Dissertação Danças Circulares ESP

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”


unesp INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
DESENVOLVIMENTO HUMANO E TECNOLOGIAS

FOCALIZADORES(AS) DE DANÇAS CIRCULARES SAGRADAS NO BRASIL


EM SEUS PROCESSOS DE FORM(AÇÃO)

POTYRA CURIONE MENEZES

Rio Claro – SP
2022
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
unesp INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
DESENVOLVIMENTO HUMANO E TECNOLOGIAS

FOCALIZADORES(AS) DE DANÇAS CIRCULARES SAGRADAS NO BRASIL


EM SEUS PROCESSOS DE FORM(AÇÃO)

POTYRA CURIONE MENEZES

Orientador: Prof. Dr. FLÁVIO SOARES ALVES

Dissertação apresentada ao
Instituto de Biociências do Câmpus
de Rio Claro, Universidade
Estadual Paulista, como parte dos
requisitos para obtenção do título
de Mestre em Desenvolvimento
Humano e Tecnologias.

Rio Claro – SP
2022
Menezes, Potyra Curione
M543f Focalizadores(as) de Danças Circulares Sagradas no Brasil
em seus processos de form(ação) / Potyra Curione Menezes. --
Rio Claro, 2022
127 p. : fotos

Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista


(Unesp), Instituto de Biociências, Rio Claro
Orientador: Flávio Soares Alves

1. Danças Circulares Sagradas. 2. Subjetivação. 3.


Elaboração de si. 4. Formação. 5. Estilística da existência. I.
Título.

Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do


Instituto de Biociências, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a).

Essa ficha não pode ser modificada.


Dedico este trabalho às Danças Circulares
Sagradas por ajudarem a reacender em mim
uma pulsão de vida e por me impulsionarem a
esta pesquisa.
AGRADECIMENTOS

Agradeço, imensamente, à minha amiga Cláudia Laus Ângelo por ter me


apresentado as Danças Circulares Sagradas e me proporcionado a realização de um
curso de formação em Danças Circulares Sagradas que me foi tão potente e
transformador.
Agradeço a meus mestres iniciais, Bruno Perel, Mônica Carvalho e Renata
Ramos, bem como a tantos outros que conheci nas rodas de Danças Circulares
Sagradas, com os quais aprendi e aprendo sempre!
Agradeço ao meu querido orientador Flávio Soares Alves pelas fecundas
orientações, pela parceria incansável na composição deste trabalho e por todo
suporte.
Agradeço a todos(as) os/as focalizadores(as) que se dispuseram prontamente
a participar desta pesquisa.
Agradeço ao meu amado companheiro de vida, Carlos Alberto Francisco, pela
cumplicidade e apoio incondicional, e ao meu filho lindo, Thiago Menezes Francisco,
que só por existir, me dá forças para viver!
Agradeço à minha mãe querida que me apoia e sempre me apoiou em minhas
escolhas com tanto amor e suporte, bem como pela leitura atenta e ajuda nas
correções deste trabalho.
Agradeço ao meu pai por me lembrar sempre da importância da arte em nossas
vidas.
Agradeço à Sueli Rocha e ao Antônio Carlos Carrera pela disposição à leitura
deste trabalho e sugestões.
Agradeço ao Grupo E-labore(si) / Núcleo Contempl(ação) pelas vivências e
trocas de saberes.
Agradeço ao Universo que, ao sentir tamanho impacto das Danças Circulares
Sagradas em minha vida, conspirou, sem dúvidas, a meu favor!
Agradeço à UNESP, ao Programa de Desenvolvimento Humano e Tecnologias
e à CAPES pelo suporte para a realização desta pesquisa.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de
Financiamento 001.
Dançar em círculo é mágico: a roda nos fala desde as
profundezas milenares da memória (...), porque somos
todos habitantes de um universo, em que todas as coisas
giram em círculo.

Milan Kundera
RESUMO

As Danças Circulares Sagradas (DCS) são manifestações expressivas vivenciadas


em roda. Essa disposição circular gera um campo de intensificação que afeta as
pessoas tanto em nível subjetivo quanto coletivo. É no bojo deste contexto intensivo
que se evidencia a figura do(a) focalizador(a), como aquele(a) que não só conduz a
roda, mas que também tem a função de “colocar e sustentar o foco”, isto é, de
contribuir na intensificação desta experiência expressiva. Assim, tendo em vista esse
espaço pulsante de intensificação da experiência em roda, essa pesquisa pretendeu
lançar o olhar na direção dos processos de form(ação) de focalizadores(as) de DCS
no Brasil. Nesta perspectiva, buscou-se observar possíveis ressonâncias entre a
experiência corporal e coletiva instalada nessa prática e os processos de subjetivação
desses(as) focalizadores(as). Como referencial teórico de partida, buscou-se pela
estilística da existência, em Foucault, para ajustar o olhar investigativo na direção das
práticas que intensificam nossa experiência de si, elaborando modos de ser e agir no
mundo. Para tanto, perguntou-se: como a dinâmica relacional das DCS pode oferecer
espaços potentes de encontro com as forças que intensificam nossa experiência de
si? Como a prática das DCS pode mobilizar os processos form(ativos) dos
focalizadores de DCS? Na dimensão dos procedimentos, procurou-se inspiração na
Cartografia – no âmbito das pesquisas-intervenção – para realizar oito entrevistas com
focalizadores(as) no Brasil. A partir das entrevistas, revisitou-se as experiências
vividas por focalizadores(as) para pensar como o cultivo, a entrega e a plena
disposição junto às DCS oferecem espaços potentes de intensificação da experiência
de si, nas relações que se estabelecem entre o próprio corpo, o espaço e os outros
na dinâmica da dança feita em roda. Para evidenciar esse domínio analítico imerso
nos diferentes níveis de relacionamento corporal, recorreu-se aos estudos da
expressividade, em Laban, o que oportunizou a composição de inflexões acerca do
corpo em movimento constituídas entre a dimensão das sensibilidades e a dimensão
do sagrado. Essa composição abriu caminho para a visualização de uma certa
estilística da existência, que aqui estamos chamando de form(ação), só tangível
pelos(as) focalizadores(as) na intensificação dessas dinâmicas relacionais em curso
ao longo de seus processos form(ativos).

Palavras-chave: Danças Circulares Sagradas. Subjetivação. Elaboração de si.


Formação. Estilística da existência.
ABSTRACT

The Sacred Circle Dances (SCD) are expressive manifestations experienced in circles.
This circular arrangement generates an intensification field that affects people both
subjectively and collectively. It is in the middle of this intensive context that the SCD
teacher is evident as the one who not only conducts the circle, but who also has the
function of "putting and sustaining the focus", that is, to contribute to the intensification
of this expressive experience. Thus, in view of this pulsating space of intensification of
the experience in circles, this research has intended to look towards the processes of
SCD teachers’ form(action) in Brazil. In this perspective, we have sought to enter a
reflective level that intends to observe possible resonances between the bodily and
collective experience installed in this practice and the subjectivation processes of these
teachers. As a theoretical starting point, we have sought the aesthetics of existence,
observed in Foucault, to adjust the investigative look towards practices that intensify
our experience of the self, developing ways of being and acting in the world. Therefore,
we have asked: how the relational dynamics of the SCD can offer powerful spaces for
meeting the forces that intensify our experience of the self? How can the SCD practice
mobilize the Subjectivation and Educational Background processes of SCD teachers?
In the dimension of procedures, we have sought inspiration in Cartography – in the
context of intervention-research – to conduct eight interviews with SCD teachers in
Brazil. From the interviews, we have revisited the experiences lived by them to think
about how the cultivation, delivery, and full disposition with the SCD offer powerful
spaces for intensifying the experience of the self, in the relationships established
among the body itself, the space and the others in the dynamics of the dance made in
a circle. To evidence this analytical domain immersed at several levels of the body
relationship, we have resorted to the studies of expressiveness, in Laban, which has
made the composition of inflections about the body in movement constituted between
the dimension of sensibilities and the dimension of the sacred possible. This
composition has opened the way for the visualization of a certain aesthetics of
existence only tangible by the SCD teachers in the intensification of these relational
dynamics in course along their Subjectivation and Educational Background processes.

Keywords: Sacred Circle Dances. Subjectivation. Elaboration of the self.


Educational background. Aesthetics of existence.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................10

2 MEU ENCONTRO COM AS DANÇAS CIRCULARES SAGRADAS............12

3 (IN)TENSÕES DE PARTIDA..........................................................................17

4 FOCALIZADORES(AS) DE DANÇAS CIRCULARES SAGRADAS..............20

5 COMPONDO O TERRITÓRIO DAS DANÇAS CIRCULARES SAGRADAS


...........................................................................................................................22

5.1 Narrativas de origem das Danças Circulares Sagradas....................22

5.2 As Danças Circulares Sagradas no Brasil.........................................26

6 BASES TEÓRICAS COM AS QUAIS DANÇAM AS (IN)TENSÕES..............32

6.1 Form(ação) – na dissolução da “fôrma”.............................................32

6.2 Estilística da existência......................................................................34

7 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS.......................................................40

7.1 Cartografando: entre o sagrado e o profano......................................40

7.2 As entrevistas....................................................................................44

7.3 Composição das análises..................................................................46

7.4 Análises em processo........................................................................51

7.4.1 As relações com o sagrado nas Danças Circulares


Sagradas...........................................................................................53

A) Espiritualidade como prática de si................................................54

B) O sagrado e os rituais nas Danças Circulares Sagradas..............61

B1) Compondo o espaço sagrado.................................................62

B2) Compondo o centro da roda....................................................64

B3) Compondo práticas na roda....................................................66

7.4.2 Form(ação) como arte de viver................................................69


7.4.3 Corpo, expressão e linguagem na roda das Danças Circulares
Sagradas............................................................................................76

A) A relação consigo mesmo: em fluxo.........................................78


B) A relação com o espaço: criação como ato de expressão de
nós.......................................................................................... 82
C) A relação com o outro: focalizando e dançando.......................95

C1) O/A focalizador(a) e seus referenciais..............................96

C2) O/A Focalizador(a) e a força/peso...................................102

C3) A arte de focalizar...........................................................108

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................113

BIBLIOGRAFIA...............................................................................................116

REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS....................................................................122

ANEXOS..........................................................................................................123

ANEXO A -Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – (TCLE)

(Conselho Nacional de Saúde, Resolução 466/12) ........................................123

ANEXO B - Roteiro de questões para as entrevistas......................................126

ANEXO C - Parecer Consubstanciado do CEP...............................................127


10

1 INTRODUÇÃO
Estamos especialmente em um tempo em que o corpo não passa de um
objeto1: de desejo, fútil, de estética estéril, de uso meramente utilitarista, além
de fragmentado. Ou o cultuamos – e vale qualquer sacrifício para mantê-lo nos
padrões socialmente “aceitos” – ou o ignoramos como se não tivesse importância
em cuidá-lo.
Assim, entre a idealidade e a inércia, perdemos a conexão com aquilo que
tensiona em nós, e que nos convoca a viver mais intensamente, dando vazão à
nossa potência criativa e inventiva.
Antes de prosseguir nesta escrita, permita-nos refletir mais amplamente
acerca desse “algo que tensiona em nós” acima citado, pois é desse lugar
“tensional”, que pulsa o movimento de partida que instiga essa pesquisa.
Geralmente, o termo “tensão” é utilizado para delinear um estado de
preocupação, ansiosidade e sobrecarga, que aponta para um certo desequilíbrio
e/ou instabilidade física e/ou mental. Neste sentido, a tensão comporta uma
conotação negativa para as pessoas em geral. No entanto, não é bem essa
conotação negativa que queremos aqui recuperar!
O que nos interessa afirmar é a dimensão provocativa do termo “tensão”,
que convoca à desacomodação e ao pensamento pautado na diferença. Neste
sentido, a palavra “tensão” sugere uma inflexão da expressão “intensidade”,
amplamente observada na filosofia, a qual se refere à dinâmica dos fluxos que
passam em nossas relações com o mundo e que nos fazem sentir, delimitando
os limites próprios da sensibilidade (Deleuze, 2006). Assim, o termo “tensão”,
aqui afirmado, busca se ocupar com aquilo que abala o sensível e que torna
possível a composição dos sentidos, e, por isso, oportuniza o despertar da
memória que força o pensamento a pensar.
Mas como mobilizar essa dimensão intensiva da vida?
É preciso salientar, desde já, que não existe uma resposta cabal para essa
pergunta, haja vista que a experiência que intensifica a existência nunca pode
ser dada de antemão, como regra geral ou princípio universal de ação, o que

1
Castro (2007, p. 30) defende que "o culto ao corpo é, hoje, preocupação geral, que atravessa
todos os setores, classes sociais e faixas etárias, apoiado no discurso da estética e da
preocupação com a saúde".
11

força a dispersão do esforço reflexivo, apontando para multiplicidades2. Tais


multiplicidades estão atreladas a uma ação que, por sua vez, dinamiza o
enquadre perceptivo na experiência de movimento, atualizando, sempre e a
cada vez, a expressão de nossas corporeidades.
Voltando à questão tecnológica apontada acima - “como mobilizar a
dimensão intensiva da vida?” - esse enfoque nas multiplicidades orienta nossa
percepção na direção das corporeidades moventes. E é desse lugar, só
localizável na experiência de movimento, isto é, na ação de se relacionar com o
mundo e de cuidar de si, que situamos as reflexões desta pesquisa, de modo a
se ocupar com as práticas por meio das quais constituímos nossos modos de
ser e agir.
Para calibrar a atenção na direção destas práticas, buscamos respaldo,
em um primeiro momento, em uma pista oferecida por Artaud.

É no corpo do homem que ocorre a confluência das forças


presentes no cosmos, é pela interdependência entre micro e
macrocosmo que o divino se manifesta. Existe uma ‘saída
corporal para a alma’ que ‘permite encontrar esta alma num
sentido inverso e reencontrar o ser’. E alma é sopro de vida,
corpo pulsante, ritmo, respiração. (ARTAUD, 1987, apud
BRITTO, 2001, p.6)

É na pista do corpo, portanto, entendido como lugar movente, por onde


passa “a confluência das forças presentes no cosmos”, que gostaríamos de
situar os contornos desta pesquisa que aqui se principia. E para balizar a
inscrição desses contornos, recorremos a uma prática concreta, seguindo o
auscultar da experiência que tensiona em mim.

2
Sobre o termo “multiplicidade” entende-se que no “agenciamento sujeito-mundo”, (...) “o sujeito
‘deixa de ser sujeito’, pois é atravessado e povoado pelos múltiplos fluxos que o tornam portador
de uma multiplicidade experiencial.” (HUR, D. U, 2013, p. 183)
12

2 MEU ENCONTRO COM AS DANÇAS CIRCULARES SAGRADAS

Era domingo, mas não um como outro qualquer, era um

daqueles poucos dias em que realmente nos permitimos dar uma

pausa, deixar de lado aquele turbilhão de afazeres e hábitos que nos

acostumamos a realizar no “piloto automático”.

A angústia, já há algum tempo me invadira e exercer a

profissão de professora de Língua Inglesa, para a qual me dediquei

por mais de vinte anos, tornara-se um fardo. Sentia palpitação,

tristeza e uma vontade de chorar incontrolável, acho que estava à

beira de uma depressão.

De repente um convite inusitado, um presente de aniversário

que me chegava de uma amiga querida, Cláudia Laus, como uma

providência divina: um Curso de Formação em Danças Circulares

Sagradas. Eu, que andava tanto pedindo transformações em minha

“pálida” vida, algo que me tirasse daquela mesmice chata da rotina

massacrante e me trouxesse um propósito que me aguçasse os sentidos

e abrisse as portas da criatividade, aceitei!

Não sabia o que me esperava, nem o que aquilo me traria, mas

a expectativa de uma mudança, ao menos na estagnada rotina, já

era o suficiente para acender uma pequena chama em meu peito. O

novo assusta, mas é ao mesmo tempo muito excitante, não é?

Desde o momento da minha decisão em aceitar aquele

sagrado presente até a arrumação das malas, já sentia que alguma

coisa diferente se processava em mim... Pensando em cada detalhe,

entre as roupas escolhidas havia peças de várias cores, não

aleatórias, mas cada uma com um propósito, cada uma

representando um chakra, um tipo de vibração energética diferente,

conforme havia sido pedido pelos organizadores do presente que me

aguardava...
13

Enfim, chegara o tão esperado domingo! De carro, nos levava

meu querido companheiro de vida, a mim e a minha já mencionada

amiga - ela que já vinha de tão longe, pousou no aeroporto de São

Paulo e de lá seguimos juntas.

Ao chegarmos ao destino, por um corredor adentramos com as

malas e descemos escada abaixo. Já nas paredes podia sentir as

mensagens que lá estavam escritas reverberarem em mim. Era como

se um botão em flor esboçasse sua sutil presença... E adentrando

aquele salão todo decorado com panos, mandalas... olhando para

aquela árvore tão criativamente desenhada em uma pilastra,

provavelmente impossibilitada de ser removida, quase no centro do

salão, o cheiro de incenso, tudo isso me remetia a algo antes já por

mim conhecido, presenciado. Cada olhar e abraço, me faziam

adentrar um pouco mais em mim mesma...

Estávamos na Comunidade Dedo Verde, no meio da grande

São Paulo! E dali do alto do quintal, que dava para a cozinha,

podíamos sentir o cheiro da terra e avistar um recanto com algumas

árvores e uma linda horta, além do horizonte onde víamos o céu e

as construções que rodeavam aquele lugar encantado.

Mais um lance de escadas abaixo e chegamos no dormitório.

Havia umas vinte camas, cada uma destinada a uma de nós. Sobre

elas, além dos travesseiros, lençóis e cobertores, havia um saquinho

de tule transparente e dentro dele, uma pedra de uma cor e uma

palavra: a minha era branca e a palavra, PRAZER!

Tudo ali me emocionava muito, cada detalhe, e quando li a

palavra a mim destinada, entendi a mensagem... Aos poucos, todas

aquelas mulheres foram chegando, podia ouvir sotaques de várias

partes deste nosso imenso país e até de uma estrangeira... Como era

simbiótico aquele encontro de seres desconhecidos que se

reconheciam uns nos outros, entre muitas histórias, belezas, medos,

encantos, frustrações...
14

Depois de nos acomodarmos, subimos para tomar um delicioso

café da manhã vegano (a saber, todas as refeições nessa

Comunidade são veganas) e, para nossa surpresa, após a

apresentação de cada membro daquela comunidade e suas

respectivas funções, tivemos a descrição sobre o cardápio, que já se

apresentava por sobre a bela mesa posta, e cantamos uma música de

agradecimento pelo alimento, o que passou a ser um sagrado ritual

antes de cada refeição.

De repente, uma música ia nos adentrando, não só pelos

ouvidos, mas por todo o corpo, chamando a um encontro... e, com

calma, fomos seguindo em direção àquele espaço sagrado com a

“árvore” quase no meio, deixando os sapatos do lado de fora. As

mãos foram se unindo umas às outras num círculo mágico em torno

de um centro todo especial, preparado com adereços simbólicos

(flores, vela, cartas ...), como é característico nas rodas de Danças

Circulares Sagradas. A cada passo, a cada dança, meus poros se

abriam numa dança que fluía de dentro para fora e de fora para

dentro harmoniosamente e minhas lágrimas banhavam meu ser

lindamente, com a mais pura verdade. Ao mesmo tempo que tudo

era novo para mim, parecia tão familiar... sentia como um

reencontro com uma parte minha que estava adormecida, um

despertar de um sono profundo para um novo amanhecer...

É neste contexto que as DCS se apresentam como um espaço

sagrado e meditativo que se cria em cada um e no coletivo (WOSIEN,

2000), que implica, necessariamente, a relação consigo e com o

outro em um mergulho no silêncio, na escuta corporal, na

sensibilização pelos movimentos, pela música e por todo o cenário

que possa compor o ambiente desta prática, pelo afeto que

transborda, pela pulsação da roda, o fluxo de energia, enfim, pela

magia que acontece.


15

Foi, então, em janeiro de 2018 que as DCS passaram a fazer

parte de mim, ou a me revisitar (porque tenho bastante esta

sensação de ser algo que já fazia parte de mim de alguma forma),

quando fiz esse lindo curso de formação em DCS na Comunidade

Dedo Verde, em São Paulo capital.

E foi assim, entre choros e risos, vivenciando danças, trocas de

experiências e outras práticas terapêuticas nesse curso de formação

em DCS, que meu corpo foi tomado por uma potência gigante através

do movimento e da entrega. Ia adentrando mais e mais minha

morada e observando com cuidado o(s) ser(es) que ali

habitava(m), ao mesmo tempo que sentia aquele acolhimento e

compartilhamento grupal, um encontro de corpos em um só corpo,

em uma dimensão de tempo/espaço imensurável. Era uma

composição de singularidades que chamou minha atenção para a

escuta daquilo que tensionava em mim e que, ao mesmo tempo me

conectava aos outros, no âmbito da coletividade.

Quantas revelações, quantas indagações, quanta vida

pulsante e possibilidades por vir... Uma semana que pareceu uma

eternidade, como se tivesse atravessado um portal e vivido tantas

coisas, com tanta intensidade que fazia o tempo parecer muito

maior do que foi. Tenho certeza de que saí daquele “oásis” e voltei

para o mundo “real” no mínimo desconstruída... ou teria eu

reencontrado o “real”, de fato, naquele “oásis” perdido?

Quando saí, não sabia o que fazer com tudo aquilo que

transbordava em mim, por um lado pulsando vida e por outro,

morrendo... Sentia como se fosse um grito que clamava por

transformação, por uma alegria já experimentada outrora e que

vinha aos poucos se apagando em mim.

A partir do meu contato com as DCS, parece que eu e a

atividade que me arrebatou como “missão” e sustento de vida

passaram a ser uma coisa só, pessoal e profissional se fundiram...


16

Muitos chamados passaram a aparecer e meu movimento em direção

a isso foi um mergulho e uma entrega que vem deste lugar da

paixão, que acende em mim sensações tão intensas e verdadeiras.

Assim, iniciei minha trajetória como Focalizadora de DCS!

Figura 1 – Potyra Menezes – Festival Flor das Águas 2019 – Cunha – SP

FONTE – Maria Giuseppina Curione (2019)


17

3 (IN)TENSÕES DE PARTIDA
Com a narrativa de encontro com as DCS registrada na seção anterior,
deixo claro, enquanto pesquisadora, que ingresso dentro desta ação
investigativa totalmente imersa e encharcada das intensidades que me atam a
essa prática. Tal constatação precisará reclamar por uma metodologia que
suporte essa outra disposição investigativa – e falaremos disso em outro
momento mais oportuno3. Por hora, o que importa é delimitar nossas (in)tensões4
de partida, de modo a evidenciar as questões que acossam em mim,
convocando-me ao pesquisar.
Digo (in)tensões, justamente para trazer uma distinção do termo
“intenção”, que é operado no domínio da inteligibilidade racional e objetiva5
(Kastrup, 2009). Com o termo “(in)tensões”, o que interessa demarcar é que o
que me move à pesquisa não é uma mera vontade intelectual, racional e objetiva,
mas sim uma demanda visceral que implica corpo amplamente, reclamando pela
prática que tensiona em mim e assim, flui:

Deste modo, este estudo surge a partir da necessidade de dar voz,


primeiramente, a um processo transformador em minha vida, expresso por uma
série de fatos que aconteceram e que me afetaram existencialmente,

3
Para saber mais, veja a seção 8 deste trabalho.
4
Para o sentido de tensão, ver a Introdução deste trabalho p. 9.
5
Diferente das metodologias de pesquisa tradicionais, as quais se organizam ao redor de um
ideal de inteligibilidade cognitivista que legitima a lógica da ciência moderna, ao reiterar a
necessária relação de oposição e assimetria entre pesquisador e pesquisados, sem a qual não
se sustenta a composição de conhecimentos neutros e imparciais, a cartografia – abordagem
através da qual estaremos operando esta pesquisa - não visa isolar o objeto de suas articulações
históricas nem de suas conexões com o mundo. Ao contrário, o objetivo da cartografia é
justamente desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra
conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente, no qual o
pesquisador também se encontra implicado. Para isso é preciso, num certo nível, se deixar levar
por esse campo coletivo de forças, afetando-o, ao mesmo tempo em que também se vê afetado
por esse campo, sem apegos (Veja mais na seção 8 deste trabalho).
18

especialmente no que se refere ao meu processo de “form(ação)” como


focalizadora de DCS, através do qual tenho entrado em um movimento profundo
de escuta de mim mesma. Foram várias as implicações que, deste
acontecimento, têm reverberado em minha maneira de querer viver, conviver e,
até na possibilidade de exercer uma nova profissão.
Assim, passei a me envolver cada vez mais com as DCS e com o mundo
que as circundam, e, ao perceber tantas pessoas que foram também tocadas
profundamente por essa potência das DCS, passei a ter a curiosidade em saber
mais sobre essas experiências de pessoas tão diversas e que têm disseminado
as DCS por esse Brasil afora, como veremos mais adiante na seção em que
apresento os relatos dos(as) focalizadores(as) entrevistados(as).
Convém salientar que os traços de pessoalidade aqui engendrados, a
partir da minha relação com as DCS, são apenas um ponto de partida. Foi
necessário traçar essa aproximação para que me abrisse a auscultar aquilo que
tensiona em mim. No entanto, ficarei atenta, enquanto pesquisadora, para não
fechar esse movimento investigativo nos contornos do “Eu”, de modo a
evidenciar as composições que partem desse encontro tensional pulsante.
Pautando-nos em Deleuze & Guattari (1995), quando problematizam
acerca dos traços da pessoalidade na composição das experiências
performativas, buscamos dar vazão a espaços de dissolução da autoria, na
medida em que me coloco às voltas com tudo aquilo que passa nas relações que
vou estabelecendo com as DCS, afetando e me deixando ser afetada por essa
prática.
Neste movimento de abertura e permeabilidade, a pesquisa vai
desenhando um campo implicacional que evidencia uma coemergência da
experiência na realidade, através de um intenso cruzamento de forças, que
expõe as partes num plano de intensidades e que dissolve as pessoalidades em
função da dinâmica relacional. Assim, neste lugar de encontro e plena
implicação, a pessoalidade é posta na porta de entrada, dando passagem para
a atuação de um sujeito larvar (DELEUZE, 2006), só localizável no espaço-
tempo dinâmico expresso na experiência de mobilização da pesquisa.
Desta forma, tendo em vista as demandas da (in)tensionalidade que me
levam a delimitar um problema sem abrir mão daquilo que tensiona em mim,
podemos dizer, de partida, que pretendemos revisitar as experiências vividas por
19

focalizadores(as) para pensar como o cultivo, a entrega e plena disposição junto


às DCS podem oferecer espaços potentes de encontro com essa confluência
das forças que intensificam sua experiência de si, na relação que estabelecem
entre seu próprio corpo, o espaço e os outros na dinâmica da dança feita em
roda.

FIGURA 2 - Primeira6 roda que focalizei na Floresta Estadual Navarro de Andrade

Rio Claro – 2018

FONTE - Carlos Alberto Francisco

6
A partir de maio de 2018, comecei a realizar uma roda aberta de DCS por mês na Floresta
Estadual Navarro de Andrade, Rio Claro, SP. Ficamos em suspenso o ano de 2020 e quase o
ano todo de 2021, retomando a partir de novembro de 2021.
20

4 FOCALIZADORES(AS) DE DANÇAS CIRCULARES SAGRADAS


As DCS chamam a atenção para um personagem específico, que é o(a)
focalizador(a), o/a qual terá uma especial importância nesta pesquisa. “A palavra
focalizador vem de focus, fogo em latim.”7 Cabe a ele/ela não só conduzir a
dança, mas também “segurar o foco, o fogo”, isto é, nutrir(-se) e contribuir na
intensificação da experiência expressiva realizada coletivamente em roda.
Segundo Ramos8, a partir de sua verdade no momento da roda, o/a
focalizador(a) cria “um campo vibracional” que atinge outros níveis. Neste
sentido, a delimitação do problema investigativo, passa, necessariamente, pelo
prescrutar desse agente.
A utilização da palavra “focalizador” nas DCS parece ter origem na forma
como se organizam os grupos de trabalho na Comunidade escocesa de
Findhorn, em que cada grupo possui um(a) focalizador(a) que “não tem o intuito
de ser um líder no sentido de dar ordens; é sim a pessoa que adquiriu respeito
por sua capacidade de entrar em sintonia com as necessidades do todo
(WALKER, 1998, p.169).
No caso das DCS, o/a focalizador(a) é ao mesmo tempo agente-condutor
e participante, o que o coloca num mesmo plano de experiência com os
participantes da roda. Trata-se de uma figura fundamental para a dissolução do
ponto de vista do Eu, na direção de uma composição que sempre é feita com o
outro, na relação da dança em roda. Em círculo vivenciamos a relação com nós
mesmos e com o outro.
Nesse encontro com o outro, são muitas as sensações que se pode
descrever, dentre elas a sensação de unidade, de acolhimento, de
pertencimento, as quais caracterizam grandemente o movimento das Danças
Circulares Sagradas. Na roda a gente erra e acerta, mas o “erro” não impede
que a roda flua. Nesse fluxo da entrega dos corpos envolvidos intensamente pela
música, pela dança e pela calibragem da energia que nos faz sentir nessa
composição de singularidades em um todo imensamente potente, estamos

7
Essa discussão acerca da palavra “focalizador” é desenvolvida no vídeo intitulado: Quais as
dicas para um focalizador de danças circulares? Publicado pelo canal Consciência Próspera.
Coluna: Danças Circulares. Apresentado por Renata Ramos. [S. L.} Direção e Edição por Samuel
Souza de Paula. 1 vídeo (8:42). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=RQoHsgN0TiY Acesso em: 05/04/2021.
8
Ibidem.
21

diante de um “centro de envolvimento” em que a magia se faz, o sagrado se


manifesta, os obstáculos se dissolvem, as singularidades emergem e abrimo-
nos para um diálogo corporal com o outro (ALVES, 2011).
Para Deleuze (2006, p. 244), os “centros de envolvimento” são “valores
próprios de implicação” em um dado sistema, que procedem a interiorização de
fatores individuantes. Neste sentido, os “centros de envolvimento” são espaço-
tempos dinâmicos que se evidenciam em um nível pré-reflexivo e intensivo e,
por isso mesmo, são formados por fluxos, forças em relação, que seguem uma
lógica entrópica.
Traçando um paralelo com as DCS, esse “centro de envolvimento”, se
constitui no próprio processo de composição da dança feita em roda,
considerando esse processo como uma dinâmica espaço-temporal que se
intensifica gradualmente na medida em que abala as sensibilidades dos
envolvidos, gerando uma implicação entre os corpos dançantes que compõe a
roda numa calibragem energética.
Desta forma, a partir dessa delimitação que contorna os traços de um
território, as DCS, chamando a atenção para um agente que aí habita, o(a)
focalizador(a), ousamos perguntar: como a dinâmica relacional das DCS pode
oferecer espaços potentes de encontro com as forças que intensificam a
experiência de si do(a) focalizador(a)? Como a prática das DCS podem mobilizar
os processos form(ativos) dos focalizadores de DCS?

FIGURA 3 - Aula aberta no Grupo Ginástico Rioclarense – Rio Claro – 2019

FONTE: Uisner Lucas de Souza


22

5 COMPONDO O TERRITÓRIO DAS DANÇAS CIRCULARES SAGRADAS


Antes de adensar o trabalho investigativo, cabe perguntar: o que são
“Danças Circulares Sagradas”?
Para Deleuze (2006), as perguntas do tipo “o que?” têm uma função
propedêutica, ou seja, as utilizamos sempre para começar uma conversa,
introduzir, iniciar. Assim, sem a intenção de esgotar o tema, mas exercendo
apenas essa função propedêutica, poderíamos dizer, de maneira geral, que as
DCS são manifestações expressivas vivenciadas em roda e o vocabulário
corporal desenvolvido nestas manifestações busca linguagem nas danças
tradicionais dos povos e nas danças contemporâneas.

