LIVRO DIDÁTICO Integração de Competencia

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 451

Integração de Competências

no Desempenho da Atividade Judiciária


com Usuários e Dependentes de Drogas
Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Conselho Nacional de Justiça

Integração de Competências
no Desempenho da Atividade Judiciária
com Usuários e Dependentes de Drogas

2ª Edição

MJ
Brasília 2015
PRESIDENTA DA REPÚBLICA
Dilma Rousseff

VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Michel Temer

MINISTRO DA JUSTIÇA
José Eduardo Cardozo

SECRETÁRIO NACIONAL DE POLÍTICAS SOBRE


DROGAS
Vitore André Zílio Maximiano

CORREGEDORA NACIONAL DE JUSTIÇA


Nancy Andrighi
Integração de Competências
no Desempenho da Atividade Judiciária
com Usuários e Dependentes de Drogas

2ª Edição
SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS
SOBRE DROGAS – SENAD

SUPERVISÃO TÉCNICA E CIENTÍFICA


Vitore André Zílio Maximiano
Leon de Souza Lobo Garcia
Robson Robin da Silva

REVISÃO DE CONTEÚDO
Robson Robin da Silva
José Rossy e Vasconcelos Júnior
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP
FACULDADES DE MEDICINA E DE DIREITO

COORDENAÇÃO GERAL DO PROJETO


Arthur Guerra de Andrade

COORDENAÇÃO FACULDADE DE MEDICINA


Camila Magalhães Silveira

COORDENAÇÃO FACULDADE DE DIREITO


Rogério Fernando Taffarello

COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA
Erica Rosanna Siu

APOIO PEDAGÓGICO
Luis Paulo Saito
Cristiano Avila Maronna
Gabriela Arantes Wagner
Heloísa de Souza Dantas
Luciano Anderson de Souza
Maurides Melo Ribeiro

CONSULTORIA TÉCNICA
Carolina Dzimidas Haber

SERVIÇOS ADMINISTRATIVOS
Aline Fernanda Pedrazzi
Keli Nunes Correa
Maria Lucilândia Alves do Nascimento Brito
Janaina Marize de Oliveira
PREFÁCIO

A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), do


Ministério da Justiça, rmou uma importante parceria estratégica com
a Universidade de São Paulo (USP) em 2010, por meio das Faculdades
de Medicina e de Direito, para o desenvolvimento do projeto intitula-
do “Integração de Competências no Desempenho da Atividade
Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas”. Seu principal
objetivo é promover uma detida análise da Lei nº 11.343/2006, tendo
como foco o usuário de drogas.

A nova legislação trouxe signi cativa mudança em relação ao


tipo penal correspondente ao porte de drogas para consumo pessoal.
Disciplinada no art. 28, a conduta ganhou dois novos verbos, soman-
do-se aos outros três originalmente previstos no revogado art. 16 da
Lei nº 6.368/1976. Porém, a mudança signi cativa se deu na comina-
ção da sanção, quando foi excluída a pena privativa de liberdade.
Nesse sentido, o art. 48, § 2º da citada lei estabeleceu expressamente
que, ainda que em situação de agrância, não cabe a decretação da
prisão em agrante por porte de drogas para consumo pessoal,
devendo-se tão somente lavrar-se termo circunstanciado para poste-
rior remessa dos autos ao Juizado Especial Criminal, nos termos da
Lei nº 9.099/1995.

O desa o dessa obra é justamente analisar os aspectos e efeitos


da nova lei. A nal, em consonância com a tendência mundial, o Brasil
retirou o sistema carcerário para os usuários e dependentes de drogas,
destinando-lhes os sistemas de saúde e de assistência social. Deci-
didamente, é uma página virada na história do país, pois é certo que,
9
em um passado recente, pessoas envolvidas com o uso abusivo de
drogas, em vez de receber tratamento, eram recolhidas ao cárcere,
agravando ainda mais a vulnerabilidade daqueles que viviam o sofri-
mento da dependência química.

O novo olhar do sistema de justiça, em área tão sensível e


complexa, merece provocação, re exão e estudo. As Faculdades de
Medicina e de Direito da Universidade de São Paulo executam o
projeto de forma articulada, e esta abordagem multidisciplinar entre
pro ssionais do sistema de justiça e da área da saúde se revela absoluta-
mente necessária. O Brasil precisa desse diálogo para avaliar não
apenas os efeitos da nova legislação, mas, em uma visão mais abrangen-
te, de que maneira ela deve ser aplicada e de que forma se pode projetar
o futuro com possíveis mudanças em vista do crescente debate em
torno de um tema tão complexo como as drogas.

Cabe destacar que o projeto, em parceria com o Ministério da


Justiça, teve a fundamental participação do Conselho Nacional de Jus-
tiça, por meio de sua Corregedoria Nacional, conferindo amplo
envolvimento do Poder Judiciário.

Espera-se que esta obra possa aprimorar o novo modelo de


abordagem aos dependentes de drogas, reconhecendo-os como
pessoas que necessitam de atenção, tratamento e reinserção social sob
a marca dos direitos humanos, e possa, ainda, contribuir para um
debate quali cado em torno do tema.

É importante registrar que, além da presente publicação, a


parceria Ministério da Justiça (SENAD), USP e CNJ prevê outras
três metas:

a) a consolidação das práticas da Lei nº 11.343/2006, aplicadas


pelos Juizados Especiais Criminais nas cidades de Brasília/DF,
Curitiba/PR e Rio de Janeiro/RJ;
10
b) a realização de seminários para fomentar o debate nas cinco
regiões do país;

c) a realização de pesquisa com todos os pro ssionais que


atuam diretamente nos Juizados Especiais Criminais com a aplicação
da Lei de Drogas.

É com muita satisfação que a SENAD coordena este projeto


com parceiros tão fundamentais. Somando-se a este livro, outras
importantes ações foram ou estão sendo executadas, sempre com a
nalidade de proporcionar uma análise crítica da lei e garantir aos
usuários/dependentes de substâncias psicoativas que haja um novo
olhar: de prevenção, cuidado, atenção, tratamento e reinserção
social.

11
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO - OS INSTRUMENTOS LEGAIS E AS POLÍTICAS SOBRE DROGAS


NO BRASIL: ENFOQUE NA ÁREA DE SAÚDE E A GARANTIA DE DIREITOS
DOS USUÁRIOS DE DROGAS.............................................................................................. 15

MÓDULO I - A CULTURA JURÍDICA SOBRE DROGAS


Unidade 1 – Mudança de cultura jurídica sobre drogas................................. 29
Unidade 2 – O aprimoramento do Poder Judiciário em relação ao uso de
drogas..................................................................................................................... 43
Unidade 3 – Consumo de drogas, crimes e penas: uma análise à luz do
princípio da legalidade........................................................................................ 53

MÓDULO II - DIREITOS HUMANOS


Unidade 4 – História, fundamentos e proteção dos Direitos Humanos..... 77
Unidade 5 – Sujeitos e atuações em Direitos Humanos................................. 93

MÓDULO III - DROGAS


Unidade 6 – Drogas: classi cação e efeitos no organismo............................. 113
Unidade 7 – Experimentação, uso, abuso e dependência de drogas............ 145
Unidade 8 – Epidemiologia do uso de substâncias psicotrópicas no
Brasil: dados recentes.......................................................................................... 161
Unidade 9 – Crack: uma abordagem multidisciplinar................................... 181

MÓDULO IV - TRATAMENTO DO USO PREJUDICIAL DE DROGAS


Unidade 10 – Modelos de tratamento.............................................................. 213
Unidade 11 – Entrevista motivacional e intervenção breve para usuários
de drogas................................................................................................................ 247

MÓDULO V - PREVENÇÃO DO USO DE DROGAS E REDUÇÃO DE DANOS


Unidade 12 – Família: uso e abuso de drogas – entre o risco e a proteção.... 273
Unidade 13 – Redes sociais............................................................................... 297
Unidade 14 – Políticas de saúde para a atenção integral a usuários de
drogas..................................................................................................................... 315
Unidade 15 – Estratégias de redução de danos para pessoas com
problemas com drogas na interface dos campos de atuação da Justiça e da
Saúde................................................................................................................ 335

MÓDULO VI - A JUSTIÇA RESTAURATIVA E AS BOAS PRÁTICAS NOS JUIZADOS


ESPECIAIS CRIMINAIS E VARAS DE INFÂNCIA
Unidade 16 – O modelo restaurativo para a solução adequada de con i-
tos, no contexto dos Juizados Especiais Criminais e das Varas de Infância
e Juventude............................................................................................................ 371
Unidade 17 – Prevenção ao uso de drogas nos Juizados Especiais
Criminais.............................................................................................................. 387
Unidade 18 – Interface entre drogas, criminalidade e adolescência: notas
para compreensão do modelo legal vigente.................................................. 409

13
INTRODUÇÃO – OS INSTRUMENTOS LEGAIS
E AS POLÍTICAS SOBRE DROGAS NO BRASIL:
ENFOQUE NA ÁREA DE SAÚDE E A GARANTIA
DE DIREITOS DOS USUÁRIOS DE DROGAS
Vitore André Zílio Maximiano
Luiz Guilherme Mendes de Paiva

Nesta introdução, vamos apresentar tanto o contexto interna-


cional quanto as políticas e leis brasileiras sobre drogas. Falaremos
sobre as diversas abordagens sobre o tema no mundo, a evolução dos
instrumentos jurídicos ao longo dos últimos anos no Brasil e a maneira
como a legislação atual está estruturada, a m de apresentar e discutir
as consequências jurídicas e as alternativas legais existentes em relação
ao usuário de drogas.

Marcos internacionais de políticas sobre drogas


e novas abordagens sobre o tema no mundo
A comunidade internacional, por meio da Organização das
Nações Unidas (ONU) e de organismos regionais, como a Orga-
nização dos Estados Americanos (OEA), orienta a política dos países
em relação à questão das drogas. A ONU possui três convenções sobre
o tema que até hoje são os principais documentos internacionais de
referência para as leis dos Estados-membros, inclusive no Brasil: a
Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961; a Convenção sobre
Substâncias Psicotrópicas, de 1971; a Convenção contra o Trá co
Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988.

15
Cada uma dessas convenções estabelece princípios básicos e
determina os caminhos pelos quais as leis dos países participantes
devem seguir como resposta ao uso problemático e ao trá co de drogas
ilícitas. Em todas elas, reconhece-se a dependência química como
problema social e de saúde pública, e que a melhor forma de combater
tal problema é de nir programas e ações integradas e coordenadas
entre os países. Entretanto, a estratégia principal das três convenções
foi claramente inibir a produção, circulação, comércio e uso de subs-
tâncias consideradas problemáticas por meio de controles rígidos de
matérias-primas e do estabelecimento de penas altas para quem
comercializa ou faz uso de tais substâncias.

É importante considerar que tais proibições e controles envol-


vem questões muito delicadas no que diz respeito a algumas substân-
cias. O ópio, por exemplo, tem a produção regulada, pois é matéria
prima da heroína, uma droga com efeitos muito danosos, mas também
origina medicamentos amplamente utilizados para aliviar dores
intensas em tratamentos médicos, como a mor na. Assim, não apenas
a de nição das regras e proibições, mas especialmente a escolha de
quais substâncias devem ser permitidas, controladas ou proibidas tem
sido objeto de muita discussão e de críticas ao longo dos anos.
Portanto, nota-se que em razão de suas nalidades terapêuticas,
existem drogas comercializadas legalmente, mas de uso e venda con-
trolados, pois o consumo abusivo de tais substâncias pode gerar
dependência e todas as consequências decorrentes desta.

Nos últimos anos, alguns países e organizações não governa-


mentais passaram a questionar os resultados atingidos por uma abor-
dagem fundada basicamente na repressão. Outras convenções da
ONU, especialmente relacionadas aos Direitos Humanos e aos
Direitos à Saúde, serviram como fonte para novas propostas de abor-

16
dagem sobre o assunto. Assim, debates sobre políticas alternativas
foram realizados, e alguns países têm alterado suas regras locais para
colocar em prática novas abordagens voltadas ao usuário, que não a
simples punição criminal.

Tais experiências internacionais levam em conta que a depen-


dência química é um fenômeno complexo que envolve questões
sociais, familiares, pessoais e culturais, sendo que qualquer forma de
intervenção deve ter como foco a saúde pública, aumentando a oferta Constitui uma estratégia
de abordagem dos pro-
de tratamento para a atenção daqueles em sofrimento pelo uso proble- blemas com as drogas que
não parte do princípio de
mático de substâncias psicoativas, ilícitas ou não, bem como o direcio- que deve haver imediata e
obrigatória extinção do
namento de esforços de repressão aos grandes produtores, distribuido- uso, seja no âmbito da
sociedade, ou no caso de
res e nanciadores do trá co de drogas. cada indivíduo, mas que
formula práticas que dimi-
nuem os danos para os
Do ponto de vista da saúde pública, desde a década de 1970, usuários de drogas e para
os grupos sociais com que
alguns países europeus experimentaram políticas de redução de danos convivem.

como forma de minimizar os problemas decorrentes do uso problemá-


tico de drogas e de aumentar o índice de sucesso dos tratamentos dispo-
níveis. A própria Lei nº 11.343/2006, que regula o tema no Brasil,
estabeleceu como um de seus princípios nas atividades de atenção e
reinserção social de usuários e dependentes a redução de riscos e danos
sociais e à saúde, como um instrumento de orientação para a de nição
de projetos terapêuticos individualizados.

No tocante à repressão criminal, vários arranjos distintos foram


desenvolvidos ao longo do tempo em várias partes do mundo. A
grande maioria dos países mantém a criminalização, com penas seve-
ras, do comércio de drogas ilícitas, mas o uso de drogas tem sido
progressivamente objeto de punições criminais mais leves. Alguns
países, como o Brasil, mantêm o caráter criminal da punição, mas sem a
previsão de pena de prisão – o que se pode de nir como despenaliza-
ção do uso de drogas. Outros transformaram o uso de drogas em uma

17
infração administrativa, sem a intervenção da justiça criminal – o que
se de ne como descriminalização do uso de drogas. Um terceiro
arranjo possível é a liberação do uso medicinal de alguma substância
inicialmente proibida, como ocorre com a mor na e, mais recente-
mente, com a maconha em alguns países europeus e algumas regiões
dos Estados Unidos. Finalmente, há a experiência bastante recente do
Uruguai e de algumas regiões dos Estados Unidos onde o uso recreati-
vo da maconha foi permitido. Nesse último caso se pode falar em
legalização ou regulação do uso de drogas.

Cada uma das políticas adotadas pelos países tem diversos


argumentos favoráveis e contrários à sua adoção. Para nós, é importan-
te saber que existem vários arranjos possíveis, e que o resultado das
experiências internacionais ao longo dos anos tem servido para que o
Brasil avalie e construa sua política sobre drogas.

Política nacional sobre drogas e os instrumentos


normativos sobre drogas no Brasil
Como vimos, os instrumentos internacionais a que o Brasil está
vinculado impõem algumas obrigações de controle de substâncias e
repressão do trá co de drogas ilícitas. Para cumprir tais obrigações, não
basta a aprovação de uma lei estabelecendo crimes e penas, mas é
necessário estabelecer uma política nacional envolvendo ações de
redução da oferta, por meio da repressão à produção e ao comércio de
drogas ilícitas, e ações de redução da demanda, por meio de ações de
prevenção e de tratamento do uso problemático de drogas que causem
dependência.

Em 2005, o Brasil aprovou sua nova Política Nacional sobre


Drogas (PNAD), na qual foram estabelecidos os fundamentos, objeti-

18
vos, diretrizes e estratégias para que as ações de redução da oferta e da
demanda sejam realizadas de forma articulada e planejada. O docu-
mento parte da premissa de que a política nacional deve buscar a
integração das políticas públicas e a descentralização das ações para
que sejam realizadas em conjunto com estados e municípios e sempre
em estreita colaboração com a sociedade e com a comunidade cientí -
ca: trata-se da responsabilidade compartilhada. Assim, a PNAD foi
construída em cinco capítulos: (I) Prevenção; (II) Tratamento, recu-
peração e reinserção social; (III) Redução de danos sociais e à saúde,
(IV) Redução da oferta; (V) Estudos, pesquisas e avaliações.

Como passo fundamental para a implementação da PNAD, foi


aprovada em 2006 a Lei nº 11.343, conhecida como Lei de Drogas. Ela
substituiu as duas leis anteriores sobre o tema, instituiu o Sistema
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) e alterou
substancialmente os crimes e penas a usuários e agentes que comercia-
lizam ilegalmente as drogas, como veremos a seguir.

O SISNAD foi construído para colocar em prática as premissas


da PNAD por meio da centralização das orientações políticas na
Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) e no
Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) e da execu-
ção descentralizada das atividades a ela relacionadas. Assim, a concep-
ção e a execução das políticas públicas sobre drogas são de responsabili-
dade compartilhada entre o governo federal, estados e municípios, e é
supervisionada por um conselho federal e conselhos estaduais e muni-
cipais, nos quais estão representados o governo e a sociedade civil.

Em seu aspecto repressivo, a Lei nº 11.343/2006 trouxe diver-


sas inovações. A principal delas foi a despenalização do porte para uso
de drogas, o que signi ca que a conduta permaneceu criminalizada,
mas sem previsão de pena de prisão. Tal inovação seguiu a tendência
internacional de reconhecer a diferença entre usuários/dependentes
19
químicos e aqueles envolvidos no trá co de drogas e de oferecer
sanções jurídicas que levem em conta tal diferença.

Assim, o artigo 28 da lei prevê que o porte para uso de drogas


deverá estar sujeito a penalidades alternativas à prisão e relacionadas ao
objetivo de prevenção e ressocialização. São elas: (I) advertência sobre
os efeitos das drogas; (II) prestação de serviços à comunidade, prefe-
rencialmente em locais públicos ou privados que se ocupem da pre-
venção do uso ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas;
(III) medida educativa de comparecimento a programa ou curso edu-
cativo. Há, ainda, a previsão de que o Estado coloque gratuitamente à
disposição do usuário ou dependente o atendimento em estabeleci-
mento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento
especializado.

Nesse mesmo sentido, a Lei de Drogas também estabeleceu


que, mesmo surpreendido na posse de drogas para seu consumo, o
autor não poderá em hipótese alguma ser preso em agrante. Neste
caso, deverá ser lavrado aquilo que se denomina tecnicamente de
termo circunstanciado, com posterior envio ao Juizado Especial
Criminal ( Jecrim), quando um acordo entre o interessado e o
Ministério Público poderá ser rmado (transação penal), sem que se
tenha propriamente a existência de um processo criminal.

Importa destacar que não é a Lei de Drogas que de ne quais são


as substâncias de uso e comércio controlados ou proibidos. Quem
estabelece essa classi cação, com autorização legal, é a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Desde 1998, antes da
edição da atual legislação, está em vigor a Portaria nº 344, constante-
mente atualizada para incluir novas drogas em vista do surgimento de
outras substâncias, especialmente as chamadas drogas sintéticas.

De outro lado, as penas destinadas ao trá co de drogas foram


bastante aumentadas em relação à lei anterior. O artigo 33 prevê pena

20
de 5 a 15 anos de reclusão para as condutas de trá co, que podem ser
ainda aumentadas se car comprovada a participação em quadrilha ou
organização criminosa. Por outro lado, a lei prevê um tratamento
diferenciado ao “pequeno tra cante”: se car demonstrado que o con-
denado é réu primário, de bons antecedentes e que não se dedica a
atividades criminosas nem integra organização criminosa, a pena pode
ser reduzida.

Atualmente, a grande discussão em torno da Lei nº 11.343/


2006 se dá em torno da distinção entre usuários/dependentes quími-
cos e tra cantes de drogas. A lei diz que, para fazer a diferenciação em
cada caso, é necessário analisar qual foi a droga e qual foi a quantidade
apreendida, como e em que circunstâncias ocorreu a apreensão, e quais
são as circunstâncias sociais e pessoais da pessoa com a qual a droga foi
encontrada, assim como sua conduta e seus antecedentes criminais.
Na prática, alguns pesquisadores criticam o fato de que a diferenciação
entre usuário e tra cante, de nida como subjetiva, pode ser muito sutil
no momento da aplicação da lei, de forma que usuários podem estar
sendo presos como tra cantes. Tais pesquisadores defendem que a lei
deveria estabelecer critérios claros e objetivos para distinguir tra cante
e usuário, como, por exemplo, a quantidade de droga apreendida: a
apreensão abaixo de uma determinada quantidade, perante a falta de
qualquer outro critério, seria considerada para uso, enquanto uma
quantidade acima do limite seria presumida como trá co.

Há bons argumentos e respeitáveis posições favoráveis e con-


trárias aos critérios subjetivos presentes na legislação atual e à proposta
de diferenciação objetiva entre usuários e tra cantes. É importante
saber que ambas as posições existem, e que existem países que adotam
cada uma delas – nos Estados Unidos, por exemplo, alguns estados
adotam a diferenciação objetiva, enquanto outros adotam a diferencia-
ção subjetiva.

21
De qualquer forma, é fundamental que as escolhas legislativas
sejam sempre avaliadas para que seja possível analisar seus resultados e,
se for o caso, propor alterações e correções de rota. Já é possível saber,
por exemplo, que a lei aprovada em 2006 provocou um grande aumen-
to no número de presos por crimes relacionados ao trá co de drogas:
entre 2007 e 2012, o número de pessoas presas por trá co de drogas
aumentou 111% – de 65.494 para 138.198 –, o que, por sua vez, repre-
senta mais de 25% de todos os presos brasileiros (cerca de 548.000),
contra 10,5% em 2006. Nesses seis anos, o trá co de drogas ultrapas-
sou o crime de roubo quali cado como tipo penal mais comum nas
prisões. A população carcerária feminina aumentou de cerca de 5.800
presas por trá co em 2006 para cerca de 14.900 em 2012. Hoje, a
prisão por trá co responde por 42% de toda a população carcerária
feminina.

É importante mencionar, ainda, os grandes planos nacionais


destinados a articular as ações do Poder Público com relação ao tema.
Em 2007, foi editado o Decreto nº 6117, que instituiu a Política
Nacional sobre o Álcool. Ela orienta, entre outras ações, a realização
de pesquisas e diagnósticos sobre o consumo de álcool no país, estabe-
lece mecanismos de tratamento e reinserção social de usuários e
dependentes de álcool, orienta a realização de campanhas de sensibili-
zação e mobilização da opinião pública sobre as consequências do uso
e abuso de bebidas alcoólicas e articula ações de prevenção com
estados e municípios. A articulação entre os órgãos públicos permitiu
a criação de novas propostas de enfrentamento ao problema, como a
edição da Lei nº 11.705, de 2008, conhecida como Lei Seca, que
impôs regras severas para o condutor que dirigir sob a in uência de
álcool ou outras substâncias e proibiu a venda de bebidas alcoólicas
em estradas. Não podemos esquecer que a questão do álcool é uma
preocupação do legislador há muito tempo. Um exemplo disso é que
desde 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proíbe a
venda de bebidas alcoólicas a crianças e adolescentes e, em março de
2015, foi sancionada a Lei nº 13.106/2015, que alterou o ECA e
22
tornou crime "vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar, ainda
que gratuitamente, de qualquer forma, a criança ou a adolescente,
bebida alcoólica ou, sem justa causa, outros produtos cujos compo-
nentes possam causar dependência física ou psíquica". Além disso, a
própria propaganda de bebidas alcoólicas é regulada no país, não
sendo permitida nos horários de maior audiência de jovens.

