Alerta - IBDS (Com Anexos)
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Alerta - IBDS (Com Anexos)
Não há nem ficção de paridade, nem liberdade total para moldar o conteúdo da
apólice mesmo nos regimes mais liberais de contrato de seguro, e mesmo nos chamados
seguros de grandes riscos. Isso é invenção brasileira, importando de forma
1
descontextualizada as práticas europeias, onde a maioria dos países, como a Alemanha,
a França e a Espanha, contam com leis de contrato de seguro muito mais protetivas ao
segurado do que o PLC 29/2017.
Essa regra não é qualquer inovação do PLC 29/2017, e foi mantida na última
revisão com anuência de entidades representativas do setor, como CNSeg e FENACOR.
A crítica é dolosamente construída como se tratasse de um retrocesso arbitrário, não da
forma como as coisas acontecem no mercado de seguros.
2
O que garante, no entanto, que esses materiais serão efetivamente guardados?
que as seguradoras irão disponibilizá-los corretamente ao segurado e à fiscalização,
quando solicitado? que essa entrega esporádica, por fim, dará uma visão global às
autoridades sobre as práticas de mercado que julga importante coibir?
Antes de tudo, cabe perguntar: um ato administrativo, editado pelo CNSP, pode
afastar um requisito que, gostemos ou não, está em lei federal em pleno vigor?
O Projeto de Lei, nesse ponto, nem poderia pretender dispor sobre tema, porque
se trata de regras sobre as competências normativas e fiscalizatórias da SUSEP e do
CNSP. Como o Supremo Tribunal Federal já decidiu (ADIn 2.244, 2.223), e
provavelmente vai decidir de novo (ADIn 7.074), esse tema é reservado à Lei
Complementar pelo art. 192 da Constituição, o que o PLC 29/2017 não pretende ser. Ou
seja, se o Projeto de Lei minguasse as competências da SUSEP, seria inconstitucional.
Como se pode ver, nada disso passa pelo PLC 29/2017, que trata do contrato de
seguro, não da fiscalização Estatal da atividade seguradora. O Projeto sequer menciona
qual seria o “órgão supervisor e fiscalizador de seguros” para demarcar sua distância ao
regime administrativo de fiscalização da atividade seguradora e resseguradora.
Basta ler o texto do PLC 29/2017, que foi intensamente debatido no Congresso
Nacional durante quase vinte anos, contou com DUZENTAS propostas de emendas e foi
atualizado por QUATRO Substitutivos, o último em dezembro de 2016.
3
internacionais, que se acostumaram a ser eminências pardas nas autoridades brasileiras.
Como registra livro recente produzido por conhecidos técnicos do mercado:
Nota 11: Em março de 2006, a Munich Re Brasil, Scor, Transatlanctic, XL Re, AIU, Swiss
Re, Converium, IRB-Brasil Re e a Fenaseg (atual CNSeg e FenSeg), contrataram as
empresas Braga & Associados – Consultoria de Riscos Ltda. e a Cooper Brothers Serviços
Técnicos em Seguros Ltda. para realizarem a atualização dos clausulados do ramo riscos
de engenharia do IRB-Brasil Re [então monopolista]. O resultado do trabalho foi objeto
de revisão pelo período de aproximadamente um ano, pelos representantes de todas as
empresas indicadas, sob a coordenação da Munich Re Brasil. Este trabalho originou a
Carta Sereg-2428/2007, do IRB-Brasil Re.
4
GILBERTO BERCOVICI
Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo
2 Geraldo de Camargo VIDIGAL, Fundamentos do Direito Financeiro, São Paulo, RT, 1973,
pp. 38-39, 42-43, 51, 199-203 e 276-277. Para o papel do Estado na política de crédito, vide,
ainda, Gérard FARJAT, Droit Économique, Paris, PUF, 1971, pp. 215-221.
3 No setor de seguros, a própria noção de empresarialidade é essencial para a realização do
contrato, conforme explicita o parágrafo único do artigo 757 do Código Civil: “Pelo contrato
de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse
legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados. Parágrafo
único. Somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador, entidade para tal fim
legalmente autorizada”.
4 Vide, neste sentido, Cesare VIVANTE, Del Contratto di Assicurazione, Torino, Unione
espécies da atividade econômica em sentido amplo, vide, por todos, Eros Roberto GRAU, A
Ordem Econômica na Constituição de 1988 cit., pp. 101-111.
4
à nova Constituição, vide, por todos, Paulo BROSSARD, “Constituição e Leis a Ela
Anteriores”, Revista Trimestral de Direito Público nº 4, 1993, pp. 15-30.
13 Geraldo ATALIBA, Lei Complementar na Constituição, São Paulo, RT, 1971, pp. 55-56.
14 Celso Ribeiro BASTOS, Lei Complementar: Teoria e Comentários, 2ª ed., São Paulo,
Paulo, Malheiros, 2006, p. 89. Vide, ainda, Maria Sylvia Zanella DI PIETRO, Direito
Administrativo, 20ª ed., São Paulo, Atlas, 2007, pp. 58-59.
18 Vide Eros Roberto GRAU, “Crítica da 'Separação dos Poderes': As Funções Estatais, os
20 Paul LABAND, Das Budgetrecht nach den Bestimmungen der Preussischen Verfassungs-
Urkunde unter Berücksichtigung der Verfassung des Norddeutschen Bundes, Berlin, Verlag
von J. Guttentag, 1871, pp. 3-11; Paul LABAND, Das Staatsrecht des Deutschen Reiches,
reimpr. da 5ª ed., Goldbach, Keip Verlag, 1997, vol. 2, pp. 1-23 e 61-84 e Georg JELLINEK,
Gesetz und Verordnung: Staatsrechtliche Untersuchungen auf rechtsgeschichtlicher und
rechtsvergleichender Grundlage, reimpr. da ed. de 1887, Aalen, Scientia Verlag, 1964, pp.
226-261. Especificamente sobre esta distinção em Paul Laband e em Georg Jellinek, vide
Ernst-Wolfgang BÖCKENFÖRDE, Gesetz und gesetzgebende Gewalt: Von den Anfängen der
deutschen Staatsrechtslehre bis zur Höhe des staatsrechtlichen Positivismus, 2ª ed., Berlin,
Duncker & Humblot, 1981, pp. 226-253; Manuel Afonso VAZ, Lei e Reserva da Lei: A Causa
da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, reimpr., Porto, Faculdade de Direito da
Universidade Católica Portuguesa, 1996, pp. 125-139 e Luís S. Cabral de MONCADA, Lei e
Regulamento, Coimbra, Coimbra Ed., 2002, pp. 71-83 e 88-115. Para uma crítica de um
contemporâneo de Laband a esta distinção, vide Otto MAYER, Deutsches Verwaltungsrecht,
reimpr. da 3ª ed., Berlin, Duncker & Humblot, 2004, §6, n. 1, pp. 64-67.
21 Miguel Seabra FAGUNDES, O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 5ª
ed., Rio de Janeiro, Forense, 1979, pp. 20-25; Victor Nunes LEAL, “Lei e Regulamento” in
Victor Nunes LEAL, Problemas de Direito Público, Rio de Janeiro, Forense, 1960, pp. 65-66;
José Afonso da SILVA, Processo Constitucional de Formação das Leis, 2ª ed., São Paulo,
Malheiros, 2006, pp. 25-28; Manuel Afonso VAZ, Lei e Reserva da Lei cit., pp. 17-31 e Hartmut
MAURER, Allgemeines Verwaltungsrecht, 16ª ed., München, Verlag C. H. Beck, 2006, pp. 65
e 68-69.
