HUNTINGTON, Samuel. O Choque de Civilizações
HUNTINGTON, Samuel. O Choque de Civilizações
HUNTINGTON, Samuel. O Choque de Civilizações
HuNnNGTON
O CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES
E A RECOMPOSIÇÃO
DA ORDEM MUNDIAL
Tradução de
· M. H. C. Côrtes
SBD-FFLCH-USP
llllllllllllllllllllllllllllllllllllllll
245806
~
OBJfllVA
i
)
SUMÁRIO
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
1
UM MUNDO DE CIVILIZAÇÕES
II
A ALTERAÇÃO DO EQUIÚBRIO ENTRE AS CIVIUZAÇÕES
IV
OS CHOQUES DAS CIVIIlZAÇÕES
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
QUADROS
1,j\'
FIGURAS
MAPAS
11
poder. Um segundo tema muito importante também ausente do artigo
está sintetizado no título do livro e na frase final: "(. .. ) os choques das
civilizações são a maior ameaça à paz mundial, e uma ordem internacio-
nal baseada nas civilizações é a melhor salvaguarda contra a guerra
mundial."
Este livro não é, nem pretende ser, uma obra de ciência social. Ao
contrário, ele visa ser uma interpretação da evolução da política mundial
depois da Guerra Fria. Ele almeja apresentar uma moldura, um paradig-
ma, para o exame da política mundial que tenha significado para os
estudiosos e seja de utilidade para os formuladores de políticas. Õ teste
de seu significado e de sua utilidade não está em se ele explica tudo que
está acontecendo na política mundial. Evidentemente ele não faz isso. O
teste está em se ele fornece uma lente significativa e útil através da qual
se possa examinar os acontecimentos internacionais melhor do que
através de qualquer outra lente paradigmática. Além disso, nenhum
paradigma tem validade eterna. Conquanto um enfoque civilizacional
possa ajudar a compreender a política mundial no final do século XX e
no começo do século XXI, isso não significa que ele teria ajudado da
mesma maneira em meados do século XX ou que será de ajuda em
meados do século XXI.
As idéias que se transformaram no artigo e depois neste livro foram
expressas pela primeira vez numa conferência na série das Palestras
Bradley, no American Enterprise Institute, em Washington, em outubro
de 1992. Posteriormente, foram expostas numa monografia avulsa pre-
parada para o projeto do Instituto Olin sobre "O Ambiente de Segurança
em Mutação e os Interesses Naciçmais Norte-americanos", tornada pos-
sível pela Fundação Smith Richardson. Após a publicação do artigo,
envolvi-me em inúmeros seminários e encontros centrados no "choque"
com acadêmicos, autoridades governamentais, homens de negócios e
outros grupos, através dos Estados Unidos. Além disso, tive a satisfação
de poder participar de debates sobre o artigo e a tese nele apresent~da
em muitos outros países, incluindo a África do Sul, Alemanha, Arábia
Sa~dita, Argentina, Bélgica, China, Coréia; Espanha, Formosa, França,
Gra-Bretanha, Japão, Luxemburgo, Rússia, Singapura, Suécia e Suíça. Esses
debat:s me colocaram em contato com todas as principais civilizações, com
exceçao. do Hinduísmo, e me beneficiei imensamente das percepções e
perspeetivas dos que participaram dos mesmos. Em 1994 e 1995 ministrei um
seminário em Harvard b d , · '
so re a natureza o pos-Guerra Fria e os comentários
sempre vigorosos e às vezes bastante críticos que os alunos fizeram sobre
1 ')
minhas idéias constituíram um estímulo adicional. Meu trabalho neste livro
também se beneficiou muito do ambiente de apoio e coleguismo no
Instituto John M. Olin para Estudos Estratégicos e no Centro para Relações
Internacionais, ambos em Harvard.
O original foi lido na sua íntegra por Michael C. Desch, Robert O. .
Keohane, Fareed Zakaria e R. Scott Zimmerman, cujos comentários
levaram a melhoramentos significativos tanto na sua substância como na
sua organização. Durante todo o tempo de elaboração deste livro, Scott
Zimmerman proporcionou-me também uma assistência indispensável em
termos· de pesquisa e, sem seu auxílio dedicado, entusiástico e calcado
em amplas informações, este livro jamais poderia ter sido concluído com
a mesma rapidez. Nossos assistentes universitários, Peter Jun e Christiana
Briggs, também contribuíram de forma construtiva. Grace de Magistris
datilografou as partes iniciais do manuscrito e Carol Edwards, com grande
empenho e magnífica eficiência, refez o original tantas vezes que ela
deve saber quase de cor grandes trechos do mesmo. Denise Shannon e
Lynn Cox, na Georges Borchardt, e Robert Asahina, Robert Bender e
Johanna Li, na Simon & Schuster, encaminharam o manuscrito original,
de modo alegre e profissional, através do processo de publicação. Fico
imensamente grato a todas essas pessoas por sua ajuda em tornar este
livro uma realidade. Elas o fizeram muito melhor do que ele seria de
outra forma; as deficiências que restaram são responsabilidade minha.
Meu trabalho neste livro foi possibilitado pelo apoio financeiro da
Fundação John M. Olin e da Fundação Smith Richardson. Sem a assistência
de ambas a conclusão deste livro teria sofrido alguns anos de atraso e
fico-lhes muito agradecido pelo generoso endosso que deram aos meus
esforços. Enquanto outras fundações têm-se concentrado cada vez mais em
questões domésticas, a Olin e a Smith Richardson merecem aplausos por
manterem seu interesse em trabalhos sobre a guerra, a paz e a segurança
nacional e internacional e por darem seu apoio a eles.
S. P. H.
12
)
UM MUNDO
DE CIVILIZAÇÕES
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CAPÍTULO 1
A Nova Era
da Política Mundial
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• Dominado pelo Ocidente
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(
• Mundo Livre
~ Bloco Comunista
D Países não-alinhados
O Mundo das Civilizações pós-1990
.Ocidental
Africana
~Islâmica
.Sínica
B o
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Hindu
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O ortodoxa ~\~\·
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'
,
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• Latino-Americana
.Budista
D japonesa
No mundo pós-Guerra Fria, a cultura é, ao mesmo tempo, uma força
unificadora e divisiva. Os povos separados pela ideologia mas unidos
pela cultura se juntam, como fizeram as duas Alemanhas, e como as duas
Coréias e as diversas Chinas estão começando a fazer. As sociedades
unidas pela ideologia ou por circunstâncias históricas, porém divididas
pela civilização, ou se partem, como aconteceu na União Soviética, na
Iugoslávia e na Bósnia, ou ficam sujeitas a fortes tensões, como é o caso
da Ucrânia, Nigéria, Sudão, Índia, Sri Lanka e muitos outros. Os países
'
que têm afinidades culturais cooperam em termos econômicos e políticos.
As organizações internacionais baseadas em Estados com aspectos
culturais em comum, tais como os da União Européia, têm muito mais
êxito do que aquelas que tentam transcender as culturas. Durante 45
anos, a Cortina de Ferro foi a linha divisória central na Europa. Essa linha
se moveu várias centenas de quilômetros para o Leste. Ela é agora uma
linha que separa os povos da Cristandade ocidental, de um lado, dos
povos muçulmanos e ortodoxos, do outro. Embora culturalmente partes
do Ocidente, a Áustria, a Suécia e a Finlândia tiveram que se manter
neutras e ficar separadas do Ocidente na Guerra Fria. Na nova era, elas
estão-se juntando a seus afins culturais na União Européia e a Polônia
a Hungria e a República Checa as estão seguindo. ' '
Os pressupostos filosóficos, os valores subjacentes, as relações
sociais, os costumes e as formas de ver a vida de forma geral se
diferenciam de modo significativo entre as civilizações. A revitalização
da religião em grande parte do mundo está reforçando essas diferenças
culturais. As culturas podem se modificar e a natureza de seu impacto sobre
a política e a economia pode variar de um período para outro. Contudo, as
principais diferenças em desenvo1vimento político e econômico entre as
civilizações estão nitidamente enraizadas em suas culturas diferentes. O êxito
econômico da Ásia Oriental tem sua origem na cultura asiática oriental da
mesma maneira que as sociedades asiáticas orientais têm tido dificulchdes
em estabelecer sistemas políticos democráticos estáveis. A cultura islâmica
explica em grande parte por que a democracia deixou de emergir na maior
parte do mundo muçulmano. A evolução dos acontecimentos nas socie-
dades pós-comunistas da Europa Oriental e na ex-União Soviética é
moldada por suas identidades civilizacionais. Aquelas que têm uma
herança cristã ocidental estão fazendo progresso na direção do desen-
volvimento econômico e da política democrática. Nos países ortodoxos
as perspectivas de desenvolvimento econômico e político são incertas.
Nas repúblicas muçulmanas, as perspectivas são sombrias.
28
O Ocidente é e continuará a ser por muitos anos a civilização mais
poderosa. Contudo, seu poder em relação ao de outras civilizações está
declinando. À medida que o Ocidente tenta impor seus valores e proteger
seus interesses, as sociedades não-ocidentais se defrontam com uma
OUTROS MUNDOS?
29
verdade, nunca o faz - explicar todos os fatos com os quais ela se
defronta. ,,4 John Lewis Gaddis também observou inteligentemente que
"encontrar o seu próprio caminho num terreno pouco conhecido geral-
mente requer algum tipo de mapa. A cartografia, como a própria
cognição, é uma simplificação necessária que nos permite ver onde
estamos e para onde podemos estar indo". A imagem, durante a Guerra
Fria, da competição entre as superpotências era, como ele assinala, um
modelo desse tipo, articulado pela primeira vez por Harry Truman como
"um exercício de cartografia geopolítica que representava o panorama
internacional em termos que qualquer um podia compreender e, dessa
forma, preparava o caminho para a sofisticada estratégia de contenção
que logo iria se seguir". As percepções do mundo e as teorias causais
são guias indispensáveis da política internacionaI.5
Durante 40 anos, os estudiosos e os profissionais das relações
internacionais pensaram e atuaram nos termos desse quadro altamente
simplificado, mas muito útil, dos assuntos mundiais - o paradigma da
Guerra Fria. Esse paradigma não podia explicar tudo que se passava na
política mundial. Havia muitas anomalias - para usar o termo de Kühn
- e, às vezes, o paradigma impedia que estudiosos e estadistas enxergas-
sem os desdobramentos principais, como por exemplo a ruptura sino-
soviética. Entretanto, como um modelo simples de política global, ele
explicava uma quantidade maior de fenômenos do que seus rivais,
chegou a ser aceito quase universalmente e moldou o pensamento sobre
política mundial durante duas gerações.
Os paradigmas ou mapas simplificados são indispensáveis para o
pensamento e para a ação do Homem. Por um lado, podemos formular
explicitamente tais teorias ou modelos e utilizá-los conscientemente para
guiar nosso comportamento. Por outro lado, podemos negar a neces-
sidade de tais guias e pressupor que agiremos apenas em termos de fatos
"objetivos" específicos, lidando com cada caso "em função de seus
méritos". Contudo, se aceitarmos isso, estaremos nos enganando, pois,
no fundo de nossas mentes, estão ocultas pressuposições, vieses e
preconceitos que determinam a forma pela qual nós percebemos a
realidade, para que fatos olhamos e como julgamos sua importância e
seus méritos. Necessitamos de modelos explícitos ou implícitos a fim de
sermos capazes de:
30
3. antecipar e, se tivermos sorte, predizer desdobramentos futuros;
4. distinguir entre o que é importante e o que não é; e
5. ver os caminhos que devemos tomar para atingir nossos objetivos.
• No Capítulo 3, examina-se uma linha paralela de argumentação, baseada não no fin1 da ~uerr:1
Fria mas nas tendências econômicas e sociais de longo prazo que venham a produzir uma
"civilização universal".
31
Europa. "Foi precisamente no mundo não-europeu" que ocorreram as
grandes mudanças, especialmente na China e na União Soviética. A
guerra de idéias chegou ao fim. Ainda podem existir os que acreditam
no marxismo-leninismo "em lugares como Manágua, Pyongyang e Cam-
bridge, estado de Massachusetts", porém, de forma geral, a democracia
liberal triunfou. O futuro será dedicado não a grandes lutas estimulantes
sobre idéias mas sim à solução de mundanos problemas econômicos e
técnicos. E, concluía ele com certa tristeza, vai. ser tudo bastante
enfadonho. 6
A expectativa de harmonia era largamente partilhada. Líderes
políticos e intelectuais elaboraram opiniões similares. O Muro de
Berlim tinha caído, os regimes comunistas tinham desmoronado, as
Nações Unidas iriam assumir uma nova importância, os antigos rivais
da Guerra Fria se engajariam em "parceria" e numa "grande negocia-
ção", a ordem do dia seria a manutenção da paz e a imposição da paz.
O presidente do país líder mundial proclamou a "nova ordem mundial";
o decano da que talvez se possa chamar a universidade mais importante
do mundo vetou a nomeação de um professor de estudos de segurança
porque sua necessidade havia desaparecido: "Aleluia! Não estudamos
mais a guerra porque a guerra não existe mais."
O momento de euforia no fim da Guerra Fria gerou uma ilusão de
harmonia, que logo se viu não passar disso. O mundo ficou diferente no
início dos anos 90, mas não necessariamente mais pacífico. As mudanças
eram inevitáveis, o progresso não. Ilusões semelhantes ocorreram, por
breves períodos, ao final de cada um dos outros grandes conflitos do
século XX. A 1 Guerra Mundial foi "a guerra para acabar com todas as
guerras" e para tornar o mundo seguro para a democracia. A II Guerra
Mundial, na colocação de Franklin Roosevelt, iria "pôr fim ao sistema de
ações unilaterais, às alianças exclusivas, aos equilíbrios de poder e a
todos os outros expedientes que tinham sido tentados durante séculos
- e tinham fracassado sempre". Em vez disso, teríamos "uma organiza-
ção universal" de "Nações amantes da paz" e o começo de uma "estrutura
permanente de paz".7 No entanto, a I Guerra Mundial gerou o comunis-
mo, o fascismo e a inversão de uma tendência de mais de um século
rumo à democracia. A II Guerra Mundial produziu uma Guerra Fria que
foi realmente global. A ilusão de harmonia no fim da Guerra Fria logo
foi dissipada pela multiplicação de conflitos étnicos e de "limpeza étnica",
pela ruptura da lei e da ordem, pelo surgimento de novos padrões de
alianças e conflitos entre os Estados, pelo ressurgimento de movimentos
32
neocomunistas e neofascistas, pela intensificação do fundamentalismo
religioso, pelo fim da "diplomacia de sorrisos" e da "política do sim" nas
relações da Rússia com o Ocidente, pela incapacidade das Nações Unidas
e dos Estados Unidos de acabarem com sangrentos conflitos locais e pela
crescente disposição de afirmação de uma China emergente. Nos cinco
anos seguintes à queda do Muro de Berlim, a palavra "genocídio" foi
ouvida muito mais vezes do que em quaisquer cinco anos durante a
Guerra Fria. O paradigma de um só mundo harmônico está claramente
divorciado demais da realidade para ser um guia útil no mundo pós-
Guerra Fria.
34
"realista" das relações internacionais. De acordo com essa teoria, os
Estados são os atores principais - na verdade, os únicos atores impor-
tantes - dos assuntos mundiais, o relacionamento entre os Estados é de
anarquia e, por conseguinte, para assegurar sua sobrevivência e segu-
rança, os Estados invariavelmente tentam maximizar seu poder. Quando
um Estado vê outro Estado aumentando seu poder e, desse modo, se
tomando uma ameaça em potencial, ele tenta proteger sua própria
segurança fortalecendo seu poder e/ou aliando-se com outros Estados.
Os interesses e as ações dos mais ou menos 184 Estados do mundo
pós-Guerra Fria podem ser previstos a partir dessas pressuposições. 11
Esse quadro "realista" do mundo é um ponto de partida muito útil
para se analisar as relações internacionais e explicar grande parte do
comportamento dos Estados. Os Estados são e continuarão sendo as
entidades predominantes nos assuntos mundiais. Eles mantêm exércitos,
praticam diplomacia, negociam tratados, travam guerras, controlam os
organismos internacionais, influenciam e, em grau considerável, moldam
a produção e o comércio. Os governos dos Estados atribuem prioridade
a garantir a segurança externa dos seus Estados (embora, muitas vezes,
eles tenham que dar prioridade maior a garantir sua segurança como
governo contra ameaças internas). De forma ampla, esse paradigma
estatista de fato proporciona um quadro e um guia da política global mais
realista do que os paradigmas de um só mundo e de dois mundos.
Entretanto, também ele padece de sérias limitações.
Ele pressupõe que todos os Estados percebem seus interesses da
mesma maneira e agem do mesmo modo. Sua pressuposição simples de
que o poder é tudo constitui um ponto de partida para compreender o
comportamento dos Estados, mas não nos leva muito adiante. Os Estados
definem os seus interesses em termos de poder, mas também em termos
de muito mais. É claro que os Estados freqüentemente tentam conseguir
o equilíbrio de poder, porém se isso fosse tudo o que fizessem, os países
da Europa Ocidental teriam se coligado com a União Soviética contra os
Estados Unidos no final da década de 40. Os Estados reagem precipua-
mente às ameaças que percebem e os Estados da Europa Ocidental
naquela época viam uma ameaça política, ideológica e militar vindo do
Leste. Viam seus interesses de uma forma que não seria prevista pela
teoria realista clássica. Os valores, a cultura e as instituições influenciam
de forma ampla e profunda o modo pelo qual os Estados definem os
seus interesses. Os interesses dos Estados também são moldados não
apenas por seus valores e instituições domésticos, mas por normas e
2C
instituições internacionais. Acima e além da sua preocupação primária
com a segurança, diferentes tipos de Estados definem seus interesses de
maneiras diferentes. Os Estados com culturas e instituições semelhantes
verão um interesse comum. Os Estados democráticos têm aspectos
comuns com outros Estados democráticos e, por conseguinte, não lutam
uns com os outros. O Canadá não precisa se aliar com outra potência
para desestimular uma invasão pelos Estados Unidos.
Num nível básico, as pressuposições do paradigma estatista têm-se
confirmado através da História. Assim sendo, elas não nos ajudam a
compreender como a política mundial após a Guerra Fria diferirá da
política mundial durante a Guerra Fria e antes dela. No entanto, é evidente
que há diferenças e os Estados perseguem os seus interesses de forma
diferente de um período histórico para outro. No mundo pós-Guerra Fria,
os Estados cada vez mais definem os seus interesses em termos civiliza-
cionais. Eles cooperam e se aliam com Estados que têm culturas
semelhantes ou em comum e entram em conflito com maior freqüência
com países de culturas diferentes. Os Estados definem as ameaças em
termos das intenções dos outros Estados, e essas intenções e o modo
como elas são percebidas são profundamente moldados por considera-
ções de ordem cultural. Há menor probabilidade de que o público e os
estadistas vejam ameaças surgindo da parte de povos que eles acham
que compreendem e nos quais podem confiar devido a idioma, religião,
valores, instituições e cultura compartilhados. É muito mais provável que
vejam ameaças provindo de Estados cujas sociedades têm culturas
diferentes e que, por isso, não compreendem e nos quais sentem que
não podem confiar. Agora que uma União Soviética marxista-leninista
não mais representa uma ameaça para o Mundo Livre e que os Estados
Unidos não mais representam para o mundo comunista uma ameaça
contraposta, os países de ambos esses mundos cada vez mais vêem as
ameaças provindo de sociedades que são culturalmente diferentes.
Conquanto os Estados continuem sendo os atores principais nos
assuhtos mundiais, eles também estão sofrendo perdas de soberania,
funções e poder. As instituições internacionais agora afirmam seu direito
de julgar e de impor limitações ao que os Estados fazem em seus próprios
territórios. Em alguns casos, sobretudo na Europa, as instituições inter-
nacionais assumiram funções importantes que anteriormente eram
desempenhadas pelos Estados, e foram criadas poderosas burocracias
que operam diretamente sobre os cidadãos num plano individual. De
forma global, vem se verificando uma tendência para que os governos
dos Estados também percam poder através da devolução de poder para
entidades políticas abaixo do nível de Estado e nos âmbitos regionais,
provinciais e locais. Em muitos Estados, inclusive nos do mundo desen-
volvido, há movimentos regionais que estão promovendo uma autono-
mia substancial ou a secessão. Em grau considerável, os governos dos
Estados perderam a capacidade de controlar o fluxo de dinheiro que
entra em seus países e deles sai, e estão tendo dificuldade cada vez maior
para controlar o fluxo de idéias, de tecnologia, de bens e de pessoas. Em
resumo, as fronteiras dos Estados se tomaram cada vez mais permeáveis.
Todos esses desdobramentos levaram muitos a ver o fim progressivo do
Estado sólido, tipo "bola de bilhar'', que supostamente foi a regra desde
o Tratado de Westfália de 164812, e o surgimento de uma ordem
internacional complexa, de múltiplos níveis, que se parece mais com a
da Idade Média.
Á1
participando de conversações sobre o seu próprio programa de
armas nucleares;
• a revelação de que o Departamento de Defesa dos Estados
Unidos estava seguindo uma política de "contenção dupla"
dirigida contra o Irã e o Iraque;
• o anúncio pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos de
uma nova estratégia de se preparar para dois "conflitos regionais
principais'', um contra a Coréia do Norte e o outro contra o Irã
ou o Iraque;
• o apelo do presidente do Irã para que fossem feitas alianças com
a China e a Índia, a fim de que "nós possamos ter a última palavra
em acontecimentos internacionais";
• a nova legislação alemã que reduziu drasticamente a admissão
de refugiados;
• o acordo entre o presidente russo Boris Yeltsin e o presidente
ucraniano Leonid Kravchuk sobre o destino a ser dado à
esquadra do Mar Negro e outras questões;
• o bombardeio de Bagdá pelos Estados Unidos, o apoio virtual-
mente unânime dado pelos governos ocidentais e a condenação
do mesmo por quase todos os governos muçulmanos, como mais
um exemplo de "dois pesos e duas medidas" do Ocidente;
• a qualificação do Sudão pelos Estados Unidos como um país
terrorista e o julgamento do xeque Omar Abdel Rahman e seus
seguidores por conspirarem para "empreender uma guerra de
terrorismo urbano contra os Estados Unidos";
• as maiores perspectivas para o futuro ingresso da Polônia,
Hungria, República Checa e Eslováquia na OTAN;
• a eleição parlamentar russa, que demonstrou que a Rússia era,
de fato, um país "dividido'', com o povo e as elites incertas quanto
a se deviam juntar-se ao Ocidente ou desafiá-lo.
As Civilizações na História
e na Atualidade
l
A NATUREZA DAS CIVILIZAÇÕES
História da humanidade ~ a História das civil~zações. É impossível
têm um certo grau de integração. Suas partes são definidas por seu
relacionamento umas com as outras e com o conjunto delas. Se a
civilização se compõe de Estados, esses Estados guardarão mais relação
uns com os outros do que com Estados fora da sua civilização. Eles
podem lutar mais e se engajar com maior freqüência num relacionamen-
to diplomático. Eles terão maior interdependência econômica. Haverá
correntes estéticas e filosóficas profundas.8
À"7
agrupamento cultural de pessoas e o mais amplo nível de identidade
cultural que as pessoas têm aquém daquilo que distingue os seres
humanos das demais espécies. Ela é definida por elementos objetivos
comuns, tais como língua, história, religião, costumes, instituições e pela
auto-identificação subjetiva das pessoas. As pessoas têm níveis de
identidade: um morador de Roma pode se definir em graus variáveis de
intensidade como um romano, um italiano, um católico, um cristão, um
europeu, um ocidental. A civilização à qual ele pertence é o nível mais
amplo de identificação com o qual ele se identifica de forma intensa. As
civilizações são o maior "nós" dentro do qual nos sentimos culturalmente
à vontade, em contraste com todos os outros "eles" por aí afora. As
civilizações podem envolver um grande número de pessoas, tal como a
civilização chinesa, ou um número muito pequeno de pessoas, tal como
os caribenhos anglófonos. Através da História, existiram muitos grupos
pequenos de pessoas que possuíam uma cultura distinta e que careciam
de qualquer identificação cultural mais ampla. Têm-se feito distinções
em termos de tamanho e importância entre civilizações principais e
periféricas (Bagby), ou civilizações principais e paradas no tempo ou
abortivas (Toynbee). Este livro se ocupa das que são geralmente consi-
deradas como as principais civilizações da História humana.
As civilizações não têm fronteiras nitidamente definidas nem come-
ços e fins precisos. Os povos podem redefinir - e de fato o fazem -
suas identidades e, em conseqüência, a composição e as formas das
civilizações mudam com o tempo. As culturas dos povos interagem e se
superpõem. Também varia muito o grau em que as culturas das civiliza-
ções se assemelham ou diferem umas das outras. Não obstante, as
civilizações são entidades que têm um sentido e, conquanto as linhas
entre elas raramente sejam nítidas, elas são reais.
Em quarto lugar, as civilizações são mortais, porém duram muito
tempo. Elas evoluem, se adaptam e são as mais duradouras dentre as
associações humanas, "realidades de uma extrema tangue durée'. Sua
"essência única e particular" é "a sua longa continuidade histórica. A
civilização é, na verdade, a história mais comprida de todas." Os impérios
ascendem e caem, os governos vêm e vão, as civilizações perduram e
"sobrevivem às convulsões políticas, sociais, econômicas, até mesmo
ideológicas" .9 Bozeman conclui que "a história internacional documenta
com acerto a tese de que os sistemas políticos são expedientes transitórios
na superfície da civilização e de que o destino de cada comunidade
unificada lingüística e moralmente depende, em última análise, da
sobrevivência de certas idéias fundamentais de estruturação, em torno
das quais gerações sucessivas se congregaram e que assim simbolizam
a continuidade da sociedade" .10 Praticamente todas as principais civili-
zações do mundo no século XX ou já existem há um milênio ou, como
ocorre na América Latina, são o fruto imediato de uma outra civilização
de longa duração.
Ao mesmo tempo em que as civilizações perduram, elas também
evoluem. Elas são dinâmicas, ascendem e caem, se fundem e se dividem
e, como todo aluno de História sabe, elas também desaparecem e são
enterradas nas areias do tempo. As fases de sua evolução podem ser
especificadas de diversas maneiras. Quigley vê as civilizações passando
por sete estágios: mescla, gestação, expansão, era de conflito, império
universal, decadência e invasão. Melko generaliza um modelo de
mudanças a partir de um sistema feudal cristalizado para um sistema
feudal em transição, para um sistema de Estado cristalizado, para um
sistema de Estado em transição, para um sistema imperial cristalizado.
Toynbee vê uma civilização surgindo como uma resposta a desafios
e passando então por um período de crescimento que envolve um
crescente controle sobre seu ambiente produzido por uma minoria
criativa, seguido por um tempo de dificuldades, a ascensão de um Estado
universal e depois a desintegração. Conquanto existam diferenças signi-
ficativas, todas essas teorias vêem as civilizações evoluindo através de
um tempo de dificuldades ou conflito para um Estado universal e daí
para a decadência e a desintegração. 11
Em quinto lugar, como as civilizações são entidades culturais e não
políticas, elas, como tal, não mantêm a ordem, não estabelecem a justiça,
não arrecadam impostos, não travam guerras, não negociam tratados nem
fazem quaisquer das coisas que fazem os governos. A composição
política das civilizações varia entre elas e, dentro de uma mesma
civilização, varia com o tempo. Uma civilização pode assim conter uma
ou mais unidades políticas. Essas unidades podem ser cidades-Estados,
impérios, federações, confederações, Estados-nações, Estados multina-
cionais, todos eles podendo ter formas várias de governo. À medida que
uma civilização evolui, normalmente ocorrem mudanças na quantidade
e na natureza das unidades políticas que a constituem. Num extremo,
pode haver coincidência entre uma civilização e uma entidade política.
Lucian Pye comentou que a China é "uma civilização que pretende ser
um Estado''. 12 O Japão é uma civilização que é um Estado. Entretanto, a
maioria das civilizações contém mais de um Estado ou outra entidade
política. No mundo moderno, as civilizações ocidental, ortodoxa, latino-
americana, islâmica, hindu e até a chinesa contêm dois ou mais Estados,
embora em várias delas haja um Estado-núcleo ou líder: China, Índia,
Rússia. Historicamente, o Ocidente conteve um número grande de
Estados, mas também um número reduzido de Estados-núcleos (por
exemplo, França, Grã-Bretanha, Alemanha e Estados Unidos) cuja in-
fluência variou com o tempo. Nos seus grandes dias, o Império Otomano
era o Estado-núcleo da civilização islâmica; nos tempos modernos,
porém, não houve um Estado-núcleo islâmico, situação que também
ocorre na América Latina e na África.
Por último, de forma geral os estudiosos estão de acordo quanto à
identificação que fazem das principais civilizações da História e quanto
às que existem no mundo moderno. Entretanto, eles freqüentemente
discordam quanto ao número total de civilizações que existiram na
História. Quigley sustenta 16 nítidos casos históricos e muito provavel-
mente oito adicionais. Toynbee primeiramente colocou a cifra em 21,
depois em 23. Spengler especifica oito culturas principais. McNeill
examina nove civilizações na História toda. Bagby também vê nove
civilizações principais, ou 11, caso o Japão e a Ortodoxia sejam dis-
tinguidas da China e do Ocidente. Braudel identifica nove e Rostovanyi,
sete civilizações principais contemporâneas. 13 Essas diferenças depen-
dem em parte de se grupos culturais como os chineses e os indianos são
considerados como tendo tido uma única civilização ao longo da História
ou duas ou mais civilizações intimamente relacionadas, uma das quais é
fruto da outra. Apesar dessas diferenças, a identidade das civilizações
principais não é contestada. Após examinar trabalhos sobre o assunto,
Melko concluiu que existe uma "concordância razoável" a respeito de
pelo menos 12 civilizações principais, sete das quais não mais existem
(mesopotâmica, egípcia, cretense, clássica, bizantina, mesoamericana e
andina) e cinco ainda existentes (chinesa, japonesa, indiana, islâmica e
ocidental). 14 Para nossos propósitos, no mundo contemporâneo é útil
acrescentar a essas seis civilizações a latino-americana e, possivelmente,
a africana.
Assim, as principais civilizações contemporâneas são as seguintes:
• O uso de "Leste" e "Oeste" para identificar áreas geográficas causa confusão e é etnocêntrico.
"Norte" e "Sul" têm pontos de referência fixos, aceitos universalmente, nos pólos. "Leste" e
"Oeste" não dispõem de tais pontos de referência. A questão é: a leste e a oeste de quê? Tudo
depende de onde se está. Pode-se presumir que, originariamente, "Oeste" e "Leste" se referiam
às partes ocidental e oriental da Eurásia. Entretanto, de um ponto de vista norte-americano,
o Extremo Oriente é, na realidade, o Extremo Ocidente. Durante a maior parte da história
chinesa, o Ocidente significava a Índia, enquanto que, "no Japão, 'o Ocidente' geralmente
significava a China". William E. Naff, "Reflections on the Question of 'East and West' from the
Point of View of Japan" [Reflexões sobre a Questão de 'Leste e Oeste' do Ponto de Vista do
Japão]. Comparative Civilizations Review, 13-14 (Outono de 1985 e Primavera de 1986), 228.
própria. Em outros pontos, o imperialismo e os colonizadores europeus
trouxeram elementos da civilização ocidental. Na África do Sul, coloni-
zadores holandeses, franceses e, depois, ingleses, criaram uma cultura
européia multifragmentada. 18 Mais importante ainda, o imperialismo
europeu levou o Cristianismo para a maior parte do continente ao sul do
Saara. Contudo, pela África afora, as identidades tribais são profundas e
intensas, embora os africanos estejam também desenvolvendo cada vez
mais uma noção de identidade africana, sendo possível que a África
subsaárica se junte numa civilização distinta, sendo possivelmente a
África do Sul seu Estado-núcleo.
A religião é uma característica central definidora das civilizações e,
como disse Christopher Dawson, "as grandes religiões são os alicerces
sobre os quais repousam as civilizações" .19 Das cinco "religiões mundiais"
de Weber, quatro - Cristianismo, Islamismo, Hinduísmo e Confucionis-
mo - estão associadas com civilizações principais. A quinta, o Budismo,
não está. Por quê? Tal como o Islamismo e o Cristianismo, o Budismo
cedo se separou em duas subdivisões principais e, como o Cristianismo,
não sobreviveu na sua terra natal. A partir do século I d.C., o Budismo
maaiano foi exportado para a China e subseqüentemente para a Coréia,
Vietnã e Japão. Nessas sociedades, o Budismo foi adaptado de formas
diversas, assimilado à cultura indígena (na China, por exemplo, ao
Confucionismo e ao Taoísmo) e eliminado. Em conseqüência, embora o
Budismo continue sendo um componente importante de suas culturas,
essas sociedades não constituem parte de uma civilização budista nem
como tal se identificariam. Entretanto, o que pode ser descrito legitima-
mente como uma civilização budista therevada de fato existe em Sri
Lanka, Birmânia, Tailândia, Laos e Cambódia. Além disso, as populações
do Tibete, Mongólia e Butão historicamente se filiaram à variante lamaísta
do Budismo maaiano, e essas sociedades constituem uma segunda área
da civilização budista. De forma geral, porém, a virtual extinção do
Budismo na Índia e sua adaptação e incorporação às culturas existentes
na China e no Japão significam que o Budismo, embora sendo uma
religião importante, não foi a base de uma civilização importante.•20
C:/,
AS RELAÇÕES ENTRE AS CIVILIZAÇÕES
Egi' ""~
1
Cretense (Minoana) Hitita Canaanita
Clássica(Lterr\ ~
\lsl~ica
Hindu Chinesa
/ 1
J Japonesa
Fonte: Carrol! Quigley, The Evolution of Civilizations: An lntroduction to Historica/ Analysis [A Evolução das
Civilizações: Uma Introdução à Análise Histórica] (lndianápolis: Liberty Press, 2ª ed., 1979), p. 83.
C:."7
sobre todas as outras civilizações. O final do século XV testemunhou a
reconquista final da Península Ibérica aos mouros, os primórdios da
penetração portuguesa na Ásia e a penetração espanhola nas Américas.
Durante os 250 anos subseqüentes, todo o Hemisfério Ocidental e
porções significativas da Ásia foram postas sob o governo ou a domina-
ção européia. O fim do século XVIII viu uma retração do controle direto
europeu, quando primeiro os Estados Unidos, logo o Haiti e depois a
maior parte da América Latina se rebelaram contra o domínio europeu e
conseguiram a independência. Contudo, na última parte do século XIX,
um renovado imperialismo ocidental estendeu o domínio ocidental por
quase toda a África, consolidou o controle ocidental no Subcontinente e
em outras partes da Ásia e, no início do século XX, submeteu virtualmente
todo o Oriente Médio, com exceção da Turquia, ao controle ocidental
direto ou indireto. Países europeus ou ex-colônias européias (nas
Américas) controlavam 35 por cento da superfície terrestre do planeta
em 1800, 67 por cento em 1878 e 84 por cento em 1914. Ao se chegar a
1920, a porcentagem era ainda maior, quando o Império Otomano foi
dividido entre a Grã-Bretanha, a França e a Itália. Em 1800, o Império
Britânico consistia de 3,9 milhões de quilômetros quadrados e de 20
milhões de pessoas. Em 1900, o Império Vitoriano, sobre o qual o sol
nunca se punha, abrangia 28,5 milhões de quilômetros quadrados e 390
milhões de pessoas. 27 Durante a expansão européia, as civilizações
andina e mesoamericana foram eliminadas, as civilizações indiana e
islâmica, juntamente com a África, foram subjugadas, e a China foi
invadida e subordinada à influência ocidental. Somente as civilizações
russa, japonesa e etíope, todas três governadas por autoridades imperiais
altamente centralizadas, foram capazes de resistir ao ataque do Ocidente
e manter uma autêntica existência independente. Durante 400 anos, as
relações intercivilizacionais consistiram na subordinação de outras socie-
dades à civilização ocidental.
As causas desse desdobramento único e espetacular abrangeram a
estrutura social e as relações de classes do Ocidente; a ascensão das
cidades e do comércio; a relativa dispersão do poder nas sociedades
ocidentais entre assembléias, monarcas e autoridades seculares e religio-
sas; a nascente noção de consciência nacional entre os povos ocidentais
e o desenvolvimento de burocracias de Estado. Entretanto, a fonte
imediata da expansão ocidental foi tecnológica: a invenção dos meios
de navegação oceânica para atingir povos distantes e o desenvolvimento
da capacidade militar para conquistar esses povos. Como Geoffrey Parker
assinalou, "numa larga medida 'a ascensão do Ocidente' dependeu do
uso da força, do fato de que o equilíbrio militar entre os europeus e seus
adversários no ultramar estava se inclinando de forma constante em favor
dos europeus; (. .. ) a chave para ·o êxito dos ocidentais para criarem,
entre 1500 e 1750, os primeiros impérios verdadeiramente globais
dependeu precisamente daqueles avanços na capacidade de empreender
a guerra que foram denominados 'a revolução militar'". A expansão do
Ocidente também foi facilitada pela superioridade de suas tropas em
organização, disciplina e treinamento e, posteriormente, por armas,
meios de transporte, logística e serviços médicos superiores como
conseqüência de sua liderança na Revolução Industrial.28 O Ocidente
conquistou o mundo não pela superioridade de suas idéias, valores ou
religião (para a qual poucos membros das outras civilizações se conver-
teram), mas sim por sua superioridade em aplicar a violência organizada.
Os ocidentais freqüentemente se esquecem desse fato, mas os não-oci-
dentais nunca.
Ao se chegar a 1910, o mundo era mais integrado política e
economicamente do que em qualquer outro momento da História da
Humanidade. O comércio internacional correspondia a 33 por cento do
produto mundial bruto, mais do que jamais fora ou veio a ser desde
então, não se chegando sequer perto desse nível até as décadas de 70 e
80. Os investimentos internacionais foram, como porcentagem do total
de investimentos, mais elevados do que em qualquer outra época.29
Civilização queria dizer civilização ocidental, e o Ocidente controlava ou
dominava a maior parte do mundo. O Direito Internacional era o Direito
Internacional ocidental, oriundo da tradição de Grotius. O sistema
internacional era o sistema ocidental westfaliano de Estados-nações
soberanos porém "civilizados" e dos territórios coloniais por eles contro-
lados.
O surgimento desse sistema internacional definido pelo Ocidente
foi o segundo desdobramento principal na política mundial nos séculos
a contar de 1500. Além de interagirem numa modalidade de dominação-
subordinação com as sociedades não-ocidentais, as sociedades ocidentais
também interagiam entre si numa base mais eqüitativa. Essas interações
entre entidades políticas dentro de uma única civilização se pareciam
muito com as que ocorreram no seio das civilizações chinesa, indiana e
grega. Elas estavam baseadas numa homogeneidade cultural que envol-
via "idioma, leis, religião, práticas administrativas, agricultura, proprieda-
de da terra, bem como, talvez, relacionamento familiar". Os povos
europeus "partilhavam de uma cultura comum e mantinham amplos
contatos através de uma rede de comércio, um movimento constante de
pessoas e um notável entrelaçamento das famílias dominantes". Eles
também lutavam uns com os outros praticamente de forma incessante.
Entre os Estados europeus, a paz era a exceção, não a regra.3° Embora
durante grande parte desse período o Império Otomano controlasse até
um quarto do que freqüentemente se considerava como sendo a Europa,
ele não era considerado um membro do sistema internacional europeu.
Durante 150 anos, a política intracivilizacional do Ocidente foi
dominada pelo grande cisma religioso e por guerras religiosas e dinás-
ticas. Durante outro século e meio, após o Tratado de Westfália, os
conflitos do mundo ocidental se deram sobretudo entre príncipes -
imperadores, monarcas absolutos e monarcas constitucionais que tenta-
vam expandir suas burocracias, seus exércitos, sua força econômica
mercantilista e, o mais importante, o território sobre o qual reinavam.
Nesse processo criaram os Estados-nações, e a partir da Revolução
Francesa, as principais linhas de conflito passaram a ocorrer entre nações
em vez de entre príncipes. No dizer de R. R. Palmer, em 1793 "as guerras
dos reis tinham terminado e as guerras dos povos tinham começado" _31
Esse padrão do século XIX durou até a I Guerra Mundial.
Em 1917, como resultado da Revolução Russa, o conflito de
Estados-nações foi substituído pelo conflito de ideologias, primeiro entre
o fascismo, o comunismo e a democracia liberal, e depois entre estes
dois últimos. Na Guerra Fria, essas ideologias foram personificadas pelas
duas superpotências, cada uma das quais definia a sua identidade por
sua ideologia e nenhuma das quais era um Estado-nação no sentido
europeu tradicional. A chegada do marxismo ao poder, primeiro na
Rússia e depois na China e no Vietnã, representou uma fase de transição
do sistema internacional europeu para um sistema multicivilizacional
pós-europeu. O marxismo foi um produto da civilização européia, mas
ele nem assentou raízes nem teve êxito nela. Em vez disso, elites
modemizadoras e revolucionárias importaram-no para a Rússia, China e
Vietnã: Lênin, Mao e Ho o adaptaram aos seus propósitos e o utilizaram
para desafiar o poderio ocidental, para mobilizar seus povos e para
afirmar a identidade e a autonomia nacionais de seus países contra o
Ocidente. Contudo, o desmoronamento dessa ideologia na União Sovié-
tica e a sua substanciosa adaptação na China e no Vietnã não significa
necessariamente que essas sociedades irão importar a outra ideologia
ocidental, a da democracia liberal. Os ocidentais que pressupõem que
assim será provavelmente serão surpreendidos pela criatividade, resiliên-
cia e individualismo das culturas não-ocidentais.
61
As grandes ideologias políticas do século XX incluem o liberalismo
o socialismo, o anarquismo, o corporativismo, o marxismo, o comunismo:
a social-democracia, o conservadorismo, o nacionalismo, o fascismo, a
democracia cristã. Todos eles partilham de um ponto comum: são pro-
duto da civilização ocidental. Nenhuma outra civilização gerou uma
ideologia política importante. O Ocidente, contudo, nunca gerou uma re-
ligião importante. As grandes religiões do mundo são todas produto de
civilizações não-ocidentais e, na maioria dos casos, antecedem a civili-
zação ocidental. À medida que o mundo sai da sua fase ocidental as
ideologias que tipificaram a etapa final da civilização ocidental ent;am
em declínio, e seu lugar é tomado por religiões e outras formas de base
cultural de identidade e engajamento. A separação westfaliana da religião
e da política internacional, produto idiossincrático da civilização ociden-
tal, está chegando ao fim, e a religião, como sugere Edward Mortimer,
"tem probabilidade cada vez maior de se imiscuir nos assuntos interna-
cionais". 32 O choque intracivilizacional de idéias políticas gerado pelo
Ocidente está sendo substituído por um choque intracivilizacional de
cultura e religião.
Desse modo, um sistema multipolar ocidental de relações interna-
cionais cedeu lugar a um sistema bipolar semi-ocidental e, depois, a um
sistema multipolar e multicivilizacional. A geografia política mundial
deslocou-se do mundo único de 1920 para os três mundos dos anos 60
e para a meia dúzia de mundos dos anos 90. Concomitantemente os
impérios mundiais ocidentais de 1920 se encolheram para 0 muito ~ais
limitado "Mundo Livre" dos anos 60 (que abrangia muitos Estados
não-ocidentais que se opunham ao comunismo) e depois para 0 ainda
mais restrito "Ocidente" dos anos 90. Esse deslocamento refletiu-se
semanticamente, entre 1988 e 1993, no declínio do uso do termo
ideológico "Mundo Livre" e no aumento do uso do termo civilizacional
"o Ocidente" (ver Quadro 2.1). Ele também é visível no aumento das
referências ao Islã como um fenômeno político-cultural, à "China Maior"
à Rússia e seu "exterior próximo" e à União Européia, todos termos co~
um conteúdo civilizacional. As relações intercivilizacionais nessa terceira
fase são muito mais freqüentes e intensas do que na primeira fase e muito
mais equivalentes e recíprocas do que na segunda fase. Além disso ao
~o~trário do que houve durante a Guerra Fria, não há uma disse~são
urnca que predomine, e existem múltiplas dissensões entre o Ocidente
e outras civilizações, bem como entre muitas das civilizações não-oci-
dentais.
62
QUADRO 2.1
Uso DOS TERMOS "MUNDO LIVRE" E "O OCIDENTE"
Número de referências % de alteração nas
1988 1993 referências
63
ções há muito tempo reconheceram esse truísmo. Em 1918, Spengler
condenou a visão míope da História que prevalecia no Ocidente, com
sua cômoda divisão em fases antiga, medieval e moderna, que só eram
relevantes para o Ocidente. É necessário, disse ele, substituir esse
"enfoque ptolemaico da História" por um enfoque copérnico e substituir 1
"a ficção vazia de uma história linear pelo enredo espetacular de uma
quantidade de culturas poderosas".34 Algumas décadas depois, Toynbee
criticou o "provincianismo e a impertinência" do Ocidente, manifestados
nas "ilusões egocêntricas" de que o mundo girava ao seu redor, de que
havia um "Oriente estagnado" e de que "o progresso" era inevitável. Tal'
.'
'Í
64
CAPÍTULO 3
• Hayward Alker assinalou com exatidão que, no meu artigo na Foreign A.ffairs, foi "descartada
em termos de definição" a idéia de uma civilização mundial, ao se definir civilização como
"o mais elevado agrupamento cultural de pessoas e o mais amplo nível de identidade cultural
que as pessoas têm aquém daquilo que distingue os seres humanos das outras espécies". Isso
é, claro está, o modo pelo qual o tem10 tem sido usado pela maioria dos estudiosos das
civilizações. Neste capítulo, entretanto, eu flexiono essa definição para pemlitir a possibilidade
de povos que se identificam, através da História, com uma cultura global distinta, que substitui
ou suplanta as civilizações no sentido ocidental, islâmico ou sínico.
66
da civilização ocidental e por alguns povos de outras civilizações. Isso
poderia ser chamado de a Cultura de Davos. Todos os anos, cerca de mil
homens de negócios, banqueiros, funcionários de governos, intelectuais
e jornalistas, de dezenas de países, se encontram no Foro Econômico
Mundial em Davas, na Suíça. Quase todas essas pessoas têm diplomas
universitários em ciências exatas, em ciências sociais, em administração
ou em ciências jurídicas, trabalham com palavras e/ou números, são
razoavelmente fluentes em inglês, são empregadas por governos, empre-
sas e instituições acadêmicas com extenso envolvimento internacional e
viajam com freqüência para fora de seus próprios países. De forma geral,
partilham de crenças no individualismo, na economia de mercado e na
democracia política, que também são comuns entre os povos da civilização
ocidental. As pessoas de Davos controlam virtualmente todas as instituições
internacionais, muitos dos governos do mundo e o grosso da capacidade
econômica e militar do mundo. A Cultura de Davos tem, portanto, uma
tremenda importância. Entretanto, em escala mundial, quantas pessoas
partilham dessa cultura? Fora do Ocidente, provavelmente ela é comparti-
lhada por menos de 50 milhões de pessoas, ou seja, um por cento da
população mundial e, talvez, por não mais de um décimo de um por
cento da população mundial. Ela está longe de ser uma cultura universal,
e os líderes que partilham da Cultura de Davos não têm, necessariamente,
um controle firme do poder em suas próprias sociedades. Como aponta
Hedley Buli, "essa cultura intelectual comum existe somente no nível da
elite: suas raízes são, em muitas sociedades, superficiais(. .. ) [e] é duvidoso
se, mesmo no nível diplomático, ela abarca o que era chamado de uma
cultura moral comum ou de um conjunto de valores comuns, diferente
de uma cultura intelectual comum" .4
Em quarto lugar, propõe-se a noção de que a disseminação dos
padrões de consumo e da cultura popular ocidentais pelo mundo afora
está criando uma civilização universal. Essa argumentação não é nem
profunda nem relevante. Através da História, modas culturais foram
transmitidas de uma civilização a outra. As inovações de uma civilização
são regularmente adotadas por outras civilizações. Trata-se, porém, ou
de técnicas que carecem de quaisquer conseqüências culturais importan-
tes ou de modas que vêm e vão sem alterar a cultura subjacente da
civilização recipiente. Essas importações "pegam" na civilização recipien-
te, quer porque são exóticas quer porque lhes são impostas. Em séculos
anteriores, o mundo ocidental foi periodicamente varrido por entusias-
mos por diversos itens da cultura chinesa ou hindu. No século XIX, as
importações culturais do Ocidente tornaram-se populares na China e na
índia porque pareciam refletir o poderio ocidental. A argumentação feita
agora de que a disseminação da cultura pop e dos bens de consumo ao
redor do mundo representa o triunfo da civilização ocidental trivializa a
cultura ocidental. A essência da civilização ocidental é a Magna Carta e
não 0 Magno Mac. O fato de que não-ocidentais possam abocanhar este
último não tem quaisquer implicações de que possam aceitar a primeira.
Isso tampouco tem implicações nas suas atitudes em relação ao
Ocidente. Em algum ponto do Oriente Médio, uma meia dúzia de rapazes
bem poderia estar vestindo calças jeans, bebendo Coca-Cola, escutando
rap e, entre suas reverências na direção de Meca, estar montando uma
bomba para explodir um avião comercial norte-americano. Durante os
anos 70 e 80, os norte-americanos consumiram milhões de carros,
aparelhos de 1V, máquinas fotográficas e aparelhos eletrônicos japoneses
sem ficarem "japanizados"; na verdade, nesse período se tornaram
consideravelmente mais antagônicos em relação ao Japão. Somente a
arrogância ingênua pode levar os ocidentais a pressupor que os não-oci-
dentais ficaram "ocidentalizados" por adquirirem artigos ocidentais. Na
realidade, o que é que se diz ao mundo sobre o Ocidente quando os
ocidentais estabelecem uma identidade entre a sua civilização e as
bebidas gasosas, as calças desbotadas e as comidas gordurosas?
Uma versão ligeiramente mais sofisticada da argumentação da
cultura popular universal se concentra não nos bens de consumo em
geral, mas na mídia, em Hollywood mais do que na Coca-Cola. O controle
norte-americano em escala mundial das indústrias de cinema, televisão
e vídeo excede até seu predomínio na indústria aeronáutica. Oitenta e
oito dos 100 filmes mais vistos em todo o mundo em 1993 eram
norte-americanos, e duas organizações norte-americanas e duas euro-
péias dominam a coleta e a disseminação de notícias em bases globais.5
Esta situação reflete dois fenômenos. O primeiro é a universalidade do
interesse humano por amor, sexo, violência, mistério, heroísmo e riqueza,
e a capacidade das companhias motivadas pelo lucro, basicamente
norte-americanas, de explorar esses interesses em proveito próprio.
Entretanto, há pouca ou nenhuma prova que apóie a pressuposição de
que o surgimento das comunicações abrangentes em escala global está
produzindo uma convergência significativa de atitudes e crenças. Como
disse Michael Vlahos, "o entretenimento não equivale à conversão
cultural". O segundo é que as pessoas interpretam as comunicações em
termos de seus próprios valores e perspectivas preexistentes. Kishore
Mahbubani observou que "as mesmas imagens visuais transmitidas
simultaneamente às salas de estar pelo mundo afora desencadeiam
percepções opostas. As salas de estar ocidentais aplaudem quando
mísseis cruzeiro atingem Bagdá. A maioria dos que vivem fora dessas
salas vêem que o Ocidente aplicará castigo rápido a iraquianos e somalis
não-brancos, porém não a sérvios brancos, um sinal perigoso por
qualquer critério". 6
As comunicações globais são uma das mais importantes manifes-
tações contemporâneas do poderio ocidental. Contudo, essa hegemonia
ocidental estimula políticos populistas em sociedades não-ocidentais a
condenar o imperialismo cultural ocidental e a convocar seus públicos a
preservarem a sobrevivência e integridade de suas culturas autóctones.
Desse modo, o grau em que as comunicações globais são dominadas
pelo Ocidente é uma das principais fontes de ressentimento e hostilidade
dos povos não-ocidentais contra o Ocidente. Além disso, no início da
década de 90, a modernização e o desenvolvimento econômico das
sociedades não-ocidentais estavam levando ao surgimento de indústrias
de mídia locais e regionais que se dirigiam aos gostos diferentes dessas
sociedades.7 Em 1994, por exemplo, a CNN International estimava que
tinha uma audiência de 55 milhões de espectadores em potencial, ou
seja, cerca de um por cento da população mundial (notavelmente
equivalente em número e indubitavelmente idêntico, em larga escala, às
pessoas da Cultura de Davos), e seu presidente predizia que suas
transmissões em inglês poderiam eventualmente atrair de dois a quatro
por cento do mercado. Em conseqüência, iriam surgir redes regionais
(isto é, civilizacionais) transmitindo em espanhol, japonês, árabe, francês
(para a África Ocidental) e outros idiomas. Três estudiosos concluíram
que "a Sala de Notícias Global ainda se defronta com uma Torre de
Babel". 8 Ronald Dore desenvolve uma argumentação impressionante
para apontar o surgimento de uma cultura intelectual mundial entre
diplomatas e funcionários públicos. Mesmo ele, entretanto, chega a uma
conclusão profundamente condicionada a respeito do impacto das
comunicações intensificadas: "tudo o mais sendo igual [grifo dele], uma
densidade crescente de comunicações deveria assegurar uma base
crescente de sentimento de camaradagem entre as nações ou, pelo
menos, entre as classes médias, ou ainda, na pior das hipóteses, entre os
diplomatas do mundo", porém, acrescenta ele, "algumas das coisas que
podem não ser iguais podem de fato ser muito importantes".9
Idioma. Os elementos centrais de qualquer cultura ou civilização
são o idioma e a religião. Se uma civilização universal está emergindo,
deveria haver tendências em direção ao surgimento de um idioma
universal e de uma religião universal. Essa alegação é freqüentemente
feita com relação ao idioma. Como colocou o editor do Wall Street
journal, "o idioma do mundo é o inglês" .10 Isso pode significar duas
coisas, das quais só uma daria apoio à tese de uma civilização universal.
Poderia significar que uma proporção crescente da população mundial
fala inglês. Não há prova alguma que endosse esta proposição e as
indicações mais confiáveis que de fato existem, que reconhecidamente
não podem ser muito precisas, mostram exatamente o contrário. Os
dados disponíveis cobrindo mais de três décadas 0958-1992) sugerem
que o padrão geral de utilização de idiomas no mundo não mudou
drasticamente, que ocorreram diminuições significativas na proporção de
pessoas que falam inglês, francês, alemão, russo e japonês, que uma
diminuição menor ocorreu na proporção dos que falam mandarim, e que
houve aumentos na proporção de pessoas que falam hindi, malaio-in-
donésio, árabe, bengalês, espanhol, português e outros idiomas. Os
anglófonos do mundo caíram de 9,8 por cento do total de pessoas que,
em 1958, falavam idiomas que eram falados por pelo menos um milhão
de pessoas, para 7,6 por cento em 1992 (ver Quadro 3.1). A proporção
da população mundial que fala os cinco idiomas principais (inglês,
francês, alemão, português, espanhol) declinou de 24,1 por cento em
1958 para 20,8 por cento em 1992. Em 1992, o número de pessoas que
falavam mandarim, 15,2 por cento da população mundial, era aproxima-
damente o dobro das que falavam inglês, e mais 3,6 por cento falavam
outras versões de chinês (ver Quadro 3.2).
Em certo sentido, um idioma que é estranho a 92 por cento das
pessoas do mundo não pode ser o idioma mundial. Entretanto, num outro
sentido, ele poderá ser descrito assim se for o idioma empregado por
pessoas de grupos lingüísticos e culturas diferentes para se comunicarem
entre si, se for a língua franca do mundo ou, em termos lingüísticos, a
Língua de Comunicação Mais Ampla (LCMA) principal do mundo.11 As
pessoas que precisam se comunicar umas com as outras têm que
encontrar o meio de fazê-lo. Em certo nível, elas podem confiar em
profissionais especialmente treinados, que se tornaram fluentes em dois
ou mais idiomas a fim de servir como intérpretes e tradutores. Isso,
porém, é incômodo, toma tempo e custa caro. Por isso, através da
História, emergiu sempre uma língua franca: o latim nos mundos clássico
QUADRO 3.1
PESSOAS QUE FALAM OS IDIOMAS PRINCIPAIS
(Porcentagens da População Mundial*)
Fonte: Porcentagens calculadas a partir de dados compilados pelo professor Sidney S. Culbert, Departamento
de Psicologia, Universidade de Washington, Seattle, sobre o número de pessoas que falam idiomas falados por
um milhão ou mais de pessoas e constantes anualmente do World Almanac and Book of Facts [Almanaque e
Livro de Fatos do Mundo]. Suas estimativas incluem tanto os que falam o "idioma matemo" como os que falam
o "idioma não-matemo" e foram derivadas de recenseamentos nacionais, levantamentos por amostragem de
população, levantamentos de transmissões de rádio e de televisão, dados sobre crescimento populacional,
estudos secundários e outras fontes.
QUADRO 3.2
PESSOAS QUE FALAM OS PRINCIPAIS IDIOMAS CHINESES E OCIDENTAIS
Idioma 1958 1992
Número de Porcentagem da Número de Porcentagem da
Pessoas Pop. Mundial Pessoas Pop. Mundial
(em milhões) (em milhões)
Mandarim 444 15,6 907 15,2
Cantonês 43 1,5 65 1, 1
Wu 39 1,4 64 1, 1
Min 36 1,3 50 0,8
Hakka 19 0,7 33 0,6
Idiomas chineses 581 20,5 1.119 18,8
Inglês 278 9,8 456 7,6
Espanhol 142 5,0 362 6,1
Português 74 2,6 177 3,0
Alemão 120 4,2 119 2,0
Francês 70 2,5 123 2,1
Idiomas ocidentais 684 24,1 1.237 20,8
Total mundial 2.845 44,5 5.979 39,4
Fonte: Porcentagens calculadas a partir de dados sobre idiomas compilados pelo professor Sidney S. Culbert,
Departamento de Psicologia, Universidade de Washington, Seattle, e constantes anualmente do World Almanac
and Book of Facts [Almanaque e Livro de Fatos do Mundo] dos anos de 1959 e 1993.
.,,
e medieval; o francês, durante séculos, no Ocidente; o suaíle em muitas
partes da África e o inglês em grande parte do mundo na segunda metade
do século XX. Os diplomatas, os homens de negócios, os cientistas, os
turistas e os serviços que os atendem, os pilotos comerciais e os
controladores de tráfego aéreo precisam de algum meio de comunicações
eficientes entre si e atualmente usam sobretudo o inglês.
Nesse sentido, o inglês é o meio mundial de comunicação intercul-
tural, do mesmo modo que o calendário cristão· é o meio mundial
de acompanhar o tempo, os algarismos arábicos são o meio mundial de
J
contar e o sistema métrico é, para a maior parte, o meio mundial de medir.
Entretanto, o uso do inglês dessa maneira é a comunicação intercultural
e pressupõe a existência de culturas separadas. Uma língua franca é um
modo de lidar com as diferenças lingüísticas e culturais, não um modo
de eliminá-las. É uma ferramenta para comunicações, não uma fonte de
identidade e comunidade. Só porque um banqueiro japonês e um homem
de negócios indonésio falam um com o outro em inglês não quer dizer
que qualquer dos dois esteja inglesado ou ocidentalizado. O mesmo pode
ser dito de suíços que falam alemão e francês e que têm tanta proba-
bilidade de se comunicar entre si em inglês como em qualquer dos seus
idiomas nacionais. Analogamente, a manutenção do inglês como um
idioma nacional suplementar da Índia, apesar dos planos em contrário
de Nehru, demonstra o forte desejo dos povos da Índia que não falam
hindi de preservar seus próprios idiomas e culturas nacionais, e a
necessidade de a Índia continuar sendo uma sociedade multilíngüe.
Como observou o destacado filólogo Joshua Fishman, um idioma
tem maior probabilidade de ser aceito como língua franca ou LCMA se
não for identificado com nenhum grupo étnico, religião ou ideologia em
particular. No passado, o inglês padecia de muitas dessas identificações.
Mais recentemente, o inglês foi "desetnicizado" (ou ficou minimamente
"etnicizado"), como ocorreu no passado histórico com o acadiano, o
aramaico, o grego e o latim. "Faz parte da relativa sorte que tem o inglês
como uma segunda língua que suas fontes originais britânica ou norte-
americana, durante mais ou menos o último quartel de século, não tenham
sido consideradas de forma ampla ou profunda num contexto étnico ou
ideológico." 12 Assim sendo, o uso do inglês para a comunicação inter-
cultural ajuda a manter - e, na verdade, reforça - as distintas identida-
des culturais dos povos. Precisamente porque as pessoas querem preser-
var sua própria identidade cultural, elas utilizam o inglês para se
comunicar com povos de outras culturas.
,...,
Além disso, as pessoas que falam inglês pelo mundo afora estão
cada vez mais falando diferentes "ingleses". O inglês fica indigenizado e
assume colorações locais que o distinguem do inglês britânico ou
norte-americano e que, em casos extremos, tornam esses "ingleses" quase
ininteligíveis entre si, como também ocorre com variantes do chinês. O
inglês pidgin nigeriano, o inglês indiano e outras formas de inglês estão
sendo incorporados em suas respectivas culturas anfitriãs, e é de se
J presumir que continuarão a se diferenciar de modo a se tornarem idiomas
aparentados mas distintos, do mesmo modo que as línguas latinas
evoluíram a partir do latim. Contudo, ao contrário do italiano, do francês
e do espanhol, esses idiomas derivados do inglês serão falados apenas
por uma pequena porção das pessoas de uma sociedade ou serão usados
precipuamente para a comunicação entre grupos lingüísticos especiais.
Todos esses processos podem ser vistos em funcionamento na
Índia. Por exemplo, consta que, em 1983, havia 18 milhões de pessoas
que falavam inglês numa população de 733 milhões e, em 1991, havia
20 milhões numa população de 867 milhões. Por conseguinte, a propor-
ção de pessoas que falam inglês no total da população indiana se manteve
relativamente estável em cerca de dois a quatro por cento. 13 Afora uma
elite relativamente reduzida, o inglês não serve sequer como língua
franca. Dois professores de inglês na Universidade de Nova Delhi alegam
que "a realidade prática é que, quando se viaja de Caxemira até a ponta
meridional do país, em Kanyakumari, o elo de comunicação se mantém
melhor através de uma forma de hindi do que através do inglês". Além
disso, o inglês indiano está assumindo muitas características diferentes
próprias: está sendo indianizado, ou melhor, está ficando localizado à
medida que se desenvolvem diferenças entre as diversas pessoas que
falam inglês e que têm idiomas locais diferentes. 14 O inglês está sendo
absorvido na cultura indiana do mesmo modo como o foram anterior-
mente o sânscrito e o persa.
Através da História, a distribuição dos idiomas pelo mundo refletiu
a distribuição do poder no mundo. Os idiomas mais falados - inglês,
mandarim, espanhol, francês, árabe, russo - são ou foram os idiomas
de Estados imperiais, que promoveram ativamente o uso de seus idiomas
por outros povos. Mudanças na distribuição do poder produziram
mudanças no uso de idiomas. "Dois séculos de poder britânico e
norte-americano em termos coloniais, comerciais, industriais, científicos
e financeiros deixaram um legado substancioso no ensino superior, na
administração pública, no comércio internacional e na tecnologia" pelo
mundo afora. 15 A Grã-Bretanha e a França insistiam no uso de seus
idiomas nas suas colônias. Entretanto, após a independência, a maioria
das ex-colônias tentou, com graus diferentes de empenho e de êxito,
substituir o idioma imperial por idiomas autóctones. Durante o apogeu
da União Soviética, o russo era a língua franca de Praga a Hanói. O
declínio do poder russo foi acompanhado por um declínio paralelo no
uso do russo como segunda língua. Como acontece com outras formas
de cultura, o poder maior gera tanto uma maior afirmação lingüística por
parte dos que têm o idioma como língua materna, como mais incentivos
para aprender esse idioma por parte de outros. Nos dias inebriantes logo
após a queda do Muro de Berlim e quando parecia que uma Alemanha
l
unida era o novo gigante, registrou-se uma tendência perceptível para
que alemães que eram fluentes em inglês falassem em alemão em
reuniões internacionais. O poder econômico japonês estimulou o apren-
dizado do japonês por não-japoneses, e o desenvolvimento econômico
da China está produzindo um surto semelhante em relação ao chinês.
Este idioma está rapidamente superando o inglês como a língua predo-
minante em Hong Kong 16 e, dado o papel dos chineses de ultramar no
Sudeste Asiático, o chinês tomou-se o idioma no qual é conduzida grande
parte dos negócios internacionais nessa área. À medida que vai gradual-
mente declinando o poder do Ocidente em relação ao de outras
civilizações, o uso do inglês e de outros idiomas ocidentais em outras
sociedades e para a comunicação entre sociedades também irá se
1
erodindo lentamente. Se, em algum ponto do futuro distante, a China
substituir o Ocidente como a civilização predominante no mundo, o
inglês cederá lugar ao mandarim como língua franca mundial.
À medida que as antigas colônias se moviam no rumo da indepen-
dência e se tornavam independentes, a promoção ou o uso dos idiomas
nativos e a supressão dos idiomas imperiais eram uma forma pela qual
as elites nacionalistas se distinguiam dos colonizadores ocidentais e
definiam sua própria identidade. Entretanto, após a independência, as
elites dessas sociedades precisavam se distinguir das pessoas comuns das
mesmas sociedades. Isso era conseguido pela fluência em inglês, francês
ou outro idioma ocidental. Em conseqüência, as elites das sociedades
não-ocidentais freqüentemente têm maior capacidade para se comunica-
rem com os ocidentais e entre si do que com as pessoas de suas próprias
sociedades (numa situação semelhante à que se deu no Ocidente nos
séculos XVII e XVIII, quando os aristocratas de diferentes países podiam
se comunicar facilmente entre si em francês, mas não conseguiam falar
74
0 vernáculo de seus próprios países). Duas tendências opostas parecem
estar em andamento nas sociedades não-ocidentais. Por um lado, o inglês
está sendo cada vez mais utilizado no nível universitário para habilitar
os diplomados a atuarem de modo eficiente na competição global por
capitais e fregueses. Por outro lado, as pressões sociais e políticas levam
cada vez mais ao uso mais generalizado dos idiomas autóctones, com o
árabe substituindo o francês no norte da África, o urdu substituindo o
inglês como o idioma do governo e do ensino no Paquistão, e a mídia
no idioma nativo substituindo a mídia em inglês na Índia. Esse desdo-
bramento foi previsto pela Comissão de Educação indiana em 1948,
quando ela sustentou que "o uso do inglês (. .. ) divide o povo em duas
QUADRO 3.3
PROPORÇÃO DA POPULAÇÃO MUNDIAL QUE SEGUE AS PRINCIPAIS TRADIÇÕES RELIGIOSAS
(em porcentagens)
Religião 1900 1970 1980 1985(est.) 2000(est.)
Cristã ocidental 26,9 30,6 30,0 29,7 29,9
Cristã ortodoxa 7,5 3,1 2,8 2,7 2,4
Muçulmana 12,4 15,3 16,5 17,1 19,2
Sem religião 0,2 15,0 16,4 16,9 17,1
Hindu 12,5 12,8 13,3 13,5 13,7
Budista 7,8 6,4 6,3 6,2 5,7
Chinesa popular 23,5 5,9 4,5 3,9 2,5
Tribal 6,6 2,4 2,1 1,9 1,6
Ateus 0,0 4,6 4,5 4,4 4,2
Fonte: World Christian Encyclopedia: A comparative study of churches and religions in the modem world /A.D.
1900-2000 [Enciclopédia Cristã Mundial: um estudo comparativo de igrejas e religiões no mundo moderno/
1900-2000 d.C.], organizado por David B. Barrei (Oxford: Oxford University Press, 1982).
76
que, e m 1980 , 0 ressurgimento religioso estava apenas dcomeçando
- a
tomar ,impe to. No entanto , esse aumento de 20,7 por cento e nao-crentes
, companhado de perto por um decréscimo de 19 por cento daqueles
~l:ssificados como seguidores de "religiões populares chinesas", de 23,5
por cento em 1900 para 4,5 por cento em 1980. Esse aumento e esse
decréscimo, praticamente iguais, sugerem que, com o advento do
comunismo, 0 grosso da população da China foi simplesmente reclas-
"f" cado de seguidores de religiões populares para não-crentes.
Sl 1 d" l
Os dados mostram aumentos nas proporções da população mun ta
d os q u e seguem as duas maiores religiões proselitistas, o Islamismo
d e .o
Cristianismo, durante 80 anos. Estimava-se que os cristãos oci enta1s
eram 26,9 por cento da população mundial em 1900 e 30 por cento em
1980. Os muçulmanos aumentaram de forma mais notável, de 12,4 por
cento em 1900 para 16,5 por cento - ou, segundo outras estimativas, 18
por cento_ em 1980. Durante as últimas décadas d~ _séc~lo XX,_ tanto
0 Islã como 0 Cristianismo expandiram de modo sigmf1cattvo o numero
de fiéis na África, e na Coréia do Sul ocorreu um grande deslocamento
na direção do Cristianismo. Nas sociedades que se estão modernizando
rapidamente, nas quais a religião tradicional não foi capa_z de ~e a~aptar
às exigências da modernização, há um potencial para a dissemm~çao do
Cristianismo ocidental e do Islã. Nessas sociedades, os protagonistas da
cultura ocidental mais bem-sucedidos não são os economistas neoclás-
sicos, nem os pregadores democratas, nem os dirigentes de empresas
multinacionais. São, e muito provavelmente continuarão sendo, os
missionários cristãos. Nem Adam Smith nem Thomas Jefferson satisfarão
as necessidades psicológicas, emocionais, morais e sociais dos migrantes
urbanos e da primeira geração de formados do 2º Grau. É possível que
Jesus Cristo tampouco as satisfaça, mas Ele tenderá a ter maiores
possibilidades.
A longo prazo, entretanto, Maomé sai ganhando. O Cristianismo se
difunde precipuamente pela conversão, o Islamismo pela conversão e
pela reprodução. A porcentagem de cristãos no mundo chegou. ~o seu
auge - em torno de 30 por cento - na década de 80, se estabilizou e
agora está declinando, devendo provavelmente se aproximar de ~~s ~5
por cento da população mundial ao se chegar a 2025." Em conseque,ncia
de suas elevadíssimas taxas de crescimento populacional (ver Capitulo
9), a proporção de muçulmanos no mundo continuará a aumentar ~e
forma notável, devendo totalizar 20 por cento da população mundial
perto da virada do século, ultrapassando o número de cristãos alguns
77
anos depois e provavelmente respondendo por cerca de 30 por cento da
população mundial por volta de 2025.19
7R
situam fora do mundo que é percebido em termos de ideologias
seculares. No mundo moderno, a religião é uma força central, talvez a
força central, que motiva e mobiliza as pessoas. É pura arrogância pensar
que, porque 0 comunismo soviético desmoronou, o Ocidente. ga~hou o
mundo para sempre e que os muçulmanos, os chi~eses, os md1a~o~ e
outros vão se precipitar para abraçar o liberalismo ocidental como a umca
alternativa. A divisão da Humanidade em termos de Guerra Fria acabou.
As divisões mais fundamentais da Humanidade em termos de etnias,
religiões e civilizações permanecem e geram novos conflitos.
Em segundo lugar, existe a pressuposição de que uma maior
interação entre os povos - de forma geral, o comércio exterior, os
investimentos, 0 turismo, a mídia, as comunicações eletrônicas - está
gerando uma cultura mundial comum. Os avanços na tecnologia de
transportes e comunicações de fato tornaram mais fácil e mais barato
movimentar dinheiro, bens, pessoas, conhecimento, idéias e imagens ao
redor do mundo. Não há dúvida alguma quanto ao aumento do tráfego
internacional desses itens. Entretanto, existem muitas dúvidas quanto ao
impacto desse tráfego mais intenso. O comércio exterior aumenta ou
diminui a probabilidade de conflito? A pressuposição de que ele reduz
a probabilidade de guerra, no mínimo, ainda não está provada, e existem
muitos indícios no sentido contrário. O comércio internacional se expan-
diu de forma significativa nos anos 60 e 70 e, ao se chegar a 1980,
representava 15 por cento do produto bruto internacional. Na década
seguinte, a Guerra Fria acabou. Em 1913, porém, o comércio internacional
representava 33 por cento do produto bruto internacional, e, nos anos
imediatamente posteriores, as nações cometeram carnificinas umas con-
tra as outras, atingindo cifras sem precedentes. 21 Se o comércio interna-
cional nesse nível de intensidade não pode impedir a guerra, então
quando poderá? As provas simplesmente não confirmam a pressuposição
liberal, internacionalista, de que o comércio promove a paz. Análises
realizadas nos anos 90 ainda aumentam as dúvidas quanto a essa
pressuposição. Um estudo concluiu que "o aumento dos níveis de
comércio exterior pode constituir uma força altamente divisionista C. .. )
para a política internacional" e que "o aumento do comércio no sistema
internacional tem, por si só, pouca probabilidade de aliviar as tensões
22
internacionais ou promover maior estabilidade internacional". Um
outro estudo sustenta que níveis elevados de interdependência econô-
mica "tanto podem induzir à paz como podem induzir à guerra, depen-
dendo das expectativas do comércio futuro". A interdependência econô-
70
mica só propicia a paz "quando os Estados esperam que os altos níveis
de comércio exterior sejam mantidos no futuro previsível". Se os Estados
não esperam que elevados níveis de interdependência sejam mantidos,
é provável que se termine numa guerra. 23
O fato de que o comércio exterior e as comunicações não foram
capazes de produzir a paz ou um sentimento comum está acorde com
as constatações a que chegaram as ciências sociais. Na psicologia social,
a teoria da diferenciação sustenta que as pessoas se definem por aquilo
que as torna diferentes das demais num contexto em especial: "Uma
pessoa tem uma percepção de si mesma em termos das características
que a distinguem de outros seres humanos, principalmente dos demais
no círculo social habitual dessa pessoa(. .. ) uma psicóloga, na companhia
de uma dezena de mulheres que trabalham em outros ramos de atividade,
pensará em si mesma como uma psicóloga; se estiver junto com uma
dezena de psicólogos (todos do sexo masculino), ela pensará em si como
uma mulher". 24 As pessoas definem sua identidade pelo que não são. À
medida que uma maior intensificação das comunicações, do comércio
exterior e das viagens internacionais multiplicam as interações entre as
civilizações, as pessoas atribuem uma importância cada vez maior à sua
identidade civilizacional. Dois europeus - um alemão e um francês - ,
interagindo um com o outro, identificarão um ao outro como alemão e
francês. Dois europeus - um alemão e um francês - , interagindo com
dois árabes - um saudita e um egípcio - , se definirão como europeus
e árabes. A emigração de pessoas do Norte da África para a França gera
hostilidade dos franceses e, ao mesmo tempo, uma maior receptividade
à imigração de europeus poloneses católicos. Os norte-americanos
reagem de forma muito mais negativa aos investimentos japoneses do
que aos investimentos maiores do Canadá e de países europeus. Analo-
gamente, como ressaltou Donald Horowitz, "um Ibo pode ser (. .. ) um
Ibo Owerri ou um Ibo Onitsha no que era a região oriental da Nigéria.
Em Lagos, ele é simplesmente um Ibo. Em Londres, ele é um nigeriano.
Em Nova York, ele é um africano". 25 Na sociologia, a teoria da globali-
zação chega a uma conclusão semelhante: "num mundo crescentemente
globalizado - caracterizado por graus historicamente excepcionais de
interdependência civilizacional, societária e de outras modalidades, e de
uma ampla percepção delas-, há uma exacerbação da autoconsciência
civilizacional, societária e étnica". O renascimento religioso em escala
mundial, "a volta ao que é sagrado", é uma resposta à percepção popular
do mundo como "um único lugar".26
Rfl
0 OCIDENTE E A MODERNIZAÇÃO
O terceiro e mais generalizado argumento em apoio da tese do surgi-
mento de uma civilização universal a vê como resultante dos amplos
processos de modernização que estão se desenvolvendo desde o século
XVIII. A modernização envolve industrialização, urbanização, níveis
crescentes de alfabetização, educação, riqueza e mobilidade social e
estruturas ocupacionais mais complexas e diversificadas. A modernização
é um produto da tremenda expansão do conhecimento científico e de
engenharia que começou no século XVIII e que habilitou os seres
humanos a controlar e moldar seu meio ambiente de modos inteiramente
sem precedentes. A modernização é um processo revolucionário somente
comparável à mudança das sociedades primitivas para as civilizadas, ou
seja, o surgimento da civilização (no singular), que começou nos vales
do Tigre e do Eufrates, do Nilo e do Indus por volta de 5000 a.c. 27 As
atitudes, os valores, o conhecimento e a cultura das pessoas numa
sociedade moderna diferem enormemente dos de uma sociedade tradi-
cional. Na condição de primeira civilização a se modernizar, o Ocidente
lidera a aquisição da cultura da modernidade. À medida que outras
sociedades adquirirem padrões semelhantes de educação, trabalho,
riqueza e estrutura de classes, prossegue a argumentação, essa moderna
cultura ocidental se transformará na cultura universal do mundo.
É indiscutível que existem diferenças significativas entre as culturas
modernas e tradicionais. Isso, entretanto, não quer necessariamente dizer
que as sociedades com culturas modernas se parecem mais umas com
as outras do que com as sociedades tradicionais. Obviamente, um mundo
em que algumas sociedades sejam altamente modernas e outras ainda
sejam tradicionais será um mundo menos homogêneo do que um mundo
no qual todas as sociedades se encontrem em níveis de modernidade
comparativamente altos. Porém, o que dizer de um mundo no qual todas
as sociedades fossem tradicionais? Esse mundo existiu há algumas
centenas de anos. Seria ele algo menos homogêneo do que poderá ser
um futuro mundo de modernidade universal? Possivelmente não. Braudel
sustenta que "a China da dinastia Ming (. .. ) certamente estava mais perto
da França dos reis Valais do que a China de Mao Tsé-tung está da França
da Quinta República".28
No entanto, as sociedades modernas poderiam se parecer umas com
as outras mais do que as sociedades tradicionais, por duas razões. A
primeira é que uma maior interação entre sociedades modernas pode
não gerar uma cultura comum, porém ela de fato facilita a transferência
de técnicas, invenções e práticas de uma sociedade para outra com uma
velocidade e num grau impossíveis num mundo tradicional. A segunda
é que a sociedade tradicional estava baseada na agricultura, enquanto
que a sociedade moderna está baseada na indústria, a qual pode evoluir
de manufaturas para a indústria pesada clássica e, depois, para a indústria
baseada no conhecimento. Os padrões da agricultura e a estrutura social
que os acompanha dependem muito mais do ambiente natural do que
os padrões da indústria. Eles variam com o solo e o clima e podem assim
dar origem a formas diferentes de propriedade da terra, de estrutura social
e de governo. Quaisquer que sejam os méritos gerais da tese de Wittfogel
da civilização hidráulica, a agricultura dependente da construção e
operação de extensos sistemas de irrigação de fato propicia o surgimento
de autoridades burocráticas e centralizadas. Dificilmente poderia ser de
outro modo. Solos férteis e clima bom têm a probabilidade de estimular
o desenvolvimento da agricultura de plantio em larga escala e uma
conseqüente estrutura social que envolva uma pequena classe de ricos
proprietários de terras e uma grande classe de camponeses, escravos ou
servos que trabalham nas plantações. Condições adversas para a agricul-
tura em larga escala podem estimular o surgimento de uma sociedade
de fazendeiros independentes. Em suma, nas sociedades agrícolas, a
estrutura social é moldada pela geografia. A indústria, ao contrário,
depende muito menos do meio ambiente natural do lugar. As diferenças
da organização industrial provavelmente decorrerão das diferenças de
cultura e de estrutura social em vez da geografia, sendo que as primeiras
têm a possibilidade de convergir, enquanto que a segunda não.
As sociedades modernas têm portanto muito em comum. Mas será
que elas necessariamente se fundem na homogeneidade? O argumento de
que assim é se apóia na pressuposição de que a sociedade moderna deve
se aproximar de um tipo único, o tipo ocidental, de que a civilização moderna
é a civilização ocidental e de que a civilização ocidental é a sociedade moderna.
Isso, porém, é uma identificação totalmente falsa. A civilização ocidental
emergiu nos séculos VIII e IX e desenvolveu suas características diferencia-
doras nos séculos que se seguiram. Ela só começou a se modernizar nos
séculos XVII e XVIII. O Ocidente era o Ocidente muito antes de ser moderno.
As características fundamentais do Ocidente, aquelas que o distinguem
das demais civilizações, antecedem a modernização do Ocidente.
Quais eram essas características diferenciadoras da sociedade oci-
dental durante as centenas de anos anteriores à sua modernização?
Diversos estudiosos apresentaram a essa pergunta respostas que diferem
em alguns pontos específicos, mas coincidem a respeito de umas quantas
instituições, práticas e crenças que podem legitimamente ser identificadas
como o cerne da civilização ocidental. Dentre elas estão as expostas a
seguir. 29
O legado clássico. Na condição de uma civilização de terceira
geração, o Ocidente herdou muito de civilizações anteriores, dentre elas
sobretudo da civilização clássica. São muitos os legados recebidos pelo
Ocidente da civilização clássica, inclusive a filosofia e o racionalismo
gregos, o Direito Romano, o latim e o Cristianismo. As civilizações
islâmica e ortodoxa também herdaram da civilização clássica, porém
longe do grau herdado pelo Ocidente.
Catolicismo e Protestantismo. O Cristianismo ocidental, primeiro
Catolicismo e depois Catolicismo e Protestantismo, é, do ponto de vista
histórico, a característica isolada mais importante da civilização ocidental.
