Patrícia Moreira Nogueira
Patrícia Moreira Nogueira
Patrícia Moreira Nogueira
GUARULHOS
2017
Patrícia Moreira Nogueira
GUARULHOS
2017
Nogueira, Patrícia Moreira.
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______________________________________________________________________
Prof. Dr. Bruno Guilherme Feitler
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Rui Luis Rodrigues
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Aos meus pais, Alais e Sidnei (in memoriam),
sempre dispostos a ouvir estranhas anedotas heréticas.
AGRADECIMENTOS
1
MILTON, J. Paradise Regain'd: A Poem, in Four Books to Which is Added Samson Agonistes and
Poems Upon Several Occasions. London: Printed by R. e. and are to be sold by R. Taylor, 1688. pp. 505-
06. “Men whose life, learning, faith and pure intent; Would have been held in high esteem with Paul,;
Must now be named and printed Heretics; By shallow Edwards and Scotch what d'ye call:; But we do
hope to find out all your tricks,; Your plots and packing worse than those of Trent,; That so the
Parlament; May with their wholsome and preventive shears; Clip your phylacteries, though bauk your
ears,; And succour our just fears,; When they shall read this clearly in your charge,; New Presbyter is but
Old Priest writ large”.
RESUMO
Esta dissertação procura localizar a obra Gangraena, or, A catalogue and discovery of
many of the errours, heresies, blasphemies and pernicious practices of the sectaries of
this time, produzida por Thomas Edwards em 1646, em meio às disputas entre
ortodoxias e heterodoxias durante a Primeira Guerra Civil Inglesa. Intenciona-se
analisar a publicação de acordo com três eixos centrais: primeiramente, trabalhando
Gangraena a partir do gênero heresiológico e dos aspectos intertextuais inerentes aos
escritos de Edwards; em seguida, por uma apreciação da obra considerando às
discussões relativas ao presbiterianismo inglês; e, por fim, analisando-a tendo em vista
debates mais amplos para o período concernentes às categorias de confessionalização e
disciplinamento social. Partindo das reflexões relativas às problemáticas político-
religiosas da época, aos interesses pela definição de um governo e uma disciplina da
igreja fundamentados na ortodoxia presbiteriana e aos mecanismos retóricos,
intertextuais e polêmicos de então, espera-se compreender a publicação percebendo os
projetos ortodoxos de seu autor e as críticas aos muitos comportamentos tidos como
heréticos que eram, para Edwards, uma enfermidade a ser combatida na Inglaterra do
período.
This dissertation aims to place Thomas Edward’s Gangraena, or, A catalogue and
discovery of many of the errours, heresies, blasphemies and pernicious practices of the
sectaries of this time (1646) within the disputes between the First English Civil War’s
orthodoxies and heterodoxies. It intends to analyze the book in three central aspects:
first, by reading Gangraena both looking into the heresiological genre and the inherent
intertextual characteristics in Edwards’ writings; Then by an appreciation of the
publication in view of the discussions related to English Presbyterianism; And finally
by examining it within the frames of a broader debate about the period in which the
categories of confessionalization and social discipline are crucial. By starting from an
observation about the political and religious issues of that time, the interests to define a
government and a discipline of the church based on Presbyterian orthodoxy, and the
rhetorical, intertextual and polemical mechanisms of the period, one hopes to
comprehend Gangraena recognizing the orthodox projects of its author and the
criticisms of the many heretical behaviors which were, to Edwards, a disease to be
fought in England of the period.
1
Lista de abreviações
2
Introdução
2
HILL, C. The World Turned Upside Down. Middlesex: Peregrine Books, 1985. p. 15. “History has to be
rewritten in every generation, because although the past does not change the present does; each generation asks
new questions of the past, and finds new areas of sympathy as it re-lives different aspects of the experiences of
its predecessors. [...] The historical narrative, the main outline of events, is given. No amount of detailed
working over the evidence is going to change the factual essentials of the story. But the interpretation will vary
with our attitudes, with our lives in the present. So reinterpretation is not only possible but necessary”. Todas as
traduções, de referências bibliográficas e/ou de fontes analisadas, realizadas no decurso desta dissertação são de
minha responsabilidade, exceto quando houver indicações do contrário.
3
GINZBURG, C. “História e Cultura: conversa com Carlo Ginzburg”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
3, n. 6, 1990. p. 257.
4
Ibid. p. 257.
3
obra tão eficientemente analisada dentro das correntes historiográficas britânicas. No entanto,
como Hill tão bem pontuou “a história precisa ser reescrita a cada geração, porque ainda que o
passado não mude, o presente se modifica...”.5 É preciso perceber, portanto, os limites
impostos pelo nosso próprio tempo e as nossas questões particulares. Se, de início, a resposta
ao questionamento que se coloca acima — “mas como você chegou a esse tema?” — seria,
“porque a ignorância absoluta é excitante”, um complemento imediato poderia ser “porque a
‘reinterpretação não é somente possível, mas necessária’”. Mais do que isso, algumas
questões advêm com demasiada força a depender do contexto (como os sujeitos do século
XVII inglês tão bem mostrarão) e, no contexto em particular ao qual esta dissertação se
inscreve, parece imprescindível investigar as fronteiras entre o eu e o outro, os contrários, os
extremos, os ortodoxos e os heterodoxos em cada tempo. Talvez fosse essa a resposta
esperada nas ocasiões em que o questionamento se colocou, então que fique esta introdução a
título de espírito da escada.
Foi no ímpeto de entender alguns desses outros – no caso, aqueles relacionados ao
século XVII inglês – que Gangraena passou a ser utilizada, em definitivo, como fonte para os
estudos historiográficos sobre as Guerras Civis Inglesas.6 Adquirido esse estatuto de
documento de referência, a obra de Thomas Edwards (1599-1647) foi apropriada por
historiadores das mais distintas vertentes em estudos que se interessavam desde a história do
presbiterianismo até a localização da origem social dos escritores envolvidos nos debates da
época, passando pela análise dos comportamentos heréticos ou dos radicais da Revolução
Inglesa. Desde esta última perspectiva, Christopher Hill afirmou que “a tolerância religiosa é
o pior de todos os males, pensava Thomas Edwards em 1646”,7 – percepção esta muito
marcada pela interpretação de Hill acerca da excludente e impopular religião dos clérigos
presbiterianos. Os escritos de Edwards assinalariam uma doutrina intolerante que, quase a
contragosto, dava voz aos radicais que tanto interessavam ao historiador marxista. Hill
observou que, “Lendo Gangraena, de Edwards, percebemos que assim que desabou a censura
5
HILL, C. Op. cit., 1985. p. 15.
6
Nesta breve síntese bibliográfica optou-se por atentar, em particular, para as apropriações diretamente
relacionadas à Gangraena, para além de um escopo historiográfico mais amplo concernente às discussões sobre
a Revolução Inglesa. No que diz respeito a tais debates, ver, entre muitos outros: HILL, C. The World Turned
Upside Down. Middlesex: Peregrine Books, 1985; ____. Writing and Revolution in 17th Century England.
Brighton: Harvester Press, 1985; MORRILL, J. Reactions to the English Civil War. London and Basingstoke:
Macmillan, 1982; OSTRENSKY, E. As revoluções do poder. São Paulo: FAPESP/Alameda Casa Editorial,
2006; RACHUM, I. “The Meaning of ‘Revolution’ in the English Revolution (1648-1660)”. Journal of the
History of Ideas. v. 56, n. 2, 1995; STONE, L. Causas da revolução inglesa: 1529-1642. BAURU: EDUSC,
2000.
7
HILL, C. Op. cit., 1987. p. 109.
4
começou-se a propor todas as espécies de questões intrigantes”.8 Vê-se, portanto, que Hill se
apropriou das informações levantadas por Edwards, não a fim de entender o presbiterianismo
do período, mas querendo compreender aqueles “intrigantes” radicais, cujas opiniões e ações
teriam sido preservadas no seio de Gangraena.
Há de se considerar que o interesse por esses personagens era muito plausível,
tendo em vista o modo como viveram, produziram e debateram durante um período no qual a
política, a religião e a sociedade inglesa vieram a ser radicalmente questionadas. Se entre o
final da década de 1620 e o início de 1640, o rei Carlos I obteve algum sucesso em governar
sem um Parlamento efetivo, ainda que tivesse sua lealdade sempre examinada — como
ocorreu, por exemplo, no episódio do seu casamento com uma rainha católica, Henriqueta
Maria —, a situação alterou-se completamente com a eclosão da Primeira Guerra Civil
Inglesa. Como se sabe, as décadas de 1640 e 1660 compreenderam conflitos civis intensos e
questionamentos a respeito das capacidades da autoridade civil representada por Carlos I e da
autoridade religiosa que se constituía na figura ortodoxa e episcopal de William Laud.
Como comenta Verônica Calsoni Lima, “várias razões provocaram os
desentendimentos entre o monarca e os MPs [Membros do Parlamento], mas talvez uma das
principais tensões fora gerada pelo fato de Carlos Stuart ter reinado por onze anos sem chamar
o Parlamento para tomar quaisquer decisões”.9 O monarca só voltaria a consultar os
parlamentares novamente para requisitar apoio financeiro em “suas investidas armadas contra
os irlandeses, que se rebelaram em 1641”,10 demanda recusada pelo parlamento. Tal negativa
levou Carlos I a dissolver “a assembleia” e perseguir “cinco de seus membros, os líderes da
oposição. Os embates levaram a um intenso conflito político que se estendeu de Westminster
para toda a Inglaterra, iniciando a Primeira Guerra Civil em outubro de 1642”.11 Com um
monarca executado por traição em 1649 e um subsequente regime republicano, os embates
político-religiosos permaneceram centrais ao longo de todo o período que culminaria, ainda,
na instauração do Protetorado por Oliver Cromwell em 1653, em uma nova experiência
republicana em 1659 e na restauração monárquica em 1660. Como Hill logo observou, essas
agitações produziram textos dos mais variados gêneros compostos por inúmeras “questões
8
Ibid. p. 179.
9
LIMA, V. C. “Impresso para ser vendido na Crown em Pope’s Head Alley”: Hannah Allen, Livewell
Chapman e a disseminação de panfletos radicais religiosos durante a Revolução Inglesa (1646-1665).
Dissertação (Mestrado em História) - Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de
São Paulo (UNIFESP). Guarulhos, 2016. p. 40.
10
Ibid. p. 40.
11
Ibid. pp. 40-1.
5
intrigantes”. Parece possível, então, entender o interesse acerca daqueles “incendiários dos
nossos tempos”,12 para usar uma expressão presente em Gangraena.
Christopher Hill não foi, porém, o único estudioso a utilizar Gangraena como
documentação para ponderar sobre os comportamentos daqueles sujeitos nomeados heréticos.
Na década de 1990, Anne Laurence, em seu trabalho, Parliamentary Army Chaplains 1642-
1651, apresentou Edwards como “provavelmente ocomentaristacontemporâneomais
importantesobre religião, tanto dentro como forado exército”, enfatizando a utilidade do texto
heresiográfico de Edwards como fonte a respeito dos sectários e independentes seiscentistas.
A pesquisadora ressaltou, inclusive, que Edwards “entendeu as diferentes variedades de
sectarismo”,13 isto é, os grupos que não se conformavam (chamados, portanto, de não-
conformistas) com o governo e a disciplina da Igreja como eram então estabelecidos na
Inglaterra.
Na outra ponta, há autores que tenderam a uma opção analítica contrária à Hill.
Dentre eles, cabe mencionar J. C. Davis cuja abordagem, em sua obra Fear, Myth and
History: The Ranters and the Historians, apontava ao fato de que, empregar Edwards como
evidência sobre a realidade sectária, seria como utilizar Joseph McCarthy — no Pós-Guerra
estadunidense —, para buscar “descrições objetivas sobre as realidades sociais e políticas de
sua época”. Davis destacou que os escritos de Edwards, naturalmente, podem ser uma fonte
para as investigações históricas sobre aquelas décadas nas quais se inscreveram, contudo,
devem sempre ser vistos como uma “percepção enviesada”.14 Cabe observar que Fear, Myth
and History, vinculou-se a uma tendência mais geral que existiu desde os anos 1970 até os
1980 de crítica às leituras marxistas sobre os radicais. Dentro dessa perspectiva crítica, muitas
vezes classificada frouxamente como “revisionista” a leitura de sabor nominalista de Davis
gerou um grande impacto à altura, ao buscar mostrar que o próprio termo radical era
anacrônico — invalidando seu uso como categoria analítica — e, que mesmo que houvesse
alguma aplicação, aquilo que Hill e outros designavam como “radicais” (como os ranters) se
12
EDWARDS, T. Gangraena: or A Catalogue and Discovery of many of the Errours, Heresies, Blasphemies
and pernicious Practices of the Sectaries of this time, vented and acted in England in these four last years: As
also, a particular Narration of divers Stories, Remarkable Passages, Letters; an Extract of many Letters, all
concerning the present Sects; together with some Observations upon, and Corollaries from all the fore-named
Premisses. London: Printed by T. r. and E. m. for Ralph Smith, 1646. p. 101. “Incendiaries of our times”.
13
LAURENCE, A. Parliamentary Army Chaplains 1642-1651. Woodbridge: Royal Historical Society Studies in
History, 1990. p. 77. “Thomas Edwards is probably the most important contemporary commentator on religion,
both inside and outside the army; He understood the different varieties of sectarianism”.
14
DAVIS, J. C. Fear, Myth and History: The Ranters and the Historians. Cambridge: Cambridge University
Press, 2002. p. 126. “relying on... Joseph McCarthy for sound, objective depictions of the social and political
realities of their day; biased perception of his own society”.
6
referia a recursos discursivos genéricos e não necessariamente a um grupo de fato. O que para
muitos, como Hill, teria sido o grupo mais “radical” da história inglesa, os ranters, para
Davis, sequer teriam existido.
O embate em torno de uma fonte que tinha por objetivo a catalogação de radicais
não era por acaso. É longa a discussão acerca das possibilidades analíticas ou dos problemas
ligados aos estudos do radicalismo inglês (termo reconhecidamente anacrônico). Como
percebeu Philip Baker, Davis “propôs uma abordagem funcional para a identificação do
radicalismo por meio da avaliação de sua capacidade de deslegitimar o status quo, legitimar
um sistema alternativo e propor um mecanismo de transferência de um para o outro”.15 Um
benefício dessas discussões foi a crescente ampliação de pesquisas que empregassem obras
impressas (os trabalhos de Christopher Hill são emblemáticos, nesse sentido), fossem de
radicais ou de ortodoxos como Edwards. A despeito dos limites impostos pela categoria
radicalismo, é importante observar como essas problemáticas vêm sendo trabalhadas na
atualidade, sendo que os autores têm partido da premissa de que o “contexto determina se
consideramos um ato ou uma ideia particular como radical, o fenômeno em si é, por
necessidade, altamente situacional”.16
O caso presbiteriano é particularmente demonstrativo a esse respeito, pois, como
os pesquisadores têm argumentado, no início da década de 1640, diversos indivíduos
“acreditavam que o ataque ao episcopado era um ataque a algo tão fundamental, tanto para a
Igreja estabelecida quanto para a ordem religiosa e social”.17 É notável, porém, como “a
subsequente abolição do episcopado e o estabelecimento de um novo sistema presbiteriano de
governo da igreja significaram que tal ataque havia perdido essencialmente a sua marca
radical até o final da década”.18 Nesse sentido, seria válido dizer que autores ortodoxos como
Edwards tiveram, inclusive, uma veia radical em períodos anteriores à publicação de
Gangraena, em meio aos embates contra o arcebispo Laud, a defesa aos muitos sujeitos que
mais tarde seriam tidos como heréticos ou a pressão a Carlos I e ao parlamento para a
convocação da Assembleia de Westminster em 1643.
15
BAKER, P. “Radicalism in Civil War and Interregnum England”. Compass 8/2. 2010. p. 154. “proposed a
functional approach to the identification of radicalism through evaluatin its capacity to delegitimise the status
quo, legitimate an alternative system and propose a transfer mechanism from the one to the other”.
16
Ibid. p. 154. “context determines whether we deem a particular act or idea as radical, the phenomenon itself is,
of necessity, highly situational”.
17
Ibid. p. 157. “believed that the attack on episcopacy was an attack on something so fundamental to both the
established Church and the religious and social order”.
18
Ibid. p. 157. “the subsequent abolition of episcopacy and establishment of a new Presbyterian system of
church government meant such an attack had essentially lost its radical edge by the end of the decade”.
7
Tal reflexão importa, uma vez que nos possibilita entender os limites de
designações estanques quando se realizam investigações sobre essas temáticas e períodos,
pois, a busca por definições para a ortodoxia era algo partilhado por ambos os lados do
debate. Ora, em um período marcado por tantas polêmicas, qual seria a utilidade em se
trabalhar um catálogo de heresias como um espelho sobre comportamentos heréticos? Qual a
validade das fontes coletadas por Edwards — sempre descontextualizadas e
recontextualizadas —, para identificar se um indivíduo era, de fato, anabatista, antinomiano,
brownista, independente etc.? São justamente essas questões que começaram a incomodar (e
interessar) os historiadores ao longo das últimas décadas19 e que fazem com que abordagens
mais contextuais tenham se tornado tão relevantes, especialmente quando a documentação
disponível delineava projetos político-religiosos bem demarcados, como veremos por meio da
análise sobre Gangraena.
É perceptível, assim, um percurso mais recente de reavaliação das interpretações
anteriores sobre Gangraena que jogavam luz apenas aos comportamentos de grupos
independentes20 e sectários, com foco em suas origens sociais. Por exemplo, sob perspectiva
diversa da crítica linguística e nominalista de Davis à ideia de grupos “radicais” da
historiografia social inglesa, Nicholas McDowell ressaltou como Hill utilizou Gangraena
para trabalhar, não pela chave da desqualificação e da ignorância dos radicais — algo, de fato,
localizável nos discursos de Edwards —, mas por uma perspectiva marxista simpática às
origens sociais populares desses indivíduos. Por meio de uma averiguação apurada que
cotejava as colocações de Edwards e as biografias de autores radicais, McDowell pode
assinalar outras percepções relativas a essa questão, ponderando sobre como tais sujeitos não
possuíam necessariamente uma formação humilde, popular e iletrada.21
19
Ver, por exemplo: HESSAYON, A.; FINNEGAN, D. Introduction: Reappraising early modern radicals and
radicalism. In: _____. (eds). Varieties of seventeenth and early eighteenth-century English radicalism in context.
Aldershot: Ashgate, 2011.
20
Cabe atentar rapidamente para o uso do termo independentes (ou separatistas), que se relaciona a um grupo
também denominado por congregacionalistas e que esteve posicionado entre os presbiterianos, cujas igrejas
baseavam no governo por anciãos e congregações mais radicais como batistas ou quackers. Observa-se que os
Independentes se vinculavam a Igrejas protestantes que não admitiam uma rígida tutela dos presbitérios. Assim,
inspirados na Confissão de Fé de Westminster, por exemplo, esses homens produziram em 1658 a Declaração de
Savoy sobre Fé e Ordem, na qual sublinharam os princípios congregacionais de autonomia da Igreja local. Ao
longo desta dissertação, optou-se pelo uso da denominação “independentes” por se tratar da forma usual em
Gangraena, no entanto, é necessário observar como essa nomeação escolhida por Edwards não era casual, sendo
que os indivíduos ligados a esse grupo não necessariamente respondiam por tal alcunha.
21
MCDOWELL, N. “Illiterate Mechanick Persons”: Writing, Radicalism, and the Dominant Culture. In: _____.
The English Radical Imagination. Oxford: Oxford University Press, 2003. pp. 01-21.
8
De todo modo, vale observar que, por muito tempo, a questão para os
historiadores residia particularmente nos problemas da imprecisão e da duvidosa construção
discursiva de Gangraena. Nesse sentido, a despeito da riqueza da obra enquanto fonte
documental, os autores tenderam a ressaltar que o texto carecia de uma edição crítica melhor
embasada. Foi num cenário acadêmico ainda permeado por tais debates que Ann Hughes
publicou a obra Gangraena and the Struggle for the English Revolution,22 dando um passo
extremamente importante em direção aos estudos que trabalhassem a obra a partir de sua
intertextualidade, por meio de uma abordagem ligada à História da Leitura. Percebe-se,
portanto, que o texto de Edwards havia sido utilizado, sobretudo, em reflexões relacionadas
aos comportamentos de grupos independentes e sectários. No entanto, a partir dos estudos de
Hughes houve uma inversão considerável nessas abordagens, com um foco então voltado para
as questões presbiterianas.
Um pouco antes, pesquisadores como Tessa Watt, Peter Lake e Alexandra
Walsham leram os textos de Edwards para questionar as interpretações relativas à
impopularidade dos presbiterianos por meio de discussões sobre o mercado livreiro religioso
do período.23 Não cabe aqui avaliar se as doutrinas ortodoxas presbiterianas foram ou não
aceitas pela grande população; todavia, como esses estudiosos demonstraram, havia, no
mínimo, um espaço para o imediato impacto de obras como Gangraena (as petições
presbiterianas realizadas no período também são emblemáticas a esse respeito e serão melhor
trabalhadas no segundo capítulo desta dissertação). Em outras palavras, Ocorreu, portanto,
uma circulação e consumo mais amplo daquelas ideias e posições no período e as campanhas
presbiterianas possuíram seus adeptos. É ainda significante se ater ao modo como Alexandra
Walsham, em Charitable Hatred: Tolerance and Intolerance in England (1500-1700),
apontou, inclusive, para a influência presbiteriana com uma “margem distintamente
subversiva”,24 décadas antes da publicação de Gangraena.
A própria Ann Hughes, por sua vez, em um ensaio comparativo intitulado
“‘Popular’ presbyterianism in the 1640s and 1650s: the cases of Thomas Edwards and
Thomas Hall”, discutiu os métodos presbiterianos a fim de perceber a complexidade de tais
táticas no que concernia a um projeto popular de governo e disciplina da igreja. Para a
22
HUGHES A. Gangraena and the struggle for the English Revolution. Oxford: Oxford University Press. 2004.
23
Ver: LAKE, P. The Boxmaker’s Revenge: ‘Orthodoxy’, ‘Heterodoxy’ and the Politics of the Parish in Early
Stuart London. Manchester: Manchester University Press, 2001; WATT, T. Cheap Print and Popular Piety
1550–1640. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
24
WALSHAM, A. Charitable Hatred: Tolerance and Intolerance in England, 1500-1700. Manchester:
Manchester University Press, 2006. p. 179. “had a distinctly subversive edge”.
9
historiadora, especialmente por meio da análise de Gangraena, seria possível observar uma
metodologia conectada da campanha presbiteriana a partir da ação combinada entre textos e
ações, apropriando-se de “declarações públicas, cartas e panfletos” que visavam maior
alcance popular para aquela causa.25 Nesse sentido, a contribuição de Hughes veio a postular
a possibilidade de análise da obra de Edwards, não por meio de abordagens que diziam
respeito aos comportamentos heréticos, mas a partir daquilo que o texto revelou sobre o
universo presbiteriano de então.
Para Edwards, seus escritos eram como a defesa de uma verdade que vinha sendo
atacada por seus opositores. Como bem observado por Ivan Roots e M. M. Goldsmith já na
introdução à edição de Gangraena lançada em 1977, talvez o valor da obra para o historiador
resida “nos detalhes que Edwards tão obsessivamente coletou”.26 Ainda que, diferentemente
do que diziam esses autores, a análise dessa fonte não seja tão proveitosa no que diz respeito
ao entendimento das atividades dos sectários, a construção da obra (marcada pela
intertextualidade), sem dúvida, revela algo sobre a visão que tais homens e mulheres
“expressaram em conversa privada, bem como em público, por meio da pregação ou da
impressão”.27 A obra também pode ser percebida como um acontecimento que afetou a
compreensão da realidade pelos sujeitos daquele período, uma vez que, como apontou Sharon
Achinstein, a própria Revolução Inglesa “inaugurou uma nova era na disseminação de
informação política na Inglaterra”, em que, pela primeira vez, “a imprensa tornou-se o veículo
para o conflito político aberto”.28 Naquele momento, homens e mulheres passaram a ter
condições para envolverem-se na atividade político-religiosa de maneira nunca antes vista.
Nesse sentido, obras como Gangraena se destacaram também como parte de um
acontecimento que, por si só, revelava novas possibilidades de intensa influência no campo
social, religioso e político.
Gangraena é aqui entendida como a defesa de uma ortodoxia em disputa com
diversas heterodoxias naquele campo aberto político-religioso inglês. No entanto,
diferentemente do que propôs Hughes, ao se debruçar sobre os diversos leitores de
25
HUGHES, A. “Popular” presbyterianism in the 1640s and 1650s: the cases of Thomas Edwards and Thomas
Hall. In: TYACKE, N. (ed.). England's long reformation, 1500–1800. London: University College London
(UCL): 1998. p. 240. “through public declarations, letters, tracts”.
26
GOLDSMITH, M. M.; ROOTS, I. Introduction. In: EDWARDS, T. Gangraena. Exeter: The Rota and the
University of Exeter, 1977. p. 09. “in the details that Edwards so obsessively collected”.
27
Ibid. p. 09. “expressed in private conversation as well as in public by preaching or printing”.
28
ACHINSTEIN, S. Texts in Conflict: the press and the Civil War. In: KEEBLE, N. H. (org.). The Cambridge
companion to writing of the English Revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 51. “The
English Revolution inaugurated a new era in the dissemination of political information in England; For the first
time in English history, the press became the vehicle for open political conflict”.
10
Gangraena, tanto aqueles de 1640 como uma “variedade de leitoresposteriores”,29 aqui
interessa saber, como tais disputas ocorreram dentro do texto, tendo em vista a
intertextualidade desses escritos e a maneira como Edwards transcreveu e recuperou parte do
debate da época. Talvez seja possível avançar em direção aos projetos ortodoxos do autor e de
sua comunidade interpretativa presbiteriana, atentando ao modo como foi forjada uma
unidade presbiteriana em Gangraena em meio às tentativas de definição da disciplina e do
governo da Igreja típicos de um processo de confessionalização e disciplinamento.
Essa organização intertextual da obra dá-se pelo fato de Edwards ter publicado
excertos de panfletos, livros, cartas e petições no interior de Gangraena, debatendo cada um
desses textos internamente. Seria impossível não iniciar este trabalho, portanto, por meio de
uma análise ligada à História da Leitura. Segundo Hughes, trabalhar com Gangraena “requer
uma combinação da ‘análise textual com a pesquisa empírica’, conectando os ‘leitores
implícitos dos textos com os leitores reais do passado’”.30 Nesse sentido, e partindo da ideia
levantada por Nicholas McDowell quanto à erudição em ambos os lados do debate, foi
necessário um esforço de captura dos níveis de leitura presentes na publicação, pois, as
respostas em Gangraena carregaram importantes significados que se vincularam a maneira
como os embates foram recebidos no período. Como apontou Roger Chartier, “os sentidos
atribuídos” às obras “e aos seus motivos dependem das competências ou das expectativas dos
diferentes públicos que delas se apropriam”.31
Ademais, as metodologias acerca da intertextualidade foram imprescindíveis para
o entendimento da publicação, especialmente, no que concerne às percepções sobre os
intertextos explícitos e/ou implícitos e um dialogismo notável em qualquer enunciado. Nesse
sentido, pensando em paralelo aos estudos de Mikhail Bakhtin, é importante ter em mente que
“o texto só ganha vida em contato com outro texto (com contexto)”,32 produzindo, pois, um
diálogo. Para além de aspectos intertextuais explícitos, ou seja, “quando, no próprio texto, é
feita menção à fonte do intertexto, isto é, quando um outro texto ou um fragmento é citado, é
29
HUGHES, A. Op. cit.,2004. p. 15. “readers of Gangraena from the 1640s… discuss the variety of later
readers”.
30
Ibid. p. 15. “requires a combination of ‘textual analysis with empirical research’, connecting the ‘implicit
readers of the texts with the actual readers of the past’”.
31
CHARTIER, R. A Ordem dos Livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII.
Brasília UnB, 1994. p.09.
32
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 162 apud BENTES, A. C.; CAVALCANTE, M. M.;
KOCH, I. G. V. Intertextualidade: diálogos possíveis. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 09.
11
atribuído a outro enunciador”,33 coube atentar, na medida do possível, para o que esteve
implícito em Gangraena. Essa intertextualidade implícita pode ser observada uma vez que,
em determinada obra, localiza-se um “intertexto alheio, sem qualquer menção explícita da
fonte, com o objetivo quer de seguir-lhe a orientação argumentativa, quer de contraditá-lo,
colocá-lo em questão, de ridicularizá-lo ou argumentar em sentido contrário”.34
Pensar em intertextualidade é também, como apontou Richard Bauman, falar
sobre descontextualização em um determinado contexto o que envolve a “recontextualização
em outro, reconhecendo-se o potencial de circulação dos textos, para serem anunciados
novamente em outro contexto”.35 Esse movimento tão complexo de ser explicado, é percebido
a todo o momento em Gangraena, a partir dos inúmeros discursos que o autor
descontextualizava para responder aos debates que lhe eram colocados. As respostas
apresentadas em Gangraena eram parte de uma circulação de ideias profícua naquele período,
ao passo que Gangraena, em si mesma, era também uma resposta de seu autor aos problemas
daquele tempo. Retornando a conhecida citação de Bakhtin— e que dá título à obra de
Bauman —, é necessário analisar Gangraena reconhecendo que essa obra era um “mundo das
palavras de outros”.36
É claro que, além de uma aproximação intertextual, compete também pensar sobre
a questão do vocabulário, tendo em vista, sobretudo, a construção dos discursos do autor.
Como apontou Quentin Skinner, é necessário ter cuidado com a ideia de recuperação dos
“motivos” e “intenções” dos autores, até porque, mesmo que essa abordagem seja possível,
ela nem sempre auxilia a “estabelecero significadode um texto”.37 Fica claro, portanto, que
um texto pode possuir “significados imaculados e intencionais” trazidos pelo autor, porém,
para Skinner, a principal e mais proveitosatarefa a se realizar, refere-se a investigação dos
“significadospúblicos que [os textos] posteriormente venham a adquirir”.38 Paralelamente a
isso, foi também importante partir das reflexões de Skinner para pensar as relações entre
33
BENTES, A. C.; CAVALCANTE, M. M.; KOCH, I. G. V. Intertextualidade: diálogos possíveis. 2. ed. São
Paulo: Cortez, 2008. p. 28.
34
Ibid. p. 30.
35
BAUMAN, R. A world of others’ words: cross-cultural perspectives on intertextuality. Malden, MA/USA:
Blackwell Publishing, 2004. p. 04. “recontextualization in another, which is to recognize the potential for texts to
circulate, to be spoken again in another context.”
36
Em referência a: BAKHTIN, M. Speech Genres and Other Late Essays. Austin: University of Texas Press,
1986. p. 143. “I live in a world of others’ words”.
37
SKINNER, Q. Visions of politics. Vol. 1: Regarding Method. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
p. 95. “establish the meaning of a text”.
38
Ibid. p. 96. “texts have ‘pristine’ and intended meanings; investigating the ‘public meanings’ they
subsequently come to acquire”.
12
discurso e prática — tão fundamentais a uma análise voltada também para a compreensão da
unidade presbiteriana —, no sentido de que “discurso também é ação”.39
Além disso, importou ter em mente as dificuldades teórico-metodológicas
impostas pelo período estudado, percebendo como conceitos de “contrariedade” e “oposição”
são extremamente úteis para pensar o momento social e político-religioso no qual Gangraena
se inscreveu. Uma possibilidade foi trabalhar esses aspectos na esteira dos esforços de Stuart
Clark em relação à bruxaria, construída “dialeticamente em termos do que ela não era; o
significante nela não é sua substância, mas o sistema de oposição que ela estabeleceu e
preencheu”.40 Nesse sentido, a catalogação dos equívocos heréticos dos oponentes de
Edwards foi entendida em uma chave de oposição em relação à ortodoxia defendida pelo
autor. Assim, por meio das heresias elencadas, pode-se observar menos os comportamentos
heterodoxos e mais aquilo que se pretendia ortodoxo. A própria forma textual de Gangraena
dependeu do contato com aquilo que Edwards procurava destruir.
Por conseguinte, a fim de pensar sobre os comportamentos ortodoxos e
heterodoxos e sobre o que era herético, é preciso ter em mente, como colocou McDowell, que
a “ortodoxia, afinal, só pode ser definida em relação ao que é considerado heterodoxo por
aqueles em posições de poder e de autoridade em uma sociedade”.41 Essa análise acerca das
diferenciações entre ortodoxias e heterodoxias exige uma aproximação de trabalhos de autores
— tais como João Adolfo Hansen42 e Richard Hanson43 — que tratam da retórica, da
polêmica, da apologética e do gênero heresiológico ao qual Gangraena esteve particularmente
ligada, como mostraram Ann Hughes44 e Kei Nasu.45 Nesse sentido, vale ressaltar que a
construção discursiva de Edwards esteve, a todo instante, articulada aos textos clássicos,
sobretudo, aqueles relacionados à Patrística. Decorre daí a importância de se lançar mão de
39
Ibid. p. 04. “speech is also action”.
40
CLARK, S. Pensando com Demônios: A idéia de Bruxaria no Princípio da Europa Moderna. São Paulo:
EDUSP, 2006. p. 34.
41
MCDOWELL, N. Op. cit., p. 9. “Orthodoxy, after all, can only be defined in relation to what is deemed
heterodox by those in positions of power and authority in a society”.
42
Ver: HANSEN, J. A. “Instituição retórica, técnica retórica, discurso”. Matraga. Rio de Janeiro, v.20, n.33,
jul./dez. 2013. pp. 11-46.; _____. “Retórica da Agudeza”. LETRAS CLÁSSICAS, n. 4, 2000. pp. 317-342.
43
HANSON, R. The achievement of orthodoxy in the fourth century AD. In: WILLIAMS, R. (ed.). The Making
of orthodoxy: essays in honour of Henry Chadwick. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. pp. 142-156.
44
Ver: HUGHES, A. Thomas Edwards’s Gangraena and heresiological traditions. In: LOEWENSTEIN, D.;
MARSHALL, J. (eds.). Heresy, Literature, and Politics in Early Modern English Culture. Cambridge:
Cambridge University Press, 2006. pp. 137-159.
45
Ver: NASU, K. Heresiography and the Idea of “Heresy” in Mid-Seventeenth-Century Religious Culture. Tese.
York: Universidade de York, 2000. Disponível em: <http://ethos. bl. uk/Home. do;jsessionid=
0F319CEDBE39AF 09F2F06511CEE26777>. Acesso em: Ago. 2016.
13
metodologias que possibilitem a compreensão da chave retórica dos escritos de Edwards,
lidando com noções de lugar-comum, auctoritas e exemplas clássicas típicas das
heresiografias, bem como a própria invenção da ideia de heresia [haeresis].46
Por fim, foi necessário articular algumas abordagens disponíveis em meio aos
autores que tratam a respeito das categorias de confessionalização e disciplinamento social,
sem as quais as reflexões sobre governo e disciplina da igreja em Gangraena não seriam
possíveis de serem realizadas. Tal debate, como não poderia deixar de ser, partiu de dois
autores alemães consagrados por seus trabalhos nessa temática, Heinz Schilling47 e Gerhard
Oestreich.48 Todavia, foram consideradas abordagens mais recentes — como as empreendidas
por Alexandra Walsham,49 Ute Lotz-Heumann,50 Peter Marshall51 e Rui Luis Rodrigues52 a
esse respeito, especialmente tendo em vista o uso de tais categorias históricas para se
compreender contextos mais específicos, como aquele ao qual Gangraena se inscreveu. Além
disso, essas análises questionam modelos propostos pelos autores alemães que dizem respeito
a uma confessionalização sempre hierarquizada e iniciada a partir do poder civil
centralizado.53 Por outro lado, também foi importante considerar o uso dessas categorias no
trato de fontes ligadas a Inglaterra seiscentista, algo não tão usual na historiografia britânica.
46
DUBOIS, J. d. Polêmicas, poder e exegese: o exemplo dos gnósticos antigos o mundo grego. In: ZERNER, M.
Inventar a heresia?: discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
pp. 39-55.
47
Ver: SCHILLING, H. Confessionalization in the Empire: Religious and Societal Change in Germany between
1555 and 1620. In: _____. Religion, Political Culture and the Emergence of Early Modern Society: Essays in
German and Dutch History. Leiden: Brill, 1992. pp. 205-245.
48
Ver: OESTREICH, G. Neostoicism and the early modern state. Cambridge: Cambridge University Press,
2008; _____. Problemas estruturais do absolutismo europeu. In: HESPANHA, A. M. Poder e instituições na
Europa do Antigo Regime. Colectânea de Textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. pp. 179-200.
49
Ver: WALSHAM, A. Op. cit.
50
LOTZ-HEUMANN, U. Confessionalization. In: WHIFORD, D. M. (ed.). Reformation and early modern
Europe: a guide to research. Kirksville, Missouri: Truman State University Press, 2008. pp. 136-157; _____.
Confessionalization in Ireland: Periodization and Character, 1534-1649. In: FORD, A. e MCCAFFERTY, J.
(eds.). The Origins of Sectarianism in Early Modern Ireland. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. pp.
24-53; _____. Imposing church and social discipline. In: HSIA, R. P. C. The Cambridge History of Christianity:
Reform and Expansion 1500-1660, vol. 6. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. pp. 244-260.
51
MARSHALL, P. Confessionalization, Confessionalism and Confusion in the English Reformation. In:
MAYER, T. (ed.). Reforming Reformation. Farnham, 2012. pp. 02-03. Disponível em: <http://www. augustana.
edu/Documents/history/marshall_reformation_ paper. pdf>. Acesso em: out. 2015.
52
Ver: RODRIGUES, R. L. Entre o dito e o maldito: Humanismo erasmiano, ortodoxia e heresia nos processos
de confessionalização do Ocidente, 1530-1685. Tese (Doutorado em História) - FFLCH/USP. São Paulo, 2012;
_____. “Os processos de confessionalização e sua importância para a compreensão da história do Ocidente na
primeira modernidade (1530-1650)”. Revista Tempo, vol. 23, n. 1. Jan./Abr. 2017. pp.1-21.
53
Também vale ressaltar as importantes contribuições de historiadores ibéricos no que concernem aos usos das
categorias de confessionalização e disciplinamento. Ver, por exemplo, PAIVA, J. P. Baluartes da fé e da
disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1750). Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2011; PALOMO, F. A Contra-Reforma em Portugal - 1540-1700. Lisboa: Livros
Horizonte, 2006; _____. “‘Disciplina christiana’ Apuntes historiográficos en torno a la disciplina y el
disciplinamiento social como categorías de la historia religiosa de la alta edad moderna”. Cuadernos de Historia
14
Essas foram, em linhas gerais, as discussões que nortearam a produção desta
dissertação de mestrado e que se expressarão com mais detalhamento ao longo dos capítulos.
Para o trabalho de pesquisa — realizado com financiamento da FAPESP entre março de 2015
e abril de 2017 — foram utilizadas as três partes de Gangraena, assim como outros textos
publicados por Thomas Edwards e seus opositores e aliados em meio às agitações político-
religiosas do período, tão evidentes a partir da intertextualidade da obra. Para tanto, foi lida a
versão impressa da obra, publicada por Goldsmith e Roots em 1977, juntamente à transcrição
da segunda edição da publicação, disponível a partir da base de dados Early English Books
On-line (EEBO),54 acessível pela rede da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Além da EEBO, também foram consultadas outras bases de dados, repertórios e catálogos on-
line, como o Oxford Dictionary of National Biography (DNB),55 English Short Title
Catalogue (ESTC)56 e a British Library EThOS (e-theses on-line service).57 Foram
consultadas ainda as edições de Gangraena disponíveis na Dr William’s Library (DWL), bem
como outras publicações presbiterianas que compõem a coleção da instituição. Trabalhou-se
também com documentos eclesiásticos e universitários relacionados à trajetória de Thomas
Edwards e acessíveis na British Library (BL), nos City of Westminster Archives Centre, nos
London Metropolitan Archives (LMA) e na University of Cambridge. Após a pesquisa,
estruturou-se os capítulos a fim de se pensar Gangraena 1) em meio ao gênero heresiológico e
aos aspectos intertextuais inerentes a obra, 2) seguido por uma apreciação da obra a partir das
discussões relativas ao presbiterianismo inglês e, por fim, 3) analisando-a tendo em vista
Moderna, n. 18, 1997. pp. 119-136. Disponível em: <http://revistas. ucm. es/index. php/CHMO/article/
view/CHMO9797120119A/23456>. Acesso em: Set. 2015; QUEIRÓS, M. H. “A Contra-Reforma em Portugal
1540-1700 (nota crítica à obra de Federico Palomo)”. Via Spiritus, n.16, 2009. pp. 175-186. Disponível em:
<http://ler. letras. up. pt/ uploads/ficheiros/ 8678. pdf>. Acesso em: Set. 2015.
54
A Early English Books On-line (EEBO) é uma base de dados pela qual é possível acessar cerca de 125 mil
títulos listados em Pollard & Redgrave's Short-Title Catalogue (1475-1640) e Wing's Short-Title Catalogue
(1641-1700), além de edições revisadas como a coleção Thomason Tracts (1640-1661) e a Early English Books
Tract Supplement. Tal suporte é notadamente valioso para os estudos do século XVII inglês, possibilitando
discussões sobre diversas temáticas, como literatura inglesa, história, filosofia, linguística, teologia, música, artes
plásticas, educação, matemática e ciência. Disponível em: <http://eebo. chadwyck. com/home>.
55
Oxford Dictionary of National Biography (DNB) é o registro nacional de indivíduos (homens e mulheres)
considerados fundamentais no que concerne a história e a cultura britânica, em todo o mundo, desde meados do
período Romano até o século XXI. Tal ferramenta oferece biografias concisas e atualizadas, redigidas por
autores especializados. O Oxford DNB é supervisionado por acadêmicos da Universidade de Oxford no Reino
Unido e publicado pela Oxford University Press. Disponível em: <http://www.oxforddnb.com/>.
56
English Short Title Catalogue (ESTC) é a junção de catálogos de mais de 2000 bibliotecas de todo mundo,
incluindo a British Library. Muitos registros também incluem referências a Early English Books 1475-1640 e a
Early English Books 1641-1700. Disponível em: <http://estc. bl. uk/F/?func=file&file_ name=login-bl-estc>.
57
British Library EThOS (e-theses on-line service) é uma base nacional de teses produzidas no Reino Unido que
tem por objetivo dar visibilidade e tornar disponível o maior número possível de teses de doutorado realizadas no
Reino Unido. O servidor conta com aproximadamente 400.000 registros relacionados a 120 instituições
universitárias. Disponível em: <http://ethos. bl. uk/Home. do>.
15
debates mais amplos para o período concernentes às categorias de confessionalização e
disciplinamento social.
No primeiro capítulo, intitulado “Polêmicas “agora em voga”: tradição
heresiográfica, retórica e intertextualidade em Gangraena”, interessava analisar como a obra
esteve organizada, analisando-o em meio a tradição heresiográfica e retórica ainda vigentes no
período, mas também tendo em vista a intertextualidade e a polêmica típicas da guerra
panfletária que ocorria no momento que coincide com a produção de Gangraena.
Considerando a complexidade dos escritos de Edwards no que dizia respeito aos modelos
heresiográficos, essa análise, muitas vezes, apontou para o que Gangraena não era, em termos
estruturais, para que fosse possível entender como o texto esteve, de fato, constituído. Os
capítulos seguintes, continuaram permeando essas questões, sobretudo, na tentativa de
averiguar como a intertextualidade dessa heresiografia se vinculava ao movimento
presbiteriano do período e, mais amplamente, aos embates confessionais do século XVII.