9
22 Manoel Gonçalves FERREIRA Filho, Do Processo Legislativo, 3ª ed., São Paulo, Saraiva,
1995, pp. 200-201 e Eros Roberto GRAU, “Crítica da 'Separação dos Poderes': As Funções
Estatais, os Regulamentos e a Legalidade no Direito Brasileiro. As 'Leis-Medida'” cit., pp.
246-247. Em sentido contrário, entendendo que o dispositivo do artigo 5º, II da Constituição
se refere à lei em sentido formal, vide Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, Curso de
Direito Administrativo cit., pp. 91-94 e 318-323.
23 José Afonso da SILVA, Processo Constitucional de Formação das Leis cit., pp. 33-36; Ernst
24 Adolf MERKL, Teoría General del Derecho Administrativo, Granada, Editorial Comares,
2004, pp. 219-223; Victor Nunes LEAL, “Lei e Regulamento” cit., pp. 62-63; Ernst
FORSTHOFF, Lehrbuch des Verwaltungsrechts cit., vol. 1, pp. 118-120 e Hartmut MAURER,
Allgemeines Verwaltungsrecht cit., pp. 63-67.
25 Otto MAYER, Deutsches Verwaltungsrecht cit., §6, n. 2, pp. 68-69; Hartmut MAURER,
Allgemeines Verwaltungsrecht cit., p. 115 e Fritz OSSENBÜHL, “Vorrang und Vorbehalt des
Gesetzes” in Josef ISENSEE & Paul KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatsrechts der
Bundesrepublik Deutschland, 3ª ed., Heidelberg, C. F. Müller Verlag, 2007, vol. 5, pp. 184-
187.
26 Victor Nunes LEAL, “Delegações Legislativas” in Victor Nunes LEAL, Problemas de Direito
27 Renato ALESSI, Principi di Diritto Amministrativo cit., vol. 1, p. 421. Vide também Maria
Sylvia Zanella DI PIETRO, Direito Administrativo cit., p. 81.
28 Otto MAYER, Deutsches Verwaltungsrecht cit., §6, n. 3, pp. 69-73; Manuel Afonso VAZ, Lei
e Reserva da Lei cit., pp. 31-37 e 139-145; Hartmut MAURER, Allgemeines Verwaltungsrecht
cit., pp. 115-126 e Luís S. Cabral de MONCADA, Lei e Regulamento cit., pp. 83-88.
29 Manoel Gonçalves FERREIRA Filho, Do Processo Legislativo cit., pp. 201-202 e Luís S.
30 Paulo Luiz de Toledo PIZA, Contrato de Resseguro cit., pp. 33-37 e 458-468.
13
31 Cf. Eros Roberto GRAU, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 cit., pp. 200-208;
Fábio Konder COMPARATO, “Regime Constitucional do Controle de Preços no Mercado”,
Revista de Direito Público nº 97, janeiro/março de 1991, pp. 18-23 e Cláudio Pereira de
SOUZA Neto & José Vicente Santos de MENDONÇA, "Fundamentalização e
Fundamentalismo na Interpretação do Princípio Constitucional da Livre Iniciativa" in
Cláudio Pereira de SOUZA Neto & Daniel SARMENTO (coords.), A Constitucionalização do
Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007,
pp. 709-741. Sobre as possibilidades e limites da livre iniciativa na Constituição de 1988,
vide, ainda, Gilberto BERCOVICI, Constituição Econômica e Desenvolvimento, 2ª ed., São
Paulo, Almedina, 2022, pp. 151-175.
32 Isto pode ser facilmente demonstrado a partir da leitura dos textos do artigo 115, caput da
Constituição de 1934 ("Art 115 - A ordem econômica deve ser organizada conforme os
princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos
existência digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica"), do artigo 145,
caput da Constituição de 1946 ("Art 145 - A ordem econômica deve ser organizada conforme
os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do
trabalho humano"), do artigo 157, I da Carta de 1967 ("Art 157 - A ordem econômica tem por
fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: I - liberdade de iniciativa") e
do artigo 160, I da Carta de 1969 ("Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar
o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: I - liberdade
de iniciativa").
33 Sobre a iniciativa econômica pública, vide, ainda, Francesco GALGANO, "Pubblico e
Privato nella Regolazione dei Rapporti Economici" in Francesco GALGANO (coord.), Trattato
di Diritto Commerciale e di Diritto Pubblico dell'Economia, Padova, CEDAM, 1977, vol. 1,
pp. 120-126; Oscar de Juan ASENJO, La Constitución Económica Española: Iniciativa
Económica Pública "versus" Iniciativa Económica Privada en la Constitución Española de
1978, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1984, pp. 90-99; José Joaquim Gomes
CANOTILHO & Vital MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed.,
Coimbra, Coimbra Ed., 2007, vol. I, pp. 958-959 e 982-986 e Gilberto BERCOVICI,
Constituição Econômica e Desenvolvimento cit., pp. 165-175.
14
34 Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo cit., pp. 323 e 751-
754; Eros Roberto GRAU, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 cit., p. 205 e Eros
Roberto GRAU, "Crítica da 'Separação dos Poderes': As Funções Estatais, os Regulamentos e
a Legalidade no Direito Brasileiro. As 'Leis-Medida'" cit., p. 247. Vide também André de
LAUBADÈRE, Droit Public Économique, Paris, Dalloz, 1974, pp. 245-246; Jean-Yves
CHÉROT, Droit Public Économique, 2ª ed., Paris, Economica, 2007, pp. 95-97 e Josef
RUTHIG & Stefan STORR, Öffentliches Wirtschaftsrecht, 2ª ed., Heidelberg, C. F. Müller
Verlag, 2008, pp. 77-79.
35 André de LAUBADÈRE, Droit Public Économique cit., pp. 244-262 e Pierre DELVOLVÉ,
37
Pedro Pais de Vasconcelos, ao tratar da autonomia privada, diferencia os conceitos da
“liberdade de celebração” e “liberdade de estipulação”. Vide Pedro Pais de VASCONCELOS,
Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., Coimbra, Almedina, 2007, p. 416. Ainda sobre este
tema, Fernando ARAÚJO, Teoria Económica do Contrato, Coimbra, Almedina, 2007, pp.
499-500.
38 Cf. Antonio Junqueira de AZEVEDO, “Relatório Brasileiro sobre Revisão Contratual
40
Cf. Orlando GOMES, Novos Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 183.
17
Gilberto Bercovici
OAB/SP 146.723
Parecer
Índice
Parecer ............................................................................................................................. 1
(ii) os limites do poder normativo estabelecidos pelo art. 32, IV, do Decreto-Lei no
73/1966 ....................................................................................................................... 12
ii
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
Consulta
Judith Martins-Costa
iii
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
Parecer
(...)
(...)
1
A Resolução “dispõe sobre os princípios e as características gerais para a elaboração e a comercialização
de contratos de seguros de danos para cobertura de grandes riscos”.
1
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
(...)
2
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
6. Para deixar mais claras as razões que fundamentam essa conclusão, este Parecer
cuidará, em primeiro lugar, dos limites ao poder normativo da Administração Pública e
das competências do CNSP previstas no art. 32 do Decreto-Lei nº 73/1966 (Parte I). Em
seguida, abordará as regras específicas da Resolução nº 407/2021, comparando-a com o
regime jurídico positivo do contrato de seguro, a fim de evidenciar textualmente que a
questão é de inconstitucionalidade, e não de mera ilegalidade (Parte II).