De fato, durante a maior parte do primeiro milênio, o que é atualmente
conhecido como civilização ocidental era chamado de Cristandade
ocidental. Nela havia um sentimento bem desenvolvido de comunidade
entre os povos cristãos ocidentais, de que eram diferentes dos turcos,
mouros, bizantinos e outros, e foi tanto por Deus como pelo ouro que
os ocidentais partiram para conquistar o mundo no século XVI. A Reforma
e a Contra-Reforma, bem como a divisão da Cristandade ocidental num
norte protestante e num sul católico, são também aspectos característicos
da história ocidental, inteiramente inexistentes na Ortodoxia oriental e
em larga margem distanciados da experiência latino-americana.
Idiomas europeus. O idioma só fica em segundo lugar para a religião
como um fator que distingue as pessoas de uma cultura das de outra. O
Ocidente se diferencia da maioria das outras civilizações por sua multi-
plicidade de idiomas. O japonês, o hindi, o mandarim, o russo e até
mesmo o árabe são reconhecidos como os idiomas-núcleos de suas
civilizações. O Ocidente herdou o latim, porém surgiu uma variedade de
nações e com elas os idiomas nacionais, agrupados de forma ampla nas
grandes categorias de línguas latinas e línguas germânicas. Ao se chegar
ao século XVI, esses idiomas haviam, de maneira geral, assumido sua
forma contemporânea. Na qualidade de idioma internacional comum ao
Ocidente, o latim cedeu lugar ao francês, o qual, por sua vez, foi no
século XX superado pelo inglês.
Separação da autoridade espiritual e temporal. Através de toda a
História ocidental, primeiro a Igreja e depois as muitas igrejas viveram
O?
separadas do Estado. Deus e César, Igreja e Estado, autoridade espiritual
e autoridade temporal foram um dualismo que prevaleceu na cultura
ocidental. Somente na civilização hindu a religião e a política estavam
também separadas de forma tão nítida. No Islã, Deus é César; na China
e no Japão, César é Deus; na Ortodoxia, Deus é o sócio menor de César.
A separação e os repetidos choques entre Igreja e Estado, que tipificaram
a civilização ocidental, jamais ocorreram em qualquer outra civilização.
Essa divisão da autoridade contribuiu de forma incomensurável para o
desenvolvimento da liberdade no Ocidente.
Império da lei. A noção de que a lei é um elemento essencial da
existência civilizada foi herdada dos romanos. Os pensadores medievais
elaboraram a idéia do direito natural, segundo o qual os monarcas deviam
exercer seu poder, e uma tradição de direito comum se desenvolveu na
Inglaterra. Durante a fase do Absolutismo, nos séculos XVI e XVII, o
império da lei foi mais violado do que respeitado, porém persistiu a idéia
da subordinação do poder dos homens a algum controle externo: "Non
sub homine sed sub Deo et lege." A tradição do império da lei assentou
as bases para o constitucionalismo e a proteção dos direitos humanos,
inclusive os direitos de propriedade, e também contra o exercício do
poder arbitrário. Na maioria das civilizações, a lei foi um fator muito
menos importante na formação do pensamento e do comportamento.
Pluralismo social. Historicamente, a sociedade ocidental tem sido
altamente pluralista. Como observa Deutsch, o que é específico do
Ocidente "é a ascensão e persistência de diversos grupos autônomos não
baseados em relações de sangue ou casamento".30 A partir dos séculos
VI e VIII, esses grupos inicialmente incluíam mosteiros, ordens monás-
ticas e ligas, porém depois se expandiram para incluir, em muitas áreas
da Europa, uma variedade de outras associações e sociedades.31 O
pluralismo associativo foi suplementado pelo pluralismo de classes. A
maioria das sociedades européias ocidentais incluiu uma aristocracia
relativamente forte e autônoma, um campesinato substancioso e uma
classe pequena porém importante de mercadores e comerciantes. A força
da aristocracia feudal foi especialmente importante para a limitação do
grau com que o Absolutismo conseguiu firmar raízes na maioria das
nações européias. Esse pluralismo europeu contrasta de forma aguda
com a pobreza da sociedade civil, a debilidade da aristocracia e a força
dos impérios burocráticos centralizados que existiram simultaneamente
na Rússia, na China, em terras otomanas e em outras sociedades
não-ocidentais.
OÁ
Corpos representativos. O pluralismo social logo levou ao surgimen-
to de assembléias, parlamentos e outras instituições para representar os
interesses da aristocracia, do clero, dos comerciantes e outros grupos.
Esses órgãos proporcionavam formas de representação que, no curso
do processo de modernização, evoluíram para as instituições da
democracia moderna. Em alguns casos, esses órgãos foram abolidos
ou seus poderes ficaram muito limitados durante o período do
Absolutismo. Contudo, mesmo quando isso aconteceu, eles puderam,
como na França, ser ressuscitados para proporcionar o meio para uma
participação política ampliada. Nenhuma outra civilização contemporâ-
nea tem um legado comparável de corpos representativos que exista há
um milênio. Também em nível local, a partir do século IX, nas cidades
italianas desenvolveram-se movimentos no sentido do estabelecimento
de governo próprio, que depois se estenderam para o norte, "forçando
bispos, barões locais e outros grandes nobres a partilhar o poder com os
burgueses e, no final, muitas vezes acabaram por entregá-lo por comple-
to".32 A representação em nível nacional foi assim suplementada por uma
dose de autonomia em nível local que não se repetiu em outras partes
do mundo.
Individualismo. Muitos dos aspectos da civilização ocidental men-
cionados acima contribuíram para o surgimento de uma noção de
individualismo e uma tradição de direitos e liberdades individuais únicos
dentre as sociedades civilizadas. O individualismo se desenvolveu nos
séculos XIV e XV e a aceitação do direito de escolha individual - aquilo
que Deutsch denomina de "a revolução de Romeu e Julieta" - se impôs
no Ocidente ao se chegar ao século XVII. Até mesmo as reivindicações
de direitos iguais para todos os indivíduos - "o homem mais pobre da
Inglaterra tem uma vida a viver tanto quanto o homem mais rico" -
foram enunciadas, ainda que não aceitas universalmente. O indivi-
dualismo continua sendo uma marca típica do Ocidente dentre as
civilizações do século XX. Numa análise que envolve amostragens
semelhantes em 50 países, os 20 primeiros em que se registrou o índice
de individualismo mais alto incluíram todos os países ocidentais, com
exceção de Portugal e o acréscimo de Israel.33 O autor de outro
levantamento, em diferentes culturas, de individualismo e coletivismo
também sublinhou, de modo análogo, o predomínio do individualismo
no Ocidente, em comparação com a prevalência do coletivismo em outras
áreas, e chegou à conclusão de que "os valores que são mais importantes
no Ocidente são menos importantes no resto do mundo". De forma
reiterada, tanto os ocidentais como os não-ocidentais apontam o in-
dividualismo como a principal marca típica do Ocidente.34
A listagem feita acima não pretende ser uma enumeração exaustiva
das características próprias da civilização ocidental. Nem pretende impli-
car que essas características estejam presentes sempre e de modo
universal na sociedade ocidental. É evidente que não estão: os muitos
déspotas da História ocidental ignoraram sistematicamente o império da
lei e suspenderam o funcionamento de órgãos representativos. Nem
pretende ela sugerir que nenhuma dessas características apareceu em
outras civilizações. É claro que aparecem: o Corão e a shari'a constituem
a lei básica nas sociedades islâmicas; o Japão e a Índia têm sistemas de
classes paralelos aos do Ocidente (e talvez, como resultado disso, sejam
as duas únicas grandes sociedades não-ocidentais que mantiveram
governos democráticos por algum tempo). Individualmente, quase ne-
nhum desses fatores foi exclusivo do Ocidente. Entretanto, a combinação
deles, sim, e foi isso que atribuiu ao Ocidente sua condição singular.
Essas concepções, práticas e instituições simplesmente foram mais pre-
dominantes no Ocidente do que em outras civilizações. Elas formam pelo
menos parte do núcleo ininterrupto essencial da civilização ocidental.
Elas são o que é ocidental porém não moderno no Ocidente. Elas são
também, em grande medida, os fatores que habilitaram o Ocidente a
assumir a liderança no processo de modernizar a si próprio e ao mundo.
00
Reformismo. A rejeição envolve a tarefa impossível de isolar uma
sociedade do mundo moderno que está encolhendo. O kemalismo
envolve a tarefa difícil e traumática de destruir uma cultura que existira
durante séculos e colocar em seu lugar uma cultura inteiramente nova,
importada de outra civilização. Uma terceira opção é tentar combinar a
modernização com a preservação dos valores, práticas e instituições
centrais da cultura autóctone dessa sociedade. Essa opção, como se pode
compreender, tem sido a mais popular entre as elites não-ocidentais. Na
China, nas últimas etapas da dinastia Ching, o slogan era Ti-Yang: "Ensino
chinês para os princípios fundamentais, ensino ocidental para uso
prático." No Japão era Wakon, Yosei: "Espírito japonês, técnica ocidental."
No Egito, na década de 1830, Muhammad Ali "tentou a modernização
QO
rejeicionismo e o kemalismo quanto à desejabilidade da modernização
e da ocidentalização, e entre o kemalismo e o reformismo quanto a se a
modernização pode ocorrer sem a ocidentalização.
A Figura 3.1 apresenta um diagrama desses três cursos de ação. O
rejeicionista permaneceria no Ponto A; o kemalista se deslocaria ao longo
da diagonal para o Ponto B; o reformista se moveria horizontalmente
para o Ponto C. Entretanto, ao longo de que caminho as -sociedades de
fato se moveram? Obviamente, cada sociedade não-ocidental seguiu o
seu próprio curso, que pode diferir de modo substancial desses três
caminhos prototípicos. Mazrui chega até a sustentar que o Egito e a África
se moveram em direção ao Ponto D através de um "penoso processo de
ocidentalização cultural sem a modernização técnica". Na medida em que
exista qualquer padrão generalizado de modernização e ocidentalização
nas reações das sociedades não-ocidentais ao Ocidente, ele pareceria
estar ao longo da curva A - E. No princípio, a ocidentalização e a
FIGURA3.1
REAÇÕES ALTERNATIVAS AO IMPACTO DO ÜCIDENTE
o
""~
.!::! E
~
eCJ)
"'O
Modernização
modernização estão intimamente ligadas, com a sociedade não-ocidental
absorvendo elementos substanciais da cultura ocidental e progredindo
lentamente rumo à modernização. Entretanto, à medida que o ritmo de
modernização aumenta, a taxa de ocidentalização diminui e a cultura
autóctone passa por um período de renascimento. Modernização adicio-
nal então altera o equilíbrio de poder civilizacional entre o Ocidente e a
sociedade não-ocidental, revigora o poder e a autoconfiança dessa
sociedade e reforça o compromisso com a cultura autóctone.
Assim sendo, nas fases iniciais da mudança, a ocidentalização
promove a modernização. Nas fases posteriores, a modernização promo-
ve a desocidentalização e o ressurgimento da cultura autóctone de duas
maneiras. No nível societário, a modernização amplia o poder econômi-
co, militar e político da sociedade como um todo e incentiva as pessoas
dessa sociedade a terem confiança na sua cultura e se tornarem cultural-
mente afirmativas. No nível individual, a modernização gera sentimentos
de alienação e anomia, à medida que laços tradicionais e relações sociais
são rompidos, e conduz a crises de identidade, para as quais a religião
dá uma resposta. Esse fluxo causal está apresentado de uma forma
simples na Figura 3.2.
Esse modelo geral hipotético é congruente tanto com as teorias das
ciências sociais como com a experiência histórica. Examinando em
profundidade as indicações disponíveis relativas à "hipótese da invaria-
bilidade", Rainer Baum chega à conclusão de que "a contínua busca pelo
Homem de uma autoridade efetiva e de uma autonomia pessoal efetiva
se dá de maneiras culturalmente distintas. Nessas matérias não há
convergência na direção de um mundo homogeneizante das culturas.
Em vez disso, parece haver uma invariabilidade nos padrões que foram
desenvolvidos em formas distintas durante a etapa histórica e o início da
etapa moderna do desenvolvimento" .4 1 Tal como comentaram Frobenius,
FIGURA3.2
MODERNIZAÇÃO E RESSURGIMENTO CULTURAL
<~ ""-
Sociedade Maior poder econômico,
~ militar, político ~
01
Spengler e Bozeman, entre outros, o tomar emprestada uma teoria
acentua o grau em que as civilizações recipientes tomam emprestados,
de forma seletiva, elementos de outras civilizações e os adaptam,
transformam e assimilam, de modo a reforçar e assegurar a sobrevivência
dos valores-núcleos ou "paideuma" de sua cultura.42 Quase todas as
civilizações não-ocidentais do mundo existem há pelo menos um milênio
e, em alguns casos, há vários milênios. Elas demonstraram um índice de
empréstimos tomados de outras civilizações cujo objetivo é melhorar suas
próprias condições de sobrevivência. Os estudiosos concordam em que
a absorção pela China do Budismo vindo da Índia não produziu a
"indianização" da China. Os chineses adaptaram o Budismo aos propó-
sitos e necessidades chineses. A cultura chinesa continua chinesa. Até
hoje os chineses derrotaram de modo consistente os intensos esforços
ocidentais para cristianizá-los. Se, em algum momento, eles de fato
importarem o Cristianismo, é de se esperar que ele será adaptado e
absorvido de uma maneira que reforce o ininterrupto paideuma chinês.
Analogamente, os árabes muçulmanos receberam seu "legado helênico,
a ele deram valor e dele se serviram por motivos essencialmente
utilitários. Estando sobretudo interessados em tomar emprestadas certas
formas exteriores ou aspectos técnicos, eles sabiam como descartar todos
os elementos no corpo do pensamento grego que entrariam em conflito
com 'a verdade' tal como estabelecida pelas normas e preceitos fun-
damentais corânicos". 43 O Japão seguiu o mesmo padrão. No século VII,
o Japão importou a cultura chinesa e promoveu a "transformação por
sua própria iniciativa, isenta de pressões econômicas e militares", para
uma alta civilização. "Durante os séculos que se seguiram, houve uma
alternância entre períodos de relativo isolamento das influências conti-
nentais, durante os quais o que havia sido tomado de empréstimo era
processado e assimilado ao que era útil, e períodos de novos contatos e
novos empréstimos culturais." 44 Através de todas essas fases, a cultura
japonesa permaneceu nitidamente japonesa.
A forma moderada da argumentação kemalista de que as sociedades
não-ocidentais podem se modernizar ao se ocidentalizar continua sem
ter sido provada. A argumentação extremada de que as sociedades
não-ocidentais têm que se ocidentalizar a fim de se modernizar não se
sustenta como uma proposição de alcance universal. Contudo, ela de
fato suscita a indagação: existem algumas sociedades não-ocidentais nas
quais os obstáculos que a cultura autóctone opõe à modernização são
tão grandes que é preciso substituir essa cultura de forma significativa
pela cultura ocidental para que a modernização possa se dar? Em teoria,
isso deveria ser mais provável em culturas consumistas do que em
culturas instrumentais. As culturas instrumentais são "caracterizadas por
um grande setor de fins intermediários, separada e independentemente
dos fins últimos". Esses sistemas "inovam com facilidade estendendo o
manto da tradição por cima da própria mudança. (. .. ) Esses sistemas
podem inovar sem parecer que estejam alterando de maneira fun-
damental suas instituições sociais. Na verdade, faz-se com que a inovação
sirva à imemorialidade". Os sistemas consumistas, ao contrário, "se
caracterizam por uma estreita relação entre fins intermediários e últimos.
(. .. )a sociedade, o Estado, a autoridade e coisas semelhantes são todos
parte de um sistema de alta solidariedade, mantida de forma elaborada,
no qual é profunda a função da religião como guia cognitivo. Esses
sistemas têm sido infensos à inovação".45 Apter emprega essas categorias
para analisar as mudanças em tribos africanas. Eisenstadt aplica uma análise
paralela às grandes civilizações asiáticas e chega a conclusão semelhante. As
transformações internas são "grandemente facilitadas pela autonomia das
instituições sociais, culturais e políticas" .46 Por essa razão, as sociedades
japonesa e hindu moveram-se mais cedo e com maior facilidade para a
modernização do que as sociedades confuciana e islâmica. Elas tiveram mais
capacidade para importar a tecnologia moderna e utilizá-la para aprimorar
sua cultura preexistente. Isso quer dizer que as sociedades chinesa e islâmica
têm que abandonar tanto a modernização como a ocidentalização ou
abraçar ambas? Não parece que as opções sejam assim tão limitadas. Além
do Japão, também Singapura, Taiwan, Arábia Saudita e, em menor grau, o
Irã se tomaram sociedades modernas sem se tomar ocidentais. Na realidade,
os esforços do xá por seguir um curso kemalista e fazer ambas as coisas
gerou uma reação intensamente antiocidental mas não antimoderna. A
China está visivelmente engajada num caminho reformador.
As sociedades islâmicas têm tido dificuldades com a modernização,
e Pipes, em apoio à sua afirmação de que a ocidentalização é um
pré-requisito, aponta para os conflitos entre o Islã e a modernidade em
questões econômicas como os juros, o jejum, as leis sobre herança e a
participação da mulher na força de trabalho. Contudo, mesmo ele cita
de forma aprobatória Maxine Rodinson no sentido de que "não há nada
que indique, de forma convincente, que a religião muçulmana impediu
que o mundo muçulmano se desenvolvesse pela estrada do capitalismo
moderno", e argumenta que, na maioria das questões fora do campo
econômico,
93
o Islã e a modernidade não se chocam. Muçulmanos praticantes podem
cultivar as ciências, trabalhar com eficiência em fábricas ou empregar
armas sofisticadas. A modernização não exige nenhuma ideologia
política específica nem um conjunto de instituições determinadas.
Eleições, fronteiras nacionais, associações cívicas e outras marcas regis-
tradas da vida ocidental não são necessárias para o crescimento econô-
mico. Na condição de um credo, o Islã satisfaz tanto os consultores de
gerenciamento quanto os camponeses. A shari 'a nada tem a dizer quanto
às mudanças que acompanham a modernização, tais como a mudança
da agricultura para a indústria, do campo para a ddade·ou da estabilidade
social para a mobilidade social, nem ela interfere em assuntos como
educação de massa, comunicações rápidas, novas formas de transporte
ou saúde pública.47
94
II
A ALTERAÇÃO DO EQUILÍBRIO
ENTRE AS CIVILIZAÇÕES
CAPÍTULO 4
O Desvanecimento do Ocidente:
Poder, Cultura e lndigenização
97
• Fornecem a maioria dos bens acabados do mundo.
• Dominam os mercados internacionais de capitais.
• Exercem considerável liderança moral dentro de muitas so-
ciedades.
• São capazes de maciça intervenção militar.
• Controlam as rotas marítimas.
• Realizam a maior parte da pesquisa e desenvolvimento
de tecnologia de ponta.
• Controlam o ensino técnico de ponta.
• Dominam o acesso ao espaço.
• Dominam a indústria aeroespacial. 1
• Dominam as comunicações internacionais.
• Dominam a indústria de armamentos de alta tecnologia. 1
98
outra (bem como uma parcela do seu poder aparente) passará para as
mãos de agentes não-estatais, como as empresas multinacionais. 2 ·
00
ocidental, depois de manifestações de fraqueza ocidental. As sociedades
democráticas abertas do Ocidente têm uma grande capacidade de
renovação. Além disso, ao contrário de muitas civilizações, o Ocidente
teve dois centros principais de poder. O declínio que Bull viu começando
por volta de 1900 era essencialmente o declínio do componente europeu
da civilização ocidental. De 1910 a 1945, a Europa ficou dividida contra
si mesma e preocupada com os seus problemas econômicos, sociais e
políticos internos. Na década de 40, contudo, os Estados Unidos, por um
curto período, quase dominaram o mundo num grau comparável ao
domínio conjunto das Potências Aliadas em 1918. A descolonização no
pós-guerra reduziu ainda mais a influência européia, mas não a dos
Estados Unidos, que substituíram o tradicional império territorial por um
novo imperialismo transnacional. Durante a Guerra Fria, entretanto, o
poder militar norte-americano ficou equiparado ao dos soviéticos e o
poder econômico norte-americano declinou em relação ao do Japão.
Contudo, verificaram-se esforços periódicos de renovação militar e
econômica. De fato, em 1991, um outro destacado estudioso britânico,
Barry Buzan, sustentou que "a realidade mais profunda é a de que o
centro é atualmente mais predominante e a periferia mais subordinada
do que em qualquer momento desde que começou a descolonização". 4
Entretanto, a exatidão dessa percepção se desvanece na medida em que
a vitória militar que lhe deu lugar também se desvanece na História.
A terceira é a capacidade de uma pessoa ou de um grupo de mudar
o comportamento de outra pessoa ou de outro grupo. O comportamento
pode ser mudado por meio de indução, coerção ou exortação, que exige
que quem detém o poder possua recursos econômicos, institucionais,
demográficos, políticos, tecnológicos, sociais ou de outro tipo. O poder
de um Estado ou de um grupo é, por conseguinte, normalmente avaliado
medindo-se os recursos de que dispõe contra os de que dispõem os
outros Estados ou grupos que ele está tentando influenciar. A parcela
que o Ocidente detém da maioria, porém não de todos, os recursos de
poder importantes, chegou ao seu ápice no século XX e então começou
a declinar em relação aos de outras civilizações.
100
forma direta cerca de 66 milhões de quilômetros quadrados, ou quase
metade de todas as terras da Terra. Ao se chegar a 1993, esse controle
territorial tinha sido reduzido à metade, para cerca de 32,8 milhões de
quilômetros quadrados. O Ocidente tinha revertido ao seu núcleo
europeu original, mais suas vastas terras povoadas por colonizadores na
América do Norte, Austrália e Nova Zelândia. Em contraste, o território
das sociedades islâmicas independentes elevou-se de 4,6 milhões de
quilômetros quadrados em 1920 para mais de 28,5 milhões de quilôme-
tros quadrados em 1933. Mudanças semelhantes ocorreram no controle
de populações. Em 1900, os ocidentais representavam aproximadamente
30 por cento da população mundial e os governos ocidentais exerciam
sua autoridade sobre quase 45 por cento dessa mesma população então
e sobre 48 por cento em 1920. Em 1993, com exceção de uns poucos e
pequenos remanescentes imperiais, como Hong Kong, os governos
ocidentais não exerciam sua autoridade sobre ninguém além dos próprios
ocidentais. Estes somavam pouco mais de 13 por cento da Humanidade,
total que deve cair para cerca de 11 por cento no princípio do próximo
século e para 10 por cento em 2025.s Em termos de população total, em
1993 o Ocidente estava em quarto lugar, atrás das civilizações sínica,
islâmica e hindu.
Assim sendo, quantitativamente os ocidentais constituem uma
minoria, em decréscimo constante, da população mundial. Também
QUADRO 4.1
TERRITÓRIOS SOB O CONTROLE POLÍTICO DAS CIVILIZAÇÕES/ 1900-1993
ESTIMATIVA DE TERRITÓRIOS AGREGADOS DAS CIVILIZAÇÕES EM MILHARES DE QUILÓMETROS QUADRADOS
Ano Ocidental Africana Sínica Hindu Islâmica Japonesa Latino- Ortodoxa Outras
americana
1900 52.551,10 424,76 11.181,03 139,86 9.303,28 416,99 19.997,39 22.618,47 19.342,12
1920 65.907,73 1.036,00 10.134,67 139,86 4.690,49 675,99 20.973,82 26.568,22 5.848,22
1971 33.167,54 12.007,24 5.014,24 3.408,44 23.783,97 367,78 20.287,47 26.796,14 5.962,18
1993 32.921,49 14.716,38 10.160,57 3.312,61 28.629,86 375,55 20.251,21 18.567,71 7.039,62
ESTIMATIVA DE PORCENTAGENS DO TERRITÓRIO MUNDIAL*
1900 38,7 0,3 8,2 0,1 6,8 0,3 14,7 16,6 16,6
1920 48,5 0,8 7,5 0,1 3,5 0,5 15,4 19,5 4,3
1971 24,4 8,8 7,5 2,5 17,5 0,3 14,9 19,7 4,4
1993 24,2 10,8 7,5 2,4 21,1 0,3 14,9 13,7 5,2
Nota: As parcelas do território mundial foram baseadas nas fronteiras internacionais vigentes no ano indicado.
Fontes: Statesman's Year·Book (Nova York: St. Martin's Press, 1901-1927); World Book Atlas (Chicago: Field
Enterprises Educational Corp., 1970); Britannica Book of the Year (Chicago: Encyclopaedia Britannica lnc.,
1992-1994).
QUADRO 4.2
POPULAÇÃO DOS PAÍSES PERTENCENTES ÀS PRINCIPAIS CIVILIZAÇÕES DO MUNDO/ 1993
(em milhares de pessoas)
Sínica 1.340.900 Latino-americana 507.500
Islâmica 927.600 Africana 392.100
Hindu 915.800 Ortodoxa 261.300
Ocidental 805.400 Japonesa 124.700
1 rn
QUADRO 4.3
PARCELAS DA POPULAÇÃO MUNDIAL SOB o CONTROLE POLÍTICO DAS CIVILIZAÇÕES/ 1900-2025* (em
porcentagens)
Ano Total Ocidental Africana Sínica Hindu Islâmica Japo- Latino- Ortodoxa Outras
mundial nesa americana
1900 [1,6] 44,3 0,4 19,3 0,3 4,2 3,5 3,2 8,5 16,3
1920 [1,9] 48,1 0,7 17,3 0,3 2,4 4,1 4,6 13,9 8,6
1971 [3,7] 14,4 5,6 22,8 15,2 13,0 2,8 8,4 10,0 5,5
1990 [5,3] 14,7 8,2 24,3 16,3 13,4 2,3 9,2 6,5 5,1
1995 [5,8] 13,1 9,5 24,0 16,4 15,9t 2,2 9,3 6,1:j: 3,5
2010 {7,2] 11,5 11,7 22,3 17,1 17,9t 1,8 10,3 5,4t 2,0
2025 (8,5) 10,1 14,4 21,0 16,9 19,2t 1,5 9,2 4,9± 2,8
Nota: As estimativas da população mundial relativa estão baseadas nas fronteiras internacionais vigentes no ano
indicado. As estimativas para os anos de 1995 a 2025 pressupõem as fronteiras de 1994.
* Estimativa da população mundial em bilhões de pessoas.
t - As estimativas não incluem os membros da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) nem a Bósnia.
i - As estimativas incluem a Comunidade dos Estados Independentes (CEI), a Geórgia e a antiga Iugoslávia.
Fontes: Nações Unidas, Divisão de População, Departamento de Informação Econômica e Social e de Análise
de Políticas. World Population Prospects. The 1992 Revision (Nova York: United Nations, 1992). Statesman's
Year-Book(Nova York: St. Martin's Press, 1901-1927); World Almanac and Book ofFacts (Nova York: Press Pub.
Co., 1970-1993).
11\?
QUADRO 4.4
PARCELAS DO TOTAL DA PRODUÇÃO MANUFATUREIRA MUNDIAL POR CIVILIZAÇÃO OU PAÍS/ 1750-1980
(em porcentagens. Mundo::: 100%)
Região ou 1750 1800 1830 1860 1880 1900 1913 1928 1938 1953 1963 1973 1980
País(es}
Ocidente 18,2 23,3 31,1 53,7 68,8 77,4 81,6 84,2 78,6 74,6 65,4 61,2 57,8
China 32,8 33,3 29,8 19,7 12,5 6,2 3,6 3,4 3,1 2,3 3,5 3,9 5,0
Japão 3,8 3,5 2,8 2,6 2,4 2,4 2,7 3,3 5,2 2,9 5,1 8,8 9,1
Índia/ Paquistão 24,5 19,7 17,6 8,6 2,8 1,7 1,4 1,9 2.4 1,7 1,8 2,1 2,3
Rússia/ URSS' 5,0 5,6 5,6 7,0 7,6 8,8 8,2 5,3 9,0 16,0 20,9 20,1 21,1
Brasil & México 0,8 0,6 0,7 0,8 0,8 0,8 0,9 1,2 1,6 2,2
Outros 15,7 14,6 13,1 7,6 5,3 2,8 1,7 1,1 0,9 1,6 2,1 2,3 2,5
' Inclui os países do Pacto de Varsóvia durante os anos da Guerra Fria.
Fonte: Paul Bairoch, "lntemational lndustrialization Leveis from 1750 to 1980", Joumal of European Economic
H1story, 11 (Outono de 1982), pp. 269-334.
1950 64,1 0,2 3,3 3,8 2,9 3,1 5,6 16,0 1,0
1970 53,4 1,7 4,8 3,0 4,6 7,8 6,2 17,4 1, 1
1980 48,6 2,0 6,4 2,7 6,3 8,5 7,7 16,4 1,4
1992 48,9 2,1 10,0 3,5 11,0 8,0 8,3 6,2 2,0
•As estimativas para a civilização ortodoxa no ano de 1992 incluem a antiga União Soviética e a antiga Iugoslávia.
Fontes: As percentagens para 1950, 1970 e 1980 foram calculadas a partir de dados de valor constante do dólar
por Herbert Block. The Planetary Product in 1980: A Creative Pause? [O Produto Planetário em 1980: Uma Pausa
Criadora? J (Washington, D.C.: Bureau oi Public Affairs, U.S. Dept. oi State, 1981), pp. 30-45. As percentagens
para 1992 foram calculadas pelas estimativas do Banco Mundial da paridade do poder aquisitivo, no Quadro 30
do World Development Report 1994 (Nova York: Oxford University Press, 1994).
QUADRO 4.6
PARCELAS POR CIVILIZAÇÃO DO TOTAL DOS EFETIVOS MILITARES MUNDIAIS (em porcentagens)
Ano [Total Ocidental Africana Sínica Hindu Islâmica Japonesa Latino- Ortodoxa Outras
mundial] americana
1900 [10.086] 43,7 1,6 10,0 0,4 16,7 1,8 9,4 16,6 0,1
1920 [8.645] 48,5 3,8 17,4 0,4 3,6 2,9 10,2 12,8' 0,5
1970 [23.991] 26,8 2,1 24,7 6,6 10,4 0,3 4,0 25,1 2,3
1991 [25.797) 21,1 3,4 25,7 4,8 20,0 1,0 6,3 14,3 3,5
Notas: As estimativas foram baseadas nas fronteiras nacionais vigentes no ano indicado.
•.ºcomponente da URSS dessa cifra é uma estimativa para o ano de 1924 feita por J. M. Mackintosh, em B.H.
Lldell-Hart, The Red Anny: The Red Anny 1918 to 1945, The Soviet Anny 1946 to present (Nova York: Harcourt,
Brace, 1956).
Fonte~: U.S. Arms Control and Disarmament Agency, Wor/d Military Expenditures and Anns Transfers
(Washington, D.C.: TheAgency, 1971-1994); Statesman's Year-Book(Nova York: St. Martin's Press, 1901-1927).
106
contudo, é que nenhum Estado ou grupo de Estados ocidentais criará
uma capacidade comparável durante as próximas décadas. .
De forma geral, os anos depois <l<:_~ria foram dominados _Eor
cinco tendências principais na-~Y:?.~~Çã<?_~ capacidade militar no mundo.
-iPrimeira: ~5· forças·;~adas da União Soviética deixaram de existir
pouco depois que a União Soviética deixou de existir. Afora a Rússi~,
somente a Ucrânia herdou capacidade milita~~ific~JiY-ª, __.A~Jorças rus~~s
foram muito reduzidas em tamanho e foram ret~~~~-~a E_~l!:.O.Pª _Ç~_g!!:_<!_l_ <:
dos países bálticos. O Pacto de Varsóvia acabou. A meta de d~s~iar ~
marinha dos Estados Unidos foi abandonada. O equipamento militar f01
vendido ou deixou-se que se deteriorasse e se tomasse não-operacional. As
verbas orçamentárias para as forças armadas foram_reduz_~d~s ?:ras~~~~:nte.
A desmoralização se espalhou pdàs fíle1ras,.târito-rio.ii1vel de oficiais como
no de graduados e soldados. Ao mesmo tempo, os militares russos estavam
tratando de redefinir suas missões e doutrina, bem como se reestruturando
para seu novo papel de proteger os russos e lidar com conflitos region~is
no "exterior próximo".
Segunda: a redução vertiginosa da C:ª~~cidade militaL.russa_~s
timulou um declínio mais Ieiito, por~ftc.~.!~V.Q~2s.8?st9s mj_!i_!?.res,
das forças arm.adas e da cap;~id-;._dt:: ~ifüar _90 Qç!dente. D~ acordo co_m
os pfanos,.d~;--governos Bush_ -e_ CliI1t()f1:1.2S. gastQ~ milit::tres...d.oÂ._E.~!;!dos
Unidos deviam cair em 35 por centq,_de US$ 3.4f.J.1?ilhões_(.qQ!ªr~~ com
valor constante de 1994) em 1990 para US$ 222,3 bilhões em 1998.fÁ
estrutura das forças nesse an()_S.~rj~_:ª-_f!leracie--C5:li~Qo1§~j~':Ç-§~~-?05!~e era
no fim da Guerra Fria. O total de efetivos militares desceria de 2, 1 milhões
para 1,4 milhão. M~ttos prog~m!...~J.~---- __ antes de armamen_tos for_am_ <?~
estão sendo cancelados. (Enfre 1985 e 1995 as compras anuais de
arffiamentos-princii)ãiS- caíram e para seis navios, de 943 para 127
aviões, de 720 tanques para zero e de 48 para 18 mísseis estratégicos. A
partir do final dos anos 80, a Grã-Bretanha, a Alemanha e, em menor
grau, a França passaram por reduções análogas em gastos com forças
armadas e capacidade militar. Em meados da década de 90, estava
programado que as forças armadas alemãs diminuiriam de 370 mil para
340 mil e, provavelmente, para 320 mil homens; o exército francês devia
reduzir seus efetivos de 290 mil em 1990 para 225 mil em 1997. O pessoal
militar britânico caiu de 377.100 em 1985 para 274.800 em 1993. Além_
disso, países membros da OTAN no continente europeu encurtaram.'?.
tempo de serviço militar ~_:ig~~~~~-e examinaram a possi~i!ic!acic;'!__cl~
aboli-lo por completo.
1f\/
Terceira: as tendências na Ásia Oriental foram significativamente
diferentes das observadas na Rússia e no Ocidente. Maiores gastos
militares e melhoramentos nas forças estavam na ordem do dia. A China
marcou o compasso, concentrando-se na criação da capacidade de
projeção de poder, de acordo com sua nova doutrina militar que acentua
a probabilidade de instabilidade regional e guerras limitadas. Estimuladas
tanto por sua crescente riqueza econômica como pelo rearmamento
chinês, outras nações da Ásia Oriental estão modernizando e expandindo
suas forças armadas. Taiwan, Coréia do Sul, Tailândia, Malásia, Singapura
e Indonésia estão todas despendendo mais com seus militares e adquirin-
do aviões, tanques e navios na Rússia, Estados Unidos, Grã-Bretanha,
França, Alemanha e outros países.{Enquanto os gastos militares da OTAN
diminuíram em cerca de 10 por c~nto entre 1985 e 1993 (de US$ 539,6
bilhões para US$ 485,0 bilhões) (dólares com valor constante de 1993),
os gastos na Ásia Oriental aumentaram em 50 por cento, de US$ 89,8
bilhões para US$ 134,8 bilhões durante o mesmo período.V
~uarta: a capacidade militar, inclusive no tocante a armas de
destruição er.n massa, está-se espalhando de forma ampla pelo mundo.
(Ã. medida que os paÍse-s se desenvolvem economicamente, eles geram a
~apacidade de produzir armamentos. Entre os anos 60 e os anos 80, por
exemplo, o número de países do Terceiro Mundo que produziam aviões
de caça aumentou de um para oito; tanques, de um para seis; helicóp-
teros, de um para seis; e mísseis táticos, de nenhum para sete. Os anos
90 viram, no rumo da globalização da indústria de equipamento militar,
uma tendência importante, que deverá provavelmente reduzir ainda mais
as vantagens militares do Ocidente. !O Muitas sociedades não-ocidentais
possuem armas nuclear~~-(RiISSià, China, Israel, Índia, Paquistão e,
possivelmente, Coréia do Norte), vêm desenvolvendo grandes esforços
para obtê-las (Irã, Iraque, Líbia e, possivelmente, Argélia) ou estão-se
colocando em posição para obtê-las rapidamente caso vejam necessidade
disso (Japão). Armas nucleares e os sistemas para lançá-las, bem como
armas químicas e biológicas, são os meios pelos quais os Estados-que
são muito inferiores aos Estados Unidos e ao Ocidente em termos-de
poder militar convenciOnaCpodem~ á custos relativamente ba!Xos, ficar
~gualdade de condições. ----·------
. Por último: todos-ês;~s desdobramentos fazem da regionalização a
tendência çentral no que se rerere--aesrratégia e ao poder militar no
mundo pós-Guerra Fria. A regionalização dá a justificativa para....as
reduções das forças armadas russas e ocidentais e para os aumentos das
108
forças armadas de outros Estados. A Rússia já não dispõ,e . de uma
~crdãde-miHfar global, mas está concentrando sua estrat~g~a e suas
forças no exterior próximo. A China redirecionou sua estrate~1a e suas
forças para enfatizar a projeção de poder local e a defesa dos mte~esses
chineses na Ásia OrientaLDs países europeus estão, de forma analoga,
redirecionando suas forças, tanto através da OTAN como da União
Européia Ocidental, a fim de lidar com a instabilidade na periferia da
Éuropa Ocidental., Os Estados Unidos explicitamente alteraram su.a
diretriz militar de conter e combater a União Soviética em termos globais
para se preparar a fim de lidar simultaneamente com contingê~cia~
regionais no Golfo Pérsico e no Noroeste Asiático. Entretanto, n~o ~
provável que os Estados Unidos consigam ter a capacidade de atingir
essa meta. Para derrotar o Iraque, os Estados Unidos dispuseram no Golfo
Pérsico de 75 por cento de seus aviões táticos em serviço, 42 por cento
de seus tanques pesados modernos, 46 por cento de seus porta-aviões,
37 por cento dos efetivos do exército e 46 por cento dos de fuzileiros
navais. No futuro, com forças significativamente reduzidas, os Estados
Unidos terão muita dificuldade para levar a cabo uma intervenção, muito
menos duas, contra potências regionais de peso fora do Hemisfério
Ocidental.(l segurança militar em todo o mundo ~epende cada veAz ~ais
não da distribuição mundial de poder e das açoes de superpotenc1as,
mas sim da distribuição de poder dentro de cada região do mundo e d3-_s
;Ções ·dosEstados-núçleos das civilizações/
~~~esumo de forma geral, o Ocidente continuará sendo a civil_i-
zação ~~is pod~~q~~~~~-bem adiante nas primeiras décadas do século
Xxi. Além de então, é provável que ele continue a ter uma dianteira
~tancial em talento, pesquisa e capacidade de desenvolvimento
científicos, bem como na inovação tecnológica civil e militar. Entretanto,
o controle de outros meios d~p_ocier está ficandp caçla vez mais difundido .
entre Estados.:i-iúcleo~ e países avançados de civiliz_açfü~s i:i_~o::9c!c:lentais.
o controle desses meios pelo Ocidente chegou ao auge na década de
20 e desde então vem declinando de forma irregular, porém significativa.
Na década de 2020, 100 anos depois daquele apogeu, o Ocidente
provavelmente controlará cerca de 24 por cento do território do mundo
(baixando de um auge de 49 por cento), 10 por cento do total da
população mundial (baixando de 48 por cento) e talvez 15 a 20 por cento
da população mobilizada socialmente, cerca de 30 por cento do produto
econômico mundial (baixando de um auge de provavelmente 70 por
1f\0
cento), talvez 25 por cento da produção manufatureira (baixando de um
apogeu de 84 por cento) e menos de 10 por cento dos efetivos militares
mundiais (baixando de 45 por cento).
Em 1919, Woodrow Wilson, Lloyd George e Georges Clemenceau
juntos praticamente controlavam o mundo. Sentados em Paris, eles
determinaram quais países iriam existir e quais não, quais novos países
seriam criados, quais iriam ser suas fronteiras e quem os governaria, e
como o Oriente Médio e outras partes do mundo seriam divididos entre
as potências vitoriosas. Eles também decidiram sobre a intervenção militar
na Rússia e as concessões econômicas a serem extraídas da China. Cem
anos depois, nenhum pequeno grupo de estadistas será capaz de exercer
poder comparável e, na medida em que algum grupo o consiga, ele não
será composto por três ocidentais, mas sim pelos líderes dos Estados-nú-
cleos das sete ou oito civilizações principais do mundo. Os sucessores
de Reagan, Thatcher, Mitterrand e Kohl serão rivalizados pelos de Deng
Xiaoping, Nakasone, Gandhi, Yeltsin, Khomeini e Suharto.UÀ era do
predomínio do Ocidente terá acabado. Nesse meio tempo, o declínio do
Ocidente e a ascensão de outros centros de poder está promovendo os
processos globais de indigenização e do ressurgimento das culturas
não-ocidentais)
110
nização está gerando um renascimento das culturas não-ocidentais pelo
mundo afora.•
Joseph Nye sustentou que existe uma distinção entre "poder duro",
que é o poder de comandar apoiado na força econômica e militar, e o
"poder suave", que é a capacidade de um Estado de conseguir com que
"outros países queiram o que ele quer" através de um apelo à sua cultura
e ideologia. Como reconhece Nye, está ocorrendo no mundo uma ampla
difusão de poder duro, e as principais nações "têm atualmente menos
capacidade do que no passado para empregar seus meios de poder
tradicionais a fim de atingir seus objetivos". Nye prossegue dizendo que,
se "a cultura e a ideologia [de um Estado] são atraentes, outros estarão
mais do que dispostos a seguir" sua liderança e, assim sendo, o poder
11
suave é "exatamente tão importante quanto o poder duro de comando" .
Mas o que torna uma cultura e uma ideologia atraentes? Elas ficam
atraentes quando são vistas como fundamentadas no sucesso material e
na influência. O poder suave só é poder quando se apóia numa base de
poder duro. Aumentos no poder duro econômico e militar produzem
maior autoconfiança, arrogância e crença na superioridade da cultura
própria ou do poder suave próprio, em comparação com os de outros
povos, e aumentam grandemente a atração que exerce sobre outros
povos. Decréscimos de poder econômico e militar conduzem à dúvida
sobre si mesmo, a crises de identidade e a tentativas de encontrar em
outras culturas as chaves para o êxito econômico, militar e político. À
medida que sociedades não-ocidentais aumentam sua capacidade eco-
nômica, militar e política, elas cada vez mais trombeteiam as virtudes de
seus próprios valores, instituições e cultura.
A ideologia comunista atraiu pessoas em todo o mundo nas décadas
de 50 e 60, quando estava associada com o êxito econômico e o poderio
militar da União Soviética. Essa atração se evaporou quando a economia
soviética estagnou e se tornou incapaz de sustentar o poderio militar
soviético. Os valores e as instituições ocidentais atraíram pessoas de
• O vínculo entre poder e cultura é ignorado de modo quase universal por aqueles que
sustentam que uma civilização universal está emergindo, como devia ser, e também por
aqueles que sustentam que a ocidentalização é um pré-requisito para a modernização. Eles
se recusam a admitir que a lógica de sua argumentação exige que eles apóiem a expansão e
a consolidação do domínio ocidental do mundo, bem como que, se outras sociedades forem
deixadas em liberdade para traçar seus próprios destinos, elas revigorarão seus velhos credos,
hábitos e práticas, os quais, segundo os universalistas, são avessos ao progresso. Entretanto,
as pessoas que defendem as virtudes de uma civilização universal geralmente não defendem
as virtudes de um império universal.
outras culturas porque eram vistos como a fonte do poder e da riqueza
ocidentais. Esse processo vem se repetindo há séculos. Como assinala
William McNeill, entre os anos 1000 e 1300, o Cristianismo, o Direito
Romano e outros elementos da cultura ocidental foram adotados por
húngaros, poloneses e lituanos, e essa "aceitação da civilização ocidental
foi estimulada por um misto de medo e admiração da eficiência militar
dos príncipes ocidentais" .12 À medida que for declinando o poder
ocidental, também irá declinando a capacidade do Ocidente de impor a
outras civilizações as concepções ocidentais de direitos humanos, libe-
ralismo e democracia, bem como declinará o poder de atração desses
valores para outras civilizações.
Isso já aconteceu. Durante vários séculos, os povos não-ocidentais
invejaram a prosperidade econômica, a sofisticação tecnológica, o pode-
rio militar e a coesão política das sociedades ocidentais. Eles buscaram
o segredo desse sucesso nos valores e instituições ocidentais e, quando
identificaram o que acharam que seria a chave, tentaram aplicá-lo em
suas próprias sociedades. Para ficar ricos e poderosos, teriam que ficar
como o Ocidente. Atualmente, porém, essas atitudes kemalistas desapa-
receram na Ásia Oriental. Os asiáticos orientais atribuem seu estupendo
desenvolvimento econômico não à importação por eles da cultura
ocidental, mas sim à fidelidade à sua própria cultura. Eles argumentam
que estão tendo êxito porque são diferentes do Ocidente. Analogamente,
quando as sociedades não-ocidentais se sentiam fracas em relação ao
Ocidente, invocavam os valores ocidentais de autodeterminação, de
liberalismo, de democracia e de independência para justificar sua oposi-
ção à dominação ocidental. Agora que não mais são fracos e sim cada
vez mais poderosos, não hesitam em atacar esses mesmos valores que
anteriormente usavam para promover seus interesses. A revolta contra o
Ocidente era inicialmente legitimada através da afirmação da universali-
dade dos valores ocidentais, mas agora ela é legitimada pela afirmação
da superioridade dos valores não-ocidentais.
:91
O surgimento dessas atitudes é uma manifestação daquilo que
Ronald Dore denominou de "o fenômeno da indigenização da segunda
geração". Tanto nas ex-colônias ocidentais como em países indepen-
dentes como a China e o Japão, "a primeira geração 'modernizadora' ou
'pós-independência' muitas vezes foi treinada em universidades es-
trangeiras (ocidentais), num idioma ocidental cosmopolita. Em parte
li
porque eles foram pela primeira vez ao exterior como adolescentes muito
impressionáveis, sua absorção de valores e estilos de vida ocidentais pode
11 '> l
ser profunda". A segunda geração, muito maior do que a primeira, ao
contrário dessa, em sua_ maioria recebe sua educação em seus países de
origem, em universidades criadas pela primeira geração, e o idioma local
em vez do idioma colonial é cada vez mais utilizado no ensino. Essas
universidades "proporcionam um contato muito mais diluído com a
cultura mundial metropolitana" e "o conhecimento é indigenizado por
meio de traduções - geralmente de amplitude limitada e de baixa
qualidade". Os formados por essas universidades têm ressentimento do
predomínio da geração anterior, de formação ocidental e, em conseqüên-
cia, freqüentemente "sucumbem aos chamamentos de movimentos de
oposição nativistas" .13 À medida que a influência ocidental se reduz,
jovens líderes com aspirações não podem voltar-se para o Ocidente em
busca de poder e riqueza. Eles têm que encontrar os meios de ter êxito
dentro de sua própria sociedade e, por conseguinte, têm que se acomodar
aos valores e à cultura dessa sociedade.
O processo de indigenização não precisa esperar pela segunda
geração. Líderes da primeira geração que sejam capazes, com dons de
percepção e de adaptação, se indigenizam por iniciátiva própria. Três
exemplos notáveis são Mohammad Ali Jinnah, Harry Lee e Solomon
Bandaranaike. Eles se formaram com brilho em Oxford, Cambridge e
Lincoln's Inn, respectivamente, foram excelentes advogados e membros
completamente ocidentalizados das elites de suas sociedades. Jinnah era
um secularista convicto. Lee era, nas palavras de um ministro de um
Gabinete britânico, "o melhor danado dum inglês a leste de Suez".
Bandaranaike foi criado como cristão. No entanto, para liderar suas
nações rumo à independência e depois dela, eles tinham que se
indigenizar. Eles reverteram para suas culturas ancestrais e, nesse proces-
so, em algumas ocasiões mudaram de identidades, nomes, forma de vestir
LA REVANCHE DE DIEU
1 1 '-
movimentos fundamentalistas dedicados à purificação militante das
doutrinas e das instituições religiosas, bem como à reformulação do
comportamento pessoal, social e governamental de acordo com os
preceitos religiosos. Os movimentos fundamentalistas são espetaculares
e podem ter um impacto político significativo. Não obstante, eles são
apenas ondas da maré religiosa, muito mais ampla e mais fundamental,
que está dando um formato diferente à vida humana no final do século
XX. A renovação da religião pelo mundo afora transcende em muito as
atividades dos extremistas fundamentalistas. Ela se manifesta, em todas
as sociedades, na vida e no trabalho quotidiano das pessoas e nas
preocupações e projetos dos governos. O ressurgimento cultural, que na
cultura secular confuciana assume a forma da afirmação dos valores
asiáticos, no resto do mundo se manifesta pela afirmação dos valores
religiosos. Como observou George Weigel, a "dessecularização do mun-
do é um dos fatores sociais preponderantes na parte final do século XX". 20
A ubiqüidade e relevância da religião ficaram evidenciadas de forma
impressionante nos ex-Estados comunistas. Esses países, da Albânia ao
Vietnã, foram varridos por uma revitalização religiosa, que preencheu o
vácuo deixado pelo desmoronamento da ideologia. Na Rússia, a Orto-
doxia passou por um grande ressurgimento. Em 1994, 30 por cento dos
russos com menos de 25 anos de idade disseram que tinham passado do
ateísmo para a fé em Deus. O número de igrejas em funcionamento na
área de Moscou aumentou de 50 em 1988 para 250 em 1993. Os líderes
políticos passaram, de modo uniforme, a demonstrar respeito pela
religião, e o governo passou a dar-lhe apoio. Como um observador arguto
relatou em 1993, nas cidades russas "o som dos sinos das igrejas voltou
a encher o ar. Cúpulas recém-pintadas de dourado brilham sob a luz do
sol. Igrejas que até há pouco tempo estavam em ruínas voltam a
reverberar com cânticos magníficos. As igrejas são os locais mais movi-
mentados da cidade". 21 Simultaneamente com a revitalização da Ortodo-
xia nas repúblicas eslavas, uma revitalização islâmica varreu a Ásia
Central. Em 1989, havia na Ásia Central 160 mesquitas e um medressah
(seminário islâmico); ao começar o ano de 1993, havia cerca de 10 mil
mesquitas e 10 medressabs. Embora essa revitalização envolvesse alguns
movimentos políticos fundamentalistas e fosse estimulada de fora pela
Arábia Saudita, Irã e Paquistão, ela consistiu essencialmente de um
movimento cultural de maiorias, com uma base extremamente ampla. 22
Como se pode explicar esse ressurgimento religioso mundial?
Obviamente, houve causas especiais em países e civilizações considera-
117
dos individualmente. Entretanto, é esperar demais achar que um número
elevado de causas diferentes tivesse produzido desdobramentos simul-
tâneos e análogos na maioria das partes do mundo. Um fenômeno global
exige uma explicação global. Por mais que os acontecimentos em países
determinados possam ter sido influenciados por fatores únicos, deve ter
havido algumas causas gerais. Quais foram elas?
A causa mais óbvia, mais visível e mais poderosa do ressurgimento
religioso global é precisamente aquilo que deveria ter causado a morte
da religião: os processos de modernização social, econômica e cultural
que cobriram o mundo na segunda metade do século XX. Antigas fontes
de identidade e antigos sistemas de autoridade foram destroçados. As
pessoas se transferiram do campo para a cidade, ficaram separadas de
suas raízes e assumiram novos empregos ou ficaram desempregadas. Elas
interagiram com grande número de estranhos e ficaram expostas a novos
conjuntos de relacionamentos. Precisaram de novas fontes de identidade,
novas formas de comunidade estável e novos conjuntos de preceitos
morais para dar-lhes alguma sensação de relevância e de propósitos. A
religião, tanto a da corrente principal como a fundamentalista, atende a
essas necessidades. Como explicou Lee Kuan Yew referindo-se à Ásia
Central:
11 o
Onde me encaixo? A religião fornece respostas atraentes e os grupos
religiosos oferecem pequen.as comunidades sociais para substituir as que
se perderam em função da urbanização. Hassan Al-Turabi comentou que
todas as religiões dão "às pessoas uma sensação de identidade e de rumo
na vida". Nesse processo, elas também redescobrem ou criam novas
identidades históricas. Quaisquer que sejam as metas universalistas que
possam ter as pessoas, as religiões lhes dão uma identidade ao es-
tabelecer uma distinção básica entre crentes e não-crentes, entre um
grupo "de dentro", superior, e um grupo "de fora", diferente e inferior.24
Bernard Lewis sustenta que, no mundo muçulmano, tem havido,
"em períodos de emergência, uma repetida tendência entre os muçulma-
nos de encontrar sua identidade e lealdade básicas na comunidade
religiosa - ou seja, numa entidade definida mais pelo Islamismo do que
por critérios técnicos ou territoriais". Gilles Kepel ressalta, de modo
análogo, a centralidade da busca de uma identidade: "A reislamização
'de baixo para cima' é, antes de mais nada, um meio de reconstruir uma
identidade num mundo que perdeu seu sentido e se tornou amorfo e
alienante." 25 Na Índia, "uma nova identidade hindu está sendo cons-
truída" em resposta às tensões e alienações geradas pela modemização.26
Na Rússia, a revitalização religiosa é o resultado de "um desejo apaixo-
nado por uma identidade que somente a Igreja Ortodoxa, o único vínculo
ininterrupto com o passado de mil anos dos russos, é capaz de propor-
cionar", enquanto que, nas repúblicas islâmicas, a revitalização provém
"da mais forte aspiração dos centro-asiáticos: a afirmação de suas
identidades, suprimidas por Moscou durante décadas".27 Os movimentos
fundamentalistas, em especial, são "uma maneira de lidar com a expe-
riência do caos, da perda de identidade, de sentido e de estruturas sociais
seguras, criadas pela introdução rápida de políticas e padrões sociais
modernos, secularismo, cultura científica e desenvolvimento econômi-
co". William H. McNeill concorda com que "os movimentos funda-
mentalistas que têm importância (. .. ) são aqueles que fazem seu recru-
tamento na sociedade em geral e que se espalham porque respondem,
ou parecem responder, às necessidades humanas recém-percebidas. (. .. )
Não é por acaso que esses movimentos estão todos baseados em países
nos quais a pressão populacional sobre a terra está tomando impossível
para a maioria da população manter a continuidade dos antigos hábitos
das cidadezinhas, e nos quais os meios de comunicação de massa, ao
penetrar nas cidadezinhas, começaram a corroer uma estrutura muito
antiga da vida do campo". 28
11Q
De modo mais amplo, o ressurgimento religioso em todo o mundo
é uma reação contra o secularismo, o relativismo moral e a auto-in-
dulgência, bem como uma reafirmação dos valores de ordem, disciplina,
trabalho, auxílio mútuo e solidariedade humana. Os grupos religiosos
satisfazem necessidades sociais deixadas carentes pelas burocracias do
Estado. Dentre elas se incluem a prestação de serviços médico-hos-
pitalares, jardins de infância e escolas, assistência aos idosos, socorro
imediato em terremotos e outras catástrofes e assistência social durante
períodos de privação econômica. O colapso da ordem e da sociedade
civil cria vácuos que são às vezes preenchidos por grupos religiosos,
freqüentemente fundamentalistas. 29
Quando as religiões tradicionalmente dominantes não satisfazem as
necessidades emocionais e sociais dos desarraigados, outros grupos
religiosos se apresentam para fazê-lo e, nesse processo, aumentam muito
a quantidade de seguidores e a proeminência da religião na vida social
e política. A Coréia do Sul foi, historicamente, um país predominante-
mente budista, com os cristãos totalizando, em 1950, talvez de um a três
por cento da população. À medida que a Coréia do Sul deslanchou num
desenvolvimento econômico acelerado, com uma urbanização maciça e
grande diferenciação ocupacional, o Budismo passou a deixar a desejar.
"Para os milhões de pessoas que se despejaram nas cidades e para muitas
que permaneceram onde estavam, na zona rural alterada, o Budismo
quiescente do período agrário coreano perdeu sua capacidade de
atração. O Cristianismo, com sua mensagem de salvação pessoal e destino
individual, oferecia maior conforto e segurança numa época de confusão
e mudanças."30 Ao se chegar aos anos 80, os cristãos, na sua maioria
presbiterianos e católicos, constituíam pelo menos 30 por cento da
população sul-coreana.
Uma alteração semelhante e paralela ocorreu na América Latina. O
número de protestantes na América Latina aumentou de aproximadamen-
te sete milhões em 1960 para cerca de 50 milhões em 1990. Os bispos
católicos latino-americanos reconheceram em 1989 que, dentre as razões
para tal êxito, estavam a "lentidão com que [a Igreja Católica] está se
adaptando às tecnicalidades da vida urbana" e "sua estrutura, que às
vezes a toma incapaz de responder às necessidades psicológicas das
pessoas dos dias atuais". Um sacerdote brasileiro observou que, ao
contrário da Igreja Católica, as igrejas protestantes atendem "às neces-
sidades básicas da pessoa - calor humano, cura espiritual, uma profunda
experiência espiritual". A disseminação do Protestantismo no meio dos
120
pobres na América Latina não consiste, basicamente, na substituição de
uma religião por outra, mas sim num aumento líquido importante de
engajamento e participação religiosos à medida que católicos passivos,
católicos só no nome, se tornam evangélicos ativos e fervorosos. Assim,
por exemplo, no Brasil, no início dos anos 90, 20 por cento da população
se identificavam como protestantes e 73 por cento como católicos. No
entanto, aos domingos, 20 milhões de pessoas estavam em igrejas
protestantes e cerca de 12 milhões estavam em igrejas católicas.3 1 Tal
como as demais religiões mundiais, o Cristianismo está passando por um
ressurgimento ligado à modernização e, na América Latina, ele assumiu
mais a feição protestante do que a católica.
Essas mudanças na Coréia do Sul e na América Latina refletem a
incapacidade do Budismo e do Catolicismo tradicionais de atender às
necessidades psicológicas, emocionais e sociais das pessoas colhidas
pelos traumas da modernização. Se vão ocorrer em outros lugares
alterações importantes em termos de observância religiosa, isso depen-
derá do grau com que a religião predominante seja capaz de satisfazer
a essas necessidades. Dada sua aridez emocional, o Confucionismo
poderia ser especialmente vulnerável. Nos países confucianos, o Protes-
tantismo e o Catolicismo poderiam exercer uma atração semelhante à
que tem o Protestantismo evangélico para os latino-americanos, o
Cristianismo para os sul-coreanos e o fundamentalismo para os muçul-
manos e hindus. Na China, no final dos anos 80, enquanto o crescimento
econômico estava a pleno vapor, o Cristianismo também se espalhou,
"especialmente entre os jovens". Talvez 50 milhões de chineses sejam
cristãos. O governo tentou impedir que esse número crescesse, pondo
na prisão pastores, missionários e evangelizadores, proibindo e reprimin-
do cerimônias e atividades religiosas, e aprovando, em 1994, uma lei que
proíbe os estrangeiros de fazerem proselitismo ou de criarem escolas
religiosas ou outras organizações religiosas, e proíbe que grupos religio-
sos se dediquem a atividades independentes ou financiadas do exterior.
Em Singapura, como na China, cerca de cinco por cento da população
são cristãos. No final da década de 80 e no início da de 90, ministros do
governo singapuriano advertiram os evangelizadores para que não
perturbassem "o delicado equilíbrio religioso" do país, detiveram ativistas
religiosos, inclusive funcionários de organizações católicas, e hostilizaram
de diversas maneiras grupos e indivíduos cristãos.32 Com o término da
Guerra Fria e as aberturas que se seguiram, as igrejas ocidentais também
ingressaram nas ex-repúblicas soviéticas ortodoxas, competindo com as
1 ?1
igrejas ortodoxas revitalizadas. Nesses lugares, tal como na China,
também foi feita uma tentativa de se cercear seu proselitismo. Em 1993,
por insistência da Igreja Ortodoxa, o Parlamento russo aprovou legislação
que exige que grupos religiosos estrangeiros sejam credenciados pelo
Estado ou se filiem a uma organização religiosa russa a fim de poderem
se dedicar a atividades missionárias ou de ensino. Entretanto, o presiden-
te Yeltsin recusou-se a sancionar o projeto, que assim não se transformou
em lei.33 De forma geral, constata-se que, sempre que houve um conflito,
la revanche de Dieu ganhou da indigenização: caso as necessidades
religiosas da modernização não possam ser satisfeitas por suas crenças
tradicionais, as pessoas se voltam para importações religiosas que
proporcionem satisfação emocional.
Além dos traumas psicológicos, emocionais e sociais da moderni-
zação, dentre outros fatores que estimulam a revitalização religiosa
encontram-se o recuo do Ocidente e o fim da Guerra Fria. A partir do
século XIX, de forma geral, as reações das civilizações não-ocidentais
ao Ocidente foram passando por uma série de ideologias importadas
do Ocidente. No século XIX, as elites não-ocidentais absorveram os
valores liberais ocidentais, e suas primeiras manifestações de oposição
ao Ocidente assumiram a forma de nacionalismo liberal. No século
XX, o socialismo e o marxismo foram importados, adaptados às
condições e finalidades locais e combinados com o nacionalismo em
oposição ao imperialismo ocidental. Na Rússia, na China e no Vietnã, o
marxismo-leninismo foi desenvolvido, adaptado e utilizado para desafiar
o Ocidente. O colapso do comunismo na União Soviética, sua profunda
modificação na China e o fracasso das economias socialistas que não
conseguiram atingir um desenvolvimento sustentado criaram o atual
vácuo ideológico. Governos ocidentais, grupos e instituições interna-
cionais, como o FMI e o Banco Mundial, tentaram preencher esse
vácuo com as doutrinas da economia neo-ortodoxa e da política
democrática. É incerto o grau em que essas doutrinas produzirão um
impacto duradouro nas culturas não-ocidentais. Enquanto isso, porém,
as pessoas vêem o comunismo como apenas o mais recente deus
secular que fracassou e, na ausência de novas divindades seculares
atraentes, voltam-se com alívio e paixão para o que é religião de verdade.
A religião toma o lugar da ideologia e o nacionalismo religioso substitui
o nacionalismo secular. 34
Os movimentos de revitalização religiosa são anti-seculares, anti-
universais e, com exceção de suas manifestações cristãs, antiocidentais.
Além disso, se opõem ao relativismo, ao egoísmo e ao consumismo,
associados com o que Bruce B. Lawrence denominou de "modernismo"
em contraste com "modernidade". De forma geral, eles não rejeitam a
urbanização, a industrialização, o desenvolvimento, o capitalismo, a
ciência e a tecnologia, e o que isso implica para a organização da
sociedade. Nesse sentido, eles não são antimodernos. Como observa Lee
Kuan Yew, eles aceitam a modernização e a "inevitabilidade da ciência
e da tecnologia e as mudanças que elas trazem para os estilos de vida",
porém não são "receptivos à idéia de serem ocidentalizados". Al-Turabi
sustenta que nem o nacionalismo nem o socialismo produziram desen-
volvimento no mundo islâmico. Entretanto, "a religião é o motor do
desenvolvimento", e um Islã purificado desempenhará, na idade contem-
porânea, um papel comparável ao da ética protestante na História do
Ocidente. Tampouco a religião é incompatível com o desenvolvimento
de um Estado moderno.35 Os movimentos fundamentalistas islâmicos
têm se mostrado vigorosos nas sociedades muçulmanas mais avançadas
e aparentemente mais seculares, como Argélia, Irã, Egito, Líbano e
Tunísia.36 Os movimentos religiosos, inclusive os que são particularmen-
te fundamentalistas, são altamente competentes na utilização das comu-
nicações e técnicas organizacionais modernas para difundir sua mensa-
gem, o que é ilustrado de modo muito espetacular pelo êxito do
televangelismo protestante na América Central.
Os participantes do ressurgimento religioso provêm de todos os
níveis sociais, porém, de forma majoritária, vêm de duas clientelas, ambas
urbanas e móveis. Os que migraram há pouco tempo para as cidades
geralmente necessitam de apoio e orientação emocional, social e material,
que os grupos religiosos têm mais condições de proporcionar do que
qualquer outra fonte. Como diz Régis Debray, para eles a religião não é
"o ópio do povo, mas sim a vitamina dos fracos".37 A outra clientela
principal é a nova classe média, que personifica o "fenômeno da
indigenização da segunda geração" de que fala Dore. Como Kepel
assinala, os ativistas dos grupos fundamentalistas islâmicos não são
"conservadores idosos nem camponeses analfabetos". Eles são predomi-
nantemente jovens, com bom nível de instrução, freqüentemente da
primeira geração de suas famílias a cursar universidade ou escola técnica,
e trabalham como médicos, advogados, engenheiros, técnicos, cientistas,
professores, funcionários públicos e militares.3 8 Entre os muçulmanos,
os jovens são religiosos e seus pais seculares. Muito disso acontece com
o Hinduísmo, no qual os líderes de movimentos de revitalização também
1?::t
provêm da segunda geração indigenizada e freqüentemente são "homens
de negócios e administradores bem-sucedidos", rotulados pela imprensa
indiana como "scuppies' - yuppies com mantos cor de laranja. No início
dos anos 90, os que apoiavam esses movimentos eram, cada vez mais,
"hindus da sólida classe média indiana - comerciantes e contadores,
advogados e engenheiros" - e "funcionários públicos, intelectuais e
jornalistas experientes".39 Na Coréia do Sul, os mesmos tipos de pessoas
encheram progressivamente as igrejas católicas e presbiterianas durante
os anos 60 e 70.
A religião, autóctone ou importada, proporciona os meios e o rumo
para as elites emergentes nas sociedades que se estão modernizando.
Ronald Dore observou que "a atribuição de valor a uma religião
,;-• tradicional é uma reivindicação de paridade de respeito afirmada contra
outras nações 'dominantes' e, muitas vezes, de modo simultâneo e mais
imediato, contra a classe dominante local, que abraçou os valores e estilos
de vida dessas outras nações dominantes". William McNeill observa que,
"mais do que nada, a reafirmação do Islã, independentemente da forma
sectária, representa o repúdio à influência européia e norte-americana
sobre a sociedade, a política e a moral locais".40 Nesse sentido, a
revitalização das religiões não-ocidentais é a mais forte manifestação de
antiocidentalismo nas sociedades não-ocidentais. Essa revitalização não
é uma rejeição da modernidade, mas sim uma rejeição do Ocidente e da
cultura secular, relativista e degenerada, associada com o Ocidente. É
uma rejeição do que se denominou a "ocidentalização" das sociedades
não-ocidentais. É uma declaração de independência cultural em relação
ao Ocidente, uma declaração altiva de que "nós seremos modernos, mas
não seremos vocês".
124
CAPÍTULO 5
Economia, Demografia
e as Civilizações Desafiadoras
125
desafios, ao se entrar no século XXI, está tendo e continuará a ter um
impacto altamente desestabilizador sobre a política mundial. Entretanto,
a natureza desses impactos difere de maneira significativa. O desenvol-
vimento econômico da China e de outras sociedades asiáticas dá aos
respectivos governos tanto os estímulos como os recursos para serem
mais exigentes em seus relacionamentos com outros países. O crescimen-
to populacional nos países muçulmanos, e em especial a expansão das
coortes de 15 a 25 anos de idade, proporcionam a massa de recrutamento
para o fundamentalismo, o terrorismo, a subversão e a migração. O
crescimento econômico fortalece os governos asiáticos; o crescimento
populacional cria uma ameaça para os governos muçulmanos e para as
sociedades não-muçulmanas.
A AFIRMAÇÃO ASIÁTICA
126
FIGURA5.1
0 DESAFIO ECONÔMICO: A ÁSIA E O OCIDENTE
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Fonte: Banco Mundial, World Tables 1995, 1991 ~Baltimore: J.oh.ns Hopki~s Unive~s~ Press, 1995, 1~1);
Diretoria-geral de Orçamento, Contabilidade e Estat1sticas, Republica da China, Stat1st1cal Abstra~t of Nat!~al
lncome, Taiwan Area, Repub/ic of China, 1991-1995 (1995). Nota: As representações dos dados sao as médias
ponderadas de três anos.
127
geram e dele se beneficiam. A riqueza, como o poder, é vista como prov~
de virtude, como demonstração de superioridade moral e cultural. A
medida que se tornaram mais bem-sucedidos economicamente, os
asiáticos orientais não hesitaram em realçar o caráter próprio da sua
cultura e alardear a superioridade dos seus valores e do seu estilo de
vida em comparação com os do Ocidente e de outras sociedades. As
sociedades asiáticas estão cada vez menos receptivas às exigências e aos
interesses dos Estados Unidos e com capacidade cada vez maior para
resistir às pressões dos Estados Unidos e de outros países ocidentais.
O embaixador Tommy Koh observou, em 1993, que um "renasci-
mento cultural está varrendo" a Ásia. Ele abrange uma "crescente
autoconfiança", que significa que os asiáticos "não mais consideram que
tudo o que é ocidental ou norte-americano é necessariamente o melhor". 2
Esse renascimento, propulsionado pelo êxito econômico asiático, se
manifesta com cada vez maior ênfase tanto nas identidades culturais
próprias de cada país asiático como nos aspectos comuns às culturas
1'I asiáticas, que as distinguem da cultura ocidental. O significado dessa
revitalização cultural está marcado na interação em processo de mutação
das duas principais sociedades da Ásia Oriental com a cultura ocidental.
Quando o Ocidente se impôs à China e ao Japão, em meados do
século XIX, depois de um pequeno namoro com o kemalismo, as elites
predominantes optaram por uma estratégia reformadora. Com a Res-
tauração Meiji, um dinâmico grupo de reformadores chegou ao poder no
Japão, estudou e tomou emprestadas técnicas, práticas e instituições
ocidentais, e iniciou o processo de modernização do Japão. Porém,
fizeram isso de modo a preservar os aspectos essenciais da cultura
japonesa tradicional, o que, em muitos pontos, contribuiu para a
modernização e possibilitou ao Japão invocar e reformular elementos
dessa cultura, baseando-se neles para despertar apoio e montar jus-
tificativas para seu imperialismo nos anos 30 e 40. Na China, por outro
lado, a decadente dinastia Ching não foi capaz de se adaptar com êxito
ao impacto do Ocidente. A China foi derrotada, espoliada e humilhada
pelo Japão e pelas potências européias. O colapso da dinastia em 1910
foi seguido pela divisão, pela guerra civil e pela invocação de concepções
rivais pelos líderes políticos e intelectuais rivais: os três princípios de
"Nacionalismo, Democracia e Vida das Pessoas" de Sun Yat Sen, o
liberalismo de Liang Ch'i-ch'ao e o marxismo-leninismo de Mao Tsé-tung.
No final da década de 40, a concepção que fora importada da União
Soviética venceu as importadas do Ocidente - nacionalismo, liberalismo,
128
democracia, Cristianismo - e a China foi definida como uma sociedade
socialista.
No Japão, a derrota completa na II Guerra Mundial produziu uma
confusão completa. Um ocidental, profundamente envolvido com o
Japão, comentou em 1994 que, "atualmente, é muito difícil para nós
avaliarmos o grau em que tudo - religião, cultura, todos os aspectos da
estrutura mental desse país - foi posto a serviço da guerra. A perda da
guerra produziu um choque total para o sistema. Nas suas mentes, tudo
aquilo se revelou inútil e foi alijado" .3 Em seu lugar, tudo que estivesse
ligado com o Ocidente e especialmente com os Estados Unidos vitoriosos
passou a ser visto como bom e desejável. Desse modo, o Japão tentou
emular os Estados Unidos como a China emulou a União Soviética.
No final da década de 70, o fracasso do comunismo ao não gerar
o desenvolvimento econômico e o êxito do capitalismo no Japão e, cada
vez mais, nas outras sociedades asiáticas, levou a nova liderança chinesa
a se afastar do modelo soviético. O desmoronamento da União Soviética ~
uma década depois acentuou ainda mais os fracassos dessa concepção
importada. Assim sendo, os chineses se defrontaram com a questão de
se deviam voltar-se para o Ocidente ou para dentro de si mesmos. Muitos
intelectuais e algumas outras pessoas advogaram uma completa ociden-
talização, uma tendência que atingiu seus ápices culturais e populares
na telenovela A elegia do rio e na estátua da Deusa da Democracia erigida
na Praça de Tiananmen. Entretanto, essa orientação ocidental não
conquistou o apoio nem das poucas centenas de pessoas que contavam
em Pequim nem dos 800 milhões de camponeses que viviam nas áreas
rurais. A plena ocidentalização era tão inviável no final do século XX
como o fora no final do século XIX. A liderança do país escolheu uma
nova versão do Ti-Yong: por um lado, capitalismo e envolvimento com
a economia mundial, combinados; por outro lado, com o autoritarismo
político e a rededicação à cultura chinesa tradicional. Em vez da
legitimidade revolucionária do marxismo-leninismo, o regime adotou a
legitimidade do desempenho proporcionado pelo desenvolvimento eco-
nômico em ascensão e a legitimidade nacionalista proporcionada pela
invocação das características próprias da cultura chinesa. Um comentaris-
ta observou que "o regime pós-Tiananmen abraçou sofregamente o
nacionalismo chinês como uma nova fonte de legitimidade", e conscien-
temente incitou o antiamericanismo para justificar o seu poder e o seu
comportamento.4 Nessas circunstâncias, está emergindo um nacionalis-
mo cultural chinês, sintetizado nas palavras de um líder de Hong Kong
129
· · 1. t s como i·amais nos
em 1994 .· "Nós , chineses ' nos sentimos nac1ona 1s a ,, ,, ·
ntíramos antes. Somos chineses e temos orgulho diss~. Na propna
sCeh. no início dos anos 90, desenvolveu-se um "deseJO popular de
ma, . - · 1
utenticamente chinês, que muitas vezes e patnarca ,
retornar ao que era a . ,
nativista e autoritário. Nesse ressurgimento histórico, a democrac.1a esta
desacreditada, tal como 0 leninismo, na condição de apenas mais uma
imposição estrangeira"· 5 .
No início do século XX, intelectuais chineses, seguindo paralela-
Weber cada um por si, identificaram o Confucionismo como a
mente a ' r.
fonte do atraso chinês. No final do século XX, ~s. líd~res p~ iticos
chineses, seguindo paralelamente aos cientistas soC1a1s oc1denta1s, lou-
varam 0 Confucionismo como a fonte do progresso chinês. Nos .ªn~s 80,
rno chinês começou a promover interesse pelo Confuc1omsmo,
o gove . · l" d
com os dirigentes partidários proclamando-o "a corrente prm:1pa a
cultura chinesa.6 É claro que o Confucionismo passou tambem a ser
motivo de entusiasmo para Lee Kuan Yew, que o viu como uma fonte
do êxito de Singapura, e ele se tornou um missionário dos valores
confucianos para 0 resto do mundo. Nos anos 90, o governo de Taiwan
se proclamou "o herdeiro do pensamento confuciano" e o p~esidente Lee
Teng-hui identificou as raízes na democratizaç~o de Ta1wa~ no seu
"legado cultural" chinês, recuando no tempo ate Kao Yao (seculo XXI
a.C.), Confúcio (século V a.C.) e Mêncio (século III a.C.). Os líder~s
7
130
sua própria cultura. A cultura japonesa, que produziu o desastre militar
em 1945 e, em conseqüência, teve que ser rejeitada, tinha produzido o
triunfo econômico ao se chegar a 1985 e, por conseguinte, podia ser
abraçada. A crescente familiaridade dos japoneses com a sociedade
ocidental os levara a "se dar conta de que ser ocidental não é magica-
mente maravilhoso em si e por si mesmo. Eles se livraram disso". Durante
o auge do êxito econômico japonês, no final dos anos 80, as virtudes
japonesas eram louvadas em comparação com os vícios norte-america-
nos. Enquanto os japoneses da Restauração Meiji tinham adotado uma
política de "desengajar-se da Ásia e juntar-se à Europa", os japoneses da
revitalização cultural do final do século XX endossaram uma política de
"se distanciar dos Estados Unidos e se engajar na Ásia" .8 Essa tendência
envolveu, em primeiro lugar, uma reidentificação com as tradições
culturais japonesas e uma renovada afirmação dos valores dessas tradi-
ções e, em segundo lugar e de modo mais problemático, um esforço para
"asianizar" o Japão e identificá-lo, apesar de sua civilização própria, com
uma cultura asiática geral. Dado o grau em que, depois da II Guerra
Mundial, o Japão, ao contrário da China, se identificou com o Ocidente,
e dado o grau em que o Ocidente, quaisquer que sejam suas deficiências,
não desmoronou por completo, como aconteceu com a União Soviética
'
os estímulos para que o Japão rejeitasse por completo o Ocidente não
foram, de forma alguma, tão fortes quanto os estímulos para que a China
se distanciasse dos modelos tanto soviéticos quanto ocidentais. Por outro
lado, a peculiaridade da civilização japonesa, as recordações em outros
países do imperialismo japonês e a enorme importância econômica dos
chineses na maioria dos demais países asiáticos também significam que
será mais fácil para o Japão se distanciar do Ocidente do que se misturar
com a Ásia.9 Ao reafirmar sua identidade cultural própria, o Japão enfatiza
sua peculiaridade e suas diferenças, tanto da cultura ocidental quanto
das demais culturas asiáticas.
Enquanto chineses e japoneses encontraram um novo valor em suas
culturas, eles também partilharam de uma reafirmação mais ampla do
valor da cultura asiática em geral, por comparação com a do Ocidente.
A industrialização e o crescimento que acompanharam esse fenômeno
produziram nos anos 80 e 90 uma articulação entre os asiáticos orientais
do que pode ser adequadamente denominado de "afirmação asiática".
Esse complexo de atitudes tem quatro componentes principais.
Primeiro: os asiáticos acreditam que a Ásia Oriental está se desen-
volvendo economicamente depressa, logo superará o Ocidente em
1 ~1
produto econômico e, por conseguinte, será cada vez mais poder~sa nos
assuntos mundiais em comparação com o Ocidente. O crescimento
econômico estimula no meio das sociedades asiáticas uma sensação de
poder e uma afirmação de sua capacidade de enfrentar o Ocidente. ~m
1993, um destacado jornalista japonês declarou que "acabaram-se os dias
em que os Estados Unidos espirravam e a Ásia ficava resfriada". Um
funcionário público malásio acrescentou à metáfora médica que "mesmo
uma febre alta nos Estados Unidos não fará a Ásia tossir". Um líder asiático
disse que os asiáticos, no seu relacionamento com os Estados Unidos,
"estão no final da era de ficarem assombrados e no início da era de
retrucar". o vice-primeiro-ministro da Malásia afirmou que "a crescente
prosperidade da Ásia significa que ela está agora em posição de oferecer
alternativas sérias aos arranjos mundiais predominantes nos campos
político, social e econômico".10 Isso também quer dizer, sustentam os
asiáticos orientais, que o Ocidente está perdendo rapidamente sua
capacidade de fazer as sociedades asiáticas se ajustarem aos padrões
ocidentais no que se refere a direitos humanos e outros valores.
Segundo: os asiáticos consideram que esse êxito econômico é, em
grande parte, um produto da cultura asiática, que é superior à do
Ocidente, o qual está decadente cultural e socialmente. Nos tempos
inebriantes da década de 80, quando, no Japão, a economia, as expor-
tações, a balança comercial e as reservas em moedas estrangeiras estavam
a pleno vapor, os japoneses, como os sauditas antes deles, se vangloria-
vam de seu novo poderio econômico, falavam com desprezo do declínio
do Ocidente e atribuíam o seu êxito e o insucesso ocidentais à supe-
rioridade de sua cultura e à decadência da cultura ocidental. No começo
dos anos 90, o triunfalismo asiático foi novamente articulado no que só
pode ser descrito como a "ofensiva cultural singapuriana". Os líderes
singapurianos, de Lee Kuan Yew para baixo, alardeavam a ascensão da
Ásia em relação ao Ocidente e contrastavam as virtudes da cultura
asiática, basicamente confuciana, responsáveis por esse êxito - ordem,
disciplina, família, responsabilidade, trabalho duro, coletivismo, abs-
tinência-, com a auto-indulgência, indolência, individualismo, crimina-
lidade, educação de qualidade inferior, desrespeito pela autoridade e
"calcificação mental" responsáveis pelo declínio do Ocidente. Argumen-
tava-se que, para competir com o Oriente, os Estados Unidos "precisam
questionar suas pressuposições fundamentais sobre as disposições so-
ciais e políticas e, nesse processo, aprender algumas coisas com as
sociedades da Ásia Oriental" .11
132
Para os asiáticos orientais, seu êxito é resultado em especial da ênfase
atribuída pela cultura asiática oriental à coletividade em vez de ao indivíduo.
Lee Kuan Yew sustenta que "os valores e práticas mais comunitários dos
asiáticos orientais - os japoneses, os sul-coreanos, os taiwanenses, os de
Hong Kong e os singapurianos - se revelaram nítidos trunfos no processo
de alcançar [o Ocidente). Os valores que a cultura asiática oriental defende,
tais como a primazia dos interesses do grupo sobre os do indivíduo, dão
sustentação ao esforço total de grupo necessário para o rápido desenvol-
vimento". O primeiro-ministro da Malásia concorda: "A ética de trabalho dos
japoneses e dos sul-coreanos, que consiste em disciplina, lealdade e
diligência, serviu como força motriz para o desenvolvimento econômico e
social de seus respectivos países. Essa ética de trabalho nasce da filosofia
de que o grupo e o país são mais importantes do que o indivíduo." 12
Terceiro: conquanto reconheçam as diferenças entre as sociedades
e as civilizações asiáticas, os asiáticos orientais sustentam que também
existem importantes aspectos em comum. Um dissidente chinês assinalou
que numa posição central dentre eles se encontra "o sistema de valores
do Confucionismo - consagrado pela História e compartilhado pela
maioria dos países da região", em especial a ênfase que atribui à
parcimônia, à família, ao trabalho e à disciplina. Igualmente importante
é o repúdio ao individualismo e o predomínio de um autoritarismo
"suave" ou formas muito limitadas de democracia, que compartilham
esses países. As sociedades asiáticas têm interesses em comum em
relação ao Ocidente na defesa desses valores próprios e na promoção
de seus próprios interesses econômicos. Os asiáticos argumentam que
isso exige o desenvolvimento de novas formas de cooperação intra-asiá-
tica, tais como a expansão da Associação das Nações do Sudeste Asiático
(ASEAN) e a criação do Foro Econômico Asiático Oriental (EAEC).