5.1 Narrativas de origem das Danças Circulares Sagradas


Primeiramente, para dar encaminhamento à essa seção, gostaríamos de
deixar claro que, enquanto narrativas, essas leituras históricas não buscam
afirmar uma linearidade oficial acerca das origens das DCS, mas apontam uma
versão, dentre outras possíveis, que compõe o amplo espectro desta
manifestação no âmbito das diferentes culturas nas quais se expressa.
Para a composição dessas narrativas, que aqui se expressam, fomos
buscar inspiração em algumas referências bibliográficas e audiovisuais de
pessoas que vivenciaram essa trajetória das DCS, ou parte dela, ao longo de
seus processos formativos.9 Cabe ressaltar, no entanto, que em nenhuma
dessas referências buscamos extrair “a verdade” absoluta sobre a história das
DCS, uma vez que se tratam de versões, as quais são contadas a partir do ponto
de vista de uma determinada época e que deixam lacunas, ou trazem
disparidades entre elas, muitas vezes por desconhecimento de outros
acontecimentos no momento em que é contada, ou até mesmo por um esforço
legítimo de afirmação das singularidades que colorem a construção dos próprios
processos formativos, evidenciando-os em detrimento de outros ainda não
vivenciados.
A fim de complementar essa ideia, é preciso lembrar que as DCS são um
movimento vivo e que, portanto, sofrem processos de mudanças naturais nos
contextos em que são inseridas, seja pelas diferenças culturais ou temporais.

9
Ao longo deste trabalho, as referências bibliográficas e audiovisuais abordadas serão
devidamente apresentadas.
23

Assim, entendemos ser importante a afirmação dessas narrativas na construção


historiográfica das DCS, pois é justamente esse esforço afirmativo que deixa à
mostra a dimensão pulsante desta prática que, de uma maneira quase que
arquetípica, foi sendo modalizada pelas diferentes culturas e épocas, a partir das
necessidades humanas.
Como ponto de partida da construção historiográfica que aqui iremos
afirmar, talvez fosse interessante observar que a origem das danças em roda se
confunde com a própria história da humanidade10, haja vista que a dança é uma
forma de linguagem primordial desde tempos imemoriais. Entretanto,
considerando seu recrudescimento na atualidade, é preciso situar as DCS em
um movimento que se inicia a partir de um trabalho de resgate de danças dos
povos da Europa Oriental realizado por um bailarino alemão, Bernhard Wosien,
e que se concretiza durante sua estadia na comunidade escocesa de Findhorn
em 1976, onde passou a dançá-las com os seus habitantes, além das novas
coreografias criadas por ele mesmo (WOSIEN, 2000).
A partir desta fecunda fusão, outras coreografias tradicionais de povos
foram sendo resgatadas, bem como outras contemporâneas foram e são criadas
por pessoas de várias partes do mundo, sendo incorporadas ao grande
repertório das DCS que se apresenta em constante criação e expansão,
especialmente no Brasil.
Como salientado acima, para falar sobre a prática das DCS, como
conhecemos hoje, entendemos ser importante situar o pioneirismo do bailarino
alemão Bernhard Wosien, o pai das DCS, como ficou conhecido, bem como o
seu processo de resgate e reconstrução das danças em roda. Nascido em uma
cidadezinha na Prússia oriental, que hoje faz parte da Alemanha, era filho de um
pastor evangélico e sua mãe era uma baronesa cuja família descendia de uma
antiga família nobre inglesa (WOSIEN, 2000).

10
Segundo Couto (2008, p. 12 e 13): “A dança deixa marcas de sua passagem na história da
humanidade desde nossas origens. Os mais antigos documentos coreográficos revelam a dança
como primeira manifestação lúdica e expressiva da arte humana. Esses registros do
comportamento humano emergem vivos há mais de trezentos séculos, conforme adverte o
folclorista e escritor Câmara Cascudo (2004).”
24

FIGURA 4 - Bernhard Wosien

FONTE - Livro “Dança: um caminho para a totalidade” (2000)

Desde a infância, Wosien já tinha contato com a dança através de noites


festivas com muita música e dança que seu pai, ao violino e acompanhado de
seus empregados poloneses, promovia. E apesar de ter sido direcionado nos
estudos para seguir a profissão do pai, como era o gosto de seu pai, em sua
adolescência teve um episódio decisivo que marcou seu reencontro com a
dança, em que passou a ser introduzido às bases do balé clássico. Depois de já
ter vivenciado e se encantado por outras escolas de dança, apesar de ser seu
desejo ter a dança como profissão, cursou por três anos Teologia, para não
desapontar o pai. Porém, diante de sua insatisfação, resolveu interromper o
curso e partiu sozinho em viagem por alguns países europeus (WOSIEN, 2000).
Neste percurso, decidiu seguir o caminho de pintor e desenhista, como já
havia sugerido sua mãe, a qual tinha uma formação como pintora de retratos, já
que isso agradaria mais a seu pai do que a carreira de bailarino. Mas não teve
jeito, a paixão pela dança falou mais alto e daí para frente tomou sua decisão:
seria bailarino. E diante de ensinamentos de grandes mestres e escolas na
Alemanha, foi tendo sua formação e virou um profissional da dança e um grande
bailarino.
25

Na década de 1960, foi se afastando das danças de palco e passou a


dedicar-se totalmente ao ensino. Depois de já ter entrado em contato e se
encantado por algumas danças dos povos em sua trajetória, passou a viajar
regularmente nas férias a países do Sudoeste Europeu com um grupo que
formou na Escola Popular Superior em Munique, e foi resgatando as danças de
roda ainda vivas nos países por onde passavam. Começava um novo capítulo
em sua vida quando passou a dedicar sua atenção às danças de roda e dos
povos. Em suas palavras: “...me pareceu como se brilhasse em mim uma luz
completamente nova” (WOSIEN, 2000, p. 106). E sobre as danças populares
revelou: “Deixei-me arrebatar pela vibração das danças populares, contagiado
pelo fogo maravilhoso da comunidade, que realmente dava para sentir
fisicamente, em carne e osso” (Ibidem, 2000, p. 108).
Em 1976 foi convidado a fazer um trabalho de dança na Comunidade de
Findhorn no norte da Escócia, uma terra fértil onde o movimento das Danças
Circulares Sagradas foi fecundado e que passou a ser uma rede internacional
de meditação através da dança. A partir deste campo germinado - inicialmente
com as danças dos povos e coreografias do próprio Wosien, e, posteriormente,
acrescendo-se de novas danças coreografadas por pessoas de diversas partes
do mundo - as sementinhas das DCS espalharam-se pelo mundo afora e
acharam um solo muito fértil aqui no Brasil.
26

5.2 AS Danças Circulares Sagradas no Brasil


Com certeza há muitas histórias para contar sobre a disseminação das
DCS no Brasil. E essas histórias se multiplicam ainda mais quando levamos em
conta a imensidão deste país, que tem dimensões continentais. Portanto, ainda
que as histórias sejam muitas – para não dizer infinitas – segundo Esteves
(2018), as DCS chegaram ao Brasil na década de 1980. De lá para cá, muitas
histórias foram contadas sobre as DCS no Brasil, mas muitas outras ainda não
são conhecidas, seja porque foram pouco difundidas, ou nem mesmo
publicadas.
Na esteira dessa ideia, cabe ressaltar que, ainda que haja um material
relativamente considerável como livros, trabalhos de pesquisa e artigos
científicos que versam sobre o universo das DCS, eles não têm como foco a
história das DCS no Brasil e, quando a mencionam, nos parece que a fonte
acaba sendo praticamente a mesma sobre a qual apoiamo-nos aqui. O que se
sabe sobre essa história, muitas vezes passa pela tradição oral, mobilizada nos
encontros, nas trocas e nos cursos de formação, bem como em vídeos
disponibilizados na internet. Portanto, muito da riqueza dessa história se perde,
ou é recontada, segundo o ponto de vista daqueles que contribuíram, de alguma
forma, com a mobilização dessa história em território nacional.
Assim sendo, sem pretender reduzir essas histórias em uma única
direção, ousamos constituir aqui uma versão da história que também possa
dialogar com o material empírico coletado junto aos participantes desta pesquisa
que, de uma forma ou de outra, também fazem parte da história das DCS no
Brasil.
É nesta direção de trabalho interpretativo – que, de partida, já se
reconhece múltiplo e, portanto, não detentor de uma verdade universal e
absoluta – que optamos por afirmar uma versão da história apontada por Renata
Ramos e por Beatriz Esteves, as quais são dançantes e focalizadoras há mais
de 30 anos, fazendo parte desta história desde o início das DCS no Brasil, e,
também, apresentam publicações que versam a esse respeito.
Renata Ramos foi à Comunidade Escocesa de Findhorn em 1992,
inicialmente com a intenção de conhecer a comunidade e depois, em 1993, para
fazer um curso de DCS. Segundo Ramos (1998), um dos primeiros focalizadores
das DCS no Brasil foi o mineiro Carlos Solano, que já havia ido para Findhorn
27

em 1984, começando a desenvolver essa prática em 1986, quando, em Belo


Horizonte, começou a reunir amigos e dançar informalmente e, posteriormente,
foi assumindo um trabalho mais elaborado com grupos diversos (RAMOS, 1998).
Pouco depois, em meados de 1987, Beatriz Esteves, outra focalizadora
de DCS, também mineira, mas por muitos anos habitante da cidade de SP e,
atualmente, do interior de SP, teve seu primeiro contato com as DCS na
Comunidade de Nazaré Paulista.11 De acordo com Esteves (2018), foi a
americana Sara Marriot, que havia vivido alguns anos na Comunidade de
Findhorn, quem trouxe as DCS para Nazaré. À propósito, foi na Comunidade de
Nazaré, nas décadas de 80/90 que pessoas começaram a se reunir para se
aprofundar nos conhecimentos sobre as DCS e as Danças da Paz Universal12.
Em 1992, Marianne Inselmini, uma suíça, discípula de Gabriele Wosien
(filha de Bernhard Wosien) e de Anastasia Geng (criadora das danças dos
Florais de Bach), a convite de Sabira-Cristina, também suíça radicada em Nova
Friburgo (RJ), veio ao Brasil para treinar novos(as) focalizadores(a) de DCS.
Patrícia Azarian foi sua discípula, sendo a primeira focalizadora brasileira no Rio
de Janeiro (ESTEVES, 2018).
Além delas, foram muitos(as) os/as focalizadores(as) internacionais que
vieram ao Brasil, como Anna Barton, Peter Vallance, Gabriele Wosien, Laura
Shannon, Mandy de Winter, Friedel Kloke, Nanni Kloke, Judy King, entre outros.
Em 1996, Renata Ramos e Carlos Solano levam um grupo de 25
brasileiros para Findhorn, para o Festival dos Vinte Anos da Dança Sagrada
(RAMOS, 1998). Desde então, é cada vez mais crescente a quantidade de
brasileiros que já foram a Findhorn e muitos(as) focalizadores(as)
estrangeiros(as) já vieram e continuam vindo ao Brasil, constituindo assim a
grande teia das DCS no Brasil e pelo mundo afora.
É claro que deve haver outros tantos(as) focalizadores(as) que também
fizeram parte dessas histórias de inserção e disseminação das DCS em várias

11
A Comunidade de Nazaré Paulista é, hoje, conhecida como UNILUZ.
12 As Danças da Paz Universal surgiram nos Estados Unidos no fim da década de 60, início da
década de 70, criadas por Samuel Lewis, místico, Mestre Zen, Mestre Sufi, profundo conhecedor
e estudioso das religiões, ativista de Paz, que abdicou de sua promissora carreira profissional
como herdeiro de importante família americana para se dedicar ao misticismo e à espiritualidade,
assuntos que o atraíam desde criança. Disponível em:
http://dancascirculares.com.br/blog/dancas-da-paz-universal/ Acesso em: 17/04/2021.
28

regiões brasileiras e são muitos os nomes de focalizadores(as)13 que foram


nascendo no Brasil, especialmente a partir de 2003, quando começam a surgir
os cursos de “formação” para focalizadores(as), de uma maneira mais
“institucionalizada”14, realizados pelos próprios brasileiros. Inicialmente por
Renata Ramos, mas depois por Cristiana Menezes, Lúcia Cordeiro, Deborah
Dubner e Sandra Cabral, Bruno Perel e Mônica Carvalho, Mairany Gabriel,
Guataçara e João Paulo, dentre outros que possivelmente existam, mas não
saberíamos nomear aqui.
Todo esse movimento de interação que os brasileiros e estrangeiros vão
estabelecendo por meio das DCS, difundindo e mesclando culturas, nos fazem
pensar que a prática das DCS vem se transformando continuamente, mas, ainda
assim, de maneira que um forte elo, oriundo da dança de roda enquanto um
movimento comunitário de força e paz, a sustente e reconheça como tal.
E diante de tantos focalizadores(as) pelo Brasil, as DCS vão se difundindo
amplamente pelo país, fazendo parte da paisagem de muitos parques e estando
presentes em instituições de áreas variadas como da saúde, educação, no meio
corporativo, na psicologia, entre outros, desde a década de 1990. É interessante
perceber que faz parte da natureza das DCS se constituir no seio da atividade
comunitária, onde os agentes sociais comungam anseios e necessidades
comuns, e, é neste cenário de intensas trocas coletivas, que se evidenciam os
parques, como espaços públicos potentes para a mobilização das DCS.

13
Hoje, de acordo com o site brasileiro de DCS (www.dancacircular.com.br), há mais de 650
focalizadores(as) de todos os estados brasileiros que estão cadastrados, além dos estrangeiros.
Acesso em: 10/03/2021.
14
Quando dizemos “institucionalizada” não estamos dizendo que os cursos de formação em DCS
sejam hoje realizados em escolas ou institutos credenciados para isso, mas que a partir de 2003
passam também a serem realizados por focalizadores(as) brasileiros(as) e vão se tornando cada
vez mais procurados, por aqueles(as) que pretendem ser focalizadores(as) de DCS.
29

FIGURA 5 - Roda de DCS no Parque da Luz – São Paulo – 2020

FONTE - Potyra Curione Menezes

Um fato bastante significativo que caracteriza a força do movimento das


DCS no Brasil foi o surgimento do Encontro Brasileiro de DCS, que acontece
anualmente desde 2002, uma vez que esses encontros geram intensificação das
relações com as DCS e funcionam como espaços form(ativos) que situam e
contextualizam as iniciativas nacionais acerca das DCS e, ao mesmo tempo,
criam espaços potentes de interação entre apaixonados por essa prática dentro
e fora do Brasil.

FIGURA 6 – XVII Encontro Brasileiro de Danças Circulares - 2018

FONTE - Amanda Mello


30

Para refletir sobre a difusão das DCS no Brasil, é importante chamar a


atenção também para os veículos de comunicação que foram surgindo. Segundo
Esteves (2018), em 1993 nasceu a Rede Nacional Sangha, criada por Sabira-
Cristina. A Revista Sangha foi o primeiro veículo de informação entre os
primeiros(as) focalizadores(as) brasileiros(as) na década de 1990. Depois, a
partir da ideia de se criar um veículo de divulgação internacional entre as
atividades das rodas do Cone Sul, mais ou menos nos anos 2000, foi criado o
Boletim Roda de Luz por Patrícia Azarian e demais focalizadores(as) da Roda
de Luz do Rio de Janeiro (ESTEVES, 2018).
Em 2012, Deborah Dubner, focalizadora de DCS, escritora, psicóloga e
webjornalista, cria o site www.dancacircular.com.br para expandir as DCS no
Brasil e no mundo com “qualidade, consciência, ética e harmonia”. Através dele
podemos nos cadastrar como focalizadores(as) ou dançantes e saber um pouco
sobre cada focalizador(a) cadastrado(a), temos acesso a divulgar e ver
divulgações de vários cursos de DCS oferecidos no Brasil, ter informações sobre
o trabalho que os(as) focalizadores(as) realizam e inserir e/ou ter acesso a textos
relacionados às DCS. Realmente um grande veículo facilitador para a interação
entre focalizadores(as) e dançantes das DCS no Brasil15.
Também há alguns livros lançados ou traduzidos no Brasil que trazem a
temática das DCS, mas poucos que contem histórias sobre a disseminação das
DCS especialmente no Brasil. Para citar alguns: Danças Circulares Sagradas:
uma proposta de Educação e de Cura (RAMOS, 1998), Dança: um caminho para
a totalidade (WOSIEN, Bernhard, 2000), Dança Sagrada: Deuses, Mitos e Ciclos
(WOSIEN, Maria-Gabriele, 2002), Espírito da Dança (BARTON, 2004),
Dançando o Caminho Sagrado (BARTON, 2006), O Poder Terapêutico e
Integrativo da Dança Circular (DUBNER, 2015), Danças Circulares: Uma viagem
sagrada (ESTEVES, 2018), Dança Circular: entre o sagrado e a política pública
(BERNI, 2019), dentre outros.
Além disso, várias monografias, dissertações, teses e artigos científicos
também foram sendo escritos em diversas áreas como da saúde, da educação,
da educação física, da psicologia, entre outras. Para citar algumas: Construindo

15
Disponível em: www.dancacircular.com.br Acesso em: 10/03/2021.
31

o caminho no círculo: Processos de ensino-aprendizagem nas Danças


Circulares Sagradas (PREISS, 2011); A Dança Circular Sagrada e o Sagrado
(BERNI, 2002); Danças Circulares Sagradas: potencialidades interculturais na
formação de educadores (SILVA, S., 2017); Danças Circulares Sagradas:
Pedagogia da Presença, do Ritmo, da Escuta e Olhar sensíveis (BARCELLOS,
2012); Interações das Danças Circulares no Mana-Maní em Belém do Pará
(COSTA, 2014); Lazer e Saúde: A Dança Circular no processo terapêutico da
saúde mental (SILVA, M., 2015); Dança Circular Sagrada e seu potencial
educativo (COUTO, 2008); Danças Circulares Sagradas: Imagem corporal,
qualidade de vida e religiosidade segundo uma abordagem Junguiana
(ALMEIDA, 2005); Educadores na roda da dança: formação e transformação
(OSTETTO, 2006).
O conjunto desses veículos de comunicação que foram surgindo no Brasil,
foram se constituindo como espaços de divulgação de informações sobre as
DCS no país, ajudando a ampliar os conhecimentos acerca desta prática em
território nacional. Este processo é importante quando pensamos a questão da
formação de focalizadores(as), haja vista que essas veiculações geram
produção de conhecimento, aumentam a visibilidade das iniciativas locais e
constroem um referencial potente para colaborar com o trabalho form(ativo).
Não obstante, cabe ressaltar que, enquanto informação, a geração e
produção desse conhecimento se constitui apenas como um ponto de partida,
uma vez que, quando falamos de form(ação), estamos querendo evidenciar,
aqui, um processo que não cabe na fôrma. Portanto, trata-se de um processo
que não apenas assimila informações advindas do âmbito da cultura, mas se
reapropria delas dentro de um movimento laborioso que se alinha aos processos
de subjetivação daqueles que aceitam o convite da roda e da dança, como
veremos adiante neste trabalho.
32

6 BASES TEÓRICAS COM AS QUAIS DANÇAM AS (IN)TENSÕES


Nesta seção, apresentaremos as bases teóricas com as quais iremos
dialogar nesta pesquisa. Desta forma, traremos aqui uma discussão acerca da
Form(ação) e da Estilística da existência pautada nos estudos foucaultianos,
sem perder de vista aquilo que é impulsionado pelas (in)tensões que nos
perpassam no decorrer deste trabalho.

6.1 Form(ação) – na dissolução da “fôrma”


A palavra formação sempre me incomodou. Ao que parece, quando se
pergunta a uma pessoa sobre qual seja a sua formação, refere-se
exclusivamente de um ponto de vista acadêmico, que nos valida enquanto
profissionais de uma determinada área, certo? Isso remete à imagem do molde
ou da fôrma utilizada para criar formas em série, como se pudéssemos nos
isentar de todo um histórico vivido e construído até então, para, a partir dessa
validação, “sermos” aquilo em que nos formamos.
É para escapar desta cilada que imprime nossa subjetividade nos
contornos de uma “fôrma”, que optamos aqui pelo termo “form(ação)”, buscando
destacar sua dessemelhança com a imagem de “molde”, ou “fôrma” acima
reiterada. Ao chamar a atenção para o sufixo “(ação)” – entre parênteses –
interessa-nos evidenciar, do percurso formativo, aquela dimensão de movimento
e diferenciação que vaza aos contornos da fôrma, intensificando a relação do
sujeito com aquilo que o afeta e o impulsiona a buscar.
Neste sentido, a opção pelo termo “form(ação)” faz toda diferença, haja
vista que chama a atenção para aquela dimensão form(ativa) que sempre se
diferencia e escapa, apontando para uma formação outra, em constante
processo de modificação, que intensifica o percurso form(ativo), evidenciando
suas singularidades.
Às voltas com aquilo que vaza e intensifica a constituição de nossa
subjetividade, interessa-nos dar visibilidade aos movimentos que lapidam modos
de ser e agir dos sujeitos, implicando suas vidas no exercício form(ativo). E é
aqui que as práticas, nas quais o sujeito implica-se, vão aparecer como fontes
nutridoras desses movimentos pulsantes que são essenciais para dar vazão e
aguçar sua percepção no percurso de seus processos de subjetivação e
form(ativos), já que esses processos estão imbricados um com o outro.
33

Tomemos como exemplo a prática das DCS, como um possível exercício


form(ativo) do sujeito implicado com essa prática, entendendo-a como uma
linguagem expressiva desse sujeito que faz parte de seu processo de
form(ação). Neste contexto, nos cabe mencionar aqui, brevemente, um
referencial labaniano, no que se refere à essa questão da expressividade do
indivíduo através do movimento, não podendo deixar de considerar a relação de
si sobre si mesmo, a relação com o espaço e com os outros.16
Nesta direção, o que interessa, nesta pesquisa, do termo form(ação) são
seus entrelaçamentos com os processos de subjetivação que dão visibilidade a
um movimento compositivo da existência, o qual orienta nossa atenção para as
práticas – as “(ações)” entendidas como singularidades – que vazam da fôrma,
colocando-nos como artistas de nosso próprio viver, ou seja, como agentes da
lapidação de nossa própria existência.
Para operar esse movimento, que orienta a noção de form(ação) na direção
dos processos de subjetivação, a primeira inflexão que será necessária operar,
aqui, é aquela que aponta para a demarcação de uma negação da formação
entendida como “processo de subjetivação externa, heterônoma, constituindo
sujeitos para uma máquina social de produção e de reprodução.” (GALLO, 2008,
p. 259)
Neste sentido, Chaves e Ratto (2018) também agregam a esse
pensamento ao sugerirem que a riqueza do processo de formação está “na
abertura às forças do acontecimento”, na “exposição à diferença” que é
“manifestação singular que não se gruda às identidades sociais pré-fabricadas.”
(CHAVES e RATTO, 2018, p.190)
Também nesta perspectiva, Osttetto (2006), em sua tese de doutorado,
em seus questionamentos e críticas em relação ao seu fazer pedagógico e à
formação do educador, como algo estanque e pouco criativo, vai buscar nas
artes e nas várias linguagens um fator de sensibilização. E nas DCS ela encontra
esta possibilidade de ampliar o sentido de formação. Em um projeto de

16
Discorreremos sobre isso mais adiante nas nossas análises na seção 4.3.
34

extensão17 que desenvolve e coordena na universidade18 em que lecionava, traz


alguns relatos dos participantes, também educadores, dentre eles, este que nos
mostra a importância da experiência vivida na form(ação) do indivíduo.

Em nossa formação, o fazer é sempre uma lacuna. O vivenciar,


o experimentar é deixado para depois... se experimentamos algo
diferente e gostamos, descobrimos potencialidades, nos
sentimos mais livres. Foi isso que me aconteceu com as danças.
(relato de uma participante do projeto de extensão).

É nesse lugar expressivo que, assim como Osttetto (2006), situamos as


DCS, como prática que nos instiga à pesquisa e que nos convida a pensar
relações de aproximação e atravessamentos entre form(ação) e processos de
subjetivação.

6.2 Estilística da existência


Na discussão acima, apontamos um movimento compositivo traçado entre
form(ação) e processo de subjetivação. Neste apontamento, buscamos orientar
nossa atenção de pesquisa na direção das diferenciações, que distanciam as
subjetividades do enquadre das “fôrmas” às quais os sujeitos são sucumbidos
em seus próprios percursos formativos. Para tanto, será preciso exercitar um
deslocamento do olhar: dos conhecimentos pressupostos – que alicerçam os
contornos das formações, entendidas como “fôrmas” – para as práticas – onde
a form(ação) se encontra em movimento... em “(ação)” e diferenciação...
Para tanto, fomos buscar respaldo na estilística da existência
foucaultiana, ao observar que esse campo teórico-conceitual oferece pistas
interessantes para operar esse deslocamento do olhar acima sugerido. Em
linhas gerais, a estilística da existência inaugura um nível de composição e
análise acerca das subjetividades, que nos convida a pensar sobre os labores
que operamos sobre nós mesmos para nos tornarmos quem queremos ser. Tais
labores orientam todo nosso esforço e atenção na direção das práticas com as

17
Projeto de extensão “Dança Vida Educação”, dirigido a educadores em exercício e em
formação (curso de Pedagogia e Licenciaturas), durante o ano de 1999. (OSTTETTO, 2006 p.
49)
18
Centro de Educação - Universidade Federal de Santa Catarina (1995-2012). (OSTTETTO,
2006).
35

quais nos dedicamos e que transformam nossa experiência de si mesmo19


(TAYLOR, 2018; GALLO, 2008; ALVES, 2011).
É deste lugar, atento às práticas que lapidam nossa existência, que pulsa
o princípio do “cuidado de si”, princípio este que vem à baila a partir da última
fase dos estudos Foucaultianos, quando volta seu interesse para as tecnologias
de si. Não se trata de um princípio egoísta, mas, pelo contrário, que implica o
cuidado com o outro também. “Tem-se aí um dos pontos mais importantes dessa
atividade consagrada a si mesmo: ela não constitui um exercício da solidão, mas
sim uma verdadeira prática social” (Foucault, 2005, p. 57), ou seja, o princípio do
“cuidado de si” estabelece uma relação ética do sujeito com o meio e com o
outro, uma vez que ele não se perde de si mesmo.
Para iniciar a composição de reflexões preliminares acerca desse
princípio do cuidado de si, cabe ressaltar que Foucault foi encontrá-lo lá na
antiguidade clássica, para mobilizar uma outra relação entre subjetividade e
verdade, ainda não recoberta pelas mazelas do dogmatismo cristão e pelo
escrutínio depurado e insípido do discurso científico, que, em última análise,
exige por renúncia de si mesmo na composição dos conhecimentos. É por
intermédio desta filosofia antiga, portanto, que Foucault nos convida a pensar
sobre outras possibilidades do olhar que, ao invés de conhecer, busca
protagonizar o exercício do experimentar, entendido como exercício laborioso

19
Esse "si mesmo" refere-se a uma reflexibilidade, isto é, um retorno, uma conversão de si sobre
si mesmo. E deve ser entendido como prática, ou seja, como “uma maneira de se relacionar
consigo mesmo para se constituir, para se elaborar” (GROS, 2008, p. 128). Na leitura de
Foucault, esse "si mesmo" esteve em curso na espiritualidade antiga, daí ele ter operado seu
esforço genealógico na busca por esse princípio de ação. Para tangenciar esse "si mesmo",
seguindo a genealogia Foucaultiana, será preciso desnaturar aquela identidade estática tão
intimamente incrustada em nós pela moralidade cristã e pela lógica da modernidade. Tal
identidade estática insiste em recobrir, reprimir, tolher e moldar nossa identidade aos olhos do
“conhece-te a ti mesmo”. Assim, sob o enfoque do conhecimento de si, em detrimento do
cuidado, renunciamos a nós mesmos, em função da legitimação da moralidade cristã e da lógica
do discurso científico, tal como é talhada na modernidade. Nos domínios de "si mesmo" rompe-
se com as tramas do conhecimento devido de si, na busca por uma intensificação da presença
para si mesmo, como diria Gros, apoiado em Foucault. Nestes termos, o "si mesmo" aqui
reiterado seria "... um exercício de concentração de si sobre si mesmo, não para se oferecer
como objeto de observação introspectiva, mas para que seja possível um acompanhar-me."
(GROS, 2008, p. 130). Neste sentido, este "si mesmo" refere-se a um “permanecer totalmente
presente a si mesmo”, (...) refere-se a um “estar completamente atento às suas próprias
capacidades. Este conhecimento de si não divide interiormente o sujeito segundo o fio do
conhecimento (sujeito que observa/objeto que é observado); ele é, antes, da ordem de um
esforço de vigilância que intensifica a imanência a si mesmo” (GROS, 2008, p. 131).
36

que nos implica existencialmente no movimento de composição dos


conhecimentos (QUICILI, 2015; TAYLOR, 2018).
Dialogando com essa ideia que aproxima a noção de form(ação) a um
movimento ético e estilístico de constituição da existência, o princípio do cuidado
de si mesmo nos ajuda a pensar na irredutibilidade de uma certa inquietude de
nós mesmos, com a qual vamos compondo nossa ética de vida, como expressão
de uma certa arte de viver. Na leitura de Quicili (2015), essa inquietude de nós
mesmos é o ponto de fusão entre arte, vida e espaço, em meio ao qual pulsa o
cuidado de si mesmo, como movimento essencial de elaboração de nossos
modos de ser e agir no mundo.
A inquietude de nós mesmos chama a atenção para o fato de que o
exercício da form(ação), em meio ao qual se evidenciam relações entre verdade
e subjetividade, extrapola a dimensão meramente intelectiva, operada à luz do
modelo da representação, haja vista que implica corpo amplamente no ato
cognitivo, exigindo que seja operada uma dobra de si sobre si mesmo por meio
da qual lapidamos nossa existência.
É importante esclarecer, no entanto, que esse retorno, na atualidade, ao
princípio do cuidado de si não significa um elogio à filosofia antiga20 como
exemplo a ser seguido, mas, minimamente, nos convida a pensar o seguinte:
nem tudo, na modernidade, precisa estar subjugado ao conhecimento! Essa
mesma disposição epistemológica vale também para pensar acerca da
formação! Neste sentido, o enfoque do cuidado de si nos ajuda a afirmar a
form(ação) como espaço intensivo de elaboração da existência, que dá vez e
voz à uma dimensão mais ética e estética, amplamente intrincada com a
elaboração da nossa própria arte de viver.