2
ROCHA, Carmen Lúcia. Princípios constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey,
1994, p. 86; CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1991, p. 798.
3
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo G. Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São
Paulo: Saraiva, 2015, p. 856.
4
Ressalva-se a possibilidade de o Presidente da República editar medidas provisórias, quando se estiver
diante de “caso de relevância e urgência”, e desde que não abarquem as matérias arroladas no art. 62, § 1º
da Constituição Federal e de o Parlamento delegar ao Executivo a elaboração de lei por meio da lei
delegada, seguindo o previsto no art. 68 da Constituição Federal.
5
Assim, REALE JR., Miguel. Reserva de Lei e Poder Regulamentar das Agências Reguladoras. In:
ADEODATO, João Maurício; BITTAR, Eduardo C. B. (Org.) Filosofia e teoria geral do direito -
Homenagem a Tercio Sampaio Ferraz Junior. São Paulo: Quartier Latin, 2011, pp. 885-896. Também,
MERINO MERCHAN. José Fernando et al. Lecciones de Derecho Constitucional. Madri: Tecnos, 1995,
p. 38.
3
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
sentido formal para determinados assuntos, especialmente no que tange ao Direito Penal
e Tributário, 6 a Constituição Federal, em outras matérias, referiu, no contexto da
repartição de competências entre os entes da federação, certos temas como reservados à
União (art. 22, Constituição Federal). Esses temas exclusivos à União são regrados pelo
Congresso Nacional (art. 48, Constituição Federal). Ante a conveniência política,
econômica e gerencial, todavia, o Congresso decidiu atribuir a órgãos e entidades da
Administração Pública variado grau de poder normativo, operando a chamada delegação
legislativa. Nesse caso, a atribuição de poderes será legítima desde que não esvazie o
órgão competente do exercício da própria competência de legislar.
6
CF, Art. 5º, XXXIX – “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
legal(...)”; “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça(...)”.
7
O trabalho clássico sobre delegação legislativa no Brasil já registrava ser esse um dos temas mais velhos
e debatidos do Direito Constitucional brasileiro. Vide: LEAL, Vítor Nunes. Delegações legislativas. Revista
de direito administrativo, vol. 5, 1946, pp. 378-390, p. 378.
8
“Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este
prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder
Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange
a: I - ação normativa; II - alocação ou transferência de recursos de qualquer espécie. É fato, todavia, que a
lei do plano real (lei 9.069/1995), em seu art. 73, estendeu ilimitadamente prazo de 180 dias.”
9
Sobre a falsa equivalência entre a delegação legislativa e o agigantamento do Poder Executivo, cf. LEAL,
Vítor Nunes. Delegações legislativas. Revista de direito administrativo, vol. 5, pp. 378-390, 1946, p. 380.
É justamente por esse temor que se adota a visão da Administração Pública como um “braço mecânico do
legislador” (cf. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012,
p. 138).
10
GRAU, Eros Roberto. Crítica da “separação dos poderes”: as funções estatais, os regulamentos e a
legalidade no direito brasileiro, as “leis-medida”. In: O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed. São
Paulo: Malheiros, 2008, pp. 225-256. Em outro contexto, mas acerca desse mesmo ponto, referiu a mesma
4
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
11. No meu modo de ver, o cerne do problema reside em definir quais parâmetros
a lei deve estabelecer para a delegação sem renúncia da competência. 12 Estes são
encontrados no exame da vasta casuística, construída pelo Supremo Tribunal Federal
mediante a comparação entre o núcleo duro e a penumbra do conceito vago 13 de
“standards mínimos na delegação”. Um dos julgados mais antigos do Supremo Tribunal
Federal sobre a delegação legislativa – o HC nº 30.355 14 – definiu a posição pragmática
da Corte quanto à admissão da delegação legislativa, estabelecendo critérios.
questão o Ministro Gilmar Mendes (MENDES, Gilmar Ferreira. Liberdade econômica e alienação de
empresas estatais: reflexões a partir do julgamento da ADI nº 5.624. In: SALOMÃO, Luiz Felipe; CUEVA,
Ricardo Villas Bôas; FRAZÃO, Ana (Org.). Lei da liberdade econômica e seus impactos no Direito
Brasileiro. São Paulo: RT, 2020, pp. 33-47.
11
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e
constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 157.
12
Para Alexandre Santos de Aragão, “a grande questão da matéria do poder regulamentar da Administração
Pública não é propriamente a de se determinar a sua extensão [...], mas sim definir qual é a densidade
normativa mínima que a sua base legal deve ter para que seja consentânea com o Estado Democrático de
Direito e com natureza subordinada do poder regulamentar” (ARAGÃO, Alexandre Santos. A concepção
pós-positivista do princípio da legalidade. Revista de direito administrativo, vol. 236, pp.51-64, p. 57,
abr./jun., 2004).
13
Sobre a vagueza semântica no Direito, cf. GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare. Milão:
Giuffrè, 2011, pp. 52ss. e, muito recentemente, ÁVILA, Humberto. Teoria da Indeterminação no Direito.
Salvador: Juspodivm, 2022. Ainda, o meu MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed.
São Paulo: Saraiva, 2018, pp.148-160.
14
Tribunal Pleno, Relator Min. Castro Nunes, j. em 21.07.1948 No caso, Alfredo Cardoso Alves,
comerciante, foi condenado por cometer um crime contra a economia popular. Ele teria vendido carne
acima do valor previsto na tabela editada pela Comissão Central de Preços, a quem competia, por força do
Decreto-Lei nº 9.125/1946, definir o preço máximo de serviços, gêneros ou utilidades essenciais (art. 4º),
a fim de evitar a elevação do custo de vida no país. O impetrante alegou que uma comissão não poderia
controlar o preço máximo de determinados produtos, já que a Constituição de 1946, recém-promulgada,
vedava qualquer delegação legislativa em seu art. 36, §2º. Os ministros, unanimemente, negaram a ordem.
5
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
12. Ali fixou o Supremo Tribunal Federal que a proibição constitucional ao Poder
Legislativo de delegar suas atribuições deve ser observada em linha de princípio, “sem
excluir, todavia, certas medidas a serem adotadas pelo órgão executor no tocante a fatos
ou apurações de natureza técnica dos quais dependerá a incidência ou aplicação mesma
da lei.” O Min. Orosimbo Nonato, vindo ao encontro do relator, consignou ser “difícil” a
aplicação rigorosa da vedação de delegações, devendo o seu campo ater-se “em sua
estrutura, ao princípio capital da lei constitucional”, sendo lícito ao Executivo, nesses
termos, preencher norma penal em branco, a fim de ser alcançada a finalidade visada pela
lei. 15
15
Destacou-se.