Em seguida, no capítulo “Retórica da Unidade: governo, disciplina e ortodoxia
presbiteriana na obra de Thomas Edwards”, interessou trabalhar, com mais detalhamento, a
ortodoxia presbiteriana defendida pelo heresiógrafo, partindo de um panorama relativo ao
movimento presbiteriano, apontando, por exemplo, para noções de governo da Igreja e de jure
divino típicas de tal grupo e que foram também marcadas pela influência calvinista. Além
disso, coube refletir sobre o presbiterianismo na década de 1640, no que concerne às relações
estabelecidas na Assembleia de Westminster, convocada em 1643 e a disciplina da Igreja tão
cara aos sujeitos do período (não apenas presbiterianos). Por fim, também foi necessário um
esforço em observar a forma retórica e intertextual pela qual Edwards construiu uma unidade
presbiteriana que se apoiava justamente em questões como, o governo e a disciplina da igreja.
Por fim, no terceiro capítulo intitulado “Palavras Malditas: confessionalização,
ortodoxia, autoridade civil e a gangrena inglesa”, tentou-se verificar como e se Gangraena se
vincula a uma abordagem menos pautada pela especificidade inglesa, pensando a obra a partir
dos debates sobre confessionalização e disciplinamento, das noções de ortodoxias e
heterodoxias para então pensar novamente os projetos de Edwards para a resolução daquela
enfermidade, identificada pelo autor na Inglaterra do período. Para tanto, foi imprescindível
que se partisse de um debate historiográfico e metodológico sobre tais categorias históricas.
Quando a documentação assim possibilitou, coube refletir sobre o viés disciplinador dessa
heresiografia, por meio das palavras malditas e dos discursos tidos como perigosos presentes
16
em Gangraena, da noção médica que dá título à obra e, também, entendendo como Edwards
concebia as relações entre a sua doutrina ortodoxa presbiteriana e a autoridade civil em vigor.
Parecerá evidente, é claro, os limites de uma análise focada, sobretudo, em uma
única obra e autor, publicada integralmente em um único ano (1646). Por esse motivo, na
medida do possível, as abordagens foram articuladas aos textos, de aliados e oponentes,
mencionados por Edwards em meio a sua exposição intertextual, bem como documentação
paralela que dissesse respeito às agitações tão significativas para o entendimento sobre a
Guerra Civil Inglesa. Esperou-se, além disso, realizar uma reflexão que colocasse Gangraena
em contextos mais específicos (o gênero heresiográfico, o presbiterianismo e os eventos
ingleses mais imediatos) e também mais amplos (a confessionalização e o disciplinamento
social como um todo) e que perpassassem as dinâmicas de construção de uma ortodoxia
sempre em oposição (em regimes de contrariedade) às heterodoxias que eram, para Edwards,
um cancro a se alastrar pela Inglaterra do período.
17
Capítulo 1
A década de 1640 é reconhecida por ter sido palco de intensos debates que
visavam alterações no quadro político, social e religioso na Inglaterra do período. Thomas
Edwards e sua obra Gangraena foram importantes no decorrer de tais embates, tornando-se
essenciais para o entendimento daquele momento. Em tal ocasião, Edwards envolveu-se em
diversas polêmicas a respeito de questões como a tolerância religiosa, a liberdade de
consciência e os comportamentos heréticos que dizem respeito a outros embates vivenciados
pelo autor presbiteriano em décadas anteriores. Cabe, portanto, alguns breves apontamentos
sobre o período iniciado com a formação de Edwards em Cambridge para, por fim, atentar à
publicação de Gangraena no ano de 1646.
Tendo provavelmente nascido em Londres em 1599 — sabe-se ao menos que
passou sua infância em tal localidade —, Thomas Edwards foi um clérigo universitário
presbiteriano formado no nomeadamente puritano Queen’s College, em Cambridge.
Matriculou-se em 1618 e formou-se Bacharel em Artes em 1621-2 e Mestre em Artes em
1625. No ano de 1626 foi ordenado diácono e mudou-se para Oxford onde, posteriormente,
foi licenciado como pregador na St. Botolph’s, Aldersgate, em Londres, cargo do qual se
veria suspenso logo depois pelo então Bispo de Londres, William Laud.59
Ao longo de sua formação em Cambridge, Edwards esteve em contato com
muitos dos seus futuros oponentes, como William Bridge e John Goodwin, com os quais
58
EDWARDS, T. Op. cit.. p. 01.“The first thing I premise, which I would have the Reader to take notice of, is,
that this Catalogue of Errours, Blasphemies, Practises, Letters, is not of old Errours, Opinions, Practises, of a
former age, dead and buried many yeers ago, and now revived by this Discourse; but a Catalogue of Errours now
in being, alive in these present times”.
59
Informações retiradas de: EDWARDS, Thomas (1599-1648). ACAD. Disponível em: <http://venn. lib. cam.
ac. uk/acad/search-130418. html>. Acesso em: jun. 2015.
18
debateu questões relativas às dissidências religiosas e aos Independentes e que, sem dúvida,
ajudaram a moldar as ideias posteriores do autor. Cabe ainda observar que justamente na
década de 1620 ocorreu a morte de Jaime I e a ascensão de Carlos I ao trono, ocasião marcada
por fortes debates e desconfianças em torno do novo monarca. Seu casamento com
Henriqueta Maria (uma católica) foi visto de forma alarmante para uma sociedade, cujas
percepções se fundamentavam na Bíblia, um livro que “tinha muito a dizer contra o
casamento com rainhas estrangeiras, especialmente de uma religião errada”.60 É possível
talvez conjecturar que tal contexto tenha influenciado algumas das posições de Edwards em
relação, por exemplo, à tolerância religiosa e ao temor de uma influência católica renovada.
Mais de uma década depois, o ministro presbiteriano publicaria o polêmico
Reasons Against the Independent government of Particular Congregations As also Against
the Toleration of such Churches to be erected in this Kingdome (1641),61 cujo conteúdo
revelou a emergência de um tópico recorrente nos textos do autor: a tolerância. A partir desse
período, Thomas Edwards consideraria, de fato, a tolerância um mal imensurável, pois,
“ninguém sabe onde esses sectários hão de parar ou ficar, nem a que princípios hão de se
aferrar”.62 Assim, para o autor, ao se adotar a tolerância, seriam abertos espaços para a
instauração de todos os tipos de heresias. A resposta mais imediata a Reasons foi realizada
pela polemista religiosa leveller (nivelador),63 Katherine Chidley,64 em The Justification of the
Independent Churches of Christ (1641),65 algo que incomodou Edwards profundamente, por
se tratar de um texto escrito por uma mulher.66 O episódio é relevante, sobretudo, ao auxiliar
60
HILL, C. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 102.
61
EDWARDS, T. Reasons Against the Independant government of Particular Congregations As also Against
the Toleration of such Churches to be erected in this Kingdome. London: Printed by Richard Cotes for Jo.
Bellamie, & Ralph Smith, 1641.
62
Idem. Gangraena, I. pp. 153-54. apud HILL, C. O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a
revolução inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. pp. 109-110.
63
Os levellers (niveladores), foram um importante grupo político-religioso que reivindicou a tolerância religiosa
e a igualdade política por meio do voto universal masculino e da defesa da propriedade não coletivista.
64
Katherine Chidley (1616-1653) foi uma controversialista religioso e leveller (nivelador). Na década de 1620,
casou-se com o alfaiate Daniel Chidley, em Shropshire e, junto ao cônjuge, atuou em grupos que questionavam
às autoridades episcopais na região, sendo ambos computados pelo consistório por não comparecerem à igreja.
Décadas mais tarde, em Londres, uniu-se a outros separatistas como John Duppa e John Lilburne, também
contrários ao episcopado. GENTLES, I. J. “Chidley, Katherine (1616–1653), religious controversialist and
Leveller”. DNB. Disponível em: <http://www.oxforddnb.com/view/article/37278>. Acesso em: out. 2017.
65
CHIDLEY, K. The justification of the independant churches of Christ. Being an answer to Mr. Edvvards his
booke, which hee hath written against the government of Christs church, and toleration of Christs publike
worship; briefely declaring that the congregations of the saints ought not to have dependancie in government
upon any other; or direction in worship from any other than Christ their head and lavv-giver. London: printed for
William Larnar, and are to be sold at his shop, at the signe of the Golden Anchor, neere Pauls-Chaine, 1641.
66
BAKER, P. R. S. Op. cit. sem página.
19
na compreensão de outro assunto periódico nas publicações de Thomas Edwards: a
inoportuna presença feminina em ambientes de pregação.
Em meio às divisões entre presbiterianos e independentes, Thomas Edwards
publicou sua Antapologia, or, A Full Answer to the ‘Apologeticall Narration’(1644) em
resposta ao texto An Apologeticall Narration, escrito por Thomas Goodwin, Philip Nye,
Sidrach Simpson, Jeremiah Burroughs e William Bridge em 1643.67 A controversa
Antapologia intencionava afirmar a superioridade dos presbiterianos em oposição aos
independentes, uma vez que, para Edwards, somente o presbiterianismo poderia conter
aqueles “muitos erros, divisões e males” presentes na sociedade do período.68A polêmica em
torno de An Apologeticall Narration será também relevante para o entendimento dos
mecanismos discursivos de Gangraena a serem tratados adiante.
Tais publicações deram à Edwards certa notoriedade no período e, nesse sentido,
de acordo com Robert Baillie, “os ministros presbiterianos de Londres moveram-se
rapidamente para explorar essa notoriedade [que se dava por meio das recepções das obras do
escritor polemista]” e criaram uma “palestra semanal para Edwards na Christ Church em
Newgate”.69 Parece plausível inferir que após essa ocasião, Thomas Edwards começou a
executar uma posição mais prática e específica na campanha presbiteriana. Foi ainda em tal
momento que o autor começou a construir sua rede de simpatizantes na qual havia, por
exemplo, ministros tais como Josiah Ricraft, Thomas Webbe, Thomas Alle e John Vicars que
seriam usados “como informantes para entregar-lhe relatos escabrosos e detalhes sobre a
ameaça sectária”.70 Talvez seja possível então considerar a formação de uma comunidade
interpretativa no que se refere às organizações presbiterianas da década de 1640,
evidenciando-se interesses específicos a serem defendidos pelo grupo, como veremos no
capítulo 2 desta dissertação.
Foi, sobretudo, em meio a uma crescente influência dos Independentes e do
radicalismo religioso que Thomas Edwards passou a trabalhar em sua mais conhecida obra:
67
BRIGDE, W.; BURROUGHS, J.; GOODWIN, T., NYE, P., SIMPSON, S. An Apologeticall Narration.
London: Printed for Robert Dawlman, M. dC. xLIII. [1643].
68
EDWARDS, T. Antapologia, or, A full answer to the Apologeticall narration of Mr Goodwin, Mr Nye,
Mr Sympson, Mr Burroughs, Mr Bridge, members of the Assembly of Divines. London: Printed by G. m. for
John Bellamie, 1644. EEBO. Disponível em: <http://eebo. chadwyck. com/>. Acesso em: 20 mai. 2014. p. 152.
“those many errours, divisions, evils which fall out in your way”.
69
BAKER, P. R. S. Op. cit. sem página. “the presbyterian ministers of London moved quickly to exploit this
notoriety by establishing a weekly lecture for Edwards at Christ Church, Newgate”.
70
DYTON, S. Edwards, Thomas (1599–1647) [verbete]. In: BREMER, F. J.; WEBSTER, T. (eds.). Puritans
and Puritanism in Europe and America. A Comprehensive Encyclopedia. Santa Barbara, Califórnia: ABC Clio,
2006. p. 86. “informers to furnish him with detailed and lurid accounts of the sectarian menace”.
20
Gangraena: or A Catalogue and Discovery of many of the Errours, Heresies, Blasphemies
and pernicious Practices of the Sectaries of this time, em 1646. Dividida em três partes e
impressa em Londres por Ralph Smith em Cornhill perto do Royal Exchange,71 Gangraena
parece ter sido um livro influente em seu tempo, sendo um título reimpresso rapidamente em
edições lançadas nos meses de fevereiro, maio e dezembro de 1646. Tais publicações
incluíram os três volumes do livro lançados separadamente, bem como outras duas edições
compiladas, organizando primeiramente as partes 1 e 2 e, por fim, produzindo uma edição
completa com os três volumes finalizados.
A primeira parte do livro, publicado em fevereiro de 1646, intitulada Gangraena,
or, A catalogue and discovery of many of the errours, heresies, blasphemies and pernicious
practices of the sectaries of this time, iniciou o longo trabalho de catalogação dos
comportamentos heréticos dos adversários de Edwards, no qual o autor elencou 176 erros
cometidos por tais oponentes, ampliados para 180 em um apêndice ao final da obra. Cabe
observar que a circulação dessa primeira publicação coincidiu com o período de campanhas
em torno da Petição da Cidade de Londres “coordenada com os protestos da Assembleia,
contra as inadequações da primeira legislação Presbiteriana do parlamento”.72
Em maio do mesmo ano foi impressa a segunda parte de Gangraena, A fresh and
further Discovery of the Errors, Heresies, Blasphemies, and dangerous Proceedings of the
Sectaries of this time, também importante por conta do levantamento dos equívocos
cometidos por sectários (empreitada já iniciada na primeira parte da publicação). Esse
segundo título, porém, é ainda mais pertinente por dispor de informações relevantes aos
debates de ideias e respostas panfletárias no período, sendo que o texto contém detalhes
acerca da própria circulação e recepção da primeira parte da obra. Essa publicação surgiu em
meio à condenação realizada pela Câmara dos Comuns em relação à Petição da Assembleia,
anteriormente lançada.73
Ao longo da segunda parte, Thomas Edwards respondeu a muitas questões
relativas à mobilização presbiteriana, apresentando ao leitor cartas trocadas com seus aliados
e debatendo, por meio de questões, objeções e respostas, diretamente os argumentos de seus
opositores. Em um determinado tópico da publicação, o heresiógrafo respondeu a vários
71
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 01. Informação sobre a publicação contida no frontispício da obra.
72
HUGHES, A. “‘Popular’ presbyterianism in the 1640s and 1650s: the cases of Thomas Edwards and Thomas
Hall”. In: TYACKE, N. (ed.). England's long reformation, 1500–1800. Londres: University College London
(UCL), 1998. p. 239. “co-ordinated with the protests of the Assembly, against the inadequacies of parliament’s
first Presbyterian legislation”.
73
Ibid. p. 239.
21
textos, como Groanes for Liberty74 de John Saltmarsh e Cretensis75 de John Goodwin. Cabe
ressaltar, em particular, que a réplica aos escritos de Goodwin ocupou parte considerável em
Gangraena, havendo menção ao texto em cerca de cem páginas no decorrer da segunda parte
da obra. Desse modo, a ameaça representada por esses independentes e sectários ocupou um
espaço abrangente no catálogo de erros e de heresias de Edwards, aqui entendido como uma
heresiografia.
A terceira parte de Gangraena, Or, A new and higher discovery of the errors,
heresies, blasphemies, and insolent proceedings of the sectaries of these times foi publicada
em dezembro do mesmo ano. Nota-se como nesse terceiro livro, a lista dos equívocos
catalogados por Edwards já chegava a quase trezentos, permanecendo inacabada. O texto
surgiu em meio às hostilidades com o Exército de Novo Tipo (New Model Army), sendo a
publicação também voltada à campanha presbiteriana e a defesa de uma ortodoxia específica
em face à radicalização das propostas niveladoras e dos ataques dos chamados shakers
(agitadores). Esse volume da obra foi impresso no contexto das eleições do Conselho em
dezembro de 1646, na qual os presbiterianos reforçaram um controle sobre a cidade, ao passo
que ocorriam renovadas campanhas que levaram a divisão com o exército e, “finalmente, a
invasão do exército de Londres no verão de1647”.76 Como apontou Mark Kishlansky, esse
momento de intervenção do Exército acelerou a fragmentação da causa parlamentar unitária
“em partidos políticos concorrentes, com liderança, organização, ideologia e eleitorado”.77 A
urgência de uma obra como Gangraena parece evidente quando “a partir de 1647, foi em
mãos do Exército e não do Parlamento, menos ainda do clero presbiteriano, que esteve o
poder decisório”.78
São poucas as informações remanescentes sobre as atividades de Edwards em
meados de 1647 na ocasião da edição de sua última obra, The Casting Down of the Last and
Strongest Hold of Satan,79 na qual o autor mais uma vez ressaltou os pontos sobre tolerância
já abordados em outros momentos de sua carreira. No encerramento do verão de 1647, haja
74
SALTMARSH, J. Groanes for Liberty. London: Printed for Giles Calvert, at the black spread-Eagle at the
west end of Pauls, 1646.
75
GOODWIN, J. Cretensis: or A briefe answer to an ulcerous treatise, lately published by Mr Thomas
Edvvards, intituled Gangraena. London: Printed by M. s. for Henry Overton, and are to be sold at his shop in
Popes-head Alley, 1646.
76
HUGHES, A. Op. cit., 1998. p. 239. “ultimately, the army’s invasion of London in the summer of 1647”.
77
KISHLANSKY, M A. The Rise of the New Model Army. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p.
16. “into opposing political parties, with leadership, organization, ideology, and constituency”.
78
HILL, C. Op. cit., 1987. p. 167.
79
EDWARDS, T. The Casting Down of the last and strongest hold of Satan or A Treatise Against Toleration.
London: Printed by T. r. and E. e. for George Calvert, 1647.
22
vista o clima pouco favorável aos presbiterianos, em meio ao predomínio do Exército, a
prisão de Carlos I (que seria executado em 1649) e aos acalorados e radicais debates de
Putney, Edwards fugiu para Amsterdã, onde teria permanecido presumivelmente desiludido
com a situação em Londres, até sua morte.80 Cabe observar que data do falecimento de
Thomas Edwards não é uma unanimidade entre os biógrafos. O Oxford Dictionary of
National Biography aponta para fevereiro de 1648, a enciclopédia Puritans and Puritanism in
Europe and America postula o falecimento em 27 de Dezembro de 1647 e a Cambridge
Alumni Database tem por base a data de 24 de Agosto de 1647. De todo modo, o registro de
falecimento no Conselho Paroquial (Parochial Church Council - PCC) pontua somente o ano
de 1648.
Como o próprio título de Gangraena revela, essa heresiografia produzida por
Edwards era um catálogo que tinha por objetivo explicitar os erros heréticos cometidos pelos
sujeitos ali descritos. Cabe observar que esses comportamentos heréticos foram sempre
assinalados por contemporâneos ao olharem as condutas de outros contemporâneos.81 Assim,
é válido ressaltar que, como “todo herético torna-se tal por decisão das autoridades
ortodoxas”,82 a acepção de heresia em Gangraena é praticamente indissociável da noção de
ortodoxia presbiteriana de seu autor. Além disso, como apontou Georges Duby para outros
contextos, os heréticos surgem sempre em um contato direto com as Igrejas que foram
consideradas indignas por terem se tornado “estranhas à nação ou então muito visivelmente
aliadas a poderes políticos ou econômicos detestados”.83 Como se sabe, o caso do
laudianismo inglês é emblemático, nessa direção, enquanto um tipo de ortodoxia altamente
criticada por seu distanciamento aos costumes religiosos vividos pela população e muitas
vezes vista como papista.
Se as dissidências nascem desse processo de não reconhecimento perante uma
ortodoxia, é possível ponderar que obras como Gangraena surjam em um sentido inverso. Por
um lado, agiam como um discurso em busca de adeptos à ortodoxia questionada, como
ocorreu com obras mais antigas publicadas desde os primórdios do cristianismo. Por outro,
também visando combater os membros desgarrados a fim de evitar proliferações de
congregações heterodoxas, cujos adeptos supunham não seriam tão facilmente reconvertidos.
Partindo da ideia de John Pocock, talvez a questão resida ainda na crença, tanto de
80
BAKER, P. R. S. Op. cit., sem página.
81
DUBY, G. “Heresias e sociedades na Europa pré-industrial, séculos XI-XVIII”. In: _____. Idade Média, Idade
dos Homens. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 208.
82
Ibid. p. 209.
83
Ibid. p. 213.
23
congregações mais radicais como das mais ortodoxas, de que a “autoridade repousava em si
mesmos e em mais ninguém”.84 De tal maneira, vale notar que há diferenciações sobre o que e
quando algo é considerado ortodoxo, ou ainda em que momento uma heterodoxia se
transforma em ortodoxia.
É sempre importante notar como a própria noção de herético não esteve
diretamente relacionada às Escrituras, pois “em um tempo em que não há ainda a heresia
constituída, não se pode falar de herético”.85 Como afirma Jean-Daniel Dubois, “no Novo
Testamento a ausência do termo ortodoxia ou heterodoxia não deve surpreender num período
em que ainda não há ortodoxia; também não há um cânon escriturístico, afora a Bíblia
judaica”.86 Ainda segundo Dubois, o
84
POCOCK, J. G. A. “Within the margins: the definitions of orthodoxy”. In: LUND, Roger D. (org.). The
Margins of Orthodoxy: Heterodox Writing and Cultural Response, 1660–1750. Cambridge: Cambridge
University Press, 2006. p. 40. “authority was reposed in themselves and in nobody else”.
85
DUBOIS, J. d. Op. cit. p.40
86
Ibid. p. 41
87
Ibid. p. 41.
88
Ibid. p. 41.
89
Ibid. p. 43.
90
Ibid. p. 43.
24
modernos como Thomas Edwards —, “classifica, etiqueta e faz recuar os limites da expansão
territorial da ortodoxia” no período.91
Vale também apontar como a fundamentação em torno da heresia, do sujeito
herético e, por fim, da escrita heresiográfica que será objeto deste estudo, esteve fortemente
ligada a Apologética produzida nos primórdios da cristandade, isto é, “a defesa da fé cristã em
bases intelectuais por teólogos e filósofos treinados”.92 Tais textos, se desdobravam em três
propósitos centrais: para “mostrar que é mais razoável ter uma religião do que não ter; para
mostrar que o cristianismo pode dar uma explicação mais racional de si mesmo do que
qualquer outra religião; para mostrar que é mais razoável professar o cristianismo ortodoxo do
que qualquer outra forma”.93
A refutação heresiográfica que adveio da patrística, “consiste em sublinhar o
caráter blasfematório dos propósitos heréticos sobre a base de uma rejeição ou de uma má
compreensão das Escrituras canônicas”.94 Além disso, como também se viu em textos
modernos do gênero, como Gangraena, criticar “os costumes depravados dos hereges - atacar
a moralidade duvidosa dos hereges é um traço característico da heresiologia”.95 Ao se cunhar
as noções de haeresis e hairetikoi nesses termos, durante o cristianismo antigo, visava-se,
pois, a ordenação de uma ortodoxia que suprimisse as diversidades e garantisse “o
estabelecimento de conceitos e de instituições de poder, encarregados de operar a
regulamentação do sentido e da sã interpretação dos textos sagrados”.96 Era, pois, uma
ampliação do que foi exposto por Paulo na Primeira Epístola aos Coríntios, quando o apóstolo
comentou: “porque ouço dizer que há divisões entre vós quando vos reunis como igreja; e até
certo ponto acredito que isso esteja ocorrendo. Todavia, se faz necessário que haja
divergências entre vós, para que os aprovados se tornem conhecidos em vosso meio”.97
Já no período moderno — e aqui, em especial, considerando as igrejas
reformadas—, pode-se também entender essas divisões e divergências dentro da chave de
uma concorrência na estruturação de igrejas territoriais, paralelamente à constituição de um
91
Ibid. p. 45.
92
CROSS, F. L.; LIVINGSTONE E. A. (eds.). The Oxford Dictionary of the Christian Church. Oxford: Oxford
University Press, 1974. p. 73. “the defence of the Christian faith on intellectual grounds by trained theologians
and philosophers”.
93
Ibid. p. 73. “to show that it is more reasonable to have a religion than not; to show that Christianity can give a
more rational account of itself than any other religion; to show that it is more reasonable to profess orthodox
Christianity than any other form”.
94
DUBOIS, J. D. Op. cit. p. 46.
95
Ibid. pp. 46-7.
96
Ibid. p. 53.
97
1 Cor. 11:18-19. Todas as citações bíblicas realizadas ao longo do texto foram retiradas da versão: Bíblia King
James Atualizada (KJA). São Paulo: Sociedade Bíblia Ibero-Americana & Abba Press, 2012.
25
cristianismo radical tido como heterodoxo ou herético. Como tratou Paolo Prodi, “tão logo
começaram a se estruturar como Igrejas territoriais, desenvolvem ainda antes da Igreja
romana... uma ortodoxia que se manifesta, conforme mencionado, nas profissões de fé e nos
catequismos e, portanto, também na repressão a toda manifestação radical”.98 Além disso, em
muitos contextos havia, inclusive, uma convivência desses grupos ortodoxos e heterodoxos,
no entanto, isso se alterava “quando era detectado um perigo real para a disciplina”.99
Como se vê, séculos mais tarde, o gênero heresiológico continuaria a ser relevante
justamente por essa recorrente verificação de um perigo à disciplina ortodoxa. Seria, pois,
impossível compreender o texto seiscentista de Thomas Edwards sem ter em vista essas
concepções antigas de heresia, apologética e heresiografia tão pertinentes à obra do autor e
ainda vigentes em meio aos contextos específicos da modernidade. Cabe observar o que o
heresiógrafo apontou logo no início da obra, sobre como aquele era um “catálogo de Erros
agora em voga, vivos no tempo presente”.100 Gangraena, tal como seus pares heresiográficos
antigos, tinha por objetivo ser um catálogo que dizia respeito aos desvios do seu período, ou
seja, a obra se propunha a dialogar com os desafios do presente. No entanto, tal organização
não seria possível se o texto também não estivesse em contato com um passado religioso ao
qual se filiava (ou buscava se inscrever), apresentando os opositores elencados no passado e
se aproximando das autoridades antigas e da tradição que esperava partilhar. Vale, portanto,
aqui, compreender como se organizou esse texto seiscentista, analisando-o em meio às
tradições heresiográficas e retóricas ainda vigentes no período, mas também tendo em vista a
intertextualidade e a polêmica típicas da guerra panfletária que ocorria no momento que
coincide com a produção de Gangraena.
98
PRODI, P. Uma História da Justiça. Do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre consciência e
direito. São Paulo, Martins Fontes, 2005. p. 241
99
Ibid. p. 243.
100
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 01. “a Catalogue of Errours now in being, alive in these present times”.
26
Gangraena em dez tópicos: (1) Epístola dedicatória; (2) Prefácio; (3) Catálogo de erros e
heresias; (4) Catálogo de blasfêmias; (5) Passagens sobre as pregações dos sectários; (6)
Cartas coletadas; (7) Passagens concernentes às histórias sobre as seitas e os sectários; (8)
Corolários e observações sobre os erros, blasfêmias e práticas que foram até então listados;
(9) Posfácio e (10) Apêndice. Por se tratar de uma obra sempre por fazer-se e inacabada, esse
contorno variou entre as diversas edições a depender dos tópicos mais centrais para o debate
intencionado no momento. Essa foi, entretanto, a organização mais recorrente.
É importante notar que desde o frontispício da obra, o autor faz menções aos
textos considerados clássicos na tradição cristã e à linhagem de escrita na qual pretendia se
inscrever, citando, por exemplo, Pedro e Timóteo. No entanto, já na Epístola Dedicatória, o
texto voltava-se ao presente por expor uma carta endereçada aos membros do Parlamento,
algo que aparece com frequência nos escritos do período. Nesse momento, surgiu de modo
evidente um mecanismo que guiou a construção de Gangraena: o argumento que transita
entre presente e passado, a partir de uma lógica de exemplificação e de analogias típicas das
operações retórico-teológicas da época. Em tal epístola, Edwards explica que já era hora dos
parlamentares resolverem os problemas trazidos pelas seitas e cismas cada dia mais
proeminentes,101 assim como foi feito no passado, por exemplo, nos embates entre Agostinho
e Atanásio contra os arianos.102 No prefácio, por sua vez, o heresiógrafo continua com o
mesmo movimento a fim de demonstrar a importância de sua obra para o tempo presente e de
que modo ela se vincula às autoridades do passado, bem como aos primeiros reformadores,
Lutero, Calvino e Zuínglio.103
O catálogo em si é iniciado por uma breve introdução sobre os objetivos e a
organização que guiará a obra, para, por fim, serem listados os erros, as heresias e
posteriormente as blasfêmias cometidas pelos sujeitos aos quais Edwards se opunha. É
relevante observar, nessa altura do texto, como alguns dos equívocos possuíam grande relação
com debates centrais dentro da tradição cristã. O erro número onze, por exemplo, diz respeito
ao fato de Deus, como criador de tudo, ser também o criador do próprio erro, algo que pode
ser vinculado a um tópico extremamente discutido na tradição agostiniana que concerne à
101
Ibid. p. 10. “It is high time therfore for your Honours to awake and be doing, to suffer no longer these Sects
and Schismes, these disorders and confusions that are in the midst of us, but to fall upon some effectuall wayes,
as you in your great wisdomes shall finde out, and to do something worthy a Parliament in this kinde also”.
102
O arianismo aqui se refere ao modelo propagado pelo presbítero cristão de Alexandria, Ário, no início da
Igreja primitiva (nas primeiras décadas do século IV). Tal doutrina negava, por exemplo, a existência da
consubstancialidade entre Jesus Cristo e Deus, propondo que Jesus seria, na realidade, subordinado a Deus e não
Deus em si mesmo.
103
EDWARDS, T. Gangraena, I. pp. 06-07.
27
impossibilidade de Deus como autor do mal.104 Percebe-se, portanto, ao longo da listagem,
um número considerável de questões complexas e importantes para o estabelecimento de
dogmas e doutrinas cristãs, pois, ainda que muitos desses dogmas estivessem sendo
redefinidos pela própria Reforma, havia uma noção de continuidade histórica (ou de retorno
aos princípios perdidos) por esses indivíduos seiscentistas que se entendiam como parte de
uma mesma linhagem religiosa desde Cristo. Além disso, a listagem de Edwards estava
repleta de mecanismos retóricos e intertextuais característicos de tais debates, como as
polêmicas veladas a respeito de desvios que, o leitor da época, poderia alinhar facilmente às
práticas de determinados indivíduos ao seu redor (foi o caso, por exemplo, de John Milton,
que se abordará mais adianta).
A seguir a publicação apresenta passagens sobre as pregações feitas por seus
opositores, sendo que Thomas Edwards, muitas vezes nominalmente, se refere ao modo como
esses equívocos foram disseminados pelos pregadores, sobretudo, independentes. Em tal
momento, o autor fez mais algumas aproximações entre os heréticos de seu tempo, como, por
exemplo, os arminianos105 e àqueles do passado,106 no caso, donatistas.107 Ainda nessas
passagens, Edwards dá indicações de ambições maiores, relevando que pretendia escrever
uma heresiografia mais ampla a fim de auxiliar outros ortodoxos, tendo em vista não apenas o
caso inglês, mas as demais localidades além-mar.108
104
Ibid. p. 20. “That God hath a hand in, and is the Author of the sinfullnesse of his people; that he is the Author
not of those Actions alone, in and with which sin is, but of the very Pravity, Ataxy, Anomy, Irregularity and
sinfullnesse it self which is in them”.
105
O Arminianismo foi uma “visão teológica que rejeitava a predestinação absoluta e sustentava o livre-arbítrio,
a possibilidade de cair da graça e a morte de Cristo para todos, não apenas para os eleitos”. In: BREMER, F. J.;
WEBSTER, T. (eds.). Puritans and Puritanism in Europe and America. A Comprehensive Encyclopedia. Santa
Barbara, Califórnia: ABC Clio, 2006. p. 312. “A theological view that rejected absolute predestination and
upheld free will, the possibility of falling from grace, and the death of Christ for all, not just the elect”.
106
EDWARDS, T. Gangraena, I. pp. 42-43. “…I will hint some of the more speciall Paralels between the
Sectaries, and the Donatists, Jesuits &c”.
107
O Donatismo foi uma seita tida como herética que surgiu no Norte da África no início do século IV. Um
embate central para esses sujeitos, era a certeza de que a Igreja não deveria perdoar os pecadores, sobretudo,
considerando àqueles que negaram a fé durante as perseguições do Imperador Diocleciano. A Igreja, no entanto,
aceitou o retorno desses indivíduos, lhes permitindo, inclusive, ministrar sacramentos (algo que os donatistas
entendiam como incorreto). O bispo Agostinho de Hipona organizou grandes campanhas contra esse grupo,
sendo um dos principais responsáveis pela extinção dos donatistas.
108
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 42. “... and my purpose is hereafter (God sparing me life, health and liberty)
for the benefit both of the present and succeding generations, to write an Historicall narration of all the
Proceedings and wayes of the English Sectaries, both in England and beyond the Seas, from the first yeare of the
Parliaments sitting, till the time of the setting forth that History, and have already laid in many materialls, and
kept an exact account of the most remarkable passages tending that way; and my earnest desire is to all the godly
Orthodox Readers, into whose hands this book shall come, who are enemies to sects and schismes, and lovers of
truth, peace, and order, whether Gentlemen of Committees in the severall Counties, or Souldiers in the Armies,
or Ministers in the severall parts of the Kingdom, or other godly Christians, that they would be pleased within
this three or four moneths next following, to communicate to me all the certaine intelligence they have, of the
Opinions, wayes and Proceedings of the Sectaries…”.
28
As cartas coletadas no decurso da primeira edição de Gangraena são, em geral,
escritas por aliados de Edwards e se propunham a comentar o importante trabalho realizado
pelo autor até então, considerando suas obras passadas, como a Antapologia. Por serem textos
recebidos ao longo de 1644, alguns correspondentes expuseram suas certezas quanto ao fato
de que Antapologia era uma obra impecável e que não receberia réplicas ou questionamentos,
o que não foi o caso, pois essa obra, assim como Reasons Against the Independant
government e mesmo Gangraena, foi amplamente questionada. Cabe saber qual a função
dessas correspondências, pensando se elas serviriam, por exemplo, como um artifício retórico
a indicar que Gangraena seria ainda mais coerente e indiscutível do que as obras anteriores de
Edwards, que já tratavam do mesmo tópico.109 O debate se torna mais intertextual somente a
partir da segunda edição da obra, por meio de um extenso levantamento das respostas e
críticas sofridas após a publicação de Gangraena em fevereiro de 1646. Tais textos, como se
verá, foram pontualmente refutados pelo autor nas edições seguintes.
Em seguida, em “uma relação de algumas histórias e diversas passagens notáveis
sobre as Seitas e Sectários”, a escrita voltou-se para uma aproximação mais pessoal quanto
aos sujeitos considerados heréticos. Foi nesse momento que Edwards citou nominalmente
certos casos que vivenciou ou ouviu dizer a respeito dos sectários e das seitas as quais
estavam vinculados. Tal relação aponta para alguns problemas periódicos nas discussões do
autor, como a tolerância religiosa e os lugares sociais de determinados indivíduos (sobretudo,
mulheres e iletrados). Ao comentar acerca dos erros cometidos por Henry Denne,110 por
exemplo, Edwards faz questão de mencionar que Denne havia sido rebatizado por um
iletrado.111 Essas passagens e histórias são voltadas a inúmeros casos individuais, explicitando
como muitos indivíduos foram bons cristãos no passado, no entanto, naquele momento
encontravam-se não apenas perdidos em meio às seitas, como também as disseminando entre
outros crentes.
Por fim, a obra apresenta os corolários e as observações sobre os erros, blasfêmias
e práticas listados, evidentemente dizendo respeito às conclusões de Edwards e a tentativa de
109
Ibid. p. 66. Ver: “An Extract of a Letter, Octob. 29. 1644” e “An Extract of a Letter, Septemb. 18. 1644”.
110
Henry Denne (1605/6–1666) foi um ministro batista nascido em Well, Kent e educado no Sidney Sussex
College, Cambridge. Pregando em Londres, Rochester e Kent na década de 1640, ele juntou-se a Bell Alley
General Baptist Church do futuro leveller (nivelador), Thomas Lamb. UNDERWOOD, T. L. “Denne, Henry
(1605/6?–1666), General Baptist minister and religious controversialist”. DNB. Disponível em:
<http://www.oxforddnb.com/view/article/7497>. Acesso em: abr. 2017.
111
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 76. “There is a Mr. Henry Denne a great Sectary, who lives at Elsly in
Cambridgeshire; in the Bishops times he was a great time-server… He was Re-baptized by a Mechanick, and
made a member of Lambs Church which meets in Bell-Alley in Coleman street”.
29
confirmar a verdade retirada de todos os elementos até então demonstrados pelo autor.
Importa, é claro, ao longo deste capítulo refletir sobre os diversos mecanismos retóricos
utilizados por Edwards e os limites da escrita heresiográfica em Gangraena, mas, para fins de
entendimento sobre como a obra esteve estruturalmente organizada, essa era a função dos
corolários finais. A obra ainda se encerra com um breve posfácio e um apêndice, constando
alguns erros que não haviam sido descritos anteriormente e que ajudavam a formar a visão
geral e abrangente do projeto de Thomas Edwards.
O vínculo da obra de Edwards com outros textos heresiográficos e ortodoxos em
termos presbiterianos foi demarcado pelo autor desde o início, uma vez que se observam, por
exemplo, citações de Paulo, Agostinho e Lutero já nas primeiras páginas da publicação. Ao
mencionar tais autores, Edwards se colocou numa linhagem dentre as heresiografias antigas e
também contemporâneas, por meio de um mecanismo de escrita que deixava explícito a quais
autoridades aquele texto se vinculava. Cabe, no entanto, observar que inscrever a obra em tal
gênero nem sempre significou cumprir todos os pressupostos retóricos das heresiografias.
Uma das mais marcantes faces desse gênero, por exemplo, era a organização extremamente
regrada, cuja estrutura baseava-se numa “divisão retórica básica entre metodologia, exposição
e reflexão”.112
Ainda que a escrita como catálogo fosse parte do modelo heresiográfico — uma
vez que os autores que se consideravam defensores da ortodoxia, tais como Edwards, não
viam interesse em discutir e argumentar sobre os pontos de vista heréticos113—, a organização
do texto era uma característica marcante, algo que faltava à obra de 1646. Gangraena se
diferencia de outros títulos do mesmo gênero, sobretudo por não possuir “uma estrutura bem
ordenada [...] usualmente baseada em um método histórico ou [da definição] de seita por
seita, ou uma combinação dos dois, marcado muitas vezes por seções numeradas ou listas”.114
Edwards não seguiu essa estrutura, sem jamais demonstrar, por exemplo, qualquer propensão
a ordenar cronologicamente os grupos hereges, apontando para sua origem, seu
desenvolvimento ao longo do tempo e o aparecimento dos diversos erros por eles cometidos,
como era parte das regras para uma heresiografia bem escrita.
112
HUGHES, A. op. cit., 2004. p. 57. “basic rhetorical division between methodology, exposition, and
reflection”.
113
Thomas Edwards diria, inclusive: “Eu espero que a nomeação deles venha a ser uma refutação suficiente”.
Gangraena, I. p. 04. “I hope the naming of them will be a sufficient confutation...”.
114
HUGHES, A. Op. cit., 2004. pp. 94-95. “a tightly ordered structure... usually based on a historical or sect by
sect method, or a combination of both, marked out often by numbered sections or lists”.
30
As heresiográficas eram compostas como um discurso ordenado, descritivo e
simples que não atraísse atenção para si, mas que fosse um “relatório sobre ‘coisas’”.115 Como
assinalou Kei Nasu, “exatamente por essa cultivada simplicidade que todo o esquema de
‘catalogação’ foi capaz de funcionar como uma forma de discurso persuasivo”.116 Tal formato
dizia respeito, ainda, aos escritos do gênero demonstrativo, que tinha por objetivo apontar as
virtudes (elogio) e os vícios (vitupério) em seu tempo presente. Como um texto ligado ao
vitupério, a heresiografia demandaria, então, um estilo mais baixo, daí a simplicidade
mencionada por Nasu, a fim de cumprir o propósito didático de conscientizar os indivíduos
(sobretudo rústicos e não apenas agudos) sobre as práticas que deveriam ser evitadas. Não se
visava, pois, o debate com os sujeitos tidos como heréticos, mas apenas descrever os tópicos
que explicavam o assunto. Em sua análise, Nasu utilizou-se de exemplos a respeito da obra
Heresiography, or, A Description of the Heretickes and Sectaries of these Latter Times,117
publicada em 1645 por Ephraim Pagitt e, assim sendo, contemporânea a Gangraena. Segundo
Nasu, ao delinear os aspectos de sua exposição, Pagitt apontava que, para expor seu assunto
[as heresias] seria preciso “um modo lógico particular e uma determinada técnica para
organizar dados em conhecimento”.118
Pensando especificamente a primeira edição da obra de Pagitt, publicada em 1645,
é notável como a organização do texto é muito diferente do que foi anteriormente exposto em
relação a Gangraena. Em linhas gerais, Heresiography logo de início nomeou as diversas
seitas que seriam apresentadas e o texto se desdobrou em torno delas, expondo-as da seguinte
maneira:
“1. Seus procedimentos Originais e Primeiros; 2. Seus Erros e Blasfêmias; 3.
A refutação de seus Erros; 4. A Doutrina Ortodoxa da Igreja da Inglaterra
em oposição aos seus Erros; 5. As Diversas seitas Anabatistas; 6. Da sua
maneira de Rebatizar e outras Formas; 7. Como os Príncipes e Magistrados
Cristãos os tem reprimido: e especialmente como eles têm sido punidos entre
nós”.119
115
NASU, K. Op. cit. p. 155. “reporter of ‘things’”.
116
Ibid. p. 155. “it was exactly through such cultivated plainness that the whole scheme of ‘cataloguing’ was
able to work as a form of persuasive discourse”.
117
A obra Heresiography, or, A Description of the Heretickes and Sectaries of these Latter Times de 1645
surgiu a partir da escrita de um sermão de Ephraim Pagitt, publicado originalmente como “A Mysticall Wolfe”
(1645) e reeditado como “The Tryall de trueth” (1645). A publicação foi notável por conta de sua importância
histórica e literária, possuindo seis edições impressas naquele período: 1645 (duas vezes em tal ano), 1646, 1647,
1654, 1661. DYTON, S. C. “Pagett , Ephraim (1574–1646), heresiologist”. DNB. Disponível em:
<http://www.oxforddnb.com/view/article/21125>. Acesso em: fev. 2016.
118
NASU, K. Op. cit. p. 155. “a particular mode of logic and a particular technique for organizing data into
knowledge”.
119
PAGITT, E. Heresiography, or, A Description of the Heretickes and Sectaries of these Latter. London:
Printed by M. Okes, at his Shop under the Church of Edmond the King in Lombard-Strret, over against St.
31
Thomas Edwards expôs alguns desses pontos em diversos momentos em sua obra,
no entanto, o autor não esteve interessado em nomear e diferenciar essas seitas tão
claramente. Gangraena, tampouco, descreve o histórico de tais grupos, suas origens e
alterações ao longo do tempo, como seria esperado numa heresiografia que, em tantos
momentos, se refere aos embates clássicos de Agostinho. Estruturalmente, portanto,
Heresiography esteve mais próxima de tratados agostinianos como De Haeresibus Ad
Quodvultdeum120 — isto é, “um texto altamente organizado, com oitenta e oito seções
numeradas procedendo cronologicamente, cada uma lidando com um determinado grupo,
indivíduo ou conjunto de opiniões”—,121 do que de sua contemporânea Gangraena.