Embora o interesse econômico imediato das sociedades asiáticas orientais
seja manter o acesso aos mercados ocidentais, a longo prazo o regiona-
lismo econômico provavelmente prevalecerá e, em conseqüência, a Ásia
Oriental precisa promover cada vez mais o comércio e os investimentos
intra-asiáticos.13 Em especial, é preciso que o Japão, como líder do
desenvolvimento asiático, se afaste da sua histórica "política de
desasianização e pró-ocidentalização" e passe a buscar "um caminho
de reasianização" ou, de forma mais ampla, a promover "a asianização
da Ásia'', um caminho que é apoiado pelos dirigentes singapurianos.14
Quarto: os asiáticos orientais sustentam que o desenvolvimento
asiático e os valores asiáticos são modelos que outras sociedades
não-ocidentais deveriam emular em seus esforços por alcançar o Ociden-
te, e que 0 próprio Ocidente deveria adotar a fim de se renov~r. Os
asiáticos orientais alegam que "o modelo anglo-saxão de desenvolvimen-
to, tão reverenciado durante as quatro últimas décadas como o ~elhor
meio de modernização das economias dos países em desenvolvimento
e de construção de um sistema político viável, não está funci~nando". O
modelo asiático oriental está assumindo seu lugar na medida em que
países como 0 México e o Chile, até o Irã e a Turquia, e ma!s ~ecentemente
as ex-repúblicas soviéticas, tentam aprender com aquele ex1:0,_da m~sma
maneira que gerações anteriores tentaram aprender com o exito o~;~en
tal. A Ásia deve "transmitir para o resto do mundo os valores asiaticos
que têm uma utilidade universa~. (. .. ) a transmi~são de~s~ idea~ sign~,fic~
exportar 0 sistema social da Asia, em especial da Asia Orienta~ . E
necessário que 0 Japão e outros países asiáticos promovam o "globalismo
do Pacífico" a fim de "globalizar a Ásia" e, a partir disso, "moldar de forma
decisiva a feição da nova ordem mundial". 15
. As sociedades poderosas são universalistas; as sociedades fracas são
particularistas. A crescente autoconfiança da Ásia Oriental deu l~gar a
um emergente universalismo asiático comparável ao que caracterizou o
Ocidente. O primeiro-ministro Mahatir proclamou para os chefes de
governo europeus em 1996 que "os valores asiáticos são valores univer-
sais. Os valores europeus são valores europeus". 16 Junto com isso vem
também um "ocidentalismo" asiático, retratando o Ocidente pratica-
mente da mesma maneira uniforme e negativa com que o orientalismo
ocidental alegadamente retratava o Oriente. Para os asiáticos orientais,
a prosperidade econômica é prova de superioridade moral. Se, em
algum momento, a Índia superar a Ásia Oriental como a área que se
está desenvolvendo mais rapidamente no mundo, o mundo deve estar
preparado para longas exposições sobre a superioridade da cultura
hindu, as contribuições do sistema de castas para o desenvolvimento
econômico e como, revertendo às suas raízes e superando o mortífero
legado ocidental deixado pelo imperialismo britânico, a Índia finalmente
alcançou o lugar que lhe era devido na primeira linha das civilizações.
A afirmação cultural se segue ao êxito material; o poder duro gera o
poder suave.
0 RESSURGIMENTO ISLÂMICO
Enquanto os asiáticos ficavam cada vez mais afirmativos como resultado
do desenvolvimento econômico, os muçulmanos, em números maciços,
134
estavam simultaneamente se voltando para o Islamismo como uma fonte
de identidade, sentido, estabilidade, legitimidade, desenvolvimento, po-
der e esperança - esperança sintetizada no slogan "O Islamismo é a
solução". Esse Ressurgimento Islâmico• é, na sua amplitude e profun-
didade, a última fase do ajuste da civilização islâmica ao Ocidente, um
esforço por encontrar a "solução" não nas ideologias ocidentais mas no
Islamismo. Ele personifica a aceitação da modernidade, a rejeição da
cultura ocidental e o reengajamento no Islamismo como um guia cultural,
religioso, social e político para a vida no mundo moderno. Como um
alto funcionário saudita explicou em 1994, "as 'importações estrangeiras'
são boas na condição de 'coisas' reluzentes e de alta tecnologia. Porém,
as instituições sociais e políticas intangíveis importadas de outros lugares
podem ser mortais - basta perguntar ao xá do Irã. (. .. ) Para nós, o
Islamismo não é apenas uma religião, mas um estilo de vida. Nós,
sauditas, queremos nos modernizar, mas não necessariamente nos
ocidentalizar" .17
O Ressurgimento Islâmico é o esforço dos muçulmanos por chegar
a essa meta. É um amplo movimento intelectual, cultural, social e político
que predomina em todo o mundo islâmico. O "fundamentalismo"
islâmico, comumente concebido como o Islamismo político, é apenas
um dos componentes numa revitalização muito mais extensa das idéias,
práticas e retórica islâmicas e no reengajamento no Islamismo pelas
populações muçulmanas. O Ressurgimento pertence à corrente principal
e não à extremista, é generalizado e não isolado.
O Ressurgimento afetou os muçulmanos em todos os países e a
maioria dos aspectos da sociedade e da política na maioria dos países
muçulmanos. Julio L. Esposito escreveu que "são muitos os indícios de
um despertar islâmico na vida pessoal":
• Alguns leitores podem se perguntar por que Ressurgimento e Ressurgimento Islâmico estão
com letrns maiúsculas. A razão é que esses termos se referem a um acontecimento histórico
extremamente importante, que afeta um quinto ou mais da Humanidade, que é pelo menos
tão importante quanto a Revolução Americana, a RevoluçJ.o Francesa e a Revolução Russa,
cujos "erres" são geralmente escritos com maiúsculas, e que é semelhante e comparável à
Refom1a Protestante da sociedade ocidental, cujo "erre" é, quase que invariavelmente, escrito
com maiúscula.
135
ampla foi acompanhada também pela reafirmação do Islamismo na vida
pública: um aumento de governos, organizações, legislação, bancos,
serviços de assistência social e instituições de ensino de orientação
islâmica. Tanto os governos quanto os movimentos de oposição se
voltaram para o Islamismo a fim de acentuar sua autoridade e obter
apoio popular. (. .. ) A maioria dos dirigentes e dos governos, inclusive
em Estados mais seculares como a Turquia e a Tunísia, tomando
consciência da força potencial do Islamismo, têm demonstrado maior
sensibilidade e preocupação em relação a questões islâmkas.
137
1
138
1
140
islâmicos estavam simultaneamente ganhando força nos países muçul-
manos. O Islamismo foi o substituto funcional da oposição democrática
ao autoritarismo nas sociedades cristãs e, em grande parte, foi o resultado
de causas análogas: mobilização social, perda de legitimidade de de-
sempenho por regimes autoritários e um ambiente internacional em
mutação, inclusive com aumentos dos preços de petróleo, o que, no
mundo islâmico, incentivou tendências fundamentalistas islâmicas em vez
de tendências democráticas. Nas sociedades cristãs, padres, pastores e
! grupos religiosos leigos desempenharam papéis importantes na oposição a
regimes autoritários e, nos países muçulmanos, os ulemás, os grupos
baseados nas mesquitas e os fundamentalistas islâmicos tiveram papéis
semelhantes. O Papa foi uma figura central para acabar com o regime
comunista na Polônia, e os aiatolás, para derrubar o regime do xá no Irã.
Nos anos 80 e 90, os movimentos fundamentalistas islâmicos
estavam influindo na política não por controlarem governos, mas sim por
dominarem - e muitas vezes monopolizarem - a oposição aos gover-
nos. A força dos movimentos fundamentalistas islâmicos era, em parte,
função da debilidade das fontes alternativas de oposição. Os movimentos
esquerdistas e comunistas tinham ficado desacreditados e depois seria-
mente solapados pelo colapso da União Soviética e do comunismo
internacional. Os grupos de oposição liberais e democráticos tinham
existido na maioria das sociedades muçulmanas, mas geralmente estavam
confinados a números restritos de intelectuais e outras pessoas com raízes
ou ligações ocidentais. Com apenas algumas exceções ocasionais, os
democratas liberais foram incapazes de conseguir apoio popular conti-
nuado nas sociedades muçulmanas, e até mesmo o liberalismo islâmico
não conseguiu firmar raízes. Fouad Ajami observa que "nas sociedades
muçulmanas, uma após outra, escrever sobre liberalismo e sobre uma
tradição burguesa nacional é escrever os necrológios de homens que
aceitaram probabilidades impossíveis e depois fracassaram". 27 O fato de
que a democracia liberal, de forma geral, não conseguiu se firmar nas
sociedades muçulmanas é um fenômeno contínuo e repetido durante
todo um século a partir do final de 1800. Esse insucesso tem sua origem,
pelo menos em parte, na natureza inóspita da cultura e da sociedade
islâmica para as concepções liberais ocidentais.
O êxito que tiveram os movimentos fundamentalistas islâmicos para
dominar a oposição e se implantar como a única alternativa viável aos
regimes em exercício também foi muito ajudado pelas políticas desses
regimes. Em uma ou em outra ocasião durante a Guerra Fria, muitos
1À1
governos - inclusive os da Argélia, Turquia, Jordânia, Egito e Israel -
incentivaram e apoiaram os fundamentalistas islâmicos como contrapo-
sição aos movimentos comunistas ou nacionalistas hostis. Pelo menos
até a Guerra do Golfo, a Arábia Saudita e outros Estados do Golfo proviam
fundos em grande quantidade para a Fraternidade Muçulmana e grupos
fundamentalistas islâmicos em vários países. A capacidade dos grupos
fundamentalistas islâmicos de dominarem a oposição também foi aumen-
tada com a eliminação pelos governos das oposições seculares. De forma
geral, a força do fundamentalismo islâmico variou na razão inversa da
dos partidos seculares democráticos ou nacionalistas e era menor em
países como Marrocos e Turquia, que permitiam certo grau de competi-
ção multipartidária, do que nos que eliminavam toda e qualquer oposi-
ção. 28 Entretanto, a oposição secular é mais vulnerável à repressão do
que a oposição religiosa. Esta última pode operar dentro e por detrás de
uma rede de mesquitas, organizações de assistência, fundações e outras
instituições muçulmanas que o governo considera que não pode eliminar.
Os democratas liberais não dispõem desse tipo de cobertura e, por
conseguinte, são mais fáceis de controlar ou de serem eliminados pelo
governo.
Num esforço para esvaziar o crescimento das tendências fun-
damentalistas islâmicas, os governos expandiram o ensino religioso nas
escolas controladas pelo Estado, que freqüentemente passaram a ser
dominadas por professores e idéias fundamentalistas islâmicos, e amplia-
ram seu apoio à religião e às instituições educacionais religiosas. Essas
ações eram, em parte, prova da dedicação dos governos ao Islã e, através
da provisão de fundos, elas estenderam o controle governamental de
instituições islâmicas e do ensino islâmico. Não obstante, elas também
levaram grande número de estudantes e de pessoas a aprenderem os
valores islâmicos, fazendo-os mais abertos aos chamamentos fundamentalis-
tas islâmicos, e formaram militantes que se lançaram ao trabalho em favor
dos objetivos fundamentalistas islâmicos.
A força do Ressurgimento e a atração dos movimentos funda-
mentalistas islâmicos induziu os governos a promoverem as instituições
e práticas islâmicas, bem como a incorporarem os símbolos e as práticas
islâmicas aos seus regimes. No nível mais amplo, isso significou afirmar
ou reafirmar o caráter islâmico de seus Estados e sociedades. Nos anos
70 e 80, os líderes políticos se apressaram em identificar seus regimes e
a si próprios com o Islã. O rei Hussein, da Jordânia, convencido de que
os governos seculares tinham pouco futuro no mundo árabe, falou da
147
necessidade de se \criar uma "d emocrac1a . IAam1ca
. 1s . " e um "I s1-a mo d erm-
.
zador". o rei Hassan, do Marrocos, enfatizou sua descendência do Profeta
e seu papel como "Comandante da Fé". O rei de Brunei, que não se
notabilizara anteriormente por práticas islâmicas, tornou-se "cada vez
mais devoto" e definiu seu regime como uma "monarquia muçulmana
malaia". Na Tunísia, Ben Ali começou a invocar Alá regularmente nos
seus discursos e "enrolou-se no manto do Islã" para conter a crescente
atração exercida por grupos fundamentalistas islâmicos. 29 No começo
dos anos 90, Suharto adotou explicitamente uma política de se tomar
"mais muçulmano." Em Bangladesh, o princípio do "secularismo" foi
retirado da Constituição em meados da década de 70 e, ao se chegar ao
início da de 90, a identidade kemalista, secular, da Turquia estava, pela
primeira vez, sendo alvo de uma contestação séria.30 A fim de sublinhar
sua devoção islâmica, dirigentes governamentais - Ozal, Suharto,
Karimov - se apressaram em fazer sua hajh.
Os governos dos países muçulmanos também tomaram providên-
cias para islamizar sua legislação. Na Indonésia, concepções e práticas
legais islâmicas foram incorporadas ao sistema legal secular. A Malásia,
pelo contrário, refletindo sua considerável população não-muçulmana,
moveu-se na direção do desenvolvimento de dois sistemas legais sepa-
rados, um islâmico e outro secular.3 1 No Paquistão, durante o regime do
general Zia ul-Haq, foram feitos grandes esforços para islamizar a
legislação e a economia. Foram introduzidas penas islâmicas, foi implan-
tado um sistema de tribunais sbari'a e a sbari'a foi declarada a lei
suprema do país.
O Ressurgimento Islâmico é, ao mesmo tempo, um produto da
modernização e um esforço para lidar com ela. Suas causas subjacentes
são as mesmas que, de forma geral, são responsáveis, nas sociedades
não-ocidentais, pelas tendências à indigenização: urbanização, mobiliza-
ção social, níveis mais elevados de alfabetização e educação, comunica-
ções e consumo da mídia intensificados e uma interação expandida com
a cultura ocidental e outras culturas. Esses desdobramentos solapam os
laços tradicionais de aldeias e clãs e criam uma alienação e uma crise de
identidade. Os símbolos, compromissos e crenças islâmicos satisfazem
essas necessidades psicológicas, enquanto que as organizações de
assistência islâmicas satisfazem as necessidades sociais, culturais e eco-
nômicas dos muçulmanos colhidos pelo processo de modernização. O
Ressurgimento é também uma resposta ao impacto do Ocidente. Como as
soluções ocidentais fracassaram para os muçulmanos, eles sentiram ª
necessidade de voltar para suas raízes e confiar nas idéias, práticas e
instituições islâmicas, para delas auferirem a bússola e o motor da
modernização. Esse afastamento do Ocidente foi mais acentuado pela
interação intensificada com o Ocidente, que tomou ainda mais reais as
diferenças de valores e instituições entre as duas civilizações. O Res-
surgimento é uma reação contra a ocidentalização, não contra a modemi-
zação. 32
Argumentou-se que a revitalização islâmica foi também "um produ-
to do declínio do poder e prestígio do Ocidente. (. .. )À medida que o
Ocidente deixou de ter plena ascendência, seus ideais e instituições
perderam o brilho". Mais especificamente, o Ressurgimento foi es-
timulado e alimentado pelo surto do petróleo dos anos 70, que aumentou
enormemente a riqueza e o poder de muitas nações muçulmanas e
habilitou-as a fazer retroceder as relações de dominação e subordinação
que tinham existido com o Ocidente. Como John B. Kelly observou nessa
ocasião, "para os sauditas, há indubitavelmente uma dupla satisfação a
ser extraída de infligir aos ocidentais castigos humilhantes, pois estes não
só são uma expressão do poder e da independência da Arábia Saudita,
como também demonstram, como se deseja, o desprezo pelo Cris-
tianismo e a preeminência do Islã". As ações dos Estados muçulmanos
ricos em petróleo, "se colocadas no seu contexto histórico, religioso,
racial e cultural, não são nada mais do que tentativas ousadas de submeter
o Ocidente cristão a pagar tributo ao Oriente muçulmano".33 Os governos
saudita, líbio e outros utilizaram sua riqueza em petróleo para estimular
e financiar a revitalização muçulmana, e a riqueza muçulmana levou os
muçulmanos a passarem do fascínio pela cultura ocidental para um
profundo envolvimento na sua própria cultura e para uma disposição de
asseverar o lugar e a importância do Islã em sociedades não-islâmicas.
Da mesma forma que a riqueza ocidental tinha anteriormente sido vista
como prova da superioridade da cultura ocidental, a riqueza do petróleo
foi vista como prova da superioridade do Islã.
O ímpeto proporcionado pelos aumentos dos preços do petróleo
nos anos 80 se desfez, mas o crescimento populacional continuou
provendo uma força motriz. Enquanto a ascensão na Ásia Oriental foi
alimentada por espetaculares taxas de crescimento econômico, o Res-
surgimento Islâmico foi alimentado por taxas igualmente espetaculares
de crescimento populacional. A expansão populacional nos países
islâmicos, especialmente nos Bálcãs, no Norte da África e na Ásia Central
foi significativamente maior do que a dos países vizinhos e do mundo
144
'
em geral. Entre 196~ e 1990, a população total da Terra subiu de 3,3
bilhões para 5,3 bilhões de pessoas, ou seja, uma taxa de crescimento
anual de 1,85 por cento. Nas sociedades muçulmanas, as taxas de
crescimento quase sempre estiveram acima de dois por cento, passando
freqüentemente de 2,5 por cento e, às vezes, ficando acima de três por
cento. Entre 1965 e 1990, por exemplo, a população do Maghreb
aumentou a uma taxa de 2,65 por cento ao ano, passando de 29,8 milhões
para 59 milhões, com os argelinos se multiplicando a uma taxa anual de
três por cento. Durante esses mesmos anos, o número de egípcios subiu
a uma taxa de 2,3 por cento, de 29,4 milhões para 52,4 milhões de
pessoas. Na Ásia Central, entre 1970 e 1993, as populações cresceram a
taxas de 2,9 por cento no Tadjiquistão, 2,6 por cento no Uzbequistão,
2,5 por cento no Turcomemistão, 1,9 por cento na Quirguízia, porém
apenas 1, 1 por cento no Casaquistão, onde quase metade da população
é russa. O Paquistão e Bangladesh tiveram taxas de crescimento popu-
lacional excedendo 2,5 por cento ao ano, enquanto a da Indonésia ficou
acima de dois por cento ao ano. De forma geral, os muçulmanos, como
mencionamos, constituíam talvez 18 por cento da população mundial em
1980 e provavelmente representarão 23 por cento no ano 2000 e 31 por
cento em 2025.34
As taxas de crescimento populacional no Maghreb e em outras
regiões chegaram ao seu ápice e estão começando a declinar, porém o
crescimento, em números absolutos, continuará sendo grande e o
impacto desse crescimento se fará sentir durante toda a primeira parte
do século XXI. Por muitos anos ainda, as populações muçulmanas serão
compostas de modo desproporcional por pessoas jovens, com um bolsão
demográfico notável de adolescentes e pessoas na faixa etária dos 20
anos (Figura 5.2). Além disso, as pessoas nessas coortes etárias serão
predominantemente urbanas e terão, em sua grande maioria, pelo menos
educação secundária. Essa combinação de tamanho e mobilidade social
tem três conseqüências políticas significativas.
Em primeiro lugar, as pessoas jovens são os protagonistas dos
protestos, da instabilidade, da reforma e da revolução. Historicamente, a
existência de grandes coortes de jovens tendeu a coincidir com movi-
mentos dessa natureza. Já foi dito que "a Reforma protestante é um
exemplo de um dos mais destacados movimentos de jovens da História".
Jack Goldstone sustentou, de forma convincente, que o crescimento
demográfico foi um fator fundamental nas duas ondas de revoluções que
ocorreram na Eurásia em meados do século XVII e no final do século
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i prognosticados em todos esses países estão acima de 20 por cento, com
uma única exceção. O ápice prognosticado para a Arábia Saudita na
primeira década do século XXI fica pouco aquém desse nível.
Esses jovens fornecem os recrutas para as organizações e os
movimentos políticos fundamentalistas islâmicos. Talvez não seja intei-
ramente por coincidência que a proporção de jovens na população
iraniana subiu de forma espetacular nos anos 70, atingindo 20 por cento
i
na última metade daquela década, e que a Revolução Iraniana ocorreu
1 em 1979, ou que essa proporção foi atingida na Argélia no início dos
anos 90, justamente quando a FIS fundamentalista islâmica estava
conquistando o apoio popular e logrando vitórias eleitorais.
Também ocorrem algumas variações regionais no bolsão de jovens,
que podem ter algum significado (ver Figura 5.3). Embora esses dados
tenham que ser tratados com cautela, as projeções sugerem que as
proporções de jovens bósnios e albaneses vão declinar de forma abrupta
na virada do século, o que poderia facilitar a paz com a antiga Iugoslávia
ou encorajar mais violências sérvias e croatas contra os muçulmanos. o
bolsão de jovens irá, por outro lado, permanecer grande nos Estados do
Golfo. Em 1988, o príncipe herdeiro Abdullah, da Arábia Saudita, disse
que a maior ameaça para o seu país era o crescimento do fun-
damentalismo islâmico entre a juventude.37 Segundo essas projeções,
essa ameaça persistirá até bem adiante no século XXI.
QUADRO 5.1
BOLSÃO DE JOVENS NOS PAÍSES ISLÃMICOS
1970 1980 1990 2000 2010
Bahrein Azerbaijão Bangladesh Arábia Saudita Afeganistão
Bósnia Quirguízia Indonésia Kuwait Líbia
Casaquistão Tadjiquistão Iraque Tadjiquistão Omã
EAU Turcomenistão Jordânia Turcomenistão Quirguízia
Egito Malásia Marrocos Egito Malásia
Irã Paquistão Argélia Irã Paquistão
Turquia Sudão Síria
lêmen lêmen
Albânia Jordânia
Siria Iraque
Tunísia
Décadas nas quais o número de jovens de 15 a 24 anos de idade chegou ou deve chegar ao ápice em relação
ao total da população.
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FIGUAAS.3
Boi.SÕES DE JOVENS MUÇULMANOS POR REGIÃO
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1965 1970
Bálcãs
Ásia Central
1980 1990
- -+ - Oriente Médio
2000
Países do Golfo --• - Norte da África
2010
- <>- • Sudeste Asiático
--.- - Ásia Meridional
2020 2025
Fonte: Nações Unidas, Divisão de População, Departamento de Informação Econômica e Social e Análise de
Políticas, Wor1d Population Prospects, The 1994 Revision [Perspectivas para a População Mundial, A Revisão de
'
1994] (Nova York: Nações Unidas, 1995); Nações Unidas, Divisão de População, Departamento de Informação
Econômica e Social e Análise de Políticas, Sex and Age Distribution ofthe World Populations, The 1994 Revision
[Distribuição das Populações do Mundo por Sexo e Idade, a Revisão de 1994] (Nova York: Nações Unidas, 1994).
DESAFIOS EM MUTAÇÃO
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A ÜRDEM EMERGENTE
DAS CIVILIZAÇÕES
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CAPÍTULO 6
A Reconfiguração Cultural
da Política Mundial
1 políticas estão cada vez mais sendo redesenhadas para coincidir com as
fronteiras culturais: étnicas, religiosas e civilizacionais. As comunidades
culturais estão substituindo os blocos da Guerra Fria, e as linhas de fratura
entre as civilizações estão se tornando as linhas fundamentais de conflito
na política mundial.
Durante a Guerra Fria, um país podia ser não-alinhado, como
muitos eram, ou, como faziam alguns, podia mudar seu alinhamento de
um lado para outro. Os dirigentes de um país podiam fazer essas opções
em função das suas percepções dos seus interesses de segurança, suas
avaliações do equilíbrio de poder e suas preferências ideológicas. No
mundo novo, entretanto, a identidade cultural é o fator essencial para
moldar as associações e os antagonismos de um país. Enquanto que um
país podia evitar se alinhar no contexto da Guerra Fria, ele não pode
prescindir de identidade. A pergunta "De que lado você está?" foi
substituída pela pergunta muito mais fundamental "Quem você é?". Todos
os Estados precisam ter uma resposta para essa pergunta. A resposta -
sua identidade cultural - define o lugar desse Estado na política mundial,
seus amigos e seus inimigos.
Os anos 90 viram a erupção de uma crise mundial de identidade.
Praticamente, para onde quer que se olhe, depara-se com as pessoas se
perguntando "Quem somos?", "Qual o nosso lugar?" e "Quem não é como
nós?". Essas indagações são essenciais não apenas para os povos que
estão tentando forjar novos Estados-nações, como na antiga Iugoslávia,
mas também de forma muito mais genérica. Em meados dos anos 90, os
países nos quais as questões referentes à identidade nacional eram
debatidas de forma ativa incluíam, entre outros, os seguintes: Argélia,
Canadá, China, Alemanha, Grã-Bretanha, Índia, Irã, Japão, México,
Marrocos, Rússia, África do Sul, Síria, Tunísia, Turquia, Ucrânia e Estados
Unidos. As questões de identidade são, é claro, particularmente impor-
tantes em países fendidos, que contam com grupos consideráveis de
pessoas de civilizações diferentes.
Ao lidar com uma crise de identidade, o que conta para as pessoas
é sangue e crença, fé e família. As pessoas se congregam com as que
têm semelhanças de ascendência, religião, idioma, valores e instituições,
e se distanciam daquelas com diferenças nesses aspectos. Na Europa, a
Áustria, a Finlândia e a Suécia, culturalmente parte do Ocidente, tiveram
que se manter divorciadas do Ocidente e neutras durante a Guerra Fria
'
e atualmente estão em condições de se juntar a seus semelhantes culturais
na União Européia. Os países católicos e protestantes do antigo Pacto de
Varsóvia - Polônia, Hungria, República Checa e Eslováquia - estão se
encaminhando para ingressarem na União Européia e na OTAN, e os
Estados bálticos estão entrando na fila atrás deles. As potências européias
deixam claro que não querem um Estado muçulmano, a Turquia, na
União Européia, e não vêem com agrado a existência de um segundo
Estado muçulmano, a Bósnia, no continente europeu. Ao norte, o fim da
União Soviética estimulou o surgimento de novos (e antigos) padrões de
associação entre as repúblicas do Báltico e também entre estas, a Suécia
e a Finlândia. O primeiro-ministro sueco recordou expressamente à
Rússia que as repúblicas do Báltico fazem parte do "exterior próximo"
da Suécia e que esta não poderia permanecer neutra na eventualidade
de uma agressão russa contra elas.
Nos Bálcãs, ocorrem realinhamentos semelhantes. Durante a Guerra
Fria, a Grécia e a Turquia pertenciam à OTAN, a Bulgária e a Romênia
1CÀ
pertenciam ao Pacto de Varsóvia, a Iugoslávia era não-alinhada e a
Albânia era um país isolado em algum momento associado à China
comunista. Atualmente, esses alinhamentos da época da Guerra Fria estão
cedendo lugar a alinhamentos civilizacionais baseados no Islamismo e
na Ortodoxia. Os líderes balcânicos falam de concretizar uma aliança
ortodoxa greco-sérvio-búlgara. O primeiro-ministro grego alega que as
"guerras balcânicas (. .. ) trouxeram à tona a reverberação dos laços
ortodoxos.(. .. ) isso constitui um vínculo. Ele estava latente, porém, com
os acontecimentos nos Bálcãs, está assumindo substância concreta. Num
mundo muito fluido, as pessoas estão em busca de identidade e de
segurança. As pessoas estão procurando raízes e ligações para se
defenderem do desconhecido". Essas opiniões são repetidas pelo líder
do principal partido de oposição na Sérvia: "A situação no sudeste
europeu logo exigirá a formação de uma nova aliança balcânica de países
ortodoxos, inclusive a Sérvia, a Bulgária e a Grécia, a fim de resistir aos
avanços do Islã." Olhando para o norte, a Sérvia e a Romênia ortodoxas
cooperam intimamente com a Hungria católica. Com o desaparecimento
da ameaça soviética, a aliança "antinatural" entre Grécia e Turquia fica
sem sentido, à medida que se intensificam os conflitos entre elas por
causa do Mar Egeu, de Chipre, do seu equilíbrio militar, seus papéis na
OTAN e na União Européia, e seus respectivos relacionamentos com os
Estados Unidos. A Turquia reafirma seu papel de protetora dos muçul-
manos balcânicos e proporciona apoio à Bósnia. Na antiga Iugoslávia, a
Rússia apóia a Sérvia ortodoxa, a Alemanha promove a Croácia católica,
os países muçulmanos acorrem em apoio do governo da Bósnia e os
sérvios combatem os croatas, os muçulmanos bósnios e os muçulmanos
albaneses. De modo generalizado, os Bálcãs voltaram a ficar balcanizados
segundo linhas religiosas. Como assinalou Misha Glenny, "estão surgindo
dois eixos, um envergando o traje da ortodoxia oriental e o outro coberto
com as vestes islâmicas", e existe a possibilidade de "uma luta cada vez
maior por influência entre o eixo Belgrado-Atenas e a aliança Albânia-
Turquia" .1
Enquanto isso, na antiga União Soviética, a Bielo-Rússia, a Moldova
e a Ucrânia ortodoxas gravitam em direção à Rússia, e os armênios e azeris
lutam entre si enquanto seus parentes russos e turcos tentam, ao mesmo
tempo, apoiá-los e conter o conflito. O exército russo luta contra fun-
damentalistas muçulmanos no Tadjiquistão e nacionalistas muçulmanos na
Chechênia. As ex-repúblicas soviéticas muçulmanas trabalham para desen-
volver e expandir seus laços com seus vizinhos muçulmanos, enquanto
1 'i'i
--~
156
aos otomanos contra os Habsburgos. Além disso, padrões de associação
formados para atender aos propósitos de Estados numa era persistirão
na era seguinte. Entretanto, eles têm a probabilidade de se tornarem mais
fracos e terem menos sentido, sendo então adaptados para atender os
propósitos da nova era. A Grécia e a Turquia continuarão, sem dúvida
alguma, como membros da OTAN, porém seus vínculos com outros
membros da OTAN provavelmente irão se atenuar. O mesmo acontecerá
com as alianças dos Estados Unidos com o Japão e com a Coréia do Sul,
sua aliança defacto com Israel e seus laços de segurança com o Paquistão.
Organizações internacionais multicivilizacionais, como a ASEAN, podem
defrontar-se com dificuldade crescente para manter sua coerência. Países
como a Índia e o Paquistão, que eram parceiros de diferentes superpo-
tências durante a Guerra Fria, agora redefinem seus interesses e procuram
novas associações que reflitam as realidades da política cultural. Os países
africanos que dependiam do apoio ocidental, configurado para se
contrapor à influência soviética, olham agora cada vez mais para a África
do Sul em busca de liderança e ajuda.
Por que devem os aspectos culturais em comum facilitar a coope-
ração e a coesão entre os povos e devem as diferenças culturais promover
fissuras e conflitos?
Em primeiro lugar, todos têm identidades múltiplas que podem
competir umas com as outras e reforçar umas em relação às outras:
identificações por parentesco, ocupação, cultura, instituição, território,
educação, partidarismo, ideologia, entre outras. Identificações em função
de uma dimensão podem se chocar com as relativas a outra dimensão.
Um caso clássico é o dos trabalhadores alemães em 1914, que tiveram
que escolher entre a identificação de classe com o proletariado interna-
cional e sua identificação nacional com o povo e o império alemães. No
mundo contemporâneo, a identificação por cultura está aumentando de
importância de forma espetacular em comparação com outras dimensões
de identificação.
No contexto de qualquer dimensão isolada, a identificação geral-
mente tem mais significação no nível imediato de pessoa para pessoa.
Entretanto, identificações mais estreitas não entram necessariamente em
conflito com identificações mais amplas. Um oficial pode se identificar,
em termos institucionais, com sua companhia, regimento, divisão e força.
Analogamente, uma pessoa pode se identificar culturalmente com seu
clã, grupo étnico, nacionalidade, religião e civilização. A maior proemi-
nência da identificação cultural nos níveis inferiores bem pode reforçar
157
sua proeminência em níveis superiores. Como sugeriu Burke, "o amor
pelo todo não se extingue por essa simpatia subordinada. (. . .) Sentir-se
ligado à subdivisão, amar o pequeno pelotão a que pertencemos na
sociedade, é o primeiro princípio (a semente, por assim dizer) das afeições
das pessoas". Num mundo em que a cultura conta, os pelotões são as tribos
e os grupos étnicos, os regimentos são as nações e os exércitos são as
civilizações. O grau maior com que as pessoas, pelo mundo afora, se
diferenciam entre si segundo linhas culturais significa que os conflitos entre
os grupos culturais são cada vez mais importantes. As civilizações são as
entidades culturais mais amplas e, por conseguinte, os conflitos entre os grupos
de diferentes civilizações se tomam fundamentais para a política mundial.
Em segundo lugar, como se expõe nos Capítulos 3 e 4, a maior
proeminência da identificação pela cultura é, em grande parte, resultado
da modernização sócio-econômica tanto no nível individual, no qual o
transtorno e a alienação criam a necessidade de identificações mais
significativas, como no nível societário, no qual a maior capacidade e o
maior poder das sociedades não-ocidentais estimulam a revitalização das
identidades e cultura autóctones. O surgimento simultâneo de movimen-
tos "fundamentalistas" em praticamente todas as religiões principais é
uma manifestação desse desdobramento, e la revanche de Dieu não está
restrita aos grupos fundamentalistas.
Em terceiro lugar, a identificação em qualquer nível - pessoal,
tribal, racial, civilizacional - só pode ser definida em relação a uma "outra"
- uma pessoa, tribo, raça ou civilização diferente. Historicamente, as
relações entre Estados ou outras entidades de uma mesma civilização
diferem das relações entre Estados ou outras entidades de civilizações
diferentes. Códigos separados governam o comportamento para com
aqueles que são "como nós" e os "bárbaros", que não são. As regras das
nações da Cristandade para lidarem umas com as outras eram diferentes
daquelas para lidarem com os turcos e outros "pagãos". Os muçulmanos
agiam de forma diferente para com os do Dar al-Islam e os do Dar al-harb.
Os chineses tratavam os estrangeiros chineses e os estrangeiros não-chineses
de maneira diferente. O "nós" civilizacional e o "eles" extracivilizacional
é uma constante na História da Humanidade. Essas diferenças de
comportamento intracivilizacional e extracivilizacional provêm de:
158
j
2. receio de tais pessoas e falta de confiança nelas;
3. dificuldade de comunicação com elas em decorrência de diferen-
ças de idiomas e do que se considera como comportamento
educado;
4. falta de familiaridade com os pressupostos, as motivações, os
relacionamentos sociais e as práticas sociais de outras pessoas.
159
significado histórico, cultural e emocional para ambos os povos em cada
uma dessas questões. Analogamente, não é provável que ou as autori-
dades francesas ou os pais muçulmanos aceitem uma fórmula de acomo-
dação que permitiria que as meninas usassem vestimentas muçulmanas dia
sim e outro não para ir às aulas. Questões culturais como essas envolvem
uma escolha entre sim e não, uma opção entre extremos opostos.
Em quinto e último lugar, está a ubiqüidade do conflito. Odiar é
humano. Para sua autodefinição e motivação, as pessoas precisam de
inimigos: concorrentes nos negócios, rivais nas realizações, adversários
na política. Elas naturalmente desconfiam daqueles que são diferentes e
que têm a capacidade de lhes causar prejuízo e as vêem como ameaças.
A resolução de um conflito e o desaparecimento de um inimigo geram
forças pessoais, sociais e políticas que fazem surgir outros. Como disse
Ali Mazrui, "a tendência do 'nós' contra 'eles' é, na arena política, quase
universal". 2 No mundo contemporâneo, o "eles" tem uma probabilidade
cada vez maior de se referir a pessoas de uma civilização diferente. O
fim da Guerra Fria não acabou com os conflitos, fez surgirem novas
identificações enraizadas na cultura e novos padrões de conflitos entre
grupos de culturas diferentes que, em seu nível mais amplo, são
civilizações. Simultaneamente, a cultura em comum também estimula a
cooperação entre Estados e grupos que compartilham dessa cultura,
como pode ser visto nos padrões que estão surgindo de associação
regional entre países, especialmente no campo econômico.
160
podem ser rachadas por conflitos intercivilizacionais e intracivilizacionais.
As regiões são a base para a cooperação entre os Estados, unicamente
na medida em que a geografia coincida com a cultura. Divorciada da cultura,
a propinqüidade não gera por si só aspectos em comum e pode mesmo
induzir exatamente o oposto. As alianças militares e as associações econô-
micas requerem a cooperação entre os seus membros, a cooperação
depende da confiança e a confiança brota mais facilmente de valores e
cultura em comum. Em conseqüência, embora o tempo de existência e
a finalidade também tenham relevância, a eficácia total das organizações
regionais em geral varia na proporção inversa da diversidade civilizacio-
nal de seus membros. De forma generalizada, as organizações de uma
só civilização fazem e conseguem mais coisas do que as organizações
multicivilizacionais. Isso se aplica tanto a organizações políticas e de
segurança, de um lado, como a organizações econômicas, de outro.
O êxito da OTAN resultou em grande parte do fato de ela ser a
organização de segurança fundamental de países ocidentais com valores
e pressupostos filosóficos em comum. A União Européia Ocidental é o
produto de uma cultura européia comum. A Organização para a Segu-
rança e a Cooperação na Europa, por outro lado, inclui países de pelo
menos três civilizações, com valores e interesses bastante diferentes, o
que cria grandes obstáculos a que ela desenvolva uma identidade
institucional importante e uma vasta gama de atividades importantes. A
Comunidade do Caribe (Caricom), de uma única civilização, composta
de 13 ex-colônias britânicas anglófonas, criou grande variedade de
arranjos de cooperação, com uma cooperação mais intensa entre alguns
subgrupos. Entretanto, as tentativas de criação de organizações caribe-
nhas mais amplas, passando por cima da linha de fratura anglo-hispânica
no Caribe, fracassaram de modo sistemático. Analogamente, a Associação
para a Cooperação Regional da Ásia Meridional, formada em 1985 e
abrangendo sete Estados hindus, muçulmanos e budistas, foi quase
inteiramente ineficiente, chegando mesmo ao ponto de não conseguir
realizar reuniões.3
A relação da cultura com o regionalismo fica mais evidente no
contexto da integração econômica. Partindo da menor para a maior
integração, reconhecem-se quatro níveis de associação econômica entre
países:
1/;;1
3. mercado comum
4. união econômica
A União Européia foi a que avançou mais longe pela estrada da
integração, com um mercado comum e muitos dos elementos de uma
união econômica. Os países relativamente homogêneos do Mercosul e
do Pacto Andino estavam, em 1994, em vias de estabelecer uma união
aduaneira. Na Ásia, a ASEAN, multicivilizacional, só começou a se mover
na direção de desenvolver uma área de livre comércio em 1992. Outras
organizações econômicas multicivilizacionais ficaram ainda mais para
trás. Em 1995, com a exceção marginal da NAFTA, nenhuma organização
desse tipo havia criado uma área de livre comércio, muito menos
qualquer forma mais ampla de integração econômica.
Na Europa Ocidental e na América Latina, os aspectos civilizacionais
em comum induzem à cooperação e à organização regional. Os europeus
ocidentais e os latino-americanos sabem que têm muito em comum. Na
Ásia Oriental, há cinco civilizações (seis se for incluída a Rússia).
Conseqüentemente, a Ásia Oriental constitui o caso-teste para o desen-
volvimento de organizações efetivas que não estejam baseadas em
civilização em comum. Ao se chegar ao começo dos anos 90, não havia
na Ásia Oriental nenhuma organização de segurança ou aliança militar
multilateral comparável à OTAN. Uma organização regional multicivili-
zacional, a ASEAN, foi criada em 1967, com um Estado sínico, dois
muçulmanos, um budista e um cristão, todos eles confrontados por ativos
desafios de subversão comunista e de desafios em potencial por parte
do Vietnã do Norte e da China.
A ASEAN é mencionada freqüentemente como um exemplo de uma
organização multicivilizacional eficaz. Contudo, ela é um exemplo dos
limites de uma organização desse tipo. Ela não é uma aliança militar.
Conquanto seus membros às vezes cooperem numa base bilateral, eles
também estão expandindo seus orçamentos militares e estão engajados
em programas de rearmamento, num contraste flagrante com as reduções
que estão fazendo os países europeus ocidentais e latino-americanos. Na
frente econômica, a ASEAN foi desde o início projetada para conseguir
"a cooperação econômica mais do que a integração econômica"; em
conseqüência, o regionalismo se desenvolveu em um "ritmo modesto" e
até mesmo uma área de livre comércio não está contemplada antes do
século XXI.4 Em 1978, a ASEAN criou as Conferências Pós-ministeriais,
nas quais os seus ministros do Exterior se encontram com os dos
162
"Parceiros do Diálogo": Estados Unidos, Japão, Canadá, Austrália, Nova
Zelândia, Coréia do Sul e a União Européia. Essa conferência, entretanto,
tem sido essencialmente um foro para conversações bilaterais e não foi
capaz de lidar com "quaisquer questões de segurança importantes".5 Em
1993, a ASEAN gerou uma arena ainda maior, o Fórum Regional da ASEAN,
que inclui os seus membros e os parceiros de diálogo, e mais Rússia, China,
Vietnã, Laos e Papua Nova Guiné. Contudo, como seu nome indica, esse
órgão é um local para conversas coletivas, não para ação coletiva. Os
membros usaram sua primeira reunião, em julho de 1994, para "ventilar
suas opiniões sobre questões regionais de segurança", porém foram
evitadas questões controvertidas porque, como comentou um funcioná-
rio, se elas fossem suscitadas, "os participantes envolvidos começariam a
se atacar mutuamente". 6 A ASEAN e seus filhotes demonstram as limitações
inerentes às organizações regionais multicivilizacionais.
Só surgirão organizações regionais de peso na Ásia Oriental se
houver aspectos culturais comuns asiático-orientais suficientes para
sustentá-las. As sociedades asiático-orientais sem dúvida compartilham
de algumas coisas em comum, que as diferenciam do Ocidente. O
primeiro-ministro da Malásia, Mahatir Mohammad, afirma que esses
aspectos culturais em comum proporcionam uma base para associação e,
fundamentando-se nela, promoveu a formação do Foro Econômico Asiáti-
co-oriental [East Asian Economic Caucus - EAEC]. Ele incluiria os países
da ASEAN, Myanmar, Taiwan., Hong Kong, Coréia do Sul e, o que é mais
importante, a China e o Japão. Mahatir sustenta que o EAEC está baseado
numa cultura comum. Ele deve ser considerado "não apenas como um
grupo geográfico, porque está na Ásia Oriental, mas também como um grupo
cultural. Embora os asiático-orientais possam ser japoneses, coreanos ou
indonésios, eles têm certas semelhanças do ponto de vista cultural. (. .. )Os
europeus tendem a se congregar e os norte-americanos tendem a se congregar.
Nós, asiáticos, também deveríamos nos congregar". Segundo disse um dos
correligionários de Mahatir, o objetivo do EAEC é aumentar "o comércio
internacional entre países que têm aspectos em comum aqui na Ásia".7
A premissa subjacente do EAEC é, portanto, a de que a economia
segue a cultura. A Austrália, a Nova Zelândia e os Estados Unidos estão
excluídos do EAEC porque, culturalmente, eles não são asiáticos. Entre-
tanto, o êxito do EAEC depende sobretudo da participação do Japão e
da China. Mahatir implorou aos japoneses que ingressassem na organi-
zação. Dirigindo-se a uma platéia japonesa, assinalou que "O Japão é
asiático. O Japão pertence à Ásia Oriental. Vocês não podem desviar-se
163
desse fato geocultural. O seu lugar é aqui". 8 Mas o governo japonês
relutou em entrar para o EAEC, em parte por receio de irritar os Estados
Unidos e em parte porque estava dividido quanto a se o Japão devia se
identificar com a Ásia. Se o Japão ingressar no EAEC, irá dominá-lo, o
ue provavelmente causará receios e incertezas entre seus membros, bem
q h. D , .
como intenso antagonismo por parte da C ma. urante vanos a~os,
muito se falou sobre a criação pelo Japão de um "bloco do iene" na Asia
a fim de contrabalançar a União Européia e o NAFTA. O Japão, contudo,
é um país solitário, com poucas ligações culturais com seus vizinhos e,
ao se chegar a 1995, não se havia concretizado nenhum bloco do iene.
Apesar de a ASEAN evoluir lentamente, o bloco do iene contin_uar
sendo um sonho e o EAEC não decolar, a interação econômica na Asia
Oriental se intensificou de forma espetacular. Essa expansão deu origem
a uma "ininterrupta integração informal" de uma economia internacional
de base chinesa, em muitos aspectos comparável à Liga Hanseática e
"talvez conduzindo a um mercado comum chinês de facto" 9 (ver PP·
210-218). Na Ásia Oriental, como em outras áreas, os aspectos culturais
em comum foram o pré-requisito para uma integração econômica
significativa.
O fim da Guerra Fria estimulou esforços para a criação de novas
organizações econômicas regionais e a revitalização de outras dessas
organizações. O êxito desses esforços dependeu sobretudo da homogenei-
dade cultural dos Estados envolvidos. O plano de Shimon Peres, em 1994,
de um mercado comum do Oriente Médio, provavelmente continuará sendo
uma "miragem do deserto" ainda por algum tempo. Um funcionário árabe
comentou que "o mundo árabe não tem necessidade alguma de uma
instituição ou de um banco de desenvolvimento do qual Israel partici-
pe" .10 A Associação dos Estados Caribenhos, criada em 1994 para vincular
o Caricom ao Haiti e aos países de língua espanhola da região, mostra
poucos sinais de estar superando as diferenças lingüísticas e culturais de
seus membros diversos e a insularidade das ex-colônias britânicas, com sua
predominante orientação na direção dos Estados Unidos. 11
Por outro lado, esforços que envolvem organizações culturalmente
mais homogêneas estão progredindo. Embora divididos segundo linhas
subcivilizacionais, o Paquistão, o Irã e a Turquia reavivaram em 1985 a
moribunda Cooperação Regional para o Desenvolvimento, que tinham
criado em 1977, redesignando-a Organização de Cooperação Econômica.
Posteriormente lograram-se acordos sobre reduções tarifárias e uma
variedade de outras providências. Em 1992, a participação na OCE foi
164
expandida para incorporar o Afeganistão e as seis ex-repúblicas soviéticas
muçulmanas. Enquanto isso, em 1991, as cinco ex-repúblicas soviéticas
da Ásia Central acordaram em princípio criar um mercado comum e, em
1994, os dois maiores desses países - o Uzbequistão e o Casaquistão
- assinaram um acordo para permitir "a livre circulação de bens, serviços
e capitais" e para coordenar suas políticas fiscais, monetárias e aduanei-
ras. Em 1991, o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai se uniram no
Mercosul, com o objetivo de saltar por cima dos estágios normais de
integração econômica e, ao se chegar a 1995, havia sido implantada uma
união aduaneira parcial. Em 1990, o até então estagnado Mercado Comum
Centro-americano implantou uma área de livre comércio e, em 1994, o antes
igualmente passivo Grupo Andino criou uma união aduaneira. Em 1992, os
países de Visegrad (Polônia, Hungria, República Checa e Eslováquia)
acordaram em estabelecer uma Área de Livre Comércio Centro-Européia e,
em 1994, aceleraram o cronograma de sua concretização. 12
A expansão do comércio internacional acompanha a integração
econômica e, durante os anos 80 e começo dos anos 90, o comércio
intra-regional se tornou cada vez mais importante em relação ao comércio
inter-regional. O comércio no âmbito da (então) Comunidade Européia
correspondia a 50,6 por cento do total do comércio internacional da
Comunidade em 1980, e aumentou para 58,9 ao se chegar a 1989. Na
América do Norte e na Ásia Oriental, ocorreram alterações análogas no
comércio regional. Na América Latina, a criação do Mercosul e a
revitalização do Pacto Andino estimularam um surto do comércio intra-
latino-americano no começo dos anos 90 e, no período de 1990 a 1993,
o comércio entre Brasil e Argentina triplicou e o comércio entre Colômbia
e Venezuela quadruplicou. Em 1994, o Brasil substituiu os Estados Unidos
como o principal parceiro comercial da Argentina. A criação do NAFTA
também foi acompanhada, de modo análogo, por um aumento signifi-
cativo do comércio entre o México e os Estados Unidos. O comércio no
âmbito da Ásia Oriental também se expandiu com maior rapidez do que
o comércio extra-regional, porém essa expansão foi prejudicada pela
tendência do Japão de manter fechados os seus mercados. Por outro
lado, o comércio entre os países da zona cultural chinesa (ASEAN,
Taiwan, Hong Kong, Coréia do Sul e China) cresceu de menos de 20 por
cento do seu total em 1970 para quase 30 por cento do total em 1992,
enquanto a parcela desse comércio correspondente ao Japão declinou
de 23 para 13 por cento. Em 1992, as exportações dos países da zona
chinesa para países de outras zonas ultrapassaram tanto suas exportações
para os Estados Unidos como a soma de suas exportações para o Japão
e a Comunidade Européia. 13
o Japão, na condição de sociedade e civilização com características
próprias, enfrenta dificuldades para desenvolver seus laços econômicos
com a Ásia Oriental e para lidar com suas divergências econômicas com
os Estados Unidos e a Europa. A despeito do vigor dos vínculos de
comércio e de investimentos que o Japão possa forjar com outros países
da Ásia Oriental, suas diferenças culturais com esses países e, em especial,
com suas elites econômicas predominantemente chinesas o impedem de
criar um agrupamento econômico regional de liderança japonesa com-
parável ao NAFTA ou à União Européia. Ao mesmo tempo, suas
diferenças culturais com o Ocidente exacerbam os mal-entendidos e os
antagonismos no seu relacionamento econômico com os Estados Unidos
e a Europa. Se, como parece ser o caso, a integração econômica depende
de aspectos culturais em comum, o Japão, na condição de país cultural-
mente isolado, poderia ter um futuro economicamente isolado.
No passado, os padrões· do comércio internacional entre as
nações acompanharam e espelharam os padrões das alianças entre
elas.14 No mundo que está surgindo, os padrões do comércio interna-
cional sofrerão de forma decisiva a influência dos padrões de cultura.
Os homens de negócios fazem transações com pessoas que eles
podem compreender e em quem podem confiar; os Estados cedem
soberania a associações internacionais compostas de Estados de
mentalidade semelhante, os quais podem compreender e nos quais
podem confiar. As raízes da cooperação econômica se encontram nos
aspectos culturais em comum.
166
membros de outra civilização. Geralmente as civilizações têm um ou mais
lugares considerados por seus membros como a principal fonte ou fontes
da cultura dessa civilização. Essas fontes estão freqüentemente localizadas
dentro do Estado-núcleo ou dos Estados-núcleos da civilização respectiva,
ou seja, seus Estados mais poderosos e culturalmente importantes.
O número e o papel dos Estados-núcleos variam de uma civilização
para outra e podem se modificar ao longo do tempo. A civilização
japonesa é virtualmente idêntica ao único Estado-núcleo. japonês. As
civilizações sínica, ortodoxa e hindu têm, cada uma, um único Estado-
núcleo amplamente predominante, outros Estados-membros e pessoas
filiadas à sua civilização vivendo em Estados dominados por pessoas de
uma civilização diferente (os chineses de ultramar, os russos do "exterior
próximo", os tâmiles de Sri Lanka). Historicamente, o Ocidente em geral
teve vários Estados-núcleos. Atualmente ele possui dois núcleos - os
Estados Unidos e um núcleo franco-germânico na Europa, com a
Grã-Bretanha sendo um centro de poder adicional vagando entre os dois.
O Islã, a América Latina e a África carecem de Estados-núcleos. Isso se
deve em parte ao imperialismo das potências ocidentais, que dividiram
entre si a África, o Oriente Médio e, em séculos anteriores e de forma
menos decisiva, a América Latina.
A inexistência de um Estado-núcleo islâmico representa um proble-
ma grande tanto para as sociedades muçulmanas como para as não-mu-
çulmanas, como se examina no Capítulo 5. Com relação à América Latina,
pode-se conceber que a Espanha poderia ter se tomado o Estado-núcleo
de uma civilização de fala hispânica ou até mesmo de uma civilização
ibérica, porém seus líderes optaram conscientemente por se tomar um
Estado-membro da civilização européia, mantendo ao mesmo tempo
vínculos culturais com suas antigas colônias. Tamanho, recursos naturais,
população, capacidade militar e econômica qualificam o Brasil para ser
o líder da América Latina e é concebível que ele possa vir a sê-lo.
Entretanto, o Brasil está para a América Latina como o Irã está para o
Islã. Embora tenha outras boas qualificações para ser um Estado-núcleo,
há diferenças subcivilizacionais (religiosas no caso do Irã e lingüísticas
no do Brasil) que tornam difícil para ele assumir esse papel. A América
Latina possui vários Estados - Brasil, México, Venezuela e Argentina -
que partilham uma liderança e competem por ela. A situação latino-ame-
ricana é também complicada pelo fato de que o México tentou se
redefinir, passando de uma identidade latino-americana para outra,
norte-americana, e o Chile e outros Estados podem segui-lo. No final, a
civilização latino-americana poderia fundir-se com uma civilização oci-
dental de três pontas, tomando-se uma subvariante dela.
A capacidade que tem qualquer Estado-núcleo em potencial de
prover uma liderança na África fica limitada pela divisão entre países
francófonos e anglófonos. Durante certo tempo, a Costa do Marfim foi o
Estado-núcleo da África francófona. Contudo, em certa medida, o
Estado-núcleo da África francesa tem sido a França, que, depois da
independência, manteve estreitas ligações econômicas, militares e polí-
ticas com suas antigas colônias. Os dois Estados africanos mais qualifi-
cados para se tomarem Estados-núcleos são, ambos, anglófonos. Tama-
nho, recursos naturais e localização fazem da Nigéria um Estado-núcleo
em potencial, porém sua desunião intercivilizacional, corrupção maciça,
instabilidade política, governos repressivos e problemas econômicos
limitaram drasticamente sua capacidade de desempenhar esse papel,
embora o tenha feito em algumas ocasiões. A transição negociada e
pacífica do apartheid da África do Sul, seu vigor industrial, seu nível mais
alto de desenvolvimento econômico comparado com os outros países
africanos, sua capacidade militar, seus recursos naturais e sua sofisticada
liderança política negra e branca, tudo isso assinala nitidamente a África
do Sul como o líder da África Meridional, como o provável líder da África
anglófona e o possível líder de toda a África subsaárica.
Um país solitário carece de aspectos culturais em comum com outras
sociedades. A Etiópia, por exemplo, é isolada culturalmente por seu
idioma predominante, o amárico, escrito com caracteres etíopes, por sua
religião predominante, a Ortodoxia Copta, por sua história imperial e por
sua diferenciação dos povos circunvizinhos, predominantemente muçul-
manos. Conquanto a elite do Haiti tenha tradicionalmente tido prazer nos
seus laços culturais com a França, o idioma crioulo, a religião Vodu, as
origens de escravos revolucionários e a história de brutalidades do Haiti
fazem dele um país solitário. Sidney Mintz assinalou que "toda nação é
singular, porém o Haiti ocupa uma categoria só sua". Como conseqüên-
cia, durante a crise haitiana de 1994, os países latino-americanos não
encararam o Haiti como um problema latino-americano e não se dis-
puseram a aceitar refugiados haitianos, embora recebessem refugiados
cubanos. Como colocou o presidente eleito do Panamá, "na América
Latina, o Haiti não é reconhecido como um país latino-americano. Os
haitianos falam uma língua diferente. Eles têm raízes étnicas diferentes,
uma cultura diferente. Eles são, de forma geral, muito diferentes". O Haiti
está igualmente separado dos países negros anglófonos do Caribe. Um
1t-;Q
comentarista observou que os haitianos parecem "exatamente tão estra-
nhos para alguém de Granada ou Jamaica como para alguém de Iowa
ou Montana". O Haiti, "o vizinho que ninguém quer ter", é verdadeira-
mente um país sem parentes.15
O país solitário mais importante é o Japão, que é também o
Estado-núcleo e único da civilização japonesa. Nenhum outro país
compartilha de sua cultura própria, e os imigrantes japoneses não são
nem numericamente significativos em outros países nem foram assimilados
pelas culturas desses países (por exemplo, os nipo-americanos). A solidão
do Japão é acentuada ainda mais pelo fato de que sua cultura é profun-
damente particularista e não envolve uma religião potencialmente universal
(Cristianismo, Islamismo) ou ideologia (liberalismo, comunismo) passível
de ser exportada para outras sociedades e assim estabelecer uma ligação
cultural com pessoas nessas sociedades.
Quase todos os países são heterogêneos pela circunstância de
incluírem dois ou mais grupos étnicos, raciais e religiosos. Muitos países
estão divididos pelo fato de que as diferenças e conflitos entre esses
grupos desempenham um papel importante na política do país. A
importância dessa divisão geralmente se modifica com o tempo. Divisões
profundas dentro de um mesmo país podem levar à ampla violência ou
a ameaçar a existência do país. Essa última ameaça e os movimentos por
autonomia ou separação são os que têm maior probabilidade de aparecer
quando as diferenças culturais coincidem com diferenças em localização
geográfica. Se a cultura e a geografia não coincidem, elas podem ser
obrigadas a coincidir quer através de genocídio quer de migração forçada.
Países que contêm agrupamentos culturais distintos e pertencem a
uma mesma civilização podem ficar profundamente divididos, com a
separação vindo a ocorrer (Checoslováquia) ou sendo uma possibilidade
(Canadá). Entretanto, as divisões profundas têm muito mais proba-
bilidade de surgir dentro de um país fendido, no qual grupos grandes
pertencem a civilizações diferentes. As divisões e tensões que lhes são
características muitas vezes se desenvolvem quando um grupo majoritá-
rio pertencente a uma civilização tenta definir o Estado como o seu
instrumento político e tornar seu idioma, religião e símbolos como sendo
os do Estado. Assim tentaram fazer os hindus, os cingaleses e os
muçulmanos na Índia, em Sri Lanka e na Malásia, respectivamente.
Os países fendidos que territorialmente ficam por cima das linhas
de fratura entre civilizações se defrontam com problemas específicos para
lfi<)
preservar sua unidade. No Sudão, a guerra civil se arrasta há décadas
entre o Norte muçulmano e o Sul predominantemente cristão. A mesma
divisão civilizacional tem perseguido a política nigeriana durante período
semelhante, estimulando uma grande guerra de secessão, além de golpes,
agitações e outros tipos de violência. Na Tanzânia, a parte continental,
onde predomina um animismo cristão, e Zanzibar, que é árabe-muçul-
mana, foram se afastando e, em muitos aspectos, tornaram-se dois países
separados, tendo Zanzibar, em 1992, se unido secretamente à Organiza-
ção da Conferência Islâmica e sido induzida pela Tanzânia a se retirar
no ano seguinte. 16 A mesma divisão cristão-muçulmana gerou tensões e
conflitos no Quênia. No chifre da África, a Etiópia, predominantemente
cristã, e a Eritréia, predominantemente muçulmana, se separaram em
1993. Entretanto a Etiópia ficou com considerável minoria muçulmana
entre o seu povo Oramo. Dentre outros países divididos por linhas de
fratura civilizacionais estão: Índia (muçulmanos e hindus), Sri Lanka
(budistas cingaleses e hindus tâmiles), Malásia e Singapura (chineses e
muçulmanos malaios), China (chineses Han, budistas tibetanos, muçulma-
nos túrquicos), Filipinas (cristãos e muçulmanos) e Indonésia (muçul-
manos e cristãos timorenses).
O efeito divisório das linhas de fratura civilizacionais foi mais
notável nos países fendidos que foram mantidos coesos durante a Guerra
Fria por regimes comunistas autoritários, legitimados pela ideologia
marxista-leninista. Com o colapso do comunismo, a cultura substituiu a
ideologia como o pólo de atração ou repulsão, e a Iugoslávia e a União
Soviética se esfacelaram e se dividiram em novas entidades agrupadas
segundo linhas civilizacionais: as repúblicas bálticas (protestantes e
católicas), ortodoxas e muçulmanas na antiga União Soviética; a Eslovênia
e a Croácia católicas, a Bósnia-Herzegovina parcialmente muçulmana e
a Sérvia-Montenegro e a Macedônia ortodoxas na antiga Iugoslávia. Nos
casos em que essas entidades sucessoras ainda abrangiam grupos
multicivilizacionais, ocorreram divisões de segunda etapa. A Bósnia-Her-
zegovina foi dividida por uma guerra entre segmentos sérvios, muçulma-
nos e croatas, e a Croácia foi partida entre sérvios e croatas. É altamente
duvidoso que se preserve a posição pacífica de Kosovo, muçulmano
albanês, dentro de uma Sérvia ortodoxa eslava. Na Macedônia, cresceram
as tensões entre a minoria de muçulmanos albaneses e a maioria ortodoxa
eslava. Muitas das ex-repúblicas soviéticas também estão sobre linhas de
fratura civilizacionais, em parte porque o governo soviético traçava os
limites visando a criar repúblicas divididas: a Criméia russa passou para
170
a Ucrânia, o Nagomo-Karabakh armênio passou para o Azerbaijão. A
Rússia possui várias minorias muçulmanas, relativamente pequenas,
principalmente no Cáucaso setentrional e na região do Volga. A Estônia,
a Letônia e o Casaquistão possuem consideráveis minorias russas,
também criadas em boa medida por diretrizes soviéticas. A Ucrânia está
dividida entre o ocidente que fala ucraniano, é uniata e nacionalista, e o
oriente que fala russo e é ortodoxo.
Num país fendido, os grupos principais de duas ou mais civiliza-
ções, na prática, dizem "nós somos povos diferentes e pertencemos a
lugares diferentes". As forças de repulsão os separam e eles gravitam na
direção dos ímãs civilizacionais de outras sociedades. Um país dividido,
ao contrário, possui uma única cultura predominante, que o coloca numa
única civilização, porém seus dirigentes decidiram mudá-lo para outra
civilização. Na realidade, eles dizem "nós somos um povo e pertencemos,
juntos, a um lugar, porém queremos mudar esse lugar". Ao contrário das
pessoas de países fendidos, as pessoas de países divididos concordam a
respeito de quem são, porém discordam quanto a qual é a civilização
que lhes é mais apropriada. É típico que uma parcela significativa dos
dirigentes abrace uma estratégia kemalista e resolva que sua sociedade
deve repudiar sua cultura e suas instituições não-ocidentais, deve juntar-
se ao Ocidente e deve modernizar-se e ocidentalizar-se. A Rússia é um
país dividido desde Pedro, o Grande, indecisa em torno da questão de
se ela é parte da civilização ocidental ou se é o núcleo de uma
civilização eurasiana ortodoxa própria. O país de Mustafá Kemal é,
evidentemente, o país dividido clássico, que, desde os anos 20, vem
tentando se modernizar, se ocidentalizar e se tornar parte do Ocidente.
Quase dois séculos depois de o México ter se definido como um país
latino-americano em oposição aos Estados Unidos, na década de 80
seus dirigentes o transformaram num país dividido ao tentar redefini-lo
como uma sociedade norte-americana. Nos anos 90, os dirigentes da
Austrália tentaram, ao contrário, desligar seu país do Ocidente e
torná-lo parte da Ásia, criando assim um país-dividido-no-sentido-in-
verso. Podem-se identificar os países divididos por dois fenômenos.
Seus dirigentes se referem a eles como uma "ponte" entre duas culturas,
e os observadores os descrevem como Janus de duas faces. "A Rússia
olha para o Ocidente - e para o Oriente'', "Turquia: Leste, Oeste, qual
é o melhor?", "Nacionalismo australiano: lealdades divididas" - são
títulos típicos que realçam os problemas de identidade de um país
dividido. 17
1 "'11
PAÍSES DIVIDIDOS: O FRACASSO DA MUDANÇA DE CIVILIZAÇÃO
Rússia. Nos anos 90, o México era um país dividido havia vários
anos e a Turquia havia várias décadas. A Rússia, ao contrário, era um
país dividido havia vários séculos e, ao contrário do México ou da Turquia
republicana, era também o Estado-núcleo de uma grande civilização. Se
a Turquia ou o México tivessem se redefinido com êxito como membros
da civilização ocidental, o efeito sobre a civilização islâmica ou latino-
americana seria pequeno ou moderado. Se a Rússia se tornasse ocidental
a civilização ortodoxa deixaria de existir. O colapso da União Soviética'
gerou duas questões fundamentais: como deveria a Rússia se definir em
relação ao Ocidente? Quais deveriam ser as relações da Rússia com seus
parentes ortodoxos e com os novos países que haviam sido parte do
império soviético?
As relações da Rússia com a civilização ocidental evoluíram através
de quatro fases. Na primeira fase, que durou até o reinado de Pedro, o
Grande 0689-1725), Kievan Rus e Moscovy existiram separadamente do
Ocidente e tinham pouco contato com as sociedades européias ociden-
tais. A civilização russa se desenvolveu como um fruto da civilização
bizantina e depois, durante 200 anos, de meados do século XIII até
meados do século XV, a Rússia ficou sob a suserania mongol. A Rússia
não foi exposta, ou foi muito pouco exposta, aos fenômenos históricos
que definiram a civilização ocidental: o Catolicismo Romano, o feudalis-
mo, o Renascimento, a Reforma, a expansão e colonização ultramarina,
0
Iluminismo e o surgimento do Estado-nação. Das oito características
próprias da civilização ocidental anteriormente identificadas sete -
r~ligião, idiomas, separação entre Igreja e Estado, império da lei, plura-
lismo social, órgãos representativos, individualismo - estiveram pratica-
mente ausentes por completo da experiência russa. A única exceção
1 /"J
possível é a herança clássica que, contudo, chegou à Rússia através de
Bizâncio e, por conseguinte, foi bastante diferente da que chegou ao
Ocidente diretamente de Roma. A civilização russa foi um produto de
suas raízes autóctones em Kievan Rus e Moscovy, de um considerável
impacto bizantino e de um longo período de dominação mongol. Essas
influências moldaram uma sociedade e uma cultura que tinha pouca
semelhança com as que se desenvolveram na Europa ocidental, sob a
influência de forças muito diferentes.
No final do século XVII, a Rússia não só era diferente da Europa,
mas também era atrasada em relação à Europa, como Pedro, o Grande,
constatou durante seu giro pela Europa em 1697-1698. Ele regressou à
Rússia decidido a modernizar e ocidentalizar seu país. Para fazer com
que seu povo parecesse europeu, Ataturk proibiu o uso do fez. Com
objetivo semelhante, a primeira coisa que Pedro fez ao regressar a
Moscou foi obrigar os nobres a rasparem a barba e proibir o uso de
túnicas compridas e chapéus cônicos. Ataturk substituiu o alfabeto árabe
pelo latino; Pedro não aboliu o alfabeto cirílico, mas reformou-o e
simplificou-o, além de introduzir palavras e expressões ocidentais.
Entretanto, ele atribuiu prioridade máxima ao desenvolvimento e moder-
nização das forças armadas russas, criando uma marinha, adotando o
serviço militar obrigatório, implantando indústrias de material bélico,
criando escolas técnicas, enviando pessoas para estudar no Ocidente e
importando do Ocidente os últimos conhecimentos a respeito de arma-
mentos, navios e construção naval, navegação, administração burocrática
e outros assuntos essenciais para a eficácia militar. Para prover os recursos
para essas inovações, ele reformou e expandiu drasticamente o sistema
tributário e além disso, perto do final do seu reinado, reorganizou a
estrutura do governo. Decidido a fazer da Rússia não só uma potência
européia, como também uma potência na Europa, abandonou Moscou,
criou uma nova capital em São Petersburgo e desencadeou a Grande
Guerra do Norte contra a Suécia, a fim de estabelecer a Rússia como a
força predominante no Báltico e criar presença na Europa.
Entretanto, ao tentar fazer seu país moderno e ocidental, Pedro
também reforçou as características asiáticas da Rússia, ao aperfeiçoar o
despotismo e eliminar qualquer possível fonte de pluralismo social ou
político. A nobreza russa nunca fora poderosa. Pedro reduziu-a ainda
mais, expandindo a nobreza militar e estabelecendo uma Tabela de Graus
baseada no mérito e não no nascimento nem na posição social. Os
nobres, como os camponeses, eram convocados para o serviço do Estado,
formando a "aristocracia servil" que mais tarde enfureceu Custine. 18 A
autonomia dos servos foi ainda mais restringida na medida em que
ficaram vinculados de modo mais permanente tanto à terra quanto ao
seu senhor. A Igreja Ortodoxa, que sempre estivera debaixo de um
controle amplo do Estado, foi reorganizada e colocada sob um sínodo
que era designado diretamente pelo tzar. O tzar também passou a ter o
poder de designar seu sucessor sem referência às práticas vigentes de
herança. Com essas mudanças, Pedro iniciou e exemplificou a íntima
ligação na Rússia entre modernização e ocidentalização, por um lado, e
o despotismo por outro. Seguindo esse modelo petrino, Lênin, Stalin e,
em menor grau, Catarina II e Alexandre II também tentaram, de diversos
modos, modernizar e ocidentalizar a Rússia e fortalecer o poder autocrá-
tico. Pelo menos até os anos 80, os democratizadores da Rússia eram
geralmente ocidentalizadores, porém os ocidentalizadores não eram
democratizadores. A lição da história russa é a de que a centralização do
poder é o pré-requisito para as reformas sociais e econômicas. No final
dos anos 80, correligionários de Gorbachev lamentaram não terem
apreciado esse fato ao criticar os obstáculos que a glasnost havia criado
para a liberalização econômica.
Pedro teve mais êxito em tornar a Rússia parte da Europa do que
em tornar a Europa parte da Rússia. Ao contrário do Império Otomano,
o Império Russo veio a ser aceito como um participante importante e
legítimo do sistema internacional europeu. Internamente, as reformas de
Pedro introduziram algumas mudanças, porém sua sociedade continuou
híbrida: à parte uma pequena elite, os modos asiáticos e bizantinos, as
instituições e as crenças predominaram na sociedade russa, e assim se
percebia tanto por europeus como por russos. De Maistre assinalou que
"arranhe-se a pele de um russo e se encontra um tártaro". Pedro criou
um país dividido e, durante o século XIX, os eslavófilos e os ocidentali-
zadores lamentavam juntos essa situação infeliz e discordavam vigorosa-
mente a respeito de se deviam acabar com ela tornando-se inteiramente
ocidentalizados, ou eliminando as influências européias e retornando à
verdadeira alma da Rússia. Um ocidentalizador como Chaadaev sus-
tentava que "o sol é o sol do Ocidente" e a Rússia devia utilizar sua luz
para iluminar e modificar as instituições que herdara. Um eslavófilo como
Danilevskiy, com palavras que também foram ouvidas nos anos 90,
condenou os esforços europeinizadores por "deturparem a vida das
pessoas e substituírem suas formas com formas estranhas, estrangeiras",
"tomando emprestadas instituições estrangeiras e transplantando-as para
1""7Á
o solo russo" e "considerando as relações internas e externas, bem como
as questões da vida russa, através de uma ótica estrangeira, européia,
vendo-as, por assim dizer, através de uma lente moldada para um ângulo
de refração europeu". 19 Na história russa subseqüente, Pedro tornou-se
o herói dos ocidentalizadores e o satã dos seus oponentes, representados
em seu extremo pelos eurasianos dos anos 20, que o condenaram como
traidor e aplaudiram os bolcheviques por repudiarem a ocidentalização,
desafiarem a Europa e mudarem a capital de volta para Moscou.
A revolução bolchevista deu início a uma terceira fase do relacio-
namento entre a Rússia e o Ocidente, muito diferente do relacionamento
ambivalente que existira durante dois séculos. Ela criou um sistema
político-econômico que não podia existir no Ocidente, em nome de uma
ideologia que foi criada no Ocidente. Os eslavófilos e os ocidentalizado-
res tinham debatido se a Rússia podia ser diferente do Ocidente sem ser
atrasada em comparação com o Ocidente. O comunismo resolveu essa
questão de maneira brilhante: a Rússia era diferente do Ocidente e a ele
se opunha de forma fundamental, porque era mais avançada do que ele.
Ela estava assumindo a liderança da revolução proletária, que acabaria
por varrer o mundo. A Rússia personificava não um passado asiático
atrasado, mas sim um futuro soviético progressista. De fato, a Revolução
permitiu à Rússia saltar por cima do Ocidente, diferenciando-se dele não
porque "vocês são diferentes e nós não ficaremos como vocês", como
tinham argumentado os eslavófilos, mas porque "nós somos diferentes e
vocês acabarão ficando como nós", como dizia a mensagem da Interna-
cional Comunista.
Contudo, ao mesmo tempo em que o comunismo permitiu aos
líderes soviéticos diferenciar-se do Ocidente, ele também criou fortes
laços com o Ocidente. Marx e Engels eram alemães. A maioria dos
principais expositores de suas opiniões, no final do século XIX e começo
do século XX, eram europeus ocidentais. Ao se chegar a 1910, muitos
sindicatos de trabalhadores e partidos trabalhistas e social-democratas
das sociedades ocidentais estavam engajados na ideologia deles e
estavam se tornando atores poderosos na política européia. Depois da
revolução bolchevista, os partidos de esquerda se dividiram em partidos
comunistas e partidos socialistas, e os dois tipos muitas vezes foram forças
poderosas em países europeus. A ótica marxista prevaleceu em boa parte
do Ocidente. O comunismo e o socialismo eram vistos como a onda do
futuro e amplamente abraçados, de uma forma ou de outra, pelas elites
políticas e intelectuais. Em conseqüência, o debate na Rússia entre os
17<;
eslavófilos e os ocidentalizadores a respeito do futuro da Rússia foi
substituído por um debate na Europa entre a esquerda e a direita a
respeito do futuro do Ocidente, e sobre se a União Soviética sintetizava
ou não esse futuro. Depois da II Guerra Mundial, o poderio da União
Soviética reforçou a atração que o comunismo exercia tanto no Ocidente
como, o que era mais importante, naquelas civilizações não-ocidentais que
estavam então reagindo ao Ocidente. As elites nas sociedades não-ocidentais
dominadas pelo Ocidente que queriam seduzir o Ocidente falavam em
termos de autodeterminação e democracia, enquanto as que desejavam
confrontar o Ocidente invocavam a revolução e a liberação nacional.
Ao adotar uma ideologia ocidental e utilizá-la para desafiar o
Ocidente, os russos, em certo sentido, ficaram mais próximos e mais
intimamente envolvidos com o Ocidente do que em qualquer outro
período anterior de sua história. Embora as ideologias da democracia
liberal e do comunismo fossem muito diferentes, ambos os lados estavam,
de certo modo, falando a mesma língua. O colapso do comunismo e da
União Soviética puseram fim a essa interação político-ideológica entre o
Ocidente e a Rússia. O Ocidente esperava e acreditava que o resultado
seria o triunfo da democracia liberal em todo o antigo império soviético.
Isso, entretanto, não estava necessariamente predeterminado. Ao se
chegar a 1995, o futuro da democracia liberal na Rússia e nas outras
repúblicas ortodoxas era incerto. Além disso, à medida que os russos
deixaram de se comportar como marxistas e começaram a se comportar
como russos, o hiato entre a Rússia e o Ocidente se ampliou. O conflito
entre a democracia liberal e o marxismo-leninismo se dava entre ideolo-
gias que, a despeito de suas principais diferenças, eram modernas e
seculares e compartilhavam ostensivamente os objetivos finais de liber-
dade, igualdade e bem-estar material. Um democrata ocidental poderia
manter um debate intelectual com um marxista soviético. Seria impossível
para ele fazer isso com um nacionalista russo ortodoxo.
Durante os anos soviéticos, a luta entre os eslavófilos e os ociden-
talizadores ficou em suspenso, enquanto tantos os Solzhenitsyns como os
Sakharovs desafiavam a síntese comunista. Com o colapso dessa síntese, o
debate a respeito da verdadeira identidade da Rússia reemergiu com pleno
vigor. Deveria a Rússia adotar os valores, as instituições e as práticas
ocidentais e tentar se tomar parte do Ocidente? Ou encarnaria a Rússia uma
civilização ortodoxa e eurasiana distinta, diferente da do Ocidente com um
destino singular de ligar a Europa e a Ásia? As elites intelectuais e políticas
e o público em geral estavam seriamente divididos a respeito dessas
17h
questões. De um lado estavam os ocidentalizadores, "cosmopolitas" ou
"atlanticistas", e de outro os sucessores dos eslavófilos, mencionados de
forma variada como "nacionalistas", "eurasianistas" ou "derzhavnikf'
(firmes defensores do Estado).20
As principais diferenças entre esses grupos se centravam em política
externa e, em menor grau, reforma econômica e estrutura do Estado. As
opiniões estavam distribuídas sobre um continuum, de um extremo ao
outro. Agrupados perto de uma extremidade do espectro estavam aqueles
que articulavam "o novo pensamento" esposado por Gorbachev e
sintetizado na sua meta de um "lar europeu em comum", e muitos dos
principais assessores de Yeltsin, expressando seu desejo de que a Rússia
se tornasse "um país normal" e fosse aceito como o oitavo membro do
clube do G-7 das principais democracias industrializadas. Os nacionalis-
tas mais moderados, como Sergei Stankevich, sustentavam que a Rússia
devia rejeitar o curso "atlanticista" e devia dar prioridade à proteção dos
russos em outros países, enfatizar suas conexões túrquicas e muçulmanas
e promover "uma redistribuição apreciável de nossos recursos, nossas
opções, nossos laços e nossos interesses em favor da Ásia ou da direção
oriental". 21 As pessoas dessa corrente de opinião criticavam Yeltsin por
subordinar os interesses da Rússia aos do Ocidente, por reduzir o poderio
militar russo, por deixar de apoiar amigos tradicionais como a Sérvia e
por forçar as reformas econômicas e políticas de maneira prejudicial ao
povo russo. A nova popularidade das idéias de Piotr Savitsky, que
argumentara nos anos 20 que a Rússia era uma singular civilização
eurasiana, era indicativa dessa tendência.
Os nacionalistas mais extremados estavam divididos entre, de um
lado, os nacionalistas russos como Solzhenitsyn, que advogavam uma
Rússia abrangendo todos os russos, os bielo-russos e os ucranianos
ortodoxos eslavos, intimamente ligados a eles, porém a ninguém mais,
e, do outro lado, os nacionalistas imperiais como Vladimir Zhirinovsky,
que queriam recriar o império soviético e o poderio militar russo. As
pessoas neste segundo grupo às vezes eram anti-semitas tanto quanto
antiocidentais e queriam reorientar a política externa russa em direção
ao Leste e ao Sul, quer dominando o Sul muçulmano (como instava
Zhirinovsky), quer cooperando com os Estados muçulmanos e a China
contra o Ocidente. Os nacionalistas também endossavam um apoio maior
aos sérvios na sua guerra contra os muçulmanos. As diferenças entre
cosmopolitas e nacionalistas se refletiam institucionalmente nos pontos
de vista do Ministério do Exterior e dos militares. Elas também se refletiam
nas ~udanças das políticas externa e de segurança de Yeltsin, primeiro
numa direção e depois na outra.
o povo russo estava tão dividido quanto as elites russas. Uma
pesquisa de opinião de 1992, com uma amostragem de 2.06~ russos •
europeus, revelou que 40 por cento dos entrevistados estavam abertos
ao Ocidente", 36 por cento "fechados ao Ocidente" e 24 por cento ;}
"indecisos". Nas eleições parlamentares de dezembro de 1993, os partidos
reformistas conquistaram 34,2 por cento dos votos, os partidos anti-re-
formas e nacionalistas, 43,3 por cento, e os partidos centristas, 13,7 por
cent0 .22 Analogamente, na eleição presidencial de junho de 1996, o
~i.
público russo se dividiu novamente, com 43 por cento apoiando o
candidato do Ocidente, Yeltsin, e 52 por cento votando pelos candidatos
nacionalista e comunista. A respeito da questão fundamental de sua
identidade, a Rússia dos anos 90 continua sendo um país nitidamente
dividido, com a dualidade ocidental-eslavófila como "um traço inaliená-
vel do (. .. ) caráter nacional" .23
l
para as novas gerações, educadas com caracteres latinos, ter acesso à '
l
'
'
presidente ôzal estimularam consideráveis críticas à Turquia e con-
<luziram à renúncia do ministro do Exterior, do ministro da Defesa e do
chefe do Estado-maior, bem como grandes manifestações de rua protes-
tando contra a estreita colaboração de ózal com os Estados Unidos.
Posteriormente, tanto o presidente Demirel quanto a primeira-ministra
Ciller instaram à antecipação do término das sanções das Nações Unidas
contra 0 Iraque, que também impunham considerável carga econômica
à Turquia. 26 A disposição da Turquia de trabalhar com o Ocidente para
lidar com ameaças islâmicas provenientes do Sul é mais incerta do que
era sua disposição de se postar junto com o Ocidente contra a ameaça
soviética. Durante a crise do Golfo, a recusa da Alemanha, uma amiga
tradicional da Turquia, em encarar um ataque de mísseis iraquianos
contra a Turquia como um ataque contra a OTAN, também demonstrou
que a Turquia não poderia contar com o apoio ocidental contra ataques
vindos do Sul. As confrontações na Guerra Fria com a União Soviética
não suscitaram a questão da identidade civilizacional da Turquia, mas as
relações com os países árabes no pós-Guerra Fria o fazem.
