Rei Afogado - L.F. Bomfa

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 239

REI AFOGADO

Copyright ® 2021 by L. F. Bomfá


Todos os direitos reservados ao autor.

Preparação e revisão
Tatiane Machado

Capa
Cherie Fox

Diagramação e projeto gráfico


L. F. Bomfá

Esta é uma obra de ficção. Nomes,pessoas, fatos ou situações foram criados pelo autor.
Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

Bomfá, L. F.
Rei afogado

Belo Horizonte: Amazon, 2020


Livro digital
1.Ficção nacional. 2.Suspense. Título

Nesta edição respeitou-se o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor desde 1
de janeiro de 2009.
Epígrafe

“O xadrez é uma guerra pelo tabuleiro. O objetivo é


esmagar a mente do oponente.”
Bobby Fischer

“Olhe, veja bem, aqui é preciso correr o máximo que você


conseguir, se quiser ficar onde está. Para ir a outro
lugar, tem de correr pelo menos duas vezes mais
depressa que isso.” — Rainha vermelha
Alice através do Espelho – Lewis Carroll
Pré-jogo
Janeiro de 2022
Alice está morta.
Essa frase ecoava nos pensamentos de Ana Laura como
uma bala ricocheteando por sua cabeça.
O funeral já havia terminado, mas ela se recusava a voltar
para casa. Ana agora estava sentada na grama, sujando suas
calças jeans e seu moletom preto, as mãos ainda trêmulas
traziam seus joelhos para perto do peito. Seu cabelo, antes
brilhante e dourado, estava úmido e oleoso, refletindo os
efeitos daquele dia horrível.
Naquela hora da tarde, as lágrimas também já haviam se
esgotado.
Tudo que Ana Laura conseguia fazer era olhar para a
lápide. Ela teve que reconhecer o corpo, organizar o velório e
escolher o epitáfio sozinha. Afinal, não restara ninguém mais
para ajudar.

“ALICE MACHADO
1993 - 2022
FILHA EXEMPLAR, IRMÃ AMOROSA.”

E agora ela estava ali, sozinha, sentada na grama,


tentando verter lágrimas que seu corpo não era mais capaz de
produzir.
Muita gente apareceu na cerimônia, muito mais do que
Ana Laura estava acostumada a lidar. Gente da mídia, curiosos
e fãs — muitos, muitos fãs. A maioria deles — adolescentes e
pré-adolescentes — aparecia, chorava e deixava algum tipo de
tributo no chão: flores, jogos de videogames, discos, joysticks e
pelúcias de desenhos japoneses que pareciam familiares,
embora Ana Laura não fosse capaz nomeá-los.
Em relação à pouca família que restava, um ou outro
parente do interior de São Paulo havia aparecido para prestar
suas condolências. Ana havia ficado feliz por ninguém pedir
para se hospedar em sua casa — ela realmente não iria
conseguir receber ninguém nem “fazer sala” naquele estado.
Um por um, os parentes a abraçaram, trocaram poucas
palavras e voltaram para suas cidades.
Você tem certeza de que vai ficar bem, Laurinha? —
perguntou um tio preocupado. — Sua casa é enorme para uma
garota ficar sozinha. Vocês foram sempre tão unidas... Se você
quiser, pode ficar com a gente por alguns dias, tenho certeza
que...
Tá tudo bem, tio. Mesmo. Eu preciso ficar um tempo aqui,
mas agradeço pelo convite. Eu te ligo no final do dia, ok?
Além dos parentes, alguns policiais apareceram ali para
prestar suas condolências. Ana Laura conheceu mais policiais
em sete dias do que jamais conhecera em toda sua vida.
Você devia ter me matado, ela pensou.
Da família de seu cunhado, quase ninguém apareceu.
Não aconteceu um funeral para ele, pelo menos não ainda já
que Felipe se encontrava apenas desaparecido.
E Ana Laura suspeitava da verdade. Mesmo que ninguém
concordasse com ela.
Ela não tinha muitos amigos. Fazer amigos era uma das
especialidades da Alice: sempre sorridente e aberta, rodeada
de pessoas implorando por um pouco de sua atenção.
Aquele era a coisa da Alice. Não a dela — a coisa dela
era ficar sozinha, jogar xadrez e interagir com um ou outro
amigo da irmã.
Ana Laura, que prezava tanto pela própria independência,
estava, finalmente, sozinha.
Mesmo no meio de tanta dor, conseguiu discernir um som
vindo de trás dela.
Ana pensou ter ouvido passos. Ela olhou para trás e viu,
com a visão ainda turva de lágrimas, sua única companheira.
Era uma garota, mais ou menos da idade dela, negra, o
rosto escondido atrás de uma torrente de lágrimas, o cabelo
cacheado encoberto por um boné azul.
Ártemis... Isso deve ser tão ruim pra você quanto é pra
mim.
Ela considerou em acenar, mas seus músculos estavam
tão exaustos daquele dia horrível que ela mal conseguiu mexê-
los. Ainda assim, Ana sentiu que a outra garota a viu — após
alguns segundos a encarando, Ártemis deu as costas e saiu.
A garota não estava mais lá.
Ana Laura sentia que ela mesma também não estava.
Tudo que se concentrava ali era um poço de raiva e dor.
A irmã tinha ido para aquele hotel por ideia dela. Ela
queria que Alice descansasse um pouco com o seu namorado
e fizesse uma viagem para um hotel remoto que Ana tinha
sugerido... E então Alice nunca mais voltou.
Isso tudo é culpa minha, ela pensou.
— Vou encontrar o homem que te matou, minha irmã.
Custe o que custar ela disse para si mesma, antes de dar as
costas para o cemitério e voltar para casa.
I - A Fase dos Peões ♙
Onde as defesas primárias são armadas e derrubadas.
Brancas 1: Crush
Setembro de 2021
O Homem Sem Rosto ligou seu computador.
Vermelhas 1:Reaproximação
Fevereiro de 2022
Os dias seguintes ao enterro de sua irmã passaram como
um borrão. No início, as ligações eram frequentes, mas dia
após dia foram diminuindo, até que simplesmente pararam de
acontecer. Em parte, porque Ana Laura não se sentia disposta
a conversar, as manifestações de carinho pareciam vazias;
nada fazia sentido naquela casa imensa e solitária. Ela
respondia quando questionada e assim que possível voltava
ao silêncio, que parecia a oprimir como uma pedra sobre o seu
peito.
Não podia e não queria pensar nisso. Por que se
pensasse, teria que pensar em Alice. O que fizeram com Alice.
O que ela deixou acontecer.
Era tudo sua culpa, tudo. Ana Laura desabou em
lágrimas, se encolhendo em posição fetal no chão da sala.
Desde o ocorrido, ela não conseguia dormir em seu quarto.
Não sem a voz da Alice, rindo, gritando e gravando no quarto
ao lado. A voz que nunca mais iria ouvir, os risos que
desconfiava que nunca mais teriam morada naquele local.
Da sua posição no chão, viu o rosto alegre de sua irmã
surgindo de um pequeno livro.
Ela se esticou e pegou o álbum de fotos.
Sentou-se no sofá.
Na página que havia se destacado, Alice sorria com os
amigos em frente a um Nintendo 64. Ana, ao seu lado, se
esforçava para parecer bem, apesar dos joelhos ralados.
As lembranças a atingiram como um soco.
Ana Laura encarava um alto e grosso tronco de laranjeira,
com lágrimas nos olhos e os joelhos machucados.
Ela não se lembrava de quantos anos tinha. Dez? Doze?
Tudo o que sabia é que havia um gato na árvore, e ela
precisava chegar até lá.
Aninha! — gritou Alice, sempre impaciente. — A gente tá
te esperando pra voltar a jogar! O videogame tá ligado já tem
um tempo e a gente precisade quatro pra...
Ela não deu atenção. Sabia que sua mãe estava ocupada
demais para ajudá-la, e seu pai já havia partido há muito tempo
para sua longa viagem.
Aquele gato tinha um dono e Ana ia ajudá-lo a voltar para
casa.
Ana Laura limpou as lágrimas, apoiou os pés descalços e
sujos de terra em um galho mais baixo e voltou a subir.
Com um salto, ela conseguiu agarrar o próximo galho e
subir alguns centímetros, mas logo voltou a cair, batendo as
costas no chão e sentindo o choque por todo o seu corpo.
O cheio de terra molhada inundou seus sentidos.
Olhou para cima e viu o gato miando, alheio à sua
contenda.
Ela precisava escalar. Não podia desistir.
— Aninha, por que você não entra? Aninha, por que... —
gritou a voz de Alice mais uma vez, para então desaparecer ao
terminar da memória.
Após algum tempo, a campainha tocou.
A primeira reação de Ana Laura foi saltar do sofá —
aquela campainha estava em completo silêncio há semanas,
desde o funeral.
Os seus parentes estavam certos: aquele lugar era
realmente enorme para uma garota — ou qualquer pessoa —
morar sozinha. O casarão tinha dois andares: o primeiro,
dedicado a uma sala de televisão completamente caótica, uma
sala de jantar e uma cozinha (intocada, pois Ana Laura só
pedia delivery); o segundo era composto por quatro suítes
enormes — exatamente quatro suítes a mais do que ela
precisava, já que passava os dias dormindo no sofá ou no
tapete perto da sala.
Sua claustrofobia havia piorado muito desde o
falecimento de Alice, por isso ela mal conseguia passar meia
hora no seu próprio quarto. Felizmente, o sofá ficava no maior
cômodo da casa — e era surpreendentemente confortável,
quando nenhuma outra opção parecia melhor.
Não tinham sido dias fáceis. Ana se levantou com certa
dificuldade. Ela costumava ser atlética, ou pelo menos algo
perto disso, antes do mundo desabar sobre sua cabeça.
Estava vestida com uma camiseta preta de banda de rock —
provavelmente pertencente a Alice — e calças de moletom, o
longo cabelo loiro solto e completamente desgrenhado.
No caminho até a porta, foi obrigada a olhar para as fotos
na mesa de jantar. As duas garotas loiras no colo dos pais, as
duas adolescentes jogando tênis com a mãe, as duas irmãs
sozinhas na formatura de Ana Laura em Tecnologia da
Informação.
Ela não tinha forças para tirar os retratos dali.
Lentamente, ela virou a tetra chave e abriu a larga porta de
madeira.
Do outro lado, estava a jovem de cabelos cacheados que
ela vira no cemitério.
Sem o boné, Ana Laura podia ver que seus cabelos
estavam pintados de rosa choque e seu senso estético, com
tênis All Star clássico, bolsa cheia de bottons e camisa de
cores pastel, era completamente alienígena para Ana Laura.
Oi, Ártemis — cumprimentou Ana — Faz tanto tempo
que...
Ártemis Braga. Ártemis, a irmã do namorado de Alice. Do
namorado provavelmente morto de sua irmã morta.
Sem dizer palavra alguma, a garota abraçou Ana Laura e
começou a chorar em seu ombro. Seu queixo tremia no ombro
de Ana, enquanto ela soluçava baixinho em seu ouvido.
Aninha — disse Ártemis finalmente —, eu preciso da sua
ajuda.
Entra — respondeu Ana, abrindo mais a porta. — Vamos
conversar.
Nossa, esse café tá horrível! — exclamou Ártemis,
quebrando o silêncio. Ela limpou as lágrimas enquanto se
servia de mais uma xícara.
Você sempre teve o paladar infantil, né? Tive que colocar
mais açúcar que café — respondeu Ana Laura, achando graça
pela primeira vez em muitos dias.
Idiota — retrucou Ártemis, sorrindo em meio aos soluços.
Então... — começou Ana, ansiosa para ir direto ao ponto,
ao mesmo tempo em que esfregava seu cabelo com as mãos,
nervosa. — Como eu posso te ajudar, Teté?
Eu preciso da sua ajuda para inocentar o meu irmão —
Ártemis declarou, sem delongas.
Teté... Eu não acho que...
Eu não me importo, Ana Laura. Eu sei o que você pensa,
o que os jornais dizem, mas eu realmente não me importo. Eu
garanto a você, o Felipe não matou a sua irmã!
Brancas 2: Decepção
Novembro de 2021
O Homem sem Rosto voltou para o seu pequeno
apartamento segurando um envelope pardo.
Morava em um cubículo, com uma pequena cozinha e
somente um quarto, o único tipo de apartamento que dava para
alugar no centro daquela metrópole.
Ainda assim, era seu lar — ou o mais perto disso que ele
poderia chegar.
Ele abriu o envelope pardo e tirou duas folhas de papel
brilhante de dentro. Eram fotografias, em tamanho de pôster, de
uma jovem mulher loira e de olhos verdes, sorrindo e
segurando um troféu de um milhão de inscritos no canal do
YouTube.
O Homem sem Rosto se inclinou para a foto, beijou os
lábios impressos e sorriu.
Ele se sentou, mais uma vez, em frente ao computador.
Vermelhas 2: Cena do Crime
Fevereiro de 2022
Certo, Teté, me relembra da cena do crime — pediu Ana,
respirando fundo.
As duas estavam sentadas em uma pequena mesa na
varanda, em frente a um largo e elegante tabuleiro de xadrez.
As peças eram feitas de madeira — um lado branco, o outro
vermelho.
Não sabia que eles faziam tabuleiros assim — comentou
Ártemis, se esforçando para desviar da pergunta.
O seu é especial?
Foi presente da Alice, de quando o canal dela começou a
fazer sucesso. É uma brincadeira com o nome dela: em Alice
no País das Maravilhas as peças de xadrez são vermelhas e
brancas. Era o livro preferido da minha mãe, ela sempre lia pra
gente antes de dormir. Não é à toa que a Alice se chama
Alice... chamava.
Ah, certo. É a sua cara, pra falar a verdade. Você ainda
joga? Eu acho que a última vez que eu te vi jogar foi no torneio
de...
Chega, Ártemis! — Ana a interrompeu, franzindo as
sobrancelhas. — Tá. Certo. A cena do crime. Não vai ser muito
doloroso pra você lidar com isso agora?
Ana Laura fechou os olhos por um momento,
considerando as palavras da amiga. Bem, seria, sim. Mas a
verdade é que ela já estava revisitando a cena do crime há
semanas. Era a única coisa que podia fazer, afinal de contas.
Não. Não vai. Vamos começar?
Vamos — concordou Ártemis. — Alice foi encontrada
morta em uma pousada num trecho remoto da Via Dutra. Ela
foi morta com um corte horizontal no pescoço, e morreu de...
Sufocamento e perda de sangue.
Eu sei.
Pois é. Eu sinto demais, Aninha, mesmo.
Eu também... — Ana respirou fundo e continuou o
raciocínio. — O nome da pousada era Recanto da Coroa. Era
próximo de onde a equipe do Felipe ia se reunir para o
campeonato de joguinho dele.
E-sports! — Ártemis riu um riso tímido, triste, enquanto
dava de ombros.
Era uma competição séria, nacional.
Tá, como você preferir. O local era perto de onde seria o
campeonato dele. Alice foi encontrada... morta no meio do
quarto de hotel. As únicas digitais e os fios de cabelo
encontrados na cena foram os dela e do Felipe, o que fez a
grande parte da mídia acreditar...
…que meu irmão é o culpado, já que o corpo dele nunca
foi encontrado.
O modo como Ártemis falou “corpo” fez a espinha de Ana
Laura gelar. Alice pelo menos tivera um funeral. dando a Ana e
a todos a chance de viver o luto. A família de Felipe não tivera
nem isso.
Pois é. A única coisa encontrada foi o corpo da minha
irmã... e a peça de xadrez.
Pois é... — concordou Ártemis.
Sua irmã também gostava de xadrez?
Não! Isso é o estranho, minha irmã odiava xadrez. Ela
gostava mais de jogos de reflexo e pensamento rápido, por isso
eu era a enxadrista da família.
Ainda assim, no meio da cena do crime havia uma peça
de xadrez branca Ártemis ponderou.
A moça loira fechou os olhos. A cena era vívida em sua
mente, embora ela nunca tivesse pisado naquele quarto de
hotel. Ainda assim, ela conseguia ver tudo.
Os móveis do quarto, todos encontrados exatamente
como foram deixados.
As cortinas, passadas, limpas e intocadas.
O carpete azul-escuro de lã, com sua eterna mancha
vermelho-escura.
A bolsa de Alice no chão, sua carteira, maquiagens e lata
de spray de pimenta espalhados pelo assoalho.
O corpo de sua irmã jogado no meio da sala, como uma
boneca cuja dona cansou de brincar.
E a peça de xadrez, deixada cuidadosamente no meio do
quarto, em pé. Como se fosse um cartão de visita.
Ana Laura abriu os olhos, respirou fundo, e voltou para o
presente.
Um Rei Branco, pra ser exata. É um detalhe que a mídia
parece ter ignorado, por enquanto, mas que não é um bom sinal
pro seu irmão.
Ártemis engoliu em seco.
Não? Eu pensei que o Rei Branco fosse a principal
evidência a favor dele.
Pensou? Então espera — respondeu Ana. — Você pode
me emprestar um celular? O meu não acessa a internet.
Como uma ex-programadora não tem um smartphone? —
questionou Ártemis, incrédula, enquanto tirava um celular
grande da bolsa, quase um tablet, cheio de penduricalhos e
adesivos de coração, e o entregava já desbloqueado nas mãos
de Ana. Em questão de segundos, ela devolveu o celular para
a dona, a tela mostrando uma página do Instagram.
Era o perfil @espelhodaalice.
É uma foto da Alice com o meu irmão — concluiu Ártemis,
seus olhos semicerrados olhando para Ana Laura.
Como isso o incrimina?
Olha a legenda. Diz: “O nosso ADC vai mostrar que é o
rei da Bot Lane.” Eu não tenho a menor ideia do que os termos
em inglês significam, mas tem uma palavra importante aí no
meio.
“Rei”. Tem, sim. E as palavras em inglês são...
Eu não me importo — Ana Laura a interrompeu, direta.
Ah, certo. Então, você acha que a mídia vai ligar a legenda
dessa foto à peça de xadrez?
A mídia vai. Mas a peça é um dos elementos que me
ajudou a chegar à conclusão óbvia — disse Ana Laura, dando
um longo gole em sua xícara de café. — O seu irmão com
certeza não é o assassino da Alice.
Ártemis demorou alguns segundos para reagir. Primeiro,
soltou um longo suspiro, como se tivesse acabado de terminar
uma maratona. Depois, olhou fundo nos olhos de Ana Laura,
deixando transparecer o brilho de uma lágrima querendo descer.
Ana percebeu que Ártemis se esforçava para ser forte,
mesmo em uma situação tão infernal. Ela invejou a amiga —
gostaria de ter ou apenas aparentar toda aquela força.
Você... acredita em mim? — perguntou Ártemis.
É claro que acredito, Teté! — Ana confirmou, pousando a
mão no ombro da amiga. — Sempre vou acreditar. Mas você
não vai gostar de ouvir o porquê.
Certo. Manda — pediu Ártemis.
Minha irmã foi encontrada com um corte irregular no
pescoço, certo? Horizontal, mas irregular.
Irregular. Foi o que eu ouvi.
Pois é. É o tipo de corte que se faz em uma pessoa
acordada, pelas costas, pegando-a de surpresa. Mas, se o
Felipe queria matar a minha irmã, e eles iam dormir no mesmo
quarto, por que ele não a esperou dormir? Você não acha que
seria muito mais fácil?
Bem... É, acho que eu não tinha pensado na coisa por
esse lado.
Tem mais. O corte, pela irregularidade e a inclinação, foi
feito por trás, certo? Esse é o problema: eu conhecia a Alice
melhor do que ninguém. Embora ela continuasse com sua
imagem de garota fofa na internet, na vida real ela andava
extremamente paranoica.
Paranoica? Como assim?
O canal do YouTube cresceu muito rápido e ela era uma
garota jovem e bonita, então começou a receber todo tipo de
cantada de homens solitários na internet, e até algumas
ameaças.
Meu Deus! Que péssimo. Ossos do ofício, né?
Sim, mas a Alice não estava preparada pra isso. A
quantidade de ataques na internet deixou minha irmã
completamente perturbada. Ela trocou todos os canais de
interação do perfil por chatbots: inteligências artificiais
programadas para responder automaticamente, simulando
como ela responderia. Ela nunca saía desacompanhada e
tinha comprado um monte de apetrechos de defesa pessoal:
spray de pimenta, armas de eletrochoque, botões de alarme
portáteis, até uma ou outra pistola de balas de borracha. Ela
desconfiava de tudo e de todos, até do próprio namorado.
Pera. Do Felipe? — perguntou Ártemis, horrorizada. —
Mas nós quatro somos amigos desde...
...sempre. A gente se conhece desde criança, eu sei. Mas
a Alice não estava em seu melhor estado mental. E a lata de
spray de pimenta foi encontrada fechada e cheia perto da
bolsa dela, não foi?
Foi. — Ártemis estava inquieta, começando a perceber a
gravidade dos fatos. — E a peça de xadrez?
Foi uma mensagem. Não do Felipe, mas do verdadeiro
assassino. Uma mensagem de afirmação, de insegurança, algo
que diz: “Eu sou o verdadeiro Rei aqui”. Foi isso que o
assassino quis transmitir. E por isso ele teve que atacar minha
irmã pelas costas.
Nossa! — disse Ártemis, tomando mais um gole de sua
xícara de açúcar-com-café. — Faz todo sentido, Aninha. Então,
o meu irmão não é o assassino direto, mas ele poderia ser um
cúmplice.
Ana Laura sorriu com o canto da boca.
Na mosca, ela pensou, e logo imaginou a amiga rindo de
suas gírias antigas.
Bem, isso a gente não tem como provar. Ele não foi o
autor do crime, mas é completamente possível que ele seja um
cúmplice, ou uma vítima. Afinal de contas, a gente não sabe
exatamente o que o assassino quis dizer com a peça de xadrez
dessa vez.
Espera... dessa vez? Você acha que ele vai atacar de
novo?
Talvez. Faria sentido, mas também não tenho como
provar. O que importa é que existe a possibilidade do seu irmão
ser um coautor.
Eu entendo — falou Ártemis, respirando fundo e
pressionando as mãos na xícara de café. — Mas você tá
errada.
Estou? — indagou Ana, sua atenção toda em Ártemis.
Está. Meu irmão nunca faria uma coisa dessas. E você
sabe que a polícia vai ser completamente inútil num caso
complexo como esse, eles no máximo vão prender meu irmão
e dar o caso como encerrado.
Suspeito que sim. É o caminho mais fácil a se seguir. O
que me leva à principal pergunta do dia: como eu realmente
posso te ajudar, Teté?
Ártemis respirou fundo, mais uma vez, e olhou para Ana
Laura com os olhos cheios de determinação.
Eu preciso que você me ajude a encontrar o assassino
real, e inocentar o meu irmão.
Brancas 3:Extremos
Dezembro de 2021
Para o Homem sem Rosto, aquele apartamento havia
perdido completamente sua cor.
Ele mal tinha vontade de sair da cama, trabalhar, jogar ou
mesmo olhar para o pôster de Alice — a doce Alice.
Sua Alice.
Descobrir que ela havia rejeitado seus avanços era
ruim.
Mas ter trocado o homem perfeito pra ela por um jogador
de videogame? Isso já era demais, ele pensou.
Mais uma vez, ele ligou o seu computador.
Vermelhos 3: Isca
Março de 2022
Você tava certa — afirmou Ártemis, entrando pela porta e
deixando sua mochila no chão — Liga a televisão, agora!
Ana Laura estava de pijama no sofá, comendo um prato
de macarrão instantâneo, e foi tomada completamente de
surpresa pela entrada súbita da velha amiga.
Pera aí. Quem te deu a chave?
Eu tomei a liberdade de pegar sua chave reserva. Sério,
você não deveria deixar esse tipo de coisa no seu quarto.
Ok... Tá. Eu vou ignorar isso. Liga no canal que você
quer. Eu preparo uma xícara de café pra gente.
Com açúcar! — gritou Ártemis, enquanto pegava o
controle e ligava a televisão.
Os alto-falantes da televisão começaram a reproduzir a
voz do jornalista.
... outro assassinato brutal, semelhante ao que aconteceu
há dois meses, dessa vez envolvendo a influenciadora digital
Mariana Salles, do canal OtomeStrike. A vítima parece ter
morrido por sufocamento e perda de sangue, e a única
evidência encontrada no local foi uma peça branca de xadrez,
colocada de forma proposital na cena do crime, semelhante ao
assassinato de Alice Machado, ainda sem solução. De acordo
com as nossas fontes, foram encontradas evidências biológicas
que ligam o assassinato ao principal suspeito no momento, o
jogador profissional Felipe Braga, ainda foragido. A Polícia Civil
não deu mais informações.
Ana Laura sabia que aquilo podia acontecer. Ainda
assim, percebeu que suas mãos estavam tremendo depois de
ouvir o nome de irmã na televisão.
Foragido — replicou Ártemis, tremendo de ódio. — É
assim que eles se referem ao único homem negro na história
toda. Foragido. E a peça de xadrez? É o nosso homem. Só
pode ser.
É o nosso homem, sim. É um homem inseguro e
extremamente infantil disse Ana Laura, se sentando na
mesinha em frente ao tabuleiro de xadrez, e analisando suas
próprias peças. Ela também tinha um Rei Branco, de um modelo
diferente, mas com a mesma função.
Infantil? — perguntou Ártemis, sentando-se na cadeira
oposta e movendo um peão.
Sim. Uma peça de xadrez é parte de um jogo. É assim
que esse homem vê o que está fazendo. Como um esporte,
uma competição, quase uma brincadeira. Isso é sinal de uma
mentalidade imatura, mesmo que ele seja inteligente o bastante
para matar duas pessoas sem deixar provas aparentes. O que
eu não consigo entender ainda é a motivação dele...
Bem, pelo que me parece, a gente não tá lidando com um
crime passional rebateu a garota de cabelo rosa. — Me
parece mais coisa de um assassino em série. Motivação é
realmente tão importante nesse caso?
Sim, sempre é. Tirar uma vida é algo trabalhoso,
desordeiro. Por isso a maioria dos psicopatas procura alvos
fáceis, como parentes ou garotas desacompanhadas. Mas as
duas vítimas estavam em quartos fechados. É preciso
motivação para ir tão longe, mesmo que seja algo tolo, como
reproduzir um trauma de infância ou se vingar de um amor
perdido.
“Se vingar.” As últimas palavras desceram amargas pela
língua de Ana Laura.
Não era exatamente o que ela tinha em mente? Se vingar?
A voz de Ártemis distraiu Ana de seus pensamentos.
Aninha? O que tá acontecendo?
Naquele momento, ela percebeu que há muito, muito
tempo não era honesta com alguém.
Tempo demais.
Eu quero me redimir — confessou Ana. — Eu mandei
Alice para aquele hotel. Agora ela está morta por minha culpa.
Eu quero destruir o homem que me tirou a única família que eu
tinha. Eu preciso disso, de fechar essa história na minha
cabeça, de saber que ele não vai andar livre por aí. E você
quer inocentar seu irmão.
Quero. Mesmo que eu tenha que receber más notícias
pra isso.
Então eu aceito sua proposta — afirmou Ana Laura, se
levantando e estendendo a mão na direção da amiga.
Nós vamos trabalhar juntas para encontrar esse canalha,
custe o que custar. Temos um acordo?
Temos um acordo! — Ártemis, sorrindo, concordou e
também estendeu a mão. A capacidade dela de sorrir mesmo
naquele tipo de situação sempre surpreendia Ana.
Certo, Teté. O que você tem em mente?
Lentamente, Ártemis se levantou, pegou sua mochila,
tirou um caderno de capa rosa de dentro e o entregou nas
mãos de Ana Laura.
Uau... — exprimiu Ana, abismada. — Você realmente
pensou em tudo.
Sim. Eu sei que vai ser arriscado, mas acho que...
Eu topo.
A resposta rápida fez o queixo de Ártemis cair.
Sério?
Sério, com algumas condições. Primeiro: você vai pegar
suas coisas e se mudar pra minha casa. Eu tenho quartos
sobrando, e o trajeto de ida e volta pode ser arriscado nas
últimas etapas do plano. Segundo: eu vou contratar aulas de
defesa pessoal pra mim e pra você. Boxe, ou qualquer coisa
assim. Terceiro: você vai fazer como eu e deletar todos seus
rastros da internet, fotos, redes sociais, tudo. E quarto: ainda
tem muitos tasers e latas de spray de pimenta aqui em casa. A
partir de agora, nenhuma de nós sai de casa sem pelo menos
um desses. Fechado?
Fechado. Você tem alguma dúvida sobre o Plano?
Várias — disse Ana Laura, abrindo o caderno na
primeira página.
Nós vamos me fazer de isca, certo?
Não é o termo que eu usaria. As iscas morrem quando o
peixe morde.
Sim, mas de todo jeito, a ideia é me colocar numa posição
semelhante à que a Alice estava quando morreu. Por que não
fazer você mesma de isca? Você faz o tipo “garota nerd” melhor
do que eu.
Claro que faço — Ártemis concordo, piscando para ela. —
Mas o Rei Branco sente atração por matar um tipo específico
de mulher: mulheres brancas. E, mesmo que esse não seja o
caso, quem seria um tipo mais parecido com a primeira vítima,
do que a irmã da primeira vítima?
Ana Laura olhou mais uma vez para as peças de xadrez.
Parecia loucura, mas o plano de Ártemis realmente fazia
sentido.
E o que garante que ele já não sabe quem eu sou? Se
ele for um stalker competente, com certeza conhece a família
da pessoa que ele mesmo matou.
E como ia conhecer, se você nunca mostrou seu rosto na
internet?
A realização quase fez Ana Laura sorrir. Ela realmente
nunca deixara rastro algum.
Certo. Eu vou me fazer de isca, a gente atrai o Rei Branco,
descobre quem ele realmente é e prepara uma armadilha.
Isso. E aí a gente leva esse assassino de merda pra
polícia.
—Sim. A gente o leva e coloca em xeque — mentiu Ana
Laura.
Para ela, apenas a morte seria um xeque equivalente ao
ato daquele homem. Aos olhos dela, aquela era a pior parte do
Plano. Ana Laura queria vingança, mas a possibilidade de se
encontrar cara a cara com aquele monstro era demais pra sua
cabeça. Ela ia precisar de uma preparação gigantesca se não
quisesse enlouquecer até lá.
Ótimo. E o primeiro passo — começou Ártemis, ficando de
pé —, é transformar você em uma e-girl. Se a nossa teoria está
correta, a motivação de todos esses crimes pode ser
“passional”. Pois bem: vamos transformar você exatamente no
tipo de pessoa por quem um cara como ele se apaixonaria.
Não vai parecer óbvio? — perguntou Ana Laura. — Eu
sou loira, tenho sardas... Se eu começar a me vestir e falar
como a minha irmã, tenho certeza que alguém vai notar.
Podem até me acusar de plágio.
Não, não, vamos numa direção completamente diferente.
Confia em mim. Por enquanto, vamos focar em criar o alvo
perfeito: colocar as roupas perfeitas, usar os trejeitos
perfeitos, e criar um canal no YouTube pra você.
Certo. E o que exatamente uma youtuber tem que fazer?
A mesma coisa que a sua irmã fazia: vídeos mostrando o
seu lindo rostinho, falando sobre seus gostos pessoais, sua
vida e sobre cultura pop de fácil acesso, como jogos, séries,
filmes de heróis, desenhos japoneses, essas coisas. Vamos ter
que pintar seu cabelo de ruivo também, ou arranjar uma boa
peruca. De que tipo de coisas você gosta?
Eu? Ah... — Ana hesitou antes de responder. — Eu gosto
de xadrez.
Xadrez e...?
Só xadrez. Eu adoro xadrez, Teté.
Ok. — Ártemis suspirou, nada surpresa. — Você usa
muito sua televisão, né? O que você assiste?
Ana Laura olhou para cima e permaneceu em silêncio por
vários segundos.
Por favor, não responde “campeonatos de xadrez”.
Tá — disse Ana Laura —, eu não vou responder isso.
Nossa, a gente tem muito trabalho pra fazer, Ana Laura.
Vem comigo?
Brancas 4: Manifesto
Abril de 2022
Usando luvas e máscara, o Homem sem Rosto arrumou
sua casa mais uma vez.
Ele lavou as poucas louças que tinha, secando-as
cuidadosamente com um pano de prato e colocando-as de
volta em seu devido lugar. Com uma vassoura e um rolo
adesivo, removeu cada grama de sujeira e fios de cabelo
soltos em cima e embaixo do tapete.
Limpou a portinhola debaixo do tapete com atenção
especial.
Com um produto de limpar vidros e um pano molhado,
esfregou cada centímetro de suas janelas, por dentro, por fora
e nas guarnições, até que estivessem todas imaculadas. Por
fim, ele pegou um pequeno aspirador de pó e limpou cada tecla
de seu computador portátil, removendo todas as impurezas.
Puro.
Era a principal palavra em sua mente.
Sabe... — ele disse em voz alta —, eu sei que você já
morreu, mas te ter aqui me ajuda muito a relaxar.
Deu passos lentos em direção à parede, onde encontrou
o velho pôster de comemoração do canal Espelho da Alice.
Pensar no nome de Alice fazia o Homem sem Rosto sentir
dor. Dor? Não, não era exatamente isso. Era algo mais parecido
com saudade.
Ou, talvez, mais parecido com sede.
Aceita um chá, Alice? Eu sei que você gosta mais de café,
mas aposto que consigo fazer você ficar apaixonada pelo meu
chá preto.
A mulher loira no pôster olhou de volta para o Homem
sem Rosto, sorrindo seu sorriso eterno de tinta e papel.
Pura.
Ele se levantou, pegou uma xícara de chá e deixou a água
esquentando. Por dentro, o Homem ainda sentia falta dos
vídeos de Alice, mas pelo menos ele tivera a chance de mostrar
pra ela quem ele realmente era.
Você tem uma irmã, não tem? Acha que nós deveríamos
fazer uma visita a ela? Não... Melhor não. Ela deve estar
sobre um monte de vigilância agora. Podemos deixar isso pra
depois.
Seu celular vibrou. Se alongando, ele tirou o aparelho do
bolso e olhou para a tela: era uma notificação do banco,
informando-o que a transferência que ele havia solicitado tinha
sido realizada e que seu novo saldo já estava disponível.
Matar a segunda garota não tinha sido uma ideia tão ruim.
Ninguém estava esperando mais um assassinato, e nenhuma
pessoal parecia ter percebido que a conta bancária dela havia
sido esvaziada completamente.
Pelo visto, a senhorita Salles também tinha seus
segredos, pensou ele.
O próprio Homem sem Rosto se assustou quando viu o
valor pela primeira vez — era excessivamente maior do que
sua pequena reserva financeira. Aparentemente, gravar vídeos
para a internet pagava muito mais do que o salário que ele
recebia.
Ele ainda se perguntava o que o levou a esculpir outra
peça de xadrez e colocá-la na cena do crime uma segunda vez.
O homem gostava da ideia de um cartão de visitas, apesar de
entender que sempre havia riscos de chamar a atenção.
Por outro lado, admitia ser muito prazeroso ver a mídia
chamar os casos de Assassinatos do Rei Branco.
Um Rei.
Ele se levantou, foi até a cozinha e colocou o chá na
xícara. Os ingleses diziam que esse tipo de chá era melhor
tomado com leite, mas ele discordava completamente.
Enquanto bebericava de sua xícara de chá, abriu a porta
do armário, moveu algumas peças de roupa e analisou suas
novas aquisições.
Debaixo de suas camisas bem dobradas, havia uma
coleção de facas de fibra de carbono de nível militar, uma
chave micha para arrombar fechaduras e sua pistola nove
milímetros, além de uma ou outra roupa de trabalho.
Foi uma pena ter que lavar o sangue da faca nova. Ele
realmente queria começar a trazer para casa algumas
lembrancinhas de suas novas amigas, mesmo que fosse um ato
arriscado.
Ele abriu uma gaveta e encontrou um saco plástico
transparente, cheio até a borda com cabelo humano.
Sabe de uma coisa? — indagou em voz alta para si,
observando o conteúdo com asco. — Esse cabelo é nojento.
Tão seboso quanto o dono. Tô doido pra poder jogar fora.
De forma despreocupada, o Homem enfiou o pacote na
gaveta e foi para a frente do computador.
Estava cansado daquela máquina. Ainda assim, ele
precisava usá-la, pelo menos mais uma vez.
Usando o cartão de crédito de sua última vítima, comprou
um VPN — um serviço que permitia embaralhar o endereço IP
que ele usava na internet. Isso facilitaria seu trabalho: se queria
continuar jogando, precisava se tornar impossível de ser
rastreado.
Agora, graças aos novos recursos, ele tinha condição de
continuar.
Usando o embaralhador, entrou em seu fórum favorito e
começou a digitar seu manifesto.

