Exercício 4 - Revista 2023 - VIDA 1972-2022

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VIDA

24 JULHO 1972 24 JULHO 2022

FIZ 50, E AGORA? COM RETOQUES


OU ORIGINAL DE
Como se sente FÁBRICA?
a tiazona de Pasmem:
hoje e o que nem toda mulher
mudou em relação faz procedimentos
às senhoras do estéticos invasivos
passado
IMAGEM DA CAPA

CARNAVAL DE RUA EM ITÁPOLIS, NO


INTERIOR DE SÃO PAULO E CIDADE
NATAL DO LUIZ,
FEVEREIRO DE 2018.

EU E DONA MARIAZINHA, FIGURA


ICÔNICA NOS CARNAVAIS DA CIDADE.
EX PROFISSIONAL DO SEXO,
ATUALMENTE É CUIDADORA DE IDOSOS
E TEM UMA FILHA ENFERMEIRA.
HISTÓRIA QUE A ORGULHA.
VIDA| PÁGINA 03
ÍNDICE
pág.03 pág.0x
COMER UMA BANANA AMANHÃ PODE SER TARDE E
NUNCA
é uma das duas únicas lembranças que tenho da
minha mãe da carta não entregue e da última visita não
feita
pág.05
O CAFÉ E OS CORRES
pág.0x
para mim o café é um vício DOS COMPLEXOS

só nós vemos o que nos faz sentir


pág.05 incomodadas

FÉU
quando as crianças socializam entre os pares
pág.0x
pág.08 SINTO
CADERNOS DE RECORDAÇÕES um desabafo durante a pandemia de Covid-19
achados que atravessam o tempo, hábitos que
são legais, passam a ser clichê e voltam como
um doce rio de memórias de quem conheceu
quem amamos
pág.0x
pág.09
HERANÇA
FRANKIE
é o que as pessoas são em um relacionamento, quando o machismo invade a juventude e
uma parte do nosso utópico amado interrompe sua plenitude
Frankenstein
VIDA| PÁGINA 02

pág.0x pág.0x
VIVA O SIMPLES PAULISTA DA CAPITAL

quando o machismo invade a juventude e sentimentos de solidão e pertencimento na


interrompe sua plenitude minha cidade natal
Às vezes não sei quem eu sou. Sou muitas e
ninguém ao mesmo tempo.

Paulistana nascida em 1972, filha de


pernambucano e mineira (por acaso, vô de
passagem com a família em BH pro Tiro de
Guerra), criada pela primeira madrasta mineira.
Passei a adolescência indo e vindo ao pantanal
sul-mato-grossense.

Irmã de muitos irmãos, uma mais jovem já


falecida. Casada com paulista itapolitano, mãe de
um adolescente e madrasta de um jovem adulto.
Tutora dos felídeos adotados Té, Titi e Biloka
Miléia, depois do falecido Peté.

Educadora em museu de arte e professora de


artes visuais. Quase fotógrafa, uma frustração por
ter deixado sempre para depois. Vida acadêmica
longeva, doutora em Educação. E aqui a escrever
memórias para quem se interessar - talvez só a
psicóloga - sobre a trajetória desde a mãe falecida
aos meus 3 anos, moradia com duas tias, duas
madrastas e cinco irmãos de três esposas de um
pai nada convencional.
VIDA| PÁGINA XX

Hoje estou na reta final do tratamento de um


câncer de mama, não vendo a hora de poder voltar
à rotina - trabalhar "fora" sempre me fez bem.
VIDA| PÁGINA 03
AUSÊNCIAS
Da praça que ficava num terreno inclinado, avistei minha casa. O
carrinho de metal em que estava era conduzido por uma jovem
senhora de avental, como esses de médico, tinha botões e manga
curta. Por ela não me recordo de sentir qualquer resquício de
afeição. Na calçada, em frente ao portão, avistei minha mãe com
um semblante sério. Nessa época não sei se meus pais ainda
estavam juntos, creio que não. Elas conversaram e devo ter
esboçado um não quero, pois ouvi de minha mãe, dirigindo-se à
senhora de modo assertivo: ela vai comer a banana, sim!
Entramos em casa, eu e minha condutora, pelo corredor lateral à
esquerda, não pela porta principal. Sobre o fim da banana, não
me recordo. Soube que minha mãe se preocupava com minha
alimentação - me fazia tomar fígado cru batido no liquidificador
que, provavelmente como um instinto de defesa e sobrevivência,
não me recordo da cor, nem do sabor.