16
No RE nº 343.446, Tribunal Pleno, rel. Min. Carlos Velloso, j. em 20.03.2003, avaliando norma que
atribuída ao regulamento executivo a definição de certos conceitos relevantes para a base de cálculo da
contribuição relacionada ao seguro acidente do trabalho, definiram-se os seguintes parâmetros para avaliar
a admissibilidade da delegação legislativa “a) a delegação pode ser retirada daquele que a recebeu, a
qualquer momento, por decisão do Congresso; b) o Congresso fixa standards ou padrões que limitam a ação
do delegado; c) razoabilidade da delegação.” Além de demonstrar a adesão do padrão norte-americano na
avaliação da legitimidade da delegação (intelligible principle doctrine), o estabelecimento do critério da
razoabilidade e a necessidade de padrões limitadores que evitem o arbítrio, embora conceitos abertos,
resultaram no controle de certas delegações – é inadmissível, por exemplo, meramente autorizar o
parcelamento de obrigações tributárias pelo Executivo (ADI nº 2.304, Plenário, rel. Min. Dias Toffoli, j.
em 12.04.2018), mas se admite que o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (CONFEA) defina,
dentro de certas balizas legais (valor máximo de 5 MVR – por volta de R$ 20,00), a taxa para a emissão da
Anotação de Responsabilidade Técnica, porque o Conselho consegue definir com melhor precisão que tipo
de despesa será custeada com a taxa (RE nº 838.284, Plenário, rel. Min. Dias Toffoli, j. em 19.10.2016).
Deve-se registrar amplo desenvolvimento jurisprudencial sobre o tema em função da legalidade no Direito
Tributário (art. 150, I), prévio inclusive à Constituição Federal de 1988 (cf. ÁVILA, Humberto. Sistema
Constitucional Tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 377ss).
17
A primazia da lei representa a outra dimensão do princípio da legalidade, complementando a reserva
legal, como aponta MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo G. Gonet. Curso de Direito
Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 856.
18
ADIn nº 1.668-MC, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio. O julgamento da ADIn ocorreu apenas em
2021 (ADIn nº 1.668, Plenário, rel. Min. Edson Fachin, j. em 01.03.2021), em que se confirmaram as
limitações ao poder normativo atribuído à ANATEL: não lhe compete afastar a incidência de leis, tampouco
elaborar normas próprias sobre a licitação e contratação no setor regulado.
6
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
poder normativo da Administração Pública tem como limite material as diretrizes fixadas
pelo legislador, que devem ser precisas o suficiente para evitar o arbítrio no exercício das
competências, definindo minimamente o quadro normativo a ser preenchido, cabendo à
lei definir, v.g., parcialmente a hipótese de incidência e a consequência jurídica da norma,
tal como se verifica no tipo penal em branco; 19 e (iii) o Legislativo pode apenas delegar
a escolha de meios para atingir finalidades claras (v.g., a política pública a ser
implementada), justificando-se a delegação pelo viés técnico que a determinação dos
caminhos para atingimento dos fins necessita. 20
19
ADIn nº 4.874, Plenário, rel. Min. Rosa Weber, j. em 01.02.2018.
20
ADIn nº 4.568, Plenário, rel. Min. Carmen Lúcia, j. em 03.11.2011.
21
Cf., em especial, CA 35, Tribunal Pleno, rel. Min. Sydney Sanches, j. em 02.12.1987: “Esse poder de
criar o direito material é, em princípio, do Legislativo, segundo as competências constitucionalmente
distribuídas, cabendo, em outros casos, delegação de poderes normativos complementares a órgãos
administrativos, que os exercem como atribuições. É o que acontece com o Conselho Monetário Nacional
e o Banco Central do Brasil, no campo ora focalizado.” (p. 29). É claro o conflito entre essa posição e a
doutrina (v.g., ATALIBA, Geraldo. Delegação Normativa (limites às competências do C.M.N. e BACEN).
Revista de Informação Legislativa, vol. 29, n. 113, pp. 275-306, jan.-mar. 1992). Sempre existiram vozes
isoladas que seguiam a mesma argumentação desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal (por todos,
TÁCITO, Caio. As delegações legislativas e o poder regulamentar. Revista de direito administrativo, vol.
34, pp. 471-473, 1953).
22
ADIn nº 2.591, Tribunal pleno, rel. p/acórdão Min. Eros Grau, j. em 07.06.2006.
23
A Confederação Nacional do Sistema Financeiro questionara a incidência do CDC nas relações bancárias,
financeiras, de crédito e securitárias, como prevê o art. 3º, §2º, do CDC. Dos argumentos apresentados, o
relevante diz respeito à inadequação do CDC para regular as relações do sistema financeiro nacional, uma
vez que o CMN teria competência para editar normas mais adequadas ao mercado para cuidar da defesa
dos usuários de serviços das instituições financeiras, tal como a Resolução nº 2.878/2001.
7
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
24
GRAU, Eros Roberto. Crítica da “separação dos poderes”: as funções estatais, os regulamentos e a
legalidade no direito brasileiro, as “leis-medida”. O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008, pp. 225-256, p. 231. Essa preocupação também transpareceu em decisão relacionada à
regulação da previdência privada, como se lê na ADIn nº 2387, cuja ementa consigna: “No caso, o decreto
em exame não possui natureza autônoma, circunscrevendo-se em área que, por força da Lei nº 6.435/77, é
passível de regulamentação, relativa à determinação de padrões mínimos adequados de segurança
econômico-financeira para os planos ou para a preservação da liquidez e da solvência dos planos de
benefícios isoladamente e da entidade de previdência privada no seu conjunto” – ADIn nº 2387, Tribunal
Pleno, rel. p/ Acórdão Min. Ellen Gracie, j. em 21.02.2001”.
25
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2. ed. São Paulo: RT, 2000, p.
307.
26
SILVA, José Afonso, Curso de Direito Constitucional positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p.
406, afirma categoricamente que o regulamento autônomo não encontra guarida em nossa Constituição.
27
LEITE SAMPAIO, José Aderico. A Constituição reinventada, pela jurisdição constitucional. Belo
Horizonte: Del Rey, 2002, p.460.
8
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
28
“No início dos anos 60, o mercado segurador vivia uma série crise. A inflação crescente corroía os valores
dos contratos e prejudicava a credibilidade da atividade seguradora. Muitas companhias de seguro estavam
desorganizadas, usando suas reservas para gastos administrativos. Não havia fiscalização por parte do órgão
encarregado – o Departamento Nacional de Seguros Privados e Capitalização (DNSPC) –, totalmente
desprovido de pessoal e de recursos”. ALBERTI, Verena (Org.). Entre a solidariedade e o risco: história
do seguro privado no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 205.
29
Cf. RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 21ss., para a história
interna do direito de supervisão da atividade seguradora.
30
Na conhecida proposição de Engish, o método da casuística há de ser compreendido como aquele que
emprega “a configuração da hipótese legal (enquanto somatório dos pressupostos que condicionam a
estatuição) que circunscreve particulares grupos de casos na sua especificidade própria” (ENGISH, Karl.
Introdução ao pensamento jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1966, p. 188. Desse modo, a
casuística “não significa outra coisa senão a determinação por meio de uma concreção especificativa, isto
é, a regulação de uma matéria mediante a delimitação e determinação jurídica em seu caráter específico de
um número amplo de casos bem descritos, evitando generalizações amplas como as que significam as
cláusulas gerais”. (ENGISH, Karl. La idea de concreción a em el Derecho y em la Ciencia Juridica
Actuales. Tradução espanhola de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Ed. Universidad de Navarra, 1988,
p. 180, em tradução livre).
9
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
31
Acerca dessas técnicas legislativas, seja consentido reenviar a: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no
direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 142-146; pp. 174-195.
32
ALVIM, Pedro. Política brasileira de seguros. São Paulo: EMTS, 1980, pp. 174-175.
10
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
33
Para as linhas gerais do sistema, cf. COUTO E SILVA, Clóvis. O seguro no Brasil e a situação das
seguradoras. In: FRADERA, Vera Jacob de (Org.). O direito privado na visão de Clóvis do Couto e Silva.