“Olá.
Eu sou Felipe Braga, o Rei Branco.
Eu gostaria de começar esse texto agradecendo à mídia
por toda a atenção poucas coisas agradam tanto a uma
pessoa como eu do que receber seus holofotes.
Eu gostaria, também, de elucidar a razão pela qual eu tirei
as vidas de Alice Machado e Mariana Salles. Muitos
teorizaram que eu sou um Incel, um praticante de Celibato
Involuntário, um jovem rapaz solitário que, sem sucesso com o
sexo feminino, resolveu ter sua vingança em sangue.
Não é verdade. Eu não sou esse tipo de imbecil — nem
me vejo como um justiceiro, de qualquer forma. Não, eu sou
um cobrador — alguém vindo cobrar o preço justo que certas
pessoas devem pagar pelos seus atos.
Homens e mulheres são iguais, e podem ser igualmente
monstruosos.
Não é segredo que personalidades digitais vem se
aproveitando de jovens solitários para fazerem seus canais
crescerem e aumentarem seus lucros.
Quantas vezes um Youtuber te chamou de “Família”
enquanto pedia para você se inscrever, ou para doar um valor
monetário mensal?
“Família”, “Meus Amores”, “Meus Lindos”.
Quantas vezes você ouviu esses termos de uma pessoa
que, na verdade, só te vê pelo seu valor financeiro? Uma
pessoa que, se tivesse a oportunidade, te destruiria em troca de
um punhado de inscritos?
Essa forma de parasitismo alcançou um patamar
inaceitável.
Influenciadores manipulam espectadores a acreditar que
possuem algum tipo de relação com eles — e jovens mulheres
bonitas te prometem que você poderia ter uma chance de tê-
las, se somente você lhes pagar um valor mensal.
Nada disso é real.
Essas pessoas não querem ser seus amigos. Essas
pessoas não gostam de vocês. Elas odeiam vocês, na verdade.
E eu vou cobrar o preço pela Monetização da Solidão que
elas estão promovendo.
Se você explora a introversão das pessoas que
devotam o tempo e o esforço delas a você, fique avisado.
Você pode ser o próximo.”