Finalmente, podemos falar do Plano de Enfrentamento ao


Crack, instituído pelos Decretos 7.179, de 2010, e 7.637, de 2011. O
plano de niu, no âmbito federal, o programa “Crack, é possível
vencer”, que está estruturado, tal como estabelece a PNAD em três
eixos: prevenção, cuidado e autoridade. Apesar da expressa referência
ao crack, é certo que o programa atende usuários e dependentes desta
e de todas as demais drogas, lícitas ou ilícitas. O programa tem como
principal objetivo o fortalecimento da rede de atenção às pessoas em
sofrimento decorrente do uso de substâncias psicoativas, e importan-
tes recursos foram investidos para aumentar a quantidade de trata-
mentos oferecidos à população, incluindo enfermarias especializadas,
novos CAPS, unidades de acolhimento voluntário e o apoio a comu-
nidades terapêuticas. Além disso, vários cursos de capacitação presen-
ciais e a distância, como este, foram desenvolvidos e estão sendo
disponibilizados para aqueles que estão envolvidos na execução das
políticas. Como determina a PNAD a responsabilidade pelo progra-
ma é compartilhada: além da coordenação federal, existem comitês
gestores nos estados e municípios para articular e monitorar as ações.

Importância da política sobre drogas para


estabelecer um novo olhar voltado ao usuário:
perspectivas políticas sobre drogas no Brasil
contemporâneo
Como visto, as primeiras convenções da ONU sobre políticas
de drogas estão voltadas basicamente para a repressão penal da produ-
23
ção, comércio e uso de drogas. Ao longo dos anos, os países começa-
ram a desenvolver abordagens mais complexas para o problema,
retirando o foco somente da repressão e passando a considerar o uso e
a dependência de drogas como algo que exige a compreensão dos di-
versos aspectos familiares, pessoais e sociais envolvidos.

O Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas tem,


entre seus princípios, o respeito aos direitos fundamentais da pessoa
humana. Isso demonstra o quanto se caminhou em direção ao reco-
nhecimento de que a prioridade absoluta das políticas sobre drogas
deve ser o usuário/dependente químico, entendido como sujeito de
direitos, a quem se deve tratar com dignidade e respeitar suas particula-
ridades e especi cidades, ofertando-se serviços de atenção e cuidado
àqueles que desejarem.

Do ponto de vista dos instrumentos legais internacionais, é


importante notar que o primeiro objetivo mencionado na Convenção
Única sobre Entorpecentes de 1961, da ONU, é o de promover a saúde
e o bem-estar da humanidade. Diversos instrumentos de direitos
humanos reforçam a ideia de que devem ser garantidos ao usuá-
rio/dependente químico todos os direitos e garantias previstos na
Constituição, especialmente tratando-se de uma população especial-
mente vulnerável. O Estado, ao tratar o problema das drogas, não pode
adotar medidas que violem tais direitos. A maneira como o PNAD e o
SISNAD se estruturaram, colocando o respeito aos direitos humanos
como premissa das políticas nacionais, tem o objetivo de assegurar tais
objetivos.

Como perspectiva para a política nacional sobre drogas nos


próximos anos, podemos mencionar os debates aqui destacados entre
os diversos modelos de abordagem quanto ao porte para uso de drogas,
bem como as diversas formas de distinção entre usuários e tra cantes.
O debate está acontecendo no Congresso Nacional, e é provável que

24
tenhamos novas alterações na legislação nos próximos anos. No ce-
nário internacional, novas experiências surgem a cada momento, de
forma que é importante que a lei brasileira e o SISNAD como um todo
estejam preparados para conhecer, avaliar e, se for o caso, introduzir
novas abordagens na política nacional, sempre tendo como objetivo a
saúde e o bem-estar da comunidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOITEUX, L. et al. Trá co de Drogas e Constituição. Pensando o Direito, nº 1. Brasília:


Ministério da Justiça, 2009. Disponível em: <h p://portal.mj.gov.br/ servi-
ces/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID=
{75731C36-32DC-419F-A9B6-5170610F9A7B}&ServiceInstUID={0831095E-
D6E4-49AB-B405-C0708AAE5DB1}>. Acesso em: 11/02/2015.

B SIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de


Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso
indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece
normas para repressão à produção não autorizada e ao trá co ilícito de drogas; de ne
crimes e dá outras providências. Disponível em: <h p://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 11/02/2015.

CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONT O TRÁFICO ILÍCITO DE


ENTORPECENTES E SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS, 1988, Viena.
Disponível em: <h p://www.unodc.org/pdf/convention_1988_en.pdf>. Acesso em:
23 /02/2015.

25
CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓ-
PICAS, 1971, Viena. Disponível em: <h p://www.unodc.org/pdf/convention_
1971_en.pdf>. Acesso em: 23/02/2015.

CONVENÇÃO ÚNICA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE ENTORPECENTES,


1961, Nova York. Disponível em:<h p://www.unodc.org/pdf/convention_
1961_en.pdf>. Acesso em: 23/02/2015.

PLANO NACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE DROGAS – PNAD.


Disponível em: <h p://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/biblioteca/docu-
mentos/Legislacao/326979.pdf>. Acesso em: 11/02/2015.

RELATÓRIO ESTATÍSTICO ANALÍTICO DO DEPARTAMENTO PENI-


TENCIÁRIO NACIONAL, Dezembro de 2012. Disponível em: <h p:// www.justi-
ca.gov.br/seus-direitos/politica-penal/transparencia-institucional/estatisticas-
prisional/anexos-sistema-prisional/total-brasil-dez-2012.xls>. Acesso em:
23/02/2015.

26
MÓDULO I
A CULTURA JURÍDICA SOBRE DROGAS

O módulo inicial deste curso oferece um panorama geral


da legislação brasileira sobre drogas, dividido em:

Unidade 1 – Mudança de cultura jurídica sobre drogas

Unidade 2 – O aprimoramento do Poder Judiciário


em relação ao uso de drogas

Unidade 3 – Consumo de drogas, crimes e penas: uma análise


à luz do princípio da legalidade
UNIDADE 1

MUDANÇA DE CULTURA
JURÍDICA SOBRE DROGAS
• O que é cultura?

• Cultura jurídica

• Instituições jurídicas

• Cultura repressivo-punitiva

• Cultura restaurativa

I
MUDANÇA DE CULTURA JURÍDICA
SOBRE DROGAS
Roberto Portugal Bacellar

“A cultura se compõe de tudo aquilo que resulta das


experiências simbólicas compartilhadas e de tudo que é capaz
de mantê-las” (JAEGER, 1964).

Já se disse ser tão amplo, múltiplo e aberto o conceito de cul-


tura que o direito não consegue apreender senão fragmentos de
cultura.

Quando se fala em cultura jurídica, é importante buscar luz na


pesquisa de Wolkmer (2003), que enfatiza a renovação crítica da
historicidade jurídica (engendrada e articulada na dialética da vida
produtiva e das relações sociais), tornando imperioso explicitar a real
apreensão do que possam significar as formas simbólicas de insti-
tuições jurídicas, cultura jurídica e história do direito, em um
contexto interpretativo crítico-ideológico. De maneira precisa:

Nessa perspectiva, parte-se da premissa de que as instituições


jurídicas têm reproduzido, ideologicamente, em cada época e em
cada lugar, fragmentos parcelados, montagens e representações
míticas que revelam a retórica normativa, o senso comum legislativo
e o ritualismo dos procedimentos judiciais. Tal condição se aproxi-
ma de uma primeira noção de instituição jurídica, projetada como
estrutura normativa sistematizada e permanente, atuando e coorde-
nando determinados núcleos de ação que têm funções específicas
(controle social, sanção, administração política e financeira, ordem
familiar, satisfação das necessidades comunitárias), operadores
profissionais (juiz, advogado, defensor público) e órgãos de decisão
(tribunais de justiça).
31
MÓDULO I
Os profissionais do direito, desde a graduação, aprendem a
raciocinar pelo sistema da contradição (dialético) que forma
guerreiros. O curso ensina a interpretação das leis e o uso da doutrina
e da jurisprudência de modo a prepará-los para uma guerra, para uma
batalha jurídica em torno de uma lide (visão estrita do conflito):
“disputa de interesses qualificada por uma pretensão resistida”, em
que duas forças opostas lutam entre si e só pode haver um vencedor.
Todo caso tem dois lados polarizados e quando um deles ganha,
necessariamente o outro tem de perder.

A legislação, desde as Ordenações Filipinas (1603), passando


pelo Código Criminal do Império (1830), pelo Regulamento de
1851, pelo Código Penal de 1890, por dezenas de decretos, pelo
Código Penal de 1940, pela Lei nº 5.726/1971, até a Lei nº 6.368/
1976, com pequenas modificações posteriores, sempre transmitiu a
ideia de que era necessário estabelecer uma “guerra contra as drogas”.
As normas do passado apresentaram o indicativo de prevenção geral
por meio de penas privativas de liberdade destinadas a intimidar a
sociedade e evitar o surgimento de delinquentes, além da prevenção
especial dirigida ao criminoso, paradoxalmente determinando que o
elemento deve ser afastado da sociedade para ser ressocializado. A
legislação representou um conjunto retórico de “boas intenções” sem
efetividade alguma.

Foi essa a cultura prevalecente nas décadas de 1970 e 1980,


sempre marcadas, como foi dito, pela política de “guerra contra as
drogas”, que repercutiu no preconceito de também combater, fazer
mal e punir o usuário, considerado um vadio, vagabundo, malandro
que poderia ser corrigido com uma boa surra pedagógica aplicada no
ambiente familiar.

Essa cultura de guerra e de repressão passou a orientar a


postura política das instituições jurídicas, projetadas no contexto
32
UNIDADE 1
daquela estrutura normativa punitiva, dirigindo suas funções
(controle social, sanção, administração política e financeira, ordem
familiar e satisfação das necessidades comunitárias) e treinando seus
operadores profissionais (policiais, promotores de justiça, juízes,
advogados e defensores públicos) e órgãos de decisão (tribunais de
justiça) para atuar de acordo com o modelo repressivo-punitivo.

Esses valores (polêmicos do ponto de vista político e moral)


foram sendo repassados de geração a geração, e a ideia repressivo-
-punitiva passou do combate à coisa chamada de “droga” para o ser
humano chamado de “usuário”. Faz parte de uma concepção geral,
quase equiparada à opinião pública, a falsa ideia de que estabelecer
uma guerra contra o usuário de drogas fará da sociedade, como um
todo, vencedora.

Enquanto ocorrem profundas transformações sociais,


ambientais, econômicas e tecnológicas que indicam a imprescin-
dibilidade de uma análise sistêmica a fim de compreender a
complexidade que informa o ser humano no contexto das drogas, o
combate ao uso passa a ser visto como uma guerra possível de ser
vencida, já que dirigida “contra a pessoa do usuário”, sem considerar a
criminalidade moderna caracterizada pela concentração de poder
político e econômico, pelo domínio tecnológico e pela estratégia
global (CERVINI, 1995). Nessa linha, o que transparece como
verdade publicada é a “firme convicção” superficializada (pelo poder
condicionante da mídia simplificadora) de que “fazer mal ao usuário
de drogas é fazer bem à sociedade”. A repetição condicionou e fixou a
ideia de que só existem o traficante e o investidor do tráfico por causa
do “malandro do usuário”, por isso a guerra deve ser contra ele, que,
“com uma boa surra, deixará de usar droga e tudo se resolve”. Será?

Nos cursos de direito se aprende que “o que não está nos autos
de processo não está no mundo”, e cabe aos aplicadores do direito
33
MÓDULO I
fazer a subsunção do fato à norma, aplicando a lei aos casos concretos.
Essa visão de holofote restrita apenas à questão jurídica de subsunção
da ocorrência aos ditames da lei é apequenada aos autos de processo e
conformada aos limites da ocorrência policial, porém não enxerga os
verdadeiros problemas e interesses que levaram esse cidadão a
procurar a droga, que para ele, dependente, integra seus valores
(fisiológicos, biológicos e psicológicos) como uma “necessidade” de
sua existência. A visão de holofote prescreve como única alternativa a
abstinência e imagina possível alcançar a ressocialização pelo encar-
ceramento ou internação.

No contexto dessa judicialização da questão do uso de drogas,


a cultura jurídica, o mundo dos autos de processo, tem se limitado a
uma ocorrência policial contra uma pessoa que muitas vezes é
chamada de “elemento”, flagrada na posse ou uso de drogas. Pronto!
Pena ao elemento. Diante dessa cultura discriminatória, a despeito da
inovação legislativa, a concepção humana tem sido afastada e subs-
tituída pelo elemento criminoso.

Esse ranço cultural discriminatório que indica pena e punição


para todos os casos, como a panaceia, só tem agravado a situação. A
aplicação de pena pressupõe que o Estado, pela coerção, mudará o ser
humano que descumpriu a lei pelo castigo ou evitará que outros
façam o mal (descumpram a lei) pelo amedrontamento causado pelo
mal (pena, castigo) que o Estado poderá lhes impor.

Em alguns casos, recomenda-se a redução de danos, e essa


percepção é necessária. As drogas estão presentes na sociedade bra-
sileira, e não apenas no quintal do vizinho: usuários próximos,
crianças e adolescentes, de várias classes, precisam de ajuda adequada
para reencontrar o caminho do equilíbrio humano pelo menos nos
aspectos fisiológicos, biológicos e psicológicos.

34
UNIDADE 1
Não é possível ao Estado pretender “arrancar” a cabeça das
pessoas que descumprem a lei e “colar” outra no lugar, agora a cabeça
de pessoas ideais (que cumprem a lei e não usam drogas). A simples
subsunção do fato tido por criminoso e a norma com a consequente
aplicação da pena não modificam o comportamento dos indivíduos,
até porque estes (em causa) muito pouco participam do processo
judicial tradicional em que o Estado juiz substitui a vontade das
pessoas, que pouco ou quase nada participam dos mecanismos
oficiais de resolução de conflitos.

O sistema atual, com a Lei nº 11.343/2006, estabeleceu


para o usuário de drogas o correto afastamento de qualquer
O termo “transdisciplinar”
possibilidade de encarceramento, optando pela aplicação de foi forjado por Jean Piaget,
em um encontro sobre a
medidas preventivas e com potencial restaurativo, como interdisciplinaridade pro-
a advertência, a indicação de frequência a cursos educativos e movido pela Organização
para a Cooperação e Desen-
a prestação de serviços, com a atenção voltada à reinserção volvimento Econômico
(OCDE), em 1970.
social do usuário (dependente ou não). Segundo ele: “Enfim, na
etapa das relações inter-
disciplinares, pode-se espe-
rar que se suceda uma fase
superior que seria ‘trans-
disciplinar’, a qual não se
Nesse novo movimento de aplicação restaurativa do direito, o contentaria em atingir
interações ou reciprocida-
trabalho dos profissionais (agora não mais só policiais, mas também des entre pesquisas espe-
cializadas, mas situaria tais
juízes, advogados, defensores e promotores de justiça) é buscar a ligações no interior de um
sistema total, sem fron-
visão de futuro com o desenvolvimento de uma visão holística, global teiras estáveis entre as
disciplinas” (WEIL, 1993,
e transdisciplinar, abrangendo todos os prismas relacionais a fim de p. 39).

que possam resultar apenas vencedores (ganha-ganha).

Já afirmei em outras oportunidades que a verdadeira justiça


só se alcança quando os casos “se solucionam” mediante consenso.
Os conhecimentos e ferramentas da mediação, aplicados por Não é preciso solucioná-
-los por meio de decisões
profissionais com formações diferenciadas, poderão despertar em nem impondo perdas par-
ciais.
usuários, dependentes ou não, o desejo de mudança. Só uma atuação

35
MÓDULO I
integrada das áreas da saúde e do direito permitirá a verdadeira
pacificação social, finalidade da lei, do direito e da própria existência
do Poder Judiciário.

Sabe-se hoje que o modelo de amedrontamento utilizado por


psicólogos do passado não mais se justifica. O modelo jurídico do juiz
que manda, ordena e condena, por certo, não conseguirá operacio-
nalizar na cabeça do ser humano que recebe o mandamento, ordem
ou condenação nenhuma mudança comportamental. Algumas vezes,
em termos de percepção, o condenado pelo Estado se considera
vítima e passa, nessa condição, a justificar intimamente condutas
violentas. “A pedagogia, a medicina, a psicologia, a economia, a polí-
tica, se não a própria moral, já não admitem discussão sobre a
monstruosidade antinatural, anti-individual e antissocial de prender,

A exlética permitiria, se-


isolar, segregar.” (LYRA, 1963).
gundo Edward de Bono,
tirar de uma situação o A sociedade como um todo será a grande ganhadora quando
que ela tem de válido –
não importa de que lado se tratar de maneira adequada os usuários de drogas. Isso é, nesse
encontre. Maury Rodrigues
da Cruz e Nádia Bevilaqua período que tem sido denominado pós-modernidade, algo que se
Martins igualmente des-
crevem aplicações exlé- conhece por sustentabilidade.
ticas. Maury Rodrigues da
Cruz prefere a grafia “eslé-
tica (o)”. Para o alcance da pacificação, o raciocínio deve ser exlético e
o conflito tem de ser analisado sempre em sua integralidade, agora
com foco amplificado dirigido ao ser humano.

No que concerne ao uso de drogas ilícitas, a entrada em vigor


Artigo 28 da Lei nº 11.343/ da Lei nº 6.368/1976, considerando depois as alterações ocorridas
2006.
com a Lei nº 9.099/1995, dos Juizados Especiais Criminais (Je-
crims), até o advento da Lei nº 11.343/2006, chamada Nova Lei
sobre Drogas, houve clara evolução legislativa.

Falta a mudança de cultura dos profissionais: ainda há policiais


que não encaminham usuários de drogas ao sistema de Juizados
Especiais porque “não dá em nada”, assim como juízes e promotores

36
UNIDADE 1
de justiça que não aplicam a lei porque “isso é um problema de saúde
pública”. O profissional que atua na área do direito formado e defor-
mado pela cultura jurídica do passado não consegue visualizar nada
além da pena.

Passou-se da “cultura da punição” e do internamento da


Lei nº 6.368/1976 (que ressalta os modelos de justiça retributiva)
para a cultura da restauração e da educação afetiva da Lei nº 11.343/
2006 (que ressalta os modelos de justiça restaurativa).

O uso/abuso de drogas ilícitas é muito mais que um proble-


ma de legalidade ou ilegalidade. É importante perceber que o uso de
drogas é um problema sistêmico, antropológico, fisiológico, psico-
lógico, jurídico, político, social, cultural, dinâmico e espiritual.

É imprescindível a integração de todos – União, estados,


municípios, segmentos sociais e organizações não governamentais –
a fim de preservar condições de sustentabilidade social, reinserindo
os usuários de drogas no ambiente produtivo.

Existem várias drogas que estão à disposição de crianças e


jovens, portanto, esse é um problema comum a todos, ressaltando a
responsabilidade compartilhada, conforme prevê a atual Política
Nacional sobre Drogas.

Com base em uma visão transdisciplinar, palavras um dia surgi-


rão para definir ações sistêmicas adequadas à complexidade do tema
do ponto de vista da saúde, do direito e da própria espiritualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, M. A. Direito Penal. Parte geral. Salvador: Juspodivm, 2010. (Coleção


Sinopses para concursos, v. 1. Coord. Leonardo de Medeiros Garcia).

37
MÓDULO I
BACELLAR, R. P. Juizados Especiais: a nova mediação paraprocessual. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

BACELLAR, R. P; MASSA, A. A. G. A dimensão socio--jurídica e política da Nova


Lei sobre Drogas (Lei 11.343/2006). Revista IOB de Direito Penal e Processual
Penal, v. 9, p. 177-195, 2008.

CERVINI, R. Os processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos


Tribunais, 1995.

GALDURÓZ, J. C. F. et al. V Levantamento Nacional sobre o Consumo de


Drogas Psicotrópicas entre Estudantes de Ensino Fundamental e Médio da
Rede Pública de Ensino nas 27 Capitais Brasileiras. São Paulo: CEBRID-
UNIFESP, 2004.

GOMES, L. F. et al. Lei de Drogas comentada: Lei 11.343/2006. São Paulo:


Revista dos Tribunais, 2007.

GRECO FILHO, V. Lei de Drogas anotada: Lei 11.343/2006. São Paulo:


Saraiva, 2007.

JAEGER, G.; SELZNICK, P. A normative theory of culture. American Sociological


Review, v. 39, n. 5, 1964.

LYRA, R. As execuções penais no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1963.

MALUF, D. P. et al. Drogas: prevenção e tratamento – o que você queria saber e não
tinha a quem perguntar. São Paulo: CL-A Cultural, 2002.

MASSA, A. A. G.; BACELLAR, R. P. A interface da prevenção ao uso de drogas e


o Poder Judiciário. 2º Seminário sobre Sustentabilidade, 2007. CD-ROM 1.

SCURO, P. et al. Justiça restaurativa: desafios políticos e o papel dos juízes. In:
SLAKMON, C.; MACHADO, M. R.; BOTTINI, P. C. (Org.). Novas direções na
governança da justiça e da segurança. Brasília: Ministério da Justiça, 2006, v. 1,
p. 543-567.

WEIL, P. Rumo à nova transdisciplinaridade: sistemas abertos de conhecimento.


São Paulo: Summus, 1993.

WOLKMER, A. C. História do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

ZEHR, H. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Trad. Tônia
Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.

38
UNIDADE 1
RESUMO DA AULA

A judicialização da questão das drogas por intermédio do


modelo bélico (guerra às drogas) opera uma cultura de discriminação
ao usuário e confere à pena e à punição um equivocado sentido de
solução do problema. Essa visão de holofote prescreve como única
alternativa a abstinência e imagina possível a ressocialização pelo
encarceramento ou internação.

O uso/abuso de drogas não se resume a uma questão de


legalidade, exigindo uma visão integrada das áreas da saúde e do
direito para que sejam preservadas as condições de sustentabilidade
social de modo a permitir a reinserção social do usuário. Por isso, a
Política Nacional sobre Drogas consagra a responsabilidade comparti-
lhada e estimula ações sistêmicas de uma perspectiva holística, global e
transdisciplinar, abrangendo todos os prismas relacionais. O modelo
do amedrontamento fracassou e a legislação evoluiu. Cabe agora aos
operadores do direito assimilar a nova cultura de restauração e
educação afetiva.