O meu quarto tinha uma janela por onde o sol destacava a cor da
colcha de piquet, que era de um laranja bem forte. Da cama
encostada na parede dessa janela, eu estava sentada e vi minha
mãe parada à porta, me observando. Ela estava com uma barriga
protuberante. A pequena baleia inflável - meu brinquedo favorito
na época segundo minhas primas mais velhas, com quem morei
anos depois -, estava sobre a cama. Devo ter feito gestos, pois
novamente não me recordo do som da minha voz. Só me lembro
de tê-la ouvido responder: agora a mamãe não pode; quando
sarar, eu brinco com você. Na certidão de óbito consta cirrose e
sempre me disseram ter sido câncer no fígado. Ela não bebia
para tal, o que me deixou intrigada até saber, anos depois, que
VIDA| PÁGINA 04

esse tipo de tumor maligno pode ocorrer por um vírus - que só


foi descoberto em 1992 e ela faleceu em 1975, quando eu tinha
3 anos.
Cheguei a conhecer os móveis da sala de jantar da casa onde
morei com meus pais. Meu pai manteve-os em nossa casa
posterior, onde moramos com minha primeira madrasta. A
segunda madrasta, depois de alguns anos de casada e nessa
mesma casa, doou todos a uma funcionária doméstica sem
sequer me consultar, o que achei muita falta de consideração.
Chateou-me nem meu pai ter tido esse cuidado. Os móveis
eram de madeira escura e brilhante, torneados, com relevos e
do mesmo estilo. Minha mãe, quem os comprou, fiscalizava a
limpeza exaustivamente. Ao chegar do trabalho, passava a mão
para ver se não tinham pó. Trabalhava como secretária em uma
empresa de trens, a Sorocabana e, certamente, tinha uma
funcionária que vistoriava a dedo. Pelo que me contaram, ela
tinha personalidade austera e muito exigente. Às vezes me
pego pensando em como teria sido nossa relação diante de
minha autonomia desde a adolescência. Teríamos tido muitos
atritos? À presença dela, eu adquiriria um comportamento
menos independente? De qualquer modo, após os meus vinte
anos senti muito sua falta. E entre a alimentação e o brincar,
gostaria de poder convidá-la – e que realmente ela pudesse
aceitar - para sairmos juntas, comer e papear.
VIDA| PÁGINA 04
Na vibe de arrumar as estantes nas férias,
tornando este período em quarentena prazeroso
(sim, precisava e adoro), encontrei caderninhos
de recordações meus e de minha mãe. Uma
prática antiga, dado que a mensagem mais velha
no meu, data de 1981 e, nos de minha mãe, de
1956. Como disse uma admirável amiga há uns
20 anos, e que me marcou demais: “quem não
sabe onde encontrar o que tem, não tem!”; então
acabei de ressuscitar essas preciosidades. Coisas
CADERNOS DE
que numa época fazem sentido depois se tornam
meio clichê e, com o tempo, voltam com força e
RECORDAÇÕES
importância, memória afetiva de amigos e até de
xavequeiros (como meu pai escrevendo
efervescentemente no caderno de minha mãe!
Risos).

As caligrafias nos cadernos dela são


impressionáveis. Aliás, meus pais também tinham
uma letra maravilhosa; a do meu pai, digna de
“convites de casamento” e o vi no cotidiano
escrevendo dessa forma cuidadosa e linda, as
coisas mais simples.