Considerando tais questões, parece possível supor que a ausência de reedições de
Gangraena após 1646 seja também um indício de sua complexidade textual. Em oposição, há
edições ampliadas de Heresiography sendo produzidas até a década de 1660, pois “o livro de
Pagitt era claro e direito na estrutura, e sua pesquisa nunca foi além de seu conhecimento
livresco, isto é, o que ele tinha lido. [...] Confutação não era requerida”.122 Era, portanto, uma
obra sobre a qual as reedições e as ampliações eram mais facilmente realizadas. No entanto, o
mesmo não se poderia dizer em relação à Gangraena. Ainda que as edições de 1646 indiquem
uma circulação considerável da publicação, “Gangraena era do momento; não um trabalho
que alguém tentasse atualizar”.123 A estrutura inacabada da obra, sempre por fazer-se, precisa
ser considerada quando a estudamos e comparamos com outros textos do mesmo gênero.
Gangraena dizia respeito, como pressupõem as polêmicas, àquelas tantas questões agora em
voga.
Gangraena era uma polêmica no sentido religioso e letrado do termo, ligado ao
seu próprio gênero, que na época também poderia ser entendida como uma “querela,
contenda, controvérsia, peleja, discórdia”. Mais especificamente, como assinalou Eduardo
Sinkevisque, um gênero de “crítica severa e mordaz, tipo de escrita ou discurso agressivo e
Clements Lane, 1645. p. 01. “1. Their Originall and first proceedings; 2. Their Errours and Blasphemies; 3. The
confutation of their Errours; 4. The Orthodox Doctrine of the Church of England opposite to their Errors; 5. The
Severall Sects of Anabaptists; 6. Of their manner of Re-baptizing and other Fashions; 7. How Christian Princes
and Magistrates have suppressed them: and especially how they have beene punished among us”.
120
Ver: Augustine of Hippo. Arianism and Other Heresies. Série: Works of Saint Augustine. Hyde Park, Nova
Iorque: New City Press: 1995.
121
HUGHES, A. Op. cit., 2006. p. 145. “a highly organized work with eighty-eight numbered sections
proceeding chronologically, each dealing with a particular group, individual, or set of opinions”.
122
NASU, K. Op. cit. p. 155. “Pagitt's book was plain and straightforward in structure, and his research never
went beyond his bookish knowledge, what he had read... Confutation was not required”.
123
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 97. “Gangraena was of the moment; not a work that anyone tried to update”.
32
injurioso — que tem relação com o diálogo por meio de seu caráter argumentativo”.124 Tais
polêmicas podem ser “veladas” ou “abertas”, partindo da análise de Bakhtin,125 sendo
“fenômenos discursivos configuradores de posições sociais e ideológicas, cuja perspectiva é a
do diálogo, da interlocução”.126 A polêmica, em termos retóricos, pode ser entendida como
um gênero misto, pois ela, quando demonstrativa, “vitupera ou elogia, rebaixa ou levanta
detratores ou partidários de argumentos, ideias, conceitos, pensamentos”, ao passo que
também é deliberativa ao aconselhar, “nem que seja a agir, a posicionar-se” e, por fim, é
judicial uma vez que “ajuíza-se contra ou a favor de uma causa”.127
Paralelo a isso, também é imprescindível pensar a obra de Edwards em meio ao
estilo da própria polêmica cristã, crucial para os heresiógrafos da igreja primitiva, como
Agostinho, Epifânio e Ireneu. Gérard Vallée, assinalou, a esse respeito, como os polemistas
antigos “cortaram maliciosamente as declarações de seu contexto”128 em nome da
argumentação que se propunham a realizar e que criava um retrato no qual “o herege torna-se
assim uma caricatura da escuridão e do mal”.129 O termo “polêmica” utilizado no século
XVII, apresentava uma ideia similar, de “um argumento controverso” e, mais
especificamente, um “ataque verbal ou escrito a uma pessoa, opinião, doutrina etc.”.130 A
polêmica em torno de uma doutrina é particularmente essencial para o entendimento de
Gangraena.
Outro aspecto importante relacionado às técnicas retóricas empregadas por
Edwards e muito utilizadas em heresiografias como um todo, diz respeito à noção de
auctoritas. Tal modelo, “relaciona-se à fala – não a qualquer, mas à inventada e ordenada
segundo técnicas de escorrer ou discorrer com a eficácia persuasiva do falar bem definido
como bene dicendi por Cícero e Quintiliano”.131 Ainda importa notar, como apontou João
Adolfo Hansen que essas técnicas retóricas nada têm a ver com uma noção que nos é
contemporânea acerca dos “artificialismos”, dos “formalismos” ou das “falsidades” retóricas.
124
SINKEVISQUE, E. “A Polêmica como História de longa duração: ciceronianos e anticiceronianos do século
XVII”. Codex – Revista de Estudos Clássicos. Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, 2016. p. 07.
125
Ver: BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008 e,
mais especificamente, sobre as polêmicas na primeira modernidade, consultar: POSTEL, C. Traité des invectives
au temps de la Réforme. Paris: Les Belles Lettres, 2004.
126
SINKEVISQUE, E. Op. cit. p. 08.
127
Ibid. p. 08.
128
VALLÉE, G. A Study in Anti-gnostic polemics. Irenaeus, Hippolytus, and Epiphanius. Ontário, Canadá:
Wilfrid Laurier University Press, 1981. p. 94. “The polemists maliciously cut statements from their context”.
129
Ibid. p. 95. “the heretic thus becomes a caricature of darkness and evil”.
130
Polemic.oed. Disponível em: <http://www.oed.com/view/Entry/146793>. Acesso em: mai. 2017. “a
controversial argument; a strong verbal or written attack on a person, opinion, doctrine, etc”.
131
HANSEN, J. A. Op. cit., 2013. p. 11.
33
Esse modo de construção do argumento — marcante nos textos até pelo menos o século
XVIII — era baseado numa “virtus gramatical” que tratava “dos optimi auctores (também
chamados de summi auctores; magni auctores; classici scriptores). É devido à virtus que têm
e dão autoridade: fornecem exemplos, que devem ser seguidos pela emulação”.132
Os autores clássicos mencionados por Edwards, sem dúvida, não apareceram em
destaque por acaso, eles eram exemplos a serem emulados e assim o foram.133 Tal processo de
emulação, é claro, não significava uma reprodução ou “roubo” de ideias, pois havia regras a
serem consideradas. O processo, pelo qual o autor deveria procurar “a propriedade ou o
predicado — que produz prazer na obra imitada”, era algo somente possível aos autores
engenhosos (em oposição aos sujeitos rústicos).134 De acordo com Hansen, “o modo
engenhoso de produzir diferenças distingue a emulação da imitação servil, que lembra a
imitação escolar. Na emulação, as variações engenhosas dos predicados da obra imitada são
‘novidades’ que repetem diferencialmente os preceitos da instituição [retórica]”.135
Já no Prefácio do primeiro volume de Gangraena, Edwards iniciou o
levantamento de autores “clássicos” a serem emulados e cujas atividades supostamente se
aproximariam daquelas empreendidas por ele no contexto da década de 1640. Autores como
Agostinho, Atanásio e Jerônimo são mencionados de imediato na obra inglesa, assim como
Paulo, cuja autoridade se dava em relação à própria escritura que deveria ser emulada e ao
apóstolo como nome de um livro do Livro. No que diz respeito a Agostinho e Jerônimo, por
exemplo, o heresiógrafo assinalou seus feitos contra os heréticos nos primórdios do
Cristianismo: “ambos, para pregar e escrever contra os hereges e os cismáticos, especialmente
Donatistas, sofreram muitas injúrias, e ainda assim regozijaram-se, contando seus sofrimentos
[como] um sinal de sua glória maior”.136 Edwards continuou sua argumentação, colocando-se
junto às autoridades mais recentes, como Lutero, Calvino e Zuínglio. Por fim, ele demarcou
seu lugar em meio a tais homens, tendo em vista os seus sofrimentos:
132
Idem. Autor. In: JOBIM, J. L. (org.). Palavras da Crítica. Tendências e Conceitos no Estudo da Literatura.
Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 24.
133
Por emulação entende-se a “imitação que supera o modelo imitado”, pois “basicamente, a emulação visa a
produzir, por outros modos e por outros meios, um prazer semelhante ou superior ao da obra imitada”.
HANSEN, J. A. Op. cit., 2000. pp. 325-326.
134
HANSEN, J. A. Op. cit., 2013. p. 16.
135
Ibid. p. 16.
136
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. B2. “Augustine and Hierom, both of them, for preaching and writing against
hereticks and schismaticks, especially Donatists, suffered many reproaches, and yet rejoyced, counting their
sufferings a signe of their greater glory”.
34
honra para mim ser um pouco como eles em sofrimentos. Eu tive alguma
experiência com as maldades Sectárias, ódio, raiva sobre os meus antigos
Livros e Sermões que eu tenho pregado, e, portanto, sei que este e outros
Tratados vão inflamá-los. Estou em minha consciência totalmente
persuadido, de que este Tratado é neste momento oportuno e útil em muitos
aspectos, mais ainda, necessário, e isso para todos os tipos de homens,
Magistrados, Ministros, o povo, todos aqueles que permanecem, e aqueles
que estão caídos, sim, os próprios Sectários, e por justiça e por toda razão eu
poderia esperar agradecimento e gentil aceitação do meu trabalho e de
minhas dores.137
Vale observar que essa propensão a citação de autores clássicos era algo
generalizado entre os contemporâneos de Edwards, também interessados em discutir os erros
e as seitas do período. Pagitt, por exemplo, menciona Agostinho, Epifânio de Salamina e cita
Paulo — um excerto da Primeira Epístola a Timóteo — logo no frontispício de
Heresiography. William Prynne,138 por sua vez, buscou a autoridade de Epifânio, Agostinho,
Basílio de Cesareia e Irineu de Lyon em seus escritos.139 Naturalmente, concentrar-se nesses
autores dos primórdios da Igreja é plenamente cabível para indivíduos que estavam
comprometidos com o estabelecimento de uma ortodoxia e com a própria ideia de Reforma,
enquanto retorno ou retomada dos princípios deturpados pela Escolástica Católica. Ao
discorrer sobre a controversa do arianismo, por exemplo, Richard Hanson aponta que tal
debate “consistia numa luta pelo poder dentro da igreja que estava disfarçada sob uma disputa
teológica”.140 Para o historiador, tal disputa, “logo se transformou em uma luta pelo poder por
vários grupos, cada um dos quais tentou obter o ouvido do imperador e reunir as rédeas do
governo eclesiástico em suas mãos”.141
137
Ibid. p. B3. “And what am I better then those learned Fathers, Augustine, Athanasius, and those first
Reformers, Luther, Zuinglius, Calvin? 'Tis honour enough for me to be somewhat like to them in sufferings. I
have had some experience of the Sectaries malice, hatred, rage upon my former Books and Sermons that I have
preached, and therefore know that this and other Tractates will inflame them. I am in my conscience fully
perswaded, that this Tractate is at this time both seasonable and usefull in many respects, 'yea necessary, and that
for all sorts of men, Magistrates, Ministers, people, both those that stand, and those that are fallen, yea the very
Sectaries themselves, and in justice and all reason I might expect thanks and kind acceptance of my labour and
pains”.
138
William Prynne (1600-1669), foi um advogado e polemista puritano, nascido em Upper Swainswick,
Somerset e educado no Oriel College, Oxford. Durante a Guerra Civil Inglesa, Prynne se opôs tanto aos
calvinistas independente quanto aos presbiterianos. LAMONT, W. Prynne, William (1600–1669), pamphleteer
and lawyer. dNB. Disponível em: <http://www.oxforddnb.com/view/article/22854>. Acesso em: 12 fev. 2017.
139
Ver: PRYNNE, W. A full reply to Certaine briefe observations and antiqueries on Master Prynnes twelve
questions about church-government : wherein the frivolousnesse, falsenesse, and grosse mistakes of this
anonymous answerer are modestly discovered, refelled. Printed by F. L. for Michael Sparke Senior, and are to
bee sold at the Blew Bible in Green-Arbour, 1644.
140
HANSON, R. Op. cit. p. 147. “consisted of a struggle for power within the church which was disguised under
a theological dispute”.
141
Ibid. p. 147. “quite soon turned into a struggle for power by various groups, each of whom tried to obtain the
emperor's ear and to gather the reins of ecclesiastical government into its hands”.
35
Como sabemos, tais autores clássicos escreveram em meio a um processo que
levou o Cristianismo a se tornar a religião oficial do Império Romano. Essas disputas, que
muitas vezes geraram catálogos de heresias, “são característicos de períodos nos quais a igreja
cristã estava se estabelecendo ou passando por reformas fundamentais e por reajustes na
estrutura e na doutrina, ou na sua relação com a autoridade secular”.142 Os heresiógrafos do
século XVII (e não apenas eles), porém, eram capazes de enxergar somente o processo
encerrado e vitorioso que se deu nos primórdios da Igreja, em meio a essa literatura que
localizava uma “Verdade” já concluída nos tempos apostólicos em oposição aos
desenvolvimentos heréticos posteriores. No entanto, é evidente que esse foi um “processo de
tentativa e erro”, no qual todos tiveram suas ideias alteradas ao longo do percurso. Um
“vocabulário satisfatório, uma maneira clara e construtiva de pensar, só emergiu
gradualmente. Os homens aprendem pela experiência, pela controvérsia, vendo seus próprios
erros e os erros dos outros. Foi assim que a ortodoxia foi alcançada no século IV”.143 No
limite, esse processo não parece muito diferente do que se viu no século XVII, pois, como
conclui Hanson, “é provável que esse seja o caminho pelo qual a ortodoxia é sempre
alcançada. Deve haver um período preliminar de confusão, de tatear, de incerteza”.144
Outra referência às autoridades pode ser percebida no próprio uso da imagem
médica atrelada à Gangraena, como é o caso das inúmeras citações ao apóstolo Paulo
realizadas desde o frontispício da publicação. Uma dessas referências tem origem na Segunda
Epístola a Timóteo, atribuída a Paulo,145 onde se diz: “e tais palavras se alastrarão como um
câncer [canker ou gangrene]; entre estes se encontram Himeneu e Fileto”.146 Em obras
contemporâneas como as de Richard Vines, James Cranford, Ephraim Pagitt ou Robert
142
HUGHES, A. Op. cit., 2006. p. 140. “are characteristic of periods when the Christian church was becoming
established or was undergoing fundamental reform and readjustment in structure and doctrine, or its relationship
with secular authority”.
143
Ibid. p. 153. “…quite clear that the process was a process of trial and error… A satisfactory vocabulary, a
clear and constructive way of thinking, only gradually emerged. Men learnt by experience, by controversy, by
seeing their own mistakes and the mistakes of others. This is how orthodoxy was reached in the fourth century”.
144
Ibid. p. 153. “It is probable that this is the way that orthodoxy is always achieved. There must be a
preliminary period of confusion, of groping, of uncertainty”.
145
Vale destacar que há hoje um longo debate (não contemporâneo a Edwards) em torno da autoria na Primeira e
na Segunda Epístola a Timóteo que englobam questões linguísticas da época, mas, sobretudo, geográficas e
conjunturais, uma vez que a Primeira Epístola teria sido produzida na Macedônia no período em que Paulo
esteve aprisionado em Roma. A Segunda Epistola, por sua vez, talvez tenha sido de fato escrita pelo apóstolo nos
tempos de seu aprisionamento, próximo a sua morte. Sobre tal debate, ver: PORTER, S. E. “Pauline Authorship
and the Pastoral Epistles: Implications for Canon”. Bulletin for Biblical Research, n. 5, 1995. pp. 105–23.
Disponível em: <https://biblicalstudies. org. uk/pdf/bbr/pastoral-epistles_porter. pdf>. Acesso em: set. 2017;
DUNN, J. D. G. The Cambridge Companion to St Paul (Cambridge Companions to Religion). Cambridge:
Cambridge University Press, 2006.
146
2 Tim. 2:17.
36
Baillie, as noções de “pragas, infecções ou contágios de heresia e cisma”147 também
aparecerem com abundância, o que pode designá-las como elementos indicativos de um
possível sistema retórico do período — algo que será melhor abordado no decurso do terceiro
capítulo desta dissertação.
De todo modo, é preciso ter em vista que mesmo as sistematizações desses autores
clássicos também pressupunham os interesses de suas próprias ortodoxias em épocas distintas.
Como Peter Brown destacou: o “pelagianismo, tal como o conhecemos, aquele corpo coerente
de ideias de importantes consequências, passou a existir, porém, na mente de Agostinho, não
de Pelágio”.148 Desse modo, as noções que se tem acerca do pelagianismo sobreviveram
muito mais por conta de uma construção feita por Agostinho do que propriamente por uma
crença sistemática em torno das ideias de Pelágio.149 Do mesmo modo, é necessário ressaltar
como os esforços de Thomas Edwards eram realizados a fim de defender uma ortodoxia
muito específica, sem jamais, de fato, se importar em fazer justiça aos reais comportamentos
dos chamados heréticos.
Em outro sentido, cabe notar como essas referências surgiam para conferir
legitimidade ao discurso de Edwards e são, portanto, os exemplos desse autor em particular, e
não necessariamente as referências que serão encontradas ao se analisar obras produzidas
pelos sujeitos ligados aos grupos descritos como heterodoxos em Gangraena. Assim, dizer
que esses sujeitos se aproximavam de Ário ou Pelágio não significa que eles, de fato, o
fizeram. Como destacou Ann Hughes, “a maioria dos radicais do século XVII desenvolveu
suas ideias independentemente de Ário ou Pelágio”.150 Eram comuns entre os heresiógrafos as
alusões de obras consideradas heréticas, como naquelas diversas respostas escritas por
Edwards e dispostas em Gangraena.
Essas menções, no entanto, muitas vezes apontavam para autoridades similares
entre ortodoxos e os heterodoxos, como, por exemplo, Agostinho, que foi citado por ambos os
lados. Isso porque os argumentos dos dissidentes ingleses seiscentistas não eram
147
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 67. “plagues, infections, or contagious of heresy and schism”.
148
BROWN, P. Augustine of Hippo. Londres: Faber, 1967. pp. 340-361 apud HUGHES. Op. cit., 2004. p. 73.
“Pelagianism, as we know it, that consistent body of ideas of momentous consequences, had come into
existence, but in the mind of Augustine, not of Pelagius”.
149
Em linhas gerais, o pelagianismo foi uma doutrina, considerada uma seita herética, vinculada ao monge
Pelágio, nascido por volta de 354 d. c. e que angariou um grande número de adeptos especialmente por conta da
importância dada à vontade humana. Um dos debates mais proeminentes entre Pelágio e Agostinho desenvolveu-
se em torno das proposições de Pelágio sobre o pecado original como algo que não tinha uma relevância real
para a humanidade.
150
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 76. “most seventeenth-century radicals developed their ideas independently of
Arius or Pelagius”.
37
necessariamente baseados nos heterodoxos do passado, uma vez que, muitos desses
indivíduos (bem como os ortodoxos presbiterianos) também se entendiam como parte da
linhagem cristã e dos preceitos a serem retomados. Cabe assim sempre ter em mente que são
muitos os exemplos e contraexemplos escolhidos e que, outros tantos, foram deixados de lado
ao longo da construção polêmica das obras da época. Isso é particularmente notável por meio
da intertextualidade de Gangraena, na qual é possível traçar o que foi escolhido ou não como
parte do argumento.
É necessário, por fim, fazer um rápido desvio e retornar mais uma vez a questão
da autoridade e da autoria nessas obras. Quando aqui se fala em autores clássicos ou autores
contemporâneos, cabe sempre observar que esses não são autores no sentido atual do termo.
Estamos, é claro, refletindo sobre períodos anteriores às próprias noções de intelectualidade e
autoria, tais como aqueles tão vastamente trabalhados por historiadores como Jean-François
Sirinelli ou Helenice Rodrigues da Silva.151 O debate que diz respeito ao século XVII,
vincula-se, nomeadamente, a célebre conferência de Michel Foucault, realizada em 1969 e
intitulada O que é um Autor?. Naquele momento, Foucault veio — junto a outros autores
ligados à Filosofia da Linguagem e a Crítica Literária — propor uma nova concepção para a
ideia de autoria, demonstrando como o “autor”, na acepção hodierna, surge somente no século
XVIII. Foucault, então, apresenta a noção de “função-autor”, isto é, as características “do
modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma
sociedade”.152 Assim, percebe-se que o nome de um determinado autor “não passa, como o
nome próprio, do interior de um discurso ao indivíduo real e exterior que o produziu”.153
Além disso, a autoria se dava, muito constantemente, por meio das citações às
antigas autoridades, bem como pela aplicação de “esquemas retóricos pressupostos por sua
recepção contemporânea”,154 algo verificável em Gangraena, como se viu.155 Isso, todavia,
não quer dizer que houvesse uma total ausência de noções de propriedade intelectual, porém,
como comenta Chartier, o direito sobre os escritos existia “no sentido de controlar a
publicação [...] a fim de preservar sua privacidade, honra e reputação” e de garantir “o
151
Ver: SIRINELLI, J. F. Os intelectuais. In: RÉMOND, R. (org.) Por uma história política. Rio de Janeiro:
FGV Editora, 2003. pp. 231-269; SILVA, H. R. da. A História Intelectual em questão. In: LOPES, M. A. (org.).
Grandes Nomes da História Intelectual. São Paulo: Contexto, 2003. pp. 15-25.
152
FOUCAULT, M. O que é um Autor? (1969). In: _____. Estética: literatura e pintura, música e cinema
(Coleção Ditos e Escritos III). 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 274.
153
Ibid. p. 274.
154
HANSEN, J. A. “Autoria, obra e público na poesia colonial luso-brasileira atribuída a Gregório de Matos e
Guerra”. Ellipsis, 12, 2014. p. 104.
155
Ibid. p. 104.
38
interesse econômico em um bem alienável”.156 Assim sendo, para o historiador francês, a
“função-autor” não é somente discursiva, “mas também uma função da materialidade do
texto”, que diz respeito “a necessária, instável e conflituosa relação entre o autor como
indivíduo e o autor como uma ficção [...]”.157
Ainda que se diferenciasse dos textos anteriores, Gangraena funcionou como uma
heresiografia no que concernem aos mecanismos retóricos e autorais de tal escrita. A obra se
inseriu num contexto de impressos modernos que objetivavam satisfazer “a curiosidade dos
leitores” e que, mais ainda, evidenciavam “a capacidade dos ‘heresiógrafos’ em nomear e
classificar diversas figuras e ideias, exibindo o poder e a identidade da ortodoxia”.158 Segundo
Nasu, a heresiografia moderna pode ser também compreendida como “uma ferramenta
disciplinar” e, desse modo, é cabível considerar esses escritos dentro de um amplo sistema de
confessionalização e de disciplinamento acentuado no período. É possível ainda inferir que a
publicação de Gangraena se configurou justamente nesse modelo confessional, ao passo que
também foi produzida de modo original por exibir suas particularidades intertextuais. Ela foi,
pois, uma obra que expôs em seu seio as respostas dos heterodoxos, produzindo um diálogo
quase involuntário, algo incomum nos documentos heresiográficos e que aponta para mais um
interesse na análise desses escritos.
156
CHARTIER, R. História intelectual do autor e da autoria. _____.; FAULHABER, P; LOPES, J. S. L. (orgs.).
Autoria e história cultural da ciência. Rio de Janeiro: Azougue, 2012. pp. 51-52.
157
Ibid. pp. 63-64.
158
NASU, K. Op. cit. p. 159. “the curiosity of the readers; the ‘heresiographers’ ability to name and classify
diverse figures and ideas displayed the power and identity of the orthodoxy”.
159
BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV, V. n. Op. cit. p. 162.
39
intertextuais, por meio do discurso direto ou indireto, das aspas, da negação, além da paródia,
da estilização, das polêmicas claras ou veladas, de justaposições e, claro, do discurso indireto
livre.160
Tais procedimentos são particularmente úteis para a análise histórica de obras
como Gangraena, porque distanciam o pesquisador de meras descrições de épocas ou
narrativas da vida de um autor, uma que vez que os textos são tratados de maneira relacional,
considerando diversos sujeitos. Assim, “é na percepção das relações com o discurso do outro
que se compreende a História que perpassa o discurso”.161 Como mencionado por Fiorin
(sempre na esteira do pensamento de Bakhtin), “a História não é exterior ao sentido, mas é
interior a ele, pois ele é que é histórico, já que se constitui fundamentalmente no confronto, na
contradição, na oposição das vozes que se entrechocam na arena da realidade”.162 Desse
modo, portanto, atentar para a intertextualidade não é meramente localizar o nexo entre
textos. Richard Bauman, inclusive, assinalou que interessa também entender “como a
intertextualidade é concretizada na prática comunicativa, incluindo a produção e recepção, e
para quais finalidades”.163
Além disso, é necessário refletir acerca das menções intertextuais apresentadas
por Thomas Edwards em Gangraena, notando como elas se dão a depender do indivíduo, da
sua formação e do seu lugar social. Para isso, é também importante se apropriar de algumas
questões levantadas por Nicholas McDowell na obra The English Radical Imagination
relativas à “diversidade e complexidade da imaginação inglesa”,164 o que nos ajuda a pensar
como Edwards — um presbiteriano formado em Cambridge —, dialogava (citava, parodiava,
negava) com seus oponentes. O autor enxergava uma desordem na Igreja que se dava,
sobretudo, pela presença a ser combatida, de “todos os tipos de Pregadores mecânicos e
analfabetos, Mulheres e Meninos Pregadores”, ou, mais especificamente “Ferreiros, Alfaiates,
Sapateiros, Mascates, Tecelões, etc.”,165 mas não necessariamente foram essas as vozes mais
proeminentes dos debates que ocorreram no seio de Gangraena. Havia uma diferença
160
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006. p. 33. Vale lembrar que há uma
disputa de autoria em torno desse livro em particular, uma vez que não se pode afirmar que Bakhtin escreveu
sozinho todos textos reunidos no volume.
161
Ibid. p. 59.
162
Ibid. p. 59.
163
BAUMAN, R. Op. cit. p. 05. “in how intertextuality is accomplished in communicative practice, including
both production and reception, and to what ends”.
164
MCDOWELL, N. Op. cit. p. 21. “diversity and complexity of the English imagination”.
165
EDWARDS, T. Gangraena, I. 1646. p. 08 e p. 84. “all sorts of illiterate mechanick Preachers, yea of Women
and Boy Preachers! ... of Mechanicks taking upon them to preach and baptize, as Smiths, Taylors, Shoomakers,
Pedlars, Weavers, &c.”. Por “mecânicos”, no caso, Edwards e outros autores da época, se referiam aos
trabalhadores em ofícios manuais, em oposição a funções letradas, por exemplo.
40
marcante entre um diálogo estabelecido com religiosos independentes letrados e outro com
sectários de proeminência social, universitária e religiosa menos destacada. Em suma, essas
diferenciações serão importantes para entender a intertextualidade da obra no que diz respeito
aos modos pelos quais Edwards respondeu aos seus vários leitores, sejam eles aliados (por
definição clérigos presbiterianos e eruditos), independentes letrados ou sectários radicais.
Uma das obras mais discutidas em Gangraena foi, sem dúvida, Cretensis: or A
briefe answer to an ulcerous treatise, lately published by Mr Thomas Edvvards, intituled
Gangraena de John Goodwin, um panfleto impresso para Henry Overton a fim de ser vendido
em sua livraria em Popes-head Alley.166 O autor de Cretensis, John Goodwin (1594–1665),167
foi um ministro independente, nascido em Norfolk e formado, entre 1612 e 1619, no mesmo
Queens’ College frequentado por Edwards em Cambridge, entre 1612 e 1619. Goodwin foi
amplamente criticado por sua atuação ministerial a partir da década de 1630 na cidade de
Londres, onde formou uma igreja congregacional dentro da paróquia de St. Stephen, na
Coleman Street, em 1643. Por suas opiniões tidas como heterodoxas, Edwards vinculou
Goodwin ao arminianismo, antinomianismo, ceticismo e ao socinianismo, além do
independentismo e da tolerância religiosa, talvez seus mais marcantes traços.168
As cinquenta páginas do panfleto de Goodwin se tornam cem ao longo do
percurso discursivo de Edwards, no qual outros sentidos foram impostos aos excertos citados.
Em determinada altura de Cretensis, Goodwin, diz:
166
Vale observar que não apenas os autores estavam comprometidos com diversas perspectivas político-
religiosas, como também os livreiros do período. Nesse sentido, muitas das obras mencionadas por Edwards
foram impressas e vendidas pelos mesmos sujeitos, em livrarias que, muitas vezes, estavam localizadas na
mesma região da cidade de Londres. O mesmo ocorreu, é claro, com as obras dos diversos presbiterianos
publicados por Ralph Smith, Edwards incluso. Tais agentes, que produziam e difundiam os livros, “também
eram autores dessas obras, pois a impressão e a venda de textos na Época Moderna era uma tarefa coletiva, com
atores múltiplos”. Assim, esses indivíduos “participaram, à sua maneira, dos intensos debates políticos e
religiosos, imprimindo seus posicionamentos nos papéis que produziam e faziam circular pela Inglaterra
revolucionária”. LIMA, V. C. Op. cit. p. 259 e p. 26.
167
LIU, T. “Goodwin, John (c.1594–1665), Independent minister”. DNB. Disponível em:
<http://www.oxforddnb.com/ view/article/10994>. Acesso em: 6 abr. 2016.
168
Antinomianismo pode ser entendido como a designação àqueles que acreditam que “cristãos são, pela graça,
livres da necessidade de observar qualquer lei moral”. Socinianismo, é uma doutrina ligada ao pensamento de
Fausto Paolo Sozzini (1539-1604) e ao unitarianismo, que, em suma, “nega a essencial divindade de Cristo” e
“rejeitou a natural imortalidade do homem”, pontuando que mesmo sem o pecado original, o ser humano seria
uma espécie mortal. Para arminianismo, ver nota 105 e Independentismo, nota 20. CROSS, F. L.;
LIVINGSTONE E. A. Op. cit. p. 65; p. 1285. “Christians are by grace set free from the need of observing any
moral law” (p.65); denying the essential divinity of Christ; rejected the natural immortality of man (p.1285)”.
41
ou outros, nesta negociação sangrenta, ele deve sofrer, não como um cristão,
nem com Cristo, mas como um malfeitor, um praticante de perversidades.169
Em Gangraena, porém, após transcrever fielmente o excerto, Edwards acrescenta
ao final da citação: “o que implica que, se os sectários me causarem danos ou me matarem por
causa de meu livro, ‘isto, não é nada, apenas um ato contra um malfeitor e um praticante de
perversidades’”.170 Tal acréscimo atribui um sentido criminoso e ameaçador às palavras de
Goodwin, muito mais físico do que, talvez, aquele originalmente pensado. Isso relaciona-se
diretamente, é claro, a ideia de que um texto possui significados apenas por meio de seus
leitores, mudando com tais sujeitos, o que faz de Thomas Edwards, sem dúvida, um autor-
leitor. Em outras palavras, como apontou Michel de Certeau, “torna-se um texto apenas em
sua relação com a exterioridade do leitor, por uma interação de implicações e artifícios entre
dois tipos de ‘expectativa’ combinadas”.171
Ainda traçando o argumento produzido em Cretensis, Edwards continua seu
ataque ao opositor, mencionando que, de acordo com Goodwin, “a extrema maior parte das
informações detectadas [a respeito de Gangraena], foram observadas por outros e
apresentadas a ele [Goodwin]”. Tal ideia, continua Edwards, não apresenta “um modo
estranho e novo de responder livros para homens que assumem coisas apenas confiando em
outros, para seguir a uma fé implícita e não para ver com seus próprios olhos, nem examinar
as coisas por si mesmos [...]”.172 A citação completa em Cretensis, porém, apresenta um
argumento diferente. Goodwin diz: “Eu professo realmente, que eu não li um quarto do livro,
ainda; nem sei se me darei ao trabalho de lê-lo completamente ou não. A extrema maior parte
das informações detectadas, foram observadas por outros, e apresentadas a mim”.173
169
GOODWIN, J. Cretensis. p. 19. “And let Mr. Edwards know, and let his Conscience and Compeers know,
that whatsoever he shall suffer, whether from his Sectaries or others, in this bloudy negotiation, he shall suffer
not as a Christian, nor with Christ, but as a malefactor and an evill doer”.
170
EDWARDS, T. Gangraena, II. p. 38. “implying, that if the Sectaries mischief or kill me for my Book, 'tis but
an act against a Malefactor and an evill-doer”.
171
CERTEAU, M. de. L'invention du quotidien, vol. 1. Paris: Gallimard, 1990. p. 247 apud CHARTIER, R. The
Order of Books: Readers, Authors, ar1d Libraries in Europe between the Fourteenth and Eighteenth Centuries.
Stanford, California: Stanford University Press, 1994. p. 02. “It becomes a text only in its relation to the
exteriority of the reader; by an interplay of implications and ruses between two sorts of 'expectation' in
combination”.
172
EDWARDS, T. Gangraena, II. p. 39. “the far greatest part of the particulars detected, were observ'd by
others, and presented to him: Is not this a strange and new way of answering Books, for men to take up things
upon trust from others, to go by an implicite faith and not to see with their own eyes, nor examine things
themselves, especially for a man upon things observed by others, to make such a mighty businesse...”.
173
GOODWIN, J. Cretensis. p. 50. “I professe truly, that I have not read one quarter of the book, as yet; nor
know whether I shall ever care to read it thorough or no. The far greatest part of the particulars detected, were
observ'd by others, and presented unto me”.
42
Ao comparar as duas citações é notável como elas produzem sentidos diferentes.
Quando John Goodwin diz que não leu Gangraena por completo, o autor impõe uma noção
de inferioridade à obra, beirando ao desdém por seu conteúdo. Edwards, por sua vez,
parafraseia o excerto para apontar como seu oponente não é suficientemente letrado, analítico
ou confiável, indicando, no limite, que se ele não confere as informações para um debate,
pouco deve se importar com a autoridade ou a credibilidade de uma fé específica. Como
anteriormente mencionado, porém, no tópico “uma relação de algumas histórias e diversas
passagens notáveis sobre as Seitas e Sectários” de Gangraena, Edwards também cita casos
que vivenciou ou ouviu dizer, sendo esse, na verdade, um procedimento comum aos escritores
da época. O argumento, é claro, torna-se relevante num contexto polarizado como foi a
década de 1640, cujas polêmicas político-religiosas eram especialmente importantes.
Em particular, quando Goodwin diz não ter lido sequer “um quarto do livro” —
Gangraena, parte I, no caso, ainda muito mais circunscrita do que os volumes seguintes —
ele assinala um aspecto importante dessa guerra panfletária: a escolha por não responder.
Gangraena, naturalmente, indignou suas diversas vítimas a ponto de levá-las ao embate,
porém, como aponta Anne Hughes “de modo mais geral, dignificar Gangraena com uma
resposta arriscava dar à polêmica desagradável de Edwards um significado e credibilidade que
ela não merecia”.174 Diferentemente do que ocorreu com Antapologia, na qual Edwards focou
seu ataque em independentes mais conhecidos, ainda que as respostas tenham sido escassas,
Gangraena desafiou também os “extremos mais radicais e menos respeitáveis do espectro
religioso”.175 A renúncia em responder a tal obra, portanto, podia estar também relacionada a
uma tentativa dos membros mais respeitáveis da comunidade religiosa, de não serem
vinculados a essa complexidade da “imaginação radical inglesa” expressada por Nicholas
McDowell.
Um opositor a Edwards mais bem informado, talvez notasse que Gangraena tinha
por objetivo vincular membros independentes renomados a outros sujeitos radicais, indicando
que a situação da Igreja no período e o surgimento dos diversos grupos tinha origem naqueles
que se diziam ortodoxos, mas não o eram. Esse era o caso, por exemplo, de apologistas176
174
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 250.“More generally, dignifying Gangraena with an answer risked giving
Edwards’s distasteful polemic a significance and credibility it did not deserve”.
175
Ibid. p. 250. “more radical and less respectable ends of the religious spectrum”.
176
Na Patrística, entende-se por apologistas os autores ligados à Apologética, já mencionada, isto é, aqueles que
“primeiro se dirigiram à tarefa de fazer uma defesa fundamentada e a recomendação de sua fé para aqueles
estranhos” a ela, como ao imperador romano, no período em questão. No contexto de An Apologeticall
Narration, os autores tomaram para si uma responsabilidade similar, afirmando ter chegado a uma “posição
congregacional por meio da escritura e do espírito santo, sem viés exterior ou tentação mundana, [o que] foi para
43
como Thomas Goodwin e Philip Nye — alvos diretos em Antapologia —,177 “que eram
clérigos devidamente ordenados e altamente educados, mais ou menos ortodoxos calvinistas
em doutrina, pregando frequentemente em prestigiosas conferências em Londres ou perante o
parlamento e, muitas vezes, membros da Assembleia de Westminster” e que, inclusive,
negavam serem separatistas.178
A escrita de Edwards possuía ao menos dois modos de proceder quanto a essa
diferenciação entre independentes e sectários. Primeiramente, de modo mais circunscritos aos
debates sobre o governo e a disciplina da Igreja,179 sublinhando como os independentes
“imploram por [anabatistas e antinomianos], e protegem o resto das seitas”.180 Segundo
Edwards, “nunca qualquer queixa chegou à Assembleia [pelas mãos dos independentes], ou
moção foi feita lá contra os sectários mais selvagens, mas alguns independentes falaram por
eles”,181 os independentes “com o resto dos sectários estão envolvidos como espinhos, e
unidos como as escamas do Leviatã”.182
Por outro lado, Edwards utilizou trechos dos mais “respeitáveis independentes
contra visões mais heterodoxas”,183 como ocorre com Philip Nye ao ser mencionado na
terceira parte de Gangraena por ter sido um dos sujeitos a questionar a obra Protestation
Edwards não só orgulho, mas a essência do excesso antinomiano, estourando os limites devido da ordem”.
CROSS, F. L.; LIVINGSTONE E. A. Op. cit. p. 73. “first addressed themselves to the task of making a reasoned
defence and recommendation of their faith to outsiders”; SHAGAN, E. H. Rethinking Moderation in the English
Revolution: The Case of An Apologeticall Narration. In: TAYLOR, S.; TAPSELL, G. (eds.). The Nature of the
English Revolution Revisited. Essays in Honour of John Morrill. Woodbridge, Suffolk: The Boydell Press, 2013.
p. 45. “claim to have arrived at a congregationalist position through scripture and the holy spirit, without
outward bias or worldly temptation, was for Edwards not only prideful but the essence of antinomian excess,
bursting the due bounds of order”.
177
Philip Nye (1595-1672) foi um ministro independente, nascido em Sussex e formado no Magdalen Hall em
Oxford, sob tutoria de um puritano. Por volta da década de 1640, Nye estava comprometido com uma
organização não-paroquial da Igreja na Inglaterra, assunto sempre discutido com o ministro não-conformista,
Thomas Goodwin (1600-1680), coautor de An Apologeticall Narration. Nascido em Rollesby (próximo a
Norfolk), Goodwin, por sua vez, foi formado pelo Christ’s College, Cambridge e esteve particularmente
envolvido nos debates da Assembleia de Westminster sobre a ordem e a disciplina da Igreja durante a década de
1640. Ver: DONAGAN, B. “Nye, Philip (1595, d. 1672), Independent minister”. DNB. Disponível em:
<http://www.oxforddnb.com/ view/article/20417>. Acesso em: 7 abr. 2016; LAWRENCE, T. M. Goodwin,
Thomas (1600–1680), nonconformist minister. DNB. Disponível em: <http://www.oxforddnb.com/view
/article/10996>. Acesso em: 7 abr. 2016.
178
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 107. “who were properly ordained and highly educated clerics, more or less
orthodoxly Calvinist in doctrine, preaching frequently in prestigious London lectureships or before the
parliament, and often members of the Westminster Assembly”
179
Ver: DIXHOORN, C. van (ed.). The Minutes and Papers of the Westminster Assembly, 1643-1652. Oxford:
Oxford University Press, 2012.
180
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 126. “plead for, and protect the rest of the sect”
181
Ibid. p. 126. “as also how never yet any complaint came to the Assembly, or motion was made there against
the vildest sectary, but some Independent spoke for them”.
182
Ibid. p. 127. “with the rest of the sectaries are folded together as thorns, and are joyned close as the scales of
the Leviathan”.
183
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 111. “respectable Independents against more unorthodox views”.
44
Protested (1641), na qual o ministro independente Henry Burton (1578 - 1647/8) acusa a
Igreja da Inglaterra de ser anticristã. Nye teria comentado “que nesse Livro havia Brownismo
grosseiro,184 com o qual nem ele nem seus irmãos estavam de acordo”,185 uma opinião
partilhada por Edwards e seus aliados. Hughes ressalta que “essa técnica teve o duplo efeito
de sublinhar a gravidade dos erros, condenados mesmo pelos independentes, e de expor a
indiferença independente em relação às perigosas implicações da liberdade de consciência”.186
Se Edwards possuía suas técnicas, o mesmo ocorria com os seus opositores. Os
autores que contestaram Gangraena, o fizeram adotando múltiplas estratégias para
justificarem o fato de estarem sequer respondendo. Ann Hughes, comenta, por exemplo, como
alguns sujeitos mais proeminentes utilizaram a técnica de “responder Edwards num posfácio a
um trabalho mais substancial, implicando assim que Gangraena, por mais desagradável que
fosse, era um pouco marginal” às outras questões tratadas nos textos.187 Tal foi o método
escolhido, por exemplo, pelo pregador controversialista John Saltmarsh, no panfleto Groanes
for Liberty, impresso em Londres por Giles Calvert.
Saltmarsh, que assim como Edwards e Goodwin esteve em Cambridge,
especificamente na Magdalene College, na década de 1620, adotou posturas mais radicais a
partir da década de 1640, quando então pregava nas regiões de Northampton e Kent,
tornando-se vigário em Cranbrook.188 Edwards acusou Saltmarsh de ter conhecimento sobre
uma mulher pregadora em Brasteed (Brasted), Kent e de não reportar tal prática. Em Groanes
for Liberty, Saltmarsh negou ter conhecimento sobre esse caso,189 algo que Edwards afirmou
184
Por Brownismo entende-se um conjunto de ideias ligadas ao puritano Robert Browne (1550-1633) a respeito
do estabelecimento de congregações independentes. Browne exerceu importante influência nos primórdios do
congregacionalismo que viria a ser fundamental durante o Protetorado de Oliver Cromwell. Era comum o uso de
termos como, independentistas, congregacionalistas ou brownistas para designar os membros desse grupo em
formação.
185
EDWARDS, T. Gangraena, III. p. 243. “That in that Book there was grosse Brownisme which he nor his
Brethren no way agreed with him in, and that for his part he would as soon subscribe to the Book of Common-
Prayer”.
186
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 111. “This technique had the twin effect of underlining the seriousness of
errors, condemned even by Independents, and of exposing Independent heedlessness of the dangerous
implications of liberty of conscience”.
187
Ibid. p. 251. “answer Edwards in a postscript to a more substantial work, hence implying that Gangraena,
however unpleasant, was somewhat marginal”.
188
POOLEY, R. “Saltmarsh, John (d. 1647), preacher and religious controversialist”. DNB. Disponível em:
<http:// www.oxforddnb.com/view/article/24578>. Acesso em: 12 fev. 2017.