20
Sobre essa questão, Foucault chega a dizer que os gregos “(...) se chocaram contra tudo aquilo
que acredito ser o ponto de contradição da moral antiga: entre, de um lado, esta busca obstinada
de um certo estilo de vida e, de outro, o esforço para torná-lo comum a todos, estilo do qual eles
se aproximaram, sem dúvida mais ou menos obscuramente, com Sêneca e Epícteto, mas que
só encontrou a possibilidade de se investir no interior de um estilo religioso. Toda a Antiguidade
me parece ter sido um ‘profundo erro’ (2006, p. 254). Por outro lado, Foucault demarca que “(...)
não se deve desconhecer o que pode haver de continuidade, cuidadosamente mantida, e,
também, de reativação voluntária, nesse pensamento dos primeiros séculos, tão
manifestadamente inspirado pela cultura clássica (2005, p. 233), e que, portanto, pode-se
reconhecer no curso da história “o desenvolvimento de uma arte da existência dominada pelo
cuidado de si” (FOUCAULT, 2005, p. 234).
37

Foucault traz aos tempos modernos as práticas de si da cultura


greco-romana antiga, pois diferentemente deste momento em
que vivemos, conhecimento e ética não se separam lá, onde o
conhecer está subordinado ao cuidado de si mesmo por um
sujeito da ação, ético, que se constrói, se transforma, como
“exercícios espirituais” que levam à elaboração de modos de
vida, de existência, através da arte de viver. Não é um exercício
fácil, é uma conquista difícil. É um exercício de apelo à vigilância
e à atenção e NÃO à decifração da natureza secreta. (STONE,
2018, p.188)

Sendo assim, mesmo não trazendo a filosofia antiga como um exemplo a


ser seguido, de acordo com Gros (2008), saber que em outros tempos o cuidado
de si se apresentava como uma arte de viver, nos faz pensar sobre a questão de
como estruturamos a relação com a gente mesmo, podendo-se compreender o
cuidado de si como um agenciador político no sujeito ético. Eis aí a grande valia
desse retorno, como podemos perceber de acordo com Foucault em uma
entrevista:

Dentre as invenções culturais da humanidade, há um tesouro de


dispositivos, técnicas, ideias, procedimentos etc., que não pode
ser exatamente reativado, mas que, pelo menos, constitui, ou
ajuda a constituir, um certo ponto de vista que pode ser bastante
útil como uma ferramenta para a análise do que ocorre hoje em
dia – e para mudá-lo. (DREYFUS & RABINOW, 1995, p. 260,
261)

O que nos interessa do princípio do cuidado de si é destacar sua natureza


movente, que intensifica a experiência de composição das verdades postas em
jogo em nossos percursos form(ativos). É deste lugar, em movimento, de onde
pulsa o princípio do cuidado de si, que tangenciamos nosso potencial criativo,
que afirma nossos próprios modos de transformação da existência. E é neste
lugar pulsante, portanto, que precisamos de práticas que estimulem o sensível e
a criatividade, práticas de si que constituem o sujeito através de suas
experiências, em seus processos de subjetivação, de governo de si, que
implicam a relação consigo e com os outros em uma forma de existência ética e
estética (FOUCAULT, 2004a).
É justamente por isso que, muito mais do que conhecimentos, o foco na
form(ação) precisará se atentar para as práticas, ou seja, para os exercícios que
impomos de nós para nós mesmos para elaboração de nossas próprias
38

existências. Isso porque, quando estamos imersos nas intensidades das


práticas, rompemos com os conhecimentos prévios, de modo a evidenciar a
dinâmica relacional em constante processo de modificação e diferenciação em
cena durante a prática. E é exatamente nesta dimensão em movimento, durante
a prática que se instala furtiva, que as dimensões ética e estética intensificam os
processos form(ativos), colorindo-os de uma certa singularidade sempre em
processo de atualização.
E uma atitude interessante para ajudar a tangenciar à essa inquietude de
nós mesmos é darmos vazão à nossa vulnerabilidade21, por meio da qual
acolhemos mais amplamente tudo aquilo que advém, não só na relação que
estabelecemos com nosso próprio corpo, como também com o espaço e com os
outros. Neste contexto, a vulnerabilidade é vista como atitude que garante ao
cuidado de si uma articulação social que expande a inquietude de si para outros
domínios relacionais, integrando-o em uma coletividade. É mostrando nossas
fragilidades e limitações que “ganhamos em potência aquilo que,
aparentemente, perdemos em imagem idealizada de nós mesmos” (CHAVES e
RATTO, 2018, p.194).22 E é no processo de desidentificação, de abertura ao
desconhecido, ao inesperado, à “desordem”, ao conflito e no encontro com a
alteridade que podemos inventar novos caminhos e viver intensamente algo
novo.

21
Chaves e Ratto (2018) apresentam em seu artigo intitulado “Fronteiras da formação em saúde:
notas sobre a potência da vulnerabilidade” um questionamento em relação à doença enquanto
potência de vida pautado nos pensamentos de Guattari e Rolnik (1999) que vão na direção do
conceito de vulnerabilidade. Segundo Rolnik (2006, p.2 e 3) “a vulnerabilidade é condição para
que o outro deixe de ser simplesmente objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas e possa
se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência e os
contornos cambiantes de nossa subjetividade. Ora, ser vulnerável depende da ativação de uma
capacidade específica do sensível (...)” que “(...) nos permite apreender o mundo em sua
condição de campo de forças que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma
de sensações.” A essa capacidade ela denominou de “Corpo Vibrátil”.
22
Chaves e Ratto (2018, p. 190) trazem uma reflexão interessante, a partir do pensamento acima
já mencionado de Guattari e Rolnik no que se refere à saúde, para o campo da educação, bem
como pautada no pensamento de Deleuze (1991): “Educar na perspectiva do acontecimento,
diferentemente de conformar uma subjetividade aos modelos ideais estabelecidos, consiste em
abrir a subjetividade à afecção pelo mundo, numa aposta nas forças ativas do próprio mundo
como potência transformadora. Trata-se de abertura ao devir criador das formas, e não à
formação pautada pelo dever ser moral. A educação passa a ser entendida como exercício de
vulnerabilidade, de abertura às forças do acontecimento, capazes de desfazer a organicidade
dos territórios existenciais, forçando-os à diferenciação. A aprendizagem se dá quando
conseguimos romper com as amarras institucionais, por linhas não formais, por fatores de
exposição à diferença.”
39

Na prática das DCS, assim como na vida, nos deparamos com


adversidades e limitações. Na roda cada um tem que lidar com as suas questões
individuais e ao mesmo tempo estar atento e receptivo para lidar com o que vem
do outro, do meio, e, assim, aprender que o aprendizado só acontece de fato
quando nos abrirmos e entregamos ao jogo relacional da existência da gente
com a gente mesmo, da gente com o meio e da gente com o outro, sem pré-
julgamentos. Por isso, apesar de também encontramos dificuldades em relação
a nós mesmos e ao outro nas Danças Circulares, é preciso seguir fluindo e
permitindo que a vulnerabilidade, o tensionamento, a desacomodação nos
mostrem a possibilidade de novos caminhos, diferentemente do que ocorre no
processo de formação convencional, para uma form(ação) que vaza da fôrma e
que promove transformações.
Desta forma, é importante atentar-se ao fato de que a subjetividade
pautada nos modelos e padrões é alienada, e a vulnerabilidade é um ato de
resistência a essa subjetivação alienada em massa. Portanto, a subjetividade
autêntica, a que nos referimos, protagonizada por nós mesmos, é “como aquilo
que efetiva o modo singular que cada um de nós tem de viver e/ou experimentar
os acontecimentos da vida.” (CHAVES E RATTO, 2018, p. 190)
É preciso acolhermos a vulnerabilidade com a qual nos deparamos e que
faz parte dos processos de transformação, transgredir e adquirir potências para
“as linhas de fuga”, que segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 31) seria a
“desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a
multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza.” No entanto, viver o
estranhamento e vivenciar o estado de vulnerabilidade não é fácil, é um processo
de sofrimento, pois não é previsível, é da ordem daquilo que vaza.
Deste solo teórico-conceitual, que afirma o movimento da form(ação) na
interface com a estilística da existência, é que situamos a figura dos(as)
focalizadores(as) de DCS para observar como a prática da Dança Circular pode
se constituir como uma prática potente de mobilização da subjetividade
desses(as) focalizadores(as), que intensifica o processo de form(ação) desses
agentes na direção da composição de uma certa estilística da existência em
movimento nos passos da dança em roda.
40

7 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Nesta seção, seguiremos na dimensão dos procedimentos metodológicos
como um espaço de composição entre estudos, devires, pesquisa e práticas
envolvendo as Danças Circulares Sagradas.

7.1 Cartografando: entre o sagrado e o profano


Falar sobre as DCS implica “estar” na roda, ou seja, é um discurso que
vem desse lugar das experiências vividas. Não se trata de explicar o que nos faz
sentir o que sentimos, mas de darmos vazão às sensações que nos percorrem
quando estamos girando na roda, de mãos dadas com pessoas que, muitas
vezes, nunca vimos, e nas quais, de alguma forma, reconhecemo-nos ou
(re)construímo-nos numa experiência tão coletivamente singular... É muito
mágico!!! Várias chamas se acendendo e, de repente, uma grande fogueira! Nos
emocionamos, vem o arrepio, a vontade de rir, de chorar, nos sentimos leves, o
tempo se altera, o espaço transborda e ganha outra dimensão, o dentro e fora,
eu e o outro, tudo junto, ao mesmo tempo, agora! Como mencionado
anteriormente, este acontecimento se avizinha ao que de Deleuze (2006) chama
de “centro de envolvimento”, em meio ao qual se evidencia um contágio, uma
simbiose coletiva, que nos conecta com uma dimensão sagrada em pleno
movimento nas relações da dança em roda.
Chamemos a conexão com essa dimensão sagrada, em meio a roda, de
“espiritualidade imanente”, sobre a qual explicaremos melhor no item 8.4.1.1. Por
hora, basta pensarmos que as relações que se constituem na roda convocam
nossa corporeidade amplamente, movendo-nos à composição de uma
experiência espiritual que não se faz sem corpo. E há muitas possibilidades
acerca do que possa significar tudo o que envolve as DCS, mas não nos cabe,
aqui, nomear esses acontecimentos. Importa nos abrirmos a eles, ao que se
apresente, com olhar atento e sensível, vivenciá-los, senti-los, colocá-los na roda
para dançar e deixar vir o que vier!
Assim como quando estamos na roda, nesta pesquisa pretendemos
permitir a manifestação daquilo que se expressa e dança em meio à roda. E é
nessa dança entregue e descompromissada que queremos iniciar esta pesquisa.
Não pretendemos estancar um conceito que busque dar conta do que pareça
ser a experiência com as DCS, seja ele metafísico ou filosófico. Interessa-nos
41

vivenciar, nos relatos, como as DCS movem e reverberam em cada um dos


entrevistados e, a partir daí, mapear as relações de sentido dos entrevistados
com essa prática. Pretendemos orientar nossa atentividade de forma mais
aberta, curiosa e suspensa e, a partir desta abertura, nos permitir sentir na
espreita dos acontecimentos, evitando conduzir, de antemão, o movimento de
pesquisa que se desenha no processo investigativo.
Tendo em vista essas preocupações, era preciso buscar por referenciais
que oportunizassem esse encontro outro de pesquisa, alheio às leituras
academicistas que atam pesquisador ao objeto de sua pesquisa. Neste sentido,
buscamos dialogar com os estudos Deleuzianos e Guattarianos (1995),
particularmente aqueles que nos aproximam do princípio da cartografia como
possibilidade de expandir o território a ser vivenciado, na trilha das evidências,
tendo a dimensão de realidade como um cruzamento de várias forças que a
compõem. E neste jogo, aventurar-se a olhar pelo olho do outro, em um encontro
entre o eu e o outro, onde, totalmente implicada, afeto e sou afetada. Em minha
forma de ser e pensar, abrir espaço para o que vem e, assim, rever, ampliar
antigas formas de pensar e transformar-se.
Aqui operamos com um sentido diferente para o termo cartografia daquele
comumente conhecido, o que necessariamente procede também em relação ao
termo mapa. Mapa, nesta pesquisa, é tomado no sentido Deleuzeano e
Guattariano, como algo maleável, que se conecta em várias direções e que pode
ser (des)(re)construído o tempo todo com a finalidade que lhe couber. E esta
flexibilização também acontece no agenciamento dos mapas que vão ter
“múltiplas entradas e saídas” (DELEUZE; GUATTARI, 1995 p. 32), configurando-
se em uma atitude cartográfica.

Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado


para uma experimentação ancorada no real. O mapa não
reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o
constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o
desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima
sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa
é aberto, é conectável em todas as suas dimensões,
desmontável, reversível, suscetível de receber modificações
constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a
montagens de qualquer natureza, ser preparado por um
indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo
numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como
42

uma ação política ou como uma meditação. (DELEUZE;


GUATTARI, 1995, p.20 e 21 – nota nossa)

Assim, a cartografia, desse ponto de vista, pode ser compreendida mais


como uma atitude do que propriamente um método. Seria esse agenciamento
dos mapas e, porque não dizer, do cruzamento dos vários rizomas23 que vão
surgindo no percurso, com os quais vamos dialogando e vendo a que somos
convocados. Essa imagem do rizoma, descreve essa ação que começa pelo
meio, onde as coisas adquirem velocidade, sem começo nem fim, que mobiliza
nossa subjetividade e nos implica. Desta forma, cartografar é mapear processos,
e mapear processos é compor e não representar.

(...) o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto


qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente
a traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos
muito diferentes, inclusive estados de não-signos. (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p.31)

Nesta aventura cartográfica, é interessante perceber algumas pistas que


servem para sugerir encaminhamentos, mas que também podem ser
equivocadas e fazerem com que o cartógrafo mude a rota e faça o “método”
variar, ou melhor, de forma inversa, o hódos-meta, em que a meta vai
despontando no caminho, (TEDESCO, SADE e CALIMAN, 2013), “como uma
aposta na experimentação do pensamento – um método não para ser aplicado,
mas para ser experimentado” (PASSOS et al, 2009, p.10).
Para tangenciar a possibilidade de composição dessa outra política de
conhecimento é preciso mobilizar uma atentividade outra, só calibrada no
encontro do pesquisador com o território que está sendo pesquisado. Tal
atentividade dissolve a percepção seletiva, transformando as intenções de

23
Para uma reflexão entorno do fazer pesquisa tomado por uma atitude cartográfica, trazemos
uma apresentação de Deleuze sobre sua proposição acerca da imagem do rizoma: “...
diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro
ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma
natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos.
(...) Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não
tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. (...) o rizoma é
feito somente de linhas: linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas
também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em
seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza”. (DELEUZE; GUATTARI,
1995 p. 31).
43

partida de acordo com os processos em curso na investigação. Assim, nesta


outra atentividade, há um deslocamento atencional, em que se percebe os
movimentos das singularidades (KASTRUP, 2009).
Para tanto, a investigação precisa se encaminhar na direção de uma
atenção flutuante, sensível às intensidades em curso no momento presente,
quando da investigação. A atenção flutuante nos convida a perceber os fluxos,
isto é, aquilo que tensiona em meio às relações no ato da investigação. E para
alcançar essa atenção flutuante há que se ter uma atitude de humildade, na qual
o pesquisador abre mão do controle da investigação. Tal atitude de humildade
se organiza nas entrelinhas, nas pausas, nas perturbações da experiência
sensível, convidando-nos à observação das rugosidades, que atestam a
emergência perene e pulsante de uma outra forma de olhar. E, então, dar o zoom
para reconfigurar o que me afeta. É entre a atenção seletiva e a atenção flutuante
que é possível a suspensão do juízo de valores.
Na medida em que a atentividade cartográfica vai sendo calibrada, vai se
constituindo uma dissolução do ponto de vista do observador (PASSOS e
EIRADO, 2009), a qual está relacionada à pista anterior, em que a forma de
observar é um princípio de ação que ajuda a ampliar nossa percepção e que
oportuniza o gatilho da ação cartográfica. Eu, como observadora, não estou para
descobrir a realidade, mas o que está se constituindo, entre o que afeto e o que
sou afetada. Aqui se instala o plano de implicação. Há um deslocamento
observacional de um plano atravessado por vários campos, pontos de vista, em
estado de movência, na impermanência, em que é preciso dissolver as
pessoalidades sem uma lógica identitária. Assim, nesta transversalidade, há que
se dissolver a relação dicotômica daquele que vê e o que é visto, e experimentar
o cruzamento entre tudo o que atravessa a experiência, no plano de flutuação
da experiência, estabelecendo uma rede comunicacional.
E é no agenciamento desse cruzamento entre o que atravessa a
experiência, que estamos diante de mais uma pista preciosa nesta atitude
cartográfica: a pista de acompanhar processos (BARROS e KASTRUP, 2009).
Isto significa que, mais do que conhecer, cartografar é experimentar,
transformar, cuidar. Aqui estamos diante do paradigma do cuidado e não do
conhecimento. Um reconhecimento atento e não uma recognição. Estamos
atentos para ver o que está acontecendo. Trata-se de um acompanhamento de
44

processos inventivos e de produção de subjetividade, que se dá em composição


com o outro e com o território existencial em que tudo acontece.
Ao exercermos uma atitude cartográfica, há um ponto de ancoramento
inicial, que não é fixo, rígido e sim mais aberto a explorar tudo o que está em
volta. Não estamos em busca de coletar dados. Produzimos dados desde o
começo e, assim, vamos nos modificando, bem como ocorre com a pesquisa ao
longo do percurso. Neste exercício, há que ser flexível, exige-se uma adaptação,
abrir-se aos pontos de vista distintos. E faz parte do processo reconhecer-se
perdido. Há uma multiplicidade de vozes e somos coprodutores, onde há
borramentos entre tudo e todos que compõem o encontro. Possibilitar a polifonia,
numa observação engajada e afetiva, é o grande desafio!
Neste processo, vamos compondo pensamentos, sem uma linearidade,
uma lógica hegemônica e, diante de toda essa reflexão frente à atitude com a
qual nos posicionamos nesta pesquisa, pretendemos, agora, discorrer sobre o
percurso que foi sendo traçado no decorrer da pesquisa.

7.2 As entrevistas
Assumida essa atitude cartográfica, é preciso que situemos a posição da
“entrevista cartográfica”. É interessante perceber que a “entrevista cartográfica”,
na realidade, não existe, o que existe é “um manejo cartográfico da entrevista”
(TEDESCO, SADE e CALIMAN, 2013, p.301), o qual suscitará escolhas de
acordo com cada situação. Lembrando que, se o que se pretende na pesquisa
cartográfica é acompanhar processos, na entrevista não se busca o conteúdo da
experiência.

... se a entrevista na cartografia inclui trocas de informação ou


acesso à experiência vivida, é importante ressaltar que esta não
é sua única direção. A cartografia requer que a escuta e o olhar
se ampliem, sigam para além do puro conteúdo da experiência
vivida, do vivido da experiência relatado na entrevista, e incluam
seu aspecto genético, a dimensão processual da experiência,
apreendida em suas variações. (TEDESCO, SADE e CALIMAN,
2013, p. 301)

Outro fato relevante a ser levantado, no que se refere às entrevistas, é a


questão da memória. Diante de uma concepção cartográfica, Deleuze (1993/
45

1997, apud HUR, 2013) entende a memória como um movimento que está em
construção e não como algo restituído. Segundo Hur (2013), remetendo-se ao
pensamento de Deleuze sobre a memória, “não se trata de buscar uma origem,
mas sim a avaliação dos deslocamentos de um mapa a outro.” (HUR, 2013, p.
180).
Nesta ótica, percebe-se que Deleuze traz uma outra visão para se
compreender o tempo que não por sua comumente linearidade, mas por “saltos,
acelerações, rupturas e diminuições de velocidades” (GUALANDI, 2003, p. 71,
Apud HUR, 2013, p. 180). Então, se tem “não uma ordem do tempo, mas
variação infinita, nem mesmo uma forma de tempo, mas um tempo informal,
plástico” (PELBART, 2004, p. XXI, Apud HUR, p. 180).

Ao trabalhar com esta outra modalidade de tempo, a partir da


duração bergsoniana e de Aion, Deleuze abre espaço para
pensar a memória como um dispositivo que opera nestes fluxos
temporais dissimétricos e coexistentes. Portanto, a memória não
se restringe a uma versão única e linear sobre os fatos, e sim
possui um caráter múltiplo, difuso, caótico, em que se ramifica e
se desdobra de uma maneira magmática, a partir de uma
interconexão de múltiplos planos temporais, que inclusive
podem contradizer-se um com o outro. (HUR, 2013, p.181)

...consideramos que nem o imaginário e nem a memória


correspondem a caracteres apenas “internos”, e sim como
modalidades de contração do agenciamento sujeito-mundo, em
que o sujeito “deixa de ser sujeito”, pois é atravessado e
povoado pelos múltiplos fluxos que o tornam portador de uma
multiplicidade experiencial. (HUR, p. 183)

Atentos à composição desta temporalidade Aiônica, as entrevistas, foram


atravessadas por múltiplos fluxos que foram intensificando o movimento
interativo estabelecido entre a pesquisadora e os focalizadores(as)
entrevistados(as). Na toada destes encontros intensivos, realizamos oito
entrevistas individuais, cinco com focalizadoras e três com focalizadores
brasileiros(as) de DCS, cujo tempo de experiência com as DCS variou entre 7 e
30 anos, a fim de conhecer sobre seus processos de form(ação) a partir das DCS
e como isso passou a fazer parte de sua constituição existencial.
46

As entrevistas24 foram realizadas e gravadas via remota, pelo Google


Meet, entre agosto e setembro de 2020. A ideia inicial era fazê-las
presencialmente, mas diante do quadro pandêmico em que estamos ainda
vivendo, tivemos que realizá-las virtualmente mesmo.
Elas transcorreram em forma de um diálogo aberto que partiu das
seguintes indagações: como aconteceu o encontro dos(as) focalizadores(as)
com as DCS; como foi acontecendo essa permanência das DCS na história de
vida de cada um; e como isso afetou sua relação com a vida pessoal e
profissional.
Houve a elaboração de um roteiro com questões25 pertinentes às
indagações acima mencionadas e, após a gravação das entrevistas, realizamos
a transcrição de todas elas, tendo a duração média de 90 minutos.
Sendo assim, seguiremos adiante explicando como foram desenvolvidas
as análises das entrevistas.

7.3 Composição das análises


Pretendemos, aqui, levar em consideração a composição das reflexões,
a qual irá considerar: os relatos mobilizados durante a produção das entrevistas,
traçando um diálogo entre eles e os diferentes referenciais considerados na
investigação, e abrindo-se para a diferença que emerge nas relações e no
sensível experimentado na pesquisa de campo que nos atravessaram.
Deste modo, o trabalho da análise aqui assumido pretende se constituir como
uma rede composta por elementos heterogêneos, traçada entre as proposições
de partida e os movimentos do devir forjados efetivamente em campo. E para
afirmar esse movimento em rede, buscamos respaldo no conceito de dispositivo,
em Foucault. Segundo esse autor, dispositivo26 é:

“um conjunto decididamente heterogêneo que engloba


discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões

24
Os entrevistados receberam um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE),
explicando sobre o projeto e sobre a entrevista, e este foi enviado juntamente com o projeto para
o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto de Biociência da UNESP de Rio Claro, o qual
nos deu o parecer de aprovação. (Vide anexo A deste trabalho)
25
Vide anexo B deste trabalho.
26
O conceito de dispositivo atravessa grande parte dos estudos Foucaultianos. Podemos encontrá-lo em
entrevista dada à International Psychoanalytical Association (IPA), (FOUCAULT, 2000, p. 244 -
Apud MARCELLO, 2004, p. 200).
47

regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados


científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em
suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos”
(FOUCAULT, 2000, p. 244 - Apud MARCELLO, 2004, p. 200).

Assim, enquanto rede tecida entre elementos heterogêneos, o exercício


da análise, aqui em pauta, afirma sua dimensão compositiva e inventiva,
amplamente comprometida com os movimentos gerados durante o exercício da
pesquisa. E para consolidar esse trabalho compositivo, foi necessário instalar a
observação de dentro da experiência investigativa, afirmando sua dimensão
enatuada com o universo estudado. E para compreender desta dimensão
enatuada, faz-se necessário buscar respaldo nos estudos de Varela, na
abordagem enativa (VARELA et al, 1992), sobre a qual discorremos a seguir, de
maneira que as análises transcorrerão permitindo que as ações possam ir
acontecendo e se reestruturando de acordo com as percepções que nos
chegam.
Da mesma forma que ocorre no processo cartográfico, em que há um
ponto de ancoramento inicial, mas que não é fixo, rígido e sim mais aberto a
explorar tudo o que está em volta, a abordagem enativa é aquela que traça os
sulcos da escrita de um pesquisador que não se vê de fora do universo que
pretende estudar. Há uma quase indissociabilidade entre o fenômeno estudado
e a percepção que o percepta. Aqui, dá-se espaço para que a ação seja guiada
pela percepção que está o tempo todo em mutação, de forma que, nesta
impermanência, vamos nos modificando, bem como ocorre com a pesquisa ao
longo do percurso.
Baum e Kroeff (2018) trazem o conceito da abordagem enativa,
originalmente postulada por Varela, Thompson & Rosch (1992), aos olhos da
apropriação e desenvolvimento deste conceito pela literatura que segue,
posteriormente, a proposição original, atualizando, assim, a discussão acerca da
compreensão dos processos cognitivos. De acordo com os autores,
diferentemente da abordagem cognitivista, que entende o processo cognitivo
como um processamento de informação, representacional da realidade (um
mundo pré-estabelecido externo e objetivo) por decodificação, na abordagem
enativa, a cognição é compreendida como “ação incorporada, ou seja,
48

intrinsecamente conectada à realização biológica de um organismo” (ibidem, p.


208), em que ação e percepção são inseparáveis.
Nesta perspectiva, eles nos dizem que a atividade cognitiva não é
meramente neuronal e sim uma rede de atividade corporal no meio em que esta
ocorre, associada a um histórico de relações intersubjetivas. Desta forma, a
“cognição depende dos tipos de experiência que advêm do fato de se possuir
um corpo dotado de diversas capacidades sensório-motores que estão
vinculadas a um contexto biológico e cultural mais abrangente.” (ibidem, p.209)
A cognição, que opera em um corpo-espaço-tempo, seria, então, um
“engajamento incorporado com o mundo” (ibidem, p.210). Essa concepção de
cognição aproxima-se da criação, uma vez que o indivíduo é um “sujeito ativo
que atua constantemente a emergência de si e do mundo.” (ibidem, p. 231)
Dos conceitos que aparecem em Baum e Kroeff (2018), segundo
Maturana e Varela (1997; 2004); Varela, Thompson & Rosch, (1992), no que se
refere à abordagem enativa, ressaltamos dois que nos parecem significativos
para esta pesquisa: a incorporação e a experiência. Como incorporação
entende-se capacidades mentais inscritas num corpo em um mundo, ou seja, o
cérebro está conectado com tudo e corpo e mente se afetam mutuamente.
Segundo Varella (2000) criamos “microidentidades” que fazem emergir um
“micromundo”. Essa indissociabilidade entre corpo e mente promovem uma
circularidade entre ação e percepção, em que elementos neurais, somáticos e
ambientais fazem parte do processo cognitivo de forma imbricada e há um
acoplamento entre corpo e mundo em uma dinâmica vivencial que Hanna e
Thomson (2003, apud BAUM e KROEFF, 2018) chamaram de “corpo
subjetivamente vivido”. Baum e Kroeff (2018, p. 226), de forma sucinta e precisa,
declaram que no enativismo “o corpo subjetivamente vivido é uma performance
do corpo vivo.” Eis o porquê de a experiência encontrar-se no centro dos estudos
dos processos cognitivos, uma vez que “a experiência está indissociada do
processo de estar vivo em um mundo de significância,” (ibidem, p. 226) em que
sujeito e mundo estão acoplados.
Neste processo de composição, entendendo a linguagem neste viés da
enação, não temos outra saída a não ser nos permitirmos atuar no fluxo da
experiência em consonância com tudo o que faz parte do cenário interno e
49

externo de nós mesmos de forma imbricada. Os autores supracitados, pautados


em Maturana e Varella (2004) nos dizem que:

os símbolos não preexistem à linguagem, mas surgem com ela


(...) e tem-se a compreensão de que a linguagem apresenta
sempre um caráter coletivo e atuante, pois são acoplamentos
que estabelecem as condições de sua emergência. (ibidem,
p.232).

Desta forma, entendendo que a análise apresenta um caráter coletivo e


atuante, é necessário considerar diferentes camadas analíticas que levam a
diferentes níveis de compreensão do trabalho investigativo. E na esteira desta
ideia, como exercício da análise, buscamos respaldo em Foucault, nos
aventurando a flertar um pouco com suas três dimensões teóricas (arqueologia
do saber, genealogia do poder e a ética como estética da existência) e, nos
inspirando nas reflexões de Sílvio Gallo (2008) sobre as implicações desses três
“domínios” foucaultianos no pensamento educacional contemporâneo. Na leitura
de Gallo (2008), os três domínios analíticos em Foucault, acima mencionados,
apontam três diferentes níveis de elaboração filosófica do ser: o ser-saber, o ser
poder e o ser consigo, respectivamente. Frente a esse leque de composição das
análises, assumimos compromisso, nesta pesquisa, particularmente com o
terceiro nível, relativo ao “ser-consigo”.
Esse terceiro domínio refere-se ao nível em que entra em cena a análise
ética, entendida como estética da existência, por se referir às forças que
retornam sobre nós mesmos e nos modificam. Aqui, o nosso olhar se volta à
constituição do si mesmo como sujeito, às práticas através das quais o sujeito
se constitui e se reconhece como sujeito pelas forças que retornam sobre si o
modificando.
Sendo assim, nos atentaremos ao quanto as DCS foram potentes e
transformadoras na vida dos(as) entrevistados(as), ou seja, as várias facetas de
uma multiplicidade das DCS, que aponta para o infinito e não cabe na fôrma.
Neste processo, caberão algumas reflexões em torno de algumas temáticas
como meditação em movimento, dimensões do sagrado / espiritualidade nas
DCS, rituais, criação, escolhas, cura, corpo relacional, entre outras, em diálogo
com conceitos como form(ação), processos de subjetivação, estética da
50

existência, tensão, vulnerabilidade, centro de envolvimento, afeto,


expressividade etc.
Retomando Gallo (2008), ao (re)pensar a Educação, inspirado pelo
significado de filosofia para Foucault como sendo “uma maneira de refletir sobre
nossa relação com a verdade” e a partir daí “como devemos nos conduzir”, nos
dá uma pista para pensar a formação de uma outra maneira: “Produzir Filosofia
da Educação com inspiração foucaultiana (...) é operar deslocamentos no
pensamento (...) que permita a emergência de novas possibilidades, de
caminhos outros...” (ibidem, p.255), vislumbrando um “pensamento aberto,
produtivo, criativo, não afeito a verdades prontas e definitivas” (ibidem, p. 256).
E é justamente essa tônica que nos inspira a falar sobre form(ação).
Tendo em vista este enfoque que busca se esquivar das fôrmas, das
verdades prontas e definitivas acerca da formação, interessa-nos buscar, na fala
dos(as) focalizadores(as), indícios de uma form(ação) outra, mais aberta,
produtiva e criativa. Com isso, assim como Foucault, não temos a pretensão de
ordenar os saberes para criar um mundo dado de conhecimento universal, mas
sim compor com os relatos, de modo a evidenciar um exercício reflexivo múltiplo
que possa nos oferecer um leque de infinitas possibilidades, para que possamos
refletir, repensar nossas “verdades” e, por que não, transformá-las, entre o que
tensiona e flui em nós mesmos. A ideia é fazermos uso dos diferentes saberes
como uma “caixa de ferramentas”27, em que buscamos aquelas que nos servem
para uma determinada situação.