O Homem sem Rosto anexou uma foto de uma das peças


de xadrez — a foto que tirou na cena do crime — para provar
que estava falando sério. Clicou em “Publicar” e desabou na
cadeira.
Ele se sentia exausto. Estava na hora de descansar um
pouco. Com isso em mente, abriu uma página no YouTube, na
qual encontrou um vídeo sobre um jogo de que gostava. Uma
jovem garota ruiva de máscara estampava a thumbnail.
“RedQueen”... é o nome do canal... Ela me lembra um
pouco você disse o Homem, enquanto sorria para o pôster de
Alice.
Vermelhas 4: Contra-Ataque
Abril de 2022
Então esse é o vídeo de hoje, família! Eu sou a
RedQueen, e eu amo muito vocês! — falou Ana Laura por trás
da máscara, piscando para a câmera e jogando seu novo
cabelo ruivo para trás.
Era o melhor estúdio caseiro que o dinheiro podia
comprar. Câmeras de alta definição, microfones direcionais e
iluminação profissional, com tripés, ring light e difusores. Por
trás da câmera estava Ártemis, analisando o ângulo da
filmagem e ajustando a iluminação
Ela realmente havia pensado em tudo.
Qual é a da peruca ruiva? Ela pinica a minha cabeça! —
Ana começou a reclamar assim que a luz vermelha da filmadora
se apagou.
É uma peruca de cabelo de verdade, Aninha —
respondeu Ártemis, com as mãos nos quadris — É basicamente
a melhor do mercado; não dá pra perceber que não é cabelo
de verdade.
Tá. Por que ruiva?
Porque geeks são obcecados por garotas ruivas,
principalmente geeks idiotas. Por causa do Homem-Aranha, eu
acho.
Ah, o Homem-Aranha era ruivo? Perguntou Ana com toda
a sinceridade que tinha.
Não! O Homem-Aranha namorava com uma ruiva. No
desenho, pelo menos. Sério, Ana Laura, como você chegou até
aqui sem saber disso? Falar com você é como encontrar um
dinossauro vivo, intocado pela cultura pop.
Ana Laura riu, pegando outra xícara de café. Aquela
sensação era estranha a sensação de ter alguém a mais
bebendo, comendo e vivendo naquela casa com ela —, mas
bem-vinda.
Não seria melhor manter meu cabelo natural? — sugeriu
Ana Laura.
A gente tem mais chances de atrair o assassino quanto
mais eu parecer com a primeira vítima dele, e meu cabelo é
quase uma fotocópia do cabelo da minha irmã.
Nós queremos que exista alguma similaridade, mas
similaridade demais pode ser um problema. Não queremos
que o Rei Branco descubra que vocês são irmãs, só que se
sinta atraído por você recorrendo a um senso vago de
familiaridade.
A rotina de Ana Laura havia mudado completamente
naqueles últimos dias. Desde que Ártemis se mudou para lá,
tudo o que faziam era, de forma direta ou indireta, relacionado
à missão: aulas digitais de atuação e carisma; gravar vídeos;
aulas (com a própria Ártemis) para assistir animes, jogar jogos
virtuais e conhecer a cultura pop em geral; diversos cursos de
defesa pessoal e tiro ao alvo.
O pior dia, com certeza, foi quando Ártemis trouxe dois
microchips e um bisturi para a mesa do café da manhã.
São rastreadores! Eu acho que a gente pode...
Não quero saber — disse Ana, estendendo o pulso. — Só
seja rápida.
Os cursos de defesa pessoal também não estavam fáceis.
Johanna, uma senhora alemã de dois metros de altura, havia
sido contratada para ensiná-las Krav magá, um estilo de luta
israelense, oito horas por semana.
O resultado é que as duas estavam cheias de
hematomas por todo o corpo, mas começavam a evoluir.
A ideia da máscara surgiu da própria Ana Laura como uma
forma de desviar de aplicativos de reconhecimento facial. Era
um acessório simples, parte de uma fantasia do Fantasma da
Ópera, pintada com tinta vermelha spray pela própria Ártemis,
uma habilidade que a amiga adquirira fazendo fantasias para
festivais de animes. Ana sugerira uma fantasia da própria
Rainha Vermelha, mas Ártemis achara que assim a relação
entre ela e o canal de Alice seria óbvia demais.
Algum tempo depois, após uma sessão de gravação
particularmente exaustiva, Ártemis recebeu um telefonema.
Certo. Obrigada, Biel!
Biel? — perguntou Ana Laura, franzindo as sobrancelhas.
Consegui um contato dentro da Polícia Civil, de alguém
no meio das investigações do Caso Rei Branco. Ele acabou de
ser transferido, não tem muito acesso, mas pode ser útil.
“Caso Rei Branco” — repetiu Ana, pensativa. — Esse é o
nome oficial, a partir de agora?
Parece que sim. O Gabriel disse que encontrou uma foto
da cena do segundo assassinato em um fórum, tirada antes que
qualquer policial chegasse, junto com uma espécie de
manifesto.
Ana Laura se levantou e foi até o celular, mas Ártemis
puxou o aparelho de volta pra si.
Eu... não sei você deveria, Aninha.
É parte da investigação, não é?
Sim... Mas não é um texto fácil. Ele basicamente diz que
tudo o que está acontecendo é culpa da sua irmã.
As palavras vieram como um soco no estômago de Ana
Laura. Culpa de Alice? Como ela poderia possivelmente ser
culpada?
Em silêncio, ela tomou o celular das mãos de Ártemis,
andou até o banheiro, entrou e trancou a porta.
Após meia hora, dez minutos depois que Ártemis já
começara a procurar um pé de cabra pela casa para arrombar
a porta, Ana Laura saiu do banheiro.
Seus olhos estavam vermelhos, suas pálpebras caídas. A
maquiagem do vídeo, completamente borrada, sujava as
bochechas e o maxilar de preto e cinza.
Mas seus olhos ainda se voltavam para cima.
Eu discordo — ela anunciou, limpando a maquiagem
borrada com as mãos, a voz ainda embargada.
Discorda? — perguntou Ártemis, tentando entender o que
Ana Laura queria dizer.
Sim. Minha irmã não estava tentando “enganar homens
solitários”. A Alice estava tentando trabalhar. Aquele canal era a
vida dela, e ela deu o sangue pela internet. Ela trabalhava doze
horas por dia, seis dias na semana, e só recebia assédio de
volta.
Eu... eu sinto muito, Aninha. A vida dela não devia ser
fácil.
Não era. E agora, o cara que ela amava, uma das poucas
pessoas que trazia paz ao coração dela, está sendo acusado
de matá-la. Não vou deixar isso acontecer. Eu vou pegar o Rei
Branco, Ártemis. Eu vou pegar o Rei Branco, mesmo que ele
me leve junto com ele.
Não, Ana Laura. Você não vai pegar ninguém. Nós vamos
pegar o Rei Branco e inocentar o meu irmão, onde quer que ele
esteja.
Ana sentiu vontade de chorar novamente, mas segurou as
lágrimas. Ela precisava ser forte — forte como Ártemis. Ela
respirou fundo.
Se tem uma coisa que esse manifesto deixa claro, é que
o Felipe Braga é completamente inocente.
Meu irmão? Mas... como?
Não é a primeira vez na história que um homem branco
culpa um homem negro por um assassinato em série, o
Assassino do Zodíaco fez uma coisa semelhante nos anos 60 e
nunca foi encontrado.
Eu já ouvi falar alguma coisa sobre isso.
Pois é. A Alice foi morta pelas costas, por alguém que
ela não esperava, o que diminui as chances de seu irmão ter
sido o executor. A nossa segunda evidência é o manifesto: o
homem que postou sabia que, naquele fórum específico, ele
tinha liberdade para ser franco, e ele foi. Esse texto está cheio
de honestidade, o assassino odeia pessoas bem sucedidas na
internet, no geral, por sentir que elas não correspondem às
suas expectativas de relacionamento.
O problema é que o Felipe não era um fã: o Felipe era um
criador de conteúdo. Ele mesmo chamava seu público de
família! — concluiu Ártemis.
Exato. Nessa história, o Felipe é um dos odiados, não
um dos “odiadores”. Um opressor, pela visão distorcida do Rei
Branco, não um oprimido. Por isso, eu posso praticamente
garantir que o seu irmão é inocente, mesmo que as evidências
físicas e biológicas apontem pra ele.
Ártemis suspirou e desabou na cadeira.
Obrigada, Aninha. De verdade.
Por isso, e por tudo.
Não há nada pra me agradecer, Teté. Me conta, o que
mais o seu contato na polícia disse?
A amiga respirou fundo e pegou seu celular de volta.
Disse que a conta da Mariana, a segunda vítima, foi
esvaziada alguns dias depois dela morrer. Estranho, não? Isso
não aconteceu com a Alice.
Estranho mesmo. Você acha que pode ter sido algum
familiar mal-intencionado?
É possível, ou o Rei Branco estava precisando de
dinheiro, e pra conseguir tenha feito a segunda vítima
confessar a senha do banco antes de morrer.
Essa transação não pode ser rastreada? Me parece tudo
muito arriscado.
Não necessariamente. Ele pode ter sacado o dinheiro em
espécie, e ter depositado em outro banco, por outro lugar. Ou
ele até pode ter algum esquema de lavagem de dinheiro, a
gente realmente não sabe que tipo de recursos o Assassino
pode ter. A gente sabe que ele é um homem psicologicamente
imaturo, só que não sabemos nada sobre sua profissão ou
estado de vida.
Você acha que ele pode ser um político?
Pode, mas não vamos ser precipitadas. O rombo na conta
confirma o que o manifesto já nos dizia: o Rei Branco
pretende continuar matando.
Certo. — disse Ártemis, determinada. — Então vamos
garantir que o próximo alvo dele sejamos nós. Tá pronta pra
dar o primeiro golpe?
Estou — concordou Ana Laura, também convicta.
Brancas 5: En Passant
Maio de 2022
O jeito dela realmente me lembra o seu, meu amor —
disse o Homem sem Rosto, enquanto encarava o rosto de Alice
Machado pelo pôster. — Acho que eu estou começando a ver
você em todo lugar.
Ele se levantou da frente do computador, tomou mais um
gole de chá preto, e se alongou.
Sabia que o canal da RedQueen começou faz poucas
semanas? Incrível como ele cresceu rápido, achei que a
internet já estava saturada de garotas gamers. Parece que não.
Ele se sentou mais uma vez em frente ao computador. A
beleza da mulher falando no vídeo realmente era fascinante:
seus cabelos ruivos cor de fogo, suas sardinhas, o jeito risonho
e despreocupado com o qual ela falava dos jogos que ela
gostava...
E a máscara. Grande o bastante para manter um ar de
mistério, pequena o suficiente para mostrar que aquela mulher
era absolutamente linda.
Pura, ele pensou. Quase perfeita.
Ele pausou o vídeo, e se deixou perder nos olhos da
RedQueen por alguns instantes. Ela era mesmo fascinante.
Mas não perfeita — ele completou em voz alta. — Só você
era perfeita. Você era a mulher perfeita pra mim, e estragou
tudo, meu amor. Por que você não percebeu que eu era
especial?
Ele rolou a tela do computador para baixo, para visualizar
os comentários do último vídeo. O “gado” já estava começando
a se formar: na maioria, os espectadores eram jovens homens
elogiando a aparência física ou o bom gosto da RedQueen.
Ela parecia responder todos os comentários até aqui.
Esse é o modus operandi de qualquer canal pequeno do
YouTube: fazer você se sentir parte de uma comunidade, sentir
que a pessoa por trás da tela realmente se importa com a sua
opinião.
Ele respirou fundo e clicou no link deixado no final do
vídeo. Levava para um link externo no Patreon, um site de
financiamento coletivo para criadores de conteúdo.
O financiamento da RedQueen era consideravelmente
mais simples do que a da maioria das youtubers. Não
prometia números de telefone, cartas ou qualquer coisa do tipo.
Ela só mandaria os vídeos do canal dois dias antes para quem
a apoiasse, e colocaria o nome dos apoiadores nos créditos.
É um pouco mais honesto — disse ele. — Mas ainda é
errado, não é? Ela está tirando dinheiro deles, de todo jeito.
O Rei Branco fechou os olhos e ponderou por um
momento. Ele sentiu, lá no fundo, vontade de contribuir com o
canal, mas logo se impediu.
É uma má ideia deixar um rastro monetário,
principalmente agora que eu estou oficialmente sendo
procurado pela polícia. Não que seja um problema — proferiu
ele, e sorriu. — Você viu as notícias? Começaram a falar em
recompensa para quem der notícias sobre o paradeiro do
Felipe Braga.
O homem se manteve em silêncio, olhando para o pôster
como se esperasse alguma resposta ou uma mínima reação.
Você entende agora, não entende? Ele estava matando
você por dentro. Envenenando. Tirando toda a sua pureza. Ele
era tóxico, e logo logo todo o mundo vai saber a pessoa horrível
que...
O celular do Homem sem Rosto vibrou.
Interrompendo sua linha de pensamento, ele se sentou e
olhou para a tela. Era o seu número reserva, o número de
Alice, que ele havia clonado para conseguir alcançá-la e salvá-
la daquele mundo horrível no qual ela tinha caído.
Olha — comunicou para o pôster de Alice —, mensagem
pra você! Você não vai se importar se o seu amor der uma
olhada, vai?
Ele abriu a notificação. Era um SMS:
Que brega — ele desdenhou. — Mas tô vendo que eu não
sou o único sentindo a sua falta. Você acha que eu deveria
abrir?
O Homem sem Rosto olhou para o pôster mais uma vez.
Sim. Eu vou abrir. Por você, claro.
Ansioso, ele clicou no link do SMS, espelhou a tela do
celular para o computador, e inseriu a senha: Saudade, com S
maiúsculo.
O endereço o levou para um provedor de vídeos privado,
com um único rosto familiar.
O rosto mascarado e cheio de sardas da RedQueen.
Vocês eram amigas? — ele se perguntou, enquanto
clicava no vídeo e tomava mais um pouco de chá.
A gravação começava como um vídeo comum do canal.
Oi galera, beleza? Aqui a RedQueen! — disse a jovem
ruiva, com uma expressão triste no rosto. — Na verdade, esse
não é um vídeo para o meu canal. É um vídeo pra uma pessoa
só.
A mulher ruiva se levantou, e sorriu.
Tem alguma coisa errada, o Homemsem Rosto pensou.
É um vídeo pra você, Rei Branco!
Ele derrubou sua xícara de chá, que caiu no chão. O
impacto a estilhaçou em mil pedaços, mas o Homem não ouviu
barulho algum.
Espera. O quê?
Sabe, eu tenho feito a minha própria investigação.
Acredita que o Recanto da Coroa, o hotel em que a Alice
Machado faleceu, reportou pra polícia uma chave faltando no
dia seguinte ao assassinato? A mídia ainda não conectou os
pontos, mas a polícia já ela disse, sorrindo e mostrando bem os
dentes.
A droga da chave, ele pensou.
E, melhor ainda, o gerente do hotel notou que a chave
desaparecida foi entregue a um “assessor” da Alice Machado,
não pra ela, e que ela mesma “confirmou tudo por telefone”,
mas a chave não estava mais no quarto. Claro, você
provavelmente usou algum tipo de disfarce, mas o recepcionista
que conversou com você já fez um retrato falado que vai nos
ajudar bastante.
O coração do Homem sem Rosto, antes acelerado, agora
batia sem compasso algum. Ele não podia ter cometido um
erro idiota desses, não podia, não podia!
Mas tem mais! Sabia que, com alguns telefonemas, nós
conseguimos rastrear todos os endereços IP dos maiores
apoiadores do Patreon da Alice Machado, a primeira vítima, e
cruzar com os endereços dos seguidores da Mariana Salles, a
segunda vítima? Imagina nossa surpresa quando a lista
encontrou um nome só!
Um... nome?
Bem, não um nome, exatamente, mas um usuário:
Arthur1989. Foi o usuário que você usou para conhecer a Alice,
não foi? Tudo podia ser uma grande coincidência, claro, por
isso eu precisava de uma confirmação: encontrar uma forma
de mandar um endereço virtual para o Rei Branco clicar e
confirmar o seu endereço IP. Então, se você está vendo esse
vídeo... Ops! Você já clicou! — disse a maldita ruiva do outro
lado da tela.
Ele havia sido descuidado, extremamente descuidado, e
alguém finalmente foi esperto o bastante para o alcançar.
Cogitou arrancar a tomada do computador, desligá-lo da forma
mais brusca possível, mas sabia que de nada adiantaria: no
segundo em que clicou, o sistema da RedQueen já devia ter
registrado o endereço.
Ela se levantou e voltou a falar, olhando para a câmera,
queimando o caminho entre os olhos dela e os dele.
Esse é o seu problema, Arthur. Você faz pose, mata,
incrimina, mas a verdade é que você não entende nada de
xadrez, não de verdade. Se você entendesse — continuou ela,
colocando uma mão na câmera —, saberia que as peças
brancas jogam primeiro. E quem joga primeiro, erra primeiro.
A mão do Homem sem Rosto se fechou em um punho.
Ele não disse nenhuma palavra, não em voz alta.
Ao invés disso, se levantou da cadeira em frente ao
computador, andou em direção ao pôster de Alice e o puxou,
rasgando-o ao meio e danificando-o permanentemente.
O jogo havia mudado.
II - A Fase dos Generais ♖
Onde as peças mais valiosas batalham entre si.
Vermelhas 5: Linha de Defesa
Junho de 2022
O meu contato na Polícia Civil quer fazer algumas
perguntas, Aninha. Você topa ir?
O interesse de Ana Laura pelo caso havia sido
completamente renovado desde que a armadilha funcionara.
Demorou uma quantidade considerável de tempo até cruzarem
o endereço IP de cada seguidor dos canais das duas vítimas —
ainda mais para entrevistarem o recepcionista do Recanto da
Coroa e convencê-la a fazer um retrato falado para a polícia.
Mas valeu a pena. O vídeo teve exatamente uma
visualização — o mesmo endereço IP de Arthur1989 —, o que
indicava que ele estava em posse do celular da Alice,
provavelmente por tê-lo clonado.
A coisa toda se encaixa bastante com o perfil psicológico
que ela e Ártemis tinham desenhado até ali. Chamar ele pelo
nome tinha sido um tiro no escuro ele poderia ter usado um
nome falso como usuário —, mas Ana Laura sentia que não
era o caso; aquele era um irônico crime “passional” cometido
por um completo monstro.
Aninha? Tá me ouvindo?
Sim. Perguntas?
Isso. O Investigador quer ver você.
Eu, a Ana Laura Machado, ou eu, a RedQueen?
Bobinha! Nós duas somos a RedQueen: você é o rosto e
eu sou as palavras — disse Ártemis, rindo —, mas ele acha
que a youtuber é uma pessoa só, então chamou só você. E vai
usando a peruca vermelha, a mesma da RedQueen, que já
está pronta pra você sair. Não é nada especial, eles estão
entrevistando um monte de youtubers que se encaixam no perfil
das vítimas do Rei Branco.
Por que você não vai comigo? — sugeriu Ana, apreensiva.
— Você pode se apresentar como minha assessora, ou...
Eu sou sua assessora. E tem certeza que quer se arriscar
tanto assim, expondo nossos dois rostos em público?
Certo. O anonimato é a nossa primeira linha de defesa. De
todo jeito, quer testar seu novo brinquedo? — questionou
Ana, apontando para as pequenas peças de plástico jogadas na
mesa.
Quero. Coloca ele no ouvido, vai.
Ana Laura foi ao lado de fora da casa, pegou seu
capacete e montou em sua Kawasaki Triple. Ela sempre havia
preferido motos a carros — estar presa em um cubículo de
metal não fazia nada bem para sua claustrofobia.
Antes de dar a partida, entretanto, ouviu um som agudo
soar em seu ouvido esquerdo, logo depois de uma voz familiar.
Aninha — disse Ártemis pelo comunicador. — Tem
certeza que está bem o bastante pra ir? Eu posso dizer que
você não tem agenda disponível, ou...
Negativo — respondeu ela. — Quanto maior a nossa
relação com a polícia por aqui, melhor.
Certo. Eu tenho sua retaguarda, fico com você o tempo
todo. O seu nome falso é Vitória Silva, igual a Rainha Vitória.
Nem pense em dar o nome verdadeiro pra eles, ok?
Enquanto pilotava sua moto até a cidade, Ana Laura
pensava no Rei Branco. Impendentemente do tipo de homem
que ele fosse, ele era um fã. Ele nem sequer conhecia sua
irmã, não de verdade, não na vida real. O que o fizera pensar
que ele tinha uma chance com ela? Que direito ele tinha de
exigir um lugar na vida dela?
Após quase quarenta minutos de trânsito, ela estacionou
sua moto na frente de uma cafeteria. Embora o estacionamento
estivesse cheio. Não foi difícil encontrar um lugar para a
Kawasaki.
Enquanto procurava, passou por uma viatura preto e
branca da Polícia Civil, vazia. Deviam ser eles.
Respirando fundo, ela tirou o capacete, abriu sua jaqueta
de couro, ajustou a peruca no lugar e rumou para acafeteria.
O nome do nosso investigador é Gabriel Faria — informou
Ártemis, enquanto Ana Laura passava pela porta.
Ele disse que viria acompanhado, mas eu tenho certeza
que...
Mau sinal, pensou Ana. O som da voz da amiga se
transformou eu um grito metálico, arranhando o ouvido dela por
dentro. Ela mal conseguia distinguir as palavras.
…o sinal! Ana, a estrutura de metal da... — Ártemis tentou
avisar, sua voz desaparecendo no comunicador auricular até
sumir por completo. Aquela droga de cafeteria estava
interferindo no sinal; elas precisariam comprar um comunicador
mais potente.
Então, por enquanto, Ana Laura estava sozinha.
Ela olhou ao redor, ofegante. Não demorou até perceber
os dois homens de terno e gravata, com distintivos em punhos:
um loiro com um sorriso largo e um moreno de óculos.
Percebeu as pessoas, também. A cafeteria estava cheia,
quase lotada. Havia uma fila enorme no balcão, formando um
pequeo tumulto. Os clientes tropeçavam e esbarravam uns
nos outros — uma quantidade de pessoas muito maior do que
Ana Laura estava acostumada a lidar.
O ar em seus pulmões começou a escapar.
Sua visão ficou turva.
Seu coração começou a bater forte contra a caixa
torácica.
Claustrofobia.
Eu preciso sair daqui, pensou, mas já era tarde; pessoas
demais bloqueavam o caminho entre ela e a porta.
Seus olhos começaram a procurar, freneticamente, algum
canto no qual pudesse se acalmar, até que ela achou: próximo
ao balcão, havia uma pequena porta indicando um banheiro
feminino.
Ela abaixou a cabeça e, trêmula, começou a andar até o
banheiro. Viu os policiais acenarem para ela, o olhar perplexo
dos dois a fitando, mas teve que ignorar. Ela não tinha forças
para isso, não agora.
Ana colocou as mãos na maçaneta e a girou. Por sorte,
banheiro estava vazio, mas ali era ainda menor do que o
espaço que ela tinha do lado de fora.
Ela se trancou lá dentro e chamou por Ártemis mais
uma vez pelo comunicador.
Teté? Droga, Teté, eu... eu... Não houve resposta.
As paredes, lentamente, começaram a se fechar ao seu
redor.
As forças dela haviam acabado. Ana Laura desabou no
chão, colocou a cabeça entre os joelhos e começou a chorar.
Flashes passaram por sua cabeça. Ártemis.
Alice.
Alice está morta.
Alice está morta, e isso é tudo culpa minha.
Eu sugeri a viagem. Eu escolhi o hotel. Eu a mandei para
morrer.
O Rei Branco devia ter matado a mim.
Após alguns minutos, alguém bateu à porta. Ela conseguiu
distinguir uma voz grave do outro lado.
Vitória? Vitória Silva? Você precisa de ajuda?
A voz era surpreendentemente calma. Ana Laura respirou
fundo, se levantou, lavou o rosto na pia e abriu a porta.
Do outro lado estava apenas um dos policiais. Agora de
perto, ela podia distinguir seu rosto melhor: ele tinha cabelos
escuros, a pele branca e os traços quase europeus. Seu nariz
romano sustentava um par de óculos quadrados, e o cabelo
castanho mantinha um topete pontudo e levemente
desarrumado. Ele segurava o blazer de seu terno em uma mão,
e um copo de água na outra.
Toma — ele ofereceu, entregando-lhe um copo. — Tá
tudo bem?
Sim — confirmou Ana, que saiu do banheiro e bebericou
um pouco de água. — Onde vocês estão sentados?
Ali. — O policial apontou para uma mesa vazia.
Lentamente, ela conseguiu andar até a mesa e se sentar
Me perdoa. Eu não tô acostumada a ver tanta gente no
mesmo lugar. Eu sou a Vitória Silva, dona do RedQueen —
mentiu Ana Laura, estendendo a mão direita.
O policial a cumprimentou.
Eu sou Carlos Magno, escrivão da Polícia Civil — disse,
mostrando o distintivo. — Me desculpe pelo meu amigo, ele é
novo por aqui e acabou indo embora.
Eu entendo. Vocês estão aqui para me perguntar se eu sei
alguma coisa sobre o Rei Branco, não é? — perguntou ela,
tentando parecer o mais inocente possível.
Estamos, mas a gente tem tempo pra isso. Eu quero saber
de você. Como está sua cabeça após esses assassinatos?
Ana Laura olhou para baixo. Não foi difícil parecer
apreensiva.
Com medo, Carlos. Tudo o que eu quero é continuar
fazendo o que eu amo. Eu não fiz nada de errado... Por que
alguém quer matar pessoas como eu?
Eu... sinto muito, Vitória. Muito, mesmo — disse o policial,
tirando os óculos e olhando profundamente nos olhos dela. —
Às vezes, o mundo pode ser um lugar assustador. Eu entendo
isso, mais do que ninguém.
Tem alguma coisa errada, ela pensou.
Carlos? — questionou Ana. — Seu nome completo é
Carlos Magno...
Ele não parou de falar. Calmamente, colocou os óculos de
volta e enfiou a mão direita no bolso da calça.
Em tempos como esse, ter uma rede de apoio é
essencial. Se cerque de pessoas que possam cuidar de você,
ok? E eu prometo que vou cuidar de você melhor do que
ninguém.
Tarde demais, ela pensou. Carlos Magno. Como ela
deixou essa passar?
E por que você vai cuidar de mim, policial?
Porque, no mundo todo, eu sou a pessoa que mais se
importa com você. Afinal de contas...
Ele tirou do bolso uma peça branca de madeira e a
posicionou cuidadosamente em pé no centro da mesa.
Uma peça de xadrez.
Eu sou o Rei Branco — anunciou o homem, enquanto se
levantava. Calmamente, ele colocou a mão no ombro dela e
sussurrou em seu ouvido.
Não precisa se dar ao trabalho de me denunciar. Você é a
próxima — advertiu ele, sorrindo.
O homem deu as costas para ela, passou pela porta e
saiu.
Ana Laura queria se levantar, atacá- lo ali mesmo, acabar
com isso de uma vez por todas, quer a afirmação dele fosse
verdade ou não.
Entretanto, seus músculos não responderam ao comando.
Tudo o que ela teve forças para fazer foi colocar as mãos
na frente do rosto, tremer e chorar.
Brancas 6:Homenagem
Junho de 2022
Arthur! — alguém gritou. — Temcafé novo, se você quiser!
Era só outra manhã de domingo naquela delegacia
horrível. Ainda assim, naquele dia em particular, o Homem
sem Rosto estava completamente satisfeito consigo mesmo.
Por um momento, ele desligou a tela do computador de
trabalho, analisando o seu reflexo: seus óculos de aro fino, seu
cabelo desarrumado. Foi um pouco arriscado não usar disfarce
nenhum para encontrar a RedQueen, mas profundamente
emocionante.
Os eventos do dia anterior conseguiram matar a sua sede.
Ele sentiu um prazer extremo ao ver a RedQueen aquela ruiva
de olhar altivo, que realmente acreditava estar no mesmo nível
que ele — tremer de medo por alguns instantes.
Agora que ela sabia seu primeiro nome e sua profissão,
podia começar a fazer denúncias anônimas, mas realmente
não importava. Semanas antes ele havia programado bots para
fazerem denúncias anônimas, acusando cada policial que
trabalhava no caso do Rei Branco de ser o próprio assassino.
Claro, ele havia sido investigado por alto, no entanto, sua
reputação imaculada fora mais que o bastante para livrá-lo de
quaisquer suspeitas.
As prováveis denúncias que a RedQueen poderia fazer
não significariam nada. Sua voz seria abafada pela multidão.
Ele acenou para o estagiário, que veio correndo trazer-lhe
uma xícara de café. Ele odiava quase tudo sobre aquele lugar:
as pessoas, o cheiro de tinta de impressora, o café — ele
particularmente odiava ter que fingir gostar de café, já que era
impossível achar alguém por ali disposto a fazer chá preto para
ele.
Do outro lado da delegacia, um homem loiro, de camisa
social, gravata, suspensórios, nariz empinado e boca pequena
conversava com uma mulher negra, de cabelo castanho escuro
e cacheado. Era Gabriel Faria, investigador e seu parceiro no
caso do Rei Branco.
O Homem sem Rosto sorriu. O jeito como ele havia
manipulado a situação a fim de ser escolhido para ajudar no
próprio caso era impressionante. O único revés era ter de
interagir com Gabriel, o calouro. O tipo era realmente
desprezível: um exemplo perfeito de “macho alfa”, cheio de
narcisismo e insegurança velada, cujo magnetismo parecia
atrair todos ao seu redor.
O caso havia começado há semanas, mas o investigador
só havia chegado ao departamento poucos dias antes — e
ainda assim já era o campeão de popularidade no setor.
O Homem não entendia exatamente porque todos eram
atraídos por Gabriel; ele o achava sufocante.
Já Maria Eduarda, não. A outra investigadora
encarregada do caso Rei Branco era uma velha amiga dele.
Além de sábia e perspicaz, ela era fisicamente forte — tivera
uma das melhores notas no exame físico de entrada na história
da corporação. O Homem não podia deixar de idealizar a colega
de profissão, e até mesmo desejá-la um pouco, embora ela não
fizesse exatamente seu tipo físico.
Não, só Alice fazia seu tipo, e fazia de verdade.
Ela era perfeita, ele pensou com melancolia, lembrando-
se dos breves instantes que passou com sua amada por perto.
Seu cabelo dourado, suas sardas...
Esforçando-se para não se perder em seus próprios
pensamentos, o Homem pegou seu celular, enquanto tomava
outro gole daquela água suja e rala que eles chamavam de
café. Ele teve que comprar outro cartão SIM e incinerar o cartão
com o número de Alice, visto que a RedQueen já sabia que
este estava em posse dele.
RedQueen, pensou, franzindo a sobrancelha.
Ele conseguiu assustá-la, mas ela ainda era uma
ameaça. Não podia se dar aos mesmos luxos de antigamente;
agora que ela tinha o número de IP dele, ia ser uma questão de
tempo até que rastreasse seu endereço.
O Rei Branco ia precisar ser mais cuidadoso nos
próximos passos.
Ligando de novo o computador, o Homem sem Rosto
abriu uma aba anônima e clicou no canal da ruiva. Os números
de visualizações estavam mais altos do que nunca: aquela
vagabunda realmente sabia fazer um bom canal no YouTube.
O Homem sentiu um aperto no peito. Sentiu vontade de
abrir uma foto de Alice e conversar com ela mais uma vez,
como ele conversava por horas e horas com o pôster dela em
sua casa.
Aqui, não — disse o Homem, sussurrando para si mesmo.
— Aqui, não.
Falou alguma coisa? — perguntou seu colega de mesa.
Era outro escrivão, um dos poucos dali que entendia o quão
maçante era aquele trabalho.
Ah, só tava falando sozinho, Jorginho — disse o
Homem, sorrindo.
Você vai ver o jogo com o pessoal depois do
expediente?
Não... — respondeu o escrivão, com as sobrancelhas
caídas — Acho que vou ficar em casa de novo, tô tentando
subir na ranked em um jogo online.
Eu conheço! — disse o Homem, fingindo entusiasmo. —
Boa sorte, meu amigo, a “ranqueada” é cheia de idiotas. Eu
também não vou, acho que vou tomar uma cerveja sozinho em
casa, mesmo.
O escrivão riu.
Você é um cara legal demais, Arthur.
Isso foi um elogio ou uma ofensa? perguntou ele, rindo.
Antes que Jorge pudesse responder, Gabriel estava com
a mão pousada no ombro do Homem.
Temos mais trabalho, rapazes. O Rei Branco atacou de
novo.
O Homem sem Rosto congelou. Sua cabeça começou a
balançar de um lado para o outro.
O Rei... Branco? Atacou de novo? Não, está rápido
demais, deve ter alguma coisa errada...
O delegado acabou de ligar. Dessa vez foi uma
influenciadora do Instagram, uma tal de Luísa Simões. Ela foi