189
SALTMARSH, J. Groanes for Liberty. p. 26. “Wheter that Story which Mr Edwards tels of Brasteed in Kent,
where he sayes a woman preaches which is known to my selfe, and all inthat place to be a meere untruth, be not
a way to judge of most of his Stories, Letters, Relations?”.
45
ser mentiroso como havia sido comprovado pelos diversos relatos coletados na região.190 A
despeito da história ser ou não verdadeira, importa perceber que Groanes for Liberty era um
panfleto de trinta e seis páginas, nas quais outras tantas questões foram apresentadas, sendo
Gangraena mencionada somente entre as páginas 25 e 32. A obra era, portanto, muito mais
ampla do que Edwards lhe deu crédito. Ao focar apenas no caso de Brasteed, Edwards
minimiza a dimensão das proposições de Saltmarsh, num texto que pretendia ser um ataque ao
presbiterianismo como um todo, sobretudo, atentando ao fato de que poucas décadas antes os
presbiterianos eram não-conformistas e que, naquele momento, negavam o mesmo espaço a
outros grupos. O texto tocou em problemáticas sobre o governo da Igreja, a tirania dos
ministros presbiterianos e a tentativa de deterem um modelo ortodoxo, além de questões
relacionadas à heresia e ao cisma.
No que diz respeito à Gangraena, Saltmarsh apontou como as inúmeras cartas
endereçadas ao “Reverendo Mestre Edwards, ao Digno Mestre Edwards, ao Bom Mestre
Edwards” nunca apareceram assinadas, como no caso da mulher pregadora em Brasteed.
Além disso, Saltmarsh questionou se essa e “várias outras insinuações de seu próprio valor”
não seriam “um caminho para buscar a glória, e louvor dos homens?”.191 O panfleto
prosseguiu criticando outros diversos aspectos de Gangraena, jamais respondidos por
Thomas Edwards. Nenhum outro excerto é mencionado em citações diretas, indiretas, com ou
sem aspas. Edwards optou por desacreditar o seu oponente a partir de um caso singular sobre
o qual ele possuía um considerável número de fontes (Brasteed) e se recusou a responder
outras questões do escopo central de Groanes for Liberty, ligadas aos procedimentos
presbiterianos.
A desqualificação, no entanto, poderia ser utilizada de maneira ainda mais direta a
depender do sujeito ao qual a resposta se direcionava. Esse foi o caso, por exemplo, do
leveller (nivelador)192 William Walwyn (1600-1681), nascido em Newland, Worcestershire,
que na juventude foi aprendiz de um comerciante de seda em Londres, atuando como
190
EDWARDS, T. Gangraena, II. p. 25. “Master Saltmarsh being a Sectary is a party, and his testimony is by
me proved to be false, in affirming all in that place know it to be a meer untruth, whereas the contrary is the
truth, divers living in that Town relating the story of a woman Preacher there”.
191
SALTMARSH, J. Groanes for Liberty. p. 26. “Reverend Mr Edwards, to the Worthy Mr Edwards, to the
Good Mr Edwards… divers other insinuations of his own worth, be not a way of seeking glory, and praise from
men?”.
192
Os levellers (niveladores) foram um grupo político-religioso inglês que surgiu no século XVII, se opondo a
dignidade real e “advogando completa liberdade em religião e uma ampla expansão do sufrágio”. O texto The
Case of the Army Truly Stated (1647) de seu membro mais proeminente, John Lilburne, “urgiu a dissolução do
Parlamento e o seu restabelecimento em bases democráticas”. CROSS, F. L.; LIVINGSTONE E. A. Op. cit. p.
818. “and advocated complete freedom in religion and a wide extension of the suffrage; urged the dissolution of
Parliament and its re-establishment on democratic lines”.
46
comerciante por longos anos e que, após a Restauração, iniciou uma carreira na área
médica.193 Walwyn não frequentou os mesmos círculos dos oponentes de Edwards até então
mencionados, não era versado em latim ou quaisquer outros idiomas para além do inglês. Seu
A Whisper in the Eare of Mr Thomas Edwards194 iniciou citando Maquiavel e não Agostinho
— como ocorreu em A vindication de Jeremiah Burroughs,195 para citar apenas um — e o tom
da resposta de Edwards não poderia assim ser o mesmo. A resposta inicia com a alusão ao
fato de que Walwyn era um “Comerciante” e continua (reforçando o que já havia sido dito na
primeira parte de Gangraena)196 que o autor é “um Seeker197 e um homem perigoso”.198
A resposta a Walwyn, que, na verdade, pouco remetia a quaisquer questões
levantadas pelo leveller (nivelador), baseava-se em três testemunhos coletados por Edwards a
respeito dos seus “erros e práticas”. O primeiro deles era referente a uma fala de Walwyn
sobre como “era um pecado orar pelo Rei” e como “ele muito admira a simplicidade que
estava no coração do povo, para que se sujeitassem a ser governados por um Rei, e que sob tal
193
TAFT, B. “Walwyn, William (bap. 1600, d. 1681), Leveller and medical practitioner”. DNB. Disponível em:
<http://www.oxforddnb.com/view/article/28661>. Acesso em: 12 fev. 2017.
194
WAYWYN, W. A Whisper in the Eare of Mr Thomas Edwards. London, 1646.
195
Apesar do amplo espaço ocupado por Cretensis nas respostas de Thomas Edwards, foi também intenso o
debate A vindication do aluno da Emmanuel College, Cambridge, na década de 1620, ministro independente e
membro da Assembleia de Westminster, Jeremiah Burroughs (1601?-1646). Considerado um importante
moderador entre as causas dissidentes e o presbiterianismo, Burroughs também foi coautor de An Apologeticall
Narration. A vindication foi, não apenas debatido em Gangraena, como também em Cretensis, panfleto no qual,
como aponta Hughes, Goodwin afirmou que “não era que Edwards citasse erroneamente as palavras de
Burroughs, mas que distorceu seu significado por meio de exclusões e justaposições, uma acusação que pode ser
validamente feita contra o uso [de Edwards] de várias outras obras”. HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 244. “was
not that Edwards misquoted Burroughs’s words, but that he distorted their meaning through his deletions and
juxtapositions; a charge that can be validly made against his use of several other works”. Ver: GOODWIN, J.
Cretensis. pp. 42-43; BURROUGHS, J. A vindication of Mr Burroughes, Against Mr Edwards his foule
Aspersions, in his spreading Gangræna, and his angry Antiapologia. Concluding with A Briefe Declaration
What the Independents would have. London, Printed for H. Overton, and are to be sold at his shop at the entring
into Popes-head Alley out of Lombard-street, 1646.
196
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 38. “One Master Wallin a Seeker, and a dangerous man, a strong head”.
197
Em linhas gerais, “um Seeker era um puritano que rejeitava o congregacionalismo tradicional”, considerando
“que o governo eclesiástico e formal da igreja congregacional não podia reivindicar a mesma dispensação divina
que animava a santidade dos apóstolos. Assim, os Seekers acusaram a Igreja da Inglaterra e as congregações
reunidas de serem espiritualmente extintas, com rituais irrelevantes e inválidos. Eles desertaram das formas
organizadas de adoração e aguardaram a Verdadeira Igreja de Cristo com antecipação milenarista”. Como outros
tantos no período, cabe observar que os “Seekers não eram um grupo radical coerente ou organizado dentro do
movimento puritano”. BREMER, F. J.; WEBSTER, T. (eds.). Puritans and Puritanism in Europe and America.
A Comprehensive Encyclopedia. Santa Barbara, Califórnia: ABC Clio, 2006. p. 538. “a Seeker was a puritan
who rejected traditional congregationalism. Seekers considered that ecclesiastical and formal congregational
church government was unable to claim the same divine dispensation that animated the apostles’ sanctity. Thus
Seekers accused the Church of England and existing gathered congregations of being spiritually defunct, with
irrelevant, invalid rituals. They defected from organized forms of worship and awaited the True Church of Christ
with millenarian anticipation; The Seekers were not a coherent or organized radical group within the puritan
movement”.
198
EDWARDS, T. Gangraena, II. p. 25. “All that Master Walwyn the Merchant; a Seeker and a dangerous
man”.
47
governo o Reino não poderia estar seguro”.199 O segundo dizia respeito a um momento
público, no qual Walwyn “falou da Trindade de uma maneira tão estranha, e de modo tão
fraco, que toda a companhia ficou preocupada com isso, e eles pararam e partiram sem fazer
nada do que vieram fazer”.200
Por fim, Edwards concluiu comentando a proximidade entre Walwyn e o também
leveller (nivelador), John Lilburne — outro alvo constante em Gangraena, especialmente na
terceira parte, por conta dos conflitos entre os presbiterianos e o Exército de Novo Tipo (New
Model Army) — e o hábito de ambos participarem em jogos de cartas. O modo como
Walwyn, Lilburne e tantos outros são mencionados, reforça uma divisão, entre independentes
e sectários, nos embates internos em Gangraena, algo que tende a coincidir com uma
formação eclesiástica e letrada mais ampla dos primeiros. Nota-se, por exemplo, como muitos
dos independentes citados em Gangraena realizaram sua formação em Cambridge, entre eles,
Thomas Goodwin, Jeremiah Burroughs, William Bridge, John Saltmarsh e John Goodwin
(este último, se destacando como um dos alvos principais de Edwards).
É possível inferir que haja uma hierarquização desses independentes em relação
aos sectários, sobretudo, no que diz respeito aos pregadores mecânicos, analfabetos e
mulheres. A despeito de sua importante participação nos debates do período, a leveller
(niveladora) Katherine Chidley (1616-1653), por exemplo, nunca foi de fato respondida em
Gangraena, sendo apenas brevemente mencionada, e de maneira nada elogiosa, como uma
“audaciosa e insolente mulher velha”.201 Em 1646, Edwards ainda demonstrava indignação
pela insolência de Chidley, por ela ter sido a única pessoa a responder sua obra Reasons
(1641), o que “provou ser uma completa humilhação para Edwards”,202como já observado,
por se tratar de uma resposta escrita por uma mulher. Essa diferenciação culminou, a
propósito, no longo problema historiográfico referente ao uso de Gangraena como fonte e a
noção de que os ditos radicais e/ou sectários seriam membros de classes sociais menos
abastadas. Tal oposição está expressa, como se viu, no clássico trabalho de Christopher Hill,
The World Turned Upside Down,203 tendo sido criticada por autores como Nicholas
McDowell e Ann Hughes, ao verem a necessidade em se considerar a posição presbiteriana de
199
Ibid. pp. 25 e 27. “was a sinne to pray for the King; And he further said, that he did much admire at the
simplicity that was in the hearts of the people, that they should suffer themselves to be governed by a King, and
that under such a government the Kingdome could not be safe”.
200
Ibid. p. 28. “spake of the Trinity in such a strange manner, and so slightly, that al the company was troubled
at it, and they brake off and departed without doing any thing of that they came for”.
201
Idem. Gangraena, III. p. 170. “brasen-faced audacious old woman”.
202
BAKER, P. R. S. Op. cit. sem página. “proved an utter humiliation for Edwards”.
203
Ver, por exemplo, o tópico “Lower-class heresy”. HILL, C. Op. cit., 1985. pp. 25-38.
48
Edwards, a intertextualidade de seus escritos e suas escolhas ao enfatizar determinados
sujeitos em detrimento de outros.204
No que diz respeito ao modo como a intertextualidade se dava nos diálogos com
os opositores, havia ainda o método de sobreposição utilizado por Edwards, no intuito de
conectar determinadas ideias que circulavam no período aos seus respectivos autores, sem
necessariamente mencioná-los. A mais conhecida dessas polêmicas esteve no erro 155, “é
lícito que um homem tenha duas esposas ao mesmo tempo”,205 que dialogava diretamente
com a obra The doctrine and discipline of divorce: restord to the good of both sexes, From the
bondage of Canon Law, and other mistakes, to Christian freedom, guided by the Rule of
Charity do poeta e polemista John Milton (1608–1674).206 Ainda que Edwards não
mencionasse Milton como o propagador de tais práticas na passagem do erro em questão —
elencado já na primeira parte de Gangraena —, o autor indiretamente vinculava algumas
histórias sobre divórcio e imoralidade aos escritos do poeta.
O que era uma polêmica velada se tornou um pouco mais aberta no volume
seguinte, quando foi exposto, por exemplo, o caso da Senhora Attaway, que falou a dois
gentlemen, “da Doctrine of Divorce do Mestre Milton, e perguntou-lhes o que eles pensavam
disso, dizendo, que era um ponto a ser considerado”, especialmente porque “ela tinha um
marido não-santificado”. Mais tarde, segundo Edwards “ela o praticou [o divórcio] ao fugir
com o marido de outra mulher, [algo] agora suficientemente conhecido por Goodwin e
Saltmarsh”.207 Esse modo de aproximar ideias que nasceram em ambientes letrados e se
tornaram práticas reais entre a população era algo sempre presente em Gangraena. Mais uma
vez, a tentativa de implicar outros sujeitos na propagação dos erros e nas práticas heréticas.
Parece evidente que para que esse modelo funcionasse, Edwards precisava nomear
os seus oponentes claramente, algo que, como se viu, gerou reações distintas. No entanto,
cabe observar que o mesmo nem sempre ocorreu com os seus aliados. Ann Hughes aponta
que, “entre as muitas fontes manuscritas reimpressas por Edwards, as mais importantes eram
as cartas, algumas enviadas diretamente a ele, algumas passadas por cidadãos, ministros ou
204
Ver: MCDOWELL, N. Op. cit. pp.01-21; HUGHES, A. Op. cit., 2004. pp. 01-54.
205
EDWARDS. T. Gangraena, I. p. 34. “Tis lawfull for one man to have two wives at once”.
206
MILTON, J. The doctrine and discipline of divorce: restord to the good of both sexes, From the bondage of
Canon Law, and other mistakes, to Christian freedom, guided by the Rule of Charity. London, Printed by T. p.
and M. S. In Goldsmiths Alley, 1643.
207
EDWARDS, T. Gangraena, II. pp. 10-11. “…of Master Miltons Doctrine of Divorce, and asked them what
they thought of it, saying, it was a point to be considered of… for she had an unsanctified husband… she hath
practised it in running away with another womans husband, is now sufficiently known to Mr. Goodwin and Mr.
Saltmarsh”.
49
membros do parlamento, outras interceptadas”.208 Como abordado na crítica de John
Saltmarsh, as cartas expressavam elogios e dignificavam Thomas Edwards, servindo também,
certamente, como instrumentos que reportavam os comportamentos dos sectários a serem
disciplinados. Tais cartas eram redigidas “inicialmente para um propósito particular, contudo,
seus escritores e receptores permitiram que fossem julgados dentro de uma arena pública”,
outras correspondências, por sua vez, “eram de fato públicas ou quase públicas, e circularam
em manuscritos ou impressos para uma variedade de propósitos pastorais ou polêmicos”.209
Tais correspondências surgiam como parte das “técnicas de contar a verdade”
empregadas por Edwards. Havia sempre um processo de explicar como “a evidência foi
adquirida, os detalhes de tempo e espaço [dos acontecimentos], as tentativas de sugerir a
confiabilidade de seus informantes”,210 ao passo que também se mencionava casos já
publicizados pelos jornais ou de sujeitos que foram réus em processos.211 Essas técnicas
serviam para dar credibilidade ao produto final, fornecendo ao leitor uma poderosa narrativa
sempre rica em sujeitos, lugares e acontecimentos, algo que também se relacionava a
incessante obsessão de Edwards pela numeração dos erros heréticos. Gangraena é uma
combinação entre um imenso número de erros corroborados por um gigantesco volume de
histórias. Mais do que uma simples numeração ou descrição (como ocorre em outras
heresiografias), Edwards tinha a necessidade de demonstrar e evidenciar seu argumento por
meio de exemplos e histórias “reais”.
Cabe notar que o diálogo entre Edwards e os seus aliados é sempre concebido em
discurso direto com um cuidado em garantir o anonimato das fontes, como ocorre nas páginas
referentes à crítica a William Walwyn, produzidas em primeira pessoa por um T. C. e um
“Conselheiro Comum da Cidade de Londres”.212 Assim, são citados inúmeros testemunhos de
indivíduos, normalmente homens, que viram ou ouviram dizer que tais situações ocorreram.
208
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 118. “Amongst the many manuscript sources reprinted by Edwards, the most
important were letters, some sent directly to him, some passed on by citizens, ministers, or MPs, others
intercepted”.
209
Ibid. p. 118. “initially for a private purpose, yet their writers and recipients had allowed them to be judged
within a public arena... were often in fact public or semi public, circulated in manuscript or print for a variety of
pastoral or polemical purposes”.
210
Ibid. p. 121. “…truth-telling techniques: the elaborate accounting of the process by which the evidence was
acquired; the details of time and place; the attempts to suggest the reliability of his informants—but he was also
publicizing activities which had already been made plausible by newsbook accounts”.
211
Alguns desses processos podem ser encontrados nos LMA, em Sessions roll: Gaol delivery. MIDDLESEX
SESSIONS OF THE PEACE: COURT IN SESSION. MJ/SR/0938 - MJ/SR/0989. A partir dessa documentação,
é possível confrontar informações fornecidas por Edwards com os casos tratados de modo judicial. Isso impõe
certa credibilidade a algumas das passagens relatadas em Gangraena, ainda que, naturalmente, não respondam se
as situações ocorreram ou não como as fontes da época as reportaram.
212
EDWARDS, T. Gangraena, II. pp. 25-30. “Common-Councellman of the City of London”.
50
Em geral, são sempre coletados mais de um relato sobre o mesmo episódio, como nos, já
aludidos, casos da mulher pregadora de Brasteed e da Senhora Attaway, ou, aquele que foi
provavelmente o relato de Edwards mais citado em outras obras do período, o episódio do
cavalo batizado em Yakesly, Huntingdonshire.213 Esses relatos, é claro, sempre eram
produzidos por ministros “piedosos e instruídos”, “pessoas de valor”, “gentlemen”,
“Membros da Assembleia dos Teólogos”, “Reverendos Ministros” etc.214
Além dos testemunhos cujas fontes eram preservadas, existia um diálogo
estabelecido entre Edwards e outros autores aliados, como Ephraim Pagitt e William Prynne.
Há breves menções a Heresiography e ao trabalho iniciado por Pagitt,215 porém, de acordo
com Hughes, “Os ‘corolários’ de Prynne216 e seus copiosos excertos da escrita radical (sem
refutação) forneceram modelos para Gangraena, ao passo que Edwards também citou Prynne
para informações específicas sobre independentes e sectários”.217 Ter em vista esse outro
modelo, para além dos autores clássicos ou mesmo de Pagitt, talvez ajude a explicar,
inclusive, porque a escrita de Edwards era menos sistemática, regrada e focada na descrição
das seitas heréticas do que as outras heresiografias.
É notável, portanto, como as dinâmicas intertextuais dos escritos de Edwards
precisam ser levadas em consideração para a compreensão dos embates mais específicos.
Gangraena, como tantas outras obras, existiu intrinsecamente ligada à ampliação das
produções impressas, a diminuição da censura no período e a guerra panfletária. Para
Edwards, os livros foram “um meio crucial pelo qual os erros se espalhavam por toda a
213
Idem. Gangraena, III. p. 17. “... that summer was a two yeares Captaine Beamant and his company being
quartered at Yakesly in Huntingtonshire, there being a child in the Town to be baptized, some of the souldiers
would not suffer the child to be carried to Church to be baptized, and the Lieutenant of the Troop drew out a part
of the Troop to hinder it, guarding the Church that they should not bring the child to be baptized, and instead of
the child being baptized, in contempt of Baptisme, some of the souldiers got into the Church, pissed in the Font,
and went to a Gentlemans stable in the Town, and took out a horse, and brought it into the Church, and there
baptized it …”.
214
Idem. Gangraena, II. p. 161, 163, 10-11. “godly and learned ministers; persons of worth; gentlemen” e
Gangraena, I. p. 53 e 59. “one of the Members of the Assembly of Divines; Reverend Minister”.
215
Idem. Gangraena, I. pp. 3, 4, 10, 38.
216
PRYNNE, William. A Full Reply to certaine briefe Observations and Anti-Queries on Master prynnes twelve
Questions about Church-Government. London, Printed by F. L. for Michael Sparke Senior, and are to bee sold at
the Blew Bible in Green-Arbour, 1644; _____. Independency examined, vnmasked, refuted, by twelve new
particular interrogatories: detecting both the manifold absurdities, inconveniences that must necessarily attend
it, to the great disturbance of church, state, the diminution, subversion of the lawfull undoubted power of all
christian magistrates, parliaments, synods: and shaking the chiefe pillars, wherwith its patrons would support it.
London, Printed by F. l. for Michael Sparke Senior, and are to be sold at the Blew-Bible in Green-Arbour, 1644.
217
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 243. “Prynne’s ‘Corollaries’ and his copious extracts from radical writing
(without refutation) provided models for Gangraena, while Edwards also cited Prynne for specific information
concerning Independents and sectaries…”.
51
Inglaterra e (em seu texto) uma fonte vital”.218 Observa-se, porém, que mais do que o erro em
si, localizável nessas diversas obras citadas, “livros radicais foram mais perigosos quando
associados com o ativismo político e religioso”.219 Tal problema que se expressou, por
exemplo, por meio da produção de petições e da participação de sujeitos considerados
heréticos em espaços como a Assembleia de Westminster, onde tais indivíduos tiveram poder
sobre a alteração do quadro político-religioso que deveria ser, para Edwards, tarefa dos
presbiterianos reunidos.
Por partilharem o mesmo vocabulário da época, muitas vezes as respostas à
Gangraena, apresentavam modelos similares aos utilizados por Thomas Edwards. Essas
publicações também trabalhavam em torno de testemunhos e opiniões de sujeitos, igualmente
tidos como gentlemen e ministros de valores em outro contexto, ao passo que as respostas
produziam sentidos de autodefesa e de críticas aos presbiterianos. Ambas as obras até mesmo
focavam em insultos (típicos das polêmicas, a propósito) relacionados ao lugar dos indivíduos
enquanto letrados, sendo que, John Goodwin, por exemplo, veio a críticas a “competência
acadêmica de Edwards, seu latim fraco, sua gramática incerta e sua reputação vergonhosa
como polemista tão falha que uma mulher [a já mencionada Chidley] poderia responder a seus
argumentos”.220
Essas são apenas algumas questões em torno das dinâmicas de intertextualidade
típicas da escrita heresiográfica e das polêmicas do período aqui trabalhado. É também
importante sempre considerar que, como assinalou Roger Chartier, “os autores não escrevem
os livros”, eles, na realidade, produzem “textos que se tornam objetos escritos, que podem ser
escritos à mão, gravados ou impressos”. O que mais interessa, portanto, é o espaço de
disputas entre o texto e o objeto, a arena onde são construídos os significados. Nesse sentido,
é preciso sempre fugir de modelos que postulem “uma relação pura e sem mediação entre os
‘sinais’ emitidos pelo texto (que jogam com as convenções literárias aceitas) e o ‘horizonte de
expectativa’ do público a quem esses sinais são direcionados”.221 Dessa maneira, quando
218
Ibid. p. 249. “Books were, for Edwards, a crucial means by which errors were spread throughout England,
and (in his text) a vital source”.
219
Ibid. p. 250. “Radical books were most dangerous when associated with religious and political activism in
Edwards’s ‘here and now’”.
220
Ibid. p. 254. “academic competence, his weak Latin and uncertain grammar, and his shameful reputation as a
polemicist so faulty that a woman could answer his arguments”.
221
CHARTIER, R. Op. cit., 1994. p. 10. “True, authors do not write books: they write texts that become written
objects, which may be hand-written, engraved, or printed (and, today, electronically reproduced and
transmitted)… in spite of its desire to historicize the readers’ experience, postulates a pure and unmediated
relationship between the ‘signals’ emitted by the text (which play with accepted literary conventions) and the
‘horizon of expectation’ of the public to which those signals are addressed”.
52
tratamos de obras como Gangraena, produzidas em contextos de enorme polêmica político-
religiosa, parece evidente que análises voltadas para os diálogos serão sempre particularmente
convenientes.
Compete, por fim, sempre trabalhar com tal obra no limite das relações entre autor
e leitor, tendo em vista esses tantos diálogos estabelecidos. Como observado, os mecanismos
intertextuais de Gangraena são, inclusive, relevantes como indícios de dois lugares ocupados
por Thomas Edwards. No limite, sua obra está vinculada a um tipo de autoria muito distinta
das noções contemporâneas de autor, passando por níveis de leitura que buscam referências
em diversos tempos históricos a fim de responder as angústias do presente. Gangraena é um
interessante exercício de autor-leitor, que reproduz, critica e desconstrói os seus aliados e
oponentes para, por fim, produzir escritos dialógicos que transitam entre o antigo (como
referência, explicação, modelos) e aquilo que está agora em voga. Os capítulos seguintes,
continuarão a percorrer essas questões, sobretudo tentando verificar como a intertextualidade
de Gangraena se vinculava ao movimento presbiteriano do período e, mais amplamente, aos
embates confessionais do século XVII.
53
Capítulo 2
Retórica da Unidade:
222
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 115. “Hence then we may see it is more then time to settle the government
and discipline of the Church, and that fully and effectually, the civill Magistrate also concurring and backing it
with his civill power, least many more damnable heresies come in upon us, and we be destroyed by rents and
divisions; the errors mentioned in this Catalogue, beside many others not here named, cry aloud and call for a
speedy settling of Church government, and to put some stop to the wilde beast that come in to devour [us]”.
54
tendo sido uma “ameaça à sua hierarquia organizada de modo episcopal ao insistir em um
modelo de governo baseado na igualdade dos ministros e na inclusão dos presbíteros na
supervisão da Igreja”.223 Cabe observar que tais propostas não surgiram com o intuito de
serem inovadoras, mas, ligadas ao sentido mais usual em termos religiosos durante os séculos
XVI e XVII, como “ação ou processo em uma ordem religiosa de retornar a uma regra
original ou adotar observâncias mais estritas”.224 Essas regras, como não poderia deixar de
ser, eram exemplificadas a partir da referência mais importante para tais sujeitos, isto é, a
Bíblia Sagrada. Nesse sentido, as propostas presbiterianas relativas ao governo da Igreja
estariam sempre atreladas, principalmente, a Atos dos Apóstolos, Timóteo e Coríntios,
retornando a um regime eclesiástico baseado em assembleias de presbíteros e anciãos.225 Aos
presbíteros (ou ministros) caberiam as atividades de ensino e pregação e aos anciãos os cargos
ligados ao governo da Igreja.226
Apesar da característica autoridade encontrada no resgate aos primórdios do
cristianismo, esse modelo também levava em consideração uma tradição calvinista mais
imediata, na qual cada igreja seria localmente governada por um corpo de anciãos eleitos em
um consistório, sendo tal consistório, portanto, responsável por organizar as congregações ou
paróquias individuais e implementar decisões originadas em sínodos e assembleias. Tendo em
vista que tais assembleias seriam regidas por sujeitos primeiramente eleitos nas bases desse
sistema, o modelo supunha um tipo de autoridade que seria ao mesmo tempo de cima para
baixo e de baixo para cima. Nota-se como tal governo foi pensado em termos de rejeição a um
ordenamento episcopal hierárquico (como estabelecido até então), mas também afastado de
qualquer modelo congregacionalista no qual as congregações fossem localmente
independentes. O calvinismo aparecia, ainda, por meio de uma doutrina tratada a partir da
simplicidade de uma adoração “ordenada e digna, com ênfase na escuta e na pregação da
Palavra de Deus”.227
223
HA, P. English Presbyterianism, 1590-1640. California: Stanford University Press, 2011. p. 01. “Elizabethan
religious settlement; threat to its episcopally organized hierarchy by insisting on a model of government based
on the equality of ministers and the inclusion of lay elders in the oversight of the Church”.
224
Reform.oed. Disponível em: <http://www.oed.com/view/Entry/160987>. Acesso em: abril 2017. “The action
or process in a religious order of returning to an original rule or adopting stricter observances”.
225
Ver, sobretudo, Atos 11:30, 15:22, 14:23; 1 Tim. 5:17 e 1 Cor. 12:28.
226
1 Tim. 5:17. “Os presbíteros que administram bem a igreja são dignos de dobrados honorários,
principalmente os que se dedicam ao ministério da pregação e do ensino”; 1 Cor. 12. 28. “Assim, na Igreja,
Deus estabeleceu alguns primeiramente apóstolos; em segundo lugar profetas; em terceiro mestres; em seguida,
os que realizam milagres, os que têm dons de curar, os que têm dom de prestar ajuda, os que têm dons de
administração e os que falam diversas línguas”. Grifo nosso.
227
CROSS, F. L.; LIVINGSTONE E. A. Op. cit. p. 1120. “orderly and dignified, with an emphasis upon the
hearing and preaching of the Word of God”.
55
Reconhecer essas propostas gerais, não significa, porém, dizer que os
presbiterianos dos séculos XVI e XVII eram os mesmos. Considerando os trabalhos de
Patrick Collinson, é possível perceber que eles ocupavam, sem dúvida, uma posição
importante dentre do que viria a ser entendido como puritanismo, talvez até mesmo como
líderes em tal grupo,228 sem que isso implicasse necessariamente uma maioria ou um corpo
homogêneo que perpassou os séculos. O presbiterianismo, como salienta Polly Ha, era, sem
dúvida, uma “posição significativa”, em particular, no que dizia respeito a um esforço em
“argumentar que o episcopado era anti-bíblico, ilegal, não-Inglês e antinatural”.229 Além
disso, os presbiterianos “apelaram à coroa, ao parlamento e ao direito comum para atacar a
autoridade episcopal e suas fundações na lei canônica romana”.230 Tal esforço, juntamente aos
pressupostos já mencionados, seria recuperado mais tarde por sujeitos como Thomas Edwards
no contexto da Guerra Civil Inglesa, o que torna importante localizar os paralelos entre esses
dois momentos distintos.
É ainda importante observar como a noção de puritanismo se atrelava a ideia de
presbiterianismo naquele período inicial. Collinson assinalou que na polêmica antipuritana de
Richard Bancroft entre as décadas de 1580 e 1590 não havia ocorrência do uso do termo
“puritano”, no entanto, os textos anônimos Davngerous Positions e A Survay of the Pretended
Holy Discipline?, produzidos em 1593 e atribuídos a Bancroft, introduziram o termo
“presbiteriano” para o vocabulário da época.231 O historiador observa que a nomenclatura
“puritano” foi conferida posteriormente por observadores externos a essa polêmica, sendo que
a definição dessas linguagens sempre esteve em disputa. Assim, Collinson apontou para a
dialética relação entre puritanismo e antipuritanismo, defendendo que, primeiro se enxergava
algo e depois se definia.232 Ou, como ocorria também com a dinâmica entre ortodoxo e
heterodoxo, um necessitava do outro para existir em uma época na qual, de acordo com Stuart
Clark, se partilhava um modo de ver “as coisas em termos de oposição binária em tal escala
que podemos pensar nisto como um dos traços culturais e mentais distintivos da época”.233
228
COLLINSON, P. The Elizabethan Puritan Movement. Londres: Jonathan Cape, 1967.
229
HA, P. Op. cit. p. 03. “to argue that episcopacy was unbiblical, unlawful, un-English and unnatural”.
230
Ibid. p. 06. “appealed to crown, parliament, and common law to attack episcopal authority and its foundations
in Roman canon law”.
231
Mais especificamente, os termos presbyterian, presbiteriall e Presbiteriall Discipline. COLLINSON, P.
Antipuritanism. In: COFFEY, J; LIM, P. C. H. (ed.). The Cambridge Companion to Puritanism. Cambridge:
Cambridge University Press, 2008. p. 22.
232
Ibid. p. 24.
233
CLARK, S. Op. cit. p. 66.
56
Essa questão do vocabulário, talvez indique algo sobre o “puritanismo
multiforme”, um termo de época, muito utilizado por Collinson.234 Tal ideia se colocava, é
claro, em contraposição a noção de uniformidade puritana, o que se revelou nos usos do termo
presbiteriano ou até mesmo “precisiosista”,235 mas jamais puritanos. Em outro sentido, parece
possível pensar o próprio presbiterianismo como multiforme, algo que coloca em xeque uma
visão sobre a unidade do grupo fortemente forjada por Thomas Edwards em Gangraena. Essa
percepção de unidade, é claro, poderia facilmente existir num modelo textual retórico, como o
da época, que possibilitava a organização discursiva por oposições (presbiterianos contrários a
independentes ou sectários, por exemplo, todos entendidos como grupos uniformes). Essa era,
além disso, expressão da própria metafísica cristã, tão íntima a esses sujeitos, na qual se
anunciava “a necessidade de apresentar uma razão dualista das imperfeições que degradavam
o mundo criado sem estendê-la aos princípios primeiros; ressaltar tanto os aspectos
contrastantes quanto os correlatos do bem e do mal”.236
Nesse sentido, as descrições realizadas por Edwards no que se refere ao embate
contra John Goodwin são emblemáticas. Em um longo tópico publicado na segunda parte de
Gangraena, por exemplo, e intitulado “Uma Narrativa de certas palavras proferidas por Mr.
John Goodwin Ministro da Rua Coleman, pouco antes de a Assembleia se reunir”,237 Edwards
aplicava exemplos de contrariedade entre ele e seu oponente. O tópico foi inteiramente
produzido de acordo com modelos retóricos que previam a exposição de um problema
(levantado a partir de análises atribuídas ao ministro independente), seguido de questões e
objeções (feitas pelo presbiteriano). Ao descrever o modo como Goodwin o contrariava,
Edwards comentou que “este grande Rabino... aparece como Golias, desafiando todos os
Presbiterianos Reunidos ou não Reunidos, enchendo-se com esse desdém e desprezo por
mim, assim como Golias ao pequeno Davi”.238 Vê-se, portanto, uma oposição bíblica clássica
entre Davi e Golias, na qual Edwards colocava o presbiterianismo — com seus membros
reunidos na Assembleia de Westminster—, como um Davi em oposição ao grupo
independente que era, naquela altura, muito menos expressivo. Tal oposição (muito mais
discursiva do que expressa na realidade) ao “Golias Goodwin” era recorrente, na verdade,
234
COLLINSON, P. Op. cit., 2008. p. 20.
235
Segundo Collinson, as fontes da época referiam-se a puritanos também como “precisians”, fazendo menção a
uma ideia de precisão. Um sentido próximo em português seria ao do termo “rigorista”.
236
CLARK, S. Op. cit. p. 77.
237
EDWARDS, T. Gangraena, II. pp. 32-48. “A Narative of certain words uttered by Mr. John Goodwyn
Minister of Coleman Street, not long before the Assembly sate”.
238
Ibid. p. 34. “this great Rabbi... comes forth like Goliah, challenging all the Presbyterians Assembled or not
Assembled, carrying himself with that disdain and scorne towards me, just as Goliah to little David”.
57
desde as páginas iniciais no primeiro volume da obra.239 Entre outras oposições, o tópico
também aponta para a descrição do ministro independente como um rabino, ao passo que os
presbiterianos ortodoxos eram como apóstolos piedosos.
Vale observar, portanto, que para entender o presbiterianismo e as polêmicas em
torno dele — tão bem exemplificadas na obra de Edwards—, será também necessário partir da
ideia de que “a contrariedade era, pois, um princípio universal de inteligibilidade” naquele
período, não apenas discursivo, mas como um imperativo de ação.240 Tal princípio,
demonstrou Clark, pode ser explicado tendo em vista o “surgimento da rivalidade
confessional fundamental e o desenvolvimento de programas ainda mais intensivos de
purificação religiosa”.241 Isso levou os escritores a adotarem “posições extremas e defendê-las
extravagantemente; eles estavam preocupados com os pólos do debate religioso e moral”, algo
que parece evidente a “qualquer leitor da polêmica religiosa moderna [...] familiarizado com
os traços discursivos que transformavam livros e panfletos em campos de batalha onde
opiniões contrárias podiam se chocar”.242
Em outro sentido, e para além de uma compreensão do presbiterianismo como
modo de governo da Igreja, importa ainda atentar para o movimento como uma “jurisdição
alternativa e um processo usado para chegar a um consenso, seja no argumento teológico, no
conflito intercongregacional ou na discordância interpessoal” dos diversos fiéis.243 O grupo
presbiteriano passou a ganhar espaço por conta de um discurso moderador dentro de uma
pluralidade — talvez multiforme, considerando as reflexões de Patrick Collinson — puritana.
Essa postura moderadora, inclusive, levou ao posterior surgimento de um episcopado
moderado com o qual os não-conformistas tiveram que dialogar. De acordo com Ha, “os
presbiterianos ingleses empregavam um padrão particular de jurisdição eclesiástica em que
pesavam evidências e vários testemunhos para arbitrar e chegar à sua conclusão”244 e, assim,
decidir quais ações seriam tomadas em casos contra o episcopado, o independentismo e a
disciplina em comunidades locais. Gangraena foi, mais uma vez, uma importante fonte de
como esse levantamento de evidências e testemunhos funcionava no seio do movimento
presbiteriano, tendo em vista às inúmeras correspondências apresentadas por Edwards no
239
Ver: EDWARDS, T. Gangraena, I. pp. 01-02 “Goliah Goodwin”.
240
CLARK, S. Op. cit. pp. 88-9.
241
Ibid. pp. 97-8.
242
Ibid. pp. 97-8.
243
HA, P. Op. cit. p. 04. “an alternative jurisdiction and a process used to reach a consensus, whether in
theological argument, intercongregational conflict, or interpersonal disagreement”.
244
Ibid. p. 04.
58
decurso dos três volumes da obra. Esse padrão presbiteriano pode ser outro aspecto
explicativo para o intenso uso dessa linguagem intertextual dentro de uma obra vinculada a
escrita heresiográfica.
Por basearem-se em prescrições bíblicas,245 os presbiterianos pressupunham que
seus métodos levariam à reconciliação das partes, quando o efeito acabava por ser oposto. Por
fim, eles continuavam a agir como moderadores ao passo que as divisões se tornavam cada
dia mais insuperáveis. Vale observar que tal modelo de jurisdição foi modificado durante a
Guerra Civil Inglesa, transformando-se em perseguição religiosa. Alexandra Walsham
demonstrou, por exemplo, como o presbiteriano “Thomas Cartwright apoiou abertamente
punição rigorosa de falsos professores e pregadores”.246 Edwards possuía um posicionamento
similar, concebendo, desde a sua “Epístola Dedicatória” ao volume I, “que não condiz com a
Honra, o Poder, a Sabedoria nem a piedade de um Parlamento, por medo de perder um
partido, ter medo de manter suas próprias Ordenanças, e punir as coisas que eles sabem que
são ruins”.247
É necessário perceber essa persistência do presbiterianismo ao longo das décadas
paralelamente ao desenvolvimento do laudianismo, um movimento reformista liderado pelo
Arcebispo de Canterbury, William Laud (1573–1645). Laud opunha-se a diversos tópicos da
doutrina calvinista tão em voga e fez dos puritanos não-conformistas seu principal alvo em
sua luta por uma unidade eclesiástica. Como avaliou Ha, muitos autores “associavam o
presbiterianismo às expressões mais extremas de não-conformismo e separatismo”.248 O feroz
ataque presbiteriano ao episcopado sofria fortes denúncias e foi, inclusive, considerado radical
durante as décadas de 1620 e 1630. Esse foi, ironicamente, o caso de uma “acusação a [...]
Edwards por um Sermão, 1627/8” que foi emitida por Thomas Goodwin e William Bridge,
entre outros, durante a visitação do Arcebispo Laud a Cambridge.249
245
Ver: Mat. 18: 15-17. “15. Se teu irmão pecar contra ti, vai e, em particular com ele, conversem sobre a falta
que cometeu. Se ele der ouvidos, ganhaste a teu irmão. 16. Porém, se ele não te der atenção, leva contigo mais
uma ou duas pessoas, para que pelo depoimento de duas ou três testemunhas, qualquer acusação seja confirmada.
17. Contudo, se ele se recursar a considerá-los, dizei-o à igreja; então, se ele se negar também a ouvir a igreja,
trata-o como pagão ou publicano”.
246
WALSHAM, A. Op. cit. p. 236. “Thomas Cartwright openly supported rigorous punishment of false teachers
and preachers”.
247
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 13. “I humbly conceive it stands not with the Honour, Power, Wisdom nor
piety of a Parliament, for fear of losing a party, to be afraid of maintaining their own Ordinances, and punishing
those things that they know are bad”.
248
HA, P. Op. cit. p. 05. “associated Presbyterianism with even the most extreme expressions of nonconformity
and separatism”.
249
VCCt. i. Vol. 49. f.25. “prosecution of... Edwards for a Sermon, 1627/8”.
59
Esse radicalismo presbiteriano foi relembrado ao longo das polêmicas em torno de
Gangraena, como argumento em favor do independentismo, atentando-se para o fato de que
os presbiterianos agiam em nome de uma ortodoxia, quando pouco antes foram uma
heterodoxia tal como os demais.250 Como assinalou Walsham, um pouco mais tarde, no
tratado intitulado The vanitie of the present churches (1649), o leveller (nivelador) William
Walwyn veio a fornecer “uma análise particularmente aguda” sobre o que ele considerava a
hipocrisia dos “auto-denominados piedosos”. Walwyn se perguntou se “Eles não cospem seu
veneno diariamente de modo privado e público, contra qualquer um que se separe deles [...] e
em ofensivas difamações, como sempre o Papa proferiu contra Lutero, o Bispo contra os
puritanos ou o Presbítero contra os Independentes”.251 Assim, os próprios presbiterianos, tão
empenhados na definição do que era herético, também fazem relembrar o que J. G. A. Pocock
já havia comentado sobre como “no devido tempo, uma heterodoxia será gerada a partir da
ortodoxia, se rebelará contra ela e o processo começará de novo”.252 Assim sendo, concluiu o
autor, “a história concebida como processo pode ser encontrada na subversão de curto prazo
da ortodoxia pela heterodoxia”.253
Às vésperas da publicação de Gangraena, já na década de 1640, Carlos I, em suas
cartas à rainha Henriqueta Maria, diria que “todas as formas de presbiterianismo eram
inerentemente subversivas”.254 Isso se deu, sobretudo, por conta do modo como o governo
presbiteriano era baseada “no princípio do direito divino, que insistia que a autoridade
eclesiástica veio diretamente de Deus por mandato das escrituras, em vez de por delegação do
príncipe”.255 Em outro sentido, ao questionar o episcopado, o presbiterianismo também
ameaçava a autoridade da coroa sobre o governo da Igreja, o que implicava “que as formas
populistas de governança seriam aplicadas ao Estado e derrubariam a monarquia”.256 Além
disso, existia o perigo de discussões acerca da distinção entre governo civil e igreja. Exemplo
250
Ver o já citado Groanes for Liberty de John Saltmarsh.
251
WALSHAM, A. Op. cit. p. 237. “a particularly acute analysis; by the self-styled godly; Do they not dayly
spet their venom privatly and publickly, against any that either separate from them… and that in as foul
aspertions, as ever the Pope uttered against Luther, the Bishop against the Puritans, or the Presbyter against the
Independents”.
252
POCOCK, J. G. A. Op. cit. p. 34. “in due course a heterodoxy will be generated out of the orthodoxy, will
rebel against it and the process will begin again”.
253
Ibid. p. 34. “history conceived as process is to be found in the short-term subversion of the orthodoxy by the
heterodoxy”.
254
BRUCE, J. (ed.). Charles I in 1646: letter of Charles the first to Queen Henrietta Maria. Londres: Camden
Society, 1856. pp. 26-7. apud HA, P. Op. cit. p. 13. “all forms of Presbyterianism were inherently subversive”.