27
DELEUZE, em uma conversa com FOUCAULT, afirma que "uma teoria é como uma caixa de
ferramentas... E preciso que sirva, é preciso que funcione". Elas são "como óculos dirigidos para
fora e se não lhe servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é
forçosamente um instrumento de combate" (DELEUZE apud FOUCAULT, 1979:71). Numa
entrevista ao 'Le Monde', Foucault faz uma afirmação semelhante, ao comentar sobre seus livros:
"todos os meus livros, seja a Historic de la Folie, seja este (Vigiar e Punir) são, se você quiser,
caixinhas de ferramenta. Se as pessoas querem abri-los, se servir dessa frase, daquela ideia, de
uma análise como de uma chave de fenda ou uma torquês, para provocar um curto-circuito,
desacreditar os sistemas de poder, eventualmente até os mesmos que inspiraram meus livros...
pois tanto melhor" (FOUCAULT, 1990:220). A fonte de inspiração de ambos pode ser encontrada
em WITTGENSTEIN: "pensa nas ferramentas em sua caixa apropriada: lá estão um martelo,
uma tenaz, uma serra, uma chave de fenda, um metro, um vidro de cola, cola, pregos e
parafusos. Assim como são diferentes as funções destes objetos, assim são diferentes as
funções das palavras. (E há semelhanças aqui e ali)" (1996:31). Daí, seu célebre aforisma: "don't
ask for the meaning; ask for the use" (LIMA, M. E R., 1999).
51

7.4 Análises em processo


Daqui em diante, seguiremos dançando na roda, no encontro com as
DCS. Os rumos dessa dança não estão dados a priori, mas vão se calibrando no
caminhar da pesquisa. As propostas de partida e os movimentos investigativos
já realizados – produção das entrevistas – deram uma direção movente que nos
convoca, isto é, que nos instiga a pensar e a dançar com as palavras. Como diz
Clarice Lispector em sua obra Água Viva, no momento da escrita há que “evocar
os reinos incomunicáveis do espírito”, fixar “o incorpóreo”, deixar a palavra
pescar “o que não é palavra”, pois “atrás do pensamento não há palavras: é-se”.
Assim, como mote disparador desse exercício do pensamento,
bailaremos em nossas análises compondo com a abordagem enativa (VARELA
et al, 1992), bem como inspirados pelos estudos Foucaultianos e pelas reflexões
de Sílvio Gallo (2008), como já mencionado anteriormente, para evidenciar o ser-
consigo, pautado na ética como estética da existência, que irá nos ajudar na
composição das reflexões desta pesquisa.
É importante perceber que cada uma dessas três referências
fundamentais, mencionadas no parágrafo anterior, aponta para direções
específicas, que trazem universos conceituais não necessariamente
relacionados entre si de forma direta. As aproximações, que aqui ousamos
realizar, não se fazem de modo linear, mas sim por contiguidade, isto é, por
relações de vizinhança e heterogeneidade. Isso significa dizer que essas
aproximações se fazem como uma provocação na direção de algo novo e
diferencial, situando, assim, a lógica do pensamento diferencial, que não busca
por regras gerais, tampouco por princípios fundamentais, essenciais de leitura e
compreensão do mundo, mas que está sensível à lógica da entropia, da
diferenciação.
Seguiremos, então, em um exercício analítico em progressivo processo
de intensificação que foi se calibrando na composição estabelecida entre as
(in)tensões de partida e os devires expressos particularmente em meio aos
relatos dos(as) focalizadores(as) entrevistados(as), por entre semelhanças e
singularidades, de maneira que essas análises transcorram na tentativa de
permitir que o olhar se incline na direção das falas dos participantes e nos
instiguem às discussões.
52

Para dar início a esse movimento de composição da análise, apoiamo-nos


em duas questões centrais:
 Como a dinâmica relacional das DCS pode oferecer espaços
potentes de encontro com as forças que intensificam a experiência
de si dos(as) focalizadores(as)?
 Como a prática das DCS pode mobilizar os processos form(ativos)
dos focalizadores(as) de DCS?
Foram essas questões que foram dando mobilidade ao roteiro das
entrevistas que, por sua vez, considerou três direções de partida, a saber: 1) O
encontro dos(as) focalizadores(as) com as DCS; 2) A permanência das DCS na
história de vida dos(as) focalizadores(as); 3) A implicação das DCS na vida
pessoal e profissional dos(as) focalizadores(as).
Sem perder de vista a conexão com essas questões e com as direções
de partida, e atentos às transformações e/ou ramificações que elas foram
assumindo, ao longo da pesquisa, desenhamos três dispositivos de análise:
1. As relações com o sagrado nas DCS;
2. Form(ação) como arte de viver;
3. Corpo, expressão e linguagem na roda das DCS;
A seguir, passearemos por cada um desses dispositivos discriminados
acima, colorindo-os de acordo com o perfil compositivo da análise defendido ao
longo desta seção. Desta maneira, cada focalizador(a) participante da pesquisa
será representado(a) por meio de uma cor e denominado pelos símbolos: F1,
F2, F3, F4, F5, F6, F7 e F8. A decisão pelo uso de uma cor diferenciada para
cada participante remeteu-nos a uma discussão constante no livro Pistas do
Método da Cartografia (2009), a qual faz pensar que, muito mais do que “quem”
fala, o que interessa na pesquisa cartográfica é o “como” a fala se organiza nas
interações em ato constituídas durante a pesquisa. Desta forma, as diferentes
cores aqui elencadas, ajudam a evidenciar um domínio de composição das
análises que lida com a escritura da pesquisa, tal como um pintor que, no traço
errante das cores, faz emergir as singularidades de uma aquarela que se amplia
e se intensifica a cada novo traço, a cada nova cor. Assim, entremeando esse
jogo de aquarela, pintaremos as paisagens analíticas desta pesquisa.
53

7.4.1 As relações com o sagrado nas Danças Circulares Sagradas

A dança é uma mensagem poética


do mundo divino.

Bernhard Wosien

Para começar essa seção, vale a pergunta: Mas, o que é sagrado? Que
espaço é sagrado? Em todos os tempos o sagrado apresentou-se na vida do
Homem. De acordo com Eliade (2010, p.25), “quando o sagrado se manifesta”
(...) há a “revelação de uma realidade absoluta, que se opõe à não realidade.”
Portanto, mesmo para o homem não-religioso há “locais privilegiados,
qualitativamente diferentes dos outros”, e seja lá qual for o acontecimento que
pertença a esses “locais privilegiados”, “são lugares sagrados (...) como se um
ser não-religioso tivesse tido a revelação de outra realidade” (ibidem, p.28), pois
“o sagrado é o real por excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de
vida e fecundidade” (ibidem, p. 31).
Entendemos que, para vivenciar e construir um espaço sagrado, não
necessariamente precisamos de templos ou locais específicos, nem seguir esta
ou aquela religião. Não se trata de religião e sim de espiritualidade, entendendo
espiritualidade como uma dimensão constitutiva humana, da intimidade do ser
humano com algo maior, ou seja, como “a busca, a prática e a experiência
através das quais o sujeito realiza as transformações necessárias em si mesmo,
a fim de obter acesso à verdade.” (FOUCAULT, 2005: 15, apud STONE, 2018).
Trata-se de “assumir a criação do ‘mundo’ que se escolhe habitar” (ELIADE
2010, p.49).
No decorrer dos relatos, essa dimensão do sagrado chega por várias
entradas e, por essa razão, subdividimos esse dispositivo em dois: A)
Espiritualidade como prática de si; B) O Sagrado e os Rituais das DCS, como
podemos ver a seguir.
54

A) Espiritualidade como prática de si


No desenvolvimento das entrevistas, pudemos perceber uma articulação
discursiva dos(as) focalizadores(as) acerca da temática da espiritualidade
entendida como prática de si sobre si mesmo. Tal problemática, também
mobilizou os estudos foucaultianos, em seus últimos anos de vida, dando origem
ao que muitos interlocutores foucaultianos chamam de "estilística da existência".
É com esse domínio reflexivo que queremos aqui compor, buscando situar as
falas dos(as) focalizadores(as) entrevistados(as).
No que tange a essa problemática, seguem alguns excertos sobre os
primeiros encontros com as DCS retirados das entrevistas realizadas nesta
pesquisa, que irão nortear nossas discussões.

... uma vivência deliciosa e eu sempre tinha vontade de


pertencer a algo, a um grupo que me levasse à espiritualidade,
que eu me sentisse pertencente a ele. (...) Então, até esse
momento eu procurava religiões (...) e sempre faltava algo. (...)
Na dança circular eu pude fazer contato com esse meu ser divino
e me conhecer como divina. (F3, fragmento de entrevista
realizada em 28/08/2020)

Então, quando eu me deparei com uma música e uma dança de


um outro local e nós pudemos dançar, foi para mim incrível. (...)
Para mim, a Dança Sagrada é a minha prática espiritual. (...) Eu
fui criada no catolicismo (...) eu sou daquela geração que disse
um não para o catolicismo (...) não quero esse monte de regras,
de dogmas e tudo mais. Então, eu reencontro uma
espiritualidade que me reconecte, um religare, mais simples de
falar, dá para entender, dentro da Dança Circular. (F4, fragmento
de entrevista realizada em 31/08/2020)

Momento único, muito especial na minha vida, (...) foi um


encontro com a minha alma de uma maneira única (...). Fiquei
muito impactada com o que aquilo trouxe para mim, com o que
eu vivi, essa coisa da profunda transformação pelo caminho do
amor... (F5, fragmento de entrevista realizada em 02/09/2020)
(...) Senti que eu estava encontrando também a forma que eu ia
me trabalhar espiritualmente, que eu sempre busquei, (...)
Nunca me senti muito à vontade dentro de nenhuma religião.
Sou judeu, venho do judaísmo. Mesmo no judaísmo eu não
estava satisfeito... (F6, fragmento de entrevista realizada em
09/09/2020)

Nesses relatos, parece que a sensação de encontro com uma prática que
lhes preenchessem uma lacuna de suas buscas espirituais não encontradas nas
55

religiões até então experimentadas, de conexão consigo, com a dimensão


cósmica, com a terra e com o outro, de pertencimento a uma “tribo”, está
intimamente relacionado ao encontro com seu espaço sagrado. Eles nos
colocam diante de uma dimensão transvalorativa atribuída àquilo que nos incita
e que nos tira daquela percepção cotidiana, nos movendo de outras maneiras,
na medida em que nos convoca para outro lugar de encontro com nós mesmos,
com o espaço e com o mundo.
Por isso, entendemos que, hoje, nos deparamos não apenas com uma
“espiritualidade transcendente” (tal como aquela espiritualidade que caracteriza
a tradição cristã lida e relida sob a ótica da moralidade), mas também com um
movimento em que se busca, através de práticas outras que não unicamente
religiosas, por uma “espiritualidade imanente”,28 ou seja, vivenciada em nossos
próprios corpos.
Segundo Ferry (2008), a espiritualidade passa a ser também, em nossos
tempos, “uma busca por uma forma autêntica e material de viver de forma
imanente o transcendente” (apud OLIVEIRA, 2020 p. 47).

Ferry (2008) compreende o tempo atual a partir de duas


perspectivas: a “humanização do divino” (tradução dos
conteúdos teóricos e práticos da religião na linguagem do
humanismo) e a “divinização do humano” (o ressurgimento da
transcendência tanto vertical (entre os homens e o além) mas
também horizontal (entre os próprios homens) e que ele
denomina de humanismo do homem-Deus”, que provoca uma
busca por uma forma autêntica e material de viver de forma
imanente o transcendente. (apud OLIVEIRA, 2020 p. 47)

Indo nesta busca de viver de forma imanente o transcendente, ou seja,


através das práticas que vivenciamos por meio de nossos corpos e as quais
identificamos como sagradas, no sentido já aqui apresentado, nos deparamos

28
“Em geral, a imanência refere-se a algo que tem em si próprio o seu princípio e seu fim.
A transcendência, por sua vez, faz referência a algo que possui um fim externo e superior a si
mesmo. A imanência está ligada à realidade material, apreendida imediatamente pelos sentidos
do corpo, e a transcendência está ligada à realidade imaterial, de uma natureza metafísica e
puramente teórica e racional.” No contexto religioso, no que se refere à imanência “a concepção
da ideia de Deus não se separa da matéria, sendo parte integrante e indissociável dela.” No que
se refere à transcendência, “está baseada na noção de um Deus transcendente, ou seja, uma
entidade primeira e separada da matéria que foi responsável por criar a matéria.”
(https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/imanencia-transcendencia.htm. Acesso em 13 de
dezembro de 2020.)
56

com uma espiritualidade que se faz e se refaz com intenso labor, compromisso
e envolvimento com a prática que nos instiga.
Por essa perspectiva mais imanente de vivenciar a espiritualidade, tudo o
que (nos) move é sagrado, o que nos afeta e transforma nossas antigas formas
de ser, pensar, agir... é o lugar que nos habita e que escolhemos habitar, que se
preenche, se esvazia e ao mesmo tempo faz todo o sentido. Que nos arrepia,
que abre os poros, que se manifesta do encontro entre o que nos penetra e o
que transborda de nós, que é inexplicável, mas que nem precisa ser explicado,
porque demanda o sentir, a experiência viva do sentir, do pulsar, do impulso
criativo em movimento, de força e potência de vida, de conexão entre cada um
de nós, o tudo e o nada... Lugar onde o acontecimento se apresenta, a entrega
se rende e o inexplicável acontece.
Assim, vemos que essa “divinização do humano” que Ferry (2008)
apresenta, tanto no sentido de uma transcendência vertical (entre os homens e
o além) como horizontal (entre os próprios homens), faz todo o sentido na prática
das DCS, uma vez que ela nos proporciona essa conexão de cada um com o
eixo céu e terra, e ao mesmo tempo a conexão com o outro e com o espaço,
onde cria-se um campo energético muito potente para se trabalhar a
espiritualidade.
Nesta direção, a F3 traz um relato que nos remete a essa dimensão
imanente da espiritualidade e ao mesmo tempo protagonista da sua própria vida,
quando diz que a prática das DCS:

... é uma forma de oração, onde as pessoas fazem essa oração


da maneira que elas quiserem num contato direto, sem passar
por um órgão que faz o cerceamento para chegar até o Deus, é
o contato direto. Isso também é muito importante porque a
pessoa faz seu próprio caminho, não tem intermediador. Então
a dança ensina cada um a ser seu mestre, ser sua igreja, sua
egrégora, seu espaço sagrado. (F3, fragmento de entrevista
realizada em 28/08/2020)

A F2 também vai nessa direção:

As danças circulares para mim são uma prática espiritual, na


realidade, de muitas coisas, de estar juntos, de celebração. (...)
São muitas coisas, mas principalmente uma experiência
57

curadora, de alegria e de irmandade. Esse é um tripé poderoso.


(F2, fragmento de entrevista realizada em 26/08/2020)

Esses excertos nos fazem pensar sobre essa espiritualidade que se


manifesta em comunhão com o corpo, no próprio corpo a partir de sensações
que podem ser, inclusive, curadoras, uma vez que atuam no sujeito de maneira
intensa.
Neste sentido, o F6 faz um relato que remete ao caráter meditativo da
DCS.
O que mais me chamou a atenção foram as danças
introspectivas, a possibilidade de estar fazendo essas danças
que vão para um lugar que põe a gente em conexão mais
profunda dentro.

Isso faz lembrar que o movimento das DCS surge num contexto de
encontro com o espaço sagrado e meditativo que se cria em cada um e no
coletivo (WOSIEN, 2000), que implica, necessariamente, a relação consigo e
com o outro em um mergulho no silêncio, na escuta corporal, na sensibilização
pelos movimentos, pela música e por todo o cenário que possa compor o
ambiente desta prática, pelo afeto que transborda, pela pulsação da roda, o fluxo
de energia, enfim, pela magia que acontece.
Bernhard Wosien (2000) primeiro a reconheceu sagrada e meditativa ao
observar e dançar as danças dos povos, e depois sempre a concebeu desta
forma, como parece perpetuar até os dias de hoje. Em suas palavras:

A dança, como toda obra de arte, surge a partir da meditação.


(...) o objeto da meditação deve ser movimentado na alma
através de exercícios contínuos – o caminho da meditação leva
de dentro para fora. (...) O objeto da meditação é, para o
bailarino, o seu corpo. (WOSIEN, 2000 p.28)

Aquele que medita dançando encontra um adensamento de seu


ser em um tempo não mais mensurável, no qual a força mágica
da roda se manifesta. (WOSIEN, 2000 p.29).

Podemos dizer que as DCS têm uma característica “mântrica”, se assim


podemos chamar. Os mantras, ou cantos simples, de acordo com Ashley-
Farrand (1999), são frases curtas repletas de energia e sentido especialmente
destinadas a gerar ondas poderosas de som que promovem a cura, a visão
58

intuitiva, a criatividade e o crescimento espiritual. Assim também acontece com


as coreografias nas DCS que são cíclicas e geralmente carregadas de
simbologias. Temos o momento de aprendizagem da dança com suas
simbologias, o momento de atenção aos passos, o que nos possibilita a entrada
em um certo estado meditativo, e depois, quando a dança já está introjetada em
nós, podemos desfrutar mais, tanto do que ela possa proporcionar a cada um à
sua maneira, como do estado de transe em que vamos ficando conforme vamos
repetindo essa dança “mântrica”. Como nos diz Carlos Solano29:

Para mim, o ponto alto da Dança é o momento em que, libertos


da coreografia, conseguimos alcançar um estado de ‘abandono
ou entrega’, que possibilita a abertura de nosso íntimo e
proporciona a exaltação da nossa condição humana” (SOLANO,
In: RAMOS, 1998 - Introdução).30

Uma outra questão aqui pertinente, que aparece em um excerto anterior


da F3, é necessidade de pertencimento a um grupo que proporcionasse um
“acesso” à espiritualidade. Como a própria focalizadora diz, “Na dança circular
eu pude fazer contato com esse meu ser divino e me conhecer como divina”.
Nesta perspectiva, talvez fosse mais interessante pensar um pertencer-se a si
mesmo, como nos diz Clarice Lispector (1999) sobre esse pertencer que se
refere muito mais à atitude de tornar presente a nossa percepção a nós
mesmos... uma atitude que intensifica a vida justamente, do que a um pertencer
a algo ou a alguém. Pertencer como atitude mesma do viver: eis aí a dimensão
sagrada que queremos aqui anunciar.
Ainda neste viés do sagrado, há mais alguns aspectos que também nos
convocam. Veja nos excertos abaixo.

(...) foi muito impactante mesmo para mim, a minha primeira


vivência de dar as mãos na roda (...) Aquilo me pegou assim me
arrebatou! (...) Eu não me via com esse corpo, mas era o meu
vulto, era eu que estava lá dançando, como se tivesse em outro
tempo. (F1, fragmentos de entrevista realizada em 22/08/2020)

29
Carlos Solano foi o primeiro focalizador de DCS no Brasil (RAMOS, 1998).
30
Esta citação encontra-se na introdução do livro Danças Circulares Sagradas: uma proposta de
educação e cura, 1998, organizado por Renata Carvalho Lima Ramos, que não tem paginação.
59

... o primeiro encontro com a dança circular (...) eu acho que foi
uma sensação de êxtase, o êxtase do pulsar coletivo, de estar
juntos de mãos dadas, a novidade, porque, até então, eu
trabalhava com as danças de palco, nas danças para fora, e
aquela coisa do círculo, de estar juntos no mesmo passo, eu
acho que me remeteu alguma coisa de DNA ancestral, (...) de
que eu já tinha feito aquilo muitas vezes, que era aquilo que eu
gostava de fazer.. (F2, fragmento de entrevista realizada em
26/08/2020)

Então, meu primeiro sentimento foi de conexão com a


ancestralidade, dessa ideia de estar em roda, em grupo. (...)
para mim, aquilo foi um resgate de memória, eu já tinha feito
aquilo em alguma época de uma vida, estava no meu DNA
espiritual. (F8, fragmento de entrevista realizada em 19/09/2020)

Nos relatos acima, a conexão com o outro em roda, aparece de forma


intensa e remete a um reencontro com algo já conhecido, uma ancestralidade,
que nos faz pensar na questão: “quem dança em mim, quando danço?” (ALVES,
2006). E esse “quem” remete àquilo que Deleuze (2006) diria se tratar do “sujeito
larvar”, ou seja, aquele sujeito que ao invés de ser tomado como pré-existente,
apresenta-se como um ser mutante, inconstante, que só se presentifica na
experiência, no espaço-tempo dinâmico onde estamos enredados nela.
Couto (2008), em sua tese de doutorado, também relata seu encontro
arrebatador com as DCS como algo que parecia já conhecer e que reacende sua
paixão pela dança diante de tamanha intensidade.

Quando me deparei com as “Danças Circulares Sagradas”, foi


um momento arrebatador. Um despertar para o novo, para o
desconhecido, e para aquilo que parecia já conhecer de alguma
forma, mas que fez renascer minha paixão pela dança. Percorrer
seus mistérios revelou-me um reencontro comigo mesma.
(COUTO, 2008 p. 5)

Pensar as DCS nos remete, de fato, a uma certa ancestralidade, de uma


prática que praticamente se confunde com o surgimento da humanidade. Veja
que interessante a reflexão do filósofo francês Garaudy (1980), no que se refere
à dança nesta perspectiva: “...antes de ser arte e espetáculo, a dança era
celebração da existência, expressão da relação do homem com a natureza, a
sociedade e seus deuses.” (Apud Ostetto, 2006 p. 69)
De acordo com Ostetto (2006):
60

O filósofo chama a atenção para a raiz da palavra dança, nas


línguas europeias. Danza, dance, tanz são derivadas de tan:
tensão, em sânscrito. A dança era a vida vivida, intensa, inteira,
compartilhada, na tensão entre os mistérios humano e divino.
(Ostetto, 2006 p. 69)

No pensamento de Garaudy (1980), a dança se apresenta no fazer


coletivo de celebração e conexão com a natureza, a sociedade e os deuses, na
intensidade vivida entre céu e terra. E as DCS, ainda que não exatamente da
mesma forma ou com os mesmos propósitos, resgatam a dança de roda no
encontro do coletivo, trazendo traços dessa dança ancestral, dos povos, mas
também uma tonalidade de um mundo contemporâneo que se mistura, se
reconhece ou se estranha frente a essa ancestralidade.
Uma outra questão que nos instigou nos relatos da F4, ainda nessa
direção da espiritualidade, foi o fato das DCS serem apontadas como um
caminho para se tornar uma pessoa eticamente melhor. Veja no excerto abaixo:

A DC é um caminho para mim, é um caminho como muitas


outras práticas são, para me tornar um ser um pouco melhor.
Isso é espiritualidade para mim, trazer os seus valores, poder
colocá-los em ação, e para mim a DC trouxe isso muito
fortemente porque abriu os meus horizontes, eu pude olhar para
todas as culturas, perceber a beleza da diversidade, perceber o
sim e o não de cada cultura, (...), respeitar também as diferenças
religiosas, e os ritmos, estar ombro a ombro com a diversidade
também na roda. Isso para mim foi incrível (...) Ela traz uma
espiritualidade atual, universal, em que o corpo é o que nos une
a todos e esse desejo de encontrar algo transpessoal ou algo
que faça sentido em nossas vidas para que a gente possa agir
de uma outra maneira. (F4, fragmento de entrevista realizada em
31/08/2020)

Essa fala aponta para uma dimensão ascética, do cuidado de si, já


discutido aqui anteriormente, trazido por Foucault, como movimento essencial
de elaboração de nossos modos de ser e agir no mundo, através de práticas em
que se estabelece uma relação ética do sujeito com o meio e com o outro, uma
vez que ele não se perde de si mesmo. Nesta perspectiva, como diz Stone (2018)
sobre o pensamento foucaultiano, trata-se de “um sujeito da ação, ético, que se
constrói, se transforma, como ‘exercícios espirituais’ que levam à elaboração de
modos de vida, de existência, através da arte de viver (p.188).
61

Sendo assim, em todos esses relatos que selecionamos até aqui nesta
seção sobre espiritualidade como prática de si, chama a atenção como cada
focalizador(a), à sua maneira, sentiu reverberar em si essa potência das DCS,
como um gatilho disparador a um processo de transformação em suas vidas.
Assim como nos relata Bernhard Wosien (2000) sobre como seu encontro com
as danças dos povos em roda o transformaram - “...me pareceu como se
brilhasse em mim uma luz completamente nova.” (p. 106) “Deixei-me arrebatar
pela vibração das danças populares, contagiado pelo fogo maravilhoso da
comunidade, que realmente dava para sentir fisicamente, em carne e osso.” (p.
108).

B) O sagrado e os rituais nas Danças Circulares Sagradas


Uma outra questão que apareceu ao longo da pesquisa, e que também
permeia esse universo do sagrado, foi a dinâmica ritual31 que se relaciona
amplamente com a prática das DCS.
Nas DCS, existem alguns rituais que, apesar de não serem obrigatórios,
são muito recorrentes e que podem ser diversos, dependendo dos aspectos
culturais / religiosos, mas principalmente da intenção do(a) focalizador(a) que
conduzirá a roda. Essa dinâmica ritual, na realidade, se evidencia em vários
momentos dessa prática, antes, durante e depois e pode ser entendida como um
ponto de partida para a sensibilização e intensificação da experiência.
Sendo assim, a fim de destacar alguns aspectos que ficaram muito
presentes para nós por meio dos relatos, elencaremos: a composição do centro
da roda, as conexões estabelecidas pelo(a) focalizador(a) na composição da

31
De acordo com Schechner (2012, apud COSTA, 2013), o conceito de ritual é abordado como
uma manifestação que pode ser humana ou não, podendo ser mais simples ou mais elaborado.
E se tratando de manifestações humanas, pode-se entender o ritual como secular (associados
aos substratos ditos profanos, ou seja, relacionados à vida cotidiana) ou sagrado (associado a
uma esfera de religiosidade), mas, dependendo de como são executados e encarados pelo
sujeito que o realiza, um hábito cotidiano pode se confundir a um ritual. É interessante perceber
que durante um ritual, segundo Turner (1974), nem o tempo, o espaço e nem os sujeitos
envolvidos são os mesmos da vida cotidiana. Costa (2013), remetendo-se ao pensamento de
Turner, justifica-o dizendo que, diante de uma situação como essa, “pessoas, tempo e espaço
estão sob influência de uma atmosfera simbólica que os ressignifica e transforma seus atributos
e status.” (TURNER, 1974, apud COSTA, 2013. p. 52)
62

egrégora32, limpeza física e energética do local, práticas realizadas na roda como


fechar os olhos, aquietar, fazer uma respiração profunda, dentre outras.
Na instalação dessas experiências rituais, em meio às quais mergulhamos
na prática das DSC, a composição do espaço sagrado sempre se reatualiza na
dinâmica relacional em curso. E as escolhas dos(as) focalizadores(as), quanto
aos rituais a serem levados para suas dinâmicas de DCS, refletem questões a
respeito daquilo que o/a constitui e que constitui sua relação com seu espaço
sagrado, ao mesmo tempo que refletem também suas preocupações em relação
ao cuidado e respeito com o outro e com o espaço sagrado do outro. Há aí um
cruzamento de forças entre o “si” e o outro que vão tomando forma na
materialização da demanda intensiva sentida pelos(as) focalizadores(as) para
aquela determinada roda.
E para deixarmos a discussão referente a cada um destes elementos
ritualísticos mais situada, dividimos esta seção em algumas subseções, de
acordo com os excertos selecionados abaixo.

B1) Compondo o espaço sagrado


Nesta subseção, vamos tratar e dialogar sobre a composição do espaço
onde será realizada a roda de DCS. Segundo Ramos (1998) esta preparação do
ambiente antes da roda, que pode ser interno ou externo, é um ritual bastante
presente nas DCS, e se refere tanto a aspectos físicos (velas, limpeza física do
local, aparelhagem de som...) ou etéreos (limpeza energética e abertura dos
campos sutis através de aromas, incensos...).
O centro da roda também caberia aqui, mas como tivemos um olhar
bastante intenso pelos entrevistados a este respeito, dedicaremos uma
subseção só para ele.

...lá no Parque da Água Branca, eu podendo, eu chego mais


cedo. Aí eu acendo um incenso, peço as bênçãos para o
guardião daquele espaço (...). Eu não via obstáculos, levava a

32
De acordo com o Dicionário Online de Português, a palavra egrégora significa: Força espiritual
que resulta da soma das energias mentais, físicas e emocionais proveniente de duas ou mais
pessoas reunidas em grupo. A etimologia da palavra egrégora vem do grego, egrêgorein, que
significa velar, vigiar. Disponível em:
https://www.dicio.com.br/egregora/#:~:text=Significado%20de%20Egr%C3%A9gora,grego%20
egr%C3%AAgorein%3B%20velar%2C%20vigiar. Acesso em: 25/04/2022.
63

vassoura, varria... (F1, fragmento de entrevista realizada em


22/08/2020)
... eu peço permissão, peço ajuda para os arcanjos, os anjos, os
anjos da dança, peço licença para começar a dançar. Para mim,
fazer um workshop é uma coisa sagrada, é um ofício, é um
sacerdócio, eu estou ali abrindo, eu estou oficiando um trabalho.
(F2, fragmento de entrevista realizada em 26/08/2020)
.. O ritual começa com eu divulgar. (...) Quando eu começo já a
pensar no tema aqui em casa, eu já formo esta egrégora forte e
(...) ela vai tomando um corpo, ela vai criando e aí eu vou
conseguindo me conectar com aquelas danças que vem ao
encontro com a mensagem que eu quero passar. (...) Então, eu
faço isso, quando acendo a vela, me ajoelho perante o centro da
roda e rapidamente eu faço uma oração para que tudo corra bem
em harmonia para o bem de todos. Comecei a mudar a maneira
da roda, para trazer mais centramento para aquele espaço que
é muito sagrado para mim. (...) Eu já preparo a sala, já ponho
todos esses elementos que eu quero que captem a presença da
pessoa. (F3, fragmento de entrevista realizada em 28/08/2020)

... tem uma forma que eu acabei juntando de outras ferramentas,


que é leitura de aura também, meditação das rosas. Então, eu
comecei a trazer um fio dourado que se liga pelos braços, pelas
mãos. (F6, fragmento de entrevista realizada em 09/09/2020)

Então, a gente tem um cuidado de fazer uma limpeza energética


no lugar antes. Por isso que eu gosto de varrer às vezes, de
montar o centro eu, e já ir intencionando. (F7, fragmento de
entrevista realizada em 19/09/2020)

A partir dos relatos, percebemos que a preparação do espaço onde a roda


irá acontecer se apresenta como uma prática muito especial para os
entrevistados. Limpar o espaço física e energeticamente nos parece ser uma
prática comum, seja varrendo, acendendo um incenso, visualizando boas
vibrações ou fazendo orações. Não importa a forma, mas o fato é que a
necessidade de criação de uma atmosfera que permita uma conexão dos(as)
focalizadores(as) e do espaço com algo etéreo, a qual vai além de seus domínios
físicos, e que isso reverbere na prática das DCS, é muito presente em suas falas.
Esse é um movimento de sacralização do espaço, independentemente da
maneira como essa conexão se processa ou se os/as focalizadores(as) estão
ligados ou não a alguma religião, uma vez que, como nos lembra Eliade (2010
p.28), mesmo para o homem não-religioso há “locais privilegiados,
64

qualitativamente diferentes dos outros”, e que, portanto, se configuram enquanto


sagrados.

B2) Compondo o centro da roda


Nesta subseção vamos trazer e dialogar um pouco sobre este ritual tão
presente nas rodas de DCS: o centro. O centro,33 que geralmente se coloca no
meio da roda, é um elemento que, na grande maioria das rodas, faz-se presente.
Além de ser uma referência de um ponto central para o círculo que se move ao
seu redor, simboliza a força do universo, o ponto que se liga a todos. Muitas
vezes coloca-se uma toalhinha ou panos coloridos e sobre estes pode-se colocar
os objetos que quiser: flores, velas, símbolos, pedras, fotos etc., à escolha de
quem o cria (RAMOS, 1998).

Trabalhando na natureza, eu gosto muito de centros que eu cato


lá folhas, galhos, flores, qualquer coisa da natureza. (...) Não
importa muito o que vou colocar, é mais lá dentro mesmo,
pedindo que eu seja capaz de fazer o bem. (...) (F1, fragmento
de entrevista realizada em 22/08/2020)

Eu adoro centro, adoro centro bonito com os 4 elementos,


preciso do centro, acho o centro fundamental, (...) sem dúvida o
centro nas danças circulares é uma referência, é um altar. (F2,
fragmento de entrevista realizada em 26/08/2020)
Quando eu vou, eu já penso o que eu quero colocar no centro,
(...) eu levo aromaterapia, levo a fala, a escuta e a beleza do
lugar para aquele centro e levo a conexão divina em mim. (F3,
fragmento de entrevista realizada em 28/08/2020)
Trabalhava muito o centro com elas (referindo-se às crianças
com as quais trabalhava em um projeto social), pedia às vezes
desenhos, para elas trazerem algo importante para colocar no
centro. (F5, fragmento de entrevista realizada em 02/09/2020)
... ali no centro ela (referindo-se à focalizadora) colocou um foco,
os nossos sonhos, os nossos desejos, os nossos projetos.
(referindo-se à primeira roda de DCS que participou) (F8,
fragmento de entrevista realizada em 19/09/2020)

33
Segundo Maria-Gabriele Wosien (2004 – apud COUTO, 2008, p. 56) “O centro do círculo
significa força da criação divina, alcançando uma fluência poderosa, que dinamiza o momento
presente do aqui e agora; é onde se origina o movimento e a vida.”
65

Nestes excertos acima, saltam aos olhos alguns aspectos no que se refere
à composição do centro da roda: há aqueles que demarcam o centro com formas
físicas tais como, elementos da natureza, aromas, desenhos, escritas ou “algo
importante”; e há aqueles que o demarcam como intenção do focalizador(a) na
criação do centro enquanto um “altar”, por meio do qual, de certa forma, se
estabelece uma conexão com o divino, assim como discutimos na subseção
anterior sobre a composição do espaço sagrado. No entanto, parece que os
elementos físicos estão intimamente imbricados com as intencionalidades e que,
portanto, se materializam enquanto propósitos a serem vivenciados naquela
roda em torno daquele centro. A exemplo disso, a F1 nos relata que o que
importa mesmo, neste momento da construção do centro, é a intenção de pedir
para que “seja capaz de fazer o bem”; a F3 fala que dentre outras coisas, leva
para o centro “a conexão divina em mim”; o F8 nos relata que no centro foram
colocados “os nossos sonhos, os nossos desejos, os nossos projetos.”
É um momento de composição de um “ente” que dialoga de cara com o/a
focalizador(a) e com todos que participam da roda, ainda que de maneiras
diferentes, e que faz parte dessa construção sensorial do espaço sagrado para
os que vivenciam aquela determinada roda. Eliade (2010 p.27) nos diz que “a
revelação de um espaço sagrado permite que se obtenha um ‘ponto fixo’,
possibilitando, portanto, a orientação na homogeneidade caótica, a ‘fundação do
mundo’, o viver real.”
É interessante que, nas DCS, esse “ponto fixo” se apresenta em
movimento, de forma itinerante, ou seja, ele se apresenta onde a roda está. E
ele nunca é o mesmo, assim como também acontece com a roda, pois sempre
se configuram no fluxo de cada experiência que se compõe pelo(a)
focalizador(a), os participantes e o ambiente naquele momento.
Além dessa reflexão umbilical no que se refere à relação do(a)
focalizador(a) com o centro da roda, Renata Ramos, quando declara: “O centro
do círculo é um ponto, é um ponto que simboliza o olho do furacão, simboliza a
eternidade. É aquele ponto de onde muitas sementes podem sair”34, nos faz

34
Essa discussão acerca da palavra “centro” é desenvolvida no vídeo intitulado: Fale sobre o
centro do círculo. Publicado pelo canal Consciência Próspera. Coluna: Danças Circulares.
Apresentado por Renata Ramos. [S. L.} Direção e Edição por Samuel Souza de Paula. 1 vídeo
(3:19). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GHvugq-iUa8 Acesso em
05/04/2021.
66

pensar o centro também como uma força concêntrica potente de energia e ao


mesmo tempo disseminadora de toda essa potência por entre os que formam o
círculo em volta do centro.