Nesta unidade, você conheceu a nova abordagem que a Justiça


penal pretende dar ao tema das drogas e a necessária mudança de uma
cultura retributivo-punitiva para uma cultura restaurativa e consen-
sual. Para que você entenda como chegamos a esse modelo, veremos
na próxima unidade um panorama da evolução da legislação brasileira
sobre drogas.

39
MÓDULO I
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. A legislação brasileira, desde as Ordenações Filipinas até a


Lei nº 6.368/1976, sempre transmitiu a ideia de que era necessário
estabelecer uma guerra contra as drogas. Em relação a essa abordagem,
assinale a alternativa INCORRETA:

a. O uso de penas privativas de liberdade intimida a sociedade e evi-


ta o surgimento de delinquentes (prevenção geral).

b. O afastamento do criminoso da sociedade permite a resso-


cialização (prevenção especial).

c. Fazer mal ao usuário de drogas faz bem à sociedade.

d. O usuário é portador de uma personalidade desviada, a qual de-


ve ser corrigida tanto no ambiente público – por meio da re-
pressão oficial – como no ambiente privado – por meio da
repressão familiar –, na medida em que a todos incumbe zelar
pelo combate às drogas.

e. As instituições jurídicas não pautavam sua atuação pelo modelo


repressivo-punitivo.

2. No que se refere à visão de holofote em relação à questão das drogas, é


correto afirmar:

a. A abstinência é a única alternativa e é possível alcançar a resso-


cialização pelo encarceramento ou internação.

b. O uso de drogas deve ser tratado no campo da saúde, não no da


justiça criminal.

c. A prisão do usuário de drogas pode e deve ser evitada pela


aplicação de penas restritivas de direitos.

d. A estratégia de redução de danos é uma medida válida.

e. Não há racionalidade na distinção entre drogas legais e ilegais.


40
UNIDADE 2

O APRIMORAMENTO
DO PODER JUDICIÁRIO
EM RELAÇÃO AO USO
DE DROGAS
• Evolução da legislação brasileira sobre drogas

• A descarcerização

• As medidas educativas

I
O APRIMORAMENTO DO PODER JUDICIÁRIO
EM RELAÇÃO AO USO DE DROGAS
Ricardo Cunha Chimenti

A evolução da legislação penal sobre o uso de drogas


O artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal, norma
publicada em 1942, estabelece o conceito de crime com a seguinte
redação: “Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena
de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou
cumulativamente com a pena de multa”.

Seguindo a lógica vigente, a Lei nº 6.368/1976, que veiculava


medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de
“substâncias entorpecentes”, em seu artigo 16 tipificava como crime:

Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância


entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamen-
tar”. E, para tal conduta, explicitamente cominava a seguinte pena:
“Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 20
(vinte) a 50 (cinquenta) dias-multa.

Contudo, em 1984, a exposição de motivos da então denomi-


nada Nova Parte Geral do Código Penal já revelava que desde aquela
reforma passaram a ser difundidas penas alternativas para os infrato-
res que não colocam em risco a paz e a segurança da sociedade. O
ministro da Justiça da época, Ibrahim Abi-Ackel, que assinou a
exposição, já destacava a necessidade de aperfeiçoamento das penas
de prisão, substituindo-as, quando aconselhável, por outras modali-
dades sancionatórias com poder corretivo eficiente (item 29).

43
MÓDULO I
Com a vigência da Constituição Federal de 1988, surgiu um
novo sistema legislativo penal.

Leciona Jayme Walmer de Freitas, em artigo divulgado no


informativo eletrônico Âmbito Jurídico (FREITAS, 2007):

Com a Carta da República, em 1988, o constituinte ampliou a


previsão do Código Penal oferecendo um rol não taxativo de penas.
Prevê a Carta Magna em seu inciso XLVI que ‘a lei regulará a
individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a)
privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d)
prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos
[...]’. Observe-se que a expressão entre outras abre ao legislador
infraconstitucional um espectro imenso de modalidades sancionató-
rias de pequeno grau lesivo à liberdade individual para sustentação
do convívio do agente com seu emprego e família e manutenção dos
valores que angariou na vida em sociedade.

A Carta da República previu, ainda, no art. 98, I, a criação dos


Juizados Especiais com competência para a conciliação, julgamento
e execução de infrações de menor potencial ofensivo. Tardou, mas em
1995 veio a lume a Lei nº 9.099/95, cuja finalidade maior era a
imposição de pena não privativa de liberdade. Em seu lugar, penas
restritivas de direitos e multa. Anote-se que as penas decorrentes de
transação penal entre o autor do fato e com o órgão ministerial
permitem (art. 76) ao agente beneficiar-se com a pena restritiva ou
multa sem prévia sanção com pena privativa de liberdade.

Na sequência da evolução legislativa, em 2006 foi aprovada a


Lei nº 11.343, cujos principais objetivos, apresentados em títulos
separados pelo legislador, são:

• Prevenção do uso indevido de drogas, atenção e reinserção


de usuários e dependentes;

• Repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de


drogas.
44
UNIDADE 2
No artigo 28 do capítulo “Dos crimes e das penas”, a Lei
nº 11.343/2006, entre outras disposições, tipifica como crime e esta-
belece pena para a posse de droga destinada a consumo pessoal, nos
seguintes termos:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou


trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar será
submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso


educativo.

§ 1º – Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo


pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de
pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar
dependência física ou psíquica.

§ 2º – Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o


juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida,
ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias
sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

§ 3º – As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão


aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.

§ 4º – Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III


do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez)
meses.

§ 5º – A prestação de serviços à comunidade será cumprida em


programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais,
hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins
lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do
consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
45
MÓDULO I
§ 6º – Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que
se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se
recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I – admoestação verbal;

II – multa.

§ 7º – O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição


do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencial-
mente ambulatorial, para tratamento especializado.

O conhecimento como instrumento de eficácia dos


trabalhos judiciários
Diante do exposto, entendemos que a nova lei não descrimina-
lizou, tampouco despenalizou a conduta de posse ilegal de drogas
para uso próprio. O que se tem na lei atual é uma melhor compreensão
sobre a problemática que envolve o usuário de drogas, conhecimento
por meio do qual se revelou que penas privativas de liberdade não são
social ou individualmente úteis para o usuário ou para a sociedade.

Ocorre que nem todos são especialistas e, por isso, capazes de


contribuir para a concretização de normas criadas para atender a
A Polícia Federal tem situações fáticas e não para alimentar controvérsias teóricas. Com
natureza híbrida, pre-
ventiva e repressiva, mas isso, a lei entrou em vigor sem que parte da polícia estivesse devida-
atua em menor grau nos
ilícitos que envolvem mente treinada para entender o valor de penas não privativas de
posse de drogas para
consumo pessoal, pois lhe liberdade e passou a ser aplicada por juízes que muitas vezes não
cabe tutelar interesses da
União. Por isso, no que foram efetivamente capacitados para compreender sua extensão.
concerne às drogas, in-
cumbe-se primordial-
mente da repressão ao É imprescindível que a polícia preventiva (polícia militar) e a
tráfico em zonas de fron-
teira nacional. polícia repressiva (civil, à qual incumbe investigar crimes e produzir
provas que possibilitem ao Ministério Público acusar e ao juiz aplicar
a punição cabível) sejam treinadas para que em todos os casos de

46
UNIDADE 2
posse ilícita de entorpecentes para uso próprio lavrem-se os Termos
Circunstanciados, imprescindíveis para que o usuário e o dependente
de drogas possam ser devidamente identificados, levados à presença
do Ministério Público e do Poder Judiciário, atendidos e reinseridos
na sociedade.

Somente a difusão do conhecimento sobre os métodos


capazes de garantir a plena eficácia das técnicas processuais e médicas
hoje existentes permitirá que policiais, membros do Ministério
Público e magistrados compreendam melhor a importância das
normas contidas no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006.

O potencial ofensivo das drogas está evidenciado nas ruas e


também em milhões de lares brasileiros. Ainda assim, muitas vezes a
advertência inserida pelo legislador no inciso I do artigo citado ante-
riormente é interpretada como uma “bronca” ou como uma oportu-
nidade de expor discursos morais ou religiosos pasteurizados, que nada
significam para quem nem sequer sabe o valor da própria vida.

Cientes da carência de conhecimento da família, da sociedade,


da polícia e dos operadores do direito no trato com o usuário de
drogas, a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça, por meio
dos Provimentos 4 e 9 de 2010, e graças à parceria efetivada com a
Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) e com as
Faculdades de Medicina e de Direito da Universidade de São Paulo,
participa do presente curso.

47
MÓDULO I
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREITAS, J. W. A questão da descriminalização do crime de porte de entorpecentes e o


novo conceito de crime. Âmbito Jurídico, Rio Grande, n. 38, 28 fev. 2007. Disponível
em: <http://www.ambito juridico.com.br/site /index. php?n_link= revista_
artigos_leitura&artigo_id =3412>. Acesso em: 01/02/2011.

48
UNIDADE 2
RESUMO DA AULA

O texto oferece um panorama geral da legislação anterior e


atual quanto ao porte ilícito de drogas para uso pessoal, ressaltando os
avanços do novo diploma legislativo pertinente, a Lei nº 11.343/
2006, a qual demonstra maior propriedade no tratamento da questão.
Nesse influxo, a resposta prisional é abandonada em favor de outras
medidas mais adequadas à natureza da infração.

Dessa forma, o novo regramento do tema, que requer a


reunião de competências interdisciplinares, enseja a necessidade de
melhor capacitação dos operadores do direito.

Nesta unidade você viu um panorama da evolução da legisla-


ção brasileira sobre drogas. Na próxima, será explorado o tratamento
jurídico relacionado às questões do crime de porte de drogas para uso
pessoal.

49
MÓDULO I
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. O objetivo maior da Lei nº 9.099/1995, que instituiu os Juizados


Especiais Criminais (Jecrims), foi:

a. A maior repressão ao uso de drogas.

b. A prisão de usuários de drogas.

c. A imposição de penas restritivas de direito e de multa, em vez


da sanção prisional, nas infrações penais de menor gravidade.

d. O afastamento das penas restritivas de direitos nas infrações


penais de maior gravidade.

e. A cominação de pena de multa para o tráfico de drogas.

2. A posse de drogas para consumo pessoal, prevista no artigo 28 da


Lei nº 11.343/2006:

a. Privilegia a sanção prisional.

b. Determina a expropriação de bens de usuários de drogas.

c. Comina exclusivamente pena de multa para usuários de


drogas.

d. Determina a internação compulsória de usuários de drogas.

e. Apresenta preocupação educacional e preventiva na comi-


nação de sanções.

50
UNIDADE I1

3. Segundo o texto:

a. A nova Lei de Drogas descriminalizou a posse ilegal de


drogas para uso pessoal.

b. As penas privativas de liberdade são necessárias e úteis para o


tratamento do usuário de drogas.

c. Todos os juízes estão amplamente capacitados para aplicação


a nova Lei de Drogas.

d. A nova Lei de Drogas propicia a operadores do direito melhor


compreensão quanto à problemática do usuário.

e. A nova Lei de Drogas representa um retrocesso na temática


do usuário.

51
UNIDADE 3

CONSUMO DE DROGAS,
CRIME E PENAS:
UMA ANÁLISE À LUZ
DO PRINCÍPIO
DA LEGALIDADE
• Evolução histórica do proibicionismo e política
de “guerra às drogas”

• Relação entre o consumo de drogas e a


legislação criminal brasileira: Lei nº 11.343/2006,
princípio da legalidade no direito penal, condutas
incriminadas no art. 28 da Lei de Drogas e penas
atribuídas a essas condutas

I
CONSUMO DE DROGAS, CRIME E PENAS: UMA
ANÁLISE À LUZ DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Rogério Fernando Taffarello

Introdução
O tema das múltiplas e complexas interações humanas com o
que se convencionou chamar de drogas ocupa lugar central nas
preocupações políticas e sociais do Brasil e de inúmeros outros países
na contemporaneidade e, da mesma forma, ocupa lugar de destaque
nas discussões atuais no âmbito do direito penal e da Justiça Criminal
em todo o mundo.

Relatos historiográficos nos informam que seres humanos, em


diferentes sociedades e localidades, apresentam variados graus de
consumo de drogas há pelo menos cinco mil anos (DAVENPORT-
HINES, 2002), sendo que desde a Antiguidade já se conheciam alguns
de seus efeitos nocivos à saúde humana e, também, algo de suas
propriedades terapêuticas – cuja observação passou a ser mais
frequente a partir da baixa Idade Média, no período do renascimento
farmacológico. Em âmbito multilateral,
invariavelmente contando
com o protagonismo da
Todavia, a proibição – por meio do direito penal – da produção, diplomacia norte-ameri-
cana: Conferência de Xan-
circulação e consumo de drogas é fenômeno bem mais recente, tendo gai, 1909; Conferência de
Haia, entre 1911 e 1912;
passado apenas pouco mais de cem anos desde que, na virada do Século Convenções de Genebra, de
1925 e 1936; Convenção
XX, no interior dos Estados Unidos, grupos de pressão de índole Única das Nações Unidas
sobre Entorpecentes, 1961;
moralista, defensores do decoro e da sobriedade da sociedade local se Convenção de Viena sobre
Substâncias Psicotrópicas,
colocaram contra o consumo de todo tipo de substância psicoativa 1971; Protocolo Adicional à
Convenção Única das Na-
(ESCOHOTADO, 2000) e logo obtiveram sucesso na aprovação de ções Unidas, 1972; Con-
venção das Nações Unidas
diversas leis proibitivas, consagrando a política adotada nos EUA e por contra o Tráfico Ilícito de
Entorpecentes e Substân-
eles exportada ao resto do mundo ao longo de todo o século. Essa cias Psicotrópicas, 1988.

55
MÓDULO I
política conheceu especial recrudescimento nos tempos da Guerra
Fria, quando a ideologia bélica contaminou todos os campos relevantes
da política interna e internacional, culminando, no início dos anos
1970, na resoluta declaração de “guerra às drogas” (war on drugs),
promovida pelo presidente Richard Nixon, ideário político ainda apro-
fundado na década seguinte por Ronald Reagan e George Bush.
(TAFFARELLO, 2009).

Resultou disso o crescimento consistente, ao longo de todo o


Século XX, do rol de substâncias proibidas e da severidade com que
O mesmo contexto tem- as legislações de diferentes países puniam eventuais violações a essas
poral e os mesmos ideais
políticos moralistas e proibições, identificando-se, então, o direito penal como a forma
higienistas que propicia-
ram, na virada do Século adequada de tratamento jurídico da questão sob a ótica belicista
XX, a escalada inicial da
proibição penal das dro- politicamente prevalente.
gas em território estadu-
nidense também conduzi-
ram à aprovação, em 1918 Atualmente, malgrado não se ignorem os questionamentos que
e 1919, da 18ª emenda à
Constituição e do Volstead se põem a esse modelo, remanesce o direito penal como a esfera
Act, a conhecida “lei seca”,
que proibiu penalmente a jurídica principal de enfrentamento da questão e dos graves problemas
produção, circulação e con-
sumo de bebidas alcoó-
licas naquele país. A proi-
sociais e humanos relacionados, razão pela qual cumpre analisar nesse
bição total ao álcool,
porém, teve vida curta, ten-
texto, brevemente, algo das relações entre drogas e o direito penal no
do sido revogada em 1933
diante da constatação de contexto brasileiro atual.
suas elevadas consequên-
cias políticas e sociais ne-
gativas. (ESCOHOTADO,
2000; DAVENPORT-HINES,
2002.)

Marco legislativo atual: a Lei nº 11.343/2006


A Lei nº 11.343/2006 constitui o principal texto legislativo
brasileiro atinente à questão. Chegou a ser chamada por alguns de
nova Lei de Tóxicos, em alusão à expressão como fora conhecida a lei
anterior (Lei nº 6.368/1976), ou de Lei Antidrogas, expressão
inadequada na medida em que, ao contrário do que se poderia pensar,
ela vai muito além de estabelecer dispositivos – notadamente aqueles

56
UNIDADE 3
de caráter penal e processual penal – de “combate” ao uso, produção e
circulação de drogas. Com efeito, e de forma muito mais compreensi-
va que o diploma legal anterior, ela contém toda uma série de
princípios que norteiam a forma como o Estado brasileiro deve Produto direto do ideário
belicista suprarreferido e
abordar a questão, e que, destarte, têm de influir na própria aplicação concebida na vigência de
regime ditatorial e em tem-
do direito nas situações concretas. po em que tanto a guerra
fria (e, portanto, a ideo-
logia da segurança nacio-
Ao passo que a Lei nº 6.368/1976 era claramente dominada nal) quanto a guerra
contra as drogas viviam seu
por dispositivos repressivos – não só nos capítulos intitulados “dos maior recrudescimento, a
Lei nº 6.368/1976 teve
crimes e penas” e “do procedimento criminal”, mas também nos cunho marcadamente au-
toritário, revelado já em
seu art. 1º, que, em vez de
outros três, intitulados “da prevenção”, “do tratamento e recuperação” apresentar os objetivos da
lei, seus fundamentos ou
e “disposições gerais” –, a atual Lei de Drogas não é uma lei voltada à princípios, desde logo im-
punha expressamente um
repressão, embora sua parte penal e processual penal seja merecedora “dever de toda pessoa física
ou jurídica colaborar na
de destaque. prevenção ou repressão ao
tráfico ilícito e uso indevido
de substância entorpecente
É importante notar que a Lei nº 11.343 institui, como se nota em ou que determine depen-
dência física ou psíquica”,
sua ementa e também em seu artigo inicial, todo um sistema nacional transferindo a cidadãos e
empresas, sob ameaça de
de políticas públicas sobre drogas, bem como estabelece medidas para reprimendas legais, atri-
buições e responsabilida-
a prevenção do uso indevido e de atenção e busca de reinserção social des próprias dos órgãos
estatais incumbidos da
de usuários de drogas, além de prescrever crimes, penas e medidas segurança pública.

processuais penais. Faz isso em maior consonância com a ordem


política vigente no Brasil desde o advento da Constituição de 1988 que,
de nítido caráter democrático, estatui um rol respeitável – e elogiado
pela doutrina constitucionalista em todo o mundo – de direitos
fundamentais individuais e sociais e estabelece a dignidade da pessoa
humana como fundamento da República (CR, art. 1º, III) e, portanto,
objeto maior de toda e qualquer preocupação jurídica.

Disso decorre uma série de princípios fundamentais que devem


nortear toda implementação de políticas públicas e, inclusive, a
política criminal, como o estabelecimento e a aplicação de crimes e
penas – necessariamente condicionados, por sua vez, a princípios

57
MÓDULO I
como o da legalidade, o da razoabilidade ou proporcionalidade, o da
necessária proteção a bens jurídicos de terceiros, o da ofensividade, o
da humanidade das penas e o da intervenção mínima do direito penal,
entre outros, que pretendem limitar as possibilidades de intervenção
do Estado na esfera de liberdade individual dos cidadãos e, assim, a
legitimar essa mesma intervenção estatal, além de reduzir suas
inevitáveis consequências deletérias sob o ponto de vista individual e
social. (ZAFFARONI; BATISTA, 2003).

O direito, como se sabe, constitui um saber com metodologia e


Há tempos se conven-
cionou reputar o direito,
operatividade próprias, e o mesmo cabe dizer do direito penal. Dessa
efetivamente, como uma
ciência, o que é admitido forma, a atuação do intérprete e aplicador das leis criminais vai muito
pela esmagadora maioria
dos teóricos, ao menos além da mera análise de um fato humano e seu enquadramento
desde o Século XIX. Não há,
porém, unanimidade a (subsunção) automático a uma hipótese normativa que determine o
respeito, razão pela qual
adotamos o prudente en- crime praticado e a pena correspondente. O aplicador da lei penal lida
tendimento de José de
Faria Costa, catedrático da com fatos extremamente complexos em sua dinâmica, no mais das
Universidade de Coimbra,
o qual afirma que, se não vezes reproduzidos em narrativas contraditórias e frequentemente
se trata de uma ciência – e
isso não significa afirmar influenciadas por diferentes ideologias, visões de mundo e experiências
que não se trata – ao
menos se trata de um saber pretéritas de quem as narra (acusados, testemunhas, vítimas), nem
e uma disciplina de inafas-
tável rigor metodológico. sempre imbuídos de valores compatíveis com aqueles fundamentais
consagrados pela Constituição, cujo resguardo se impõe ao Poder
Judiciário; de outro lado, precisar o conteúdo e alcance de uma regra
penal é tarefa difícil, que supõe o profundo conhecimento de diversos
princípios constitucionais e infraconstitucionais que a permeiam e
condicionam, bem como dos diferentes métodos de interpretação
jurídica: a interpretação literal ou gramatical, a interpretação lógica, a
interpretação restritiva (e a extensiva, raramente admitida em matéria
penal), a interpretação sistemática e a interpretação teleológica.
(REALE JÚNIOR, 2002).

Efetivamente, uma coisa é o texto normativo e outra é a norma,


sendo esta o produto da leitura daquele somada à sua interpretação em
58
UNIDADE 3
conformidade com todos os fatores condicionantes ora aludidos,
tarefa indispensável ao operador do direito em face da “insuficiência
da lei para traduzir de forma exata e completa toda a riqueza da
realidade, o que constitui um desafio, pois a norma não é uma
fotografia a ser sobreposta ao fato concreto e à qual este se encaixa
como veludo”. (Ibidem, p. 87).

Assim é que, na aplicação da lei penal em matéria de drogas,


impõe-se ao intérprete conferir especial relevo não somente àqueles
princípios fundamentais de caráter penal (citados anteriormente) e
processual (devido processo legal, ampla defesa, contraditório,
paridade de armas etc.), todos de aplicação geral, mas também aos
princípios que o direito houve por consagrar de forma específica para
a questão, i.e., para o tratamento jurídico das drogas. Eles se encon-
tram, basicamente, arrolados no art. 4º da Lei nº 11.343/2006, desta-
cando-se:

a) o respeito aos direitos humanos fundamentais, especial-


mente quanto à autonomia e à liberdade da pessoa;

b) o respeito à diversidade e às especificidades populacionais


existentes;

c) a promoção de consensos políticos mediante ampla parti-


cipação social;

d) a adoção de abordagem necessariamente multidisciplinar


do problema em suas diferentes manifestações;

e) o equilíbrio entre as atividades de prevenção ao uso inde-


vido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes
de drogas e a repressão à produção e circulação proibidas.