255
HA, P. Op. cit. p. 13. “on the principle of divine right, which insisted that ecclesiastical authority came
directly from God by scriptural mandate rather than by delegation through the prince”.
256
HA, P. Ibid. p. 13. “that populist forms of governance would be applied to the state and would overturn the
monarchy”.
60
disso foi a sessão número 600 da Assembleia de Westminster de 1645, em que foi discutida
“a distinção entre oficiais do estado e da igreja”, momento no qual os teólogos concluíram
que “Jesus Cristo como Rei e Cabeça de sua Igreja tem designado um governo eclesiástico em
sua igreja na mão de oficiais da igreja distintos do governo civil”.257
Vale observar que tal distinção pode ser identificada nos escritos de João Calvino
que são fundamentais para a compreensão dos embates presbiterianos naquele período. Ao
estabelecer essa distinção, Calvino de modo algum negava a necessidade do poder civil, tendo
inclusive discutido com aqueles que consideravam tal poder irrelevante: “pretendo que se
compreenda que se trata de inumana barbárie não querer aceitar a sua necessidade, já que o
governo não é menos necessário aos homens que o pão, a água, o sal e o ar, sendo a sua
dignidade muito superior a tudo isso”.258 Por outro lado, porém, a capacidade subversiva,
indicada por Carlos I, talvez se devesse ao fato de que os teólogos presbiterianos estavam
ligados às ideias calvinistas que não comportavam uma autoridade monárquica extremamente
centralizada e que arriscasse direitos e privilégios estabelecidos, além de, naturalmente,
considerarem os mandamentos como lei principal.
Calvino expressaria, inclusive que, “se as autoridades ordenam algo contra o
mandamento de Deus, devemos desconsiderá-la completamente, seja quem for o
mandante”,259 uma vez que “não se faz qualquer injúria ao magistrado, por mais elevado que
seja, quando o submetemos ao poder de Deus, que é o único verdadeiro”.260 Por fim, o
reformador concluiuque sabia “muito bem que tipo de perigos podem advir desse
posicionamento de firmeza que aqui reivindico, porque os reis não toleraram sofrer
contradição”,261 todavia, os cristãos deveria consolar-se dessa situação “certos de que
obedeceremos genuinamente a Deus quando estivermos prontos a sofrer qualquer coisa para
não nos desviarmos de sua santa Palavra”.262
Como comentou a historiadora Polly Ha, interessa refletir se o presbiterianismo
era, de fato, antimonárquico e subversivo como supunham os conformistas. De acordo com a
autora, “os presbiterianos continuaram a explorar o conceito de uma política mista e a
257
Minutes and Papers, Sess. 600. 1645. Friday. In:DIXHOORN, C. V. (ed.). The Minutes and Papers of the
Westminster Assembly, 1643-1652. Oxford: Oxford University Press, 2012. p. 766. “the distinction between
officers of the state and of the church; J[esus] C[hrist] as K[ing] & H[ead] of his Church hath apoynted an
ecclesiasticall government in his church in the hand of church officers distinct from the civill <government>”.
258
CALVINO, J. A instituição da religião cristã, Tomo II. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 877.
259
Ibid. p. 902.
260
Ibid. p. 902.
261
Ibid. p. 902.
262
Ibid. p. 902.
61
natureza maleável da supremacia para suas próprias vantagens”.263 Era o caso, por exemplo,
do jure divino, que poderia ser usado para também afirmar a supremacia real, como ocorreu
na Escócia onde Jaime I foi entendido como “Bispo dos Bispos e Bispo universal dentro de
seu Reino”.264 Nesse sentido, é possível supor que o presbiterianismo não fosse inerentemente
antimonárquico, “todavia, seu respeito pela supremacia real sempre foi condicional”, tendo
em vista que os presbiterianos não aceitariam um príncipe que “não fosse cristão e
protestante, ou mesmo calvinista”.265 No que concerne especificamente a Edwards, Ann
Hughes apontou que “tudo o que sabemos de Edwards sugere que ele era e teria permanecido
entre os presbiterianos que aceitariam o rei somente se ele assinasse a Aliança”,266 isto é, a
Solemn League and Covenant.267
Percebe-se, portanto, a existência de uma ordem social que comportava diversas
instâncias, sendo importante a distinção entre autoridade civil e religiosa em uma realidade na
qual coexistem “múltiplos poderes intermédios”, que“aparecem como parceiros ou opositores
de um poder da coros em lento e difícil desenvolvimento”.268 Como demonstrou Gerhard
Oestreich” trata-se de um lento processo de domínio do poder central, através da dissolução
das influências não-centrais, isto é, das influências regionais e locais, mas não de uma
submissão dos poderes locais”.269 O que se nota, a partir das experiências presbiterianas e que
perpassa Gangraena em particular é a possibilidade de uma “soberania local, nos domínios da
justiça, dos assuntos eclesiásticos e de educação, na administração e nos assuntos de
polícia”.270 Sendo, então, o poder civil uma instância entra tantas outras, importava aos
263
HA, P. Op. cit. p. 15. “Presbyterians continued to exploit the concept of a mixed polity and the malleable
nature of supremacy to their own advantages”.
264
Ibid. p. 16. “Bishop of Bishops and universal Bishop within his Realm”.
265
Ibid. p. 20. “their respect for royal supremacy had nonetheless always been conditional; not Christian and
protestant, or even Calvinist”.
266
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 406. “everything we know of Edwards suggests he was and would have
remained amongst those Presbyterians who would accept the king only if he signed the Covenant”.
267
Esse foi um acordo firmado em 1643 entre os escoceses e o Parlamento Inglês, cujos objetivos gerais eram: “a
manutenção da Igreja Presbiteriana da Escócia, a reforma da Igreja da Inglaterra, a uniformidade das Igrejas das
Ilhas Britânicas, a extirpação do papado e da prelazia (isto é, episcopado), a preservação dos direitos dos
Parlamentos e das liberdades dos reinos, a defesa do poder justo do Rei e a supressão dos malignos que
procuravam separá-lo de seu povo”. CROSS, F. L.; LIVINGSTONE E. A. (eds.). Op. cit. p. 1287. “were the
maintenance of the Presbyterian Church of Scotland, the reformation of the Church of England, the uniformity of
the Churches of British Isles, the extirpation of popery and prelacy (i. e. episcopacy), the preservation of the
rights of Parliaments and the liberties of the kingdoms, the defence of the King’s just power and the suppression
of the malignants who sought to divide him from his people”.
268
OESTREICH, G. Op. cit. p. 186.
269
Ibid. p. 187.
270
Ibid. p. 188.
62
presbiterianos alertar ao rei, ao magistrado,271 ao parlamento sobre a necessidade de
permanecerem articulados aos representantes da verdadeira fé, evitando que a sociedade como
um todo caísse em heresia. Observa-se, pois, que é fundamental entender Gangraena e os
embates em torno do presbiterianismo do período na chave de uma articulação, tipicamente
calvinista, entre poder civil e poder eclesiástico, sendo o presbiterianismo tratado como algo
absolutamente uniforme nos escritos do heresiógrafo.
No decurso de Gangraena, Edwards assinalou diversas dessas questões
fundamentais ao presbiterianismo, no entanto, como já apontado no capítulo anterior
(especificamente no caso do debate com Saltmarsh), sua obra não tinha como pressuposto
descrever ou debater aspectos da ortodoxia presbiteriana defendida. Edwards comentou
incansavelmente sobre a necessidade de se estabelecer um governo da igreja, que somente
teria “eficácia em suas Classes, Sínodos, Assembleias”,272 mas tais métodos não eram
apresentados ou especificados. Isso poderia ocorrer por alguns motivos: porque Gangraena
era, afinal, uma heresiografia e não um manual presbiteriano; porque esses modelos já
estavam amplamente disseminados no debate da época, uma vez que vinham sendo expostos,
como se viu, pelo menos desde a década de 1570 ou, ainda, porque definir significaria dar
margem para divergências que não cabiam em uma obra que se propunha a apresentar um
movimento supostamente uníssono. Mais uma vez, permanecia um regime de contrários, no
qual o presbiterianismo era sempre uniforme e os seus opostos disformes ainda que
trabalhassem juntos no seu objetivo de alastrar as heresias. Todas essas possibilidades
parecem plausíveis, todavia a última é aquela que aqui mais interessa.
A necessidade de se estabelecer um governo da igreja aparecia em Gangraena no
sentido de urgência, como um clamor sempre recorrente no texto, pois era “mais do que
tempo de se resolver” essa questão e algo deveria ser feito antes que fossem todos
“devorados” por aquela “besta” que eram as heresias.273 De maneira ainda mais imperiosa, o
heresiógrafo comenta que “Como uma cidade sem paredes e baluartes; Como um jardim e
uma vinha sem uma sebe e cercas; Como um exército sem disciplina são expostos a pilhagem,
271
Magistrado é um “oficial civil que exerce o poder judicial local; Um juiz da paz” ou “uma pessoa que preside
um tribunal de magistrados... ou que tenha poderes similares de jurisdição sumária”. “A civil officer exercising
local judicial power; a justice of the peace; a person presiding over a magistrate's court..., or having similar
powers of summary jurisdiction”. Magistrate.oed. Disponível em: <http://www.oed.com/view/Entry/112219>.
Acesso em: Ago. 2017.
272
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 14. “efficacy in its Classes, Synods, Assemblies”.
273
Ibid. p. 115. “it is more then time to settle; to put some stop to the wilde beast that come in to devour”.
63
devastação e ruína é assim uma Igreja sem governo Eclesiástico”.274 Tal urgência está
relacionada a uma expectativa de tomada de ação, uma vez que Gangraena foi publicada no
meio aos diversos debates, campanhas e petições presbiterianas. Cabe observar, porém, que
para criar esse sentido de urgência, Edwards voluntariamente “ignorou as divisões sobre os
arranjos precisos para o governo da igreja”.275 O heresiógrafo forjou, portanto, uma unidade
presbiteriana em torno dessa urgência e “aludiu apenas de passagem para aqueles dentre os
ortodoxos que acreditavam em ‘acomodação’ com Independentes no lugar do confronto, e
nunca sugeriu que existiam presbiterianos ingleses que não partilhavam seu próprio
entusiasmo pelos escoceses”.276
Não seria possível entender Gangraena, sem também considerar os eventos que
ocorreram na década de 1640, paralelamente a esse evidente crescimento do presbiterianismo
britânico ao longo do tempo. Como se viu, a reflexão sobre o mais perfeito modelo de igreja
era central para os diversos sujeitos envolvidos naqueles embates e isso se expressou ainda
mais com a convocação da Assembleia de Westminster em 1643. Tal sínodo, — isto é, uma
reunião formal entre bispos e outros representantes eclesiásticos com o propósito de
regulamentar a disciplina e a doutrina —, foi “nomeado pelo Longo Parlamento para reformar
a Igreja Inglesa”.277 A assembleia ocorreu a partir de “um projeto de lei aprovado em 15 de
outubro de 1642 convocando um corpo de teólogos” e que não recebeu a Aprovação Real,278
sendo que “o Parlamento emitiu em 12 de junho de 1643 uma portaria com o mesmo efeito”,
convocando o sínodo que “consistiu em 151 membros nomeados — 30 assessores leigos
(nomeados primeiro) e 121 teólogos”.279
274
Ibid. p. 113. “As a City without walls and Bulwarks; as a Garden and Vineyard without a hedge and fences;
as an Army with without Discipline are exposed to spoil, wasting, and ruine so is a Church without
Ecclesiasticall government”.
275
HUGHES. A. Op. cit., 2004. p. 325. “ignored divisions on the precise arrangements for church government”.
276
Ibid. p. 325. “alluded only in passing to those amongst the orthodox who believed in ‘accommodation’ with
Independents rather than confrontation, and never suggested that there were English ‘Presbyterians’ who lacked
his own enthusiasm for the Scots”.
277
CROSS, F. L.; LIVINGSTONE E. A. (eds.). Op. cit. p. 1472. “The synod appointed by the Long Parliament
to reform the English Church”.
278
Nesse caso, o Royal Assent, que era um método pelo qual o monarca aprovava formalmente um ato do
parlamento que seria promulgado como lei.
279
CROSS, F. L.; LIVINGSTONE E. A. (eds.). Op. cit. p. 1472. “a bill passed on 15 Oct. 1642 convening a
body of divines having failed to receive the Royal Assent; Parliament issued on 12 June 1643 an ordinance to the
same effect; consisted of 151 nominated members - 30 lay assessors (named first) and 121 divines”.
64
Também referido como Sínodo de Londres, essa assembleia fez com que a
Inglaterra fosse “então urgentemente chamada à oração”, quando, logo de início, o prolocutor
(assim chamado o presidente de algumas assembleias eclesiásticas), William Twisse,280
“pregou um sermão aos membros do parlamento, ao público e aos teólogos reunidos”.281
Como apontou Chad Van Dixhoorn a assembleia “teve uma data de início clara, mas nenhum
término óbvio”,282 sendo que o Parlamento jamais se preocupou em propor uma data final.
Foram organizadas ao menos 1385 plenárias e “muitos membros acharam que era necessário
mudar as suas famílias para Londres e encontrar residências ministeriais dentro e ao redor da
cidade enquanto a assembleia se estendia de 1643 a 1653”.283 Cabe observar como os
registros da assembleia também “revelam o leque de respostas à situação em que os membros
se encontravam”, como, por exemplo, reclamações “sob a tensão das muitas horas de trabalho
por trás da escrita, edição, submissão e a muito frequente rejeição de documentos da
assembleia”.284
Para Dixhoorn, contudo, “talvez o mais interessante de todos os documentos
agrupados seja aquele que os membros não trabalharam para produzir — o que registrava seus
trabalhos”, isto é, as minutas da assembleia.285 Essa documentação é formada por atas das
reuniões, com centenas de páginas, que funcionam como “uma espécie de diário corporativo
ou diário para a assembleia como um todo”.286 Os registros são relacionados a assuntos
diversos, como batismo, iconografia em igrejas, preços de Bíblias, publicação de teologia
heterodoxa, jure divino, liberdade de consciência etc. Apesar das minutas a que se tem acesso
cobrirem “grande parte da história do sínodo, alguns deles com grande detalhe, faltam as
minutas para os primeiros meses da assembleia e seu último ano”.287 Assim, para a
compreensão das sessões inicias e finais, “é necessário confiar nos diários privados dos
280
Teólogo presbiteriano, nascido em Speenlands, perto de Newbury, Berkshire e filho de William Twisse, um
negociante de sucesso e neto de um imigrante da Alemanha. Em 1596, foi admitido no New College, em Oxford.
VERNON, E. C. “Twisse, William (1577/8–1646), theologian”. DNB. Disponível em:
<http://www.oxforddnb.com/view/article/27921>. Acesso em: abr. 2017.
281
DIXHOORN, C V. (ed.). Op. cit. p. 01. “preached a sermon to members of parliament, the public, and the
assembled theologians”.
282
Ibid. pp. 01-02. “had a clear start date but no obvious terminus”.
283
Ibid. pp. 01-02. “many members found it necessary to move their families to London and find ministerial
livings in and around the city as the assembly stretched out from 1643 to 1653”.
284
Ibid. pp. 01-02. “reveal the range of responses to the situation in which the members found themselves; the
strain of the many hours of work behind the writing, editing, submission, and too frequent rejection of assembly
documents”.
285
Ibid. p. 02. “Perhaps the most interesting of all assembly documents is the one which members did not labour
to produce -the one that recorded their labours”.
286
Ibid. p. 02. “a sort of corporate diary or journal for the assembly as a whole”.
287
Ibid. p. 02. “As it happens, although this record covers much of the synod's history, some of it in great detail,
it lacks the minutes for the assembly's first months and its final year”.
65
membros do parlamento e da assembleia, e nos relatos públicos dos jornais sobre as
atividades da assembleia, juntamente com outras fontes” impressas.288
Nota-se, ainda, que a partir das minutas não é tão simples estabelecer os critérios
para a escolha dos membros da Assembleia, porém, “os pregadores populares perante o
parlamento [e] com patronos influentes em uma ou em ambas as casas”,289 como Edmund
Calamy,290 seriam as escolhas mais óbvias. Assim, “a evidência que sobreviveu sugere que os
contatos pessoais e o patronato” em cada condado foram importantes nessas nomeações.291
Em linhas gerais, pode-se inferir que esses membros foram selecionados a partir de quatro
grupos principais: 1) Episcopal, contando com uma seleção de bispos provenientes de Exeter,
Worcester, Bristol e Armagh, na Irlanda do Norte; 2) Presbiteriano, considerado o grupo mais
amplo, que incluía indivíduos como Anthony Tuckney (1599–1670),292 Edmund Calamy
(1600-1666), Edward Reynolds (1599-1676)293 e o, já mencionado proloculor, William
Twisse (1577/8–1646); 3) Independentes, formado por “um pequeno grupo... de influência
desproporcional, por meio do favor de Oliver Cromwell e do Exército — entre eles estavam
Thomas Goodwin e Philip Nye”;294 4) Erastianos, como J. Lightfoot e Thomas Coleman,295
um grupo ligado ao pensamento do teólogo suíço, Thomas Erastus, e que defendia a
“ascendência do Estado sobre a Igreja em questões eclesiásticas”.296
288
Ibid. p. 02. “it is necessary to rely on the private diaries of members of parliament and assembly members,
and on public newspaper accounts of the assembly's activities, along with other sources”.
289
Ibid. p. 13. “Popular preachers before parliament with influential patrons in one or both houses”.
290
Clérigo nascido em 1600 e filho único de George Calamy, um comerciante cuja tradição familiar remontava
ao exílio com huguenote na Normandia. Em 1616, foi admitido no Pembroke College, Cambridge.
ACHINSTEIN, S. “Calamy, Edmund (1600–1666), clergyman and ejected minister”. DNB. Disponível em:
<http://www. oxford dnb. com/view/article/4355>. Acesso em: abr. 2017.
291
DIXHOORN, C. V. (ed.). Op. cit. p. 14. “Surviving evidence suggests that personal contacts and patronage”.
292
Foi um clérigo da Igreja da Inglaterra e Diretor universitário em Cambridge, nascido em 22 de setembro de
1599 em Kirton, Lincolnshire, sendo filho do vigário da região, William Tuckney. Frequentou o Emmanuel
College, em Cambridge, entre 1613 e 1627 e “começou a ser uma figura nacional com a sua eleição em
novembro de 1640 para a câmara baixa... como um escriturário para a diocese de Lincoln”. COLLINSON, P.
“Tuckney, Anthony (1599–1670), Church of England clergyman and college head”. DNB. Acesso em: abr. 2017.
“Tuckney began to be a national figure with his election in November 1640 to the lower house... as a clerk for
Lincoln diocese”.
293
Mais tarde nomeado Bispo de Norwich, Reynolds nasceu em novembro de 1599 na paróquia Holyrood,
Southampton e se matriculou no Merton College, Oxford, em 1616. ATHERTON, I. “Reynolds, Edward (1599–
1676), bishop of Norwich”. DNB. Disponível em: <http://www.oxforddnb.com/view/article/23408>. Acesso em:
abr. 2017.
294
CROSS, F. L.; LIVINGSTONE E. A. (eds.). Op. cit. p. 1472. “a small group of Independents of
disproportionate influence, through the favour of Oliver Cromwell and the Army - among them were Thomas
Goodwin and Philip Nye”.
295
Thomas Coleman (1598–1647) teve um papel fundamento nos debates sobre o jure divino ocorridos ao longo
de diversas sessões na Assembleia e que diziam respeito, também, ao presbiterianismo. Ver: Minutes and Papers
a partir da Sessão 601 de 9 de março de 1645. In: DIXHOORN, C. V. (ed.). Op. cit. p. 768.
296
Ibid. p. 467. “the ascendancy of the State over the Church in ecclesiastical matters”.
66
É necessário observar brevemente a biografia de alguns desses presbiterianos mais
influentes na assembleia, pois, elas revelam omissões importantes que ajudam a compreender
a intertextualidade de Gangraena em relação aquilo que é velado a fim de expressar a unidade
forjada por Edwards. De acordo com Collinson, Anthony Tuckney, por exemplo, “pregou um
dos sermões regulares perante a Câmara dos Comuns” em 1643, sendo que “a essa altura, ele
poderia ser descrito legitimamente não só como calvinista, mas também como presbiteriano,
embora, na assembleia, ele tenha votado que, ainda que a crítica pública da confissão de fé
não devesse ser permitida, a confissão nunca deveria ser imposta por subscrição”.297 O
também presbiteriano, Edward Reynolds, foi, ainda no final da década de 1630, “reconhecido
como um dos principais moderados entre os piedosos em Northamptonshire, tendo sua
posição resumida em A Sermon Touching the Peace & Edification of the Church (1638)”.298
Tal capacidade moderadora, inclusive, pode ter sido um dos motivos que levaram a nomeação
de Reynolds a assembleia de Westminster em junho de 1643.
Como comentou Sharon Achinstein, Edmund Calamy teve um papel conciliador
importante, já que, pouco antes da assembleia, foi firmado um acordo, assinado por ele em
nome dos presbiterianos e por “Philip Nye (para os Independentes), [e] ainda que isso não
tenha curado as falhas reais que mais tarde emergiram plenamente na assembleia de
Westminster, ele declarou que nenhum dos lados disputava contra o outro”.299 Calamy foi
mencionado em Gangraena como um dos membros da assembleia mais bem colocados e que
vinha resolvendo disputas ligadas ao crescimento dos anabatistas.300 Edwards também
defendeu Calamy, comentando que ambos independentes e sectários, vinham “escrevendo
mentiras e falsas coisas sobre” muitos ministros respeitáveis, entre eles, “Master Calamy”.301
Considerando o ponto de vista apresentado por Edwards, portanto, os presbiterianos que
compunham a assembleia poderiam ser entendidos como plenamente de acordo entre si, o que
não era necessariamente o caso.
Apesar disso, é possível verificar que os presbiterianos partilhavam alguns tópicos
em comum, como a certeza de que o anti-episcopado “era social, legal e constitucional, mas
297
COLLINSON, P. Op. cit., 2004. “preached one of the regular fast sermons before the House of Commons; By
this time he might legitimately be described not only as a Calvinist but also as a presbyterian, although in the
assembly he voted that while public criticism of the confession of faith should not be allowed, the confession
should never be imposed by subscription”.
298
ATHERTON, I. Op. cit. “recognized as one of the leading moderates among the godly in Northamptonshire,
his position epitomized in A Sermon Touching the Peace & Edification of the Church (1638)”.
299
ACHINSTEIN, S. Op. cit. “Philip Nye (for the Independents), while it did not heal the real rifts that later
emerged fully in the Westminster assembly, declared that neither side would dispute against the other”.
300
Ver: EDWARDS, T. Gangraena, I. pp. 54-56; pp. 89-92.
301
Idem. Gangraena, III. p. 162. “writing lyes and false things of them”.
67
também era profundamente moral e, claro, eclesiológica”.302 Dentre os muitos exemplos
intertextuais existentes em Gangraena, vale mencionar as diversas cartas coletadas por
Edwards, nas quais seus pares presbiterianos, de diferentes localidades, se mostravam
indignados com os discursos daqueles ligados ao regime episcopal. Em alguns casos, essas
correspondências eram a forma encontrada por muitos presbiterianos para divulgarem as
mentiras proferidas publicamente pelo episcopado. Em uma carta sem datação, mas,
provavelmente coletada entre 1644 e 1645,303 um reverendo comenta como um certo Mr. E.
teria dito que o
302
HA, P. Op. cit. p. 36. “Anti-episcopacy was social, legal, and constitutional, yet it was also deeply moral and
of course ecclesiological”.
303
O excerto foi disponibilizado na parte I de Gangraena, na qual as correspondências apresentadas estiveram
normalmente relacionadas à publicação de Antapologia em 1644. É possível saber, desse modo, que tal carta foi
coletada antes de fevereiro de 1646, quando Gangraena foi impressa pela primeira vez.
304
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 67. Essa parte da publicação possui erros de continuidade na paginação,
provavelmente provenientes de algum tipo de reutilização da prensa comuns à época. Existem, portanto, duas
páginas com numeração 67 na obra, sendo a citação proveniente da segunda delas. “2. He said that Popery would
come in under Presbytery, as well as Independency, without the Magistrates: And said, when Episcopacy was at
the highest, Popery was at the lowest, because they had the countenance of the Civil Magistrate. 3. He denied the
Magistrate had declared against their way; and where there was no Law, there was no transgression...”.
305
CALVINO, J. Op. cit. p. 883.
306
Ibid. p. 883.
307
Ibid. p. 884.
68
particularmente interessante observar como o mencionado Mr. E. estaria dialogando
justamente com um princípio presbiteriano para legitimar o Episcopado, afinal, onde não
havia Lei, não havia transgressão.
Cabe observar como ambos os lados do debate se apropriavam da figura do
magistrado. Como afirma Paolo Prodi, “a tarefa do magistrado não é apenas a de zelar pelo
cumprimento da segunda parte do decálogo, referente à relação com o próximo (honrar o pai e
a mãe, não matar etc.), mas também a de garantir a observância do homem com Deus”.308
Nesse sentido, “o Evangelho diz respeito apenas à consolação, à relação íntima, na
consciência, do homem com Deus, mas todo o mundo, toda a vida externa e social encontra-
se sob o governo da lei”.309 Segundo Prodi, tal interpretação teria produzido controvérsias no
que concerne à problemática das relações entre autoridade civil e governo da Igreja, uma vez
que, “da aliança com os príncipes passa-se à definição, não sem contrastes, da preeminência
da autoridade política ou daquela religiosa na construção das novas realidades eclesiásticas”,
sendo essa uma discussão fundamental “em todas as questões inglesas da primeira metade do
século XVII”.310
O embate recorrente contra o episcopado bem como as tentativas de
implementação de um governo eclesiástico presbiteriano, marcariam, para Polly Ha, uma
“revolução disciplinar”, que tinha em vista, “a reorganização da supervisão eclesiástica por
meio de oficiais leigos e tribunais locais e, por sua vez, funcionaria como um mecanismo para
aumentar o controle do Estado sobre seus súditos”.311 Eles também pareciam concordar que o
disciplinamento de comportamentos escandalosos, “exigia o envolvimento sistemático de
autoridades seculares em uma campanha nacional para a reforma”, uma vez que, “somente um
governo alternativo e abrangente da igreja que prometesse [...] um papel ampliado na
jurisdição local poderia produzir a disciplina que o episcopado não conseguira alcançar e que
de fato não poderia ter alcançado devido à sua estrutura excessivamente clerical”.312 A esse
respeito, Gangraena é mais uma vez um caso emblemático. Ao argumentar sobre como a
308
PRODI, P. Op. cit. p. 253.
309
Ibid. p. 253.
310
Ibid. p. 258.
311
HA, P. Op. cit. pp. 36-37. “the reorganization of ecclesiastical oversight through lay officers and local courts
and in turn function as a mechanism for increased state control over its subjects”.
312
Ibid. p. 43. “required the systematic involvement of lay authorities in a national campaign for reform; only an
alternative and comprehensive church government that promised… expanded role in local jurisdiction could
produce the discipline which episcopacy had failed to achieve and indeed could never have achieved given its
excessively clerical structure”.
69
ausência de um governo da igreja era a verdadeira causa das heresias e das dissidências e não
apenas o afrouxamento de punições civis mais severas, Edwards concluiu:
313
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 114. “That the want of Ecclesiasticall government is the great cause of our
Heresies, Schismes, Confusions; and that till that be settled, these Evils will not be remedied; that Ecclesiasticall
Governement without civill backing it, when ‘tis in power and efficacy in its Classes, Synods, Assemblies, hath
both prevented and remedied those mischiefs, and that the Civill Government without Ecclesiastical will never
heal nor redresse them...”.
314
WALSHAM, A. Op. cit. p. 280. “at the heart of the Presbyterian movement was the claim that the English
Church (by contrast with its Genevan, French and Scottish counterparts) lacked the proper machinery for
persecution; system of ecclesiastical discipline that would facilitate the severe correction of faults that was one
of the ‘outwarde markes’ of the true Christian religion”.
315
Ibid. p. 280. “it was essential that the holy sacrament was protected from profanation by the unworthy and
that offenders were brindled and brought to humble repentance”.
316
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 08. “I do here offer (upon condition that some exemplary punishment may
passe upon some of the prime seducers and heads of these sects, and some effectuall course taken for the future,
to remedy and suppresse these errours) to make a legall proof by witnesses”.
70
que foi transformado em “uma sombra frágil e uma mera paródia” graças a corrupção
episcopal.317
Ao se ler Gangraena, nota-se sempre a frequência dos apontamentos sobre as
doutrinas equivocadas, mas, em especial, “à indisciplina dos Sectários enquanto hereges em
relação ao Sabá, às brincadeiras, ao teatro, às vestimentas e até ao riso”.318 Como demonstrou
Sammy Basu, os acusados de indisciplina, independentes ou sectários, responderam a
Edwards e aceitaram “os [seus] critérios, mas negaram sua aplicabilidade a eles enquanto
acusavam os presbiterianos do mesmo ou pior”.319 Em meio a tal polêmica, muitas vezes, não
é claro o que seria essa disciplina e esses critérios aceitos até mesmo pelos oponentes de
Edwards, sobretudo, porque estabelecer definições objetivas nunca esteve no horizonte de
Gangraena. Além disso, talvez descrever em detalhes certas acepções não fosse necessário
considerando os vocabulários compartilhados, sendo importante perceber, como indicou
Stanley Fish, que esses enunciados não existiram “num tal estado que não estivessem já
inseridos em uma ou em outra situação”.320 Dessa maneira, “o significado normativo de um
enunciado será sempre óbvio ou pelo menos acessível, embora numa outra situação esse
mesmo enunciado, não sendo mais o mesmo, terá outro significado normativo que será não
menos óbvio e acessível”.321
Em linhas gerais, as definições naquele período apontam para a disciplina como
“o sistema ou método pelo qual a ordem é mantida dentro de uma igreja, a conformidade com
suas leis e com os costumes assegurados, e o controle exercido sobre a conduta de seus
membros”.322 Além disso, também poderia dizer respeito ao “exercício desse controle por
meio de censura, excomunhão ou outras medidas penais”.323 Na década de 1640, todavia,
parece mais plausível que os autores entendessem por disciplina, “o sistema pelo qual a
prática de uma igreja, distinguida de sua doutrina, é regulada” e, em particular “a política
317
WALSHAM, A. Op. cit. p. 281. “admonition and correction outlined in the Bible; a flimsy shadow and a
mere parody”.
318
BASU, S. “We are in strange hands, and things are come to a strange passe”: Argument and Rhetoric Against
Heresy in Thomas Edwards’s Gangraena (1646). IN: LAURSEN, J. C. Histories of Heresy in Early Modern
Europe. For, Against, and Beyond Persecution and Toleration. New York: Palgrave Macmillan, 2002. p. 19.
“the indiscipline of the Sectaries qua heretics vis-a-vis the Sabbath, playing, theater, dress, and even laughter”.
319
Ibid. p. 20. “accepted the criteria but denied their applicability to them while accusing the Presbyterians of the
same or worse”
320
FISH, S. “Is there a text in this class?”. Alfa: Revista de Linguística (UNESP). Assis, SP, n. 36, 1992. p. 195
321
Ibid. p. 195.
322
Discipline.oed. Disponível em: <http://www.oed.com/view/Entry/53744>. Acesso em: abril 2017. “system or
method by which order is maintained within a church, conformity to its laws and customs ensured, and control
exercised over the conduct of its members”.
323
Ibid. “the exercise of this control by means of censure, excommunication, or other penal measures”.
71
eclesiástica adotada pelas igrejas Presbiteriana e Independente nos séculos XVI e XVII”.324
Nesse sentido, se compreenderiam “todas as atividades da Igreja não reguladas pela Lei
Divina, tais como a administração dos sacramentos, escritórios, festas, devoções, etc.”.325
Tratando-se de presbiterianismo, no entanto, disciplina deve ser ainda entendida
por sua relação com a política calvinista, “que, em contraste com a de Lutero, foi construída
sobre princípios rígidos”.326 Em termos calvinistas, portanto, o objetivo da disciplina era “o
bem do ofensor, a pureza da Igreja e a glória de Deus”, sendo “dever dos consistórios,
formados por anciãos e pastores, fixar penalidades pela negligência de deveres religiosos”.327
Tal perspectiva foi retomada pelos presbiterianos, a partir da produção do First Book of
Discipline, em 1560, pelo reformador escocês John Knox (1513-1572). Para entender a
disciplina defendida por Edwards, parece imprescindível, então, retomando Quentin Skinner,
nos “concentrar[mos] não apenas no texto que nos interessa em particular, mas também nas
convenções prevalecentes que presidem à análise dos assuntos ou temas a que esse texto faz
referência”.328 Isso porque, para que Edwards atuasse nas polêmicas de sua época, era
importante que suas intenções fossem “convencionais no sentido em que elas precisam de ser
reconhecidas como intenções para serem eficazes na defesa de um determinado argumento,
para contribuírem para a análise de um tópico em particular, e por aí adiante”.329 Daí,
portanto, a necessidade de compreender essa disciplina em sua relação com o calvinismo, com
o contexto do presbiterianismo escocês e, porque não, com os lugares-comuns,330 em um
sentido mais retórico, partilhados pelos leitores daquele período que vieram a fazer uso de
Gangraena e a modificá-la a despeito, até mesmo, das intenções evidenciadas por Edwards.
Edwards publicou, por exemplo, uma correspondência anônima — como era seu
costume em testemunhos produzidos por aliados — na qual se discorria, em 7 de janeiro de
1645, sobre a Assembleia de Westminster e a participação presbiteriana escocesa que parecia
ao autor tão marcante. O aliado de Edwards apontava como era “uma coisa triste pensar que
324
Ibid. “the system by which the practice of a church, as distinguished from its doctrine, is regulated; the
ecclesiastical polity adopted by Presbyterian and Independent churches in the 16th and 17th cent”.
325
CROSS, F. L.; LIVINGSTONE E. A. (eds.). Op. cit. p. 409. “all Church activities not regulated by Divine
law, such as the administration of the Sacraments, offices, feasts, devotions, etc”.
326
Ibid. p. 409. “which, in contrast with that of M. Luther, was built up on rigid principles”.
327
Ibid. p. 409. “the good of the offender, the purity of the Church, and the glory of God; duty of the
consistories, formed by elders and pastors, to fix penalties for neglect of religious duties”.
328
SKINNER, Q. Visões da Política: questões metodológicas. Algés, Portugal: Difel, 2005. p. 144.
329
Ibid. p. 144.
330
Algo que João Adolfo Hansen demonstrou ao definir os sujeitos discretos e vulgares, sendo os discretos,
aquele “tipo erudito, conhecedor das artes da memória que lhe permitem reconhecer todos os lugares-comuns
aplicados pelo autor e testemunhar a força do sistema de regras, reconhecendo-as como equivalentes diretos ou
sinônimos da auctoritas”. HANSEN, J. A. Op. cit., 2014. p. 106.
72
tanto sangue foi derramado, e vastas somas de dinheiro gasto, se no final devemos ter uma
Tolerância”, ele, no entanto, ainda se apegava a promessa “de Uniformidade na Religião,
tanto em Doutrina como em Disciplina!”, sendo que “a unidade da Cidade levanta minhas
esperanças de que Deus confundirá todas as políticas maquiavélicas, pois a liberdade não vai
ficar com o Cristianismo, e a segurança dos reinos”.331 Outra correspondência, essa produzida
em 8 de dezembro de 1645, era Um extrato de uma carta escrita por um ministro na Nova
Inglaterra a um membro da Assembleia dos Teólogos, na qual seu autor comentava que a
“Disciplina ou Governo da Igreja é agora o grande negócio do Mundo Cristão, Deus concede
que não esquecemos a doutrina do Arrependimento de Obras mortas e da Fé no Senhor
Jesus”. A carta foi concluída com a indicação de que “Uma casa gosta de ser bem governada,
onde todos são Mestres”.332 Nessa segunda correspondência, em particular, o autor anônimo
apontava, de maneira mais crítica, para o fato de que todos se sentiam convidados a
questionar e opinar sobre matérias da religião, era um mundo de mestres (heterodoxos) que
não respeitavam a autoridade dos teólogos, exigindo tolerância e liberdades que não
condiziam com um apropriado governo da Igreja.
A reprodução de cartas com esse conteúdo não poderia ser por acaso. Os registros
da assembleia do início de 1645 estão intimamente relacionados a tal questão, sendo que na
Sessão 578 de 22 de janeiro daquele ano “Robert Baillie333 confessou em uma carta
confidencial que ele era o único comissário escocês que ainda não estava disposto a conceder
qualquer tolerância aos ministros e igrejas congregacionais”.334 Como já dito, Thomas
Edwards muito provavelmente não explicitaria tal questão, evitando colocar em risco a
unidade presbiteriana com a qual estava comprometido, no entanto, a publicação de
331
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 101. “is sad thing to thinke that so much blood hath been spilt, and vast
sums of money spent, if in the end we should have a Toleration; Oh what promises have we had of Vniformitie
in Religion, both in Doctrine and Discipline! ... and the unity of the City raises up my hopes that, God will
confound all Machivelian policies, for that liberty that will not stand with Christianity, and the Kingdoms
safety”.
332
Idem. Gangraena, II. p. 166. “Discipline, or Church Government is now the great businese of the Christian
World, God grant we forget not doctrine of Repentance from dead Works, and Faith in the Lord Jesus; A house
like to be well governed, where all are Masters”.
333
Robert Baillie (1602–1662), foi um autor e ministro da Igreja da Escócia, nascido em Glasgow, no dia 30 de
abril de 1602. Atendeu a Universidade de Glasgow a partir de 1620 e, já na década de 1640, quando se mudou
para Londres, Baillie passou a “trabalhar para assegurar a queda do Arcebispo Laud e do conde de Strafford,
considerados os principais autores das queixas religiosas [...] de ambos escoceses e puritanos ingleses”.
STEVENSON, D. “Baillie, Robert (1602–1662), Church of Scotland minister and author”. DNB. Disponível em:
<http://www.oxforddnb.com/view/article/1067>. Acesso em: dez. 2016. “working to secure the downfall of
Archbishop Laud and the earl of Strafford, held to be the main authors of the religious... of both the Scots and
the English puritans”.
334
Minutes and Papers, Sess. 578. Jan. 22, 1645. Thursday morning. In: DIXHOORN, C. V. (ed.). Op. cit. p.
743. “Robert Baillie confessed in a confidential letter that he was the only Scottish commissioner still unwilling
to grant any toleration to congregational ministers and churches”.
73
correspondências como essa poderia servir como crítica velada a alguns de seus aliados que
tendiam à tolerância. Como abordou Ann Hughes, é preciso ter em vista que após 1647, com a
entrada do Exército de Novo Tipo (New Model Army) em Londres e, depois de 1649, com o
processo por traição instaurado contra Carlos I e sua posterior execução, a cooperação entre
presbiterianos e independentes seria muito mais fácil e necessária “uma vez que as tentativas
de um governo da igreja autoritário e compulsivo foram decisivamente derrotadas, e os
Presbiterianos precisavam de toda a proteção que pudessem encontrar”.335
Outra polêmica relevante, e altamente vinculada às discussões da Assembleia de
Westminster, diz respeito ao debate entre Edwards e o ministro independente Hugh Peters
(1598 - 1660)336 sobre a união entre Inglaterra e Escócia. Segundo Edwards, Peters cautelosa,
mas “astutamente se esforça para que nunca [haja] a conjunção e a união [...] em uma
uniformidade de Religião, em Doutrina, Governo e Disciplina, e trabalha para dividir entre
eles, insinuando passagens, a olhar para eles não como um, mas como dois Reinos, com
interesses diferentes”.337 A seguir o heresiógrafo recorre a uma citação direta de Peters, na
qual o independente diz:
Lembremo-nos: a Inglaterra como nunca foi conquistada, senão por facção,
nunca poderá ser governada, senão por amor; a mesma Forma não servirá a
um pé inglês e a outro escocês; eles não chegaram de repente ao que lhes
contenta, e, portanto, devem dar a Inglaterra um pouco de respiro sobre o
que é proposto; será sua misericórdia manter o que eles têm, e a nossa,
crescer para aquilo que desejamos [...] Para evitar esses temores, permitam
aos ingleses manter seus próprios interesses, e aos escoceses, os deles.338
Como se viu, para os presbiterianos ingleses, ambos, governo e disciplina da
igreja, estiveram particularmente vinculadas a Igreja da Escócia, sendo a união entre os dois
335
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 326. “once attempts at an authoritarian, compulsive church government had
been decisively defeated, and Presbyterians needed all the protection they could find”.
336
Ministro independente nascido em Fowey, Cornualha e que atendeu ao Trinity College, Cambridge, entre
1613 e 1618. Ele foi um grande defensor da causa do parlamento, “combinando sua pregação inspiradora, seu
talento para a organização prática e sua visão de uma Inglaterra reformada. Importantes líderes militares
parlamentares - especialmente Sir Thomas Fairfax e Cromwell - confiaram nele para conselho e para promover
suas atividades”. PESTANA, C. G., “Peter, Hugh (bap. 1598, d. 1660), Independent minister”. DNB. Disponível
em: <http://www.oxforddnb.com/view/ article/22024>. Acesso em: abr. 2017. “combining his inspiring
preaching, his gift for practical organization, and his vision of a reformed England. Important parliamentarian
military leaders—especially Sir Thomas Fairfax and Cromwell—relied upon him for counsel and to promote
their activities”.
337
EDWARDS, T. Gangraena, III. p. 135. “shrewdly strickes at that neer conjunction and union… in a
uniformity of Religion, in Doctrine, Government and Discipline, and labours to divide between them, by hinting
passages, to look upon them not as one, but as two Kingdomes, having different interess”.
338
Ibid. p. 135. “Let us remember England as it was never conquered but by faction, so it can never be ruled but
by love; the same Last will not fit an English and a Scottish foot; they came not suddenly to what they enjoy, and
therefore should give England a little breathing over what is propounded; it will be their mercy to keep what they
have, and ours to be growing up to what we desire... To prevent those feares let English men keep to their proper
interests, and Scots to theirs”.
74
países algo de suma importância para indivíduos como Thomas Edwards. Durante as sessões
625 e 626 da assembleia, sucedidas em abril de 1646, presbiterianos ingleses e escoceses
estiveram unidos em sua defesa ao longo das altercações para definir “se a disciplina era uma
marca essencial da igreja”.339 Para a indignação do grupo presbiteriano, na primeira sessão de
abril foi apontado que “embora a disciplina esteja faltando, ela não deixará de ser uma igreja
[por conta disso]”.340 Na sessão seguinte, debateu-se a respeito da questão341: “A disciplina
eclesiástica é muito necessária para o bem-estar das igrejas, mas não tão necessária que a falta
dela ou o defeito nela devem fazer uma igreja não ser igreja alguma”, concluindo-se que
“sobre a Q[uestão]: por não mais continuar neste momento na questão da disciplina ou
censuras da igreja para o bem ou bem-estar da igreja”.342 Cabe também considerar que
derrotas como essa, faziam com que a problemática da disciplina em Gangraena estivesse
ainda mais vinculada a uma defesa extrema da união entre ingleses e escoceses, que
partilhavam visões similares a respeito do tópico.
Por fim, é também importante localizar os referenciais sobre disciplina de
Edwards, considerando a menção feita ao teólogo e jurista francês, Lambert Daneau (1535-
1590).343 Segundo o heresiógrafo:
339
Minutes and Papers, Sess. 625. Aprill 20, 1646. Munday morning. In: DIXHOORN, C. V. (ed.). Op. cit. p.