2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, pp. 95-111, pp. 105ss., e RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes.
Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 138ss.
34
Decreto-Lei no 73/1966, art. 32 e 36.
35
Decreto-Lei no 73/1966, art. 44.
11
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
25. Com a redução da influência do IRB nos anos 90, CNSP e SUSEP passaram
a exercer efetivamente suas competências normativas. Desde então, e nos últimos 30
anos, o modelo brasileiro de regulação do mercado de seguro produziu um sistema
normativo do seguro abrangente, mas volátil, espraiado em um sem-número de circulares
e resoluções editadas conforme os ventos políticos à frente da SUSEP.
26. Não há óbice legal a essa atividade, desde que desenvolvida de modo
vinculado à lei, destinando-se a completá-la ou a explicitá-la, e conforme às finalidades
da regulação do mercado. O problema ocorre quando se afronta, por antinomia clara, o
texto legal, o que se verifica com o art. 4º da Resolução no 407/2021, em manifesto
excesso aos limites constitucionais ao poder normativo da Administração Pública
(ii) os limites do poder normativo estabelecidos pelo art. 32, IV, do Decreto-Lei no
73/1966
36
Fundamentalmente a SUSEP, já que o CNSP jamais foi órgão deliberativo autônomo: “Segundo o
depoimento de alguns entrevistados que foram conselheiros do CNSP no período militar, o organismo era
um órgão enfraquecido, sem grande poder deliberativo, uma vez que a área econômica tomava as principais
decisões sem trazê-las para a discussão do conselho”. Cf. ALBERTI, Verena (Org.). Entre a solidariedade
e o risco: história do seguro privado no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 216. Cf. p. 245 para o arranjo
das autarquias após os anos 90. Atualmente, a SUSEP define as deliberações do CNSP, sendo responsável,
v.g., por todo o trabalho de secretaria (art. 34, XI, decreto no 60.459/1967).
37
RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 43 ss.; ALBERTI,
Verena (Org.). Entre a solidariedade e o risco: história do seguro privado no Brasil. Rio de janeiro: FGV,
1998, pp. 244ss.
38
Vide Parte II deste Parecer.
12
JUDITH MARTINS-COSTA
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39
ADIn nº 2387, Tribunal Pleno, rel. p/ Acórdão Min. Ellen Gracie, j. em 21.02.2001.
40
REALE, Miguel. Questões de Direito Público. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 174.
41
ADIn 1.668-MC, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 20.08.1998.
13
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31. Em terceiro lugar, não há, no art. 32, inciso IV, do Decreto-Lei nº 73/1966,
diretrizes claras, de modo que também o topos da definição parcial da norma não se
verifica, assim carecendo também de limites à discricionaridade do administrador. Não
trazendo o texto qualquer predefinição da hipótese legal, deve-se extrair os limites à
arbitrariedade da Administração Pública das finalidades da regulação declaradas pelo
legislador, com o que o topos da definição parcial deve ser complementado pela análise
do fim atribuído às entidades do SNSP pelo Decreto-Lei no 73/1966.
33. Ora, a Resolução nº 407/2021 não persegue nenhuma dessas finalidades. Além
de o ato administrativo não guardar qualquer vínculo com a tutela da solvência das
seguradoras, a Resolução afasta normas que, ou não se relacionam com a expansão do
mercado segurador, como comanda o art. 107 do Código Civil, ou são estabelecidas para
42
“Art 5º. A política de seguros privados objetivará: I - Promover a expansão do mercado de seguros e
propiciar condições operacionais necessárias para sua integração no processo econômico e social do País;
II - Evitar evasão de divisas, pelo equilíbrio do balanço dos resultados do intercâmbio, de negócios com o
exterior; III - (Revogado pela Lei nº 13.874, de 2019) IV - Promover o aperfeiçoamento das Sociedades
Seguradoras; V - Preservar a liquidez e a solvência das Sociedades Seguradoras; VI - Coordenar a política
de seguros com a política de investimentos do Govêrno Federal, observados os critérios estabelecidos para
as políticas monetária, creditícia e fiscal.”
43
Destaquei.
14
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44
Vide Parte II deste Parecer.
45
Sintetizam Vaughan e Vaughan: “Originally, the goals of insurance regulation were understood and
generally agreed on by all concerned. The function of insurance regulation was to promote the welfare of
the public by ensuring fair contracts at fair prices from financially strong companies. The market failures
that insurance regulation was intended to correct were insolvencies (no matter what their source) and
unfair treatment of insureds by insurers. In short, the dual goals of regulation were solvency and equity.”
(VAUGHAN, Emmett; VAUGHAN, Therese. Fundamentals of risk and insurance. 11. ed. Nova Jersey:
Wiley, 2014, p. 99).
15
JUDITH MARTINS-COSTA
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a partir da arrecadação. 46 De outro, regula-se o seguro para proteger o segurado, pois esse,
incontroversamente, dispõe de menor poder de barganha do que as seguradoras
(assimetria negocial) e de menos informações sobre o contrato a ser celebrado (assimetria
informativa). 47 Combatem-se essas assimetrias por meio de um dever de transparência
agravado da seguradora, que deve esclarecer adequadamente ao segurado o conteúdo do
seguro contratado e elaborar apólices simples e compreensíveis, bem como por meio do
controle de cláusulas abusivas. 48
38. Assim sendo, os poderes amplos de editar regras gerais do contrato de seguro
atribuídos ao CNSP (art. 32, IV, do Decreto-Lei no 73/1966) e de fixar as condições de
apólices concedidas à SUSEP (art. 36, “b”, “c”, “e”, do Decreto-Lei no 73/1966) devem,
em respeito à liberdade de iniciativa, seguir os limites impostos pela finalidade da
regulação do seguro, isto é, garantir a solvência das seguradoras e proteger o segurado.
Para cumprir essas funções, não é necessário – nem constitucionalmente adequado – que
autarquias editem regras gerais sobre o contrato de seguro, ou definam integralmente o
46
RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 94-97. A doutrina aponta,
no entanto, que a garantia da higidez é tutela do segurado. “A ideia é tão banal quanto indiscutível: o
controle do Poder Público sobre o setor de seguros nasce e se desenvolve para que os interesses dos
segurados, afiliados e aderentes das companhias de seguros e das sociedades de socorro mútuo sejam
garantidos, e de forma cada vez melhor.” Cf. BIGOT, Jean (Org.). Traité de droit des assurances. 2. ed., v
I. Paris: LGDJ, 1996, p. 417 – trad. livre). No mesmo sentido, STIGLITZ, Rubén. Derecho de seguros. 5.
ed., vol. 1. Buenos Aires: La Ley, 2008, pp. 46 e ss.
47
RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, p. 98.
48
RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, p. 121.
49
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Atividades privadas regulamentadas. In: ARAGÃO, Alexandre Santos
de (Org.). O poder normativo das agências reguladoras. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, pp. 167-203
aponta a livre iniciativa como principal limitador da regulação em atividades econômicas em sentido estrito.