A partir dos anos 80, uma das metas principais - talvez a principal
- da política externa da elite turca de orientação ocidental tenha sido a
de conseguir o ingresso na União Européia. A Turquia requereu formal-
mente sua admissão em abril de 1987. Em dezembro de 1989, foi dito à
Turquia que seu requerimento não podia ser examinado antes de 1993.
Em 1994, a União Européia aprovou os requerimentos da Áustria,
Finlândia, Suécia e Noruega, havendo amplas previsões de que nos
próximos anos serão tomadas medidas favoráveis em relação aos reque-
rimentos da Polônia, Hungria e República Checa e, mais tarde, pos-
sivelmente, da Eslovênia, Eslováquia e das repúblicas bálticas. Os turcos
ficaram especialmente decepcionados com o fato de que, novamente, a :I
"·
Alemanha, o membro mais influente da União Européia, não tivesse apoiado
de forma ativa o seu ingresso e, em vez disso, desse prioridade à admissão
dos Estados centro-europeus. 27 Pressionada pelos Estados Unidos, a União
Européia de fato negociou uma união aduaneira com a Turquia, porém
a participação plena é uma possibilidade remota e duvidosa.
Por que se passou por cima da Turquia e por que ela sempre parece
estar no fim da fila? Em público, os funcionários europeus se referiram
ao baixo nível de desenvolvimento econômico da Turquia e ao seu
respeito menos do que escandinavo pelos direitos humanos. Em parti-
cular, tanto europeus quanto turcos concordam em que as verdadeiras
razões foram a intensa oposição dos gregos e, o que é mais importante,
o fato de que a Turquia é um país muçulmano. Os países europeus não
queriam encarar a possibilidade de abrir suas fronteiras à imigração de
um país de 60 milhões de muçulmanos e muito desemprego. Ainda mais
significativo foi o fato de que eles achavam que, do ponto de vista
cultural, os turcos não pertencem à Europa. Como disse o presidente
ózal em 1992, o desempenho da Turquia em relação aos direitos
humanos "é uma razão artificial para que a Turquia não possa ingressar
na UE. A verdadeira razão é que nós somos muçulmanos e eles são
cristãos", porém, acrescentou, "eles não dizem isso". Os funcionários
europeus, por seu lado, concordaram em que a União Européia é "um
clube cristão" e que "a Turquia é pobre demais, populosa demais,
muçulmana demais, dura demais, culturalmente diferente demais, tudo
demais". Um comentarista assinalou que o "pesadelo particular" dos
europeus é "a memória histórica das pilhagens dos guerreiros sarracenos
na Europa Ocidental e dos turcos às portas de Viena". Essas atitudes, por
sua vez, geraram a "percepção comum entre os turcos" de que "o Ocidente
não vê um lugar para uma Turquia muçulmana dentro da Europa". 28
Tendo rejeitado Meca e sendo rejeitada por Bruxelas, a Turquia
agarrou a oportunidade aberta pela dissolução da União Soviética para
se voltar para o Tashkent. O presidente Õzal e outros líderes turcos
expuseram sua visão de uma comunidade de povos túrquicos e envida-
ram grandes esforços para desenvolver laços com os "turcos exteriores"
no "exterior próximo" da Turquia, que se estende "do Adriático às
fronteiras da China". Uma atenção especial foi dedicada ao Azerbaijão e
às quatro repúblicas centro-asiáticas em que se falam idiomas túrquicos
- Uzbequistão, Turcomenistão, Casaquistão e Quirguízia. Em 1991 e
1992, a Turquia desencadeou uma vasta gama de atividades destinadas
I, a ampliar seus laços com essas novas repúblicas e sua influência nas
mesmas. Dentre essas medidas se incluíram empréstimos de longo prazo
e a juros baixos no total de um bilhão e meio de dólares, 79 milhões de
dólares em auxt1io direto para programas sociais, televisão por satélite
(substituindo um canal em idioma russo), comunicações por telefonia,
serviços aéreos comerciais, milhares de bolsas para jovens estudarem na
Turquia e treinamento na Turquia para banqueiros, empresários, diplo-
matas e centenas de oficiais das forças armadas desses países centro-asiá-
ticos e do Azerbaijão. Foram enviados professores para as novas repú-
blicas a fim de ensinar turco e foram iniciadas cerca de duas mil parcerias
empresariais. Os aspectos culturais em comum facilitaram esses relacio-
namentos econômicos. Segundo comentou um empresário turco, "a coisa
mais importante para se ter êxito no Azerbaijão ou no Turcomenistão é
encontrar o parceiro certo. Para os turcos, isso não é tão difícil. Nós temos
a mesma cultura, mais ou menos o mesmo idioma e comemos os mesmos
pratos". 29
A reorientação da Turquia em direção ao Cáucaso e à Ásia Central
foi alimentada não só por seu sonho de se tornar líder da comunidade
túrquica de nações, como também por seu desejo de se contrapor a que
o Irã e a Arábia Saudita expandissem sua influência e promovessem o
fundamentalismo islâmico nessa região. Os turcos se viam como ofere-
cendo o "modelo turco" ou a "idéia da Turquia" - um Estado muçulmano
secular e democrático, com uma economia de mercado - como alter-
nativa. Além disso, a Turquia tinha a esperança de conter o ressurgimento
da influência russa. Ao fornecer uma alternativa à Rússia e ao Islã, a
Turquia também reforçaria sua reivindicação do apoio da União Européia
e de uma futura admissão a ela.
O surto inicial de atividades da Turquia com as repúblicas túrquicas
ficou mais limitado em 1993 devido às limitações de seus recursos, à
ascensão de Suleyman Demirel à presidência, em seguida à morte de
ôzal, e à reafirmação da influência da Rússia no que esta considerava o
seu "exterior próximo". Logo que as ex-repúblicas soviéticas túrquicas se
tornaram independentes, seus líderes acorreram a Ancara para cortejar a
Turquia. Posteriormente, quando a Rússia aplicou pressões e incentivos,
elas retrocederam e, de forma geral, sublinharam a necessidade de
relacionamentos "equilibrados" entre o seu primo cultural e seu ex-senhor
imperial. Entretanto, os turcos continuaram a tentar utilizar suas afinidades
culturais para expandir suas vinculações econômicas e políticas e, no seu
golpe mais importante, conseguiram um acordo com os governos e as
empresas petrolíferas pertinentes para a construção de um oleoduto, a fim
de trazer o petróleo da Ásia Central e do Azerbaijão através da Turquia
até o Mediterrâneo.30
Enquanto a Turquia trabalhava para desenvolver seus vínculos com
as ex-repúblicas soviéticas túrquicas, sua própria identidade secular
kemalista estava sob ataque no plano interno. Em primeiro lugar, para a
Turquia, como para tantos outros países, o fim da Guerra Fria, junto com
as perturbações geradas pelo desenvolvimento econômico e social,
suscitou importantes questões de "identidade nacional e identificação
étnica",3 1 e a religião ali estava para prover uma resposta. O legado
secular de Ataturk e da elite turca após dois terços de século ficou sob
fogo. A experiência dos turcos no exterior tendia a estimular os senti-
mentos fundamentalistas islâmicos dentro do país. Os turcos que retor-
navam da Alemanha Ocidental "reagiram à hostilidade que encontraram
lá retomando para o. que lhes era familiar. E isso era o Islã". A corrente
de opinião e a prática dominantes ficaram cada vez mais fundamentalistas
islâmicas. Em 1993, reportou-se "que as barbas de estilo islâmico e as
mulheres cobertas com véu proliferaram na Turquia, que as mesquitas
estão atraindo multidões cada vez maiores e que algumas llvrarias estão
transbordando de livros, revistas, cassetes, CDs e videocassetes glorifican-
do a história, os preceitos e o estilo de vida islâmicos, e exaltando o papel
do Império Otomano de preservar os valores do Profeta Maomé".
Segundo se informou, "nada menos do que 290 editoras e gráficas, 300
publicações, inclusive quatro jornais, cerca de uma centena de estações
de rádio sem licença e cerca de 30 canais de televisão também sem licença
estão todos divulgando a ideologia islâmica".32
Confrontados por um crescente sentimento fundamentalista islâmi-
co, os dirigéntes turcos tentaram adotar as práticas fundamentalistas e
aliciar o apoio fundamentalista. Nos anos 80 e 90, o governo turco,
supostamente secular, manteve um Departamento de Assuntos Religio-
sos, com um orçamento maior do que o de alguns ministérios, financiou
a construção de mesquitas, exigiu o ensino religioso em todas as escolas
públicas e proporcionou fundos para escolas islâmicas. O número dessas
escolas quintuplicou durante a década de 80, estando nelas matriculados
cerca de 15 por cento dos alunos de nível secundário; nelas se pregavam
as doutrinas fundamentalistas islâmicas e se formaram milhares de jovens,
muitos dos quais entraram para o serviço público. Num contraste com a
França, simbólico mas espetacular, o governo permitiu na prática que as
moças usassem o tradicional lenço de cabeça muçulmano, 70 anos depois
de Ataturk ter proibido o fez. 33 Essas ações governamentais, em grande
parte motivadas pelo desejo de tirar o vento das velas dos fundamentalis-
tas islâmicos, são testemunho de como esse vento era forte na década
de 80 e no início dos anos 90.
Em segundo lugar, o ressurgimento do Islã mudou o caráter da
política turca. Os líderes políticos, notadamente Turgo ôzal, se identifi-
caram de modo muito explícito com os símbolos e as políticas muçul-
manas. Na Turquia, como em outros lugares, a democracia reforçou a
indigenização e a volta para a religião. "No seu afã de angariar a simpatia
do povo e conquistar votos, os políticos - e até mesmo os militares, que
eram o próprio bastião e os guardiães do secularismo - tiveram de levar
em conta as aspirações religiosas da população. Muitas das concessões
feitas por eles cheiravam a demagogia." Os movimentos populares
Hl::t
tinham um pendor religioso. Enquanto a elite e os grupos burocráticos,
especialmente os militares, tinham uma orientação secular, os sentimen-
tos fundamentalistas islâmicos se manifestaram no seio das forças arma-
das, e várias centenas de cadetes foram expurgados das academias
militares em 1987 sob suspeita de sentimentos fundamentalistas islâmicos.
Os principais partidos políticos cada vez mais sentiam a necessidade de
buscar apoio eleitoral das reativadas tarikas muçulmanas, ou sociedades
seletas, que Ataturk tinha proscrito.34 Nas eleições municipais de março
de 1994, o Partido do Bem-Estar, fundamentalista, foi o único dentre os
cinco partidos principais a aumentar sua participação nos votos, receben-
do aproximadamente 19 por cento do total, comparados com 21 por
cento para o Partido Caminho Verdadeiro, da primeira-ministra Ciller, e
20 por cento para o Partido da Pátria, do falecido Ôzal. O Partido do
Bem-Estar conquistou o controle das duas principais cidades da Turquia,
Istambul e Ancara, e competiu com posição muito forte na parte sudeste
do país. Nas eleições de dezembro de 1995, o Partido do Bem-Estar teve
mais votos e assentos no Parlamento do que qualquer outro partido, e
os dois principais partidos seculares, que tinham estado em confronto,
tiveram de montar uma coalizão para impedir que os fundamentalistas
islâmicos assumissem o governo. Como em outros países, o apoio aos
fundamentalistas veio dos jovens, dos emigrantes que retornaram, dos
"perseguidos e miseráveis" e dos "novos migrantes urbanos, os sans
culottes das grandes cidades".35
Em terceiro lugar, o ressurgimento do Islã afetou a política externa
turca. Sob a liderança do presidente Ôzal, a Turquia havia se postado
decididamente do lado do Ocidente na Guerra do Golfo, contando com
que essa ação favoreceria sua candidatura a membro da União Européia.
Entretanto, essa conseqüência não se concretizou e foi intensa a oposição
à guerra dentro da Turquia. Com o colapso da União Soviética rompendo
o principal elo entre a Turquia e o Ocidente, a hesitação da OTAN quanto
a que reação teria caso a Turquia fosse atacada pelo Iraque durante
aquela guerra não tranqüilizou os turcos quanto a como a OTAN reagiria
a uma ameaça não-russa a seu país.36 Durante a década de 80, a Turquia
expandiu cada vez mais as suas relações com os países árabes e outros
países muçulmanos e, nos anos 90, promoveu ativamente os interesses
islâmicos ao proporcionar apoio significativo aos muçulmanos da Bósnia,
bem como ao Azerbaijão. Com relação aos Bálcãs, à Ásia Central e ao
Oriente Médio, a política externa turca estava se tornando cada vez mais
islamicizada.
Durante muitos anos a Turquia preencheu dois dos três requisitos
mínimos para um país dividido mudar sua identidade civilizacional. As
elites turcas apoiaram de forma majoritária essa linha de ação e seu povo
assentiu. Entretanto, as elites da recipiente - a civilização ocidental -
não foram receptivas. Enquanto a questão estava pendente, o res-
surgimento do Islã dentro da Turquia começou a solapar a orientação
secularista e pró-ocidental das elites turcas. Os obstáculos a que a Turquia
se torne plenamente européia, as limitações da sua capacidade de
desempenhar um papel dominante com relação às ex-repúblicas sovié-
ticas túrquicas e a ascensão das tendências fundamentalistas islâmicas
erodindo o legado de Ataturk, tudo isso parecia assegurar que a Turquia
permanecerá sendo um país dividido.
Refletindo essas forças de atração contrapostas, os líderes turcos
repetidamente descreviam seu país como uma "ponte" entre as culturas.
Em 1993, a primeira-ministra Tansu Ciller argumentou que a Turquia é,
ao mesmo tempo, uma "democracia ocidental" e "parte do Oriente
Médio", e "serve de ponte a duas civilizações, física e filosoficamente".
Espelhando essa ambivalência, Ciller freqüentemente aparecia em públi-
co, em seu próprio país, como muçulmana, porém, quando se dirigia à
OTAN, ela afirmava que "o fato geográfico e político é que a Turquia é
um país europeu". De modo análogo, o presidente Suleyman Demirel
chamou a Turquia de "uma ponte muito importante, numa região que
se estende de oeste para leste, ou seja, da Europa para a China" .37
Entretanto, uma ponte é uma criação artificial que liga duas entidades
sólidas, mas não é parte de nenhuma delas. Quando os líderes da Turquia
chamam seu país de uma ponte, eles estão eufemisticamente confirman-
do que ela é um país dividido.
101:
importar a cultura ocidental e juntar-se ao Ocidente. No México, como
na Rússia, a revolução envolveu a incorporação e a adaptação de
elementos da cultura ocidental, o que gerou um novo nacionalismo,
oposto ao capitalismo e à democracia do Ocidente. Assim, durante 60
anos, a Turquia tentou se definir como européia, enquanto que o México
tentou se definir em oposição aos Estados Unidos. Da década de 30 à de
80, os dirigentes do México perseguiram. políticas econômica e externa
que desafiavam os interesses norte-americanos.
Nos anos 80, isso mudou. O presidente Miguel de la Madrid deu
início a novas políticas, que seu sucessor, Carlos Salinas, expandiu numa
redefinição de larga escala dos objetivos, práticas e identidade mexica-
nos, no mais amplo esforço de mudanças desde a Revolução de 1910.
Salinas se tornou, de fato, o Mustafá Kemal do México. Ataturk promoveu
o secularismo e o nacionalismo, temas predominantes no Ocidente do
seu tempo. Salinas promoveu o liberalismo econômico, um dos dois
temas predominantes no Ocidente do seu tempo (o outro, a democracia
política, não foi abraçada por ele). Como aconteceu com Ataturk, essas
opiniões eram compartilhadas de forma geral pelas elites políticas e
econômicas, muitos membros das quais, como Salinas e de la Madrid,
tinham se formado nos Estados Unidos. Salinas reduziu a inflação de
modo espetacular, privatizou grande quantidade de empresas estatais,
promoveu o investimento estrangeiro, reduziu as tarifas e os subsídios,
reestruturou a dívida externa, desafiou o poder dos sindicatos, aumentou
a produtividade e levou o México para o Acordo de Livre Comércio
Norte-americano (NAFTA) com os Estados Unidos e o Canadá. Tal como
as reformas de Ataturk se destinavam a transformar a Turquia de país
muçulmano do Oriente Médio em país secular europeu, as reformas de
Salinas se destinavam a mudar o México de país latino-americano em
país norte-americano.
Não se tratava de uma escolha inevitável para o México. É conce-
bível que as elites mexicanas pudessem ter continuado a seguir um
caminho anti-EUA, nacionalista, terceiro-mundista e protecionista, como
as suas predecessoras tinham seguido durante a maior parte do século.
Como alternativa, conforme instado por alguns mexicanos, elas poderiam
ter tentado desenvolver, com a Espanha, Portugal e os países sul-ameri-
canos, uma associação ibérica de nações.
Terá o México êxito na sua busca norte-americana? A enorme
maioria das elites política, econômica e intelectual é favorável a esse
rumo. Além disso, ao contrário da situação da Turquia, a grande maioria
10.C.
das elites política, econômica e intelectual da civilização rec1p1ente
também é favorável ao realinhamento cultural do México. A questão
intercivilizacional crucial da imigração realça essa diferença. O medo de
uma imigração turca maciça gerou resistências tanto das elites como do
público europeu a deixar' a Turquia ingressar na Europa. Ao contrário, a
maciça imigração mexicana, legal e ilegal, para os Estados Unidos fez
parte da argumentação de Salinas em relação ao NAFTA: "Ou bem vocês
aceitam nossos bens ou aceitam nossa gente." Além disso, a distância
cultural entre o México e os Estados Unidos é muito menor do que a que
existe entre a Turquia e a Europa. O México é, em parte, ocidental: sua
religião é o Catolicismo, seu· idioma é o espanhol, suas elites estavam
orientadas historicamente para a Europa (para onde enviavam seus filhos
para estudar) e, mais recentemente, para os Estados Unidos (para onde
atualmente enviam seus filhos). A acomodação entre a América do Norte
anglo-americana e o México hispano-indígena deveria ser consideravel-
mente mais fácil do que entre a Europa cristã e a Turquia muçulmana.
A despeito desses aspectos em comum, depois da ratificação do NAFTA,
desenvolveu-se nos Estados Unidos uma oposição a qualquer envolvi-
mento mais estreita com o México, com reclamos de restrições sobre a
imigração, queixas sobre fábricas que se transferiam para o Sul e
questionamentos sobre a capacidade do México de aderir às concepções
norte-americanas de liberdade e do império da lei.39
O terceiro pré-requisito para uma mudança de identidade bem-su-
cedida por um país dividido é a aquiescência generalizada, embora não
necessariamente o apoio, por parte do seu povo. A importância desse
fator depende, em certa medida, do grau de import~ncia das opiniões
do povo para os processos de tomada de decisão do país. Ao se chegar
a 1995, a postura pró-ocidental do México não havia sido testada pela
democratização. A revolta no dia do Ano-novo de alguns milhares de
guerrilheiros bem organizados e com apoio externo em Chiapas não foi,
por si só, uma indicação de resistência considerável à norte-americani-
zação. Entretanto, a resposta favorável que ela gerou no meio dos
intelectuais, jornalistas e outros formadores de opinião mexicanos sugeriu
que a norte-americanização em geral e o NAFTA em particular poderiam
encontrar resistência cada vez maior por parte das elites e do povo
mexicano. O presidente Salinas, de modo muito deliberado, atribuiu
prioridade às reformas e à ocidentalização em relação à reforma política
e à democratização. Contudo, tanto o desenvolvimento econômico como
o crescente envolvimento com os Estados Unidos irão aumentar as forças
Hl7
que promovem uma verdadeira democratização do sistema político
mexicano. A questão-chave para o futuro do México é a seguinte: até
que ponto a modernização e a democratização irão estimular a desoci-
dentalização, sintetizada numa retirada ou num enfraquecimento radical
do NAfTA e em mudanças paralelas nas políticas impostas ao México
por suas elites orientadas para o Ocidente dos anos 80 e 90? A
norte-americanização do México é compatível com sua democratização?
188
importações. Em contraste, em 1991, 11,8 por cento das exportações
australianas foram para a Comunidade Européia e 10,1 por cento para
os Estados Unidos. Esse vínculo econômico que se ia aprofundando com
a Ásia era reforçado na mente dos australianos por uma crença de que
0 mundo estava se movendo na direção de três blocos econômicos
principais e que o lugar da Austrália estava no bloco da Ásia Oriental.
Apesar dessas ligações econômicas, o projeto asiático da Austrália
parece ter pouca probabilidade de satisfazer qualquer dos requisitos para
0 êxito de uma mudança de civilização por um país dividido. Em primeiro
lugar, em meados da década de 90, as elites australianas estavam longe
de ter um grande entusiasmo por esse rumo. Em certa medida, isso
constituía uma questão partidária, com os dirigentes do Partido Liberal
assumindo uma postura ambivalente ou de oposição. O governo traba-
lhista também recebeu consideráveis críticas de vários intelectuais e
jornalistas. Não havia nenhum consenso nítido da elite quanto à opção
asiática. Em segundo lugar, a opinião pública estava indecisa. De 1987 a
1993, a proporção do povo australiano favorável a acabar com a
monarquia subiu de 21 para 46 por cento. A essa altura, entretanto, o
apoio para a idéia começou a vacilar e a erodir. A proporção do povo
que apoiava a retirada da bandeira britânica do canto da bandeira
australiana caiu de 42 por cento em maio de 1992 para 35 por cento em
agosto de 1993. Segundo comentou em 1992 uma autoridade australiana,
"é difícil para o público engolir isso. Quando eu digo, periodicamente,
que a Austrália devia fazer parte da Ásia, nem lhe posso dizer quantas
cartas de ódio recebo".41
Em terceiro lugar - e o que é mais importante - , as elites dos
países asiáticos se mostraram menos receptivas às propostas aus-
tralianas do que as elites européias em relação às da Turquia.
Deixaram claro que, se a Austrália deseja fazer parte da Ásia, ela
precisa se tornar realmente asiática, o que consideram improvável se
não impossível. Uma autoridade indonésia disse que "o êxito da
integração da Austrália na Ásia depende de uma coisa - até que ponto
os Estados asiáticos acolhem de bom grado a intenção australiana. A
aceitação da Austrália na Ásia depende do grau com que o governo e o
povo da Austrália compreendem a cultura e a sociedade asiática". Os
asiáticos vêem um hiato entre a retórica asiática da Austrália e sua
realidade perversamente ocidental. Segundo um diplomata australiano,
os tailandeses tratam a insistência da Austrália de que ela é asiática com
uma "tolerância perplexa".42 O primeiro-ministro Mahatir, da Malásia,
189
declarou em outubro de 1994 que, "culturalmente, a Austrália ainda é
européia, (. .. ) nós achamos que é européia" e, por conseguinte, a
Austrália não deve ser membro do Foro Econômico Asiático-oriental
(EAEC). Nós, asiáticos, "temos menos tendência a criticar abertamente
outros países ou a julgá-los. Mas a Austrália, sendo culturalmente
européia, acha que tem o direito de dizer a outros o que fazer, o que
não fazer, o que está certo, o que está errado. Assim sendo, é claro,
ela não é compatível com o grupo. Essa é a minha razão [para me
opor a seu ingresso no EAEC]. Não é pela cor da pele, mas pela
4
cultura". 3 Em suma, os asiáticos estão decididos a excluir a Austrália
do seu clube pela mesma razão que os europeus, a Turquia: eles são
diferentes de nós. O primeiro-ministro Keating gostava de dizer que ia
mudar a Austrália de "o estranho de fora para o estranho de dentro" na
Ásia. Isso, porém, é um oxímoro: os estranhos não entram.
Como expôs Mahatir, a cultura e os valores são o obstáculo básico
para que a Austrália se junte à Ásia. Regularmente ocorrem choques
devido ao engajamento da Austrália com a democracia, direitos humanos,
liberdade de imprensa e a seus protestos quanto a violações desses
direitos por parte dos governos de praticamente todos os seus vizinhos.
Um veterano diplomata australiano assinalou que "o verdadeiro proble-
ma para a Austrália na região não é nossa bandeira, mas nossos valores
sociais fundamentais. Desconfio que não se encontrará nenhum aus-
traliano disposto a abrir mão de qualquer desses valores para ser aceito
na reg1ao . As d"C
·- "44 llerenças de caráter, estilo e comportamento também
são acentuadas. Como insinuou Mahatir, de forma geral os asiáticos
perseguem seus objetivos com os outros por maneiras que são sutis
i~diretas, moduladas, sinuosas, sem fazer julgamentos, sem fazer prega~
çoes e sem ser confrontacionistas. Os australianos, ao contrário, são as
pessoas mais diretas, francas, desabridas e, diriam alguns, insensíveis do
mundo anglófono. Esse choque de culturas fica evidenciado de modo
mais espetacular nas próprias tratativas de Paul Keating com os asiáticos.
Keating encarna as características nacionais australianas num grau extre-
mo. Ele foi descrito como "um político do tipo bate-estaca" com um
estilo que é "intrinsicamente provocador e brigão", e ele não 'hesita em
atacar seus adversários políticos como "sacos de lixo", "gigolôs perfuma-
dos" e "delinqüentes birutas com lesão cerebral".45 Ao mesmo tempo em
que sustenta que a Austrália tem que ser asiática, Keating sistematica-
mente irritou, chocou e antagonizou líderes asiáticos por sua brutal
franqueza. O hiato entre as culturas era tão grande que cegava o
190
proponente da convergência cultural ao ponto de seu próprio compor-
tamento repelir aqueles de quem ele se dizia irmão cultural. ,
A opção de Keating-Evans poderia ser vista como o resultado miope
de superestimar os fatores econômicos e ignorar, em vez d_e resgatar~ a
cultura do país, e como uma jogada política tática para desviar a at~nçao
dos problemas econômicos da Austrália. Por outro lado,. ela pod_ena ser
considerada como uma iniciativa de longo alcance, destinada a iuntar e
identificar a Austrália com os centros emergentes de poder econômico,
político e, por fim, militar da Ásia Oriental._ Ness~ conte~to, a. Austrália
poderia ser 0 primeiro de possivelmente mU1tos paise~ ~~ide~tais ~ tent~r
abandonar 0 Ocidente e atrelar-se às emergentes civilizaçoes nao-oci-
dentais. No começo do século XXII, os historiadores poderiam olhar para
a opção de Keating-Evans como um dos marcos principais _do declín!o
do Ocidente. Contudo, mesmo que essa opção seja persegU1da, ela nao
eliminará 0 legado ocidental da Austrália, e o "país de sorte" será
permanentemente um país dividido, ao mesmo tempo a "sucursal do
Império" que Paul Keating criticou, e a "nova escória branca da Ásia",
, ~
como Lee Kuan Yew a chamou com desprezo. )
Esse não foi e não é o destino inevitável da Austrália. Aceitando
seu desejo de romper com a Grã-Bretanha, em vez de definir a Austrália
como uma potência asiática, seus líderes poderiam defini-la como um
país do Pacífico, como, na realidade, o antecessor de Keating,, B~b
Hawke tentou fazer. Se a Austrália deseja se tornar uma republica
separada da Coroa britânica, ela poderia se alinhar com o primeiro país
do mundo a fazer isso, um país que, como a Austrália, é de origem
britânica, é um país de imigração, tem dimensões continentais, fala inglês,
foi aliado da Grã-Bretanha em três guerras e possui uma população
predominantemente européia, ainda que, também como a Austrália, cada
vez mais asiática. Culturalmente, os valores da Declaração da Indepen-
dência, de 4 de julho de 1776, se coadunam muito mais com os valores
australianos do que os de qualquer país asiático. Economicamente, em
vez de tentar abrir caminho para dentro de um grupo de sociedades às
quais é estranha culturalmente e que, por essa razão, a rejeitam, os líd,e~es
da Austrália poderiam propor expandir o NAFTA para um acordo Amenca
do Norte-Pacífico Sul (North America-South Pacific - NASP), abrangen-
do os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. Um
agrupamento assim conciliaria cultura e economia e proporcion:ria u~a
identidade sólida e duradoura para a Austrália, que não sera obtida
através de esforços vãos de tornar a Austrália asiática.
191
O vírns ocidental e a esquizofrenia cultural. Enquanto os dirigentes
da Austrália embarcavam numa busca da Ásia, os de outros países
divididos - Turquia, México, Rússia - tentavam incorporar o Ocidente
às suas sociedades e incorporar suas sociedades ao Ocidente. Ao se
chegar a 1995, nenhuma dessas tentativas de redefinição cultural tinha
alcançado êxito. Os fatos demonstram claramente a força, a resistência
e a viscosidade das culturas autóctones e sua capacidade de se renovar
e de resistir, conter e absorver o que foi importado do Ocidente. Os
líderes imbuídos da ilusão de pensar que podem refazer suas sociedades
parecem fadadas ao fracasso. Conquanto eles possam introduzir elemen-
tos da cultura ocidental, não são capazes de reprimir ou eliminar de modo
permanente os elementos centrais de suas culturas autóctones. Inversa-
mente, o vírus ocidental, uma vez alojado em outra sociedade, é difícil
de expulsar. O vírus persiste, mas não é fatal - o paciente sobreviverá,
mas nunca mais será o mesmo. Os líderes políticos podem fazer História,
mas não podem escapar da História. Eles produzem países divididos;
eles não criam sociedades ocidentais. Eles contaminam seu país com uma
esquizofrenia cultural que se transforma na sua característica constante
e definidora.
192
CAPÍTULO 7
Estados-núcleos, Círculos
Concêntricos e Ürdem Civilizacional
CIVILIZAÇÕES E ORDEM
102.
-,
motivos de segurança, os Estados-núcleos podem tentar incorporar ou
dominar alguns povos de outras civilizações, os quais, por sua vez, tentam
resistir ou escapar a tal controle (China versus tibetanos e uigures; Rússia
versustártaros, chechenos e muçulmanos centro-asiáticos). Os relaciona-
mentos históricos e considerações de equilíbrio de poder também levam
alguns países a resistir à influência de seu Estado-núcleo. Tanto a Geór~ia
como a Rússia são países ortodoxos, porém, historicamente, os georgia-
nos resistiram à dominação russa e a uma íntima associação com a Rússia.
o Vietnã e a China são ambos países confucianos e, no entanto, um
padrão comparável de inimizade histórica sempre existiu entre os dois.
Ao longo do tempo, porém, os aspectos culturais em comum e o
desenvolvimento de uma percepção civilizacional mais ampla e mais
forte têm a probabilidade de fazer esses países se juntarem, como se
juntaram os países da Europa Ocidental.
Durante a Guerra Fria, a ordem que possa ter existido era fruto da
dominação pelas superpotências de seus respectivos blocos e da influên-
cia das superpotências no Terceiro Mundo. No mundo que está surgindo,
o poder global tomou-se obsoleto, a comunidade global, um sonho
longínquo. Nenhum país, inclusive os Estados Unidos, tem importantes
interesses globais de segurança. Os componentes da ordem no mundo
atual, mais complexo e heterogêneo, se encontram dentro das civiliza-
ções e entre elas. O mundo será ordenado com base nas civilizações ou
não será ordenado de forma alguma. Nesse mundo, os Estados-núcleos
das civilizações assumem o lugar das superpotências. Eles são a fonte da
ordem no seio das civilizações e, através de negociações com outros
Estados-núcleos, entre as civilizações. A ordem, se é que existe alguma
na Bósnia, requer a cooperação dos Estados Unidos, das potências
européias e da Rússia.
Um mundo no qual os Estados-núcleos desempenham um papel
de liderança ou predominante é um mundo de esferas de influência. Mas
é também um mundo no qual o exercício da influência pelo Estado-nú-
cleo é temperado e moderado pela cultura em comum que ele comparti-
lha com Estados-membros de sua civilização. Os aspectos culturais em
comum legitimam a liderança e o papel de impor a ordem que o
Estado-núcleo desempenha, tanto em relação aos Estados-membros
como às potências e instituições externas. Entretanto, em 1994, o
secretário-geral das Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali, promulgou
uma regra de "manutenção de esfera de influência" no sentido de que a
potência regional predominante não pode prover mais de um terço da
194
,
força de paz das Nações Unidas. Essa ex1gencia contraria a realidade
geopolítica de que, em qualquer região onde exista um Estado predomi-
nante, a paz só pode ser conseguida e mantida através da liderança desse
Estado. As Nações Unidas não constituem uma alternativa do poder regional
e o poder regional se toma responsável e legítimo quando é exercido por
Estados-núcleos em relação a outros membros de sua civilização.
Um Estado-núcleo pode desempenhar sua função de ordenamento
porque os Estados-membros o vêem como seu parente cultural. Uma
civilização é uma família ampliada e, como os membros mais velhos de
uma família, os Estados-núcleos proporcionam a seus parentes apoio e
disciplina. Na ausência desse laço de parentesco, fica limitada a capaci-
dade de um Estado mais poderoso de resolver conflitos e de impor a ordem
na sua região. O Paquistão, Bangladesh e até mesmo Sri Lanka não aceitarão
a Índia como a provedora da ordem na Ásia Meridional e nenhum Estado
da Ásia Oriental aceitará que o Japão desempenhe tal papel nessa região.
Quando as civilizações carecem de Estados-núcleos, os problemas
de criar a ordem no seio dessas civilizações ou negociar a ordem entre
civilizações se torna mais difícil. A ausência de um Estado-núcleo islâmico
que pudesse, com legitimidade e autoridade, relacionar-se com a Bósnia,
como a Rússia fez com os sérvios e a Alemanha, com os croatas, impeliu
os Estados Unidos a tentar desempenhar esse papel. A ineficácia com
que o fez derivou da falta de interesse estratégico norte-americano quanto
às fronteiras traçadas na ex-Iugoslávia, da inexistência de qualquer
ligação cultural entre os Estados Unidos e a Bósnia e da oposição
européia à criação de um Estado muçulmano na Europa. Analogamente,
a ausência de um Estado-núcleo latino-americano obrigou os Estados
Unidos a desempenharem o papel principal na questão do Haiti, quando
suas ações foram, por sua vez, criticadas pelos países latino-americanos
como sendo as de um interventor extracivilizacional. A ausência de
Estados-núcleos tanto na África como no mundo árabe complicou
enormemente os esforços por resolver a continuada guerra civil no
Sudão. Por outro lado, onde existem Estados-núcleos, eles constituem os
elementos fundamentais da nova ordem internacional baseada nas
civilizações.
DEMARCANDO O OCIDENTE
1oc;
Soviética. Esse agrupamento, conhecido por várias designações como o
"Mundo Livre", o "Ocidente" ou os "Aliados", incluía muitas das socieda-
des ocidentais, mas não todas, além de Turquia, Grécia, Japão, Coréia
do Sul, Filipinas, Israel e, de forma mais flexível, outros países como
Taiwan, Tailândia e Paquistão. A ele se opunha um agrupamento de países
apenas ligeiramente heterogêneos, que incluía todos os países ortodoxos
com exceção da Grécia, vários países que tinham sido historicamente
ocidentais, além de Vietnã, Cuba, em menor grau a Índia e, às vezes, um
ou mais países african,os. Com o término da Guerra Fria, esses agrupa-
mentos multicivilizacionais e de diversas culturas se fragmentaram. A
dissolução do sistema soviético, especialmente do Pacto de Varsóvia, foi
espetacular. De modo mais lento, porém análogo, o "Ocidente" multici-
vilizacional da época da Guerra Fria está sendo reconfigurado como um
novo agrupamento, que mais ou menos coincide com a civilização
ocidental. Um processo de demarcação está em curso, envolvendo a
definição dos membros dos organismos internacionais ocidentais.
Os Estados-núcleos da União Européia - França e Alemanha -
estão rodeados primeiro por um agrupamento interior composto por
Bélgica, Holanda e Luxemburgo, que concordaram em eliminar todas as
barreiras ao trânsito de bens e pessoas; depois os outros países-membros
como a Itália, Espanha, Portugal, Dinamarca, Grã-Bretanha, Irlanda e
Grécia; Estados que se tomaram membros em 1995 (Áustria, Finlândia e
Suécia) e pelos países que até então eram membros associados (Polônia,
Hungria, República Checa, Eslováquia, Bulgária e Romênia). Refletindo
essa realidade, no outono de 1994 o partido no poder na Alemanha e
altas autoridades francesas apresentaram propostas para uma União
diferenciada. O plano alemão propôs que o "núcleo central" consistisse
dos membros originais menos a Itália e que "a Alemanha e a França
formassem o núcleo do núcleo central". Os países do núcleo central iriam
tentar implantar rapidamente uma união monetária e integrar suas
políticas exterior e de defesa. Quase simultaneamente, o primeiro-minis-
tro Edouard Balladur sugeriu uma União de três níveis, com os cinco
Estados pró-integração formando o núcleo, os outros Estados-membros
atuais um segundo círculo e os novos Estados a caminho de se tomarem
membros compondo um círculo exterior. Posteriormente, o ministro do
Exterior francês, Alain Juppé, elaborou mais esse conceito, propondo
"um círculo exterior de Estados 'parceiros', incluindo a Europa Central e
Oriental, um círculo intermediário de Estados-membros que seriam
obrigados a aceitar disciplinas comuns em certos campos (mercado
196
único, união aduaneira, etc.) e vários círculos interiores de 'solidariedade
reforçada', que incorporariam aqueles que tivessem a disposição e a
capacidade de avançar mais depressa do que outros em áreas como
defesa, integração monetária, política externa e assim por diante" .1 Outros
líderes políticos propuseram outros tipos de acordos, todos, entretanto,
envolviam um agrupamento interior de Estados associados mais intima-
mente e depois agrupamentos exteriores de Estados integrados de forma
menos ampla com o Estado-núcleo, até que se chega à linha que separa
os membros dos não-membros.
O estabelecimento dessa linha na Europa tem sido um dos princi-
pais desafios com que se defronta o Ocidente no mundo pós-Guerra Fria.
Durante a Guerra Fria, a Europa não existia como um todo. Entretanto,
com o colapso do comunismo, tornou-se necessário enfrentar e respon-
der a pergunta: o que é a Europa? As fronteiras da Europa ao Norte, a
Oeste e ao Sul são delimitadas por grandes massas d'água, que, ao Sul,
coincidem com nítidas diferenças de cultura. Porém, onde fica a fronteira
leste da Europa? Que países devem ser considerados como europeus e,
por conseguinte, membros em potencial da União Européia, da OTAN e
de organizações análogas?
A resposta mais atraente e abrangente a essas indagações é dada
pela grande linha histórica que existiu durante séculos separando os
povos cristãos ocidentais dos povos muçulmanos e ortodoxos. Essa linha
data da divisão do Sacro Império Romano no século X. Ela esteve
aproximadamente no mesmo lugar que ocupa atualmente há pelo menos
SOO anos. Começando no Norte, ela corre ao longo do que são hoje as
fronteiras entre a Finlândia e a Rússia, entre esta e os Estados bálticos
(Estônia, Letônia e Lituânia), passando pela Bielo-Rússia ocidental,
através da Ucrânia, onde separa o oeste uniata e o leste ortodoxo,
cruzando a Romênia entre a Transilvânia, com sua população húngara
católica, e o resto do país, e depois pela ex-Iugoslávia, ao longo da
fronteira que separa a Eslovênia e a Croácia das outras repúblicas. Nos
Bálcãs, é claro, essa linha coincide com a divisão histórica entre os
Impérios Austro-húngaro e Otomano. Ela é a fronteira cultural da Europa
e, no mundo pós-Guerra Fria, ela é também a fronteira política e
econômica da Europa e do Ocidente.
Um enfoque civilizacional fornece uma resposta precisa e atraente
para a questão com que se defrontam os europeus ocidentais: onde
termina a Europa? A Europa termina onde o Cristianismo ocidental
termina e começam o Islamismo e a Ortodoxia. Esta é a resposta que os
10'7
Cristianismo Cristianismo
Ocidental por Ortodoxo
volta de 1500 e Islã
• •
A Fronteira
Leste Oriental da
Civilização Ocidental
MILHA
. Fonte:
W. Woll..,e. A Transforma\i).o da Europa Ocidental
~ f'km.mo.
...... fti~twl'OllD:lN .Amm.
europeus ocidentais desejam ouvir, que eles apóiam majoritariamente
em voz baixa e que diversos intelectuais e líderes políticos endossaram
explicitamente. Como Michael Howàrd sustentou, é preciso reconhecer
a distinção, um tanto nebulosa durante os anos soviéticos, entre a Europa
Central ou Mitteleuropa e a Europa Oriental propriamente dita. A Europa
Central inclui "aquelas terras que outrora formavam parte da Cristandade
ocidental, as antigas terras do Império Habsburgo -Áustria, Hungria e
Checoslováquia, juntamente com a Polônia e as regiões orientais da
Alemanha. O termo 'Europa Oriental' devia ficar reservado para aquelas
regiões que se desenvolveram sob a égide da Igreja Ortodoxa: as
comunidades do Mar Negro na Bulgária e na Romênia, que só emergiram
da dominação otomana no século XIX, e as partes 'européias' da União
Soviética". A primeira prova da Europa Ocidental, argumentou ele, deve
ser "reabsorver os povos da Europa Central na nossa comunidade cultural
e econômica, à qual eles devidamente pertencem: reatar os laços entre
Londres, Paris, Roma e Munique, de um lado, e Leipzig, Varsóvia, Praga
e Budapeste, de outro. Dois anos depois, Pierre Behar comentou que
está surgindo "uma nova linha de fratura, uma divisória basicamente
cultural entre uma Europa marcada pelo Cristianismo ocidental (Católico
Romano ou Protestante), por um lado, e uma Europa marcada pelas
tradições do Cristianismo oriental e do Islamismo, por outro". Um
destacado finlandês viu de modo análogo a divisão crucial da Europa
substituindo a Cortina de Ferro como "a antiga linha de fratura cultural
entre Leste e Oeste", que coloca "as terras do antigo Império Austro-hún-
garo, bem como a Polônia e os Estados bálticos" dentro da Europa do
Ocidente e os outros países da Europa Oriental e os países balcânicos fora
dela. Um inglês ilustre concordou com que essa era "a grande divisória(. .. )
entre as Igrejas oriental e ocidental: de forma genérica, entre aqueles povos
que receberam o seu Cristianismo diretamente de Roma ou através de seus
intermediários celtas ou germânicos, e aqueles no Leste e no Sudeste
para quem ele veio atrayés de Constantinopla (Bizâncio)". 2
As pessoas na Europa Central também salientam a importância
dessa linha divisória. Os países que conseguiram um progresso notável
em se desvencilhar dos legados do comunismo e em se mover na direção
de uma política democrática e de economias de mercado estão separados
1
daqueles que não o conseguiram "pela linha que divide o Catolicismo e
o Protestantismo, de um lado, e a Ortodoxia, de outro". O presidente da
Lituânia argumentou que, séculos atrás, os lituanos tiveram que escolher
entre "duas civilizações" e "optaram pelo mundo Latino, se converteram
100
ao Catolicismo Romano e escolheram uma forma de organização do
Estado fundamentada na lei". Com palavras análogas, os poloneses dizem
que eles fazem parte do Ocidente desde a escolha que fizeram no século
X do Cristianismo latino contra Bizâncio.3 Em contraste, as pessoas dos
países ortodoxos da Europa Oriental vêem com ambivalência a nova
ênfase que é atribuída a essa linha de fratura cultural. Os búlgaros e os
romenos vêem grandes vantagens em fazer parte do Ocidente e em se
incorporarem às suas instituições, porém eles também se identificam com
a sua própria tradição ortodoxa e, por parte dos búlgaros, com sua
associação historicamente estreita com a Rússia.
A identificação da Europa com a Cristandade ocidental fornece um
critério claro para a admissão de novos membros nas organizações
ocidentais. A União Européia é a principal entidade do Ocidente na
Europa, e a expansão do número de seus membros foi retomada em 1994
com a admissão da Áustria, da Finlândia e da Suécia, culturalmente
ocidentais. Na primavera de 1994, a União decidiu em caráter provisório
vedar o acesso como membros a todas as ex-repúblicas soviéticas, com
exceção dos Estados bálticos. Ela também celebrou "acordos de as-
sociação" com quatro Estados da Europa Central (Polônia, Hungria,
República Checa e Eslováquia) e dois da Europa Oriental (Romênia e
Bulgária). Entretanto, nenhum desses Estados tem probabilidade de se
tornar membro pleno da UE até algum momento no século XXI, e os
Estados da Europa Central sem dúvida atingirão essa condição antes da
Romênia e da Bulgária, caso, na realidade, estas algum dia cheguem a
atingi-la. Nesse ínterim, a futura admissão dos Estados bálticos e da
Eslovênia parece promissora, enquanto que as solicitações feitas pela
Turquia muçulmana, pela diminuta Malta e pelo Chipre ortodoxo ainda
estavam pendentes em 1995. Na expansão do número de membros da
UE, há uma nítida preferência por aqueles Estados que são culturalmente
ocidentais e que também tendem a ser mais desenvolvidos economica-
mente. Se esse critério for aplicado, os Estados de Visegrad (Polônia,
República Checa, Eslováquia e Hungria), as repúblicas bálticas, a Eslo-
vênia, a Croácia e Malta acabarão se tornando membros da UE e esta
será coincidente· com a civilização ocidental tal como ela exis~iu his-
toricamente na Europa.
A lógica das civilizações determina um desfecho análogo para a
expansão da OTAN. A Guerra Fria começou com a extensão do controle
político e militar da União Soviética sobre a Europa Central. Os Estados
Unidos e os países da Europa Ocidental formaram a OTAN para deter e,
se necessário, derrotar novas agressões soviéticas. No mundo pós-Guerra
Fria, a OTAN é o organismo de segurança da civilização ocidental. Com
a Guerra Fria terminada, a OTAN tem um objetivo fundamental e atraente:
assegurar que a Guerra Fria continue terminada por meio do impedimen-
to da reimposição do controle político e militar russo sobre a Europa
Central. Na qualidade de organismo de segurança do Ocidente, a OTAN
está, como é apropriado, aberta à admissão de países ocidentais que desejem
nela ingressar e que satisfaçam os requisitos básicos em termos de compe-
tência militar, democracia política e controle civil das forças armadas.
A política norte-americana em relação aos arranjos de segurança
europeus pós-Guerra Fria incorporava inicialmente um enfoque mais
universalista, encarnado na Parceria para a Paz, que estaria aberta, de
forma geral, aos países europeus e, na realidade, aos países eurasianos.
Esse enfoque também realçava o papel da Organização sobre Segurança
e Cooperação na Europa (OSCE). Ele se refletiu nas observações do
presidente Clinton quando visitou a Europa em janeiro de 1994: "As
fronteiras da liberdade devem agora ser definidas por um novo compor-
tamento, não pela história antiga. Digo a todos (. .. ) que irão traçar uma
nova linha na Europa: não devemos excluir previamente a possibilidade do
melhor futuro para a Europa - democracia por toda parte, economias de
mercado por toda parte, países cooperando pela segurança mútua por toda
parte. Precisamos nos resguardar contra um desfecho menor." Entretanto,
um ano depois, o governo tinha chegado ao reconhecimento da importân-
cia das fronteiras definidas pela "história antiga", e tinha chegado à
aceitação de um "desfecho menor" refletindo as realidades das diferenças
civilizacionais. O governo agiu de modo incisivo para desenvolver os
critérios e um cronograma para a expansão do número de membros da
OTAN, primeiro incluindo a Polônia, a Hungria, a República Checa e a
Eslováquia e depois, provavelmente, as repúblicas bálticas.
A Rússia se opôs firmemente a qualquer expansão da OTAN, com
aqueles dentre os russos que eram presumivelmente mais liberais e
pró-ocidentais argumentando que a expansão iria fortalecer muito as
forças políticas nacionalistas e antiocidentais na Rússia. Contudo, a
expansão da OTAN limitada aos países que historicamente fizeram parte
da Cristandade ocidental também garantia à Rússia que seriam excluídas
a Sérvia, a Bulgária, a Romênia, a Moldova, a Bielo-Rússia e a Ucrânia,
enquanto esta última permanecesse unida. A expansão da OTAN limitada
aos Estados ocidentais também sublinharia o papel da Rússia como o
Estado-núcleo de uma civilização ortodoxa à parte e, portanto, como um
201
país que deveria ser responsável pela ordem dentro e ao longo das
fronteiras da Ortodoxia, e que poderia e deveria lidar numa base de
igualdade com a OTAN e com os Estados-núcleos ocidentais.
A utilidade de se fazer uma diferenciação entre os países em termos
de civilização fica evidenciada no caso das repúblicas bálticas. Elas são
as únicas ex-repúblicas soviéticas que são claramente ocidentais em
termos de história, cultura e religião, e seu destino foi sempre uma grande
preocupação para o Ocidente. Os Estados Unidos nunca reconheceram
sua incorporação pela União Soviética, apoiaram sua ação pela indepen-
dência quando a União Soviética começou a desmoronar e insistiram em
que a Rússia tinha que observar o cronograma acordado para a retirada
de suas tropas dessas repúblicas. A mensagem para os russos foi de que
1
eles tinham que reconhecer que os países bálticos estão fora de qualquer
esfera de influência que desejem estabelecer em relação a outras
ex-repúblicas soviéticas. Esse resultado positivo do governo Clinton foi,
como disse o primeiro-ministro da Suécia, "uma de suas mais importantes
contribuições para a segurança e a estabilidade européias", e ajudou os
democratas russos ao determinar que quaisquer desígnios revanchistas
de nacionalistas extremados russos eram inúteis diante de um com-
promisso explícito ocidental para com essas repúblicas. 4
Embora se tenha dedicado muita atenção à expansão da União
Européia e da OTAN, a reconfiguração cultural dessas organizações
também suscita a questão de sua possível contração. Um país não-oci-
dental, a Grécia, é membro de ambas as organizações, e outro, a Turquia,
é membro da OTAN e candidato a membro da União. Esses relaciona-
mentos foram fruto da Guerra Fria. Será que eles têm cabimento no
mundo das civilizações pós-Guerra Fria?
A Turquia é um país dividido. Sua participação plena na União
Européia é problemática e improvável e sua participação na OTAN foi
atacada pelo Partido do Bem-Estar. Entretanto, é provável que a Turquia
continue como membro da OTAN, a menos que o Partido do Bem-Estar
consiga uma vitória eleitoral retumbante e/ou a Turquia, por alguma
outra forma, rejeite o legado de Ataturk e se redefina como líder do Islã.
Isso é concebível e poderia ser desejável para a Turquia, mas também é
improvável no futuro imediato. Qualquer que seja o seu papel na OTAN,
é provável que a Turquia cada vez mais busque seus próprios interesses
com relação aos Bálcãs, ao mundo árabe e à Ásia Central.
A Grécia não faz parte da civilização ocidental, porém foi a sede da
civilização clássica que, por sua vez, foi uma fonte importante da
202
civilização ocidental. Na sua oposição aos turcos, os gregos hist~~i
camente se consideraram como os lanceiros do Cristianismo. Ao contrano
de sérvios, romenos e búlgaros, sua história está intimamente entrelaçada
com a do Ocidente. No entanto, a Grécia também é uma anomalia, o
estranho ortodoxo nas organizações ocidentais. Nunca foi fácil para ela
ser membro quer da UE quer da OTAN, e ela teve dificuldades em se
adaptar aos princípios e costumes de ambas. De meados da década de
60 a meados da de 70, ela foi governada por uma junta militar e só pôde
entrar para a Comunidade Européia depois de passar a ser uma demo-
cracia. Seus dirigentes freqüentemente parecem se esforçar por desviar-se
das normas ocidentais e por antagonizar os governos ocidentais. Ela era
mais pobre do que os outros membros da Comunidade e da OTAN e,
muitas vezes, adotava políticas que pareciam desrespeitar os padrões
vigentes em Bruxelas. Seu comportamento na presidência do Conselho
da UE em 1994 exasperou outros membros, e autoridades européias
ocidentais, em privado, consideram um erro tê-la como membro.
No mundo pós-Guerra Fria, as políticas da Grécia se afastam cada
vez mais das do Ocidente. O bloqueio que impôs à Macedônia teve a
encarniçada oposição dos governos ocidentais e resultou na moção, pela
Comissão Européia, de uma ação cominatória contra a Grécia na Corte
Européia de Justiça. No contexto de seus conflitos com a ex-Iugoslávia,
a Grécia se separou das políticas adotadas pelas principais potências
ocidentais, apoiou ativamente os sérvios e violou flagrantemente as
sanções das Nações Unidas a eles impostas. Com o fim da União Soviética
e da ameaça comunista, a Grécia tem interesses mútuos com a Rússia em
oposição a seu inimigo comum, a Turquia. Ela permitiu que a Rússia
estabelecesse uma presença importante na parte grega de Chipre e, como
resultado de "sua religião ortodoxa oriental compartilhada", os cipriotas
gregos acolheram tanto russos como sérvios na ilha.5 Em 1995, cerca de
duas mil empresas de propriedade russa estavam operando em Chipre,
ali se publicavam jornais russos e servo-croatas e o governo cipriota grego
estava comprando grandes quantidades de armamento da Rússia. A
Grécia também explorou com a Rússia a possibilidade de trazer petróleo
do Cáucaso e da Ásia Central até o Mediterrâneo, por meio de um
oleoduto búlgaro-grego contornando a Turquia e outros países muçul-
manos. De modo geral, as diretrizes da política externa grega assumiram
uma orientação com forte teor ortodoxo. A Grécia indubitavelmente
continuará sendo, formalmente, membro da OTAN e da União Européia.
Entretanto, à medida que se intensifique o processo de reconfiguração
')(12
cultural, essas participações sem dúvida ficarão mais tênues, menos
significativas e mais difíceis para as partes envolvidas. O antagonista da
União Soviética na Guerra Fria está evoluindo para o aliado pós-Guerra
Fria da Rússia.
l
Enquanto a União Soviética era uma superpotência com interesses
g!o.~ais,. a Rússia é uma potência importante com interesses regionais e
c1vtl1zac1onais.
?f\A
Os países ortodoxos da antiga União Soviética são fundamentais
para o desenvolvimento de um bloco russo coerente nas questões
eurasianas e mundiais. Durante o desmembramento da União Soviética,
todos esses cinco países se moveram inicialmente numa direção altamen-
te nacionalista, enfatizando sua nova independência e seu distanciamento
de Moscou. Posteriormente, o reconhecimento das realidades econômi-
cas, geopolíticas e culturais levou os eleitores em quatro deles a eleger
governos pró-russos e a apoiar políticas pró-russas. Nesse países as
pessoas olham para a Rússia em busca de apoio e proteção. No quinto,
a Geórgia, a intervenção militar russa obrigou a uma mudança análoga
na posição do governo.
Historicamente, a Armênia identificou seus interesses com a Rússia,
e esta se orgulhava de ser a defensora da Armênia contra seus vizinhos
muçulmanos. Esse relacionamento foi revigorado nos anos pós-soviéticos.
Os armênios dependem da assistência econômica e militar russa e apoiaram
a Rússia em questões vinculadas às relações com as antigas repúblicas
soviéticas. Os dois países têm interesses estratégicos convergentes.
Ao contrário da Armênia, a Bielo-Rússia tem um reduzido sentimen-
to de identidade nacional. Além disso, ela é ainda mais dependente da
assistência russa. Muitos de seus habitantes parecem se identificar tanto
com a Rússia quanto com seu próprio país. Em janeiro de 1994, o
Legislativo substituiu no cargo de chefe de Estado um nacionalista
moderado, de centro, por um conservador pró-russo. Em julho de 1994,
80 por cento dos eleitores escolheram para presidente um pró-russo
extremado, aliado de Vladimir Zhirinovsky. A Bielo-Rússia logo aderiu à
Comunidade dos Estados Independentes (CEI), foi membro fundador da
união ec;~ôrnica-criada.-em-199".)com a Rússia e a Ucrânia, concordou
com uma união monetária com a Rússia, entregou suas armas nucleares
à Rússia e concordou com o aquartelamento de tropas russas em seu
território até o final deste século. Na realidade, a Bielo-Rússia só não é
parte da Rússia no nome.
Depois que, com o colapso da União Soviética, a Moldava ficou
independente, muitos esperavam que ela acabasse por se reintegrar à
Romênia. O medo de que isso acontecesse, por sua vez, estimulou um
movimento secessionista no leste russificado, com o apoio tácito de
Moscou e o apoio ativo do 14° Exército russo, e que levou à criação da
República do Trans-Dniestr. Entretanto, os desejos dos moldóvios de
união com a Romênia arrefeceram, em decorrência dos problemas
econômicos dos dois países e da pressão econômica russa. A Moldava
aderiu à CEI e o comércio com a Rússia se expandiu. Em fevereiro de 1994,
os partidos pró-russos tiveram amplo êxito nas eleições parlamentares.
Nesses três Estados, a opinião pública, respondendo a uma certa
combinação de interesses estratégicos e econômicos, produziu governos
que favoreciam um alinhamento estreito com a Rússia. Um padrão algo
semelhante acabou ocorrendo na Ucrânia. Na Geórgia, o curso dos
acontecimentos foi diferente. A Geórgia foi um país independente até
1801, quando seu monarca, o rei George XIII, pediu a proteção russa
contra os turcos. Durante três anos depois da Revolução Russa, de 1918
a 1921, a Geórgia ficou mais uma vez independente, porém os bolchevis-
tas a incorpora;a~ à força à Uniã~ Soviética.\Qua~do a Uni:o Soviética
acabou, a Georgia uma vez mais declarou sua mdependencia. Uma
coalizão nacionalista ganhou as eleições, porém seu líder se engajou
numa repressão autodestrutiva e foi derrubado pela força. Edvard A.
Shevarnadze, que tinha sido ministro do Exterior da União Soviética
retornou para dirigir seu país e foi confirmado no poder nas eleições'
presidenciais, em 1992 e em 1995. Entretanto, foi confrontado por um
movimento separatista em Abkhásia, que recebeu considerável apoio
russo, bem como por uma insurreição pelo líder deposto, Gamsakhurdia.
Emulando o rei George, Shevarnadze chegou à conclusão de que "não
temos uma grande escolha" e voltou-se para Moscou em busca de auxílio.
As tropas russas intervieram para apoiá-lo, em troca do ingresso da
Geórgia na CEI. Em 1994, os georgianos concordaram em permitir que
os russos mantivessem três bases militares por um período indeter-
minado. Desse modo, a intervenção militar russa, primeiro para debilitar
o governo georgiano e depois para preservá-lo, trouxe a Geórgia, apesar
do seu espírito de independência, para o campo russo.
Afora a Rússia, a maior e mais importante ex-república soviética é
a Ucrânia. Em diversos momentos da História, a Ucrânia foi indepen-
dente. Contudo, durante a maior parte da era moderna ela fez parte de
uma entidade política governada de Moscou. O acontecimento decisivo
teve lugar em 1654, quando Bohdan Khmelnytsky, o líder cossaco de um
levante contra o domínio polonês, concordou em jurar lealdade ao tzar
em troca de ajuda contra os poloneses. A partir de então, até 1991, exceto
por um breve período como república independente, entre 1917 e 1920,
0
que é agora a Ucrânia foi controlado politicamente por Moscou.
Entretanto, a Ucrânia é um país rachado, com duas culturas distintas. A
linha de fratura civilizacional entre o Ocidente e a Ortodoxia passa através
J
do seu coração, e é assim há séculos. Em alguns momentos no passado,
a Ucrânia ocidental foi parte da Polônia, da Lituânia e do Império
Austro-húngaro. Uma grande parcela da sua população pertence à Igreja
Uniata, que pratica os ritos ortodoxos, mas reconhece a autoridade do
Papa. Historicamente, os ucranianos ocidentais sempre falaram ucraniano
e adotaram uma perspectiva fortemente nacionalista. As pessoas da
Ucrânia oriental, por outro lado, são predominantemente ortodoxas e,
em grande parte, falam russo. Os russos representam 22 por cento e os
que têm o russo como língua materna, 31 por cento do total da população
ucraniana. A maioria dos alunos das escolas primárias e secundárias têm
suas aulas em russo.6 A Criméia é predominantemente russa e fez parte
da Federação Russa até 1954, quando Krushchev a transferiu para a
Ucrânia, ostensivamente como reconhecimento pela decisão de Khmel-
nytsky de 300 anos antes.
As diferenças entre a Ucrânia oriental e ocidental se manifestam nas
atitudes de suas populações. No final de 1992, por exemplo, um terço
dos russos da Ucrânia ocidental disse que era alvo de animosidade
anti-russa, em comparação com apenas 10 por cento em Kiev.7 A divisão
entre leste e oeste ficou evidenciada de modo espetacular nas eleições
presidenciais de julho de 1994. O presidente no cargo, Leonid Kravchuk,
que se identificava como nacionalista apesar de trabalhar intimamente
com os dirigentes da Rússia, ganhou nas 13 províncias da Ucrânia
ocidental com maiorias que chegavam a até 90 por cento dos votos. Seu
adversário, Leonid Kuchma, que tomou aulas de ucraniano durante a
campanha, ganhou nas 13 províncias orientais por maiorias comparáveis.
No cômputo final, Kuchma ganhou com 52 por cento dos votos. Na
realidade, uma pequena maioria do povo ucraniano confirmou em 1994
a opção de Khmelnytsky em 1654. Como um perito norte-americano
comentou, a eleição "refletiu, cristalizou mesmo, a divisão entre os
eslavos europeizados da Ucrânia ocidental e a visão russo-eslava do que
a Ucrânia deveria ser. Não se trata tanto de polarização étnica, mas
sobretudo de culturas diferentes". 8
Como resultado dessa divisão, as relações entre a Ucrânia e a Rússia
poderiam se desenvolver de uma de três maneiras. No início dos anos
90, havia questões seriamente importantes entre os dois países a respeito
de armas nucleares, a Criméia, os direitos do russos na Ucrânia, a
esquadra do Mar Negro e as relações econômicas. Muitas pessoas
achavam que havia a probabilidade de um conflito armado, o que levou
alguns analistas ocidentais a argumentar que o Ocidente devia apoiar a
?f\7
\
UCRÂNIA: um país rachado
RÚSSIA
20R
primeiro apareceu em relação à Criméia. O povo da Criméia, cujo
percentual de russos está em 70 por cento, apoiou de forma ampla a
independência da Ucrânia da União Soviética num plebiscito em dezem-
bro de 1991. Em maio de 1?92, o Parlamento da Criméia também aprovou
uma moção para declarar sua independência da Ucrânia e depois, sob
pressão ucraniana, rescindiu essa decisão. Entretanto, o Parlamento russo
decidiu por votação cancelar a cessão da Criméia à Ucrânia feita em 1954.
Em janeiro de 1994, o povo da Criméia elegeu como presidente um
homem que fizera sua campanha com a plataforma de "união com a
Rússia". Isso induziu algumas pessoas a levantarem a questão: "Irá a
Criméia ser o próximo Nagomo-Karabakh ou Abkhásia?" 1º A resposta foi
um rotundo "Não!", enquanto o novo presidente da Criméia recuava de
seu compromisso de realizar um plebiscito sobre a independência e, em
vez disso, negociou com o governo de Kiev. Em maio de 1994, a situação
voltou a esquentar quando o Parlamento da Criméia votou a restauração
da Constituição de 1992, que a tomava virtualmente independente da
Ucrânia. Entretanto, uma vez mais, a moderação dos dirigentes russos e
ucranianos impediu que essa questão acabasse em violência e a vitória
nas eleições realizadas dois meses depois de Kuchma, pró-russo, como
presidente da Ucrânia, solapou a pressão pela secessão da Criméia.
Não obstante, essa eleição suscitou a possibilidade de que a parte
ocidental do país se separasse de uma Ucrânia que estava cada vez mais
chegada à Rússia. Alguns russos podiam ver isso com bons olhos. Como
comentou um general russo, "a Ucrânia, ou melhor, a Ucrânia oriental voltará
em cinco, 10 ou 15 anos. A Ucrânia ocidental pode ir para o infemo!". 11
Entretanto, tal pedaço remanescente de uma Ucrânia uniata e orientada para
o Ocidente só seria viável se tivesse um apoio forte e eficaz do Ocidente.
Por seu lado, esse apoio só teria probabilidade de se concretizar se as
relações entre o Ocidente e a Rússia se deteriorassem seriamente e viessem
a se parecer com as que existiam na época da Guerra Fria.
O terceiro e mais provável cenário é o de que a Ucrânia permanecerá
unida, permanecerá rachada, permanecerá independente e, de modo geral,
cooperará estreitamente com a Rússia. Uma vez resolvidas as questões
transitórias a respeito de armas nucleares e de forças armadas, as questões
de longo prazo mais graves serão as econômicas, cuja solução será facilitada
por uma cultura parcialmente compartilhada e por íntimos laços pessoais.
John Morrison assinalou que o relacionamento russo-ucraniano representa
para a Europa Oriental o que o relacionamento franco-alemão representa
para a Europa Ocidental.12 Da mesma forma que este constitui o núcleo
\
da União Européia, o primeiro é o núcleo essencial para a união do mundo
ortodoxo.
?1"
que, "antes de 1980, o mercado mais importante para Taiwan eram os
Estados Unidos, mas nos anos 90 sabemos que o fator mais crítico para
0 êxito da economia de Taiwan está no continente". A mão-de-obra
barata da parte continental constituía a principal atração para os inves-
tidores taiwaneses, que enfrentavam uma escassez de mão-de-obra em
seu país. Em 1994, entrou em andamento um processo inverso de
retificação do desequilíbrio capital-mão-de-obra entre as duas Chinas,
com as companhias pesqueiras taiwanesas contratando pessoas da parte
continental para tripular suas embarcações. 2 3
As ligações econômicas em desenvolvimento conduziram a nego-
ciações entre os dois governos. Em 1991, Taiwan criou a Fundação de
Intercâmbio dos Estreitos e a China continental criou a Associação para
as Relações através do Estreito de Taiwan, para as comunicações
recíprocas. Sua primeira reunião foi realizada em Singapura em abril de
1993, com reuniões posteriores realizadas na parte continental e em
Taiwan. Em agosto de 1994, chegou-se a um acordo "de abrir caminho",
que cobria uma série de questões-chave, e iniciou-se a especulação a
respeito de uma possível reunião de cúpula entre as principais autorida-
des dos dois governos.
Em meados dos anos 90, ainda havia questões importantes entre
Taipé e Pequim, inclusive as da soberania, da participação de Taiwan em
organismos internacionais e da possibilidade de que Taiwan se redefinisse
como um Estado independente. Entretanto, a probabilidade de que esta
hipótese se concretizasse tornou-se cada vez mais remota quando o principal
advogado da independência, o Partido Democrático Progressista, constatou
que os eleitores taiwaneses não queriam perturbar as relações existentes
com a China continental, e que suas perspectivas eleitorais seriam prejudi-
cadas se persistisse com essa questão. Os dirigentes do PDP enfatizaram
então que, se chegassem ao poder, a independência não seria um item
imediato do seu programa. Os dois governos também compartilhavam um
interesse comum em afirmar a soberania chinesa sobre as Ilhas Spratly e
outras, no Mar do Sul da China, e em assegurar o tratamento de nação
mais favorecida por parte dos Estados Unidos para o comércio da China
continental. Em meados dos anos 90, de forma lenta porém perceptível
e inelutável, as duas Chinas estavam se aproximando entre si e
desenvolvendo interesses comuns a partir de suas relações econômicas
em expansão e de sua identidade cultural compartilhada.
Esse movimento no rumo da acomodação foi sustado de forma
abrupta em 1995, quando o governo de Taiwan empreendeu agressiva
216
campanha pelo reconhecimento diplomático e admissão em organismos
internacionais, o presidente Lee Teng-hui fez uma visita "particular" aos
Estados Unidos e foram realizadas eleições legislativas no Estado-núcleo
em dezembro de 1995, seguidas por eleições presidenciais em março de
1996. Em resposta, o governo chinês fez provas de lançamento de mísseis
em águas próximas dos principais portos taiwaneses e efetuou manobras
militares ao largo da costa chinesa perto das ilhas controladas por Taiwan.
Esses desdobramentos suscitaram duas questões-chave: no momento
atual, é possível para Taiwan permanecer democrática sem se tornar
formalmente independente? No futuro, poderia Taiwan ser democrática
sem continuar sendo de fato independente?
Na prática, as relações de Taiwan com a China continental passaram
por duas fases e poderiam entrar numa terceira. Durante décadas, o
governo nacionalista afirmou que era o governo de toda a China. Essa
afirmação obviamente significava um conflito com o governo que de fato
constituía o governo de toda a China, com exceção de Taiwan. Na década
de 80, o governo em Taipé abandonou aquela pretensão e se definiu
como o governo de Taiwan, o que proporcionou a base para a
acomodação com a concepção da China continental de "um país, dois
sistemas". Diversos indivíduos e grupos, entretanto, enfatizavam cada vez
mais a identidade cultural própria de Taiwan, a relativa brevidade do
período sob o domínio chinês e seu idioma local, incompreensível para
os que falavam mandarim. Na realidade, eles estavam tentando definir a
sociedade taiwanesa como não-chinesa e, portanto, legitimamente in-
dependente da China. Além disso, à medida que o governo de Taiwan
se tornava mais atuante internacionalmente, também ele parecia estar
sugerindo que era um país independente e não parte da China. Em suma,
a autodefinição do governo de Taiwan parecia evoluir de governo de
toda a China para governo de parte da China e daí para governo de
nenhuma parte da China. Essa última posição, formalizando sua indepen-
dência de facto, seria inteiramente inaceitável para o governo de Pequim,
que afirmou repetidamente sua disposição de fazer uso da força para
impedir que ela se materializasse. Os dirigentes do governo chinês
também declararam que, após a incorporação à RPC de Hong Kong em
1997 e de Macau em 1999, iriam atuar a fim de reassociar Taiwan com a
parte continental. É de se presumir que a maneira como isso vai ocorrer
dependerá do grau com que cresça em Taiwan o apoio à independência
formal, o desfecho da luta pela sucessão em Pequim, que induz os líderes
políticos e militares a serem acentuadamente nacionalistas, e o desenvol-
vimento da capacidade militar chinesa a ponto de tornar factível o
bloqueio ou a invasão de Taiwan. Parece provável que, no começo do
século XXI, através de coerção, acomodação ou, mais provavelmente,
uma combinação de ambas, Taiwan ficará integrada mais intimamente
com a China continental.
Até o final da década de 70, eram frias as relações entre uma
Singapura firmemente anticomunista e a República Popular, e Lee Kuan
Yew e outros líderes singapurianos menosprezavam o atraso chinês.
Entretanto, quando o desenvolvimento econômico chinês decolou nos
anos 80, Singapura começou a se reorientar em direção à China conti-
nental, num clássico comportamento de se atrelar. Em 1992, Singapura
tinha investido 1,9 bilhão de dólares na China e, no ano seguinte, foram
anunciados planos para a construção de uma cidade industrial, "Singa-
pura II", nos arredores de Xangai, envolvendo bilhões de dólares de
investimento. Lee se tornou entusiasmado incentivador das perspectivas
econômicas da China e admirador do seu poderio. Em 1993, ele disse
que "a China é onde as coisas estão acontecendo".24 Os investimentos
externos de Singapura, que se tinham concentrado fortemente na Malásia
e na Indonésia, se deslocaram para a China. Metade dos projetos no exterior
assistidos pelo governo singapuriano em 1993 estavam na China. Na sua
primeira visita a Pequim, nos anos 70, consta que Lee Kuan Yew insistiu
em falar com os dirigentes chineses em inglês em vez de em mandarim. É
improvável que ele tivesse feito isso duas décadas depois.
')10
conflitos entre grnpos muçulmanos durante os anos após a II Guerra
Mundial, só ocorreram duas guerras maiores diretamente entre Estados
muçulmanos, ambas envolvendo invasões pelo Iraque a seus vizinhos.
Nos anos 70 e 80, os mesmos fatores que ensejaram o Ressurgimento
islâmico dentro dos países também fortaleceram a identificação com a
ummah ou civilização islâmica como um todo. Como um estudioso
observou em meados dos anos 80:
220
Mundial Muçulmana (uma criação saudita), bem como "numerosos, e
muitas vezes muito distantes, regimes, partidos, movimentos e causas
que, se acredita, compartilham de suas orientações ideológicas" e que
estão "enriquecendo o fluxo de informações e recursos entre os muçul-
manos". 29
Entretanto, o movimento da percepção islâmica para a coesão
islâmica envolve dois paradoxos. O primeiro é que o Islã está dividido
entre centros de poder competitivos, cada um tentando capitalizar sobre
a identificação muçulmana com a ummah a fim de promover a coesão
islâmica sob sua liderança. Essa competição prossegue entre os regimes
instalados e suas organizações, por um lado, e os regimes fundamentalis-
tas islâmicos e suas organizações, por outro. A Arábia Saudita assumiu a
liderança ao criar a Organização da Conferência Islâmica (OCI), em parte
para ter um contrapeso da Liga Árabe, que na época era dominada por
Nasser. Em 1991, depois da Guerra do Golfo, o líder sudanês Hassan
al-Turabi criou a Conferência Popular Árabe e Islâmica (CPAI), para
contrabalançar a OCI dominada pelos sauditas. À terceira reunião da
CPAI, em Cartum, no início de 1995, compareceram várias centenas de
delegados de organizações e movimentos fundamentalistas islâmicos de
80 países.30 Além dessas organizações formais, a guerra no Afeganistão
gerou uma extensa rede de grupos informais e clandestinos de veteranos,
que apareceram lutando por causas muçulmanas ou fundamentalistas
islâmicas na Argélia, Chechênia, Egito, Tunísia, Bósnia, Palestina, Filipi-
nas e em outros lugares. Depois da guerra, suas fileiras se renovaram
com combatentes treinados na Universidade de Dawa Jihad, nos ar-
redores de Peshawar, e em campos patrocinados por diversas facções e
pelos estrangeiros que os apoiavam no Afeganistão. Os interesses
comuns compartilhados pelos regimes e movimentos radicais superaram,
em certas ocasiões, antagonismos mais tradicionais e, com o apoio
iraniano, foram estabelecidas vinculações entre os grupos fundamentalis-
tas sunitas e xiitas. Há uma estreita colaboração militar entre o Sudão e
o Irã, a força aérea e a marinha iranianas utilizam instalações sudanesas,
e os dois governos cooperaram no apoio a grupos fundamentalistas na
Argélia e em outros lugares. Consta que Hassan al-Turabi e Saddam
Hussein desenvolveram laços estreitos em 1994, e Irã e Iraque se
encaminharam para a reconciliação.3 1
O segundo paradoxo é o de que a ummah pressupõe a ile-
gitimidade do Estado-nação e, no entanto, a ummah só pode ser
unificada através das ações de um ou mais Estados-núcleos fortes, que
221
atualmente não existem. A concepção do Islã como uma comunidade
religiosa e política fez com que, no passado, os Estados-núcleos tivessem
geralmente se materializado somente quando a liderança religiosa e
política - o califado e o sultanato - se combinavam numa única
instituição governante. A rápida conquista árabe, no século VII, do Norte
da África e do Oriente Médio, culminou no califado Omaiada, com sua
capital em Damasco. A ele se seguiu, no século VIII, o califado Abassida,
com sede em Bagdá e sob influência persa, com califados secundários
surgindo no Cairo e em Córdoba no século X. Quatrocentos anos depois,
os turcos otomanos varreram o Oriente Médio, conquistaram Cons-
tantinopla em 1453 e estabeleceram um novo califado em 1517. Mais ou
menos nessa época, outros povos túrquicos invadiram a Índia e fundaram
o império Mogol. A ascensão do Ocidente solapou os impérios Otomano
e Mogol, e o fim do Império Otomano deixou o Islã sem um Estado-nú-
cleo. Seus territórios foram, de modo considerável, divididos entre as
potências ocidentais, as quais, quando se retiraram, deixaram atrás de si
Estados frágeis, formados segundo um modelo ocidental, estranho às
tradições do Islã. Em conseqüência, durante a maior parte do século XX,
nenhum país muçulmano teve poder suficiente ou suficiente legitimidade
cultural e religiosa para assumir o papel de líder do Islã e ser como tal
aceito pelos demais países islâmicos e não-islâmicos.
A inexistência de um Estado-núcleo islâmico muito contribui para
os generalizados conflitos internos e externos que caracterizam 0 Islã. A
percepção sem a coesão é uma fonte de fraqueza do Islã e uma fonte de
ameaça para as outras civilizações. Terá essa condição alguma proba-
bilidade de se manter?
Um Estado-núcleo islâmico precisa possuir os recursos econômicos
o poderio militar, a capacidade organizacional e a identidade e ~
engajamento islâmicos para prover a liderança política e religiosa da
ummah. De tempos em tempos, seis Estados são mencionados como
po,ssíveis líderes do Islã. No momento atual, nenhum deles, contudo,
reune todos os requisitos para ser um Estado-núcleo eficaz. A Indonésia
é o maior país muçulmano e está crescendo economicamente com
rapidez. Entretanto, está situada na periferia do Islã, muito afastada do
seu centro árabe; seu Islamismo tem a feição mais tranqüila do Sudeste
Asiático, e seu povo e cultura são um misto de influências autóctones
muçulmanas,' hindus, chinesas e cristãs. O Egito é um país árabe, co~
u~a grande população, uma localização geográfica central e estrate-
gicamente importante e a principal instituição de ensino islâmico, a
222
Universidade Al-Azhar. Entretanto, é um país pobre, que depende
economicamente dos Estados Unidos, de instituições internacionais
controladas pelo Ocidente e pelos Estados árabes ricos em petróleo.
Irã, Paquistão e Arábia Saudita se definiram, todos, explicitamente
como países muçulmanos e tentaram de forma ativa exercer influência
sobre a ummah e a ela proporcionar liderança. Assim fazendo, compe-
tiram entre si patrocinando organizações, financiando grupos islâmicos,
dando apoio aos combatentes no Afeganistão e cortejando os povos
muçulmanos da Ásia Central. O Irã possui a dimensão, a localização
central, a população, as tradições históricas, os depósitos de petróleo e
um nível médio de desenvolvimento econômico que o qualificariam para
ser um Estado-núcleo islâmico. Contudo, 90 por cento dos muçulmanos
são sunitas e o Irã é xiita, o persa fica em um distante segundo lugar do
árabe como idioma do Islã, e as relações entre persas e árabes his-
toricamente sempre foram antagônicas.
O Paquistão tem dimensão, população e competência militar, e seus
líderes têm, de modo razoavelmente consistente, tentado reivindicar um
papel de promotor da cooperação entre os Estados islâmicos e de
porta-voz do Islã para o resto do mundo. Entretanto, o Paquistão é
relativamente pobre e padece de graves divisões internas étnicas e
regionais, um passado de instabilidade política e uma fixação no
problema de sua segurança diante da Índia, o que explica em grande
parte seu interesse por desenvolver relações íntimas com os outros países
islâmicos, bem como com potências não-muçulmanas como a China e
os Estados Unidos.
A Arábia Saudita foi o lar original do Islã, os santuários mais
sagrados do Islã estão lá, seu idioma é o idioma do Islã, ela detém as
maiores reservas de petróleo do mundo e a decorrente influência
financeira no mundo, e seu Governo moldou a sociedade saudita
segundo linhas estritamente islâmicas. Durante os anos 70 e 80, a Arábia
Saudita foi, isoladamente, a força mais influente no mundo muçulmano.
Ela despendeu bilhões de dólares apoiando causas muçulmanas pelo
mundo afora, de mesquitas e livros de estudo a partidos políticos,
organizações fundamentalistas islâmicas e movimentos terroristas, e o fez
de modo relativamente indiscriminado. Por outro lado, sua população
relativamente peq1,1ena e sua vulnerabilidade geográfica a fazem depen-
der do Ocidente no que se refere à sua segurança.
Finalmente, a Turquia tem a história, população, desenvolvimento
econômico de nível médio, coerência nacional e tradição e competência
223
militares para ser o Estado-núcleo do Islã. Entretanto, ao definir explici-
tamente a Turquia como uma sociedade secular, Ataturk impediu que a
República Turca sucedesse ao Império Otomano naquele papel. A
Turquia não conseguiu sequer se tornar membro fundador da OCI devido
ao compromisso com o secularismo incorporado à sua Constituição.
Enquanto a Turquia continuar a se definir como um Estado secular, a
liderança do Islã lhe estará vedada.
Contudo, o que aconteceria se a Turquia se redefinisse? Em algum
momento, a Turquia pode estar pronta para abandonar seu papel
frustrante e humilhante de mendiga que implora para ser admitida no
Ocidente, e retomar seu papel histórico, muito mais respeitável e
altaneiro, de principal interlocutor e antagonista islâmico do Ocidente.
O fundamentalismo tem estado em ascensão na Turquia; durante o
governo de ôzal, a Turquia fez grandes esforços para se identificar com
o mundo árabe, capitalizou sobre seus laços étnicos e lingüísticos para
desempenhar um papel modesto na Ásia Central e deu estímulo e apoio
aos muçulmanos da Bósnia. Dentre os países muçulmanos, a Turquia é
a única a ter amplas vinculações históricas com os muçulmanos dos
Bálcãs, do Oriente Médio, do Norte da África e da Ásia Central. É
concebível que a Turquia possa, na realidade, "dar uma de África do Sul":
abandonar o secularismo como sendo estranho ao seu modo de ser, tal
como a África do Sul abandonou o apartheid, e assim se transformar de
'
Estado pária na sua civilização em Estado líder dessa civilização. Tendo
experimentado o que há de melhor e de pior no Ocidente com o
Cristianismo e o apartheid, a África do Sul está qualificada de modo
especial para liderar a África. Da mesma maneira, tendo experimentado
o que há de pior e de melhor no Ocidente com o secularismo e a
democracia, a Turquia pode igualmente se qualificar para liderar o Islã.