59
MÓDULO I
A esses princípios devem se adicionar os objetivos do Sistema
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), arrolados no
art. 5º da mesma lei, entre os quais o de contribuir para a inclusão social
do cidadão e lhe reduzir a vulnerabilidade para a assunção de
comportamentos de risco acerca do uso indevido ou da mercancia de
drogas e o de promover a socialização do conhecimento sobre drogas
no país.

Conciliar exigências legais de tal complexidade e grau de


multidisciplinariedade não é, com efeito, tarefa fácil ao intérprete, ao
qual se impõe recorrer a conhecimentos extrajurídicos e ao conheci-
mento especializado de profissionais de outras áreas, das humanida-
des e, notadamente, da saúde, sendo que, nessa inter-relação,
dificuldades de diversas naturezas se apresentam, a começar pelas
diferentes linguagens típicas de cada grupo ou setor profissional, todos
eles de grande relevo para a compreensão e administração dos
problemas verificados nas relações entre drogas e seres humanos.
Porém, não se pode perder de vista que a abordagem multidisciplinar
do fenômeno não constitui mera faculdade do intérprete ou aplicador
de leis, mera liberalidade, mas um verdadeiro e incontestável dever
jurídico, pois emana de toda uma principiologia aplicável ao direito
penal das drogas, diretamente decorrente de lei e da Constituição, cuja
densidade normativa – ou seja, validade e obrigatoriedade como
norma jurídica – é incontestável.

De tudo isso se depreende que, quando se está diante de uma


questão jurídica relacionada ao uso ou ao porte de drogas para
consumo pessoal, capitulado no art. 28 da Lei de Drogas, incumbe ao
intérprete analisar a hipótese fática e seu enquadramento jurídico à luz
não apenas dos dizeres do aludido artigo – vocábulo por vocábulo,
elemento por elemento do tipo –, mas, igualmente, de todos os
princípios gerais e especiais acima mencionados, sem o que jamais
60
UNIDADE 3
poderá obter a resposta jurídica esperada pelo complexo sistema
normativo aplicável, de índole constitucional e infraconstitucional.

Assim, é imperioso que os operadores do direito compreendam


que o atual estágio de evolução das relações sociais e das instituições
jurídicas não mais lhes permite atuar fechados em si mesmos,
apegados ao formalismo positivista de muitas décadas atrás; pelo
contrário, exige-lhes um trabalho maior, mais difícil e ao mesmo
tempo mais rico de compreensão dos fenômenos humanos e de sua
complexidade. Algo disso se procurará demonstrar ao longo das uni-
dades que integram o presente curso, as quais demonstram a inter-
penetração no sistema jurídico-penal de conhecimentos exógenos –
extrapenais, e, sobretudo, extrajurídicos – cuja importância é
reconhecida pela legislação atual, notadamente, a Lei nº 11.343/
2006.

Porém, nesta unidade ainda nos circunscrevemos aos institutos


jurídicos aplicáveis, os quais, por si só, já rendem infindáveis discus-
sões no campo do direito penal das drogas. E, considerando as
limitações espaço-temporais do curso e a circunstância de o seu
público-alvo já possuir alguma familiaridade com as questões
jurídicas, cinjamo-nos, pois, ao pouco que cabe em breves linhas,
restringindo-se o objeto da análise.

Princípio da legalidade, crimes e penas


Há muito se afirma constituir a base de todo o sistema penal
democrático o princípio da legalidade, que se encontra expressamente
consagrado em nossa Constituição (art. 5º, inc. XXXIX) e é trazido já
no art. 1º do Código Penal (não há crime sem lei anterior que o defina;
não há pena sem prévia cominação legal).
61
MÓDULO I
O princípio da legalidade (nullum crimen nulla poena sine lege
praevia, scripta, stricta et certa) impõe que um fato não possa ser
considerado crime sem que haja uma lei correspondente que o defina
de forma prévia (à ocorrência do fato), escrita, clara e determinada –
portanto, inequívoca –, de modo a comunicar com segurança aos
cidadãos o que está proibido e lhes permitir moldar seu comporta-
mento em conformidade com as expectativas legais. A fim de que
apresente a estabilidade espacial e temporal necessária, propiciando,
com isso, segurança jurídica aos cidadãos, a definição do crime deve
constar em lei em sentido estrito – ou seja, ato formal próprio
emanado do Poder Legislativo – e não em normas regulamentares
(decretos, portarias, instruções normativas etc.) estabelecidas pelos
órgãos do Poder Executivo, ou mesmo em outros textos normativos a
que se possa atribuir força de lei, mas que não constituem, propria-
mente, lei em sentido estrito – por exemplo, medidas provisórias e
tratados internacionais.

Porém, isso não se aplica somente à definição jurídica do crime,


ou seja, à descrição que a lei deve fazer das condutas humanas
proibidas pelo direito penal (“preceito primário” da norma incrimina-
dora); aplica-se, igualmente, às penas correspondentes aos crimes,
estabelecidas de forma autônoma e específica para cada figura delitiva
prevista na legislação (“preceito secundário” da norma incriminado-
ra), e esse ponto tem especial relevância na análise do atual cenário
legislativo e judiciário brasileiro em matéria de consumo de drogas.

Assim define a legislação brasileira, na figura principal do art. 28


da Lei nº 11.343/2006, o crime de porte para consumo pessoal de
drogas:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou


trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em
desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às
seguintes penas:
62
UNIDADE 3
I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso


educativo.

Separemos, então, nossa breve análise – sob a luz do princípio


da legalidade – de cada dos vocábulos e elementos do tipo, a fim de
tecer importantes considerações sobre cada uma de suas duas
subdivisões acima mencionadas.

Ao se analisar o preceito primário de qualquer tipo penal, ou


seja, a descrição legal da conduta incriminada, a primeira coisa a fazer-
se talvez seja atentar para o(s) verbo(s) ali contido(s), sempre
considerado(s) o(s) núcleo(s) da descrição típica, pois sua eventual
pluralidade reflete uma pluralidade de condutas incriminadas pela
norma. Tem-se, então, no art. 28 da Lei de Drogas, a incriminação de
cinco condutas, que se apresentam no mundo exterior sob a forma de
“adquirir”, “guardar”, “ter em depósito”, “transportar” ou “trazer
consigo” drogas (manifestação do fato – aspecto objetivo do tipo),
acrescidas da especial finalidade de fazê-lo para seu consumo pessoal
(motivação interna do autor – aspecto subjetivo do tipo).

Só se concretiza no mundo das coisas e fatos o aspecto objetivo


do tipo, ou, em outras palavras, a tipicidade objetiva do delito; por
outro lado, a tipicidade subjetiva, por seu caráter de intencionalidade,
repousa na mente do autor – não se manifestando nos atos de
aquisição, guarda, tença em depósito, transporte ou trazimento de
drogas quaisquer. Nesse ponto, cumpre destacar que os mesmos cinco
verbos aludidos – ou núcleos de condutas típicas – repetem-se, sem
exceção, na descrição típica do art. 33 da mesma Lei de Drogas,
referente ao tráfico e condutas equiparadas, cujas consequências
jurídicas são extremamente severas: na figura principal (caput),
correspondem à pena de 5 a 15 anos de reclusão, punição próxima
63
MÓDULO I
àquela trazida pelo Código Penal para a prática do homicídio simples
(art. 121, caput, CP). Note-se bem: trata-se das mesmas condutas – no
Estudiosos e pesquisa- que se refere aos atos praticados –, variando apenas o propósito com
dores das ciências crimi-
nais têm apontado sinto- que são empregadas; no art. 28 (sem pena de prisão), o agente as
mas de que parte relevante
das elevadas – e econo- pratica com vistas ao seu consumo pessoal; no art. 33 (com pena de 5 a
micamente inviáveis –
taxas de encarceramento 15 anos), pratica-as com vistas a entregar a droga ao uso de terceiro,
dos anos recentes no
Brasil, as quais colocam o sendo desnecessário, inclusive, que aufira ou pretenda auferir
país como o de maior
expansão carcerária em qualquer tipo de lucro ou vantagem com essa entrega.
todo o mundo nas últimas
duas décadas, devam-se,
entre outros motivos, a Diante disso, é verdadeiramente crucial que o intérprete e
excessos de punição sobre
usuários de drogas: ante a aplicador da norma penal se valha da mais absoluta cautela no ato de
complexidade dos fenô-
menos e a semelhança ou enquadrar legalmente um comportamento humano relacionado ao
identidade fático-objetiva
dos comportamentos in- porte de drogas a fim de se prevenirem as mais graves injustiças, pois,
criminados nos arts. 28 e
33 da Lei nº 11.343/2006, efetivamente, um eventual erro de subsunção praticado por qualquer
muitos operadores, em si-
tuações duvidosas, re- operador do direito – desde o policial militar que conduz cidadãos ao
ceando eventual “impu-
nidade”, tenderiam equi- registro da ocorrência ou o delegado de polícia que a lavra até o
vocadamente a enqua-
drar fatos no art. 33, nem promotor de justiça que oferece denúncia ou o magistrado que profere
sempre movidos por crité-
rios juridicamente admis- sentença ou aprecia eventual recurso, passando pelo defensor que tem
síveis. A respeito, reco-
menda-se examinar a ex- a enorme responsabilidade de esclarecer à Justiça as circunstâncias do
tensa e detalhada pesquisa
empírica conduzida pelas evento – pode levar à consequência nefasta de um fato considerado
Professoras Ela Wiecko
Volkmer de Castilho pelo direito vigente como um dos menos ofensivos de todo o
(UnB), atual viceprocura-
dora-geral da República, e ordenamento penal (não há qualquer outro crime em nossa legislação
Luciana Boiteux de Figuei-
redo Rodrigues (UFRJ), no ao qual não se preveja a hipótese de pena de prisão) vir a ser tratado,
âmbito do programa
“Pensando o Direito” de- ilegalmente, com uma das penas mais severas de todo o sistema
senvolvido pelo Ministério
da Justiça (Secretaria de jurídico brasileiro, somente inferior, nos tipos básicos, às dos
Assuntos Legislativos) e
financiado pelo Programa gravíssimos crimes de homicídio, extorsão mediante sequestro e
das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (Pnud): falsificação ou corrupção de medicamentos.
Tráfico de Drogas e Consti-
tuição: um estudo jurí-
dico-social do artigo 33 da Cumpre-nos, em conclusão, examinar também o preceito
Lei de Drogas diante dos
princípios constitucionais- secundário do art. 28 da Lei nº 11.343/2006, ou seja, a cominação de
penais.
penas que a lei dedica ao crime de porte de drogas para consumo
pessoal, e o fazer fundamentalmente sob o prisma do citado princípio
da legalidade.
64
UNIDADE 3
Como visto, há três espécies diferentes de penas de que pode se
servir o juiz no momento em que profira uma sentença condenatória
pelo delito em apreço, cabendo a ele escolher a sanção mais adequada
ao caso concreto, à luz das circunstâncias objetivas do fato e pessoais
de seu autor, individualmente consideradas, em observância aos
princípios da individualização da pena e da proporcionalidade (CF,
art. 5º, inc. XLVI; CP, art. 59).

Analisemos brevemente algo do conteúdo das penas previstas:


a advertência sobre os efeitos das drogas, a prestação de serviços à
comunidade e a medida educativa de comparecimento a programa ou
curso educativo.

Começando pela segunda do rol, a prestação de serviços à


comunidade, trata-se de uma espécie de sanção penal já consagrada
em nosso ordenamento, há tempos integrante do leque tradicional de
penas restritivas de direito encontrável na parte geral e na parte
especial da legislação penal, e frequentemente aplicada, sem grandes
dificuldades, pelo Poder Judiciário em casos de condenações que
envolvam infrações penais de pequeno e médio potencial ofensivo.

Cabe lembrar que desde a minirreforma do sistema de penas


empreendida pela Lei nº 9.714/1998 o art. 44 do Código Penal
estabelece que as penas restritivas de direito, como medidas substituti-
vas à prisão, têm de ser a opção preferencial do juiz ao condenar
alguém que seja primário e de bons antecedentes a até quatro anos de
pena privativa de liberdade (seja ela de detenção ou reclusão) por
crime cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa. Crê-se que o
comando legal tem sido observado de forma suficientemente
adequada pela magistratura, a despeito de dificuldades de implemen-
tação de programas que possam apresentar maior utilidade à desejável
reintegração social dos apenados e aos próprios grupos sociais
beneficiários de serviços por eles prestados; isso, porém, é tarefa que
65
MÓDULO I
toca primordialmente ao Poder Executivo, mas não se pode menos-
prezar a importância do diálogo a ser estabelecido a respeito com o
Judiciário. Nessa prática, não se pode esquecer que, dado o elevado
prestígio de que costumeiramente gozam juízes e membros do
Ministério Público em suas comunidades – sobretudo, mas não
somente, em comarcas de pequeno e médio porte – e a relevância dos
poderes que constitucionalmente exercem, sua atuação oficial no
sentido de pedir para os gestores públicos locais que criem ou
aprimorem condições para o correto cumprimento de expectativas e
finalidades legais e constitucionais, sempre com vistas a prestigiar a
dignidade e o desenvolvimento humanos, pode ter efeitos positivos na
implementação de políticas e na estruturação de equipamentos
públicos, e, em matéria de reinserção social de pessoas que apresentam
padrões de uso abusivo de drogas, tal atuação pode se revela
Cumpre esclarecer: não me
refiro a todo e qualquer
particularmente salutar.
usuário, e nem sequer à
maioria deles, mas somen- Note-se que, a teor do § 5º do art. 28 da lei, a prestação de
te aos que, do ponto de
vista clínico, apresentam, serviços à comunidade de que aqui se cuida deve ser realizada
mais que o uso indevido
(que pode ser medido pelo
critério da legalidade), o em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais,
uso abusivo de drogas,
com base em critérios ne- hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins
cessariamente estabeleci-
dos pelas ciências da saú- lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do
de. O tema, que evidencia a consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas, o
necessidade da abordagem
multidisciplinar das rela- que denota a especial atenção dada pelo legislador ao objetivo de
ções entre seres humanos,
drogas e direito, será tra- dissuasão do consumo indevido.
tado em capítulos poste-
riores do presente curso.
Contudo, as outras duas penas arroladas no preceito secundá-
rio do art. 28 da Lei de Drogas apresentam uma relevância especial por
causa de seu caráter inovador em nosso ordenamento.

Como sabemos, a Lei nº 11.343/2006 revogou por inteiro a


antiga Lei de Tóxicos (Lei nº 6.368/1976), cuja figura típica,
correspondente a de porte de drogas para uso próprio (art. 16),
prescrevia prisão de seis meses a dois anos às condutas do usuário.

66
UNIDADE 3
Com efeito, a evolução das pesquisas e estudos sobre a fenomenologia
do uso e dependência de drogas em todo o mundo tem apontado, nas
últimas décadas, para uma ineficácia do paradigma simplista
(meramente punitivista) da guerra às drogas, requerendo abordagens
mais compreensivas e interdisciplinares da questão.

Sem deixar de reconhecer a gravidade do problema – aliás,


justamente reconhecendo-a e, mais que isso, reconhecendo sua
complexidade que não admite soluções mágicas e reducionistas –
constatou-se que o antigo ideário de “um mundo livre de drogas” não é
concretamente possível, mas uma mera ideologia sem base histórica.
Assim, cabe-nos buscar a máxima redução do consumo abusivo e a
diminuição dos problemas dele decorrentes a limites suportáveis em
busca de uma convivência social relativamente harmônica. Nessa
esteira, muitas democracias ocidentais, especialmente desde meados Eis, a nosso ver, o fim
precípuo do direito, de que
dos anos 1980, vêm experimentando novas formas de tratamento da não constitui exceção o
direito penal. Pois, ao
questão por meio de um abrandamento legislativo penal e maior contrário do que ainda
afirmam muitos juristas, a
ênfase à atuação de profissionais de saúde – de que são exemplos as tão apregoada finalidade
de “pacificação social” é
políticas de redução de danos e outras intervenções que integram o mera utopia irrealizável,
visto que toda sociedade
presente curso. democrática, justamente
por ser plural, jamais
esteve ou estará imune a
Foi com esses valores que o art. 28 da Lei nº 11.343/2006 foi conflitos – de pensa-
mentos e de atos, indivi-
concebido: já com certo atraso, era necessário ao Brasil acompanhar a duais e coletivos. Ade-
mais, a própria interven-
evolução do conhecimento na matéria e, assim, suprimir de seu marco ção judicial configura, em
si, um ato de violência
legislativo a previsão abstrata da pena privativa de liberdade para o externa – oficial e legí-
tima, mas ainda assim
usuário de drogas. Ao fazê-lo, optou-se por manter a incriminação do violência –, que não logra
pacificar um conflito entre
porte para consumo pessoal e incluir, no rol de sanções aplicáveis, duas partes, mas modificá-lo,
silenciá-lo ou, quando
muito, suspendê-lo.
modalidades inovadoras em nosso ordenamento, além da já conheci-
da prestação de serviços à comunidade.

A advertência sobre os efeitos das drogas é a menos gravosa das


três integrantes do rol, e por isso mesmo, considerando a principiolo-
gia pro libertate que rege o sistema penal democrático, deve ser a
67
MÓDULO I
primeira opção do juiz a ser imposta em casos de condenações em que
a generalidade das circunstâncias do fato e pessoais do agente lhe
sejam favoráveis. Porém, há várias dúvidas sobre seu significado.
Efetivamente, não se trata de uma “bronca”, a qual poderia caber a um
familiar, mas não a uma autoridade pública, e menos ainda de qualquer
tipo de pressão psicológica, de insinuações ameaçadoras ou outros
atos igualmente incabíveis à racionalidade que se espera do Poder
Judiciário e ao exercício da autoridade daquele que o representa e lhe
exerce o poder, tampouco parece o legislador ter pretendido que essa
advertência se transformasse em um termo de audiência que, sem que
nada tenha havido, considera o sentenciado automaticamente
“advertido sobre os efeitos das drogas” e libera a pauta do Juízo para o
próximo processo a ser examinado ou a próxima audiência a ser
realizada.

Com efeito, a advertência tem como objetivo melhor informar


o cidadão acerca dos perigos que o uso indevido de drogas pode
acarretar à sua saúde e convivência social, tendo o legislador, “ao
estabelecer a penalidade de advertência, adotado como premissa
básica o fato de que as pessoas menos suscetíveis ao consumo de
drogas são aquelas que têm, entre outros fatores, informações corretas
e fidedignas sobre o uso”. (IBIAPINA, s/d.). Assim, considerando os
valores afirmados pela legislação e princípios constitucionais que a
norteiam, cabe ao juiz conferir à advertência o caráter compreensivo e
diligente que se lhe espera, utilizando-se para isso da equipe multidis-
ciplinar de que deve dispor – e se não dispõe, cumpre-lhe envidar
esforços para implantá-la – em seu Juizado, o que permitirá realizar
pequenas palestras informativas e diálogos esclarecedores com os
jurisdicionados, inclusive considerando as circunstâncias concretas e
padrões de uso destes. Eis o que se deve compreender como uma
advertência com alguma chance de atingir os fins pretendidos pela
norma, sendo que dela tampouco se exclui a possibilidade de

68
UNIDADE 3
realização da intervenção breve com usuários, outro tema que será
objeto de análise mais detida ao longo deste curso.

No tocante à medida educativa de comparecimento a progra-


ma ou curso educativo, aplicável a casos mais complicados de uso
indevido (ou abuso) de drogas, sua dicção legal se afigura, em grande
medida, autoexplicativa. Todavia, isso não afasta a necessidade de se
tecerem algumas considerações fundamentais a respeito.

Em primeiro lugar, não existe espaço para que se confunda essa


espécie de sanção com qualquer tipo de tratamento compulsório, seja
ele ambulatorial ou em regime de internação. A legislação brasileira
nessa matéria é bastante clara e, em consonância com a evolução
científica internacional, estabelece na Lei nº 10.216/2001 (“Lei Anti-
manicomial”) os casos excepcionalíssimos a que se reserva tal
modalidade terapêutica. Ainda que não fosse dessa forma, é cediço
que em uma democracia não cabe ao direito penal e à Justiça Criminal
impor formas de tratamento a cidadãos responsáveis, o que feriria o
direito à autonomia individual, inerente ao postulado constitucional
da dignidade da pessoa humana.

Ademais, o programa ou curso educativo a que alude à norma


deve ser preferencialmente um programa oficial, cabendo ao Juízo
empreender todos os esforços para localizar e fomentar programas
adequados em sua região. Subsidiariamente, pode-se recorrer à rede
privada de saúde e assistência, porém, impondo-se ao juiz sentencian-
te zelar para que se trate de uma instituição cujas práticas sejam
consonantes com os valores laicos e pluralistas consagrados pela
Constituição; do contrário, estar-se-ia permitindo que o Estado
impusesse uma moral particular – uma visão de mundo entre muitas
juridicamente admitidas – a seu cidadão por meio da força e da
autoridade de uma sentença judicial, algo que a Constituição da
República não permite.
69
MÓDULO I
Por fim, é necessário se atentar de modo especial aos precisos
limites do princípio da legalidade no direito penal: se a lei fala em
comparecimento ao programa, descabe ir além de seus dizeres e
impor, por exemplo, frequência integral ou realização de todas as suas
atividades. O fim aqui almejado não é uma mera e formal aprovação no
curso, mas, uma vez mais, os potenciais esclarecimentos que o
comparecimento a ele pode proporcionar ao cidadão, eventualmente
despertando-lhe – como deseja a lei, mas certamente não ocorrerá em
todos os casos – interesse autônomo sobre sua própria recuperação.
Com efeito, na maioria das vezes a voluntariedade do cidadão
constitui elemento fundamental para a eficácia de eventual tratamen-
to, tendo a mão pesada do direito penal, felizmente para uns e
infelizmente para outros, pouquíssima influência nesse campo –
conforme décadas de observação empírica tem comprovado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DAVENPORT-HINES, R. The Pursuit of oblivion: a global history of narcotics.


London; New York: W. W. Norton, 2002.

ECOHOTADO, A. Historia general de las drogas. 3 ed. Madrid: Espasa, 2000.

IBIAPINA, D. L. F. P. “A Penalidade de advertência na nova lei de tóxicos à luz do


direito processual constitucional”. In: Associação dos Magistrados Brasileiros.
Disponível em: <http://www.amb.com.br/mod/1/index.asp?secao= artigo_deta-
lhe&art_id=1014>. Acesso em: 23/02/2015.

REALE JÚNIOR, M. Instituições de direito penal, vol. I. Rio de Janeiro: Forense,


2002.

70
UNIDADE 3
RODRIGUES, L. B. F.; CASTILHO, E. W. V. Tráfico de Drogas e Constituição:
um estudo jurídico-social do artigo 33 da Lei de Drogas diante dos princípios
constitucionais-penais. Brasília: Ministério da Justiça, 2009. Disponível em:
<http://www.justica.gov.br>. Acesso em: 31/08/2013.