No meu singelo caderno, pouco preenchido, há


uma linda carta da amiga de escola Verônica
Freire, de 1985. Incrível como ao apenas folheá-
lo, ao avistar a letra eu já sabia que era dela.
Fui (sou?) uma mini acumuladora, mas de
memórias. Dessas que precisei ter nas
intempéries da vida familiar, tendo minha mãe
falecido quando eu tinha 3 anos e meu pai ter me
perguntado quando eu tinha 25, em 1997, já com
sua quarta esposa, numa sexta-feira: “vamos
mudar de casa na segunda, para onde você vai?”
(e ele não mudou tão rápido). Precisei muitas
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vezes ver meus objetos, escritos, fotos e


materiais de trabalho para me sentir alguém, uma
pessoa com história, mesmo à beira de construir POSTADO NAS REDES SOCIAS INSTAGRAM E
FACEBOOK EM 12 DE JANEIRO DE 2021.
uma nova, sabia-se lá como e com que forças. E
foi assim que pude, depois de muitas mudanças,
reencontrar hoje esses tesouros.
O CAFÉ
E OS Anos morando sozinha, já lá perto dos 30, o

CORRES apego ao travesseiro morno continuava


firme e forte. Professora, tinha que estar
cedo e antes dos alunos na escola. Nessa
época, atravessar a cidade era praxe: Osasco
e Guarulhos estavam na rotina e sou
Antes era mais fácil. Acordava sozinha para ir
paulistana de nascimento e moradia. Café?
à escola desde os dez, onze anos. Esticava o
Amo, tomo até para dormir, mas... no embate
soninho até o último segundo, me jogava na
com o despertador... quantas vezes deixei
roupa já dobrada ao lado da cama – eu era
para sorver aquele almejado gole quente e
precavida – e criava coragem para lavar o
suavemente adocicado, tão sonhado e
rosto na água fria. Que sonho uma água
efêmero, de sopetão na cafeteira na sala dos
quentinha, ainda mais para quem adora
professores...
dormir. Pensando bem, a fria era mais
Décadas depois, quem dita o horário é a
adequada justamente por isso...
escola do filho. Continuo com profundo
A passagem do aconchego das cobertas para
apego ao sono e ele mais ainda. Aí me jogo
o uniforme gelado sempre foi um incômodo.
da cama, minha roupa não está mais
Às vezes eu já dormia com a camiseta da
separada. Chamo o jovem pela quinta vez –
escola por baixo da do pijama para não ter
meu marido consegue levantar uns minutos
esse choque térmico logo ao despertar.
antes de mim e já vai preparar o café.
Mesmo sempre esticando o tempo na cama,
Acordar e levantar são coisas bem
era só ir para a sala de jantar que a mesa
diferentes. Eu, por exemplo, acordo e fico
estava posta. Um café quentinho, pão
torcendo para conseguir relaxar a cada
crocante com requeijão ou manteiga e frutas
minuto antes do despertador tocar
já cortadas - nossa, como amo frutas e que
novamente e nem descanso - como se fosse
preguiça que tenho em pegá-las na geladeira
possível neste momento -, nem me levanto
ou na fruteira.
na primeira vez.
Meu pai sempre fez questão de frutas nas
Entre mais um “acorda, Eduardo!”, passo
refeições: mamão no café da manhã,
minha roupa, só uns desamassados mais
melancia, abacaxi, manga, banana ou laranja
proeminentes, e lá vem ele: primeiro o
no almoço. Da laranja, que descascava e
aroma, que remete ao fogão a lenha da casa
aquele cheiro cítrico doce me envolvia, me
da vó Dócia, no interior.
dava a tampinha, que eu adorava despetalar
depois para comer o bagaço. Por mais que a
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rotina matinal fosse corrida, eu morava longe