Porém, para fazer isso, ela teria de rejeitar o legado de Ataturk de forma
1
mais radical do que a Rússia rejeitou o de Lênin. Seria também preciso
um líder do calibre de Ataturk, e que combinasse a legitimidade religiosa
e política, para transformar a Turquia de país dividido em Estado-núcleo.
224
IV
Os CHOQUES
DAS CIVILIZAÇÕES
'
1
CAPÍTULO 8
O Ocidente e o Resto:
Questões lntercivilizacionais
UNIVERSALISMO OCIDENTAL
??7
Unidos - para promover uma cultura ocidental universal, e a sua
decrescente capacidade para fazê-lo.
O colapso do comunismo exacerbou essa disparidade ao reforçar
no Ocidente a noção de que sua ideologia de liberalismo democrático
tinha triunfado em escala global e que, portanto, tinha validade universal.
o Ocidente - e em especial os Estados Unidos, que sempre foram uma
nação missionária - está convencido de que os povos não-ocidentais
deviam se dedicar aos valores ocidentais de democracia, mercados livres,
governos limitados, direitos humanos, individualismo e império da lei, e
de que deviam incorporar esses valores às suas instituições. Nas outras
civilizações, há minorias que abraçam e promovem esses valores, porém
as atitudes predominantes em relação a eles nas culturas não-ocidentais
variam de um ceticismo generalizado a uma intensa oposição. O que é
universalismo para o Ocidente é imperialismo para o resto.
O Ocidente está tentando e continuará a tentar manter sua posição
de preeminência e defender seus interesses, definindo-os como os
interesses da "comunidade mundial". Esta expressão se tomou o subs-
tantivo coletivo eufemístico (substituindo "o Mundo Livre") para dar
legitimidade global às ações que refletem os interesses dos Estados
Unidos e das outras potências ocidentais. O Ocidente está, por exemplo,
tentando integrar as economias das sociedades não-ocidentais num
sistema econômico global que é dominado por ele. Através do FMI e de
outras instituições econômicas internacionais, o Ocidente promove seus
interesses econômicos e impõe a outras nações as políticas econômicas
que ele considera apropriadas. Entretanto, em qualquer pesquisa de
opinião com povos não-ocidentais, o FMI sem dúvida receberia o apoio
dos ministros de Finanças e de algumas pessoas mais, porém teria um
resultado majoritariamente desfavorável de quase todos os demais, que
concordariam com a descrição feita por Georgi Arbatov das autoridades
do FMI como "neobolchevistas que adoram desapropriar o dinheiro das
outras pessoas, impondo regras estranhas e não-democráticas de conduta
econômica e política, e sufocando a liberdade econômica" .1
Tendo conquistado a independência política, as sociedades não-
ocidentais desejam se libertar do que consideram como dominação
econômica, militar e cultural pelo Ocidente. As sociedades da Ásia
Oriental estão bem adiantadas no caminho de se igualar economicamente
ao Ocidente. Os países asiáticos e islâmicos estão buscando atalhos para
contrabalançar militarmente o Ocidente. Eles também não hesitam em
apontar os hiatos entre os princípios ocidentais e as práticas ocidentais.
')')Q
A hipocrisia, os dois pesos e duas medidas e os "porém não" são o preço
das pretensões universalistas. Promove-se a democracia, porém não se
ela for levar os fundamentalistas islâmicos ao poder; prega-se a não-pro-
liferação em relação ao Irã e ao Iraque, porém não em relação a Israel;
o livre comércio é o elixir do crescimento econômico, porém não para
a agricultura; os direitos humanos constituem uma questão com a China,
porém não com a Arábia Saudita; a agressão contra os kuwaitianos donos
de petróleo encontra uma repulsa maciça, porém não a agressão contra
os bósnios desprovidos de petróleo. As aspirações universais da civiliza-
ção ocidental, o poder relativo decrescente do Ocidente e a postura
afirmativa cada vez maior das outras civilizações levam a relações de
modo geral difíceis entre o Ocidente e o resto. A natureza dessas relações
e o grau em que são antagônicas, porém, varia consideravelmente e cai
em três categorias. Com as civilizações desafiadoras - Islã e China-,
o Ocidente provavelmente terá relações invariavelmente tensas e muitas
vezes altamente antagônicas. Nas relações com a América Latina e com
a África, civilizações mais fracas que têm de alguma forma dependido
do Ocidente, os níveis de conflito serão muito mais baixos, especialmente
com a América Latina. As relações da Rússia, do Japão e da Índia com o
Ocidente provavelmente ficarão entre as dos outros dois grupos,
envolvendo elementos de cooperação e de conflito, na medida em que
esses três Estados-núcleos às vezes se alinham com as civilizações
desafiadoras e outras vezes com o Ocidente. Elas são as civilizações
"pêndulos" entre o Ocidente, de um lado, e as civilizações islâmica e
sínica, do outro.
O Islã e a China encarnam grandes tradições culturais muito'
diferentes das do Ocidente - e, aos. seus olhos, muito superiores a elas.
O poderio e a disposição afirmativa de ambos em relação ao Ocidente
estão aumentando, e os conflitos entre os seus valores e interesses e os
do Ocidente estão-se multiplicando e se intensificando. Como o Islã .....1
carece de um Estado-núcleo, suas relações com o Ocidente variam
grandemente de país para país. Entretanto, desde os anos 70 existe uma
tendência antiocidental razoavelmente consistente, marcada pela ascen-
são do fundamentalismo, mudanças do poder dentro dos países muçul-
manos de governos mais pró-ocidentais para mais antiocidentais, o
surgimento de uma quase-guerra entre alguns grupos islâmicos e o
Ocidente e o enfraquecimento dos vínculos de segurança que existiam
entre alguns Estados muçulmanos e os Estados Unidos no contexto da
Guerra Fria. Questões específicas entre o Ocidente e o Islã abrangeram
')'){\
a proliferação de armamentos, direitos humanos, terrorismo, imigração
e acesso ao petróleo. Com a China, elas abrangeram a proliferação de
armamentos, direitos humanos, comércio internacional, direitos de pro-
priedade e política econômica. Entretanto, por baixo dessas controvérsias
está a questão fundamental do papel que essas civilizações desempe-
nharão em relação com o Ocidente para moldar o futuro do mundo. Irão
as instituições mundiais, a distribuição do poder e a política e a economia
das nações em meados do século XXI refletir precipuamente os valores
e interesses ocidentais, ou irão elas ser precipuamente moldadas pelos
do Islã e da China?
A teoria realista das relações internacionais prediz que os Estados-
núcleos das civilizações não-ocidentais devem se congregar para contra-
balançar o poder dominante do Ocidente. Em algumas áreas, isso já
ocorreu. Contudo, uma coalizão antiocidental generalizada parece im-
provável no futuro imediato. As civilizações islâmica e sínica contêm, na
raiz de seu estilo de vida, muitas diferenças fundamentais em termos de
religião, cultura, estrutura social, tradições, política e pressupostos bási-
cos. É provável que, intrinsecamente, cada uma das duas tenha menos
em comum uma com a outra do que com a civilização ocidental. No
entanto, em política um inimigo comum cria um interesse comum. As
sociedades islâmicas e sínicas que vêem o Ocidente como seu antagonista
têm, assim, razões para cooperar entre si contra o Ocidente, da mesma
maneira como os Aliados e Stalin o fizeram contra Hitler. Essa cooperação
ocorre em torno de um leque de questões, inclusive direitos humanos,
economia e, mais notadamente, os esforços das sociedades em ambas as
civilizações para desenvolver sua capacidade militar, especialmente
armas de destruição em massa e os mísseis para lançá-las, a fim de se
contrapor à superioridade militar convencional do Ocidente. No início
dos anos 90, "havia-se estabelecido uma ligação confuciano-islâmica
entre a China e a Coréia do Norte, de um lado, e, em diferentes graus, o
Paquistão, o Irã, a Síria, a Líbia e a Argélia, do outro, a fim de confrontar
o Ocidente nessas questões".
As questões cada vez mais importantes na agenda internacional são
aquelas que dividem o Ocidente e essas outras sociedades. Três dessas
questões envolvem os esforços do Ocidente: (1) para manter sua
superioridade militar através de política de não-proliferação e contra pro-
liferação com relação a armas nucleares, biológicas e químicas e os meios
de lançá-las; (2) para promover os valores e as instituições políticas do
Ocidente através de pressões sobre as outras sociedades para que
2~0
respeitem os direitos humanos tal como concebidos no Ocidente e
adotem a democracia segundo as linhas ocidentais e (3) para proteger a
integridade cultural, social e étnica das sociedades ocidentais, através da
restrição do número de não-ocidentais admitidos como imigrantes ou
refugiados. Em todas essas três áreas, o Ocidente teve e é provável que
continue a ter dificuldades para defender os seus interesses contra os das
sociedades não-ocidentais.
PROLIFERAÇÃO DE ARMAS
234
da Coréia do Norte-, de um lado, e o Paquistão e o Irã, do outro. Entre
1980 e 1991, os dois principais recipientes de armas chinesas foram o Irã
e 0 Paquistão, com o Iraque vindo atrás. A partir da década de 70, a
China e 0 Paquistão desenvolveram um relacionamento militar extrema-
mente íntimo. Em 1989, os dois países assinaram um memorando de
entendimento, com validade de 10 anos, para a "cooperação militar em
todos os campos de compra, pesquisa e desenvolvimento conjuntos,
produção conjunta, transferência de tecnologia, bem como exportação
para terceiros países através de acordo mútuo". Em 1991 foi assinado um
acordo suplementar prevendo créditos chineses para as compras de
armas pelo Paquistão. Em conseqüência, a China se tomou "o maior e
mais confiável fornecedor de equipamento militar para o Paquistão,
transferindo material de utilização militar de praticamente todos os tipos
e destinados a todos os ramos das forças armadas paquistanesas". A China
também ajudou o Paquistão a criar fábricas de aviões a jato, tanques,
canhões e mísseis. De importância muito maior foi o fato de a China ter
proporcionado ao Paquistão auxílio essencial para o desenvolvimento
de sua capacidade em armas nucleares, aparentemente fornecendo ao
Paquistão urânio para enriquecimento, prestando assessoramento para o
desenho de bombas e possivelmente permitindo ao Paquistão detonar
um artefato nuclear num campo de provas chinês. Posteriormente, a
China forneceu ao Paquistão mísseis balísticos M-11, com um alcance de
300km, capazes de lançar ogivas nucleares, violando desse modo um
compromisso que assumira com os Estados Unidos. Em troca, a China
obteve do Paquistão tecnologia de reabastecimento em vôo e de mísseis
do tipo "Stinger". 7
Ao se chegar aos anos 90, haviam-se intensificado as conexões em
tomo de armamentos também entre a China e o Irã. Durante a Guerra
Irã-Iraque, nos anos 80, a China forneceu ao Irã 22 por cento de seus
armamentos e, em 1989, se tomou seu maior fornecedor individual. A
China também colaborou ativamente com os esforços abertamente
declarados do Irã de obter armas nucleares. Depois de assinar "um acordo
inicial de cooperação sino-iraniano", os dois países acordaram, em
janeiro de 1990, um entendimento, com validade de 10 anos, sobre
cooperação científica e transferências de tecnologia militar. Em setembro
de 1992, o presidente Rafsanjani, acompanhado por peritos nucleares
iranianos, visitou o Paquistão. Daí prosseguiu viagem até a China, onde
,\ assinou outro acordo para a cooperação na área nuclear e, em fevereiro
Jl
de 1993, a China concordou em construir no Irã dois reatores nucleares
QUADRO 8.1
TRANSFERÊNCIAS DE ARMAS PELA CHINA/ 1980-1991 (dados selecionados)
Fonte: Karl W. Eikenberry, Explaining and lnfluencing Chinese Anns Transfer[Para Explicar as Transferências
de Armas pela China e Influir sobre Elas] (Washington: National Defense University, lnstitute for National Strategic
Studies, McNair Paper No. 36, fevereiro, 1995), p. 12.
2'..\9
atender aos interesses dos Estados Unidos e do Ocidente. Entretanto, em
1995, os Estados Unidos e o Ocidente continuavam engajados numa
política de contenção que, no final, tenderá a fracassar. A proliferação
das armas nucleares e outras armas de destruição em massa é um
fenômeno essencial da lenta porém inelutável disseminação do poder
num mundo multicivilizacional.
?40
endossada pelo governo Bush e o secretário de Estado James Baker
declarou, em abril de 1990, que "para lá da contenção está a democracia"
e que, para o mundo pós-Guerra Fria, "o presidente Bush definiu nossa
nova missão como sendo a promoção e a consolidação da democracia".
Na sua campanha eleitoral de 1992, Bill Clinton disse repetidas vezes que
a promoção da democracia iria ter alta prioridade no governo Clinton, e
a democratização foi o único tópico de política externa ao qual ele
devotou inteiramente um dos principais discursos da campanha. Uma
vez no cargo, ele recomendou um aumento de dois terços dos recursos
financeiros do Fundo Nacional para a Democracia, seu assistente para
Segurança Nacional definiu o tema central da política externa de Clinton
como sendo "a ampliação da democracia" e seu secretário de Defesa
identificou a promoção da democracia como um dos quatro objetivos
principais, e tentou criar um cargo de alto nível no seu Departamento
1
' '
para promovê-lo. Em menor grau e de modo menos óbvio, a promoção
dos direitos humanos e da democracia assumiu um papel de destaque
na política-externa dos Estados europeus e nos critérios utilizados pelas
instituições econômicas internacionais controladas pelo Ocidente para a
1 concessão de empréstimos e doações aos países em desenvolvimento.
Ao se chegar a 1995, os esforços europeus e norte-americanos para
atingir esses objetivos tinham tido um êxito limitado. Quase todas as
civilizações não-ocidentais resistiram a essa pressão do Ocidente. Aí se
... ~.
Ele tem razão. Conquanto o acordo sobre assuntos nucleares entre
os Estados Unidos e a Coréia do Norte possa ser apropriadamente
denominado de "rendição negociada", a capitulação dos Estados Unidos
sobre as questões de direitos humanos com a China e outras potências
asiáticas foi uma rendição incondicional. Depois de ameaçar a China com
a denegação do tratamento de nação mais favorecida caso ela não se
mostrasse mais efetiva quanto aos direitos humanos, o governo Clinton
primeiro viu seu secretário de Estado humilhado erri Pequim, tendo-lhe
sido negado até mesmo um gesto para "salvar as aparências", e depois
reagiu a esse comportamento, renunciando à sua diretriz anterior,
separando a condição de nação mais favorecida das preocupações com
direitos humanos. A China, por sua vez, reagiu a essa demonstração de
fraqueza continuando e intensificando o comportamento a que o governo
Clinton objetara. O governo empreendeu retiradas análogas nas suas
1
tratativas com Singapura, a propósito da sentença de surra de vara
aplicada a um cidadão norte-americano, e com a Indonésia, em relação
à repressão violenta em Timor Oriental.
A capacidade dos governos asiáticos de resistir a pressões ocidentais
vinculadas a direitos humanos foi reforçada por vários fatores. Empresas
norte-americanas e européias, desesperadamente ansiosas por expan-
direm seus negócios e seus investimentos nesses países em rápido
crescimento, submeteram seus próprios governos a intensas pressões
para não prejudicarem as relações econômicas com aqueles países. Além
disso, os países asiáticos encararam as pressões ocidentais como uma
violação da sua soberania e acorreram em apoio uns dos outros quando
essas questões foram levantadas. Homens de negócios de Taiwan, Japão
e Hong Kong, que haviam investido na China, tinham um grande
interesse em que a China retivesse os privilégios de nação mais favorecida
nos Estados Unidos. O governo japonês distanciou-se, de forma genera-
lizada, das diretrizes norte-americanas sobre direitos humanos. O primei-
ro-ministro Kiichi Miyazawa disse, pouco depois do episódio da Praça
Tiananmen, que não permitiremos que "noções abstratas de direitos
humanos" afetem nossas relações com a China. Os países da ASEAN não
se mostraram dispostos a exercer pressão sobre Myanmar e, na realidade,
em 1994 acolheram a junta militar à sua reunião, enquanto que a União
Européia, como disse seu porta-voz, teve que reconhecer que sua política
"não tinha tido muito êxito" e que teria de acompanhar a postura da
ASEAN em relação a Myanmar. Além disso, o crescente poder econômico
de Estados como a Malásia e a Indonésia permitiu-lhes aplicar "con-
dicionalidades ao revés" a países e empresas que os criticassem ou
adotassem outras formas de comportamento que elas julgassem objetá-
veis.14
De modo geral, o crescente poder econômico dos países asiáticos
os torna cada vez mais imunes às pressões ocidentais no que se refere
aos direitos humanos e à democracia. Em 1994, Richard Nixon comentou
que, "atualmente, o poder econômico da China torna imprudentes
sermões dos Estados Unidos sobre direitos humanos. Dentro de uma
década, ele os tornará irrelevantes. Dentro de duas décadas, os tomará
risíveis". 15 Entretanto, quando se chegar a essa altura, o desenvolvimento
econômico chinês bem pode tornar os sermões ocidentais desnecessários.
O crescimento econômico está fortalecendo os governos asiáticos em
1 relação aos governos ocidentais. Num prazo mais longo, ele também
fortalecerá as sociedades asiáticas em relação aos governos asiáticos. Se
a democracia chegar a outros países asiáticos, isso se dará porque as cada
vez mais fortes burguesias e classes médias asiáticas assim o terão
desejado.
Contrastando com a concordância quanto à prorrogação indefinida
do tratado de não-proliferação, de modo geral em nada resultaram os
esforços ocidentais para promover os direitos humanos e a democracia
nos órgãos das Nações Unidas. Com poucas exceções, como as que
condenaram o Iraque, as resoluções sobre direitos humanos foram quase
sempre derrotadas nas votações nas Nações Unidas. Afora alguns países
latino-americanos, os demais governos relutaram em aderir a esforços
pela promoção do que muitos viam como "imperialismo dos direitos
humanos". Em 1990, por exemplo, a Suécia apresentou, em nome de 20
nações ocidentais, uma resolução condenando o regime militar de
Myanmar, porém ela foi liquidada pela oposição dos asiáticos e de outros
países. As resoluções condenando o Irã por abusos contra os direitos
humanos também foram derrotadas nas votações. Durante cinco anos
consecutivos na década de 90, a China conseguiu mobilizar o apoio
asiático para derrotar resoluções patrocinadas pelo Ocidente que expres-
savam preocupação quanto às suas violações dos direitos humanos. Em
1994, o Paquistão apresentou uma resolução na Comissão de Direitos
Humanos das Nações Unidas condenando as violações de direitos
humanos perpetradas pela Índia em Caxemira. Os países com simpatias
pela Índia se uniram contra ela, mas também o fizeram dois dos melhores
amigos do Paquistão, a China e o Irã, que tinham sido alvo de medidas
similares e que persuadiram o Paquistão a retirar o projeto. A revista 1be
Economist comentou que, ao deixar de condenar a brutalidade indiana
em Caxemira, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas "as
havia aprovado por omissão. Outros países também estão cometendo
atrocidades impunemente: Turquia, Indonésia, Colômbia e Argélia esca-
param todos das críticas. Desse modo, a Comissão está endossando os
governos que praticam carnificina e tortura, o que é exatamente o oposto
do que seus criadores pretendiam" .16
As divergências quanto a direitos humanos· entre o Ocidente e
outras civilizações, bem como a capacidade limitada do Ocidente de
atingir seus objetivos, ficaram claramente reveladas na Conferência
Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, realizada em Viena
em junho de 1993. De um lado estavam os países europeus e norte-ame-
ricanos e do outro estava um bloco de cerca de 50 Estados não-ocidentais,
dos quais os 15 mais atuantes incluíam os governos de um país
latino-americano (Cuba), um país budista (Myanmar), quatro países
confucianos com ideologias políticas, sistemas econômicos e níveis de
desenvolvimento muito diversos (Singapura, Vietnã, Coréia do Norte e
China) e nove países muçulmanos (Malásia, Indonésia, Paquistão, Irã,
Iraque, Síria, Iêmen, Sudão e Líbia). A liderança desse agrupamento
asiático-islâmico veio da China, da Síria e do Irã. A meia distância desses
dois agrupamentos estavam os países latino-americanos que, com exce-
ção de Cuba, freqüentemente apoiavam o Ocidente, e os países africanos
e ortodoxos que às vezes davam apoio, mas freqüentemente se opunham
1
às posições ocidentais.
As questões em tomo das quais os países se dividiam segundo as
linhas civilizacionais compreendiam as seguintes: universalidade versus
relativismo cultural com respeito a direitos humanos, a relativa prioridade
dos direitos econômicos e sociais (inclusive o direito ao desenvolvimen-
to) versus os direitos políticos e civis, a condicionalidade política com
respeito à assistência econômica, a criação de um Comissário das Nações
Unidas para Direitos Humanos, o grau em que as organizações não-go-
vernamentais que estavam reunidas simultaneamente em Viena deviam
poder participar da Conferência governamental, os direitos específicos
que deveriam ser endossados pela Conferência, bem como questões mais
específicas tais como se o dalai-lama devia ter permissão para se dirigir
à Conferência e se os abusos contra os direitos humanos na Bósnia
deviam ser condenados de forma explícita.
Havia grandes divergências entre os países ocidentais e o bloco
asiático-islâmico sobre essas questões. Dois meses antes da Conferência
?ÁÁ
de Viena, os países asiáticos se reuniram em Bangcoc e aprovaram uma
declaração que enfatizava que os direitos humanos deviam ser conside-
rados "no contexto (. .. )das particularidades nacionais e regionais e dos
diversos antecedentes históricos, religiosos e culturais", que o monitora-
mento dos direitos humanos violava a soberania dos Estados e que o
condicionamento da assistência econômica ao desempenho quanto aos
direitos humanos era contrário ao direito ao desenvolvimento. As diver-
gências sobre essas e outras questões foram tão grandes que quase todo
o texto do documento produzido no final da reunião preparatória da
Conferência de Viena, realizada em Genebra no início de maio, estava
entre colchetes, indicando discordância por parte de um ou mais países.
As nações ocidentais estavam mal preparadas para Viena, .estavam
em inferioridade numérica na Conferência e, durante os seus trabalhos,
fizeram mais concessões do que seus oponentes. Como resultado, afora
um firme endosso dos direitos das mulheres, a declaração aprovada pela
Conferência teve um conteúdo mínimo. Como assinalou um defensor
dos direitos humanos, era um documento "falho e contraditório" e
representava uma vitória da coalizão asiático-islâmica e uma derrota do
Ocidente. 17 A declaração de Viena não continha nenhum endosso
explícito dos direitos de liberdade de expressão, de imprensa, de reunião
ou de religião, e ficou assim, em muitos aspectos, mais fraca do que a
Pequim
Sydney
Manchester
Berlim
Primeiro
32
30
11
Segundo
37
30
13
Terceiro
40
37
11
Quarto
43
45 !
9 9
Istambul 7
abstenção
TOTAL 89 89 89 89
Não só a influência ocidental está menor, como também o paradoxo
da democracia enfraquece ·a vontade ocidental de promover a democra-
cia no mundo pós-Guerra Fria. Durante a Guerra Fria, o Ocidente e os
Estados Unidos em especial se defrontavam com o problema do "tirano
amistoso": os dilemas de cooperar com ditadores e juntas militares que
eram anticomunistas e por isso parceiros úteis na Guerra Fria. Essa
cooperação produziu mal-estar e, às vezes, embaraços quando esses
regimes cometiam violações revoltantes dos direitos humanos. Entretan-
to, a cooperação podia ser justificada como o mal menor: esses governos
geralmente eram menos repressivos do que os regimes comunistas e se
podia supor que seriam menos duráveis e também mais suscetíveis às
influências norte-americanas e de outras origens externas. Por que não
trabalhar com um tirano amistoso menos brutal se a alternativa era outro
mais brutal e inamistoso? No mundo pós-Guerra Fria, a escolha pode ser
mais difícil: entre um tirano amistoso e uma democracia inamistosa. A
suposição gratuita do Ocidente de que governos eleitos democraticamen-
te serão cooperativos e pró-ocidentais não se confirma em sociedades
não-ocidentais em que a competição eleitoral pode levar ao poder
nacionalistas e fundamentalistas antiocidentais. O Ocidente ficou aliviado
quando os militares argelinos intervieram em 1992 e suspenderam as
eleições em que a fundamentalista FIS ia indubitavelmente sair vitoriosa.
Os governos ocidentais também se tranqüilizaram quando o funda-
mentalista Partido do Bem-Estar, na Turquia, e o nacionalista BJP, na
Índia, foram alijados do poder depois de lograr vitórias eleitorais em 1995
e 1996, respectivamente. Por outro lado, em alguns aspectos, o Irã possui,
dentro do contexto da sua revolução, um dos regimes mais democráticos
do mundo islâmico, e eleições livres em muitos países árabes, inclusive
Arábia Saudita e Egito, iriam quase certamente produzir governos muito
menos simpáticos aos interesses ocidentais do que seus predecessores
não-democráticos. Um governo eleito pela via popular na China bem
poderia ser profundamente nacionalista. À medida que os líderes ociden-
!
tais se dão conta de que os processos democráticos nas sociedades
não-ocidentais freqüentemente produzem governos hostis ao Ocidente,
tentam exercer influência nessas eleições, bem como perdem seu entu-
~ siasmo por promover a democracia nessas sociedades.
IMIGRAÇÃO
?Âi
condições econômicas e políticas governamentais produziram migrações
maciças de gregos, judeus, tribos germânicas, nórdicos, turcos, russos,
chineses e outros. Em alguns casos, esses movimentos foram relativa-
mente pacíficos em outros, bastante violentos. Entretanto, os europeus
do século XIX foram a raça superior em termos de invasão demográfica.
Entre 1821e1924, aproximadamente 55 milhões de europeus emigraram
para o ultramar, dos quais 34 milhões para os Estados Unidos. Os
ocidentais conquistaram e, algumas vezes, obliteraram outros povos,
exploraram e colonizaram terras menos densamente povoadas. A expor-
tação de pessoas foi talvez a mais importante dimensão da ascensão do
Ocidente entre os séculos XVI e XX.
O final do século XX presenciou um surto diferente e ainda maior
de migrações. Em 1990, os migrantes legais internacionais totalizavam
cerca de 100 milhões, os refugiados cerca de 19 milhões e os migrantes
ilegais provavelmente mais 10 milhões, no mínimo. Essa nova onda de
migrações foi, em parte, fruto da descolonização, da criação de novos
Estados e de políticas oficiais que encorajavam ou forçavam as pessoas
a se mudar. Contudo, foi também fruto da modernização e do desenvol-
vimento tecnológico. Os avanços nos meios de transporte tornaram as
migrações mais fáceis, mais rápidas e mais baratas; os avanços nas
comunicações aumentaram os incentivos para buscar oportunidades
econômicas e promoveram as relações entre os imigrantes e suas famílias
nos países de origem. Além disso, do mesmo modo que o crescimento
econômico do Ocidente estimulou a emigração no século XIX, o
desenvolvimento econômico das sociedades não-ocidentais estimulou a
emigração no século XX. As migrações passam a ser um processo que
se autofortalece. Myron Weiner argumenta que "se existe uma única 'lei'
sobre migrações, é a de que o fluxo migratório, uma vez iniciado, induz
seu próprio fluxo. Os imigrantes habilitam seus amigos e familiares no
país de origem a imigrarem ao lhes proporcionarem informações sobre
como imigrar, recursos para facilitar o seu deslocamento e assistência
para encontrar emprego e moradia". O resultado é, nas suas palavras,
"uma crise mundial de migrações''.21
Os ocidentais têm se oposto, de modo consistente e amplo, à
proliferação nuclear e apoiado a democracia e os direitos humanos. Suas
posturas quanto à imigração, pelo contrário, têm sido ambivalentes e têm
mudado com sua evolução, alterando-se de forma significativa nas
últimas duas décadas do século XX. Até os anos 70, os países europeus
tinham, de forma geral, uma disposição favorável à imigração e, em
')ÀQ
alguns casos, notadamente Alemanha e Suíça, a encorajavam a fim de
remediar a escassez de mão-de-obra. Em 1965, os Estados Unidos
aboliram as quotas orientadas para os europeus, que datavam dos anos
20, e reviram de modo drástico sua legislação, possibilitando enormes
aumentos de quantidade e novas fontes de imigrantes nas décadas de 70
e 80. Entretanto, no final dos anos 80, as altas taxas de desemprego, o
número elevado de imigrantes e a característica de serem predominan-
temente "não-europeus" produziram severas mudanças nas atitudes e na
política dos países europeus. Alguns anos depois, preocupações análogas
levaram a uma mudança comparável nos Estados Unidos.
A maioria dos migrantes e refugiados do final do século XX
deslocaram-se de uma sociedade não-ocidental para outra. O fluxo de
migrantes para as sociedades ocidentais, entretanto, se aproximou, em
números absolutos, da emigração ocidental do século XIX. Em 1990,
estimava-se que havia 20 milhões de imigrantes nos Estados Unidos, 15,5
milhões na Europa e 8 milhões na Austrália e no Canadá. A proporção
de imigrantes no total da população atingiu de sete a oito por cento nos
principais países europeus. Nos Estados Unidos, os imigrantes cons-
tituíam 8,7 por cento da população em 1994, o dobro de 1970, e
compunham 25 por cento da população da Califórnia e 16 por cento da
de Nova York. Cerca de 8,3 milhões de pessoas entraram nos Estados
Unidos nos anos 80 e 4,5 milhões nos primeiros quatro anos da década
de 90.
Em sua maioria, os novos imigrantes vieram de sociedades não-oci-
dentais. Na Alemanha, os residentes estrangeiros turcos somavam
1.675.000 em 1990, com a Iugoslávia, Itália e Grécia fornecendo os
seguintes maiores contingentes. Na Itália, as principais fontes eram o
Marrocos, os Estados Unidos (presumivelmente, sobretudo ítalo-ameri-
canos regressando), a Tunísia e as Filipinas. Em meados de 1990,
aproximadamente quatro milhões de muçulmanos viviam na França e
até 13 milhões em toda a Europa Ocidental. Na década de 50, dois terços
dos imigrantes nos Estados Unidos provinham da Europa e do Canadá;
na década de 80, cerca de 35 por cento de um número muito maior de
imigrantes provinham da Ásia, 45 por cento da América Latina e menos
de 15 por cento da Europa e do Canadá. O crescimento natural da
população nos Estados Unidos é baixo e praticamente zero na Europa.
Os migrantes têm altas taxas de fertilidade e por isso respondem pela
maior parte do futuro crescimento populacional nas sociedades ociden-
tais. Em conseqüência, os ocidentais cada vez mais receiam "estarem
atualmente sendo invadidos, não por exércitos e tanques, mas por
migrantes que falam outros idiomas, adoram outros deuses, pertencem
a outras culturas e, temem eles, irão tomar seus empregos, ocupar suas
terras, viver à custa do sistema de previdência social e ameaçar seu estilo
de vida".22 Stanley Hoffmann assinala que essas fobias, com raízes no
declínio demográfico relativo, "estão baseadas em choques culturais
genuínos a respeito da identidade nacional". 23
Nos primeiros anos da década de 90, dois terÇos dos migrantes na
Europa eram muçulmanos e a preocupação européia com a imigração
era sobretudo com a imigração muçulmana. O desafio é demográfico -
os migrantes respondem por 10 por cento dos nascimentos na Europa
Ocidental, os árabes por 50 por cento dos nascimentos em Bruxelas -
e cultural. As comunidades muçulmanas, quer sejam turcos na Alemanha,
quer argelinos na França, não se integraram nas respectivas culturas
anfitriãs e, para a preocupação dos europeus, dão poucos sinais de virem
a se integrar. Jean Marie Domenach disse em 1991 que "há um medo
crescente em toda a Europa de uma comunidade muçulmana que
atravesse as linhas européias, uma espécie de décima terceira nação na
Comunidade Européia". Com relação aos imigrantes, um jornalista nor-
te-americano comentou que
2'\7.
A questão da imigração veio à tona um tanto mais tarde nos Estados
Unidos do que na Europa e não chegou a gerar a mesma crise emocional.
Os Estados Unidos sempre foram país de imigrantes, assim se considera e,
historicamente, desenvolveu processos muito bem-sucedidos para a as-
similação dos recém-chegados. Além disso, nos anos 80 e 90, o desemprego
era consideravelmente menor nos Estados Unidos do que na Europa, e o
medo de perda do emprego não foi um fator decisivo para moldar as atitudes
quanto à imigração. Ademais, as fontes da imigração nos Estados Unidos
foram mais diversificadas do que na Europa e, desse modo, o medo de
serem inundados por um único grupo estrangeiro foi menor em âmbito
nacional, embora fosse muito concreto em algumas localidades em
particular. A distância cultural entre os dois maiores grupos de imigrantes
e a cultura anfitriã também foi menor do que na Europa: os mexicanos
são católicos e falam espanhol; os filipinos são católicos e falam inglês.
Apesar desses fatores, no quarto de século depois da passagem da
lei de 1965 que permitiu uma imigração muito maior de asiáticos e
latino-americanos, a opinião pública norte-americana mudou de maneira
decisiva. Em 1965, apenas 33 por cento do povo queriam menos
imigração. Em 1972, 42 por cento queriam sua redução, em 1986 eram
49 por cento e em 1990 e 1993 esse número subiu para 62 por cento. As
pesquisas de opinião feitas nos anos 90 revelaram de maneira sistemática
que 60 por cento ou mais do povo eram a favor de uma redução na
imigração. 27 Conquanto as preocupações econômicas e as condições
econômicas afetem as atitudes para com a imigração, a oposição que
cresce de modo sistemático em tempos bons e ruins sugere que cultura,
criminalidade e estilo de vida foram mais importantes para essa mudança
de opinião. Um observador comentou em 1994 que "muitos norte-ame-
ricanos, talvez a maioria deles, ainda vêem sua nação como um país de
colonização européia, cujas leis são uma herança da Inglaterra, cujo
idioma é (e deve continuar a ser) o inglês, cujas instituições e edifícios
públicos foram inspirados por normas clássicas ocidentais, cuja religião
tem raízes judaico-cristãs, e cuja grandeza surgiu inicialmente da ética de
trabalho protestante". Refletindo essas preocupações, 55 por cento de
uma amostragem da opinião pública disseram que consideravam a
imigração uma ameaça para a cultura norte-americana. Enquanto os
europeus vêem a ameaça da imigração como muçulmana ou árabe, os
norte-americanos a vêem como latino-americana e asiática, mas sobretu-
do como mexicana. Em 1990, uma amostragem de norte-americanos,
perguntados sobre de quais países os Estados Unidos estavam admitindo
2"i~
1m1grantes em demasia, revelou que o México era citado o dobro de 1
vezes do que qualquer outro país, seguido, em ordem decrescente, por
Cuba, Oriente (não especificados os países), América do Sul e América
Latina (não especificados os países), Japão, Vietnã, China e Coréia do Sul.28
Uma crescente oposição do povo à imigração nos primeiros anos
da década de 90 induziu uma reação política análoga à que ocorreu na
Europa. Dada a natureza do sistema político norte-americano, partidos
direitistas e antiimigração não conquistaram votos, .porém autores e
grupos de pressão antiimigração ficaram mais numerosos, mais atuantes
e mais vociferantes. Muito do ressentimento se centrava no total de três
e meio a quatro milhões de imigrantes ilegais, e os políticos responderam
a isso. Tal como na Europa, a reação mais forte se deu nos níveis estadual
e municipal, que arcam com a maior parte dos custos sociais dos
imigrantes. Em conseqüência, em 1994, a Flórida, à qual depois se
juntaram outros seis Estados, moveu uma ação contra o governo federal
exigindo 884 milhões de dólares por ano para cobrir os gastos com
educação, assistência social, policiamento e outras despesas acarretadas
pelos imigrantes ilegais. Na Califórnia, o estado que tem a maior
quantidade de imigrantes, em números absolutos e proporcionais, 0 1
governador Pete Wilson conquistou o apoio popular ao instar que se
vedasse o acesso à rede de ensino público aos filhos dos imigrantes
ilegais, recusar cidadania aos filhos nascidos nos Estados Unidos de
imigrantes ilegais e terminar com os pagamentos com verbas estaduais
do atendimento médico de emergência a imigrantes ilegais. Em novem-
bro de 1994, os californianos aprovaram por grande maioria a Proposição
1
187, pela qual se denegavam benefícios de saúde, educação e assistência
social a estrangeiros ilegais e seus filhos.
Ainda em 1994, o governo Clinton, invertendo uma postura anterior
tomo~ pro~idências para tornar mais severos os controles de imigraçã~
e ma1~ estr~tas as regras a respeito de asilo político, expandir 0 Serviço
de In_11gra?~º e Naturalização, reforçar a Patrulha de Fronteira e erigir
barreiras f1s1cas ao longo da fronteira com o México. Em 1995, a Comissão
sobre Reforma da Imigração, autorizada pelo Congresso em 1990,
recomendou a redução anual da imigração legal de mais de 800 mil
pessoa_s para 550 mil, dando preferência a crianças pequenas e cônjuges
mas nao a outros parentes de atuais cidadãos e residentes. Essa dis-
pos_ição "inflamou as famílias asiático-americanas e hispânicas".29 Um
projeto de lei que incorporava muitas das recomendações da Comissão
e outras medidas que restringiam a imigração estava tramitando pelo
254
1 Congresso em 1995-96. Em meados da década de 90, a imigração tinha
assim se tornado uma importante questão política nos Estados Unidos e,
em 1996, Patrick Buchanan fez da oposição à imigração um ponto
fundamental de sua campanha pela Presidência. Os Estados Unidos estão
seguindo a Europa ao tomarem providências para reduzir de modo
substancial a entrada de não-ocidentais em sua sociedade.
Será possível à Europa ou aos Estados Unidos sustar a corrente
migratória? A França passou por uma versão importante do pessimismo
demográfico, indo desde o cáustico romance de Jean Raspai! na década
de 70 até a análise erudita de Jean-Claude Chesnais nos anos 90, e que
está resumida nos comentários feitos, em 1991, por Pierre Lellouche: "A
história, a proximidade e a pobreza garantem que a França e a Europa
estão destinadas a serem invadidas pelas pessoas das sociedades fracas-
sadas do Sul. O passado da Europa foi branco e judaico-cristão. O futuro
não o é."•30 Entretanto, o futuro não está determinado de modo ir-
revogável, nem há um único futuro permanente. A questão não é se a
Europa será islamizada ou se os Estados Unidos serão hispanizados. A
questão é, sim, se a Europa e os Estados Unidos se transformarão em
sociedades partidas em duas comunidades distintas e em grande parte
separadas, oriundas de duas civilizações diferentes, o que, por sua vez,
depende do número total de imigrantes e do grau em que sejam
assimilados nas culturas ocidentais que prevalecem na Europa e nos
Estados Unidos.
De forma geral, as sociedades européias ou não querem assimilar
os imigrantes ou têm grandes dificuldades para fazê-lo, e não está claro
o grau com que os imigrantes muçulmanos e seus filhos desejam ser
assimilados. Em conseqüência disso, uma continuada imigração subs-
tancial provavelmente produzirá países divididos em comunidades cristã
e muçulmana. Esse resultado pode ser evitado na medida em que os
governos e os povos europeus estejam dispostos a arcar com os custos
de restringir esse tipo de imigração, o que inclui os custos orçamentários
• O livro de Raspai!, Le Camp des Saints, foi publicado inicialmente em 1973 (Paris, Éditions
Robert Laffront) e foi impresso numa nova edição em 1985, quando se intensificou na França
a preocupação com a imigração. O romance foi levado de fonna espetacular à atenção dos
norte-americanos quando essa preocupação se intensificou nos Estados Unidos, em 1994, por
Matthew Connelly e Paul Kennedy no artigo "Must It Be the Rest Against the West?" [Tem que
ser o Resto contra o Ocidente?], Atlantic Monthly, v. 274 (dez. 1994), p. 61 e ss. O prefácio
de Raspai! da edição francesa de 1985 foi publicado em inglês na revista 1be Social Contract,
v. 4 (inverno 1993-94), pp. 115-117.
255
diretos de medidas antiimigratórias, os custos sociais de alienar ainda
mais as atuais comunidades de imigrantes e os custos econômicos em
potencial, a longo prazo, da escassez de mão-de-obra e de taxas de
crescimento mais baixas.
Entretanto, é provável que o problema da invasão demográfica
muçulmana diminua à medida que as taxas de crescimento populacional
nas sociedades do Norte da África e do Oriente Médio cheguem ao seu
ápice, como já ocorreu em alguns países, e comecem a declinar. Pelo
menos algumas projeções sugerem que esse declínio será bastante
considerável nas primeiras décadas do século XXI.3 1 Na medida em que
a pressão demográfica estimula a imigração, a imigração muçulmana
poderia ser muito menor em 2025. Isso não se aplica à África Subsaárica.
Se houver desenvolvimento econômico e se for promovida a mobilidade
social na África Central e Ocidental, aumentarão os incentivos e a
capacidade para migrar, e a ameaça de "islamização" da Europa será
substituída pela de "africanização". o' grau em que essá ameaça se irá
concretizar sofrerá grande influência do grau em que as populações
africanas sejam reduzidas pela AIDS e outras pestes, bem como do grau
de atração que a África do Sul exerça sobre imigrantes de outras áreas
da África.
Enquanto os muçulmanos representam o problema imediato para
a Europa, os mexicanos representam tal problema para os Estados
Unidos. Pressupondo-se a continuidade das tendências e políticas atuais,
a população norte-americana irá, como mostra o Quadro 8.2, modificar-se
de forma espetacular na primeira metade do século XXI, ficando aproxi~
maciamente 50 por cento branca e quase 25 por cento hispânica. Como
na Europa, mudanças na política de imigração e a eficácia na aplicação
de medidas antíimigratórias podem alterar essas projeções. Mesmo assim,
a questão fundamental continuará sendo o grau em que os hispânicos
sejam assimilados na sociedade norte-americana, como grupos anteriores
de imigrantes o foram. Os hispânicos de segunda e terceira geração se
vêem diante de uma ampla gama de incentivos e pressões para isso. A
imigração mexicana, por outro lado, se diferencia de modos pos-
sivelmente importantes da imigração de outras fontes. Em primeiro lugar,
os imigrantes oriundos da Europa ou da Ásia cruzam oceanos; os
mexicanos cruzam apenas uma fronteira ou, no máximo, um rio. Isso,
somado à facilidade cada vez maior dos meios de transporte e comuni-
cações, os habilita a manter contatos estreitos e a identidade com suas
comunidades de origem. Em segundo lugar, os imigrantes mexicanos
256
QUADRO 8.2
POPULAÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS POR RAÇA E ETNIA
(em porcentagens)
1993 2020 2050
(est.) (est.)
brancos não-hispânicos 74 63 51
hispânicos 10 16 23
negros 13 14 16
asiáticos e ilhéus do Pacífico 3 7
indígenas norte-americanos e do Alasca <1 <1
Total (em milhões de pessoas) 259 326 392
257
ll[l[J
CAPÍTULO 9
A Política Mundial
das Civilizações
O ISLÃ E O OCIDENTE
Além disso, ele assinalou que "uma guerra fria societária com o Islã
serviria para reforçar a identidade européia de modo geral, num momen-
to crucial para o processo de unificação européia". Por conseguinte, "bem
pode haver uma comunidade substancial no Ocidente disposta não só a
apoiar uma guerra fria societária contra o Islã, mas também a adotar
políticas que a estimulem".
Em 1990, Bernard Lewis, destacado estudioso ocidental do Islã,
analisou "As Raízes da Fúria Muçulmana" e chegou à conclusão de que:
?h.7
lidade ocidentais são males piores do que o Cristianismo ocidental, que
os produziu. Na Guerra Fria, o Ocidente rotulou seu adversário de
"comunismo ateu"; no conflito de civilizações pós-Guerra Fria, os mu-
çulmanos vêem seu adversário como "o Ocidente ateu".
Essas imagens do Ocidente como arrogante, materialista, repressor,
brutal e decadente são mantidas não só pelos imãs fundamentalistas
como também por aqueles a quem muitos no Ocidente considerariam
seus aliados e correligionários naturais. Poucos dos livros de autores
muçulmanos publicados nos anos 90, por exemplo, receberam os elogios
dados à obra de Fatima Mernissi, Jslam and Democracy, saudado de
modo geral pelos ocidentais como o depoimento corajoso de uma mulher
muçulmana moderna e liberal. 10 Entretanto a representação do Ocidente
feita nesse livro dificilmente poderia ser menos elogiosa. O Ocidente é
"militarista" e "imperialista" e "traumatizou" outras nações através do
"terror colonial" (pp. 3, 9). O individualismo, marca registrada da cultura
ocidental, é "a fonte de todos os problemas" (p. 8). O poderio ocidental
é tenúvel. O Ocidente "é o único que decide se os satélites serão
empregados para ensinar os árabes ou para fazer cair bombas sobre eles.
C. .. ) Ele esmaga nossas potencialidades e invade nossas vidas, com seus
produtos importados e filmes de televisão que inundam as ondas de
transmissão. (. .. )É um poder que nos esmaga, sitia nossos mercados e
controla nossos mais simples recursos, iniciativas e potencialidades. Era
assim que percebíamos nossa situação, e a Guerra do Golfo transformou
nossa percepção em certeza" (pp. 146-147). O Ocidente "cria o seu
poderio através de pesquisas militares" e depois vende os produtos dessa
pesquisa aos países subdesenvolvidos, que são os seus "consumidores
passivos". Para se liberar dessa subserviência, o Islã precisa desenvolver
os seus próprios engenheiros e cientistas, construir sua próprias armas
(nucleares ou convencionais, ela não especifica) e "se libertar da
dependência militar do Ocidente" (pp. 43-44). Essas, para repetir, não
são as opiniões de algum aiatolá barbudo, de turbante.
Quaisquer que sejam suas opiniões religiosas ou políticas, os
muçulmanos estão de acordo em que existem diferenças entre a sua
cultura e a cultura ocidental. Como definiu o xeque Chanoushi, "o cerne
da questão é que nossas sociedades estão baseadas em valores diversos
dos do Ocidente". Um funcionário do governo egípcio disse que "os
norte-americanos vêm aqui e querem que nós sejamos como eles. Eles
não entendem nada de nossos valores e de nossa cultura". Um jornalista
egípcio concordou: "Nós somos diferentes. Nós temos origens diferentes,
uma história diferente. Por conseguinte, temos o direito a futuros
diferentes." As publicações muçulmanas, tanto populares como intelec-
tualmente sérias, repetidamente descrevem o que se diz serem complôs
e desígnios ocidentais para subordinar, humilhar e solapar as instituições
e a cultura islâmicas. 11
A reação contra o Ocidente pode ser vista não só no ímpeto cultural
fundamental do Ressurgimento islâmico com9 também na mudança de
atitude em relação ao Ocidente por parte dos governos de países
muçulmanos. No período imediato pós-colonial, os governos eram, de
forma geral, ocidentais em suas ideologias e diretrizes políticas e econô-
micas e pró-ocidentais em suas políticas externas, com exceções parciais,
como a Argélia e a Indonésia, onde a independência resultara de
revoluções nacionalistas. Entretanto, um a um, os governos pró-ociden-
tais deram lugar a governos menos identificados com o Ocidente ou
explicitamente antiocidentais no Iraque, Líbia, Iêmen, Síria, Irã, Sudão,
Líbano e Afeganistão. Ocorreram mudanças na mesma direção, porém
menos espetaculares, na orientação e no alinhamento de outros Estados,
inclusive a Tunísia, Indonésia e Malásia. Os dois mais firmes aliados
militares muçulmanos dos Estados Unidos na Guerra Fria - Turquia e
Paquistão - estão sob pressão fundamentalista islâmica internamente, e
seus laços com o Ocidente estão sujeitos a uma crescente tensão.
Em 1995, o único Estado muçulmano claramente mais pró-ocidental
do que tinha sido 10 anos antes era o Kuwait. Atualmente, os amigos
íntimos do Ocidente no mundo islâmico são ou como o Kuwait, Arábia
Saudita e os emirados do Golfo - dependentes militarmente dos Estados
Unidos-, ou como o Egito e a Argélia - deles dependentes economi-
camente. No final da década de 80, os regimes comunistas da Europa
Oriental desmoronaram quando ficou claro que a União Soviética não
mais lhes proporcionaria apoio econômico e militar. Se ficar claro que o
Ocidente não mais manterá seus regimes satélites muçulmanos, é prová-
vel que eles tenham destino semelhante.
O crescente antiocidentalismo muçulmano foi acompanhado para-
lelamente por uma preocupação crescente com a "ameaça islâmica",
representada em especial pelo extremismo muçulmano. O Islã é visto
como fonte de proliferação nuclear, terrorismo e, na Europa, imigrantes
indesejados. Essas preocupações são compartilhadas tanto pelo povo
como pelos líderes. Assim, por exemplo, quando perguntados, em
novembro de 1994, sobre se a "revitalização muçulmana" constituía uma
ameaça para os interesses dos Estados Unidos no Oriente Médio, 61 por
cento de uma amostragem de 35 mil norte-americanos interessados em
política externa disseram que sim e apenas 28 por cento que não. Um
ano antes, à pergunta de qual país representava o maior perigo para os
Estados Unidos, uma amostragem aleatória da opinião pública apontara
0 Irã, a China e o Iraque como os três primeiros. Analogamente, ao
pedido feito em 1994 para que identificassem "ameaças críticas" aos
Estados Unidos, 72 por cento do povo e 61 por cento das autoridades
em política externa apontaram a proliferação nuclear e 69 por cento do
povo e 33 por cento das autoridades apontaram o terrorismo internacio-
nal - duas questões amplamente associadas com o Islã. Além disso, 33
por cento do povo e 39 por cento das autoridades viam uma ameaça na
possível expansão do fundamentalismo islâmico. Os europeus tinham
atitudes semelhantes. Na primavera de 1991, por exemplo, 51 por cento
do povo francês disseram que a. principal ameaça para a França vinha
do Sul, com apenas oito por cento dizendo que viria do Leste. Os quatro
países que o povo francês mais temia eram todos muçulmanos: Iraque
(52 por cento), Irã (35 por cento), Líbia (26 por cento) e Argélia (22 por
cento).12 Os líderes políticos ocidentais, inclusive o chanceler alemão e
o primeiro-ministro francês, expressaram preocupações semelhantes,
tendo o secretário-geral da OTAN declarado em 1995 que o fun-
damentalismo islâmico era "pelo menos tão perigoso quanto o comunis-
mo" tinha sido para o Ocidente, e "uma autoridade muito alta" do governo
Clinton apontado o Islã como o rival mundial do Ocidente.13
Com o virtual desaparecimento de uma ameaça militar vinda do
Leste, o planejamento da OTAN está cada vez mais dirigido contra
ameaças em potencial provenientes do SuL Um analista do Exército
norte-americano assinalou em 1992 que "a Linha Meridional" está subs-
tituindo a Frente Central e "está rapidamente se tornando a nova linha
de frente da OTAN". Para enfrentar essas ameaças meridionais, os
membros da OTAN situados ao sul - Itália, França, Espanha e Portugal
- começaram um planejamento e manobras militares conjuntas e, ao
mesmo tempo, convidaram os governos do Maghreb para consultas sobre
formas de se contrapor aos extremistas islâmicos. Essas ameaças perce-
bidas também ensejaram uma justificativa para a manutenção de subs-
tancial presença militar dos Estados Unidos na Europa. Um antigo alto
funcionário norte-americano assinalou que "conquanto as forças norte-
americanas na Europa não sejam uma panacéia para os problemas criados
pelo Islã fundamentalista, elas efetivamente lançam uma sombra pode-
270
rosa sobre o planejamento militar em toda a área. Lembram-se do
bem-sucedido desdobramento de forças norte-americanas, francesas e
britânicas da Europa na Guerra do Golfo em 1990-91? As pessoas nessa
região se lembram''.14 E, poderia ele ter acrescentado, elas se lembram
com medo, ressentimento e ódio.
Tendo em vista as percepções que muçulmanos e ocidentais têm
uns dos outros e mais a ascensão do extremismo islâmico, não é de
surpreender que, logo após a Revolução Iraniana de 1979, te?ha-se
desenvolvido uma quase-guerra entre o Islã e o Ocidente. E uma
quase-guerra por três motivos. Primeiro, não é todo o Islã que está
lutando contra todo o Ocidente. Dois Estados fundamentalistas (Irã e
Sudão), três Estados não-fundamentalistas (Iraque, Líbia e Síria), mais
uma larga faixa de organizações fundamentalistas islâmicas, com apoio
financeiro de outros países muçulmanos, como a Arábia Saudita, vêm
lutando contra os Estados Unidos e, algumas vezes, contra a Grã-Breta-
nha, a França e outros Estados e grupos ocidentais, bem como Israel e
os judeus de forma geral. Segundo, é uma quase-guerra porque, fora a
Guerra do Golfo de 1990-91, ela foi travada com meios limitados:
terrorismo de um lado e poder aéreo, ações clandestinas e sanções
econômicas do outro. Terceiro, é uma quase-guerra porque, embora a
violência tenha persistido, ela não foi contínua, envolvendo ações intermi-
tentes de um lado, que provocam respostas do outro. Contudo, uma
quase-guerra é, mesmo assim, uma guerra. Mesmo excluindo-se as dezenas
de milhares de soldados e civis iraquianos mortos pelos bombardeios
ocidentais em janeiro-fevereiro de 1991, as mortes e outras baixas totalizam
muitos milhares e ocorreram praticamente todos os anos desde 1979. Um
número muito maior de ocidentais foram mortos nessa quase-guerra, em
relação aos que foram mortos na guerra "de verdade" no Golfo.
Além disso, ambos os lados identificaram esse conflito como uma
guerra. Logo no início, Khomeini declarou, com muito acerto, que "o Irã
está de fato em guerra com os Estados Unidos", l5 e Khadafi proclama
com regularidade uma guerra santa contra o Ocidente. Líderes muçulma-
nos de outros grupos e Estado~ extremistas se pronunciaram em termos
semelhantes. Do lado ocidental, os Estados Unidos classificaram sete
países como "Estados terroristas", cinco dos quais são muçulmanos (Irã,
Iraque, Síria, Líbia e Sudão). Cuba e Coréia do Norte são os outros dois.
Isso, na realidade, os identifica como inimigos, porque eles estão
atacando os Estados Unidos e seus amigos com a arma mais eficaz de
que dispõem, e assim reconhecem a existência de um estado de guerra
com eles. Funcionários norte-americanos repetidamente se referem a
esses países como Estados "fora da lei", "de desforra" e "desgarrados" -
desse modo colocando-os fora da ordem civilizada internacional e
tornando-os alvos legítimos para contramedidas unilaterais ou multilate-
rais. O governo dos Estados Unidos acusou os que colocaram a bomba
no World Trade Center de terem a intenção de "desencadear uma guerra
de terrorismo urbano contra os Estados Unidos" e afirmou que os
conspiradores acusados de planejar outras bombas em Manhattan eram
"soldados" numa luta "que envolve uma guerra" contra os Estados
Unidos. Se os muçulmanos alegam que o Ocidente faz guerra contra o
Islã e se os ocidentais alegam que grupos islâmicos fazem guerra contra
o Ocidente, parece razoável concluir que algo muito parecido com uma
1
guerra está em andamento.
Nessa quase-guerra, cada lado capitalizou sobre suas próprias forças
e as fraquezas do outro lado. Do ponto de vista militar, ela tem sido
sobretudo uma guerra de terrorismo versus poder aéreo. Dedicados
militantes fundamentalistas islâmicos se aproveitam das sociedades aber-
tas do Ocidente e colocam carros-bombas em alvos selecionados. Os
profissionais militares ocidentais se aproveitam dos céus abertos do Islã
e lançam bombas inteligentes sobre alvos selecionados. Os participantes
fundamentalistas islâmicos planejam o assassinato de ocidentais proemi-
nentes; os Estados Unidos planejam a derrubada dos regimes fun-
damentalistas islâmicos extremistas. Segundo o Departamento de Defesa
dos Estados Unidos, nos 15 anos entre 1980 e 1995, os Estados Unidos
se engajaram em 17 operações militares no Oriente Médio, todas elas
dirigidas contra muçulmanos. Até esta data, afora a Guerra do Golfo, cada
lado manteve a intensidade da violência em níveis razoavelmente baixos
e se absteve de rotular atos violentos como atos de guerra que exigiriam
uma resposta total. A revista Tbe Economist assinalou que "se a Líbia
ordenasse a um de seus submarinos que afundasse um navio de
passageiros norte-americano, os Estados Unidos tratariam isso como um
ato de guerra por um governo e não pediriam a extradição do capitão
do submarino. Em princípio, fazer explodir uma bomba em um avião de
passageiros por meio do serviço secreto da Líbia não é em nada
diferente" .16 Os participantes dessa guerra empregam uns contra os
outros táticas muito mais violentas do que os Estados Unidos e a União
Soviética empregaram entre si na Guerra Fria.
Os dirigentes norte-americanos afirmam que os muçulmanos envol-
vidos na quase-guerra são pequena minoria, cujo uso da violência é
repudiado pela grande maioria dos muçulmanos moderados. Pode ser
assim, mas faltam provas para apoiar essa tese. Os protestos contra a
violência antiocidental inexistem por completo nos países muçulmanos.
Até mesmo os entrincheirados governos amigos e dependentes do
Ocidente têm-se mostrado extraordinariamente reticentes quando se trata
de condenar atos de terrorismo contra o Ocidente. Do outro lado, os
governos europeus e a opinião pública têm de forma geral apoiado e
raramente criticado as ações que os Estados Unidos empreenderam
contra seus adversários muçulmanos, em flagrante contraste com a
27'\
coreanos lutarem contra coreanos existe, porém é baixa. As perspectivas
de chineses lutarem contra chineses são maiores, mas ainda limitadas, a
menos que os taiwaneses renunciem à sua identidade chinesa e formal-
mente constituam uma República de Taiwan independente. Um do-
cumento militar chinês citou, em tom de aprovação, um general dizendo
que "deve haver limites para as brigas entre membros de uma família" .18
Conquanto a violência entre as duas Coréias ou as duas Chinas continue
sendo possível, um enfoque civilizacional sugere que os aspectos
culturais em comum irão, com o tempo, erodir essa probabilidade.
Na Ásia Oriental, os conflitos herdados da Guerra Fria estão sendo
suplementados e suplantados por outros possíveis conflitos que reflitam
antigas rivalidades e novos relacionamentos econômicos. As análises da
segurança da Ásia Oriental no começo dos anos 90 se referiam de modo
regular à Ásia Oriental como "uma vizinhança perigosa", como "madura
para as rivalidades", como uma região de "várias guerras frias", como
"caminhando de volta para o futuro", no qual prevalecerão a guerra e a
instabilidade.19 Em contraste com a Europa Ocidental, nos anos 90, a
Ásia Oriental tinha disputas territoriais não resolvidas, das quais as mais
importantes abrangem disputas entre a Rússia e o Japão em torno das
ilhas ao norte, e entre a China, o Vietnã, as Filipinas e, possivelmente,
outros Estados do Sudeste Asiático na área do Mar do Sul da China. As
divergências sobre fronteiras entre a China, de um lado, e a Rússia e a
Índia, do outro, diminuíram em meados dos anos 90, mas poderiam
ressurgir, como também poderia acontecer com as reivindicações chine-
sas na Mongólia. Havia movimentos de insurgência ou secessão, em
alguns casos apoiados de fora, em Mindanao, Timor Oriental, Tibete, sul
da Tailândia e leste de Myanmar. Além disso, embora houvesse paz entre
os Estados da Ásia Oriental em meados dos anos 90, durante os 50 anos
precedentes ocorreram guerras de grandes proporções na Coréia e no
Vietnã, e a potência principal da Ásia - a China - lutou contra os
norte-americanos e contra quase todos os seus vizinhos, incluindo
coreanos, vietnamitas, chineses nacionalistas, indianos, tibetanos e rus-
sos. Em 1993, uma análise feita por militares chineses identificou oito
pontos "quentes" regionais que ameaçavam a segurança militar da China,
e a Comissão Militar Central da China chegou à conclusão de que, de
modo geral, a perspectiva de segurança na Ásia Oriental era "muito
sombria". Depois de séculos de lutas, a Europa Ocidental está em paz e
a guerra é impensável. Na Ásia Oriental não o é e, como sugeriu Aaron
Friedberg, o passado da Europa poderia ser o futuro da Ásia. 20
?7f..
O dinamismo econômico, as disputas territoriais, as rivalidades
reativadas e as incertezas políticas alimentaram aumentos significativos
nos orçamentos militares e na capacidade militar dos países da Ásia
Oriental nos anos 80 e 90. Aproveitando-se de sua nova riqueza e, na
maioria dos casos, de populações com bom nível de instrução, os
governos da Ásia Oriental tomaram providências para substituir exércitos
"de camponeses", grandes e pobremente equipados, por forças armadas
menores, mais profissionais e tecnologicamente sofisticadas. Ante dúvi-
das crescentes quanto ao grau de engajamento dos Estados Unidos na
Ásia Oriental, esses países visam a poder contar consigo próprios em
termos militares. Embora os países da Ásia Oriental continuassem a
importar grandes quantidades de armamentos da Europa, dos Estados
Unidos e da antiga União Soviética, passaram a dar preferência à
importação de tecnologias que os habilitassem a produzir internamen-
te aviões sofisticados, mísseis e equipamento eletrônico. O Japão e os
Estados sínicos - China, Taiwan, Singapura e Coréia do Sul -
possuem indústrias de armamentos cada vez mais sofisticadas. Dada
a configuração geográfica litorânea da Ásia Oriental, a ênfase tem sido
na projeção de forças e na capacidade aérea e naval. Em conseqüência,
nações que anteriormente não estavam militarmente capacitadas a
lutar umas contra as outras estão cada vez mais adquirindo essa
capacidade. Esses aumentos de poder militar têm tido pouca trans-
parência e, conseqüentemente, induziram mais suspeitas e incertezas.21
Numa situação de relações de poder em mutação, cada governo, legítima
e necessariamente, se pergunta: "Daqui a 10 anos, quem será meu inimigo
e quem, se houver algum, será meu amigo?"
• Deve-se observar que, pelo menos nos Estados Unidos, existe uma confusão de terminologia
a respeito das relações entre os países. Considera-se que "boas" relações são as de amizade
e cooperação; "más" relações são as hostis e antagônicas. Esse emprego dos termos conjumina
duas dimensões muito diferentes: amizade versus hostilidade e desejável versus indesejável.
Isso reflete a pressuposição tipicamente norte-americana de que a harmonia nas relações
internacionais é sempre boa e de que o conflito é sempre mau. Entretanto, a identificação de
boas relações com relações de amizade só é válida se o conflito nunca for desejável. A maioria
dos norte-americanos achou que foi "bom" o governo Bush ter transformado em "más" as
relações dos Estados Unidos com o Iraque ao ir à guerra por causa do Kuwait. A fim de evitar
confusões sobre se "boas" quer dizer desejáveis ou harmoniosas e "más" quer dizer
indesejáveis ou hostis, empregarei "boas" e "más" apenas para significar desejáveis ou
indesejáveis. É interessante, embora cause perplexidade, que os norte-americanos endossem
a competição, na sociedade norte-americana, entre opiniões, grupos, partidos, órgãos do
governo e empresas. Por que os norte-americanos acham que o conflito é bom no seio de
sua própria sociedade mas é mau entre sociedades, constitui uma questão fascinante que, até
onde eu sei, ninguém jamais estudou com seriedade.
que as sanções entrassem em vigor. Algo muito parecido com uma guerra
comercial estava nitidamente em andamento entre os dois países. Ao se
chegar a meados dos anos 90, a acrimônia das relações tinha chegado a
um ponto tal que os principais políticos japoneses começaram a ques-
tionar a presença militar norte-americana no Japão.
Durante esses anos, a opinião pública em cada um dos dois países
foi sistematicamente assumindo uma disposição menos favorável para
com o outro. Em 1985, 87 por cento do povo norte-americano diziam ter
uma atitude de forma geral amistosa para com o Japão. Em 1990, esse
total caiu para 67 por cento e, ao se chegar a 1993, apenas 50 por cento
dos norte-americanos tinham uma disposição favorável para com o Japão,
e quase dois terços disseram que procuravam evitar comprar produtos
japoneses. Em 1985, 73 por cento dos japoneses descreviam as relações
Japão-Estados Unidos como amistosas; ao se chegar a 1993, 64 por cento
diziam que elas eram inamistosas. O ano de 1991 marcou o ponto crucial
de inflexão na mudança da opinião pública, saindo do formato da Guerra
Fria. Nesse ano, cada país substituiu a União Soviética na percepção do
outro. Pela primeira vez, os norte-americanos classificaram o Japão à
frente da União Soviética como uma ameaça à segurança norte-americana
e, pela primeira vez, os japoneses classificaram os Estados Unidos à frente
da União Soviética como uma ameaça à segurança do Japão. 24
As mudanças nas atitudes do povo foram acompanhadas por
mudanças nas percepções da elite. Nos Estados Unidos, surgiu um grupo
significativo de acadêmicos, intelectuais e revisionistas políticos que
enfatizaram as diferenças culturais e estruturais entre os dois países e a
necessidade de que os Estados Unidos adotassem uma linha muito mais
dura ao tratar com o Japão questões econômicas. As imagens do Japão
na mídia popular, nas publicações de não-ficção e nos romances
populares ficaram cada vez mais pejorativas. De modo paralelo, apareceu
no Japão uma nova geração de líderes políticos que não tinham tido a
experiência do poderio norte-americano durante a II Guerra Mundial
nem da benevolência norte-americana após a mesma, que se orgulhavam
muito dos êxitos econômicos japoneses e que estavam perfeitamente
dispostos a resistir às exigências norte-americanas por meios que não
ocorreriam aos seus antecessores. Esses "elementos de resistência"
japoneses eram a contrapartida dos "revisionistas" norte-americanos e,
em ambos os países, os candidatos descobriram que advogar uma
linha-dura em questões que afetavam as relações Japão-Estados Unidos
caía bem com os eleitores.
..,..,.n
Durante o final da década de 80 e início da de 90, as relações dos
Estados Unidos com a China também ficaram cada vez mais antagônicas.
Os conflitos entre os dois países, disse Deng Xiaoping em setembro de
1991, constituíam "uma nova guerra fria", expressão repetida com
regularidade na imprensa chinesa. Em agosto de 1995, a agência de
notícias do governo declarou que "as relações China-Estados Unidos
estão no seu nível mais baixo desde que os dois países estabeleceram
relações diplomáticas" em 1979. As autoridades chinesas denunciavam
com regularidade uma alegada intromissão nos assuntos chineses. Um
documento interno do governo chinês, de 1992, argumentou que "nós
devíamos ressaltar que, desde que se tornaram a única superpotência,
os Estados Unidos estão tentando, de forma descontrolada, adotar uma
nova conduta hegemônica e uma nova política de poder, bem como que
o seu poderio está em declínio relativo e que há limites para o que eles
podem fazer". Em agosto de 1995, o presidente Jiang Zemin disse que
"as forças ocidentais hostis não abandonaram por um só momento sua
trama de ocidentalizar e 'dividir' nosso país". Ao se chegar a 1995, dizia-se
haver um amplo consenso entre os líderes e os estudiosos chineses no
sentido de que os Estados Unidos estavam tentando "dividir territorial-
mente a China, subvertê-la politicamente, contê-la estrategicamente e
frustrá-la economicamente". 25
Havia fundamento para todas essas acusações. Os Estados Unidos
permitiram que o presidente Lee, de Taiwan, fosse aos Estados Unidos,
venderam 150 F-16 para Taiwan, designaram o Tibete um "território
soberano ocupado", condenaram a China por seus abusos contra os
direitos humanos, negaram a Pequim as Olimpíadas do ano 2000,
normalizaram suas relações com o Vietnã, acusaram a China de exportar
componentes de armas químicas para o Irã, impuseram sanções comer-
ciais à China pela venda de equipamento para mísseis para o Paquistão
e ameaçaram a China com sanções adicionais em função de questões
econômicas e, ao mesmo tempo, barraram a admissão da China na
Organização Mundial do Comércio. Cada lado acusou o outro de má fé:
segundo os norte-americanos, a China violou entendimentos sobre a
exportação de mísseis, direitos de propriedade intelectual e trabalho de
detentos; segundo os chineses, os Estados Unidos violaram enten-
dimentos ao permitir que o presidente Lee viajasse aos Estados Unidos
e ao vender aviões de caça sofisticados a Taiwan.
O grupo mais importante na China com uma postura antagônica
para com os Estados Unidos era o dos militares, que, aparentemente,
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exerciam sistematicamente pressão sobre o governo a fim de que
assumisse uma linha mais dura para com os Estados Unidos. Em junho
de 1993, ao que consta, 100 generais chineses remeteram uma carta a
Deng reclamando da política "passiva" do governo em relação aos
Estados Unidos e do fato de não ter resistido às tentativas norte-ameri-
canas de "chantagear" a China. No outono desse ano, um documento
confidencial do governo chinês delineou as razões militares para um
conflito com os Estados Unidos: "Devido ao fato de que a China e os
Estados Unidos têm antigos conflitos em torno de suas ideologias,
sistemas sociais e políticas externas diferentes, será impossível melhorar
de forma fundamental as relações sino-norte-americanas." Como os
norte-americanos acreditam que a Ásia Oriental se tomará "o coração da
economia mundial, (. .. ) os Estados Unidos não podem tolerar um
adversário poderoso na Ásia Oriental". 26 Em meados dos anos 90, as
autoridades e os órgãos chineses apresentavam de modo rotineiro os
Estados Unidos como uma potência hostil.
O crescente antagonismo entre a China e os Estados Unidos foi em
parte impulsionado pela política interna em ambos os países. Tal como
aconteceu com o Japão, a opinião pública norte-americana bem-infor-
mada ficou dividida. Muitas personalidades do establishment propugna-
vam por um engajamento construtivo com a China, expandindo as
relações econômicas e atraindo a China para a chamada comunidade das
nações. Outros enfatizavam a ameaça em potencial da China para os
interesses norte-americanos, argumentavam que medidas conciliatórias
em relação à China produziam resultados negativos e instavam por uma
política de firme contenção. Em 1993, a opinião pública norte-americana
colocava a China em segundo lugar, perdendo apenas para o Irã, como
o país que representava o maior perigo para os Estados Unidos. A política
norte-americana muitas vezes operou de modo a produzir gestos simbó-
licos, como a visita de Lee a Cornell e o encontro de Clinton com o
dalai-lama, que deixaram os chineses indignados, enquanto, ao mesmo
tempo, levou o governo a sacrificar considerações de direitos humanos
por interesses econômicos, como na prorrogação do tratamento de Nação
Mais Favorecida. Do lado chinês, o governo precisava de um novo
inimigo para reforçar os chamamentos ao nacionalismo chinês e para
legitimar seu poder. Enquanto se estendia a luta pela sucessão, aumentou
a influência dos militares, e o presidente Jiang e outros concorrentes ao
poder pós-Deng não podiam se dar ao luxo de parecer frouxos na
promoção dos interesses chineses.
'}Q1
Nessas condições, no transcurso de uma década, as relações dos
Estados Unidos se "deterioraram" tanto com o Japão como com a China.
Essa mudança nas relações asiático-norte-americanas foi tão ampla e
abrangeu tantas áreas diferentes de questões que parece improvável que
suas causas possam ser encontradas em conflitos de interesses individuais
a propósito de peças de automóvel, vendas de câmeras fotográficas ou
bases militares por um lado, ou prisão de dissidentes, transferências de
armamentos ou pirataria intelectual do outro. Além disso, era claramente
contrário ao interesse nacional norte-americano permitir que suas rela-
ções ficassem mais conflituosas com as duas principais potências asiáti-
cas. As regras elementares de diplomacia e de política de poder deter-
minam que os Estados Unidos deviam tentar jogar uma contra a outra
ou, pelo menos, tentar suavizar as relações com uma se elas estivessem
ficando mais conflituosas com a outra. No entanto, tal não aconteceu.
Havia fatores mais amplos atuando para promover conflitos nas relações
asiático-norte-americanas e tornar mais difícil a solução de questões
individuais que surgiam nessas relações. Esse fenômeno generalizado
tinha causas generalizadas.
Em primeiro lugar, uma maior interação entre as sociedades asiáti-
cas e os Estados Unidos, sob a forma de expansão de comunicações, de
comércio, de investimentos e de conhecimento mútuo, multiplicou as
questões e os assuntos nos quais os interesses podiam se chocar, como
de fato aconteceu. Essa maior interação tornou ameaçadoras, para cada
uma dessas sociedades, práticas e concepções da outra que, à distância,
tinham parecido inofensivamente exóticas. Em segundo lugar, a ameaça
soviética da década de 50 levara ao tratado de segurança mútua Estados
Unidos-Japão. O crescimento do poderio soviético nos anos 70 levara ao
estabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a
China em 1979 e à cooperação ad hoc entre os dois países a fim de
promover seu interesse comum na neutralização daquela ameaça. O fim
da Guerra Fria retirou esse interesse comum predominante dos Estados
Unidos e das potências asiáticas, não deixando coisa alguma em seu
lugar. Conseqüentemente, vieram à tona outras questões em que havia
significativos conflitos de interesse. Em terceiro lugar, o desenvolvimento
econômico dos países da Ásia Oriental alterou a balança de poder entre
eles e os Estados Unidos. Como vimos, os asiáticos cada vez mais
afirmavam a validade de seus valores e instituições, bem como a
superioridade de sua cultura em relação à cultura ocidental. Por outro
lado, os norte-americanos tendiam a supor, especialmente depois da sua
'lO'l
vitória na Guerra Fria, que os seus valores e instituições tinham relevância
universal e que eles ainda dispunham do poder para moldar as políticas
interna e externa das sociedades asiáticas.
Esse ambiente internacional em mutação trouxe à baila as diferenças
culturais fundamentais entre as civilizações asiática e norte-americana.
No seu nível mais amplo, a ética confuciana, que permeia muitas das
sociedades asiáticas, ressalta os valores de autoridade, hierarquia,
subordinação dos direitos e interesses individuais, importância do
consenso, evitar a confrontação, "salvar a face" e, de modo geral,
supremacia do Estado sobre a sociedade e da sociedade sobre o
indivíduo. Além disso, os asiáticos tendiam a pensar na evolução de
suas sociedades em termos de séculos e milênios e a dar prioridade à
maximização dos ganhos a longo prazo. Essas atitudes contrastam com
a primazia nas concepções norte-americanas de liberdade, igualdade,
democracia e individualismo, e a propensão norte-americana para des-
confiar do governo, opor-se à autoridade, promover pesos e contrapesos,
encorajar a competição, tornar sacrossantos os direitos do indivíduo e
esquecer o passado, ignorar o futuro e se concentrar na maximização
dos ganhos imediatos. As fontes de conflito estão nas diferenças fun-
damentais de sociedade e de cultura.
Essas diferenças tiveram conseqüências especiais para as relações
entre os Estados Unidos e as principais sociedades asiáticas. Os diplo-
matas desenvolveram grandes esforços para resolver os conflitos norte-
americanos com o Japão a propósito de questões econômicas, es-
pecialmente o superávit comercial japonês e a resistência do Japão aos
produtos e investimentos norte-americanos. As negociações comerciais
Estados Unidos-Japão assumiram muitas das características das negociações
sobre controle de armamentos soviético-norte-americanas durante a Guerra
Fria. Ao se chegar a 1995, as primeiras tinham produzido ainda menos
resultados do que estas últimas porque esses conflitos provinham das
diferenças fundamentais das duas economias, especialmente da natureza
singular da economia japonesa no âmbito da economia dos principais países
industrializados. As importações pelo Japão de artigos manufaturados
totalizaram cerca de 3,1 por cento do seu PNB, comparados com uma
média de 7,4 por cento nas outras principais potências industriais. Os
investimentos estrangeiros diretos no Japão somaram um diminuto 0,7
por cento do PIB, comparado com 28,6 por cento nos Estados Unidos e
38,5 por cento na Europa. O Japão foi o único dos países industrializados
a ter superávits orçamentários nos primeiros anos da década de 90. 27
De modo geral, a economia japonesa não se comportou como ditam
as leis universais de economia ocidental. A suposição simplista dos
economistas ocidentais nos anos 80 de que a desvalorização do dólar
reduziria o superávit comercial japonês revelou-se errada. Embora o
acordo do Plaza, de 1985, tivesse retificado o déficit comercial norte-ame-
ricano com a Europa, ele teve pouco efeito sobre o déficit com o Japão.
Enquanto o iene ficou com seu valor a menos de 100 por dólar, o
superávit comercial japonês permaneceu alto e até mesmo aumentou. Os
japoneses puderam assim manter, ao mesmo tempo, uma moeda forte e
um superávit comercial. O pensamento econômico ocidental tende a
definir uma compensação negativa entre desemprego e inflação, achan-
do-se que, com uma taxa de desemprego significativamente abaixo de
cinco por cento, se desencadeariam pressões inflacionárias. No entanto,
durante anos, o Japão teve uma taxa de desemprego em média inferior
a três por cento e uma inflação de um e meio por cento em média. Ao
se chegar à década de 90, os economistas tanto norte-americanos como
japoneses tinham chegado a identificar e conceituar as diferenças básicas
entre esses dois sistemas econômicos. Um estudo cuidadoso chegou à
conclusão de que o baixo nível de importações de manufaturados
peculiar ao Japão "não pode ser explicado através de fatores econômicos
padrão". Um outro analista argumentou que "a economia japonesa não
segue a lógica ocidental, independentemente do que digam os que fazem
prognósticos no Ocidente, pela simples razão de que ela não é uma
economia livre de mercado do tipo ocidental. Os japoneses (. .. ) inven-
taram um tipo de economia que se comporta de modos que enganam
os poderes de previsão dos observadores ocidentais". 28
O que explica o caráter próprio da economia japonesa? Entre os
principais países industrializados, a economia japonesa é única porque
a sociedade japonesa é não-ocidental de um modo único. A sociedade
e cultura japonesas diferem das ocidentais, e especialmente da sociedade
e cultura norte-americanas. Essas diferenças foram ressaltadas em todas
as análises comparativas sérias do Japão e Estados Unidos.29 A solução
das questões econômicas entre Japão e Estados Unidos depende de
mudanças fundamentais na natureza de uma, ou de ambas, dessas
economias, o que, por sua vez, depende de mudanças básicas na
sociedade e na cultura de um ou de ambos os países. Tais mudanças não
são impossíveis. As sociedades e as culturas de fato mudam. Isso pode
decorrer de um importante fato traumático: a derrota total na II Guerra
Mundial transformou dois dos países mais militaristas do mundo em dois
dos mais pacifistas. Entretanto, parece improvável que Estados Unidos
ou Japão venham a impor uma Hiroxima econômica um ao outro. O
desenvolvimento econômico também pode mudar profundamente a
estrutura social e a cultura, como ocorreu na Espanha entre o início da
década de 50 e o final da de 70, e talvez a riqueza econômica faça do Japão
uma sociedade mais parecida com a norte-americana, orientada para o
consumo. No final da década de 80, tanto no Japão como nos Estados Unidos
havia quem sustentasse que seu país devia ficar mais parecido com o outro.
De uma forma limitada, o acordo nipo-norte-americano de Iniciativas
sobre Impedimentos Estruturais foi planejado para promover essa con-
vergência. Seu insucesso, bem como o de outras tentativas análogas,
demonstra o grau em que as diferenças econômicas estão profundamente
enraizadas nas culturas das duas sociedades.
Enquanto os conflitos entre os Estados Unidos e a Ásia têm suas
fontes nas diferenças culturais, os desfechos desses conflitos refletiram a
mudança nas relações de poder entre os Estados Unidos e a Ásia. Nessas
disputas, os Estados Unidos lograram algumas vitórias, mas a tendência
foi na direção da Ásia e a mudança no poderio exacerbou ainda mais
esses conflitos. Os Estados Unidos esperavam que os governos asiáticos
os aceitariam como o líder da "comunidade internacional" e anuíssem à
aplicação dos princípios e valores ocidentais a suas culturas. Os asiáticos,
por outro lado, como disse o secretário-assistente de Estado Winston
Lord, estavam "cada vez mais cônscios e orgulhosos de suas realizações",
esperavam ser tratados de igual para igual, e tendiam a ver os Estados
Unidos como "uma babá internacional, se não um brutamontes". Entre-
tanto, no seio da cultura norte-americana, imperativos profundos impul-
sionam os Estados Unidos para ser pelo menos uma babá, se não um
brutamontes, nas relações internacionais e, em conseqüência, as expec-
tativas norte-americanas estavam cada vez mais em contradição com as
asiáticas. Numa ampla gama de questões, os dirigentes japoneses e de
outros países asiáticos aprenderam a dizer não aos seus interlocutores
norte-americanos, dito às vezes em versões asiáticas polidas de "vá
passear". O ponto de inflexão simbólico das relações asiático-norte-
americanas foi talvez o que uma alta autoridade japonesa denominou
de o "primeiro grande desastre de trem" das relações nipo-norte-ame-
ricanas, que se deu em fevereiro de 1994, quando o primeiro-ministro
Morihiro Hosokawa rejeitou com firmeza a exigência do presidente
Clinton de que se fixassem metas numéricas para as importações pelo
Japão de artigos manufaturados norte-americanos. Uma outra autoridade
japonesa comentou que "não poderíamos ter imaginado que algo assim
acontecesse até mesmo um ano atrás". O ministro do Exterior japonês,
um ano depois, sublinhou essa mudança ao declarar que, numa era de
competição econômica entre nações e regiões, o interesse nacional
japonês era mais importante do que sua "mera identidade" como um
membro do Ocidente.30
A paulatina adaptação norte-americana à alterada balança de poder
se refletiu na política norte-americana em relação à Ásia nos anos 90. Em
primeiro lugar, de fato reconhecendo que careciam da vontade e/ou da
capacidade para pressionar as sociedades asiáticas, os Estados Unidos
separaram áreas de questões sobre as quais poderiam ter algum poder
de influência das áreas de questões nas quais ocorriam conflitos.