TAFFARELLO, R. F. Drogas: falência do proibicionismo e alternativas de política


criminal. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2009.

ZAFFARONI, E. R. R.; BATISTA, N. Direito penal brasileiro, t. I, v. I. Rio de


Janeiro: Revan, 2003.

71
MÓDULO I
RESUMO DA AULA

Esta unidade aborda o tratamento legal conferido às condutas


relacionadas ao crime de porte de drogas para uso pessoal, descreven-
do quais penas são impostas a esse delito e explicando como ocorre
(ou deveria ocorrer) sua implementação e execução.

Para melhor compreender o contexto em que se deu a elabora-


ção da Lei nº 11.343/2006 e sua finalidade, o texto faz uma breve
apresentação da evolução histórica do enfrentamento da questão
relacionada às drogas.

Este é o fim do módulo I, que, tratando da cultura jurídica


sobre drogas, trouxe um panorama da legislação brasileira atual
acerca do tema, abordando assuntos como:

• a mudança da cultura jurídica relacionada ao assunto (da


cultura repressivo-punitiva à cultura restaurativa);

• o aprimoramento da atuação do Poder Judiciário em relação


ao uso de drogas (“descarcerização” e medidas educativas);

• a definição de condutas que caracterizam o crime de porte de


drogas para consumo e as penas a elas aplicadas.

No próximo módulo serão analisadas questões relacionadas


aos Diretos Humanos.

72
UNIDADE 3
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. Assinale as afirmações que guardam conformidade com o texto da


unidade:

( ) Atualmente, o direito penal se mantém como a esfera jurídica


principal de enfrentamento ao uso de drogas e problemas
sociais e humanos relacionados;

( ) A Lei nº 11.343/2006 constitui o principal texto legislativo


brasileiro atinente ao tratamento jurídico do consumo de
drogas;

( ) Ao passo que a Lei nº 6.368/1976 era claramente dominada


por dispositivos repressivos – não só nos capítulos intitulados
“dos crimes e penas” e “do procedimento criminal”, mas
também nos outros três, intitulados “da prevenção”, “do
tratamento e recuperação” e “disposições gerais” –, a atual Lei
de Drogas promoveu a descriminalização do consumo;

( ) Na aplicação da lei penal, em matéria de drogas, é preciso


atentar-se não somente aos princípios fundamentais de caráter
penal e processual penal, mas também aos princípios que o
direito consagra de forma específica para a questão, i.e., para o
tratamento jurídico das drogas, os quais se encontram no art.
4º da Lei nº 11.343/2006;

( ) Aos princípios contidos no art. 4º da Lei de Drogas, devem se


adicionar os objetivos do Sistema Nacional de Políticas
Públicas sobre Drogas (SISNAD), arrolados no art. 5º da
mesma lei, entre os quais o de não contribuir para a inclusão
social do cidadão.

73
MÓDULO I

2. Segundo o texto, o princípio da legalidade, base de todo o sistema


penal democrático, impõe que um fato:

a. Não possa ser considerado crime sem que haja uma lei
correspondente que o defina de forma prévia (à ocorrência
do fato), escrita e indeterminada;

b. Possa ser considerado crime, mesmo que não haja uma lei
correspondente que o defina de forma prévia (à ocorrência
do fato), podendo o juiz suprir eventual ausência legislativa;

c. Não possa ser considerado crime sem que haja uma lei
correspondente que o defina de forma prévia ou posterior (à
ocorrência do fato), escrita, clara e determinada;

d. Não possa ser considerado crime sem que haja uma lei
correspondente que o defina de forma prévia (à ocorrência
do fato), escrita, clara e determinada;

e. Possa ser considerado crime desde que uma lei prévia o


preveja de qualquer forma.

74
MÓDULO II
DIREITOS HUMANOS

Este módulo relaciona o tema das drogas aos Direitos Humanos


e é dividido em:

Unidade 4 – História, fundamentos e proteção dos Direitos Humanos

Unidade 5 – Sujeitos e atuações em Direitos Humanos


UNIDADE 4

HISTÓRIA, FUNDAMENTOS
E PROTEÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS*
• Introdução histórica: surgimento e fundamentos dos
Direitos Humanos

• Declaração Universal dos Direitos Humanos

• Características dos Direitos Humanos:


universalidade, indivisibilidade e interdependência

* Texto adaptado do original do curso Prevenção do uso de drogas:


capacitação para conselheiros e lideranças comunitárias, realizado pela SENAD em 2013 II
HISTÓRIA, FUNDAMENTOS E PROTEÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS
Marcia Cristina de Oliveira

O que são os Direitos Humanos? Por que eles estão em evidên-


cia nos dias atuais? Qual a importância da promoção de uma cultura
baseada nos Direitos Humanos?

Um pouco da história e dos fundamentos


dos direitos humanos

Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o


que fazemos para mudar o que somos.
A história é um profeta com o olhar voltado para trás:
pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será.
(Eduardo Galeano)

Nem sempre a sociedade esteve organizada como a conhece-


mos atualmente. Ao longo da história, a humanidade evoluiu naquilo
que diz respeito às formas de sobrevivência e organização da vida em
comunidade, buscando consolidar princípios solidários e de respeito
à vida. Parece ser um consenso: ninguém vive sozinho, e contextos de
grandes desigualdades e de violências colocam a vida em situação de
vulnerabilidade permanente.

Situações de conflito armado – causadas principalmente por


divergências políticas, religiosas, culturais, étnico-raciais e disputas
territoriais – são uma constante em nossa história. Por outro lado, mui-
tas vezes em resposta a tais situações, temos uma história de constru-
79
MÓDULO II
ção de realidades nas quais a vida é considerada o valor maior e, por-
tanto, deve ser protegida e viabilizada em sua integridade. Dessa com-
preensão surgem diversos mecanismos de defesa dos Direitos
Humanos e de promoção de uma cultura que se oponha radicalmente
a todos os tipos de violência.

É nesse contexto de construção de valores humanistas e de pro-


moção de uma cultura pautada na paz que percebemos e tecemos a
História dos Direitos Humanos. É importante considerar que tal pro-
cesso tem se dado em meio a conflitos, disputas e conquistas.

Os Direitos Humanos refletem uma concepção de sociedade


que se deseja construir e de pessoas que se deseja formar. O que fun-
damenta esse movimento não é uma dádiva, uma inspiração intelec-
tual ou mais um modismo, mas os próprios processos e aprendizagens
acumulados pela humanidade, nas mais diversas áreas, experiências e
descobertas. É um processo de construção humana, de apreensão e de
recriação da realidade.

É principalmente a partir da segunda metade do século XX que


o paradigma dos Direitos Humanos se consolida reunindo referenciais
jurídicos, teóricos e empírico-metodológicos. Desde então, ampliou-
-se o escopo de direitos, e hoje trabalhamos com uma abordagem que
reúne não somente os direitos civis e políticos, mas também os direitos
sociais, econômicos, culturais e ambientais. O princípio máximo desse
paradigma é a universalidade da dignidade humana, sendo considera-
da a singularidade de cada indivíduo e seu segmento sociocultural.

Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos,


proclamada em 1948, é uma referência basilar na qual encontramos
todos os princípios e direitos expressos. Esse documento é um marco
para a humanidade, uma vez que buscou alinhar as nações a um com-
promisso de defesa incondicional do direito de todos à vida digna em
qualquer contexto em que ela se encontre.
80
UNIDADE 4
Vejamos o que diz a Declaração:

DECLARAÇÃO UNIVERSAL
DOS DIREITOS HUMANOS

Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III)


da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948

Preâmbulo
Considerando que o reconhecimento da dignidade ine-
rente a todos os membros da família humana e de seus direitos
iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da
paz no mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direi-
tos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a cons-
ciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os
homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade
de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado
como a mais alta aspiração do homem comum,
Considerando essencial que os direitos humanos sejam
protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja
compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a
opressão,
Considerando essencial promover o desenvolvimento de
relações amistosas entre as nações,
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirma-
ram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dig-
nidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos
dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o pro-
gresso social e melhores condições de vida em uma liberdade
mais ampla,
Considerando que os Estados-Membros se compromete-
ram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o res-

81
MÓDULO II

peito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais


e a observância desses direitos e liberdades,
Considerando que uma compreensão comum desses direi-
tos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumpri-
mento desse compromisso.

A Assembleia Geral proclama


A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos
como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as
nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da
sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce,
através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses
direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de
caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconheci-
mento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os
povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos
dos territórios sob sua jurisdição.

Artigo I
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em rela-
ção umas às outras com espírito de fraternidade.

Artigo II
Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as
liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qual-
quer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião polí-
tica ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nas-
cimento, ou qualquer outra condição.

Artigo III
Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal.
82
UNIDADE 4

Artigo IV
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a
escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as
suas formas.

Artigo V
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou
castigo cruel, desumano ou degradante.

Artigo VI
Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reco-
nhecida como pessoa perante a lei.

Artigo VII
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer
distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual prote-
ção contra qualquer discriminação que viole a presente
Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo VIII
Toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais
competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos
fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou
pela lei.

Artigo IX
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Para continuar a ler este documento, que possui 30 artigos, acesse:

http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf

83
MÓDULO II
Os Direitos Humanos são um conjunto de princípios e direi-
tos que juntos representam a defesa e a promoção da vida digna para a
pessoa humana. Isso implica considerar a universalidade do ser huma-
no e também as especificidades de cada pessoa, ou seja, a prática dos
Direitos Humanos deve considerar que o direito à vida digna é um
princípio que rege todas as políticas públicas diante da especificidade
de cada grupo e de cada segmento social. Segundo Rodrigues (2007,
p. 11):

A Declaração consolidou uma visão contemporânea de direitos


humanos marcada pela universalidade, pela indivisibilidade e pela
interdependência.

A universalidade implica o reconhecimento de que todos os indivídu-


os têm direitos pelo mero fato de sua humanidade. [...]

A indivisibilidade implica na percepção de que a dignidade humana


não pode ser buscada apenas pela satisfação de direitos civis e políti-
cos [...].

Já a interdependência aponta para a ligação existente entre os diver-


sos direitos humanos. A efetivação do voto, que é um direito político,
depende da garantia do direito à educação, que é um direito social.
[...]

O conceito atual de direitos humanos foi confirmado com a realiza-


ção da Conferência mundial sobre Direitos Humanos, ocorrida em
Viena, em 1993. Naquela ocasião, foram elaborados a Declaração e
o Programa de Ação de Viena. Em seu parágrafo quinto, a
Declaração estabelece que: 'Todos os direitos humanos são universa-
is, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacio-
nal deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equi-
tativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase.

É nessa esteira que a luta pelo direito à vida digna na diversida-


de vem consolidando novos debates e promovendo a constituição de

84
UNIDADE 4
um marco legal abrangente (mundial, regional e local) e de um marco
teórico atualizado, multidisciplinar, que considere novas compreen-
sões e as culturas instituintes dessas realidades, e, sobretudo, pautan-
do a proposição de políticas públicas diversificadas e inclusivas.

Proteger, promover e consolidar a cultura


dos direitos humanos

A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos.


(Hannah Arendt)
Sobre esse período da his-
tória do Brasil, você pode
assistir aos seguintes fil-
mes: Pra frente Brasil
(1982), O que é isso, com-
O movimento em defesa dos Direitos Humanos ganhou força panheiro? (1997), Zuzu
Angel (2006), Batismo de
internacionalmente, principalmente após o fim da Segunda Guerra sangue (2007) e O ano em
que meus pais saíram de
Mundial, em 1945. Já no Brasil, o final do período da ditadura mili- férias (2006).

tar, em 1985, possibilitou a ampliação da mobilização em defesa dos


direitos fundamentais e, consequentemente, a consolidação de con-
quistas importantes nesse campo, entre elas a nossa Constituição
A Constituição de 1988 é
Federal de 1988. conhecida como a “Consti-
tuição Cidadã” por abarcar
Como já dito anteriormente, o paradigma dos Direitos uma gama inédita de
direitos e deveres, bem
Humanos representa um ideal de mundo e de ser humano. Não está como pelo próprio processo
de construção, que contou
com ampla participação
dado, precisa ser recriado permanentemente diante de cada contexto popular. O texto atuali-
zado da Constituição da
e demandas dos diferentes povos. Isso implica em: profundo respeito República Federativa do
Brasil está disponível em:
e valorização da vida e do regime democrático; conhecimento das dife- http://www.senado.gov.br/
legislacao/const/.
rentes culturas, modos de vida e necessidades dos segmentos sociais;
compreensão do funcionamento das instituições políticas; organiza-
ção da sociedade civil e monitoramento do funcionamento do
Estado.

85
MÓDULO II
Esse conjunto dinâmico e qualificado de instituições e sujeitos
políticos pode fazer a diferença em contextos de luta pela garantia de
direitos. Ao olharmos para a História, percebemos as muitas conquis-
tas e mudanças, mas também o quanto ainda precisa ser feito. Talvez
estejamos somente iniciando a nossa tarefa, pois:

a) ainda existem muitos conflitos armados no mundo e no


Brasil;

b) a fome e a miséria estão presentes nos continentes coloniza-


dos pelos europeus e norte-americanos;

c) ainda é preciso superar a discriminação de todos os tipos;

d) o acesso ao saneamento básico e à saúde é absolutamente


precário para grande parte da população mundial;

e) a exploração indiscriminada do meio ambiente causa pro-


blemas quase irreversíveis para a vida no planeta;

f) a compreensão de crianças, adolescentes, jovens e idosos


como prioridade é uma construção a ser consolidada;

g) a tortura e a violência de modo geral estão presentes e são


visíveis, sendo uma cultura a ser superada.

Tal cenário pode ser desvelado à medida que nos interessamos


por conhecer e enfrentar essas realidades, não de qualquer maneira,
mas com responsabilidade e compromisso. Essas realidades precisam
ser transformadas por meio de políticas de Estado permanentes, de
amplo alcance, diversificadas e inclusivas. Ao mesmo tempo, é indis-
pensável a atuação comprometida da sociedade civil organizada e de
cada cidadão. Essa parceria possibilita o atendimento das necessida-
des locais (específicas) e globais (universais), a construção de conhe-
cimentos e a proposição de políticas públicas diferenciadas, meios

86
UNIDADE 4
para consolidar novas práticas culturais. Sem dúvida, é um caminho
longo a se percorrer.

A seguir, apresentamos algumas das principais conquistas no


marco jurídico dos Direitos Humanos no campo internacional e no
campo nacional. Tais conquistas têm se desdobrado em dispositivos Você pode saber mais sobre
esses e outros documentos
consultando alguns sites:
legais, instituições governamentais e não governamentais e organiza- www.mj.gov.br;
www.sdh.gov.br;
do redes de proteção de direitos. www.direitoshumanos.
usp.br.

Na esfera internacional:

• Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948);

• Declaração dos Direitos da Criança (1959);

• Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de


Discriminação Racial (1963);

• Declaração sobre o Fomento entre a Juventude dos Ideais de


Paz, Respeito Mútuo e Compreensão entre os Povos
(1965);

• Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e Pacto


Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1966);

• Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de


Discriminação Contra a Mulher (1979);

• Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou


Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984);

• Convenção sobre os Direitos da Criança (1989);

• Carta de Princípios sobre a Proteção de Pessoas Acometidas


de Transtorno mental (1991);

87
MÓDULO II
• Declaração sobre Educação para Todos (2000);

• Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2001);

• Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência


(2007).

Na esfera nacional:

• Constituição Federal (1988);

• Lei nº 7.716 /1989: define os crimes resultantes de precon-


ceito, de raça ou de cor;

• Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990);

• Criação do SUS (Lei nº 8.080/1990);

• Programa Nacional de Direitos Humanos (1996);

• Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/1996);

• Lei de Crimes Ambientais/Lei da Natureza (Lei nº 9.605/


1998);

• Plano Nacional de Educação (2000);

• Lei nº 10.216/2001: sobre a proteção e os direitos das pesso-


as portadoras de transtorno mental e o redirecionamento do
modelo assistencial em saúde mental;

• Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003);

• Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2003);

• Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2005);

• Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas


(2008);

88
UNIDADE 4
• Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (2009);

• Política Nacional para Inclusão Social da População em


Situação de Rua (2009);

• Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência


(2011).

Esses são alguns exemplos de que vivemos tempos nos quais a


democracia, a cidadania, a participação e os direitos fundamentais
ganham novos significados e devem ser a referência para a estrutura-
ção de políticas públicas cada vez mais inclusivas, capazes de atender
às necessidades dos diferentes segmentos sociais e, principalmente,
ser um poderoso instrumento de combate às desigualdades de todos
os tipos, ainda persistentes em nosso país.

Nesse sentido, a organização e a participação são aspectos fun-


damentais para que consigamos realmente viver novas realidades
naquilo que tange aos Direitos Humanos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:


promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série
Legislação Brasileira).

RODRIGUES, M. et al. Formação de Conselheiros em Direitos Humanos.


Brasília (DF): Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007.

89
MÓDULO II
RESUMO DA AULA

Esta unidade abordou a temática dos Direitos Humanos de


forma ampla a fim de introduzir o tema, mencionando as característi-
cas de tais direitos e sua inerência à pessoa humana, frisando sua
importância na luta contra todos os tipos de violência e desigualdade.

Ademais, apresentou a Declaração Universal dos Direitos


Humanos e alguns documentos nacionais e internacionais que esta-
belecem um marco jurídico pertinente.

A unidade seguinte tratará dos sujeitos e da atuação em


direitos humanos com a finalidade de direcionar o estudo do tema
para uma melhor compreensão da relação deste com o tema central
do curso.

90
UNIDADE 4
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. Segundo o texto, o princípio máximo do paradigma dos Direitos


Humanos é a universidade:

a. Do ser humano;

b. Do acesso à saúde;

c. Da dignidade humana;

d. Do acesso à educação;

e. Das políticas públicas.

2. Qual(is) alternativa(s) abaixo representa(m) a(s) justificativa(s)


para a afirmação de que, embora se tenha alcançado muitas conquis-
tas em relação à efetivação dos Direitos Humanos, ainda existe muito
a ser feito?

a. A exploração indiscriminada do meio ambiente causa


problemas quase irreversíveis para a vida humana no planeta;

b. O acesso ao saneamento básico e à saúde é absolutamente


precário para grande parte da população mundial;

c. A tortura e a violência de modo geral estão presentes e são


visíveis, sendo uma cultura a ser superada;

d. Ainda é preciso superar a discriminação de todos os tipos;

e. Todas as alternativas.

91
UNIDADE 5

SUJEITOS E ATUAÇÃO
EM DIREITOS HUMANOS*
• Sujeitos e dimensões dos Direitos Humanos: o
homem como indivíduo, como sujeito social e político
e como ser coletivo

• Direitos humanos, democracia e cidadania

* Texto adaptado do original do curso Prevenção do uso de drogas:


capacitação para conselheiros e lideranças comunitárias, realizado pela SENAD em 2013 II
SUJEITOS E ATUAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
Marcia Cristina de Oliveira

Quando falamos em Direitos Humanos, estamos nos dirigin-


do a quem? Que situações nos remetem a esse paradigma? Como
atuar nesse campo? Que estratégias existem para garantir os Direitos
Humanos?

Somos todos sujeitos de direitos

Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direi-


tos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em rela-
ção umas às outras com espírito de fraternidade. (Artigo I da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948).

Como já vimos, viver com dignidade em um contexto de respei-


to aos direitos fundamentais tem sido uma busca permanente da socie-
dade civil e dos movimentos sociais, processo que se acentuou nas
décadas finais do século XX, período conhecido como “redemocrati-
zação do Brasil”. Foi a partir dos anos 1980 que os processos de defesa e
concretização dos direitos constitucionais e dos Direitos Humanos
ganharam nova energia e visibilidade e, culturalmente, passaram a fazer
parte do cotidiano nacional de uma maneira mais universalizada.
Podemos considerar que, com o fim da ditadura, a retomada dos prin-
cípios e garantias universais, instituintes da vida, e da vida em comuni-
dade se tornou um objetivo para a sociedade brasileira.

95
MÓDULO II
Historicamente, os Direitos Humanos vêm se transformando e
ampliando sua abordagem diante das conquistas sociais e transforma-
ções culturais. A princípio, se referiam ao homem enquanto indivíduo
(direitos de liberdade); em seguida, observavam uma compreensão
de homem como sujeito social e político (direitos de igualdade),
aspecto que amplia o campo dos direitos para essas dimensões; atual-
mente, a abordagem dos Direitos Humanos é bem mais ampla, na
medida em que se compreende o homem como um ser coletivo (direi-
tos de fraternidade e solidariedade), que existe em um mundo em inte-
ração, complexo, quase sem fronteiras, que – graças aos avanços tecno-
lógicos – amplia infinitamente as possibilidades de trocas, de constru-
ção de conhecimento e de acesso à informação.

A construção histórica dos Direitos Humanos

Direitos da primeira geração ou direitos de liberdade: sur-


giram nos séculos XVII e XVIII e foram os primeiros reconhe-
cidos pelos textos constitucionais. Compreendem direitos
civis e políticos, inerentes ao ser humano e oponíveis ao
Estado, visto na época como grande opressor das liberdades
individuais. Incluem-se nessa geração o direito à vida, seguran-
ça, justiça, propriedade privada, liberdade de pensamento,
voto, expressão, crença, locomoção, entre outros.

Direitos da segunda geração ou direitos de igualdade: surgi-


ram após a 2ª Guerra Mundial com o advento do Estado Social.
São os chamados direitos econômicos, sociais e culturais que
devem ser prestados pelo Estado através de políticas de justiça
distributiva. Abrangem o direito à saúde, trabalho, educação,

96
UNIDADE 5

lazer, repouso, habitação, saneamento, greve, livre associação


sindical etc.

Direitos da terceira geração ou direitos de fraternida-


de/solidariedade: são considerados direitos coletivos por
excelência, pois estão voltados à humanidade como um todo.
Nas palavras de Paulo Bonavides (2006), são “direitos que não
se destinam especificamente à proteção dos interesses de um
indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm
por primeiro destinatário o gênero humano mesmo, em um
momento expressivo de sua afirmação como valor supremo
em termos de existencialidade concreta”. Incluem-se aqui o
direito ao desenvolvimento, à paz, à comunicação, ao meio
ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural da
humanidade, entre outros.

Assim como se transformou a compreensão sobre o conjunto


de direitos a serem garantidos, também tem se reconfigurado a com-
preensão sobre quem são os “sujeitos” desses direitos e qual a dinâmica
que se estabelece nessa relação, pois um indivíduo é um sujeito social e
coletivo. Dependendo da situação em que se encontra, este pode
demandar, acessar e buscar usufruir de um determinado conjunto de
direitos. Assim, voltamos à compreensão de indivisibilidade e interde-
pendência dos Direitos Humanos. É importante termos a clareza de
que nós, cada indivíduo, grupo ou comunidade, “temos o direito de
acessar os direitos”, enquanto o Estado tem o dever de prover e garantir
o acesso a eles.