B3) Compondo práticas na roda


Nesta subseção, dialogaremos sobre algumas atitudes realizadas no
momento em que a roda já está formada ou se formando. Tais atitudes aparecem
ao longo das entrevistas e dizem respeito à alguns cuidados, como: dar as mãos,
fechar os olhos, fazer uma respiração profunda, ficar em silêncio, fazer um
aquecimento, trazer intenções sobre as danças, sentar-se em círculo meditando
ou ouvindo uma música antes de começar a roda, entre outras, como podemos
ver a seguir.

... preciso de silêncio antes de começar, preciso me concentrar,


rezar sempre e aquecer o corpo. (F2, fragmento de entrevista
realizada em 26/08/2020)
Ali eu coloco uma intenção forte na hora que eu faço minha aula.
(...) Então, aquele momento de sentar em volta do círculo e
esperar, dar tempo de a aula iniciar já é uma preparação interna
para cada indivíduo que está ali. É intuitivamente, mas esse
centramento é fundamental. (...) Eu sempre falo da intenção do
dia, o que eu quero, por que eu pensei aquilo. A pessoa percebe
que está num lugar que tem um cuidado com ela. Então, isso faz
muita diferença, eu sinto. (F3, fragmento de entrevista realizada
em 28/08/2020)

...você chegar, respirar, fechar os olhos juntos, aquietar


pensamentos, emoções dar as mãos, ombro a ombro, sentir o
círculo. (...) E o final é muito importante para que as pessoas
fechem e levem isso para casa desse jeito e não sair assim já
falando, não. (F4, fragmento de entrevista realizada em
31/08/2020)
Acho fundamental, esse ritual de respirar, acalmar, aquietar,
harmonizar, acho muito importante. Faço isso em todas as
minhas rodas. (...) isso para mim é muito importante, que vem
do momento da harmonização, de pausa, de respirar junto, de
perceber onde nós estamos. (F5, fragmento de entrevista
realizada em 02/09/2020)

... até hoje abro com uma dança ou duas bem simples, todo
mundo consegue dançar porque é muito simples. Então, é o
tempo de eu estar chegando mais no meu corpo, me centrando,
seja lá o que eu vivi no dia. Ela serve como uma entrada na
egrégora da Dança Circular para sair de outro lugar. Sair do
lugar cotidiano, sair do que eu estava fazendo. E todos que vem,
67

de onde vem, do que estavam vivendo. É como atravessar o


lugar. Então, a gente começa dançando. Aí a música quando
termina, eu abro o círculo para fechar os olhos, sentir os pés no
chão, fazer um contato, sentir um contato com a terra, fazer essa
parte vertical, num contato com o céu, a parte horizontal das
mãos. (F6, fragmento de entrevista realizada em 09/09/2020

Nos relatos acima, evidenciam-se alguns cuidados que contribuem na


abertura das sensibilidades, em meio à roda. É no seio dessas aberturas que a
prática ritual se instala, como uma delicadeza, isto é, como uma atitude afetiva
que intensifica a roda. Esses cuidados são realizados um pouco antes da roda
começar, ou durante e até mesmo no final da prática das DCS como, por
exemplo, dar as mãos, fechar os olhos, respirar fundo, aquietar-se ou até mesmo
fazer uma dança bem simples, como sugere o F6 “é o tempo de estar chegando
mais no meu corpo”. E como já dissemos anteriormente, esses cuidados ajudam
na intensificação da experiência da roda.
Dialogando com Deleuze (2006), essa intensificação da experiência nos
remete ao que ele chama de “centro de envolvimento”, que poderíamos
considerar, nas DCS, como uma dinâmica espaço-temporal em que ocorre uma
simbiose entre os participantes e o meio, que se afetam mutuamente, de forma
que vai acontecendo uma calibragem energética do grupo.
Enquanto dançante e focalizadora, é possível sentir a diferença que essas
práticas iniciais fazem para a sensibilização e harmonização grupal. Quando
focalizo, eu também costumo realizar esses rituais antes de iniciar a roda e
percebo que faz toda a diferença em termos de unidade de grupo e de fluição.
Os participantes ficam muito mais presentes, mais entregues, menos ansiosos.
Não é uma receita a ser seguida, mas algo que se experimenta e que acaba
sendo levado a diante pelos(as) focalizadores(as), cada um com suas
peculiaridades, por sentirem que surte um efeito positivo para a roda.
Eis o sagrado pulsando à sua maneira, com suas nuances, essa
“espiritualidade imanente”, mas que também aparece, em alguns relatos, em
conexão com algo que transcende seus corpos, ao que recorrem em busca do
campo energético desejado para a realização da prática. Por exemplo, o F6 nos
traz um relato “sentir os pés no chão, fazer um contato, sentir um contato com a
terra, fazer essa parte vertical, num contato com o céu, a parte horizontal das
68

mãos.” que apresenta bem esse contexto de conexão espiritual que se


experiencia no próprio corpo, no contato com a terra, com o céu e com o outro.
É interessante porque, ainda que os rituais sejam passados em cursos e
vivências, eles não são ensinados como um protocolo a ser seguido, mas os
focalizadores(as) acabam incorporando algumas práticas, além de criarem suas
próprias maneiras de sacralizar aquele momento em que está conduzindo uma
roda. Desta forma, mesmo que haja esses rituais incorporados, é possível
perceber nos relatos que há uma pluralidade no modo como os/as
focalizadores(as) criam e organizam a experiência ritual com as DCS.
E essa pluralidade tem tudo a ver com a maneira como cada um se
constitui e, portanto, com os processos de form(ação) de cada um, a partir de
um sujeito que não se assujeita a moldar-se em fôrmas pré-definidas, mas que,
ao contrário, se permite vivenciar o fluxo dos acontecimentos e respeitar sua
forma de ser e agir no mundo.
69

7.4.2 Form(ação) como arte de viver

Ocupar-se consigo não é, pois, uma


simples preparação momentânea para a
vida; é uma forma de vida.
Michel Foucault

Nesta seção, buscamos observar, na trajetória de cada focalizador(a),


como foram acontecendo seus processos de form(ação) com as DCS,
lembrando que entendemos form(ação) aqui como aquela dimensão form(ativa)
que sempre se diferencia e escapa, em constante processo de modificação, que
vaza e intensifica a constituição de nossa subjetividade, que lapida modos de
ser e agir dos sujeitos, evidenciando suas singularidades e implicando suas vidas
no exercício form(ativo).
Vejamos o excerto abaixo.

(...) as danças eram um bálsamo e, quando aquilo transbordou


dentro de mim, que eu podia estar dividindo aquilo (...) Então,
era assim intenso, de uma intensidade que na época eu não via
obstáculos, levava a vassoura, varria. (...) (referindo-se à sua
formação em DCS) (...) eram treinamentos intensivos, a gente
ficava uma semana convivendo, geralmente eram mosteiros.
(F1, fragmento de entrevista realizada em 22/08/2020)

Percebemos neste excerto que a focalizadora F1 implica-se de tal forma


com as DCS que isso transborda em uma necessidade de compartilhar essa
prática com o outro de um modo meio que espontâneo e imediato, e essa
necessidade desemboca em uma maneira de trazer um serviço para que o outro
se beneficie dele. Veja que, de forma espontânea, a pulsão de vida pode nos
encaminhar a uma profissão, de maneira que pessoal e profissional se
entrelaçam a partir do momento em que nos envolvemos de tal forma com algo
que temos vontade de oferecer para o mundo. Parece que o “chamado” para
realizar, para levar as danças para a roda e “acender o fogo” é uma continuidade
do que reverbera na dançante/focalizadora a partir de seu encontro com as DCS.
Em um outro relato, um aspecto interessante, que também aparece, é o
fato de a focalização acontecer de forma espontânea na vida do(a)
focalizador(a), como nos relata o focalizador F6.
70

(...) Na época que comecei a focalizar, não existia isso da


formação, isso veio depois. Na verdade, a gente começava a dar
dança quando a gente sentia que estava... no meu caso foi essa
coisa espontânea que me chamava, foi meio natural. (...) Eu era
muito desse lugar do que você sente dentro para fazer esse
trabalho. (...) A gente não vai fechar nunca esse lugar da
formação. (F6, fragmento de entrevista realizada em
09/09/2020)

Na época em que os focalizadores F1 e F6 conhecem as Danças


Circulares Sagradas, bem como alguns outros, ainda não existiam cursos de
formação por focalizadores(as) brasileiros(as). Os cursos aconteciam através de
focalizadores(as) estrangeiros(as) que eram convidados a virem para o Brasil.
Desta maneira, observamos que os cursos de formação vão acontecendo
também neste fluxo natural do desejo daquele(a) que se sente tão afetado(a)
pelas DCS que tem ânsia por vivenciar e produzir mais saberes. Trata-se aqui
de uma formação fora da fôrma, aquela que se faz de modo espontâneo e que
os convoca, os instiga, mobilizando suas histórias de vida para reforçar as
relações de sentido que traçam com as DCS.
De acordo com o relato da focalizadora F4 abaixo, esses cursos de
form(ação) no Brasil vão surgindo não só por uma necessidade dos(as)
dançantes que queriam se tornar focalizadores(as), mas também para firmar
alguns valores, de forma que não descaracterizasse o movimento das DCS.

A gente acaba chamando alguns cursos de formação,


aprofundamento, capacitação, num momento em que as DC
começaram a se expandir de uma tal maneira que estava se
perdendo um pouco o que seria o foco ou essência e as pessoas
começaram a sentir a necessidade de aprender passos,
aprender mais sobre a cultura de cada povo. (...) Então, assim
surgiu o primeiro grupo de formação que foi em 2003. (F4,
fragmento de entrevista realizada em 31/08/2020)

Ela ainda complementa dizendo sobre a importância dos cursos de


formação para mostrar que as DCS não são apenas a dança pela dança, mas
que há um significado maior em torno das danças.
71

Por isso que os cursos de formação são muito importantes,


porque trazem as pessoas que ficam totalmente encantadas
para perceber que a DC não é só a dança pela dança é muito
mais, pode ir muito mais embaixo, pode trazer esse
desenvolvimento pelos seus símbolos, pelo corpo, pela alma,
pelos sentimentos, pelo conhecimento. Ela é totalmente
abrangente, multifacetada: pode deixar as pessoas querem
somente o dançar pelo dançar, podem ficar nesse ponto, não
tem problema nenhum; tem aquelas outras que vão mais fundo,
melhor ainda. Então, é um movimento muito generoso que não
fecha, que só abre possibilidades dependendo da procura de
cada um. Acho que um dos encantos da Dança Circular é esse.
(F4, fragmento de entrevista realizada em 31/08/2020)

É importante dizer que os cursos de formação em DCS não são uma


condição obrigatória para tornar-se um(a) focalizador(a), porém é uma maneira
que as pessoas encontram para fortificarem seu saber e sentirem-se mais
confiantes para focalizarem. Esses cursos não acontecem por meio de uma
instituição formalizada que valida o/a aprendiz para ser um(a) focalizador(a). Os
cursos são normalmente oferecidos por focalizadores(as) mais experientes e
renomados(as) que acabam atraindo pessoas que se interessam em tornarem-
se focalizadores(as) de DCS. Nesses cursos, não há regras a serem seguidas e
nem órgãos certificadores. Cada dançante ou focalizador(a) tem a liberdade de
escolher fazer um curso de form(ação) a partir de seus interesses e
conhecimentos sobre os formadores e suas propostas. Ainda não havendo
regras, há alguns protocolos ou rituais que acabam fazendo parte de alguns
cursos ou mesmo de várias rodas espalhadas por aí, como vimos na seção
anterior sobre os rituais nas DCS. Porém, reforço que isso não é imposto, às
vezes sugerido ou apenas experienciado. Conforme nos relata a focalizadora F4:

Uma formação para saber mais sobre DC têm muitas pessoas


que dão, mas nada formalizado na tribo da DC. E como cada
focalizador tem sua própria bagagem, seu background, cada um
dá na sua formação aquilo que vai alimentando a formação ou a
bagagem dos outros. É um construir de saberes constante. (...)
tem essa ideia de oferecer para que cada um faça várias e se
sinta na sua consciência de ter sua bagagem, porque uma
formação formal dentro do que a gente entende, ela nunca se
encaixou muito. (F4, fragmento de entrevista realizada em
31/08/2020)
72

Percebemos também essa maneira mais informal e subjetiva do processo


de form(ação), por exemplo, na fala da focalizadora F3 abaixo.

(...) Assim que eu soube das formações, eu já fui buscar fazer


aquela que eu queria fazer, que reverberou em mim na época,
(...) aí mergulhei neste universo (...), porque ela é muito potente
e quando você acessa não tem fim. E foi assim, e aí eu comecei
a buscar, buscar e fazer acontecer. (...) Cada curso que eu
comprava, que eu participava, era um investimento pessoal, eu
saía diferente, era uma terapia breve. (...) Eu atravesso um portal
a cada curso bem escolhido, (...) eu entro mesmo com
profundidade e saio diferente daquilo. E aí eu comecei a
vislumbrar o que eu queria e comecei a realizar o que eu queria
em busca disso. (F3, fragmento de entrevista realizada em
28/08/2020)

Um outro dado que chamou a atenção, no que se refere a essa form(ação)


em uma direção mais existencial, foi a questão do aprender ensinando. Essa
parece ser uma das sensações que as focalizadoras F2 e F3 demonstram em
seus relatos abaixo sobre suas atuações enquanto focalizadoras de DCS.

(...) eu fiz uma formação bem extensa com muitos focalizadores


estrangeiros (...) e, na realidade, a gente aprende muito dando...
Eu aprendi muito da parte teórica de escrever a dança, como
conduzir uma roda, tudo isso aprende ensinando. (F2, fragmento
de entrevista realizada em 26/08/2020)
Então, aí foi quando eu pude exercer o ofício de focalizadora,
aprender, porque eu falava ‘eu estou aqui, mas eu estou
aprendendo também.’ (F3, fragmento de entrevista realizada em
28/08/2020)

Neste sentido, aprende-se deixando-se levar pelas interações que vamos


desenvolvendo ao longo da vida, neste caso, ao longo da roda, é um ato de
ensino/aprendizagem mútuo, que depende da interação, da entrega e que
escapa ao controle do(a) focalizador(a) de que ele(a) ensina e o outro aprende.
Acreditamos que mais do que ensinar, o grande papel do(a) focalizador(a) seja
colocar o “fogo” na roda e conquistar os participantes para juntos sustentarem
esse “fogo”. É interessante porque nas DCS estamos todos na roda em um
mesmo plano, focalizador(a) e dançantes, e cada roda é um acontecimento de
acordo com o lugar, seus participantes e o/a focalizador(a). E é essa disposição
mais equânime entre todos na roda que nos possibilita essa troca mútua, de
73

apoio coletivo que nos fortalece enquanto focalizadores(as) e que ensina muito
a todos que fazem parte da roda.
Foucault traz um relato que pode auxiliar nessa reflexão sobre a questão
do ensino/aprendizagem, da relação professor/aluno. Em março de 1975,
Foucault é entrevistado em um programa tradicional do rádio francês,
Radioscopie, e, dentre outras questões, é indagado sobre sua docência e sobre
a aprendizagem.

Eu sou um mínimo de professor. Você sabe... eu ofereço cursos


no Collège de France muito particulares e que tem por função,
justamente, nada ensinar. O que me prende nessa instituição é
a impressão de nada ensinar, quer dizer, de exercer diante de
um auditório uma relação de poder (FOUCAULT, 1975, 0’13” a
0’37”; https://doi.org/10.24933/horizontes.v37i0.791, p.2).

Ao dizer que em seus cursos sua função era “justamente, nada ensinar”,
ele traz essa questão do ensino/aprendizagem como uma relação de poder que
se estabelece, geralmente, entre mestre/aprendiz, e que busca problematizar. E
ele ainda completa:

A primeira coisa que se deve aprender ao estudar qualquer coisa


é que o saber é ligado profundamente ao prazer. Há,
certamente, uma maneira de erotizar o saber, de torná-lo
intensamente agradável. Parece que o professor nem sequer é
capaz de revelar isso. O professor parece ter por função
demonstrar como o saber é desagradável, triste, cinzento. Creio
que certamente há razões para tanto, mas é fundamental saber
o porquê de nossa sociedade mostrar que o saber é triste, basta
ver o número de pessoas que são excluídas do saber... Eu creio
que há um prazer intrínseco ao saber (FOUCAULT, 1975, 2’38”
a 4’20”; https://doi.org/10.24933/horizontes.v37i0.791, p.6).

Este sentido que Foucault traz do saber estar ligado ao prazer, vai muito
na direção da etimologia do verbo saber. Vejamos abaixo:

O radical (a raiz) de saber é o verbo latino sapere, que


inicialmente tinha vários significados, como conhecer por meio
do sabor, do paladar, do tato (...). Do latim sapere originou-se
sapore (= a gosto) e que gerou, em português, sabor”
(ZIBERMAN, 2009, p.222).
74

Traçando, então, esta relação entre saber e sabor, podemos entender por
que o saber é algo que só se conhece, de fato, experimentando. Ora, só se sabe
o sabor de algo saboreando, não é mesmo?! Então, essa relação intrínseca que
se estabelece entre saber e prazer é legítima, uma vez que é da ordem da
experiência, de maneira que, a partir do momento em que saboreio um novo
conhecimento e aquilo me agrada, o saber acontece espontaneamente porque
faz sentido.
Assim, é nessa direção do saber experienciado que as práticas, com as
quais o sujeito se implica, vão aparecer como fontes nutridoras desses
movimentos pulsantes que são essenciais para aguçar a percepção no percurso
dos processos de subjetivação e form(ativos), já que esses processos estão
imbricados um com o outro.
E quando alinhamos a formação com os processos de subjetivação,
adentramos em um domínio de composição da existência, no qual somos
arrebatados e escolhemos habitar, mesmo que provisoriamente. Neste ponto,
nos rendemos aos acontecimentos e vivenciamos a entrega despretensiosa de
resultados, e, assim, podemos experienciar nossos processos de subjetivação
de forma mais autêntica, que, de acordo com Gros, para Foucault seria “uma
maneira de se relacionar consigo mesmo para se construir, para se elaborar”
(GROS, 2008, p.128).
Desta maneira, o processo de formação em DCS se encaminha nesta
perspectiva da busca pelo conhecimento a partir da experimentação, ou seja, é
uma formação que se busca a partir de uma prática anteriormente vivenciada,
com a qual o sujeito se implica e que, posteriormente, almeja desenvolver-se
mais e ampliar aquela experiência. De forma que, a escolha por este ou aquele
curso de formação se dá pela necessidade de cada indivíduo em relação à
proposta de cada curso, já que cada curso formação tem sua característica
própria de acordo com a ótica do focalizador(a) que o está conduzindo.
E é em função desse encaminhamento formativo, o qual demanda o fazer
do sujeito, que a palavra form(ação), enfatizando a “ação”, aqui parece fazer
mais sentido, uma vez que, como já foi dito anteriormente, ocorre como um
processo mais complexo de ação do indivíduo em relação à sua própria
constituição de ser. Não é apenas aquela que se pressupõe adquirida na
academia, mas, ao avesso, aquela que soma saberes constituídos nos
75

movimentos form(ativos) que lapidam modos de ser e agir dos sujeitos,


implicando suas vidas no exercício form(ativo), em seus processos de
subjetivação, lembrando que esses processos estão imbricados um com o outro.
76

7.4.3 Corpo, expressão e linguagem na roda das DCS

... pois o ouvido, o dançarino o tem


nos dedos dos pés!

Friedrich Nietzsche

A partir daqui, interessa-nos mergulhar na linguagem dos movimentos


corporais que se organiza em meio à roda de DCS. Para tanto, buscamos
respaldo teórico nos estudos labanianos.35 Tal mergulho, se faz necessário, para
afirmar o protagonismo do corpo nas relações que se avizinham na roda,
convidando-nos à dança. E dentre o amplo espectro dos estudos labanianos, o
que mais vai nos interessar aqui são aqueles que focam na dimensão dos
relacionamentos corporais e na observação dos três diferentes níveis de
projeção da expressividade: a relação de si sobre si mesmo, a relação com o
espaço e com os outros (FERNANDES,36 2006 – apud ALVES, 2020, p. 4).
Assim, atentos a este nível de análise, mais preocupado com a dinâmica
das relações constituídas em meio à experiência com as DCS, interessa-nos
observar, nas falas dos(as) focalizadores(as), aspectos que se referem ao corpo
que se expressa através da dança, junto aos outros, em um determinado lugar.
Abrindo aqui um parêntese, antes de seguir adiante, é interessante
perceber que, ao buscar pelo estudo dos movimentos corporais em Laban, nos
deparamos, mais uma vez, com a palavra “Forma,”37 que tanto aparece nesta

35De acordo com Scialom (2017), Rudolf Laban (1879-1958) foi um pesquisador-artista europeu
que produziu inúmeros estudos teórico-práticos sobre o movimento humano, dentre os quais
destacamos aqui os estudos da expressividade humana. É considerado um dos grandes teóricos
da dança do século XX, cabendo ressaltar que era autodidata e que grande parte de suas teorias
nasce do exercício de sua observação. Essa constatação é importante, pois o perfil teórico de
Laban difrata das teorias puramente academicistas que vigoravam acerca do movimento humano
até então.
36
Ciane Fernandez é uma interlocutora brasileira de Laban, a qual faz uma leitura dos estudos da
expressividade que também considera o diálogo com Bartanieff, um outro estudioso do movimento.
Segundo Fernandes (2001) hoje foram nomeadas quatro categorias metodológicas do sistema
Laban: corpo, expressividade, forma e espaço.
37
Segundo Fernandes (2001), “a categoria Forma (com quem nos movemos) refere-se a
mudanças no volume do corpo em movimento, em relação a si mesmo ou a outros corpos. Este
relacionamento, criando formas em constante movimento, pode ser diferenciado em três tipos –
Forma Fluida, Forma Direcional e Forma Tridimensional (FERNANDES, 2001, p. 10). Sendo
assim, “a categoria Forma, também denominada de Modos de Mudança de Forma (Modes of
Shape Change), inclui: 1. Forma Fluida (Shape Flow); 2. Forma Direcional: Linear (“Falada”) ou
Arcada (Directional Movement: Spoke-Like or Arc-Like); 3. Forma Tridimensional: Esculpindo
(Shaping Movement)” (ibidem, p. 14). 1. “A Forma Fluida implica no relacionamento do corpo
consigo mesmo, entre suas partes; movendo-se a partir da respiração, voz, órgãos e líquidos
corporais” (ibdem, p. 15); 2. A Forma Direcional “desenvolve-se quando a criança passa a
77

presente pesquisa. E o modo como essa palavra afirma-se, enquanto categoria


de estudos da expressividade humana, entra em consonância com aquela ideia
que temos defendido deste o início, a qual busca demarcar uma distinção
fundamental com a noção de “fôrma”, entendida como molde, que não só
delimita, mas também controla e padroniza os rumos da “formação”.
Assim, ao tomar os estudos labanianos, nestas alturas da pesquisa,
queremos reafirmar o compromisso de se refletir acerca dos movimentos
formativos nas DCS, sem se deixar render pelas “fôrmas”. Para tanto, seguindo
as pistas deixadas por Laban, não se deve falar de “Forma” - enquanto categoria
que se distingue da “Fôrma” - sem corpo, ou melhor, sem afirmar a centralidade
das relações, por intermédio das quais o corpo se expressa e dança.
No que se refere a essa categoria “Forma”, de acordo Fernandes (2006),
há três níveis de projeção da expressão corporal: o primeiro nível, a relação do
corpo consigo mesmo; o segundo nível, a relação do corpo com o espaço; e o
terceiro nível, a relação do corpo com os outros.
Antes de prosseguir na composição dessas análises, apoiados na
categoria “Forma”, cabe salientar que não interessa aqui fazer uma leitura
puramente teórica e conceitual da expressividade em Laban, até mesmo porque
os estudos de Laban não se acomodam aí, neste lugar puramente cognitivista e
estático. É preciso perceber como a expressividade se diferencia, a depender do
contexto e do universo linguístico no qual reclamamos por este referencial. Neste
sentido, considerando as DCS, o que mais vai interessar é perceber como a
categoria “Forma” foi aparecendo nos relatos, ou melhor, como a relação dos(as)
focalizadores(as) com essa prática foi sendo expressa durante as entrevistas
realizadas, considerando os três níveis relacionais que esses agentes
estabelecem com a prática: um nível mais focado na relação de si consigo
mesmo, outro mais focado na relação de si com o espaço e, por fim, um nível
mais focado na relação com os outros em meio à roda.

interessar-se por seu meio e a esticar o volume de seu corpo em direção a objetos ou pessoas.
Seu corpo começa a se relacionar com seu meio ambiente, buscando ou puxando em movimento
linear reto ou curvilíneo” (ibdem, p.20); 3. “A Forma Esculpindo consiste neste relacionamento
do corpo com seu meio ambiente, de forma tridimensional, escultural em movimento, como
quando duas formas constantemente acomodam-se uma à outra” Nesta última categoria, busca-
se interação com objetos ou pessoas. (ibidem, p. 22).
78

Desta forma, veremos, a seguir, os relatos dos(as) focalizadores(as)


inseridos em cada um desses três níveis.

A) A relação consigo mesmo: em fluxo

O primeiro nível, nomeado de Forma Fluída38, aborda a relação de si


sobre si mesmo, que passa pela escuta e percepção de si, fazendo parte do
domínio das sensações, da intensidade, a partir de práticas que buscam ajustar
uma consciência primeira no campo perceptivo, a qual ressoa no âmbito do
sensível e, assim, pede passagem ao movimento e à expressão.
Um primeiro aspecto, que nos chama a atenção nos excertos abaixo, é a
percepção do/a focalizador(a) sobre si mesmo/a, que vai acontecendo a partir
da escuta corporal permeada pelas sensações e pela intensidade
proporcionadas pela prática das DCS.

... o que me ajuda muito como focalizadora de Danças Circulares


é todo esse trabalho de corpo, de toque comigo mesma, de
descontrair, de exercício de reconhecer os limites... Isso ajuda
muito, é mais um caminho de cura no corpo, de se autocurar39,
se ajudar. (F1, fragmento de entrevista realizada em 22/08/2020)

Aquecer o corpo, (...) para mim é fundamental, esquentar! É


como se estivesse numa orquestra afinando os corpos, afinar
um pouco antes de começar, eu tenho que me aquecer junto
com as pessoas, aquecer a respiração, eu tenho que deixar o
instrumento no ponto para começar a dançar. (...) porque
quando a gente faz isso é uma sintonização, numa sintonia mais
fina e vai todo mundo liberando, chegando num patamar junto.
(F2, fragmento de entrevista realizada em 26/08/2020)

38
Segundo Fernandes, “a forma fluída implica no relacionamento do corpo consigo mesmo, entre
suas partes; movendo-se a partir da respiração, voz, órgãos e líquidos corporais” (2006, p. 161-
apud ALVES, 2020, p. 4).
39
Deepak Chopra é um médico indiano radicado nos Estados Unidos. É formado em medicina
pela Universidade de Nova Deli. É também escritor e professor de ayurveda, espiritualidade e
medicina corpo–mente. Em seu livro “Conexão Saúde”, ele nos traz um conceito sobre cura sob
um olhar mais holístico, entendendo que somos uma conexão corpo-mente e que a mente é
responsável tanto pela doença quanto pela saúde do indivíduo. Assim ele nos diz: “A rotina do
inconsciente pode ser alterada. Pessoas que passaram a vida infelizes podem se tornar felizes
pela simples percepção de que a fonte da mudança está dentro delas. A responsabilidade pela
doença e pela cura é nossa. O inconsciente pode ser remodelado com sugestão, repetição e,
acima de tudo, atenção. É a atenção que reativa os poderes latentes da mente.” (CHOPRA,
1991, p. 151). Neste livro, ele também nos traz a seguinte definição de saúde, segundo a OMS
(Organização Mundial de Saúde): (...) “saúde é mais do que a ausência de doença ou
enfermidade, é o estado de perfeito bem-estar físico, mental e social”, ao qual ele ainda
acrescenta o bem-estar espiritual. (CHOPRA, 1991, p. 15).
79

... sinto a alegria, uma explosão, é algo dentro de mim, é um


contentamento, é um sentimento de gratidão imenso (...) por
estar ali, por essa oportunidade e por ter conhecido a dança,
porque é minha cura e a cura que eu levo para o mundo, é a
minha medicina e a medicina que eu ofereço. (F3, fragmento de
entrevista realizada em 28/08/2020)

Como dissemos na introdução40 desta pesquisa, a percepção corporal é


um acontecimento potente para a expressão da nossa corporeidade. Assim,
quando a F1 relata a importância do toque consigo mesma e de reconhecimento
dos seus limites, a F2 menciona a necessidade que sente de aquecer o seu
corpo, de aquecer a sua respiração, bem como do grupo antes da roda, e a F3
fala da sensação de alegria na roda de DCS, é extremamente potente para
ajudar na compreensão de uma percepção que só se alcança na ação, em
movimento, uma vez que aciona o campo das sensações, das intensidades e da
introspecção. E é esse movimento perceptivo que reclama por um tempo
diferenciado, singular para cada indivíduo, que ancora a nossa presença e que
nos conecta com nossa consciência mais primordial.
É nesse processo de ação perceptiva do indivíduo, numa perspectiva
mais holística do ser, entendendo que somos uma conexão corpo-mente
(CHOPPRA, 1991) e que a mente é responsável tanto pela doença quanto pela
saúde do indivíduo, que possibilitamos um movimento de autocura, uma vez que,
a observação atenta de nós mesmos pode ser a pista inicial para nos cuidarmos
melhor e, desta forma, dar ao corpo o que ele necessita, prevenindo que adoeça
ou até mesmo trazendo a cura. Choppra (1991, p. 151) afirma que “É a atenção
que reativa os poderes latentes da mente.”
Nesta direção de um corpo-mente presente, em que nos permitirmos a
uma escuta corporal através do fluxo do movimento e ao mesmo tempo baixando
o controle mental, temos alguns relatos que trazem o caráter meditativo das
DCS, uma meditação em movimento, como se refere Bernhard Wosien à prática
das DCS.