da escola, em uma chácara, sempre comia
algo no tal do desjejum e me lembro de às
vezes até levar o pão pra terminar no carro.
Como era sublime a visão daquele bule de
alumínio, com tampa e um graveto
esculpido em forma de Y no bico... o
visual era tão aconchegante que nem
tinha gosto de café requentado, pois
ficava a manhã toda sobre o fogão. Um
segundo imersa nessa lembrança e chega
a caneca que o Luiz preparou e sempre
nos serve no corre, a mim e ao Eduardo.
O pão ele sempre esquenta, seja daquele
de saquinho ou o da padaria favorita
comprado no dia anterior. Eu nem ligo,
mas o Edu e ele adoram. Enquanto os
meninos sentam à mesa e tomam café, eu
fico no corre. Sabe que agora nem me
lembro de quê? Nessa hora já estou
vestida, só vou ficar nervosa uns minutos
depois, quando o Eduardo vai escovar os
dentes após o café, vestir o uniforme e
calçar meia e tênis, em um tempo
infinitamente outro. Ah, pegar a mochila É nesse momento que me dou conta de que
também – falo tanto para deixar pronta não comi um pão quentinho nem uma fruta,
com os cadernos das aulas do dia seguinte quando a temos para o café da manhã: é que
e, ou me enrola, ou vive em outro mundo nunca sinto fome logo ao levantar.
porque sempre falta algo. Isso quando não Bebo tanto café que um médico me orientou
se lembra no elevador. a usar adoçante: você já pensou no tanto de
açúcar que consome diariamente só nos
Às vezes ele também vai comendo o
cafezinhos? Já outro pediu para eu reduzir as
lanche a caminho da escola – eu o levo,
doses no intuito de evitar insônia e sono
vou para o trabalho e lá consigo tomar um interrupto, assim como meu estado de
café com mais calma. constante aceleração, ou seja, ansiedade. Só
Chego cedo e vou para a copa sabendo que não consigo e, se der, tomo até perto da
que tem um café recém preparado hora de dormir, já sem sequer perceber seu
(porque após umas horas, mesmo quente, aroma afável e envolvente.
o sabor já não é o mesmo...). Caneca
servida com abundância, vou sendo MAIO DE 2021
embevecida por aquele aroma até a mesa.
Ligo o computador e degusto cada gole
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do café menos doce do que o da escola,


quando lecionava - esse eu que adoço.
DESAMOR
Filha minha não usa batom vermelho, nem brinco de
argola. Coisa de puta!
Se engravidar antes dos 18 anos ponho na rua!
Deserdo!
Depois dos 18 vai cuidar da sua vida. Eu saí de casa
com 14!
Filha mais velha, cresci ouvindo esses tipos de coisas de
você, pai. Perdi minha mãe para um câncer aos três
anos e depois, ganhei duas madrastas e cinco irmãos.
Ciúme? Não tinha. Sempre quis irmãos, muitos. Lembra
quando ficava olhando as roupas da Andria, naquela
gaveta de madeira do armário, bem perto do chão?
Tinha cinco anos e não via a hora dela nascer. Eles
cresceram... quando as meninas tinham 7 e 6 anos, eu
16, me socavam as costas no carro, chutando o banco
da frente, ao virmos da escola.
Não briga com elas, são pequenininhas... Lembra?
Sentia raiva, lágrimas amornavam minha bochecha
afogueada, mas sempre te obedeci.
Elas mexiam nas minhas coisas, justo nas minhas, que
sempre fui organizada. Guardava a coleção de papeis
de carta em sacos plásticos numa pasta, separados por
temática - flores, personagens da época, circo, cores
pasteis ou vibrantes - e a de borrachas com cheirinho –
era assim que na época se chamava - em caixas com
divisórias.
Indignada, te mostrei onde uma delas colocava as
minhas preciosas coleções, de modo socado: no
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armário ao lado do meu, eram todos sem chave aqueles