Sobre esse aspecto, vejamos uma síntese possível, a seguir:

97
MÓDULO II

Os sujeitos dos Direitos Fundamentais

Sujeito Ativo:

Na situação de sujeito ativo, podemos categorizar quatro


conjuntos de direitos, a depender da condição ou das deman-
das dos indivíduos:

I. Os Direitos Individuais: São aqueles cujo titular é


uma pessoa física, um indivíduo, um ser humano. A
ele assimila-se todo direito de um ente personaliza-
do.

II. Os Direitos de Grupos: São, na definição legal do


art. 81, parágrafo único, inciso III, do Código do
Consumidor, os direitos individuais homogêneos,
assim entendidos os decorrentes de origem comum.
Na verdade, consistem numa agregação de direitos
individuais que, todavia, têm uma origem comum.

III. Direitos Coletivos: É o transindividual de natureza


indivisível (Código do Consumidor, art. 81, pará-
grafo único, inciso II), ou seja, o de que é titular de
uma coletividade, povo, categoria, classe etc., cujos
membros estão entre si vinculados por uma relação
jurídica básica.

IV. Direitos Difusos: É o que se reconhece, sem indivi-


dualização, a toda uma série indeterminada de pes-
soas que partilham de certas condições. Isto é, os
transindividuais de natureza indivisível, de que
sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por

98
UNIDADE 5

circunstâncias de fato. (Código do Consumidor, art.


81, parágrafo único, inciso I).

De modo geral, as liberdades são direitos individuais, os


direitos de solidariedade, direitos difusos, os direitos sociais,
direitos individuais ou coletivos. Os direitos-garantia podem
ser direitos individuais, coletivos ou difusos.

Sujeito Passivo:

Pode-se dizer que o Estado ocupa essa posição em todos


os casos. De fato, é ele quem deve, principalmente, respeitar as
liberdades, prestar serviços correspondentes aos direitos sociais
e à proteção judicial e zelar pelas situações objeto dos direitos de
solidariedade.

Mas ele não fica sozinho no polo passivo dos direitos fun-
damentais. Quanto às liberdades e aos direitos de solidariedade,
todos estão adstritos a respeitá-los. No tocante a direitos sociais
específicos, a Constituição, por exemplo, inclui no polo passivo
do direito à educação da família, ao lado do Estado (art. 205),
quanto ao direito à seguridade, inclui a sociedade (art. 195).

Entendemos que as mudanças culturais, aquelas que definem


nossos modos de ser, agir e pensar, ganham universalidade quando
amparadas na construção de um referencial jurídico-formal. Da
mesma forma, as mudanças desencadeadas pelos textos legais só en-
contram sentido se refletem os anseios e sentimentos coletivos.
Cultura e ação política se completam em cenários de transformação, e
é nesse encontro de mudanças aceleradas e de composição de forças
99
MÓDULO II
e de significados que a temática dos Direitos Humanos vem se consti-
tuindo.

É muito importante que as pessoas se apropriem cada vez mais


desses conceitos, da história e dos marcos constituídos, de modo a
compreenderem seus papéis sociais e também as responsabilidades
dos governos e do Estado nesse processo dinâmico e complexo de
transformação social.

Direitos humanos, democracia e cidadania


A democracia é, por excelência, o regime promotor da cultura
dos Direitos Humanos. Vejamos uma leitura possível sobre essa ques-
tão:

São cinco os princípios da democracia. São cinco e, juntos, totalmente


suficientes. Cada um separado já é uma revolução. Pensar a liberdade,
o que acontece em sua falta e o que se pode fazer com sua presença. A
igualdade, o direito de absolutamente todos e a luta sem fim para que
seja realidade. E assim o poder da solidariedade, a riqueza da diversi-
dade e a força da participação.

E quanta mudança ocorre por meio deles. Se cada um separado quase


daria para transformar o mundo, imagine todos eles juntos. O desafio
de juntar igualdade com diversidade; de temperar com solidariedade
conseguida pela participação. Essa é a questão da democracia: a
simultaneidade na realização concreta dos cinco princípios, meta sem-
pre irrealizável, e ao mesmo tempo, possível de se tentar a cada passo,
em cada relação, em cada aspecto da vida [...]. Cidadania e democra-
cia se fundam em princípios éticos e, por isso, têm o infinito como seu
limite. Não existe o limite para a solidariedade, para a liberdade, para
a igualdade, para a participação e para a diversidade... A democracia
é uma obra inesgotável.

100
UNIDADE 5
Na concepção do autor, os princípios-direitos que fundamen-
tam a democracia e o exercício da cidadania são os mesmos instituin-
tes dos Direitos Humanos. Essa aproximação, essa organicidade, é fun-
damental quando entendemos que os Direitos Humanos se concreti-
zam em espaços, tempos e condições concretas da vida das pessoas,
das sociedades e, principalmente, na relação com o Estado. Sabemos
que a existência da lei não é o suficiente para garantir a existência de
novas realidades, mas é fundamental para promover e garantir novas
condutas. Precisamos de políticas, práticas, pessoas e instituições com-
prometidas com a promoção de novas perspectivas políticas quando a
temática é o bem-estar de todos.

Nesse sentido, pensar e fazer a democracia acontecer em sua ple-


nitude talvez seja um dos maiores desafios enfrentados pelas socieda-
des contemporâneas, entre outros que estão nas pautas governamen-
tais, como desenvolvimento sustentável com justiça social, relações
internacionais e cultura da paz, por exemplo, mas a questão da institui-
ção de uma democracia na qual os processos de participação sejam efe-
tivos, capazes de enfrentar e superar as imensas desigualdades existen-
tes, parece ser o eixo que dá sustentação a agendas mais promissoras e
avançadas do ponto de vista da viabilidade e do fortalecimento da rela-
ção entre Estado e sociedade civil na perspectiva da cidadania ativa.

A Constituição Federal de 1988 formalizou no campo da lei a


demanda por modelos mais qualitativos de participação da sociedade
civil nos processos de proposição, implantação e acompanhamento
das políticas públicas. Inúmeros dispositivos e espaços de participação
foram criados: conselhos, fóruns, conferências, audiências públicas,
orçamentos participativos e ouvidorias, cada um deles tendo a legisla-
ção como um dos aportes para a estruturação de grupos de trabalho e
rotinas voltadas a processos participativos.

101
MÓDULO II
No campo das práticas democráticas, almejamos avançar do
modelo de democracia de baixa intensidade – caracterizado por meca-
nismos de representação (eleições, voto) – para o modelo de democra-
cia de alta intensidade, cuja tônica busca articular mecanismos de
representação e participação, procedimento que tende a potencializar
a qualificação do regime democrático naquilo que diz respeito não
somente à representatividade, mas também à diversidade, ao alcance e
à transparência dos governos e da gestão das políticas públicas.

Segundo Santos e Avritzer (2003), “o que se almeja é reinventar


a emancipação social”, ou seja, precisamos valorizar e praticar a demo-
cracia da participação, que se alimenta dos debates e das diferentes rea-
lidades e demandas dos segmentos da população. Essa é a dinâmica a
ser vivida, elaborada e pronunciada nos tempos atuais. Devemos nos
voltar para algumas experiências em curso no país, como as de criação
e consolidação de espaços públicos alternativos, nos quais é possível
pensar e fazer política na perspectiva da qualidade e da diversidade,
mesmo em cenários em que a convivência com padrões de autoritaris-
mo, clientelismo e violência ainda são a tônica da política e do convívio
social.

Há muito que avançarmos nessa empreitada, mas devemos


fazê-lo de maneira inovadora e contextualizada. Cenários em que o
valor da argumentação e da diversidade das experiências de vida
ganham destaque e passam a ser referência para a construção de reali-
dades socialmente mais democráticas, justas e solidárias.

Desde 2003, essa realidade está em transformação, experiên-


cia promovida no âmbito do Governo Federal, com desdobramentos
nos estados e municípios, conforme constata Lambertucci (2009, p.
72-73):

102
UNIDADE 5
A governabilidade política do país é constituída por meio da relação
do Poder Executivo com o Legislativo – democracia representativa –,
mas, no atual mandato presidencial, ganha importância a relação do
estado com a sociedade-democracia participativa. Ambas se comple-
mentam, fortalecendo a democracia de um modo geral.

Na concepção desse governo não existe contradição entre modalida-


des de representação participativa (conferências, conselhos, mesas de
diálogos, ouvidorias e precursoras) e representativa. Elas são absolu-
tamente complementares. As demandas sociais, que muitas vezes são
dinâmicas e mudam rapidamente, exigem debate contínuo. Neste con-
texto, a participação social assume lugar de importância, porque pos-
sibilita o diálogo cotidiano, permanente e dinâmico entre a sociedade
e os vários representantes, estejam eles no Executivo ou no Legislativo,
e permite canais de influência consistentes.

O mesmo autor (2009, p. 71) prossegue destacando a impor-


tância da participação social em espaços institucionalizados de formu-
lação de políticas públicas:

O Governo do Presidente Lula recuperou as funções do Estado com-


balidas pelo esvaziamento neoliberal, o que possibilitou maior eficiên-
cia administrativa, ações mais contundentes contra a corrupção e
mais transparência.

Por outro lado, adotou, na gestão pública, o diálogo social com as enti-
dades da sociedade civil e o fortalecimento e consolidação dos espaços
de participação social como forma de elaboração, aperfeiçoamento e
acompanhamento das políticas públicas, sempre reconhecendo a
importância das entidades da sociedade civil e respeitando sua repre-
sentatividade e autonomia.

A participação social no Governo Lula é uma necessidade e assume


papel central, porque amplia e fortalece a democracia, contribui para
a cultura da paz, do diálogo e da coesão social e é a espinha dorsal do
desenvolvimento social, da equidade e da justiça. Acreditamos que a
democracia participativa revela-se um excelente método para enfren-
tar e resolver problemas fundamentais da sociedade brasileira.

103
MÓDULO II
A participação social ganha centralidade na promoção da cul-
tura de paz, dos Direitos Humanos. É pela participação que profissio-
nais e cidadãos vão se constituindo agentes da democracia e sujeitos de
direitos. É uma conquista, um aprendizado. Essa participação pode se
dar em diversos níveis (global, regional e local) e ter qualidades dife-
rentes, uma vez que podemos assumir papéis diferentes em situações
diferentes (atuar na proposição, na execução ou no monitoramento
das políticas). O importante é garantir a formação de uma rede capaz
de agir e de incidir nas mais diversas situações.

Considerações finais
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil:

I- construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desi-


gualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,


raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discri-
minação. (Artigo 3º da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988).

O Brasil possui um conjunto de estudos, leis e instituições capa-


zes de imprimir a mudança necessária em nossa sociedade naquilo que
tange à compreensão do que é viver e conviver em contextos de pro-
moção e de defesa dos Direitos Humanos e de qualificação da nossa
democracia.

104
UNIDADE 5
As lutas travadas no campo dos direitos, assim como as con-
quistas oriundas de tais lutas, possibilitam perceber melhor o que tem
sido feito e o que ainda é necessário fazer quando o assunto é o papel
do Estado diante dos desafios da garantia dos Direitos Humanos.

As últimas três décadas foram marcadas por uma acentuada


qualificação de nossa democracia e de viabilização da pauta dos Direi-
tos Humanos e, portanto, da consolidação de políticas públicas mais
inclusivas e diversificadas. A sociedade civil organizada e os movimen-
tos sociais têm papel relevante nesse processo.

A necessidade de continuar avançando e consolidando as con-


quistas é enorme. Existe muito a conquistar e, neste momento, é
urgente qualificar os debates e garantir a participação diferenciada da
população no enfrentamento das desigualdades e injustiças e na defi-
nição do destino do país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AVRITZER, L. (Org.). Experiências nacionais de participação social. São Paulo:


Cortez, 2009. (Série Democracia Participativa).

BENEVIDES, M. V. A cidadania ativa. São Paulo: Ática, 1991.

______. Prefácio. In: SCHILLING, F. Direitos Humanos e educação: outras pala-


vras, outras práticas. São Paulo: Cortez, 2005.

BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição. São Paulo: Editora


Malheiros, 2006. p. 569 .

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:


promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série
Legislação Brasileira).

105
MÓDULO II
________. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 11/02/2015.

________. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e


bases da educação nacional. Brasília: MEC, 1996.

_______. Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do


Idoso e dpa outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /cci-
vil_03/leis/2003/l10.741.htm>. Acesso em: 11/02/2015.

_______. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de


Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, 2007.

_______. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. Indagações


sobre currículo. Brasília, DF, 2007.

_______. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Programa


Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Ed. rev. Brasília: Secretaria Especial
dos Direitos Humanos, 2010.

_______. Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. (Pare-


cer CNE/CP No. 08/2012). Brasília: MEC, Conselho Nacional de
Educação/Conselho Pleno. 30/05/2012.

CASTELO BRANCO, J. Resumo de Direitos Humanos. Adaptado. Disponível em:


<http://juriscondictio.blogspot.com.br/2011/01/resumo-de-direitos-
humanos.html>. Acesso em: 10/10/2012.

GOGOY, R. M. et al. Educação em Direitos Humanos: Fundamentos teórico-


metodológicos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2010.

LAMBERTUCCI, A. R. A participação social no governo Lula. In: AVRITZER, L.


Experiências nacionais de participação social. São Paulo: Cortez, 2009. p. 70-89.

OLIVEIRA, M. C. Os direitos da pessoa idosa no contexto da redemocratização


do Brasil. Monografia – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assembleia Geral das Nações
Unidas, 10 de dezembro de 1948. Disponível em: <http://www.dudh.org.br/wp-
content/uploads/2014/12/dudh.pdf>. Acesso em: 11/02/2015.

106
UNIDADE 5
RODRIGUES, M. L. A. et al. Formação de Conselheiros em Direitos Humanos.
Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007.

SANTOS, B. S.; AVRITZER, L. Introdução: para ampliar o cânone democrático. In:


SANTOS, B. S. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participa-
tiva. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 39- 82.

107
MÓDULO II
RESUMO DA AULA

Nesta unidade, você aprendeu que todas as pessoas são


sujeitos dos Direitos Humanos, independentemente de seu grupo
social, étnico, religioso, opção política, sexualidade, idade e naciona-
lidade. Aprendeu que o Estado é responsável pela promoção e
garantia desses direitos, e que a democracia e a participação cidadã
são processos indispensáveis para a consolidação de realidades so-
cialmente justas.

Este é o fim do módulo II, que abordou aspectos relaciona-


dos aos Direitos Humanos. Nele vimos:

• Um panorama do que são os Direitos Humanos, seu surgi-


mento, fundamentos e características;

• O que dispõe a Declaração Universal dos Direitos Huma-


nos, documento político fundamental da contemporaneida-
de, bem como seus objetivos;

• Quem são os sujeitos (ativo e passivo) dos Direitos Huma-


nos e quais as dimensões alcançadas por esses direitos;

• A estreita relação dos Direitos Humanos com a democracia e


com a cidadania.

Para que o operador do direito possa realizar sua função de


modo mais eficiente, sobretudo considerando a necessidade da
mudança de cultura na abordagem do tema, é necessário um conheci-
mento multidisciplinar. Dessa maneira, no próximo módulo você
verá um pouco sobre o conceito de drogas, suas diferentes espécies e
seus efeitos no organismo humano e as formas de tratamento e
prevenção.
108
UNIDADE 5
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. Relacione as gerações de direitos humanos a seus conceitos:

( ) Direitos de primeira geração;

( ) Direitos de segunda geração;

( ) Direitos de terceira geração.

a. São também chamados de direitos de igualdade e se concreti-


zam mediante ações positivas do Estado, no sentido de implementar
políticas de justiça distributiva que permitam o acesso de todos aos
direitos. Compreendem o direito à saúde, ao trabalho, à educação, ao
lazer, entre outros;

b. São os chamados direitos de fraternidade ou solidariedade,


considerados direitos coletivos por excelência, uma vez que são
voltados à humanidade como um todo, não se destinando especifica-
mente à proteção dos interesses de um indivíduo em particular.
Compreendem o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, o direito à paz, ao desenvolvimento, à proteção do
patrimônio histórico, artístico e cultural, entre outros;

c. São os chamados direitos de liberdade. Reclamam uma


abstenção do Estado, dado que à época em que surgiram o Estado era
visto como grande opressor das liberdades individuais. Compreen-
dem o direito à vida, segurança, justiça, propriedade privada, liber-
dade de pensamento, entre outros.

109
MÓDULO II

2. Com relação aos sujeitos dos direitos fundamentais, pode-se dizer


que:

I. Os direitos individuais têm como titular uma pessoa física,


um indivíduo;

II. São titulares dos direitos difusos pessoas indeterminadas e


ligadas por circunstâncias de fato;

III. Os direitos coletivos são de titularidade de pessoas que


têm entre si uma relação jurídica básica.

( ) Estão corretas apenas as afirmativas I e III;

( ) Estão corretas apenas as afirmativas I e II;

( ) Estão corretas apenas as afirmativas II e III;

( ) Estão corretas todas as afirmativas.

110
MÓDULO III
DROGAS

Este módulo abrange os principais conceitos sobre


o uso e abuso de drogas, dividido em:

Unidade 6 – Drogas: classificação e efeitos


no organismo

Unidade 7 – Experimentação, uso, abuso e dependência


de drogas

Unidade 8 – Epidemiologia do uso de substâncias


psicotrópicas no Brasil: dados recentes

Unidade 9 – Crack: uma abordagem multidisciplinar


UNIDADE 6

DROGAS
CLASSIFICAÇÃO E EFEITOS
NO ORGANISMO
• Definição do termo “droga”

• Classificação das drogas

• Características principais de algumas classes de drogas:


panorama geral do uso, características físico-químicas,
mecanismos de ação, efeitos no organismo e sintomas
relacionados, incluindo abstinência e tolerância

III
DROGAS: CLASSIFICAÇÃO E EFEITOS
NO ORGANISMO
Sérgio Nicastri

O que é droga?
“Droga”, segundo a definição da Organização Mundial da
Saúde (OMS), é qualquer substância não produzida pelo organismo
que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas
causando alterações em seu funcionamento.

Uma droga não é, por si só, boa ou má. Algumas substâncias


são usadas com a finalidade de promover efeitos benéficos, como o
tratamento de doenças, e são consideradas medicamentos. Mas
também existem substâncias que provocam malefícios à saúde, os
venenos ou tóxicos. É interessante que a mesma substância pode
funcionar como medicamento em certas situações e como tóxico em
outras.

Nesta unidade, discutiremos as principais drogas utilizadas


para alterar o funcionamento cerebral, causando modificações no
estado mental, no psiquismo. Por essa razão, são chamadas drogas
psicotrópicas, conhecidas também como substâncias psicoativas.

Vale lembrar que nem todas as substâncias psicoativas


têm a capacidade de provocar dependência. No entanto, há
substâncias aparentemente inofensivas e presentes em
muitos produtos de uso doméstico que possuem esse poder.

115
MÓDULO III
A lista de substâncias na Classificação Internacional de
Doenças, 10ª Revisão (CID-10), em seu capítulo V (Transtornos
Mentais e de Comportamento), inclui:

• álcool;

• opioides (morfina, heroína, codeína, diversas substâncias


sintéticas);

• canabinoides (maconha);

• sedativos ou hipnóticos (barbitúricos, benzodiazepínicos);

• cocaína;

• outros estimulantes (como anfetaminas e substâncias


relacionadas à cafeína);

• alucinógenos;

• tabaco;

• solventes voláteis.

Classificação das drogas do ponto de vista legal

Drogas lícitas Drogas ilícitas

Tais medicamentos, • São aquelas comercializadas de forma • São as proibidas por lei.
quando utilizados fora legal, podendo ou não estar submetidas a
do contexto clínico, algum tipo de restrição, como o álcool,
caracterizam consumo cuja venda é proibida a menores de 18
indevido. anos, e alguns medicamentos que só
podem ser adquiridos por meio de
prescrição médica especial.

116
UNIDADE 6
Existe uma classificação – de interesse didático – que se baseia
nas ações aparentes das drogas sobre o sistema nervoso central
(SNC) conforme as modificações observáveis na atividade mental ou
no comportamento da pessoa que utiliza a substância:

1. drogas depressoras da atividade mental;

2. drogas estimulantes da atividade mental;

3. drogas perturbadoras da atividade mental.

Com base nessa classificação, vamos conhecer as principais


drogas.

DROGAS DEPRESSORAS DA ATIVIDADE MENTAL


Essa categoria inclui grande variedade de substâncias, que
diferem acentuadamente em suas propriedades físicas e químicas,
mas que apresentam a característica comum de causar diminuição da
atividade global ou de certos sistemas específicos do SNC. Como
consequência dessa ação, há uma tendência de redução da atividade
motora, de reatividade à dor e de ansiedade, sendo comum um efeito
euforizante inicial e, posteriormente, aumento da sonolência.

• Álcool
O álcool etílico é um produto da fermentação de carboidratos
(açúcares) presentes em vegetais, como a cana-de-açúcar, a uva e a
cevada.

Suas propriedades euforizantes e intoxicantes são conhecidas


desde tempos pré-históricos e praticamente todas as culturas têm ou

117
MÓDULO III
Processo anaeróbico de tiveram alguma experiência com sua utilização. Droga lícita, o álcool
transformação de uma
substância em outra, é, sem dúvida, a substância psicotrópica de uso e abuso mais ampla-
produzida a partir de
micro-organismos, como mente disseminados em grande número de países na atualidade.
bactérias e fungos, cha-
mados, nesse caso, de
fermentos. A fermentação produz bebidas com concentração de álcool
de até 10% (proporção do volume de álcool puro no total da bebida).
São obtidas concentrações maiores por meio da destilação. Em
Processo em que se vapo- doses baixas, o álcool é utilizado, sobretudo, por causa de sua ação
riza uma substância líqui-
da e, em seguida, se con-
densam os vapores resul-
euforizante e da capacidade de diminuir as inibições, o que facilita a
tantes para obter de novo
um líquido, geralmente
interação social.
mais puro.
Os efeitos do álcool estão relacionados com os níveis da
substância no sangue, variando conforme o tipo de bebida ingerida, a
velocidade do consumo, a presença de alimentos no estômago e
possíveis alterações no metabolismo da droga por diferentes
condições – por exemplo, na insuficiência hepática, em que a degra-
dação da substância é mais lenta.

Possíveis efeitos do álcool de acordo com os níveis da substância no sangue


Baixo Médio Alto

• Desinibição do • Maior ataxia; • Náuseas e vômitos;


comportamento; • Fala pastosa, dificuldades • Visão dupla (diplopia);
• Diminuição da crítica; de marcha e aumento • Acentuação da ataxia e da
• Hilaridade e labilidade importante do tempo de sonolência (até o coma);
afetiva (a pessoa ri ou chora resposta (reflexos mais • Hipotermia e morte por
por motivos pouco lentos); parada respiratória.
significativos); • Aumento da sonolência,
• Certo grau de ataxia; com prejuízo das
• Prejuízo das funções capacidades de raciocínio
Ausência de coordenação
motora. sensoriais. e concentração.