50
Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica. 3. ed. São Paulo: Quartier Latin,
2021, pp. 23ss.; SCHAPIRO, Mario Gomes (Coord.) Direito econômico regulatório. São Paulo: Saraiva,
2010, pp. 81-113; pp. 425-469. Dado que a política nacional dos seguros é definida pela própria
administração pública (art. 32, I, decreto-lei no 73/1966), dentro de parâmetros genéricos (art. 5º), não é
uma política pública específica que legitima a intervenção Estado no mercado. Especificamente sobre os
outros fins da regulação do mercado, cf. KLEIN, Robert. Insurance market regulation: catastrophe risk,
competition, and systemic risk. In: DIONNE, Georges. (Org.). Handbook of insurance. 2. ed. Nova York:
Springer, 2013, pp. 909-940.
16
JUDITH MARTINS-COSTA
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39. Também por essa perspectiva, portanto, não encontra fundamento a Resolução
nº 407/2021, à medida que, além de não tutelar o segurado, contradizendo a finalidade da
regulação, ela decorre do exercício excessivo do poder normativo da autarquia. Não há,
pois, justificativa adequada para a imposição de amplos modelos negociais (tais como
ficção de paridade, prescrição de forma ao negócio) pelo CNSP.
40. Entendo, por essas razões, que a análise da Resolução não configura questão
de mera ilegalidade, mas sim de inconstitucionalidade. Trata-se da sanção adequada ao
regulamento que pretende suprir a lei, nas matérias em que esta é exigida pela
Constituição Federal, 53 o que é reforçado pela jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal. 54
41. Feitas essas considerações, posso alcançar a primeira conclusão: o art. 32, IV,
do Decreto-Lei no 73/1966, bem como outros dispositivos da mesma lei que atribuem ao
CNSP e à SUSEP o poder de intervir nos contratos de seguro, 55 devem ser interpretados
de forma restritiva à luz da reserva de lei, quer para o Direito Civil, quer para a política
51
A virada para um modelo repressivo em vez de prescritivo é sensível nos atos normativos da autarquia.
Todavia, não basta, por exemplo, o previsto na recém-editada Circular SUSEP nº 667/2022, de 04.07.2022:
“Art. 3º As sociedades seguradoras são responsáveis pelas cláusulas constantes em seus produtos, que
devem estar em conformidade com a legislação vigente. [...] Art. 5º Não poderão constar das condições
contratuais cláusulas coercitivas, desleais, abusivas, incompatíveis com a boa-fé ou que estabeleçam
obrigações iníquas, que coloquem o segurado, beneficiário ou assistido em desvantagem, ou que contrariem
a regulação em vigor.” Ao assim editar a norma, a Superintendência reproduziu em grande parte as
vedações já constantes na legislação em vigor (art. 104, CC; art. 51, CDC), sem dar qualquer concretude.
Isso somente ocorre, v.g., no art. 6º: “Art. 6º A denominação do plano de seguro, incluindo o nome fantasia
dos planos de seguros comercializados, se utilizado, não deverá induzir os segurados a erro quanto à
abrangência das coberturas oferecidas”.
52
Em grande parte dos sistemas europeus, não há controle geral de conteúdo das apólices desde os anos 90.
Na maioria dos casos, o conteúdo das apólices é controlado pelas regras gerais de contratos não paritários
(vide, e.g., MESQUITA, Maria José Rangel. Direito administrativo dos seguros. In: OTERO, Paulo;
GONÇALVES, Pedro. Tratado de direito administrativo especial. Vol. II. Coimbra: Almedina, 2009, pp.
376-505, pp. 403ss.; ROSSETTI, Marco. Il diritto delle assicurazioni. Vol. 1. Pádua: CEDAM, 2011, pp.
468ss; BIGOT, Jean (org.). Traité de droit des assurances. 2. ed., vol. I. Paris: LGDJ, 1996, pp. 469ss., que
relata uma experiência relevante. Embora a autarquia fiscalizadora francesa possa impor o uso de algumas
cláusulas no interesse dos segurados, ela não pode violar a reserva da lei do direito das obrigações. Assim,
considerou-se ilegal a imposição de cláusulas que definiam termos como “obras civis” e “obras”,
modificando os direitos do segurado, por exceder-se a competência da fiscalização.
53
LEAL, Victor Nunes. Lei e Regulamento. In: LEAL, Victor Nunes. Problemas de Direito Público. Rio
de Janeiro: Forense, 1960, p. 74.
54
O tema foi longamente discutido em ADIn 4.874, Plenário, rel. Min. Rosa Weber, j. em 01.02.2018.
55
Nomeadamente, art. 36, “b”, “c”, “e”, do Decreto-Lei no 73/1966
17
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de seguros (art. 22, I e VII, Constituição Federal), justificando-se apenas quando se tratar
de regulamentação conjuntural e for exercido conforme as finalidades da intervenção do
Estado sobre a atividade seguradora, a saber: garantia da higidez financeira das
companhias de seguro e combate às assimetrias negocial e de informação entre partes.
Como consequência dessa interpretação adequada à Constituição do poder normativo do
CNSP, o art. 32, IV, do Decreto-Lei nº 73/1966 não permite a edição de atos com o
conteúdo que tem a Resolução nº 407/2021.
43. Foi o CNSP, portanto, guiado por uma leitura incorreta do art. 32, IV, do
Decreto-Lei no 73/1966, ao editar a Resolução nº 407/2021, incorrendo em
inconstitucionalidade formal. Ademais, o conteúdo da Resolução está em dissonância
56
A distinção é feita pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (v.g., RE 570.680, tribunal pleno,
rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 28.10.2009). Em julgado recente, o tribunal colocou-a claramente:
“2. A função normativa das agências reguladoras não se confunde com a função regulamentadora da
Administração (art. 84, IV, da Lei Maior), tampouco com a figura do regulamento autônomo (arts. 84, VI,
103-B, § 4º, I, e 237 da CF).” (ADIn 4.874, tribunal pleno, rel. Min. Rosa Weber, j. em 01.02.2018). Como
registra Vítor Nunes Leal, a vedação histórica à delegação legislativa foi contornada pela hipertrofia do
poder regulamentar (LEAL, Vítor Nunes. Delegações legislativas. Revista de direito administrativo, vol.
5, pp. 378-390, p. 386, 1946), razão pela qual a doutrina e jurisprudência igualavam as funções a fim de
permitir a atuação normativa da administração pública dentro dos limites constitucionais.
57
“O princípio é o de que, no sistema brasileiro, o poder regulamentar é de competência exclusiva do chefe
do Poder Executivo. Autoridade alguma o pode substituir no exercício dessa competência, que, por
natureza, é indelegável. Então, trata-se de verificar o significado da ação reguladora das agências do Poder
Executivo. [...] Se essas agências não podem criar normas legais nem têm poder regulamentar, que natureza
tem sua ação reguladora? Temos, então, três tipos de normatividade: norma de lei, norma regulamentar e
norma reguladora? Diogo de Figueiredo Moreira Neto o reconhece: [...]. Essa é uma doutrina aceitável
[...].”, SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2008,
pp. 485-486.
58
ADIn 4.874, tribunal pleno, rel. Min. Rosa Weber, j. em 01.02.2018
18
JUDITH MARTINS-COSTA
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com o próprio fundamento sobre o qual se arvora a lícita regulação do Estado. Esse é o
tema que agora será mais bem examinado.
59
Segundo o parecer eletrônico 6/202/CGRES/DIR1/SUSEP (Disponível no processo SUSEP nº
15414.611072/2020-44, que pode ser consultado no site da autarquia), que introduz e defende a adoção da
minuta de resolução, três razões justificariam a introdução da categoria: (i) ao contrário do que ocorre em
seguros massificados, segurados têm plena capacidade de negociar com as seguradoras em seguros
vultosos, o que justificaria uma menor intervenção do Estado para tutelar os direitos do segurado; (ii) a Lei
no 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), em seu art. 3º, VIII, e na modificação que operou no art.