encontrada morta, com uma peça de xadrez branca na cena do
crime, idêntica às duas primeiras. Ele quer que a gente vá pra lá
agora.
Em choque, o Homem sem Rosto tomou outro gole do
seu café, pegou sua jaqueta e se levantou, seguindo o
investigador.
Outro Rei Branco?, pensou, enquanto mil pensamentos
explodiam dentro de si.
Vermelhas 6:Reações
Junho de 2022
A noite passada foi o mais completo caos. Ao chegar em
casa, Ana Laura desabou no sofá — logo após contar o que
havia ocorrido para Ártemis, que reagiu a tudo com tanto
espanto quanto ela.
Na manhã seguinte, Ártemis encontrou Ana Laura
tomando café, já vestida com as roupas próprias de fazer
exercício.
Ele não queria me matar — afirmou ela assim que viu
Ártemis. — Se ele quisesse, era só colocar veneno no copo de
água que me deu, ou me drogar, sei lá. Por que ele não me
matou?
Bom dia, Ana Laura — falou Ártemis, bocejando,
enquanto procurava uma xícara no armário. — Qual é a Regra
de Ouro dessa casa?
Argh! Nada de discutir assassinato antes do café da
manhã.
Nada de discutir assassinato antes do café da manhã.
Ótimo. Me passa o açúcar?
Mais açúcar? — questionou Ana Laura.
Óbvio! Eu preciso de energia pro exercício de hoje.
Quando você disse que a gente precisava melhorar nosso
condicionamento, achei que estava falando de esteiras e
bicicletas, se inscrever numa academia, crossfit com um monte
de homem sem camisa... Não de rapel.
Mas Ana estava. De fato, ela passara as últimas semanas
comprando os materiais e montando uma parede de escalada
indoor de cinco metros de altura, com rampas, pedras de
agarrar multicoloridas, cordas, mosquetes e uma plataforma no
topo.
Derrotada, Ártemis seguiu Ana Laura, colocou os
apetrechos e, juntas, elas começaram a escalar.
Você acha que eu deveria ter atacado ele no meio da
cafeteria? — perguntou Ana Laura, enquanto pulava até a
primeira agarra.
Não, claro que não — Ártemis negou, se esforçando para
acompanhar o ritmo da amiga. — Ele é da Civil. Em quem você
acha que eles iam acreditar, no servidor público desarmado,
limpinho e honesto ou na mulher maluca que atacou um policial?
Você sabe como eles podem ser corporativistas com essas
coisas.
Certo. Foi um baita plano da parte dele, a gente precisa
admitir.
Sim. Foi, sim. Você já fez uma denúncia anônima?
Passei a manhã toda fazendo denúncias anônimas. Tanto
por telefone como pela internet, mas duvido que dê em alguma
coisa. Ele deve ter algum tipo de barreira para impedir que o
nome dele apareça entre os suspeitos.
Pois é. Ele até usou o meu contato da Polícia Civil! Se ele
for mesmo o Rei Branco, é realmente impressionante. Você
acha que o investigador também é um cúmplice? — falou
Ártemis, começando a ofegar, ao mesmo tempo que elas
subiam mais um lance de pedras.
O Gabriel? Pouco provável, caso contrário ele estaria lá
pra me ameaçar também. E como você mesma me disse, ele é
novo no departamento. Não, o Rei Branco esperou o
investigador ir embora. E aquele homem era mesmo o Rei
Branco: eu comparei o rosto dele com o retrato falado do
recepcionista do hotel em que a Alice morreu. Ele usou uma
peruca e lentes de contato, mas era exatamente o mesmo cara.
Ela se calou, pensando ao mesmo tempo em que olhava
para a parede de escalada.
Aliás, de onde você e o outro policial se conhecem? —
perguntou Ana Laura, perplexa.
Ah, do Tinder. Sabe, o aplicativo de namoro?
Ana Laura não respondeu. Ao invés disso, se lançou para
cima, agarrando mais uma pedra.
O quê? Eu te deixei desconfortável? Todo mundo usa o
Tinder, Ana. — Ártemis riu.
Não, claro que não. Só tô surpresa de saber que essa é a
natureza da relação de vocês dois.
Sério, quando isso tudo acabar, eu vou te inscrever no
Tinder, você querendo ou não.
Se a gente sobreviver, né?
Que bad vibes! É claro que a gente vai sobreviver, meu
Plano Xeque- mate é perfeito.
Perfeitamente arriscado — respondeu Ana — E eu ainda
não concordei com... droga!
Logo antes do último salto, Ana viu sua mão escorregar,
o que fez com que ela batesse as costas na parede, sendo
salva apenas pela corda no mosquetão.
Ei, dá pra tomar cuidado? — Ártemis a repreendeu,
assustada.
Foi mal! — Ana sussurrou, alcançando o topo da
plataforma e se sentando para observar o quintal da casa,
enquanto ajudava Ártemis a subir.
Sabe, Aninha — disse Ártemis, enquanto amarrava seu
mosquetão e terminava de escalar a enorme parede de rapel
—, eu não vejo essa habilidade sendo útil tão cedo.
Se ele não queria me matar, o que ele queria então? —
continuou Ana, sem se atentar à reclamação de Ártemis. — Por
que ele estava tão interessado em me ameaçar?
Porque ele tava com medo, Aninha. Desesperado. A
gente descobriu o nome e o IP dele, era só questão de tempo
até a gente o descobrir conectado aos servidores da Polícia
Civil. Ele se sentiu humilhado e precisava retomar o controle da
situação. A verdade é que...
Verdade? — perguntou Ana Laura.
É... Isso tudo é culpa minha. Você não deveria ter saído de
casa, muito menos sozinha. Me desculpa, Aninha, de verdade.
Instintivamente, Ana Laura colocou a mão no ombro de
Ártemis.
Tá tudo bem. Não tinha como a gente saber. E ele não
está no controle da situação, nem de longe. A gente ainda tem
muitas peças pra jogar, não tem?
Tem — disse Ártemis, sorrindo.
Tem, sim.
É estranho... — Ana Laura prosseguiu. — Esse Arthur
realmente não se parece com um incel. Ele é limpo, tem um
emprego cobiçado, parece relativamente bem sucedido... Eu
até diria que é bonito, se não estivesse querendo matar ele
agora mesmo.
Tá — cortou Ártemis, tentando não rir. — Bonito é um
pouco demais, e é exatamente por esse tipo de comentário que
eu vou te inscrever no Tinder.
Era de noite, e as duas estavam completamente
exaustas, porém, suas mentes continuavam fixas em planejar os
próximos passos. Seus braços estavam doloridos da escalada
— que Ana Laura fizera as duas repetirem até a quase
exaustão —, mas elas sabiam que não podiam parar, não
agora.
As duas haviam analisado a peça de xadrez branca
deixada na cafeteria: era exatamente igual à peça mostrada
pela mídia. Pensaram em rastreá-la até o fabricante original,
mas não daria em nada, afinal, não havia número de série, e
aquela peça em particular parecia ter sido feita à mão; os
círculos e a pequena cruz no topo mostravam um padrão
irregular.
No final da noite, enquanto elas ligavam a TV, a nova
notícia chegou.
“...já é o terceiro assassinato do assassino em série
conhecido como Rei Branco. Dessa vez, a vítima é Luísa
Simões, modelo e influenciadora.”
Terceiro? — exclamou Ártemis.
Merda, eu achei que nós éramos o próximo alvo!
Ana Laura se manteve em silêncio. Ela semicerrou os
olhos e continuou assistindo ao jornal.
Na tela, uma repórter estava em frente a um prédio de
luxo, enquanto viaturas da Polícia Civil chegavam e passavam
ao fundo. De uma das viaturas saiu uma equipe de quatro
policiais.
Pausa! — gritou Ana Laura — Pausa, agora!
Sua TV tem essa função? — perguntou Ártemis,
procurando o controle remoto.
É claro que tem! Só pausa!
Ártemis encontrou o controle debaixo de uma pilha de
almofadas e apertou o botão.
Olha isso! — Ana Laura correu até a tela, apontando para
uma figura ao fundo que tentava esconder o rosto.
Um homem branco, de terno, gravata e óculos quadrados.
É o Rei Branco! Droga, Aninha, é o nosso homem! Merda,
ele matou mais uma vítima e agora vai interferir na cena do
crime toda!
Ana se sentou, ponderou por alguns segundos e
declarou:
Não, tem alguma coisa errada aqui. Alguma coisa muito,
muito errada. O Rei Branco é meticuloso. Ele nunca voltaria à
cena do crime, isso seria quase clichê. Ele nunca iria para um
lugar que ele sabe que tem câmeras... Muito menos se
permitiria ser filmado. A menos que...
...que estivesse desesperado. Desesperado para
descobrir o mais rápido possível o que tá acontecendo lá
dentro.
Exato. O Rei Branco acaba de ganhar seu primeiro
copycat. Alguém está se passando pelo nosso assassino e
cometendo exatamente o mesmo tipo de crime.
Não é impossível — concluiu Ártemis. — O manifesto
dele no fórum deve ter atraído uma legião de malucos. Com
certeza um ou outro leu o texto e decidiu seguir os mesmos
passos. Então, o que a gente faz?
Em primeiro lugar, entra em contato com o seu amigo do
Tinder — pediu Ana Laura, resoluta. — A gente precisa
descobrir o que tá acontecendo naquele apartamento.
Brancas 7:Paralelos
Junho de 2022
O Homem sem Rosto olhava para o vaso quebrado no
meio daquela sala completamente caótica, e não conseguia
parar de pensar em como aquele assassino, aquele Rei Falso,
era um completo idiota.
O lugar era o ambiente mais sujo, caótico e
desorganizado que o Homem já tinha visto. Móveis foram
arrastados para fora do lugar, gavetas haviam sido esvaziadas
e o conteúdo jogado com violência no chão.
A forma selvagem e maníaca com que o copycat
conduzira aquele assassinato deixava o Homem com nojo.
Não tem sinais de arrombamento disse um dos peritos. —
O assassino devia ter uma chave, ou a vítima abriu a porta pra
ele.
Gabriel e Maria Eduarda estavam conduzindo o time de
peritos que coletava e catalogava as evidências.
No canto da sala de estar estava o cadáver — o sangue
vermelho-claro ainda brilhando na parede.
Enquanto o Homem e o outro escrivão tomavam nota de
toda a burocracia envolvida, catalogavam as evidências e
digitavam furiosamente nos computadores portáteis da polícia,
os dois investigadores conversavam casualmente.
O que você acha que leva uma pessoa a fazer uma coisa
dessas? — o homem loiro perguntou, sorrindo por trás de um
cigarro eletrônico.
Instinto assassino — respondeu Maria Eduarda. — Eles
escolhem garotas jovens e bonitas porque precisam se
afirmar, precisam sentir que possuem alguma coisa que é de
direito deles e a sociedade os negou.
E não existe troféu maior do que esse aqui — Gabriel
concluiu, apontando para o corpo sem vida da modelo. —
Homens passam a vida inteira aprendendo que mulheres são
prêmios a serem ganhos. E, quando eles não as recebem,
resolvem roubar o prêmio. Então, esse seu cabelo é natural?
— perguntou Gabriel.
É claro que é. Que tipo de pergunta é essa? — respondeu
a mulher negra, cruzando os braços. — Como não seria?
Me parece um implante, desse ângulo. Qual você acha
que foi a causa da morte?
Vamos ter que esperar a necrópsia, mas o sangue nas
paredes deixa tudo bem claro pra mim… Só pode ter sido arma
de fogo.
A última parte alertou os ouvidos do Homem sem Rosto.
Armas? — questionou Gabriel mais para si mesmo. —
Que estranho. Acho que o nosso assassino ficou sem
paciência, hein? De todo jeito, não é fácil acertar mais de um
tiro na cabeça de alguém, não desse jeito.
Isso é péssimo pra mim, pensou o Homem. Eu tenho
experiência com armas de fogo, e uma nove milímetros em
casa. Além do mais, ele nem mesmo tentou imitar o corte no
pescoço? Que tipo de homenagem é essa?
Enquanto o outro escrivão continuava catalogando cada
peça de roupa jogada no chão, O Homem se levantou e esticou
as pernas.
Preciso dar uma volta, tô ficando com náuseas — ele
mentiu, fechando o notebook. — Você me dá cinco minutos?
Claro, vai lá tomar um ar — disse o outro escrivão.
O Homem começou a rodar pelo apartamento. Uma
coisa era óbvia: o assassino não fora ali só para matar, ele com
certeza estava procurando por algo.
Casualmente, ele andou até o outro lado do quarto e
começou a tirar o entulho da frente das paredes, até que achou
o que procurava: uma tomada elétrica comum, igual a todas as
outras do apartamento, não fosse um pequeno detalhe, um
furo, de um centímetro de largura, bem no meio das entradas
elétricas.
Brilhante, ele pensou. É exatamente o que eu teria feito.
Ele tirou do bolso do paletó uma caneta esferográfica
comum, desenroscou a tampa plástica e retirou o cartucho.
Cuidadosamente, pressionou a ponta do cartucho contra o furo,
ouvindo um discreto som de descolamento.
O soquete elétrico se abriu, mostrando uma pequena
gaveta de quinze centímetros de largura, cujo conteúdo era uma
carta de baralho preta.
Um Rei de Espadas, pensou. Rapidamente, ele colocou a
carta no bolso do paletó, fechou a gaveta e se levantou.
Ele não tinha percebido o quão perto estava do cadáver.
Luisa Simões...
Ele tinha que admitir, mesmo que passasse boa parte do
seu tempo livre navegando na internet, ele não tinha a menor
ideia de quem era aquela mulher. Ela parecia ser relativamente
famosa, mas nem de longe fazia parte do círculo de interesses
do Homem.
Ele tirou um tempo para olhar para aquela casca sem
vida. Mesmo que parte do seu crânio estivesse destruída (por
uma arma de calibre alto, notou), ela era verdadeiramente
linda, seu cabelo cor de ouro e seus lábios amplos e grossos.
Parece uma boneca, ele pensou. O Homem sem Rosto
não conseguiu se impedir de ficar de cócoras e encostar seus
dedos em um tufo de cabelo dourado.
Imaginou como seria encostar em cabelos assim, de
forma consensual, por alguns instantes. Tão lisos, tão macios.
Já achou a peça de xadrez, escrivão? — questionou uma
voz grave vindo de trás de suas costas, o que o fez dar um
salto.
Ele não percebera em que momento o delegado
Diógenes havia entrado no apartamento. Aos olhos dele,
Diógenes era um homem rústico: alto, careca, negro, barba
sempre por fazer.
O Homem não gostaria de ter o delegado como inimigo.
Já sim, senhor — disse ele, se recompondo. —
Exatamente igual às outras: uma peça grande de madeira, feita
à mão, sem número de série, marcas ou digitais perceptíveis.
O Homem sem Rosto ponderou por alguns instantes o
quanto deveria revelar para o delegado. Ele não podia dar a
impressão de que era um mau policial, mas também não podia
entregar evidências que apontassem diretamente para ele.
No fim das contas, ele concluiu que um Rei Falso não era
uma coisa tão ruim: se o copycat fosse encontrado e preso,
mesmo que nunca confessasse, a mídia toda daria o caso
como encerrado e ele estaria livre.
Assim que começou a falar com o chefe, Gabriel correu
até os dois, tão ansioso para impressionar o delegado quanto
qualquer um ali.
O Rei Branco ter usado uma arma é um ótimo sinal — o
investigador novato começou a falar. — Armas são rastreáveis
e, se ele tinha acesso a elas, provavelmente tem algum laço
com o tráfico de drogas, a Polícia Militar ou...
Sim, sim. Mas não é uma evidência tão boa assim —
respondeu Diógenes, sorrindo de forma irônica. — Até porquê
esse assassinato em particular não foi trabalho do Rei Branco,
e sim de um homenageador. Nãoé, Arthur?
O Homem sem Rosto suspirou, frustrado e tremendo um
pouco.
Sim, obviamente — confirmou ele, com franqueza.
Qual é!? — retrucou Gabriel, irritado. — Como é o ditado?
Quando você ouvir cascos, pense em cavalos, não em zebras.
Quais são as chances de duas pessoas resolverem matar
pessoas com o mesmo perfil, deixando o mesmo cartão de
visita nas cenas do crime?
Seriam baixíssimas — respondeu o Homem sem Rosto —,
caso a mídia não tivesse se envolvido, principalmente a internet.
Agora, com a legião de loucos que existe lá fora, é
completamente possível que outro psicopata tenha resolvido
copiar os assassinatos do Rei Branco. O que realmente aponta
para essa teoria é o modus operandi.
Exato — o delegado aprovou a fala do Homem. —
Assassinos em série são homens de hábitos, e os hábitos do
primeiro assassino são bem diferentes dos hábitos do
assassino de hoje. O primeiro era metódico, calculista, e
gostava de matar suas vítimas de perto.
Esse aqui é diferente: ele claramente provocou uma briga
física, acabou matando-a de longe e deixando a casa dela um
caos. Não concorda, Arthur?
Concordo — disse O Homem sem Rosto, respirando
fundo o bastante para que sua voz trêmula não fosse
percebida. — Além disso, podemos concluir que o segundo
assassino estava procurando alguma coisa.
Pelas gavetas reviradas, a gente já sabe —
complementou Gabriel, impaciente. — Ele deve ter pegado
algum dinheiro e dado o fora.
Deve — disse o Homem, pensando na carta de baralho
escondida em seu paletó. — Deve, sim.
Vermelhas 7:Vigilância
Julho de 2022
Muito obrigada pelos cem mil inscritos, família! Continuem
se inscrevendo e compartilhando, aqui é a RedQueen e eu
amo muito todos vocês! disse a voz metálica saindo pelo alto-
falante do celular, enquanto Ártemis e Ana Laura analisavam o
vídeo de dentro da van, paradas em frente a um enorme prédio
de concreto e metal.
Cem mil inscritos! — exclamou Ártemis. — A gente devia
comemorar com uma garrafa de champanhe, não em uma van
velha parada na frente da delegacia de polícia.
Eu não bebo — confessou Ana, sorrindo. — Nem mesmo
champanhe.
Você não bebe, não joga videogame, seu celular não
pega internet e você é a pessoa mais chata de todo o universo,
RedQueen!
Não me chama de RedQueen! Nós duas somos a
RedQueen. E o seu turno já vai começar — lembrou Ana
Laura, que procurou um binóculo na mochila e o entregou nas
mãos de Ártemis.
Ela precisava admitir: cem mil inscritos era um número
bastante impressionante, principalmente em tão pouco tempo.
Claro, não estava nem perto do recorde — outros criadores de
conteúdo alcançaram o número bem mais rápido que ela —,
mas ainda assim era uma conquista.
Obviamente, Ana Laura tinha mais recursos para gastar
do que a maioria dos criadores da plataforma. Ela dispunha de
uma equipe inteira trabalhando constantemente para divulgar,
trazer métricas eficientes e otimizar o alcance de cada um dos
seus vídeos. A equipe era toda remota — ninguém sabia o
nome verdadeiro dela, muito menos seu endereço —, de forma
que nenhum deles corria perigo e nem arriscaria a segurança
das duas garotas.
Era graças à equipe remota que ela estava ali, naquela
van antiga e quase dilapidada — o maior carro que
conseguiram encontra com o mínimo de documentação
possível —, fazendo vigília em frente à delegacia da Polícia
Federal.
Com bonés, óculos de lentes antirreflexo e moletons, as
duas tentavam não chamar atenção dentro daquela velharia de
metal.
Já não deu a hora do fim do expediente dele? — indagou
Ártemis, preocupada. — Por que ele ainda tá lá dentro?
Pode estar fazendo hora extra, para compensar pelo
trabalho extra no caso do Rei Branco, ou...
Ou?
Ou ele sacou que a gente já sabe onde ele mora, e está
dormindo na própria delegacia.
Sem chance. Olha, ele tá ali! — Ártemis avisou,
apontando com seu binóculo.
Era verdade: o policial de óculos quadrados apareceu na
porta da polícia, sem blazer ou gravata, e ficou completamente
parado no meio da rua.
Ártemis viu os punhos de Ana Laura se fecharem quando
ela avistou o rosto do Rei Branco mais uma vez.
Aninha... Você sabe que não pode fazer isso, né? — ela
advertiu com a voz mais suave que conseguiu. — Não pode ir lá
agredir ele, você seria presa. A gente nem tem evidências que
ele é mesmo o assassino!
Ele é. Eu sei que é — disse Ana, respirando fundo. —
Mas você tá certa. Uma ação precipitada pode nos custar
caro. E de todo jeito, tem um copycat à solta agora. Isso quer
dizer que o policial Arthur não é mais o único Rei Branco.
Enquanto elas discutiam, um motoboy se dirigiu ao
policial, que pegou uma sacola parda de lanche, deu as costas
e voltou para dentro da delegacia.
Comida — Ártemis concluiu.
Outra evidência sólida de que...
O Rei Branco está dando mais plantões na delegacia do
que de costume, ou pode até mesmo estar morando lá. O que
é um problemão pra gente.
Sim. É um prédio grande, fortificado e impossível da
gente se infiltrar. Ele escolheu uma base de operações
impenetrável, e a gente não pode parar tudo o que estamos
fazendo para vigiar o Rei Branco pedindo delivery, né? — disse
Ártemis, revirando os olhos.
Não, não podemos, e Teté... o que a gente tá fazendo...
não é errado, é? Eu quero dizer... Nós somos as “mocinhas”
nessa história, não somos? — perguntou Ana, com a voz
trêmula.
O que te fez perguntar uma coisa dessas? — Ártemis.
O manifesto... O Rei Branco se vê como uma espécie de
herói. Ou, no mínimo, como a verdadeira vítima dessa história
toda. Como se minha irmã o tivesse provocado a fazer o que
fez. Como se ela merecesse a morte.
A gente já teve essa conversa, Aninha — relembrou a
amiga, determinada. — Ninguém merece morrer, independente
da pessoa imperfeita que sua irmã tenha sido. E, afinal de
contas, quem elevou esse tal de Rei Branco ao posto de juiz da
humanidade? Que direito ele tem de ser juiz, júri e tribunal?
Bem... você tem razão. O que a gente faz agora? O Plano
Xeque-mate — insistiu Ártemis, sorrindo.
Pra falar a verdade, eu nem sei se eu entendi todo o Plano.
É uma completa maluquice, de verdade. E você sabe que uma
de nós pode morrer, né?
Sei — confirmou ela. — Sei, sim, isso é parte do pacote. E
tem outra coisa: se a gente confirmar que o Rei Branco está
morando na delegacia, isso quer dizer que a casa dele está
desprotegida.
Um lampejo acendeu no rosto de Ana Laura.
Isso! Quer dizer que podemos invadir a casa dele.
Talvez a gente encontre alguma evidência direta, ou pelo
menos mais alguma pista sobre o paradeiro do seu irmão.
Ana Laura percebeu que falar sobre Felipe ainda
machucava Ártemis, mesmo que ela se esforçasse para
manter um sorriso.
É... Uma pista sobre o paradeiro. Com certeza é o que eu
quero encontrar.
E a gente vai, Teté! A gente vai provar que o Felipe é
inocente. Isso eu te prometo.
Um silêncio sepulcral invadiu a van.
Ana Laura podia sentir a dor da amiga.
Então... — Ana Laura quebrou o silêncio. — Quer me
contar o Plano de novo?
Quero — Ártemis falou sorrindo, com o brilho voltando
aos seus olhos.
Quero, sim.
Brancas 8: Assassinato
Julho de 2022
O Homem sem Rosto acordou no meio dos arquivos
empoeirados da Polícia Civil, abriu os olhos e se levantou.
Perder o seu apartamento realmente havia sido péssimo:
o aluguel era relativamente barato, e ele mal teve tempo de
retirar as coisas importantes de lá. Ainda assim, foi melhor
sair e se alojar em um quarto abandonado do prédio da
delegacia do que continuar lá. Ele não sabia quanto tempo
demoraria até que a RedQueen descobrisse seu endereço a
partir do IP dele.
E de todo jeito, estar em um prédio público daquele
tamanho tinha suas vantagens: ninguém aparecia naquelas
salas, nem mesmo para limpá-las. E ficar amigo dos zeladores
não foi difícil, bastou uma ou outra caixa de chocolates e alguns
bombons para ganhar a simpatia eterna deles. Depois, só
precisou forjar a assinatura do delegado — um hábito que ele
já estava construindo há várias semanas, caso precisasse
destruir alguma evidência relacionada ao Rei Branco — e
entregar uma ordem de serviço para que os próprios zeladores
lhe dessem uma cópia da chave da sala de arquivos. De fato,
eles haviam se apegado de forma tão intensa ao Homem sem
Rosto que entregaram para ele a única chave do local,
pedindo-o que fizesse uma cópia ele mesmo e devolvesse a
original no dia seguinte.
Foi um prazer imenso para o Homem entregar uma chave
completamente inútil de volta para os zeladores. Afinal, não é
como se ele pudesse se dar ao luxo de ter os funcionários
entrando ali a qualquer momento, e eles nem mesmo iam
precisar.
Ele olhou para o celular — eram quase três da manhã. O
expediente começava cedo, principalmente para ele, que tinha
de ser o primeiro a chegar para não levantar suspeitas. Ainda
assim, queria estar descansado para levar o seu plano à
frente: agilizar as investigações do Rei Falso.
Ele pegou o paletó jogado em um canto do chão e tirou a
carta de baralho de dentro do bolso. Agora, podendo analisar a
carta com calma, o Homem percebeu uma inscrição minúscula,
escrita à mão no verso do baralho:
“Catedral de São Sebastião. Todas as terças, às 01h00.”
Ele não contou o achado para mais ninguém, nem mesmo
para os investigadores. Não, isso era pessoal, e ele resolveria
aquilo e garantiria que ninguém na polícia sonhasse que o
escrivão Arthur Magno era, na verdade, o Rei Branco.
Se, no começo, o Homem sem Rosto achou que ter um
copycat poderia ser útil, agora ele já havia mudado
completamente de opinião. Aquele homem não somente estava
sujando seu nome — o trabalho dele era descuidado, sujo.
Impuro.
Estava exausto. Colocando a carta de volta no paletó, se
deitou no colchonete e fechou os olhos, tentando trazer à
memória os acontecimentos daquela noite, enquanto ignorava
o som de metal contra metal e o ranger das correntes ecoando
tão perto do seu leito. O que importava era aquela noite.
A noite mais especial.
A noite em que isso tudo começou.
Ele fechou os olhos e se transportou de volta para o
Recanto da Coroa.
O Homem sem Rosto estacionara sua viatura nos fundos
do hotel fazenda, saindo da estrada e deixando o carro no meio
do matagal mais próximo.
A peruca loira, a maquiagem e as lentes de contato o
incomodavam, mas não importava — o que estava prestes a
fazer era uma grande loucura, e ele não podia arriscar em ser
identificado caso alguma coisa desse errado.
Eu finalmente vou poder te ver, pensou o Homem, ver
você e te ter pra sempre.
O Homem pegou seu celular e abriu um aplicativo
customizado, que ele mesmo havia programado. A interface
não era nada sensacional — ele não era um programador,
afinal de contas. Tudo o que a tela mostrava era uma série de
botões.
Trezentas horas de vídeos e streams pra conseguir dez
botões, Alice. Vamos ver se a gente consegue achar algo útil,
né?
Ele saiu do carro, abriu o porta-malas do carro e tirou um
único item lá de dentro: uma caixa de madeira, cheia de
garrafas de água mineral.
Pegou a caixa, fechou o porta-malas e começou a se
dirigir até a porta da frente do hotel.
Ah, quase me esqueci.
Na metade do caminho, o Homem sem Rosto parou,
colocou a caixa no chão e ligou o celular, apertando o primeiro
botão do aplicativo e se voltando para o poste telefônico.
De imediato um pequeno led vermelho se acendeu do
lado de fora da caixa telefônica, respondendo aos comandos
do aplicativo do Homem.
Ele sorriu.
É realmente fácil subornar um eletricista para instalar uma
caixa misteriosa em qualquer lugar, ele pensou.
Pegando a caixa de volta, ele andou até a porta da frente
e entrou.
Não era um lugar particularmente requintado: o hall de
entrada estava completamente vazio. As paredes eram
adornadas com símbolos turísticos locais, além de uma estante
repleta de chaveiros e camisas com a logomarca do Recanto
da Coroa.
No balcão, um recepcionista se encontrava de terno e
gravata borboleta, de pé e alerta. Era um garoto, não devia ter
mais de dezoito anos, e a única alma viva naquele salão.
O Homem sem Rosto foi até ele, fingindo estar ofegante.
Oi! Eu sou Júlio César, o assessor da Alice. Ela mandou
um e-mail avisando que eu iria vir?
Ao ouvir o nome da youtuber, o recepcionista ajustou a
postura.
Claro! Júlio, isso. Você veio trazer as coisas da festa
dela?
Da festa, isso — disse o Homem, dando o sorriso mais
largo que conseguiu. — Sabe, gente famosa pode ser um pé no
saco, às vezes.
Sério? — perguntou o jovem, curioso.
Sério. Nunca conheça seus heróis: a Alice tem cara de
fofinha, mas já demitiu um assessor só porque ele deixou um
convidado de copo vazio por tempo demais.
Nossa. Eu já ouvi falar das festas, mas achei que eram
menos escandalosas.
Ah, são muito. Eu já tive que carregar o namorado dela
completamente bêbado até o hospital, mais de uma vez.
Ossos do ofício, né? disse o Homem sem Rosto, rindo.
Carregar? Parece bárbaro. Queria eu ser convidado para
uma festa assim!
Então, filho, ouça um conselho: nunca aceite esse tipo de
emprego, essas festas não têm a menor graça quando é você
no banco do motorista — assegurou ele ao menino. — Então,
posso subir?
O adolescente abriu o computador um modelo dos anos
2000, extremamente antiquado — e começou a procurar alguns
arquivos.
Ah, sim, o e-mail tá bem aqui. Vou ligar para o
apartamento agora mesmo pra te anunciar, ela deve responder
em um instante, a luz dela ainda tá acesa.
O Homem sem Rosto deu um pequeno passo para trás.
Anunciar? — perguntou ele, tirando o celular do bolso.
Sim, sim. Só vou ligar para o quarto dela, um segundinho.
O jovem pegou o telefone e discou.
Agora, pensou o Homem sem Rosto.
Alô, serviço de quarto — disse o recepcionista.
Assim que escutou a voz dele, o Homem sem Rosto
apertou o segundo botão em seu aplicativo.
Alô! — O Homem ouviu uma voz feminina responder do
outro lado da linha.
Trezentas horas de conteúdo, ele pensou. Trezentas
horas de conteúdo pra conseguir um mísero alô.
Estou aqui com o senhor Júlio César, ele pediu para subir
até o seu apartamento, posso permitir?
Ele mesmo! — confirmou a voz pelo telefone.
Certo, só uma questão de protocolo, você pode confirmar
o nome do seu...
Antes que o rapaz pudesse terminar a frase, a ligação foi
desligada.
Nossa — disse o garoto — Ela é mesmo difícil de lidar,
hein?
Nem me fale. Aqui — disse o Homem sem Rosto, tirando
uma garrafa de água de dentro da caixa —, aposto que a
megera não vai sentir falta de uma garrafa. Se hidrata, garoto.
Nossa, tá uma noite bem quente, mesmo. Obrigado! — O
jovem agradeceu, sorridente, entregando uma cópia da chave
em suas mãos, abrindo a garrafa e tomando um gole da garrafa.
O Homem sem Rosto olhou profundamente nos olhos do
rapaz, e percebeu que suas pálpebras já estavam começando
a cair.
Em alguns minutos, ele estaria completamente
inconsciente.
O Homem pegou sua caixa de garrafas e subiu as
escadas.
Ele ficou surpreso por não ter precisado usar a caixa de
interferência que havia mandado instalar na linha telefônica
interna do hotel. Ainda assim, não foi uma má ideia, e ela ainda
podia lhe ser útil.
Quando chegou no corredor, ele viu a porta do
apartamento de Alice e Felipe, o som do chuveiro ligado
claramente audível, mesmo de fora do quarto. Ele respirou
fundo, colocou a caixa no chão e começou a duvidar.
Duvidar se ele queria mesmo cruzar essa linha. Se valia a
pena se arriscar tanto...
Se valeria a pena matar a mulher que ele amava.
Ele não queria seu mal... Não queria que ela ficasse triste,
ou sentisse dor, ou…
Não importava, nada daquilo importava. O que ele ia fazer
não era perverso, não de verdade.
Perversidade era o que ela estava fazendo com ele e com
todos os outros.
Ele começou a retirar as garrafas de água de dentro da
caixa, revelando um fundo falso. Tirando a tampa de madeira,
encontrou o que precisava.
Luvas cirúrgicas, tamanho 7,5. Tesouras recém afiadas.