do móvel da sala.
Não briga com elas, são pequenininhas... Nossa,
quantas vezes ouvi isso e pior, te obedeci.
Daria mais trabalho tomar partido da filha órfã de mãe
diante das da atual esposa. Você, que parecia calmo, não
queria era conflito pelos filhos – educar dá trabalho. Sim,
te chamava de você, não de senhor; me cobrava
respeito, mas meu respeito não se escondia atrás de
palavras, estava na minha conduta.
Depois disso vieram questões mais sérias, da vida adulta.
São muitas mágoas, você bem sabe.
Exatos 15 dias antes de você falecer, tivemos aquele
raro momento de encontro de todos, na festa de
casamento do Chiquinho. Você estava muito faceiro,
como sempre. Bebeu todas, conversou muito. Era de
festejo, adorava contar seus momentos de glória como
se ainda fosse o galã de décadas atrás: cheio da grana,
de demagogia e ainda fazia questão de reforçar que era
um grande pai. Muita retórica, as glórias do passado já
haviam ruído. Seu castelo de areia a maré alta já o havia
tomado de volta. E você, se afogando, ainda acreditava
estar reinando na natação em águas abertas.
No final da festa, quando me viu saindo, me esperou e
disse: Se fiz algo que te magoou, me desculpe. Te amo,
filha.
Nos despedimos com um beijo e um abraço indiferentes.
Fortalecida, mas ainda fragilizada, já não sabia mais o
que era aquele amor que senti por você de forma cega
até o início da vida adulta. Você foi meu tudo, minha
segurança, meu exemplo e eu mal sabia quem era ou,
como uma psicóloga me disse, você era quem eu sempre
acreditei que fosse.
VIDA | PÁGINA 3
Naquele dia saí emudecida, de olhos mareados. Estava prestes a ter
confiança em mim para nos encontrarmos e eu finalmente conseguir,
sem cair aos prantos, questioná-lo sobre tantas histórias que haviam
me relatado. Foram pessoas de vários lados da família e que
remediaram me contar por muitos anos. Teria sido melhor saber
antes, eu não teria criado tanta aura em torno de alguém que me
faria sofrer por décadas.
Aquele infarto fulminante não me deu tempo de digerir, que dirá
VIDA | PÁGINA 3

responder ou rebater essa sua última frase. Queria ter te perguntado


o que era amar pra você e porque, só depois de tantos anos,
conseguiu me dizer isso.
HERANÇA
Se filha minha engravidar antes dos 18 eu deserdo. Como se
dinheiro fosse valor afetivo e descobrir-se sexualmente na
adolescência fosse sinônimo de gravidez, não de respeitar o
próprio corpo num mundo machista e o cuidado com as
doenças. Deveria ter feito. O inventário só escancara a falta
de compromisso e mal caratismo nas relações comerciais e
negócios. Só entendi o que era caixa dois depois de adulta,
se soubesse antes, teria tido vergonha.
Não quero herdar esta forma de conversar com meu filho
adolescente.
A descoberta da sexualidade para a filha de um machista
com comportamento típico do garanhão. Égua, cavala.
Touro, vaca. Galo, galinha. Cachorro, cadela.

Fui engravidar aos 32 e recém casada, não que os hipócritas


padrões sociais ditassem minha vida, mas por exemplo em
casa, sim: casamento e filhos não eram minha meta.
Também não fiquei avessa à possibilidade, só não tinha
pressa. Pelas experiências dele, que se casou oficialmente 4
vezes: 3 separações e uma viuvez.

Também percebi que herança não é sinônimo de paz


quando se entende por ela bens materiais. É bom, sim, mas
nada certo ou simples, tranquilo na tal divisão de bens.
Nunca esperei por ela: tratei de trabalhar por justamente
não querer depender de nada "dele". Bem entre aspas mas...
deixo pra lá nesse momento onde já me abstive de ser a
VIDAGEM | PÁGINA 4

inventariante. Meus irmãos nem querem saber do


inventário, mas não tivemos saída: eram muitas dívidas,
credores entraram em contato de pronto e sabe-se lá
quanto ficará ainda devendo: alguns milhões. Sim, milhões,
como tudo que o seu tanto prazer em vida: possuir.
flor
Ah, o mar

Queria ver o mar e brincar com sua pequena. Desceu para a praia com uma
das ex-sogras. Pisar a areia lhe causou um sorriso de canto de boca. Fechou
os olhos, sentiu o gosto do sal com areia dos capotes da infância, brincando
entre aquelas espumas que ardiam nos olhos, enquanto a mãe e os tios
bebiam e observavam as moças em seus biquínis pequenos. Elas cochichavam
e eles olhavam, sem qualquer discrição, cada pedaço de pele rija e macia feito
lençóis de cetim. O sorriso sumiu quando se deu conta de que ela, a irmã um
ano mais velha e as primas da mesma idade, não haviam sobrevivido, tinham
mesmo é vingado.