O álcool induz tolerância (necessidade de quantidades


progressivamente maiores da substância para produzir o mesmo
efeito desejado ou intoxicação) e síndrome de abstinência
(sintomas desagradáveis que ocorrem com a redução ou com a
interrupção do consumo da substância).
118
UNIDADE 6
• Barbitúricos
São um grupo de substâncias quimicamente derivadas do ácido
barbitúrico, sintetizadas artificialmente desde o começo do século
XX. Capazes de diminuir a atividade cerebral, possuem diversas
propriedades em comum com o álcool e com outros tranquilizantes
(benzodiazepínicos).

Seu uso inicial foi dirigido ao tratamento da insônia. Porém,


atualmente não são mais empregados para esse fim, pois a dose para
causar os efeitos terapêuticos desejáveis não é muito distante da dose
tóxica ou letal. O sono produzido por essas drogas, assim como aquele
provocado por todos os indutores de sono, é muito diferente do sono
“natural” (fisiológico).

A lei brasileira exige que todos os medicamentos que


contenham barbitúricos em suas fórmulas só sejam vendidos
nas farmácias com a receita do médico, para posterior
controle pelas autoridades sanitárias.

Efeitos
São efeitos da principal ação farmacológica dos barbitúricos:
• diminuição da capacidade de raciocínio e concentração;
• sensação de calma, relaxamento e sonolência;
• reflexos mais lentos.

Com doses um pouco maiores, a pessoa apresenta sintomas


semelhantes aos da embriaguez, com lentidão nos movimentos, fala
pastosa e dificuldade na marcha.

Doses tóxicas podem provocar:


• surgimento de sinais de incoordenação motora;
119
MÓDULO III
• acentuação significativa da sonolência, que pode chegar ao
coma;

• morte por parada respiratória.

Tolerância e abstinência
Os barbitúricos causam tolerância, sobretudo quando o
indivíduo utiliza doses altas desde o início e síndrome de abstinência
quando retirados, o que provoca insônia, irritação, agressividade,
ansiedade e até convulsões.

Uso clínico
Em geral, são utilizados na prática clínica para indução
anestésica (tiopental) e como anticonvulsivantes (fenobarbital).

• Benzodiazepínicos
Esse grupo de substâncias começou a ser usado na medicina
nos anos 1960 e possui similaridades importantes com os barbitúri-
cos em termos de ações farmacológicas, com a vantagem de oferecer
maior margem de segurança, ou seja, a dose tóxica (aquela que
produz efeitos prejudiciais à saúde) é muitas vezes maior que a dose
terapêutica (aquela prescrita no tratamento médico).

Substância química
produzida pelos Efeitos
neurônios, as célu-
las nervosas, por
meio das quais se Os benzodiazepínicos potencializam as ações do GABA (ácido
enviam informações
a outras células. gama-amino-butírico), o principal neurotransmissor inibitório do
SNC. Como consequência, os benzodiazepínicos produzem:
120
UNIDADE 6
• diminuição da ansiedade;

• indução do sono;

• relaxamento muscular;

• redução do estado de alerta.

Essas drogas dificultam, ainda, os processos de aprendizagem


e memória e alteram funções motoras, prejudicando atividades como
dirigir automóveis e outras que exigem reflexos rápidos.

As doses tóxicas dessas substâncias são bastante altas, mas


pode ocorrer intoxicação se houver uso concomitante de outros
depressores da atividade mental, principalmente álcool ou barbitúri-
cos. O quadro de intoxicação é muito semelhante ao causado por
barbitúricos.

Existem centenas de compostos comerciais disponíveis


que diferem apenas em relação à velocidade e duração total
de sua ação. Alguns são mais bem utilizados clinicamente
como indutores do sono, enquanto outros são empregados
para controlar a ansiedade ou para prevenir a convulsão.

Exemplos de benzodiazepínicos: diazepam (Valium®),


lorazepam (Lorax®), bromazepam (Lexotan®), midazolam (Dormo-
nid®), flunitrazepam (Rohypnol®), clonazepam (Rivotril®).

• Opioides
Grupo que inclui drogas “naturais”, derivadas da papoula do
oriente (Papaver somniferum), sintéticas e semissintéticas, obtidas a
partir de modificações químicas em substâncias naturais.
121
MÓDULO III
As drogas mais conhecidas desse grupo são a morfina, a
heroína e a codeína, além de diversas substâncias totalmente sinteti-
zadas em laboratório, como a metadona e a meperidina.

Sua ação decorre da capacidade de imitar o funcionamento de


várias substâncias naturalmente produzidas pelo organismo, como as
endorfinas e as encefalinas.

Em geral, são drogas depressoras da atividade mental, mas


possuem ações mais específicas, como de analgesia e de inibição do
reflexo da tosse.

Efeitos
Os opioides causam os seguintes efeitos:

• contração pupilar importante;


Capacidade de mover-se
espontaneamente. • diminuição da motilidade do trato gastrointestinal;

• efeito sedativo, que prejudica a capacidade de concentração;

• torpor e sonolência.

Além disso, deprimem o centro respiratório, provocando des-


de respiração mais lenta e superficial até parada respiratória, perda da
consciência e morte.

Abstinência
A abstinência provoca:
• náuseas; • piloereção (arrepio), com
• lacrimejamento; duração de até 12 dias;
• corrimento nasal; • câimbra;
• vômitos; • diarreia.
• cólicas intestinais;

122
UNIDADE 6
Uso clínico
Os medicamentos à base de opioides são receitados para
controlar a tosse e a diarreia e como analgésicos potentes.

• Solventes ou inalantes
Atualmente, esse grupo de substâncias depressoras não possui
utilização clínica alguma, embora o éter etílico e o clorofórmio
tenham sido bastante empregados como anestésicos gerais no
passado.

Podem tanto ser inaladas involuntariamente por trabalhado-


res quanto utilizadas como drogas de abuso, como a cola de sapateiro.
Outros exemplos são o tolueno, o xilol, o n-hexano, o acetato de etila e
o tricloroetileno, além dos já citados éter e clorofórmio, cuja mistura é
chamada de “lança-perfume”, “cheirinho” ou “loló”.

Os efeitos têm início rápido após a inalação, de segundos a


minutos, e também têm curta duração, o que predispõe o usuário a
inalações repetidas, com consequências por vezes desastrosas.
Acompanhe na tabela os efeitos observados com o uso de solventes.

Efeitos

Primeira fase Segunda fase Terceira fase Quarta fase

• Euforia, com • Predomínio da • Aprofundamento • Depressão tardia;


diminuição de depressão do SNC; da depressão, com • Inconsciência;
inibição de o indivíduo torna-se redução acentuada • Possibilidade de
comportamento. confuso, do estado de alerta; convulsões, coma e
desorientado; • Incoordenação morte.
• Possibilidade de ocular e motora
alucinações (marcha vacilante,
auditivas e visuais. fala pastosa e
reflexos bastante
diminuídos);
• Alucinações mais
evidentes.

123
MÓDULO III
O uso crônico de tais substâncias pode levar à destruição de
neurônios, causando danos irreversíveis ao cérebro, assim como
lesões no fígado, rins, nervos periféricos e medula óssea.

Outro efeito ainda pouco esclarecido dessas substâncias


(particularmente dos compostos halogenados, como o clorofórmio)
é sua interação com a adrenalina, pois aumenta sua capacidade de
causar arritmias cardíacas, o que pode provocar morte súbita.

Tolerância e abstinência
Embora haja tolerância, até hoje não há uma descrição
característica da síndrome de abstinência relacionada a esse grupo de
substâncias.

DROGAS ESTIMULANTES DA ATIVIDADE MENTAL


Incluem-se nesse grupo as drogas capazes de aumentar a
atividade de determinados sistemas neuronais, o que traz como
consequências estado de alerta exagerado, insônia e aceleração dos
processos psíquicos.

• Tabaco
É um dos maiores problemas de saúde pública em diversos
países e uma das mais importantes causas potencialmente evitáveis de
doenças e morte.

Efeitos
O consumo de tabaco (droga lícita) pode causar:
Acidente vascular
encefálico. • doenças cardiovasculares (infarto, AVE e morte súbita);

124
UNIDADE 6
• doenças respiratórias (enfisema, asma, bronquite crônica,
doença pulmonar obstrutiva crônica);

• diversas formas de câncer (pulmão, boca, faringe, laringe,


esôfago, estômago, pâncreas, rim, bexiga e útero).

Seus efeitos sobre as funções reprodutivas incluem redução da


fertilidade, prejuízo do desenvolvimento fetal, aumento do risco de
Gravidez extrauterina,
gravidez ectópica e abortamento espontâneo. fora do útero.

Fumantes passivos

Existem evidências de que os não fumantes expostos à fumaça


de cigarro do ambiente têm maior risco de desenvolver patologias
que podem afetar os fumantes.

A nicotina é a substância presente no tabaco que provoca a


dependência. Embora esteja implicada nas doenças cardiocirculatórias,
não parece ser esta a substância cancerígena.

Ações psíquicas da nicotina

São complexas, com uma mistura de efeitos estimulantes e


depressores. Mencionam-se o aumento da concentração e da atenção
e a redução do apetite e da ansiedade.

Tolerância e abstinência

A nicotina induz tolerância e se associa a síndrome de


abstinência com alterações no sono, irritabilidade, diminuição da
concentração e ansiedade.

125
MÓDULO III
• Cafeína
É uma droga lícita classificada como estimulante do SNC
menos potente que a cocaína e as anfetaminas.

Seu potencial de induzir dependência vem sendo bastante


discutido nos últimos anos. Criou-se até o termo “cafeinismo” para
designar a síndrome clínica associada ao consumo importante (agudo
ou crônico) de cafeína, caracterizada por ansiedade, alterações
psicomotoras, distúrbios do sono e alterações de humor. As bebidas
energéticas, conhecidas como “energéticos”, são comercializadas
com esse nome por apresentar ingredientes como cafeína, taurina,
vitaminas, suplementos de ervas e açúcar ou adoçantes, substâncias
utilizadas para auxiliar na perda de peso e melhorar a energia, a
resistência, o desempenho atlético e a concentração. Nota-se que seu
consumo associado ao uso de álcool tem crescido muito nos últimos
anos, causando preocupações entre os profissionais da área da saúde.
Isso porque a cafeína aumenta a euforia causada pela bebida alcoólica
e reduz a sensação subjetiva de embriaguez, fazendo a pessoa sentir
que está “menos alcoolizada” do que verdadeiramente está. No
entanto, essa mistura não reduz o comprometimento real do álcool,
causando maiores riscos. Por exemplo, o indivíduo pode beber mais
do que pretendia ou dirigir depois de beber, colocando-se em perigo
ou aos outros.

• Anfetaminas
São substâncias sintéticas, ou seja, produzidas em laboratório.
Existem várias substâncias sintéticas que pertencem a esse grupo.

126
UNIDADE 6
São exemplos de drogas “anfetamínicas”: femproporex
® ® ®
(Desobesi – M ), metilfenidato (Ritalina ), mazindol (Dasten ;
® ® Muitos dos medicamentos
AbstenS ; Moderine ), metanfetamina (Pervitin) e dietilpropi-
®
citados foram retirados do
ona ou anfepramona (Dualid; Inibex; Hipofagin ). mercado.

Seu mecanismo de ação é aumentar a liberação e


prolongar o tempo de atuação de dois neurotransmissores
utilizados pelo cérebro: a dopamina e a noradrenalina.

Efeitos
São efeitos do uso de anfetaminas:

• diminuição do sono e do apetite;

• sensação de maior energia e menor fadiga, mesmo quando


realiza esforços excessivos, o que pode ser prejudicial;

• fala acelerada;

• dilatação das pupilas;

• taquicardia;

• elevação da pressão arterial.

Com doses tóxicas, acentuam-se esses efeitos. O indivíduo


tende a ficar mais irritável e agressivo e pode considerar-se vítima de
perseguição inexistente (delírios persecutórios), assim como ter
alucinações e convulsões.

Tolerância e abstinência

O consumo dessas drogas induz tolerância. Não se sabe com


certeza se ocorre uma verdadeira síndrome de abstinência. São
frequentes os relatos de sintomas depressivos, como falta de energia,
127
MÓDULO III
desânimo e perda de motivação, que, por vezes, são bastante intensos
quando tal uso é interrompido.

Uso clínico

Entre outros, destaca-se seu uso como moderadores do apetite


(remédios para emagrecimento).

• Cocaína
É uma substância extraída de uma planta nativa da América do
Sul, popularmente conhecida como coca (Erythroxylum coca).

Ilícita, a cocaína pode ser consumida na forma de pó (cloridra-


to de cocaína), que é aspirado ou dissolvido em água e injetado na
corrente sanguínea, ou na forma de uma base, o crack, que é fumado.
Existe ainda a pasta de coca, conhecida como merla, um produto
menos purificado, que também pode ser fumado.

Seu mecanismo de ação no SNC é muito semelhante ao das


anfetaminas, mas a cocaína atua ainda sobre um terceiro neurotrans-
missor, a serotonina, além da noradrenalina e da dopamina.

A cocaína apresenta também propriedades de anestésico local


que independem de sua atuação no cérebro. Essa era uma das
indicações de uso médico da substância, hoje abandonada.

Seus efeitos têm início rápido e duração breve. No entanto, são


mais intensos e fugazes quando a via de utilização é a intravenosa ou
quando o indivíduo usa o crack.

128
UNIDADE 6
Efeitos

Os efeitos do uso da cocaína são:

• sensação intensa de euforia e poder;

• estado de excitação;

• hiperatividade;

• insônia;

• falta de apetite;

• perda da sensação de cansaço.

Tolerância e abstinência

Apesar de não serem descritas tolerância nem síndrome de


abstinência inequívoca, é comum observar aumento progressivo das
doses consumidas.

Particularmente, no caso do crack, os indivíduos desenvolvem


dependência severa rapidamente, muitas vezes em poucos meses ou
mesmo algumas semanas de uso.

Com doses maiores, observam-se outros efeitos, como


irritabilidade, agressividade e até delírios e alucinações, que caracteri-
zam um verdadeiro estado psicótico, a psicose cocaínica. Também
podem ser observados aumento da temperatura e convulsões, fre-
quentemente de difícil tratamento, sintomas que, se prolongados,
podem levar à morte. Ocorrem, ainda, dilatação das pupilas, elevação
da pressão arterial e taquicardia; tais efeitos podem provocar até
parada cardíaca por fibrilação ventricular, uma das causas de morte
por superdosagem.

129
MÓDULO III
Fator de risco de infarto e acidente vascular encefálico (AVE)

Mais recentemente e com frequência cada vez maior, têm sido


verificadas alterações persistentes na circulação cerebral em indivíduos
dependentes de cocaína. Existem evidências de que o uso dessa droga
seja um fator de risco para o desenvolvimento de infarto do miocárdio
e AVE em pessoas relativamente jovens. Um processo de degeneração
irreversível da musculatura (rabdomiólise) em usuários crônicos
também já foi descrito.

DROGAS PERTURBADORAS DA ATIVIDADE MENTAL


Estão classificadas nesse grupo diversas substâncias cujo efeito
principal é provocar alterações no funcionamento cerebral que
resultam em vários fenômenos psíquicos anormais, entre os quais
destacam-se os delírios e as alucinações. Por tal motivo, essas drogas
foram denominadas "alucionógenos"

Em linhas gerais, pode-se definir alucinação como uma


percepção sem objeto, ou seja, a pessoa vê, ouve ou sente algo que
realmente não existe. Delírio, por sua vez, pode ser definido como
um falso juízo da realidade, ou seja, o indivíduo passa a atribuir
significados anormais aos eventos que ocorrem a sua volta. Há uma
realidade, mas a pessoa delirante não é capaz de fazer avaliações
corretas a seu respeito; por exemplo, no caso do delírio persecutório,
nota, em toda parte, indícios claros, embora irreais, de que está sendo
perseguida. Esse tipo de fenômeno se manifesta de modo espontâneo
em doenças mentais denominadas “psicoses”, razão pela qual essas
drogas também são chamadas “psicotomiméticos”.

130
UNIDADE 6
• Maconha
É o nome dado no Brasil à Cannabis sativa. Suas folhas e
inflorescências secas podem ser fumadas ou ingeridas. Há também o
haxixe, pasta semissólida obtida por meio de grande pressão nas
inflorescências, com maiores concentrações de THC (tetraidrocana-
binol), que é uma das diversas substâncias produzidas pela planta,
principal responsável por seus efeitos psíquicos.

A quantidade de THC produzida pela planta depende das


condições de solo, clima e tempo decorrido entre a colheita e
o uso, e a sensibilidade das pessoas à sua ação é variável, o que
explica a capacidade de a maconha produzir efeitos mais ou
menos intensos.

Efeitos psíquicos

• Agudos
Esses efeitos podem ser descritos, em alguns casos, como
sensação de bem-estar, acompanhada de calma e relaxamento, menos
fadiga e hilaridade, em outros, como angústia, atordoamento, ansie-
dade e medo de perder o autocontrole, com tremores e sudorese.

Há perturbação na capacidade de calcular o tempo e o espaço,


além de prejuízo da memória e da atenção.

Com doses maiores, ou conforme a sensibilidade individual, é


possível a ocorrência de perturbações mais evidentes do psiquismo,
com predominância de delírios e alucinações.

• Crônicos
O uso continuado interfere na capacidade de aprendizado e
memorização. Pode induzir um estado de diminuição da motivação,

131
MÓDULO III
por vezes chegando à síndrome amotivacional, ou seja, a pessoa não
sente vontade de fazer mais nada, tudo parece ficar sem graça, perder a
importância.

Efeitos físicos

• Agudos
Observam-se hiperemia conjuntival (os olhos ficam averme-
lhados), diminuição da produção da saliva (sensação de secura na
boca) e taquicardia, com frequência de 140 batimentos cardíacos por
minuto ou mais.

• Crônicos
Problemas respiratórios são comuns, uma vez que a fumaça
produzida pela maconha é muito irritante, além de conter alto teor de
alcatrão (maior que no caso do tabaco) e nele existir benzopireno, um
conhecido agente cancerígeno.

Ocorre, ainda, diminuição de até 50% a 60% na produção de


testosterona dos homens, podendo causar infertilidade.

• Alucinógenos
Designação dada a diversas drogas que podem provocar uma
série de distorções do funcionamento normal do cérebro, trazendo
como consequência várias alterações psíquicas, entre as quais aluci-
nações e delírios, sem que haja estimulação ou depressão da atividade
cerebral. Fazem parte deste grupo a dietilamida do ácido lisérgico
(LSD) e o ecstasy, drogas ilícitas.

O grupo de drogas alucinógenas pode ser subdividido entre as


seguintes características:
132
UNIDADE 6
• Alucinógenos propriamente ditos ou alucinógenos primários:
São os alucinógenos capazes de produzir efeitos psíquicos em doses
que praticamente não alteram outra função no organismo. Exemplos:
LSD e ecstasy.

• Alucinógenos secundários, como os anticolinérgicos: São


capazes de induzir efeitos alucinógenos em doses que afetam de
maneira importante diversas outras funções. Exemplos: “chá de lírio”,
beladona (Atropa belladonna) e mandrágora (Mandragora offici-
narum).

• Plantas com propriedades alucinógenas: Diversas plantas


possuem propriedades alucinógenas, como alguns cogumelos (Psilo-
cybe mexicana, que produz a psilocibina), a jurema (Mimosa hostilis) e
outras plantas eventualmente utilizadas na forma de chás e bebera-
gens alucinógenas. A ayahuasca, também conhecida como chá do
Santo Daime, yajé ou caapi, é uma bebida com efeitos alucinógenos
por conter a substância N,N-dimetiltriptamina (DMT). O uso da
ayahuasca foi regulamentado pelo Conselho Nacional de Políticas
sobre Drogas (CONAD), conforme publicado no Diário Oficial da
União, nº 17, de 26 de janeiro de 2010. A resolução autoriza o
consumo da bebida em rituais religiosos e veda sua utilização com fins
comerciais, turísticos e terapêuticos.

• Dietilamida do ácido lisérgico (LSD)


É uma substância alucinógena sintetizada artificialmente e uma
das mais potentes com ação psicotrópica.

As doses de 20 a 50 milionésimos de grama produzem efeitos


com duração de 4 a 12 horas.

Seus efeitos dependem muito da sensibilidade da pessoa às


ações da droga, de seu estado de espírito no momento da utilização
e também do ambiente em que ocorre.

133
MÓDULO III
Efeitos
O uso de LSD causa os seguintes efeitos:

• distorções perceptivas (cores, formas e contornos alterados);

• fusão de sentidos (por exemplo, a impressão de que os sons


adquirem forma ou cor);

• perda da discriminação de tempo e espaço (minutos parecem


horas ou metros assemelham-se a quilômetros);

• alucinações (visuais ou auditivas) podem ser vivenciadas


como sensações agradáveis ou até mesmo de extremo medo;

• estados de exaltação (coexistem com muita ansiedade, angús-


tia e pânico e são relatados como boas ou más “viagens”).

Outra repercussão psíquica da ação do LSD sobre o cérebro são


os delírios, descritos no quadro a seguir.

Delírios Exemplos

Delírios de grandiosidade O indivíduo se julga com capacidades ou forças


extraordinárias. Por exemplo: capacidade de atirar-se de
janelas, acreditando que pode voar; de avançar mar
adentro, crendo que pode caminhar sobre a água; de ficar
parado em frente a um carro em uma estrada, julgando
ter força mental suficiente para pará-lo.

Delírios persecutórios O indivíduo acredita ver a sua volta indícios de uma


conspiração contra si e pode até agredir outras pessoas
na tentativa de defender-se da “perseguição”.

Outros efeitos tóxicos


Há descrições de pessoas que experimentam sensações de
ansiedade muito intensa, depressão e até quadros psicóticos depois
de muito tempo do consumo de LSD. Uma variante desse efeito é o
flashback, quando, semanas ou meses após o uso dessa substância,

134
UNIDADE 6
o indivíduo volta a apresentar repentinamente todos os efeitos
psíquicos da experiência, sem ter voltado a consumir a droga. As
consequências são imprevisíveis, uma vez que tais efeitos não estavam
sendo procurados ou esperados e podem surgir em ocasiões bastante
impróprias.

O consumo de LSD causa, ainda:


• aceleração do pulso;

• dilatação das pupilas;

• episódios de convulsão já foram relatados, mas são raros.