70. “whether discipline was an essential mark of the church”.
340
Minutes and Papers, Sess. 625. Aprill 20, 1646. Munday morning. In: DIXHOORN, C. V. (ed.). Op. cit. p.
71. “though discipline be wanting, it doth not cease to be a church”.
341
A questão aqui era colocada de acordo com modelo retórico do período, isto é, propondo-se uma questão
seguida de objeções diversas para, por fim, chegar a uma conclusão.
342
Minutes and Papers, Sess. 626. Aprill, 1646. Tuesday morning. In: DIXHOORN, C. V. (ed.). Op. cit. p. 72.
“Ecclesiasticall discipline is very necessary for the well being of churches, yet not soe necessary as that the want
of it or defect in it should make a church to be noe church; upon the Q: to proceed noe further at this time in the
matter of discipline or censures of the church as to the being or well being of the church”.
343
Thomas Edwards provavelmente teve acesso ao De Haeresibus Ad Quodvultdeum de Agostinho —
mencionado no capítulo I desta dissertação — por meio da obra D Aurelii Augustini Hipponensis Episcopi liber
De Haerisibus ad Quodvultdeum, publicada por Lambert Daneau em Genebra, 1578.
344
EDWARDS, T. Gangraena, III. p. 260. “Danaeus in his Commentaries upon Augustine de Heresibus showes
what sinnes accompany heresies, and how a loose life followes alwaies upon errours, The disorder of manners
and contempt of all Discipline being the perpetuall companion of heresies. For he who despises the Doctrine of
God, will easily contemn the Discipline”.
75
bons costumes’”,345 excerto extremamente intertextual que dialogava com as tentativas de
Paulo ao rebater a filosofia grega— quando o apóstolo se apropriava de uma citação da obra
Thais, atribuída ao poeta grego Menandro e que circulava oralmente entre os coríntios — para
indicar aos cristãos gregos que falsos argumentos e filosofias enganosas os cercavam em
todos os lugares. Tal excerto corrobora a percepção que se tem, desde os escritos clássicos, a
respeito do herege imoral e corrompido e de suas ideias como gangrenas que se alastrarão
entre os justos e que devem ser combatidas. Essa problemática do desdém à disciplina,
retornando à Daneau, também passou a existir como parte central das campanhas
presbiterianas na cidade de Londres, cuja convicção de Edwards era “de que a falta de
disciplina e uniformidade provocou as doenças do separatismo radical e do erro vicioso”.346
Essa certeza estava, desse modo, também forjada nas diversas referências que forneciam
exemplos e autoridade retórica à Gangraena.
345
1 Cor. 15:33.
346
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 334. “that lack of discipline and uniformity prompted the diseases of radical
separatism and vicious error”.
347
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 326. “the degree to which respectable Independents agreed with Presbyterians
on doctrine, even as they differed on church government, is masked throughout Edwards’s writing”.
76
Socinianos eram hereges e blasfemos”.348 Como já mencionado, a cooperação entre
independentes e presbiterianos só voltaria a ser articulada abertamente após os eventos de
1647 e 1649. De todo modo, parece interessante, por exemplo, que um autor como Nehemiah
Wallington — cujas coleções de cartas encontram-se dentre os Manuscritos Sloane na British
Library349 — tenha ouvindo “pregadores independentes como Hugh Peter, bem como
presbiterianos”.350
Essas correspondências de Wallington podem ter muito a dizer sobre a real
proximidade entre os ministros ligados aos dois grupos, tão amplamente descritos como
opostos por Edwards, sobretudo, no que concernia ao governo e a disciplina da Igreja. A esse
respeito, relembra Sammy Basu, William Walwyn observou que “os independentes eram ‘um
em doutrina’ e “muito pouco diferem... em disciplina’ com os presbiterianos.351 Essa
observação traz à tona, mais uma vez, a distinção no embate contra independentes ou
sectários, sendo sempre necessário lembrar que um dos propósitos mais evidentes de Edwards
era implicar os independentes diretamente em discursos e ações muito mais radicais do que
àquelas que tais autores estavam, de fato, defendendo. Como se viu, uma das táticas
discursivas frequentes de Edwards era demonstrar que a liberdade religiosa criava heresias
muito mais profundas e que se enraizavam no seio da sociedade inglesa, todas elas eram, de
um modo ou de outro, responsabilidade quase exclusiva dos independentes. Para um leveller
(nivelador) como William Walwyn, porém, presbiterianismo e independentismo (ou
congregacionalismo) eram em essência a mesma coisa.
Por outro lado, os presbiterianos promoveram a “construção de uma comunidade
por meio da impressão”,352 ao terem seus textos impressos pelos mesmos sujeitos e vendidos
nos mesmos espaços,353 ao criarem sistemas de citações e referências entre si e ao tratarem,
ainda que diversamente, de temas similares, em particular aqueles relativos ao governo e a
disciplina da Igreja. Vale observar que essa organização presbiteriana foi aqui entendida,
348
Ibid. p. 326. “defended doctrinal orthodoxy in the Assembly; a debate on sins liable to excommunication in
January 1645 Bridge insisted that Arminians and Socinians were heretics and blasphemers”.
349
BL, Sloane Manuscripts. MS 922: “Nehemiah Wallington’s collection of letters”.
350
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 328. “heard Independent preachers like Hugh Peter as well as Presbyterians”.
351
BASU, S. Op. cit. p. 17. “that the Independents were ‘one in doctrine’ and ‘very little differing ... in
Discipline’ with the Presbyterians”.
352
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 315. “the construction of a community through print”.
353
Como já comentado, todas as edições de Gangraena foram publicadas para o livreiro Ralph Smith, que, de
acordo com Hughes “se especializou em zelosas obras presbiterianas e tinha estreitas conexões com a
Assembleia de Westminster”. Além disso, as obras receberam uma “autorização do ministro presbiteriano de
Londres, James Cranford, um dos censores da imprensa do parlamento” e também ligado a Robert Baillie. Ibid.
p. 57. “specialized in zealous Presbyterian works, and had close connections with the Westminster Assembly;
authorization by the London Presbyterian minister James Cranford, one of parliament’s press licensers”.
77
inicialmente, a partir de duas definições consideradas complementares: a “comunidade de
leitores” de Roger Chartier e a “comunidade interpretativa” de Stanley Fish. De acordo com
Chartier, uma comunidade “não importa em que escala – vive e pensa a sua relação com o
mundo, com os outros e com ela mesma”.354 Paralelamente, Fish apontou que a comunicação
ocorre em um “sistema (ou contexto, ou situação, ou comunidade interpretativa) e que a
compreensão conseguida por duas ou mais pessoas é específica a esse sistema e determinada
unicamente dentro dos seus limites”.355 No entanto, como se viu (e se verá), o sentido de
comunidade presbiteriana deve ser sempre compreendido a partir da articulação entre discurso
e ação — afinal, “discurso também é ação”356 — tendo em vista que esses indivíduos
passaram a se organizar na sociedade por meio de sua participação na Assembleia de
Westminster, do encaminhamento de diversas petições públicas, do encontro em determinadas
paróquias etc.
Em Gangraena essa comunidade se concebeu de inúmeras maneiras, como
quando Edwards refere-se ao trabalho do também presbiteriano, William Prynne, a respeito
das seitas, comentando: “Mas não vou incomodar o Leitor a citar mais nenhum deles: M Pryn,
em sua Fresh Discovery of New Lights, extraiu muitas passagens do tipo a partir dos Panfletos
dos Sectários”.357 De acordo com Ann Hughes, no sentido oposto, Prynne, Calamy e outros,
elogiaram obras como Antapologia e Gangraena e “defenderam o ‘reverendo e religioso
Mestre Edwards’ contra as críticas de Saltmarsh, Burroughs, Walwyn, Goodwin e Burton”.358
Além disso, os “presbiterianos também estavam definindo na imprensa uma comunidade de
seus inimigos, uma comunidade que geralmente tinha [o ministro independente] John
Goodwin como seu centro”.359 Nota-se, portanto, que o grupo, da mesma maneira que tantos
outros no período, se aproveitou da “abertura das prensas na década de 1640, ainda que
condenassem a exploração independente e sectária da imprensa escrita”.360
354
CHARTIER, R. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994. p. 08.
355
FISH, S. Op. cit. p. 192.
356
SKINNER, Q. Op. cit., 2002. p. 04 “speech is also action”.
357
EDWARDS, T. Gangraena I. p. 39. “But I will not trouble the Reader to name any more of them: M Pryn in
his fresh discovery of New Lights, hath extracted many passages of this kinde out of the Pamphlets of the
Sectaries”. Ver também: HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 315.
358
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 315. “defended ‘reverend and religious Master Edwards’ against the
criticisms of Saltmarsh, Burroughs, Walwyn, Goodwin, and Burton”.
359
Ibid. p. 315. “Presbyterians also were defining in print a community of their enemies, a community which
usually had John Goodwin at its heart”.
360
Ibid. p. 317. “opening of the presses in the 1640s, even as they condemned Independent and sectarian
exploitation of print”.
78
Parece evidente que, para Edwards, “essa evocação da comunidade tinha um
propósito prático direto e urgente” que era a tomada de ação contra os erros e as heresias.361 A
partir de 1645, essa comunidade, inclusive, encontrou na Christchurch o seu centro
presbiteriano, paróquia na qual William Jenkyn (1613-1685) “instituiu o sistema presbiteriano
e a paróquia elegeu cinco anciãos governantes”, sendo, por fim, “o local para a conferência
semanal de Thomas Edwards contra a heresia”, preleções que mais tarde se tornaram “a base
de sua infame heresiografia Gangraena”.362 Outro aspecto importante dessa comunidade era a
relação universitária estabelecida entre muitos desses sujeitos — marcadamente em torno da
Universidade de Cambridge — expressa na Sessão 586 da Assembleia de Westminster
sucedida em 10 de fevereiro de 1645. Em tal ocasião, foi feita uma petição “ao parlamento
pela ordenação presbiteriana, mas apenas indiretamente, usando sua conexão de Cambridge
para apresentar uma nova justificativa para uma solicitação antiga”.363 Na mesma sessão, foi
ordenado, por fim, que os membros do comitê e “os chefes dos Colégios de Cambridge que
fazem parte desta Assembleia se reúnam esta tarde e preparem uma petição a ser apresentada
às duas casas do parlamento para o estabelecimento de um modo de ordenação nos vários
presbitérios”.364 Observa-se, é claro, que a mesma relação também foi estabelecida com
diversos independentes que circulavam nesses mesmos espaços.
Vale também observar que os presbiterianos, em especial, londrinos, estiveram
fortemente envolvidos em campanhas ao longo de toda a década de 1640, que contaram com
“lobbying ativo e organização de apoio”,365 além de uma prática constante de “peticionar —
aquela atividade política crucial dos anos 1640 que atentava para persuasão por meio de uma
combinação de ação e texto”.366 Outro procedimento importante utilizado pelo grupo foi, é
claro, a “batalha de ideias — a partir de declarações públicas, cartas, folhetos e até fofocas
361
Ibid. p. 316. “this evocation of community had a direct and urgent practical purpose”.
362
VERNON, E. C. “Jenkyn, William (bap. 1613, d. 1685), nonconformist minister”. DNB. Disponível em:
<http://www.oxforddnb.com/view/article/14743>. Acesso em: mai. 2017. “instituted the presbyterian system,
and the parish elected five ruling elders; as the site for Thomas Edwards's weekly lecture against heresy; the
basis of his infamous heresiography Gangraena”.
363
Minutes and Papers, Sess. 586. Feb. 10, 1645. Tuesday morning. In: DIXHOORN, C. V. (ed.). Op. cit. p.
751. “parliament for presbyterian ordination, but only indirectly, using its Cambridge connection to present a
fresh excuse for an old request”.
364
Ibid. p. 751. “the heads ofª Coledges in Cambridge that are of this Assembly doe meete this afternoone and
prepare a petition to be presented to both houses of parliament for the setling of a way of ordination in the
severall presbyteryes”.
365
HUGHES, A. Op. cit.,1998. pp. 239-40. “active lobbying and organizing support”.
366
Ibid. pp. 239-40. “petitioning—that crucial political activity of the 1640s which attempted persuasion through
a combination of action and text”.
79
orquestradas na cidade de Londres”.367 O sentido de urgência e as disparidades em relação às
demais heresiografias, questões já abordadas em outros tópicos, possui relação direta com
essas campanhas, fazendo de Gangraena um texto tão “envolvente e participativo — na sua
solicitação de informação” e que agiu como “um apelo à ação contra os sectários e
independentes, e em seu objetivo de estimular o estudo e até o debate”.368
Como se viu, tais campanhas em torno da disciplina e do governo da igreja em
termos presbiterianos, foram objeto da avaliação de diversos autores não-presbiterianos, por
meio de embates panfletários acalorados. No entanto, cabe também mencionar a centralidade
de tais problemáticas no The Journal of Thomas Juxon, 1644-1647, uma coleção manuscrita
que contém 121 fólios e está disponível na Dr William’s Library e também em uma edição
transcrita por Keith Lindley e David Scott.369 Em linhas gerais, tal diário foi redigido por
Thomas Juxon (1614-1672),370 tendo como foco os “assuntos públicos e desenvolvimentos
políticos e militares” do período.371 A documentação é considerada um journal, pois seu
formato não era organizado em primeira pessoa e que não se tratava, portanto, de um “registro
diário [um diary] de eventos, pensamentos e reações com um forte teor pessoal”.372
O texto está organizado a partir de uma combinação de documentos privados e
públicos, tais como “jornais, cartas publicadas e relatos impressos sobre batalhas e outros
eventos importantes”.373 Também se sabe que algumas informações foram obtidas “a partir de
relatos contemporâneos ouvidos nas ruas ou em grandes locais de encontro, como o palácio de
Westminster, o Guildhall ou o Royal Exchange”.374 Além disso, como “um residente de
Londres, ele [Juxon] poderia pessoalmente testemunhar eventos e relatar detalhes sobre os
367
Ibid. pp. 239-40. “battle of ideas—through public declarations, letters, tracts, and even orchestrated gossip in
the city of London”.
368
Ibid. p. 246. “involving and a participatory text—in its solicitation of information, as we have seen; as a call
to action against the sectaries and Independents, and in its aim of stimulating study and even debate”.
369
LINDLEY, K.; SCOTT, D. (eds). The Journal of Thomas Juxon, 1644-1647. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999.
370
Juxon nasceu em 24 de junho de 1614 e foi batizado “na paróquia de seu pai em Londres, St Stephen
Walbrook”. Como comentaram Keith Lindley e David Scott, o autor era “um indivíduo profundamente instruído,
letrado e bem informado, com algum conhecimento do latim e do francês, dos clássicos e de história, e uma
curiosidade intelectual pronta a alimentar-se da grande variedade de publicações de notícias, informações e
controvérsias durante a liberdade de imprensa sem precedentes do início da década de 1640”. Ibid. pp. 01-02.
“baptised in his father's London parish of St Stephen Walbrook; a soundly educated, literate and informed
individual with some knowledge of Latin and French, the classics and history, and an intellectual curiosity ready
to feed on the great array of published news, information and controversy during the unprecedented press
freedom of the early 1640s”.
371
Ibid. p. 13. “public affairs and political and military developments”.
372
Ibid. p. 13. “daily record of events, thoughts and reactions with a strong personal flavour”.
373
Ibid. p. 15. “newsbooks, published letters, and printed accounts of battles and other key events”.
374
Ibid. pp. 15-16. “from current reports heard on the streets or in major gathering places such as the palace of
Westminster, the Guildhall or the Royal Exchange”.
80
quais outras fontes são silenciosas”.375 Por conta de algumas imprecisões na datação dos
eventos, é possível inferir que o diário de Juxon “foi quase certamente escrito após os eventos
descritos, a partir de notas tomadas na época ou de informações colhidas posteriormente”.376
De acordo com Lindley e Scott, “dois assuntos importantes de Londres são
elucidados pelo diário — a política interna do conselho comum e a ampla organização e as
táticas da aliança presbiteriana na capital [inglesa]”.377 Juxon comentou, por exemplo, sobre
diversos aspectos do debate entre independentes e presbiterianos, a participação do
378
parlamento e da igreja escocesa e as diversas petições enviadas no período. O documento
ainda aponta para os incômodos causados pelos presbiterianos no que dizia respeito ao seu
desejo por um governo e uma disciplina da igreja tão específicos. Segundo os apontamentos
de Juxon, os membros do parlamento estavam aflitos com a ideia de um jure divino
presbiterianos, pois, isso significava, aos parlamentares “de fato dissolver o parlamento e
perder seus privilégios”.379 Havia, entre os parlamentares, um medo similar aquele
demonstrado por Carlos I em relação às tendências subversivas do presbiterianismo. É
interessante perceber, ainda, como “Juxon não se preocupou apenas com a ameaça às
liberdades inglesas postas pelo clericalismo de estilo escocês”,380 mas “também considerava a
tolerância por estatuto como ‘oposta e destrutiva para qualquer solução de disciplina’”.381
Uma petição importante mencionada por Juxon, foi endereçada ao conselho
comum de Farringdon em 22 de dezembro de 1645, sendo intitulada To the right worshipful,
the aldermen, and the common councilmen of the ward of Farringdon Within, at their
wardmote. Nela pedia-se que o governo da igreja fosse rapidamente estabelecido de acordo
com a Aliança e que nenhuma “Tolerância, seja do Papado, da Prelazia, da Dissidência, da
Heresia, da Superstição, da Profecia ou de qualquer Coisa contrária à Doutrina Sadia, ou ao
Poder da Piedade, possa ser cedida como sendo contra a Palavra de Deus, E contrária à
375
Ibid. pp. 15-16. “a London resident, he could personally witness events and report details about which other
sources are silent”.
376
Ibid. p. 16. “it was almost certainly written after the events described, from notes taken at the time or from
information gleaned subsequently”.
377
Ibid. pp. 17-18. “Two important London subjects are elucidated by the journal — the internal politics of
common council, and the wider organisation and tactics of the Presbiterian alliance in the capital”.
378
Ibid. Ver, sobretudo, páginas: 90, 101, 109.
379
Ibid. p. 106. “in effect to dissolve the parliament and lose their privileges”.
380
Ibid. p, 26. “Juxon was not concerned solely with the threat to English liberties posed by Scottish-style
clericalism”.
381
Ibid. p. 29 e p. 96. “he also regarded toleration by statute as ‘opposite and destructive to any settlement of
discipline’”.
81
própria Carta de nossa Aliança”.382 Edwards comentou sobre o embate em torno de tal
documento, e o modo como “alguns independentes se dirigiam para várias casas, onde,
embora fossem susceptíveis de aceitar qualquer aceitação, falaram contra os antigos
conselheiros comuns, lançavam calúnias sobre eles”.383 Juxon, por outro lado, reportou a
intensa campanha presbiteriana, dizendo que “houve um sermão em cada ala, todos eles se
dirigiam da mesma maneira — para não se escolher homens de opiniões errôneas. A petição
foi principalmente contra a dissidência etc., e tudo escrito pela mesma mão”.384
O texto de Edwards esteve fortemente marcado por essa relação entre discursos e
ações que levariam a concretização dos intentos presbiterianos. O heresiógrafo apontou, por
exemplo, que iria mencionar diversas petições ao longo da obra, iniciando (desde a primeira
parte de Gangraena) por um contexto central a partir de 1643, que coincidia com a
convocação pelo Parlamento da Assembleia de Westminster, em 12 de junho de 1643. Em tal
contexto, Edwards comentou que pode citar muitas “passagens das Declarações, e
Transações, entre os dois Reinos da Inglaterra e da Escócia em referência ao governo da
Igreja, onde três anos atrás [1643] eles expressam mutuamente o seu grande juízo de querer
aperfeiçoar e desfrutar uma Reforma no governo da Igreja”.385 Interessava, porém, iniciar
mencionando especialmente, “uma réplica dos Lordes e dos Comuns à Resposta Fraternal que
a Assembleia geral da Escócia fez para uma Declaração que anteriormente lhes foi enviada
pelo Parlamento”.386 A resposta publicada por Edwards e que demonstrava o interesse e a
importância dos piedosos para o poder civil, dizia:
E de acordo com a nossa Declaração anterior de sete de Fevereiro, Nosso
propósito é consultar os piedosos e instruídos Teólogos, para que não
possamos somente remover isso, mas resolver tal governo [para] que seja
382
BHO. House of Lords Journal Volume 8: 16 January 1646. Disponível em: <http://www. british-history. ac.
uk/lords-jrnl/vol8/pp103-106>. Acesso em: Mai. 2017. “Toleration, either of Popery, Prelacy, Schism, Heresy,
Superstition, Prophaneness, or any Thing contrary to sound Doctrine, or the Power of Godliness, may at all be
yielded unto, as being against the Word of God, and contrary to the very Letter of our Covenant”.
383
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 105. “some Independents went about to severall houses where they though
they were likely to finde any acceptance, and spake against the old Common-Counsel men casting aspersions
upon them”
384
LINDLEY, K.; SCOTT, D.(eds). Op. cit. p. 97. “to this ende there was a sermon in every ward, all of them
drove one and the same way — not to choose men of erroneous opinions. The petition was principally against
schism etc., and all wrote by the same hand”.
385
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 116. “passages out of Declarations, and Transactions, between both the
Kingdomes of England and Scotland in reference to Church government, wherein in three yeers agoe they
mutually expresse their great sense of the want of perfecting and enjoying a Reformation in Church
government”.
386
Ibid. p. 116. “a reply of the Lords and Commons to the Brotherly Answer which the general Assembly of
Scotland made unto a Declaration formerly sent unto them from the Parliament”.
82
mais agradável para a santa Palavra de Deus ... o miserável estado da Igreja e
do Reino não é capaz de suportar mais atrasos.387
O excerto, juntamente com as informações disponíveis sobre o contexto a partir
da análise de outras obras de Edwards publicadas no decurso daquela década, como Reasons
(1641) e Antapologia (1644), pode ajudar a inserir Gangraena definitivamente em meio às
campanhas presbiterianas da época, demonstrando a força do discurso do heresiógrafo e sua
chamada para ação, algo não tão usual no gênero heresiológico. As relações estabelecidas
entre poder civil e eclesiástico, por exemplo, tinham implicações práticas importantes como
se viu com a convocação da Assembleia de Westminster a partir das petições de 1643, mas
outros alvos também podem ser localizados, como se percebe pela participação popular em
torno da petição de Farringdon em 1645. Gangraena dialogava com inúmeras esferas de
atuação, algo que vem sendo notado em abordagens historiográficas atuais.
Além disso, uma análise de Gangraena paralelamente a outros relatos, como os de
Juxon, e de documentos como as petições enviadas à época, ajudam a dar dimensão à
amplitude desses embates para além dos teólogos diretamente envolvidos na reforma da
disciplina e do governo da igreja. Nesse sentido, vale atentar para o aspecto popular do
presbiterianismo inglês, nem sempre visível na heresiografia, mas tão amplamente estudado
por Ann Hughes e Polly Ha. Os apontamentos de Juxon, juntamente às cartas que compõem o
escopo intertextual disponíveis em Gangraena, demonstram como muitos presbiterianos
durante a década de 1640 “passaram suas carreiras competindo por apoio público e influência
no púlpito e na imprensa; alguns, finalmente, acreditavam ter tido um impacto positivo”.388
Esses indivíduos utilizaram ferramentas diversas para alcançar tal apoio — incluindo
campanhas mais diretas como a reportada por Juxon —, agindo como uma comunidade ativa
no campo político-religioso, altamente mobilizada e que, ao fim, almejava produzir a reforma
confessional capaz de disciplinar a sua sociedade como um todo.
Tomando emprestada a definição de um dos anônimos de Edwards, para resolver
as altercações contra aqueles “incendiários dos nossos tempos”,389 nota-se que foi preciso uma
mobilização ativa que significou a participação presbiteriana em diversos espaços. Thomas
Edwards, talvez melhor do que ninguém, percebeu como a concepção de um grupo
387
Ibid. p. 116 “And according to our former Declaration of the seventh of February, Our purpose is to consult
with godly and learned Divines, that we may not onely remove this, but settle such a government as may be most
agreeable to Gods holy Word… the miserable estate of the Church and Kingdome not being able to endure any
longer delay”.
388
HUGHES, A. Op. cit., 1998. p. 255. “spent their careers competing for public support and influence in the
pulpit and in the press; some, at least, believed they had had a positive impact”.
389
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 101. “Incendiaries of our times”.
83
homogêneo seria importante para que a ortodoxia presbiteriana prevalecesse sobre os outros
modelos tidos como heterodoxos. Gangraena, portanto, foi também um exercício de unidade
presbiteriana, ainda que na prática diversos desentendimentos ocorressem. Essa unidade foi,
sem dúvida, forjada em técnicas intertextuais e retóricas, no sentido da “arte de falar bem, não
de falar o Bem ou a verdade” ou, em termos aristotélicos, a retórica tendo em vista uma
sociedade na qual a disputa era central, “em que era fundamental a fala persuasiva”.390 Como
se viu, o governo e a disciplina da igreja eram parte essencial do projeto de Edwards, que
constituiria na eliminação daquele “cancro” devastador da sociedade inglesa. Cabe, no
entanto, ainda refletir se esse projeto pode ser pensado em um panorama mais amplo, tendo
em vista às discussões sobre as categorias da confessionalização e do disciplinamento social
também utilizadas para se trabalhar com outros territórios e contextos no decorrer da época
moderna.
390
HANSEN, J. A. Op. cit., 2013. p. 13.
84
Capítulo 3
Palavras malditas:
2 Tim. 2: 16-17
391
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 152. “Now the remedies and directions that I shall give, suitable as I
conceive to our state and condition by reason of our errours, heresies, &c. as they are laid down in this
Catalogue, are both to Ministers, Magistrates, and people, which shall be such rules as more properly and
peculiarly concern each of them in their several places”.
85
dos indivíduos, mas também uma adequação de suas consciências. Paralelamente a isso,
importa também refletir a respeito do modo pelo qual até mesmo alguns textos foram
“ferramentas disciplinares”, como bem apontou Kei Nasu em sua análise das heresiografias
modernas no mundo protestante inglês,392 enfatizando-se a dimensão do discurso em tais
processos confessionais. Partindo de um embate entre contextos específicos e perspectivas
mais gerais, a discussão que originou este capítulo, teve como pano de fundo duas reflexões
principais: 1) discutir, por meio da confessionalização e do disciplinamento, noções que
pressupõem a ideia de que as confissões foram sempre subservientes às autoridades civis
partindo, então, de exemplos mais específicos, tais como aqueles tão vastamente verificados
em Gangraena, ao passo que, quase contraditoriamente; 2) possa se considerar Gangraena
em relação a outros espaços mais amplos, debatendo percepções acerca da insularidade
inglesa.
Como se sabe, para compreender essas questões precisa-se ter em vista o debate
em torno da definição de Gegenreformation, ou Contrarreforma. Correntemente utilizada na
Alemanha até a década de 1950, a noção implicava uma imediata ideia de reação que viria a
ser questionada pelo historiador Ernst Walter Zeeden naquela mesma década. Zeeden
interessou-se por averiguar os desenvolvimentos das modernas igrejas confessionais (a partir
do século XVI), nomeando tal processo, de acordo com Ute Lotz-Heumann, como uma
“construção da confissão” ou uma “formação da confissão” (Konfessionbildung), no intuito de
criar “um termo neutro que poderia ser aplicado a todas as igrejas”.393 Mais tarde, já no final
dos anos 1970, porém, os historiadores Wolfgang Reinhard e Heinz Schilling trabalhando
com a noção criada por Zeeden, vieram a modificá-la, fundando a categoria histórica de
“confessionalização”, como entendida hoje.
Segundo Lotz-Heumann, tais autores perceberam como “os desenvolvimentos
religiosos e eclesiásticos ocorridos nos primórdios do período moderno, em particular as
divisões confessionais, profundamente afetaram a sociedade e também a política”.394 Nesse
sentido, esses estudiosos sublinharam “as conexões entre a construção da confissão e a
formação do Estado”,395 em um movimento de aproximação à noção coetânea de cuius regio,
eius religio. De modo antagônico, como tratou Schilling, a “confessionalização também
poderia provocar confronto com grupos religiosos e políticos fundamentalmente contrários a
392
Ver: NASU, K. Op. cit.
393
LOTZ-HEUMANN, U. Op. cit. p. 137. “a neutral term that could be applied to all churches”.
394
Ibid. p. 138. “…the religious and ecclesiastical developments of the early modern period, in particular the
confessional divisions, deeply affected society and politics as well”.
395
Ibid. p. 138. “the connections between confession-building and state formation”.
86
essa [...] integração do Estado e da sociedade”.396 Outra questão importante levantada por
Schilling é a própria ideia da Reforma como “o ponto de inflexão decisivo para a idade
moderna” em termos de modernização, uma vez que, para o autor, ainda que o controle social
tenha levado a uma sociedade moderna disciplinada, tal processo “resultou em guerra e
destruição, reduzindo a formação confessional ao absurdo, eventualmente confessionalização
resultou em secularização”.397 Tal percepção vem sendo questionada, como demonstrou Lotz-
Heumann, pois “a noção de modernidade ocidental foi agora substituída pela ideia de
múltiplas modernidades nas quais a civilização ocidental já não desempenha um papel de
liderança, o aspecto da modernização do conceito de confessionalização não pode mais ser
mantido”.398
Cabe ainda assinalar a necessidade de não somente se trabalhar a
confessionalização por si só, mas olhando essa categoria em paralelo às problemáticas da
disciplina e do disciplinamento social, daí a ênfase, no capítulo anterior, em temáticas
relativas à disciplina presbiteriana. Esse é o caso, por exemplo, de Ronald Po-Chia Hsia, cujos
trabalhos estiveram fortemente vinculados à noção de “disciplina social” formulada pelo
historiador Gerhard Oestreich em 1969. Em linhas gerais, a preocupação central de Oestreich
era a modernidade e o autor esteve “interessado na centralização do poder sob monarcas
absolutistas em detrimento das propriedades”.399 O debate sobre o disciplinamento social
aparece de modo importante, pois, segundo Po-Chia Hsia, “sem disciplina social não há
confessionalização”.400 Para o historiador, inclusive, “a história da Europa nos séculos XVI e
XVII poderia ser descrita como a convergência de disciplina social e confessionalização”,
sendo que o século XVIII foi um momento de “divergência e conflito, e nele as forças da
autodisciplina foram reprimidas pelo avanço do estado”.401
É importante observar, no entanto, como essas categorias pressupõem relações
entre poder civil e Igreja trabalhadas por meio de perspectivas homogeneizantes a respeito dos
processos confessionais e apontam para fins quase certos: a “desteologização da política”,
para Oestreich, e a modernização e secularização, se partirmos de Schilling. Como comenta
396
SCHILLING, H. Op. cit., 1992. p. 209. “confessionalization could also provoke confrontation with religious
and political groups fundamentally opposed to this... integration of state and society”.
397
LOTZ-HEUMANN, U. Op. cit. p. 139.
398
Ibid. p. 144. “the notion of Western modernity has now been replaced by the idea of multiple modernities in
which western civilization no longer plays a leading role, the modernization aspect of the concept of
confessionalization can no longer be maintained”.
399
HSIA, R. P. C. “Disciplina social y catolicismo en la Europa de los siglos XVI y XVII”. Manuscrits, n.25,
2007. p. 30. “interesado en la centralización del poder bajo los monarcas absolutistas a costa de los estamentos”.
400
Ibid. p. 40.
401
Ibid. p. 40.
87
Rui Luis Rodrigues, por meio desse paradigma da confessionalização poderia se supor uma
“dinâmica eminentemente modernizadora, possibilitando, na longa duração, a emergência dos
aparelhos burocráticos do Estado, o letramento da sociedade europeia e o nivelamento do
status de todos os súditos”.402 Levando-se o argumento ao extremo, “no limite, para os
proponentes dessa teoria a própria emergência da sociedade democrática seria tributária desse
complexo processo”.403 É justamente aqui onde este capítulo pretende se afastar um pouco de
apontamentos clássicos sobre a confessionalização e seus grandes objetos de análise,
apostando, pois, em um objeto mais específico e circunscrito, como Gangraena.
Com isso, intenciona-se um distanciamento de percepções sobre a
homogeneização confessional, atentando para o fato de que “nunca houve total
homogeneidade no interior das diferentes sociedades confessionais”.404 Na esteira das
reflexões de Rui Luis Rodrigues, o que se esperou mostrar, em todo o decurso desta
dissertação, foi o modo como a dinâmica confessional presbiteriana, visível por meio de
Gangraena, não pode ser entendida como algo unicamente “moderno”, pois fazia parte de um
conjunto de projetos que “reeditavam a antiga maneira de ser e de pensar da respublica
christiana”, encontrando-se “comprometidas com a sobrevivência de estruturas bastante
antigas” e que estavam a desaparecer.405 Ainda seguindo por essa hipótese de Rodrigues, o
imenso esforço de catalogação dos heréticos também apontava na direção de “comunidades
que se confessionalizaram contrariamente ao poder”,406 sendo possível, a partir da
“especificidade do contexto investigado”, ter em conta discursos ocultados e “vozes múltiplas,
polifônicas, que, postas em relevo, nos dão conta de como tais processos foram complexos e
variados”.407
Por outro lado, mesmo que as críticas às grandes generalizações sejam
imprescindíveis, é preciso notar a relevância de tais abordagens quando se lida com objetos
que sempre foram estudados a partir das particularidades inglesas. Ainda que sempre partindo
desse contexto inglês tão específico no qual Gangraena esteve inserida, parece também
necessário considerar e debater as aproximações estabelecidas entre a Inglaterra do período e
outros espaços. Nesse sentido, são relevantes as reflexões realizadas por Peter Marshall, a
respeito do pouco uso das categorias de confessionalização e disciplinamento para o contexto
402
RODRIGUES, R. L. Op. cit., 2017. p. 11.
403
Ibid. p. 11.
404
Ibid. p. 14.
405
Ibid. p. 14.
406
Ibid. p. 15.
407
Ibid. p. 15.
88
inglês. De acordo com Marshall, essa tímida apropriação, até o momento, pode ser
primeiramente explicada por um “ceticismo de longa data por parte dos historiadores
ingleses”, bem como por uma descrença em relação às “grandes teorias e aos modelos
conceituais de mudanças mais abrangentes”.408 Além disso, o período no qual as teorias
concernentes à confessionalização (majoritariamente alemãs) chegaram à Inglaterra, coincidiu
com um momento de “revisionismo” para os intelectuais britânicos, que tentavam se
distanciar de perspectivas macro-históricas e de grandes narrativas.
Tal consenso sobre a não aplicação de uma proposta de confessionalização para o
Reino Unido pode se situar junto à percepção de uma “excepcionalidade inglesa”, tanto
“eclesiástica”, quanto “política, nos primórdios da época moderna”.409 Isso, porque, entende-
se que:
408
MARSHALL, P. Op. cit., 2012. pp. 02-03. Disponível em: <http://www. augustana. edu/Documents/history/
marshall_reformation_ paper. pdf>. Acesso em: out. 2015. “a longstanding scepticism on the part of English
historians; grand theory and overarching conceptual models of change”.
409
Ibid. p. 04. “both ecclesiastical and political, in the early modern era”.
410
Ibid. p. 04. “Alone among the major monarchies of Europe, England was to approach the end of the
seventeenth century with its religious pluralism entrenched rather than eroded, and after 1688 it turned decisively
towards constitutional monarchy rather than absolutism. The failure of the English monarchy to initiate a
thorough-going confessionalization process in the preceding century would seem, on the face of it, to be
foundational to these later developments”.
411
Ibid. p. 15. “that the goal of complete and sincere religious uniformity was always going to be highly
unrealistic without the deployment of levels of coercive force which might have torn the country apart”.
89
objetivaram”, por exemplo, “formar e inculcar uma retórica da pureza religiosa [...] e alinhá-la
com um espírito nacional de fidelidade à pessoa do monarca ungido”.412
O que parece ausente na análise de Marshall é a percepção de que esses processos
não necessariamente precisam ser compreendidos somente a partir do ponto de vista da
monarquia que implementava as confissões de cima para baixo, pois mesmo as “várias
expressões da chamada ‘reforma radical’ -, produziram também suas confissões”.413 Nesse
sentido, se o papel desempenhado pelo poder civil “fosse tão decisivo, ou se tal papel
correspondesse apenas a uma estratégia ideológica de controle, como já se pretendeu, uma
atitude confessional não teria predominado entre esses grupos que surgiram desconectados e
até em oposição aos poderes dominantes”.414 Como abalizou Lotz-Heumann, ao questionarem
a ideia de autoridade civil como algo fundamentalmente uníssono, essas tendências
contemporâneas que se apropriam das categorias de confessionalização e de disciplinamento
social, tem demonstrado a existência de realidades mais fragmentadas e múltiplos agentes,
dando ênfase “no papel dos indivíduos e diferentes grupos sociais”.415 Por conseguinte, “uma
micro-história do estado pode ser combinada com uma micro-história de fenômenos sociais e
culturais para descrever o processo de confessionalização como um processo de conflito,
negociação e acomodação”.416 Essas ressalvas dão espaço para análises que considerem os
usos dessas categorias históricas sob a ótica de objetos mais circunscritos e, nem por isso,
menos relevantes para o entendimento dos processos confessionais modernos. Assim, cabe ter
em mente as complexas dinâmicas que colocaram os grupos religiosos e os adeptos às
diversas confissões, como sujeitos centrais em tais processos, em inúmeras localidades,
inclusos os territórios ingleses.
Observa-se, ainda, que leituras mais atuais sobre o contexto britânico já apontam
para o uso dessas categorias, como é o caso do capítulo de Alexandra Walsham, “Coexisting
with difference: religious pluralism and confessionalization”417 e da obra English
Presbyterianism, 1590-1640418 de Polly Ha (nessa última, sendo trabalhadas ideias similares
ainda que não se utilizem as categorias propriamente ditas). Parece, portanto, necessário o
412
Ibid. p. 06. “and his advisors aimed to fashion and inculcate a rhetoric of religious purity... and to align it with
a national spirit of fidelity to the person of the anointed monarch”.
413
RODRIGUES, R. L. Op. cit., 2012. p. 374.
414
Ibid. pp. 374-75.
415
LOTZ-HEUMANN, U. Op. cit. p. 151. “at the role of individuals and different social groups”.
416
Ibid. p. 151. “a microhistory of the state can be combined with a microhistory of social and cultural
phenomena to describe the process of confessionalization as one of conflict, negotiation, and accommodation”.
417
Ver: WALSHAM, A. Op. cit., 2006.
418
Ver: HA, P. English Presbyterianism, 1590-1640. Stanford, Califórnia: Stanford University Press, 2011.
90
esforço de pensar o contexto inglês dentro dessa perspectiva, avançando no que diz respeito às
dinâmicas de confessionalização e disciplinamento social a partir das articulações e dos
projetos presbiterianos aqui analisados considerando as polêmicas entre Thomas Edwards e
seus aliados e oponentes. Cabe entender essa análise como um exercício inicial e que se
distancie de abordagens apenas focadas em grandes processos homogêneos perpetuados pelos
poderes régios.
419
SANTOS JUNIOR, J. F. A medicalização do corpo político: a análise médica como método do debate
político em Diapoliteia de John Rogers. Escritas, v. 6, 2014. p. 227.
420
Ibid. p. 227.
91
a ordem, ora para reivindicar a cura daquela entidade corporal corrompida pela a constituição
anterior (dividida em Rei, Lordes e Comuns) e destruída pela ação militar e parlamentar”.421
O que de início esteve ligado às antigas noções de corpo místico do rei e que
visavam explicar a hierarquia e garantir a ordenação social dos súditos,422 passou a ser,
sobretudo, durante a Guerra Civil, “um poderoso e recorrente instrumento retórico com
finalidades majoritariamente pragmáticas”, cujo objetivo era a “apresentação de argumentos,
às vezes um tanto quanto complexos, para melhor mover e atrair leitores e públicos dentre
uma população nem sempre tão acostumada às dificuldades das teorias políticas”.423 Vale
observar que, em sua análise sobre Ricardo II de William Shakespeare, Kantorowicz já
apontava para as alterações nesse processo, como a ideia de que o “rei que ‘nunca morre’ foi
aqui substituído pelo rei que sempre morre e sofre morte mais cruel que os outros mortais”.424
Nesse sentido, nos textos produzidos durante o século XVI era possível perceber o
desaparecimento da “unidade do corpo natural com o corpo político imortal”, restando apenas
“a frágil natureza humana de um rei”.425 De acordo com Santos Junior, para além das
explicações providencialistas, naquele período também passaram a vigorar explicações
médicas que avaliavam os acontecimentos “como desequilíbrios de um corpo enfermo, que,
com o diagnóstico, prescrição e medicação adequada, poderia ser curado tal qual o corpo
natural”.426 Os autores do período, portanto, “procuravam não apenas explicar as
características das doenças que afetavam o Estado, mas elegiam a si mesmos ‘como médicos
da nação’, indicando uma série de remédios civis para ‘expelir as aflições do corpo
político’”.427
Não apenas a enfermidade política, mas, sobretudo, a político-religiosa, passou a
receber tratamento em Gangraena. Nesse sentido, não parece casual que Thomas Edwards
anunciasse, já na primeira parte de sua obra, que havia apontado os “remédios e instruções”
mais adequados ao “estado e condição por razão de nossos erros, heresias, etc., tal como são
estabelecidos neste Catálogo, são ambos para Ministros, Magistrados e o povo, que devem ser
421
Ibid. p. 227.
422
KANTOROWICZ, E. H. Os Dois Corpos do Rei: Um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
423
SANTOS JUNIOR, J. F. Op. cit. p. 232.
424
KANTOROWICZ, E. H. Op. cit. p. 38.
425
Ibid. p. 38.
426
SANTOS JUNIOR, J. F. Op. cit. p. 233.
427
Ibid. p. 233.
92
regras tão mais apropriadas e peculiarmente dizem respeito a cada um deles em seus vários
lugares”.428 Em outro momento, o heresiógrafo comentou como se alastrava essa doença:
[...] Sim, o que é muito triste em pensar, [é que] todas as nossas Vitórias,
Sucessos, são infelizmente utilizadas para, e se voltaram para o aumento e o
crescimento de Erros; cada tomada de uma Cidade ou Vila, está se
alastrando por este Reino a gangrena da Heresia e do Erro, onde esses Erros
nunca foram conhecidos nem ouvidos antes da tomada de nossos Distritos e
Cidades, eles vêm para o Distrito, cada extensão de nossos bairros, é uma
extensão do sectarismo e uma multiplicação de cismas; Onde um homem
pode ir a quase qualquer Guarnição Militar, Distrito ou Cidade, e não se
encontrar com Anabatistas, Antinomianos, Brownistas, etc.[?].429
Observa-se, portanto, uma ideia bastante médica da gangrena que contaminava os
menores tecidos para, por fim, chegar à aniquilação total do corpo, no caso, o Reino.
Existiam, evidentemente, polêmicas e disputas em torno do que seria ou não as doenças a
serem tratadas e, como já se viu, Edwards partiu sempre de um presbiterianismo supostamente
homogêneo para ordenar os argumentos contra seus oponentes. No entanto, é interessante
notar que há uma breve menção ao fato de que as ações presbiterianas do passado (as
“Vitórias” e “Sucessos” do grupo) contribuíram, em alguma medida, para o surgimento dos
novos grupos, seitas e cismas. Esse foi talvez um dos inesperados infortúnios dos trabalhos
presbiterianos de décadas anteriores e que era, como se viu, lembrado por oponentes de
Edwards ao relatarem a traição de um grupo que também esteve entre os não-conformistas.