Sentir versus sentido

Queria deitar na cama e ler muitas histórias para a Melissa, já com 6 anos.
Desde os 4, ela recitava Vinícius de Moraes trocando o erre pelo ele. Era o
sentido da vida de Júlia, mãe empenhada em recuperar a guarda definitiva da
filha. Acreditava que ganharia o processo movido pelo Pietro: estava no
psiquiatra, na psicóloga e com as atividades físicas em dia – mandava bem no
parkour. E não é que conseguiu a guarda? Só aí sentiu novamente aquele
vazio.
Aconchego

Dia de encontrar a tia querida. Amava deitar com Ivete no sofá,


que lhe afagava as madeixas num cafuné que a aquecia feito
um bom café com leite e pão com a manteiga derretendo.

Levou, na bolsa, veneno para rato. A tia, sempre atenta, trocou


o pó das cápsulas por uma mistura emergencial: pó de café,
farinha de trigo, de mandioca e de rosca, bicarbonato de sódio,
fermento pra bolo. Júlia teve uma bela dor de barriga, sorriu,
olhou pra tia e disse: nem pra morrer, eu presto.

Sucesso

Queria, mais uma vez, atenção. Na volta do almoço,


permaneceu em seu carro vermelho escarlate, na frente da
empresa à qual havia se dedicado acima da média nos últimos
anos. Era assistente administrativa e de confiança do chefe
para assuntos financeiros. Foi ela quem achou aquele galpão
para a mudança de São Paulo, quando a prefeitura estipulou
horário reduzido para trânsito de caminhões na Marginal Tietê.

Júlia observou todos retornarem do almoço e tomou vários


comprimidos de uma vez, ali mesmo. Acreditava que teria
alergia em minutos e o resto do dia de licença médica.

No lugar da alergia, os psicotrópicos a deixaram


completamente zonza. A melhor amiga e colega de trabalho
apareceu para socorrê-la. Seu ex-marido chegou após a ligação
da amiga. Objetivo atingido.
Vivências

Adolescente, passava a faca no braço feito


manteiga no pão. Desde então passou a
tomar muitos medicamentos de uma vez,
até que chegou aos tarjas pretas da mãe e,
socorrida, foi amarrada na cama, na ala
psiquiátrica. A mulher era forte. No primeiro
casamento, abriu a farmácia do hospital;
tinha dito que estava lá para encontrar o
querido marido médico de surpresa e lhe
oferecer um jantar em comemoração à vida.
Tentou tomar veneno para rato na casa da
tia; já estava separada do segundo. Era
sedutora, extremamente simpática,
sorridente, doce e agradável. Mas foi na
solitária tecelagem de macramê que
conseguiu estancar sua dor.
Direito à vida

Aqui onde vivemos, a ninguém é dado o direito de tirar a


vida de outrem. O médico que errou, não podia. O paciente
que pede, não pode. A moça estuprada, nem sempre pôde.
E se você tentar e não conseguir, se fode.

Alívio

Mais uma vez olhou-se no espelho e não viu a pessoa


simpática, sempre sorridente e que atraía a atenção de
todos. Sentia que nunca estava bem aos olhos alheios,
muito menos aos seus. Morena jambo, 1,74m de altura,
cabelos incrivelmente finos e cacheados do meio para as
pontas, olhos repuxados; tinha muitas sardas no rosto, era
linda. Assim foi considerada pela família desde os 4 anos
quando, da careca, os primeiros fios desabrocharam até
formarem aquela cabeleira estonteante. Janete, um ano
mais nova, se sentia o patinho feio – a mãe sempre lhe
cortava o cabelo estilo Joãozinho, enquanto o da irmã só
crescia e recebia elogios. A desculpa era o piolho. Júlia
nunca se sentiu amada o suficiente e via, na segurança da
Janete, aquilo que queria ser. Dias antes de conseguir o
esperado alívio e partir, publicou em seu Facebook: pareço
pedra, queria ser pedra, mas nasci flor.
BICHO GEOGRÁFICO
5 anos. Manaus. Maiô de estrelinhas. Rio de água
quente e escura. Onça seguindo a toalha. Boto.
Restaurante no meio do rio. Pororoca. Calça marcada
pela pata do macaquinho. Cocô no maiô de estrelinha
dentro da piscina. Vergonha.

