Yilmaz, "Turkey's New Role", pp. 94, 97.
49. Janusz Bugajski, "Joy of War", p. 4; New York Times, 14/11/1992, p. 5; 05/12/1992, p. l;
15/11/1993, p. l; 18/02/1995, p. 3; 01/12/1995, p. Al4; 03/12/1995, p. l; 16/12/1995, p. 6;
24/01/1996, p. Al, A6; Susan Woodward, Balkan Tragedy: Chaos and Díssolutíon after the
Cold War (Washington, D.C.: Brookings lnstitution, 1995), pp. 356-357; Boston Globe,
10/11/1992, p. 7; 13/07/1993, p. 10; 24/06/1995, p. 9; 22/09/1995, p. 1, 15; Bill Gertz,
Washington Times, 02/06/1994, p. Al.
50. jane'sSentinel, citado em Economist, 06/08/1994, p. 41; Economist, 12/02/1994, p. 21; New
York Times, 10/09/1992, p. A6; 05/12/1992, p. 6; 26/01/1993, p. A9; 14/09/1993, p. Al4;
14/04/1994, p. 6; 15/04/1995, p. 3; 15/06/1995, p. Al2; 03/02/1996, p. 6; Boston Globe,
14/04/1995, p. 2; Washington Post, 02/02/1996, p. 1.
51. New York Times, 23/01/1994, p. l; Boston Globe, 01/02/1994, p. 8.
52. Sobre a aquiescência norte-americana aos embarques de armas para os muçulmanos, ver
New York Times,, 15/04/1995, p. 3; 03/02/1996, p. 6; Washington Post, 02/02/1996, p. 1;
Boston Globe, 14/04/1995, p. 2.
53. Rebecca West, Black Lamb and Grey Falcon: 7be Record of ajourney through Yugoslavia
in 1937(Londres: Macmillan, 1941), p. 22, citada em Charles G. Boyd, "Making Peace with
the Guilty: The Truth About Bosnia", Foreign Ajfairs, 74 (set.-out./1995), 22.
54. Citado em Timothy Garton Ash, "Bosnia in Our Future", New York Review of Books,
21/12/1995, p. 27; New York Times, 05/12/1992, p. 1.
55. New York Times, 03/09/1995, p. 6E; Boston Globe, 11/05/1995, p. 4.
56. Ver U.S. Institute of Peace, Sudan: Ending the War, Moving Talks Forward (Washington,
D.C.: U.S. Institute of Peace Special Report, 1994); New York Times, 26/02/1994, p. 3.
57. John]. Maresca, Warin the Caucasus(Washington: United States lnstitute of Peace, Special
Report, sem data), p. 4.
58. Robert D. Putnam, "Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two Levei Games'',
International Organization, 42 (verão de 1988), 427-460; Samuel P. Huntington, 7be 7bird
Wave: Democratization in the Late Twentieth Century (Norman, OK: University of
Oklahoma Press, 1991), pp. 121-163.
59. New York Times, 27/01/1993, p. A6; 16/02/1994, p. 47. Sobre a iniciativa russa de fevereiro
de 1994, ver, de modo geral, Leonard]. Cohen, "Russia and The Balkans: Pan-Slavism,
Partnership and Power", Internatíonaljournal, 49 (ago./1994), 836-845.
60. Economist, 26/02/1994, p. 50.
61. New York Times, 20/04/1994, p. A12; Boston Globe, 19/04/1994, p. 8.
62. New York Times, 15/08/1995, p. 13.
63. Hill and Jeweu, Back in the USSR, p. 12; Paul Henze, Georgia and Armenia - Toward
Jndependence (Santa Monica, CA: RAND P-7924, 1995), p. 5; Boston Globe, 22/11/1993,
p. 34:

Capítulo 12
1. Arnold ]. Toynbee, A Study of History (Londres: Oxford University Press, 12 vais.,
1934-1961), VII, 7-17; Civüization on Triai- Essays (Nova York: Oxford Vniversity Press,
1948), 17-18; StudyojHistory, IX, 421-422.
2. Matthew Melko, 7beNatureofCivilizatíons(Boston: Porter Sargent, 1%9), p. 155.
3. Carrol! Quigley, Tbe Evolutíon ofCivilizatíons: Anlntroduction toHistortcalAnalysis(Nova
York: Macmillan, 1%1), p. 146 e ss.
4. Quigley, Evolution of Civilizations, pp. 138-139, 158-160.