Ademais, os excertos dizem respeito às capacidades do autor — por meio de uma confissão
em particular (o presbiterianismo) —, de “diagnosticar” e, quem sabe, “curar” os problemas
dos governos eclesiásticos e civis.
Vale perceber que a atribuição dessa recorrente figura médica sobre a gangrena
era, como já foi mencionado, uma referência clássica aos escritos do apóstolo Paulo.
Ademais, também “fazia parte de uma imagem penetrante de heresia como doença na escrita
anti-sectária”, pois ela atacava “um corpo saudável de uma maneira pequena no início, mas
428
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 152. “Now the remedies and directions that I shall give, suitable as I
conceive to our state and condition by reason of our errours, heresies, &c. as they are laid down in this
Catalogue, are both to Ministers, Magistrates, and people, which shall be such rules as more properly and
peculiarly concern each of them in their several places”.
429
Ibid. p. 149. “… yea, that which is most sad to think of, all our Victories, Successes, are unhappily made of
use of, and turned to the increasing and growth of Errous; every taking of a Town or City, is a further spreading
over this Kingdom the gangrene of Heresie and Errour, where these Errours were never known nor heard of
before upon our taking of Towns and Cities, they come to Town, every enlarging of our quarters, is an
enlargeing of sectarism and a multiplying of schisms; where can a man almost go to any Garrison, Town or City,
and not meet with Anabaptists, Antinomians, Brownists, &c.”.
93
poderia se espalhar facilmente e tornar-se fatal”.430 De acordo com Hughes, tal noção
explicaria, inclusive, a falta de definições precisas na escrita de Edwards, pois “se o erro
conduzisse inexoravelmente a pior heresia, blasfêmia e cisma, fazer distinções claras era
simplesmente um desperdício de tempo para a defesa da verdade”.431 Assim, o heresiógrafo
continuava seus diagnósticos com aquele tom de urgência tão típico de seus escritos.
Como apontado nos capítulos anteriores, essa contaminação se dava por meio das
palavras e das ações dos diversos sujeitos mencionados por Edwards, o que colaborou para a
interessante composição intertextual averiguada no decurso das três partes de sua obra. Uma
das preocupações principais em Gangraena era, justamente, desacreditar os discursos tidos
como heréticos que eram amplamente veiculados durante o período. A disciplina defendida
por Edwards foi, sem dúvida, hierarquizada e se fazia necessário um controle e um
disciplinamento daquilo que era dito, pois, palavras rapidamente se transformavam também
em perigosas ações. O que se percebe por meio do volumoso número de relatos heterodoxos
levantados por Edwards é que, a despeito de todo o esforço monárquico e/ou religioso, “a
língua comum nem sempre foi respeitosa ou educada”.432 Segundo David Cressy, “alguns
enunciados eram hostis e abusivos, degradantes para a autoridade pública, hostis à coroa”,
uma vez que as “pessoas falavam de maneira descuidada, imprudentemente ou sem reflexão, e
às vezes diziam coisas que poderiam ser julgadas escandalosas, sediciosas ou até traidoras”.433
Edwards, porém, dava pouco crédito à imprudência dos seus opositores, considerando suas
palavras e ações propositalmente sediciosas, escandalosas ou traidoras. Todavia, importava ao
heresiógrafo demonstrar como aqueles sujeitos eram perigosos, em particular, pelo modo
como seus comportamentos se alastravam podendo, por fim, irremediavelmente alcançar as
mentes e corações do povo inglês. Esse era, como já observado, um dos fundamentos para a
crítica de Edwards aos ministros independentes, tidos como culpados indiretos pelo
sectarismo mais radical.
430
HUGHES, A. Op. cit., 2006. p. 142. “… was part of a pervasive imagery of heresy as disease in anti-sectarian
writing; a healthy body in a small way at first, but could easily spread and become fatal”.
431
Ibid. p. 144. “If error led inexorably to worse heresy, blasphemy, and schism, making neat distinctions was
simply a time-wasting diversion from the defense of truth”.
432
CRESSY, D. Dangerous Talk. Scandalous, Seditious, and Treasonable Speech in Pre-Modern England.
Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 259. “… the common tongue was not always respectful or polite”.
433
Ibid. p. 259. “Some utterances were hostile and abusive, demeaning to public authority, hostile to the
crown… People spoke unguardedly, recklessly or without reflection, and sometimes said things that could be
judged scandalous, seditious, or even treasonable”.
94
As diversas correspondências apresentadas em Gangraena ou, por exemplo, os
casos relatados por Thomas Juxon em seu diário,434 demonstravam que os sujeitos na época
moderna “mostraram o apetite pela informação pública, e uma propensão para discutir os
assuntos da coroa. Todos os tipos de pessoas falaram de coisas que a cultura política oficial
prescreveu como fora dos limites”.435 Juxon foi emblemático, nesse sentido, por sua
capacidade de articular informações públicas e privadas que diziam respeito ao cenário
político-religioso e militar do período, com foco nas ações presbiterianas. No entanto,
Gangraena apontava para o fato de que essas pessoas não apenas falavam sobre assuntos que
podiam sofrer censura, em espaços específicos e anônimos, mas também o faziam
publicamente. Ao descrever o seu método de coleta de informações, Edwards assinalou que
“alguns dos erros, blasfêmias e práticas, são provados e evidenciados na narração das histórias
e Cartasque se seguemao Catálogo”,436 sendo que na “nomeação de algumas pessoas, lugares,
ocasiões de escrita, as pessoas escrevem de maneira pública e não de maneira particular; na
vontade de publicar, com muitas outras circunstâncias concorrentes, declaram que não são
assinadas nem falsificadas [as informações], mas verdadeiras e certas”.437
Sabe-se, é claro, que as legislações em torno da censura foram alteradas durante o
período que compreendeu as Guerras Civis Inglesas, o que possibilitou a existências de tantos
debates. De acordo com Verônica Calsoni Lima, houve um aumento vertiginoso na produção
livreira inglesa a partir de 1642, sendo que “milhares de panfletos, jornais, cartas noticiosas,
petições impressas, sermões, tratados político-religiosos, exegeses bíblicas, profecias e outros
textos foram produzidos e circularam amplamente, gerando um intenso debate acerca dos
rumos da Inglaterra”.438 Tal aumento deveu-se a um “contexto de instabilidade contribuiu
para o afrouxamento do controle sobre os textos emitidos na Inglaterra. Por um lado, isso
ocorreu graças à abolição de dois órgãos ligados às práticas censoras, a Star Chamber e a
High Comission”.439 Em meio às disputas por poder entre parlamentares e regalistas, a
imprensa também “colaborava com o desenvolvimento de um espaço de discussão político no
434
Ver: LINDLEY, K.; SCOTT, D. (eds). The Journal of Thomas Juxon, 1644-1647. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999 e excertos tratados no segundo capítulo desta dissertação.
435
CRESSY, D. Op. cit. p. 259. “…displayed an appetite for public information, and a propensity to discuss the
affairs of the crown. All sorts of people spoke of things that official political culture prescribed off limits”.
436
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 06. “Some of the errours, blasphemies and practises, are proved and made
manifest in the narration of the stories and Letters following the Catalogue”.
437
Ibid. p. 06. “naming of some persons, places, occasions of writing, the persons writ unto, their writing in a
publike way, and not in a private manner; the willingnesse to have them published, with many other concurrent
circumstances, do declare they are not seigned nor counterseited, but reall and certain”.
438
LIMA, V. C. Op. cit. p. 38.
439
Ibid. p. 39.
95
qual diversos grupos e pessoas expuseram suas interpretações sobre aquele momento
turbulento, assim como forneceram propostas que visavam solucionar as crises inglesas”,440
os heterodoxos de Edwards e o próprio heresiógrafo não existiriam, pois, sem tal processo.
David Cressy, entretanto, também aponta para o fato de que essas leis sempre
estiveram sujeitas às inúmeras interpretações e as punições variavam a depender dos sujeitos
e/ou circunstâncias. Desse modo, “palavras que em uma era poderiam levar um ofensor à
forca podiam levar apenas ao pelourinho algumas décadas mais tarde, ou até mesmo ser
desconsideradas”.441 Para o autor, na prática, havia uma diferenciação importante “entre
palavras identificadas como escandalosas, sediciosas ou traidoras, com consequências legais
variáveis”,442 sendo que tais consequências poderiam vir a atingir sujeitos em lugares opostos
de um mesmo debate. Edwards parecia ciente dessas questões sobre a censura e desde as
primeiras páginas de Gangraena, ainda em sua Epístola Dedicatória, ele tentava ser bastante
cauteloso ao justificar as palavras que iria proferir ao passo que também indicava os
escândalos alheios como motivo para sua “liberdade e ousadia”, pois: “Oh, o mal desses
tempos colocaria zelo no coração de qualquer homem, que tenha algum amor para com a
glória de Deus, a sua verdade e as almas das pessoas, e faz a língua gaguejante falar
livremente, Ah, até o mudo para falar e gritar”.443 Por fim, como “agora, quando nosso Pai,
nosso Salvador e Espírito abençoado são feridos por condenáveis heresias e blasfêmias, e
muitas almas preciosas são destruídas, podemos ficar em silêncio!”.444
Responder a determinadas questões da época, portanto, mesmo que o assunto
estivesse para além dos limites oficiais estabelecidos para essa opinião, poderia ser entendido
como um imperativo de ação a fim de solucionar os graves problemas daquele período. A
despeito de um perigo eminente, colocar-se publicamente contra assunto que atingissem a
ortodoxia presbiteriana defendida, poderia ser também, como se viu no capítulo anterior, uma
prerrogativa calvinista acerca dos deveres de “posicionamento de firmeza” exigidos de todo
cristão.445 Edwards se definia como ousado por proferir tais ideias e produzir tal obra, no
440
Ibid. p. 38.
441
CRESSY, D. Op. cit. p. 265. “Words that in one era could take an offender to the gallows might lead only to
the pillory a few decades later, or even be disregarded”.
442
Ibid. p. 265. “…between words identified as scandalous, seditious, or treasonable, with varying legal
consequences”.
443
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. A3. “… freenesse and boldnesse. O the evil of these times would put zeal
into the heart of any man, who hath any love to the glory of God, his truth, and the souls of people, and make the
stammering tongue to speak freely, yea the dumbe to speak and cry out”.
444
Ibid. p. A3. “And now when our Father, our Saviour and blessed Spirit are wounded by damnable heresies
and blasphemies, and many precious souls destroyed, can we be silent!”.
445
CALVINO, J. Op. cit. p. 902.
96
entanto, sua ousadia estava diretamente relacionada (ainda que fossem adjetivos com pesos
diferentes) a percepção de uma liberdade talvez cunhada na ideia de que “é necessário que
primeiro obedeçamos a Deus, depois às autoridades humanas”.446 O zelo mencionado pelo
autor deveria, pois, ser partilhado pelos leitores de sua Epístola Dedicatória, no caso, “os
Lordes e Comuns reunidos no Parlamento”.447
Essa liberdade para dizer (ou maldizer) certas coisas sem ser punido, porém, não
deveria ser aplicada a todos, sendo que as consequências variáveis precisavam ser
uniformizadas quando se tratava de palavras proferidas por heréticos. Edwards notava, por
exemplo, que “os erros e os cismas estão tão longe de serem punidos, que muitos que os
detêm são altamente respeitados, preferidos, encorajados, colocados em vários gabinetes, [e
ocupam] posições”.448 Além disso, mesmo “após serem questionados por alguns homens
Ortodoxos preparados e [serem] censurados, foram recebidos nas casas de grandes homens,
tiveram lugares conferidos a eles”, ao passo que “o que é ainda pior e mostra a triste condição
deste Reino, pessoas fiéis, piedosas e ortodoxas que não tiveram nada para elogiá-las, exceto
seus Erros e Heresias, sempre foram prejudicadas, obstruídos, desencorajadas...”.449 É
interessante observar como o abrandamento na censura, a partir de 1642, paradoxalmente
garantia a possibilidade de que Edwards pudesse propor as suas soluções ao passo que, o
próprio Edwards, também percebia como aquele afrouxamento também garantia o espaço
para a existência dos discursos e das práticas heterodoxas de seus opositores.
Essa possibilidade de emitir opiniões controversas poderia ser verificada nos
inúmeros espaços ocupados pela população, eclesiástica ou não, como se viu, por meio das
palavras tão vivamente criticadas em Gangraena. Parece notável que, de fato, “havia uma
política da taverna, uma política do adro e uma política da cafeteria, bem como uma política
da nação e da paróquia”.450 Naquele contexto, não importava, por conseguinte, se aqueles que
proferiam tais discursos eram privilegiados ou não, “alfabetizados ou emancipados”, pois
“uma multidão de plebeus julgou seus governantes e superiores. Alguns expressavam fortes
opiniões religiosas, alguns se aventuraram na teoria sobre a commonwealth, e outros erravam
446
At. 5:29.
447
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. A3. “the LORDS and COMMONS Assembled in Parliament”.
448
Ibid. p. 147. “Errors and Schismes are so farre from being punished, that many who hold them are highly
respected, preferred, countenanced, put into many offices, places”.
449
Ibid. p. 147. “after their being questioned by some Orthodoxe men in place and censured, they have been
received into great mens houses, have had places conferred on them, and that which is yet worse and shews the
sad condition of this Kingdom, faithfull, godly, orthodoxe persons who have had nothing to commend them but
their Errors and Heresies, have ever after been undermined, obstructed, discountenanced…”.
450
CRESSY, D. Op. cit. p. 272. “There was a politics of the alehouse, a politics of the churchyard, and a politics
of the coffee shop, as well as a politics of the nation and the parish”.
97
em sedição”.451 Mais particularmente no caso de Gangraena: todos erravam em doutrina.
Esses erros implicavam em possíveis distúrbios da ordem pública levando a sedição.
Em meio ao que parecia ser um medo constante a respeito do aumento dos grupos
sectários e cismáticos, Edwards apontava que os “Sectários fazem o que quiserem, cometendo
insolências e ultrajes, não só contra a verdade de Deus e a paz da Igreja, mas também [contra]
o estado civil, indo para cima e para baixo dos Países, causando levantes, Ah sim tumultos e
distúrbios nas assembleias públicas!”.452 O heresiógrafo também se impressionava com o fato
de que as “pessoas expulsas de outros Países por seus Erros, não apenas vivem aqui, mas
formam Igrejas, pregam publicamente453 suas Opiniões! Quais os enxames de todos os tipos
de Pregadores analfabetos e mecânicos, Ah sim de Mulheres e Pregadores Meninos!”.454
Nesse sentido, talvez, as capacidades de disciplinamento que faltavam aos governos
monárquicos do período, incapazes de conter essas tantas opiniões destoantes, estavam
implicitamente colocadas na disciplina e na reforma da Igreja, defendidas por Edwards em
inúmeras oportunidades.
Apontar as dificuldades das autoridades civis e eclesiásticas em matéria de
disciplinamento era algo sempre central em Gangraena. Com as agitações políticas do
período e o mencionado afrouxamento na censura, Edwards se impressionava com a
quantidade de atividades realizadas pelos diversos grupos heterodoxos. De acordo com o
heresiógrafo, tais independentes e sectários podiam estar em todos os lugares da cidade e
organizavam incontáveis reuniões diárias: “que série de encontros de Sectários nesta cidade,
451
Ibid. p. 272. “literate, or enfranchised, a multitude of commoners passed judgement on their rulers and
superiors. Some voiced strong religious opinions, some ventured into commonwealth theory, and some
blundered into sedition”.
452
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 8. “Sectaries doing even what they will, committing insolencies and
outrages, not only against the truth of God and the peace of the Church, but the Civill state also, going up and
down Countries, causing riots, yea tumults and disturbances in the publike Assemblies!”.
453
Cabe observar que nos excertos aqui apresentados, Edwards fala em publike e publikely. Essa utilização das
noções de público está presente em toda a obra e levaram Ann Hughes a propor a possibilidade de se trabalhar
com a categoria de “opinião pública” — amplamente desenvolvida por Jürgen Habermas — em análises sobre o
século XVII inglês, onde a circulação de ideias era tão efervescente. Não foi possível aprofundar essa questão ao
longo da dissertação, no entanto, há referências sobre o debate em: HABERMAS, J. Mudança estrutural da
esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2003; HUGHES, A. Edwards, Gangraena, and Presbyterian Mobilization. In: _____. Gangraena and the
struggle for the English Revolution. Oxford: Oxford University Press. 2004. pp. 409-415; LAKE, P.;
QUESTIER, M. “Puritans, Papists, and the ‘Public Sphere’ in Early Modern England: the Edmund Campion
Affair in Context”. Journal of Moderna History, vol. 72, n. 3, 2000. pp. 587-627. Disponível em: <http://www.
jstor. org/ stable/10.1086/316043>. Acesso em: abr. 2017; ZARET, D. “Petitions and the ‘Invention’ of Public
Opinion in the English Revolution”. American Journal of Sociology, vol. 101, n. 6, 1996. pp. 1497-1555.
Disponível em: <http://www. jstor. org/stable/2782111>. Acesso em: abr. 2017.
454
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 8. “how do persons cast out of other Countries for their Errours, not only
live here, but gather Churches, preach publikely their Opinions! what swarms are there of all sorts of illiterate
mechanick Preachers, yea of Women and Boy Preachers!”.
98
onze, pelo menos, em uma Paróquia!”.455 Em tais espaços, falavam abertamente sobre os mais
diferentes assuntos, “Que liberdade de pregação, impressão de todos os Erros, ou por uma
Tolerância de todos, e contra o Diretório, a Aliança [...] o Governo Presbiteriano e todos os
Decretos do Parlamento em referência à Religião”.456 Naturalmente, é preciso sempre
considerar que aqui se tem o ponto de vista presbiteriano como partida, não cabendo avaliar
quais foram os conteúdos, de fato, dessas reuniões organizadas pelos diversos oponentes de
Edwards. A documentação, entretanto, continua a ser útil ao demonstrar aspectos do
pluralismo religioso do período e de como se dava à rápida propagação dos mais
diversificados discursos, que foram tidos, muitas vezes, como perigosos para o corpo político-
religioso em vigência.
Um possível incômodo de Edwards fosse, talvez, o modo como essas
conversações perigosas dos seus oponentes eram capazes de atingir diretamente inúmeras
camadas populares por meio de escritos que passavam longe da seriedade ortodoxa de sua
heresiografia, ainda que Gangraena também partisse de mecanismos retóricos baixos. É
possível refletir, por exemplo, a respeito de como esses discursos heterodoxos estiveram
intimamente ligados à comédia, no sentido do que explica Alexandra Walsham sobre como “o
riso e a zombaria, em vez do medo, se tornaram as notas predominantes desse discurso, isso
não deve nos levar a subestimar o significado ou a virulência latente. A comédia não pode ser
menos corrosiva do que a condenação vituperativa”.457 Perceber a influência da comédia,
como sugere Walsham, é muito relevante, todavia, o que a intertextualidade de Gangraena
revela, é uma intersecção entre vitupério e comédia, altamente criticada por Edwards como
um dos exemplos que tinham muito a revelar sobre os horrores no discurso e nas práticas de
seus oponentes.
Edwards comentou, por exemplo, a respeito dos insultos sofridos por
presbiterianos ortodoxos em meio às produções que tinham um sentido de comédia, como
baladas e xilogravuras458:
455
Ibid. p. 08. “what a vide number of meetings of Sectaries in this Citiy, eleven at least in one Parish!”.
456
Ibid. p. 08. “what liberty of preaching, printing of all Errours, or for a Toleration of all, and against the
Directory, Covenant… Presbyteriall Government, and all Ordinances of Parliament in reference to Religion...”.
457
WALSHAM, A. Op. cit. p. 317. “If laughter and mockery rather than fear became the predominant notes of
this discourse, this should not lead us to underestimate either its significance or its latent virulence. Comedy
could be no less corrosive than vituperative condemnation”.
458
Cabe notar que em Gangraena tem-se apenas a menção ao título da obra Prophecie of the Swineherds
destruction, To the tune of the merry Souldier, or the joviall Tinker, já muito revelador, sem a publicação de
excertos mais longos. O panfleto não foi localizado em buscas na EEBO, ESTC e em arquivos físicos
consultados e não há citações diretas a essa obra em outros escritos de Edwards, nem tampouco se tem acesso às
99
Como, por exemplo, a Assembleia, que foi instituída por Decreto do
Parlamento, eles não tem sido terrivelmente abusados, desdenhados por
aqueles Books of Arraignment of Persecution, Martins Eccho, &c. e agora,
recentemente, uma Balada fez deles, tendo primeira e segunda partes, onde
eles são zombados com o título de Black-bird Divines? O nome da Balada
contra a Assembleia de Teólogos é chamada de Prophecie of the Swineherds
destruction, To the tune of the merry Souldier, or the joviall Tinker; E dois
homens retratados na extremidade superior dele [do livro], com a inscrição
de Sir John Presbyter, e Sir Symon Synod. Esta Balada nomeia a Assembleia
de Pastores de Porcos, diz, Esses Pastores de Porcos estão sentados para
construir a velha Torre de Babel: E nesta balada o Diretório elaborado pela
Assembleia, e estabelecido por Decreto, é ridicularizado, e a Assembleia é
convocada e gritam contra ela por se colocar contra os Anabatistas, os
Brownistas, os Independentes: e eles estão naquela balada chamada
Sacerdotes de Baal.459
Percebe-se, portanto, a irritação de Edwards por um discurso que era, ao mesmo
tempo, de vitupério e de comédia contra os presbiterianos e as ações praticadas pelos
membros da Assembleia de Westminster, no caso, a partir das figuras cômicas de “Sir John
Presbyter” e “Sir Symon Synod”. Alguns apontamentos se fazem necessários em relação a
este excerto tão complexo. A menção a “tinker” no título da balada se refere ao “funileiro” em
um sentido do sujeito que remenda objetos de forma descuidada e de um trabalho mecânico.
Além disso, de acordo com o OED, “tinker” usualmente produz um sentido depreciativo,
sendo essa uma ofensa comum ao período, como se viu em outros momentos em Gangraena e
nas importantes contribuições de Nicholas McDowell. A expressão “jeared at”, por sua vez,
se relacionava à ideia de um ataque alto e claro que produz sons destoantes, em um
movimento mais musical, aludindo, quem sabe, à linguagem da própria balada. Por fim, cabe
apontar que “Baal” aqui diz respeito a um deus adorado pelos povos fenícios e cartagineses e
que foi mencionado no Velho Testamento, sobretudo, em Juízes, por conta das lutas dos
hebreus em Canaã contra a adoração a esse Deus. Pode ser também a representação de um
demônio de acordo com a tradição cristã.460
gravuras impressas mencionadas pelo heresiógrafo. A análise, portanto, foi baseada em menções indiretas como
esta apresentada a seguir.
459
EDWARDS, T. Gangraena, II. pp. 155-56. “As for example, The Assembly, who sits by Ordinance of
Parliament, Have They not bin fearfully abused, scorned by those Books of Arraignment of Persecution, Martins
Eccho, &c. and now lately by a Ballad made of them, having a first and second part, wherein they are scoffed
with the title of Black-bird Divines? The name of the Ballad against the Assembly of Divines is calld A
Prophecie of the Swineherds destruction, To the tune of the merry Souldier, or the joviall Tinker; Tinker; and
two men pictured at the upper end of it, with the in inscription of Sir John Presbyter, and Sir Symon Synod. This
Ballad calls the Assembly Swineherds, saith, These Swineherds they are sitting to build old Babels Tower: And
in this Ballad the Directory made by the Assembly, and established by ordinance, is scoffed at, and the
Assembly is brought in and jeared at for being against Anabaptists, Brownists, Independents: and they are in that
Ballad call'd Baals Priests”.
460
Ver: Jar, v.; Tinker.oed. Disponível em: <http://www.oed.com/view/Entry/10079>; <http://www.oed.com/
view/Entry/202261>. Acesso em: jun. 2017.
100
Tal excerto aponta também para a ampla variedade de discursos que poderiam ser
considerados perigosos e que viriam a corromper a população em geral. É importante
observar, por exemplo, como são tratadas as relações de oposição entre Sínodo e Presbítero e
Soldado e Funileiro. No título proposto, havia uma elevação às funções socialmente vistas
como menos santificadas ou importantes (novamente a questão dos trabalhadores mecânicos),
sendo o Soldado e o Funileiro capazes de ditar o tom da narrativa. Por outro lado, o autor
anônimo e seus colaboradores, que produziram a xilogravura descrita por Edwards,
rebaixavam aquilo que estava colocado como ordenador social e político-religioso, isto é, os
sínodos e seus presbíteros. Seguindo a hipótese de João Adolfo Hansen para os textos
seiscentistas — trabalhando, em particular, com as sátiras de Gregório de Matos e Guerra —
“a representação é política, ou seja, as formas discursivas encenam posições hierárquicas do
sujeito de enunciação, dos tipos representados, do destinatário e dos públicos empíricos”,461
precisa ser entendida, portanto, como “posição social integrada na hierarquia, sendo definida e
composta como representação testemunhada pelo destinatário e pelos públicos empíricos
também constituídos como representação”.462 Nesse sentido, Edwards precisava expor o
perigo representado pela inversão proposta pelo autor anônimo de Prophecie of the
Swineherds destruction, a ser combatido antes que se alastrasse ainda mais.
Além disso, o excerto também aponta para a pluralidade de fontes coletadas em
Gangraena e alguns de seus mecanismos intertextuais, por exemplo, a menção a um título
perigoso, mas não ao texto completo, que, nesse caso, talvez não fosse digno de um
comentário mais extenso como ocorreu aos inúmeros opositores independentes de Edwards, já
mencionados nos capítulos anteriores. Como assinala Ann Hughes, “a imersão de Edwards na
imprensa garantiu que sua análise não se limitasse a obras do debate político e religioso”, pois
ele “teve uma consciência superaquecida da influência dos periódicos, denunciando-os como
os ‘pensionistas’ dos independentes e os lacaios do exército”.463 Isso permitiu, portanto, uma
atenção também “a impressão barata, incluindo baladas e xilogravuras”, como se viu por meio
da citação anterior.464 Tal imprensa interessava a Edwards, é claro, pelo seu poder de
disseminar discursos e práticas equivocadas e que levariam a contaminação desse corpo inglês
a ser urgentemente disciplinado.
461
HANSEN, J. A. Op. cit., 2014. p. 101.
462
Ibid. p. 101.
463
HUGHES, A. Op. cit. p. 242. “Edwards’s immersion in the press ensured that his analysis was not confined to
works of religious and political debate; had an overheated awareness of the influence of newsbooks, denouncing
them as the ‘pensioners’of the Independents and the stooges of the army”.
464
Ibid. p. 242. “the cheap print, including ballads and woodcuts”.
101
Outro aspecto importante relaciona-se ao modo como, naquele período, “a ênfase
principal passou da corrupção dos costumes para a conversação que gerava essa degeneração
moral. Foi uma mudança sutil, mas significativa: ao invés de ‘conversação que corrompe’, o
acento passou a recair sobre a ‘conversação que corrompe’”.465 De acordo com Rui Luis
Rodrigues, tal mudança ocorreu por conta das alterações na própria dinâmica confessional do
período reformador, pois se “antes o herege era visto como um ser pernicioso, que deturpava
as palavras justamente por causa de sua própria maldade e depravação, agora entendia-se que
esse poder de corrupção encontrava-se nas palavras que o herege formulava”.466 Percebeu-se,
então que as “palavras desprovidas de sanidade podiam brotar mesmo de pessoas
aparentemente sãs; seu poder corruptor se revelaria logo, assim como a pretensa santidade de
seus articuladores não tardaria a cair por terra”.467
Esse era o caso, por exemplo, dos embates entre Thomas Edwards e seus
opositores independentes e que provinham dos mesmos lugares universitários que o
presbiteriano. Para Edwards, a distinção entre independentes e sectários não se fazia
necessária, visto que os independentes aceitavam os erros cometidos por outros heréticos em
nome da liberdade de consciência, corroborando, pois, essas “palavras desprovidas de
sanidade” e, por conseguinte, as ações provenientes delas. De acordo com Edwards, “[...]
todos os sectários, o pior deles (mesmo aqueles que negam as Escrituras, a Divindade de
Cristo, etc.) se separam da Igreja da Inglaterra, recusando a comunhão com ela nos
Sacramentos e outras Ordenanças como fazem os Independentes”. Além disso, “os
independentes se juntam com os outros sectários aderindo a eles, mas em todas as ocasiões
têm e fazem um corpo comum com eles, para manterem-se contra os Ortodoxos e
Presbiterianos”.468
Em contextos nos quais as opiniões dos sectários são publicamente discutidas
como, por exemplo, nas sessões da Assembleia de Westminster, Edwards apontava ser “capaz
de dar muitos exemplos de muitos dos Independentes, ambos Ministros e o povo, pleiteando
em nome dos Anabatistas, Antinomianos e outros sectários, para que possam ser tolerados
tanto quanto a si mesmos”, para, em seguida estarem de acordo “em Comunhão, com Igrejas
465
RODRIGUES, R. L. Op. cit., 2012. p. 543.
466
Ibid. p. 543.
467
Ibid. p. 543.
468
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 14. “As also all the sectaries, the worst of them (even those who deny the
Scriptures, the Divinity of Christ, &c.) do separate from the Church of England, refusing communion with her in
the Sacraments and other Ordinances as the Independents do, but because the Independents do join themselves
with the other sectaries adhering to them, but upon all occasions have and do make one common body with
them, to hold together against the Orthodox and Presbyterians”.
102
Independentes admitindo e continuando a aceitar Anabatistas, Antinomianos a serem
membros; além de não censurar os sectários selvagens (como Seekers) que caíram de suas
Igrejas”. Considerando esse alinhamento de discurso e de práticas entre independentes e
sectários, Edwards assumia ser possível e necessário tratá-los em conjunto: “então eu não faça
nenhum mal aos Independentes ao colocá-los no mesmo Catálogo com outros sectários, eles
mesmos tendo, em tantos detalhes, andado de mãos dadas com eles [sectários]”.469 Era
imprescindível, portanto, combater essas corrupções em conjunto evitando que se
espalhassem ainda mais.
Paralelamente a isso, nota-se como o acento estava nas palavras ditas, uma vez
que “aparentemente fazia toda a diferença, nesse momento, não tanto a maneira como se
vivia, mas principalmente aquilo que se dizia”, especialmente porque “essa concentração na
palavra explica-se, contudo, pelo fato de que a ligação entre o dizer e o fazer era percebida
como extremamente íntima”.470 Rodrigues assinala ainda que, naquele contexto de “inícios da
modernidade a palavra em geral equivalia à ação; fosse o verbo proferido contra o rei,
constituindo crimes de lesa-majestade humana, fosse proferido contra Deus (e a heresia, sob
todas as suas formas, era vista como lesa-majestade divina)”.471
Esse vínculo entre o dizer e o fazer já foi esboçado no primeiro capítulo desta
dissertação, por meio, por exemplo, do embate entre Edwards e John Goodwin, quando o
ministro independente assinalou, na obra Cretensis, que “nesta negociação sangrenta, ele
[Edwards] deve sofrer, não como um cristão, nem com Cristo, mas como um malfeitor, um
praticante de perversidades”.472 Tal excerto, como se viu, foi entendido por Edwards da
maneira mais literal possível, implicando uma ação real, ou seja, um ato criminoso, no qual
“se os sectários me causarem danos ou me matarem por causa de meu livro, ‘isto, não é nada,
apenas um ato contra um malfeitor e um praticante de perversidades’”.473 Havia, sem dúvida
alguma, uma relação evidente entre os discursos e as ações heterodoxas que viriam a
corromper a todos, sendo impossível separá-las propriamente.
469
Ibid. p. 14. “I am able to give many instances of many of the Independents, both Ministers and people,
pleading for the Anabaptists, Antinomians and other sectaries, that they might be tolerated as well as
themselves;… as also in closing together in Church-fellowship, Independent Churches admitting of and
continuing Anabaptists, Antinomians to be members; besides not censuring wild sectaries (as Seekers) who have
fallen from their Churches: so that I do the Independents no wrong to put them in the same Catalogue with other
sectaries, themselves having in so many particulars gone hand in hand with them”.
470
RODRIGUES, R. L., 2012. pp. 543-544.
471
Ibid. p. 544.
472
GOODWIN, J. Cretensis. p. 19. “in this bloudy negotiation, he shall suffer not as a Christian, nor with Christ,
but as a malefactor and an evill doer”.
473
EDWARDS, T. Gangraena, II. p. 38. “that if the Sectaries mischief or kill me for my Book, ‘tis but an act
against a Malefactor and an evill-doer”.
103
Percebe-se, portanto, os muitos desdobramentos desses discursos perigosos da
época moderna e que puderam ser verificados, aqui em particular, no contexto das Guerras
Civis Inglesas tendo em vista a análise de Gangraena. Edwards estava evidentemente
informado pela noção de que esses discursos iriam, ainda, “envenenar não apenas o emissor
das palavras defeituosas ou criminosas — certamente ele se tornava tal qual o que dizia —,
mas principalmente contaminar a sociedade como um todo”.474 Nesse sentido, Rodrigues
aponta como, para os autores da época, essas “más palavras produziam degeneração moral e
iam além: com essa degeneração provocavam também a corrupção da respublica. O mal dito
gerava o maldito e colocava a sociedade debaixo de maldição”.475 Edwards percebia que eram
diversos os discursos e as ações dos seus opositores, entretanto, eles eram, em geral, culpados
por algumas práticas em comum. Entre elas estavam: a “folga e a liberdade na vida e na
conversação”; a sua capacidade de causar “tumulto, desordem e confusão” e a “perturbação e
a derrubada de relações econômicas,476 Eclesiásticas, Políticas e do Governo”.477 O tópico a
seguir pretende esboçar melhor justamente esse último aspecto das relações político-
religiosas, tão relevantes para a compreensão dos aspectos da confessionalização presente
nesses escritos seiscentistas.
474
RODRIGUES, R. L., 2012. p. 544.
475
Ibid. pp. 544-545.
476
De acordo com o OED, o termo “econômico”, naquele período, poderia ter um sentido “relativo ao
gerenciamento doméstico, no que diz respeito à organização adequada dos recursos domésticos; semelhante ao
que se obtém em uma casa” ou, ainda, um significado teológico “relativo ao método do governo divino do
mundo, uma dispensa adequada às necessidades de uma determinada nação ou período de tempo”.
Economical.oed. Disponível em: <http://www.oed.com/view/Entry/59385>. Acesso em: out. 2017. “Relating to
household management, esp. as regards the proper organization of domestic resources; resembling what obtains
in a household”; “Relating to the method of divine government of the world, a dispensation suited to the needs of
a particular nation or period of time”.
477
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 61. “To Loosenesse and liberty in life and conversation… To
Tumultuouinesse, disorder and confusion… To the Disturbance and overthrow of aeconomicall, Ecclesiasticall
and Politicall relations and Government”.
104
grupo e referir a justeza de sua doutrina e prática; e dirige-se também, reflexivamente, ao
próprio grupo confessor [...]. A confissão é, simultaneamente, apologia e disciplina
catequética”.478
Viu-se a ocorrência desse duplo mecanismo em Gangraena desde a Epístola
Dedicatória aos Lordes e Comuns reunidos no Parlamento, na qual, como procedimento da
época e apologia, o autor justificava a sua produção e convidava os leitores ligados à
autoridade civil a se alinharem a ele em seu combate aos hereges. Segundo Edwards, era
tempo de acordarem para que “não sofram mais com essas Seitas e Cismas, esses distúrbios e
confusões que estão em meio a nós, mas caem de maneiras eficazes, como vocês, em sua
grandiosa sabedoria devem descobrir, e fazer algo digno de um Parlamento desse tipo
também”.479 Por outro lado, a obra sempre se voltava para os leitores comuns, que eram fonte
de informações (presentes nas cartas e nos diálogos intertextuais trabalhados em outro
momento desta dissertação) para Edwards e também objeto daquele disciplinamento
presbiteriano tão almejado. Ainda na primeira parte da obra, o autor assinalava que seu
“sincero desejo é para com todos os piedosos Leitores Ortodoxos, em cujas mãos este livro
deve cair, que são inimigos de seitas e cismas, e amantes da verdade, da paz e da ordem”.480
Esses leitores poderiam ser “Cavalheiros de Comitês481 nos vários Condados ou Soldados nos
Exércitos, ou os Ministros nas várias partes do Reino, ou outros Cristãos piedosos” e “que
estariam satisfeitos dentro destes três ou quatro meses a seguir,482 para me comunicar todo
específico conhecimento que tenham, das Opiniões, dos Modos e dos Procedimentos dos
Sectários”.483
Em meio a essa dupla articulação verificada em Gangraena seria plausível
compreender essa publicação, então, em uma chave mais ampliada do termo
478
RODRIGUES, R. L., 2012. p. 382.
479
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 10. “…to suffer no longer these Sects and Schismes, these disorders and
confusions that are in the midst of us, but to fall upon some effectuall wayes, as you in your great wisdomes shall
finde out, and to do something worthy a Parliament in this kinde also”.
480
Ibid. p. 42. “… and my earnest desire is to all the godly Orthodox Readers, into whose hands this book shall
come, who are enemies to sects and schismes, and lovers of truth, peace, and order”.
481
Aqui, Edwards se referia aos comitês parlamentares (parlamentary committees), órgãos diversos e ainda
vigentes, que realizam trabalhos e, sobretudo, debates, na Câmara dos Comuns e dos Lordes a respeito de
questões políticas, das despesas do governo, das alterações legislativas etc. Ver: Parliamentary business -
Committees. Disponível em: <http://www. parliament. uk/business/committees/>. Acesso em: jul. 2017.
482
A indicação para que enviasse novas informações em três ou quatro meses pode se relacionar às intenções que
Edwards já demonstrava sobre publicar uma segunda parte de Gangraena, o que ocorreu em maio de 1646,
justamente, três meses após a publicação da primeira parte da obra, em fevereiro daquele ano.
483
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 42. “… whether Gentlemen of Committees in the severall Counties, or
Souldiers in the Armies, or Ministers in the severall parts of the Kingdom, or other godly Christians, that they
would be pleased within this three or four moneths next following, to communicate to me all the certaine
intelligence they have, of the Opinions, wayes and Proceedings of the Sectaries”.
105
confessionalização que, como comentou Alexandra Walsham, já vem, atualmente, sendo
“aplicado para definir os processos em curso pelos quais as barreiras sociais e culturais foram
erguidas em torno de comunidades e grupos religiosos alternativos e por meio dos quais
identidades e sensibilidades confessionais distintas e muitas vezes antagônicas foram
forjadas”.484 Para a historiadora, “sintomáticos desses processos foram o surgimento de
‘confissões’ explícitas, declarações ou formulários de doutrina e fé e a evolução dos ritos e
cerimônias litúrgicas que distinguiam Igrejas particulares de organizações rivais com as quais
competiam”.485 Os escritos de Edwards estão sendo aqui trabalhados nessa chave, tendo em
vista a hipótese de que essa heresiografia talvez seja outro tipo de texto que dizia respeito a
tais processos. Nesse sentido, e como se tem demonstrado ao longo dos capítulos desta
dissertação, a obra apontava para as dissonâncias entre uma doutrina tida como verdadeira e
outras catalogadas como heréticas, sempre por meio de sua relação com os procedimentos
estabelecidos pela, marcadamente presbiteriana, Assembleia de Westminster e os embates por
disciplina e reforma da igreja.
Como se viu no capítulo anterior, seria impossível trabalhar com tal obra sem
considerar os processos que possibilitaram os embates e a existência de textos seiscentistas
como Gangraena. Em sua análise sobre a confessionalização inglesa a partir das noções de
tolerância e intolerância religiosa, Walsham demonstra, por exemplo, como o pluralismo
religioso inglês, presente desde meados do século XVI, “promoveu um clima no qual as
pessoas se acostumaram a coexistir com a diferença religiosa e a alcançar uma espécie de
modus vivendi com seus vizinhos”,486 ao passo que “pode-se sugerir que o pluralismo
promovido acidentalmente pelo assentamento isabelino lançou as bases para as guerras de
religião que eclodiram nas ilhas britânicas oitenta anos depois”.487 Desse modo, de acordo
com a historiadora, esse longo processo criou as condições “nas quais a dissimulação e a
clandestinidade puderam florescer, se estimulou ansiedades que culminaram com a convicção
484
WALSHAM, A. Op. cit. p. 302. “... applied to define the ongoing processes by which social and cultural
barriers were erected around alternative religious communities and groups and by which distinct and often
antagonistic confessional identities and sensibilities were forged”.
485
Ibid. p. 302. “Symptomatic of these processes were the emergence of explicit ‘confessions’, statements or
formularies of doctrine and faith and the evolution of liturgical rites and ceremonies that distinguished particular
Churches from the rival organisations with which they competed”.
486
Ibid. p. 301. “... fostered a climate in which people became accustomed to coexisting with religious difference
and to reaching a kind of modus vivendi with their neighbours”.
487
Ibid. p. 301. “it can be suggested that the pluralism accidentally fostered by the Elizabethan settlement laid
the foundations for the wars of religion that broke out in the British Isles eighty years later”.
106
de que medidas constitucionais radicais e ações militares deveriam ser tomadas para impedir
que o protestantismo inglês fosse prejudicado por dentro”.488
Paradoxalmente, como se viu, o próprio presbiterianismo foi um desses
radicalismos do século XVI, ainda que mais tarde buscasse ser compreendido como uma
ortodoxia no contexto das Guerras Civis Inglesas. Polly Ha assinala, por exemplo, que “os
críticos contemporâneos estavam convencidos de que o presbiterianismo ameaçava
radicalmente reorganizar toda a estrutura da igreja” tendo em vista a sua proposta
organizacional iniciada “de baixo para cima com os tribunais locais e estacionários que
estavam incorporados na comunidade”.489 De acordo com Ha, esse modelo jurisdicional
presbiteriano foi visto como uma “revolução disciplinar”, pois, essa reorganização “introduziu
uma infraestrutura alternativa para o governo religioso e instituiu novos mecanismos de
controle social”490 que vieram a influenciar outros setores em um período no qual, como se
sabe, o político e o religioso estavam fortemente entrelaçados.
É importante ter sempre em mente que, a despeito da unidade presbiteriana
forjada retoricamente por Edwards, percebem-se alguns denominadores comuns que, de fato,
permaneceram naquela prática confessional ao longo do tempo. Dentre eles, destaca-se o
modo como os “presbiterianos ingleses previram sua reforma eclesiástica como local e
nacional, a eleição dos anciãos leigos nas províncias destinou-se a promover uma reforma
moral a nível nacional”,491 o que implicava uma “preocupação espiritual e o princípio da
edificação [que] foram projetados em todo o reino”.492 Observa-se que esse era um
movimento menos internalizado (como se esperaria em uma confissão protestante que
considerasse o foro interno do indivíduo) e mais interessado em disciplinar a coletividade
representada pela Igreja da Inglaterra. Apesar disso, abaliza Ha, “os presbiterianos careciam
de confiança na capacidade de uma igreja reunida em manter uma disciplina suficiente apenas
explorando a garantia da aliança à conduta piedosa”.493 Nesse sentido:
488
Ibid. p. 301. “... in which dissimulation and clandestinity could flourish, it stimulated anxieties which
culminated in the conviction that radical constitutional measures and military action had to be taken to prevent
English Protestantism from being undermined from within”.
489
HA, P. Op. cit. p. 22. “Contemporary critics were convinced that Presbyterianism threatened radically to
reorganize the entire church structure; ... began from the bottom up with local and stationary courts that were
embedded in the community”.