10 anos. Santa Rita do Sapucaí. Porcos. Gritos do


quintal. Tripas fervidas. Chouriço. Linguiça. Canudinho
com doces nas festas juninas. Grande muro branco em
frente, laticínio. Morros de terra úmida. Terra
vermelha. Atoleiros. Casa de parente.

11 anos. Ubatuba. Baiacu. Guaiamu. Conchas. Praia


deserta. Céu estrelado. Pesca noturna. Brincadeiras na
casa da vizinha. Primas. Cigarro enrolado num papel.
Corte no pé, uma pedra.

13 anos. Aquidauana. Berrante e o gado. Vanerão.


Tereré. Mangueira: castração, marca a ferro
incandescente, vacinação. Primeiro amor, impossível.
Cabelos ao vento. Cachoeira. Carroceria ao som alto.
Atoleiro. Tarântula. Jacaré tamanduá ema siriema.
VIDA | PÁGINA 3

Pegada de onça. Cobra no banheiro. Carrapato.


Carrapato e carrapato. Gritos no quintal. Boi em pé na
cerca. Carne adocicada. Churrasco.
CORIMBA
PIAU
DOURADO
PACU

ARRAIA
JACARÉ
TAMANDUÁ
EMA
SIRIEMA
ARARA
TUIUIÚ

JARARACA
CAPIVARA
PACA
TATU
TARÂNTULA

CARRAPATO

BAIACU
AMANHÃ
PODE SER
HOJE
21 de dezembro de 2021.
21-12-21.
Confirmação do diagnóstico de carcinoma,
câncer de mama para os acometidos.
Comecei a revista em 2020, contrariada pelo
ritmo frenético com o qual estava vivendo os
últimos meses. Ia chamar uma galera de meia
idade prum bar com sinuca na Augusta... aí
pensei, no próximo ano... e ainda não até
que... final de 2021 e ufa! Vacina, uhuuuu,
será em 2022, ano do bicentenário da
Independência do Brasil? Nãaaaaoooo. Do
centenário da semana de 22? Não não
nãummmm. Eis que... de meu meio século de
vi-daaaa!!!!!!

29 de janeiro de 2021, estamos saindo pra


testar (Covid-19) - a namorada do Edu
VIDA | PÁGINA 3

testou positivo ontem.


Pensávamos estar no fim da pandemia.
#sqn
Desnecessário,
mas carinhoso
155º dia. Acordei como sempre, peguei o
celular no móvel ao lado da cama. Olhei a
hora e voltei a deitar a cabeça no travesseiro,
que afofo como se pudesse sentir, naquele
instante, o maior aconchego da noite de sono
fragmentado; a insônia sempre volta. Meu
marido entrou no quarto com o café da
manhã: sim, já estava na hora. Segurava uma
das minhas canecas favoritas - a com a
estampa de Iara, sereia dos rios amazônicos -
e um pratinho de sobremesa branco com três
fatias de pão amanhecido, esquentadas na
torradeira: duas com manteiga e outra com
requeijão. Ele faz isso todos os dias e
comenta que a manteiga está derretida, para
eu comer essas primeiro.
Me troquei rumo ao hospital pensando na primeira
infusão, que tinha sido em 08 de agosto do ano passado.
Um sorriso de canto de boca escapou ao lembrar que, na
consulta anterior ao começo do tratamento, o doutor
Rodolfo e a Tânia, enfermeira que o assistia no
procedimento ambulatorial, perguntaram sobre o início
das sessões de quimio. Contei a data e eles me disseram
que esse dia era importante, o do portal 8 do 8 - algo que
tem a ver com numerologia e astrologia. Achei engraçado,
porque então todo mês tem seu portal, de 1 do 1 a 12 do
12. Aconselharam-me a mentalizar a cura. Ainda acho
esquisita e até clichê essa frase, para falar a verdade ela
me irrita, mas reconheço que foi carinhoso e eles me
distraíram durante a aplicação de soro pelo cateter da
prótese temporária (que eles chamam de expansor).