4~5
5. Mattei Dogan, "The Decline of Religious Beliefs in Western Europe", International Social
Sciencejournal, 47 (set./1995), 405-419.
6. Robert Wuthnow, "Indices of Réligious Resurgence in the United States", em Religious
Resurgence: Contemporary Cases ín Islam, Cbrlstianíty, and judaísm, org. Rochard T.
Antoun e Mary Elaine Hegland (Syracuse: Syracuse University Press, 1987), pp. 15-34;
Economist, 08/07/1995, pp. 19-21.
7. Arthur M. Schlesinger, Jr., 1be Disuniting ofAmerica: rejlections on a Multicultural Society
(Nova York: W. W. Norton, 1992), pp. 66-67, 123.
8. Citado em Schlesinger, Disuniting of America, p. 118.
9. Gunnar Myrdal, An American Dílemma (Nova York: Harper & Bros., 1994), 1, 3. Richard
Hofstadter citado em Hans Kohn, American Nationalism: An lnterpretive Essay (Nova York:
Macmillan, 1957), p. 13.
10. Takeshi Umehara, "Ancient Japan Shows Post-Modernism the Way", New Perspectives
Quarterly, 9 (primavera de 1992), 10.
11. James Kurth, "The Real Clash", National Interest, 37 (outono de 1994), 3-15.
12. Malcolm Rifkind, discurso, Pilgritn Society, Londres, 15/11/1994 (Nova York: British
Information Services, 16/11/1994), p. 2.
13. lnternational Hera/d Tribune, 23/05/1995, p. 13.
14. Richard Holbrooke, "America: A European Power", Foreign Ajfairs, 74 (mar.-abr./1995),
49.
15. Michael Howard, America and the World (St. Louis: Washington University, a Annual Lewin
Lecture, 05/04/1984), p. 6.
16. Schlesinger, Disuniting ofAmerica, p. 127.
17. Sobre uma declaração dos anos 90 a respeito desse interesse, ver "Defense Planning
Guidance for the Fiscal Years 1994-1999", minuta, 18/02/1992; New York Times, 08/03/1992,
p. 14.
18. Z. A. Bhutto, Ifl AmAssassinated(Nova Délhi: Vikas Publishing House, 1979), pp. 137-138,
citado em Louis Delvoie, "The Islamization of Pakistan's Foreign Policy", International
]ournal, 51 (inverno de 1995-96), 133.
19. Michael Walzer, Tbick and 1bin: Moral Argument at Home and Abroad (Notre Dame:
University of Notre Dame Press, 1994), pp. 1-11.
20. James Q. Wilson, Tbe Moral Sense (Nova York: Free Press, 1993), p. 225.
21. Governo de Singapura, Shared Values(Singapura: Cmd. n. 1of1991, 02/01/1991), pp. 2-10.
22. Lester Pearson, Democracy in World Politics (Princeton: Princeton University Press, 1955),
pp. 83-84.

436
Índice Remissivo

A relações do México com a - 156, 165,


172, 185, 186-188
Abdullah, Príncipe Herdeiro da Arábia ver também Canadá; Estados Unidos
Saudita -147 América do Sul - 58, 186, 254
absolutismo - 84, 295, 336 ver também países específicos
Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio - Angola - 327
ver GATT Apter, David E. - 93
Afeganistão - 139, 165, 210, 221, 263, árabe, civilização - ver islâmica,
269, 314, 325, 340, 345, 348, 349, 350, civilização
351, 366 árabe, idioma - 71, 73, 343
África do Sul - 53, 54, 115, 154, 168, 224, Arábia Saudita - 17, 21, 93, 117, 132, 135,
256, 304-305, 335, 404 139, 140, 144, 147, 156, 182, 219, 220,
africana, civilização - 50, 53, 56, 58, 72, 221, 223, 229, 232, 234, 247, 263, 269,
80, 227, 229, 239, 250, 256, 265, 304, 271, 304, 313, 314, 318, 319, 337, 339
326, 335, 349, 396, 401, 403, 409, 457 congregação a países afins pela -
estrutura política da - 167, 168, 170 348, 358, 364, 366, 367, 369, 370, 374
identidades e valores culturais na - Arbatov, Georgi - 228
34, 77, 157, 241, 244 Área de Livre Comércio da
indigenização na - 115, 125 Centro-Européia - 165
modernização e a - 90, 92 Argélia - 108, 114, 123, 139, 142, 147,
população da - 102-103 148, 154, 221, 230, 234, 244, 247, 250,
Ahmed, Akbar - 336 252, 269, 270, 318, 348, 364, 366, 401
Ajami, Fouad - 141, 364 Argentina - 165, 167, 305, 372, 404
al-Assad, Hafiz - 318 Armênia - 41, 75, 155, 178, 204, 205, 308,
al-Hawali, Safar - 317 325, 329, 347, 349, 352, 354-357, 372,
al-Turabi, Hassan - 119, 123, 137, 221 374, 379
Albânia - 147, 149, 155, 159, 170, 324, ASEAN - ver Associação das Nações do
331, 332, 362, 366, 401 Sudeste Asiático
Alemanha (unificada) - 28, 74, 97, 107, Ásia - 58, 93, 409
108, 127, 167, 180, 195, 196, 204, 209, capacidade militar na - 41, 108, 109,
289, 391, 405, 228, 231-237, 238-239
identidade cultural da - 154, 155, 159 choques dentro da - 21, 156, 161, 162
em conflitos de linha de fratura - 347, desenvolvimento econômico na -
358, 359, 360, 366, 374, 375, 377, 383 125-134, 160, 162-163, 165, 188-191
imigração na - 42, 183, 248, 249, 250, hegemonia chinesa na - 274-294, 402
251, 252 imigração proveniente da - 253, 254,
Alexandre II, Tzar da Rússia -174 258
Ali, Ben - 143, 318 poderio cm expansão da - 19, 20, 28,
Ali, Muhanunad - 88 34, 98, 99, 125-134, 148, 149,
Aliyev, Gaidcr - 357 241-242, 273-293, 396
América do Norte - 52, 58, 101, 160 população da - 102-103

437

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