490
Ibid. p. 22. “disciplinary revolution; introduced an alternative infrastructure for religious government and
instituted new mechanisms for social control”.
491
Ibid. pp. 39-40. “english Presbyterians envisaged their ecclesiastical reform as both local and national, the
election of lay elders in the provinces was designed to bring about moral reform on a national scale”.
492
Ibid. pp. 39-40. “... spiritual concern and the principle of edification were projected to the entire realm”.
493
Ibid. p. 43. “Presbyterians lacked confidence in the ability of a gathered church to maintain sufficient
discipline merely by exploiting the covenantal pledge to godly conduct”.
107
Disciplinar o comportamento escandaloso, acreditavam os presbiterianos,
exigiria o envolvimento sistemático das autoridades leigas em uma
campanha nacional pela reforma. Somente um governo da igreja alternativo
e abrangente que prometesse aos leigos um papel expandido na jurisdição
local poderia produzir a disciplina que o episcopado não conseguiu e, de
fato, nunca poderia ter alcançado dada a sua estrutura excessivamente
clerical. [...] Desse modo, os ministros presbiterianos não só produziram
argumentos junto com juristas para atacar o episcopado e os tribunais
eclesiásticos, mas também procuraram construir alianças com magistrados
provinciais que deveriam reforçar a relação de cooperação entre ministros e
magistrados.494
Edwards trabalhou nessa chave de cooperação em diversos momentos ao longo
das três partes de Gangraena, avaliando a importância dos magistrados e da autoridade civil
em geral, sobretudo, no que dizia respeito às punições por palavras e ações tidas como
heréticas e que viriam a causar a ruína do reino. Em determinada altura da obra, após assinalar
inúmeros erros cometidos por seus opositores, o heresiógrafo indicou onde poderia entrar a
participação do poder civil, sendo que “os Magistrados devem executar algum castigo
exemplar sobre alguns dos mais famosos sectários e sedutores”, entre eles “a saber, os
Impressores, Distribuidores e Licenciadores, e se estabelecer com todo seus corações, para
descobrir maneiras, e tomar algum curso para suprimir, impedir e não mais sofrer essas
coisas”.495 Além disso, “o Magistrado deveria adotar o rápido estabelecimento e a resolução
de todo o quadro do Governo da Igreja, em todos os Oficiais, Assembleias e Censuras, sem os
quais esta Igreja nunca será levada a unidade, nem erros impedidos de erguerem-se, ou
suprimidos quando cultivado”.496 Nota-se, portanto, a convocação dos poderes civis naquela
campanha presbiteriana por uma reforma da igreja.
Como demonstrado no capítulo anterior, essa relação entre poder civil e
eclesiástico esteve marcadamente expressa nos escritos de Calvino, leitura fundamental aos
presbiterianos ingleses. De acordo com Calvino, “os súditos devem reverenciar seus príncipes
494
Ibid. p. 43 “Disciplining scandalous behavior, Presbyterians believed, required the systematic involvement of
lay authorities in a national campaign for reform. Only an alternative and comprehensive church government that
promised the laity an expanded role in local jurisdiction could produce the discipline which episcopacy had
failed to achieve and indeed could never have achieved given its excessively clerical structure… Thus,
Presbyterian ministers not only made arguments alongside jurists to assault episcopacy and ecclesiastical courts,
but also sought to build an alliance with provincial magistrates that was supposed to enhance the cooperative
relationship between ministers and magistrates”.
495
EDWARDS, T. Gangraena, I. p. 172. “the Magistrates should execute some exemplary punishment upon
some of the most notorious sectaries and seducers… namely, the Printers, Dispersers, and Licensers, and set
themselves with all their hearts, to find out ways, and to take some course to suppresse, hinder, and no longer
suffer these things”.
496
Ibid. p. 172. “the Magistrate should adde the speedy establishing and settling the whole frame of the
Government of the Church, in all the Officers, Assemblies, and Censures, without which this Church will never
be brought into unity, nor errours prevented from rising up, or suppressed when grown”.
108
e magistrados, não só por medo do castigo, como aquele que cede à força do inimigo armado
ao ver o mal que lhe sobrevirá resistindo, mas por temor a Deus, uma vez que dele procede o
poder dos príncipes”.497 Nesse sentido, o estabelecimento de mecanismos de punição pelos
magistrados também poderia ser entendido como uma obrigação que lhes foi imposta por
Deus ao lhes conceber esse poder civil. Por outro lado, a obediência dos cidadãos era também,
é claro, um fator definitivo nessa relação, algo que vinha sendo ignorado pelos heterodoxos de
então.
Se esses castigos não fossem aplicados de maneira consistente, seria, para
Edwards, impossível que o bom governo da igreja fosse vitorioso, pois, os cidadãos, que
proferiam tantas palavras malditas, já não entendiam seus lugares na conformação social e na
obediência que lhes era uma obrigação. Para Calvino, inclusive, a obediência também se
expressava em meio à “moderação que os cidadãos privados devem ter em face dos negócios
públicos, para que evitem invadir as funções do magistrado ou tomem iniciativas de natureza
pública”.498 Era preciso que os sujeitos não mais tentassem remediar os problemas, mas
“expor a situação ao superior, que é o único autorizado a gerir os negócios públicos”.499 Ora,
esse foi justamente o pressuposto de Edwards no decurso das três partes de Gangraena. Seu
texto era uma exposição calculada entre a ousadia de dizer o que era necessário ser feito e a
percepção de que não seria ele o indivíduo autorizado a realizar esses feitos.
Essa era uma diferença fundamental que garantia a Edwards estabelecer a
oposição criada entre presbiterianos, por um lado, e independentes e sectários (entendidos
como uníssonos), por outro. J. G. A. Pocock comenta que “militantes como John Milton
vislumbraram, portanto, uma Reforma final, que libertaria a Palavra de todas as restrições ao
seu poder, mas não deixaram clara a natureza do magistrado que levaria isso adiante”.500 Para
os heterodoxos, “podia haver uma série de mudanças no interior da estrutura do Governo
Devoto: um príncipe apóstata podia ser destituído por um Parlamento Devoto; um Parlamento
apóstata, por um exército ou povo devoto; e um exército ou povo apóstata podia cair em
pecado - como no fim ocorreu”.501 Tais seitas, que proliferaram durante as Guerras Civis
Inglesas, “foram as primeiras a afirmar que o magistrado deveria se abster de interferir em
questões religiosas, porque as operações da crença no coração humano estavam além de sua
497
CALVINO, J. Op. cit. p. 895.
498
Ibid. p. 896.
499
Ibid. p. 896.
500
POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003. p. 409.
501
Ibid. p. 409.
109
competência e não podiam ser contidas ou dirigidas por seu poder coercitivo”.502 O corte em
relação a percepção presbiteriana e calvinista era evidente.
Uma frase atribuída a Oliver Cromwell parece reveladora, nesse sentido. De
acordo com a citação, o Lorde Protetor teria dito que “Toda seita diz Oh, dai-me liberdade”,
todavia completava, “mas dê a ela tal liberdade e, com seu poder, ela não se concederá a
nenhuma outra”.503 Pocock, entretanto, avalia que essa afirmação não seria de todo correta,
uma vez que “havia sectários que sustentavam que o magistrado não devia reprimir nem
mesmo o erro manifesto, mas se com isso eles estavam afirmando um princípio de liberdade
ou uma preferência tática, essa é outra questão”.504 Assim, ao se decidir “contra a idéia de
fazer do magistrado o juiz da verdade e do erro”,505 tais sujeitos impuseram uma oposição
difícil de ser superada pelos grupos tidos como conservadores ou regalistas, pois, “exilar o
magistrado do reino do Espírito era algo que não podia ser feito sem consequências”.506
Publicações como Gangraena, as campanhas presbiterianas empreendidas na cidade de
Londres no período, as petições públicas e mesmo a convocação de uma assembleia de
teólogos, foram algumas dessas consequências possíveis.
Paralelamente a isso, e dentre as tantas palavras que se espalhavam como cancro e
corrompiam o estado de coisas, havia uma questão importante para Edwards— e que deveria
ser solucionada em colaboração com o governo civil — que era a certeza de que os costumes
históricos precisavam ser considerados em oposição às novas leis propostas por heterodoxos.
Nesse sentido, como apontou Ann Hughes,507 o heresiógrafo debateu as opiniões de seus
opositores que denunciavam leis e costumes ingleses, apontando para o modo como “em vez
dos Direitos Legais e das Leis e Costumes desta Nação, os Sectários falam e imploram por
Direitos naturais e Liberdades”.508 Edwards, então, se questiona se considerando “todos os
princípios da justiça e da razão Correta, quem é mais apto a julgar em tais e tais casos, o que é
de acordo com a razão correta, se todo Delinquente e Mecânico ignorante em questão... ou os
502
Ibid. p. 411.
503
Ibid. p. 411.
504
Ibid. p. 411.
505
Ibid. p. 411.
506
Ibid. p. 411.
507
Ver: HUGHES, Op. cit. pp. 365-66.
508
EDWARDS, T. Gangraena, III. sem paginação (equivalente à quarta página após a p. 16 numerada). “Instead
of Legall Rights and the Lawes and Customes of this Nation, the Sectaries talk of, and plead for naturall Rights
and Liberties”.
110
Governantes, os Juízes e a Autoridade estabelecida de uma Terra?”.509 Por fim, concluiu que
“todo homem maligno que não conhece nenhuma razão de Leis e Estados nem é capaz de
Governar”.510
Essa “razão correta”, para Edwards, pode ser compreendida por meio do que
Gerhard Oestreich assinalou sobre como a razão “é chamada a criar um mundo de
autocontrole, moderação, fé piedosa e ativa, e reverência genuína para Deus. A razão é a parte
divina do homem e — ao contrário do intelecto sem alma do racionalismo posterior—, não
hostil à piedade, mas de fato intimamente ligada a ela”.511 Como se sabe, a linguagem de
Edwards partia sempre de noções religiosas, sendo importante aludir às implicações dessa
razão tão particular à época moderna. Os heterodoxos, portanto, não possuíam justamente
essas capacidades piedosas inerentes a razão correta, sendo, como se viu ao longo de
Gangraena, o alvo por definição do disciplinamento presbiteriano.
Junto a isso, o heresiógrafo também se apropriou intertextualmente de uma
passagem de Hugh Peter, a respeito das diferenças entre a Inglaterra e a Escócia, comentando,
como tratou Hughes, “que as nações tinham diferentes climas, disposições e constituições,
enquanto dentro de cada nação havia diferentes privilégios e liberdades, como a complexa
tapeçaria dos direitos de voto na Inglaterra”.512 De acordo com Hughes, esse foi um momento,
portanto, no qual “Edwards apresentou o caso parlamentar moderado” defendendo, como se
viu, “os direitos tradicionais e não os direitos naturais”513 e aquiescendo as “constituições
fundamentais do Governo feitas muitas centenas de anos antes, e os antigos limites
estabelecidos por Leis, com herança do direito do nascimento”.514 Esse ataque às leis inglesas
tradicionais foi um dos motivos que levaram Edwards a denunciar particularmente os
discursos de Overton e Lilburne como fundamentais para as tentativas heréticas de destruição
509
Ibid. sem paginação (equivalente à quarta página após a p. 16 numerada). “all principles of Justice and Right
reason, who is fittest to judge in such and such cases what is according to right reason, whether every Delinquent
and ignorant Mechanick cald in question… or the Rulers, Judges, and setled Authority of a Land?”.
510
Ibid. sem paginação (equivalente à quarta página após a p. 16 numerada). “every mean man who knows no
reason of Lawes and States nor is capable of Government”.
511
OESTREICH, G. Neostoicism and the early modern state. Cambridge: Cambridge University Press, 2008
(versão digital). p. 33. “… is called upon to create a world of self-control, moderation, pious yet active faith, and
genuine reverence for God. Reason is the divine part of man and - unlike the soulless intellect of later
rationalism - not inimical to piety, but in fact intimately linked to it”.
512
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 366. “that nations had different climates, dispositions, and constitutions, while
within every nation there were different privileges and freedoms, such as the complex tapestry of rights to vote
in England”.
513
Ibid. pp. 365-66. “Thus Edwards presented the moderate parliamentarian case; traditional rights not natural
rights”.
514
EDWARDS, T. Gangraena, III. sem paginação (equivalente à sétima página após a p. 16 numerada).
“fundamentall constitutions of Government made many hundred yeers before, and ancient bounds set by Lawes,
with birth-right inheritance”.
111
do reino. O heresiógrafo comentou, mais a frente naquele volume da obra: “como eu acredito
nem Papistas, nem homens Ingleses nunca fizeram [tais críticas equivocadas] antes deles”.515
Partindo dos apontamentos de Quentin Skinner a respeito dos líderes huguenotes
franceses, é possível refletir sobre como os indivíduos e grupos relacionados ao cristianismo
radical “recorreram às duas tradições do constitucionalismo radical, a dos escolásticos e a do
direito romano”,516 tendo rompido “com a tendência — tipicamente protestante — a entender
que Deus coloca todos os homens na condição de sujeição política para que possam expiar
seus pecados517. Nesse sentido, tais sujeitos passaram a argumentar “que a condição original e
fundamental de um povo tem de ser de liberdade natural. Isso, por sua vez, permitiu-lhes
abandonar a ortodoxia paulina, expressa na tese segundo a qual todas as autoridades
constituídas devem ser consideradas como sendo diretamente ordenadas por Deus”.518 No
limite, essa percepção levou a ideia de “toda sociedade política legítima deve originar-se de
um ato de livre consentimento por parte do povo inteiro”.519 Para os grupos tidos como
heterodoxos, portanto, a condição humana era de liberdade natural, sendo a submissão aos
governos civis algo posterior e não estabelecido por Deus.
Esses grupos tinham, pois, uma percepção completamente oposta àquela
defendida pelos presbiterianos ingleses durante a década de 1640. Tendo em vista essa leitura,
não era necessária uma articulação entre poderes civis e eclesiásticos para a concretização de
uma sociedade piedosa. A “razão correta” existia, portanto, por meio de um entendimento
completamente oposto ao defendido por Edwards. Essa definição tornava “aconselhável que
os direitos e privilégios soberanos originalmente detidos pelo povo como um todo sejam
exercidos por seus ‘magistrados do Reino’, eleitos para representá-lo e zelar pelos seus
interesses”520 Parece importante observar que, por meio dos excertos de Gangraena, é
possível verificar essa disputa também em um campo semântico difícil de ser traduzido.
Quando Edwards defende, por exemplo, a sua liberdade de falar livremente — a utilização do
par liberdade e ousadia, já mencionado — o heresiógrafo trabalha com a ideia de freenesse ou
freedom. Ao definir os anseios por liberdade e tolerância, exigidos por seus oponentes, a
aplicação é sempre do conceito de liberty (a liberdade de consciência, para citar um exemplo).
515
Ibid. p. 194. “as I beleeve neither Papists, nor any English men ever did before them”.
516
SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.
589.
517
Ibid. pp. 589-90.
518
Ibid. p. 590.
519
Ibid. p. 590.
520
Ibid. p. 600.
112
Nesse sentido, é também possível notar a existência de pares semânticos que opõem os grupos
que defendem os direitos naturais, a liberdade de consciência, a liberdade de pregação e a
tolerância (liberty), aos ortodoxos de Edwards, ligados à defesa dos privilégios, dos costumes
e da correta organização eclesiástica e disciplinar (freedom).
Ainda que Edwards se colocasse favorável aos direitos tradicionais— ou, como se
apontou, as “constituições fundamentais de Governo”, bem como “os antigos limites
estabelecidos por Leis, com herança do direito do nascimento” —, o heresiógrafo não eximiu
o poder monárquico de críticas, pois, como mencionado no capítulo anterior, tal apoio a
quaisquer poderes civis estava diretamente relacionado ao aceite da aliança presbiteriana e
suas definições de governo e disciplina da Igreja. Para Edwards, o Parlamento tinha um
importante papel de controle, uma vez que “Parlamentos são os limites fortes das
exorbitâncias dos Príncipes e seus Ministros; Eles têm pela constituição do Reino e das Leis,
poder mais do que suficiente para reter a tirania dos príncipes e para corrigir seus maiores
Favoritos e Oficiais de Estado”.521 Considerando essas utilidades dos parlamentares, Edwards
ainda demarcou que “deixar as pessoas perderem os Parlamentos e ficarem sem amor por eles,
e então adeus toda Liberdade, Propriedade, e escravidão virá como um homem armado”.522
Essa percepção a respeito do poder e da importância do parlamento enquanto instrumento de
controle, talvez ajude a entender as insistentes críticas produzidas por Edwards sobre as
relações entre parlamentares, independentes, sectários e o Exército de Novo Tipo (New
Model Army).
Edwards estava percebendo como o conflito entre rei e Parlamento estava em
transformação acelerada. Como Mark Kishlansky demonstrou, “a insistência do Exército
sobre a reforma parlamentar e a contínua recusa do rei em chegar a um acordo exigiram as
experiências constitucionais da Commonwealth e do Protetorado”.523 As agitações criadas
pelo exército nasceram “diretamente dos objetivos que serviram para justificar a Guerra Civil
— liberdade contra a tirania (real ou parlamentar) e da defesa das liberdades nativas — mas
isso deu uma interpretação cada vez mais radical ao que era necessário para proteger e
521
EDWARDS, T. Gangraena, III. Prefácio, sem paginação (página 12, sequencialmente). “Parliaments are the
strong Boundaries of the exorbitancies of Princes and their Ministers; they have by the constitution of the
Kingdome and the Lawes, power more then sufficient to restraine the Tyranny of Princes, and to correct their
greatest Favourits and Officers of State”.
522
Ibid. Prefácio, sem paginação (página 12, sequencialmente). “let the people once lose Parliaments and be out
of love with them, and then farewell all Liberty, Property, and slavery will come in like an armed man”.
523
KISHLANSKY, M A. Op. cit. p. 10. “the Army’s insistence upon parliamentary reform and the King’s
continued refusal to come to terms necessitated the constitutional experiments of Commonwealth and
Protectorate”.
113
salvaguardar o futuro da nação”.524 Esse processo levou a definições de contrários muito bem
demarcados em disputas por poder, como se viu no parlamento e no exército por meio do
emprego das acepções de “partido presbiteriano” ou “partido independente”. Para Kishlansky,
tais contrários foram tão eficazmente construídos que “no final da primeira Guerra Civil, o
sistema político adotou essa estrutura de oposição, que primeiro foi identificada como facção,
e os alinhamentos políticos se estabilizaram em corpos coerentes e duradouros”.525 Edwards
estava a observar a causa parlamentar unitária sendo “fragmentada em partidos políticos
opostos, com liderança, organização, ideologia e eleitorado”526 que tendiam a projetos
entendidos como inconciliáveis.
Como assinalou Hughes, “a passagem muito citada sobre o exército na Parte Um
ilumina seu julgamento geral sobre este caldeirão religioso”527 e também político que se
desenhada durante a Primeira Guerra Civil, retomando, ainda, algumas percepções
concernentes a linguagem médica da obra:
524
Ibid. p. 10. “directly from the goals that served to justify the Civil War — freedom from tyranny (royal or
parliamentary) and the defense of native liberties — but it gave an increasingly radical interpretation to what was
necessary to secure and safeguard the nation’s future”.
525
Ibid. p. 17. “by the end of the first Civil War the political system had adopted this oppositional structure,
which was first identified as faction, and political alignments had stabilized into coherent and durable bodies”.
526
Ibid. p. 17. “fragmented into opposing political parties, with leadership, organization, ideology, and
constituency”.
527
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 106. “The much-quoted passage on the army in Part One illuminates his
general judgement on this religious melting pot”.
528
Entusiasmo, naquele contexto, referia-se ao “significado original da palavra, ‘o ser possuído por um deus’,
[que] era corrente no século XVII”. CROSS, F. L.; LIVINGSTONE E. A. (eds.). Op. cit. p. 460. “The original
meaning of the word, the 'being possessed by a god', was current in the 17th cent”.
529
Familistas eram os membros de uma seita chamada “Family of Love”. Eles “propagaram uma vaga filantropia
de nuances do panteísmo e tendências antinomianas. Embora fundados na Holanda, seu principal campo de
atividade foi na Grã-Bretanha”. Ibid. p. 502. “propagated a vague philanthropism of pantheism hue and
antinomian tendencies. Though founded in Holland, their main field of activity was in Britain”.
530
EDWARDS, T. Gangraena, I. pp. 16-17. “yet of that Army, cal’d by the sectaries, Independent, and of that
part of it which truly is so, I do not thinke there are 50 pure Independents… sometimes meeting in the same
persons, strange monsters, having their heads of Enthusiasme, their bodies of Antinomianisme, their thighs of
Familisme, their leggs and feet of Anabaptisme, their hands of Arminianisme, and Libertinisme, as the great vein
going thorow the whole; in one word, the great Religion of that sort of men in the Army, is liberty of conscience,
and liberty of preaching”.
114
O exército, portanto, aparecia na leitura de Edwards como uma das muitas partes
contaminadas do corpo político-social inglês. Tais discursos malditos quando colocados em
um mesmo espaço, produziriam esse monstro de várias partes, certamente indefinido pelo
autor. Excertos como esse, vale notar, ajudam a entender as imprecisões de Gangraena
enquanto obra do gênero heresiológico, pois, a questão para Edwards, como se percebe, era
aquela liberdade de consciência e de pregação (liberty) que assumia diversas formas e se
espalhava por todos os lugares inadvertidamente. Voltando ao tópico principal, parece
evidente o problema que se colocava ao heresiógrafo que, por um lado, via com clareza a
importância do Parlamento enquanto braço secular capaz de auxiliar no controle social, ao
passo que também notava o apoio desse mesmo Parlamento a um exército evidentemente
herético. Sabe-se, porém, o final dessa história, com a invasão da cidade de Londres pelo
Exército de Novo Tipo (New Model Army) em 1647, a fuga de Edwards para Amsterdã e a
queda nas campanhas presbiterianas do período e nas tão sonhadas reformas no Governo da
Igreja. Ao analisar a relação que Edwards estabelecia com esses poderes, vêem-se colocadas,
mais uma vez, questões que podem ser explicadas por meio das categorias de
confessionalização e disciplinamento sem, porém, partirem necessariamente da autoridade
civil.
Além disso, esses corpos monstruosos também tinham muito a dizer em relação a
um problema de autoridade eclesiástica que estava colocado ao presbiteriano. Como afirmou
Pocock, entusiastas e antinomianos não viam o disciplinamento magisterial com bons olhos,
por conta de sua interpretação de que tudo lhes seria concedido por iluminação divina, sendo
que quando Deus “tomava posse de um indivíduo ou congregação, podia tornar-se a luz sob a
qual eles liam a Palavra e a interpretavam”.531 Dessa maneira, ainda que o ministro e o
magistrado pudessem “reivindicar autoridade sobre a pregação da Palavra”,532 eles não o
poderiam fazer “sobre os movimentos do Espírito”.533 Por esse motivo, congregações
antinomianas e entusiastas, “clamando comungar através do Espírito”, repudiaram “a
autoridade ministerial ou magisterial sobre ele”.534 Eram as congregações que deveriam
“decidir agora o que o Espírito a autoriza a fazer com relação a essa autoridade e seu
531
POCOCK, J. G. A. Op. cit., 2003. p. 406.
532
Ibid. p. 406.
533
Ibid. p. 406.
534
Ibid. p. 406.
115
imperium”.535 Parece evidente, portanto, os perigos representados pela junção de um poder
armado a um poder legislativo que tivessem essas interpretações separatistas como princípio.
Vale observar que essa problemática do exército veio a ocupar mais espaço,
porém, somente na terceira parte de Gangraena, publicada em dezembro de 1646 justamente
em meio às hostilidades contra o Exército de Novo Tipo (New Model Army) e as fortes
campanhas presbiterianas em Londres. Como comenta Hughes, foi nessa altura do texto que
“Edwards enfatizou as relações íntimas entre os radicais da cidade e os sectários do exército e
sua hostilidade mútua para com o Presbiterianismo da cidade, entrelaçando histórias de
figuras de Londres” — como o caso da Sra. Attaway abordado anteriormente — “com as
faltas de pregadores do exército”.536 De acordo com Hughes, por exemplo, Edwards “acusou
Jeremias Burroughs de pregar para o exército e contra a cidade”537 e se referiu a Overton e
Lilburne como “ótimos Patronos, seja no exército ou fora do exército”.538
Segundo Edwards, o exército, sempre protegido pelo Parlamento, perseguia
sujeitos presbiterianos e proibia a leitura de suas obras: “Foi-me dito também de boas mãos,
que meus livros são tão odiados entre os Sectários no Exército, que nenhum Comandante nem
Oficiais se atrevem a serem conhecidos por tê-los ou por lê-los”.539 Além disso, “alguns
Presbiterianos (cujos nomes eu devo esconder) obtendo os livros, se viram forçados a lê-los
escondidos a noite em suas camas, quando tiveram certeza de que ninguém poderia espalhar
histórias sobre eles”.540 O autor conclui dizendo que “Os Presbiterianos e os Ortodoxos
ficaram felizes em lidar com meus livros no exército, como os Protestantes estão felizes em
fazer com Bíblias, os trabalhos de Mr. Perkins, etc. em Países, como a Espanha, onde a
Inquisição está em vigor”.541 Edwards buscava o apoio do parlamento para combater
procedimentos como esse que se aproximavam de lugares onde a gangrena já estava
irremediavelmente espalhada.
535
Ibid. p. 406.
536
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 362. “Edwards emphasized the close relationships between city radicals and
army sectaries, and their mutual hostility to city Presbyterianism, interweaving stories of London figures …with
the misdeeds of army preachers”.
537
Ibid. p. 362. “accused Jeremiah Burroughs of preaching for the army and against the city”.
538
EDWARDS, T. Gangraena, III. sem paginação. apud HUGHES, A. Op. cit. p. 362. “great Patrons, whether
in the Army or out of the Army”.
539
Ibid. p. 106. “I have been told also from good hands, that my books are so hated among the Sectaries in the
Army, that no Commanders nor Officers dare be knowne to have them, or to read them”.
540
Ibid. p. 106. “some Presbyterians (whose names I shall conceale) getting the books, have been forced to read
them by stealth in the night in their beds, when they have been sure none should carry tales of them”.
541
Ibid. p. 106. “The Presbyterians and Orthodox have been glad to deale with my books in the Army, as the
Protestants are glad to doe with Bibles, Mr. Perkins Works, &c. in Countries, as Spain, where the Inquisition is
in force”.
116
A menção a Inquisição espanhola não era mero acaso. Representava uma tentativa
de Edwards em aproximar os heterodoxos de seu entorno a uma instituição detestada em
terras protestantes por sua ligação ao catolicismo e perseguição aos verdadeiros cristãos.
Além disso, é sempre interessante notar como Edwards colocava seus oponentes em lugares
de poder muito mais amplos do que àqueles que esses sujeitos de fato estiveram. Esse foi o
caso, por exemplo, do modo pelo qual foi descrita a presença dos independentes na
Assembleia de Westminster, muito mais modesta do que Edwards deixava parecer ou, nesse
caso, os mecanismos de controle dos grupos heterodoxos comparados aos da Inquisição. A
definição, é claro, sempre partia da ortodoxia para a heterodoxia, sendo que todas as
liberdades (freedom) de dizer e agir precisavam ser garantidas para uns (presbiterianos) e
controladas para os demais.
A despeito das diversas abordagens concernentes à confessionalização e ao
disciplinamento social que entendiam o poder civil como ordenador de tais processos
confessionais, casos específicos, como Gangraena e as inúmeras relações confessionais que
se criaram naquela década inglesa, denotam a possibilidade de compreender o movimento
também inversamente. Ao trabalhar com as origens dos termos confissão e confessor, Rui
Luis Rodrigues assinala para o fato de que esses processos surgiram, muitas vezes, não apenas
como um mecanismo utilizado por grupos religiosos com “finalidades catequéticas, polêmicas
ou de padronização, seja pelo poder secular (nos casos em que a atitude confessional se
desenvolveu sob a proteção dos príncipes), mas de disposição que encontrou ressonância entre
os indivíduos que integravam esses grupos confessionais”, pois “as confissões correspondiam
também aos anseios dos adeptos” num movimento de circularidade.542
Thomas Edwards fazia parte de um grupo religioso que tinha objetivos
específicos. Cabe observar, porém, como os estudos a respeito do presbiterianismo popular
inglês — em especial àqueles relacionados às campanhas presbiterianas na cidade de Londres
— tão amplamente trabalhados por Ann Hughes543 indicam os modos de agir desse grupo,
sempre em busca da adesão dos fiéis e lutando para se estabelecer como a ortodoxia, de fato,
aos olhos da autoridade civil em um espaço tomado por não-conformistas. O caso inglês é
emblemático para se compreender essa circularidade dos movimentos confessionais e como
os anseios por confessionalizar e disciplinar advinham tanto do poder civil (nesse sentido, a
542
RODRIGUES, R. L., 2012. pp. 383-84.
543
Ver, por exemplo, o já mencionado: HUGHES, A. “Popular” presbyterianism in the 1640s and 1650s: the
cases of Thomas Edwards and Thomas Hall. In: TYACKE, N. (ed.). England’s long reformation, 1500–1800.
London: University College London (UCL): 1998. pp. 235–59.
117
Assembleia de Westminster convocada pelo Parlamento tem muito a dizer), como de poderes
eclesiásticos estabelecidos e mesmo não-conformistas.
Tentou-se aqui realizar um exercício de análise que pudesse pensar essas questões
tão largamente estudadas em outros espaços para um caso inglês mais circunscrito. O recorte
a partir de uma única obra produzida durante a década de 1640 é, naturalmente, limitado, no
entanto, podem-se abrir caminhos para estudos ampliados que pensem as ações presbiterianas
como um todo, e não apenas os escritos de Edwards, a partir de um viés disciplinador ligado à
confessionalização e ao disciplinamento. É inegável, porém, o vislumbre poderoso que
Gangraena proporciona a esse respeito, por meio das palavras, conversações e ações que
gangrenavam e amaldiçoavam o território inglês. O período no qual Gangraena se inscreveu
faz, sem dúvida, ecoar o que Oestreich diria (a respeito do século XVI, no caso) sobre os
momentos em que “confissões conflitantes procuravam determinar a forma da sociedade”.544
A década de 1640 poderia, sem dúvida, ser definida dessa maneira.
Pocock comentaria, inclusive que a primeira Guerra Civil Inglesa foi “em grande
parte uma guerra religiosa” e “uma consequência da Reforma Inglesa”.545 Esse caráter de
guerra religiosa se iniciou porque “a atuação de William Laud e dos bispos partidários de suas
convicções convenceu alguns ingleses de que os padres estavam, mais uma vez, querendo
legislar para a Igreja segundo diretrizes não consoantes com a supremacia da Palavra”, ao
passo que também “sustentavam uma visão de sua própria autoridade não consoante com a
supremacia judicial do rei como chefe da Igreja e Príncipe Devoto”.546 Os primórdios das
ações presbiterianas na década de 1640 remontam, justamente, a essas questões. Nesse
sentido, a proposta de Edwards para a articulação de poderes civis e eclesiásticos rumo a um
governo e uma disciplina da igreja com viés presbiteriano, parecia a solução para a superação
de um modelo episcopal anterior, marcado por influências papistas e distante do cristianismo
dos primórdios tão almejado. Tal modelo era também plausível como por ser o único capaz de
conter projetos mais radicais e que poderiam colocar em risco os ordenamentos existentes. A
convocação para uma ação reformista e disciplinadora presbiteriana, como tudo nos escritos
de Edwards, soava, pois, com a urgência de alguém que se colocava a frente desse processo,
sempre disposto a determinar qual era o projeto mais adequado para a sociedade inglesa
daquele período.
544
OESTREICH, G. Op. cit., 2008. p. 17. “…conflicting confessions were seeking to determine the shape of
society”.
545
POCOCK, J. G. A. Op. cit., 2003. p. 407.
546
Ibid. p. 409.
118
Considerações Finais
Como ler textos do Antigo Regime que pressupõem outros
conceitos de tempo histórico, poder, pessoa, autoria, texto e
público? Por vezes, ainda, e é o caso da nossa condição
contemporânea, o intervalo não pressupõe a continuidade
temporal, mas o descontínuo que estabelece outras
modalidades de sujeito, outras concepções de realidade, outras
definições de linguagem, outros sentidos para o tempo.
João Adolfo Hansen547
547
HANSEN, J. A. “O leitor entre as armadilhas do texto e da escola”. 16º Congresso de Leitura do Brasil
(anais). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 05.
548
HUGHES, A. Op. cit., 2004. p. 421. “from the later seventeenth to the twenty-first centuries, Edwards’s
Gangraena has been absorbed most enthusiastically by readers he would have denounced as erroneous, from
Restoration Anglicans to modern radical historians”.
549
Ibid. p. 422 “in the massive libraries of Edwards’s clerical contemporaries”.
550
Ibid. p. 423. “defenders of an Anglican Church”.
551
Ibid. p. 424. “ vividly demonstrated the dangers of religious liberty, and was used to show that Presbyterian
opposition to crown and episcopacy had spawned anarchy, rather than, as Edwards had argued, providing a
crucial hedge against heresy and schism”.
119
Posteriormente, entre os séculos XVIII e XIX, seria consagrada a já menciona
leitura de Gangraena como uma obra estruturalmente confusa e produzida por um autor
intolerante. De acordo com Hughes, “nos dois séculos que se seguiram à sua publicação,
Gangraena foi gradualmente transmutada em uma fonte histórica, cujo conteúdo tinha uma
validade não totalmente comprometida pela aversão causada por seu autor”.552 A obra foi aos
poucos se tornando “uma fonte central sobre o radicalismo religioso, enquanto seu autor foi
denunciado”.553 Os “registros de bibliotecas e catálogos de bibliotecas”,554 levantados por
Hughes, “revelam a disponibilidade contínua de Gangraena”555 ao longo do século XIX.
Como já mencionado, a heresiografia de Edwards chegaria ao século XX, sendo lida como
uma documentação imprescindível para os estudos sobre a efervescência religiosa na década
de 1640. Ter isso em consideração é importante para abalizar a ideia de que a ausência de
edições posteriores a 1646 significaria um apagamento dos escritos de Edwards ao longo do
tempo. Com as radicais alterações políticas que ocorreram nas décadas de 1650 e 1660,
gangraena, evidentemente, deixou de ser central aos indivíduos presbiterianos, mas não foi
plenamente esquecida.
Como se tentou demonstrar ao longo desta dissertação, um dos objetivos de
Edwards era o de implicar os independentes em heterodoxias mais graves, aproximando
grupos e indivíduos que, muitas vezes, estiveram completamente distanciados. Ao longo da
década de 1650, porém, “muitos independentes respeitáveis se aproximaram dos
presbiterianos, uma vez que as batalhas pelo governo da igreja foram conquistadas e perdidas,
e todos os ministros instruídos e ordenados enfrentaram ataques provocativos”556 das mais
diversas frentes. Nesse cenário, Edwards não era alguém “a ser rememorado com entusiasmo
e sua criação literária mais famosa não era uma autoridade óbvia”,557 como seriam as obras de
Pagitt, Saltmarsh ou mesmo John Goodwin. Em um momento no qual os “presbiterianos
perderam qualquer esperança de retornar a uma igreja nacional e buscaram cada vez mais a
liberdade religiosa para suas próprias congregações, não é surpreendente que eles se
552
Ibid. p. 429. “In the two centuries following its publication, Gangraena was gradually transmuted into a
historical source, whose content had a validity not wholly compromised by distaste for its author”.
553
Ibid. p. 429. “a central source for religious radicalism while its author was denounced”.
554
Ibid. p. 430. “booksellers’ records and library catalogues”.
555
Ibid. p. 430. “reveal the continuing availability of Gangraena”.
556
Ibid. p. 421. “many respectable Independents drew closer to Presbyterians, once the battles over church
government were won and lost, and all educated, ordained ministers faced provocative assault”.
557
Ibid. pp. 421-22. “to be memorialized with enthusiasm and his most famous literary creation was not an
obvious authority”.
120
tornassem cada vez mais céticos sobre Gangraena”.558 Em 1658, os independentes
(congregacionalistas) ingleses dentre eles — Philip Nye, William Bridge e Thomas Goodwin
—, redigiram a sua Declaração de Savoy que, a despeito da demanda por autonomia
eclesiástica local, foi vista como uma continuidade da Confissão de Fé de Westminster,
enviada ao parlamento para aprovação em 1646 no contexto daquela, já tão menciona,
Assembleia primordialmente presbiteriana. As animosidades de Gangraena não tinham mais
o mesmo lugar de ser.
É importante ter em vista, portanto, que “o presbiterismo inglês operava dentro de
um quadro social, político, eclesiológico, cronológico e geográfico mais amplo do que muitos
relatos tradicionais permitiram [ver]”.559 Como apontou Polly Ha, ele poderia ser, inclusive,
popular e “atrair diversos eleitores com diferentes interesses”.560 Em inúmeras ocasiões, os
presbiterianismos formaram “alianças com muitos partidos, mesmo que esses partidos nem
sempre concordassem”,561 sendo importante, para a autora, “recuperar uma extensa rede de
relacionamentos e tecer uma narrativa alternativa dos diversos mundos que eles
habitavam”.562 Esse não é, obviamente, o presbiterianismo que Thomas Edwards estava
interessado em defender e que via como a única opção para a salvação daquela sociedade
inglesa onde as heresias se espalhavam como gangrena. É preciso sempre reconhecer que ler
Gangraena é acessar um recorte intertextual e circunscrito de uma realidade presbiteriana e
não o movimento ou o processo como um todo. Edwards descontextualizava e
recontextualizava, inclusive, os seus aliados presbiterianos, a fim de responder aos seus
interlocutores e produzir uma solução aos problemas daquele tempo.
Não é tarefa fácil refletir sobre a função desse autor-leitor que era Edwards e
sobre o impacto de sua obra, que, como tantos textos seiscentistas, “estabelece outras
modalidades de sujeito, outras concepções de realidade, outras definições de linguagem,
outros sentidos para o tempo”.563 Para tanto, foi necessário se apropriar de diversas
abordagens metodológicas, tais como a História do Livro e da Leitura, as problemáticas
religiosas, retóricas e conceituais da época moderna, a intertextualidade, a confessionalização
558
Ibid. p. 425. “Presbyterians lost any hope of returning to a national church and increasingly sought religious
liberty for their own congregations, it is not surprising that they became increasingly sceptical about
Gangraena”.
559
HA, P. Op. cit. p. 187. “English presbyterianism operated within a broader social, political, ecclesiological,
chronological, and geographical framework than many traditional accounts have allowed”.
560
Ibid. p. 187. “appeal to diverse constituents with varying interests”.
561
Ibid. p. 187. “alliances with many parties even if those parties did not always agree”.
562
Ibid. p. 187. “recover an extensive web of relationships and to weave an alternative narrative out of the
diverse worlds that they inhabited”.
563
HANSEN, J. A. Op. cit., 2007. p. 05.
121
e o disciplinamento. E poderiam ser outras tantas abordagens. Tais mecanismos analíticos, no
entanto, foram úteis para a compreensão daquelas polêmicas político-religiosas tão
intrinsecamente relacionadas à publicação de Gangraena. Competiu, sobretudo, trabalhar com
tais análises no limite das relações entre autor-leitor, tendo em vista os diálogos e intertextos
existentes que poderiam indicar o trânsito entre esses dois lugares que parecem tão distintos,
mas que se misturam a todo o momento no texto de Edwards.
Como apontou Certeau, os “leitores são viajantes, eles se movem por meio de
terras pertencentes a outra pessoa, como nômades abrindo furtivamente seu caminho através
de campos sob os quais não escreveram, despojando a riqueza do Egito para se
divertirem”.564A escrita, por sua vez “acumula, estoca, resiste ao tempo a partir do
estabelecimento de um lugar e multiplica sua produção através do expansionismo da
reprodução”.565 No limite, se movendo como leitor e estocando como autor, Thomas Edwards
faz ecoar essas ideias, sua obra transita entre um tipo de autoria muito distinta das noções
contemporâneas de autor566 para níveis de leitura que buscam referências em diversos tempos
históricos a fim de responder as angústias do presente, sempre no intuito de expor um projeto
de disciplina que não poderia ser ignorado. Era um exercício de autor-leitor, sendo que essas
leituras foram reproduzidas, criticadas e desconstruídas para, por fim, produzirem escritos que
intencionam ser antigos (em exemplo), contudo, não deixam de ser também novos.
Esperou-se, ao longo dessa dissertação, apresentar um pouco dos embates que
compunham Gangraena, percebendo como ela foi capaz de congregar diversas questões de
seu tempo, em meio a uma tradição escrita heresiográfica, retórica e intertextualidade. A
partir do esboço dessa organização textual, foi possível perceber como o movimento
presbiteriano era construído enquanto uma unidade por Edwards e como, ao defender pontos
muito específicos relacionados a uma doutrina calvinista e presbiteriana sobre governo e
disciplina da igreja, o heresiógrafo acabava por colocar seus aliados em meio a problemáticas
mais amplas que perpassaram diversos grupos confessionais do século XVII, interessados em
disciplinar a partir de sua fé verdadeira. O discurso de Edwards rapidamente convocava para a
ação, corroborando a ideia de Skinner de que essas coisas não andam separadas como muitas
564
CERTEAU, M. L’invention du quotidien, vol. 1. Paris: Gallimard, 1990. p. 174 apud CHARTIER, R. Op.
cit., 1994. p. 01. “readers are travellers; they move across lands belonging to someone else, like nomads
poaching their way across fields they did not write, despoiling the wealth of Egypt to enjoy it themselves”.
565
Ibid. p. 174.“accumulates, stocks up, resists time by the establishment of a place and multiplies its production
through the expansionism of reproduction”.
566
Ver: FOUCAULT, M. O que é um Autor? In: _____. Ditos e Escritos: Estética – literatura e pintura, música
e cinema (vol. III). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. pp. 264-298.
122
vezes se supõe. Ao questionar, com liberdade e ousadia, e convocar seus aliados, seus
magistrados e o povo a combater as heterodoxias, Edwards fazia de Gangraena uma
ferramenta de disciplinamento e de confessionalização que não necessitava partir de um poder
civil centralizado.
Por fim, pareceu importante demonstrar como a construção de uma ortodoxia
presbiteriana em Gangraena só poderia existir por meio de oposições que colocavam
Edwards e seus aliados em embate direto com sujeitos muito diversos, mas que foram, sempre
que possível, transformados em um inimigo em comum pelo heresiógrafo. Justamente por
conta dessas contrariedades estabelecidas nos escritos de Edwards, é que o uso de sua obra
como uma fonte sobre comportamentos heréticos foi tão questionado pela historiografia.
Tentou-se aqui mostrar, como essa heresiografia dizia muito mais sobre os preceitos
ortodoxos e os projetos de seu autor do que propriamente sobre aquilo que faziam ou não os
seus muitos oponentes. Gangraena era um catálogo de erros e heresias, era heresiografia, era
polêmica, era defesa de uma confissão, era uma ferramenta disciplinar. Era tantas coisas
quanto a urgência da escrita de seu autor desejava que fosse. Tentar defini-la por uma
categoria única será sempre um trabalho tão impossível quanto desnecessário. Cabe aceitá-la
em suas imprecisões e naquilo que ela, de fato, tem a fornecer: todo um universo de
circulação de ideias ortodoxas e heterodoxas e um projeto presbiteriano que se supunha capaz
de colocar um fim definitivo aos males que se alastravam rapidamente pela Inglaterra do
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