Uma faca militar de fibra de carbono nunca utilizada.
Estava tudo ali.
Ele deixou a caixa no chão do corredor e, da forma mais
silenciosa possível, inseriu a chave na fechadura.
Não precisou rodar a chave para saber que ela tinha
encaixado com perfeição.
O Homem girou a chave e entrou no quarto em silêncio,
sorrindo.
Vermelhas 8:Torres e Reis
Agosto de 2022
— Ele tá saindo — disse Ártemis de dentro na van,
enquanto tentava ativar o novo comunicador, bem mais potente
que o primeiro. — Aninha, ele tá saindo da delegacia, dessa vez
de verdade.
Demorou alguns segundos, mas Ana Laura atendeu ao
chamado.
Sério? Pra onde ele tá indo? São quase uma da manhã!
— disse a voz embargada de sono.
Eu não sei. Eu sigo ele?
Segue, tomando todo o cuidado do mundo, Teté. Se você
morrer eu juro que te mato. Tá com o boné?
Tô, tô sim. Boné de caminhoneiro e óculos sem grau.
Por que você usaria óculos sem grau?
Ajuda. Tinha um personagem de um jogo que eu adoro,
que usa óculos sem grau pra parecer menos ameaçador.
Bom — respondeu Ana Laura —, eu não conheço, nem
quero. E desde quando garotas nerds são ameaçadoras?
O cruzado de direita que eu te dei no treino de boxe ontem
discorda! — Ártemis riu, puxando seu boné para baixo e saindo
da van.
De longe, ela começou a seguir o Rei Branco enquanto
ele descia a rua da delegacia. Ártemis não tinha muita
experiência no assunto, mas a escuridão da noite e o horário
ajudavam — mesmo que passasse da meia-noite, a rua ainda
não estava deserta. Aquela era, felizmente, uma região boêmia
da cidade, e o grande número de pedestres entrando e saindo
dos bares a ajudou a se esconder na multidão.
O Rei Branco andou por vários quarteirões, olhando
sempre para trás e para os lados, mas nunca parando.
Droga — praguejou Ártemis, no comunicador — E se ele
tiver me visto?
Para de andar por alguns segundos e muda de direção.
Tem muita gente na rua, Teté?
Tem — ela sussurrou. — Tem, sim.
De qualquer jeito, se ele chegar perto de você, tosse. O
botão de pânico ainda tá no seu chaveiro? Se estiver em
perigo, é só usar e eu e a polícia chegamos em um instante.
Tá sim. Certo, fica de olho.
Após alguns minutos, o policial parou em frente a um
edifício em particular: uma igreja. Ele tirou um objeto da
carteira, olhou para a fachada... e entrou.
Ártemis chegou mais perto, perto o bastante para
perceber que o edifício não era somente uma igreja: era uma
Catedral, com quase vinte metros de altura, detalhes barrocos
em preto e marrom, vitrais de janelas coloridas e uma enorme
torre com direito a um sino no topo. Antes suntuosa, agora as
paredes daquela construção jaziam sujas e pichadas — aquele
lugar havia sido abandonado há muito, muito tempo.
Ele entrou em uma igreja, Aninha.
Tô indo lá.
Pera, o quê? Pode ser uma armadilha, Ártemis, a gente
não pode correr esse risco!
Nem correr o risco de ele matar mais uma pessoa lá
dentro. Me perdoa, Aninha, de verdade.
E se ele ver seu rosto? — disse Ana, ofegante. — E se
ele te machucar? Droga, Ártemis, volta!
Me desculpa, Aninha, mas é um risco que eu estava
disposta a correr desde o começo. Aproveita e toma um café.
Ana Laura se manteve em silêncio. Ela sabia que, quando
Ártemis colocava uma coisa na cabeça, era quase impossível
argumentar.
Só toma cuidado, ok?
Ok, fica de olhos e ouvidos atentos.
A primeira coisa que Ártemis fez foi tirar o boné e o
moletom e jogá-los na lata de lixo mais próxima, deixando os
cabelos cacheados respirarem. Antes pintados de rosa, agora
ela os havia descolorido e tingido de azul — um pedido de Ana
Laura para que, segundo a amiga, “chamasse menos atenção”
durante esse tipo de perseguição. Ela havia concordado, com a
única condição de que Ana também pintasse o cabelo de
vermelho para evitar o trabalho constante de tirar e colocar a
peruca ruiva.
Com os cabelos soltos e o moletom no lixo, Ártemis
respirou fundo e adentrou a Catedral, suando frio.
Ela não precisou explorar muito.
Assim que colocou os pés na nave do templo, encontrou
não uma pessoa, mas quinze. Quinze homens sentados em
círculo e em silêncio, todos olhando para o centro. Não era
uma igreja particularmente opulenta; os únicos adornos do lado
de dentro eram os vitrais e o teto, no qual uma abóboda
espelhada mostrava uma imagem distorcida de quem estivesse
embaixo.
Um espelho no teto? Que arquitetura de motel, pensou
Ártemis.
Olhando de relance, ela não viu nenhum padrão entre
eles: alguns eram jovens, aparentando ter uns dezoito anos,
enquanto outros estavam na casa dos trinta. Alguns eram
barbudos e tinham camisas estampadas com personagens de
filmes e séries; outros estavam bem vestidos, de terno e
gravata, como se aquela fosse uma reunião de negócios
qualquer. E, sentado ao lado de uma cadeira vazia, estava um
homem de camisa social, gravata preta e óculos retangulares.
O próprio Rei Branco.
Era um grupo heterogêneo, não fosse pelo fato de todos ali
serem homens.
É, com certeza eu vou morrer hoje, ela pensou.
Um dos homens de terno e gravata se levantou e andou até
a sua direção. Ele era relativamente bonito — tinha olhos azuis,
cabelo castanho e um distinto nariz aquilino. Parecia ser o
líder do grupo, pois estava sentado na maior cadeira, e todos
os olhares se voltavam para ele. Próxima à sua cadeira havia
uma maleta, na qual Ártemis esperava profundamente que não
houvesse uma arma.
Outra garota! — disse ele, sorrindo, e estendeu a mão
para um cumprimento.
Ártemis o cumprimentou, resoluta.
Não tem nada de errado nisso — O homem continuou a
falar. — Você veio ouvir a palavra do nosso Rei e se
arrepender dos seus maus caminhos, não veio, depósito de
porra?
Depósito?! Ele enlouqueceu? Eu vou matar esse escroto!
— gritou Ana Laura.
Ártemis conhecia o termo, e não era um elogio, mas
precisou engolir a raiva.
Exato. Obrigada por me aceitar — disse Ártemis por fim,
e sorriu.
Em silêncio, ela abaixou a cabeça e se sentou na cadeira
vazia.
A cadeira vazia ao lado do Rei Branco.
Assim que ela se sentou, o policial se empertigou em sua
própria cadeira, olhando impaciente para o relógio de pulso.
Ártemis tossiu, e Ana Laura entendeu o sinal,
praguejando.
Ele tá aí? Não faz nenhum movimento brusco.
Será que ele tá esperando alguém ou alguma coisa?,
ela pensou, ou só se sente desconfortável aqui?
Então, vamos começar? — disse o líder, ficando de pé.
De uma forma ou de outra, todos concordaram, embora Ártemis
ainda pudesse sentir a hostilidade voltada para ela nos olhares
da maioria das pessoas que ali se encontravam. Ela passou os
olhos pelo rosto de cada um dos outros participantes, tentando
decorar suas características o melhor que podia.
Ela não pertencia àquele grupo. Nunca pertenceria — e
ela sabia disso.
Meu nome é Paulo Viana. Eu era um estudante de
engenharia comum, antes das ações do Rei Branco. Somente
um jovem solitário, como todos vocês. Mas graças ao nosso
Rei eu consegui ver a verdade.
Ártemis teve que se segurar ao máximo para que seu
queixo não caísse. Enquanto isso, Ana Laura enchia seu ouvido
de palavras de baixo calão, tamanho o espanto.
O jovem continuou.
Eu era uma vítima. A verdade é que, por mais que as
militantes tentem nos enganar, o patriarcado acabou faz muito,
muito tempo. Nós, homens, que por tanto tempo oprimimos e
escravizamos as mulheres, agora nos tornamos o setor mais
oprimido da sociedade. Passamos a infância sendo prometidos
o amor e a aprovação do sexo feminino, para depois sermos
apenas ignorados, ridicularizados ou explorados
financeiramente.
Ártemis quase riu, mas conseguiu se segurar.
Sério? Quantas vezes você teve medo de andar na rua
por medo de ser estuprado? Quantas vezes você viu um
homem fazer exatamente a mesma coisa que você e ganhar o
dobro do crédito?
Por mês, eu gastava em torno de mil reais com
streamers, influenciadoras e coisas do tipo. Pagava mulheres
bonitas para me mandar mensagens só para eu me sentir
querido, me sentir válido. Mas o manifesto do Rei Branco me
mostrou a verdade. Me mostrou que essas mulheres não
gostavam realmente de mim. Elas me odiavam, elas me
matariam em troca de um punhado de seguidores. E é nosso
dever odiá-las de volta. Se existe um Rei, nós vamos ser as
suas peças.
Somos as Torres do Rei.
Ártemis olhou de relance para o policial e percebeu que
ele cruzara os braços após reconhecer as últimas palavras
copiadas do manifesto.
“Engraçado... Será que ele tá tão surpreso quanto eu?”
Como você diz, isso é que é stan! — disse Ana Laura, no
comunicador. — Se ele não for o nosso copycat, é o maior
candidato.
Ártemis queria responder, conversar com pelo menos uma
pessoa sã durante aquele momento de completa insanidade.
Apesar disso, ela conseguiu respirar fundo e se segurar.
Os olhares de desconfiança para ela só estavam
aumentando.
Ela precisava fazer alguma coisa.
É verdade! — gritou, ficando subitamente de pé. — Eu já
fui uma youtuber... e eu conheço de perto a Monetização da
Solidão.
Como você poderia? — questionou o líder do grupo. —
Você é parte do gênero que nos nega tudo.
Meu nome é Ártemis Silva. E eu conheço a opressão por
que eu também me apaixonei por alguém. Há poucas
semanas, uma youtuber chamada RedQueen começou a me
mandar mensagens, me prometendo amizade e talvez algo
mais. Mas, quando eu aceitei... Nada daquilo era real.
Ninguém protestou.
Ela parecia ter acertado um nervo principal.
Evitou o melhor que pôde olhar para o rosto de Arthur,
mas sabia que ouvir o nome da RedQueen chamara sua
atenção.
Eu entrei em uma espiral, fazendo de tudo para
impressioná-la, dando dinheiro para ela, tudo. Até que um dia...
Hora do golpe de misericórdia, pensou.
Em um milésimo de segundo, Ártemis invocou todas as
memórias que tinha de Felipe em seus pensamentos. Do seu
único irmão, seu porto seguro.
Daquele guerreiro, que tinha lutado contra tudo e contra
todos para seguir o sonho dele, mesmo que sociedade
estivesse contra ele, por fim chegando ao nível profissional de
um dos jogos mais concorridos do mundo todo.
Ela pensou em seu irmão, que provavelmente estava
morto.
Logo, lágrimas começaram a descer pelo seu rosto.
Inicialmente uma lágrima solitária, que logo se converteu em
uma verdadeira torrente, borrando completamente sua
maquiagem.
Um dia, eu encontrei a RedQueen no mundo real. Esbarrei
com ela e me apresentei, falei que eu era uma de suas maiores
fãs, que era eu que a patrocinava no nível mais alto... e ela
nem sequer me reconheceu. Ela disse que eu conversava com
os assessores dela o tempo todo, que não tinha tempo para os
fãs, e me deu as costas. Para sempre — afirmou Ártemis, sua
voz embargada de choro.
Os homens estavam em silêncio.
Um dia — concluiu ela —, eu vou encontrar o Rei Branco
pessoalmente e vou agradecê-lo por abrir os meus olhos.
Um por um, eles começaram a aplaudir, os queixos
caídos e os olhos arregalados, até que todos lhe deram uma
salva de palmas.
Nossa! — Ana Laura falou por meio do comunicador. —
Até eu fiquei com raiva de mim!
O líder sorriu, enquanto Ártemis se sentava na cadeira e
suspirava, aliviada.
Obrigado, irmã. Nós entendemos sua dor. E saiba que o
nosso Rei também entende, mais do que ninguém.
Após seu discurso inflamado, outros membros também se
levantaram e deram seus respectivos testemunhos. A maioria
era semelhante: eles haviam depositado sua fé em pessoas
famosas com quem achavam possível ter um relacionamento e,
de uma forma ou de outra, haviam sido decepcionados.
Ela percebeu que Arthur não se levantou, nem disse uma
palavra, apenas aplaudiu quando os outros aplaudiram.
Eles realmente não sabem que o Rei Branco está no meio
deles — declarou Ana Laura. — Segura firme, a reunião parece
estar acabando.
Quando o último membro se sentou, após alguns instantes
de silêncio, o líder se levantou, tirou um envelope pardo de
dentro de sua maleta e entregou seu conteúdo para cada um
deles. Era uma única carta de baralho com o endereço da
igreja escrito à mão.
Um Rei de Espadas, Ártemis pensou. Mais barato que as
peças de xadrez.
Compartilhem a fé do Rei com quem vocês encontrarem,
meus amigos. Tragam mais peças para que ele possa nos
usar.
Um por um, os membros daquela reunião começaram a
se levantar e seguir o seu caminho para fora da igreja. Poucos
ficaram para conversar, e esses não pareciam muito íntimos.
Ela se virou, limpou parte da maquiagem borrada no
dorso das mãos, e deu de cara com o Rei Branco.
Ártemis, certo? — perguntou ele, olhando em seus olhos.
Sim. Ártemis.
Sabe, foi um belo testemunho. Foi bem corajoso da sua
parte se abrir daquele jeito.
Obrigada... mesmo. Eu ainda tô bem triste, pra ser
honesta. Pena que a gente não conseguiu ouvir o seu
testemunho.
De fato, não houve pressão nenhuma para que ele falasse.
Naquele lugar, as expectativas depositadas em cima de
Ártemis eram bem diferentes das colocados sobre Arthur e
qualquer outro homem presente no recinto.
É bem parecido — disse ele, sorrindo de canto de boca,
um sorriso triste, quase decepcionado. — Parecido demais.
Você falou a verdade no final, não falou? Sobre agradecer ao
Rei?
Falei. Falei, sim. Eu quero encontrar o Rei Branco, mais
do que tudo.
Não era mentira.
Eu também quero encontrá-lo. Se quiser ajuda nisso... —
disse ele, pegando uma caneta dentro da jaqueta e anotando
um número de telefone em sua carta de baralho. — Fique à
vontade pra me ligar.
Obrigada. — Ártemis aceitou a carta e a guardou no
bolso. — Sabe, você ainda não me disse seu nome.
Ah! Me perdoe. Eu sou o Arthur, prazer — ele se
apresentou, sorrindo e estendendo a mão.
Ártemis. Prazer em te conhecer, Arthur, agora eu preciso
ir.
Lentamente, ela deu as costas e foi embora, enquanto
Ana Laura se encontrava no casarão dos Machado
completamente boquiaberta.
Brancas 9:Prisioneiro
Agosto de 2022
O Homem sem Rosto voltou, sozinho, para o prédio da
Polícia Civil.
Ele tinha um sistema: a cada vinte e cinco metros, olhava
para seus arredores para se certificar de que não estava
sendo seguido. No caminho até a igreja, ele teve uma sensação
semelhante, mas, no fim, era apenas mais um trombadinha
naquela cidade lotada.
Já passavam das três da manhã, e ele sentia um completo
esgotamento físico e mental. Para falar a verdade, nem
compreendia seus sentimentos sobre a descoberta daquela
noite: um grupo de pessoas que se intitulava as Torres do Rei,
que se dedicavam a... ajudá-lo.
Ele não sabia se os achava patéticos, ou se se sentia
profundamente lisonjeado. Talvez, uma mistura dos dois.
É assim que você se sente, RedQueen?, ele pensou.
Não, não era a mesma coisa. Não havia nada patético
em idolatrar umacriadora de conteúdo.
Idolatrar um assassino em série era uma história
completamente diferente, e até mesmo o Rei Branco sabia
disso.
Não fora uma completa coincidência achar outra inscrita
do canal durante a reunião. A RedQueen se tornara
relativamente famosa para os padrões do YouTube.
E ela precisa de um pouco de correção, ele refletiu.
O Homem passou pela fachada da Polícia Civil e entrou.
Ele escolhera uma boa fortaleza: aquele prédio tinha um
número alto de barreiras, tanto físicas quanto digitais. E
precisara se esforçar muito para conseguir todas as chaves de
que precisava.
Ele subiu até a empoeirada sala de arquivos, se deitou
em seu colchonete e fechou os olhos, exaurido.
O Homem sem Rosto acordou com o barulho das
correntes. Irritado, pegou seu par de óculos e se levantou.
Ele repetiu o mesmo ritual de todos os dias, embora
naquele estivesse de folga. Ao levantar, se alongou, deitou no
chão, fez cem abdominais, cinquenta flexões e então vestiu as
roupas limpas que se encontravam cuidadosamente dobradas
em uma mochila no chão.
Rituais eram importantes, afinal de contas.
Andando um pouco pelo andar, conseguiu encontrar o
banheiro de funcionários vazio — um luxo que só quem
chegava às seis da manhã poderia ter.
Ele tomou seu banho, se secou, vestiu as mesmas roupas
e saiu. Ainda pretendia voltar ao seu antigo apartamento, mas
não por muito tempo era importante minimizar os riscos
Voltou para a sala de arquivos sem levantar suspeitas. O
som de correntes estava ainda maior. Na verdade, aquele
barulho havia reverberado durante toda a noite.
Imbecil. A única coisa lógica a se fazer numa situação
dessas é dormir, pensou ele.
Impaciente, o Homem sem Rosto foi até o fundo da sala.
Colado contra a parede estava um armário grande, de dois
metros de altura e três de largura, fechado com uma corrente e
um cadeado do tamanho de uma mão fechada. Tinha dado uma
quantidade razoável de trabalho tirar todos os documentos
velhos de dentro do móvel, mas valera a pena — pelo menos,
até agora.
Tá, você venceu, ele pensou, tirando a chave do bolso e
abrindo a porta.
Dentro do armário, amordaçado e acorrentado a dois
grandes parafusos presos na parede, estava Felipe Braga, o
idiota que Alice havia escolhido namorar.
Seus braços estavam vermelhos e arranhados, de tanto
se debater contra a porta do armário, assim como os olhos,
injetados — embora o Homem não soubesse se a aparência
era devido às lágrimas de desespero, à alguma reação alérgica
ou por eles estarem constantemente fechados e se esforçando
para enxergar no escuro.
Seu cabelo, antes cacheado e saudável, tinha sido
raspado para que o Rei Branco deixasse os fios como evidência
nos outros assassinatos. Suas roupas — o uniforme do time de
e-sport em que jogava e uma calça jeans — já se encontravam
rasgadas, aos frangalhos.
Era um cadáver vivo.
Um acesso venoso permanecia injetado no braço direito
dele, conectado a uma bolsa cheia de um líquido marrom claro
— uma solução de soro e glicose.
No canto do armário havia um rolo de papel higiênico e
um balde vazio. O Homem sem Rosto agradeceu aos céus por
não ter de lidar com aquilo naquele momento.
Você já tem tudo que precisa — disse o Homem, olhando
para os olhos vermelhos e irritados de Felipe, enquanto
mantinha uma distância segura.
Você tem soro, glicose, oxigênio, um lugar para fazer suas
necessidades. O que mais você quer?
Seu prisioneiro tentou responder, desesperado, mas
sabia que era impossível com a mordaça. Felipe começou a
chorar.
Você entende que não vai sair vivo daqui, não entende?
“Vós que entrais, abandonai toda a esperança.” Não é isso que
o Dante disse?
O prisioneiro abaixou a cabeça, sem forças.
Então você entende, o Homem pensou.
Vamos, me entretenha um pouco. É o meu dia de folga e
eu não tenho mais nada para fazer.
O Homem sem Rosto deu um passo para a frente. Com
todo o cuidado que conseguiu, retirou a mordaça,
desobstruindo a boca de seu prisioneiro.
Imediatamente, ele começou a gritar. Não era uma palavra
ou uma frase específica — o Homem supôs que ele estivesse
fraco demais para isso —, mas sim um grito gutural, feral, o
grito de uma presa completamente encurralada.
Seu clamor durou alguns segundos, e parou.
Não houve resposta.
Você sabe que eu não tiraria sua mordaça se não tivesse
instalado algum isolamento de som. Não me subestime dessa
forma, Felipe.
Eu... Eu sei. Você matou a Alice, seu desgraçado! —
respondeu ele, com a voz trêmula.
Matei — confirmou o Homem sem Rosto, olhando para
baixo.
Por... Por que?
O Homem sem Rosto pensou naquela pergunta por um
bom tempo
Porque eu quis. Porque e eu podia. Porque eu precisava.
O que te importa?
Ela era o amor da minha vida! — ressaltou Felipe, entre
lágrimas — Eu não sei o que ela fez pra você, mas garanto que
não foi por mal.
O Homem notou a perspicácia do prisioneiro: mesmo em
suas condições precárias, ele era capaz de perceber que o Rei
Branco agia por retribuição. Não tinha sido um crime aleatório,
sem sentido.
Nada é.
O que você quer de mim? — perguntou o prisioneiro.
Francamente? Eu não sei. Acho que quero te entender.
Como você conseguiu? —inquiriu o Homem. A verdade é que
ele estava entediado demais para inventar alguma mentira
elaborada. E ser honesto era profusamente mais fácil.
Consegui? Consegui o quê? — questionou Felipe,
perplexo.
Era a resposta errada.
O Homem sem Rosto se irritou. Ele mordeu a parte
interna da sua bochecha, e decidiu que precisava extravasar.
Tirou o cadeado do bolso e, em um movimento rápido, bateu-a
com força contra a parede do armário, amassando- a.
Conseguiu tudo, seu idiota. Você tinha tudo. Uma carreira
sendo pago para jogar videogame. Você tinha dinheiro.
Conseguiu subir em uma profissão que a taxa de sucesso é o
quê, um por cento? Tinha a aprovação completa da
sociedade, da sua família. Tinha amigos. E tinha a “namorada-
troféu” perfeita, pra completar o pacote. Uma das garotas mais
desejadas do país escolheu se entregar pra você. Como você
conseguiu isso tudo, sendo um verme que é?
O prisioneiro pareceu refletir bastante acerca das últimas
palavras. O Homem sem Rosto cruzou os braços, receoso de
que tivesse falado um pouco demais.
Você não entende... — disse Felipe, vacilante.
Então me explique. Eu adoro entender as coisas —
respondeu o Homem, irônico, dando um passo para trás.
Eu sei que parece muita coisa — começou o prisioneiro.
— Mas é diferente quando é com você. Você fica feliz quando
consegue essas coisas, mas no fim nunca é o bastante.
O Homem sem Rosto balançou a cabeça, incrédulo.
E você queria ainda mais? Isso tudo que eu listei não era
o bastante pra você?
Não, não é isso — implorou o prisioneiro. — É parte da
natureza humana. A verdade é que a minha vida não era do
jeito que você descreveu. Eu era pago para jogar videogame,
mas também treinava oito horas por dia, seis dias por semana.
Eu tive Lesão por Esforço Repetitivo aos dezesseis anos. Jogar
não era meu hobby, era meu trabalho, e depois do primeiro
mês na liga profissional o jogo perdeu completamente a graça
pra mim.
Continue... — incentivou o Homem sem Rosto.
Eu não era tão bem pago assim. Meu trabalho estava
constantemente em risco, e eu precisava lutar constantemente
contra garotos que tinham o dobro dos meus resultados, com
metade do esforço. E Alice... Alice era humana. Ela não era a
garota perfeita que mostrava ser nos vídeos, ela era um ser
humano, cheia de qualidades públicas e defeitos privados. E
eu... Eu só quero ir embora. Por favor replicou ele, encostando
a cabeça contra a parede.
As palavras do prisioneiro causaram um profundo
desconforto no Homem sem Rosto. Alice era... humana? Como
ele ousava falar dessa forma sobre sua alma gêmea? Da
mulher perfeita? Não, não podia ser verdade.
Alice era pura.
Você não vai sair — respondeu o Homem, depois de
recolher seus pensamentos. — Apesar disso, considere-se um
homem de sorte: você ia morrer hoje.
Eu... ia?
Ia — confirmou o Homem, recolocando a mordaça na
boca de seu prisioneiro. — Mas não vai. Os planos mudaram,
você ainda pode ser útil pra mim.
Logo antes de fechar a porta, o telefone do Homem tocou.
Olha só — falou para seu prisioneiro, em tom de gracejo
—, você não é o único que tem sucesso com as mulheres.
Ele deu as costas, olhou para o teto e atendeu o celular.
Alô, Ártemis? Isso, é o Arthur aqui...
Foi um momento de sorte. Se tivesse atendido ao telefone
um segundo antes, o Homem sem Rosto teria percebido o
completo horror na expressão de Felipe ao ouvir o nome e a
voz de sua irmã ao telefone.
Vermelhas 9:Contingências
Setembro de 2022
— Obrigada, Arthur. Te vejo semana que vem. Beijos,
tchau! — Ártemis se despediu, desligando o telefone. — E aí,
conseguiu rastrear a chamada?
Demos azar — disse Ana Laura, frustrada, em frente a
uma mesa repleta de documentos e computadores — Ele
comprou um telefone antigo, sem GPS. Talvez a gente consiga
uma triangulação grosseira usando o ping das torres de dados,
mas não vai ajudar muito.
Até porque, o sinal provavelmente vai mostrar o prédio da
delegacia. Acha que ele pode estar rastreando a gente?
É possível. Ele é maluco, e você é a maior gata. — Ana
Laura gracejou, tomando outro gole de sua xícara de café e
analisando uma das cartas de baralho.
A gente tá usando uma torre privada, de todo jeito, e elas
são protegidas contra esse tipo de coisa. Você tem certeza
que...
…que eu procurei se tinha algum tipo de rastreador nas
cartas? Claro que sim. Olhei contra a luz, rasguei uma delas
em mil pedaços, tudo. Não tem absolutamente nada eletrônico
nelas. É só papel e tinta.
Humm... Como é o nome da seita deles, mesmo?
As Torres do Rei. Como no xadrez, né?
Sim. Achei que iam escolher alguma coisa mais patética,
como Peões ou Cavalos.
Por favor! — disse Ártemis, rindo — Ninguém quer ser
só o peão.
Muito menos um cavalo! Ana Laura riu junto.
Acho que sim. Você tem os rostos deles?
Ártemis se levantou e colocou sobre a mesa uma folha
grande de cartolina, com dez rostos masculinos, de diferentes
idades e aparências, impressos na frente.
No centro, estava o rosto do Rei Branco.
Isso é o que eu consegui com o software de retrato
falado. Eu tentei decorar o rosto de cada um deles, mas tem
uma margem de erro aí, né?
Tem. Tirando o rosto do Arthur, a gente pode admitir
pequenas variações. Qual deles é o líder?
Esse. — Ela apontou para o moreno de terno e gravata —
Bonitinho, até.
Faz seu tipo? — Ana Laura perguntou.
Sim, eu sou apaixonada por homens que montam fã-
clubes pra psicopatas.
Você sabe — falou Ana Laura com seriedade —, dar
seu nome verdadeiro pra eles foi uma péssima ideia.
Eu sei. Eu tava nervosa e não consegui pensar em nada
melhor. Mea culpa. De todo jeito, deletei todas as minhas redes
sociais há meses, como a gente tinha combinado no começo.
Facebook, Instagram, tudo. Não tem como ele descobrir quem
eu sou só com meu primeiro nome e a minha aparência, pelo
menos não.
Então não foi uma ideia ruim de todo, foi?
Foi sim, mas agora eu não tenho ideia de onde conseguir
meus vídeos de gatinho. — Ártemis brincou. — Ah, e outra
coisa: a história que eu contei sobre a RedQueen vazou na
internet.
Já? Que rápido. Só pode ter sido um dos membros das
Torres.
Só pode. A gente tenta rastrear, mas eu tô exausta depois
da noite passada.
Uma pena — disse Ana Laura, sorrindo. — Porque a
gente precisa continuar treinando.
Tem certeza que quer fazer isso? perguntou Ártemis,
segurando uma arma de plástico apontada para a cabeça de
Ana Laura. As duas estavam usando protetores de cabeça e
luvas, embora elas soubessem que não teriam esse luxo no
mundo lá fora.
Tenho. Me conta, as Torres estão mantendo contato?
Estão. Essa semana mesmo, programaram um... Aí,
droga, Ana Laura! — gritou, enquanto tinha sua arma chutada
para longe e tomava um gancho de esquerda no rosto.
Me desculpa! — falou Ana, preocupada. — Machucou?
Machucou meu ego! — Ártemis admitiu, esfregando o
rosto. — Eles estão começando a programar ações menores.
Ataque a canais, perfis fakes, essas coisas. Não teve nenhum
ataque aocanal da RedQueen.
Humm... Você não acha que seria a primeira coisa que o
Rei Branco ordenaria que eles fizessem?
Seria, se o Rei Branco estivesse por trás deles. Mas ele
parece estar tomando cuidado, por enquanto. Talvez ele queira
descobrir quem é o copycat tanto quanto a gente.
Talvez. Vamos de novo?
— Pelo que eu entendi, existem duas formas de fazer
isso: a boa e a rápida. — disse Ana Laura, enquanto
acorrentava os braços de Ártemis e fechava-os com um
cadeado pesado. — A forma boa é mais difícil, mas não deixa
evidências. A forma rápida é mais fácil, mas quebra o cadeado.
E você precisa me acorrentar pra gente treinar isso?
É um incentivo extra! — justificou Ana, tirando um
cronômetro dos bolsos. — Arrombar uma fechadura é bem fácil
quando você está confortável na cama, antes de dormir.
Ah tá... Você arromba fechaduras antes de dormir? Como
hobby?
— Existem hobbies piores.
Tá bom, Batman. Como anda seu canal? — perguntou
Ártemis.
Continua crescendo. Parece que estamos chamando a
atenção de um setor específico da sociedade agora: nossa caixa
de mensagens está completamente cheia de homens tentando
cortejar a RedQueen.
Pobrezinhos — disse Ártemis, manipulando a chave micha
contra a fechadura. — E quais palavras de galanteio eles estão
usando para tentar conquistar seu coração?
Fotos de seus genitais — revelou Ana Laura, revirando os
olhos.
Fotos dos seus genitais, obviamente. Consegue pensar
em algum gesto mais romântico? Eu não consigo.
Ártemis falou, enojada, finalmente quebrando a
fechadura. — Isso! Como fui?
Lenta demais. Se passar dois minutos fazendo essa
quantidade toda de barulho, você vai atrair até o exército.
Certo. Me tranca de novo?
Tranco. Você não acha isso injusto? Esses homens,
querendo começar um relacionamento dessa forma, com uma
pessoa que eles nem conhecem?
Ártemis pensou um pouco na resposta, tentando se
debater o mínimo possível dessa vez.
É aquilo que os idiotas das Torres disseram. Eles
acabaram se apaixonando por você, e querem tentar se
aproximar de alguma forma. Pro nosso cérebro, eles são só
nomes e textos, mas, pro cérebro deles, a RedQueen é uma
pessoa real que faz parte do círculo de amizade deles. No fim
das contas, tudo se resume a uma paixão doentia, como as
pessoas se apaixonavam pelo Elvis ou pelos Beatles na época
deles. Isso! Fui mais rápida dessa vez?
Foi. De novo?
Por favor! — Ártemis pediu, sorrindo.
Eu entendo a questão da paixão. E ninguém escolhe se
apaixonar, paixão é um sentimento. Mas a gente escolhe o que
faz com essa paixão. Garotas adolescentes se apaixonam por
integrantes de bandas coreanas todos os dias, e nunca vi
nenhuma delas comprar uma passagem pra Seoul com uma
faca euma pistola na bolsa.
Ártemis ficou boquiaberta.
Peraí. Você conhece alguma banda coreana?
Ana Laura ficou sem palavras.
Eu... Ah... Eu estava fazendo umas pesquisas, e...
Você só pode estar de brincadeira! Ana Laura Machado, o
gênio do xadrez, é uma K-popper!
Dá pra parar? — disse Ana, empurrando uma almofada na
direção de Ártemis — As músicas só ajudam a me concentrar,
ok? A me concentrar a chutar a sua bunda no boxe!
Tá bom, fangirl. Vamos lá, me tranca de novo.
Ana Laura estava pronta para ir dormir, quando viu a luz
do quarto de Ártemis acesa.
Com uma xícara de café nas mãos, ela bateu à porta.
Pode entrar, Aninha.
Ela girou a maçaneta, pensando em quanto tempo não
entrava no quarto de visitas, desde que cedera à Ártemis.
As paredes estavam completamente cobertas de papel.
Eram documentos de todo tipo, de plantas elétricas, perfis
psicológicos, métricas do canal e retratos falados a relatos
policias. A maior cartolina tinha uma inscrição grande no topo:

XEQUE-MATE.

Onde você conseguiu isso tudo? perguntou Ana Laura,


surpresa.
Ah, as plantas? Sempre tem um ou outro funcionário
público descuidado na prefeitura. Ou na companhia elétrica.
Alguns desses são até abertos ao público.
Certo. Alguns são. Os outros, foram adquiridos de
formas...
…contraventoras — completou Ártemis
Tá. Quando isso tudo acabar, espero que a gente pegue
o juiz mais bonzinho do mundo.
Sim. A gente vai — confirmou a amiga, seu olhar fixo na
cartolina maior.
Teté...Você sabe que a gente pode morrer se executar o
Plano, né? — murmurou Ana, o medo estampado em seus
olhos.
Eu sei — respondeu Ártemis, melancólica. — É uma
contingência, Ana. A gente só segue esse caminho se tudo,
tudo der errado. Ok? Só uma contingência.
Ok. Só uma contingência — concordou Ana Laura,
respirando fundo.
Brancas 10:Evidência
Setembro de 2022
Ei, Arthurzão! — disse Gabriel, segurando seu cigarro
eletrônico pelos dentes enquanto folheava alguns documentos
da polícia. — Cara, pra onde você vai com essa coisa enorme
no fim do expediente?
O Homem sem Rosto estava exausto demais para lidar
com o investigador, principalmente enquanto carregava uma
caixa cheia de serras, tábuas, lixas e outros materiais de
marcenaria. Seu olhar altivo e o jeito como ele entrava em toda
sala como se fosse dono do lugar o irritavam profundamente.
Eu... Ahn... — gaguejou o Homem. Antes que ele
pudesse reagir, o policial loiro tirou a caixa de suas mãos,
levantando-a com facilidade.
E aí, pra onde a gente vai levar? perguntou sorrindo e
mostrando os dentes. — Pro almoxarifado? Pros arquivos lá
embaixo?
O Homem sem Rosto retomou a compostura e começou a
rir.
Que isso, Gabriel. Se eu não conseguir carregar uma
caixinha dessas, como vou ficar forte pra aguentar beber com
vocês de novo?
O investigador estranhou por um segundo, depois riu.
Você é uma figura, Arthur! Leva isso lá. Vocês têm muita
papelada pra amanhã, hein?
O Homem se despediu e deu as costas, rumando em
direção ao elevador que levava à sala de arquivos. Seria um
problema enorme se Gabriel resolvesse acompanhá-lo até a
sala dos arquivos — ele ia precisar tomar mais cuidado nas
próximas vezes.
Ele virou a chave e, carregando a caixa com dificuldade,
entrou na sala.
Assim que entrou, viu seu prisioneiro acorrentado,
dormindo no chão. Como ninguém estava mesmo interessado
em limpar aquela sala em particular, ele tomara a liberdade de
deixar a porta do armário maior aberta.
Afinal de contas, quem sabe o fim da claustrofobia
deixasse o seu cachorrinho de estimação um pouco mais
calmo?
Ele andou na direção do prisioneiro, encontrou uma
tomada e ligou seus materiais.
Acorda — ordenou o Homem em voz alta — Quero
companhia.
Ahn? Eu... —Felipe abriu os olhos devagar, confuso. —
Você... Ah, Deus, é você...
O prisioneiro percebeu a serra e a furadeira e começou a
suar frio.
Dá pra relaxar? Eu não faria isso com você aqui —
garantiu o Homem, — Eu durmo aqui. Dá pra imaginar o cheiro
que ia ficar? A bagunça? Eu nunca aceitaria viver nessas
condições. Tudo o que eu quero é companhia.
O prisioneiro permaneceu em silêncio, olhando para
baixo, mas não parou de suar. Calmamente, o Homem sem
Rosto pegou um toco de madeira e começou a serrar.
O trabalho era lento e delicado, porém ele sabia o que
estava fazendo. O Homem praticava marcenaria desde que era
uma criança no sítio dos avós, com tempo livre de sobra a
partir do dia que em seus pais saíram e não voltaram mais.
E peças de xadrez eram divertidas de esculpir. Suas
formas redondas, simétricas, finas. Uma peça de xadrez era
quase sexy, embora ele precisasse admitir que não conhecia
quase nada sobre o jogo.
Isso é injusto — disse Felipe, finalmente.
Eu sei. A vida é injusta. Você passou os últimos anos
vivendo como uma estrela do rock, e agora vive em um armário.
Eu passei a minha vida toda tentando conseguir aprovação da
sociedade. Uma garota bonita, um emprego legal, dinheiro,
poder pessoal e essa bobagem toda. E, agora que eu larguei
tudo isso, eu tenho uma centena de pessoas me aprovando
nas redes sociais. E algumas delas estão até dispostas a me
ajudar!
Felipe fechou as mãos em punho, mas o Homem sabia
que não havia nada que ele pudesse fazer a respeito.
Tem pessoas do seu lado nessa história? — perguntou o
prisioneiro, incrédulo.
Tem. E eu tenho muito a agradecer à mídia, eles
realmente morderam todas as iscas que eu coloquei. Elevou
minha autoestima às alturas. Agora, porque deixo peças de
xadrez como essa, eu sou o Rei Branco. Tem até um
assassino me copiando! — concluiu ele, sorridente.
Então... — disse Felipe, se esforçando para mantê-lo
entretido. — Isso leva à minha próxima pergunta: você tá
satisfeito? Isso matou sua sede? Te preencheu da forma que
você queria que preenchesse?
A pergunta pegou o Homem de surpresa. Sede. Foi uma
das razões que o fizeram ele começar isso tudo, não foi?
Sim, claro que sim — mentiu.
Duvido. Desejo é o que nos faz humanos. É parte da
nossa identidade almejar coisas cada vez melhores e maiores.
Você é um hedonista —observou o Homem, tirando sua
peça de madeira da serra e começando a lixá-la. — Você ia em
festas toda semana. Morava em apartamentos de luxo.
Eu não vou negar nada disso — afirmou o prisioneiro. —
Eu sou extrovertido. Gosto de pessoas. Mas vai por mim, essa
sede que você está sentindo pode estar mais branda agora,
mas não passa. Quando eu entrei pra uma equipe profissional,
fiquei feliz, mas a felicidade só durou até eu descobrir que
precisava ganhar o campeonato estadual se quisesse
continuar. E quando a gente ganhou o estadual, eu fiquei feliz,
mas só durou até os treinos pro nacional começarem. A vida é
assim: uma coleção de momentos de desejo, com uma ou
outra…
Cala a boca! — disse o Homem.
O que você sabe sobre desejo? Meu apartamento mal
cabe duas pessoas. Como você ousa dizer que não estava
satisfeito? Esse é o seu problema. Você não valorizava
nenhuma daquelas coisas, não de verdade. E agora eu estou
melhor. Minha sede não passou por completo, mas pode
apostar que eu tenho uma das coisas que eu quero, e sou muito
grato por isso.
Felipe se calou por alguns instantes, mas voltou a abrir a
boca.
Uma das coisas que você quer, não é? Porque a outra
coisa era a Alice. Você queria ter ela como seu troféu.
Ao ouvir o nome de Alice, o Homem sem Rosto se
levantou e tirou a serra da tomada.
Sabe, Felipe, eu aprendi muita coisa sobre anatomia
humana. Faz parte da minha profissão, eu acho. Quer saber
uma curiosidade que eu aprendi?
Desculpa — falou o prisioneiro, tarde demais para
perceber o erro que tinha cometido. — Não foi a minha
intenção, eu...
Enquanto ele suplicava, o Homem sem Rosto tirou a
furadeira elétrica da caixa e ligou-a na tomada. Ele continuou a
falar.
Você sabia que córnea é a região com maior densidade
de nervos do corpo humano? Qualquer pequena alteração
nesse órgão tão minúsculo pode danificar permanentemente o
globo ocular. Engraçado, né?
Mas, mas... Eu achei que você... que você...
Que eu o quê? Não pretendesse te matar? Você tá certo,
não pretendo. Eu ainda preciso de você vivo, infelizmente. Mas
ninguém ligaria se você perdesse um olho ou dois. Dá pra
imaginar a dor que seria? — O homem exibiu sua ideia,
enquanto puxava o gatilho da furadeira, fazendo-a girar. — O
ferro destruindo cada molécula, cada pequeno nervo dessa
região tão pequena do seu olho? Até valeria a pena a sujeira
que você ia causar. A furadeira te perfurando, chegando na íris,
na pupila,,.
Para, cara, você enlouqueceu?
Meu Deus, MEU DEUS, eu...
O Homem sem Rosto pegou a furadeira e começou a
aproximá-la do olho esquerdo do prisioneiro.
Decímetros.
Os assassinatos, me conta mais, me conta do copycat,
pelo amor de Deus...
Centímetros.
Me conta dos outros assassinatos, me conta da peça de
xadrez, Rei Branco, pelo amor de...
Milímetros de distância de danificar sua córnea
permanentemente.
Até que, de repente, o Homem puxou o gatilho mais uma
vez e a furadeira parou de girar.
O que você disse? A peça de xadrez? — perguntou o
homem, franzindo as sobrancelhas.
Sim, a peça, Jesus amado! Como o copiador encontrou
uma peça igual à sua? Eu...
Cala a boca. Acabei com você por hoje — disse, deixando
os materiais de marcenaria para trás.
O olho de Felipe estava intacto, pelo menos por enquanto.
Como o copycat encontrou uma peça exatamente igual à
minha?
Ele trancou a porta atrás de si, desceu as escadas e
correu direto para o armário de evidências, no andar superior.
Era impossível, não era? Muita coisa tinha sido vazada
pela mídia — ele mesmo tinha anexado ao seu manifesto uma
foto da peça usada em um dos assassinatos —, mas as
chances de reproduzir uma peça exatamente igual àquela eram
minúsculas.
A menos que...
Quando as evidências físicas associadas ao primeiro
assassinato foram catalogadas, nem mesmo existia um Caso
Rei Branco. Por isso, elas estavam em uma caixa separada,
cada uma em um envelope plástico.
Amostras de DNA de Alice e Felipe, dentro de sua
embalagem.
Fotos da cena do crime, dentro de suas embalagens.
O conteúdo da bolsa de Alice, dentro de sua embalagem.
E uma embalagem vazia. Etiquetada “Peça de Xadrez”.
Ele não encontrou uma peça exatamente igual à que fiz.
Ele pegou a peça que eu usei no primeiro assassinato.
O que quer dizer que o copycat tem livre acesso ao
armário de evidências da Polícia Civil, concluiu o Homem sem
Rosto, ofegante.
Vermelhas 10:Invasão
Setembro de 2022
Celular analógico, sem GPS, do jeito que você precisa —
disse Ana Laura, entregando o aparelho nas mãos de Ártemis
dentro de sua van de vigilância. — Me conta o Plano todo de
novo.
Do começo? — perguntou Ártemis.
Aas roupas que ela estava usando eram bem diferentes
do usual: ao invés do moletom e calças jeans, Ártemis
escolhera um vestido curto, rosa choque, mostrando suas
pernas fortes devido ao treino de rapel. O único item que ela
manteve eram seus tênis All Star pretos. os quais Ana Laura
suspeitava que ela não tirava nem para dormir.
Tá. Eu marquei um encontro particular com o Arthur. Ele
ainda não me contou que é o Rei Branco.
Você acha que tem chances de ele contar?
Pode, mas não hoje. Do jeito que ele me trata,
francamente, ele parece estar tentando me impressionar. Mas
é possível, sim. E, se ele tentar qualquer coisa comigo...
Você me chama no comunicador, aperta o botão de
alarme na sua bolsa ou, em último caso, tem uma lata de spray
de pimenta e um bastão retrátil na sua bolsa. Sabe, coisas de
mulher.
Sei. E, enquanto eu mantenho o Rei Branco distraído e
tento arrancar alguma informação, você invade a casa dele,
adicionando mais um pra lista de crimes que a gente já
cometeu.
Exato. Eu entro na casa dele e procuro evidências sobre
o paradeiro do Felipe, ou qualquer coisa que possa inocentá-lo.
Teté...
Sim?
Me desculpa, mas... existe uma possibilidade muito real
de, quando eu chegar no apartamento do Rei Branco...
De você encontrar o cadáver do meu irmão. Eu sei... —
frisou Ártemis, respirando fundo. — É por isso que não estou
indo com você. Eu distraio o assassino, você invade a casa
dele. E ele pode ter preparado algum tipo de armadilha no
apartamento, agora que ele não mora mais lá. Tá preparada pra
esse tipo de situação?
Estou — afirmou Ana Laura, dando dois tapinhas na sua
mochila. — Última coisa: independente do que acontecer, por
favor, não desligue o comunicador em hipótese alguma.
Estamos entendidas?
Estamos. Hora de ir — falou ela, dando um soquinho no
ombro da amiga.
Fica de olho.
O endereço confirmava que o apartamento não ficava
longe dali. Eram mais ou menos uns quinze minutos de
caminhada, mas mesmo isso provocava um profundo
desconfortável em Ana Laura.
Ana teria alguns obstáculos pelo caminho. Em primeiro
lugar, sabia o endereço graças ao IP que o Rei Branco havia
usado para clicar no link-armadilha, mas o local era um
prédio, e ela não tinha como saber o número do apartamento.
Tentara de tudo: invadir servidores dos correios, celulares de
moradores, e, no entanto, não encontrara nenhuma forma
indireta de conseguir a informação.
Se quisesse descobrir, ela precisaria interagir com as
pessoas lá dentro.
Ártemis — disse pelo comunicador —, tô próxima do alvo.
Como estão as coisas?
Nada dele ainda. Ele deve chegar às dez horas em ponto,
ainda falta um tempo. Toma cuidado, Aninha, de verdade.
Ana Laura andou por mais alguns minutos, até que
encontrou o lugar. Não era um prédio novo — parecia ter três
camadas diferentes de azulejos do lado de fora, e a fachada
era um simples portão de ferro com um interfone dos anos 90.
Nada de câmeras, reconhecimento facial ou coisa do tipo.
Ela tocou o interfone para falar com o porteiro. Esperou
alguns segundos, um minuto, dois...
Ninguém respondeu.
Ela olhou para dentro da guarita do prédio e encontrou,
protegida por uma cabine de vidro, uma silhueta dormindo com
o rosto contra a mesa.
Droga! O porteiro tá apagado — concluiu Ana.
Morto? — perguntou Ártemis, apreensiva.
Não! Dormindo, mas eu saquei o mal-entendido, erro meu.
Vou ter que arrombar a fechadura da entrada.
Sem chance, Ana Laura. Meu trabalho aqui é diminuir a
pena que você vai pegar no final dessa história. Arranja outro
jeito de entrar, ou espera ele acordar.
Certo. Eu tive uma ideia. Sério, não desliga esse
comunicador!
Olhou para os dois lados da rua. Deu sorte: havia uma
rede de fast-food a dois quarteirões dali. Ana Laura correu até
lá e comprou o lanche mais barato para viagem —
hamburguer, batata frita e refrigerante — e voltou até a portaria.
O porteiro continuava a dormir.
Ela encostou as costas na grade e, respirando fundo,
esperou.
Esperou dez, quinze, vinte minutos...
No meio do processo, Ártemis voltou a se comunicar.
Ele tá aqui. Se alguma coisa der errado, a gente abaixa
os volumes e aperta o botão de pânico, né?
Certo — concordou Ana Laura, vendo um pedestre se
aproximar dela.
Fica de olho.
Um homem alto e musculoso, de uns trinta anos de idade,
se aproximou dela com um molho de chaves nas mãos. Ele
olhou para ela e sorriu, enquanto colocava a chave na
fechadura e abria o portão.
Oi! Com licença? — falou Ana Laura, invocando toda a
força quepossuía para abordar o completo estranho.
Sim? — respondeu o homem, seu sorriso aumentando de
tamanho.
Você pode me dar uma ajuda? Eu tô tentando deixar um
lanche no apartamento do idiota do meu irmão, mas ele não
quer atender o telefone, o porteiro tá dormindo e...
Ah, claro, claro. Esse interfone é uma porcaria mesmo.
Vem cá, eu conheço seu irmão?
Ahn... S-sim! — gaguejou Ana, enquanto entrava pelo
portão do prédio e olhava para o porteiro para se certificar de
que ele realmente estava vivo. — É o Arthur, branquinho, de
óculos, sabe?
Ah, o policial que mora no 301? disse ele, tirando a
mochila das mãos dela. — Bem pesadinho, hein?
Isso. O próprio — confirmou Ana, entrando no elevador e
apertando o botão para o terceiro andar. — Qual é o seu andar?
O último — respondeu o homem, apertando o botão no
painel. — Sabe, ruivas são estranhas.
O quê? — perguntou Ana Laura, se lembrando que seu
cabelo estava pintado de vermelho. — Ah, nós somos?
São. Ei, eu nunca faço esse tipo de coisa, mas quer
tomar um vinho?
Aposto que o meu apartamento é bem maior que...
Para o alívio de Ana Laura, o elevador havia chegado ao
terceiro andar.
Fica pra próxima! — Ela desviou do convite, sorrindo
amarelo — Quem sabe?
Enquanto saía, o homem musculoso encostou os dedos
em seu braço, mas, felizmente, ela conseguiu sair do elevador
antes que a situação evoluísse para além daquilo.
Com a porta do elevador fechada, Ana Laura fez questão
de tirar sua lata de spray de pimenta da mochila e mantê- la em
punho.
Andando da forma mais silenciosa que conseguia, ela
chegou até a porta fechada do apartamento 301.
Respirou fundo e colocou o ouvido contra a porta, mas
não ouviu som algum.
Ela bateu à porta, o spray de pimenta em mãos, pronto
para ser usado.
Ninguém respondeu.
Bateu mais uma vez, olhando ao redor para conferir se
não chamara nenhuma atenção indesejada.
Nada.
Ana Laura abriu a mochila, tirando seu kit de chaves
micha e introduzindo-o na fechadura. Trinta segundos depois, a
fechadura estava aberta, com tempo de sobra para ela garantir
que não havia danificado o mecanismo da tranca.
Ela colocou a mão na maçaneta, mas hesitou. Recolheu a
mão e abriu a mochila mais uma vez, tirando de dentro dela um
pesado cilindro vermelho de metal.
Com uma das mãos, girou a maçaneta e deu um passo
para trás. Logo após abrir a porta, ela viu um líquido amarelado
cair de cima do batente.
Em um milésimo de segundo, uma fagulha elétrica
acendeu o líquido e o transformou em chamas, provocando um
pequeno incêndio no apartamento.
Filho da mãe, Ana Laura pensou, você tava certa,
Ártemis!
Assim que o processo de combustão começou a se
formar, Ana pressionou o gatilho do extintor à base de pó
químico que retirara da mochila, apagando o fogo
imediatamente, antes da ativação de qualquer tipo de alarme.
Nada mal, Rei Branco.
Com o extintor em uma mão e o spray de pimenta na
outra, ela entrou no apartamento, deixou o kit de chaves micha
na fechadura, e acendeu as luzes.
O apartamento era ainda menor do que ela havia
imaginado. Ana teve que respirar fundo — não podia deixar
sua claustrofobia atacar, não agora.
Para a casa de um psicopata, o lugar era
surpreendentemente limpo. Não havia mesas, cadeiras e nem
mesmo uma televisão. Apenas uma sala de estar com um
armário, uma cama perfeitamente arrumada, uma pequena
cozinha e um banheiro. A primeira coisa que fez foi passar um
dedo no tapete: não tinha nem um grama de poeira ali.
Limpado recentemente. Estranho.
Ela tirou um tempo para limpar a mancha grande de pó
químico que produzira em frente à porta — o Rei Branco
provavelmente não iria voltar ali, mas se voltasse, Ana gostaria
de que ele não soubesse que tivera visita. Após alguns
segundos esfregando com a barra da própria blusa, a mancha
desapareceu, dando lugar a alguns pequenos pontos
chamuscados no chão.
Do outro lado do quarto havia um computador
completamente destruído, sua tela derretida pelo que Ana
Laura supôs ser fogo.
Esperto.
Ela abriu o armário, esperando o mesmo nível de
limpeza e arrumação. O que encontrou, entretanto, foi um
completo caos: camisas e calças jogadas por todos os lados,
junto com cabos de computador, documentos e outras
parafernálias.
Ana examinou todos os itens, um por um, e como
imaginara, nenhum dos documentos era pertinente ao caso.
Enquanto vasculhava uma das gavetas, encontrou um
item que a interessou, jogado no fundo de uma montanha de
gravatas. Era um pacote de plástico, repleto do que parecia ser
cabelo humano, castanho escuro e crespo.
Ela colocou o pacote no bolso e fechou a porta do
armário.
Quando estava quase de saída, Ana Laura escutou um
som grave vindo debaixo dela. Inicialmente um som rítmico que
logo se tornou mais alto e desesperado.
Era o som de uma coisa viva.
Felipe? — perguntou ela.
Antes que pudesse investigar mais, seu comunicador
emitiu um bipe.
Fiz merda. Se esconde! — Era a voz de Ártemis, e o
coração de Ana Laura pulou uma batida.
Brancas 11: Líder
Setembro de 2022
O Homem sem Rosto viu aquela bela mulher negra se
aproximar dele e cumprimentou-a com um beijo na bochecha.
Ao vê-la ali, diante dele, se sentia em conflito. Seu vestido
rosa era curto, mostrando suas pernas estonteantes. Ainda
assim, ela não fazia o tipo físico usual do Homem — e ele não
pôde deixar de lembrar das mulheres que faziam.
O Homem parou um momento para pensar se ele se
sentiria mais atraído pela RedQueen se a visse pessoalmente.
De todo jeito, ele estava bastante atraído agora mesmo, embora
o propósito daquele encontro fosse apenas conseguir uma
aliada.
Ei, Arthur! — disse ela, cumprimentando-o. — A gente já
tem lugar para sentar?
Oi, tem sim. Me acompanha? — Ele sorriu, tirando o
casaco de Ártemis.
Juntos, os dois entraram no bar, acompanhados de um
garçom. Não era o lugar que o Homem frequentava — o salário
de um policial não era nem de longe compatível com aqueles
drinques caros e importados. Ainda assim, tirara um pouco dos
recursos que tomou durante o segundo assassinato para levar
Ártemis em um lugar especial. Independentemente das
intenções, havia muito tempo que ele não levava uma garota
para um encontro.
Então, vamos direto ao ponto? — disse Ártemis, seus
olhos brilhando. — Você suspeita que o Rei Branco seja um dos
membros das Torres do Rei?
A pergunta tomou o Homem de surpresa. Ela realmente
era uma mulher direta, muito mais do que ele imaginava.
O que a fez chegar a essa conclusão? — perguntou ele,
sorrindo. Era uma pena estarem em um bar: ele adoraria ter
uma caneca de chá preto para discutirem o assunto. Ao
contrário disso, tinham que se contentar com duas taças de
vinho, pedidas pela própria garota.
Qual conclusão? Que o Rei Branco é um membro das
Torres? Ou que você se tornou um membro para procurar pelo
Rei Branco? — rebateu Ártemis. O jeito jocoso dela fazia aquilo
tudo parecer uma grande brincadeira, e o Homem estava
começando a gostar disso.
A segunda conclusão. Eu já disse a você que estou
procurando, mas não disse que era isso que eu estava fazendo
por lá.
Bem, em primeiro lugar, você nunca contou sua história.
Só participou das reuniões, em silêncio. Meio estranho, não
acha? Principalmente quando eu quase tive que dar minha
ficha criminal completa só pra sentar no meio de vocês.
O Homem riu.
Eu sinto muito por eles. Mesmo
disse o Homem. — A verdade é que a maioria daqueles
homens tem uma mentalidade um pouco... infantil acerca do
sexo feminino.
Bastante infantil. E, em segundo lugar, você pediu para se
encontrar especificamente comigo. A pessoa menos provável
de ser o Rei Branco no meio daquele grupo, já que eu sou uma
mulher.
Sim. Isso é verdade — admitiu ele.
Pois é. Eu acho que você quer encontrar o Rei
Branco, e acha que eu posso te ajudar nisso, de alguma forma.
Você pode me ajudar muito, sem dúvida — ele disse,
tomando um gole de seu vinho.
Ártemis não havia sequer encostado em sua própria taça.
Mas o que você tem a ganhar vindo aqui, Ártemis? —
questionou o Homem, semicerrando os olhos.
A mulher se aprumou na cadeira, respirou fundo e
começou a falar.
A verdade, Arthur, é que eu preciso encontrar o Rei
Branco. Ele é o homem perfeito, um homem que vai levar sua
missão à frente, custe o que custar. Ele é um rebelde, um
guerrilheiro, e eu estou apaixonada por ele.
Apaixonada? — perguntou o Homem, surpreso.
Completamente apaixonada. Eu disse, ele é perfeito pra
mim. Por isso eu quero encontrá-lo, para poder ajudá-lo a
trazer sua visão ao mundo. E eu sei que ele não concorda com
a milícia de incels do pessoal das Torres. Não, ele é gentil,
sofisticado e forte.
Eu acredito — disse o Homem sem Rosto, tentando
segurar o sorriso. Seu coração estava a mil. — Obrigado por
sua honestidade, Ártemis, de verdade. Em troca, eu vou colocar
todas as cartas na mesa também — completou, mentindo.
Fique à vontade, Arthur.
Eu não sei quem é o Rei Branco, pelo menos, ainda não,
mas eu tive informações privilegiadas sobre o terceiro
assassinato. A cena do crime, o modus operandi...Tudo foi
diferente. Errado. Não é o tipo de coisa que o Rei faria. Você
está familiarizada com o termo copycat?
Humm... — Ela fingiu pensar um pouco no significado da
palavra. — É um assassino que tenta se passar por outros
assassinos?
Exato. Eu acredito que um dos membros das Torres do
Rei está se passando pelo Rei. Ele pode ter boas intenções,
mas suas ações descontroladas estão sujando a imagem do
Rei Branco. E ele precisa ser parado.
Ao ouvir a última parte, Ártemis pareceu surpresa, e
chegou seu banco para trás, afastando-se dele.
Algum... problema? — perguntou o Homem sem Rosto.
Bem, pelo que saiu nas notícias, o terceiro assassinato
foi realizado com uma arma de fogo, não foi?
Foi, foi sim.
Então, faz sentido que ele seja um policial, já que tinha
fácil acesso a pistolas de mão.
Em um segundo, todo os músculos do Homem sem Rosto
se enrijeceram.
Um policial.
Sim. E você acha que eu não notei, Arthur, mas tem uma
nove milímetros escondida do lado de dentro do seu terno, não
tem? Dentro do seu coldre?
— Bem... Eu...
E, se você tem uma arma de fogo, e o copycat tem uma
arma de fogo... O que me garante que você não é o copycat?
Mais uma vez, o Homem sem Rosto riu. Ele colocou a
mão esquerda no bolso da calça e mostrou uma carteira
costurada com o distintivo dourado da Polícia Civil.
Você é brilhante, Ártemis. Acho que vamos nos dar muito
bem juntos. Realmente, eu sou um policial civil. Mas não estou
contra o Rei Branco, de forma alguma. Eu só quero impedir
que o resto da polícia prenda o cara errado, só isso.
Ártemis pareceu brincar com a taça de vinho, entretanto,
continuou sem tomar nenhum gole. Ela ponderou a proposta
por alguns instantes e voltou a levantar a voz.
Então eu não vou ser presa? — perguntou ela, simulando
um ar inocente.
Enquanto não cometer um bom crime, não — gracejou o
Homem, piscando. — Mas eu tenho mais provas de que não
sou o copycat. Quer dar uma olhada?
Quero — respondeu Ártemis quase imediatamente.
Excelente! — declarou o Homem, tirando um punhado de
dinheiro da carteira. — Vem comigo, então.
Os dois se retiraram e começaram a caminhar pela rua do
bar. O Homem sem Rosto percebeu que Ártemis caminhava
cautelosa, mesmo que estivesse usando tênis ao invés de
salto, ela andava devagar, sempre com a bolsa próxima ao
corpo.
Ártemis, você tem de medo de mim? — ele respirou fundo
e perguntou, enquanto caminhavam pela rua escura.
Não, claro que não! Você é um fofo. Eu tenho medo é de
andar em uma rua escura de noite — explicou ela. — Mas não
tanto medo, eu sei me muito bem defender, obrigada.
Sabe?
Sim. Eu luto boxe.
Impressionante. Adoraria treinar com você um dia.
Ártemis não respondeu. Só continuou andando ao seu
lado.
Chegamos — disse ele, parando em frente ao velho
prédio onde morara por tantos anos.
Aquele lugar lhe trazia um sentimento profundo de
nostalgia — com exceção da sua última visita, havia semanas
que ele nem pisava naquele apartamento.
O apartamento onde tudo começou. Onde ele começou,
em uma tarde solitária, a assistir ao Espelho da Alice.
Ártemis parecia paralisada atrás dele.
Algum problema? — perguntou. Olhando para trás, ele viu
Ártemis de joelhos, amarrando os cadarços, e podia jurar que
ela havia sussurrado alguma coisa.
Nada, só estava amarrando os cadarços. Vamos entrar?
— propôs, sem tirar o sorriso do rosto.
Vermelhas 11: NãoRespire
Setembro de 2022
— Fiz merda. Se esconde! — disse Ártemis pelo
comunicador, antes do coração de Ana Laura pular uma batida.
As palavras da amiga ressoavam em sua mente, seu tom
desesperado era o de quem sabe que as coisas acabaram de
tomar um rumo imprevisível.
O tom de quem estava indo para lá, junto com o Rei
Branco.
Me esconder? Onde?
Com as pernas tremendo, Ana começou a olhar ao redor,
desesperada.
Era um apartamento pequeno. Não havia espaço para ela
dentro do armário, nem dentro dos outros móveis.
O ar de seus pulmões começou a desaparecer. Ofegante,
ela começou a rodar pelo quarto, completamente desorientada.
Olhou para a porta. Talvez ela ainda tivesse tempo de
sair. seu kit de arrombamento já estava engatado, ela só
precisaria de um segundo para trancar a porta e...
Ana Laura escutou o som do elevador abrindo as portas
no terceiro andar.
Não, não havia mais tempo. Havia um corredor longo até
o apartamento, mas em linha reta, e o Rei Branco com certeza
veria alguém saindo de seu apartamento, e não teria problema
nenhum em sacar sua arma de policial e dar seis tiros de
advertência nas costas de Ana Laura.
Ela podia ficar ali, nocauteá-lo com extintor de incêndio,
ou talvez machucá-lo de verdade. Mas aí, ela não teria
evidência nenhuma de que aquele homem era o assassino. Ela
teria vingança, com certeza. Só que Felipe ainda estaria
desaparecido, e continuaria sendo o principal suspeito dos
assassinatos do Rei Branco.
E o copycat continuaria à solta, livre para continuar
matando como o novo Rei Branco. Não, ela só tinha uma opção
uma opção real.
Uma opção que ela odiava profundamente.
Em um movimento silencioso, Ana Laura fechou a porta
do apartamento e a trancou, retirando a chave micha e
guardando-a de volta no bolso.
Passos no corredor.
Ela não tinha mais muito tempo.
Chutou a mochila para debaixo da cama e começou a
respirar fundo, tentando absorver o máximo de ar que podia
naqueles segundos derradeiros.
Vozes se aproximando. Agora, ela pensou.
Ela se jogou no chão e, segurando a boca para não gritar,
rolou para debaixo da cama. Ana Laura, que se orgulhava
tanto de seu preparo e de sua capacidade de prever cada
resultado possível e provável, não havia se preparado para
enfrentar sua claustrofobia.
Assim que seu corpo ficou completamente oculto no
espaço ínfimo debaixo da cama, a fechadura rodou e a porta se
abriu. A madeira da cama e o chão começaram a se fechar, e
se fechar...
Não. Ela não podia perder o controle, não agora.
É um cartão magnético? — Ela ouviu a voz de Ártemis
perguntar.
Se ele encostar um dedo em você, Ártemis, Ana pensou,
eu o mato, e logo depois mato você por ter aceitado vir até
aqui.
É um mecanismo elétrico de armadilha — respondeu uma
voz masculina. — Eu guardo materiais da polícia o tempo todo
aqui, e não é um apartamento particularmente suntuoso.
A voz do Rei Branco.
Ana Laura não conseguia ver nada além de dois pares de
pés — sapatos sociais e tênis All Star —, mas ela tinha uma
boa ideia do que estava acontecendo. Ártemis agora entrava
no apartamento do Rei Branco e, se ela se encontrava em seu
perfeito juízo mental, estava mantendo a bolsa aberta e próxima
ao corpo, facilitando seu acesso ao spray de pimenta.
A voz dele parecia... alegre? Como ele ousava?
Eu garanto que não te trouxe aqui para fazer nada
impróprio, nem ilegal — disse a voz do homem. — Eu só
preciso de sua ajuda em um... interrogatório da polícia. Só
preciso pegar uma coisa.
Ele se abaixou, pressionando as mãos no tapete.
Seu rosto estava a centímetros do rosto de Ana Laura.
Ela ia precisar de um milagre.
Os pés de Ártemis se moveram na direção oposta, e Ana
Laura a percebeu cutucando o ombro do Rei Branco.
Arthur, quer ajuda? — ofereceu Ártemis, forçando-o a
olhar na direção oposta à da cama.
Boa, Teté. Ela deve ter percebido que não tem muitos
lugares para se esconder por aqui, pensou Ana, aliviada.
Juntos, os dois rolaram o tapete para o canto da sala. O
som que ela havia percebido da primeira vez — o barulho de
algo vivo se debatendo — ficou ainda mais alto.
Havia uma portinhola no chão do apartamento. Pelo que
Ana Laura percebeu, não devia ter mais de um metro de
largura por dois de comprimento — era uma espécie de
armário de emergência, ou alguma coisa assim, fechado com
um cadeado numérico.
O Rei Branco se abaixou mais uma vez, rodou os
números no cadeado e abriu a portinhola.
Em um único movimento, ele retirou um corpo humano de
dentro do armário, fraco, mas ainda se mexendo. Ela ouviu
Ártemis abafar um grito, mas, felizmente, a amiga logo
percebeu que não era o corpo de Felipe. Não, aquele era um
jovem branco, de terno e gravata, cabelos castanhos, nariz
aquilino, amarrado e amordaçado.
Ela se lembrou dos retratos falados de Ártemis: aquele
era Paulo Viana, o líder das Torres do Rei.
Arthur, você enlouqueceu? — perguntou Ártemis,
preocupada. — A gente não pode manter esse cara aqui!
É só uma visita temporária — disse o Rei Branco,
casualmente tirando a mordaça de seu prisioneiro. — Você vai
ficar calado, não vai?
Assim que ele tirou a mordaça, Paulo começou a suplicar
pela própria vida.
Eu sou inocente! — argumentou o homem, sua voz trêmula
— Pelo amor de Deus, eu não tenho nada a ver com o Rei
Branco, eu não...
Cala a boca — avisou Arthur. — Nós dois precisamos ter
uma conversinha com você. E você vai cooperar, não vai,
Paulo?
Após alguns segundos ofegante, Paulo pareceu
concordar.
Claro, claro. O que vocês quiserem, por favor, eu não
quero problemas e...
Eu não sou cúmplice disso — comunicou Ártemis. — Se
me pegarem, eu não vi literalmente nada do que está
acontecendo.
Você tá protegida comigo, relaxa tranquilizou Arthur,
deixando Ana Laura com vontade de vomitar. — Lembra dela,
Paulo? O nome dela é Ártemis, ela faz parte das Torres assim
como nós.
Claro, Ártemis, desculpa, eu...
Pois é. Deveria mesmo se desculpar. No dia em que
conheceu Ártemis, você a chamou de um nome horrível.
Mas isso já era esperado de um verme como você. Apesar
disso, eu estou interessado em uma outra coisa que disse.
Assim que ela chegou, você se levantou, a cumprimentou e
disse a seguinte frase...
“Outra garota. Não tem nada de errado nisso.” — citou
Ártemis, se lembrando. — Tinha mais uma mulher no meio das
Torres?
Exato. Ártemis está aqui no papel de testemunha: você
realmente se referiu a ela como “outra garota”. Não há como
negar — afirmou Arthur. — Imagina a minha surpresa quando,
conversando com os outros membros, descobri que uma
garota de cabelos dourados participou das primeiras reuniões,
mas desapareceu para nunca mais ser vista. O que você acha
de nos contar essa história?
Certo. Eu conto. Mas eu preciso saber que você não vai
me entregar pra polícia, nem me matar ou nada do tipo.
Eu não sou o tipo de pessoa que faz nenhuma dessas
duas coisas — mentiu Arthur. — Você tá protegido se nos
contar toda a verdade.
Certo. Eu conto. O nome da garota era Luísa Simões.
A terceira vítima. A vítima do copycat, pensou Ana Laura.
Paulo continuou seu relato.
Ela era maravilhosa. Na época, as reuniões estavam só
começando, então a gente não era tão cuidadoso quanto hoje.
A gente devia ter perguntado a história dela, mas acabamos
deixando passar. Um dos membros fundadores começou a se
aproximar dela, usar um pouco de suas táticas, e ela acabou
revelando que ela mesma era uma youtuber, que estava indo
nas reuniões só para expor a gente em um vídeo dela, que
tinha feito uma dúzia de gravações...
Ela estava indo nas reuniões para expor as Torres? —
perguntou Ártemis.
Isso. E na época, a gente não fazia nada demais! Só
conversávamos mesmo. Então, esse outro membro ficou muito
bravo com a coisa toda, e chamou ela pra sair... E, no dia
seguinte...
Ela apareceu morta — concluiu Arthur.
Isso. Eu liguei pra ele, tentei me comunicar, perguntar se
ele era o verdadeiro Rei Branco... Mas ele nunca mais
apareceu nas reuniões. Desapareceu completamente.
Claro que desapareceu. E você vai nos falar o nome e a
descrição dele, não vai?
Vou, vou... Ele era alto, forte, loiro... Acho que devia ser
um segurança, um policial ou alguma coisa assim. O nome dele
era...
Gabriel. Gabriel Faria. O investigador Gabriel Faria, da
Polícia Civil — completou Arthur.
Isso. Gabriel Faria.
O nosso Gabriel Faria? O nosso único contato na Polícia
Civil era o copycat?, refletiu Ana Laura, impactada.
Obrigado, Paulo. Você foi muito, muito útil — disse
Arthur, dando dois passos para frente, se aproximando dele e
colocando a mão direita no bolso…
Arthur! Arthur, pelo amor de Deus, não! — implorou
Ártemis.
Arthur não deu ouvidos a ela. Ele tirou do bolso uma
seringa de bico comprido e injetou um líquido azulado no braço
de Paulo, que apagou alguns segundos depois, a cabeça
batendo com força no chão.
Relaxa, Ártemis. É só um tranquilizante. Ele vai acordar
amanhã são e salvo em casa, isso eu te garanto.
Ah... Obrigada. Isso me deixa mais calma — agradeceu
Ártemis, mentindo.
Em silêncio, os dois deram as costas e saíram do
apartamento, enquanto Ana Laura respirava, aliviada.
Ela havia sobrevivido àqueles longos minutos de total
inferno.
Brancas 12:Motivações
Outubro de 2022
O Homem Sem Rosto olhava nos olhos altivos de Gabriel
Faria, o copycat, enquanto ele tomava sua xícara de café e ria
com os outros policiais da delegacia sobre alguma anedota
inapropriada.
Ele se perguntou como deixou isso passar. O
computador dele ficava a poucos metros do seu. E, é claro,
ele costumava ser um bom detetive, mas fez uma análise
completamente errada da última cena do crime.
Da própria cena do crime, ele pensou.
O perfil psicológico dele se encaixava perfeitamente.
Gabriel era um homem impulsivo, covarde e preguiçoso nunca
teria a coragem de matar uma pessoa de perto. Não, ele era
exatamente o tipo de homem que mataria uma pessoa da forma
mais segura possível, mesmo que estivesse dentro da casa
dela.
O Homem fechou os olhos e se transportou de volta à
última cena do crime. Toda a história se encaixava
perfeitamente: Luísa convidou Gabriel para seu apartamento e
ele, após tirar sua vida com um tiro na cabeça e deixar a peça
de xadrez do primeiro assassinato de forma a culpar o Rei
Branco, ele começou a procurar pela única peça de evidência
que ligava o crime de volta para si — a carta de baralho com o
endereço das Torres do Rei.
Com o tempo, ele começou a ficar mais e mais
desesperado, movendo móveis, esvaziando gavetas e jogando
roupas no chão. Como ele escolheu a forma mais burra e
barulhenta de cometer um assassinato, logo logo a polícia
militar ia chegar, direcionada por algum vizinho que tenha
ouvido os tiros. Então, ele desistiu de sua procura e levou o
caso direto para o Delegado, decidindo encontrar a carta no dia
seguinte durante a perícia, embalá-la no meio das outras
evidências e dar um sumiço nela assim que possível.
É o que ele teria feito, se o Homem Sem Rosto não
tivesse encontrado a carta primeiro.
Ele abriu os olhos. Gabriel ainda estava rindo e
conversando casualmente, como se seu plano tivesse sido
perfeito. A conclusão era óbvia: O Investigador possuía os
meios e a oportunidade para matar Luísa Simões.
Mas qual seria sua motivação? Por que alguém se daria a
tanto trabalho? E, mais importante: Será que Gabriel Faria já
tinha chegado à conclusão que seu colega de investigação era
o Rei Branco original?
O Homem Sem Rosto se voltou para trás. A escravinha de
Gabriel estava vazia, e ninguém ao redor estava prestando
muita atenção.
Só tem uma forma de descobrir.
Ele se levantou, tomando sua xícara em mãos, e passou
na frente do computador de Gabriel. Mau sinal: A tela ainda
estava ligada, mas o computador havia bloqueado a tela
automaticamente, agora exigindo usuário e senha. O Homem
Sem Rosto suspirou profundo, passando suas mãos pela nuca.
Voltando para seu lugar, começou a prestar mais atenção na
conversa de seus colegas: A maioria deles já havia voltado aos
seus computadores, enquanto Gabriel e Maria Eduarda, a outra
detetive, continuavam conversando.
…foi só uma brincadeira, Duda!
Ele disse, rindo. — Você sabe, eu sou assim com todo
mundo, esse é meu senso de humor. Eu só acho que essa sua
roupa fica um pouco…
Chega, Gabriel — Disse a outra detetive, dando as costas.
— Tô num dia péssimo hoje, depois a gente conversa.
O Homem Sem Rosto sorriu. Talvez ele tivesse uma boa
oportunidade, ele pensou, ajustando os óculos.
Ele esperou alguns minutos e, entrando no chat interno
do sistema da Polícia, procurou o nome de Maria Eduarda,
abrindo uma conversa.
Nossa, ele pensou, foi bem mais fácil do que eu tinha
imaginado.
Agora ele poderia acessar cada arquivo no sistema d
Gabriel sem nem sair da própria cadeira.
Hora de descobrir como se cria um Rei Falso.
Respirando fundo e se assegurando de que não havia
ninguém olhando para sua tela, ele saiu de seu próprio usuário
e entrou no de Gabriel.
A área de trabalho dele era, como esperado, um completo
caos. Um arquivo, entretanto, chamou a atenção do Homem sem
Rosto, um arquivo de texto intitulado como “RespostaReal.doc”
Real, no sentido de Realeza?, ele pensou.
Ele abriu o arquivo.
“Vossa Majestade,
Eu sou um dos policiais envolvidos na investigação do
Caso Rei Branco.
Eu ainda não sei para quem enviar essa carta. Talvez eu
mantenha ela por aqui.
Os vossos assassinatos me deixaram inspirado,
profundamente. Eu nunca achei que alguém teria a coragem de
se opor contra a opressão que nós sofremos principalmente de
forma tão enérgica como o senhor.
Todos nós sofremos oposição delas, constantemente
querendo nos explorar. Nos negando o que é nosso por direito.
Mas, quando li seu manifesto… Confesso, Vossa
Majestade, que fiquei decepcionado. Como assim, “Homens e
Mulheres são Iguais“? É isso o que o senhor quer dizer com
cobrança? As mulheres que eu conheci na vida nunca me
ofereceram nada mais do que migalhas de sua atenção. Só
começaram a me notar quando eu comecei a fingir que eu era
superior. Só me tomavam pelo meu emprego, pelas roupas que
eu usava, pelo carro que eu dirigia — nunca por eu ser uma
pessoa boa, ou pelas minhas virtudes morais.
Por isso, eu decidi continuar sua Boa Obra.
Usei minha influência na polícia para ser transferido para
a Investigação do Caso Rei Branco. Mesmo sendo um novato
no departamento, consegui acesso ao armário de evidências e
a todas as informações relevantes. Sendo um investigador
dentro do caso, eu estaria acima de quaisquer suspeitas.
Todos aqui na delegacia são betas idiotas, e ninguém tem
chance de descobrir quem eu realmente sou. Eu vou continuar
seu legado — e mostrar que homens e mulheres nunca vão ser
iguais.
Eu também mantive um olho na sua irmã, se você
realmente for Felipe Braga. Ártemis é muito divertida, pena
que é uma mulher.
Logo logo, todos vão temer o nome do Rei Branco, vossa
majestade.
Abraços, de um grande admirador.”
A carta provava tudo: Gabriel era o copycat, com toda
certeza.
O resultado era excelente, mas o Homem sem Rosto não
estava feliz.
Ele estava, de fato, horrorizado.
Ártemis?, pensou, confuso.
Ele cometera um erro. Investigar a vida de Felipe era
doloroso — ele queimava de inveja toda vez que via aquele
homem e pensava em sua vida perfeita.
Por isso, nunca nem cogitara se aquele idiota poderia ter
uma irmã.
Ele correu para a página do Google, suas mãos
tremendo.
Clicou na caixa de pesquisa e digitou “Ártemis Braga”.
Nenhuma foto relacionada. Nenhuma conta em redes
sociais, nada.
Ele apagou o nome, e digitou mais uma vez na barra de
busca. “Felipe Braga família”
Encontrou uma notícia do ano passado, “Conhecendo os
campeões dos e-sports nacionais.”
Era uma foto.
Aquele jogador patético estava abraçando os pais e uma
garota de cabelos coloridos...
A cor era diferente, e ela não usava óculos, mas era
exatamente a mesma.
Ártemis Braga, concluiu.
O Homem sem Rosto olhou para a foto de Ártemis,
respirou fundo, e sorriu.
Vermelhas 12:Armadilha
Outubro de 2022
Só pra deixar claro: a gente não tá trabalhando junto com
aquele monstro. A gente só está usando ele pra pegar o
copycat. Ok? Só isso. — disse Ana Laura, tentando acalmar
Ártemis dentro da van estacionada em frente à igreja das Torres
do Rei.
Eu não sei, Aninha... eu sinto que a gente tá perdendo o
controle dessa situação.
Vai ficar tudo bem. — A ruiva tentava acalmá-la. — A
gente sabe que o risco é calculado. E, de todo jeito, a gente
sempre tem o Plano, ok?
Isso quer dizer que você concorda com o Plano? —
perguntou Ártemis, rindo um pouco.
Exclusivamente como contingência.
Certo. Já confirmei com o Rei Branco, ele disse que vai
chegar com reforços —avisou Ártemis.
Ótimo. Eu fico com seu celular aqui?
Fica. Me deixa só plantar nossa isca.
Ártemis pegou o celular, discando para o número de
Gabriel Faria.
Gabriel? Oi, é a Ártemis! Irmã do Felipe... Isso. Eu preciso
conversar com você, mas longe da polícia. Acho que eu
descobri quem é o Rei Branco. Sim. Eu posso me encontrar
com você por aqui? É na rua da Catedral de São Sebastião.
Sabe? Sim, eu tô por aqui. Você consegue chegar em uns vinte
minutos? Excelente, te aguardo na porta. Beijos, tchau!
Nossa! — comentou Ana Laura. Você deveria ganhar um