Embora Clinton tivesse proclamado que os direitos humanos cons-
tituíam uma das primeiras prioridades da política externa norte-ame-
ricana para com a China, em 1994 ele respondeu às pressões dos
empresários norte-americanos, de Taiwan e de outras fontes desvin-
culando os direitos humanos das questões econômicas e abandonando
a tentativa de empregar a prorrogação da condição de Nação Mais
Favorecida como meio para influenciar o comportamento chinês em
relação ~os dissidentes políticos. Numa providência paralela, 0 gover-
no desvinculou formalmente sua política de segurança para com 0
Japão, na qual presumivelmente teria capacidade de influência das
questões comerciais e de outras questões econômicas, em cujo 'con-
texto suas relações com o Japão eram altamente conflituosas. Dessa
forma, os Estados Unidos abandonaram armas que poderiam ter empre-
gado para promover os direitos humanos na China e concessões comer-
ciais no Japão.
Em segundo lugar, os Estados Unidos perseguiram reiteradamente
um rumo de reciprocidade antecipada com as nações asiáticas fazendo
co~cessões na expectativa de que elas induziriam concessões ~ompará
veis por parte dos asiáticos. Muitas vezes essa linha de ação foi justificada
por referências à necessidade de manter um "engajamento construtivo"
ou "diálogo" com o país asiático em pauta. Entretanto, na maioria das
vezes, esse país asiático interpretou a concessão como sinal da fraqueza
norte-americana e, por conseguinte, concluiu que poderia ir ainda mais
longe na reieiçao
· · - d as exigencias
· A •
norte-americanas. Esse padrão de
comportam:nto foi particularmente notável em relação à China, que
:s~ondeu a ~esvinculação pelos Estados Unidos da condição de Nação
ais Favorecida com uma nova e intensa rodada de violações de direitos
?su:;
humanos. Devido à predileção norte-americana por identificar "boas"
relações com relações "amistosas", os Estados Unidos ficam em conside-
rável desvantagem para competir com as sociedades asiáticas, que
identificam como "boas" as relações que produzem vitórias para si. Para
os asiáticos, as concessões norte-americanas não devem ser objeto de
reciprocidade; devem ser exploradas.
Em terceiro lugar, desenvolveu-se um padrão nos renitentes confli-
tos Estados Unidos-Japão por questões comerciais, nos quais os Estados
Unidos faziam exigências ao Japão e ameaçavam com sanções caso elas
não fossem atendidas. Seguiam-se longas negociações e então, no último
momento antes que as sanções entrassem em vigor, anunciava-se um
acordo. Os acordos eram geralmente redigidos de modo tão ambíguo
que os Estados Unidos podiam bradar vitória de princípio e os japoneses
podiam implementar ou não o acordo como bem entendessem, e tudo
prosseguia como antes. De maneira análoga, os chineses assentiam com
relutância a declarações de princípios amplos a respeito de direitos
humanos, propriedade intelectual ou proliferação e simplesmente as
interpretavam de modo muito diferente dos Estados Unidos, e continua-
vam seguindo suas diretrizes anteriores.
Essas diferenças de cultura e as alterações na balança de poder entre
a Ásia e os Estados Unidos encorajaram as sociedades asiáticas a apoiar
umas às outras em seus conflitos com os Estados Unidos. Em 1994, por
exemplo, praticamente todos os países asiáticos, "da Austrália à Malásia
e à Coréia do Sul", se congregaram em apoio ao Japão na sua resistência
contra a exigência norte-americana de metas numéricas para as impor-
tações. Uma congregação semelhante se deu, simultaneamente, em apoio
ao tratamento de Nação Mais Favorecida para a China, com o primeiro-
ministro Hosokawa na dianteira, argumentando que os conceitos ociden-
tais de direitos humanos não podiam ser "aplicados cegamente", e Lee
Kuan Yew, de Singapura, advertindo que, se pressionarem a China, "os
Estados Unidos se verão inteiramente isolados no Pacífico".31 Em outra
demonstração de solidariedade, asiáticos, africanos e outros povos se
congregaram atrás do Japão em apoio à reeleição de um japonês que
ocupava o cargo de diretor da Organização Mundial de Saúde, contra a
oposição do Ocidente, e o Japão promoveu a candidatura de um
sul-coreano para dirigir a Organização Mundial do Comércio, contra o
candidato dos Estados Unidos, Carlos Salinas, ex-presidente do México.
Os registros mostram de forma indiscutível que ao se chegar aos anos
90, com respeito a questões relacionadas ao além-Pacífico, cada país da
287
Ásia Oriental sentia que tinha muito mais em comum com outros países
da Ásia Oriental do que com os Estados Unidos.
O fim da Guerra Fria, a crescente interação entre a Ásia e a América
e o declínio relativo do poderio norte-americano trouxeram assim à tona
o choque de culturas entre os Estados Unidos e o Japão e as outras
sociedades asiáticas, capacitando estes últimos a resistir às pressões
norte-americanas. A ascensão da China representava um problema mais
fundamental para os Estados Unidos. Os conflitos dos Estados Unidos
com a China cobriam uma gama muito mais ampla de questões do que
com o Japão, abrangendo questões econômicas, direitos humanos,
Tibete, Taiwan, o Mar do Sul da China e a proliferação de armamentos.
Os Estados Unidos e a China não partilhavam objetivos comuns em
nenhuma das principais questões de política. As diferenças vão de uma
ponta à outra do quadro. Tal como no caso do Japão, esses conflitos
estavam, em grande parte, baseados nas culturas diferentes das duas
sociedades. Os conflitos entre os Estados Unidos e a China, porém,
também envolviam questões fundamentais de poder. A China não está
disposta a aceitar a liderança ou hegemonia norte-americana no mundo;
os Estados Unidos não estão dispostos a aceitar a liderança ou hegemonia
chinesa na Ásia. Durante mais de 200 anos os Estados Unidos tentaram
impedir o surgimento de uma potência com predomínio absoluto na
Europa. Durante quase 200 anos, a começar por sua política de "Portas
Abertas" em relação à China, os Estados Unidos tentaram fazer o mesmo
na Ásia Oriental. Para atingir esses objetivos, os Estados Unidos travaram
duas guerras mundiais e uma guerra fria contra a Alemanha imperial, a
Alemanha nazista, o Japão imperial, a União Soviética e a China
comunista. Esse interesse norte-americano persiste e foi reafirmado pelos
presidentes Reagan e Bush. A ascensão da China como potência regional
dominante na Ásia Oriental, caso prossiga, põe em risco esse interesse
norte-americano fundamental. A causa subjacente do conflito entre os
Estados Unidos e a China está na sua diferença básica quanto a como
deve ficar a futura balança de poder na Ásia Oriental.
288
tuosas, envolvendo a maioria das principais potências e as de nível médio
da região. Ou poder-se-ia formar um grande sistema internacional
multipolar de poder, com China, Japão, Estados Unidos, Rússia e,
possivelmente, Índia se contrabalançando e competindo uns com os
outros. Outra variante poderia ser com a política da Ásia Oriental sendo
dominada por uma rivalidade bipolar continuada entre a China e o Japão,
ou entre a China e os Estados Unidos, com outros países se alinhando com
um lado ou o outro, ou optando pelo não-alinhamento. Possivelmente,
ainda, a política da Ásia Oriental poderia reverter ao seu padrão unipolar
tradicional, com uma hierarquia de poder centrada em Pequim.
Se a China mantiver seus altos níveis de crescimento econômico ao
entrar no século XXI, mantiver sua unidade na era pós-Deng e não for
tolhida por lutas de sucessão, é provável que tente concretizar o último
desses desfechos. Seu êxito dependerá das reações dos demais partici-
pantes do jogo político do poder na Ásia Oriental.
A história, a cultura, as tradições, as dimensões, o dinamismo
econômico e a auto-imagem da China são, todos, fatores que a impul-
sionam para assumir uma posição hegemônica na Ásia Oriental. Durante
a década de 50, a China era a aliada comunista da União Soviética. Com
a ruptura sino-soviética, ela tentou, na década de 60, se estabelecer como
líder do Terceiro Mundo, tanto contra os Estados Unidos como contra a
União Soviética. Quando essa tentativa fracassou, a China buscou, nos anos
70 e 80, com razoável grau de êxito, colocar-se numa posição de equilíbrio
entre as duas superpotências, jogando uma contra a outra. O final da Guerra
Fria acabou com essa possibilidade. Na sua última fase, a China fixou
para si a meta de se tornar uma potência hegemônica na Ásia Oriental.
Essa meta é a conseqüência natural de seu rápido desenvolvimento
econômico. Cada uma das demais potências principais - Grã-Bretanha
e França, Alemanha e Japão, Estados Unidos e União Soviética -
engajou-se em expansão externa, afirmação e imperialismo, coinciden-
temente durante os anos em que passou por industrialização e cresci-
mento econômico acelerados, ou logo em seguida a tal período. Não há
nenhuma razão para se pensar que a obtenção de poderio econômico e
militar não terá efeitos análogos na China. Durante dois mil anos, a China
foi a potência proeminente na Ásia Oriental. Atualmente, os chineses
estão cada vez mais afirmando sua intenção de retomar esse papel
histórico e pôr um fim ao demasiado longo século de humilhação e
subordinação ao Ocidente e ao Japão, que começou com a imposição
pela Grã-Bretanha do Tratado de Nanquim, em 1842.
289
No final dos anos 80, a China começou a converter seus crescentes
recursos econômicos em poder militar e influência política. Se o seu
desenvolvimento econômico continuar, esse processo de conversão
assumirá grandes proporções. Segundo dados oficiais, durante a maior
parte da década de 80, os gastos militares chineses diminuíram. Contudo,
entre 1988 e 1993, os gastos militares dobraram em moeda corrente e
aumentaram em 50 por cento em termos reais. Em 1995, planejava-se um
aumento de 21 por cento. As estimativas dos gastos militares chineses
para o ano de 1993 variam de aproximadamente 22 bilhões para 37
bilhões de dólares, a taxas oficiais de câmbio, e até 90 bilhões em termos
de paridade de poder de compra. No final dos anos 80, a China
reformulou sua estratégia militar, mudando de defesa contra uma invasão
numa guerra de grandes proporções com a União Soviética, para uma
estratégia regional que enfatiza a projeção de poder. De acordo com essa
mudança, ela começou a desenvolver sua capacidade naval, adquirindo
modernos aviões de combate de longo raio de ação, desenvolvendo a
capacidade de reabastecimento em vôo e resolvendo adquirir um porta-
aviões. A China também ingressou num relacionamento mutuamente
benéfico de compra de armamentos com a Rússia e passou com afinco
a exportar armamentos, inclusive tecnologia e mísseis capazes de trans-
portar ogivas nucleares, para o Paquistão, o Irã e outros países.
A China está a caminho de se tornar a potência dominante na Ásia
Oriental. O desenvolvimento econômico da Ásia Oriental está se toman-
do cada vez mais orientado para a China, alimentado pelo rápido
crescimento da parte continental e das outras três Chinas, além do papel
fundamental desempenhado por elementos da etnia chinesa no desen-
volvimento da economia da Tailândia, Malásia, Indonésia e Filipinas. De
modo mais ameaçador, a China está afirmando com vigor cada vez maior
suas reivindicações no Mar do Sul da China: ampliando sua base nas
Ilhas Paracel; disputando com os vietnamitas um punhado de ilhas em
1988; estabelecendo uma presença militar no Recife do Engano, ao largo
da costa das Filipinas; e reclamando para si as jazidas submarinas de gás
junto da Ilha Natuna, que pertence à Indonésia. A China também
abandonou o apoio discreto que dava à manutenção de uma presença
militar norte-americana na Ásia Oriental, e começou a se opor de forma
ativa a esse desdobramento. Analogamente, embora durante a Guerra
Fria a China tivesse discretamente instado o Japão a reforçar seu poderio
militar, nos anos pós-Guerra Fria ela tem manifestado crescente preo-
cupação com o aumento do poder militar japonês. Atuando na maneira
290
clássica de um país hegemônico regional, a China está tratando de reduzir
os obstáculos à consecução de sua superioridade militar regional.
Com raras exceções - como, possivelmente, no Mar do Sul da
China - , a hegemonia chinesa na Ásia Oriental provavelmente não
envolverá uma expansão de controle territorial através do emprego direto
da força armada. Entretanto, ela provavelmente significará que a China
esperará que os demais países da Ásia Oriental, em diferentes graus de
intensidade, implementem algumas, ou todas, das seguintes proposições:
?Ql
tabilizador, e o da China, na condição de uma das principais potências,
caso assim aconteça, será um fenômeno muito maior do que qualquer
outro comparável da metade final do segundo milênio. Lee Kuan Yew
comentou em 1994 que "a dimensão do deslocamento que a China
produz no mundo é tal que será preciso encontrar-se um novo
equilíbrio mundial dentro de 30 ou 40 anos. Não é possível se
pretender que ela é apenas mais um grande ator. Ela é o maior ator
da História da Humanidade". 32 Se o desenvolvimento econômico
chinês prosseguir por mais uma década, como parece possível, e se a
China mantiver sua unidade durante o período da sucessão, como parece
provável, os países da Ásia Oriental e do mundo terão de se defrontar
com um desempenho cada vez mais afirmativo 'desse maior ator da
História da Humanidade.
De modo geral, os Estados podem reagir de uma de duas maneiras,
ou numa combinação de ambas, ao surgimento de uma nova potência.
Isoladamente ou em coligação com outros Estados, podem tentar garantir
sua segurança através de um processo de contrabalançar a potência que
surge, contê-la e, se necessário, ir à guerra para derrotá-la. Ou então os
Estados podem tentar atrelar-se à potência que surge, se acomodar a ela
e assumir uma posição secundária ou subordinada em relação à potência
em ascensão, com a expectativa de que seus interesses básicos serão
protegidos. Ou ainda, é concebível que os Estados tentem alguma mescla
de contrabalançar e de se atrelar, embora isso acarrete o risco de, ao
mesmo tempo, antagonizar a potência em ascensão e não ter proteção
alguma contra ela. Segundo a teoria ocidental das relações internacionais,
geralmente contrabalançar é uma opção mais desejável e, na realidade,
tem sido adotada com mais freqüência do que a de se atrelar. Como
argumentou Stephen Walt,
292
parte da história européia, com várias potências alterando suas alianças
de modo a contrabalançar e conter as ameaças que viam configuradas
em Felipe II, Luís XIV, Frederico, o Grande, Napoleão, o Kaiser e Hitler.
Walt admite, entretanto, que os Estados podem optar por atrelar-se "sob
algumas condições" e, como argumenta Randall Schweller, "há uma
probabilidade de que Estados revisionistas se atrelem a uma potência em
ascensão por estarem descontentes e terem a esperança de se beneficia-
rem com as mudanças do status quo".34 Além disso, como indica Walt,
o atrelar-se de fato requer um certo grau de confiança nas intenções
não-malévolas do Estado mais poderoso.
Ao contrabalançar poder, os Estados podem desempenhar um
papel primário ou secundário. O Estado A pode tentar contrabalançar
poder contra o Estado B, que ele considera como um adversário real ou
potencial, estabelecendo alianças com os Estados C e D, desenvolvendo
seu próprio poder militar e de outra natureza (o que provavelmente levará
a uma corrida armamentista), ou através de uma combinação dessas
linhas de ação. Nessa situação, os Estados A e B são os contrabalancea-
dores primários um do outro. Na outra hipótese, o Estado A pode não
considerar nenhum outro Estado como um adversário imediato, mas
pode ter interesse em promover um equilíbrio de poder entre os Estados
B e C, pois se qualquer deles ficasse forte demais poderia se constituir
numa ameaça para o Estado A. Nessa situação, o Estado A atua como
um contrabalanceador secundário em relação aos Estados B e C, que
podem ser contrabalanceadores primários um do outro.
Como irão os países reagir à China se ela começar a surgir como
potência hegemônica na Ásia Oriental? As reações, sem dúvida, variarão
amplamente. Pelas razões indicadas aqui e porque a China definiu os
Estados Unidos como o seu inimigo principal, a inclinação norte-ameri-
cana predominante será a de agir como contrabalanceador primário e
evitar a hegemonia chinesa. A adoção de tal papel estaria acorde com a
preocupação tradicional norte-americana de evitar a dominação quer da
Europa quer da Ásia por qualquer potência isolada. Esse objetivo já não
é relevante na Europa, mas ainda poderia sê-lo na Ásia. Uma federação
flexível na Europa Ocidental, intimamente ligada aos Estados Unidos
cultural, política e economicamente, não constituirá ameaça para a
segurança norte-americana. Uma China unificada, poderosa e assertiva
poderia ser uma ameaça. Será do interesse norte-americano estar pronto
para ir à guerra, se necessário, para impedir a hegemonia chinesa na Ásia
Oriental? Se o desenvolvimento econômico chinês se mantiver no atual
')Q~
ritmo, isso poderia vir a ser a mais grave questão de segurança com que
se depararão os responsáveis por traçar a política norte-americana no
começo do século XXI. Se os Estados Unidos de fato quiserem impedir
a dominação da Ásia Oriental pela China, precisarão redirecionar sua
aliança com o Japão para essa finalidade, desenvolver estreitos laços
militares com outras nações asiáticas e aumentar sua presença militar na
Ásia, bem como o poder militar que possa empregar na região. Se os
Estados Unidos não estiverem dispostos a lutar contra a hegemonia
chinesa, terão que abrir mão de seu universalismo, aprender a viver com
essa hegemonia e se conformar com uma redução acentuada de sua
capacidade de moldar os acontecimentos no lado oposto do Pacífico.
Qualquer dessas linhas de ação acarreta grandes custos e riscos. O maior
perigo é o de que os Estados Unidos não façam uma opção clara e acabem
se vendo em guerra com a China sem terem avaliado cuidadosamente
se isso atende ao seu interesse nacional e sem estarem preparados para
travar de modo eficaz uma guerra desse tipo.
Teoricamente, os Estados Unidos poderiam tentar conter a China
desempenhando um papel de contrabalanceamento secundário, se algu-
ma outra potência importante atuasse como o contrabalanceador primá-
rio da China. A única possibilidade concebível é o Japão, e isso exigiria
grandes mudanças na política japonesa: intensificação do rearmamento
japonês, obtenção de armas nucleares e uma ativa competição com a
China em busca de apoio das outras potências asiáticas. Embora o Japão
pudesse estar disposto a participar de uma coligação encabeçada pelos
Estados Unidos para se contrapor ã China, ainda que isso também seja
'
incerto, é improvável que ele se torne o contrabalanceador primário da
China. Além disso, os Estados Unidos não mostraram grande interesse
ou capacidade num papel de contrabalanceamento secundário. Quando
ainda eram um país jovem e pequeno; tentaram fazer isso durante a era
napoleônica e acabaram em guerra tanto com a Grã-Bretanha como com
a França. Durante a primeira parte do século XX, os Estados Unidos
fizeram apenas esforços mínimos para promover contrabalanceamentos
entre países europeus e asiáticos e, em conseqüência, se viram engajados
em guerras mundiais para restabelecer equilíbrios que tinham sido
desfeitos. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos não tiveram alterna-
tiva senão serem o contrabalanceador primário da União Soviética.
Portanto, como grande potência, os Estados Unidos nunca foram um
'
contrabalanceador secundário. Para sê-lo é preciso desempenhar um
papel sutil, flexível, ambíguo e até mesmo insincero. Isso poderia implicar
294
mudar o apoio de um lado para outro, recusar-se a apoiar ou se opor a
um Estado que, pelos valores norte-americanos, parecesse estar moral-
mente certo e apoiar um Estado que estivesse moralmente errado. Mesmo
que 0 Japão emergisse como o contrabalanceador primário da China na
Ásia, fica em aberto a questão da capacidade dos Estados Unidos de
apoiar esse contrabalanceamento. Os Estados Unidos são muito mais
capazes de se mobilizar diretamente contra uma ameaç;,i existente do que
de contrabalançar uma contra a outra duas ameaças em potencial. Por
último, é provável que exista entre as potências asiáticas uma propensão
a se atrelar, o que inviabilizaria qualquer tentativa norte-americana de
contrabalanceamento secundário.
Na medida em que o atrelar-se depende de confiança, apresentam-
se três proposições. Em primeiro lugar, há mais probabilidade de que o
atrelar-se ocorra entre Estados que pertencem à mesma civilização ou
compartilham de alguma outra maneira aspectos culturais comuns, do
que entre Estados que carecem de tais aspectos em comum. Em segundo
lugar, é provável que os níveis de confiança variem conforme o contexto.
Um menino pequeno se atrelará ao irmão mais velho quando eles
enfrentarem outros meninos; é menos provável que ele confie no irmão
mais velho quando estiverem sozinhos em casa. Por conseguinte, as
interações mais freqüentes entre Estados de civilizações diferentes es-
timularão ainda mais o atrelar-se no seio de cada civilização. Em terceiro
lugar, a propensão para atrelar-se e para contrabalançar pode variar de uma
civilização para outra, porque os níveis de confiança entre seus integrantes
são diferentes. A predominância do contrabalanceamento no Oriente
Médio, por exemplo, pode refletir os níveis proverbialmente baixos de
confiança que existem na cultura árabe e nas outras culturas dessa região.
Além dessas influências, a propensão para atrelar-se ou para
contrabalançar será condicionada pelas expectativas e preferências no
que se refere à distribuição do poder. As sociedades européias passaram
por uma fase de absolutismo, porém evitaram os longos impérios
burocráticos ou "despotismos orientais" que caracterizaram a Ásia duran-
te grande parte de sua história. O feudalismo proporcionou uma base
para o. pluralismo e para o pressuposto de que uma certa dispersão de
poder era tanto natural como desejável. Assim, também no nível inter-
nacional um equilíbrio de poder era considerado natural e desejável, e
a responsabilidade dos estadistas era protegê-lo e sustentá-lo. Em con-
seqüência, quando o equilíbrio ficava ameaçado, precisava-se de uma
conduta de contrabalanceamento para restabelecê-lo. Em resumo, 0
modelo európeu de sociedade internacional refletia o modelo europeu
de sociedade doméstica.
Em contraste, os impérios burocráticos da Ásia não deixavam muito
espaço para o pluralismo político e a divisão de poder. Dentro da China,
o atrelar-se parece ter sido muito mais importante em comparação com
o contrabalanceamento do que na Europa. Lucian Pye assinala que,
durante a década de 20, "os chefes guerreiros procuraram, primeiro, ver
o que poderiam ganhar se identificando com os fortes, e só depois
exploraram as vantagens de se aliar com os fracos. (. .. ) para os chefes
guerreiros chineses, a autonomia não era o valor definitivo, como era
nos cálculos tradicionais europeus de equilíbrio de poder. Ao contrário,
eles baseavam suas decisões na associação com o poder". Em sentido
semelhante, Avety Goldstein argumenta que o atrelar-se caracterizou a
política na China comunista enquanto a estrutura de autoridade era
relativamente clara, de 1949 a 1966. Quando a Revolução Cultural criou
as condições de quase anarquia e incerteza a respeito da autoridade e
ameaçou a sobrevivência dos atores políticos, começou a prevalecer o
comportamento de contrabalanceamento.35 Pode-se supor que o res-
tabelecimento de uma estrutura de autoridade definida com maior clareza
depois de 1978 também restabeleceu o atrel~r-se como o padrão domi-
nante de comportamento político.
Historicamente, os chineses jamais fizeram uma distinção nítida
entre os assuntos internos e externos. Sua "imagem da ordem mundial
não passava de um corolário da ordem interna chinesa e, assim, era uma
projeção ampliada da identidade civilizacional chinesa", que "se pres-
supunha que se repetia em círculos concêntricos cada vez maiores, como
'
a correta ordem cósmica". Ou, como expressou Roderick MacFarquhar, "a
visão chinesa tradicional do mundo era vm reflexo da visão confuciana de
uma sociedade hierárquica cuidadosamente articulada. Pressupunha-se que
os monarcas e Estados estrangeiros eram tributários do Reino do Meio: 'Não
há dois sóis no céu; não pode haver dois imperadores na Terra"'. Como
conseqüência, os chineses não mostraram apreço por "concepções de
segurança multipolares nem mesmo multilaterais". De modo geral, os
asiáticos estão dispostos a "aceitar a hierarquia" nas relações internacio-
nais, e as guerras hegemônicas do tipo europeu não aparecem na história
da Ásia Oriental. Um sistema de equilíbrio de poder em funcionamento,
que historicamente era típico na Europa, foi estranho à Ásia. Até a
chegada dos europeus em meados do século XIX, as relações interna-
cionais na Ásia Oriental eram sinocêntricas, com as demais sociedades
?Oh
dispostas em diferentes graus de subordinação, cooperação ou autonomia
com relação a Pequim. 36 O ideal confuciano da ordem mundial, evidente-
mente, nunca se concretizou na prática. Não obstante, o modelo asiático
de relações internacionais baseadas numa hierarquia de poder contrasta
de forma espetacular com o modelo europeu de equilíbrio de poder.
Em conseqüência dessa imagem da ordem mundial, a propensão
chinesa para atrelar-se no campo da política interna também ocorre nas
relações internacionais. O grau em que isso molda a política externa de
cada Estado tende a variar de acordo com o grau com que compartilham
da cultura confuciana e do seu relacionamento histórico com a China. A
Coréia tem muito em comum no campo cultural com a China, e
historicamente se inclinou para a China, motivada em boa medida por
seu antagonismo e medo em relação ao Japão. Para Singapura, a China
comunista era um inimigo durante a Guerra Fria. Nos anos 80, porém,
Singapura começou a mudar sua posição e, ao se chegar a meados da
década de 90, tinha se tornac_lo um dos grandes investidores na China.
Seus dirigentes sustentavam de forma incisiva a necessidade de que os
Estados Unidos e outros países se adaptassem às realidades do poderio
chinês. A. Malásia, com sua grande população chinesa e a tendência
antiocidental de seus dirigentes, também se inclina fortemente na direção
da China. A Tailândia manteve sua independência nos séculos XIX e XX
acomodando-se ao imperialismo europeu e ao japonês, e tem demons-
trado a firme intenção de fazer o mesmo em relação à China, numa
tendência que é reforçada pela ameaça de segurança em potencial que
ela vê no Vietnã.
A Indonésia e o Vietnã são os dois países do Sudeste Asiático mais
'
indinados a contrabalançar e conter a China. A Indonésia é grande,
muçulmana e está distante da China, mas, sem o auxílio de outros países,
não pode impedir que a China afirme o seu controle sobre o Mar do Sul da
China. No outono de 1995, a Indonésia e a Austrália estabeleceram um
acordo de segurança pelo qual se comprometeram a consultas mútuas na
eventualidade de "confronçações adversas" à sua segurança. Embora ambas
as partes negassem que se tratava de um acordo contra a China, na realidade
identificaram-na como a fonte mais provável de confrontações adversas.3 7
O Vietnã possui uma cultura predominantemente confuciana, porém teve
historicamente um relacionamento antagônico com a China e, em 1979,
travou com ela uma curta guerra. Tanto o Vietnã como a China
reivindicam a soberania sobre as Ilhas Spratly, e suas marinhas de guerra
travaram escaramuças esporádicas nas décadas de 70 e 80.
?Q7
Nos anos 90, a capacidade militar do Vietnã estava em declínio em
relação à da China. Conseqüentemente, mais do que qualquer outro país
da Ásia Oriental, o Vietnã tinha motivos para buscar parceiros a fim de
contrabalançar a China. Sua admissão na ASEAN e a normalização de
suas relações com os Estados Unidos em 1995 representaram dois passos
nessa direção. Entretanto, as dissensões no seio da ASEAN e a relutância
dessa associação em confrontar a China tomam improvável que a ASEAN
possa vir a ser uma aliança contra a China ou que dê muito apoio ao
Vietnã numa confrontação com ela. Os Estados Unidos teriam mais
disposição para conter a China, porém, em meados dos anos 90, não
estava claro até que ponto iriam para contestar a afirmação do controle
chinês sobre o Mar do Sul da China. No final, para o Vietnã "a alternativa
menos ruim" poderia ser a de se acomodar com a China e aceitar sua
finlandização, a qual, embora "ferisse o orgulho vietnamita( ... ) poderia
assegurar sua sobrevivência".38
Nos anos 90, praticamente todas as nações da Ásia Oriental, afora
China e Coréia do Norte, expressavam seu apoio à manutenção de uma
presença militar norte-americana na região. Entretanto, na prática, a não
ser o Vietnã, todas elas tendiam a se acomodar com a China. As Filipinas
puseram termo às bases aérea e naval norte-americanas em seu território.
Em Okinawa, aumentou a oposição à enorme quantidade de efetivos
militares norte-americanos baseados na ilha. Em 1994, a Tailândia, a
Malásia e a Indonésia rejeitaram os pedidos norte-americanos para
ancorar em suas águas seus navios de suprimento, como uma espécie
de base flutuante para facilitar uma intervenção militar pelos Estados
Unidos, quer no Sudeste quer no Sudoeste Asiático. Numa outra demons-
tração de deferência, na sua primeira reunião o Foro Regional da ASEAN
concordou com a solicitação chinesa de que as questões envolvendo
as Ilhas Spratly fossem mantidas fora da agenda. Além disso, a
ocupação pela China do Recife do Engano, ao largo da costa das
Filipinas, em 1995, não suscitou protestos de nenhum outro país da
ASEAN. Em 1995-96, quando a China ameaçou verbal e militarmente
Taiwan, os governos asiáticos mais um vez responderam com um silêncio
ensurdecedor. Michael Oksemberg sintetizou muito bem a propensão
desses países para se atrelarem: "Os dirigentes asiáticos de fato se
preocupam com que a balança de poder possa se inclinar a favor da
China, porém, numa angustiada antecipação do futuro, não querem
confrontar Pequim agora" e "não se juntarão aos Estados Unidos numa
cruzada anti-China."39
298
A ascensão da China criará um grande desafio para o Japão, e os
japoneses estão profundamente divididos quanto a que estratégia ~eu
país deveria adotar. Será que ele deveria tentar se acomodar :~m a C~~na,
talvez com certa contrapartida, reconhecendo seu predomm10 poht1co-
militar em troca do reconhecimento da primazia do Japão em assuntos
econômicos? Será que ele deveria dar um novo significado à aliança
nipo-norte-americana como o núcleo de uma coligação para contraba-
lançar e conter a China? Será que ele deveria tentar desenvolver seu
próprio poderio militar a fim de defender seus interesses contra quaisquer
incursões chinesas? Provavelmente, o Japão evitará o máximo que puder
dar uma resposta clara a qualquer dessas perguntas.
O núcleo de qualquer esforço significativo para contrabalançar
e conter a China teria que ser a aliança militar nipo-norte-americana.
É concebível que o Japão possa, lentamente, assentir no redireciona-
mento da aliança para essa finalidade. Se o Japão fará isso ou não,
dependerá de o Japão confiar: (1) na capacidade geral dos Estados
Unidos de se manterem como a única superpotência do mundo e de
manterem sua liderança ativa nos assuntos mundiais; (2) no empenho
dos Estados Unidos de manterem sua presença na Ásia e de comba-
terem de forma ativa os esforços da China por expandir sua influência;
e (3) a capacidade dos Estados Unidos e do Japão de conterem a China
sem altos custos em termos de recursos ou altos riscos em termos de
guerra.
Na ausência de uma grande e improvável demonstração de deter-
minação e empenho dos Estados Unidos, é provável que o Japão trate
de se acomodar com a China. Com exceção dos anos 30 e 40, quando
adotou uma política unilateral de conquista na Ásia Oriental, com
conseqüências desastrosas, historicamente o Japão buscou sua segurança
através de alianças com o que ele percebia como sendo a potência
dominante relevante. Mesmo na década de 30, ao se juntar ao Eixo, ele
estava se alinhando com o que parecia então ser a força militar-ideológica
mais dinâmica na política mundial. Mais no começo do século, o Japão
havia, de modo muito consciente, estabelecido uma aliança nipo-britâ-
nica porque a Grã-Bretanha era a potência líder em assuntos mundiais.
Nos anos 50, o Japão analogamente se associou com os Estados Unidos
como o país mais poderoso do mundo e que podia garantir a segurança
do Japão. Tal como os chineses, os japoneses vêem a política internacio-
nal em termos hierárquicos, porque assim é sua política interna. Como
assinalou um estudioso japonês:
Quando os japoneses pensam na sua nação dentro da sociedade
internacional, muitas vezes os modelos internos japoneses oferecem
analogias. Os japoneses tendem a ver uma ordem internacional expres-
sando externamente os padrões culturais que se manifestam internamen-
te no ãmbito da sociedade japonesa, que se caracteriza pela relevância
de estruturas organizadas verticalmente. Tal imagem da ordem interna-
cional foi influenciada pela longa experiência do Japão com o relacio-
namento sino-japonês pré-moderno (um sistema tributário).
2("\'"7
O dinamismo econômico da China alastrou-se para a Sibéria e homens
de negócios chineses, junto com sul-coreanos e japoneses, estão ex-
plorando e aproveitando as oportunidades aí existentes. Os russos na
Sibéria cada vez mais visualizam seu futuro econômico como mais ligado
à Ásia Oriental do que à Rússia européia. Mais ameaçadora para a Rússia
é a imigração chinesa na Sibéria, com migrantes ilegais chineses somando
em 1995, ao que consta, de três a cinco milhões, em comparação com
uma população russa na Sibéria oriental totalizando sete milhões. O
ministro da Defesa russo, Pavel Grachev, advertiu que "os chineses estão
em processo de efetuar uma conquista pacífica do Extremo Oriente
russo". A mais alta autoridade russa na área de imigração fez eco de suas
palavras, dizendo que "precisamos resistir ao expansionismo chinês". 47
Além disso, o fato de a China estar desenvolvendo as relações econômi-
cas com as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central pode exacerbar seu
relacionamento com a Rússia. A expansão chinesa poderia também
assumir uma feição militar se a China decidisse que deveria tentar retomar
a Mongólia, que os russos desmembraram da China depois da I Guerra
Mundial e que, durante décadas, foi um satélite soviético. Em algum
momento, as "hordas amarelas" que atormentaram a imaginação russa
desde as invasões mongóis podem voltar a ser uma realidade.
As relações da Rússia c~m o Islã são moldadas pela herança histórica
de séculos de expansão, por meio de guerras contra os turcos, os povos
do Cáucaso Setentrional e os emirados centro-asiáticos. Atualmente, a
Rússia colabora com seus aliados ortodoxos, Sérvia e Grécia, para se
contrapor à influência turca nos Bálcãs, e com seu aliado ortodoxo, a
Armênia, para restringir essa influência no Transcáucaso. A Rússia tentou
com muito empenho manter sua influência política, econômica e militar
nas repúblicas da Ásia Central, atraiu-as para a Comunidade dos Estados
Independentes e mantém tropas baseadas em todas elas. No centro das
preocupações russas estão as reservas de petróleo e de gás no Mar Cáspio
e as rotas pelas quais esses recursos chegarão ao Ocidente e à Ásia
Oriental. A Rússia está engajada numa guerra no Cáucaso Setentrional,
contra o povo muçulmano da Chechênia, e numa outra guerra no
Tadjiquistão, apoiando o governo contra uma insurreição que inclui
fundamentalistas islâmicos. Essas preocupações de segurança constituem
incentivo adicional para a cooperação com a China, a fim de conter "a
ameaça islâmica" na Ásia Central, e são também parte dos motivos
principais para a reaproximação da Rússia com o Irã. A Rússia vendeu
ao Irã submarinos, aviões de caça sofisticados, caça-bombardeiros,
/
FIGURA 9.1
A POLÍTICA MUNDIAL DAS CIVILIZAÇÕES: ALINHAMENTOS EMERGENTES
- - - Mais Conflituosa
= Menos Conflituosa
mesma civilização têm relações idênticas com todos os países de uma
segunda civilização. Interess~s em comum, geralmente um m1m1go
comum de uma terceira civilização, podem gerar cooperação entre países
de civilizações diferentes. Obviamente, também ocorrem conflitos dentro
das civilizações, especialmente do Islã. Além disso, as relações entre os
grupos situados ao longo de linhas de fratura podem diferir de modo
significativo das relações entre os Estados-núcleos dessas mesmas civiliza-
ções. Não obstante, tendências amplas ficam evidentes e podem-se fazer
generalizações plausíveis a respeito do que parecem ser os alinhamentos e
antagonismos que estão surgindo entre civilizações e Estados-núcleos. Eles
estão resumidos na Figura 9.1. A bipolaridade relativamente simples da
Guerra Fria está dando lugar aos relacionamentos muito mais complexos
de um mundo multipolar e multicivilizacional.
~11
CAPÍTULO 10
O
destacado estudioso marroquino Mahdi Elmandjra denominou
a Guerra do Golfo, quando ela ainda estava se desenrolando ,
de la premiere guerre civilizationnelle. l Na verdade, ela foi a
segunda. A primeira foi a Guerra Soviético-afegã de 1979-89. Ambas
começaram como invasões simples e diretas de um país por outro, mas
se transformaram e, em grande parte, se redefiniram como guerras de
civilizações. Elas foram, na realidade, guerras de transição para uma era
dominada por conflitos étnicos e guerras de linha de fratura entre grupos
de civilizações diferentes.
A Guerra do Afeganistão começou C01Il()__l:l_m esforço da União
Soviética para sustentar um regime satélite_._ Ela se-~u-uma guerra
dentro da Gu.erra Fria quando os Estados Unidos reagiram de modo
vigoroso e organizaram, financiaram e equiparam os insurgentes afegãos
que resistiram às forças soviéticas. Para os norte-americanos, a derrota
soviética foi a confirmação da doutrina Reagan de promover a resistência
armada aos regimes comunistas, e constituiu uma tranqüilizadora humi-
lhação dos soviéticos, comparável à que os Estados Unidos tinham
sofrido no Vie!Jlã. Ela foi também uma derrota cujas ramificações se
espalharam por toda a sociedade e estrutura política soviéticas, con-
tribuindo de modo significativo para a desintegração do império sovié-
312
tico. Para os norte-americanos e para os ocidentais em geral, o Afeganis-
tão foi a vitória final e decisiva, o Waterloo da Guerra Fria.
Entretanto, para aqueles que lutaram contra os soviéticos, a Guerra
do Afeganistão foi algo diferente. Um estudioso ocidental assinalou 2 que
ela foi "a primeira resistência bem-sucedida a uma potência estrangeira
que não estava baseada em princípios quer nacionalistas quer ~~cialistas",
mas sim em princípios islâmicos, que foi travada como uma jthad e que
deu um enorme ímpeto à autoconfiança e ao poderio islâmicos. De fato,
seu impacto sobre o mundo islâmico foi comparável ao que a derrota
imposta pelos japoneses aos russos em 1905 teve sobre o mundo oriental.
o que 0 Ocidente vê como uma vitória para o Mundo Livre, os
muçulmanos vêem como uma vitória para o Islã.
Os dólares e os mísseis norte-americanos foram indispensáveis para
a derrota dos soviéticos. Entretanto, também indispensável foi o esforço
coletivo do Islã, através do qual uma variedade de governos e de grupos
competiam entre si, tentando derrotar os soviéticos e produzir uma vitória
que iria servir aos seus interesses. O apoio financeiro muçulmano para
a guerra veio basicamente da Arábia Saudita. Entre 1984 e 1986, os
sauditas deram 525 milhões de dólares à resistência; em 1989, concorda-
ram em fornecer 61 por cento de um total de 715 milhões de dólares, ou
seja, 436 milhões, ficando o saldo por conta dos Estados Unidos. Em
1993, os sauditas proporcionaram 193 milhões de dólares para o governo
afegão. A soma total das contribuições sauditas durante o transcurso da
guerra foi pelo menos igual, e provavelmente superior, à quantia de três
a 3,3 bilhões de dólares despendidos pelos Estados Unidos. Durante a
guerra, cerca de 25 mil voluntários de outros países islâmicos, basica-
mente árabes, participaram da guerra. Recrutados em grande parte na
Jordânia, esses voluntários foram treinados pela agência de inteligência
integrada das três forças armadas do Paquistão. Este país também
proporcionou a indispensável base no exterior para a resistência, bem
como apoio logístico e de outros tipos. Além disso, o Paquistão foi o
agente e o conduto para o desembolso do dinheiro norte-americano e,
propositadamente, dirigiu 75 por cento desses fundos para os grupos
islâmicos mais fundamentalistas, com a metade dessa parte indo para a
facção fundamentalista sunita mais extremada, liderada por Gulbuddin
Hekmaryar. Embora estivessem lutando contra os soviéticos, os árabes
participantes da guerra eram predominantemente antiocidentais e con-
denavam as agências ocidentais de ajuda humanitária como imorais e
subversoras do Islamismo. No final, os soviéticos foram derrotados por
212
três fatores que não tinham como igualar ou neutralizar de forma eficaz:
a tecnologia norte-americana, o dinheiro saudita e a devoção e de-
mografia muçulmanas.3
'
A guerra deixou atrás de si uma coligação instável de organizações
fundamentalistas islâmicas empenhadas na promoção do Islamismo
contra todas as forças não-muçulmanas. Deixou também uma herança
de combatentes especializados e experimentados, acampamentos, cam-
pos de treinamento e instalações logísticas, sofistic.adas redes transislâ-
micas de relacionamentos de pessoal e de organizações, considerável
quantidade de equipamento militar, inclusive de 300 a 500 mísseis Stinger,
de que não se tem registro, e, o que é mais importante, uma inebriante
sensação de poder e autoconfiança pelo que haviam conseguido, assim
como um intenso desejo de seguir adiante, rumo a novas vitórias. Uma
autoridade norte-americana disse, em 1994, que "as credenciais dajihad,
religiosas e políticas", dos voluntários afegãos, "são impecáveis. Eles
derrotaram uma das duas superpotências mundiais e agora estão traba-
lhando em cima da segunda".4
A Guerra do Afeganistão tornou-se uma guerra de civilizações
porque os muçulmanos em todas as partes a viram como tal e se juntaram
contra a União Soviética. A Guerra do Golfo tornou-se uma guerra de
civilizações porque o Ocidente interveio militarmente ~um conflito
muçulmano, os ocidentais apoiaram de forma majoritária essa interven-
ção e os muçulmanos pelo mundo afora acabaram por ver tal intervenção
como uma guerra contra eles e se juntaram contra aquilo que viram como
mais um exemplo do imperialismo ocidental.
Inicialmente, os governos árabes e muçulmanos ficaram divididos
a respeito dessa guerra. Saddam Hussein tinha violado a intocabilidade
das fronteiras e, em agosto de 1990, a Liga Árabe decidiu, por uma maioria
e~pressiva de votos (14 a favor, dois contra e cinco abstenções ou
nao-participação na votação), condenar sua ação. O Egito e a Síria
concorda~a1?1 em contribuir com uma quantidade considerável de tropas,
e o Paqu~stao, Marrocos e Bangladesh com quantidades menores, para
a f~rmaçao de uma coligação contra o Iraque organizada pelos Estados
Unidos. A Turquia fechou o oleoduto que atravessava seu território indo
do Iraque até o Mediterrâneo, e permitiu que a coligação utilizass~ suas
bases aéreas. Em troca dessas ações, a Turquia fortaleceu sua pretensão
de ser admitida na Europa, o Paquistão e o Marrocos reafirmaram seu
íntimo relacionamento com a Arábia Saudita, o Egito conseguiu o
cancelamento da dívida externa e a Síria obteve o Líbano. Em contraste
'
os governos do Irã, Jordânia, Líbia, Mauritânia, Iêmen, Sudão e Tunísia,
bem como organizações como a OLP, o Hamas e a FIS [Frente Islâmica
de Salvação], apesar do apoio financeiro que muitas tinham recebido da
Arábia Saudita, apoiaram o Iraque e condenaram a intervenção ocidental.
315
nação árabe ao Ocidente. Um estudo informou que os intelectuais árabes
"têm desprezo pelo regime iraquiano e lamentam sua brutalidade e
autoritarismo, mas o consideram como um centro de resistência ao
grande inimigo do mundo árabe, o Ocidente". Um professor palestino
disse que "o que Saddam fez estava errado, mas não podemos condenar
o Iraque por enfrentar a intervenção militar ocidental". Os muçulmanos
no Ocidente e em outras áreas condenaram a presença de tropas
não-muçulmanas na Arábia Saudita e a decorrente "violação" dos lugares
sagrados muçulmanos.9 Em síntese, a opinião predominante era: Saddam
esteve errado ao invadir, o Ocidente esteve mais errado em intervir, por
conseguinte, Saddam esteve certo em lutar contra o Ocidente e nós
estamos certos em apoiá-lo.
Saddam Hussein, como os participantes principais em outras guer-
ras de linha de fratura, identificou seu regime, até então secular, com a
causa que exerceria o máximo de atração: o Islamismo. Embora a Arábia
Saudita seja estritamente muçulmana nas suas práticas e instituições, com
as possíveis exceções do Irã e do Sudão, e embora ela tenha financiado
grupos fundamentalistas islâmicos pelo mundo afora, nenhum movimen-
to fundamentalista islâmico em qualquer país apoiou a coligação ociden-
tal contra o Iraque e praticamente todos condenaram a intervenção
ocidental. Dado o formato em U da distribuição de identidades no
mundo islâmico, Saddam não tinha muita opção senão se identificar com
o Islamismo. Um comentarista egípcio assinalou que essa escolha do
Islamismo em vez tanto do nacionalismo árabe quanto de um vago .
antiocidentalismo terceiro-mundista "demonstra o valor do Islamismo
como ideologia política para mobilizar apoio" .10
Para os muçulmanos, essa guerra rapidamente passou a ser uma
guerra entre civilizações, na qual a inviolabilidade do Islã estava em jogo.
Os grupos fundamentalistas islâmicos do Egito, Síria, Jordânia, Paquistão,
Malásia, Afeganistão, Sudão e outros países condenaram-na como uma
guerra contra "o Islã e sua civilização" por uma aliança de "cruzados e
sionistas" e proclamaram seu apoio ao Iraque diante da "agressão militar
e econômica contra o seu povo". No outono de 1990, o decano do
Colégio Islâmico de Meca, Safar al-Hawali, declarou numa gravação em
fita, que circulou amplamente pela Arábia Saudita, que a guerra "não é
o mundo contra o Iraque. Ela é o Ocidente contra o Islã". Em termos
semelhantes, o rei Hussein sustentou que ela era "uma guerra contra
todos os árabes e todos os muçulmanos, e não apenas contra o Iraque".
Além disso, como ressalta Fatima Mernissi, as freqüentes invocações
316
retóricas de Deus feitas pelo presidente Bush em nome dos Estados
Unidos reforçaram a percepção árabe de que era "uma guerra religiosa",
com as observações de Bush dando a aparência "dos ataques mercenários
e calculistas das hordas pré-islâmicas do século VII e as cruzadas cristãs
que vieram depois". Por sua vez, os argumentos de que a guerra era uma
cruzada produzida por uma conspiração ocidental e sionista justificaram,
e até exigiram, a mobilização de uma jihad em resposta. 11
A definição muçulmana da guerra como sendo Ocidente versus Islã
facilitou a diminuição ou a suspensão de antagonismos no seio do mundo
islâmico. Velhas diferenças entre muçulmanos perderam sua importância
em comparação com a diferença maior entre o Islã e o Ocidente. No
decurso da guerra, governos e grupos muçulmanos se moveram sis-
tematicamente no sentido de se afastarem do Ocidente. Como a sua
antecessora no Afeganistão, a Guerra do Golfo reuniu muçulmanos que
anteriormente tinham muitas vezes estado se esganando mutuamente:
secularistas árabes, nacionalistas e fundamentalistas; o governo jordania-
no e os palestinos; a OLP e o Hamas; Irã e Iraque; partidos de oposição
e governos, de modo geral. Como colocou Safar al-Hawali, "esses
ba 'athistas do Iraque são nossos inimigos por algumas horas, mas Roma
é nossa inimiga até o Dia do Juízo Final" .1 2 A guerra também deu início
ao processo de reconciliação entre o Iraque e o Irã. Os líderes religiosos
xiitas do Irã condenaram a intervenção ocidental e conclamaram a uma
jihad contra o Ocidente. O governo iraniano se distanciou das medidas
dirigidas contra seu antigo inimigo, e à guerra seguiu-se uma melhoria
gradual das relações entre os dois regimes.
Um inimigo externo também reduz os conflitos dentro de um país.
Em janeiro de 1991, por exemplo, informou-se que o Paquistão estava
"inundado de polêmicas antiocidentais" que produziram a união, pelo
menos por pouco tempo, dentro do país. "O Paquistão nunca esteve tão
unido. Na província meridional de Sind, onde os sindhis autóctones e os
imigrantes vindos da Índia vêm se matando há cinco anos, as pessoas
de ambos os lados participam de braços dados das demonstrações contra
os Estados Unidos. Nas áreas ultraconservadoras da Fronteira do Noroes-
te, até mesmo as mulheres saem às ruas para protestar, muitas vezes em
locais onde as pessoas nunca se congregaram a não ser para as preces
de sexta-feira."13
À medida que a opinião pública ficou mais decidida contra a guerra,
os governos que se tinham inicialmente associado com a coligação deram
marcha à ré, ficaram divididos ou desenvolveram racionalizações com-
317
plicadas para suas ações. Governos de líderes como Hafiz al-Assad que
tinham contribuído com tropas argumentaram que elas eram necessárias
para equilibrar e acabar por substituir as forças ocidentais na Arábia
Saudita, e que, de qualquer modo, elas seriam usadas unicamente para
fins defensivos e para a proteção dos lugares santos. Na Turquia e no
Paquistão, os principais líderes militares condenaram publicamente 0
alinhamento de seus governos com a coligação. Os governos egípcio e
sírio, que contribuíram com a maior parte das tropas, tinham controle
suficiente sobre suas sociedades para serem capazes de reprimir e ignorar
pressões antiocidentais. Os governos de países muçulmanos um tanto mais
abertos foram induzidos a se afastar do Ocidente e adotar posições cada
vez mais antiocidentais. No Maghreb, "a explosão de apoio ao Iraque" foi
"uma das maiores surpresas da guerra". A opinião pública tunisiana era
fortemente contra o Ocidente e o presidente Ben Ali apressou-se em
condenar a intervenção ocidental. O governo do Marrocos inicialmente
contribuiu com 1.500 homens para a coligação, mas depois, à medida que
grupos antiocidentais se mobilizaram, também endossou uma greve geral
em favor do Iraque. Na Argélia, uma demonstração pró-Iraque de 400 mil
pessoas levou o presidente Bendjedid, que inicialmente se inclinara para 0
Ocidente, a mudar sua posição, condenar o Ocidente e declarar que "a
Argélia ficará ao lado do seu irmão, o Iraque".14 Em agosto de 1990 os
três governos do Maghreb tinham votado na Liga Árabe para cond~nar
o Iraque. No outono, respondendo aos intensos sentimentos de seus
povos, votaram a favor de uma moção para condenar a intervenção
norte-americana, que foi derrotada pela estreita margem de 10 a 11.
O esforço militar ocidental também atraiu pouco apoio das pessoas
de civilizações não-ocidentais e não-muçulmanas. Em janeiro de 1991,
53 por cento dos japoneses entrevistados se opunham à guerra, enquanto
25 por cento a apoiavam. Os hindus se dividiram exatamente ao meio
entre os que culpavam Saddam Hussein e os que culpavam George Bush
pela guerra, a qual, segundo alertava o Tbe Times o/Jndia, poderia levar
a :·u~a confrontação muito mais abrangente entre um mundo judaico-
cnstao forte e arrogante e um mundo muçulmano fraco, incendiado pelo
fervor religioso". A Guerra do Golfo começou assim como uma guerra
entre ~ Iraque e o Kuwait, depois se tornou uma guerra entre o Iraque
e o _ocidente, depois entre o Islã e o Ocidente, e acabou sendo vista por
muitos não-ocidentais como uma guerra Oriente versus Ocidente, "uma
guerra do homem branco, um novo surto do imperialismo à moda
antiga".15
318
Excetuados os kuwaitianos, nenhum povo islâmico se entusiasmou
com a guerra, e a maioria deles demonstrou uma oposição majoritária à
intervenção ocidental. Quando a guerra terminou, os desfiles da vitória
realizados em Londres e em Nova York não foram repetidos em nenhum
outro lugar. Sohail H. Hashmi assinalou que "a conclusão da guerra não
deu motivos para júbilo" em meio aos árabes. Em vez disso, a atmosfera
predominante foi de intensa decepção, desilusão, humilhação e res-
sentimento. Uma vez mais o Ocidente tinha ganho. Novamente, o mais
recente Saladin que havia elevado as esperanças árabes tinha caído em
derrota diante do poderio maciço do Ocidente, que havia sido introdu-
zido pela força na comunidade do Islã. Fatima Mernissi indagou: "O que
de pior poderia ter acontecido aos árabes do que aquilo que a guerra
produziu, o Ocidente inteiro, com toda a sua tecnologia, lançando
bombas sobre nós? Foi o horror definitivo." 16
Logo após a guerra, a opinião pública árabe fora do Kuwait criticou
cada vez mais a presença militar norte-americana no Golfo. A liberação
do Kuwait eliminou qualquer racionalização ·para se opor a Saddam
Hussein e deixou pouca justificativa para uma continuação da presença
militar norte-americana no Golfo. Em conseqüência, até mesmo em
países como o Egito, a opinião pública ficou mais favorável ao Iraque.
Os governos árabes que se haviam juntado à coligação alteraram suas
posturas.17 O Egito e a Síria, além de outros, se opuseram à imposição,
em agosto de 1992, de uma zona de vôo proibido no sul do Iraque. Os
governos árabes e a Turquia também objetaram aos ataques aéreos contra
o Iraque em janeiro de 1993. Se o poder aéreo ocidental podia ser
empregado em resposta a ataques contra muçulmanos xiitas e curdos
por muçulmanos sunitas, por que ele também não era empregado para
responder aos ataques contra os muçulmanos bósnios por sérvios
ortodoxos? Em junho de 1993, quando o presidente Clinton ordenou um
bombardeio de Bagdá em represália à tentativa iraquiana de assassinar
o ex-presidente Bush, a reação internacional obedeceu estritamente às
linhas civilizacionais. Israel e os governos europeus ocidentais apoiaram
firmemente o ataque aéreo; a Rússia o aceitou como autodefesa "jus-
tificada"; a China expressou sua "profunda preocupação"; a Arábia
Saudita e os emirados do Golfo nada disseram; outros governos muçul-
manos, inclusive o egípcio, o condenaram como outro exemplo dos dois
pesos e duas medidas do Ocidente, enquanto o Irã classificou-o de
"flagrante agressão" impulsionada pelo "neo-expansionismo e egoísmo"
norte-americano. 18 Reiteradamente foi feita a pergunta: por que os
319
Estados Unidos e a "comunidade internacional" (ou seja, o Ocidente) não
reagem de modo análogo ao comportamento abusivo de Israel e às suas
violações das Resoluções das Nações Unidas?
A Guerra do Golfo foi a primeira guerra por recursos naturais no
pós-Guerra Fria travada entre civilizações. Estava em jogo a questão de
se as maiores reservas mundiais de petróleo ficariam sob o controle dos
governos sauditas e dos emirados, dependentes do poderio militar
ocidental para sua segurança, ou de regimes independentes antiociden-
tais que teriam a capacidade e poderiam ter a disposição de empregar a
arma do petróleo contra o Ocidente. Embora não tendo conseguido
derrubar Saddam Hussein, o Ocidente, de certo modo, logrou uma vitória
ao marcar a dependência do Ocidente em que estão os Estados do Golfo
em matéria de segurança, bem como ao conseguir uma maior presença
militar no Golfo em tempo de paz. Antes da guerra, o Irã, o Iraque, o
Conselho de Cooperação do Golfo e os Estados Unidos disputavam a
'
influência sobre o Golfo. Depois da guerra, o Golfo Pérsico virou um
lago norte-americano.
320
que não detém o controle do governo normalmente luta pela indepen-
dência e pode ou não estar disposto a aceitar uma solução por algo
menos do que ela. Os conflitos no seio de um Estado podem também
envolver grupos que estão entremeados geograficamente, caso em que
as relações continuamente tensas irrompem em violência de tempos em
tempos, como se dá com os hindus e os muçulmanos na Índia e com os
muçulmanos e os chineses na Malásia; ou então podem ocorrer lutas em
larga escala, especialmente quando estão sendo estabelecidos novos
Estados e suas fronteiras, podendo resultar em tentativas, muitas vezes
brutais, de se separar povos pela força.
Algumas vezes, os conflitos de linha de fratura são lutas pelo
controle de pessoas. Com maior freqüência, a questão é o controle de
território. O objetivo de pelo menos um dos participantes é conquistar
território e livrá-lo de outras pessoas, expulsando-as, matando-as ou
fazendo ambas as coisas, ou seja, praticando a "limpeza étnica". Esses
'
conflitos tendem a ser violentos e cruéis, com ambos os lados perpetran-
do massacres, atos de terrorismo, estupros e torturas. O território em
questão muitas vezes passa a ser para um ou para ambos os lados um
símbolo de alto significado de sua história ou identidade, uma terra
sagrada à qual eles têm um direito inviolável: a Margem Ocidental,
Caxemira, Nagorno-Karabakh, o Vale do Drina, Kosovo.
As guerras de linha de fratura compartilham de algumas, mas não
de todas, características das guerras comunitárias em geral. Elas são
conflitos prolongados. Quando elas se desenrolam no seio de um Estado,
duram em média seis vezes mais do que as guerras entre Estados. Como
elas envolvem questões fundamentais de poder e de identidade de grupo,
são difíceis de resolver através de negociações e acomodações. Quando
se chega a acordos, muitas vezes eles não são assinados por todas as
partes de cada lado e geralmente não duram muito tempo. As guerras
de linha de fratura são do tipo pára-e-recomeça, que pode eclodir numa
imensa violência e depois ir diminuindo para uma guerra de baixa
intensidade ou hostilidade soturna, para novamente eclodir. As chamas
da identidade e do ódio comunitário raramente são extintas por comple-
to, a não ser através do genocídio. Em conseqüência da sua natureza
prolongada, as guerras de linha de fratura, como outras guerras comu-
nitárias, tendem a gerar grande quantidade de mortos e de refugiados.
As estimativas de uns e de outros devem ser tratadas com cautela, mas
as cifras comumente aceitas de mortos em guerras de linha de fratura em
curso no início dos anos 90 compreendiam: 50 mil nas Filipinas, 50 mil
321
a 100 mil em Sri Lanka, 20 mil em Caxemira, 500 mil a um milhão e meio
no Sudão, 100 mil no Tadjiquistão, 50 mil na Croácia, 50 mil a 200 mil
na Bósnia, 30 mil a 50 mil na Chechênia, 100 mil no Tibete, 200 mil em
Timor Oriental. 20 Praticamente todos esses conflitos geraram cifras muito
mais elevadas de refugiados.
Muitas dessas guerras contemporâneas são simplesmente a rodada
mais recente de uma longa história de conflitos sangrentos e, no final do
século XX, a violência resistiu aos esforços para se· acabar com ela de
modo p~rmanente. As lutas no Sudão, por exemplo, irromperam em
1956, continuaram até 1972, quando se chegou a um acordo que atribuía
certa autonomia ao Sudão meridional, porém recomeçaram em 1983. A
rebelião dos tâmiles em Sri Lanka começou em 1983; as negociações de
paz para pôr-lhe fim se interromperam em 1991 e foram retomadas em
1994, chegando-se a um acordo sobre cessar-fogo em janeiro de 1995.
Entretanto, quatro meses depois, os insurgentes, autodenominados de
Tigres, romperam a trégua, se retiraram das conversações de paz e a
guerra recomeçou com violência ainda maior. A rebelião dos Moras nas
Filipinas começou no início da década de 70 e diminuiu em 1976, depois
de se chegar a um acordo concedendo certa autonomia a algumas áreas
de Mindanao. Em 1993, porém, novos atos de violência vinham ocorren-
do com freqüência e numa escala crescente, quando grupos insurgentes
dissidentes repudiaram as tentativas de pacificação. Os dirigentes russos
e chechenos chegaram a um acordo de desmilitarização em julho de
1995, destinado a pôr termo à violência que começara em dezembro do
ano anterior. A guerra se atenuou por algum tempo, mas logo foi
reativada com ataques chechenos contra indivíduos russos ou líderes
pró-Rússia, represálias russas, a incursão chechena no Daguestão em
janeiro de 1996 e a maciça ofensiva russa do início de 1996.
Conquanto as guerras de linha de fratura compartilhem das
características de longa duração, altos níveis de violência e ambivalência
ideológica que têm as outras guerras comunitárias, elas também diferem
destas em dois pontos. Primeiro, as guerras comunitárias podem ocorrer
entre grupos étnicos, religiosos, raciais ou lingüísticos. Entretanto, como
a religião é a principal característica definitória das civilizações, as guerras
de linha de fratura são travadas quase sempre entre povos de religiões
diferentes. Alguns analistas minimizam a importância desse fator. Eles
apontam, por exemplo, para a etnia e o idioma compartilhados, a coexis-
tência pacífica no passado e a grande quantidade de casamentos entre
sérvios e muçulmanos na Bósnia, e descartam o fator religioso com
322
referências ao "narcisismo das pequenas diferenças" de Freud. 21 Essa
avaliação, porém, está baseada numa miopia secular. Milênios de História
da Humanidade demonstraram que a religião não é uma "pequena diferen-
ça", mas sim talvez a diferença mais profunda que possa existir entre as
pessoas. A freqüência, a intensidade e a violência das guerras de linha de
fratura são muito aumentadas pelas crenças em deuses diferentes.
Segundo, as outras guerras comunitárias tendem a ser pluralistas e,
em conseqüência, há relativamente pouca probabilidade de que se
alastrem e envolvam participantes adicionais. As guerras de linha de
fratura, ao contrário, são por definição travadas entre grupos que formam
parte de entidades culturais maiores. No conflito comunitário costumeiro,
o Grupo A está lutando contra o Grupo B, e os Grupos C, D e E não têm
razão alguma para se envolver, a menos que A ou B ataquem diretamente
os interesses de C, D ou E. Numa guerra de linha de fratura, ao contrário,
o Grupo Al está lutando contra o Grupo Bl e cada um deles tentará
expandir a guerra e mobilizar apoio de grupos afins da mesma civilização
-A2, A3, A4 e B2, B3 e B4-, e esses grupos, por sua vez, se identificarão
com seus afins em luta. A expansão dos meios de transporte e comuni-
cações do mundo moderno facilitou o estabelecimento dessas conexões
e, em conseqüência, a "internacionalização" dos conflitos de linha de
fratura. A migração criou diásporas em terceiras civilizações. As comuni-
cações facilitam a grupos em litígio apelarem por auxílio, e a seus grupos
afins tomarem conhecimento imediatamente do destino que estão tendo
aquelas partes em conflito. O encolhimento generalizado do mundo
habilita assim os grupos afins a proporcionar apoio moral, diplomático,
financeiro e material aos grupos em litígio - e torna muito mais difícil
não fazê-lo. Desenvolvem-se redes internacionais para prestar esse apoio,
e o apoio, por sua vez, dá sustentação aos participantes e prolonga o
conflito. Essa "síndrome de país-afim", para usar a expressão de H. D. S.
Greenways, é uma faceta fundamental das guerras de linha de fratura do
final do século XX. 22 De forma mais genérica, até mesmo pequenas doses
de violência entre pessoas de civilizações diferentes têm ramificações e
conseqüências que inexistem na violência intercivilizacional. Quando
pistoleiros sunitas mataram 18 fiéis xiitas numa mesquita em Karachi em
fevereiro de 1995, eles além disso perturbaram a paz na cidade e criaram
um problema para o Paquistão. Quando, exatamente um ano depois, um
colono judeu matou 29 muçulmanos que estavam rezando na Caverna
dos Patriarcas, em Hebron, ele perturbou a paz no Oriente Médio e criou
um problema para o mundo.
INCIDÊNCIA: AS FRONTEIRAS ENSANGÜENTADAS DO ISLÃ
Fonte: Ted Robert Gurr, "Peoples Against States: Ethnopolitical Conflict and lhe Ch~nging Wo~d System" [Povos
Contra Estados: Conflitos Etnopolíticos e o Sistema Mundial em Mutação], lntemat1ona/ Stud1es Qu~rterly, v. '.38
(setembro de 1994), pp. 347-78. Utilizei a classificação dos conflitos de. Gurr., exc~t~ .ªº ~ransf~r!r o confht~
sino-tibetano, que ele classifica como não-civilizacional, para a ?alegoria de .1nterc1v1hz~c1onal, ia que ele e
claramente um conflito entre os chineses han confucionistas e os tibetanos budistas lama1stas.
quantidade elevada de baixas. Dos seis nos quais Gurr avalia que
200 mil ou mais pessoas foram mortas, três (Sudão, Bósnia, Timor
Oriental) foram entre muçulmanos e não-muçulmanos, dois (Somália,
Iraque-curdos) foram entre muçulmanos e apenas um (Angola)
envolveu apenas não-muçulmanos.
2. O New York Times identificou 48 lugares nos quais, em 1993,
estavam ocorrendo cerca de 59 conflitos étnicos. Na metade desses
lugares, muçulmanos estavam se batendo contra outros muçulma-
nos ou contra não-muçulmanos. Trinta e um dos 59 conflitos se
davam entre grupos de civilizações diferentes, e traçando um
paralelo com os dados de Gurr, dois terços (21) desses conflitos
intercivilizacionais eram entre muçulmanos e outros povos (Quadro
10.2).
3. Numa outra análise ainda, Ruth Leger Sivard identificou 29 guerras
(definidas como conflitos que envolviam mil ou mais mortos num
ano) em curso durante 1992. Nove dos 12 conflitos intercivilizacio-
nais foram entre muçulmanos e não-muçulmanos e, uma vez mais,
os muçulmanos estavam travando mais guerras do que os povos de
qualquer outra civilização. 24
QUADRO 10.2
CONFLITOS ÉTNICOS/ 1993
lntracivilizacional lntercivilizacional Total
Islã 7 21 28
Outros 21 • 10 31
Total 28 31 59
•Dos quais 10 eram conflitos tribais na África.
2')"7
Portanto, três compilações diversas de dados produzem a mesma
conclµsão: no início dos anos 90, os muçulmanos estavam engajados em
mais violência entre grupos do que os não-muçulmanos, e de dois terços
a três quartos das guerras intercivilizacionais se travaram entre muçulma-
nos e não-muçulmanos. As fronteiras do Islã são sangrentas, como
também o são suas entranhas.•
A propensão muçulmana para o conflito violento também é in-
dicada pelo grau em que as sociedades muçulmanas são militarizadas.
Na década de 80, os países muçulmanos tinham proporções de forças
armadas (isto é, o número de militares por mil habitantes) e índices de
esforço militar (proporção das forças armadas ajustada à riqueza do país)
significativamente mais altos do que os de outros países. Em contraste,
os países cristãos tinham proporções de forças armadas e índices de
esforço militar significativamente mais baixos do que os de outros países.
A média das proporções de forças armadas e índices de esforço militar
dos países muçulmanos era aproximadamente o dobro da dos países
cristãos (Quadro 10.3). James Payne conclui que, "de modo muito claro,
há uma conexão entre o Islã e o militarismo". 25
QUADRO 10.3
MILITARISMO EM PAÍSES MUÇULMANOS E CRISTÃOS
• Nenhum comentário isolado no meu artigo na Foreign Ajfairs provocou mais comentários
críticos do que "o Islã tem fronteiras sangrentas". Formei esse juízo com base num
levantamento casual de conflitos intercivilizacionais. As provas quantitativas de todas as fontes
desinteressadas demon6tram, de modo conclusivo, sua validade.
crises, os países muçulmanos empregaram a violência em acréscimo a
outros meios. Quando empregaram a violência, os países muçulmanos
adotaram violência de alta intensidade, recorrendo a guerras plenas em
41 por cento dos casos em que se empregou violência e se engajando
em grandes choques em outros 38 por cento dos casos. Enquanto os
países muçulmanos recorreram à violência em 53,5 por cento de suas
crises, a violência foi empregada pelo Reino Unido em apenas 11,5 por
cento, pelos Estados Unidos em 17,9 por cento e pela União Soviética
em 28,5 por cento das crises em que cada um deles esteve envolvido.
Dentre as principais potências, apenas a propensão da China para a violência
excedeu a dos países muçulmanos: ela empregou a violência em 76,9 por
cento de suas crises. 26 A belicosidade e a violência muçulmanas são fatos
do final do século XX que nem muçulmanos nem não-muçulmanos
podem negar.
~?O
também viveram tranqüilamente numa ilha com freqüência descrita como
um paraíso tropical. A História não impediu que esses relacionamentos
relativamente pacíficos prevalecessem por consideráveis períodos de
tempo. Por copseguinte, a História não pode, por si só, explicar o
desmoronamento da paz. Outros fatores têm que se haver intrometido
nas últimas décadas do século XX. As mudanças na balança demográfica
foram um desses fatores. A expansão quantitativa de um grupo gera
pressões políticas, econômicas e sociais sobre outros grupos e induz
reações para contrabalançá-las. Mais importante ainda, ela produz pres-
sões militares sobre grupos menos dinâmicos demograficamente. o
colapso no começo da década de 70 da ordem constitucional que existia
havia 30 anos no Líbano foi, em grande parte, fruto do aumento
espetacular da população xiita em relação aos cristãos maronitas. Gary
Fuller mostrou que, em Sri Lanka, o auge da insurreição nacionalista
cingalesa em 1970 e da insurreição tâmil no final dos anos 80 coincidiu
exatamente com os anos em que o "bolsão de jovens" de 15 a 24 anos
de idade desses grupos excedeu os 20 por cento do total da população
do grupo 27 (ver Fig. 10.1). Um diplomata norte-americano que serviu em
'
Sri Lanka observou que os insurretos cingaleses tinham praticamente
todos menos de 24 anos de idade, e, segundo se informou, os Tigres
Tâmiles eram "singulares no fato de confiarem no que equivale a um
exército de crianças'', recrutando "meninos e meninas até de 11 anos de
idade", e os que morreram em combates "ainda nem eram adolescentes
quando morreram, apenas alguns com mais de 18 anos". 1be Economist
assinalou que os Tigres estavam conduzindo uma "guerra de menores
FIGURA 10.1
SRI lANKA: BoLSÕES DE JOVENS CINGALESES E TÃMILES
21
20
Nível crítico'
19
ffli~ M ro ~ ro n oo ~ oo 95 2000 05
'O nível crilic:o é o ponto no qual os jovens COll"espondem a 20% ou mais da população.
de idade".28 De modo semelhante, as guerras de linha de fratura entre
os russos e os povos muçulmanos ao sul foram alimentadas por grandes
diferenças no crescimento populacional. No início dos anos 90, a taxa
de fertilidade das mulheres na Federação Russa era de 1,5, enquanto que
nas ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central, predominantemente muçul-
manas, a taxa de fertilidade era de cerca de 4,4 e o índice de aumento
líquido da população (taxa bruta de natalidade menos taxa bruta de
mortandade) no final dos anos 80 era, nestas últimas, seis vezes maior
do que na Rússia.29 A Chechênia era um dos lugares mais densamente
povoados da Rússia, suas altas taxas de natalidade produzindo migrantes
e combatentes. De modo análogo, altas taxas de natalidade em Caxemira
e a migração do Paquistão para lá estimularam uma resistência renovada
à autoridade indiana.
Os complicados processos que levaram a guerras intercivilizacionais
na antiga Iugoslávia tiveram muitas causas e muitos pontos de partida.
Entretanto, o fator mais importante, tomado isoladamente, que levou a
esses conflitos, provavelmente foi a mudança demográfica que ocorreu
em Kosovo. Kosovo era uma província autônoma dentro da República
Sérvia, com os poderes de facto das seis repúblicas da Iugoslávia, exceto
o direito à secessão. Em 1961, sua população se compunha de 67 por cento
de albaneses muçulmanos e 24 por cento de sérvios ortodoxos. Contudo,
a taxa de natalidade albanesa era a mais alta da Europa, e Kosovo se tomou
a área de maior densidade populacional da Iugoslávia. Correspondendo a
quatro por cento do território iugoslavo, Kosovo tinha oito por cento de
iugoslavos. Ao se chegar aos anos 80, perto de 50 por cento dos albaneses
tinham menos de 20 anos de idade. Defrontados com essa quantidade,
os sérvios emigraram de Kosovo em busca de oportunidades econômicas
em Belgrado e em outros lugares. Em conseqüência, em 1991 Kosovo tinha
90 por cento de muçulmanos e 10 por cento de sérvios.30 Não obstante, os
sérvios consideravam Kosovo como sua "terra santa", ou ''Jerusalém", o local,
entre outras coisas, da grande batalha de 28 de junho de 1389, quando
foram derrotados pelos turcos otomanos e, como resultado, padeceram
o regime otomano durante quase cinco séculos.
No final de década de 80, a mudança na balança demográfica levou
os albaneses a exigirem que Kosovo fosse elevada à condição de
república iugoslava. Os sérvios e o governo iugoslavo resistiram, teme-
rosos de que uma vez que tivesse o direito à secessão, Kosovo se
separaria da Iugoslávia e possivelmente se uniria à Albânia. Em março
de 1981, albaneses irromperam em protestos e distúrbios de rua com
reivindicações pelo status de república. Segundo os sérvios, intensifica-
ram-se então a discriminação, a perseguição e a violência contra os
sérvios. Um croata protestante assinalou que "em Kosovo, a partir do
final da década de 70, (. .. ) ocorreram numerosos incidentes violentos,
que incluíram danos à propriedade, perda de emprego, provocações,
estupros, brigas e assassinatos". Em conseqüência, "os sérvios alegaram
que a ameaça a eles tinha proporções genocidas e que não iriam mais
tolerar esse estado de coisas". As agruras dos sérvios de Kosovo
repercutiram em outras áreas da Sérvia e, em 1986, geraram uma
declaração de 200 destacados intelectuais, personalidades políticas,
líderes religiosos e oficiais das forças armadas sérvios, inclusive os
editores da revista de oposição liberal Praxis, exigindo do governo
medidas enérgicas para pôr fim ao genocídio dos sérvios em Kosovo. À
luz de qualquer definição razoável de genocídio, essa acusação era muito
exagerada, embora, segundo um observador estrangeiro simpático aos
albaneses, "durante os anos 80, os nacionalistas albaneses fossem
responsáveis por uma quantidade de ataques violentos contra os sérvios
e pela destruição de algumas propriedades de sérvios".31
Tudo isso exacerbou o nacionalismo sérvio, e Slobodan Milosevic
vislumbrou sua oportunidade. Em 1987, ele pronunciou importante
discurso em Kosovo, apelando aos sérvios para que resgatassem sua
própria terra e sua história. "Imediatamente, um grande número de
sérvios - comunistas, não-comunistas e até anticomunistas - começou
a se congregar ao seu redor, decididos não só a proteger a minoria sérvia
em Kosovo, mas também a reprimir os albaneses e transformá-los em
cidadãos de segunda classe. Em pouco tempo, Milosevic estava sendo
reconhecido como líder nacional."3 2 Dois anos depois, Milosevic retor-
nou a Kosovo, junto com de um a dois milhões de sérvios, para celebrar
o 600º aniversário da grande batalha que simbolizava sua guerra ininter-
rupta contra os muçulmanos.
Os temores e o nacionalismo sérvios, provocados pela quantidade
e poder crescentes dos albaneses, foram acentuados ainda mais pelas
mudanças demográficas na Bósnia. Em 1961, os sérvios constituíam 43
por cento e os muçulmanos 26 por cento da população da Bósnia-Her-
zegovina. Ao se chegar a 1991, as proporções eram quase exatamente o
oposto: os sérvios tinham caído para 31 por cento e os muçulmanos
tinham subido para 44 por cento. Durante esses 30 anos, os croatas
passaram de 22 por cento para 17 por cento. A expansão étnica de um
grupo levou à limpeza étnica do outro. "Por que matamos meninos?",
perguntou em 1992 um combatente sérvio, e ele próprio respondeu:
"Porque um dia eles irão crescer e nós teremos que matá-los então." De
forma menos brutal, as autoridades croatas na Bósnia agiram a fim de
impedir que suas localidades fossem "ocupadas demograficamente"
pelos muçulmanos.33
Alterações de 20 por cento ou mais nas balanças demográficas e
nos bolsões de jovens respondem por muitos dos conflitos interciviliza-
cionais do final do século XX. Entretanto, elas não explicam todos eles.
As lutas entre sérvios e croatas, por exemplo, não podem ser explicadas
pela demografia e, aliás, só parcialmente pela História, já que esses dois
povos viveram juntos numa forma relativamente pacífica até que os
utachis croatas trucidaram sérvios na II Guerra Mundial. Aqui e ali a
política também foi uma das causas da luta. O colapso dos impérios
austro-húngaro, otomano e russo ao final da 1 Guerra Mundial estimulou
os conflitos étnicos e civilizacionais entre os povos e Estados que os
sucederam. O final dos impérios britânico, francês e holandês produziu
resultados semelhantes depois da II Guerra Mundial. A queda dos
regimes comunistas na União Soviética e na Iugoslávia fez o mesmo no
final da Guerra Fria. As pessoas, que não mais podiam se identificar como
comunistas, cidadãos soviéticos ou iugoslavos, necessitavam deses-
peradamente encontrar novas identidades e as acharam nos velhos
recursos habituais da etnia e da religião. A ordem opressora, mas pacífica,
dos Estados devotados à proposição de que não há deus foi substituída
pela violência dos povos devotados a deuses diferentes.
Esse processo foi exacerbado pela necessidade das entidades
políticas que surgiam de adotar procedimentos democráticos. Quando a
União Soviética e a Iugoslávia começaram a se desagregar, as elites que
estavam no poder não organizaram eleições nacionais. Se o tivessem
feito, os líderes políticos teriam competido pelo poder no centro e
poderiam ter tentado desenvolver apelos multiétnicos e multicivilizacio-
nais ao eleitorado, formando assim no Parlamento coligações majoritárias
de composição análoga. Em vez disso, tanto na União Soviética como na
Iugoslávia, as eleições foram primeiramente organizadas no âmbito das
repúblicas, o que criou o incentivo irresistível para que os líderes políticos
fizessem campanha contra o centro, apelassem para o nacionalismo
étnico e promovessem a independência de suas repúblicas. Até mesmo
dentro da Bósnia o eleitorado votou segundo linhas estritamente étnicas
nas eleições de 1990. O Partido Reformista, multiétnrco, e o antigo Partido
Comunista obtiveram cada um menos de 10 por cento dos votos. Os
333
totais de votos recebidos pelo Partido Muçulmano de Ação Democrática
(34 por cento), pelo Partido Democrático Sérvio (30 por cento) e pela
União Democrática Croata (18 por cento) reproduziram as proporções
de muçulmanos, sérvios e croatas na população. As primeiras eleições
razoavelmente disputadas em quase todas as ex-repúblicas soviéticas e
iugoslavas foram ganhas por líderes políticos que apelaram para os
sentimentos nacionalistas e prometeram ação enérgica para defender sua
nacionalidade contra outros grupos étnicos. A competição eleitoral
encoraja os chamamentos nacionalistas e, desse modo, promove a
intensificação dos conflitos de linha de fratura e as guerras de linha de
fratura. Quando, na frase de Bogdan Denitch, "etnos se toma demos',34
o resultado é polemos (guerra). Posteriormente, porém, quando uma ou
mais partes em guerra se exaurem, os eleitores podem favorecer os líderes
políticos que promovam as negociações e uma acomodação, como
aconteceu nas eleições de 1994 em Sri Lanka.
Persiste a indagação de por que, quando o século XX chega ao fim,
os muçulmanos estão envolvidos em muito mais violência intergrupos
do que os povos de outras civilizações. Será que sempre foi assim? No
passado, cristãos mataram cristãos e outras pessoas em quantidades
maciças. Avaliar a propensão para a violência das civilizações através da
História exigiria imensa pesquisa, que é impossível aqui. Contudo, o que
se pode fazer é identificar as possíveis causas da atual violência de grupo
dos muçulmanos, tanto dentro do Islã como fora dele, e distinguir entre
aquelas causas que explicam uma propensão maior para os conflitos de
grupos através da História, quando ela tiver existido, daquelas que
explicam uma propensão assim no final do século XX. Seis causas
possíveis se apresentam. Três delas explicam apenas a violência entre
muçulmanos e não-muçulmanos, e três explicam tanto essa como a
violência interna do Islã. Três também explicam apenas a propensão
contemporânea dos muçulmanos para a violência, enquanto as outras
três explicam essa e uma propensão muçulmana histórica, caso ela exista.
Entretanto, se inexiste essa propensão histórica, então suas supostas
causas, que não são capazes de explicar uma propensão histórica
inexistente também, supõe-se, não explicam a comprovada propensão
contemporânea dos muçulmanos para a violência de grupo. Esta última
só pode ser explicada por causas do século XX que não existiam nos
séculos anteriores (Quadro 10.4).
Em primeiro lugar, há quem sustente que o Islamismo foi, desde o
seu começo, uma religião da espada e que ele glorifica as virtudes
QUADRO 10.4
POSSÍVEIS CAUSAS DA PROPENSÃO MUÇULMANA PARA O CONFLITO
2Á1
tênues. Dizia-se que os muçulmanos eram bósnios que não iam à
mesquita, os croatas eram bósnios que não iam à catedral e os sérvios
eram bósnios que não iam à igreja ortodoxa. Contudo, quando a
identidade iugoslava, mais genérica, se desfez, essas descontraídas
identidades religiosas adquiriram nova relevância e, quando os combates
começaram, intensificaram-se. O multicomunitarismo se evaporou e cada
grupo se identificou cada vez mais com sua comunidade cultural ampla,
definindo-se em termos religiosos. Os sérvios da Bósnia se tomaram
nacionalistas sérvios extremados, identificando-se com a Grande Sérvia,
a Igreja Ortodoxa Sérvia e toda a comunidade ortodoxa. Os croatas da
Bósnia passaram a ser os mais fervorosos nacionalistas croatas, se
consideraram cidadãos da Croácia, acentuaram seu Catolicismo e, junta-
mente com os croatas da Croácia, sua identidade com o Ocidente católico.