421 do Código Civil, recomenda a intervenção com “viés principiológico” nesse tipo de seguro, legitimando
regulamentação distinta da que ocorre nos seguros massificados e (iii) a distinção entre seguros de grandes
riscos e massificados está alinhada às melhores práticas internacionais.
19
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
II - boa fé;
60
Todos os destaques são meus.
20
JUDITH MARTINS-COSTA
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48. A questão que se coloca, em face dos argumentos sustentados pelo CNSP e
Federações a ela aderentes, é se o art. 3º, VIII, da Lei da Liberdade Econômica ou o
próprio art. 421-A do Código Civil produziriam as exceções ao regime comum previstas
na Resolução nº 407/2021 para os contratos de seguros celebrados com as características
ali elencadas (ramos específicos, limites de garantia altos, faturamentos substanciais etc.),
como argumentam a SUSEP e a Advocacia-Geral da União. E a resposta parece-nos
claramente negativa.
61
Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei
expressamente a exigir.
21
JUDITH MARTINS-COSTA
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50. Como tem sido acentuado por doutrina não limitada apenas ao parafraseio da
Lei, as “novas regras” alardeadas pela Lei de Liberdade Econômica nada
substancialmente inovaram, pois os contratos civis que não envolvem relações de
consumo e os contratos empresariais sempre foram, prima facie, tidos como “paritários”,
sendo os negócios jurídicos a expressão por excelência da autonomia privada. Em rigor,
aí se repete cânone hermenêutico milenar do direito (in dubio pro libertate),62
especialmente no Direito das Obrigações, província do Direito Privado na qual a
autonomia privada encontra sua máxima expressão. Em rigor, o enunciado legislativo,
para além de proclamar o óbvio, 63 tem função meramente retórica, a sublinhar o caráter
marcadamente ideológico e pleonástico da Lei 64 reforçando o já disposto no art. 3º, V, do
mesmo texto legal, esse igualmente pleonástico: existindo dúvida se uma determinada
norma é cogente ou dispositiva, deve-se adotar a intepretação mais favorável à liberdade
de estipulação.
51. Aliás, mesmo que aí tivesse sido introduzida novidade no Direito Contratual,
essa regra seria aplicável apenas em casos nos quais o contrato é efetivamente paritário,
não podendo ser assim qualificada a maioria absoluta dos contratos de seguro. Mas, ainda
que o fosse, a regra não constituiria fundamento suficiente para afastar certas regras do
Código Civil, como, e.g, a liberdade de formas (art. 107, Código Civil), que os arts. 4º,
62
Registrado, no mínimo, desde o direito romano – C.7.6.1.11. Não se trata de regra perdida e recentemente
retomada. Pontes de Miranda observa “[N]a dúvida sobre se a regra jurídica é cogente, dispositiva, ou
interpretativa, tem-se por dispositiva (cf. O. Von Gierke, Deutsches Privatrecht, III, 116).” PONTES DE
MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Tomo XXIII. 3. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1984, p. 7.
63
“Na realidade, o art. 3º, VIII, da Lei nº 13.874/2019 não precisaria ter sido introduzido em nosso
ordenamento, pois encerra talvez a mais básica lição de Direito, sem a qual toda a ordem social e jurídica
ruiria: as pessoas e as empresas podem fazer e pactuar o que bem entenderem, desde que não aviltem Lei
cogente/de ordem pública.” (FORGIONI, Paula. A interpretação dos negócios jurídicos. In: MARQUES
NETO, Floriano Peixoto; RODRIGUES JR., Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. (Coord.)
Comentários à lei da liberdade econômica. São Paulo: RT, 2019, p. 286 (e-book).
64
Assim apontou-se em MARTINS-COSTA, Judith; NITSCHKE, Guilherme. Origem e eficácia da Lei de
Liberdade Econômica. In: MARTINS-COSTA, Judith; NITSCHKE, Guilherme (Coord.) Direito privado
na lei da liberdade econômica: comentários. São Paulo: Almedina, 2022, p. 36.
22
JUDITH MARTINS-COSTA
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65
“Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de
elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos
previstos em leis especiais [...].”
66
Sobre presunções, permite-se referir MARTINS-COSTA, Judith. De princípios, regras, ficções e
presunções (e de algumas desastrosas confusões). In: MITIDIERO, Daniel; ADAMY, Pedro (Coord.).
Direito, Razão e Argumento: a reconstrução dos fundamentos democráticos do Direito Público com base
na Teoria do Direito. Liber Amicorum Professor Humberto Ávila. Salvador: Jus Podivm, 2021, pp. 353-
366.
67
“Em evidência a questão se, diante da disciplina regulatória dos seguros de grandes riscos, com relação
a estes se afasta a característica como contratos de adesão que é própria do seguro. A rigor, a definição
legal, isoladamente, não é suficiente para a dispensa da qualificação. A par do regime especial instituído
para o seguro de grandes riscos, são o contexto fático e as circunstâncias da contratação que deverão dar
causa a sua classificação como de adesão ou não”. MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos
seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 201.
68
Para o que segue, BIGOT, Jean (Org.). Traité de droit des assurances. Vol. III. 2. ed. Paris: LGDJ, 2014,
pp. 8 e ss.
69
Basta pensar em um dado: quanto mais jogadas ocorrem, mais fácil é retirar dos resultados concretos a
frequência estatística de um resultado específico (quando mais se jogar o dado, mais fácil é inferir dos
resultados que a chance de qualquer lado ficar à mostra é de 1/6, o número de lados do cubo).
23
JUDITH MARTINS-COSTA
Professora. Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
previsão sobre a frequência e a intensidade dos sinistros (riscos que se realizam e lesam
o interesse segurado) contra os quais os consumidores do produto “seguro” pretendem se
proteger. Daí dizer-se que o seguro moderno se baseia em atuária e estatística, afastando-
se da aposta e da atividade baseada no savoir-faire específico do comerciante. 70
55. Mas para que essa lei matemática funcione, uma premissa é fundamental: os
riscos devem ser homogêneos. A estatística deve referir-se a um mesmo tipo de risco,
cujo cálculo determina o valor cobrado de cada segurado para assim sustentar a
comunidade de risco. 71 “Não se deve misturar as cenouras com as ervilhas”, resume um
famoso tratado francês. 72 A garantia de homogeneidade dos riscos, dado que o seguro é
um produto jurídico, está na padronização do contrato distribuído pela seguradora, pois,
mesmo sendo cada segurado único, a companhia de seguro idealmente obriga-se a
garantir o mesmo risco de todos os segurados de um ramo específico. 73 Diante desses
fatores, é de considerar como regra que, não havendo prova do amplo exercício da
liberdade negocial pelo segurado, deve-se presumir que as cláusulas da apólice foram
impostas pela seguradora, em prol da uniformização dos riscos garantidos.
56. É bem verdade que essa gestão estatística do seguro, por vezes é relativizada,
quer por limitações jurídicas e comerciais, quer por questões mesmo técnicas, 74
impedindo seja a companhia de seguro considerada apenas administradora de uma
comunidade de risco. Mais do que administradora, a seguradora é uma empresária do
risco, que usa de métodos estatísticos e outras técnicas complementares para garantir de
forma sólida e adequada uma massa de segurados pelo menor prêmio possível. Como
regra, a estatística é a melhor e principal técnica empregada pelas seguradoras para
70
Sobre a história do contrato de seguro, cf. ROSSETTI, Marco. Il diritto delle assicurazioni. Vol. 1. Pádua:
CEDAM, 2011, pp. 50 ss.