... meditação em movimento, é título de Bernhard Wosien,


meditação em cruz, quando você faz o eixo vertical terra e céu,
e o eixo horizontal com todos, o coração é o ponto do meio. (...)
E é isso que a DC é, por isso ela se tornou um novo movimento,
porque ela não é somente dança de roda, danças da
40
Vide pp. 4 e 5 deste trabalho.
80

comunidade, tradicionais, populares, mas ela também tem um


quê de movimento humano (...). (F4, fragmento de entrevista
realizada em 31/08/2020

Eu vi que ao longo dos anos eu fui entendendo mais a linguagem


das Danças Circulares, a linguagem mântrica. A Dança Circular
quanto mais simples, (...) mais poderosa. Mais simples, mas sem
perder o sabor. (F2, fragmento de entrevista realizada em
26/08/2020)

Então, a repetição da dança é muito importante. Isso cada vez


mais me faz sentido agora. Eu não me importo de dançar várias
vezes a mesma dança porque num momento está atuando
nesse corpo cognitivo, depois ele passa para o corpo mais
emocional, depois (...) vai entrando num corpo mais sutil, o corpo
espiritual mesmo. (F6, fragmento de entrevista realizada em
09/09/2020)

Estes três excertos, das focalizadoras F4, F2 e do focalizador F6


respectivamente, se complementam. O primeiro traz a característica da
meditação ativa nas DCS, que Wosien (2000) apresentou, e sobre a qual já
comentamos na seção 5 deste trabalho. É esse aspecto das DCS que nos
conecta com um nível perceptivo introspectivo, totalmente imerso na presença,
ou seja, naquilo que se passa durante o ato da meditação. No segundo, é
justamente por meio do passo mais simples, mântrico, ou seja, repetitivo e
carregado de simbolismo, que podemos nos proporcionar essa maior
interiorização, nos permitindo adentrar neste estado meditativo. E o terceiro,
revela como esse processo meditativo vai acontecendo nos nossos diversos
corpos que nos constituem: a começar pelo corpo mental que busca a
organização dos passos; o corpo emocional acionado por meio das sensações
que desencadeiam com a dança na roda; o corpo sutil que é fruto do campo
energético que se cria entre o interno (imanente) e o externo (transcendente); e
o corpo físico que ao mesmo tempo executa as ações demandadas por esses
outros corpos, mas que também se deleita e flui quando ele se vê totalmente
implicado pelo movimento em si, como uma marionete que ganha vida própria.
Assim, seguindo ainda nessa perspectiva de cura, as DCS também se
apresentam, nos relatos abaixo, por um viés terapêutico, de transformação.

Me lembro que saía de casa, muitas vezes, e que se eu não


tivesse as danças eu acho que tinha caído num buraco, era tão
pesado (...) e quando eu chegava e colocava o meu pé num
lugar que eu ia, eu não via mais nada, aquilo tudo sumia, não
81

interferia nunca, nada externo na minha vida interferiu nas


minhas vivências, é algo inexplicável até agora! (...) Fazendo
essa vivência das nossas senhoras (referindo-se a um curso de
DCS que estava fazendo no período da entrevista) eu tive um
resgate tão grande da minha infância (...) me resgatou aquilo
como se fosse uma cicatriz e de repente limpou... É uma coisa
inexplicável como a beleza da dança, como ela transporta... está
muito além dessa vida aqui... hoje. (...) Então, as danças para
mim é cura, pura cura. (F1, fragmento de entrevista realizada
em 22/08/2020)

E as Danças Circulares me levaram para esse lugar de estar


bem em mim, de estar bem na minha própria pele, no meu corpo,
no meu aqui agora, de quem eu sou. (...) Acho que 20 anos de
terapia não chegaria nisso que chegou com as Danças
Circulares... Nada contra a terapia, pelo contrário, acho ótimo,
mas é um nível de transformação pelo fato também de ter o
outro, o grupo, eu acho que é muito forte, muito poderoso,
também pela questão do grupo. (F5, fragmento de entrevista
realizada em 02/09/2020)

... a gente dança em vários corpos. A dança começa num corpo


cognitivo para aprender a dança, e a primeira vez que a gente
dança ela, às vezes, talvez ela ainda não atingiu todos os
corpos. (...) O corpo mental, (...) quando não precisa mais
organizar, ele consegue entrar mais no vazio. E depois do
campo emocional, vai entrando num corpo mais sutil, o corpo
espiritual mesmo, e aí é que está a coisa da dança, (...) é aí que
nasce nossa conversa com nosso eu superior. (F6, fragmento
de entrevista realizada em 09/09/2020)

A F1 traz mais uma vez a perspectiva de cura das DCS ao mencionar a


sua transformação em relação a aspectos emocionais ao participar das rodas. A
F5 relata que as DCS oferecem um espaço de reflexão de si que demanda pela
movência, isto é, pela experiência corporal e, neste sentido, não se contenta
apenas pelo processo catártico que se faz pela oralidade. E a fala do focalizador
F6 reforça essa característica movente da percepção corporal que, diferente da
cognitivista, não é binária e dicotômica.
Desta forma, o convite ao ingresso progressivo na percepção corporal nos
faz perceber que, embora uno, o corpo é sempre outro, ou seja, é sempre no
plural e se faz e se refaz continuamente nesta pluralidade enquanto houver vida.
Nesta perspectiva de olhares múltiplos de cada focalizador(a) na relação
de si mesmo com as DCS, é que entendemos o protagonismo de cada um em
seus os processos de subjetivação e de form(ação) a partir daquilo que os/as
afetam e que, portanto, lhes fazem sentido. Gabrielle Wosien (1997) nos diz que:
82

“A dança concede uma resposta tanto à chamada da vida, como à da morte,


afirmando o misterioso como uma das dimensões da existência” (p.16).
Desta forma, encerramos esta subseção entendendo que, no nível da
relação de si consigo mesmo, não há espaço para predicações, e isso significa
dizer que, nesse nível, só passam forças na sua inteireza mais dionisíaca.
Portanto, trata-se de um nível de relacionamento que trabalha com as sensações
e com os afetos, que nos afetam e se apresentam de maneira imediata. Neste
sentido, falar do nível da relação de si consigo mesmo é falar daquilo que é
misterioso e, por isso mesmo, atraente, enigmático.

B) A relação com o espaço: criação como ato de expressão de nós


O segundo nível, trata da relação do corpo com o espaço externo, que
advém da experiência sensorial vivenciada, onde se estabelecem relações de
sentido com a prática. Isso significa dizer que é nesse nível que acontece uma
alteração no ajuste atencional, o qual, além de se ocupar com o domínio das
sensações, passa a ocupar-se, também, com outros aspectos da linguagem,
que, segundo Laban, “ampliam o potencial criativo da expressão corporal,”
(LABAN, 1978; apud ALVES, 2020, p.6) e que se traduz na singularidade da
dança para cada indivíduo.
Nas DCS, esse nível de relação com o espaço se dá, por exemplo, quando
o/a focalizador(a) se conecta com a dimensão da musicalidade e com a dinâmica
da escolha / criação do repertório coreográfico. Falar sobre o repertório musical
e coreográfico das DCS pode abrir discussões interessantes para nos ajudar a
pensar sobre a formação dos focalizadores(as), pois é por intermédio da dança
e da música que as interações se organizam nas DCS.
Neste sentido, a coreografia e a música são elementos importantes para
pensar como as DCS foram gerando produção de conhecimento e, também,
modos de ser e existir no mundo, constituídos a partir da mobilização dessa
prática que gravita ao redor da dança e da música.
Vejamos o que a F1 diz sobre a escolha do repertório musical e
coreográfico no relato abaixo:

É um momento de muita indecisão. Quando vejo tantas músicas


e danças maravilhosas, mas depende muito do público (...). Na
praça, eu não sei quem vai lá, vão todas as idades, então, tem
83

que ser algo assim bem flexível. (...) Depende da ocasião, da


data festiva, se ela vai terminar numa introspecção ou se vai
terminar numa grande alegria. (F1, fragmento de entrevista
realizada em 22/08/2020)

Essa ideia do “depende da ocasião”, “depende do público” indica,


principalmente, uma escolha que se pauta na preocupação com o outro, ou seja,
ao se instalar o processo de seleção das danças que serão levadas para o local
a serem praticadas, há um enfoque em atentar-se à ocasião, ao lugar e às
pessoas que fazem parte deste encontro. E é esse “depende” que determinará
um repertório mais animado ou mais introspectivo.
No que se refere ao repertório musical das DCS no Brasil, podemos dizer
que, assim como é a nossa diversidade cultural, assim também acontece com
as músicas escolhidas para coreografar as DCS: não importa se é brasileira41 ou
estrangeira, se do norte, do sul, do leste ou do oeste do país, se instrumental ou
cantada, se tradicional ou contemporânea, se faz menção ou não a santos,
deuses ou entidades da religião que for, se mais introspectiva ou mais animada.
O que importa são as mensagens e a beleza que cada focalizador(a) sente e vê
na música que escolhe para criar uma coreografia. E a beleza, de que se fala
aqui, não aponta para uma dimensão romantizada de relação com a prática da
DCS, tampouco para um entretenimento pueril, mas sim para uma dimensão de
sentido que toca questões éticas, estéticas e existenciais.
Vejamos que, nos excertos abaixo, das focalizadoras F3, F4 e do
focalizador F7, essa escolha do repertório passa pela necessidade de comunicar
algo através das danças. Desta forma, o encaminhamento na construção da
escolha do repertório coreográfico acontece a partir de temas, de maneira que,
inicialmente, é escolhida uma temática que norteará a seleção das danças a
serem levadas para a roda.

... como eu escolho as coreografias é o que a dança traz como


mensagem, a mensagem para que ela veio. Mas isso é tudo

41
Cristiana Menezes, que conheceu as DCS em 1991 e desde 2006 realiza cursos de Formação
Profissional em Dança Circular em vários estados brasileiros, foi pioneira na introdução da
música popular brasileira dentro do universo coreográfico da Dança Circular, é autora de um
amplo repertório de Danças Circulares, sendo regularmente convidada para ministrar
oficinas com suas coreografias no Brasil e no exterior. - Informação disponível em:
https://www.cristianamenezes.com.br/quem-sou/ Acesso em: 10/03/2021.
84

muito intuitivo, é algo que fui construindo ao longo do tempo. (F3,


fragmento de entrevista realizada em 28/08/2020)
Na fala da F3, essa escolha acontece pela abstração do significado que
as danças trazem para a focalizadora e que vão ao encontro do que ela pretende
levar para a roda naquele momento.

Então, a minha escolha de danças vem dentro dos temas (...) e


é bem pensada e sentida. (...) Daí eu escolho danças de todos
os tipos, (...) gosto de misturar estilos. (F4, fragmento de
entrevista realizada em 31/08/2020)

No relato da F4 notamos também uma vertente no processo de escolhas


que vai na direção da mistura dos estilos de dança, de vários povos, a fim de
levar a diversidade para a roda.

Quando a gente já vai para um trabalho que existe as


coreografias prontas, que já tem um tema, aí é mais fácil porque
a gente vai pegando danças que têm a ver com aquela temática
e monta o repertório de danças mais simples (...) e danças mais
tranquilas, e uma supermúsica de finalização, para emocionar
mesmo. (F7, fragmento de entrevista realizada em 19/09/2020)

E no excerto acima, do focalizador F7, um ponto interessante é essa


busca por uma música de finalização que seja bastante impactante e que
reverbere no coletivo, ou seja, a necessidade de tocar no sensível para que todos
possam sentir-se contagiados e saiam com a sensação de bem-estar.
Todas essas narrativas acima remetem ao fato de que os caminhos, nos
quais os/as focalizadores(as) vão trilhando suas relações com a prática das
DCS, vão levando-os/as para lugares diferentes daqueles que lhes são
familiares. E o encontro com a alteridade exige por uma certa abertura, sem a
qual não assumimos uma necessária atitude de humildade para nos permitirmos
aprender de outros modos. Assim, ao vivenciar em uma roda escolhas musicais
e coreográficas com diferentes focalizadores(as), pode-se perceber uma certa
identidade e ao mesmo tempo traços de outros focalizadores(as), características
essas que são reveladas pela forma como conduzem a roda.
Na fala da F5 abaixo, a escolha do repertório se faz também fortemente
pelo sentir.
85

Eu acho assim, tem que conversar com a minha alma, qualquer


escolha minha tem que conversar com a minha alma. (F5,
fragmento de entrevista realizada em 02/09/2020)

E aqui, a alma deve ser entendida como esse espaço elíptico do “Eu”, em
que minha órbita depende da interação com outras forças e sem o qual não
(co)existo, mas apenas afirmo pessoalidades. Desta forma, estamos diante de
um processo de escolha que se inicia pelo sentir e que vai tomando forma em
uma dinâmica interativa entre o eu, o lugar e o outro que não é dada de antemão,
mas que se faz e se refaz continuamente, a cada nova dança, a cada novo
passo, a depender de onde, quando e com quem se dança.
Os relatos abaixo dos focalizadores F6 e F7 trazem a importância de
começar a roda de DCS a partir de um enfoque mais introspectivo, o que parece
ser um consenso na comunidade das DCS.

... na escolha do repertório, (...) eu sempre trabalho começando


com danças mais introspectivas... Depois vou aumentando a
carga energética do corpo, fazendo danças simples, mas com
mais energia, e vou aumentando essa energia para dar muita
carga para o corpo, porque um corpo sem carga fica muito
mental, ele não está integrado. Então, aumentando a carga de
energia nesse corpo, é uma curva mesmo, e quando está
chegando mais alto, aí começa a descer, não bruscamente, mas
fazendo uma curva de danças mais tranquilas até voltar para o
estado inicial mais introspectivo, com danças mais
introspectivas, mas aí com o corpo mais carregado de energia e
mais limpo de tensões, mais livre das couraças que a gente tem.
(F6, fragmento de entrevista realizada em 09/09/2020)
A escolha do repertório é muito importante na vivência porque a
gente começa com danças mais lentas, para a pessoa ir se
desconectando do mundo e entrando no universo que a gente
quer. A gente tem um pico de danças alegres, animadas e a
gente termina na vivência com uma coisa mais meditativa para
a gente organizar a energia de quem chega. (...) (F7, fragmento
de entrevista realizada em 19/09/2020)

Ao que parece, as danças mais lentas proporcionam um estado mais


introspectivo aos participantes e isso ajuda na composição de outra
temporalidade, menos estática e, também, menos anestesiada. É uma escolha
que precisa estar compromissada com a abertura à alteridade, sem a qual não
se assume a atitude humilde de olhar as DCS pelo olho do outro e perceber quais
86

as modulações que precisarão ser feitas ao longo da prática para reforçar as


relações de sentido dos praticantes. E isso demanda uma sensibilidade por parte
do(a) focalizador(a), que é o/a responsável em colocar “fogo” neste processo.
No entanto, os relatos abaixo das focalizadora F2 e F3 nos fazem pensar
também sobre a relação do(a) focalizador(a) com suas paixões.

... eu procuro trabalhar, trazer para as danças circulares os


passos originais das danças numa linguagem adaptada a dança
circular, mas com passos originais dos orixás, do jongo, do
maracatu. Eu busco captar essa essência do folclore, da etnia
que também sempre foi a minha paixão, a minha pesquisa. (F2,
fragmento de entrevista realizada em 26/08/2020)

Aí, (...) o repertório passou a ser a partir de mim, do que eu


queria oferecer e do que estava ecoando em mim. Então eu me
conectava com algumas danças que faziam sentido e, a partir
disso, eu escolhia o repertório. (F3, fragmento de entrevista
realizada em 28/08/2020)

Estas duas falas da F2 e da F3 vêm demarcar uma delicadeza essencial:


embora, enquanto focalizadoras, precisem estar sensíveis à alteridade, há uma
linha tênue que não renuncia suas próprias escolhas e tendências, ou seja,
também uma escolha a partir daquilo que reverbera nas próprias focalizadoras
naquele momento, que reflete seu estado e sua interação com o mundo. Não é
só uma coisa nem outra, mas um entrelaçamento entre os desejos do si e do
outro, numa composição ética e estética de existência. E é nesse entrelaçamento
entre o meu desejo e o desejo do outro que se torna possível acender e sustentar
o “fogo” na roda.
Isso se aproxima da ideia do cuidado de si, enquanto imperativo que pulsa
e é motor de partida de todas as nossas realizações, no caso, de todas as ações
que as convocam para as DCS e que, portanto, devem vir primeiro. É curioso
porque a noção tradicional de educação parece afirmar o movimento contrário,
buscando ofuscar o que é da ordem do cuidado, para valorizar o que da ordem
do conhecimento devido, que nos capacita para lidar com um sistema de
produção específico. Se buscarmos em Nietzsche um referencial para compor
com essa ideia, observaremos que essa preferência do conhecimento, em
detrimento do cuidado caracteriza o homem moderno, que é apaixonado pelo
87

conhecimento. No prólogo do livro “Genealogia da Moral”, Nietzsche traz o


seguinte pensamento, ao se referir ao homem moderno:
“Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós
mesmos somos desconhecidos - e não sem motivo. Nunca nos
procuramos: como poderia acontecer que um dia nos
encontrássemos? Quanto ao mais da vida, as chamadas
'vivências', qual de nós pode levá-las a sério? Ou ter tempo para
elas? Nas experiências presentes, receio, estamos sempre
ausentes: nelas não temos o nosso coração - para elas não
temos ouvidos. [...]. Pois continuamos necessariamente
estranhos a nós mesmos, não nos compreendemos, temos que
nos mal-entender, a nós se aplicará para sempre a frase: 'cada
qual é o mais distante de si mesmo - para nós mesmos somos
'homens do desconhecimento'...” (Nietzsche, 1998, pp. 7-8).

A prática das DCS, no entanto, parece trazer uma inflexão ao “homem do


conhecimento”, ao direcionar a ele o convite à dança e o convite à introspecção,
em meio a qual vai se desenhando uma outra relação com nosso próprio corpo,
com o espaço que ocupamos e com os outros na roda.
E na mesma direção parece apontar Foucault, quando, da leitura do
princípio do cuidado de si mesmo, feita a partir da filosofia antiga, nos convida
também, enquanto sujeitos modernos, a pensar que antes de cuidar dos outros,
precisamos aprender a cuidar de nós mesmos, como um imperativo necessário,
não para se fechar em si mesmo, mas, ao contrário, em função de uma atitude
mais ética e estética que ousa se relacionar com o mundo sem perder si mesmo
de vista.
De certa forma, a escolha do repertório de dança a ser levado para a roda,
ainda que passe pelo crivo do/a focalizador(a), também está atrelada ao local,
ao público participante e, até mesmo, à data em que ocorre, se é ou não uma
data festiva, ou seja, essa escolha estabelece-se na relação do(a) focalizador(a)
consigo mesmo(a), com o espaço e com o outro.
É interessante porque, até mesmo no que se refere ao ritual anterior à
roda, o/a focalizador(a) se vê implicado pela sua identidade, pelo ambiente que
o cerca e pelo outro, sendo inspirado(a) a criar maneiras de se conectar com o
local, como podemos ver nos excertos abaixo.

No parque, há muitos anos, eu faço um ritual para iniciar e


finalizar, um ritual indígena, porque ali foi uma comunidade
indígena, eu sou muito ligada à tradição indígena. (...) Eu
88

trabalho muito com essa coisa da nossa brasilidade, (...) tive um


trabalho muito intenso, no início, de estar visitando os lugares
das nossas tradições no sul de Minas, as folias de reis (...). Eu
pesquisava música que nem uma louca, eu me alimentava
daquilo. (F1, fragmento de entrevista realizada em 22/08/2020)

... eu começo dançando, (...) com uma dança muito simples para
as pessoas já chegarem no corpo, para já ter uma carga
energética, uma energia mais forte no corpo das pessoas para
enraizar um pouco. (...) todo mundo consegue dançar porque é
muito simples. (...) Ela serve como uma entrada na egrégora da
Dança Circular para sair de outro lugar. Sair do lugar cotidiano,
sair do que eu estava fazendo. (...) Aí a música quando termina,
eu abro o círculo para fechar os olhos, sentir os pés no chão,
(...), sentir um contato com a terra, (...) num contato com o céu.
(F6, fragmento de entrevista realizada em 09/09/2020)

Os relatos acima mostram que, ainda que seja um ritual, o que cada um
propõe antes da roda de DCS, torna-se próprio, singular. Veja que, na fala da
F1, o seu ritual se dá a partir de uma apropriação de um ritual indígena que já
não é mais o mesmo, mesmo que se busque o propósito, pois já foi modificado
só pelo fato de não ser realizado pelos próprios índios. O que não quer dizer que
não seja um ritual e que não tenha sua força de expressão. Com certeza tem,
porque o que importa é a conexão e a in(tensão) que a focalizadora põe naquele
momento. Já o F6 prefere ter como ritual inicial uma dança simples para que o
corpo das pessoas receba uma carga energética que as faça estarem mais
presentes em seus próprios corpos, para, a partir daí, iniciarem de fato a prática
das DCS.
No relato da F3 a seguir, é abordado o aspecto da criação enquanto seu
potencial comunicacional na arte de focalizar:

A minha potência é a focalização primeiro, é a maneira como eu


focalizo, eu acho. (...) É o que eu trago como mensagem. (...)
são os temas. (...)Tem dia que eu acordo extremamente
conectada e inspirada e aí eu quero comunicar. Às vezes eu
escrevo textos, (...) e aí a dança é a minha comunicação, aquilo
que eu quero falar para o mundo. (F3, fragmento de entrevista
realizada em 28/08/2020)

Nesse excerto, a F3 nos mostra que esta forma comunicacional que


estabelece na sua maneira de focalizar na roda de DCS fala de algo que
89

reverbera para além da nossa pele, traçando um ecoar de dentro para fora, por
intermédio da escrita, por meio da dança...
E ainda nesta direção da arte de focalizar, a focalizadora F4 traz a sua
facilidade em focalizar por conta do elemento da musicalidade que a permeia em
seu processo constitutivo e, portanto, form(ativo).

... a musicalidade para mim é muito latente, eu tenho um bom


ouvido, por conta dos meus pais. (...) O meu ritmo me ajudou
muito nesse ponto, porque são ritmos do mundo inteiro (...) e
isso é uma coisa que acho que abriu horizontes. (...) (F4,
fragmento de entrevista realizada em 31/08/2020)

No que se refere à escolha e/ou criação do repertório coreográfico das


DCS no Brasil, há também uma grande diversidade: incorporamos as danças
tradicionais ou danças dos povos, como são conhecidas, e as contemporâneas
criadas pelo próprio Bernhard Wosien, bem como, pelos(as) focalizadores(as)
coreógrafos(as) de várias partes do mundo até os dias de hoje. Vão desde as
mais simples às mais elaboradas. Desta forma, a escolha das coreografias que
serão levadas para esta ou aquela roda, depende da intenção do(a)
focalizador(a) que as escolhe, do local e grupo com o qual vai trabalhar, com a
temática que pretende desenvolver e procura-se manter os passos e simbologias
que cada dança traz, acontecendo algumas vezes do(a) focalizador(a) optar por
fazer algumas adaptações para que todos que estão na roda possam participar.
O importante é que o(a) focalizador(a) tenha a sensibilidade de fazer escolhas
que possibilitem momentos de ritmos variados, de mais tranquilos a mais
animados, sem perder a conexão com a sua verdade.
Nos relatos abaixo, pode-se perceber, mais uma vez, o jogo que se
estabelece entre a necessidade do/a focalizador(a) e a necessidade de quem vai
receber a dança na criação do repertório coreográfico.

Eu deixo vir a coreografia, os movimentos vêm, eu ouço a


música e os movimentos vêm geralmente. (...) Acho que está
muito ligado aos momentos da minha vida, não sei explicar
direito, não sei de onde é que vinha (...). Eu trabalho com coisas
muito simples, (...) tudo muito espontâneo, nada muito
elaborado, (...) para também não perder tanto tempo de ficar
explicando como é que é. (...) São coisas muito simples e que
tocam. (...) (F1, fragmento de entrevista realizada em
22/08/2020)
90

Realmente, é a música que me escolhe, não sou eu que escolho


ela não. (...) Se não cair lá no fundo, não vai nascer a coreografia
melhor, entendeu? (...) Para mim é difícil dançar uma dança que
eu não afine ou com a música ou com a coreografia, meu corpo
se recusa. (F2, fragmento de entrevista realizada em
26/08/2020)
A coreografia minha vem pela música, é a música que se
conecta comigo aí os passos saem, porque aquela música me
toca profundamente, então vem por aí. (F3, fragmento de
entrevista realizada em 28/08/2020)

Eu não crio tanto porque eu adoro usar a voz dos outros ou a


dança dos outros. Sabe aquela coisa do grupo falar ahow sua
voz é minha voz, ahow essa dança que você fez, nossa
compartilha ela, é isso. (...) Fiz algumas danças esparsas,
porque eu gosto da música, ou estou num momento que quero
falar sobre isso, (...) quero dançar isso para que as pessoas
dancem alguma coisa que estou na cabeça. Então, vou em
busca de uma música para poder fazer e daí a coreografia acaba
vindo. (F4, fragmento de entrevista realizada em 31/08/2020)

O meu processo de criação, normalmente nasce com a música.


A música bate e eu falo “é essa”. (...) Então, (...) eu vou sentindo
e vou criando. (...) Sempre tem um sentido. (F5, fragmento de
entrevista realizada em 02/09/2020)
Eu sou uma pessoa que cria muito pouco, (...), mas quando eu
crio uma dança, é porque chegou no meu corpo algo muito
especial, uma música que tocou demais, algum encontro ou uma
necessidade de elaboração minha também. (...) Agora, eu não
consigo criar dança pela cabeça. Tem música que eu adoro e
tento criar uma dança, mas não chega. Então, as danças que eu
criei vieram sem ser da cabeça, vieram do sentir. (F6, fragmento
de entrevista realizada em 09/09/2020)
... quando a gente vai criar um repertório, (...) a gente procura:
primeiro, músicas de muita qualidade; e segundo músicas que
tenham uma mensagem muito bonita, seja ela falando de paz,
de cura, de amor, do respeito à natureza, ou até de uma
simplicidade. (F7, fragmento de entrevista realizada em
19/09/2020)
(...) Primeiro a música me conecta, eu tenho que sentir a música,
tenho que receber o que ela disse para mim e aí eu crio uma
paisagem na minha mente, e a partir daí a dança vem. Às vezes
vem fácil, eu já sei que passo colocar, já sei que expressão
colocar naquela dança, e a maioria das danças são assim. (F8,
fragmento de entrevista realizada em 19/09/2020)

É notório, nos excertos acima, a forte relação dos(as) focalizadores(as)


com a música, no sentido de que a música toca o campo das sensações em que
91

o/a focalizador(a) se vê implicado(a) e que a coreografia flui. Para complementar


essa ideia, lembramos aqui do músico Emile Jacques Dalcroze, quando afirmava
que não ouvimos a música só com os ouvidos, ela ressoa no corpo inteiro, no
cérebro e no coração.42 Partindo dessa ideia, a dança não é só um produto da
música, mas uma extensão da mesma, ou seja, é uma forma de dar uma
projeção, na linguagem dos movimentos, daquilo que se origina na interação
tecida entre corpo e música.
Nos chama a atenção quando o focalizador F6 diz que não consegue
“criar dança pela cabeça”. Quando tangenciamos esse domínio das sensações
e vivenciamos uma escuta de corpo inteiro, deixamos de estabelecer uma
relação puramente cognitivista com a prática para perceber essa relação dentro
de outro domínio perceptivo, mais atento ao corpo e as relações que aí emanam.
E para que a criação de coreografias da DCS aconteça, é preciso ingressarmos
também neste nível mais sensível, sem o qual não acionamos nossa capacidade
criativa.
Além da relação com a música, quando falamos de criação coreográfica,
também precisamos considerar outros fatores que nos conectam com o espaço,
tais como convites que os/as focalizadores(as) recebem para levar as DCS a
algum evento específico, a elaboração de workshops com temáticas específicas,
adaptações de danças dos povos para as DCS etc. Isso porque, a depender da
demanda, o/a focalizador(a) dará um determinado enfoque ao seu processo de
criação, como podemos perceber nos excertos abaixo.

Não é sempre assim esse amor à primeira vista, tem outras que
eu vou ouvindo, ouvindo, eu vou sentindo devagarinho como ela
é rica, como ela pode ser trabalhada. Por exemplo,
normalmente, tem muito a ver com convites (...) eu tinha que
criar repertório. (...) Cada dança é um processo, tem umas que
são bem trabalhadas, tem umas que eu amo e até hoje não
encontrei a coreografia, (...) tem umas que já vem praticamente
prontas, parecem que baixam download. (F2, fragmento de
entrevista realizada em 26/08/2020)

42
Na esteira desta ideia, cabe ressaltar aqui uma citação do próprio Dalcroze, observada por
Fonterrada (2008), sobre essa atitude de escuta com o corpo inteiro: escutar é “fazer do
organismo inteiro algo que poderia chamar-se de um ouvido interior” (DALCROZE, 1965, p.10
apud FONTERRADA, 2008 p. 131)
92

Outras não, a gente projeta o que são os passos do folclore,


porque ele já tem sua história e a gente quer passar essa história
para as pessoas, que a gente vai ensinar a um grupo que a gente
vai criar uma atmosfera. Porque para mim, uma vivência de DC
não é só a gente realizar passos, é a gente criar essa atmosfera
e fazer com que as pessoas se transportem para esse mundo
que a gente imagina. (F8, fragmento de entrevista realizada em
19/09/2020)

Desta forma, a criação parte de algo que pulsa em cada um e que,


portanto, não é pura imitação de algo que se encontra no âmbito da cultura. A
irredutibilidade deste algo pulsante chama a atenção para essa ideia do cuidado
que os instiga às DCS, projetando-os sempre na relação com o espaço e com
os outros, mas sem renunciar a si.
A focalizadora F2 ainda complementa:

Então, na realidade as danças são entidades vivas. É muito


interessante porque eu gosto de quando eu vou dar aulas livres,
eu levo o repertório, mas eu sei que a dança vai vir na hora, eu
estou dançando e a dança vai me dizendo, vai pedindo. (...)Tu
sempre estás lidando com o novo sempre. (F2, fragmento de
entrevista realizada em 26/08/2020)

Aqui, a F2 ajuda a pensar na função entrópica que deve ser atribuída a


toda e qualquer coreografia que é coreografada nas DCS. A depender do que
acontece, os passos se transformam, se diferenciam, seguindo os rumos daquilo
que os fazem passar na dinâmica da roda. É justamente aqui que nasce a paixão
pelo ato coreográfico: da pulsão dionisíaca de querer ser sempre outra coisa, a
cada passo.
E não tem como falar dessa pulsão sem se remeter ao processo de
subjetivação de cada um. Cada focalizador(a) será arrebatado(a) por músicas,
danças e tantos outros elementos que façam parte das DCS a depender de sua
trajetória de vida, de como vai se constituindo. Então, quando a F1, referindo-se
ao seu processo de criação, diz “Acho que está muito ligado aos momentos da
minha vida”, ela nos mostra justamente que as coisas em nós não acontecem de
forma separada, mas tudo que faz parte do nosso processo constitutivo,
enquanto indivíduo, compõe nossa forma de ser e agir no mundo.
Além disso, a F1 também traz a característica que considera importante
do passo simples e que toca. Aqui ela coloca o fato de facilitar a dança na
93

possibilidade de ser mais acessível e fácil de ensinar a todos, como algo mais
democrático.
Já na fala da F4, temos também um elemento que é muito semeado,
desde sua origem, nesse movimento expansivo das DCS, que é a atitude de
humildade e abertura para acolher o que vem dos outros, como músicas e
danças que, de alguma forma, nos instigam a serem levadas para as rodas.
O focalizador F8, ao falar que também se apoia nos passos do folclore
para criar coreografias para as DCS, também nos traz um elemento interessante
desta prática ao falar sobre “atmosfera”, demarcando a importância de se buscar
pela instalação da experiência ritual, sem a qual os passos coreografados, em
si, não têm sentido. E a criação desta “atmosfera” diz respeito ao ambiente de
composição da prática e se refere diretamente a uma questão de modulação
perceptiva, sem a qual não saímos da percepção ordinal e cotidiana e não
ingressamos progressivamente em uma percepção outra, só sintonizada durante
a prática.
No excerto a seguir, temos um relato sobre a influência da música no
estado de ânimo do(a) focalizador(a), não enquanto criador(a) coreográfico(a),
mas quando se deleita na roda, enquanto um(a) dançante apenas.