A mudança dos muçulmanos no sentido da consciência civilizacio-
nal foi ainda mais marcada. Até que a guerra começasse, os muçulmanos
da Bósnia eram profundamente seculares em suas concepções, se viam
como europeus e eram os mais firmes defensores de uma sociedade e
de um Estado bósnios multiculturais. Entretanto, isso começou a mudar
com o esfacelamento da Iugoslávia. Tal como os croatas e os sérvios, nas
eleições de 1990, os muçulmanos repudiaram os partidos multicomuni-
tários, votando maciçamente pelo Partido Muçulmano de Ação Demo-
crática (SDA), liderado por Izetbegovic. Trata-se de um muçulmano
praticante, posto na prisão por seu ativismo fundamentalista islâmico pelo
governo comunista, que num livro - 1be Islamic Declaration [A
Declaração Islâmica]-, publicado em 1970, sustentou "a incompatibili-
dade do Islamismo com sistemas não-islâmicos. Não pode haver nem
paz nem coexistência entre a religião islâmica e as instituições sociais e
políticas não-islâmicas". Quando o movimento islâmico for suficiente-
mente forte, ele tem que assumir o poder e criar uma república islâmica.
Nesse novo Estado, é particularmente importante que a educação e a
mídia "estejam nas mãos de pessoas cujas autoridade intelectual e moral
islâmica sejam indiscutíveis" .7
Quando a Bósnia ficou independente, Izetbegovic promoveu um
Estado multiétnico, no qual os muçulmanos seriam o grupo dominante,
embora sem conseguir ser maioria. Entretanto, ele não era a pessoa para
resistir à islamização de seu país produzida pela guerra. Ele nunca
repudiou publicamente o que escrevera em 1be Islamic Declaration, o
que gerou temores entre os não-muçulmanos. À medida que prosseguia
a guerra, sérvios e croatas da Bósnia se mudaram das áreas controladas
2/.'"l
pelo governo bósnio, e aqueles que permaneceram nelas se viram
gradualmente excluídos dos empregos desejáveis e de participação nas
instituições sociais. "O Islamismo adquiriu maior importância no seio da
comunidade muçulmana nacional e (. .. ) uma forte identidade nacional
0
~47
FIGURA 11.1
l
A ESTRUTURA DE UMA CoMPLEXA GUERRA DE UNHA DE FRATURA
Civilização A Civilização B
violência
apoio
pontenção
negociação
~48
em Caxemira e na Bósnia; em guerras de propaganda conjunta contra
governos que se opunham aos fundamentalistas islâmicos num ou noutro
país; no estabelecimento de centros islâmicos na diáspora, que ~ervem de
quartel-general conjunto para todas essas partes "·16 A. Liga Arabe .e a
Organização da Conferência Islâmica também proporcionaram apoio e
tentaram coordenar os esforços de seus membros para reforçar os grupos
muçulmanos em conflitos intercivilizacionais.
A União Soviética foi um participante primário na Guerra do
Afeganistão e, nos anos pós-Guerra Fria, a Rússia foi um ,p.articipante
primário na Guerra da Chechênia, um participante secundano nas lu~as
no Tadjiquistão e um participante terciário nas guerras n~ antiga
Iugoslávia. A índia tem um envolvimento primário em Cax~m~a e ~m
secundário em Sri Lanka. Os principais Estados ocidentais tem sido
participantes terciários nos embates iugoslavos. As diásporas desem-
penharam papel importante em ambos os lad~s das lo~g~s lutas entre
israelenses e palestinos, bem como ao dar apoio a armemos, croatas e
chechenos em seus respectivos conflitos. Através da televisão, por faxes
e pelo correio eletrônico, "os engajamentos das diásporas são revigorados
e às vezes polarizados pelo contato constante com seus antigos lares;
'antigos' não tem mais o mesmo sigm · r" .17
· 'f'icad o ant eno
Na guerra de Caxemira, o Paquistão deu explícito apoio político e
diplomático aos insurretos e, segundo fontes militares paquistanesas,
considerável quantidade de armas e dinheiro, bem como treinamento,
apoio logístico e um lugar de refúgio. Também fez gestões junto a
governos muçulmanos em nome deles. Ao se chegar a 1995, segundo se
informou, os insurretos haviam sido reforçados por 1.200 combatentes
mujahedins pelo menos, provenientes do Afeganistão, Tadjiquistão e
Sudão, equipados com mísseis Stinger e outras armas fornecidas pelos
18
norte-americanos para sua guerra contra a União Soviética. A insur-
reição dos Moras nas Filipinas se beneficiou, durante um certo tempo,
de fundos e equipamento da Malásia, governos árabes proporcionaram
fundos adicionais, vários milhares de insurretos foram treinados na Líbia
e 0 grupo insurreto extremista Abu Sayyaf foi organizado por fun-
damentalistas paquistaneses e afegães.19 Na África, o Sudão ajudou
sistematicamente os rebeldes muçulmanos da Eritréia que lutavam contra
a Etiópia e, em represália, a Etiópia forneceu "apoio logístico e áreas de
refúgio" para os "rebeldes cristãos" que lutavam no Sudão. Estes últimos
também receberam ajuda semelhante de Uganda, o que refletia em parte
"seus fortes laços religiosos, raciais e étnicos com os rebeldes sudaneses"·
O governo sudanês, por outro lado, recebeu do Irã armamento chinês
no valor de 300 milhões .de dólares e treinamento ministrado por
assessores militares iranianos, que o habilitaram a lançar uma grande
ofensiva contra os rebeldes em 1992. Várias organizações cristãs ociden-
tais forneceram alimentos, medicamentos, material diverso e, segundo o
governo sudanês, armas para os rebeldes cristãos. 20
Em Sri Lanka, na guerra entre os insurretos tâmiles hindus e o
governo cingalês budista, o governo indiano inicialmente deu apoio
considerável aos insurretos, treinando-os na Índia meridional e dando-
lhes armas e dinheiro. Em 1987, quando as forças governamentais
cingalesas estavam prestes a derrotar os Tigres Tâmiles, a opinião pública
indiana se levantou contra esse "genocídio" e o governo indiano organi-
zou uma ponte aérea para levar alimentos para os tâmiles, "na realidade
indicando ao [presidente] Jayewardene que a Índia pretendia impedi-lo
do esmagar os Tigres pela força". 21 Os governos indiano e cingalês
chegaram então a um acordo pelo qual Sri Lanka outorgaria um grau
considerável de autonomia às áreas tâmiles e os insurretos entregariam
suas armas ao exército indiano. A· Índia enviou 50 mil homens para a
ilha a fim de garantir a implementação do acordo, porém os Tigres se
recusaram a entregar as armas e os militares indianos logo se viram eles
próprios engajados numa guerra contra as forças guerrilheiras que tinham
apoiado anteriormente. As forças indianas foram retiradas a partir de
1988. Em 1991, o primeiro-ministro indiano, Rajiv Gandhi, foi assas-
sinado, segundo os indianos, por uma partidária dos insurretos tâmiles
e a atitude do governo indiano para com a insurreição ficou cada ve~
~ais hostil. Mesmo assim, o governo não podia deter a simpatia pelos
~nsurretos e o apoio aos mesmos no meio dos 50 milhões de tâmiles da
India meridional. Refletindo essa postura, funcionários do governo de
T~m~l Nadu, em desobediência a Nova Délhi, permitiram que os Tigres
~amiles operassem nesse estado com "virtual liberdade" ao longo do seu
litoral de 800km e enviassem suprimentos e armas para os insurretos em
Sri Lanka através do curto Estreito de Palk.22
A partir de 1979, os soviéticos e depois os russos ficaram envolvidos
em três grandes guerras de linha de fratura com seus vizinhos muçulma-
nos ao sul: a Guerra do Afeganistão de 1979-89, sua seqüela - a guerra
no .T~~jiquistão - , que começou em 1992, e a guerra na Chechênia, que
se m1c1~u em 1994. Depois do colapso da União Soviética, um governo
comumsta chegou ao poder no Tadjiquistão. Esse governo foi contestado
na primavera de 1992, por uma oposição composta de grupos étnicos~
350
regionais rivais, abrangendo tanto seculares como fundamentalistas
islâmicos. Essa oposição, reforçada por armas recebidas do Afeganistão,
em setembro de 1992, expulsou da capital, Dushanbe, o governo
pró-russo. Os governos russo e uzbeque reagiram de maneira enérgica,
advertindo contra o alastramento do fundamentalismo islâmico. A 201 !!
Divisão de Infantaria Motorizada, que havia permanecido no Tadjiquis-
tão, forneceu armas às forças pró-governo e a Rússia enviou mais tropas
para guardar a fronteira com o Afeganistão. Em novembro de 1992, a
Rússia, o Uzbequistão, o Casaquistão e a Quirguízia concordaram com a
intervenção militar russa e uzbeque, ostensivamente para a manutenção
da paz, mas na realidade para participar da guerra. Com esse apoio e
mais as armas e o dinheiro russos, as forças do antigo governo conse-
guiram recapturar Dushanbe e estabelecer o controle sobre grande parte
do país. Seguiu-se um processo de limpeza étnica, e os refugiados e as
tropas da oposição recuaram para o Afeganistão.
Governos muçulmanos do Oriente Médio protestaram contra a
intervenção militar russa. Irã, Paquistão e Afeganistão deram assistência
à oposição, cada vez mais dominada pelos fundamentalistas islâmicos,
fornecendo dinheiro, armas e treinamento. Segundo se informou, em
1993 havia muitos milhares de combatentes sendo treinados pelos
mujahedins afegães e, na primavera e verão de 1993, os insurretos
tadjiques desfecharam vários ataques através da fronteira, a partir do
Afeganistão, matando muitos guardas de fronteira russos. A Rússia reagiu
mandando mais tropas para o Tadjiquistão e lançando uma barragem
"maciça de artilharia e morteiros" e ataques aéreos contra alvos no
Afeganistão. Entretanto, governos árabes forneceram aos insurretos
fundos para adquirir mísseis Stinger para se defender dos aviões. Ao se
chegar a 1995, a Rússia tinha cerca de 25 mil homens no Tadjiquistão e
estava fornecendo bem mais da metade dos fundos necessários para
sustentar seu governo. Por outro lado, os insurretos estavam sendo
ativamente apoiados pelo governo afegão e por outros Estados muçul-
manos. Como acentuou Barnett Rubin, o fato de as agências internacio-
nais ou o Ocidente não terem dado nenhuma ajuda significativa quer ao
Tadjiquistão quer ao Afeganistão fez com que o primeiro ficasse total-
mente dependente dos russos e o segundo dependente dos seus afins
civilizacionais muçulmanos. "Atualmente, qualquer comandante afegão
que espere por ajuda externa precisa satisfazer os desejos dos financia-
dores árabes e paquistaneses, que querem estender a jihad para a Ásia
Central, ou se juntar ao tráfico de drogas." 23
351
A terceira guerra antimuçulmana dos russos, que ocorreu no Cáu-
caso Setentrional contra os chechenos, teve prólogo nas lutas em 1992-93
entre os ossécios ortodoxos e os vizinhos ingushes muçulmanos. Estes
últimos, junto com os chechenos e outros povos muçulmanos, foram
deportados para a Ásia Centrai durante a II Guerra Mundial. Os ossécios
permaneceram e tomaram propriedades dos ingushes. Em 1956-57, os
povos deportados tiveram permissão para retornar, e as disputas come-
çaram em torno da propriedade de terras e imóveis e do controle do
território. Em novembro de 1992, os ingushes desfecharam ataques a
partir de sua república para retomar a região de Prigorodny, que o
governo soviético havia atribuído aos ossécios. Os russos reagiram com
uma intervenção maciça, inclusive com unidades cossacas, em apoio aos
ossécios ortodoxos. Um comentarista de fora fez a seguinte descrição:
"Em novembro de 1992, as aldeias ingushes na Ossécia foram cercadas
e bombardeadas por tanques russos. Os que sobreviveram ao bombar-
deio foram mortos ou levados embora. O massacre foi levado a cabo por
pelotões da OMON [polícia especial] ossécia, mas as tropas russas
enviadas para a região 'a fim de manter a paz' lhes deram cobertura."24
The Economist informou que era '"difícil compreender que tanta des-
truição tivesse ocorrido em menos de uma semana". Essa foi "a primeira
operação de limpeza étnica na Federação Russa". A Rússia recorreu a
esse conflito para ameaçar os aliados chechenos dos ingushes, o que,
por sua vez, "levou à imediata mobilização da Chechênia e da [majorita-
riamente muçulmana] Confederação dos Povos do Cáucaso (KNK). A
KNK ameaçou enviar 500 mil voluntários contra as forças russas caso elas 1
não se retirassem do território checheno. Depois de um tenso impasse, .~
Moscou recuou a fim de evitar a escalada do conflito entre ossécios
setentrionais e ingushes, numa conflagração em toda a região".25
Uma conflagração mais intensa e ampla eclodiu em dezembro de
1
1994, quando a Rússia desfechou um ataque militar em grande escala
contra a Chechênia. Os dirigentes das duas repúblicas ortodoxas, a
Geórgia e a Armênia, apoiaram a ação russa, enquanto o presidente da
Ucrânia se mostrou "diplomaticamente vago, apelando apenas por uma
solução pacífica da crise". A ação russa foi endossada pelo governo
ortodoxo da Ossécia do Norte e por 55 a 60 por cento do povo ossécio
setentrionaI. 26 Em contraste, os muçulmanos dentro e fora da Federação
Russa se puseram majoritariamente do lado dos chechenos. A interna-
cional fundamentalista islâmica imediatamente contribuiu com comba-
tentes do Azerbaijão, Afeganistão, Paquistão, Sudão e de outros países.
352
Os Estados muçulmanos endossaram a causa chechena e, ao que consta,
a Turquia e o Irã forneceram ajuda material, dando à Rússia mais
incentivo para tentar se reconciliar com o Irã. Um fluxo contínuo de armas
para os chechenos começou a entrar na Federação Russa vindo do
Azerbaijão, levando os russos a fechar sua fronteira com esse país,
vedando desse modo a chegada à Chechênia de suprimentos de medi-
camentos e de outros tipos.27
Os muçulmanos dentro da Federação Russa se congregaram do lado
dos chechenos. Embora os chamamentos para uma guerra santa muçul-
mana contra a Rússia em todo o Cáucaso não tenham surtido efeito, os
dirigentes das seis repúblicas da região Volga-Urais exigiram que a Rússia
cessasse com sua ação militar, e representantes das repúblicas muçulma-
nas do Cáucaso conclamaram por uma campanha de desobediência civil
contra a autoridade russa. O presidente da república Chuvash isentou os
jovens chuvashes que estivessem prestando serviço militar de atuar contra
seus co-muçulmanos. Os "maiores protestos contra a guerra" surgiram
nas duas repúblicas vizinhas à Chechênia - Ingushécia e Daguestão. Os
ingushes atacaram tropas russas que estavam se deslocando para a
Chechênia, levando o ministro da Defesa russo a afirmar que o governo
ingushe "tinha praticamente declarado guerra à Rússia". Também no
Daguestão ocorreram ataques contra forças russas. Os russos respon-
deram com bombardeios de artilharia sobre aldeias ingushes e dagues-
tanenses. 28 Depois do ataque relâmpago checheno contra a cidade de
Kizlyar, em janeiro de 1996, os russos arrasaram a aldeia de Pervornaiskoye,
o que acirrou ainda mais a hostilidade dos daguestanenses contra eles.
A causa chechena também foi auxiliada pela diáspora chechena,
1 que tinha sido criada, em grande parte, pela agressão russa no século
XIX contra os povos das montanhas do Cáucaso. A diáspora levantou
fundos, obteve armas e forneceu voluntários para as forças chechenas.
Essa diáspora era particularmente numerosa na Jordânia e na Turquia, o
que levou a Jordânia a assumir urna postura enérgica contra os russos e
reforçou a disposição da Turquia de dar assistência aos chechenos. Em
janeiro de 1996, quando a guerra se alastrou para a Turquia, a opinião
pública turca manifestou sua simpatia pela captura de uma barca de travessia
e de reféns russos por membros da diáspora. Com a ajuda de dirigentes
chechenos, o governo turco negociou a solução da crise de um modo
que agravou ainda mais as já tensas relações entre a Turquia e a Rússia.
A incursão chechena no Daguestão, a reação russa e a captura da
barca no início de 1996 ressaltaram a possibilidade da expansão do
conflito para um plano generalizado entre os russos e os povos das
montanhas, seguindo as linhas da luta que durou décadas no século XIX.
Fiona Hill advertiu em 1995 que "o Cáucaso Setentrional é um barril de
pólvora, em que um conflito numa república tem º,potencial de det~nar
uma conflagração regional que se alastrará para alem de suas fronteiras,
para 0 resto da Federação Russa, e conduzirá ao envolvimento da
Geórgia, Azerbaijão, Turquia e Irã, bem como das diásporas dos cauca-
sianos setentrionais. Como demonstrou a guerra ·na Chechênia, os
conflitos nessa região não são fáceis de conter (. .. ) e a luta se espraiou
para as repúblicas e territórios adjacentes à Chechênia". Um analista russo
concordou, argumentando que se estavam desenvolvendo "coligações
informais" obedecendo a linhas civilizacionais. "Geórgia, Armênia, Na-
gomo-Karabakh e Ossécia do Norte - cristãs - estão-se alinhando
contra Azerbaijão, Abkhásia, Chechênia e Ingushécia - muçulmanas."
A Rússia, que já estava combatendo no Tadjiquistão, estava "correndo o
- com o mun d o muçu lmano ,,z9
risco de ser envolta numa longa confrontaçao .
Numa outra guerra de linha de fratura entre ortodoxos e muçulma-
nos, os participantes primários eram os armênios do enclave de Nagor-
no-Karabakh e o governo e povo azerbaidjanos, com aqueles lutando
por sua independência destes. O governo da Armênia era um participante
secundário, e Rússia, Turquia e Irã tinham envolvimentos terciários. Além
disso, a considerável diáspora armênia na Europa Ocidental e na América
do Norte desempenhou um papel importante. As lutas começaram em
1988, antes do fim da União Soviética, se intensificaram durante 1992-93
e diminuíram depois da negociação de um cessar-fogo em 1994. Os turcos
e outros muçulmanos apoiaram o Azerbaijão, enquanto que a Rússia
apoiou os armênios, mas depois usou da sua influência junto a eles
também para contestar a influência turca no Azerbaijão. Essa guerra foi
o mais recente episódio na luta que data de séculos, desde os embates
entre o Império Russo e o Império Otomano pelo controle da região do
Mar Negro e do Cáucaso, bem como no intenso antagonismo entre
armênios e turcos, que vem desde os massacres dos primeiros pelos
segundos no início do século XX.
Nessa guerra, a Turquia, de maneira consistente, apoiou o Azerbai-
jão e se opôs aos armênios. A Turquia, ao dar seu reconhecimento formal
ao Azerbaijão, foi o primeiro país a reconhecer a independência de uma
república soviética não-báltica. Durante todo o conflito, a Turquia deu
apoio financeiro e material ao Azerbaijão e treinou soldados desse país.
Quando, em 1991-92, a violência se intensificou e os armênios avançaram
354
para o território do Azerbaijão, a opinião pública turca se inflamou e o
governo turco ficou sob pressão para apoiar aquele povo com o qual
tinha afinidades étnicas e religiosas. O governo turco receou também que
isso iria ressaltar a divisória entre muçulmanos e cristãos, produzir uma
avalanche de apoio ocidental para a Armênia e antagonizar seus aliados
na OTAN. A Turquia se defrontava assim com as clássicas pressões
cruzadas de um participante secundário numa guerra de linha de fratura.
Entretanto o governo turco viu que era do seu interesse apoiar o
Azerbaijão e confrontar a Armênia. Um funcionário turco disse que "é
impossível não se sentir afetado quando seus afins são mortos", e um
outro acrescentou: "Estamos sob pressão. Nossos jornais estão cheios de
fotografias de atrocidades. (. .. ) Talvez devêssemos mostrar à Armênia
que existe uma grande Turquia nesta região." O presidente Turgut ôzal
concordou, dizendo que a Turquia "devia amedrontar um pouquinho os
armênios". A Turquia, juntamente com o Irã, advertiu os armênios de que
não toleraria qualquer alteração de fronteiras. ôzal impôs um bloqueio
para impedir que alimentos e outros suprimentos chegassem à Armênia
através da Turquia, em conseqüência do que a população da Armênia
ficou à beira da fome no inverno de 1992-93. Também como resultado
disso, o marechal russo Yevgeny Shaposhnikov advertiu que, "se um
outro lado [ou seja, a Turquia] se envolver" nessa guerra, "estaremos à
beira da III Guerra Mundial". Um ano depois, ôzal ainda se mostrava
belicoso e lançou a provocação: "O que podem fazer os armênios se
acontecer de tiros serem disparados? (. .. ) Marchar para dentro da
Turquia?" Nesse caso, a Turquia "mostrará suas presas" .3°
No verão e outono de 1993, a ofensiva armênia, que estava se
aproximando da fronteira iraniana, produziu mais reações tanto da
Turquia como do Irã, que estava competindo por influência dentro do
Azerbaijão e nos Estados muçulmanos da Ásia Central. A Turquia
declarou que a ofensiva constituía uma ameaça para sua segurança,
exigiu que as forças armênias se retirassem do território do Azerbaijão
"imediata e incondicionalmente" e enviou reforços para sua fronteira com
a Armênia. Ao que consta, tropas turcas e russas trocaram tiros através
dessa fronteira. A primeira-ministra da Turquia, Tansu Ciller, afirmou que
solicitaria uma declaração de guerra se tropas armênias entrassem no
enclave azerbaijano de Nakhichevan, próximo da Turquia. O Irã também
deslocou forças para diante e para dentro do território do Azerbaijão,
supostamente para estabelecer acampamentos para os refugiados que
haviam fugido das ofensivas armênias. Ao que consta, a ação iraniana
levou os turcos a acharem que podiam tomar medidas adicionais sem
provocar contramedidas russas, e também lhes deu incentivo adicional
para competir com o Irã em dar proteção ao Azerbaijão. A crise acabou
sendo atenuada por negociações em Moscou entre os dirigentes da
Turquia, da Armênia e do Azerbaijão, por pressão norte-americana sobre
0 governo armênio e por pressão do governo armênio sobre os armênios
de Nagorno-Karabakh. 31
Os armênios vivem num pequeno país mediterrâneo, com escassos
recursos naturais, cercados por povos túrquicos hostis e, historicamente,
buscaram proteção junto a seus afins ortodoxos, a Geórgia e a Rússia.
Esta, em especial, tem sido vista como um irmão maior. Contudo, quando
a União Soviética estava se esfacelando e os armênios de Nagorno-Ka-
rabakh desencadearam seu movimento pela independência, o governo
Gorbachev rejeitou suas exigências e enviou tropas para a região a fim
de apoiar o que era considerado um governo comunista fiel em Baku.
Depois do fim da União Soviética, essas considerações cederam lugar a
outras mais antigas, de índole histórica e cultural, com o Azerbaijão
acusando "o governo russo de dar uma volta de 180 graus" e apoiar
ativamente a Armênia cristã. A ajuda militar russa aos armênios tinha, na
realidade, começado antes no exército soviético, no qual os armênios
eram promovidos a postos mais altos e designados para unidades de
combate com muito maior freqüência do que os muçulmanos. Depois
que começou a guerra, o 366º Regimento de Infantaria Motorizado do
Exército russo, baseado em Nagorno-Karabakh, teve um papel destacado
no ataque armênio à cidade de Khodjali, no qual se diz que mil azeris
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diáspora grande, rica e influente na Europa Ocidental e na América do
Norte, inclusive cerca de um milhão de armênios nos Estados Unidos e
450 mil na França. Eles proporcionaram dinheiro e suprimentos para
ajudar a Armênia a sobreviver ao bloqueio turco, funcionários para o
governo armênio e voluntários para as forças armadas armênias. As
contribuições para o socorro aos armênios por parte da comunidade
norte-americana totalizou de 50 a 75 milhões de dólares por ano em
meados da década de 90. Os membros da diáspora também exerceram
considerável influência política junto aos governos dos países onde
viviam. As maiores comunidades armênias nos Estados Unidos se encon-
tram em estados-chave como Califórnia, Massachusetts e Nova Jersey.
Em conseqüência, o Congresso proibiu qualquer ajuda externa ao
Azerbaijão e transformou a Armênia no terceiro maior recipiente per
capita de assistência norte-americana. Esse apoio do exterior foi essencial
para a sobrevivência da Armênia e lhe valeu o apropriado apelido de
"Israel do Cáucaso".34 Do mesmo modo como os ataques russos no
século XIX sobre o Cáucaso Setentrional geraram a diáspora que ajudou
os chechenos a resistir aos russos, os massacres turcos de armênios no
início do século XX produziram uma diáspora que permitiu à Armênia
resistir à Turquia e derrotar o Azerbaijão.
A antiga Iugoslávia foi o lugar do mais complexo, confuso ·e
completo conjunto de guerras de linha de fratura do começo dos anos'
90. No nível primário, na Croácia o governo croata e os croatas
combateram os sérvios da Croácia, e na Bósnia-Herzegovina, o governo
bósnio combateu os sérvios da Bósnia e os croatas da Bósnia, que
também lutaram entre si. No nível secundário, o governo sérvio promo-
veu uma "Grande Sérvia", ajudando os sérvios da Bósnia e da Croácia,
e 0 governo croata aspirou a uma "Grande Croácia" e apoiou os croatas
da Bósnia. No nível terciário, um apoio maciço de civilizações incluiu
Alemanha, Áustria, Vaticano, outros países e grupos europeus católicos
e mais tarde os Estados Unidos em favor da Croácia; a Rússia, a Grécia
' '
e outros países e grupos ortodoxos se colocaram do lado dos sérvios; o
Irã, a Arábia Saudita, a Turquia, a Líbia, a internacional fundamentalista
islâmica e os países islâmicos em geral ficaram a favor dos muçulmanos
da Bósnia. Estes últimos receberam auxílio dos Estados Unidos, uma
anomalia não-civilizacional no que, no restante, formou um padrão de
afim apoiando afim. A diáspora croata na Alemanha e a diáspora bósnia
da Turquia foram em apoio de suas pátrias de origem. As igrejas e os
grupos religiosos estiveram atuantes em todos os três lados. As ações,
pelo menos, dos governos alemão, turco, russo e norte-americano foram
influenciadas de modo significativo por grupos de pressão e pela opinião
pública em suas respectivas sociedades.
O apoio prestado pelas partes secundárias e terciárias foi essencial
para a condução da guerra, e as limitações que elas impuseram foi essencial
para fazê-la cessar. Os governos croata e sérvio forneceram armas, supri-
mentos, fundos, refúgios e, às vezes, efetivos militares para sua gente que
estava combatendo em outras repúblicas. Sérvios, croatas e muçulmanos
receberam, todos, ajuda substancial de seus afins civilizacionais que estavam
fora da antiga Iugoslávia, sob a forma de dinheiro, armas, suprimentos,
voluntários, treinamento militar e apoio político e diplomático. Os sérvios e
os croatas situados no nível primário não-governamental eram, de modo
geral, mais extremados em seu nacionalismo, irredutíveis em suas exigências
e militantes na perseguição de seus objetivos. Os governos sérvio e croata,
no segundo nível, inicialmente apoiaram vigorosamente seus afins do
nível primário, porém depois seus próprios interesses, mais diversifica-
dos, levaram-nos a desempenhar papéis mais de mediação e contenção.
De maneira paralela, os governos russo, alemão e norte-americano, no
terceiro nível, pressionaram os governos do segundo nível, que vinham
apoiando, na direção da contenção e da acomodação.
O esfacelamento da Iugoslávia começou em 1991, quando a
Eslovênia e a Croácia se movimentaram rumo à independência e
pleitearam o apoio das potências européias ocidentais. A resposta do
Ocidente foi definida pela Alemanha, e essa resposta foi, em grande parte,
definida pela conexão católica. O governo de Bonn foi pressionado a
atuar pela hierarquia católica alemã, pelo partido União Social Cristã, da
Bavária, parceiro da coalizão situacionista, e pelo Franlefutter Allgemeine
Zeitung e outros órgãos da mídia. A mídia bávara em especial desempe-
nhou um papel crucial no desenvolvimento de um sentimento pelo
reconhecimento daqueles países na opinião pública alemã. Flora Lewis
observou que "a TV bávara, sob grande pressão do governo bávaro
ultraconservador, e a Igreja Católica bávara, muito afirmativa e que tinha
íntimas ligações com a igreja da Croácia, forneceram as informações
televisionadas para toda a Alemanha quando a guerra [com os sérvios]
começou de fato. A cobertura foi muito parcial". O governo alemão estava
hesita!ldo quanto a conceder seu reconhecimento, porém, dadas as
pressões da sociedade alemã, não teve muita escolha. "O apoio ao
reconhecimento da Croácia pela Alemanha foi empurrado pela opinião
pública e não suscitado pelo governo." A Alemanha pressionou a União
Européia para que reconhecesse a independência da Eslovênia e da
Croácia e depois, tendo obtido essa decisão, prosseguiu por conta própria
e a reconheceu antes que a União o fizesse em dezembro de 1991. Um
estudioso alemão assinalou em 1995 que, "durante todo o conflito, Bonn
considerou a Croácia e seu líder Franjo Tudjman como algo parecido
com um protegido da política externa alemã, o qual, apesar de um
comportamento errático que causava irritação, ainda podia contar com
o firme apoio da Alemanha".35
A Áustria e a Itália prontamente agiram no sentido de reconhecer
os dois novos Estados e, com grande rapidez, o mesmo fizeram os demais
países ocidentais, inclusive os Estados Unidos. O Vaticano também
desempenhou um papel fundamental. O Papa declarou que a Croácia
era "a muralha do Cristianismo [Ocidental]", e apressou-se em dar
reconhecimento diplomático aos dois Estados antes que a União Européia
o fizesse.36 Desse modo, o Vaticano tomou partido no conflito, o que
teve suas conseqüências em 1994, quando o Papa planejava visitas às
três repúblicas. A oposição da Igreja Ortodoxa Sérvia impediu-o de ir a
Belgrado, e a falta de disposição da Sérvia para garantir sua segurança
levou ao cancelamento de sua visita a Sarajevo. Contudo, ele foi a Zagreb,
onde homenageou o cardeal Alojzieje Septinac, que era associado com
o regime fascista croata: na II Guerra Mundial, o qual perseguira e
massacrara sérvios, ciganos e judeus.
Tendo assegurado o reconhecimento pelo Ocidente de sua in-
dependência, a Croácia começou a desenvolver seu poderio militar,
apesar do boicote de armamentos imposto em setembro de 1991 pelas
Nações Unidas a todas as antigas repúblicas iugoslavas. Houve um fluxo
de armamentos para a Croácia proveniente de países católicos europeus,
como Alemanha, Polônia e Hungria, bem como de países latino-ameri-
canos como Panamá, Chile e Bolívia. Quando a guerra entrou numa
escalada em 1991, as exportações de armamentos pela Espanha, supos-
tamente "controladas em grande parte pela Opus Dei", aumentaram seis
vezes num curto período de tempo, a maioria delas presumivelmente
chegando até Ljubliana e Zagreb. Ao que consta, em 1993 a Croácia
adquiriu vários Mig-21 na Alemanha e na Polônia, com o conhecimento
dos respectivos governos. As forças armadas croatas receberam centenas,
e talvez milhares, de voluntários "da Europa Ocidental, da diáspora croata
e dos países católicos da Europa Oriental", que estavam ansiosos por
lutar "numa cruzada cristã contra tanto o comunismo sérvio como o
fundamentalismo islâmico". Militares profissionais de países ocidentais
proporcionaram assistência técnica. Em parte graças a esse auxílio de países
afins, os croatas puderam fortalecer seu segmento militar e criar uma
força para se contrapor ao exército iugoslavo dominado pelos sérvios.37
O apoio ocidental à Croácia também incluiu não tomar conheci-
mento da limpeza étnica e das violações de direitos humanos e das leis
da guerra pelas quais os sérvios foram constantemente denunciados. O
Ocidente ficou em silêncio quando, em 1995, o recomposto exército
croata desfechou um ataque contra os sérvios de Krajina, que lá estavam
havia séculos, e expulsou centenas de milhares deles para o exílio na
Bósnia e na Sérvia. A Croácia também se beneficiou de sua considerável
diáspora. Croatas ricos na Europa Ocidental e na América do Norte
contribuíram com fundos para aquisição de armas e equipamentos. As
associações de croatas nos Estados Unidos fizeram lobby no Congresso
e junto ao presidente em favor de sua pátria de origem. De especial
importância e influência foram os 600 mil croatas na Alemanha. Fornecen-
do centenas de voluntários para o exército croata, "as comunidades
croatas no Canadá, nos Estados Unidos, na Austrália e na Alemanha se
mobilizaram para defender sua pátria recém-independente".38
Em 1994, os Estados Unidos aderiram, apoiando o rearmamento
croata. Ignorando as numerosíssimas violações do boicote de armas das
Nações Unidas, os Estados Unidos proporcionaram treinamento militar
aos croatas e autorizaram generais norte-americanos reformados do mais
alto nível a prestar-lhes assessoramento. Os governos norte-americano e
alemão deram luz verde para a ofensiva croata sobre Krajina em 1995.
Assessores militares norte-americanos participaram do planejamento
desse ataque no estilo norte-americano, o qual, segundo os croatas,
também se beneficiou de inteligência fornecida por satélites espiões
norte-americanos. Um funcionário norte-americano declarou que a Croá-
cia se tornara "nosso aliado de facto". Argumentou-se que esse desdo-
bramento refletia "um cálculo de longo prazo, segundo o qual, no final,
duas potências locais dominarão essa parte do mundo, uma em Zagreb
e outra em Belgrado - uma vinculada a Washington e a outra presa a
um bloco eslavo que se estenderá até Moscou".39
As guerras iugoslavas também fizeram com que o mundo ortodoxo
se congregasse ao lado da Sérvia. Nacionalistas, oficiais das forças
armadas, parlamentares e líderes da Igreja Ortodoxa russos abertamente
expressavam seu apoio à Sérvia, menosprezavam os "turcos" bósnios e
criticavam o imperialismo ocidental e da OTAN. Os nacionalistas russos
e sérvios atuaram juntos para insuflar em ambos os países oposição à
"nova ordem mundial" ocidental. Num grau considerável, esses senti-
mentos eram compartilhados pelo povo russo, com mais de 60 por cento
dos moscovitas, por exemplo, se opondo aos ataques aéreos da OTAN
no verão de 1995. Grupos nacionalistas russos conseguiram recrutar
jovens russos em várias cidades grandes para que se juntassem "à causa
da fraternidade eslava". Ao que consta, mil ou mais de mil russos,
juntamente com voluntários da Romênia e da Grécia, se alistaram nas
forças armadas sérvias para combater o que descreviam como "os
fascistas católicos" e "os militantes fundamentalistas islâmicos". Em 1992,
informou-se que uma unidade russa "com uniformes de cossacos" estava
operando na Bósnia. Em 1995, havia russos servindo em unidades
militares de elite sérvias e, segundo um relatório das Nações Unidas,
combatentes russos e gregos participaram do ataque sérvio contra a área
protegida pelas Nações Unidas em Zepa.40
Apesar do boicote de armamentos, os amigos ortodoxo~ da Sérvia
lhe forneceram as armas e os equipamentos de que ela necessitava. No
início de 1993, órgãos militares e de inteligência da Rússia aparentemente
venderam aos sérvios tanques T-55, mísseis antimísseis e mísseis antiaé-
reos no valor de 300 milhões de dólares. Segundo consta, técnicos
militares russos foram enviados à Sérvia a fim de operar esses equipa-
361
mentos e treinar os sérvios no seu emprego. A Sérvia adquiriu armamen-
tos de outros países ortodoxos, sendo a Romênia e a Bulgária os
fornecedores "mais ativos" e a Ucrânia também figurando como fonte.
Além disso, tropas russas de manutenção da paz que se encontravam na
Eslavônia desviaram para os sérvios suprimentos das Nações Unidas,
facilitaram os deslocamentos militares sérvios e ajudaram as forças sérvias
a obter armas. 41
Apesar das sanções econômicas, a Sérvia conseguiu se sustentar
razoavelmente bem em conseqüência do gigantesco contrabando de
combustível e outros suprimentos de Timisoara organizado por funcio-
nários do governo romeno e da Albânia, neste caso organizado primeiro
por empresas italianas e depois por empresas gregas, com a conivência
do governo grego. Os envios de alimentos, produtos químicos, compu-
tadores e outros artigos provenientes da Grécia entravam na Sérvia
através da Macedônia e por aí saíam quantidades correspondentes de
exportações sérvias. 42 A combinação da atração dos dólares e da simpatia
pelos afins culturais transformou em piada as sanções econômicas das
Nações Unidas contra a Sérvia, assim como ocorreu com o boicote de
armas das Nações Unidas contra todas as antigas repúblicas iugoslavas.
Durante todas as guerras iugoslavas, o governo grego se distanciou
das medidas endossadas pelos membros ocidentais da OTAN, se opôs
à ação militar da OTAN na Bósnia, apoiou os sérvios nas Nações
Unidas e fez lobby junto ao governo norte-americano para que
suspendesse as sanções econômicas contra a Sérvia. Em 1994, o
primeiro-ministro grego, Andreas Papandreou, ressaltando a importância
da conexão ortodoxa com a Sérvia, atacou publicamente o Vaticano, a
Alemanha e as Nações Unidas por sua pressa em conceder reco-
nhecimento diplomático à Eslovênia e à Croácia no final de 1991.43
Como dirigente de um participante terciário, Boris Yeltsin sofreu
pressões em sentidos contrários: por um lado, pelo desejo de manter,
ampliar e aproveitar as boas relações com o Ocidente e, por outro lado,
pelo desejo de ajudar os sérvios e neutralizar sua oposição política, que
o acusava sistematicamente de se curvar ao Ocidente. No cômputo geral,
esta última preocupação se impôs e a Rússia deu aos sérvios um apoio
diplomático freqüente e consistente. Em 1993 e em 1995, o governo russo
se opôs energicamente a que fossem aplicadas à Sérvia sanções econô-
micas mais severas e o Parlamento russo aprovou, quase por unanimi-
dade, resoluções a favor da suspensão das sanções em vigor contra os
sérvios. A Rússia também pressionou pelo fortalecimento do bloqueio
362
de armas contra os muçulmanos e pela aplicação de sanções econômicas
contra a Croácia. Em dezembro de 1993, a Rússia instou pelo abran-
damento das sanções econômicas contra a Sérvia a fim de que lhe fosse
permitido suprir esse país com gás natural para o inverno, proposta que
foi bloqueada pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha. Em 1994 e
novamente em 1995, a Rússia se opôs tenazmente aos ataques aéreos
contra os sérvios da Bósnia. Neste último ano, a Duma russa condenou
o bombardeio por uma votação quase unânime e exigiu a renúncia do
ministro do Exterior, Andrei Kozyrev, pela defesa ineficaz dos interes-
ses nacionais russos nos Bálcãs. Ainda em 1995, a Rússia acusou a
OTAN de cometer "genocídio" contra os sérvios e o presidente Yeltsin
advertiu que a continuação dos bombardeios afetaria de modo drástico
a cooperação da Rússia com o Ocidente, inclusive sua participação na
Parceria para a Paz da OTAN. Perguntou retoricamente: "Como
podemos celebrar um acordo com a OTAN, quando ela está bom-
bardeando sérvios?" Segundo ele, o Ocidente estava claramente usan-
do dois pesos e duas medidas: "Como pode ser que, quando os
muçulmanos atacam, nenhuma ação é empreendida contra eles? Quando
os croatas atacam tampouco." 44 A Rússia também se opôs de modo
consistente aos esforços por suspender o boicote de armas contra as antigas
repúblicas iugoslavas, que produzia impacto principalmente sobre os
muçulmanos da Bósnia, e tentou sistematicamente reforçar esse boicote.
A Rússia utilizou por várias outras formas sua posição nas Nações
Unidas e em outros foros para defender os interesses sérvios. Em dezembro
de 1994, ela vetou uma resolução do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, proposta por países muçulmanos, que teria vedado o forneci-
mento de combustível pela Sérvia aos sérvios da Bósnia e da Croácia.
Em abril de 1994, a Rússia bloqueou uma resolução das Nações Unidas
que condenava os sérvios por perpetrarem limpeza étnica. Ela também
impediu a designação de qualquer pessoa de país integrante da OTAN
como promotor das Nações Unidas para crimes de guerra, devido a uma
provável prevenção contra os sérvios, objetou à indiciação do comandante
militar sérvio da Bósnia, Ratko Mladic, pelo Tribunal Internacional de Crimes
de Guerra e ofereceu-lhe asilo na Rússia.45 Em setembro de 1993, a Rússia
'
reteve a renovação da autorização das Nações Unidas para a permanência
dos 22 mil integrantes da força de paz das Nações Unidas na antiga
Iugoslávia. No verão de 1995, a Rússia se opôs, porém sem recorrer ao
veto, a uma resolução do Conselho de Segurança que autorizava o envio
de mais 12 mil elementos para a força de paz, e atacou tanto a ofensiva
363
croata contra os sérvios em Krajina como o fato de os governos ocidentais
não terem tomado qualquer medida contra essa ofensiva.
A congregação civilizacional mais ampla e mais eficaz foi a do
mundo islâmico em favor dos muçulmanos da Bósnia. A causa bósnia
era universalmente popular nos países muçulmanos. A ajuda para os
bósnios provinha de várias fontes, públicas e privadas. Os governos
muçulmanos, mais notadamente os do Irã e da Arábia Saudita, competiam
entre si para dar apoio aos bósnios e para obter a influência que o mesmo
gerava. As sociedades sunitas e xiitas, fundamentalistas e seculares,
muçulmanas árabes e não-árabes, do Marrocos à Malásia, todas aderiram.
As modalidades de apoio muçulmano para os bósnios variaram de ajuda
humanitária (inclusive 90 milhões de dólares levantados em 1995 na
Arábia Saudita), passando por apoio diplomático e enorme assistência
militar, até atos de violência, como o assassinato de 12 croatas em 1993,
na Argélia, por extremistas fundamentalistas islâmicos "em resposta ao
massacre de nossos confrades muçulmanos cujas gargantas foram corta-
das na Bósnia". 46 Essa congregação teve grande impacto sobre o curso
da guerra. Ela foi fundamental para a sobrevivência do Estado bósnio e
para seu êxito em reconquistar território depois das amplas vitórias
iniciais dos sérvios. Ela estimulou enormemente a islamização da socie-
dade bósnia e a identificação dos muçulmanos da Bósnia com a
comunidade islâmica mundial. E ela deu aos Estados Unidos um incentivo
para ser compreensivo para com as necessidades bósnias.
Os governos muçulmanos, individual e coletivamente, expressaram
repetidas vezes sua solidariedade aos bósnios irmãos na religião. O Irã
tomou a frente em 1992, descrevendo a guerra como um conflito religioso
com sérvios cristãos engajados no genocídio dos muçulmanos da Bósnia.
Fouad Ajami assinalou que, ao assumir essa liderança, o Irã fez "um
pagamento inicial pela gratidão do Estado bósnio" e estabeleceu o
modelo e criou o estímulo para que outras potências muçulmanas, como
a Turquia e a Arábia Saudita, o seguissem. Por insistência do Irã, a
Organização da Conferência Islâmica assumiu a questão e criou um grupo
para empreender um lobby pela causa bósnia nas Nações Unidas. Em
agosto de 1992, representantes islâmicos condenaram o alegado genocí-
dio na Assembléia Geral das Nações Unidas e, em nome da OCI, a
Turquia apresentou um projeto de resolução pleiteando a intervenção
militar nos termos do Artigo 7 da Carta das Nações Unidas. No início de
1993, os países muçulmanos fixaram um prazo para que o Ocidente
agisse a fim de proteger os bósnios, após a expiração do qual eles se
considerariam livres para fornecer armas à Bósnia. Em maio de 1993, a
OCI condenou o plano montado pelas nações ocidentais e pela Rússia
para proporcionar áreas de refúgio para os muçulmanos e para monitorar
a fronteira com a Sérvia, mas afastando qualquer intervenção militar. Ela
exigiu o término do boicote de armamentos, o emprego da força contra
as armas pesadas dos sérvios, um patrulhamento agressivo da fronteira
sérvia e a inclusão de tropas muçulmanas nas forças de paz. No mês
seguinte, a OCI, passando por cima das objeções ocidentais e russas, fez
com que a Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos
aprovasse uma resolução condenando a agressão sérvia e croata e
pedindo o término do boicote de armamentos. Em julho de 1993, para
um certo embaraço do Ocidente, a OCI ofereceu fornecer 18 mil homens
para as forças de paz das Nações Unidas, com soldados provenientes do
Irã, Turquia, Malásia, Tunísia, Paquistão e Bangladesh. Os Estados Unidos
vetaram o Irã e os sérvios objetaram energicamente às tropas turcas. Não
obstante, estas últimas chegaram à Bósnia no verão de 1994 e, em 1995,
o efetivo de 25 mil homens da Força de Proteção das Nações Unidas
compreendia sete mil homens da Turquia, Paquistão, Malásia, Indonésia
e Bangladesh. Em agosto de 1993, uma delegação da OCI, chefiada pelo
ministro do Exterior turco, fez gestões junto a Boutros Boutros-Ghali e
Warren Christopher a fim de que apoiassem ataques aéreos imediatos da
OTAN para proteger os bósnios de ataques sérvios. Ao que se informou,
·o fato de o Ocidente não haver adotado essa linha de ação criou graves
tensões entre a Turquia e seus aliados da OTAN. 47
Posteriormente, os primeiros-ministros da Turquia e do Paquistão
fizeram uma visita, que teve ampla divulgação, a Sarajevo a fim de
ressaltar a preocupação muçulmana, e a OCI voltou a repetir suas
exigências de assistência militar aos bósnios. No verão de 1995, o fato
de o Ocidente não ter defendido as áreas de refúgio contra ataques sérvios
levou a Turquia a aprovar a prestação de ajuda à Bósnia e a treinar tropas
bósnias, a Malásia a se comprometer a vender-lhe armas em violação do
boicote decretado pelas Nações Unidas e os Emirados Árabes Unidos a
concordarem em proporcionar fundos para fins militares e humanitários.
Em agosto de 1995, os ministros do Exterior de nove países-membros da
OCI aprovaram a assistência econômica e em armas à Bósnia.
Enquanto nenhuma outra questão gerou apoio tão unânime em
todo o Islã, o sofrimento dos muçulmanos da Bósnia teve especial
repercussão na Turquia. A Bósnia fizera parte do Império Otomano até 1878,
na prática, e até 1908 em teoria, e os imigrantes e refugiados bósnios
365
compõem aproximadamente cinco por cento da população da Turquia.
A simpatia pela causa bósnia e a indignação pelo que se percebia como
inação do Ocidente para proteger os bósnios se estenderam por todo o
povo turco, e o Partido Fundamentalista Islâmico de Bem-Estar, de
oposição, explorou essa questão contra o governo. Funcionários turcos,
por sua vez, ressaltaram as responsabilidades especiais da Turquia com
relação a todos os muçulmanos dos Bálcãs e o governo fez gestões de
forma sistemática pela intervenção militar das Nações Unidas, a fim de
salvaguardar os muçulmanos da Bósnia.48
De longe o tipo de ajuda mais importante que a ummah deu aos
muçulmanos da Bósnia foi a assistência militar: armas, dinheiro para
comprar armas, treinamento militar e voluntários. Logo que a guerra
começou, o governo bósnio abriu as portas para o envio de mujahedins
e, ao que consta, o total de voluntários chegou a quatro mil, mais do que
os estrangeiros que combateram do lado dos sérvios ou dos croatas. Aí
se incluíam unidades da Guarda Republicana Iraniana e muitos que
haviam combatido no Afeganistão. Dentre eles havia cidadãos do Paquis-
tão, Turquia, Irã, Argélia, Arábia Saudita, Egito e Sudão, além de albaneses
e turcos que estavam, como imigrantes temporários, trabalhando na
Alemanha, Áustria e Suíça. Organizações religiosas sauditas patrocinaram
muitos voluntários; mais de duas dezenas de sauditas foram mortos logo
nos primeiros meses da guerra, em 1992; e a Assembléia Mundial da
Juventude Islâmica transportou combatentes feridos de avião para aten-
dimento médico em]edah. No outono de 1992, guerrilheiros do Hezbol-
lah xiita libanês chegaram a fim de treinar o exército bósnio, treinamento
que foi posteriormente assumido pela Guarda Republicana Iraniana. Na
primavera de 1994, serviços de inteligência ocidentais informaram que
uma unidade da Guarda Republicana Iraniana, com 400 homens, estava
organizando unidades extremistas de guerrilha e terrorismo. Um funcio-
nário norte-americano disse que "os iranianos vêem nisso um meio de
atingir o ventre vulnerável da Europa". Segundo as Nações Unidas, os
mujahedins treinaram de três a cinco mil bósnios para as brigadas
especiais fundamentalistas islâmicas. O governo bósnio empregou os
mujahedinsem "atividades terroristas e ilegais e como tropas de choque",
embora essas unidades muitas vezes molestassem as populações locais
e criassem outros problemas para o governo. Os acordos de Dayton
exigiram que todos os combatentes estrangeiros saíssem da Bósnia,
porém o governo bósnio ajudou alguns combatentes a ficar, outorgan-
do-lhes cidadania bósnia e contratando homens da Guarda Republicana
366
Iraniana como trabalhadores. Um funcionário norte-americano advertiu
no início de 1996 que "o governo bósnio muito deve a esses grupos e
especialmente aos iranianos. O governo se mostrou incapaz de confron-
tá-los. Dentro de 12 meses, nós teremos partido, mas os mujahedins
pretendem ficar". 49
Os países ricos da ummah, encabeçados pela Arábia Saudita e pelo
Irã contribuíram com enormes quantias para desenvolver o poderio
'
militar bósnio. Nos primeiros meses da guerra, em 1992, o governo
saudita e fontes privadas forneceram 150 milhões de dólares em ajuda
para os bósnios, ostensivamente para fins humanitários, que, porém,
como se admitia amplamente, foram utilizados sobretudo para fins
militares. Segundo consta, os bósnios receberam armas no valor de 160
milhões de dólares durante os primeiros dois anos da guerra. No período
1993-95, os bósnios receberam dos sauditas mais 300 milhões de dólares
para comprar armas, além de 500 milhões de dólares supostamente em
ajuda humanitária. O Irã também foi uma grande fonte de assistência
militar e, segundo funcionários norte-americanos, despendeu centenas
de milhões de dólares por ano em armas para os bósnios. Segundo um
outro relatório, do valor total de dois bilhões de dólares em armas que
foram para a Bósnia nos primeiros anos de luta, de 80 a 90 por cento
foram para os muçulmanos. Graças a essa ajuda financeira, os bósnios
puderam comprar milhares de toneladas de armamentos. Dentre os
embarques interceptados, havia um de quatro mil fuzis e um milhão de
tiros de munição, um segundo de 11 mil fuzis, 30 morteiros e 750 mil
tiros de munição, e um terceiro com foguetes terra-terra, munição, jipes
e pistolas. Todos esses embarques se originavam no Irã, que era a
principal fonte de armamentos, mas a Turquia e a Malásia também eram
importantes fornecedores de armas. Algumas armas foram transportadas
por via aérea diretamente para a Bósnia, mas a maioria chegou através
da Croácia, quer por via aérea até Zagreb e depois, por terra ou por mar,
para Split e outros portos croatas, e finalmente por terra. Em troca de
permitir esse procedimento, os croatas ficavam com uma parte, ao que
consta um terço, das armas e, pensando na possibilidade de ter que vir
a combater a Bósnia no futuro, proibiam o transporte de tanques e
artilharia pesada através de seu território.SO
O dinheiro, os homens, o treinamento e as armas do Irã, Arábia
Saudita, Turquia e outros países muçulmanos possibilitaram aos bósnios
converter o que todos chamavam de um exército "improvisado" numa
competente força militar modestamente bem equipada. Ao se chegar ao
inverno de 1994, observadores de fora informaram constatar aumentos
espetaculares na sua coerência organizacional e na sua eficácia militar.5 1
Pondo sua nova força militar para funcionar, os bósnios romperam o
cessar-fogo e desencadearam ofensivas bem-sucedidas, primeiro contra
as milícias croatas e depois, mais no final da primavera, contra os sérvios.
No outono de 1994, o Quinto Corpo bósnio se deslocou da área de
refúgio das Nações Unidas em Bihac e fez recuar as forças sérvias,
produzindo a maior vitória bósnia até então e retomando considerável
parte de território dos sérvios, que foram prejudicados pela proibição
imposta pelo presidente Milosevic de que lhes fosse dado auxílio. Em
março de 1995, o exército bósnio tornou a romper a trégua e iniciou uma
grande ação perto de Tuzla, a que se seguiu uma ofensiva em junho em
torno de Sarajevo. O apoio de seu afins muçulmanos foi fator imprescin-
dível e decisivo para possibilitar ao governo bósnio fazer essas alterações
na balança de poder militar na Bósnia.
A guerra na Bósnia foi uma guerra de civilizações. Os três partici-
pantes primários provinham de civilizações diferentes e professavam
religiões diferentes. Com uma exceção parcial, a participação dos atores
secundários e terciários seguiu exatamente o modelo civilizacional. De
maneira universal, os Estados e organizações muçulmanos se congrega-
ram em apoio dos muçulmanos da Bósnia e em oposição aos croatas e
aos sérvios. De maneira universal, os Estados e organizações ortodoxos
apoiaram os sérvios e se opuseram a croatas e muçulmanos. Os governos
e as elites ocidentais apoiaram os croatas, fustigaram os sérvios e, de
modo geral, se mostraram indiferentes aos muçulmanos, ou temerosos.
À medida que prosseguia a guerra, os ódios e as divisões entre os grupos
se aprofundaram e suas identidades religiosas e civilizacionais se inten-
sificaram, sobretudo entre os muçulmanos. De modo genérico, as lições
que se podem extrair da guerra na Bósnia são: primeiro, os participantes
primários em guerras de linha de fratura podem contar com a ajuda, que
pode ser considerável, de seus afins civilizacionais; segundo, essa ajuda
pode afetar de modo significativo o curso da guerra; e terceiro, os governos
e povos de uma civilização não despendem sangue ou riquezas para
ajudar povos de outra civilização a lutar numa guerra de linha de fratura.
A única exceção parcial desse padrão civilizacional foram os Estados
Unidos, cujos dirigentes favoreceram retoricamente os muçulmanos. Na
prática, entretanto, o apoio norte-americano foi limitado. O governo
Clinton autorizou o emprego de poder aéreo norte-americano, mas não
de tropas no solo, para proteger as áreas de refúgio das Nações Unidas,
368
e advogou o término do boicote de armas. Ele não pressionou com
energia seus aliados para que apoiassem essa diretriz, mas coonestou
tanto os embarques iranianos de armas para os bósnios como o finan-
ciamento saudita para as compras de armamentos pelos bósnios, e, em
1994, parou de acatar o boicote.52 Com esse comportamento, os Estados
Unidos antagonizaram seus aliados e deram lugar ao que se via de maneira
geral como uma grande crise dentro da OTAN. Depois que foram assinados
os acordos de Dayton, os Estados Unidos concordaram em cooperar com
a Arábia Saudita e outros países muçulmanos para treinar e equipar as forças
bósnias. A pergunta então é a seguinte: por que, durante e depois da guerra,
os Estados Unidos foram o único país a romper com o molde civilizacional
e se tornar o único país não-muçulmano a promover os interesses dos
muçulmanos da Bósnia e trabalhar com os países muçulmanos em seu
favor? O que explica essa anomalia norte-americana?
Uma possibilidade é a de que, na realidade, não tenha sido uma
anomalia, mas sim uma conduta cuidadosamente calculada de realpolitik
civilizacional. Ao se pôr do lado dos bósnios e propor, sem êxito, que
se terminasse o boicote, os Estados Unidos estavam tentando reduzir a
influência de países muçulmanos fundamentalistas, como Irã e Arábia
Saudita, junto aos bósnios, até então seculares e orientados para a Europa.
Gontudo, se esse foi o motivo por que os Estados Unidos assentiram à
ajuda iraniana e saudita, por que não se empenharam com mais vigor
para que se terminasse o boicote, que teria legitimado a ajuda ocidental?
Por que os funcionários norte-americanos não fizeram advertências
públicas sobre os perigos do fundamentalismo islâmico nos Bálcãs? Uma
explicação alternativa para o comportamento norte-americano é que o
governo norte-americano estava sob pressão de seus amigos no mundo
islâmico, mais especialmente a Turquia e a Arábia Saudita, e aquiesceu
aos seus desejos a fim de preservar as boas relações com eles. Entretanto,
essas relações estão baseadas nas convergências de interesses que não
têm nenhuma vinculação com a Bósnia, e provavelmente não seriam
prejudicadas pelo fato de os Estados Unidos não ajudarem a Bósnia. Além
disso, esse raciocínio não explica por que os Estados Unidos aprovaram
implicitamente que enormes quantidades de armamentos iranianos en-
trassem na Bósnia numa época em que estavam confrontando o Irã em
outras frentes e a Arábia Saudita estava competindo com o Irã por adquirir
influência na Bósnia.
Conquanto considerações de realpolitik civilizacional possam ter
tido algum papel na definição das atitudes norte-americanas, outros
fatores parecem ter tido maior influência. Em qualquer conflito entre
terceiros, os norte-americanos querem identificar as forças do bem e as
forças do mal e se alinhar com as primeiras. As atrocidades dos sérvios
no início da guerra levaram-nos a serem retratados como os "maus",
matando inocentes e perpetrando genocídio, enquanto os bósnios
conseguiram promover uma imagem de si mesmos como vítimas impo-
tentes. Durante toda a guerra, a imprensa norte-americana dedicou pouca
atenção às limpezas étnicas e crimes de guerra por· parte de croatas e
muçulmanos, ou às violações de áreas de refúgio das Nações Unidas e
de acordos de cessar-fogo pelas forças bósnias. Para os norte-americanos,
os bósnios se tornaram, para usar a expressão de Rebecca West, seu
"povo balcânico favorito, implantado nos seus corações como sofredores
e inocentes, eternamente sendo massacrados e nunca massacradores".53
As elites norte-americanas tinham uma predisposição favorável para
com os bósnios porque gostavam da idéia de um país multicultural e,
nas etapas iniciais da guerra, o governo bósnio conseguiu promover essa
imagem. Durante toda a guerra, a .política norte-americana se manteve
teimosamente empenhada por uma Bósnia multiétnica, apesar do fato de
que os sérvios da Bósnia e os croatas da Bósnia a rejeitaram de forma ampla.
Embora a criação de um Estado multiétnico fosse obviamente impossível se
um grupo étnico estava cometendo genocídio contra outro, como elas
também acreditavam, as elites norte-americanas combinaram em suas
mentes essas imagens contraditórias para chegar a uma simpatia generali-
zada pela causa bósnia. O idealismo, o moralismo, os instintos humani-
tários, a ingenuidade e a ignorância dessas elites norte-americanas a
respeito dos Bálcãs levaram-nas assim a serem pró-bósnios e anti-sérvios.
Ao mesmo tempo, a falta tanto de significativos interesses de segurança
norte-americanos na Bósnia como de qualquer conexão cultural não dava
ao governo norte-americano razão alguma para fazer muito no sentido de
ajudar os bósnios, a não ser permitir que os iranianos e os sauditas os
armassem. Ao se recusar a identificar a guerra pelo que ela era, o governo
norte-americano alienou seus aliados, prolongou a luta e ajudou a criar nos
Bálcãs um Estado muçulmano fortemente influenciado pelo Irã. No final,
os bósnios sentiam uma profunda amargura para com os Estados Unidos,
que tinham falado bonito mas feito pouco, e uma profunda gratidão por
seus afins muçulmanos, que tinham comparecido com o dinheiro e as armas
necessários para que eles sobrevivessem e conseguissem vitórias militares.
Bernard-Henri Lévy comentou, e um editor saudita concordou, que
"A Bósnia é a nossa Espanha. A guerra na Bósnia-Herzegovina tornou-se
o equivalente emocional da luta contra o fascismo na Guerra Civil
Espanhola. Os que morreram são considerados mártires que tentaram
salvar seus irmãos muçulmanos."54 A comparação é apropriada. Numa
era das civilizações, a Bósnia é a Espanha de todos. A Guerra Civil
Espanhola foi uma guerra entre ideologias e sistemas políticos; a Guerra
da Bósnia é uma guerra entre civilizações e religiões. Democratas,
comunistas e fascistas foram para a Espanha a fim de lutar ao lado de
seus irmãos ideológicos, e os governos democráticos, comunistas e, de
forma mais ativa, fascistas proporcionaram ajuda. As guerras iugoslavas
viram uma maciça mobilização análoga de apoio externo pelos cristãos
ocidentais, cristãos ortodoxos e muçulmanos em favor de seus afins
civilizacionais. As principais potências da Ortodoxia, do Islã e do
Ocidente ficaram todas profundamente envolvidas. Depois de quatro
anos, a Guerra Civil Espanhola chegou ao seu final com a vitória das
forças de Franco. As guerras entre as comunidades religiosas nos Bálcãs
podem se reduzir e até cessar temporariamente, porém não há proba-
bilidade de que qualquer lado consiga uma vitória decisiva, e a falta de
vitória significa a falta de final. A Guerra Civil Espanhola foi o prelúdio
da II Guerra Mundial. A Guerra da Bósnia é mais um episódio sangrento
de um choque continuado de civilizações.
7.71
linha de fratura são intermitentes; os conflitos de linha de fratura são
intermináveis.
Até mesmo uma parada temporária numa guerra de linha de fratura
geralmente depende de duas ocorrências. A primeira é a exaustão dos
participantes primários. Em algum momento, quando as baixas subiram
a dezenas de milhares, os refugiados a centenas de milhares e as cidades
_Beirute, Grozny, Vukovar -foram reduzidas a escombros, as pessoas
gritam "isso é loucura, isso é loucura, já basta", os radicais de ambos os
lados já não conseguem mobilizar a fúria popular, as negociações que
vinham se arrastando improdutivamente há anos recobram vitalidade e
os moderados se reafirmam e chegam a algum tipo de entendimento para
deter a carnificina. Ao se chegar à primavera de 1994, a guerra de seis
anos em torno de Nagorno-Karabakh tinha "exaurido" tanto armênios
como azerbaijanos e, por conseguinte, eles concordaram com uma
trégua. No outono de 1995, analogamente noticiou-se que, na Bósnia,
"todos os lados estão exaustos", e vieram os acordos de Dayton.55
Entretanto essas paradas são autolimitativas, elas apenas habilitam ambos
os lados a descansar e recompletar seus recursos. Então, quando um dos
lados vê a oportunidade de ganho, a guerra recomeça.
Para se conseguir uma pausa temporária também é necessário um
segundo fator: o envolvimento de participantes de outro nível que não
o primário, com o interesse e a força para obrigar as partes em luta a
dialogarem. As guerras de linha de fratura quase nunca são detidas por
negociações diretas entre as partes primárias isoladamente e só raramente
através de mediação de partes desinteressadas. O distanciamento cultural,
os ódios intensos e a violência mútua que se infligiram uma à outra
tornam extremamente difícil para as partes primárias sentar-se e se
engajar num debate produtivo em busca de alguma forma de cessar-fogo.
As questões políticas subjacentes, quem controla que território e pessoas,
e em que termos, ficam vindo à tona e impedem um acordo sobre
questões mais limitadas.
Os conflitos entre países ou grupos com uma cultura comum
podem, às vezes, ser resolvidos através da mediação por uma terceira
parte desinteressada que compartilhe dessa cultura, tenha uma legitimi-
dade reconhecida no âmbito dessa cultura e, por conseguinte, possa ter
a confiança de ambas as partes de que encontrará uma solução baseada
nos valores dessa cultura. O Papa pôde mediar com êxito na controvérsia
de fronteira argentino-chilena. Em conflitos entre grupos de civilizações
diferentes, entretanto, não há partes desinteressadas. É extremamente
difícil encontrar uma pessoa, uma instituição ou um Estado que ambas
as partes considerem ser de confiança. Qualquer mediador em potencial
pertence a uma das civilizações em conflito ou a uma terceira civilização,
ainda com uma outra cultura ou outros interesses, que não inspira
confiança em nenhuma das partes em conflito. O Papa não será chamado
pelos chechenos e pelos russos, ou pelos tâmiles e cingaleses. Geralmen-
te, também os organismos internacionais não são aceitáveis porque
carecem da capacidade de impor custos significativos ou de oferecer
benefícios significativos às partes.
As guerras de linha de fratura são terminadas não por indivíduos,
grupos ou organizações desinteressados, mas sim por partes secundárias
e terciárias interessadas, que acorreram em apoio de seus afins e têm a
capacidade, por um lado, de negociar acordos com suas contrapartes e,
por outro, de induzir seus afins a aceitarem esses acordos. Conquanto o
congregar intensifique e prolongue a guerra, de modo geral é uma
condição necessária, embora não suficiente, para limitar e fazer cessar a
guerra. Os elementos secundários e terciários que se congregam geral-
mente não querem ser transformados em combatentes de nível primário
e por isso tentam manter a guerra sob controle. Eles também têm
interesses mais diversificados do que os participantes primários, que
estão exclusivamente concentrados na guerra, e se preocupam com
outras questões em suas relações mútuas. Portanto, em algum momento
eles provavelmente verão que é do seu interesse parar a luta. Como eles
se congregaram do lado de seus afins, têm influência sobre estes. Os que
se congregam se transformam assim nos que contêm e fazem parar.
Guerras em que não haja partes secundárias nem terciárias têm
menor probabilidade de se expandir do que as outras, mas são mais
difíceis de serem paradas, como o são as guerras entre grupos de
civilizações que carecem de Estados-núcleos. As guerras de linha de
fratura que envolvem uma insurreição dentro de um Estado estabelecido
e que carecem de elementos significativos que se congreguem também
constituem problemas especiais. Se a guerra prossegue por um determi-
nado período, as exigências dos insurretos tendem a aumentar de alguma
forma de autonomia para a independência completa, que o governo
rejeita. Geralmente, o governo exige que os insurretos deponham as
armas como um primeiro passo para fazer cessar a luta, o que é rejeitado
pelos insurretos. O governo, também naturalmente, resiste ao envolvi-
mento de elementos de fora no que ele considera um problema
puramente interno, envolvendo "criminosos". A definição de questão
2"72
interna também dá a outros Estados o pretexto para não se envolverem,
como foi o caso das potências ocidentais em relação à Chechênia.
Esses problemas se complicam quando as civilizações envolvidas
carecem de Estados-núcleos. A guerra no Sudão, por exemplo, que
começou em 1956, foi parada em 1972, quando as partes estavam
exaustas, e o Conselho Mundial de Igrejas e o Conselho Pan-africano de
Igrejas, numa conquista virtualmente única para organizações internacio-
nais não-governamentais, tiveram êxito em negociar o acordo de Adis-
Abeba, que outorgou autonomia ao Sudão meridional. Entretanto, uma
década depois, o governo revogou o acordo, a guerra recomeçou, os
insurretos ampliaram seus objetivos, a posição do governo se endureceu
e os esforços por negociar outra parada fracassaram. Nem o mundo árabe
nem a África tinham Estados-núcleos com o interesse e a força para
pressionar os participantes. Os esforços de mediação de Jimmy Carter e
diversos líderes africanos não teve resultado, como tampouco tiveram os
esforços de uma comissão de Estados da África Oriental, composta por
Quênia, Eritréia, Uganda e Etiópia. Os Estados Unidos, que têm relações
profundamente antagônicas com o Sudão, não podiam atuar diretamente,
e tampouco podiam pedir ao Irã, ao Iraque ou à Líbia, que têm estreitas
relações com o Sudão, que desempenhassem papéis ativos. Em conse-
qüência, eles ficaram reduzidos a recorrer à Arábia Saudita, mas a
influência saudita sobre o Sudão era limitada.56
De modo geral, as negociações para um cessar-fogo são beneficia-
das na medida em que haja um envolvimento relativamente paralelo e
equilibrado das partes secundárias e terciárias de ambos os lados.
Contudo, em algumas circunstâncias, um único Estado-núcleo pode ser
suficientemente forte para produzir uma parada. Em 1992, a Conferência
sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE) tentou mediar na guerra
Armênia-Arzebaijão. Uma comissão - o Grupo de Minsk - foi criada,
incluindo partes primárias, secundárias e terciárias do conflito (armênios
de Nagorno-Karabakh, a Armênia, o Arzebaijão, a Rússia e a Turquia), e
mais a França, a Alemanha, a Itália, a Suécia, a República Checa, a
Bielo-Rússia e os Estados Unidos. Afora os Estados Unidos e a França,
com consideráveis diásporas armênias, esses últimos países tinham
pouco interesse, e pouca ou nenhuma capacidade, de produzir um fim
para a guerra. Quando as duas partes terciárias - a Rússia e a Turquia-,
além dos Estados Unidos, se puseram de acordo sobre um plano, ele foi
rejeitado pelos armênios de Nagorno-Karabakh. Entretanto a Rússia
patrocinou independentemente uma longa sene de negociações em
Moscou entre a Armênia e o Azerbaijão, que "criou uma alternativa para
o Grupo de Minsk e(. .. ) desse modo dissipou o esforço da comunidade
internacional". 57 No final, depois que os litigantes primários tinham ficado
exaustos e os russos haviam obtido o apoio do Irã para as negociações,
o esforço russo produziu um cessar-fogo. Na condição de partes secun-
dárias, a Rússia e o Irã também cooperaram nas tentativas, com êxitos
intermitentes, para conseguir um cessar-fogo no Tadjiquistão.
A Rússia será uma presença constante no Transcáucaso e terá a
capacidade de fazer respeitar o cessar-fogo por ela patrocinado enquanto
ela tiver interesse em fazê-lo. Isso contrasta com a situação dos Estados
Unidos em relação à Bósnia. Os acordos de Dayton foram montados
sobre propostas que tinham sido desenvolvidas pelo Grupo de Contato
dos Estados-núcleos interessados (Alemanha, Grã-Bretanha, França, Rús-
sia e Estados Unidos), porém nenhuma das outras partes terciárias esteve
intimamente envolvida na elaboração do acordo final, e duas das três
partes primárias da guerra ficaram à margem das negociações. A impo-
sição da observância do acordo fica a cargo de uma força da OTAN
dominada pelos norte-americanos. Se os Estados Unidos retirarem suas
tropas da Bósnia, nem as potências européias nem a Rússia terão
incentivos para continuar a implementar o acordo; o governo bósnio, os
sérvios e os croatas terão todos os incentivos para reiniciar a luta uma
vez que se tenham recuperado; e os governos sérvio e croata serão
tentados a aproveitar a oportunidade de concretizar seus sonhos de uma
Grande Sérvia e de uma Grande Croácia.
Robert Putnam salientou a medida em que as negociações entre os
Estados são "jogos em dois níveis", nos quais os diplomatas negociam
simultaneamente com os grupos de interesse dentro de seu próprio país
e com seus equivalentes no outro país. Numa análise paralela, Huntington
demonstrou que, num governo autoritário, os reformistas que estejam
negociando uma transição para a democracia com moderados na oposi-
ção também precisam negociar com os linhas-duras de dentro do
governo, ou então neutralizá-los, da mesma forma que os moderados
precisam negociar com os radicais na oposição.58 Esses jogos em dois
níveis envolvem no mínimo quatro participantes e pelo menos três linhas
de relacionamento entre si, e muitas vezes quatro dessas linhas. Entre-
tanto, uma guerra de linha de fratura complexa é um jogo em três níveis,
com pelo menos seis partes e pelo menos sete relações entre elas (ver
Figura 11.1). As relações horizontais que atravessam as linhas de fratura
existem entre pares de partes primarias, secundárias e terciárias. As
relações verticais existem entre as partes nos diferentes níveis dentro de
cada civilização. Assim sendo, para se conseguir uma parada na luta
numa guerra de "modelo completo", é preciso:
2"'70
Armênia (Dashnak), que tinha muita força na diáspora armênia, dominou
a entidade Nagomo-Karabakh, rejeitou a proposta de paz turco-russo-
norte-americana de maio de 1993 - aceita pelos governos da Armênia
e do Azerbaijão - , empreendeu ofensivas militares que provocaram
acusações de limpeza étnica, suscitaram a perspectiva de uma guerra
mais ampla e pioraram seu relacionamento com o governo armênio, mais
moderado. O êxito da ofensiva em Nagorno-Karabakh causou problemas
para a Armênia, que estava ansiosa por melhorar suas relações com a
Turquia e o Irã a fim de atenuar a escassez de alimentos e energia
resultante da guerra e do bloqueio turco. Um diplomata ocidental
comentou que "quanto melhor vão as coisas em Karabakh, mais difícil
fica para Yerevan".63 O presidente da Armênia, Levon Ter-Petrossian, tal
como o presidente Yeltsin, tinha que equilibrar as pressões dos na-
cionalistas em sua legislatura com os interesses mais amplos da política
externa em apaziguar outros países e, no final de 1994, seu governo
expulsou da Armênia o partido Dashnak.
Do mesmo modo que os armênios de Nagorno-Karabakh, os sérvios
da Bósnia e os croatas da Bósnia adotaram posições de linha-dura. Em
conseqüência, quando os governos croata e sérvio foram pressionados
para ajudar no processo de paz, surgiram problemas nas suas relações
com seus afins na Bósnia. Com os croatas esses problemas foram menos
graves, quando os croatas da Bósnia concordaram na forma, senão na
prática, em se juntar à federação com os muçulmanos. Em contraste, o
conflito entre o presidente Milosevic e o líder sérvio da Bósnia, Radovan
Karadzic, se tornou mais intenso e público, impelido por antagonismo
pessoal. Em agosto de 1994, Karadzic rejeitou o plano de paz que havia
sido aprovado por Milosevic. O governo sérvio, ansioso para que
acabassem as sanções, anunciou que estava cortando todo o comércio
com os sérvios da Bósnia, com exceção de alimentos e medicamentos.
Em troca, as Nações Unidas atenuaram suas sanções contra a Sérvia. No
ano seguinte, Milosevic permitiu que o exército croata expulsasse os
sérvios de Krajina, e forças croatas e muçulmanas os forçaram a retornar
para o noroeste da Bósnia. Ele também concordou com Tudjman para
permitir o restabelecimento gradual do controle croata sobre a Eslavônia
Oriental, ocupada pelos sérvios. Com a aprovação das grandes potências,
ele então de fato "levou" os sérvios da Bósnia para as negociações de
Dayton, incorporando-os à sua delegação.
As ações de Milosevic conduziram ao fim das sanções das Nações
Unidas contra a Sérvia. Elas também lhe valeram a aprovação de uma
~79
comunidade internacional um tanto surpresa. O belicoso nacionalista,
agressivo, promotor da limpeza étnica e da Grande Sérvia de 1992
transformara-se no promotor da paz de 1995. Entretanto, para muitos
sérvios, ele havia se transformado num traidor. Ele foi condenado em
Belgrado por nacionalistas sérvios e líderes da Igreja Ortodoxa e foi
duramente acusado de traição pelos sérvios da Bósnia e de Krajina. Nisso, ·,,
é claro, eles reproduziram as acusações dos colonos da Margem Ociden- 1
tal desferidas contra o governo israelense por seu acordo com a OLP. A
traição dos afins é o preço da paz numa guerra de linha de fratura.
A exaustão da guerra e os incentivos e pressões de partes terciárias
obrigam a mudanças nas partes secundárias e primárias. Ou os modera-
dos substituem no poder os extremistas, ou os extremistas, como
Milosevic, vêem que é do seu interesse tomar-se moderados. Eles o
fazem, porém, correndo certos riscos. Aqueles que são vistos como
traidores despertam ódio muito mais apaixonado do que os inimigos. Os
líderes dos muçulmanos de Caxemira, dos chechenos e dos cingaleses
em Sri Lanka tiveram o destino de Sadat e Rabin por trair a causa e tentar
encontrar uma solução de acomodação com o arquiinimigo. Em 1914,
um nacionalista sérvio assassinou um arquiduque austríaco. Na esteira
de Dayton, seu alvo mais provável seria Slobodan Milosevic.
Um acordo para pôr termo a uma guerra de linha de fratura terá
êxito, ainda que apenas temporário, na medida em que refletir o
equilíbrio de poder local entre as partes primárias e os interesses das
partes terciárias e secundárias. A divisão da Bósnia em 51 e 49 por cento
não era viável em 1994, quando os sérvios controlavam 70 por cento do
país. Ela se tornou viável quando as ofensivas croata e muçulmana
reduziram o controle sérvio a quase a metade. O processo de paz também
foi auxiliado pela limpeza étnica que foi realizada, com os sérvios
reduzidos a menos de três por cento da população da Croácia e membros
de todos os três grupos ficando separados dentro da Bósnia, violenta ou
voluntariamente. Além disso, as partes secundárias e terciárias, estas
últimas muitas vezes os Estados-núcleos das civilizações, precisam ter
reais interesses de segurança ou comunitários numa guerra, a fim de
patrocinarem uma solução viável. Os participantes primários não podem,
sozinhos, fazer parar guerras de linha de fratura. Fazê-las parar ou
impedir sua escalada em guerras globais depende precipuamente dos
interesses e das ações dos Estados-núcleos das principais civilizações do
mundo. As guerras de linha de fratura borbulham de baixo para cima,
as pazes de linha de fratura escorrem em gotas de cima para baixo.
380
V
0 FUTURO
DAS CIVILIZAÇÕES
CAPÍTULO 12
O Ocidente, as Civilizações
e a Civilização
A RENOVAÇÃO DO OCIDENTE?
história chega ao fim pelo menos uma vez e, ocasionalmente, com
\ 383
/.
384
ções, de alternância das fases de expansão e fases de conflito. Segundo
os seus termos, bem como os de outros estudiosos das civilizações, o
Ocidente parece atualmente estar saindo de sua fase de conflito. A
civilização ocidental tomou-se uma zona de segurança. As guerras
"internas" no Ocidente, afora uma guerra fria ocasional, são virtualmente
impensáveis. Como se argumentou no Capítulo 2, o Ocidente está
desenvolvendo o seu equivalente de um império universal sob a forma
de um complexo sistema de confederações, federações, regimes e outros
tipos de instituições cooperativas que encarnam, no nível civilizacional,
sua dedicação à política democrática e pluralista. Em suma, o Ocidente
tomou-se uma sociedade madura que está entrando no que as gerações
futuras, segundo o padrão repetitivo das civilizações, considerarão como
uma "idade de ouro", um período de paz decorrente, nos termos de
Quigley, "da ausência de quaisquer unidades competidoras dentro do
âmbito da própria civilização e do distanciamento, ou até mesmo
inexistência de lutas com outras sociedades de fora". É também um
período de ~rosperidade que decorre "do fim da destruição pela belige-
rância interna, da redução das barreiras ao comércio interno, do es-
tabelecimento de um sistema comum de pesos, medidas e moeda e de
um extenso sistema de gastos governamentais associado com o es-
tabelecimento de um império universal".
Em civilizações anteriores, essa fase de uma feliz idade de ouro,
com suas visões de imortalidade, terminou de forma dramática e rápida
com a vitória de uma sociedade externa, ou lentamente e de modo
igualmente doloroso pela desagregação interna. O que acontece dentro de
uma civilização é tão crucial para sua capacidade de resistir à destruição
proveniente de fontes externas como para conter a deterioração vinda de
dentro. Quigley argumentou em 1961 que as civilizações crescem porque
dispõem de um "instrumento de expansão", ou seja, organização militar,
religiosa, política ou econômica que acumula os excedentes e os investe
em inovações produtivas. As civilizações entram em declínio quando cessa
"a aplicação dos excedentes a novas maneiras de fazer as coisas. Em termos
modernos, dizemos que a taxa de investimentos diminui". Isso acontece
porque os grupos sociais que controlam os excedentes têm um interesse
próprio em utilizá-los para "fins não-produtivos, mas que satisfazem ao
ego (. .. ), os quais destinam os excedentes para o consumo mas não
proporcionam métodos de produção mais eficazes". As pessoas vivem
do seu capital e a civilização passa do estágio de Estado universal para
o estágio de decadência. É um período de
385
depressão econômica aguda, padrões de vida em declínio, guerras civis
entre os diversos interesses próprios e uma crescente falta de cultura. A
sociedade fica cada vez mais fraca. Fazem-se em vão tentativas de parar
com o desperdício através de legislação. Mas o declínio continua. Os
segmentos religioso, intelectual, social e político da sociedade começam
a perder a lealdade das massas em larga escala. Novos movimentos
1
religiosos começam a se espalhar pela sociedade. Há uma relutância
crescente em lutar pela sociedade ou até mesmo em sustentá-la pelo 1
pagamento de impostos.
• Numa previsão que bem pode estar correta, mas que, na realidade, não é sustentada por sua
análise teórica e empírica, Quigley conclui: "A civilização ocidental não existia por volta de
500 d.C., existia em pleno vigor por volta do ano 1500 d.C. e certamente terá deixado de
existir em algum ponto do futuro, talvez antes de 2500 d.C.." Segundo ele, novas civilizações
na China e na índia, que substituirão as que o Ocidente destruiu, passarão então para seus
estágios de expansão e ameaçarão as civilizações ocidental e ortodoxa. Carroll Quigley, 1be
Evolution ofCtvilizations: An Introduction to Histortcal Analysis [A Evolução das Civilizações:
uma Introdução ã Análise Histórica] (Indianápolis: Liberty Press, 1979; inicialmente publicada
por Macmillan em 1961), pp. 127, 164-66.