Saímos de casa e subimos a escadaria rumo ao


estacionamento. Eu e o Luiz moramos no Centro, em um
prédio sem garagem. Aquele odor de banheiro a céu
aberto foi entrando pelas narinas e tirou, como de
costume, qualquer deleite pós café da manhã e banho.
Tampei o nariz para suportar a subida, ofegante pela
respiração comprometida desde o início do tratamento, o
que me fez parar umas quatro vezes no fétido percurso.
Nem reclamo mais após 17 anos no mesmo apartamento
– penso nas pessoas em situação de rua e nos
trabalhadores volantes, numa cidade que não tem
banheiros públicos.
Naquele dia fui encaminhada à cabine 16, perto da ampla
janela de vidro do corredor. Podia ver a estátua do Duque
de Caxias na Praça Princesa Isabel. Na hora me lembrei de
que era a maior estátua equestre do mundo, assim como o
Duque havia sido um figurão na Guerra do Paraguai. Qual
memória esses monumentos buscam perpetuar? Até
pouco tempo, sempre a do opressor, homenageado como
um defensor da pátria amada e hostil.

Roberta, assistente de enfermagem, entrou na cabine para


colocar o acesso em minha mão. Me olhou e disse: nossa,
como você está cabeluda! Não haveria comentário mais
agradável. Cravados 14 dias da primeira sessão, a cada
lavada os cabelos caíam feito cabelo de milho debulhado.
Os fios começaram a nascer espalhados, como penugem
de passarinho filhote. Em poucos dias o espelho – que nem
sempre é aquele melhor amigo – passou a ser o mais
abominável objeto a querer ser encontrado na casa.
Depois da cobertura temporária dessa grama mal carpida
por toucas, comecei a achá-las muito feias e incômodas.
Logo caíram em desuso e, aos poucos e a contragosto,
assumi a cabeça de filhote de passarinho.
Passados uns quarenta minutos, Ana chegou com os
medicamentos: um saquinho de soro, um de
antialérgico e outro com a quimioterapia,
cuidadosamente dosada para cada paciente. Agora, só
as enfermeiras podem colocá-los no acesso.

Finalmente, logo após essa aplicação, era a última vez


que iria sentir um gosto estranho ao comer e beber,
além da garganta sensível, tudo dava a sensação de
estar picante, desde um simples arroz ou mesmo
aquele pãozinho com manteiga: derretida. Após 7
horas da chegada ao hospital, Diogo, o dedicado
recepcionista, não estava na saída, o que me deixou
muito aliviada – ele sempre fazia questão de entregar
um sino à paciente, que não tinha como recusar, e
pedia para que o tocasse com gosto, enquanto todos
aplaudiam o término dessa fase. Isso também acho
desnecessário e constrangedor, mas reconheço ser
carinhoso.
VIAGEM | PÁGINA 4
SINTO
Sinto falta do cheiro de terra molhada, do
vento anunciando a tempestade de verão, da
mesa de madeira rústica com desgaste de
uso, do café do fogão a lenha com seu aroma
junto ao de fumaça acompanhado de um
pedaço generoso de bolo de fubá.

Sinto falta da brisa salgada da orla, do vento


úmido de maresia, do cheiro de mar na areia,
das bancas de peixe, da indignação por
pescadores de praia em meio a banhistas, do
pisar a areia molhada, do buscar conchas
como na infância, de sentir a pele tostada e
nela achar sensual um batom cintilante, do
barulho do grilo com ondas ao fundo, do céu
estrelado e do reflexo da lua na água do mar.

Sinto falta das saídas pela cidade, de bater


pernas e entrar em todas as lojinhas do
Centro, das exposições, das paradas prum
café, das cervejas e das comidinhas de rua,
de fazer oficinas e cursos gratuitos aos
sábados, de fotografar o registro desse vagar
pela urbe.
VIAGEM | PÁGINA 4

Só não quero sentir falta de ar.

23 de maio de 2021
ÀS VEZES
NÃO SEI
QUEM EU SOU.
SOU MUITAS
E NINGUÉM
AO MESMO
TEMPO

D'EU MESMA

Frase que um belo dia escrevi nas apresentações das


minhas redes sociais. Sabia que não sabia sozinha,
depois de anos achei pensamento equivalente de um
nomão, mas me esqueci para dar os créditos.
VIDA| PÁGINA XX

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