Quando eu entro na coreografia a música me chama muito. Usar


cordas musicais me pegam na sensibilidade, na vibração
energética também, e aí eu viajo, eu entro em êxtase e procuro
observar (...) como que isso acontece no grupo, mas também
sem me perder individualmente e sinto a alegria, uma explosão.
(F3, fragmento de entrevista realizada em 28/08/2020)

Aqui, mais uma vez estamos diante desse elemento sensibilizador que é
a música, e, como já dissemos em uma discussão acima, a música reverbera
por todo nosso corpo, lembrando que somos corpo-mente em uma totalidade,
sem separações.
Complementando essa ideia de um corpo-mente, no relato a seguir, a F4
fala sobre o fato da importância da mente atuando inicialmente a favor do
movimento e como esse foco vai se alterando à medida em que já incorporamos
o passo e adentramos em um outro nível perceptivo, daquilo que nos afeta, que
pede passagem porque faz sentido.
94

A mente está a seu serviço, está junto com você, ela está
tentando organizar os passos (...), porque organiza o raciocínio.
Então, a mente está a seu favor, ela não pode estar
constantemente e não te deixar seguir neste fluxo da música
depois que ela te ajudou. (F4, fragmento de entrevista realizada
em 31/08/2020)

Entendemos que isso não significa dizer que a mente ora está presente,
ora não está. Ela está sempre presente uma vez que é parte do corpo! O que se
altera é o estado de vigília, de controle em que ela se encontra. Em um estado
meditativo, como é o caso quando entregamo-nos à prática das Danças
Circulares, a mente baixa as rédeas de controle e dá espaço para que o fluxo do
movimento aconteça.
Seguindo nesta linha de baixar o controle da mente, a fala abaixo do F6
também nos traz alguns elementos interessantes.

Nem preciso falar muito. Eu acredito numa Dança Circular hoje


que a gente não precisa falar tanta coisa, (...) porque a música e
a dança vão abrir um lugar para cada um e a gente pode por
alguma intenção em algum momento, que essa dança trabalha
isso e tal, e deixa, mas sem trazer muito das próprias emoções,
da sua história, sem falar tanta coisa. Eu sinto que é um espaço
de elaboração pessoal de cada um. (...) (F6, fragmento de
entrevista realizada em 09/09/2020)

Esse relato ajuda a situar este segundo nível relacional, eu com o espaço,
na medida em que me conecto com a música e com a dança, e é a partir da
relação que cada um estabelece com esses elementos que nos despojamos do
lugar comum, dissolvemos aquilo que nos é habitual, os nós que criamos e que
impedem acesso ao sensível, para, assim, adentrar em uma nova experiência.
E continuando ainda nesta direção, o relato abaixo traz uma reflexão
interessante acerca das danças que trazem um simbolismo nos movimentos e
gestualidades.

Então, têm algumas diferenças entre danças mais criativas e


danças que seguem uma música. Isso eu aprendi muito com a
Friedel Kloke que ela tem uns movimentos e uns gestuais, ela
acessa mundos sutis e símbolos através do movimento do
corpo. (...) As coisas têm que coexistir (...), tem que existir isso
e aquilo. E quando a gente vai para este lado do simbolismo e o
95

corpo entende o simbólico (...) é uma experiência profunda


mesmo. (F4, fragmento de entrevista realizada em 31/08/2020)

As danças mais carregadas de simbolismos, as quais a F4 define como


sendo mais criativas, somando-se à música, podem acessar uma energia mais
sutil em nós, uma vez que fazem a dança ser sempre outra coisa além daquilo
que nossa cognição consegue definir. Diferentemente, as “danças que seguem
uma música”, como ela se refere, apesar de não trazerem essa carga simbólica,
não deixam de ter seu caráter sensibilizador e, também, de serem bem-vindas
nas rodas de DCS. O ecletismo é algo encantador nas DCS! É neste imperativo
da coexistência que abrimos mão de nossas pessoalidades, para nos
colocarmos, durante a dança, em um espaço virtual de integração, entre
elementos heterogêneos que se apoiam e se ensinam mutuamente.
Em um texto de Deborah Dubner43 (2019), intitulado “Dança do Apoio”,
ela aborda sobre o simbolismo implicado na maneira como damos as mãos na
roda de DCS, a palma da mão direita voltada para cima e da mão esquerda
voltada para baixo.

Entramos em uma roda de Dança Circular com a palma da mão


direita voltada para cima e a palma da mão esquerda voltada
para baixo. Simbolicamente, buscamos tanto na roda da dança
como na roda da vida o equilíbrio entre dar e receber.
Vivenciamos as polaridades entre céu e terra, integrando-as
dentro de nós. Exercitamos apoiar e sermos apoiados. Um dos
ensinamentos mais belos que aprendemos nos círculos
dançantes é sobre apoio. (DUBNER, D., 2019, p.93)

C) A relação com o outro: focalizando e dançando

O terceiro nível se ocupa com a relação do corpo com os outros, que tem
a ver com afetividade, confiança e cuidado no contato com o outro. Esta dinâmica
relacional favorece a sensibilização, o estado de afetar e ser afetado, ou seja,
tem a ver com os domínios da ética, uma vez que se processa por meio do
diálogo e da interação, em um processo de intensificação gradual sempre em

43
Deborah Dubner é focalizadora de Danças Circulares, psicóloga, escritora, dentre outros. O
texto “Dança do Apoio” encontra-se no livro Dançando a Vida de 2019. Este texto foi escrito para
uma dança coreografada por Sandra Cabral, sua parceira em alguns trabalhos como nas suítes
Dançando a Vida I e II.
96

devir, dependendo da maneira como as partes se relacionam (LABAN, 1978;


FERNANDES, 2006; ALVES, 2020).
Conversando com os/as focalizadores(as) sobre como se sentem na
relação com o outro quando estão dançando enquanto participantes da roda e/ou
quando estão focalizando, bem como a sua percepção sobre como as pessoas
se implicam com as DCS, foram diversos os aspectos que chamaram a atenção.
Desta forma, entendemos ser interessante dividirmos esta seção em três
subseções: C1) “O/A focalizador(a) e seus referenciais”, que traz discussões
sobre a relação entre mestre/aprendiz; C2) “O/A focalizador(a) e a força/peso”,
que traz discussões sobre as relações da dança feita em roda com o postulado
da gravidade; e C3) “A arte de focalizar”, que traz informações acerca das
práticas por intermédio das quais um(a) focalizador(a) vai lapidando/elaborando
seu modo singular de focalização.

C1) O/A focalizador(a) e seus referenciais


Essa primeira subseção, que traz discussões sobre a relação entre
mestre/aprendiz, diz respeito sobre a fala afetuosa que aproxima os/as
focalizadores(as) daqueles com os quais aprenderam e se inspiraram, bem
como com aqueles que se inspiraram neles também e que, talvez, alguns tenham
possivelmente também se tornado focalizadores(as).
No que se refere à maneira de focalizar, vejamos o que alguns/algumas
focalizadores(as) relatam:

Alguém que me inspirou muito (...) foi a Mariane Inselmini. (...)


Ela foi a minha grande inspiração daquele amor com que ela
transmitia tudo (...). Eu mesma fui criando uma forma de fazer
aquilo porque é tão grandioso de fazer aquilo da forma mais
simples, mais amorosa. (...) Então, o meu trabalho é alegria,
porque a alegria faz milagres, a descontração do deixar livre
para errar, não ficar corrigindo, não tem importância isso. (...) E
alegria, alegria cura! (F1, fragmento de entrevista realizada em
22/08/2020)

No excerto acima, percebemos a importância dada à relação amorosa


que, necessariamente, deve se constituir nas questões concernentes às práticas
de cuidado de si. É por intermédio da relação amorosa que dissolvemos as
couraças e que nos abrimos para a sensibilização, e, portanto, é a partir daí que
97

cresce e se fortalece uma formação que não cabe na fôrma. Foucault teve uma
percepção deste fato na antiguidade clássica, ao pontuar a relação amorosa que
se constituía, naquela ocasião, entre mestre/aprendiz, a qual, longe de
apresentar-se em estado de perfeição, trazia a baila o princípio do cuidado de si
mesmo.
Diferentemente no ocidente, especialmente na modernidade - herdeira da
moralidade cristã que dicotomiza nossas relações com a vida, impedindo-nos ou
dificultando um processo verdadeiramente ascético - o princípio do cuidado de
si mesmo foi sendo recoberto pelo princípio do conhece-te a ti mesmo. No
entanto, é importante dizer que o fato de buscar conhecer a si mesmo não é
ruim, muito pelo contrário, mas esse processo deve acontecer não de forma
meramente intelectiva e sim a partir da necessidade latente de cada indivíduo, o
que demanda a experiência, o cuidado de si e, portanto, o acesso às sensações.
No relato abaixo, percebemos como a constituição do(a) focalizador(a) e
sua maneira de focalizar segue por esse caminho do vivenciar primeiro para
decidir o que e como fazer depois.

Foi tudo intuitivo, essa curva, (referindo-se à dinâmica de iniciar


com danças mais introspectivas, depois danças mais animadas
e finalizando com danças mais introspectivas novamente) era o
jeito que eu comecei a trabalhar, e continuo trabalhando assim,
com essa curva, mas entendendo que (...) a gente se carrega de
energia, a gente precisa descarregar, e a gente não é ensinado
a fazer isso, a gente é ensinado a conter isso. (F6, fragmento de
entrevista realizada em 09/09/2020)

Quando o F6 fala “Foi tudo intuitivo...” observamos aqui um indício


interessante de que não há uma única forma de traçar a composição da
experiência ritual, haja vista que essas formas são sempre no plural e estão
sempre em aberto a depender dos interesses envolvidos em meio à roda. Nessa
maneira que o F6 tem de conduzir a roda, nos chama a atenção, também, este
olhar da necessidade de “carregarmos” e “descarregarmos” energia, libertando-
se da ação de contê-la que nos é incutido, principalmente conforme vamos nos
tornando adultos.
Em ambos os relatos acima, da F1 e do F6, ainda que haja influências no
percurso formativo do(a) focalizador(a), percebemos a construção desse
movimento próprio de cada um de atuar, em que ela/ele mesma(o) vai criando a
98

sua maneira de focalizar em suas rodas. O importante é estar de acordo com


sua trajetória e, ao mesmo tempo, com a troca (que é de natureza energética)
que se faz no encontro com os outros.
Assim, a partir dessa entrega do focalizador(a) ao seu propósito a ser
realizado à sua maneira, de acordo com sua trajetória de vida, estamos diante
de infinitas formas de se oferecer esse ofício, e essa é a grande beleza! Eis que
aqui estamos mais uma vez às voltas com o princípio do cuidado de si, pois
quando nos afinamos com o princípio do cuidado, nos avizinhamos também dos
nossos propósitos existenciais.
A fala da F5, abaixo, nos resume essa ideia de uma form(ação) plural e
que se relaciona direta e inevitavelmente com nossos processos de
subjetivação.

Então assim, a Dança Circular tem muitas coisas, e cada um vai


escolher aquilo que faz sentido para si. É muito bom que a gente
pode ver a criatividade, cada um criando à sua maneira, cada
um escolhendo suas coisas. (F5, fragmento de entrevista
realizada em 02/09/2020)

Deparamo-nos, mais uma vez, com a questão da form(ação) que não


cabe na fôrma. O exercício da form(ação) não acontece de repente e apenas ao
adentrarmos o universo escolar. A form(ação) é um processo que vai
acontecendo ao longo de nossa existência, desde que nascemos. Tudo o que
nos constitui enquanto indivíduos faz parte de nossa form(ação). A formação
institucionalizada é só uma parte de todo esse processo.
Por exemplo, na fala da F2 abaixo, percebemos um jeito de focalizar que
vai na direção da construção do “clima” da roda.

Quando eu comecei a perceber o que eu posso trabalhar a partir


do meu coração, do campo energético, aí baixaram esses níveis
do autocontrole, de autoexigência e aí eu comecei a trabalhar
melhor, eu trabalho mais leve, mais fácil, eu trabalho de outra
maneira, trabalhar a partir do coração, abrir o coração. (F2,
fragmento de entrevista realizada em 26/08/2020)

No relato da F2, se evidencia um “campo energético”, o qual se forma pela


relação que se estabelece entre todos e tudo o que faz parte daquele
99

acontecimento, daquela roda. Para somar com essa ideia, buscamos pela noção
de transversalidade em Guattari (2004). Segundo este autor, a transversalidade
é uma rede de comunicações, isto é, um domínio de percepção da realidade, em
meio ao qual se experimenta o cruzamento das várias forças que compõem essa
rede. O que é aí produzido inaugura um plano de flutuações da experiência, que
possibilita a habitação de vários pontos de vista em sua emergência, sem firmar
identificação e apego a qualquer um destes pontos de vista. A prática de
pesquisa que se abre a esta rede de comunicações transversais é também
atravessada pelas múltiplas vozes que perpassam esta rede. E como efeito, a
produção de conhecimento torna-se inseparável da produção da realidade.
Um outro aspecto mencionado nas entrevistas, no que se refere à maneira
de focalizar, é sobre a concentração (foco) do/a focalizador(a) e o cuidado com
o grupo, como podemos observar no relato abaixo:

Quando estou focalizando, estou muito focada no grupo, eu


estou focalizando uma energia grupal, o tempo inteiro estou
muito atenta a isso, estou buscando essa unidade grupal. É um
tipo de concentração bem focada mesmo. (...) você não está só
ensinando uma dança, dentro da minha perspectiva. Você está
cuidando de um todo e, também, ensinando a dança. (F5,
fragmento de entrevista realizada em 02/09/2020)

A maneira cuidadosa como o/a focalizador(a) se apresenta na roda é


sentida pelas pessoas e isso reverbera no fluxo grupal. Nesta perspectiva do
cuidado com o grupo, não podemos deixar de mencionar um elemento de suma
importância para sustentar a unidade da roda: a confiança. A confiança44 é um
elemento primordial para a instalação de um “clima” favorável ao fluxo da roda,
haja vista que a confiança é uma atitude que implica “a promoção de uma
experiência compartilhada que amplia a potência de agir” (SADE, FERRAZ e
ROCHA, 2014 p.281).

44
Essa discussão sobre confiança, aqui delineada, faz alusão à maneira como Sade, Ferraz e Rocha
(2013) referem-se à importância da confiança na pesquisa cartográfica, a qual possibilita
“ressaltar a inseparabilidade dos aspectos éticos e metodológicos” (p. 294) neste tipo de
pesquisa. Eles dizem: “Uma vez que na cartografia a produção de conhecimento é indissociável
da construção de novas condições de existência, a aposta é de que a confiança na experiência
implica a promoção de uma experiência compartilhada que amplia a potência de agir” (SADE,
FERRAZ e ROCHA, 2013 p.281).
100

Parece que uma das grandes potências desses focalizadores(as) está na


focalização das DCS, em que a força da ação vem pelo coração, pelo pulsar
existencial daquilo que os impede de calar e os impele ao movimento, à sua
maneira, com criatividade, intensidade e sensibilidade para perceber o outro, em
um foco atentivo, sustentando o “fogo”.
As inspirações dos mestres(as) são impulsionadoras, sem dúvida, uma
vez que, se a relação mestre/aprendiz frutifica-se em inspiração, é certo de que
aí se constitui uma relação amorosa e de confiança. E é esse movimento de
afecção mútua que permite ao aprendiz ir em busca daquele conhecimento que
nasce de uma necessidade dele, mobilizando em si um percurso de form(ação)
que não cabe nos contornos de uma fôrma!
No entanto, é o que fazemos, nós focalizadores(as), com tudo o que nos
atravessa - sejam as sensações, as reflexões, de forma autêntica, íntegra, ética
e verdadeira - que nos constituirão mais prazerosamente para a realização desta
prática. A questão do como focalizar é muito relativa e vamos aprendendo a
construir a nossa própria maneira de focalizar, ainda que, inevitavelmente,
trazendo traços de outros. Assim cada roda é uma experiência no plural, ou seja,
ela é sempre diferente até mesmo quando se trata do(a) mesmo(a)
focalizador(a), o que impede a possibilidade de firmar regras gerais e princípios
universais de ação para orientar o exercício da focalização.
Percebam que, ao trazer à cena analítica essas reflexões que gravitam ao
redor dos diferentes modos por intermédio dos quais o/a focalizador(a) vai
compondo seu exercício de focalização, estamos às voltas com um processo
form(ativo) que, como já dissemos anteriormente, aproxima a noção de
form(ação) a um movimento ético e estilístico de constituição da existência. E
nesse percurso, é o princípio do cuidado de si mesmo que nos ajuda a pensar
na irredutibilidade de uma certa inquietude de nós mesmos (QUILICI, 2015), com
a qual vamos compondo nossa ética de vida, como expressão de uma certa arte
de viver.
Isso tudo está intimamente ligado com o impulso vital dos(as)
focalizadores(as), aquilo que os/as move a ir para a roda e “colocar e sustentar
o fogo”, que transborda a sua existência num “borramento” com a existência
alheia, na conexão consigo e com o outro, com a música, com a dança, com o
101

espaço, numa espécie de simbiose, em que o fogo se alastra e vai gerando um


“centro de envolvimento”, onde ao mesmo tempo se afeta e se é afetado.
E é justamente esta entrega ética e estética de existência que nos convida
a pensar a form(ação) como parte do processo de subjetivação de cada um, algo
que não pode ser apartado da experiência vivida e sentida, mas que se inspira
e desabrocha nesse lugar do pulsar, dos tensionamentos, das paixões, e por
isso mesmo, vida pessoal e profissional se enamoram e se entrelaçam.
A F1, mencionando um trabalho que realizava com pessoas da saúde
mental, traz essa necessidade da flexibilidade em relação ao que vai ser
trabalhado na roda. A depender da demanda dos participantes, o/a focalizador(a)
tem que ter a sensibilidade para saber o que fazer. Ela diz:

(...) O meu objetivo lá é Dança Circular, mas você ter a


sensibilidade (...) que antes é preciso tirá-los daquele
comodismo (...) do comportamento deles. Então, eu vi que
primeiro era a alegria e a possibilidade de tocar o corpo, de sentir
o corpo. Eu trabalhava primeiro com eles com muito ritmo, com
palma, com pé (...) A automassagem, tocar no corpo e de
repente dar a mão, porque a gente chegava lá e eles quase nem
olhavam para a gente, muitos nem olhavam. Uns na imobilidade,
outros naquela agitação. Então, você tem que ter algum jeito de
trazê-los à consciência para si, para o momento, a concentração
para aí entrar na dança, no canto, os instrumentos. (...) Não tem
assim uma coisa pronta, eu vou criando é no momento. Eu
preparo, mas, às vezes, acabo não dando aquilo. (...) Cada um
é diferente, tem sua beleza, seu foco, não tem um padrão, não
adianta querer botar numa caixinha que não é assim. Não pode
ser. Se não acaba (F1, fragmento de entrevista realizada em
22/08/2020)

No relato acima, percebemos que, antes de iniciar a roda, a focalizadora


tem a sensibilidade de perceber e conduzir o grupo a partir da necessidade que
as pessoas apresentam. Ela cria possibilidades de irem aos poucos se
engajando com a prática das DCS, partindo da percepção corporal através do
toque, da musicalidade através do instrumento, e assim por diante, para, depois,
começar as danças de fato. Veja que a maneira de cada um conduzir a roda e
proceder antes mesmo de iniciá-la é bem particular e a experiência ritual é
sempre plural, não tem um padrão. E essa diversidade é preciosa para que cada
indivíduo seja o que é e viva de fato seus processos de subjetivação de forma
ética e estética. Como diz a F1: “Cada um é diferente, tem sua beleza, seu foco,
102

não tem um padrão, não adianta querer botar numa caixinha que não é assim.
Não pode ser. Se não acaba.”

C2) O/A Focalizador(a) e a força/peso


A segunda subseção traz discussões sobre as relações com a gravidade
na dança feita em roda. Aqui traremos discussões sobre a auto-organização da
roda, a relação com o peso como uma pista importante para desnaturar a
intenção de partida em função de uma (in)tensionalidade que, antes de qualquer
coisa, se organiza a partir da sua relação com a gravidade / verticalidade.
A prática da focalização nas DCS nos ensina que toda intenção de
focalização está sempre fadada a se diferenciar, a depender das relações
tecidas em meio à roda. Para Laban, em seus estudos sobre a expressividade
humana (1978; FERNADES, 2006), as intencionalidades se referem à dimensão
força/peso. O excerto apresentado a seguir dá algumas pistas de como podemos
observar a dimensão força/peso dentro do fluir da roda.

... a gente estava dançando no Parque da Água Branca e passou


uma moça acompanhada, parecia uma cuidadora (...) A moça
pediu mesmo (para participar da roda) e eu convidei. (...) A
cuidadora veio e me falou, era psicóloga dela, “ela não pode, ela
tem problema, um retardo mental, ela não pode” Aí eu falei: “não
tem problema, pode errar, não vai se apresentar em lugar
nenhum”. E ela sorria tanto, ela queria e eu dei a mão para ela e
a moça não teve como e entrou na roda. Essa moça me
acompanhou muitos anos. Quando ela entrou, eu percebi claro
uma dificuldade de cruzar o pé, mas ela fluía na roda, fluía com
alegria, ela sorria tanto, tanto e a outra, não sei se era porque
estava preocupada, não conseguia acertar o passo nem nada.
(...) Por isso que eu te falo da alegria. Era tão pura alegria, ela
devia ter uns 20 e poucos anos, era tão pura a alegria dela e ela
gostava tanto, tanto (...). Então, ela me norteou muito disso, que
o que importa é o fluir, é a entrega. Ela foi assim uma mestra
realmente. (F1, fragmento de entrevista realizada em
22/08/2020)

Neste relato, a F1 refere-se à experiência que vivenciou com uma


participante em sua roda no parque, que nos convoca a pensar na importância
do “clima” leve e afetivo para fluir na roda. Como observamos no excerto acima,
a moça entrou na roda com uma certa leveza, sem se preocupar se poderia, ou
não errar os passos da dança. Se tomarmos a dimensão força/peso, em Laban
(1978; FERNADES, 2006) para ler essa situação, poderíamos dizer que a moça
103

entrou na roda da dança com uma intenção leve que se contrapõe, em um


primeiro momento, com a preocupação da sua cuidadora. Quando agimos com
leveza, nos conectamos com uma certa intenção mais aberta ao acolhimento do
novo e, por isso mesmo, menos rendida aos hábitos. Já pararam para pensar
que quando temos certeza das nossas intenções e ancoramos essa certeza
apenas dentro de uma dimensão cognitivista previamente regulamentada,
assumimos uma atitude mais pesada e cômoda, já fixada pelos hábitos? Pois
bem, é justamente essa atitude pesada que se dissolve quando o leve se
avizinha, nos convidando a pensar de maneiras diferentes, de modo a tornar
mais cristalino e menos cristalizado as nossas intenções (FERNANDES 2006).
Com uma atitude corporal mais leve, os relacionamentos fluem de
maneira mais intensa. Para Laban (1978; FERNADES, 2006) a ideia de “fluência”
diz respeito à sensação do movimento e, portanto, integra o movimento com o
pensamento, ultrapassando o campo perceptivo, onde o “eu” se dissocia do
espaço e dos outros. Quando fluímos, ingressamos na linguagem dos
movimentos corporais, que tem uma temporalidade própria e movente.
O relato do focalizador F8, abaixo, complementa esta ideia de que o
“entendimento” da dança só se faz, de maneira mais corporificada, quando
ingressamos dentro daquele domínio perceptivo mais atento à relação que
estabelecemos com a gravidade. É aqui, quando o corpo dialoga de maneira
lúdica com a gravidade, que adentramos em um nível de entendimento menos
estático e mais movente.

O passo pode não sair perfeito, mas se aquela pessoa


entender o intuito, a intenção daquela dança, é isso que
vale. E acho que quando ela entende a dança, o corpo dela
flui e ela se integra naquele grupo com muita facilidade. (...)
(F8, fragmento de entrevista realizada em 19/09/2020)

Como nos diz Marie Bardet (2014), a experiência de gravidade acontece


quando nos permitimos “atravessar e se deixar atravessar pelo peso, entrar
nessa relação com o mundo, relação das forças gravitarias” (p. 295). Portanto,
aquilo que nos (co)move arrasta a consciência sensível e força o movimento em
um emaranhado de forças “que se dá em uma real troca de peso, em relações
de gravidade” (p. 297).
104

Ainda neste viés, no que se refere à conexão com a terra, há um aspecto


que chama a atenção no relato da F3 (“... meu corpo parecia que estava
eletrizado em total conexão com a terra ali, (...) parecia que eu era uma com a
terra, tinha uns fios elétricos, porque tem né?”) e que ajuda a pensar na dinâmica
da energia telúrica que é aquela que nos conecta com o chão e com o espaço
físico no qual nos encontramos. Essa conexão com a terra, mais uma vez, alerta
acerca das nossas relações com a gravidade, que, limitada pelos contornos
porosos da pele, faz gerar em nós uma certa sensação do “Eu” – entendido aqui
como imanência – por meio do qual colocamo-nos em relação com o mundo.
Só somos porque gravitamos, diz Marie Bardet (2014). Nos domínios da
gravidade, a pele é “lugar de partilha do sensível e da repartição dos apoios. A
pele é trabalhada em sua espessura, animada e animando essa tensão, essa
escuta que se dá em movimento, por estremecimentos” (p. 244). E ela ainda
continua dizendo que a pele “gera volumes que abrem o corpo ao mundo” e, por
esse motivo, a pele torna-se meio perceptivo por natureza. Nas intensidades
desse meio perceptivo, a pele desorganiza o corpo e o movimento
“permanecendo o mais próximo possível das sensações.” (Ibidem, p. 246).
Isso faz pensar que a relação com a gravidade é a relação mais elementar
que voltamos a nos atentar quando dançamos. É essa experiência do corpo no
contato com a terra que nos faz lembrar que somos a partir do sentir em eterno
devir. E é por meio desse jogo relacional entre o dentro e o fora, o corpo e o
espaço, o que afeto e sou afetada, que vivenciamos um jorro de sensações que
produzimos, que nos invadem e nos envolvem na prática das DCS, e, assim, nos
convidam a ser a própria intensidade dos acontecimentos e a pertencer a esse
momento furtivo e único como se fosse o último.
Tendo em vista essa discussão acima observada, ressaltamos também o
seguinte excerto do F8 abaixo, no que se refere a uma experiência que ele
observou com uma participante de suas rodas.

...nesse grupo, que eu fui focalizador, eu vi muitas


transformações e uma delas é de uma moça com muita
dificuldade motora, muita dificuldade mesmo, mas com o
coração pulsante, sedento por conhecer aquilo, por participar
daquilo. (...) E esse curso de formação ensinou para ela que a
preocupação não estava no passo, estava no sentir, que ela tem
105

que colocar esse coração mais aberto para o grupo. (F8,


fragmento de entrevista realizada em 19/09/2020)

A preocupação excessiva com o acerto e com a eminência do erro, torna


pesada nossa intencionalidade, impedindo-nos a uma relação mais fluída com o
domínio do sentir. Dalcroze tem um pensamento que se avizinha com essa
discussão aqui em pauta. Para esse autor, não importa como você faz, mas o
que você sente a respeito daquilo em que investe seus esforços
(FONTERRADA, 2008; DALCROZE, 1965). Assim, se pensarmos que isso no
qual investimos os nossos esforços trata-se de uma intencionalidade e, portanto,
se relaciona com a dimensão força/peso no referencial labaniano, quanto mais
leveza levamos às relações nas quais nos envolvemos, mas aberta está nossa
intenção para o acolhimento das alteridades.
O F8 ainda diz o seguinte:

O focalizador é aquele que mantem o foco da intenção em


movimento. (F8, fragmento de entrevista realizada em
19/09/2020)

Esta fala do F8 nos remete justamente à essa relação constituída entre a


intenção do movimento e a dimensão força/peso, observada a partir do
referencial labaniano (1978; FERNANDES, 2006), já acima mencionado. A
intenção assume uma intimidade com a verticalidade que é aquela dimensão na
qual atravessa a força gravitacional. Todo jogo que fazemos com essa força
gravitacional é um jogo de intencionalidades. Portanto, quando relacionamos a
função do/a focalizador(a) à função de auxiliar manter “o foco da intenção em
movimento”, enfatizamos a importância do/a focalizador(a) na busca por uma
percepção mais atenta à relação gravitária que os membros da roda precisam
estabelecer com suas intenções de movimento, ou seja, com os passos, com a
coreografia, para conseguirem ingressar em um nível perceptivo mais sensível
e menos rendido à anestesia da percepção cotidiana.
No entanto, é preciso entender que a intenção que se fala aqui não deve
ser da ordem do intelecto, mas sim da intuição, ou seja, daquilo que chamamos,
neste trabalho, de “(in)tensões com “s” e que, portanto, escapam às reduções
106

cognitivistas. Quando Laban (1978; FERNANDES, 2006) fala deste fator


força/peso que se relaciona com a verticalidade e, portanto, com a gravidade,
aliado à afirmação de uma certa intenção, talvez esteja aí uma pista importante
para tangenciar esse domínio (in)tensional, o qual se apresenta pelos poros, pela
sensibilização, e que só se faz (e se refaz) na relação com a gravidade e na
interação com os outros.
De acordo com Paxton (2022), a gravidade é um postulado que torna
possível a composição de um certo senso geral de identidade. Nos colocamos
em relação com nós mesmos, com o espaço e com o mundo a partir deste
postulado primeiro, com o qual não podemos nos desvencilhar. Tudo que
acontece dentro da atmosfera terrestre, se passa a partir de uma relação
gravitaria.
Ainda que esse postulado possa ser visto como um certo aprisionamento
dos corpos físicos, que enquadra nossos relacionamentos dentro das leis da
gravidade, quando nos permitimos ver essa relação com a gravidade dentro de
uma perspectiva lúdica, não vemos apenas regras a serem seguidas, mas um
amplo espectro de direções moventes que se transformam a cada novo instante,
traçando os sulcos da dança e demarcando os contornos da coreografia que está
sendo dançada. O caráter “mântrico” dos passos ajuda a afirmar essa dimensão
de ludicidade, haja vista que, a cada novo ciclo desta dinâmica mântrica, mais
intensidade vai sendo trazida aos passos da dança.
Essa exploração lúdica da gravidade, em meio a esse caráter mântrico,
traz alguns desdobramentos. Vejamos o relato da F2 a seguir:

Quando a gente focaliza a gente descobre como a roda se auto-


organiza (... ) e, quando tu vês, as pessoas estão indo. (...) É
uma coisa fantástica como ao longo da semana a gente se
organiza mentalmente também, internamente, cerebralmente vai
te organizando. (F2, fragmento de entrevista realizada em
26/08/2020)

Esse relato expressa uma atitude auto-organizativa que alimenta o


processo de fluição na roda. A dança começa e os passos vão aos poucos se
acertando, e mesmo diante dos erros a roda flui porque o grupo se apoia, a
música envolve e o/a focalizador(a) sustenta o fogo junto com o grupo. É muito
interessante observar esse acontecimento nas DCS, isso me chama muito a
107

atenção enquanto dançante e focalizadora, e agora, enquanto pesquisadora


também.
Pensemos um pouco sobre esse acontecimento auto-organizativo que
ocorre na roda de DCS por meio de uma breve reflexão sobre o conceito de auto-
organização. Segundo a teoria da auto-organização, desenvolvida
principalmente por Debrun (1996a), “a auto-organização é um processo que se
desenvolve, basicamente a partir dele próprio, sem prejuízo do intercâmbio –
material, energético, informacional e simbólico – que possa manter com um
ambiente” (p. 30). Assim como na roda de DCS, ela inicia por elementos que
podem ser distintos, mas que tenham um mínimo de afinidade, e vai se
desenvolvendo e criando uma identidade. Para a auto-organização existir,
precisa de relações entre os elementos e trocas com o meio, sendo todas as
partes importantes para manter o sistema, para seu crescimento e
aprimoramento, estando elas cada vez mais unidas e dependentes entre si. Um
de seus principais pressupostos é a ausência de um fator direcionador que
comande o desenrolar do processo organizativo e espontâneo de seus
elementos. O organismo tende a se reestruturar e enfrentar desafios, em um
processo de aprendizagem coletiva e de ajustes. Quando se estabiliza, pode se
fechar, tendendo ao equilíbrio funcional, que é o que Maturana e Varela (2001)
chamam de autopoiese45.
Desta forma, em um sistema auto-organizativo, como no caso das DCS,
mais importante do que um elemento especificamente, são as relações entre os
elementos daquele sistema, e, por isso mesmo, embora o/a focalizador(a) tenha
um papel importante para iniciar o processo da roda, ele(a) não a sustenta
sozinho. É necessário que o grupo, enquanto um sistema vivo, se autossustente
e se auto-organize, de maneira que as pessoas vão interagindo entre si e com o
meio em um processo adaptativamente fluido.
Assim, quando entramos em dinâmicas auto-organizativas, adentramos
também dentro de um outro campo perceptivo que, para se manter auto-

45
A autopoiese (produção de si próprio) é um termo que foi criado pelo biólogo Humberto
Maturana na década de 1960 para explicar a organização dos seres vivos, que é uma
organização comum a todo sistema vivo unicelular de seres autoprodutores em um sistema auto-
organizado, com o objetivo de manter o bom funcionamento do sistema (MATURANA E VARELA,
2001).
108

organizado, precisa se afinar com a dinâmica daquilo que se passa no momento


presente.