Oscar.
Obrigada, obrigada. Toma — disse ela, entregando o
celular nas mãos da amiga. — Ele fica com você. Tá
preparada?
Tô. Toma cuidado, Ártemis.
Relaxa. E fica de olho!
Ártemis abriu a porta e saltou do carro. Armada com seu
spray de pimenta, andou até a calçada e conferiu seu relógio
de pulso.
Doze minutos depois, uma viatura da polícia apareceu na
rua e estacionou.
Porém, seus passageiros não estavam vestidos como
policiais.
Ao invés disso, três homens vestidos de preto saíram do
carro, cada um deles armado com um cassetete da polícia. Os
três eram enormes.
Companhia — disse Ana Laura no comunicador. —
Contingência D?
Contingência D. Quanto tempo até a polícia chegar?
Cinco minutos — respondeu Ana, vestindo seu moletom e
colocando o capuz.
É, vamos ver se eles aguentam.
Ártemis viu Gabriel Faria chegar acompanhado, cada vez
mais e mais perto dela.
Oi, Ártemis — cumprimentou — Sabe, hoje eu trouxe uns
amigos pra brincar com a gente.
Gabriel... O que é isso? Eu achei que a gente ia estar
sozinho... — falou Ártemis.
Os três homens empunharam seus cassetetes.
Ah... É assim que a gente vai brincar? — perguntou ela,
sorrindo. — Porque vocês não foram os únicos que vieram
acompanhados.
Tudo aconteceu em uma fração de segundos. Antes que
os dois homens de trás percebessem, Ana Laura atacou o
primeiro com seu taser, eletrocutando-o e levando-o ao chão.
Faltam dois, pensou Ártemis.
Em um surto de adrenalina provocado pelo barulho do
taser, Gabriel levantou seu bastão e brandiu-o na direção da
cabeça de Ártemis, enrijecendo seus músculos do braço para
se preparar para o impacto, mas não houve impacto algum.
Movendo seu tronco para baixo, Ártemis desviou do bastão,
apontou o spray de pimenta para os olhos do agressor e
acionou o gatilho.
Ele começou a gritar.
VAGABUNDA! Eu vou MATAR você, sua...
O terceiro agressor, em pânico, tentou fugir, mas logo
percebeu que era tarde demais. Assim que deu as costas, seu
rosto foi de encontro ao punho fechado de Ana Laura, que
quebrou sua mandíbula com um gancho de esquerda e o
nocauteou.
Acabou, Gabriel — disse Ártemis.
Sua... — urrou Gabriel, correndo em sua direção.
Ártemis, não! — gritou Ana Laura.
Antes que Ana pudesse reagir, a própria Ártemis já havia
respirado fundo e desferido um cruzado de direita no nariz de
Gabriel, levando-o ao chão, apagado.
Nossa — disse Ana Laura, ofegante —, isso não foi nada
mal. Nada mal mesmo.
Aprendi com a melhor — brincou Ártemis, aliviada. —
Droga, barulho de sirenes. Quando o Rei Branco chegar,
você vai querer estar bem longe daqui.
Certo — concordou Ana Laura, puxando seu capuz e
batendo em retirada. — Te vejo na van!
Assim que Ana começou a correr, três viaturas da Polícia
Civil chegaram, a primeira dirigida pelo próprio Rei Branco. De
pistola semiautomática em punho, ele saiu do carro e correu
até Ártemis.
Merda, um deles fugiu! — disse, ofegante. — Eu vou
chamar uma viatura para...
Não precisa — assegurou Ártemis, acalmando-o. — Era
uma outra menina que tava passando por aqui. Então, o
que vocês vão fazer?
Prisão preventiva, em primeiro lugar. Conseguimos um
mandado para vasculhar o computador e a casa dele, e
encontramos a arma achada na cena do terceiro crime. As
evidências que ligam Gabriel ao crime do copycat são
inegáveis. O delegado e os outros investigadores estão
chegando agora, devemos começar a passá-lo pelo processo
agora mesmo. Você tá bem? — perguntou Arthur, olhando
fundo nos olhos dela.
Um pouco assustada — disse Ártemis, e era verdade —,
mas tô bem, agora que a coisa toda acabou.
Acabou. E eu tenho uma coisa muito, muito importante
pra te contar. Você quer uma carona pra casa?
Claro! —Ártemis acertou, sorrindo. — Me dá só um
segundo? Preciso tomar um ar, a noite foi bem mais violenta do
que eu tinha imaginado.
Ártemis — disse Ana Laura, segura dentro da van de
vigilância. — Eu não acho que você deveria ir.
Aninha, eu preciso que você comece a confiar mais em
mim — pediu a amiga, impaciente. — Se eu tivesse ouvido
você, a gente nunca teria descoberto as Torres do Rei ou
encontrado o copycat.
Teté... — Ana Laura pareceu magoada do outro lado do
comunicador, mas ela não era o tipo de pessoa se deixava
distrair antes de chegar ao seu objetivo. — Certo. O que você
quer fazer?
Ele disse que quer me dar uma carona. Provavelmente
vai me contar que é o Rei Branco original e estabelecer uma
aliança. Se você conectar um gravador ao áudio do meu
comunicador, a gente vai conseguir uma confissão!
Tudo bem. Vou conectar agora mesmo.
Enquanto Ana Laura fazia os preparos do outro lado da
linha, Ártemis respirou fundo, arrumou o cabelo e andou na
direção da viatura de Arthur.
Ela puxou a maçaneta, e se sentou no banco do
passageiro.
Obrigado, Ártemis — disse Arthur. — Por tudo. Eu
realmente não teria conseguido parar o copycat se você não
tivesse aparecido no covil das Torres do Rei naquela
madrugada.
Foi um prazer — respondeu ela.
Eu quero ajudar o Rei Branco tanto quanto você.
Eu sei. Você realmente é incrível.
Com as duas mãos no volante, Arthur parecia
completamente aliviado. Ele virou a chave na ignição, deu a
partida e saiu com o carro.
Sabe — continuou —, você é linda, Ártemis. De verdade.
E eu sempre quis saber exatamente o que uma garota bonita
como você estava fazendo no meio de uma célula de
perdedores como aqueles.
Já disse, eu os encontrei pela internet, e tive uma
história com uma youtuber, a Red...
RedQueen — disse Arthur, pronunciando lentamente o
nome em inglês — Eu sei, eu sei. Foi um relato fascinante, de
verdade. Sabia que eu também tive uma história parecida?
Tem alguma coisa errada, Ártemis! — avisou Ana Laura,
desesperada, no comunicador.
Ártemis a ignorou, irritada.
Você nunca contou sua história — respondeu ela,
incentivando-o.
Era com um canal antigo, o Espelho da Alice. Eu acabei
me apaixonando por ela, e dando mais do que ela tinha pra me
dar em troca. Ela acabou arranjando um namorado, um cara
muito melhor do que eu...
Arthur...
Mas não tem problema, problema nenhum — disse,
sorrindo.
Ele tirou a mão direita do volante e colocou no bolso do
paletó.
Porquê agora eu conheci a cunhada da Espelho da Alice,
Ártemis Braga. É você, não é? Ártemis congelou. Suas mãos
instantaneamente foram à maçaneta, puxando-a mesmo que o
carro estivesse em pleno movimento.
Nada aconteceu.
Que decepção — respondeu Arthur. — É óbvio que eu sei
desativar o sistema de trancas da minha própria viatura, não é?
O que você quer? Eu...
Só quero conversar um pouco — anunciou ele, ainda
sorrindo. — Então você é a irmã do Felipe Braga. Só isso já
seria chocante o suficiente, mas imagina a minha surpresa
quando eu abri o histórico de conversas do Gabriel e
descobri que você também trabalhava como assessora de
outra criadora de conteúdo... da própria RedQueen!
Tudo aconteceu rápido demais. Suando frio, Ártemis mal
percebeu quando o homem tirou uma seringa e uma agulha do
bolso, perfurou seu braço com a lâmina e injetou nela o líquido
azulado.
Não demorou muito para ela apagar. Ártemis não foi
capaz de perceber nem mesmo os gritos de Ana Laura vindos
do comunicador.
Brancas 13: Direito Divino
Outubro de 2022
O Homem sem Rosto viu Ártemis Braga acordar, jogada e
acorrentada no chão escuro. Ela abriu os olhos lentamente,
tentando ver alguma coisa na escuridão — até que seu olhar
encontrou o dele. Quando percebeu a situação em que se
encontrava, ela soltou um breve grito, seguido de múltiplas
tentativas de se debater.
Filho da mãe! — disse ela. — Você é o Rei Branco.
O Homem sem Rosto riu.
Ártemis...Você já sabia que eu sou o Rei Branco. Por que
o teatro?
Eu... — ela começou a responder, mas por fim se calou.
Silêncio? Sério? Você nunca me pareceu o tipo de
pessoa que sabe a hora de calar a boca.
Vai pro inferno, Arthur — esbravejou, exausta.
Ela logo percebeu o filete de sangue causado pelo corte
superficial no braço, e o chip rastreador quebrado no chão. Ao
ver o chip, começou a chorar, embora o Homem não tivesse
certeza se era devido à dor ou à frustração.
O rastreador foi inutilizado mesmo antes da gente entrar
aqui. Não que eu não esteja impressionado com o preparo de
vocês.
Ela se manteve calada.
Sabe — continuou o Rei Branco —, quando vocês
gravaram o vídeo no link-armadilha pra mim, eu notei um
detalhe muito interessante: mais de uma das frases estava no
plural: “Nós conseguimos”, “Imagine nossa surpresa”, mas
nenhuma equipe era creditada nos vídeos da RedQueen.
Sempre fiquei extremamente curioso com a identidade desse
nós. Parece que agora eu descobri.
Ártemis não respondeu, mesmo em frente à provocação.
O Homem sem Rosto decidiu prosseguir.
Só preciso descobrir mais um nome agora. Eu me
encontrei com a RedQueen, mas duvido que ela me daria seu
nome verdadeiro. Quem ela é, Ártemis? Quem ela é de
verdade?
Ártemis se manteve em silêncio.
Certo. Ártemis, nome de deusa grega, hein? Parece que
a caçadora agora virou minha presa. Pois bem, eu tenho
outras formas de fazer você falar.
O Homem se levantou e voltou para as sombras.
Voltou com um presente. Um homem negro, careca, em
roupas surradas, preso a uma corrente por uma coleira de aço.
Ele estava magro e fraco, parecia não se alimentar há dias.
Quando Ártemis viu a figura do irmão, ela gritou.
FELIPE! Você tá vivo! Eu, eu... Ela logo começou a chorar,
enquanto se debatia com ainda mais violência para se libertar
das correntes.
É, ele tá vivo. O Rei Branco não é o tipo de pessoa que
mata só por matar. Mas eu realmente nunca gostei do seu
irmão, Ártemis.
O prisioneiro olhou para Ártemis e percebeu sua
presença, mas ele estava fraco demais para fazer qualquer
coisa a respeito além de chorar.
Ártemis levantou a voz.
É loucura nos manter aqui, Arthur. Dois prisioneiros na
Polícia Civil chamariam muita atenção.
O Homem sem Rosto riu. Em silêncio, ele se levantou,
ainda com a corrente de Felipe em mãos, foi até uma das
paredes e acendeu o interruptor.
A sala se iluminou. Não havia arquivos e armários ali. No
lugar, estavam cadeiras velhas, livros empoeirados e
esculturas de santos. Era uma antessala, com pequenos vitrais
coloridos e detalhes góticos nas colunas.
É a igreja — concluiu Ártemis.
A Catedral de São Sebastião.
A Igreja onde a gente se conheceu, Ártemis. Eu preciso ir
agora, mas fique à vontade: sua estadia aqui vai durar um
bom tempo — disse o Homem, dando as costas para ela e
puxando Felipe pela corrente.
Antes que pudesse sair da sala, Ártemis levantou a voz
mais uma vez.
Você não está vencendo. Você acha que está, mas não
está. Você vai ser o Rei Afogado.
Claro que vou — aludiu o Homem, sem se importar com o
que ela falava. Ele puxando o irmão de Ártemis para fora da sala
e trancou a porta.
Os membros das Torres do Rei aguardavam, sentados
nos lugares de sempre.
Paulo Viana, o líder, estava em silêncio. A reunião de hoje
seria especial.
De trás das cortinas do púlpito, saiu o Homem sem Rosto,
segurando um homem acorrentado pelas mãos.
Boa noite, meus irmãos. Esse é o Felipe Braga, a única
testemunha do assassinato de Alice Machado. A pessoa que eu
incriminei como o Rei Branco.
No meio da plateia, os rostos dos homens começaram,
um de cada vez, a aparentar emoção e choque. Em um
movimento rápido, o Homem sem Rosto largou as correntes e
empurrou seu prisioneiro de cima do púlpito, fazendo- o cair de
um metro de altura.
Ele ouviu o som de alguma coisa se quebrando lá
embaixo, mas não importava, não de verdade.
Ninguém foi ajudar o aprisionado.
Você? — Paulo, o líder, se manifestou, ainda incrédulo.
— Isso quer dizer que...
Isso mesmo. Eu sou o Rei Branco anunciou o Homem sem
Rosto, dando ênfase a cada palavra. Ele tirou do bolso sua
velha peça de xadrez, estendendo-a na direção dos outros.
Eu sou o Messias de vocês, e eu vim para ajudá-los a
reparar este lugar. A redimir o país, o mundo, da opressão que
nós, homens, sofremos. Nós queríamos paz, nós queríamos
amor, mas tudo o que recebemos foi ganância. Se elas queriam
nos subjugar, vamos subjugá-las de volta. Vamos atacar,
resistir e bater de volta. E tudo o que eu peço é a ajuda das
minhas Torres.
O Homem concluiu e estendeu a mão aberta. Um silêncio,
sepulcral caiu sobre aqueles homens por alguns segundos, até
que Paulo Viana deu um passo à frente. Ele se colocou em
frente ao púlpito, se ajoelhou com o rosto no chão, e gritou:
Obrigado, Vossa Majestade!
Um por um, cada uma daquelas pessoas repetiu o
comando: deram um passo à frente, se ajoelharam e gritaram.
Obrigado, Vossa Majestade!
Obrigado, Vossa Majestade!
Obrigado, Vossa Majestade!
A parte final de seu plano estava, finalmente, completa.
Ele olhou para cima, para a abóboda espelhada, e
procurou o reflexo do Homem sem Rosto. Contudo, este não
mais se encontrava ali.
Agora, a única coisa que restava era o reflexo deformado
e distorcido do Rei Branco.
III - A Fase dos Reis ♔
Onde o jogo se torna vida-ou-morte.
Vermelhas 13: Rainhas Perdidas
Novembro de 2022
Chovia forte na casa de Ana Laura Machado, e ela estava
sozinha.
Ela socava um saco de areia — o mesmo que tinha usado
em dezenas de treinos — sem proteção alguma nas mãos.
As falanges de suas mãos, lesionadas pelo impacto dos
socos, começavam a sangrar, mas ela não se importava.
Já fazia quase um ano que Ana havia perdido Alice.
Gabriel Faria, o copycat, havia sido preso pela própria
Polícia Civil, tendo confessado ser o autor do assassinato de
Luísa Simões. Todavia, mesmo após amplo interrogatório, ele
fora incapaz de revelar a identidade do Rei Branco original.
Ana Laura continuou socando o saco de areia.
O julgamento ainda não havia ocorrido. Embora ele só
houvesse confessado um dos crimes, a mídia tradicional
começou a se referir ao caso como encerrado. Entrevistas com
amigos e conhecidos foram feitas, e o perfil psicológico de
Gabriel traçado como “um machista inveterado, cujo o ódio
pelas mulheres só não era maior do que seu amor por si
mesmo”. Afirmava- se que “logo a polícia encontrará evidências
que ligam Gabriel a todos os assassinatos, provando de uma
vez por todas que ele é o Rei Branco”.
Ana Laura continuou socando o saco de areia.
Embora dado como encerrado, o caso estava longe de
ser esquecido. Múltiplos canais estavam fazendo vídeos e
ganhando visualizações e inscritos em cima do Caso Rei
Branco, desde canais de crimes bizarros aos de modelos,
maquiagem e estilo de vida.
E, é claro, o manifesto do Rei Branco finalmente
viralizara, graças aos cantos obscuros da internet —
principalmente em fóruns masculinos, comunidades
autointituladas como “Artistas de Sedução” e grupos dedicados
a fazer oposição ao feminismo de uma forma geral.
Ana Laura continuou socando o saco de areia até a dor se
tornar insuportável. Quando não aguentou mais, ela desabou no
chão e começou a chorar.
Ártemis havia sido sequestrada e provavelmente
assassinada.
A ruiva colocou as mãos na cabeça e começou a puxar o
próprio cabelo, gritando. Queria arrancá-lo, se destruir por
dentro por ter permitido que Ártemis entrasse na viatura daquele
monstro.
Alice estava morta porque ela a mandara para um hotel
isolado da cidade.
Ártemis estava desaparecida porque ela falhara em
protegê-la.
Tudo era culpa dela.
Tudo, do começo ao fim.
De repente, Ana Laura levantou a cabeça.
Do outro lado da sala estava o velho tabuleiro de xadrez.
Com o corpo dolorido, ela se levantou e andou até a pequena
mesa que o sustentava.
O Rei Branco.
A Rainha Vermelha.
E o Rei Vermelho.
Ela respirou fundo, pegou as três peças e colocou no
bolso da calça.
A gente ainda não perdeu esse jogo, Teté. Eu vou salvar
você daí, eu prometo.
Ela limpou suas lágrimas na barra da camisa e subiu as
escadas até os quartos.
Mal percebeu que seus punhos ainda estavam fechados
quando tocou na maçaneta do quarto de Ártemis e a girou.
O cômodo estava ainda pior do que da última vez em que
ela esteve lá: completamente decorado por documentos, mapas
e cartolinas, com múltiplos computadores rodando e páginas e
páginas de instruções espalhadas por todo o lugar.
O Plano Xeque-mate — disse Ana Laura em voz alta. —
Você venceu, Ártemis. Hora de apostar tudo.
Brancas 14:Exposta
Dezembro de 2022
Oi, pessoal. Eu sou a RedQueen, e eu tenho um anúncio
especial pra vocês —enunciou a voz na televisão, enquanto o
Rei Branco tomava uma taça de vinho sentado em seu Trono.
O lugar não era nada suntuoso — apenas um escritório
vago naquela igreja abandonada —-, mas suas Torres o
tratavam como se fosse um verdadeiro salão real. Ele passou
muito tempo refletindo se deveria ou não executar seu plano de
se proteger na igreja; teve que analisar o perfil psicológico de
cada um dos participantes das reuniões para se assegurar de
que eles não chamariam a polícia ou, pior, não fossem outros
infiltrados da RedQueen.
Felizmente, aqueles homens em particular eram
confiáveis. Eles tinham o germe, aquele estágio inicial de
desenvolvimento, a semente de tudo o que o Rei queria que
eles fossem e fizessem, só precisavam de um pouco de
doutrinação.
O Rei se comunicava com eles todos os dias, em
particular e em coletivo, para se assegurar de que todos
estavam direcionados para um mesmo objetivo. Com seu
carisma e capacidade de argumentação, a tarefa fora bem-
sucedida.
Antes um bando de garotos sem rumo, agora as Torres já
haviam se organizado para trazer fundos à Sala do Trono — os
membros mais abastados contribuíram com grandes doações
em dinheiro, coordenados por Paulo Viana, o antigo líder, que
se transformou de bom grado em seu assistente pessoal, sua
Mão do Rei.
Com o dinheiro dos membros e da conta de sua
segunda vítima, o Rei Branco começou a reformar a igreja
abandonada. Ele sabia que não podia se dar ao luxo de
contratar pessoas — aqueles homens iam ter que fazer todo o
trabalho sozinhos —, mas isso só permitia que mais dinheiro
sobrasse para a estrutura e os mantimentos.
Buracos no teto foram tampados. Colunas reforçadas.
Paredes foram reconstruídas praticamente do zero.
Quando a estrutura da igreja estava quase igual à
original, o Rei começou a segunda fase de suas reformas:
proteção.
Usou as relações com o tráfico de drogas de um dos
membros das Torres para comprar fuzis, munição e coletes à
prova de balas.
Aproveitou as chapas de aço para bloquear os vitrais.
Comprou câmeras, sensores de movimento, tudo o
possível para transformar aquele lugar em sua fortaleza
pessoal.
A torre do sino foi a única coisa que ele se recusara a
reformar. Outros membros cogitaram colocar um vigia armado
com um fuzil de longa distância, mas o Rei rejeitou a ideia. Tal
lugar deveria continuar parecendo uma igreja abandonada
pelo máximo de tempo que fosse possível, e uma reforma no
sino e um sniper chamariam uma quantidade absurda de
atenção para eles.
Ele nunca mais havia voltado à Polícia Civil, nem
precisava — muitos policiais já consideravam o caso como
encerrado, e ele sabia que ter um policial suspeito de um crime
tão violento já pegava mal para a corporação. Eles evitariam o
máximo investigar um segundo.
Sua viatura, a única evidência que poderia ser traçada em
direção a ele, tinha sido trazida pelas Torres para dentro da
igreja, e agora jazia estacionada no meio da nave do templo.
Antes de trazê-la para dentro, o Rei tomou o cuidado de retirar
todos os seus localizadores e chips de localizador GPS e jogá-
los da ponte de um rio próximo à região metropolitana da
cidade.
Acidentes acontecem. Ainda não tinha lido nenhum
obituário, mas, para todos os efeitos, Arthur Magno estava
morto, tendo dirigido para fora de uma ponte após dormir ao
volante.
Seus pensamentos foram interrompidos pela voz na tela
da televisão.
Eu... quero falar a verdade pra vocês. Chega de
máscaras. — disse a RedQueen, retirando a peça de plástico
de seu rosto e direcionado seus olhos verdes e brilhantes para
a câmera.
Olhos verdes... o Rei pensou.
Meu nome verdadeiro é Ana Laura. Ana Laura Machado.
Machado?, pensou o Rei.
Machado, de Alice Machado. As sardas, os olhos verdes,
estava tudo ali.
Ele ficara tão distraído pela máscara vermelha e pelo
cabelo ruivo que deixou de notar o óbvio: aquela garota era
muito parecida com sua Alice.
O Rei Branco, naquele segundo, se sentiu um perfeito
idiota.
E ele odiava a forma como a RedQueen o fazia se sentir
assim.
Ele abaixou a cabeça e cruzou os braços, apertando seus
cotovelos com força. Ana Laura continuou:
Eu sou a irmã mais nova da Alice Machado, a primeira
vítima do Rei Branco. Comecei esse canal como uma forma de
continuar o legado da minha irmã, e somente isso — disse ela,
mentindo. — Mas agora a minha vida também está em risco.
O que você quer com isso?, pensou Rei, o que você tem
a ganhar?
A única família que eu tinha foi dizimada pelo Rei Branco.
Além de matar a minha irmã, ele também matou outra criadora
de conteúdo, Mariana Salles, do canal OtomeStrike, e seus
crimes não pararam por aí. A identidade verdadeira do Rei
Branco não é Gabriel Faria, ou mesmo Felipe Braga. Na
verdade, ele é um policial civil chamado Arthur — falou Ana,
mostrando um desenho em retrato-faladodo rosto dele.
Do verdadeiro rosto dele.
O Rei Branco fez um movimento brusco com a cabeça.
Como ela ousava desafiá-lo em público dessa forma?
Arthur não é apenas um policial civil: ele esteve envolvido
na investigação dos próprios crimes, atrasando-a o máximo
que pôde para livrar a própria cara. Esse monstro tirou tudo o
que eu tinha. O seu crime mais recente foi o sequestro de
Ártemis Braga relatou ela entre lágrimas, enquanto expunha
algumas fotos dos irmãos Braga na tela.
Ana respirou fundo antes de continuar.
Ártemis é a única irmã de Felipe Braga, jogador de e-
sport profissional e também desaparecido. Por favor, se
alguém tiver qualquer notícia do paradeiro de um desses dois,
contate a polícia. Por favor, me ajudem a parar o Rei Branco —
concluiu aos soluços, terminando o vídeo.
Não houve transição final. O vídeo somente cortou para
uma tela preta e acabou.
O Rei Branco inspirou e expirou, tomou outro gole de sua
taça de vinho, fechou os olhos e começou a absorver o que
tinha acabado de assistir.
Alguns minutos depois, alguém bateu em sua porta.
Entre — ordenou o Rei. Era Paulo, com um profundo
olhar de desespero.
Vossa Majestade, nós assistimos ao vídeo. Ela revelou a
sua identidade para o mundo todo!
Tolice — respondeu o Rei. — Ela não me revelou como o
Rei Branco, ela não tem provas. Ela me acusou de ser o Rei
Branco, acusou um homem desaparecido e, em breve, dado
como morto. Ela tem uma quantidade grande de inscritos e vai
causar uma certa comoção, mas não vai passar disso.
Que o senhor esteja certo, Majestade. Se me permite
uma opinião, eu acho que deve contra-atacar. Agora que ela foi
idiota o bastante para colocar o próprio nome completo na
internet, o senhor pode encontrar o endereço dela e acabar o
que começou com as próprias mãos.
O Rei Branco fechou os olhos, considerando a proposta.
Invadir a casa onde Alice morou e atacar a RedQueen com as
próprias mãos seria indescritível. Prazeroso. Ele poderia
finalmente tornar aquele lugar puro. Pensou nos pertences de
Alice, como poderia tomá-los para si como seus troféus, exibi-
los, tocá-los...
Não. Ele não podia se dar a esse tipo de luxo.
A RedQueen não é uma idiota, Paulo. Se ela revelou o
próprio nome completo na internet, provavelmente previu que
meu primeiro movimento seria ir atrás ela. Mas talvez...
Talvez, Vossa Majestade?
O Rei Branco se levantou e saiu da sala, fazendo sinal
para que Paulo o acompanhasse. Juntos, eles desceram as
escadas e foram até a nave do templo.
De pé, aguardando seu Rei, estavam os novos recrutas
das Torres.
Antes apenas um punhado de pessoas, agora o salão se
enchia e inflava com dezenas de homens jovens, prontos para
serem doutrinados e se dedicarem a seguir a visão do Rei
Branco a qualquer custo.
Talvez vocês possam ser meus pés e minhas mãos,
meus irmãos — disse o Rei, colocando as mãos nos ombros de
Paulo.
Vermelhas 14: Lar
Janeiro de 2023
Ana Laura sabia que o Rei Branco estava assistindo ao
canal. Ele não ia perder a oportunidade de assistir a mais um
vídeo da RedQueen, e ela colocara todas as iscas que podia
naquele vídeo: seu nome completo, seu rosto, o nome
verdadeiro do assassino e a menção de que Alice era a única
família que ela tinha — e que, obviamente, continuava estava
morando na mesma casa na qual um dia Alice morara.
Tudo perfeitamente engendrado para que o Rei Branco
ficasse com uma ideia fixa: encontrar o endereço da RedQueen
e invadir sua casa.
Antes de postar o vídeo na internet, Ana Laura havia
organizado um sistema de vigilância impressionante. Agora,
não só sua casa possuía câmeras e escutas em todos os
cômodos, como as fachadas das casas de todos os vizinhos e
os muros do condomínio também. Ela conseguiu, inclusive,
acessar o sistema de câmeras internas do próprio condomínio,
dando-lhe acesso visual e auditivo até mesmo ao que
acontecia dentro da portaria.
Então às duas e quarenta da madrugada, Ana Laura não
ficou surpresa quando três carros pretos pararam na porta de
seu condomínio. Entretanto, ela se espantou ao ver a
quantidade de pessoas: era um total de doze homens altos e
fortes, vestidos de terno e gravata, se dirigindo a pé para a
portaria com pastas e maletas, como se caminhassem para
uma reunião de negócios.
Realmente, é preciso doze de vocês pra lidar contra uma
de mim.
Ana Laura reconheceu o homem na frente do esquadrão,
seu nariz aquilino e o cabelo castanho facilmente identificável.
Era Paulo Viana, o líder das Torres do Rei.
Quer dizer que o Rei Branco continua usando vocês. Ele
deve estar escondido na igreja, deduziu Ana.
Os homens, liderados por Paulo, entraram na pequena
guarita dos seguranças. Assim que eles pararam de andar, Ana
Laura correu para o interfone.
Pra qual casa? — perguntou um dos funcionários.
Ana Laura Machado — informou Paulo. — Nós somos
velhos amigos dela, viemos para uma festa. Pode avisar a
ela que nós vamos entrar?
Claro, deixa a gente só...
O interfone da portaria começou a tocar. O porteiro
atendeu, inocente.
Ela não iria arriscar a vida deles também.
São meus amigos — disse Ana Laura. — Por favor, deixe
eles passarem.
Ah, certo — concordou o porteiro.
Pelas câmeras, Ana Laura viu os homens colocarem as
mãos na parte interna de seus ternos. Porém, quando o
porteiro abriu a catraca, eles recuaram, e ela suspirou de
alívio.
Menos mal.
Respirando fundo e alongando os braços, Ana Laura foi
até a cozinha, acendeu as luzes, abriu a porta do fogão e ligou
um interruptor elétrico próximo à bancada.
Sistema armado.
Depois, foi até a porta grossa de madeira, retirou dois
pinos de metal instalados na estrutura e subiu as escadas.
No quarto de Ártemis, tirou um controle remoto da
mochila e fechou os olhos.
Vamos ver se a sua instalação realmente funciona, Teté.
Ana Laura ouviu passos próximo à porta. Pelo celular de
Ártemis, acessou o sistema de câmeras, confirmando que os
doze homens haviam chegado até porta e que não havia
ninguém na rua.
Ela viu Paulo tocar a campainha e riu.
Ele realmente acha que eu atenderia, como num
quadrinho do Batman?, pensou, agradecendo mentalmente à
Ártemis por ter lhe mostrado aquela história em particular.
Quando Paulo tocou a campainha pela segunda vez e viu
que ninguém iria atender, os homens colocaram suas maletas
no chão e começaram a retirar o conteúdo de dentro delas.
Eles não estavam lá a passeio. Uma maleta se
encontrava cheia de pistolas nove milímetros, todas equipadas
com silenciador. Outra trazia coletes à prova de balas e quatro
pequenos aríetes retráteis para arrombamento de portas.
Ana Laura suspirou e pegou um par de protetores de
ouvido.
Enquanto os outros onze se armavam, um deles tirou
uma lata de tinta spray e começou a pichar a calçada em frente
ao casarão dos Machado.
Era uma peça de xadrez. Um Rei Branco.
Ártemis diria que isso é cringe, ela refletiu, de repetente
desejando que a amiga também estivesse ali.
Quatro dos homens se dirigiram à porta, com os aríetes
em punho.
Três... dois... um... agora! — ordenou Paulo.
Em sincronia, os quatro empurraram os aríetes em
direção à porta, mas ela não cedeu.
De fato, a porta estava sob a força de oito quilos de
explosivos plásticos, idealizados por Ártemis, armados por Ana
Laura e detonados pelo impacto dos aríetes.
A porta, um pedaço de madeira maciça de dois metros de
altura e cento e cinquenta quilos, voou na direção dos rostos
dos quatro homens, produzindo um som ensurdecedor e
nocauteando a vanguarda imediatamente.
A explosão não fez bem para a moral dos homens.
Sua DESGRAÇADA! Entra, entra! — gritou Paulo, a
pistola em mãos.
Seguindo-o, os sete homens restantes abandonaram os
que estavam nocauteados no chão.
Assim que entraram, o esquadrão se deparou com a luz
acesa da cozinha, no andar de baixo, e as escadas que
levavam ao andar de cima. Os homens olharam para Paulo
que, com as mãos, gesticulou que metade checasse a cozinha,
enquanto ele e a outra metade subiam as escadas.
É, eu esperava bem menos que doze homens, pensou
ela, frustrada.
Pegando o controle remoto, Ana se escondeu atrás da
porta do quarto de Ártemis. Assim que viu, pelas câmeras, os
homens entrarem na cozinha, pressionou um botão no controle.
Ela e Ártemis haviam trocado o container do gás da
cozinha por um derivado volátil de Fentanil, ativável à distância.
Um agente incapacitante cem vezes mais potente que a
morfina.
Assim que entraram, um por um, os quatro homens
fecharam os olhos e desmontaram no chão, deixando cair suas
armas.
Faltam quatro.
Ela escutou os outros subirem as escadas, tentando ser o
mais silenciosos possível.
Ana Laura prendeu a respiração.
O primeiro quarto depois das escadas era o de Ártemis.
Eles entraram em fila indiana pela porta estreita.
Má ideia.
Com toda a força que tinha, ela esmurrou a porta contra a
cabeça do primeiro, desorientando-o. Antes que os outros
pudessem reagir, ela desarmou um deles e usou a coronha da
arma para acertar as têmporas dos outros dois.
Havia três homens no chão agora. Só restava Paulo.
Os dois apontaram suas armas um para o outro.
Prazer, Paulo, eu sou a Ana Laura disse ela, o dedo
pronto para puxar o gatilho.
Obviamente você sabe o meu nome — concluiu Paulo. —
Afinal de contas, você tinha uma espiã no meio das Torres.
Exato. E agora você trouxe doze homens para me matar,
sob ordens do Arthur. Acertei?
Ele mandou a gente te pegar, viva ou morta.
Ana Laura percebeu que ele estava tremendo.
Paulo... Isso é realmente o que você quer?
O quê? Sua vagabunda, é claro que eu...
Me escuta. Era isso o que você planejava com essa
história de Torres do Rei? Invasão de propriedade privada?
Homicídio doloso?
Eu sou as mãos e os pés do meu Rei. Você não
entenderia.
Eu entendo de relações, Paulo — declarou Ana,
segurando com firmeza a pistola. — A sua relação com o Rei
Branco é recíproca? Você está se prontificando a ser preso ou
tomar uma bala por Arthur, mas será que ele faria o mesmo por
você?
Aquele um segundo de hesitação foi o suficiente para que
Paulo abaixasse a arma, e logo ele sentiu o cano de outra
pistola em sua nuca.
Pro chão, Paulo Viana. Você está preso — anunciou uma
voz feminina atrás do batente.
Era Maria Eduarda, a outra investigadora do caso Rei
Branco.
Brancas 15: Roque
Janeiro de 2023
Ártemis abriu os olhos mais uma vez, e percebeu que o
Rei Branco estava sentado no chão de seu cativeiro, olhando
para ela.
Como ela é? — perguntou ele, sem tirar os olhos de
Ártemis. Ele precisava admitir, o corpo daquela mulher era
realmente lindo, e ele se sentia particularmente atraído por ela
presa à sua mercê.
Não. A Missão é importante demais.
Eu não posso me distrair, não agora.
A RedQueen pode me atacar a qualquer momento e me
impedir de mudar o mundo, ele pensou.
Ela? Desculpa, não conheço nenhuma mulher — disse
Ártemis, dando de ombros.
É sério. Como é a Ana Laura Machado? A RedQueen?
Ártemis pareceu calcular os riscos, mas decidiu entreter
seu captor.
Ela é dura na queda — afirmou.
Tem um gancho de esquerda matador.
Ela é babaca e até meio egoísta. Mas também é a pessoa
mais forte, esperta e sofisticada que eu já conheci. Você pode
fazer os planos que quiser, Arthur, e eu garanto que ela vai
estar sempre um passo à frente de você.
O Rei Branco sorriu.
Ela está. Sabia que ela nocauteou doze homens meus
ontem à noite? Doze. Eu tô quase impressionado.
Ártemis parecia surpresa, na medida do possível.
Você mandou doze homens atrás dela? Que covarde. É o
tipo de coisa que eu esperaria do Gabriel, não de você.
A ofensa não pareceu afetar o Rei Branco.
Era a decisão mais estratégica a se tomar.
Claro que era — disse ela, suspirando. — Deixa eu te
contar mais uma coisa sobre a Ana Laura. Arthur, você sabe o
que é um roque?
Um... roque? — perguntou ele, franzindo as
sobrancelhas. O Rei odiava não saber das coisas, e odiava
mais ainda quando as pessoas tentavam ensiná-lo.
Sim, um roque. É um movimento de xadrez, seu idiota. É
quando o rei se esconde atrás das suas Torres, movendo duas
peças ao mesmo tempo. O rei se move para as bordas e a
torre se move para o centro. Um roque é exatamente o que
você está fazendo agora: se escondendo atrás das Torres.
Essa provavelmente era a razão do nome do seu fã-clube: dar
apoio ao Rei Branco e um lugar para ele se esconder.
Engraçado como seus súditos sacaram isso antes de você, né?
As narinas do Rei Branco se dilataram. Ele se levantou e
andou na direção de Ártemis, mas ela não se moveu nem um
centímetro para trás.
E o que isso tem a ver com a Ana Laura? — perguntou.
Sabe — continuou Ártemis, rindo —, aquela maluca me
fez jogar umas duzentas partidas de xadrez com ela. E sabe de
uma coisa? Ela nunca, em nenhuma dessas partidas, fez um
roque. Ela nunca escondia o rei dela atrás de ninguém.
Simplesmente não era o tipo de coisa que ela faria. E ela é
excepcional em jogar xadrez.
O Rei Branco sentiu uma profunda mistura de emoções.
Seu ego foi ferido pela implicação de que a RedQueen era
melhor do que ele — mais corajosa, mais esperta. Mas
também sentiu um surto de adrenalina ao ouvir mais sobre a
personalidade dela, a final, quanto mais ele conhecesse sua
inimiga, maiores eram suas chances de vencer.
Engraçado. A Alice era o oposto de tudo isso. Era linda,
mas superficial, volúvel. E ela não era particularmente esperta.
Arthur, você não conhecia a Alice. Ela nunca, em toda a
vida dela, dirigiu a palavra a você. Essa Alice que você
imaginou não existe.
Ela tinha ido longe demais. O Rei Branco levantou a mão
e desferiu um tapa forte contra a bochecha dela, deixando uma
marca vermelha.
Não me faça socar uma mulher! ele a advertiu.
Certo. A gente muda de assunto respondeu Ártemis,
passando a mão no rosto e cerrando os dentes. — Como tá o
meu irmão?
Vivo, mas doente. Ele come pouco, e está começando a
arder em febre.
Ártemis calou a boca por um instante e começou a chorar.
Por que você...
Eu te disse — o Rei a interrompeu, cruzando os braços.
— Eu não estou disposto a matar só por matar. E além do mais,
vocês são úteis pra mim, agora que eu sei que a RedQueen
conhece os dois. Eu posso usar vocês como ficha de
barganha, ou até mesmo torturar ela machucando vocês.
As lágrimas de Ártemis, antes escassas, começaram a
descer em maior volume.
Me mata, Arthur. Me mata, mas não deixa os dois
sofrerem mais. ME MATA, ARTHUR!
Ele levantou a mão mais uma vez, agora de punho
fechado, e desferiu um soco no olho de Ártemis, que caiu no
chão.
O soco rompeu o supercílio dela, que começou a verter
sangue vermelho-vivo pelo seu rosto. O Rei Branco não a
ajudou a se levantar.
Se você não quer me matar, me deixa cuidar do meu
irmão. Por favor — suplicou Ártemis, em meio aos soluços.
Eu também não gosto dele. Torturá-lo não seria nada
ruim — respondeu o Rei.
Arthur, você escuta as coisas que você diz? Reflete um
pouco. Olha pra... coisa que você se tornou. Você era só um
cara apaixonado por uma celebridade de internet. Um cara
comum, vivendo um sentimento positivo.
Comum? — perguntou ele, destacando a palavra.
Não foi uma ofensa, não dessa vez. Você era humano.
Mas foi se permitindo cair em um abismo após o outro, até se
tornar o que é agora. Você não se arrepende? Como você
espera ser um Rei se não consegue nem mesmo se colocar no
lugar dos seus súditos?
Rei.
A palavra o pegou de surpresa.
Volta, Arthur. Volta a ser a pessoa que você era antes
dessa bagunça começar. Volta pro lugar onde você perdeu a
humanidade.
Você está enganada. Eu nunca me arrependi, nem por um
segundo — mentiu o Rei Branco. — E não tenho que me
preocupar com a minha humanidade, porque eu não sou um
homem. Eu sou um Deus.
Se é isso o que você quer — disse ela, ficando de pé. —
Se quer usar nós dois para torturar a RedQueen, você não vai
poder fazer isso se o Flipe estiver morto.
Ártemis deu um passo vagaroso na direção do Rei
Branco, sentindo o peso das correntes e do cadeado.
Me deixa cuidar do meu irmão, Arthur. Me revista, eu não
me importo.
Só me deixa cuidar do meu irmão!
A expectativa de tocar no corpo daquela mulher deixou o
Rei Branco com enjoo. Não, ele não podia fazer esse tipo de
coisa. Aquilo era passar dos limites. Ele era metódico,
refinado.
Ele deu três passos para trás, sem tocar no corpo de
Ártemis.
Eu vou procurar algum equipamento médico. Pro Felipe, e
pro seu supercílio — disse o Rei, confuso, enquanto saía pela
porta do cativeiro e escutava o suspiro aliviado de Ártemis.
Vermelhas 15: Confiança
Janeiro de 2023
Então o escrivão Arthur Magno é o Rei Branco —
reafirmou Ana Laura ao terminar de contar tudo para os dois
policiais.
Os três estavam em uma lanchonete nada muito chique.
A primeira policial era uma mulher negra, mais velha, de cabelo
cacheado e usando um terninho. O segundo era um senhor
mais velho ainda, negro e careca, carregando um distintivo de
delegado.
Ana Laura se encontrava machucada, mas nada muito
sério. Estava somente com escoriações adquiridas após os
ataques mais diretos ao esquadrão das Torres do Rei.
Obrigada pela ajuda. Mesmo — disse ela, gaguejando.
Pedir ajuda não era o forte dela, e muito menos agradecer por
isso.
Não que ela tivesse muitas opções de ajuda para pedir
àquela altura.
A investigadora olhava para os machucados nas mãos da
jovem com as sobrancelhas franzidas, enquanto Ana Laura se
perguntava se ela se sentia culpada por não ter sido ela a
descobrir as ações de Gabriel e Arthur cedo o bastante — para
falar a verdade, eles poderiam nunca ter descoberto aquilo.
Foi o mínimo — disse o delegado, sisudo como sempre.
— Arthur não aparece no trabalho há dias, não atende o
telefone, nada. Buscamos o sinal de GPS da viatura dele, mas a
sinalização leva para o fundo de um rio. Já íamos fazer o
atestado de óbito quando seus seguidores nos alertaram da
denúncia em vídeo.
Foi uma manobra arriscada — completou Maria
Eduarda —, mas funcionou. As ligações foram tantas que nós
colocamos uma equipe de busca no rio. Não encontramos a
viatura, somente o localizador de GPS. Se você tivesse feito
uma denúncia anônima, teria ido pro fim da fila. Usar a
influência dos seus seguidores foi uma tacada de mestre.
Obrigada — disse Ana Laura, tímida. Ela não estava
acostumada a receber elogios, principalmente vindos de
completos estranhos. — Foi o melhor que eu pude fazer. O
problema agora realmente são as Torres do Rei.
Os homens que atacaram sua casa? Achei que você
tivesse lidado com a maioria deles — comentou Maria, confusa.
Quem me dera. Conhecendo o Arthur, ele deve ter
mandado apenas uns dez por cento de seu destacamento para
me atacar, no máximo quinze, e pretende continuar atacando até
me levar.
Honestamente, senhorita, você parece conhecer Arthur
Magno melhor do que nós. Qual é o apelo? Como ele
conseguiu convencer tanta gente a se juntar à causa dele? — o
delegado questionou, curioso.
Relações parassociais — respondeu Ana Laura, direta e
resoluta.
Acho que eu desconheço o termo admitiu Diógenes.
É quando seu cérebro acha que uma pessoa famosa é
sua amiga íntima, já que você a vê todos os dias, mas a
verdade é que ela mal sabe da sua existência. Esse tipo de
relação sempre existiu, só que ficou muito pior agora, na era da
internet. É o que motivou Arthur a se tornar o Rei Branco: a
impossibilidade de transformar uma relação parassocial em um
relacionamento real. E seus seguidores provavelmente
compartilham da mesma frustração.
Interessante — falou a investigadora. — Então você acha
que não é culpa deles? É culpa das criadoras de conteúdo que
estimularam uma relação que não existia?
Na verdade, não — continuou Ana Laura. — A culpa dos
assassinatos do Rei Branco é exclusivamente dele. A verdade é
que o sistema de canais, por ser altamente competitivo,
incentiva as criadoras a agirem dessa forma se quiserem
continuar no topo. Talvez elas possam ser responsabilizadas
por algum sentimento de frustração ou manipulação, mas cada
um de nós escolhe o que quer fazer com nossas frustrações.
Eu escolhi lidar com as minhas caçando um assassino em
série.
Ele escolheu lidar com as dele se tornando um
assassino em série.
Os dois pareceram satisfeitos com a resposta.
E agora? O que você pretende fazer? — perguntou Maria
Eduarda.
Vocês não vão conseguir pegar ele. Não sozinhos. Eu
tenho um plano —respondeu Ana, seus olhos vidrados no chão.
Senhorita Machado — interrompeu o delegado —, você
está claramente exausta. Não me parece em condição alguma
de fazer planos, muito menos de executá-los. Nós não
permitiremos que você continue arriscando sua vida dessa
maneira.
A voz dele era grave, e seu tom quase paternalista.
Embora fosse uma reprimenda, Ana Laura se sentiu
estranhamente confortada pela presença deles ali.
Mas ela não podia parar de jogar.
Não agora.
Nós estamos em um impasse — anunciou Ana Laura. —
Vocês não querem confiar em mim, porque eu estou próxima
demais disso tudo: eu me fiz de isca humana, minha irmã foi
assassinada por Arthur e as duas outras pessoas mais próximas
de mim são provavelmente seus reféns. E eu não quero confiar
em vocês, já que permitiram que não um, mas dois assassinos
dentro do esquadrão de vocês interferissem em cenas do
crime e deliberadamente atrasassem as investigações.
Os dois não ofereceram resposta.
Ana Laura continuou.
Arthur Magno está na Catedral de São Sebastião. Ele
provavelmente transformou o lugar em uma espécie de
fortaleza, a essa altura. Minhas fontes de vigilância dizem que
dezenas de pessoas entraram no lugar, mas nenhuma foi vista
saindo.
Você acha que ele está fazendo mais reféns? —
perguntou a investigadora.
Acho difícil. Arthur é um homem carente de atenção,
precisa ser constantemente bajulado. Ele não colocaria seus
seguidores em perigo, ele precisa deles pra manter seu ego
inflado.
Espero que você esteja certa — disse Maria Eduarda. —
O caso está tomando proporções astronômicas. O secretário de
segurança está pressionando a gente para identificar o
paradeiro de Arthur Magno e prendê-lo o mais rápido
possível. Fomos liberados até a usar um esquadrão de
operações especiais.
Perfeito — concordou Ana Laura.
Então é o que nós vamos fazer: invadir a Catedral.
Mocinha — cortou o delegado —, “nós” é gente demais.
Nós vimos o estrago que você deixou na sua casa quando
enfrentou os doze homens. Sua resistência foi admirável, mas
a posse de explosivos plásticos e agentes incapacitantes por
civis é ilegal. E isso foi só o que a gente descobriu.
Ana Laura deu de ombros.
Eu entendo, estou disposta a pagar minha pena
quando isso tudo acabar. Eu só peço... Por favor, levem em
conta o quanto eu ajudei nas investigações. Sem jogos, sem
barganhas, nada. Eu só peço misericórdia, só isso.