71
Maria Inês de Oliveira Martins, a propósito da atividade das seguradoras modernas, observa: “Assistimos,
pois, a uma inversão do ciclo de produção: o preço do serviço é estabelecido antes de o segurador conhecer
o correspondente custo, que só conhecerá efectivamente depois de regularizar todos os sinistros ocorridos
durante o exercício”. OLIVEIRA MARTINS, Maria Inês. Da incerteza ao risco: as técnicas seguradoras e
o seu referente, num diálogo com Knight. Boletim de Ciências Económicas, ano 57, vol. 2, pp. 2143-2210,
p. 2144, 2014.
72
BIGOT, Jean (org.). Traité de droit des assurances. Vol. III. 2. ed. Paris: LGDJ, 2014, p. 9.
73
“Ocorre que o contrato de seguro, talvez mais do que qualquer outro, exige a padronização. Está é um
dos alicerces da técnica securitária [...].”, RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Direito de seguros. São Paulo:
Atlas, 2006, p. 121.
74
BIGOT, Jean (Org.). Traité de droit des assurances. Vol. III. 2. ed. Paris: LGDJ, 2014, p. 13.
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57. Presentes esses dados de realidade, é fácil constatar, em segundo lugar, que os
“elementos concretos”, mencionados no artigo 421-A, já estão presentes na própria
operação de seguro. Há presunção simples, derivada da experiência, de que o contrato de
seguro – mesmo o de grandes riscos – é formado por adesão a contrato predisposto, sendo
concluído entre partes assimétricas do ponto de vista negocial e informacional. O ônus de
prova, assim, é da seguradora, a quem compete demonstrar que, ao contrário do que
normalmente acontece, aquele contrato específico foi substancialmente negociado entre
partes com poder econômico e conhecimento sobre o conteúdo da apólice de seguro
semelhantes.
75
“O segurador que abrir mão da padronização contratual em benefício de um segurado prejudicará a si e
aos demais segurados.” (Assim, RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Direito de seguros. São Paulo: Atlas,
2006, p. 121). Nesse caso, seria necessário, v.g., utilizar resultados de um dos grupos que compõem a
carteira da seguradora para compensar as deficiências de outro.
76
“A tripartição classificatória dos contratos entre contratantes formalmente iguais, contratos entre
empresas e contratos consumeristas se enriquece com uma nova categoria: o contrato assimétrico, no qual
a assimetria (informativa, de poder negocial, de poder de imposição) não diz respeito apena ao consumidor,
mas igualmente à pequena empresa, e, de forma mais geral, a parte exposta ao abuso de poder econômico
da contraparte” ALPA, Guido. Le stagioni del contratto. Bolonha: Mulino, 2012, p. 143. (trad. livre). O
contrato assimétrico, é importante frisar, não se relaciona com o contrato desequilibrado na perspectiva da
comutatividade (a ensejar a aplicação de institutos como a lesão e a resolução por onerosidade excessiva).
Embora o combate do equilíbrio do contrato arvore-se na justiça comutativa, no caso do contrato
assimétrico, trata-se de um desequilíbrio de poder, enquanto o controle da comutatividade, seja genética,
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62. Por outro lado, o fato de um seguro ser celebrado por uma pessoa jurídica e
envolver valores vultosos não o retira automaticamente da proteção do CDC. Nesse
ponto, além de a redação do enunciado constante da Resolução no 407/2021 confundir
parte formal (quem emite declaração negocial) e parte substancial (quem ocupa o
conjunto de posições jurídicas constituídas pelo negócio jurídico), 77 pode inclusive
afastar a proteção legal ao consumidor segurado. Porém, em seguros coletivos ou no
seja funcional, ata-se a um desequilíbrio de valor (LASBORDES, Victoire. Les contrats déséquilibrés. Vol.
1. Aix-en-provence: PUAM, 2000, p. 45.) Versei o tema em: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no
direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, pp.320-321.
77
TOMASETTI JÚNIOR, Alcides. A parte contratual. In: ADAMEK, Marcelo V. von (Coord.). Temas de
direito societário e empresarial contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 755-764.
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63. Não por outra razão, o par conceitual oposto utilizado na prática internacional
é outro. Nos termos empregados pelo Relatório da Comissão Especializada em Direito
Europeu os Contratos (o qual baliza boa parte da prática internacional), a definição se dá
pela negativa: o seguro de grandes riscos é aquele que não se qualifica como “seguro de
massa”. “Large risks” se opõe, assim, a “mass risks”, para significar a possibilidade (e
não a obrigatoriedade) de haver uma maior margem para se atender às necessidades
particulares das partes. Mas mesmo esses podem ser formados por adesão, total ou
parcial, a regras unilateralmente estabelecidas, e não escapam à incidência de regras
legais cogentes. 78
64. Ora, classificar os contratos de seguro como contratos paritários, tout court,
significa afastá-los do regime protetivo específico no direito brasileiro. Classificá-los
assim, por meio de uma presunção absoluta, mais próxima a uma ficção, como faz a
Resolução nº 407/2021, é tolher os mecanismos compensatórios da assimetria negocial
entre partes. Os efeitos práticos da reclassificação do contrato de seguro de grande risco
como paritário, pelo mínimo, afastam as regras protetivas à parte mais fraca no contrato
de adesão previstas no Código Civil (art. 423 e 424); e apartam o seguro de grande risco
do regime geral protetivo do CDC.
65. Por todas as razões até aqui assinaladas, posso alcançar a segunda conclusão:
a Resolução nº 407/2021, introduzindo modificações relevantes no regime jurídico dos
contratos de seguro de grandes riscos, extrapola a competência conferida ao CNSP, não
sendo possível derivar de qualquer outra norma prévia o conteúdo específico de ficção de
paridade e de forma prescrita. Além disso, ao regular o contrato de seguro de grandes
riscos, o CNSP afastou normas legais protetivas relevantes, aplicáveis mesmo quando o
segurado satisfizer os requisitos estabelecidos no art. 2º da Resolução nº 407/2021.
78
O tema foi examinado em: MARTINS COSTA, Judith e XAVIER, Rafael. A cláusula de ensuing loss
nos seguros all risks. In: TZIRULNIK, Ernesto e TOLEDO PIZA, Paulo. Direito do Seguro
Contemporâneo. Edição Comemorativa aos 20 anos do IBDS. Vol. II. São Paulo: Roncarati, 2021, pp. 13-
44.
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66. Examinado o tema sob todos os ângulos de análise que enseja, posso
conclusivamente, afirmar: (i) Há inconstitucionalidade formal por violação da reserva da
lei (art. 22 da Constituição Federal). A Resolução nº 407/2021 excede uma regulação
conjuntural, estando desalinhada com os fundamentos da regulação da atividade
seguradora e invadindo espaço reservado à lei em sentido formal (vide itens 8-43, supra);
(ii) a mesma Resolução inova no ordenamento jurídico, pois nenhum dos seus
dispositivos pode ser derivado da Lei da Liberdade Econômica, como alegado, para além
de produzir consequências nocivas que eliminam proteção assegurada legal e
constitucionalmente aos consumidores e aos contratantes por adesão em geral (vide itens
44-65, supra).
É o meu Parecer.
Judith Martins-Costa
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