C3) A arte de focalizar


Na terceira subseção, traremos algumas pistas envolvidas no processo
de elaboração e lapidação dos modos singulares de construção da focalização.
Como primeira pista fundamental, nos chama a atenção a questão implícita no
próprio termo que constitui a ação de focalização.
Do que se trata essa ação de partida? Como já salientamos, lá no início
da pesquisa, focalizar significa colocar foco, “fogo” na roda. Considerando essa
pista etimológica, somos levados, neste momento, a assumir um nível mais
complexo de compreensão acerca do exercício da focalização, que demanda por
uma ultrapassagem do domínio do intelecto, na direção de um conhecimento
ardente, mais intuitivo e visceral. É neste nível intensivo de verificação do
exercício da focalização que tangenciamos uma formação que não se ensina,
mas que se movimenta nas relações com as DCS.
Wosien (2000) nos traz a seguinte reflexão sobre o verdadeiro significado
dos passos nas danças em roda: “O nosso pensamento aprende com o pé a
acertar o passo, e assim construímos uma coluna entre o céu e a terra” (p.40).
Veja que, ao sermos tocado pela dança e por tudo o que vem com ela (a
música, a intenção...), é o fluxo do movimento o que mais importa e que, a partir
daí, o trabalho mental também flui e compreende mais facilmente o passo. Isso
nos permite uma conexão entre céu e terra, ou seja, com o transcendente de
forma imanente, remetendo-nos mais uma vez ao pensamento de Ferry (2008),
já mencionado anteriormente, o qual diz que a espiritualidade passa a ser
também, em nossos tempos, “uma busca por uma forma autêntica e material de
viver de forma imanente o transcendente” (apud OLIVEIRA, 2020 p. 47).
E é com o foco nesse fluir, através de sua expressividade corporal, que
o/a focalizador(a) se mantem presente e ao mesmo tempo atento(a) ao grupo.
Como podemos ver nos excertos abaixo:

A energia de quando eu conduzo é sentir dentro de mim quando


eu percebo que o grupo está entregue, quando as pessoas estão
inteiras ali presentes e cada um vivenciando os seus processos
ali, em silêncio, cada um na sua. (...) Então, quando eu conduzo
109

eu sinto isso e eu tento trazer o significado e a expressão, a


interpretação através do meu corpo. (F3, fragmento de
entrevista realizada em 28/08/2020)
... o que eu percebi é que o focalizador abre campo. O campo
do focalizador ajuda o campo do grupo também. Então, se eu
me entrego e entro nesse campo aberto onde eu também estou
ali, abre para todo mundo. (...) (F6, fragmento de entrevista
realizada em 09/09/2020)

Esses excertos ajudam a situar aquela ideia de que os significados que


interessam para nós aqui são aqueles que se presentificam durante a
experiência da roda e que, portanto, falam a língua dos movimentos corporais, e
isso faz toda a diferença para se sustentar o “fogo” na roda. Então, tanto a fala
da F3 como a do F6 nos trazem a imagem de um acontecimento cíclico na roda,
um estado de entropia que vai em várias direções: do(a) focalizador(a) para o
grupo, do grupo para o/a focalizador(a) e de uns para os outros do grupo, e que
se retroalimenta.
Desta forma, na relação com o movimento, bem como no processo de
form(ação), não há como o indivíduo desvencilhar-se de seus processos de
subjetivação. Tudo está interligado e faz parte dele, no caso aqui, do(a)
focalizador(a), como podemos subentender ainda no relato do F8 abaixo.

Virar focalizador é se dedicar, dedicar sua vida, você dá um


pouco do seu coração para aquela arte. (...) Então, para mim,
todo movimento, toda vivência da Dança Circular tem que ser
uma experiência artística. Ela não pode ser só um tempo para
você dançar como exercício físico, ou como exercício de desafio
de passos diferentes, F8, fragmento de entrevista realizada em
19/09/2020)

Nesta direção, um outro aspecto que se apresenta, referente à atitude


do(a) focalizador(a), é a alegria, presente nos relatos da F1 e do F8 abaixo.

Então, o meu trabalho é alegria, porque a alegria faz milagres, a


descontração do deixar livre para errar, não ficar corrigindo, não
tem importância isso. (...) E alegria, alegria cura! (F1, fragmento
de entrevista realizada em 22/08/2020)

E para mim a dança, o primeiro sentimento que eu digo que


fazem com que as pessoas participem da dança, é a alegria,
110

porque quando você se alegra, quando você ri, você quebra uma
máscara, uma armadura e você automaticamente se conecta
com aquele grupo. E as danças brasileiras são assim, nos
pegam primeiro pela alegria e depois a gente mergulha na
profundidade da cultura, dessa história tão mesclada no nosso
país. E aí eu comecei a me interessar pelas danças brasileiras.
(F8, fragmento de entrevista realizada em 19/09/2020)

Nesses excertos, a alegria na roda, a que a F1 e o F8 se referem, é um


elemento contagiante que colabora com esse “clima” de afetividade e que tem
esse propósito de tornar a dinâmica corpo-mente mais leve e fluida.
Alves (2020) apoiado em Espinosa (2008), assim nos diz, no que se refere
a essa característica da alegria:

... nascemos com a capacidade de afetar e sermos afetados.


Quando um encontro gera afetos positivos, a relação ganha em
potência, produzindo alegria, e quando gera afetos negativos, a
relação diminui em potência, produzindo tristeza. Ao verificar o
que se passa nas atividades que envolvem confiança à luz dessa
ideia, observa-se que essas práticas oferecem espaços potentes
de ampliação dos afetos entre os alunos, gerando uma alegria
palpável na grupalidade. (ALVES, 2020, p. 10)

Veja como uma coisa leva a outra: para eu fluir preciso me sentir à
vontade, confiante no ambiente e ao mesmo tempo afetada na experiência.
Sendo assim, a postura acolhedora, afetuosa e inclusiva do/a focalizador(a)
torna-se de suma importância, de maneira que a humildade é peça fundamental
em seu posicionamento, como podemos ver nos relatos abaixo.

Então, a roda exige muita humildade da gente, humildade


centramento e segurança. Não é só humildade, também tem que
estar firme porque senão, tu não consegues conduzir o grupo.
(...) Sempre a inclusão que é o grande barato, sem a
necessidade de tu fazer perfeito, (...), vais dançar junto, incluir
as pessoas. (...) é quando você sente que existe uma
amorosidade leve na roda, gostosa, onde os corações estão
mais disponíveis, onde as pessoas baixam o sentido de crítica,
estão no sentido de dançar juntos, de celebrar, de aproveitar, aí
isso é uma experiência muito rica, quando tem isso é um mel da
dança. (...) (F2, fragmento de entrevista realizada em
26/08/2020)

Eu não estou ali vendo só alguma coisa que acontece, os meus


sentidos todos ficam aguçados e as sensações se diferem
quando eu dou a mão para determinadas pessoas, porque nós
estamos ali num caminho igual, mas a jornada de
111

desenvolvimento é diferente. Então, ter a oportunidade de olhar


para essa diversidade de caminho, de autodesenvolvimento, me
faz trabalhar várias coisas dentro de mim como paciência,
acolhimento, paixão, empatia, cuidado, me colocar no lugar do
outro, mesmo essas questões mais sutis. (F3, fragmento de
entrevista realizada em 28/08/2020)
O focalizador está a serviço do grupo, e o participante está
entregue para aprender e os dois precisam se juntar numa
pessoa só quando se é focalizador. (...) Acho que a humildade é
a fala melhor para se ter tanto como focalizador como como
participante. Humildade na hora de ensinar e saber que ali você
está passando um conhecimento, e na hora de participar e de
ouvir o outro, porque ele também está passando um
conhecimento. (F4, fragmento de entrevista realizada em
31/08/2020)
... a gente é aprendiz o tempo inteiro, mesmo como focalizador,
a gente é aprendiz. (F5, fragmento de entrevista realizada em
02/09/2020)
... a grande lição para um focalizador é que quando for trabalhar
deixar o ego em casa. (...) E a questão da simbologia do círculo,
isso é muito lindo, porque ele conduz a vivência naquele
momento, mas ele é um igual, ele está ali, isso que me encanta
no círculo. (F7, fragmento de entrevista realizada em
19/09/2020)

Esses excertos complementam o que falávamos anteriormente sobre a


necessidade dos(as) participantes sentirem-se à vontade para fluir. E isso tem
muito a ver com a forma como o/a focalizador(a) se posiciona diante do grupo,
não numa relação de poder, de mestre/aprendiz, mas sim numa relação de
humildade para se colocar a serviço no movimento de ensino/aprendizagem, em
que tanto o/a focalizador(a) quanto os dançantes geram os dois lados da mesma
moeda, ora ensinando, ora aprendendo. E nesse processo mútuo de afetação e
ensino/aprendizagem, é gerado um campo energético em que todos, uns em
maior outros em menor intensidade, se confundem com a própria roda.
E para enfatizar ainda mais esta relação do eu com o outro, é interessante
observar também os relatos dos(as) focalizadores(as) enquanto dançantes e
perceber como se sentem quando estão na roda, não na condição de
focalizador(a), mas como participantes.

Agora quando eu estou conduzida num círculo a energia é outra


porque, eu me conecto muito com o som também, além da
112

própria coreografia. (...) me pegam na sensibilidade, na vibração


energética também e aí eu viajo, eu entro em êxtase. (...) Aí
começou a roda e eu me senti em órbita parecia que eu estava
dançando nas estrelas. (F3, fragmento de entrevista realizada
em 28/08/2020)
É muito bom dançar só, sem ser o focalizador também. (...)
Quando estou num festival, de mais tempo e tal, eu abro sempre
um trabalho interno para mim. Então, é diferente, porque eu
posso entrar em processos maiores, eu posso entrar num
processo mesmo que eu não vou ter que cuidar de ninguém. (F6,
fragmento de entrevista realizada em 09/09/2020)
Eu prefiro ser dançarino, porque como dançarino eu vou no
barato da dança, daquela história, estou lá junto com aquela
multidão, estou num corpo só. (F8, fragmento de entrevista
realizada em 19/09/2020)

Um aspecto em comum a todos, nos relatos acima, é a entrega para uma


vivência mais intensa consigo mesmo(a), uma vez que não há aquela
“preocupação” com o todo, como acontece quando está na roda como
focalizador(a). É um momento em que o/a focalizador(a) também permite-se
abrir-se mais para os seus processos internos e para a troca com os outros de
maneira mais “descompromissada".
E é nesse estado de entrega que a dança nos traz um outro estado
perceptivo, diferenciado da percepção cotidiana. Ao cultivar a prática das DCS
não fazemos apenas uma modalidade de dança, mas buscamos cultivar um
modo de ser e existir que compõe nosso ethos, o que integra definitivamente a
dança nos processos de subjetivação daqueles que se permitem entrar na roda
das DCS.
113

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em vias de finalização deste trabalho de pesquisa, retomamos nossas
duas questões norteadoras, a saber:
1) Como a dinâmica relacional das DCS pode oferecer espaços potentes
de encontro com as forças que intensificam nossa experiência de si?
2) Como a prática das DCS pode mobilizar os processos form(ativos) dos
focalizadores(as) de DCS?
A partir dessas questões, mobilizamos um exercício reflexivo que tomou
como ponto de partida os estudos foucaultianos acerca da noção de cuidado de
si mesmo. Interessava-nos, deste enquadre conceitual preliminar, buscar pistas
para tangenciar uma certa estilística da existência em composição no processo
de form(ação) dos(as) focalizadores(as) participantes desta pesquisa.
Ao calibrar o olhar investigativo neste nível estilístico da existência,
evidenciamos uma dimensão sagrada e uma espiritualidade imanente tecidas no
cultivo da DCS pelos(as) focalizadores(as) participantes desta pesquisa, o que
reclamou indubitavelmente pelo corpo e pelas relações que se desdobravam a
partir da corporeidade desses(as) focalizadores(as).
Neste percurso, buscamos pelos estudos de Laban acerca dos
movimentos corporais, um outro marcador teórico que nos ajudou a adentrar na
singularidade das relações corporais. E deste encontro com os estudos de Laban
abriu-se uma possibilidade potente para pensar uma form(ação) em movimento,
em relação e no diálogo que se estabelece de si sobre si mesmo, de si com o
espaço e de si com os outros, para, assim, compor uma certa arte de viver junto
às DCS.
Desta inflexão teórico-conceitual, o enfoque estilístico de inspiração
foucaultiana, originalmente assumido, ganhou novas cores e sabores ao se ater
em algumas especificidades relativas à linguagem dos movimentos corporais,
constituídas no seio da experiência da dança em roda. Assim, tomando os dados
advindos das entrevistas produzidas nesta pesquisa, com um enfoque estilístico
e existencial, e com um domínio analítico imerso nos diferentes níveis de
relacionamentos corporais, foi se constituindo a escritura desta pesquisa.
Convém salientar, no entanto, que as alianças teórico-conceituais aqui
assumidas – tecidas entre Foucault e Laban – não são sustentadas por relações
de linearidade, mas sim aproximação e vizinhança, de modo a evidenciar um
114

exercício analítico amplamente heterogêneo e transdisciplinar, que se afina com


abordagens pós-estruturalistas de composição das análises. Talvez por isso,
fizemos questão de trabalhar com diferentes cores, para afirmar a função
conectiva do trabalho de pesquisa quando apoiada pelo princípio da cartografia,
que, aliás, atravessou a construção desta investigação desde seu início.
Assim, na esteira dessas alianças de composição do trabalho analítico,
podemos dizer que existe uma relação existencial do(a) focalizador(a) de DCS
com o cultivo dessa prática, a qual se estabelece na relação consigo mesmo(a),
com o espaço e com o outro. E essa relação perpassa suas escolhas musicais
e coreográficas, seu processo criativo, sua maneira de focalizar, enfim, todo o
processo em que se vê envolvido com as DCS, de modo que o/a focalizador(a)
se vê implicado(a) com a prática das DCS de tal maneira que o cultivo dessa
prática reverbera em sua forma de ser e agir no mundo.
Desta forma, ao revisitarmos as experiências dos(as) focalizadores(as)
com as DCS em seus processos form(ativos), entendemos que tudo o que faz
parte da constituição de sua subjetividade implica em sua trajetória para se tornar
focalizador(a) de DCS, em suas escolhas e preferências, em sua maneira de
focalizar, ou seja, em sua form(ação). Isso significa dizer que a busca por ser
um(a) focalizador(a), enquanto parte de seu processo form(ativo), se confunde
com o seu processo de subjetivação, enquanto pessoas que se envolvem
existencialmente com as DCS.
A partir destas elaborações, ousamos afirmar que é por meio das práticas,
com as quais nos implicamos para a elaboração de nossas próprias existências,
que damos passagem aos nossos processos form(ativos), uma vez que, quando
estamos imersos nas intensidades das práticas, rompemos com os
conhecimentos prévios, de modo a evidenciar a dinâmica relacional em
constante processo de modificação e diferenciação em cena durante a prática.
Por isso, entendemos form(ação), neste trabalho, enquanto aquela que não cabe
na fôrma, como (en)ação que se constitui a partir da experiência com a prática
em que os sujeitos se veem implicados e que gera movência entre as
corporeidades envolvidas na roda.
E é nesse processo enativo que as dimensões ética e estética intensificam
os processos form(ativos) e que o princípio do cuidado de si, revisitado por
Foucault, traz uma grande contribuição para refletirmos, na contemporaneidade,
115

sobre a importância do experienciar para conhecer. O ato de cuidar de e


conhecer a si mesmo caminham juntos. Não podemos pensar em
autoconhecimento se não vivenciamos em nossos corpos a inquietude que nos
atravessa e potencializa nossa existência tão pluralmente singular.
Por fim, o que pretendemos, neste trabalho, foi vivenciar um fluxo de
acontecimentos a partir dos relatos do(as) focalizadores(as), permitindo que as
(in)tensões nos chegassem pelos poros, por uma sensibilização que
despertasse uma atentividade, a qual ora se intensificou em um foco, ora ampliou
suas lentes para se abrir a outras possibilidades. Desta forma, foi se constituindo
a tecitura de uma trama viva em construção e, nesta dança de sentidos,
seguimos compondo uma versão, dentre outras possíveis, dos processos de
subjetivação/form(ação) dos focalizadores(as) de DCS.
116

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A IMPORTÂNCIA DO CÍRCULO: CENTRAMENTO E CÍRCULOS


CONCÊNTRICOS. Publicado pelo canal Consciência Próspera. Coluna:
Danças Circulares. Apresentado por Renata Ramos. [S. L.} Direção e Edição
por Samuel Souza de Paula. 1 vídeo (7 min). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=vrMpSi9FEHs Acesso em 05/04/2021.
123

ANEXOS

ANEXO A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – (TCLE)


(Conselho Nacional de Saúde, Resolução 466/12)

O(a) Sr(a) está sendo convidado a participar de uma pesquisa de Mestrado


intitulada “FOCALIZADORES (AS) DE DANÇAS CIRCULARES SAGRADAS NO
BRASIL EM SEUS PROCESSOS DE FORM(AÇÃO)”. O objetivo da referida
pesquisa é entender como focalizadores(as) de Danças Circulares Sagradas
(DCS) – aqueles que conduzem a prática de DCS - no Brasil se constituem em
seus processos de form(ação). Para tanto, interessa-nos pensar como
aconteceu o encontro dos(as) focalizadores(as) com as DCS; como foi
acontecendo essa permanência das DCS na história de vida de cada um; e como
isso afetou sua relação com a vida pessoal e profissional.

Os benefícios da pesquisa são: Fornecer subsídios para elaboração e


implementação de políticas públicas que possam incentivar novas perspectivas
nas relações humanas que são estabelecidas em diversos ambientes: na área
da educação, da saúde, do ambiente corporativo, entre outros. Ademais, essa
pesquisa pode servir como um lugar de reflexão para novos focalizadores(as)
que pretendam realizar a prática das DCS.

Esse projeto de pesquisa será desenvolvido por Potyra Curione Menezes, RG


19.502.341-9, aluna do programa de pós-graduação de “Desenvolvimento
Humano e Tecnologias” da UNESP de Rio Claro, sob orientação do Prof. Dr.
Flávio Soares Alves, professor Assistente Doutor do Curso de Educação Física
acima referido.

Caso o(a) Sr(a) aceite participar desta pesquisa, participará de entrevistas


individuais e, em um segundo momento, poderá participar de entrevistas
coletivas também, se assim aceitar. Ambas as entrevistas serão gravadas em
áudio e posteriormente transcritas na íntegra, tendo a duração aproximada entre
60 e 120 minutos, a depender da disponibilidade do participante. Caso não
autorize a gravação, o registro dar-se-á por meio de anotações. As entrevistas
(individual e coletiva) serão realizadas com 8 focalizadores(as) de DCS
brasileiros(as) que tenham no mínimo 5 anos de experiência com esta prática, a
fim de conhecer sobre seus processos de form(ação) em DCS. As referidas
entrevistas ocorrerão em forma de um diálogo aberto e seu roteiro será pautado
em torno das seguintes temáticas: como aconteceu o encontro dos(as)
focalizadores(as) com as DCS; como foi acontecendo essa permanência das
DCS na história de vida de cada um; e como isso afetou sua relação com a vida
pessoal e profissional.

As entrevistas (individual e coletiva) envolvem riscos mínimos, tais como


desconfortos ou constrangimentos que podem ocorrer no que se refere a
determinadas questões. Para minimizar esses riscos, será feita uma explicação
clara e coesa aos participantes de como funcionará a pesquisa e sobre como,
onde e quando ocorrerá a coleta de dados, além de uma breve apresentação do
roteiro das entrevistas (individual e coletiva), conforme consta no projeto de
pesquisa e no anexo incluído nas IBPs, de maneira que se sintam mais seguros
124

e confortáveis para participarem da pesquisa. No entanto, poderão retirar-se a


qualquer momento, caso sintam necessidade. As individuais ocorrerão em local
privado e sem a interferência de terceiros, podendo ser na residência ou no
espaço de dança do participante ou em outro local a sua escolha, podendo até
mesmo ser em um ambiente virtual (vídeo conferência reservada aos
participantes convidados), que seja reservado e adequado para tal, em data
agendada previamente, sob consentimento do participante. Já a coletiva
acontecerá, caso o participante autorize dialogar sobre form(ação) e DCS em
grupo, em local acessível para que o grupo possa conversar sem interferências
externas, podendo ser na residência ou no espaço de dança de um deles, ou até
mesmo em um ambiente virtual (vídeo conferência reservada aos participantes
convidados), conforme acordado entre as partes, e serão agendadas também
previamente. A qualquer momento, durante as entrevistas, a pesquisadora se
colocará à disposição para esclarecimentos sobre eventuais dúvidas que
possam surgir em relação à pesquisa.

A participação nas entrevistas individuais e coletiva é voluntária e a eventual


recusa em participar, seja ela em qualquer momento da pesquisa, não lhe
provocará nenhum dano ou punição. Sua participação não lhe gerará nenhum
custo e o(a) senhor(a) também não será remunerado pela participação. Sua
identidade será mantida em sigilo e os resultados serão utilizados
exclusivamente para fins de pesquisa.

Se o(a) senhor(a) se sentir suficientemente esclarecido sobre a pesquisa, seus


objetivos, eventuais riscos e benefícios, convido-(a) a assinar este Termo,
elaborado em duas vias, sendo que uma ficará com o senhor(a) e a outra com a
pesquisadora.

____________________________________, ____/____/____

________________________________ ___________________________
Potyra Curione Menezes Assinatura do(a) Participante
Pesquisadora Responsável

Dados sobre a pesquisa:

Título do projeto: FOCALIZADORES (AS) DE DANÇAS CIRCULARES


SAGRADAS NO BRASIL EM SEUS PROCESSOS DE FORM(AÇÃO)

Pesquisadora Responsável: Potyra Curione Menezes


Função: Aluna/ Pesquisadora em nível de Mestrado
Instituição: Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Rio Claro
Endereço: Av. 6 A, 1051 – Bela Vista – Rio Claro-SP
Contato: 19 99759 1833 / e-mail: [email protected]

Orientador: Prof. Dr. Flávio Soares Alves


Cargo/Função: Professor Assistente Doutor
125

Instituição: Departamento de Educação Física – Instituto de Biociências –


UNESP – Rio Claro.
Endereço: Av.24-A, 1515 – Bela Vista – Rio Claro – SP
Dados para contato: (19) 3526 4329 / e-mail: [email protected]

Dados sobre o(a) participante da Pesquisa:


Nome: _________________________________________________________
Documento de Identidade: __________________________________________
Sexo: ____________ Idade: ___________ Data de nascimento: ___/___/_____
Endereço: _______________________________________________________
Telefone para contato: _____________________________________________
E-mail: _________________________________________________________
Observação: _____________________________________________________

CEP-IB/UNESP-CRC
Av. 24 A, nº 1515 – Bela Vista – 13506-900 – Rio Claro/SP
Telefone: (19) 3526 9678
Número do parecer: 4.140.538
126

ANEXO B – Roteiro de questões para as entrevistas

Nome: _________________________________________________________
Idade: __________________________________________________________
Profissão: _______________________________________________________
Cidade onde nasceu e onde mora: ___________________________________
_______________________________________________________________
Há quanto tempo é focalizador(a) de Danças Circulares Sagradas? _________

1. Como e onde você conheceu as DCS?


2. Qual foi a sua sensação quando teve o primeiro contato com as DCS?
3. Como as DCS passaram a fazer parte de sua história de vida? Fez algum
curso de formação para ser focalizador(a) de DCS?
4. De que forma as DCS afetaram a sua relação com a sua vida pessoal e
profissional? Continuou exercendo sua profissão anterior às DCS?
5. De que forma você trabalha com as DCS? Tem alguém como referência?
6. Como é a sua relação com a criação e/ou com a escolha de coreografias e
com as escolhas das músicas?
7. O que as DCS significam para você?
8. Como se sente quando está dançando e quando está focalizando?
9. Como se sente na relação com o outro?
10. E como sente a questão do sagrado nas DCS?
11. Qual a sua percepção, em sua trajetória, em relação a como as pessoas se
implicam com as DCS? Poderia relatar alguma experiência que lhe foi muito
marcante quando focalizava e/ou quando estava na roda apenas como
participante?
12. Como você definiria as DCS para você?
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ANEXO C – Parecer Consubstanciado do CEP

UNESP - INSTITUTO DE
BIOCIÊNCIAS DE RIO CLARO
DA UNIVERSIDADE ESTADUAL
PAULISTA

PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP

DADOS DO PROJETO DE PESQUISA

Título da Pesquisa: Focalizadores(as) de Danças Circulares Sagradas no Brasil em seus


Processos de Form(ação)

Pesquisador: Potyra Curione Menezes


Área Temática:
Versão: 2
CAAE: 30115620.5.0000.5465
Instituição Proponente: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JULIO DE MESQUITA
FILHO
Patrocinador Principal: Financiamento Próprio

DADOS DO PARECER

Número do Parecer: 4.140.538

Apresentação do Projeto:

Trata de um projeto de mestrado da aluna Potyra Curione Menezes, PPG Desenvolvimento


Humano e Tecnologias, sob orientação do Prof. Dr. Flávio Soares Alves, Departamento de
Educação Física, Instituto de Biociências, UNESP, Rio Claro. O presente estudo aborda a
formação de focalizadores de Danças Circulares Sagradas (DCS) no Brasil.

Objetivo da Pesquisa:
O presente projeto de pesquisa tem como objetivos:
1.Investigar processos de form(ação) de focalizadores(as) brasileiros(as) de Danças Circulares
Sagradas;
2.Refletir sobre processos de form(ação) à luz da noção de cuidado de si;
3.Buscar subsídios, através das Danças Circulares Sagradas, para a elaboração e
implementação de políticas públicas que possam incentivar novas perspectivas nas relações
humanas em diversos ambientes: na área da educação, da saúde, do ambiente corporativo, entre
outros.

Avaliação dos Riscos e Benefícios:


As entrevistas individuais e/ou coletivas envolvem riscos mínimos, tais como desconfortos ou
constrangimentos que podem ocorrer no que se refere a determinadas questões. Para minimizar
esses riscos, será feita uma explicação clara e coesa aos participantes de como funcionará a
pesquisa e sobre como ocorrerá a coleta de dados, podendo estes se retirarem ou não
participarem caso sintam necessidade. As individuais ocorrerão em local privado e sem a
interferência de terceiros, em data agendada previamente. Já as coletivas acontecerão, caso o
participante autorize conversar sobre form(ação) e DCS em grupo, em local acessível para que
o grupo possa conversar sem interferências externas e serão agendadas também previamente.

É informado que os benefícios da pesquisa são fornecer subsídios para elaboração e


implementação de políticas públicas que possam incentivar novas perspectivas nas relações
humanas que são estabelecidas em diversos ambientes: na área da educação, da saúde, do
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ambiente corporativo, entre outros. Ademais, essa pesquisa pode servir como um lugar de
reflexão para novos focalizadores(as) que pretendam realizar a prática das DCS.

Comentários e Considerações sobre a Pesquisa:


É informado a participação 8 focalizadores de DCS, com pelo menos 5 anos de experiência. Para
tanto, serão utilizados diários da pesquisadora e com entrevistas individuais e em grupos focais
e em grupos focais. Para operacionalizar esses instrumentos de pesquisa, será buscado
respaldo no princípio de Cartografia, situando a investigação no contexto das pesquisas-
participantes. No TCLE é mencionado que os participantes realização uma entrevista individual,
em local reservado, e se concordar em entrevista coletivas. As entrevistas serão gravadas em
áudio para posterior transcrição, com duração aproximada entre 60 e 120 minutos, dependendo
da disponibilidade do participante. Caso não autorize a gravação, o registro ocorrerá por meio
de anotações. Foi apresentado roteiro inicial das entrevistas. É informado que as interpretações
serão norteadas pela abordagem enativa, na qual ações acontecem e são reestruturadas de
acordo com as percepções da pesquisadora, para compor reflexões tecidas no diálogo, entre os
diferentes referenciais considerados na investigação, e na diferença que emerge nas relações e
no sensível experimentado na pesquisa de campo.

Considerações sobre os Termos de apresentação obrigatória:

Nas IBPs:
- Informa os possíveis riscos relacionados aos procedimentos de forma sucinta e informa que
após a explicação o participante se sinta desconfortável, o mesmo poderá deixar de participar;
- Informa os benefícios da realização do estudo de forma;
- Os procedimentos de obtenção de dados foram alterados com algumas inclusões de
informação, na presente versão, possibilitando identificar a participação dos focalizadores.
- Apresenta cronograma informando início das atividades de obtenção de dados em meados de
julho de 2020.

No TCLE
- Apresenta o título e objetivo do estudo;
- Apresenta o objetivo da pesquisa de forma clara;
- Apresenta informações sobre o responsável pela pesquisa e o orientador;
- Informa os possíveis riscos relacionados de forma sucinta e a minimização é a não participação
da pessoa;
- Informa os benefícios da realização do estudo de forma;
- Informa os procedimentos de forma sucinta, informando a participação em duas entrevistas,
individual e coletiva, com duração entre 60 e 120 minutos;
- Apresenta informação sobre endereço e contato do orientador e aluno/pesquisador;
- Finaliza o TCLE na forma de convite.

Conclusões ou Pendências e Lista de Inadequações:


O CEP REFERENDA O PARECER DO RELATOR:

"A presente proposta, com as alterações apresentadas na presente versão, está adequada".

Considerações Finais a critério do CEP:


O projeto encontra-se APROVADO para execução. Pedimos atenção aos seguintes itens:

1) De acordo com a Resolução CNS nº 466/12, o pesquisador deverá apresentar relatório final.
2) Eventuais emendas (modificações) ao protocolo devem ser apresentadas, com justificativa,
ao CEP de forma clara e sucinta, identificando a parte do protocolo a ser modificada.
3) Sobre o TCLE: caso o termo tenha DUAS páginas ou mais, lembramos que no momento da
sua assinatura, tanto o participante da pesquisa (ou seu representante legal) quanto o
pesquisador responsável deverão RUBRICAR todas as folhas, colocando as assinaturas na
última página.

Este parecer foi elaborado baseado nos documentos abaixo relacionados:


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Tipo Documento Arquivo Postagem Autor Situação


Informações PB_INFORMAÇÕES_BÁSICAS_DO_P 15/06/2020 Potyra Aceito
Básicas ROJETO_1522740.pdf 17:32:00 Menezes
do Projeto
Outros ROTEIRO_DAS_ENTREVISTAS_1.docx 15/06/2020 Potyra Aceito
17:30:42 Menezes
Cronograma CRONOGRAMA.docx 15/06/2020 Potyra Aceito
17:30:14 Menezes
Projeto PROJETO_DE_PESQUISA_FINAL.docx 15/06/2020 Potyra Aceito
Detalhado/ 17:25:00 Menezes
Brochura
Investigador
TCLE / Termos TCLEPOTYRAFINAL.docx 15/06/2020 Potyra Aceito
de 17:19:15 Menezes
Assentimento /
Justificativa de
Ausência
Folha de Rosto FolhaderostoPotyra.pdf 13/03/2020 Potyra Aceito
20:33:07 Menezes

Situação do Parecer:
Aprovado

Necessita Apreciação da CONEP:


Não

RIO CLARO, 07 de Julho de 2020

_____________________________________________
Assinado por:
José Ângelo Barela
(Coordenador(a))

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