As palavras pareceram amolecer o coração da


investigadora. Ela colocou a mão no ombro da ruiva.
Nós confiamos em você, Ana Laura Machado. E vamos
passar seu pedido adiante, prometemos. Só tente não morrer
enquanto isso, ok?
Brancas 16: Chave
Março de 2023
Cada vez mais, aqueles rapazes se pareciam menos com
jovens solitários e perdidos, e mais com um esquadrão de
combate.
Usando tudo o que sabia do seu treinamento como
policial, o Rei Branco ensinava a eles o básico de qualquer
combate, tanto corpo a corpo quanto com armas de fogo.
Ele não podia deixar de sentir uma ponta de orgulho. Se
ele tivesse tido aquele tipo de orientação quando era mais
jovem, talvez não tivesse demorado tanto para entender sua
verdadeira vocação. Aqueles garotos estavam no caminho
certo — prontos para se revoltar contra qualquer tipo de
opressão e retomarem seu lugar de direito na sociedade.
Em outro setor da Catedral, o Rei Branco instalou uma
sala de monitoramento: uma sala de jantar adaptada com vinte
notebooks conectados à rede interna e à conexão de satélite.
Naquela sala ficava a equipe de monitoramento, constituída por
recrutas que não se sentiam à vontade com o treinamento
físico e podiam fornecer ao seu Rei serviços em nível digital,
como a prospecção de novos membros das Torres em
comunidades online.
Todas as noites, a equipe de monitoramento organizava
um campeonato de jogos eletrônicos. A ideia inicialmente lhe
perturbou, mas ele acabou aceitando — quanto mais felizes e
alienados aqueles recrutas estivessem, melhor aceitariam a
Doutrina do Rei.
Sua única fonte de dor de cabeça, naquele momento,
eram seus prisioneiros. Após as súplicas de Ártemis, o Rei
Branco lhe concedeu um kit de primeiros socorros e alguns
comprimidos de analgésicos e antitérmicos, tirou suas amarras
e permitiu que ela ficasse na mesma sala que o irmão.
Ele não estava acompanhando o tratamento de Felipe. Na
verdade, o Rei Branco evitava entrar naquela sala o máximo
que podia — ele tinha medo de que sua crescente atração por
Ártemis nublasse seu raciocínio. Além disso, sabia que não
poderia acontecer nada ali, pois não havia como aquela bela
mulher sentir nada por ele além de puro ódio.
Bom, pelo menos ela sentia alguma coisa.
Ainda assim, agora que a RedQueen parara de publicar
vídeos, a tentação de visitar Ártemis todos os dias era grande.
Ele precisava de alguma motivação, um incentivo para
continuar com seu projeto de Reinado.
Em uma noite particularmente solitária, o Rei Branco se
levantou e foi até a sacristia. Ele hesitou por um instante e se
perguntou se deveria bater à porta — o lugar todo agora era
dele, afinal de contas.
Antes de bater, ele percebeu que havia um som incomum
dentro daquela sala.
O som de alguma coisa rangendo, ou melhor, metal
rangendo.
Ele abriu a porta e encontrou a fonte do som. No canto da
sala, Ártemis estava debruçada sobre o irmão, tentando serrar
suas correntes com um pequeno objeto de metal.
O Rei Branco se enfureceu.
Ele sacou sua pistola e apontou-a na direção de Ártemis.
O que você acha que está fazendo? — perguntou ele.
Se acalma, Arthur. Eu...
Me dá essa MERDA dessa chave agora!
Ártemis ficou em silêncio. Em um movimento lento, ela
entregou a chave para ele e por fim levou as mãos ao alto.
Era uma chave simples, com uma placa de plástico
acoplada a ela como um chaveiro, trazendo a inscrição
“Recanto da Coroa”.
O Rei Branco conhecia aquela chave muito bem. Era uma
das chaves do quarto onde Alice Machado conhecera o Rei.
Onde Alice Machado fizera seu derradeiro sacrifício pelo
Rei.
Onde... onde você encontrou isso? — questionou ele. Seu
tom não era mais tão áspero.
No bolso do Felipe. Acho que é a mesma chave daquele
dia, ele nunca deve ter tido a chance de devolver. Eu queria
afrouxar as correntes para ele poder se deitar de um jeito mais
confortável. A febre já está abaixando devagar, mas...
O Recanto da Coroa.
Arthur... Deixa a gente ir pra um hospital. Você é melhor
do que isso. Você não é tão ruim quanto acredita que é, você só
precisa voltar — Ártemis suplicou.
O braço do Rei Branco que segurava a arma não se
abaixou.
Cala a boca. Você quer que eu acabe com o sofrimento
dele aqui? Porque é tudo o que eu tenho a oferecer.
Os olhos de Ártemis se arregalaram.
Arthur, me escuta. Você não quer matar meu irmão —
disse ela, desesperada. — Guarda essas balas pra quem
realmente importa. Guarda essas balas pra RedQueen.
Pra... RedQueen? — o Rei sussurrou. — Eu...
A conversa foi interrompida por um som alto na rua —
uma sirene de polícia, seguida de outra, e mais outra.
Os sons não diminuíram.
As viaturas estavam estacionando na porta da igreja.
— Merda. Acho que a hora de gastar essas balas com
quem realmente importa acabou de chegar.
Vermelhas 16:Fortaleza
Março de 2023
Independentemente do que acontecer, eu quero que você
não se envolva, entendido? —ordenou a investigadora pelo
telefone.
Entendido — disse Ana Laura, pronta para se envolver.
O Secretário de Segurança realmente estava em pânico —
alocou forças armadas, a Polícia Militar e Federal para auxiliar
a Polícia Civil na captura de Arthur Magno. Eles chegaram —
sete viaturas de sirenes ligadas —, estacionaram na porta da
igreja e, via megafone, começaram a exigir que o assassino
conhecido como Rei Branco, nome de batismo Arthur Magno,
se entregasse à polícia para prisão preventiva.
Ana Laura estava vendo a comoção de longe. Tudo
ocorria na fachada, enquanto ela mesma esperava sua
oportunidade na rua de trás, vendo as saídas dos fundos da
igreja. Ela fechou os olhos e, rapidamente, fez uma avaliação
dos riscos.
Droga, Arthur. Por que você não escolheu uma fortaleza
mais fácil de se infiltrar, tipo um bunker ou, sei lá, um
castelinho pula pula?
Ana sabia que o lugar devia estar completamente
fortificado e seguro, e não foi difícil constatar que os vitrais
coloridos da igreja não tinham mais o mesmo brilho de antes.
Ela contou os apetrechos em seu cinto de ferramentas,
outra ideia de Ártemis: alicate, taser, bastão retrátil e cantil,
além de suas luvas de borracha.
A atenção deve estar voltada para a frente da igreja, ela
pensou, mas eles ainda não cercaram o lugar.
É a minha única oportunidade de entrar.
Prendendo o capuz e respirando fundo, correu até a cerca
de metal e pulou, escalando-a e saltando para o outro lado. Ela
estava dentro do perímetro da igreja, mas sabia que não havia
porta nos fundos — e também imaginava que o Rei Branco não
deixaria nenhuma entrada no térreo desprotegida.
Só tem uma opção, ela concluiu, enquanto olhava para o
parapeito da janela do primeiro andar, com mais de dois metros
de altura do chão.
Hora de fazer as aulas de escalada valerem a pena.
Pegando impulso, ela correu até a parede e saltou, apoiou
o pé esquerdo na parede e se impulsionou para cima,
agarrando o primeiro parapeito com as mãos.
A janela estava trancada, como Ana Laura esperava,
apesar disso, sua estrutura de vidro se mostrou forte o
bastante para que ela pudesse subir mais alguns centímetros.
Seus músculos ainda aguentavam segurá-la, mas ela não
podia passar muito tempo ali sem se arriscar ser descoberta
pelos policiais — ou, pior, pelos seguranças das Torres do Rei.
Havia outro parapeito ao seu lado, a alguns metros de
distância. Balançando, ela lançou seu corpo até o outro lado,
agarrando o peitoril com as mãos.
Ana Laura tentou encontrar apoio para os pés nas
protuberâncias de alguns tijolos logo abaixo, contudo, não
houve sucesso. Assim que pisou, os dois tijolos cederam e
caíram no chão.
Por pouco ela não se desconcentrou. Do outro lado da
igreja foi possível ouvir uma explosão, e os primeiros tiros
começaram a ser trocados.
Merda!
Os membros das Torres do Rei estavam bem mais
armados do que ela havia previsto. Com sorte, todas as armas
de fogo estariam dedicadas a impedir a entrada das equipes
da polícia. Havia, entretanto, uma entrada que eles não teriam
como trancar.
Ela olhou para o seu objetivo, agora a poucos metros de
ser alcançado: a torre do sino. Respirando fundo, Ana se
puxou para cima e alcançou mais um tijolo, e não parou. Ao
invés disso, ela usou o ímpeto para ajudá-la a alcançar a
mureta que protegia o sino.
Cheguei!, comemorou, ofegante, enquanto se sentava no
parapeito e recuperava o fôlego. Àquela altura, o moletom dela
estava completamente encharcado de suor.
Como havia imaginado, a torre era completamente oca
abaixo do sino, terminando em um salão espaçoso e vazio. Ana
pegou a corda amarrada à campânula e a agarrou com as duas
mãos, segurando-a com firmeza para se assegurar de que o
sino era capaz de suportar seu peso.
Bem, acho que isso vai chamar um pouco de atenção,
pensou, tirando os pés da mureta e descendo pela corda.
Enquanto ela escorregava para baixo, a campânula bateu
contra a borda sonante de bronze, fazendo o sino soar um
estrondoso badalo por toda a estrutura.
Quando finalmente chegou ao chão de madeira, sentiu o
cheiro forte de poeira e percebeu uma portinhola, destrancada,
separando o salão do sino dos andares inferiores. Ela ouviu
mais explosões do lado de fora — provavelmente bombas de
efeito moral acionadas pela polícia.
Era hora de entrar.
Respirando fundo, abriu a porta, tomou o bastão retrátil na
mão esquerda, o taser na mão direita e desceu. Ana se deparou
com um corredor repleto de jovens homens correndo em
direção ao térreo, embora ela tivesse chamado a atenção
apenas de três ou quatro deles.
QUEBRA DE PERÍMETRO! — gritou um dos homens —
QUEBRA DE...
Antes que ele pudesse continuar, Ana Laura disparou o
taser, acertando o homem com uma carga de cento e vinte mil
watts e incapacitando todo sistema neuromuscular dele.
Com os outros três, ela decidiu lidar de forma menos
violenta. Um deles foi acertado nas têmporas, enquanto outro
tomou um golpe de bastão retrátil no joelho. Esse último
conseguiu acertar um soco no olho direito de Ana Laura antes
que ela pudesse alcançá-lo com o taser. O supercílio dela se
abriu, fazendo sangue jorrar em seu rosto.
O terceiro, infelizmente, tinha uma arma. Ele a apontou
para Ana e puxou o gatilho, mas não previu a velocidade dela
que, como um puma, girou o corpo na direção paralela e
atacou a mão dele com o bastão, o que fez com que os ossos
do punho do homem se quebrassem, obrigando-o a largar a
arma. Ele mal viu quando o taser voltou a agir, nocauteando-o e
levando-o ao chão.
Quando a luta já tinha acabado e a adrenalina começou
a abaixar, ela fez uma avaliação dos danos. As maiores dores
se encontravam em sua fronte, no local em que havia tomado o
soco; o sangue que fluía livre começou a obscurecer parte de
sua visão.
Devido ao tiro de raspão que atingiu Ana Laura, uma lasca
de seu ombro direito foi arrancado, deixando um rastro de
pólvora e carne queimada. O moletom agora estava
encharcado de suor e sangue, mas ela não podia parar.
Com o punho metálico do bastão, Ana Laura começou a
quebrar as maçanetas de cada porta em sua frente. No início
não teve sorte com seu objetivo: encontrou apenas dormitórios
vazios, salas de equipamentos eletrônicos, entulho, armários
dedicados a armas de fogo — agora completamente vazios.
Quando ela estava quase descendo para o térreo e se
arriscando a entrar na área das bombas de efeito moral,
localizou a sala da sacristia.
Ao quebrar a fechadura e abrir a porta e acender as luzes,
Ana Laura encontrou um homem negro esfarrapado
acorrentado ao chão. Surpresa, ela o reconheceu.
Felipe! — gritou, correndo em sua direção. — Felipe, você
tá acordado?
Ele abriu os olhos, com extrema fraqueza, mas vivo.
Ahn... Ana? Ana Laura? Como você chegou até aqui? O
Rei Branco te...
Ei, a cavalaria chegou. Respira fundo e guarde suas
forças pra quando estiver do lado de fora desse inferno. Você
tá muito ferido?
Acho que minha perna tá quebrada. A lesão estava
começando a infeccionar, mas a Ártemis...
Cuidou de você. É, eu sei, a ideia de fazer isso foi minha.
Espera, como...
Depois eu te conto. Onde ela está?
O Rei Branco a levou pra fora daqui quando as explosões
começaram. Eu sinto muito, eu não sei onde...
Ei, ei, calma. Esse pesadelo acabou, ok? É hora de voltar
pra casa — Ana o tranquilizou enquanto quebrava a pesada
fechadura que o prendia às correntes.
Tentando ignorar a dor aguda no ombro, ela ligou o
celular e discou para um dos números salvos.
Investigadora, eu encontrei o primeiro refém. Ele tá são e
salvo, mas a Ártemis desapareceu.
Ana Laura?! — indagou Maria, assombrada. — Como
diabos você entrou aí? Nós estamos cobrindo a única porta!
Eu dei meu jeito. O que está acontecendo aí embaixo?
Más notícias. Nós conseguimos neutralizar a maioria das
Torres do Rei, mas um homem de óculos foi visto colocando
uma garota desacordada dentro de uma viatura no meio da
nave do templo e dirigindo para fora da igreja no meio do caos
do gás lacrimejante. Ele ainda atropelou nossa barricada e
dois policiais, e eu acho que levou Ártemis, só que tudo
aconteceu tão rápido que ninguém conseguiu segui-los e...
Relaxa — disse Ana Laura, decidida. — Eu sei pra onde
ele tá indo, mas ele vai executá-la se eu chegar com a polícia.
Vocês têm uma moto sobrando aí embaixo?
Brancas 17: Rei Afogado
Março de 2023
O Rei Branco estava completamente exausto.
Dirigindo a viatura como um louco, ele ainda usava sua
máscara molhada para protege-lo da reação das bombas de
efeito moral — mesmo assim seus olhos ardiam como o
inferno. Ele sabia que a Polícia Civil devia estar em seu
encalço, mesmo que alguns minutos atrasada.
Ártemis estava algemada no banco de trás, nocauteada
pelo gás. Esta seria a última vez que ele carregaria alguém
desacordado dentro daquele carro. Após alguns minutos, ela
acordou e se debateu.
Arthur? Arthur, pra onde a gente tá indo?
Ele não sabia, não exatamente.
Ártemis continuou a falar.
Acabou, Arthur. Eles vão encontrar a gente, de uma forma
ou de outra. Fugir não é mais necessário.
Eu não estou fugindo porque é necessário —
respondeu ele, irritado.
Eu estou fugindo porque eu quero. Eu sou o Rei. Eu posso
fazer o que eu bem entender. Não é o fim do jogo, não ainda.
É o que você escolheu se tornar disse Ártemis,
melancólica.
Se tornar.
Voltar para onde aquilo tudo começou.
Para o único lugar onde o Rei Branco podia recomeçar.
Ele deu um golpe brusco no volante e puxou o freio de
mão, fazendo o carro executar uma derrapagem em cento e
oitenta graus, e assim começou a dirigir no sentido oposto.
Com o movimento súbito, Ártemis bateu a cabeça na porta do
carro. O Rei queria dar o máximo de conforto possível pra ela,
mas não podia, não de verdade.
Não agora.
Eu vou voltar, Ártemis.
Voltar? — perguntou ela. — Pra igreja?
Ainda antes, eu vou voltar para o lugar onde tudo
começou, matar você por lá e recomeçar minha vida no
interior. Eles nunca vão conseguir me pegar. Por que
conseguiriam? Eu sou o Rei Branco.
Você ainda é um Rei? Porque os seus súditos não estão
mais aqui. Nem seu castelo. Nem suas Torres.
As Torres foram úteis. Eles foram meu escudo por todo o
tempo em que conseguiram. Graças à internet, minha
mensagem se tornou imortal. Eu posso formar novas células
das Torres onde eu quiser. E eu vou te matar, Ártemis Braga,
não importa o quanto você me provoque. Isso eu te prometo.
Ártemis olhou para o chão e, silenciosamente, começou a
chorar.
Logo a viagem os levou ao destino.
O Recanto da Coroa.
Respirando fundo, o Rei Branco tirou seu cinto de
segurança, abriu a janela do motorista e começou a absorver
toda a nostalgia daquele lugar, seguro de que Ártemis não
podia fazer nada contra ele enquanto estivesse algemada ao
banco da viatura.
Ele aspirou o cheiro de grama recém-cortada, o vento frio
do interior. Percebeu os poucos carros passando pela estrada,
alheios à violência que estava acontecendo ali.
Aquele era o mesmo lugar no qual, em um surto de
coragem, ele finalmente se levantara contra a opressão.
Por que aqui? — perguntou Ártemis. — Por que voltar
para o Recanto da Coroa?
Você mesma me disse. Aqui foi o lugar onde eu perdi
minha humanidade. Aqui foi o lugar onde eu sacrifiquei Arthur
Magno pra me tornar um Deus. Eu acreditava que merecia ser
feliz com a mulher que eu amava. Que eu merecia ter a minha
sede, essa necessidade, esse desejo tão horrível e
avassalador preenchidos. E Alice... Alice era o último insulto.
Ela era a mulher perfeita para mim, e eu nunca, nunca poderia
tê- la.
Arthur... — Ártemis tentou argumentar — Por favor, tente
compreender. Alice não era a mulher perfeita para você.
E que chance eu tenho com as outras? — questionou o
Rei Branco — Eu queria Alice. Sabe, quando eu já havia
decidido matá-la, tive a chance de conhecê-la pessoalmente em
um evento. Me custou quatrocentos reais, e ela interagiu
comigo por três segundos, antes de olhar para mim como se eu
fosse um verme e chamar pelo próximo.
Eu desejava essa mulher, e ela me via como um verme.
Eu sinto muito, Arthur. Muito mesmo. Mas você não
precisa me matar. Me deixa aqui, eu encontro um jeito de fugir e
não conto pra ninguém a direção em que você foi.
Esse é o problema, Ártemis. Agora você me conhece.
Sabe como eu penso. Com a sua ajuda, a polícia vai
estabelecer meu perfil psicológico em um piscar de olhos, e
deduzir minha localização aproximada. Você me viu por dentro,
e é por isso que precisa morrer: para que eu finalmente possa
começar de novo. Matar você é a minha única opção.
Ele esperava que Ártemis chorasse, gritasse ou
esperneasse. Nada disso adiantaria — aquele lugar era
majestosamente remoto.
Entretanto, ela não fez nada disso.
Na realidade, Ártemis Braga começou a rir.
Não era um riso louco ou sarcástico. Era um riso de
genuína inocência, de alguém que acaba de ouvir uma ótima
piada.
Aí, Arthur. Você realmente não prestou atenção no que eu
te disse no dia em que me prendeu, não foi? Você se tornou
o Rei Afogado.
De novo Rei... Afogado? O que diabos aquilo queria
dizer?
É outro termo idiota de xadrez?
Isso — ela confirmou, ainda rindo. — Um Rei Afogado
hoje é considerado um empate, mas já foi uma estratégia válida
no xadrez. A ideia é ir tirando todos as vias de combate do
oponente, uma por uma, até que o Rei inimigo simplesmente
não tenha mais o que fazer. Até suas opções se esgotarem.
Os olhos dele se arregalaram. Não era possível.
Aquilo não podia ser obra das duas, pensou, apertando
com força o volante.
E foi o que aconteceu com você, não foi, Arthur? Você
tinha grandes chances de vencer essa disputa, mas seu orgulho
o impediu de ver as peças que estava perdendo. O anonimato,
o copycat. a segurança da delegacia da Polícia Civil. E,
finalmente, sua fortaleza e as Torres dos Reis. Sua ambição
não permitiu que você tivesse uma análise fria do tabuleiro. E
seus movimentos acabaram, resta a você apenas receber o
xeque-mate, o final irreversível.
Ele pegou sua pistola no coldre, virou-se para trás e
disparou.
Disparou...
E a bala errou o alvo.
Seu braço fora, no último instante, desviado pelo braço da
própria Ártemis.
Suas algemas, eu tenho certeza que...
Algemas? — Ártemis gracejou, puxou a pistola com
violência das mãos do Rei e tirou o cartucho de munição. — Por
favor! Não se passa tanto tempo morando com a Ana Laura
Machado sem aprender a quebrar pelo menos um par de
algemas.
O Rei Branco não se deu por vencido. Ele respirou fundo
e tirou a sua faca de fibra de carbono de dentro do porta-luvas.
A mesma faca que usara para matar Alice.
Poético, ele pensou.
Então apontou a lâmina para o pescoço de Ártemis,
parando a poucos centímetros de cortar uma veia importante.
Eu não vou perder pra você. Eu te disse, eu vou te matar.
Perder pra mim? — indagou Ártemis entre um sorriso
irônico. — Ah, Arthur, acho que é não pra mim que você deveria
se preocupar em perder.
De imediato o Rei Branco sentiu uma pressão enorme
nas costas; pela abertura da janela, dois punhos puxaram-no
para fora do carro.
Tudo aconteceu rápido demais. Antes que ele pudesse
perceber, tinha sido jogado de forma feroz no chão de asfalto,
ralando seus ombros.
O Rei abriu os olhos e lá estava ela.
Com um moletom encharcado de sangue e suor, cabelos
ruivos ao vento e um bastão retrátil em mãos, aquela mulher
estava com sua guarda fechada, em posição de batalha.
Eles finalmente haviam se reencontrado.
RedQueen, achei que você nunca fosse chegar — saudou
o Rei Branco, sorrindo.
Vermelhas 17: Cheque-Mate
Março de 2023
Ana Laura, finalmente, estava cara a cara com o Rei
Branco.
RedQueen, achei que você nunca fosse chegar — Arthur
a cumprimentou, sorridente. — Chamou a polícia pra vir com
você?
Não — disse ela. — Só eu. Chegar até ali não havia sido
difícil: o plano final havia funcionado, afinal de contas. A moto
da polícia não era — nem de longe — tão potente quanto a de
Ana, mas Ártemis havia conseguido protelar o assassino tempo
o bastante para que ela chegasse.
Tudo aquilo fazia parte do plano.
O instante em que os olhos de Arthur Magno se travaram
com os de Ana Laurapareceu durar uma eternidade.
Ali estava o homem que tirara a única família que ela
tinha.
O homem que invadira sua casa.
O homem que ameaçara a vida dela e das pessoas com
quem ela se importava.
Ana Laura respirou fundo e sorriu.
Um sorriso puro, honesto.
Isso termina aqui, Arthur. Eu e você, no lugar onde tudo
isso começou.
Ele se levantou, agarrando faca de lâmina negra, e abriu
as mãos, deixando a arma cair no solo. Por um instante, Ana
Laura achou que era um sinal de rendição, até o homem fechar
os punhos e levantar uma guarda de boxe.
Eu e você — disse Arthur. — Sem armas. Só eu e você.
Rei contra Rainha.
Era um convite para uma luta pessoal. Ana Laura sentiu o
gosto do sangue seco nos lábios e o ácido lático invadir seus
músculos, completamente exaustos de todo o esforço até feito
ali.
Aquilo não era necessário. Ela podia simplesmente
acertá-lo com o bastão e terminar tudo logo. Ana não precisava
provar nada para ele.
Mas precisava provar uma coisa pra si mesma.
Ela jogou o bastão retrátil no chão e levantou sua guarda.
Vamos. As peças brancas atacam primeiro — disse,
levando sua perna esquerda para trás e se preparando para o
impacto.
Arthur não perdeu tempo. Ele suspirou e avançou na
direção dela, rápido como um touro.
O Rei desferiu três ganchos de direita. A Rainha
conseguiu aparar os dois primeiros com o antebraço, mas o
terceiro acabou acertando seu maxilar, fazendo-a tremer de
dor.
Então, como você me encontrou? perguntou ele, dando
dois passos para trás. — Eu não vi ninguém me seguindo.
Encontrar? Quem você acha que te deu a ideia de vir até
aqui? Foi tudo parte do nosso Xeque-mate — relatou Ana,
investindo até Arthur e acertando-o na mandíbula com um
gancho de esquerda.
Ele deu mais dois passos pra trás, e ela continuou.
Ártemis fez um plano a ser executado caso uma de nós
fosse sequestrada por você. A gente ia abrir um canal de
comunicação e te manipular a vir até “o lugar onde isso tudo
começou”. Depois, tudo o que precisamos fazer foi costurar
duas chaves e um chaveiro de plástico em um bolso oculto. O
próprio recepcionista do hotel deu os chaveiros pra gente, e
de graça.
Arthur fechou os punhos e urrou. Dessa vez, ele levantou
sua perna e acertou o flanco de Ana Laura com um chute
giratório.
Ela sentiu mais sangue invadir sua boca, mas não podia
parar — não agora. Por isso continuou a falar, girando o corpo
e ajustando sua guarda para se adaptar aos golpes no
abdome.
Nós sabíamos que você não havia matado o Felipe, não
ainda; ele representava tudo o que você mais odiava. No dia
em que o matasse, você o faria da forma mais pública
possível, exibindo-o como um troféu.
E por isso Ártemis, uma pessoa que nunca teve
treinamento médico na vida, foi capaz de cuidar dos ferimentos
do Felipe — o Rei concluiu aparando três cruzados de Ana
Laura com as palmas das mãos.
Exato. Nós duas nos preparamos para qualquer ferimento
que ele tivesse, caso fôssemos sequestradas antes de você
decidir executá-lo. Nós libertamos Felipe e tiramos todas as
suas opções, até que você viesse para o lugar certo. Para o
lugar onde você perdeu sua humanidade: aqui.
Arthur soltou mais um urro — um grito gutural, grave,
assombroso.
O grito de um ferimento profundo — não no corpo, mas na
alma.
E agora — disse Ana Laura — Você é...
—...o Rei Afogado — completou Arthur, levantando o
braço e acertando o tórax de Ana Laura com uma cotovelada.
Mas eu ainda tenho uma opção. Eu ainda posso matar
você.
Fique à vontade — provocou, se esforçando para não
perder o ar — para tentar.
O Rei não recuou, nem mesmo para esperar o próximo
golpe. Não, Arthur estava cansado daquele jogo em particular.
Ele se abaixou, pegou sua faca do chão e investiu,
selvagem, desesperado, em direção a Ana Laura.
Má ideia, ela pensou.
Respirando fundo naquele milésimo de segundo, Ana se
jogou no chão, estendendo sua perna esquerda e acertando as
canelas de Arthur com uma rasteira.
O Rei se desequilibrou imediatamente, derrubando a faca
de volta ao chão.
Ela não se permitiu descansar nem um segundo, embora
seu corpo estivesse no limite. Usando o último surto de
adrenalina que tinha, se levantou e lhe deu o empurrão final,
levando-o ao chão.
Antes que o homem pudesse reagir, Ana Laura já havia o
imobilizado, a faca dele em mãos.
Terminou. Tudo o que ela precisava fazer agora era...
Vamos — o Rei a incentivou, ofegante. — Acabou. Me
mate.
Eu... — Ana Laura não podia tirar os olhos de Arthur, mas
estava confusa e exausta demais para tomar uma decisão
daquela proporção.
Alice, ela pensou, eu posso terminar tudo aqui, agora. Eu
posso te vingar.
É isso que sua irmã ia querer — assegurou Arthur, como
se estivesse lendo os pensamentos dela. — E é o que você
quer também, RedQueen.
Talvez fosse mesmo o que Alice ia querer.
Mas não era o que Ana Laura queria.
Vamos! Você não vai me dar seu xeque-mate?! — gritou
ele.
Eu já dei — ela acentuou, desferindo um último gancho
de esquerda no rosto do Rei Branco, deslocando seu nariz e
nocauteando-o.
Ela rolou para o lado e caiu no chão, completamente
esgotada.
Ártemis ainda estava dentro da viatura trancada, presa no
banco de trás. Entretanto, com as mãos livres das algemas,
conseguiu ativar o radiocomunicador acoplado ao painel e
chamar reforços.
Elas olharam uma para a outra, e sorriram.
Ana Laura fechou os olhos, deitada no asfalto,
machucada e exausta. Ela se permitiu descansar enquanto
avistava s sirenes das viaturas e da ambulância ao longe.
Fim de Jogo
Os Assassinatos do Rei Branco haviam, finalmente,
chegado ao fim.
Arthur Magno foi exonerado da Polícia Civil e preso
preventivamente. Seu julgamento foi um dos maiores da
história do país. O interesse da população pelo caso tomou
tamanha proporção que, em um ato extraordinário, o Tribunal
de Justiça permitiu a transmissão da sessão via internet, em
todas as suas instâncias. O julgamento teve mais de dez mil
acessos, quase derrubando os servidores do TJ.
Embora a promotoria esperasse alguma forma de
resistência, Arthur Magno não apresentou nenhuma.
Conjecturava-se que ele lutaria com todas as armas de
manipulação midiáticas existentes para essa espécie de caso,
como entrevistas com roupas surradas alegando inocência e
transtornos de ordem mental, mas o acusado não fez nada
disso.
De fato, ele se vestiu com sua melhor gravata, foi até o
tribunal e confessou todos os seus crimes, desde o assassinato
de Alice Machado e Mariana Salles, até o sequestro dos
irmãos Felipe e Ártemis Braga. O ex- escrivão ainda forneceu
amplas evidências que provaram seu envolvimento de forma
conclusiva.
Ao final do julgamento, perguntado pelo juiz o porquê de
não ter montado uma estratégia de defesa, o réu olhou para a
autoridade máxima do Poder Judiciário, sorriu e afirmou: “Um
xeque-mate é irreversível, Vossa Excelência”. Em síntese, Arthur
Magno foi condenado e sentenciado a quarenta anos de
reclusão em prisão de segurança máxima. Ele não ofereceu
resistência ao enclausuramento.
Outro julgamento, bem menos alardeado que o primeiro,
se encarregou dos membros do grupo de ódio conhecido como
Torres do Rei. A maioria deles foi presa por tentativa de
homicídio ou, no caso dos menores de idade, sentenciada a
serviços comunitários e acompanhamento psicológico fornecido
pelo Estado. Grupos de ódio de temática similar continuaram
existindo, sempre se fortalecendo nas esquinas escuras da
internet.
O canal RedQueen foi encerrado e retirado do YouTube.
Ana Laura Machado, após o fim de seu serviço comunitário,
retomou à carreira de enxadrista profissional, com sua garra e
determinação renovadas. Ela foi a vencedora do Torneio
Nacional de Xadrez naquele ano, e logo começou a se
preparar para o mundial.
Embora recebesse propostas de múltiplos anunciantes,
Ana Laura nunca voltou a ter qualquer rede social. Seu
envolvimento no Caso Rei Branco foi, felizmente, ocultado pela
justiça. A irmã mais nova de Alice, de fato, recebeu pouquíssima
atenção da mídia em geral, sendo taxada como “só mais uma
youtuber tentando chamar atenção durante o caso”.
Entretanto, a investigadora Maria Eduarda Ribeiro e o
delegado Diógenes
Marques foram condecorados por comissão interna da
Polícia Civil. O trabalho de ambos foi taxado como “grandes
atos de bravura durante a investigação de um dos casos mais
brutais já vistos no país”.
No vácuo deixado pela RedQueen, outra youtuber de
máscara e temática semelhantes começou a fazer sucesso:
BlackQueen, canal comandado por Ártemis Braga. Focando
em vídeos de dissertações sobre jogos, animações e filmes, o
canal encontrou uma base de visualizações entre jovens
garotas na internet.
Seu vídeo mais visto é um estudo sobre Relações
Parassociais, no qual Ártemis pede aos seus seguidores que
comecem uma auditoria nos vídeos que consomem, apoiando
canais e influenciadores pelo conteúdo que eles têm a
oferecer, e nunca pela esperança utópica de construir alguma
relação recíproca. Ela conclui o vídeo explicando que o antídoto
para esse tipo de relação destrutiva é a construção de uma rede
de apoio, com relacionamentos reais e bilaterais, mesmo que
não- românticos.
O vídeo bateu o recorde de visualizações em toda a
plataforma nacional. Recebeu legendas em mais de trinta
idiomas, e foi imediatamente plagiado por quase uma centena
de canais. Na primeira semana foi possível constatar uma
queda de inscritos em várias páginas, principalmente de
modelos e canais da categoria “Estilo de Vida”. O evento foi
apelidado pela internet de “Efeito BlackQueen”.
Ártemis nunca se mudou da casa dos Machado.
Continuou morando com Ana Laura, mesmo que a agenda das
duas permitisse pouco lazer. Felipe Braga, após passar
semanas no hospital, agora mora na casa das duas, que o
auxiliam sempre que podem em sua reabilitação física e
psicológica.
Na prisão de segurança máxima, Arthur Magno não
recebe visitas. Nunca solicitou progressão de sua pena —
mesmo que seu comportamento no cárcere tenha sido
absolutamente exemplar.
De fato, foi relatado que ele passa a maior parte dos seus
dias lendo velhos manuais de xadrez.
SOBRE O AUTOR

L. F. Bomfá tem 27 anos e é formado em Medicina, tendo


experiência como interno no Hospital Psiquiátrico Raul Soares
em Belo Horizonte, Minas Gerais. Além da graduação, também
se formou pelo curso EaD de Escrita Criativa da Universidade
de Oxford, ministrado por Sara Taylor e Amal Chatterjee.
Atualmente, ele se divide entre a escrita e a prática médica.
Você o encontra no Instagram @lbomfa.
Também é autor do conto de terror cósmico “A médica de
Anhangá”, e do romance de espionagem “Águia do Deserto”,
ambos disponíveis em e-book pela Amazon.

Você também pode gostar