386
1
torma geral, o:::. puvu:::. uuuc1"'""' estavam vivendo melhor. O Ocidente
ainda era o líder em pesquisa científica e inovação tecnológica. Era
improvável que as baixas taxas de nascimento fossem sanadas pelos
governos (cujos esforços nesse sentido geralmente são ainda menos bem-
sucedidos do que os esforços para reduzir o crescimento populacional). A
1 imigração, porém, era uma fonte em potencial de novo vigor e capital humano,
desde que fossem satisfeitas duas condições: a primeira, que se desse
prioridade às pessoas capazes, qualificadas e empreendedoras, com os
talentos e os conhecimentos de que necessitasse o país anfitrião; a segunda,
que os novos imigrantes e seus filhos fossem assimilados nas culturas do
P~~s respectivo e do Ocidente. Os Estados Unidos tinham uma proba-
bilidade de ter problemas para satisfazer a primeira condição e os países
euro?e~s para satisfazer a segunda. No entanto, adotar diretrizes regendo
os mveis, fontes, características e assimilação de imigrantes está perfei-
tamente dentro da experiência e competência dos governos ocidentais.
Muito mais importantes do que a economia e a demografia são os
pr~blemas de declínio moral, suicídio cultural e desunião política no
Ocidente. As manifestações freqüentemente apontadas de declínio moral
abrangem:
~87
A cultura ocidental é contestada por grupos dentro das sociedades
ocidentais. Uma dessas contestações vem de imigrantes de outras dvili-
zações, que repudiam a assimilação e continuam a esposar e propagar
os valores, costumes e culturas de suas sociedades de origem. Esse
fenômeno é mais notável entre os muçulmanos na Europa, que cons-
'
tituem, contudo, pequena minoria. Ele também se manifesta, em menor
grau, entre os hispânicos nos Estados Unidos, que compõem uma grande
minoria. Neste caso, se a assimilação fracassar, os Estados Unidos se
tornarão um país rachado, com todo o potencial para a discórdia e a
desunião internas que isso acarreta. Na Europa, a civilização ocidental
também pode ser solapada pelo enfraquecimento de seu componente
fundamental, o Cristianismo. Uma quantidade cada vez menor de euro-
peus professa crenças religiosas, respeita práticas religiosas e participa
de atividades religiosas.5 Essa tendência reflete não tanto hostilidade para
com a religião, mas sim uma indiferença por ela. Não obstante, os
conceitos, práticas e valores cristãos permeiam a civilização européia.
Um sueco comentou que "os suecos provavelmente são o povo menos
religioso da Europa, mas não se pode de modo algum compreender esse
país a menos que se perceba que nossas instituições, práticas sociais,
famílias, política e estilo de vida são essencialmente moldados por nossa
herança luterana". Os norte-americanos, ao contrário dos europeus, de
forma preponderante acreditam em Deus, se consideram um povo
religioso e freqüentam a igreja em grande número. Embora não houvesse
indícios de um ressurgimento da religião nos Estados Unidos em meados
da década de 80, a década seguinte pareceu testemunhar uma intensifi-
cação da atividade religiosa.6 A erosão do Cristianismo entre os ocidentais
provavelmente será, na pior das hipóteses, uma ameaça de muito longo
prazo para a saúde da civilização ocidental.
Nos Estados Unidos, há um desafio mais imediato e mais perigoso.
Do ponto de vista histórico, a identidade nacional norte-americana foi
definida culturalmente pelo legado da civilização ocidental e politicamen-
te pelo Credo norte-americano com o qual os norte-americanos concor-
dam amplamente: liberdade, democracia, individualismo, igualdade pe-
rante a lei, constitucionalismo, propriedade privada. No final do século
XX, ambos os componentes da identidade norte-americana passaram a
sofrer o ataque concentrado e contínuo de um número pequeno, porém
influente, de intelectuais e editores. Em nome do multiculturalismo,
atacaram a identificação dos Estados Unidos com a civilização ocidental,
negaram a existência de uma cultura comum norte-americana e promo-
veram outras identidades e agrupamentos rac1a1s, étnicos e de outras
culturas subnacionais. Nas palavras de um de seus relatórios, eles..,
condenaram "o viés sistemático em direção à cultura européia e seus
derivados" na educação e "o predomínio da perspectiva monocultura!
europeu-norte-americana". Como disse Arthur Schlesinger Jr., os mul-
ticulturalistas são "muitas vezes separatistas etnocêntricos, que vêem
pouca coisa no legado ocidental além dos crimes ocidentais". Seu "estado
de espírito é livrar os norte-americanos da pecaminosa herança européia
e buscar infusões redentoras de culturas não-ocidentais". 7
A tendência multicultural também se manifestou em vanos dis-
positivos legais que se seguiram às leis sobre direitos civis da década de 60
e, nos anos 90, o governo Clinton fez do estímulo à diversidade uma de
suas metas principais. O contraste com o passado é impressionante. Os Pais
da Pátria viam a diversidade como uma realidade e como um problema: daí
o lema nacional - e pluribus unum - escolhido por um comitê do
Congresso Continental composto por Benjamin Franklin, Thomas Jefferson
e John Adams. Líderes políticos posteriores, que também receavam os
perigos da diversidade racial, sectária, étnica, econômica e cultural (a qual,
na verdade, produziu a maior guerra do século entre 1815 e 1914),
responderam ao chamamento para que "nos unamos", e fizeram da
promoção da unidade nacional sua responsabilidade fundamental. Theo-
dore Roosevelt advertiu que "o único meio seguro de levar este país à
ruína, de impedir de forma absoluta qualquer possibilidade de que ele
continue sendo uma nação, seria permitir que ele se tornasse um
emaranhado de nacionalidades em querelas" .8 Entretanto, nos anos 90,
os dirigentes dos Estados Unidos não só permitiram como promoveram
assiduamente a diversidade em vez da unidade do povo que governam.
Como vimos, os dirigentes de outros países tentaram algumas vezes
repudiar sua herança cultural e mudar a identidade de seu país de uma
civilização para outra. Eles não tiveram êxito em nenhum caso até hoje
e, em vez disso, criaram esquizofrênicos países divididos. De modo
análogo, os multiculturalistas norte-americanos rejeitam a herança cultu-
ral de seu país. Em vez de tentar identificar os Estados Unidos com outra
civilização, porém, eles desejam criar um país de muitas civilizações, o que
equivale a dizer um país que não pertence a nenhuma civilização e que
carece de um núcleo cultural. A História mostra que nenhum país
constituído desse modo pode manter por muito tempo uma sociedade
coerente. Uns Estados Unidos multicivilizacionais não serão os Estados
Unidos, e sim as Nações Unidas.
Os multiculturalistas também contestaram um elemento funda-
mental do Credo norte-americano, ao substituir os direitos dos indivíduos
pelos direitos dos grupos, definidos sobretudo em termos de raça, etnia,
sexo e preferência sexual. Na década de 40, Gunnar Myrdal disse,
reforçando os comentários de observadores estrangeiros recuando até
Hector St. John de Crevecoeur e Alexis de Tocqueville, que o Credo tinha
sido "o cimento na estrutura dessa grande e diversificada nação". Richard
Hofstader concordou, dizendo que "foi nosso destino como nação não
ter ideologias, mas ser uma ideologia" .9 O que acontecerá, então, aos
Estados Unidos se essa ideologia for repudiada por uma parcela signifi-
cativa de seus cidadãos? O destino da União Soviética, o outro grande
país cuja unidade, mais ainda do que a dos Estados Unidos, foi definida
em termos ideológicos, é um exemplo que deveria incutir sensatez nos
norte-americanos. O filósofo japonês Takeshi Umehara aventou que "o
completo fracasso do marxismo (. .. ) e o espetacular esfacelamento da
União Soviética são apenas os precursores do colapso do liberalismo
ocidental, a principal corrente da modernidade. Longe de ser a alternativa
do marxismo e a ideologia dominante no final da História, o liberalismo
º
será a próxima pedra de dominó a cair". 1 Numa era em que, por toda parte,
os povos se definem em termos culturais, que lugar haverá para uma
sociedade desprovida de um núcleo cultural e definida apenas por um credo
político? Os princípios políticos são uma base volúvel para que sobre ela se
construa uma comunidade duradoura. Num mundo multicivilizacional em
que a cultura faz diferença, os Estados Unidos poderiam simplesmente
ser o último remanescente de um mundo ocidental em que a ideologia
fazia diferença, e que se está apagando.
O repúdio do Credo e da civilização ocidental significa o fim dos
Estados Unidos como nós o conhecemos. Ele também significa de fato
o fim da civilização ocidental. Se os Estados Unidos forem desocidenta-
lizados, o Ocidente ficará reduzido à Europa e a alguns países ultrama-
rinos de colonização européia, de escassa população. Sem os Estados
Unidos, o Ocidente se toma uma parte minúscula e em declínio da
população mundial, numa península pequena e inconseqüente na extre-
midade da massa continental eurasiana.
O choque entre os multiculturalistas e os defensores da civilização
ocidental e do Credo norte-americano é, para usar a expressão de James
Kurth, "o choque verdadeiro" dentro do segmento norte-americano da
civilização ocidental. 11 Os norte-americanos não podem se esquivar da
pergunta: somos um povo ocidental ou somos alguma outra coisa? O
futuro dos Estados Unidos e o do Ocidente dependem de os norte-ame-
ricanos reafirmarem sua dedicação à civilização ocidental. Internamente,
isso implica rejeitar os divisivos cantos de sereia do multiculturalismo.
Internacionalmente, isso implica rejeitar os chamamentos enganosos e
ilusórios para identificar os Estados Unidos com a Ásia. Quaisquer que
sejam as conexões econômicas que possam existir entre eles, o hiato
cultural fundamental entre as sociedades asiática e norte-americana
impede que elas se unam num lar comum. Os norte-americanos cultu-
ralmente fazem parte da família ocidental. Os multiculturalistas podem
prejudicar e até destruir esse relacionamento, mas não podem substituí-
lo. Quando os norte-americanos buscam suas raízes culturais, eles as
encontram na Europa.
Em meados da década de 90, ocorreu um novo debate sobre a
natureza e o futuro do Ocidente, surgiu um reconhecimento renovado
de que tal realidade existia e aumentou a preocupação com o que poderia
assegurar a continuidade de sua existência. Em parte isso germinou da
percepção da necessidade de expandir a principal instituição ocidental,
a OTAN, para incluir os países ocidentais do Leste, e da séria divisão que
surgiu dentro do Ocidente sobre como responder ao esfacelamento da
Iugoslávia. Isso também refletiu, de modo mais amplo, a ansiedade sobre
a unidade futura do Ocidente na ausência de uma ameaça soviética
e, em especial, o que isso significava para o engajamento dos Estados
Unidos na Europa. À medida que os países ocidentais interagem cada
vez mais com sociedades não-ocidentais cada vez mais poderosas, eles
adquirem maior consciência do núcleo cultural ocidental em comum
que os mantém unidos. Líderes de ambos os lados do Atlântico
ressaltaram a necessidade de rejuvenescer a comunidade atlântica. No
final de 1994 e em 1995, os ministros da Defesa alemão e britânico,
os ministros do Exterior francês e norte-americano, Henry Kissinger e
diversas outras figuras destacadas esposaram todos essa causa. Sua
situação foi resumida pelo ministro da Defesa da Grã-Bretanha, Malcolm
Rifkind, que, em novembro de 1994, sustentou a necessidade de "uma
Comunidade Atlântica", apoiada em quatro pilares: defesa e segurança
corporificadas na OTAN, "crença compartilhada no império da lei e na
democracia parlamentar", "capitalismo liberal e livre comércio" e "a
herança cultural européia compartilhada que emanou da Grécia e de
Roma, passando pelo Renascimento, até os valores, crenças e civilização
compartilhados de nosso próprio século". 12 Em 1995, a Comissão Euro-
péia lançou um projeto para "renovar" o relacionamento transatlântico,
que levou à assinatura de um amplo pacto entre a União Européia e os
Estados Unidos. Simultaneamente, muitos líderes políticos e empresariais
europeus endossaram a criação de uma zona de livre comércio transa-
tlântica. Embora a AFL-CIO se opusesse ao NAFfA e a outras medidas
liberalizantes do comércio, seu dirigente apoiou calorosamente um
acordo transatlântico de livre comércio desse tipo, que não ameaçaria os
empregos norte-americanos com a competição vinda de países de baixos
salários. Ele também foi apoiado por conservadores europeus (Margaret
Thatcher) e norte-americanos (Newt Gingrich), assim como por líderes
canadenses e britânicos.
Como se argumentou no Capítulo 2, o Ocidente passou por uma
primeira fase européia de desenvolvimento e expansão que durou vários
séculos, e depois por uma segunda fase norte-americana no século XX.
Se a América do Norte e a Europa renovarem sua vida moral, ampliarem
seus aspectos culturais em comum e desenvolverem formas estreitas de
integração econômica e política para suplementar sua colaboração em
matéria de segurança na OTAN, elas poderiam gerar uma terceira fase
euramericana de afluência econômica e influência política ocidental. Uma
integração política significativa deteria de algum modo o declínio relativo
da quota do Ocidente na população, no produto econômico e na
capacidade militar do mundo, e revitalizaria o poderio do Ocidente aos
olhos das outras civilizações. O primeiro-ministro Mahatir advertiu os
asiáticos de que, "com seu poderio comercial, a confederação UE-NAFrA
poderia ditar suas condições para o resto do mundo".13 Entretanto o
Ocidente vir a se unir política e economicamente dependerá sobretudo
de os Estados Unidos reafirmarem sua identidade como uma nação
ocidental e definirem seu papel global como líder da civilização ocidental.
0 OCIDENTE E O MUNDO
Um mundo no qual as identidades culturais - étnicas, nacionais,
religiosas, civilizacionais - são fundamentais e as afinidades e diferenças
culturais moldam as alianças, os antagonismos e as políticas dos Estados
tem três implicações amplas para o Ocidente em geral e os Estados
Unidos em particular.
Em primeiro lugar, os estadistas só podem alterar a realidade de
modo construtivo se a reconhecerem e a compreenderem. A política de
cultura que está surgindo, o crescente poderio das civilizações não-oci-
dentais e a atitude cada vez mais afirmativa dessas sociedades em termos
de sua cultura indicam as forças culturais que estão fazendo os povos se
~Q?
juntarem e as que os estão separando. As elites norte-americanas,
contudo, têm demorado a aceitar essas realidades que estão emergin-
do e a lidar com elas. Os governos Bush e Clinton deram apoio à unidade
da União Soviética, da Iugoslávia, da Bósnia e da Rússia multicivilizacio-
nais, em vãs tentativas de deter as poderosas forças étnicas e culturais
que impeliam para a desunião. Eles promoveram planos de integração
econômica multicivilizacional que ou são inócuos, como a APEC, ou que
envolvem grandes custos econômicos e políticos imprevistos, como
aconteceu com o NAFrA e o México. Eles tentaram desenvolver íntimas
relações com os Estados-núcleos de outras civilizações sob a forma de
uma "parceria global". com a Rússia ou um "engajamento construtivo"
com a China, desafiando os naturais conflitos de interesses entre os
Estados Unidos e esses países. Ao mesmo tempo, o governo Clinton
deixou de incluir a Rússia de forma plena na busca pela paz na Bósnia,
apesar dos grandes interesses da Rússia nessa guerra na sua condição de
Estado-núcleo da Ortodoxia. Perseguindo a quimera de um país multici-
vilizacional, o governo Clinton negou a autodeterminação às minorias
sérvia e croata e ajudou a que se formasse nos Bálcãs um parceiro do
Irã, com um sistema de partido único fundamentalista islâmico. De modo
semelhante, o governo norte-americano também apoiou a sujeição de
muçulmanos à autoridade ortodoxa, sustentando que "é fora de questão
que a Chechênia faz parte da Federação Russa".14
Embora os europeus reconheçam de forma universal a importância
fundamental da linha divisória entre a Cristandade Ocidental, de um lado,
e a Ortodoxia e o Islã, do outro, os Estados Unidos, como disse seu
secretário de Estado, "não reconheceriam a existência de qualquer
divisória fundamental entre as partes católica, ortodoxa e islâmica da
Europa". Entretanto, aqueles que não reconhecem divisórias funda-
mentais estão fadados a serem frustrados por elas. O governo Clinton
pareceu inicialmente não dar importância às mudanças na balança de
poder entre os Estados Unidos e as sociedades da Ásia Oriental e, em
conseqüência, repetidas vezes proclamou objetivos relativos a comércio
exterior, direitos humanos, proliferação nuclear e outras questões que
foi incapaz de concretizar. De modo geral, o governo norte-americano
vem tendo extraordinária dificuldade para se adaptar a uma era na qual
a política mundial é moldada pelas marés culturais e civilizacionais.
Em segundo lugar, o pensamento norte-americano sobre política
externa também padeceu de uma relutância em abandonar, alterar ou,
às vezes, até mesmo reconsiderar diretrizes adotadas para atender a
~
necessidades da Guerra Fria. Em alguns casos, isso assumiu a forma de
ainda enxergar uma União Soviética ressurrecta como uma ameaça em
potencial. De maneira mais generalizada, as pessoas tendiam a endeusar
1
as alianças e os acordos de controle de armamentos da Guerra Fria. A
OTAN precisa ser mantida tal como era na Guerra Fria. O Tratado de
Segurança Japão-Estados Unidos é fundamental para a segurança da Ásia
Oriental. O tratado ABM é intocável. O tratado CFE precisa ser respeitado.
Evidentemente, nenhuma dessas ou outras heranças da Guerra Fria
deveria ser impensadamente descartada. Nem, tampouco, será neces-
sariamente do interesse dos Estados Unidos ou do Ocidente que eles
continuem sob a forma que tinham durante a Guerra Fria. As realidades
de um mundo multicivilizacional sugeririam que a OTAN deveria ser
expandida a fim de incluir outras sociedades ocidentais que desejem
integrar-se a ela, e deveria reconhecer a falta absoluta de sentido em ter
como membros dois países que são os piores inimigos um do outro e
que carecem, ambos, de afinidade cultural com outros membros. Um
tratado ABM destinado a atender à necessidade, durante a Guerra Fria,
de assegurar a vulnerabilidade recíproca das sociedades soviética e
norte-americana, e assim evitar uma guerra nuclear soviético-norte-ame-
ricana, bem pode criar obstáculos para a capacidade dos Estados Unidos
e de outras sociedades de se protegerem contra as imprevisíveis ameaças
ou ataques nucleares por movimentos terroristas e ditadores irracionais.
O tratado de segurança Japão-Estados Unidos ajudava a dissuadir uma
agressão soviética contra o Japão. Qual se supõe que seja sua finalidade
na era pós-Guerra Fria? Conter e dissuadir a China? Retardar uma
acomodação japonesa com uma China em ascensão? Impedir uma maior
militarização japonesa? No Japão, estão sendo suscitadas dúvidas cada
vez maiores quanto à presença militar norte-americana naquele país e,
nos Estados Unidos, quanto à necessidade de um compromisso sem
reciprocidade de defender o Japão. O acordo sobre Forças Convencionais
na Europa (CFE) se destinava a moderar a confrontação OTAN-Pacto de
Varsóvia na Europa Central, que desapareceu por completo. O principal
impacto do acordo agora é o de criar dificuldades para a Rússia para lidar
com o que ela percebe como ameaças de segurança provenientes dos
povos muçulmanos ao sul.
Em terceiro lugar, a diversidade cultural e civilizacional contesta a
crença ocidental - e particularmente norte-americana - da relevância
universal da cultura ocid~ntal. Essa crença é expressada de maneira tanto
descritiva como normativa. De modo descritivo, ela sustenta que as
394
pessoas em todas as sociedades querem adotar os valores, as i~stituições
e as práticas ocidentais. Caso pareçam não ter esse deseJO e estar
dedicadas a suas próprias culturas tradicionais, elas estão sendo vítimas
1
de uma "percepção falsa" comparável àquela que os marxistas encontra-
ram entre proletários que apoiavam o capitalismo. De modo normativo,
a crença universalista ocidental sustenta que as pessoas em todo o mundo
deveriam abraçar os valores, as instituições e a cultura ocidentais porque
elas encarnam a mais elevada, mais esclarecida, mais liberal, mais
racional, mais moderna e mais civilizada forma de pensamento humano.
No mundo que está surgindo de conflitos étnicos e choques
civilizacionais, a crença ocidental na universalidade da cultura ocidental
padece de três problemas: ela é falsa, ela é imoral e ela é perigosa. Que
ela é falsa constituiu a tese central deste livro, tese bem resumida por
Michael Howard: "( .. .) a pressuposição comum ocidental de que a
diversidade cultural é uma curiosidade histórica que está sendo rapida-
mente erodida pelo crescimento de uma cultura mundial comum,
orientada para o Ocidente e anglófona, que está moldando nossos valores
básicos(. .. ) simplesmente não corresponde à verdade." 15 Um leitor que,
a esta altura, ainda não esteja convencido do acerto da observação de
Sir Michael está vivendo num mundo muito afastado do que é descrito
neste livro.
A crença de que os povos não-ocidentais deveriam adotar os
valores, as instituições e a cultura ocidentais é imoral devido ao que seria
necessário fazer para que isso pudesse acontecer. O alcance quase
universal do poderio europeu no final do século XIX e o predomínio
global dos Estados Unidos no final do século XX espalharam muito da
civilização ocidental pelo mundo afora. Entretanto o globalismo europeu
não existe mais. A hegemonia norte-americana está retrocedendo, quanto
mais não seja porque ela não é mais necessária para proteger os Estados
Unidos contra uma ameaça militar soviética no estilo da Guerra Fria. Como
sustentamos, a cultura acompanha o poder. As sociedades não-ocidentais
só poderiam ser uma vez mais moldadas pela cultura ocidental como
resultado da expansão, do desdobramento e do impacto do poderio
ocidental. O imperialismo é a conseqüência lógica necessária do universa-
lismo. Além disso, na condição de uma civilização madura, o Ocidente não
mais dispõe do dinamismo econômico ou demográfico exigido para impor
sua vontade a outras sociedades, e qualquer esforço nesse sentido também
é contrário aos valores ocidentais de autodeterminação e democracia. À
medida que as civilizações asiática e muçulmana começam cada vez mais a
afinnar a relevância universal de suas respectivas culturas, os ocidentais
irão dar cada vez mais valor à vinculação entre universalismo e imperia-
lismo.
1
O universalismo ocidental é perigoso para o mundo porque ele
poderia levar a uma grande guerra intercivilizacional entre Estados-nú
cleos, e é perigoso para o Ocidente porque poderia levar à derrota de·
Ocidente. Com o colapso da União Soviética, os ocidentais vêem sua
civilização numa posição de predomínio sem precedente, enquanto, ac.
mesmo tempo, as sociedades asiática, muçulmana e outras, mais fracas
estão começando a ganhar força. Por conseguinte, eles poderiam ser levado.e
a aplicar a conhecida e poderosa lógica de Brutus:
~Q7
europeus a fim de proteger e promover os interesses e valores da singular
civilização de que compartilham.
398
sofrida em 1979, invadem o Vietnã. Os vietnamitas pedem a ajuda
norte-americana. Os chineses advertem os Estados Unidos para que não
se metam. O Japão e outras nações da Ásia ficam temerosamente
indecisos. Os Estados Unidos dizem que não podem aceitar a conquista
do Vietnã pela China, advogam sanções econômicas contra a China e
enviam uma das poucas forças-tarefas de porta-aviões que lhes restam
para o Mar do Sul da China. Os chineses qualificam esse ato como uma
violação das águas territoriais chinesas e lançam ataques aéreos contra a
força-tarefa. Os esforços do secretário-geral das Nações Unidas e do
primeiro-ministro japonês para negociar um cessar-fogo fracassam, e a
luta se espalha para outras partes da Ásia Oriental. O Japão proíbe o uso
das bases norte-americanas nesse país para ações contra a China, os
Estados Unidos resolvem ignorar essa proibição e o Japão anuncia sua
neutralidade e impõe uma quarentena às bases. Submarinos e aviões
baseados em terra chineses, operando de Taiwan e da parte continental,
infligem graves danos a navios e instalações norte-americanos na Ásia
Oriental. Enquanto isso, forças terrestres chinesas entram em Hanói e
ocupam grandes áreas do Vietnã.
Como tanto a China quanto os Estados Unidos possuem mísseis
capazes de transportar ogivas nucleares até o território um do outro, dá-se
um impasse tácito e essas armas não são usadas nas fases iniciais da
guerra. Entretanto, em ambas as sociedades existe o receio de tais
ataques, que é especialmente intenso nos Estados Unidos. Isso leva
muitos norte-americanos a começar a se perguntar por que estão sendo
submetidos a esse perigo. Que diferença faz se a China controlar o Mar
do Sul da China, o Vietnã ou todo o Sudeste Asiático? A oposição à guerra
é especialmente vigorosa nos estados do sudoeste dos Estados Unidos,
dominados pelos hispânicos; e suas populações e governos dizem que
"essa guerra não é nossa" e tentam ficar de fora segundo o modelo da
Nova Inglaterra na guerra de 1812. Depois que os chineses consolidam
suas vitórias iniciais na Ásia Oriental, a opinião pública norte-americana
começa a se mover na direção que o Japão esperou que ela escolhesse
em 1942: os custos para derrotar essa mais recente afirmação de poder
hegemônico são demasiado elevados; vamos nos contentar com uma
solução negociada para os combates esporádicos ou "guerra de mentiri-
nha" que está atualmente ocorrendo no Pacífico Ocidental.
Nesse meio tempo, porém, a guerra está tendo um impacto sobre
os principais Estados de outras civilizações. A Índia aproveita a oportu-
nidade de a China estar engajada na Ásia Oriental para desfechar um ataque
devastador contra o Paquistão, visando a degradar inteiramente a capa-
cidade militar nuclear e convencional desse país. Ela tem êxito inicial-
mente, mas a aliança militar entre Paquistão, Irã e China é posta em
funcionamento, e o Irã vem em auxílio do Paquistão com forças armadas
modernas e sofisticadas. A Índia fica atolada lutando contra tropas
iranianas e guerrilhas paquistanesas formadas de vários grupos étnicos
diferentes. Tanto o Paquistão como a Índia apelam aos países árabes
por apoio - a Índia advertindo sobre o perigo da dominação do
Sudoeste Asiático pelo Irã - , porém os êxitos iniciais da China contra
os Estados Unidos estimularam grandes movimentos antiocidentais nas
sociedades muçulmanas. Um a um, os poucos governos pró-ocidentais
que restavam em países árabes e na Turquia são derrubados por
movimentos fundamentalistas islâmicos impulsionados pelas últimas
coortes do bolsão de jovens muçulmanos. O surto de antiocidentalismo
provocado pela fraqueza ocidental leva a um ataque maciço dos árabes
contra Israel, que a Sexta Esquadra norte-americana, muito reduzida, não
é capaz de deter.
A China e os Estados Unidos tentam congregar apoio de outros
Estados-chave. À medida que a China consegue êxitos militares, o Japão
começa nervosamente a se atrelar à China, alterando sua posição de
neutralidade formal para uma neutralidade positiva pró-chinesa, e,
depois, cedendo às solicitações da China e se tornando um co-beligeran-
te, manda suas forças ocuparem as remanescentes bases norte-america-
nas no Japão, enquanto os Estados Unidos retiram suas tropas apres-
sadamente. Os Estados Unidos declaram um bloqueio do Japão, e
belonaves norte-americanas e japonesas se engajam em duelos es-
porádicos no Pacífico Ocidental. No começo da guerra, a China propôs
um pacto de segurança mútua à Rússia (lembrando vagamente o pacto
Hitler-Stalin). Os êxitos chineses, porém, têm sobre a Rússia o efeito
diametralmente oposto ao que tiveram sobre o Japão. A perspectiva da
vitória chinesa e de uma completa dominação chinesa na Ásia Oriental
aterroriza Moscou. À medida que a Rússia se move numa direção
antichinesa e começa a reforçar suas tropas na Sibéria, os numerosos
colonos chineses na Sibéria interferem com essa movimentação. A China
então intervém militarmente para proteger seus cidadãos e ocupa
Vladivostok, o vale do Rio Amur e outras áreas-chave da Sibéria Oriental.
Enquanto os combates se espalham entre tropas russas e chinesas na
Sibéria Central, ocorrem levantes na Mongólia, que a China havia
anteriormente colocado numa condição de "protetorado".
400
O controle do petróleo e o acesso a ele é de importância fun-
damental parà todos os combatentes. Apesar de seus enormes inves-
timentos em energia nuclear, o Japão ainda é altamente dependente das
importações de petróleo, e isso reforça sua inclinação a se acomodar com
a China e garantir o fluxo de petróleo do Golfo Pérsico, da Indonésia e
do Mar do Sul da China. Durante o curso da guerra, quando os países
árabes passam a ficar sob o controle dos militantes fundamentalistas
islâmicos, os suprimentos de petróleo do Golfo Pérsico para o Ocidente
se reduzem a um filete e, conseqüentemente, o Ocidente fica cada vez
mais dependente das fontes russas, do Cáucaso e da Ásia Central. Isso
leva o Ocidente a intensificar seus esforços para ter a Rússia do seu lado
e para apoiar a extensão pela Rússia de seu controle sobre os países
muçulmanos ao sul, ricos em petróleo.
Enquanto isso, os Estados Unidos estiveram ansiosamente tentando
mobilizar o pleno apoio de seus aliados europeus. Embora dêem
assistência econômica e diplomática, eles se mostram relutantes em se
envolver militarmente. Contudo, a China e o Irã receiam que os países
ocidentais acabem por se congregar do lado dos Estados Unidos, do
mesmo modo como os Estados Unidos foram em apoio da Grã-Bretanha
e da França em duas guerras mundiais. A fim de impedir que isso
aconteça, eles transferem secretamente mísseis de alcance médio, com
capacidade de portar ogivas nucleares, para a Bósnia e para a Argélia, e
advertem as potências européias para que se mantenham fora da guerra.
Como quase sempre se deu com as tentativas chinesas de intimidar outros
países, exceto o Japão, essa ação tem conseqüências exatamente opostas
ao que desejava a China. Os serviços de inteligência norte-americanos
detectam o desdobramento dos mísseis e informam ao Conselho da
OTAN, que declara que os mesmos têm que ser retirados imediatamente.
Entretanto, antes que a OTAN possa agir, a Sérvia, desejando retomar
seu papel histórico de defensora do Cristianismo contra os turcos, invade
a Bósnia. A Croácia se junta a ela e os dois países ocupam e partilham a
Bósnia, capturam os mísseis e passam a se empenhar por completar
a limpeza étnica que tinham sido obrigadas a sustar nos anos 90. A
Albânia e a Turquia tentam ajudar os bósnios, a Grécia e a Bulgária
lançam invasões da Turquia européia e o pânico irrompe em Istambul
quando os turcos fogem para o outro lado do Bósforo. Nesse ínterim,
um míssil com uma ogiva nuclear, lançado da Argélia, explode nos
arredores de Marselha, e a OTAN retalia com ataques aéreos devastadores
contra alvos no Norte da África.
401
Os Estados Unidos, a Europa, a Rússia e a índia ficaram assim
engajados numa luta verdadeiramente global contra a China, o Japão
e a maior parte do Islã. Como iria terminar uma guerra assim? Os dois
lados possuem grande capacidade nuclear e, evidentemente, se ela
fosse empregada além de um nível mínimo, os principais países de
ambos os lados poderiam sofrer uma destruição substancial. Se a
dissuasão mútua funcionasse, a exaustão mútua poderia levar a um
armistício negociado, o qual, entretanto, não resolveria a questão
fundamental da hegemonia chinesa na Ásia Oriental. Alternativamente,
o Ocidente poderia tentar derrotar a China com o emprego do poder
militar convencional. O alinhamento do Japão com a China, porém,
deu a esta a proteção de um cordão sanitário insular, que impediria
os Estados Unidos de empregar seu poder naval contra os centros
populacionais e industriais chineses ao longo do litoral. A alternativa
é avançar sobre a China do Oeste. A luta entre a Rússia e a China leva
a OTAN a acolher a Rússia como membro da organização e a cooperar
com ela para conter as incursões chinesas na Sibéria, mantendo o
controle russo sobre o petróleo e o gás dos países muçulmanos da
Ásia Central, promovendo insurreições contra o regime chinês por
parte de tibetanos, uigures e mongóis, e gradualmente mobilizando e
desdobrando forças ocidentais e russas rumo ao Leste na Sibéria, para o
ataque final através da Grande Muralha até Pequim, a Manchúria e o
coração da terra han.
Qualquer que fosse o desenlace final dessa guerra civilizacional
global - devastação nuclear mútua, cessação negociada como resultado
da exaustão mútua ou eventual marcha das forças russas e ocidentais até
a Praça de Tiananmen - , o resultado mais amplo a longo prazo seria
quase inevitavelmente o drástico declínio do poderio econômico, demo-
gráfico e militar de todos os principais participantes da guerra. Em
conseqüência, o poder global que havia, ao longo dos séculos, se
deslocado do Leste para o Oeste, e depois tinha começado a se deslocar
de volta do Oeste para o Leste, iria agora se deslocar do Norte para o
Sul. As grandes beneficiárias da guerra das civilizações são aquelas
civilizações que se abstiveram de entrar nela. Com o Ocidente, a Rússia,
a China e o Japão devastados, em graus diferentes, o caminho está aberto
para a Índia, se ela tivesse escapado a essa devastação, embora tivesse
sido um dos participantes, para tentar reformular o mundo segundo
linhas hindus. Grandes segmentos do povo norte-americano culpariam
pelo extremo enfraquecimento dos Estados Unidos a míope orientação
Áf"\')
ocidental das elites W ASP, e os líderes hispânicos chegariam ao poder
apoiados por promessas de uma ampla ajuda do tipo Plano Marshall dos
prósperos países latino-americanos, que ficaram postados à margem da
guerra. A África, por outro lado, tem pouco a oferecer para a reconstrução
da Europa e, em vez disso, despeja hordas de pessoas mobilizadas
socialmente para pilhar o que restou. Na Ásia, se a China, o Japão e a
Coréia estão devastados pela guerra, o poder também se desloca para o
Sul, com a Indonésia, que se mantivera neutra, se tornando o país
dominante e, sob a orientação de assessores australianos, atuando para
conduzir o curso dos acontecimentos da Nova Zelândia, a leste, até
Myanmar e Sri Lanka, a oeste, e o Vietnã, ao norte. Tudo isso pressagia
um futuro conflito com a Índia e uma revitalizada China. De qualquer
modo, o centro da política mundial se move para o Sul.
Caso esse cenário pareça ao leitor uma fantasia alucinadamente
nada plausível, tanto melhor. Esperemos que nenhum outro cenário de
guerra civilizacional global tenha plausibilidade maior. Contudo, o que
esse cenário tem de mais plausível e, portanto, de mais inquietante, é a
causa da guerra: intervenção pelo Estado-núcleo de uma civilização (Es-
tados Unidos) numa disputa entre o Estado-núcleo de outra civilização
(China) e um Estado-membro dessa civilização (Vietnã). Para os Estados
Unidos, uma intervenção assim teria sido necessária para manter o respeito
ao Direito Internacional, repelir uma agressão, proteger a liberdade dos
mares, manter seu acesso ao petróleo do Mar do Sul da China e impedir a
dominação da Ásia Oriental por uma única potência. Para a China, essa
intervenção teria sido uma tentativa totalmente intolerável, mas tipicamente
arrogante, do principal Estado ocidental para humilhar e intimidar a China,
provocar oposição à China dentro de sua legítima esfera de influência e
negar à China o papel a que tem direito nos assuntos mundiais.
Em resumo, na era que se aproxima, para se evitarem grandes
guerras intercivilizacionais, será preciso que os Estados-núcleos se abs-
tenham de intervir em conflitos no interior de outras civilizações. Esta é
uma verdade que muitos países, especialmente os Estados Unidos, terão
sem dúvida dificuldade para aceitar. Essa regra de abstenção, que
determina que os Estados-núcleos se absterão de intervir em conflitos
em outras civilizações, é o primeiro requisito da paz num mundo
multicivilizacional e multipolar. O segundo requisito é o da regra de
mediação conjunta, pela qual os Estados-núcleos negociarão entre si
para conter ou fazer cessar guerras de linha de fratura entre Estados ou
grupos de suas próprias civilizações.
A aceitação dessas regras e de um mundo com mais igualdade entre
as civilizações não será fácil para o Ocidente ou para aquelas civilizações
que podem estar visando a suplementar ou suplantar o Ocidente em seu
papel dominante. Em tal mundo, por exemplo, os Estados-núcleos bem
podem considerar prerrogativa sua possuir armas nucleares e negá-las a
outros membros da sua civilização. Fazendo uma retrospectiva de seus
esforços para dotar o Paquistão de "plena capacidade nuclear", Zulfikar
Ali Bhutto os justificou da seguinte maneira: "Sabemos que Israel e a
África do Sul têm plena capacidade nuclear. Só a civilização islâmica
não a tinha, mas essa situação estava prestes a mudar." 18 A competição
pela liderança dentro das civilizações que carecem de um único
Estado-núcleo pode também estimular a competição por armas nuclea-
res. Embora tenha um relacionamento altamente cooperativo com o
Paquistão, o Irã nitidamente considera que necessita de armas nucleares
tanto quanto o Paquistão. Por outro lado, o Brasil e a Argentina
abandonaram seus programas nessa direção, e a África do Sul destruiu suas
armas nucleares, embora ela bem possa desejar voltar a tê-las se a Nigéria
começar a desenvolver capacidade desse tipo. Como Scott Sagan e outros
assinalaram, conquanto a proliferação nuclear obviamente acarrete riscos,
um mundo no qual um ou dois Estados-núcleos em cada civilização
principal tivessem armas nucleares e nenhum outro Estado as tivesse seria
um mundo razoavelmente estável.
A maioria das instituições internacionais data de pouco depois da
II Guerra Mundial e sua conformação obedeceu aos interesses, valores
e práticas ocidentais. À medida que o poderio ocidental se reduzir em
relação ao de outras civilizações, se desenvolverão pressões para a
reformulação dessas instituições a fim de que atendam também os
interesses dessas civilizações. A questão mais óbvia, mais importante e
provavelmente mais controvertida se refere à posição de membro
permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Essa posição
pertence às principais potências vitoriosas na II Guerra Mundial e guarda
cada vez menos relação com a realidade do poder no mundo. A mais
longo prazo, ou se introduzem modificações na participação atual ou
outros procedimentos menos formais provavelmente se desenvolverão
para lidar com questões de segurança, do mesmo modo como as reuniões
do G-7 têm tratado de questões econômicas mundiais. Num mundo
multicivilizacional, o ideal seria que cada civilização principal tivesse pelo
menos um assento permanente no Conselho de Segurança. Atualmente
apenas três têm. Os Estados Unidos endossaram a participação japonesa
e alemã, mas está claro que eles serão membros permanentes apenas se
outros países também passarem a sê-lo. O Brasil sugeriu cinco novos
membros permanentes, ainda que sem poder de veto - Alemanha,
Japão, Índia, Nigéria e ele próprio. Isso, porém, deixaria sem repre-
sentação um bilhão de muçulmanos do mundo, salvo na medida em que
a Nigéria pudesse assumir essa responsabilidade. Do ponto de vista
civilizacional, é claro que o Japão e a Índia deveriam ser membros
permanentes, e a África, a América Latina e o mundo islâmico deveriam
ter assentos permanentes, que poderiam ser ocupados numa base
rotativa pelos principais Estados dessas civilizações, com as seleções
sendo feitas pela Organização da Conferência Islâmica, pela Organi-
zação da Unidade Africana e pela Organização dos Estados Americanos
(com os Estados Unidos se abstendo). Seria também apropriado que se
consolidassem os lugares da Grã-Bretanha e da França num único
assento da União Européia, cujo ocupante rotativo seria selecionado
pela União. Dessa maneira, sete civilizações teriam cada uma um
assento permanente e o Ocidente teria dois, numa distribuição de forma
amplamente representativa da distribuição das pessoas, da riqueza e do
poder no mundo.
407
prioridade mais baixa, poucos ocidentais rejeitariam esses valores como
desprezíveis. Pelo menos num nível básico de moralidade "delgada", há
alguns aspectos em comum entre a Ásia e o Ocidente. Além disso, como
muitos assinalaram, qualquer que fosse o grau em que dividiam a
Humanidade, as principais religiões do mundo - Cristianismo Ocidental,
Ortodoxia, Hinduísmo, Budismo, Islamismo, Confucionismo, Taoísmo,
Judaísmo - também compartilhavam de valores-chaves comuns. Se os
seres humanos irão algum dia desenvolver uma civilização universal, ela
surgirá gradualmente através da exploração e da expansão desses
aspectos em comum. Assim sendo, além da regra de abstenção e da regra
de mediação conjunta, uma terceira regra para a paz num mundo
multicivilizacional é a regra dos aspectos em comum: os povos de todas
as civilizações deveriam buscar e tentar expandir os valores, instituições
e práticas que têm em comum com os povos de outras civilizações.
Esse esforço contribuiria não só para limitar o choque das civiliza-
ções, mas também para reforçar a Civilização no singular (daqui por
diante com maiúscula para fins de clareza). A Civilização no singular
supostamente se refere a uma mescla complexa de níveis superiores de
moralidade, religião, conhecimento, arte, filosofia, tecnologia, bem-estar
material e provavelmente outras coisas mais. Tudo isso não varia
necessariamente em conjunto. No entanto, os estudiosos identificam
pontos altos e pontos baixos no nível de C~vilização nas histórias das
\
civilizações. A questão então é: como se podem traçar os altos e baixos do
desenvolvimento da Civilização pela Humanidade? Existirá uma tendência
geral, secular, que transcende as civilizações individuais, rumo a níveis mais
elevados de Civilização? Se existe tal tendência, será ela fruto dos processos
de modernização que aumentam o controle dos seres humanos sobre
seu meio ambiente e daí geram níveis cada vez mais altos de sofisticação
tecnológica e de bem-estar material? Na era contemporânea, será assim
um nível mais alto de modernidade um pré-requisito para um nível mais
alto de Civilização? Ou será que o nível de Civilização varia precipua-
mente dentro da história das civilizações individuais?
Essa questão é uma outra manifestação do debate sobre a natureza
linear ou cíclica da História. Supostamente, a modernização e o desen-
volvimento moral humano produzidos por melhor educação, percepção
e compreensão da sociedade humana e de seu meio ambiente natural
geram um movimento continuado rumo a níveis cada vez mais elevados
de Civilização. Alternativamente, os níveis de Civilização podem simples-
mente refletir fases da evolução das civilizações. Quando as civilizações
começam a surgir, sua gente geralmente é vigorosa, dinâmica, brutal,
móvel e expansionista. Ela é relativamente não-Civilizada. À medida que
a civilização evolui, ela fica mais assentada e desenvolve técnicas e
habilidades que a tornam mais Civilizada. À medida que a competição
entre seus elementos constituintes se esvai e surge um Estado universal,
a civilização atinge seu mais alto nível de Civilização, sua "idade de ouro",
com um desabrochar de moralidade, arte, literatura, filosofia, tecnologia
e competência marcial, econômica e política. À medida que ela entra em
decadência como civilização, seu nível de Civilização também declina,
até que desaparece sob o ataque de uma civilização diferente e impe-
tuosa, com um nível mais baixo de Civilização.
De modo geral, a modernização melhorou o nível material de
Civilização em todo o mundo. Mas será que ela também melhorou as
dimensões moral e cultural de Civilização? Isso parece ser verdade em
alguns aspectos. Escravidão, tortura, abuso cruel das pessoas ficaram
cada vez menos aceitáveis no mundo contemporâneo. Entretanto, será
isso apenas o resultado do impacto da civilização ocidental sobre outras
culturas e, portanto, irá ocorrer uma inversão moral à medida que decline
o poderio ocidental? Na década de 90, há muitos indícios da relevância
do paradigma do "puro caos" dos assuntos mundiais: uma quebra no
mundo inteiro da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente
em muitas partes do mundo, uma onda global de criminalidade, máfias
transnacionais e cartéis de drogas, crescente número de viciados em
drogas em muitas sociedades, um debilitamento generalizado da família,
um declínio na confiança e na solidariedade social em muitos países,
violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver predominam
em grande parte do mundo. Numa cidade atrás da outra - )\foscou, Rio
de Janeiro, Bangcoc, Xangai, Londres, Roma, Varsóvia, Tóquio, Johan-
nesburgo, Délhi, Karachi, Cairo, Bogotá, Washington-, a criminalidade
parece estar subindo vertiginosamente, e os elementos básicos da
Civilização estão-se esvanecendo. Fala-se de uma crise global de gover-
nabilidade. A ascensão das corporações transnacionais que produzem
bens econômicos está cada vez mais sendo igualada pela ascensão de
máfias criminosas transnacionais, cartéis de drogas e gangues terroristas
que estão atacando violentamente a Civilização. A lei e a ordem são o
primeiro pré-requisito da Civilização e em grande parte do mundo - na
África, na América Latina, na antiga União Soviética, na Ásia Meridional,
no Oriente Médio - elas parecem estar evaporando, estando sob séria
ameaça na China, no Japão e no Ocidente. Numa base mundial, a
40Q
Civilização parece, em muitos aspectos, estar cedendo diante da barbárie,
gerando a imagem de um fenômeno sem precedente, uma Idade das
Trevas mundial, que se abate sobre a Humanidade.
Na década de 50, Lester Pearson advertiu que os seres humanos
estavam entrando "numa era em que as diferentes civilizações terão que
aprender a viver lado a lado num intercâmbio pacífico, aprendendo umas
com as outras, estudando a história e os ideais e a arte e cultura umas
das outras, enriquecendo-se mutuamente com as vidas umas das outras.
A alternativa, nesse pequeno mundo superpovoado, é a incompreensão,
a tensão, o choque e a catástrofe." 22 O futuro da paz e o futuro da
Civilização dependem da compreensão e da cooperação entre os líderes
políticos, espirituais e intelectuais das principais civilizações do mundo.
No choque das civilizações, a Europa e os Estados Unidos se juntarão
ou serão destruídos separadamente. No choque maior, o "choque
verdadeiro'', global, entre a Civilização e a barbárie, as grandes civiliza-
ções do mundo, com suas ricas realizações em religião, arte, literatura,
filosofia, ciência, tecnologia, moralidade e compaixão, também se junta-
rão ou serão destruídas separadamente. Na era que está emergindo, os
choques das civilizações são a maior ameaça à paz mundial, e uma ordem
internacional baseada nas civilizações é a melhor salvaguarda contra a
guerra mundial. '
/.1 /'\
NOTAS
Capítulo 1
1. Henry A. Kissinger, Diplomacy (Nova York: Simon & Schuster, 1994), pp. 23-24.
2. Expressão de H. D. S. Greenway, Boston Globe, 03/12/92, p. 19.
3. Václav Havei, "The New Measure of Man", New York Times, 08/07/94, p. A27; Jacques
Delors, "Questions Conceming European Security", Palestra, Instituto Internacional para
Estudos Estratégicos, Bruxelas, 10/09/93, p. 2.
4. Thomas S. Kühn, 11.Je Structure o/ Scíentific Revolutions (Chicago, University of Chicago
Press, 1962), pp. 17-18.
5. John Lewis Gaddis, "Toward the Post-Cold War World", Foreign Ajfairs, 70 (primavera de
1991), 101; Judith Goldstein e Roben O. Keohane, "ldeas and Foreign Policy: An Analytical
Framework", em Ideas and Foreign Policy: Belieft, Institutions and Political Change, org.
Goldstein e Keohane Othaca: Comell University Press, 1993), pp. 8-17.
6. Francis Fukuyama, "The End of History", 11.Je National lnterest, 16 (verão de 1989), 4, 18.
7. "Mensagem ao Congresso Informando sobre a Conferência de !alta", 01/03/45, em Public
PapersandAddressesofFranklinD. Roosevelt, org. Samuel!. Rosenman (Nova York: Russell
& Russell, 1969), XIII, 586.
8. Ver Marx Singer e Aaron Wildavsky, 11.Je Real World Order: Zones ofPeace, Zones ofTurmoil
(Chatham, Nova Jersey: Chatham House, 1993); Roben O. Keohane e Joseph S. Nye,
"Introduction: The End of the Cold War in Europe", em A/ter the Cold War. International
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9. Ver F. S. C. Nonhrop, 11.Je Meeting of East and West: An Inquiry Concerning World
Understanding (Nova York, Macmillan, 1946).
10. Edward W. Said, Orientalism (Nova York: Pantheon Books, 1978), pp. 43-44.
11. Ver Kenneth N. Waltz, "The Emerging Structure of Intemational Politics", 18 (outono de
1993), 44-79; John]. Mearsheimer, "Back to the Future: Instability in Europc after the Cold
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12. Stephen D. Krasner questiona a imponãncia de Westfália como ponto divisor. Ver seu
"Westphalia and Ali That", em Ideas and Foreign Policy, org. Goldstein e Keohane, pp.
235-264.
13. Zbigniew Brzezinski, Out of Contrai: Global Turmoil on tbe Eve of tbe Twenty-jirst Century
(Nova York: Scribner, 1993); Daniel Patrick Moynihian, Pandaemonium: Etbnicity in Inter-
national Politics (Oxford: Oxford University Press, 1993); ver tb. Roben Kaplan, "The Coming
Anarchy", Atlantic Monthly, 273 (fev./44), 44-76.
14. Ver New York Times, 07/02/93, pp. 1, 14; e Gabriel Schoenfeld, "Outer Limits", Post-Soviet
Prospects, 17 (jan./93), 3, citando dados do Ministério da Defesa russo.
15. Ver Gaddis, "Toward the Post-Cold War World"; Benjamin R. Barber, 'Jihad vs. McWorld";
Atlantic Monthly, 269 (mar./92), 53-63, e]ibadvsMcWorld(Nova York: Times Books, 1995);
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411
in Transition: Political, Economic and Security Prospects for the 1990s, org. ]. ]. Lee e
Walter Korter (LBJ Schoc! of Public Affairs, University of Texas em Austin, mar./90),
pp. 19-27.
16. John]. Mearsheimer, "The Case for a Nuclear Deterrent", Foreign A.ffairs, 72 (verão de
1993), pp. 82-83.
17. :bester B. Pearson, Democracy in World Politics (Princeton: Princeton University Press,
1955), pp. 82-83.
18. De maneira completamente independente, Johan Galtung desenvolveu uma análise que
segue de perto um rumo paralelo à minha no que se refere à relevância para a política
mundial das sete ou oito civilizações principais e seus Estados-núcleos. Ver seu "The
Emerging Conflict Formations", em Restructuringfor World Peace: Ón the 1bresbold of the
Twenty-First Century, org. Katharine e Majid Tehranian (Cresskill, Nova Jersey: Hampton
Press, 1992), pp. 23-24. Galtung vê sete agrupamentos regionais emergindo, dominados
por países hegemônicos: os Estados Unidos, a Comunidade [União) Européia, o Japão, a
China, a Rússia, a Índia e um "núcleo islâmico". Dentre outros autores que, no início dos
anos 90, expuseram argumentos análogos, estão os seguintes: Michael Lind, "America as
an Ordinary Country", American Enterprise, 1 (set.-out./90), 19-23; Barry Buzan, "New
Patterns of Global Security in the Twenty-First Century", International A.ffairs, 67 (1991),
441, 448-449; Robert Gilpin, "The Cycle of Great Powers: Has It Finally Been Broken?"
(Princeton University, monografia não publicada, 19/05/93), p. 6 e ss.; William s. Lind,
"North-South Relations: Retuming to a World of Cultures in Contlict", Current World
Leaders, 35 (dez./92), 1073-1080, e "Defending Westem Culture", Foreign Policy, 84 (outono
de 1994)'. "Looking Back from 2992: A World History, cap. 13: The Disastrous 21st Century",
Economist, 26/dez.-08/jan./93, pp. 17-19; "The New World Order: Back to the Future"
Economist, 08101194, pp. 21-23; "A Survey of Defence and the Democracies", Economis;,
01/09<90; Zsolt Rostova~yi, "Clash of Civilizations and Cultures: Unity and Disunity ofWorld
Order,, (mo~ografia. nao publicada, 29/03/93); Michael Vlahos, "Culture and Foreign
Po!Jcy , Foreign Pohcy, 82 (primavera de 1991), 59-78; Donald]. Puchala, "The History of
the F~ture of Internattonal Relations", Etbics and International A.ffairs, 8 (1994), 177-202;
Mahd1 Eln:-an~jra, "Cultural Diversity: Key to Survival in the Future" (monografia apresen-
tada no Pnme1ro Congresso Mexicano sobre Estudos do Futuro, Cidade do México, set./94).
E~ 1991, Elman~jra publicou em árabe um livro que apareceu em francês no ano seguinte,
mt1tulado Premtere Guerre Civilisationnelle (Casablanca: Ed. Toubkal, 1994).
19. Fernand Braudel, On History (Chicago: University of Chicago Press, 1980), pp. 210-212.
Capítulo 2
1. "World history is the history of large cultures." Oswald Spengler, Decline of the West (Nova
Yor~: A. A. Knopf, 192~-1?28), II, 1~0 ...os principais trabalhos desses estudiosos que
ana~1sam a natu:e.za e a dmam1ca das c1v1hzações abrangem os seguintes: Max Weber, 1be
Socwlogy ofReltgwn (Boston: Beacon Press, trad. Ephraim Fischoff, 1968); Emile Durkheim
e Marcel Mauss, "Note .ºn the Notion of Civilization", Social Research, 38 (1971), 808-813;
Oswald Spe~gler, Decline ofthe West,· Pitrim Sorokin, Social and Cultural Dynamics (Nova
York: Amencan Book Co., 4 v., 1937-1985); Arnold Toynbee, Stttdy of History (Londres:
O~ord ~niversity Press, 12 v., 1934-1961); Alfred Weber, KulturgeschichtealsKultursozio-
log~ (Le1den: A. W. Sijthoff's Uitgervermaatschappij N. V., 1935); A. L. Kroeber, Configu-
rati°':s º( Culture Growth (Berkeley: University of California Press, 1944) e Style and
Ctmltzatwns CWestport, Connecticut: Greenwood ~s, 1973); Philip Bagby, Culture and
7istory: ~rolegomena to the Comparative Study ofCivilizations (Londres: Longmans, Green,
958), Carroll Qu1gle:, 1be Evolution o/Civilizations: An Introduction to Histon'calAnalysis
(Nova York: Macnullan, 1961); Rushton Coulborn, 1be Ortgin of Civilized Societies
412
(Princeton: Princeton University Press, 1959); S. N. Eisenstadt, "Cultural Traditions and
Political Dynamics: The Origins and Modes of Ideological Politics'', British journal of
Sociology, 32 (jun./81), 155-181; Fernand Braudel, Historyo/Civilizations(Nova York: Allen
Lane-Penguin Press, 1944) e On History (Chicago: University of Chicago Press, 1980);
William H. McNeill, 1be Rise ofthe West: A History ofthe Human Communtty (Chicago:
University of Chicago Press, 1963); Adda B. Bozeman, "Civilizations Under Stress", Virginia
Qttarterly Review, 51 (inverno de 1975), 1-18; Strategic lntelligence and Statecraft (Was-
hington: Brassey's [US], 1992) e Politics and Culture in lnternational History: From the
Ancient Near East to the opening of tbe Modem Age (Nova Brunswick, Nova Jersey:
Transaction Publishers, 1994); Christopher Dawson, Dynamics of World History (LeSalle,
Illinois: Sherwood Sugden Co., 1978) e 1be Movement of World Revolution (Nova York:
Sheed and Ward, 1959); Immanuel Wallerstein, Geopolitics and Geocultttre: Essays on 1be
Changing World-system (Cambridge: Cambridge University Press, 1992); Felipe Fernández-
Armesto, Millenium: A History of the Last 1bousand Years (Nova York, Scribners, 1995). A
esses trabalhos poderia ser acrescentado o último e tragicamente marcado trabalho de
Louis Hartz, A SynthesisofWorldHistory(Zurique: Humanity Press, 1983), o qual, segundo
comentou Samuel Beer, "prevê com admirável presciência uma divisão da humanidade
muito parecida com o padrão atual do mundo pós-Guerra Fria, em cinco grandes 'áreas
de cultura': cirstã, muçulmana, hindu, confuciana e africana". Memoria/Minute, Louis Hartz,
Haroard University Gazette, 89 (27/05/94). Uma visão resumida e introdução à análise das
civilizações está em Matthew Melko, 1be Nature of Civilizations (Boston: Porter Sargent,
1%9). Também fico agradecido pela úteis sugestões feitas sobre o meu artigo na Foreign
A.ffairs na monografia de crítica de autoria de Hayward W. Alker Jr.: "If Not Huntington's
'Cívilizations', Then Whose?" (monografia não publicada, Massachusetts Instítute of Tech-
nology, 25/03/94).
2. Braudel, OnHistory, pp. 177-181, 212-214, e Historyo/Civilization, pp. 4-5; Gerrit W. Gong,
1be Standard of "Civilization" in International Society (Oxford: Clarendon Press, 1984), p.
81 e ss., 97-100; Wallerstein, Geopolitics and Geoculture, p. 160 e ss. e 215 e ss.; Arnold].
Toynbee, Studyo/History, X, 274-275, e Civilizationon Trial(Nova York: Oxford University
Press, 1948), p. 24.
3. Braudel, On History, p. 205. Para um exame extenso das definições de cultura e de
civilização, principalmente a distinção alemã, ver A. L. Kroeber e Clyde Kluckhohn, Culture:
A CriticalReviewofConceptsandJJe.ftnitions(Cambridge: Papers ofthe Peabody Museum
of American Archaelogy and Ethnology, Harvard University, v. XLVII, n. 1, 1952), em geral,
mas especialmente pp. 15-29.
4. Bozeman, "Civilizations Under Stress", p. 1.
5. Durkheim e Mauss, "Notion of Civilization", p. 811; Braudel, On History, pp. 177, 202;
Melko, Nature of Civilizations, p. 8; Wallerstein, Geopolitics and Geoculture, p. 215;
Dawson, Dynamics o/World History, pp. 51, 402; Spengler, Decline of the West, I, p. 31. É
interessante notar que a International Encyclopedia of the Social Sciences (Nova York:
Macmillan and Free Press, organizada por David L. Sills, 17 v., 1968) não contém nenhum
item sobre a "civilização" de "civilizações". O "conceito de civilização" (no singula~) é
tratado numa subseção do item denominado "Revolução Urbana", enquanto as civilizações
(no plural) são mencionadas de forma passageira num item denominado "Cultura".
6. Heródoto, 1be Persian Wars (Harmondsworth, Inglaterra: Penguin Books, 1972),
pp. 543-544.
7. Edward A. Tiryakian, "Reflections on the Sociology of Civilizations", Sociological Analysis,
35 (verão de 1974), 125.
8. Toynbee, Study of History, I, 455, citado em Melko, Nature of Civilizations, pp. 8 e 9; e
Braudel, On History, p. 202.
9. Braudel, History o/ Civilizations, p. 35, e On History, pp. 209-210.
10. Bozeman, Strategic Intelligence and Statecraft, p. 26.
413
11. Quigley, Evolution ofCivilizations, p. 146 e ss.; Melko, NatureofCtvilizations, p. 101 e ss.
Ver D. C. Somervell, "Argument", na sua versão resumida de Arnold]. Toynbee, A Study
ofHistory, v. I-VI (Oxford: Oxford University Press, 1946), p. 569 e ss.
12. Lucian W. Pye, "China: Erratic State, Frustrated Society", Foreign Ajfairs, 69 (outono de
1990), 58.
l
13. Ver Quigley, Evolution ofCivilizations, cap. 3, especialmente pp. 77, 84; Max Weber, "The
Social Psychology of the World Religions", em From Max Weber: Essays in Sociology
(Londres: Routledge, transcrito e org. H. H. Gerth e C. Wright Mills, 1991), p. 267; Bagby,
Culture and History, pp. 165-174; Spengler, Decline ofthe West, II, 31 e ss.; Toynbee, Stttdy
of History, 1, 133; XII, 546-547; Braudel, History of Civilizations, vários trechos; McNeill,
1be Rise of the West, vários trechos; e Rostovanyi, "Clash of Civilizations", pp. 8-9.
14. Melko, Nature of Civilizations, p. 133.
-
15. Braudel, On History, p. 226.
16. Para obter um acréscimo importante, na década de 90, aos trabalhos sobre a matéria por
alguém que conhece bem ambas as culturas, ver Claudio Véliz, 1be New World ofthe Gothic
Fox (Berkeley: University of California Press, 1994).
17. Ver Charles A. e Mary R. Beard, The Rise ofAmerican Civilization (Nova York: Macmillan,
2 v., 1927) e Max Lerner, America as a Civilization (Nova York: Simon & Schuster, 1957).
Com jactância patriótica, Lerner diz que, "para o bem ou para o mal, a América do Norte
é o que ela é - uma cultura em si mesma, com muitas linhas características de poder e
de significado próprio, alinhando-se com a Grécia e Roma como uma das grandes
civilizações distintas da História". Contudo, ele reconhece que, "quase sem exceçâo, as
grandes teorias da História não encontram espaço para qualquer concepção da América
do Norte como uma civilização por si mesma" (pp. 58-59).
18. Sobre o papel de fragmentos da civilização européia criando novas sociedades na América
do Norte, América Latina, África do Sul e Austrália, ver Louis Hartz, 7be Founding of New
Societies: Studies in the History ofthe United States, I.atin America, South Africa, Canada, and
Australia (Nova York: Harcourt, Brace & World, 1964).
19. Dawson, Dynamicso/WorldHistory, p. 128. Vertb. Mary C. Bateson, "Beyond Sovereignty:
An Emerging Global Civilization" [Além da Soberania: uma Civilização Global Emergente],
em Contending Sovereignties: Redefining Political Community, org. R. B. ). Walker e Saul
H. Mendlovitz (Boulder: Lynne Rienner, 1990), pp. 148-149.
20. Toynbee classifica o Budismo Theravada e o Lamaísta como civilizações fósseis - Study
o/History, I, 35, 91-92.
21. Ver, por exemplo, Bernard Lewis, Islam and tbe West(Nova York: Oxford University Press,
1993); Toynbee, Study of History, cap. IX, "Contacts between Civilizations in Space
(Encounters between Contemporaries)", VIII, 88 e ss; Benjamin Nelson, "Civilizational
Complexes and Intercivilizational Encounters", Sociological Analysis, 34 (verão de 1973)
79-105. '
22. S. N. Eisenstadt, "Cultural Traditions and Political Dynamics: The Origins and Modes of
Ideological Politics", Britishjournal o/Sociology, 32 (jun./1981), 157, e "The Axial Age: The
Emergence of Transcendental Vision and the Rise of Clerics", Arcbives Européennes de
Sociologie, 22 (n. 1, 1982), 298. Ver tb. Benjamin I. Schwartz, "The Age of Transcendence
in Wisdom, Revolution, and Doubt: Perspectives on the First Milennium B. C.", Daedalus,
104 (primavera de 1975), 3. O conceito da Era Axial se deriva de Karl Jaspers, Vom Ursprung
und Ziel der Geschichte (Zurique: Artemisverlag, 1949).
23. Toynbee, Cívilization on Triai, p. 69. Cf. William H. McNeill, 7be Rise of the West, pp.
295-298, que enfatiza o grau em que o advento da Era Cristã "organizou as rotas de
comércio, tanto por terra como por mar, (. .. ) ligou as quatro grandes culturas do
continente".
24. Braudel, On History, p. 14: "(. .. )a influência cultural v.eio em pequenas doses, retardadas
pela extensão e lentidão das jornadas que tinham que empreender. Se dermos crédito aos
historiadores, as modas chinesas do período Tang (618-907) se deslocaram tão lentamente
414
l que só chegaram à ilha de Chipre e ã brilhante corte de Lusignan no século XV. Dali se
espalharam, na velocidade maior do comércio do Mediterrâneo, para a França e para a
excêntrica corte de Carlos VI, onde chapéus femininos antigos e sapatos com longos bicos
pontudos se tomaram imensamente populares, a herança de um mundo há muito
desaparecido - de forma muito semelhante a como a luz ainda nos chega vinda de estrelas
já extintas."
25. Ver Toynbee, Study of History, VIII, 347-348.
26. McNeill, Rise ofthe West, p. 547.
27. D. K. Fieldhouse, Economícs and Empire, 1830-1914 (Londres: Macmillan, 1984), p. 3; F.
J. e. Hearnshaw, Sea Powerand Empire (Londres: George Harrap and Co., 1940), p. 179.
28. Geoffrey Parker, The Military Revolution: Müitary /nnovation and the Rise of tbe West
(Cambridge: Cambridge University Press, 1988), p. 4; Michael Howard, "The Military Factor
-
in European Expansion" [O Fator Militar na Expansão Européia], em 7be Expansion of
Internatíonal Society, org. Hedley Buli e Adam Watson (Oxford: Clarendon Press, 1984),
p. 33 e ss.
29. A. G. Kenwood e A. L. Lougheed, 7be Growth of the International Economy 1820-1990
(Londres: Routledge, 1992), pp. 78-79, e as observações de Alan S. Blinder, reproduzidas
no New York Times, 12/03/1995, p. SE. Ver tb. Simon Kuznets, "Quantitative Aspects of the
Economic Growth of Nations - X. Levei and Structure of Foreign Trade: Long-Term
Trends", Economic Development and Cultural Change, 15 (jan./1967, parte II), pp. 2-10.
30. Charles Tilly, "Reflections on the History of European State-making", em 7be Formation of
National States in Western Europe, org. Tilly (Princeton: Princeton University Press, 1975),
p. 18.
31. R. R. Palmer, "Frederick the Great, Guibert, Bulow: From Dynastic to National War", em
Makers ofModem Strategy from Machiavelli to the Nuclear Age, org. Peter Pare! (Princeton:
Princeton University Press, 1986), p.119.
32. Edward Mortimer, "Christiany and Islam", International Ajfairs, 67 (jan./1991), 7.
33. Hedley Buli, The Anarcbical Society (Nova York: Columbia University Press, 1977), pp.
9-13. Ver tb. Adam Watson, The Evolution of International Society (Londres: Routledge,
1992) e Barry Buzan, "From lnternational System to lnternational Society: Structural Realism
and Reime Theory Meet the English School", International Organization, 47 (verão de
1993), 327-352, que distingue entre modelos "civilizacional" e "funcional" de sociedade
internacional e conclui que "parece nào haver nenhum caso de socidedade internacional
funcional" (p. 336).
34. Spengler, Decline of tbe West, 1, 93-94.
35. Toynbee, Stitdy o/ History, 1, 149 e ss., 154, 157 e ss.
36. Braudel, On History, p. xxxii.
Capítulo]
1. V. S. Naipaul, "Our Universal Civilization", The 1990 Wriston Lecture, The Manhattan
Institute, New York Review ofBooks, 30/10/1990, p. 20.
2. Ver James Q. Wilson, 7beMoralSense(Nova York: Free Press, 1993); Michael Walzer, Thick
and 1bin: Moral Argument at Home and Abroad (Notre Dame: University of Notre Dame
Press, 1994), especialmente os capítulos 1e4; e, para um breve resumo, Frances V. Harbour,
"Basic Moral Values: A Shared Core", Ethics and International Ajfairs, 9 (1995), 155-170.
3. Václav Havei, "Civilization's Thin Venner", Haroard Magazine, 97 (jul.-ago./1995), 32.
4. Hedley Buli, The Anarcbical Society: A Study of Order in World Politics (Nova York:
Columbia University Press, 1977), p. 317.
5. John Rockwell, "The New Colossus: American Culture as Power Export", e vários autores,
"Channel-Surfing Through U.S. Culture in 20 Lands", New York Times, 30/01/1994, seção
415
2, p. 1 e ss.; Davied Rieff, "A Global Culture", WorldPolicyfournal, 10 (inverno de 1993-94),
73-81.
6. Michael Vlahos, "Culture and Foreign Policy", Foreign Policy, 82 (primavera de 1991), 69;
Kishore Mahbubani, "The Dangers of Decadence: What the Rest Can Teach the West",
Foreign Ajfairs, 72 (set.-out./1993), 12.
7. Aaron L. Friedberg, "The Future of American Power", Political Science Quarterly, 109
(primavera de 1994), 15.
8. Richard Parker, "The Myth of Global News", New Perspectives Quarterly, 11 (inverno de
1994), 41-44; Michael Gurevitch, Mark R. Levy e Itzhak Roeh, "The Global Newsroom:
convergences and diversities in the globalization oftelevision news", em Communications
and Citizenship: fournalism and the Public Spbere in the New Media, org. Peter Dahlgren
e Colin Sparks (Londres: Routledge, 1991), p. 215.
9. Ronald Dore, "Unity and Diversity in World Culture", em 1be Expa,nsion of International
Society, org. Hedley Buli e Adam Watson (Oxford: Oxford University Press, 1984), p. 423.
10. Robert L. Bartley, "The Case for Optimism - The West Should Believe in Itself", Foreign
Ajfairs, 72 (set.-out./1993), 16.
11. Ver Joshua A. Fishman, "The Spread of English as a New Perspective for the Study of
Language Maintenance and Language Shift", em Joshua Fishman, Robert L. Cooper e
Andrew W. Conrad, 1be Spread of English: 1be Sociology of English as an Additional
Language (Rowley, MA: Newbury House, 1977), p. 108 e ss.
12. Fishman, "Spread of English as a New Perspective", pp. 118-119.
13. Randolph Quirk, em Barj B. Kachru, 1be Indianization of English (Delhi: Oxford, 1983),
p. i; English in India - lssues and problems, org. R. S. Gupta e Kapil Kapoor (Delhi:
Academic Foundation, 1991), p. 21. Cf. Sarvepalli Gopal, "The English Language in India",
Encounter, 73 (jul.-ago./1989), p. 16, que estima que 35 milhões de indianos "falam e
escrevem algum tipo de inglês". Banco Mundial, World Development Report 1985, 1991
(Nova York: Oxford University Press), quadro 1.
14. Kapoor e Gupta, "lntroduction", em English in India, org. Gupta e Kapoor, p. 21; Gopal,
"English Language", p. 16.
15. Fishman, "Spread of English as a New Perspective", p. 115.
16. Ver Newsweek, 19/07/1993, p. 22.
17. Citado por R. N. Srivastava e V. P. Sharma, "Indian English Today", em English in India,
org. Gupta e Kapoor, p. 191; Gopal, "English Language", p. 17.
18. New York Times, 16/07/1993, p. A9; Boston Globe, 15/07/1993, p.13.
19. Além das projeções na World Christian Encyclopedia, ver as de Jean Bourgeois-Pichat, "Le
nombre des hommes: État et prospective", em AlbertJacquard et ai., LesScientiftques Parlent
(Paris: Hachette, 1987), pp. 140, 143, 151, 154-156.
20. Edward Said sobre V. S. Naipaul, citado por Brent Staples, "Con Men and Conquerors",
New York Times Book Review, 22/05/1994, p. 42.
21. A. G. Kenwood e A. L. Lougheed, 1be Growth of the lnternational Economy 1820-1990
(Londres: Routledge, 3. ed., 1992), pp. 78-79; Angus Maddison, Dynamic Forces in Capitalist
Development (Nova York: Oxford University Press, 1991), pp. 326-327; Alan S. Blinder,
New York Times, 12/03/1995, p. 5E.
22. David M. Rowe, "The Trade and Security Paradox in International Politics" (manuscrito não
publicado, Ohio State University, 15/09/1994), p. 16.
23. Dale C. Copeland, "Economic Interdependence and War: A Theory ofTrade Expectations",
lnternational Security 20 (primavera de 1996), 25.
24. William]. McGuire e Claire V. McGuire, "Content and Process in the Experience of Self'',
Advances in Experimental Social Psychology, 21 (1988), 102.
25. Donald L. Horowitz, "Ethnic Contlict Management for Policy-Makers", em Conflict and
Peacemaking in Multiethnic Societies, org. Joseph V. Montville e Hans Binnendijk (Lexing-
ton, MA: Lexington Books, 1990), p. 121.
416
26. Roland Robertson, "Globalization Theory and Civilizational Analysis", Comparative Civili-
zations Review, 17 (outono de 1987), 22; Jeffery A. Shad Jr., "Globalization and Islamic
Resurgence", Comparative Studies in Society and History, 9 (abr./1967), 292-293.
27. Ver Cyril E. Black, 1be Dynamics ofModernization: A Study in Comparative History (Nova
York: Harper & Row, 1966), pp. 1-34; Reinhard Bendiz, "Tradition and Modernity
Reconsidered", Comparative Studies in Society and History, 9 (ab.r/1967), 292-293.
28. Fernand Braudel, On History (Chicago: University of Chicago Press, 1980), p. 213.
29. Os trabalhos sobre as características que distinguem a civilização ocidental são, evidente-
mente, muito numerosos. Ver, entre outros, William H. McNeill, Rise of the West.· A History
of the Human Community (Chicago: University of Chicago Press, 1963); Braudel, On
History, e outras obras anteriores; lmmanuel Wallerstein, Geopolitics and Geoculture: Essays
on the Changing World System (Cambridge: Cambridge University Press, 1991). Karl W.
Deutsch fez uma comparação abrangente, sucinta e muito sugestiva do Ocidente e de nove
outras civilizações em termos de 21 fatores geográficos, culturais, econômicos, tecnológi-
cos, sociais e políticos, ressaltando o grau em que o Ocidente difere das outras civilizações.
Ver Karl W. Deutsch, "On Nationalism, World Regions, and the Nature of the West", em
Mobilization, Center-Periphery Stntctures, and Nation-building: A Volume in Commemo-
ration ofStein Rokkan, org. Per Torsvik (Bergen: Universitetforlaget, 1981), pp. 51-93. Para
um resumo sucinto dos aspectos principais e específicos da civilização ocidental em 1500,
ver Charles Tilly, "Reflections on the History of European State-making", em 1be Formation
ofNational States in WesternEurope, org. Tilly (Princeton: Princeton University Press, 1975),
p. 18 e ss.
30. Deutsch, "Nationalism, World Religions, and the West", p. 77.
31. Ver Robert D. Putnam, Making Democracy Work: Civil Traditions in Modem Italy
(Princeton: Princeton University Press, 1993), p. 12 e ss.
32. Deutsch, "Nationalism, World Religions, and the West", p. 78. Ver tb. Stein Rokkan,
"Dimensions of State Formation and Nation-building: A Possible Paradigm for Research on
Variations within Europe", em Charles Tilly, 1be Formation of National States in Western
Europe (Princeton: Princeton University Press, 1975), p. 576, e Putnam, Making Democracy
Work, pp. 124-127.
33. Geert Hofstede, "National Cultures in Four Dimensions: A Research-based Theory of Cultural
Differences among Nations", International Stttdies of Management and Organization, 13
0983), 52.
34. Harry C. Triandis, "Cross-Cultural Studies of Individualism and Collectivism", in Nebraska
Symposittm on Motivation, 1989 (Lincoln: University of Nebraska Press, 1990), 44-133, e
New York Times, 25/12/1990, p. 41. Ver também. Ideology and National Competitiveness:
An Analysis of Nine Countries, org. George C. Lodge e Ezra F. Vogel (Boston: Harvard
Business School Press, 1987), várias.
35. É quase inevitável que surjam debates sobre a interação das civilizações com algumas
variações dessa tipologia de respostas. Ver Arnold]. Toynbee, Stttdy of History (Londres:
Oxford University Press, 1935-61), II, pp. 187 e ss., VIII, 152-153, 214; John L. Esposito, 1be
Islamic 1breat: Myth or Reality (Nova York: Oxford University Press, 1992), pp. 53-62;
Daniel Pipes, ln the Path ofGod· Islam and Political Power (Nova York: Basic Books, 1983),
p. 105-142.
36. Pipes, Path of God, p. 349.
37. William Pfaff, "Reflections: Economic Development", New Yorker, 25/12/1978, p. 47.
38. Pipes, Path of God, pp. 197-198.
39. Ali Al-Amin Mazrui, Cultura/Forces in World Politics (Londres: James Currey, 1990), pp. 4-5.
40. Esposito, Islamic 1breat, p. 55; ver, de modo geral, pp. 55-62; e Pipes, Path of God,
pp. 114-120.
41. Rainer C. Baum, "Authority and Identity - The Invariance Hypothesis li", Zeitschriftfür
Soziologie, 6 (out./1977), 368-369. Ver tb. Rainer C. Baum, "Authority Codes: The Invariance
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417
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Capítulo 4
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Capítulo5
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Capítulo 6
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22. Albert Motivans, '"Openness in the West' in European Russia", RFF/RL Research Report, 1
(27/11/1992), 60-62. Os estudiosos calcularam a distribuição de votos de maneiras
diferentes, com pequenas diferenças nos resultados. Apoiei-me na análise de Sergei
Chugrov, "Política! tendencies in Russia's Regions: Evidence from the 1993 Parliamentary
Elections" (monografia não publicada, Harvard University, 1994).
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34. Ibid.
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43. Transcrição, entrevista com Keniche Ohmae, 24/10/1994, pp. 5-6. Ver tb. japan· Times,
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Capítulo 7
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Capítulo 8
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Capítulo 9
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10. Fatima Mernissi, Islam and Democracy: Fear of the Modem World (Reading, MA: Addison-
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Doesn't'', Orbis, 38 (verão de 1994), 365. Os autores desse texto concluíram dizendo que
o emprego da força armada contra Taiwan "seria uma decisão muito pouco inteligente".
19. Buzan e Segai, "Rethinking East Asian Security'', p. 7; Richard K. Betts, "Wealth, Power and
Instability: East Asia and the United States After the Cold War", Jnternational Security, 18
(inverno de 1993-94), 34-77; Aaron L. Firedberg, "Ripe for Rivalry: Prospects for Peace in
Multipolar Asia", International Security, 18 (inverno de 1993-94), 5-33.
20. Can China's Anned Forces Win the Ne:x:t War?, trechos traduzidos por Munro em
"Eavesdropping on the Chinese (. .. )", p. 355 e ss.; New York Times, 16/11/1993, p. A6;
Friedberg, "Ripe for Rivalry'', p. 7.
21. Desmond Bali, "Arms and Affluence: Military Acquisitions in the Asia-Pacific Region",
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Washington Qttarterly, 15 (verão de 1992), 83-102; Economist, 20/02/1993, pp. 19-22.
/.10
22. Ver, por exemplo, Economist, 26/06/1993, p. 75; 24/07/1995, p. 25; Time, 03/07/1995, pp.
30-31; e sobre a China, Jacob Heilbrunn, "The Next Cold War", New Republic, 20/11/1995,
27 e ss.
23. Sobre debates das variedades de guerras comerciais e quando elas podem levar a guerras
militares, ver David Rowe, Trade Wars and International Security: 1be Political Economy
ofJnternational Economic Conflict (Working Papcr n. 6, Project on the Changing Security
Environment and American National Interests, John M. Olin Institute for Strategic Studis,
Harvard University, jul./1994), p. 7 e ss.
24. New York Times, 06/07/1993, p. Al;Time, 10/02/1992, p. 16 e ss.; Economist, 17/02/1990,
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p. Al.
25. Citado no New York Times, 21/04/1992, p. AlO; New York Times,, 22/09/1991, p. E2;
21/04/1992, p. Al; 19/09/1991, p. A7; 01/08/1995, p. A2; International Hera/d Tribune,
24/08/1995, p. A2, citando relato de David Shambaugh sobre entrevistas em Pequim.
26. Donald Zagoria, American Foreign Policy Newsletter, out./1993, p. 3; Can China'sAnned
Forces Wín the Next War?, em Munro, "Eavesdropping on the Chinese Military", p. 355 e ss.
27. Roger C. Altman, "Why Prcssure Tokyo? U.S.-]apan Rift", Foreign Ajfairs, 73 (mai.-
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29. Para um bom resumo de diferenças em cultura, valores, relações sociais e atitudes, ver
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W. Norton, 1996), capítulo 7, "American Exceptionalism - Japaneses Uniqueness".
30. Washington Post, 05/05/1994, p. A38; Daily Telegraph, 06/05/1994, p. 16; Boston Globe,
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31. New York Times, 02/05/1994, p. AlO.
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amplo debate da inaplicabilidade à Ásia de concepções de base européia, tais como balança
de poder e o dilema de segurança.
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38. Richard K. Betts, "Vietnam's Strategic Predicament", Suroival, 37 (outono de 1995), 61 e
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47. International Hera/d Tribune, 25/08/1995, p. 5.
48. J. Mohan Malik, "India Capes with the Kremlin's Fali'', Orbis 37 (inverno de 1993), 75.
Capítulo 10
1. Mahdi Elmandjra, Der Spiegel, 11/02/1991, citado em Elmandjra, "Cultural Diversity: Key
to Survival in the Future" (Primeiro Congresso Mexicano de Estudos do Futuro, Cidade do
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2. David C. Rapoport, "Comparing Militant Fundamentalist Groups", em Fundamentalisms
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18. International Hera/d Tribune, 28/06/1993, p. 10.
19. Roy Licklider, "The Consequences of Negotiated Settlements in Civil Wars, 1945-93",
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como "guerras de identidade", e Samuel P. Huntington, "Civil Violence and the Process of
Development", em Civil Violence and the International System (Londres: International
Institute for Strategic Studies, Adelphi Paer n. 83, dez./1971), 12-14, que cita como as cinco
características principais das guerras comunitárias um alto grau de polarização, ambivalên-
cia ideológica, particularismo, grande dose de violência e longa duração.
20. Essas estimativas provêm de relatos em jornais e de Ted Robert Gurr e Barbara Harff, Ethnic
Conflict in World Politics (Boulder: Westview Press, 1994), pp. 160-165.
21. Richard H. Shultz, Jr. e William]. Olson, Ethnic and Religiou.s Conjlict: Emerging 7breat to
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étnicos não aumentaram desde o fim da Guerra Fria, ver Thomas, "Global Assessment of
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Capítulo 11
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2. Ver Barry R. Posen, "The Security Dilemma and Ethnic Conflict", em Etbnic Conjlict and
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Capítulo 12
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Índice Remissivo
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