Tolerância e abstinência
O fenômeno da tolerância se desenvolve muito rapidamente Sintomas desagradáveis
que ocorrem com a redu-
com o LSD, mas também logo desaparece com a interrupção do uso. ção ou com a interrupção
do consumo da substân-
Não há descrição de síndrome de abstinência se um usuário crônico cia.

deixa de consumir a substância, mas, ainda assim, pode ocorrer


dependência quando, por exemplo, as experiências com o LSD ou
outras drogas perturbadoras do SNC são encaradas como “respostas
aos problemas da vida” ou “formas de se encontrar”, que fazem com
que a pessoa tenha dificuldades em deixar de consumir a substância,
frequentemente ficando à deriva no dia a dia, sem destino ou
objetivos que venham a enriquecer sua vida pessoal.

Importante

No Brasil, o Ministério da Saúde não reconhece nenhum


uso clínico dos alucinógenos primários, e sua produção, porte
e comércio são proibidos no território nacional.

135
MÓDULO III
• Ecstasy (3,4-metilenodioximetanfetamina
ou MDMA)
É uma substância alucinógena ilícita que guarda relação
química com as anfetaminas e também apresenta também proprieda-
des estimulantes. Seu uso é frequentemente associado a certos
grupos, como os jovens frequentadores de baladas ou boates.
Aumento excessivo da
temperatura corporal. Há relatos de casos de morte por hipertermia maligna em
que a participação da droga não é completamente esclarecida.
Acredita-se que o ecstasy estimula a hiperatividade e aumenta a sen-
sação de sede, podendo induzir um quadro tóxico específico.

Também existem suspeitas de que a substância seja tóxica para


um grupo específico de neurônios produtores de serotonina.

• Anticolinérgicos
São substâncias provenientes de plantas ou sintetizadas em
laboratório que têm a capacidade de bloquear as ações da acetilcolina,
um neurotransmissor encontrado no SNC e no sistema nervoso
periférico (SNP).

Produzem efeitos sobre o psiquismo quando utilizadas em


doses relativamente grandes e provocam alterações de funcionamento
em diversos sistemas biológicos, portanto são drogas pouco específicas.

Efeitos psíquicos
Os anticolinérgicos causam alucinações e delírios. São comuns
as descrições de usuários intoxicados em que eles se sentem persegui-
dos ou têm visões de pessoas ou animais. Esses sintomas dependem
bastante da personalidade do indivíduo, assim como das circunstân-
cias ambientais em que ocorreu o consumo dessas substâncias.
136
UNIDADE 6
Os efeitos são, em geral, bastante intensos e podem durar até
dois ou três dias.

Efeitos somáticos
Essas substâncias também provocam:

• dilatação das pupilas;

• boca seca;

• aumento da frequência cardíaca;

• diminuição da motilidade intestinal (até paralisia).

Doses elevadas podem produzir grande elevação da tempera-


tura (até 40-41°C), com possibilidade de ocorrerem convulsões.
Nessa situação, a pessoa apresenta a pele muito quente e seca, com Aumento da quantidade
de sangue em qualquer
hiperemia principalmente no rosto e no pescoço. parte do corpo.

São exemplos de drogas desse grupo algumas plantas,


como determinadas espécies do gênero Datura, conhecidas
como saia-branca, trombeteira ou zabumba, que produzem
atropina e escopolamina, e certos medicamentos, como trie-
® ®
xifenidil (Artane ), diciclomina (Bentyl ) e biperideno (Aki-
neton®).

• Esteroides anabolizantes
São drogas lícitas sintetizadas em laboratórios farmacêuticos
para substituir o hormônio masculino testosterona, produzido pelos
testículos. São usados como medicamentos para tratamento de pacien-
tes com deficiência na produção desse hormônio.

137
MÓDULO III
Embora seus efeitos sejam descritos como euforizantes por
alguns usuários de tais substâncias, essa não é, geralmente, a principal
razão de sua utilização.

Muitos indivíduos que consomem essas drogas são fisiocultu-


ristas, atletas de diversas modalidades ou indivíduos que procuram
aumentar a massa muscular e podem desenvolver um padrão de
consumo que se assemelha ao de dependência.

Efeitos
Essas substâncias podem causar:

• diversas doenças cardiovasculares;

• alterações no fígado, inclusive câncer;

• alterações musculoesqueléticas indesejáveis (ruptura de


tendões, interrupção precoce do crescimento).

Em mulheres, podem, ainda, provocar masculinização (cresci-


mento de pelos pelo corpo, voz grave e aumento do volume do cli-
tóris); em homens, atrofia dos testículos.

138
UNIDADE 6
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, A. G.; NICASTRI, S.; TONGUE, E. Drogas: atualização em prevenção


e tratamento. Curso de treinamento em drogas para países africanos de língua
portuguesa. São Paulo: Lemos, 1993.

BEEDER, A. B.; MILLMAN, R. B. Patients with psychopatology. In: LOWINSON,


J. H. et al. Substance abuse: a comprehensive textbook. 3. ed. Baltimore: Williams &
Wilkins, 1997. p. 551-562.

GALLOWAY, G. P. Anabolic-androgenic steroids. In: LOWINSON, J. H. et al.


Substance abuse: a comprehensive textbook. 3. ed. Baltimore: Williams & Wilkins,
1997. p. 308-318.

GREDEN, J. F.; WALTERS, A. Caffeine. In: LOWINSON, J. H. et al. Substance


abuse: a comprehensive textbook. 3. ed. Baltimore: Williams & Wilkins, 1997.
p. 294-307.

LEITE, M. C. et al. Cocaína e crack: dos fundamentos ao tratamento. Porto Alegre:


Artes Médicas Sul, 1999.

MASUR, J.; CARLINI, E. A. Drogas: subsídios para uma discussão. São Paulo:
Brasiliense, 1989.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação de transtornos


mentais e de comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1993.

SCHMITZ, J. M.; SCHNEIDER, N. G.; JARVIK, M. E. Nicotine. In: LOWINSON,


J. H. et al. Substance abuse: a comprehensive textbook. 3. ed. Baltimore: Williams &
Wilkins, 1997. p. 276-294.

139
MÓDULO III
RESUMO DA AULA

As drogas psicotrópicas provocam efeitos agudos e crônicos,


somáticos e psíquicos sobre o organismo. Esses efeitos, frequente-
mente, não dependem só da substância consumida, mas do contexto
em que é usada e das experiências do usuário.

As drogas podem ser classificadas como depressoras, estimu-


lantes ou perturbadoras conforme os efeitos aparentes que causam no
sistema nervoso central.

A questão do envolvimento de pessoas com álcool e outras


drogas vai além da simples busca dos efeitos dessas substâncias.

Diversas causas para o uso de drogas podem ser consideradas:


a disponibilidade dessas substâncias, a imagem ou as ideias que as
pessoas fazem a respeito das drogas, as características de personalida-
de, o uso de substâncias por familiares ou amigos entre outros.

Na próxima unidade serão abordados conceitos importantes


sobre o uso de drogas e transtornos relacionados (abuso e dependên-
cia).

140
UNIDADE 6
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. Assinale a alternativa correta sobre as drogas:

a. Álcool Lícito Depressor Distorções perceptivas


e perda de discrimi-
nação tempo/espaço e
alucinações

b. Tabaco Lícito Estimulante Aumento da concen-


tração, diminuição do
apetite e ansiedade

c. Maconha Ilícita Depressora Bem-estar, relaxamento


e incapacidade de coor-
denar tempo e espaço

d. Cocaína Ilícita Estimulante Desinibição, certo grau


de incoordenação mo-
tora

e. Ecstasy Ilícito Perturbador Hiperatividade, insô-


nia, falta de apetite

f. Benzo- Lícitos Perturbadores Indução do sono, rela-


diazepínicos xamento muscular,
redução do estado de
alerta

g. LSD Ilícito Perturbador Hiperatividade, aluci-


nações e maior sociabi-
lização

141
MÓDULO III
2. As bebidas alcoólicas possuem etanol, um tipo de álcool produzido
por meio da fermentação ou destilação da cana-de-açúcar. Essas
bebidas são utilizadas para consumo humano, porém sabe-se que o
álcool é um depressor do sistema nervoso central (SNC), com alto
potencial de abuso, responsável por uma série de efeitos deletérios,
entre eles a dependência. Assim, assinale a alternativa correta:

a. As bebidas destiladas possuem menor teor alcoólico e são


geralmente consumidas em doses maiores.

b. As bebidas destiladas possuem maior teor alcoólico e são


geralmente consumidas em doses maiores.

c. As bebidas fermentadas possuem maior teor alcoólico e são


geralmente consumidas em doses menores.

d. As bebidas fermentadas possuem menor teor alcoólico e são


geralmente consumidas em doses maiores.

e. N.D.A.

3. Sobre as anfetaminas, assinale verdadeiro (V) ou falso (F).

( ) São sintéticas.

( ) Causam diminuição do sono e do apetite e geralmente são


utilizadas para regime de emagrecimento.

( ) Induzem tolerância.

( ) Não causam dependência.

( ) Não são estimulantes.

142
UNIDADE 6
4. Um indivíduo foi julgado por portar determinada quantidade de
uma droga. De acordo com algumas testemunhas, nos últimos meses,
ele se apresentava excitado, hiperativo, com insônia e sem apetite,
além de estar cometendo pequenos delitos para comprar droga. Sua
família declarou que há poucos meses precisou procurar um
cardiologista, devido a uma angina. É possível sugerir que a droga em
questão seja:

a. A maconha.

b. Um opiáceo.

c. Um anfetamínico.

d. A cocaína.

e. N. D. A.

5. A maconha é uma droga polêmica. Porém a literatura demonstra


que ela é responsável por uma série de efeitos deletérios, entre eles o
câncer de pulmão e o de garganta, no consumo fumado. É
INCORRETO afirmar que a maconha:

a. Causa sensação de bem-estar, relaxamento e algumas vezes é


responsável por angústia, medo e ansiedade.

b. Dependendo da dose, pode ser responsável por alguns


delírios e alucinações.

c. Não interfere na memória ou capacidade de memorização.

d. Acarreta diminuição de testosterona após longo prazo de


administração.

e. N. D. A.

143
UNIDADE 7

EXPERIMENTAÇÃO, USO,
ABUSO E DEPENDÊNCIA
DE DROGAS*
• Evolução histórica dos conceitos relacionados ao uso
de drogas e sistemas classificatórios de transtornos mentais

• Definição de Síndrome da Dependência Alcoólica, principais


sinais e sintomas

• Padrões de uso do álcool de acordo com a existência


de problemas decorrentes do uso de álcool
e sinais/sintomas de Síndrome da Dependência Alcoólica

• Critérios utilizados para classificação de abuso


e dependência

* Texto adaptado do original do curso Prevenção ao Uso Indevido de drogas:


Curso de Capacitação para Conselheiros Municipais, realizado pela SENAD em 2008 III
EXPERIMENTAÇÃO, USO, ABUSO
E DEPENDÊNCIA DE DROGAS
Cláudio Elias Duarte
Rogério Shigueo Morihisa

Introdução
O uso de drogas que alteram o estado mental, aqui chamadas
de substâncias psicoativas, acontece há milhares de anos e muito
provavelmente vai acompanhar toda a história da humanidade. Seja
por razões culturais ou religiosas, seja por recreação ou como forma de
enfrentamento de problemas, para transgredir ou transcender, como
meio de socialização ou para se isolar, o ser humano sempre se
relacionou com as drogas.

Essa relação do indivíduo com uma substância psicoativa pode,


dependendo do contexto, ser inofensiva ou apresentar poucos riscos,
mas também pode assumir padrões de utilização altamente disfuncio-
nais, com prejuízos biológicos, psicológicos e sociais. Isso justifica os
esforços para difundir informações básicas e confiáveis a respeito de
um dos maiores problemas de saúde pública, que afeta, direta ou
indiretamente, a qualidade de vida de todos.

Do ultrapassado conceito moral aos sistemas


classificatórios atuais
O conceito, a percepção e o julgamento moral sobre o consu-
mo de drogas evoluíram constantemente, e boa parte disso se baseou
na relação humana com o álcool, por ser a droga de uso mais difun-
dido e antigo. Os aspectos associados à saúde só foram mais estu-

147
MÓDULO III
dados e discutidos nos últimos dois séculos, predominando, antes
disso, visões preconceituosas dos usuários, vistos muitas vezes como
“possuídos por forças do mal”, portadores de graves falhas de caráter
ou totalmente desprovidos de “força de vontade” para não sucum-
birem ao “vício”.

Já no século XX, nos Estados Unidos, E. M. Jellinek foi, talvez,


o maior expoente dentre os cientistas de sua época a estudar e
divulgar o assunto alcoolismo, obtendo amplo apoio dos grupos de
ajuda mútua, recém-formados em 1935, como os Alcoólicos
Anônimos (AA), e exercendo grande influência na Organização
Mundial da Saúde (OMS) e na Associação Médica Americana
(AMA).

Na década de 1960, o programa de saúde mental da OMS


passou a se empenhar ativamente em melhorar o diagnóstico e a
classificação de transtornos mentais, além de prover definições claras
de termos relacionados. Naquela época, a OMS promoveu uma série
de encontros para rever o conhecimento a respeito do assunto, envol-
vendo representantes de diferentes disciplinas, de várias escolas de
pensamento em psiquiatria e de todas as partes do mundo no progra-
ma. Esses encontros trouxeram os seguintes benefícios: estimularam
e conduziram pesquisas sobre critérios para a classificação e a
confiabilidade de diagnósticos, produziram e estabeleceram procedi-
mentos para avaliação conjunta de entrevistas gravadas em vídeo e
outros métodos úteis em pesquisa sobre diagnóstico. Numerosas
propostas para melhorar a classificação de transtornos mentais
resultaram desse extenso processo de consulta, as quais foram usadas
no rascunho da 8ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças
(CID-8).

Atualmente, estamos na 10ª Revisão da Classificação Inter-


nacional de Doenças (CID-10), a qual apresenta as descrições
clínicas e diretrizes diagnósticas das doenças que conhecemos. Essa é
a classificação utilizada por nosso sistema de saúde pública.
148
UNIDADE 7
Outro sistema classificatório bastante utilizado é o Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV), da
Associação Americana de Psiquiatria (APA, na sigla em inglês).

Ambos os sistemas classificatórios refletem, em seus critérios


para dependência, os conceitos de Síndrome da Dependência do
Álcool propostos inicialmente por Edwards e Gross, em 1976. Um
fato interessante é que o diagnóstico da Síndrome da Dependência do
Álcool pode estabelecer níveis de comprometimento ao longo de um
contínuo, entre o nunca ter experimentado até o gravemente enfer-
mo, levando em conta os aspectos do grau de dependência relacio-
nado com o grau de problemas. Esse conceito de dependência
transcende o modelo moral, que considerava beber excessivamente
uma falha de caráter, e até mesmo o modelo de doença “alcoolismo”,
diagnóstico categorial em que só se pode ser ou não portador da
doença, sem permitir gradações de gravidade dos quadros, no qual a
perda do controle, a presença de sintomas de tolerância e a abstinência
determinam o indivíduo como sendo ou não dependente.

A conceituação da Síndrome da Dependência


do Álcool como importante passo rumo
às abordagens modernas
Conforme conceituaram na década de 1970 os cientistas
Edwards e Gross, os principais sinais e sintomas da Síndrome da
Dependência do Álcool são os seguintes:

• Estreitamento do repertório de beber


As situações em que o sujeito bebe se tornam mais comuns,
com menos variações em termos de escolha da companhia, do horário,

149
MÓDULO III
do local ou dos motivos para beber, ficando ele cada vez mais
estereotipado à medida que a dependência avança.

• Saliência do comportamento de busca pelo álcool


O sujeito passa gradualmente a planejar seu dia a dia em
função da bebida, como vai obtê-la, onde vai consumi-la e como vai
recuperar-se, deixando as demais atividades em plano secundário.

• Sensação subjetiva da necessidade de beber


O sujeito percebe que perdeu o controle, que sente um desejo
praticamente incontrolável e compulsivo de beber.

• Desenvolvimento da tolerância ao álcool


Por razões biológicas, o organismo do indivíduo suporta
quantidades cada vez maiores de álcool ou a mesma quantidade não
produz mais os mesmos efeitos que no início do consumo.

• Sintomas repetidos de abstinência


Em paralelo com o desenvolvimento da tolerância, o sujeito
passa a apresentar sintomas desagradáveis ao diminuir ou interrom-
per sua dose habitual. Surgem ansiedade e alterações de humor,
tremores, taquicardia, enjoos, suor excessivo e até convulsões, com
risco de morte.

• Alívio dos sintomas de abstinência ao aumentar o consumo


Nem sempre o sujeito admite, mas um questionamento deta-
lhado mostrará que ele está tolerante ao álcool e somente não desen-
150
UNIDADE 7
volve os sintomas de abstinência descritos porque não reduz ou até
aumenta gradualmente seu consumo, retardando muitas vezes o
diagnóstico.

• Reinstalação da síndrome de dependência


O antigo padrão de consumo pode se restabelecer rapidamente,
mesmo após longo período de abstinência.

Note que, nesse raciocínio sobre a Síndrome da Dependência


do Álcool, se trocarmos o álcool por qualquer outra droga com
potencial de abuso ou até mesmo pelos comportamentos que
eventualmente podem sair do controle (jogo patológico, por
exemplo), percebemos grande semelhança na natureza dos sintomas.

PADRÕES DE CONSUMO

+ Problema + Problema
PROBLEMA

- Dependência + Dependência
USUÁRIO DEPENDENTE
PROBLEMA

- Problema DEPENDÊNCIA
- Dependência
USUÁRIO CLINICAMENTE
SOCIAL NÃO EXISTE

Figura 1 – Padrões de consumo.

Observe a Figura 1, que mostra os padrões de consumo do


álcool, segundo Edwards (1977), na qual o eixo horizontal representa
o grau de dependência e o eixo vertical, o grau de problemas existentes
151
MÓDULO III
em função do uso do álcool. Se o indivíduo se encaixa no quadrante
inferior esquerdo, não existe problema em relação ao uso de álcool e
nenhum grau de dependência (uso social). No quadrante superior
esquerdo, observa-se que, embora ele não apresente nenhum grau de
dependência, tem problemas decorrentes do uso de álcool (uso
problemático ou abuso). Já no quadrante superior direito, encontra-se
o indivíduo que apresenta um quadro de Síndrome da Dependência
do Álcool. O quadrante inferior direito não existe clinicamente, uma
vez que o quadro de dependência está sempre associado a algum tipo
de problema na vida do indivíduo. É interessante notar que, apesar de
o quadro ter sido primariamente desenvolvido para explicar os
padrões de consumo do álcool, ele pode ser adaptado para diversas
outras drogas com potencial de causar dependência.

A validação do conceito de Síndrome da Dependência


do Álcool permitiu que os sistemas classificatórios atuais
operacionalizassem o conceito psicopatológico da dependên-
cia, ao utilizar critérios práticos e confiáveis. Mas qual a
vantagem de estabelecer precisão em tais critérios?

Possibilitar um bom diagnóstico, a primeira etapa antes


de qualquer abordagem.

Padrões de consumo de drogas


Uso de drogas

É a autoadministração de qualquer quantidade de substância


psicoativa.

152
UNIDADE 7
Abuso de drogas
Pode ser entendido como um padrão de uso em que aumenta o
risco de consequências prejudiciais para o usuário.

Segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID-10),


o termo “uso nocivo” é aquele que resulta em dano físico ou mental,
enquanto, no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM-IV), “abuso” engloba também consequências sociais.

Para melhor comparação, veja a tabela 1.

Tabela 1: Comparação entre critérios de abuso e uso nocivo


de substância psicoativa do DSM-IV e da CID-10

DSM-IV CID-10

ABUSO USO NOCIVO

Um ou mais dos seguintes aspectos 1) Evidência clara de que o uso foi


ocorrendo no período de 12 meses, sem responsável por (ou contribuiu
nunca preencher critérios para consideravelmente para) dano físico
dependência: ou psicológico, incluindo capacidade
1) Uso recorrente resultando em fracasso de julgamento comprometida ou disfunção
em cumprir obrigações importantes de comportamento;
relativas a seu papel no trabalho, na 2) A natureza do dano é claramente
escola ou em casa; identificável;
2) Uso recorrente em situações nas quais 3) O padrão de uso tem persistido por
isso representa perigo físico; pelo menos um mês ou tem ocorrido
3) Problemas legais recorrentes repetidamente dentro de um período de
relacionados à substância; 12 meses;
4) Uso continuado, apesar de problemas 4) Não satisfaz critérios para qualquer
sociais ou interpessoais persistentes outro transtorno relacionado à mesma
ou recorrentes causados ou exacerbados substância no mesmo período (exceto
pelos efeitos da substância. intoxicação aguda).

Dependência
A Tabela 2 apresenta uma comparação entre os critérios de
dependência referidos no DSM-IV e na CID-10. Esses dois sistemas
de classificação facilitam identificar o dependente de substância
psicoativa.

153
MÓDULO III
Tabela 2: Comparação entre os critérios para dependência
de substância psicoativa do DSM-IV e da CID-10

DSM-IV CID-10

Padrão mal adaptativo de uso, levando a Três ou mais das seguintes manifestações
prejuízo ou sofrimento clinicamente ocorrendo conjuntamente por pelo menos
significativos, manifestados por três ou 1 mês ou, se persistirem por períodos
mais dos seguintes critérios, ocorrendo a menores que 1 mês, devem ter ocorrido
qualquer momento no mesmo período juntas de forma repetida em um período de
de 12 meses: 12 meses:
1. Tolerância, definida por qualquer um 1. Forte desejo ou compulsão para
dos seguintes aspectos: consumir a substância.
a) necessidade de quantidades 2. Comprometimento da capacidade de
progressivamente maiores para adquirir a controlar o início, término ou níveis de
intoxicação ou efeito desejado; uso, evidenciado pelo consumo frequente
b) acentuada redução do efeito com o em quantidades ou períodos maiores que o
uso continuado da mesma quantidade. planejado ou por desejo persistente ou
2. Abstinência, manifestada por esforços infrutíferos para reduzir ou
qualquer um dos seguintes aspectos: controlar o uso.
a) síndrome de abstinência característica 3. Estado fisiológico de abstinência
para a substância; quando o uso é interrompido ou reduzido,
b) a mesma substância (ou uma como evidenciado pela síndrome de
substância estreitamente relacionada) é abstinência característica da substância ou
consumida para aliviar ou evitar sintomas pelo uso desta ou similar para aliviar ou
de abstinência. evitar tais sintomas.
3. A substância é frequentemente 4. Evidência de tolerância aos efeitos,
consumida em maiores quantidades ou necessitando de quantidades maiores para
por um período mais longo do que o obter o efeito desejado ou estado de
pretendido. intoxicação ou a redução acentuada desses
4. Há um desejo persistente ou esforços efeitos com o uso continuado da mesma
malsucedidos no sentido de reduzir ou quantidade.
controlar o uso. 5. Preocupação com o uso, manifestada
5. Muito tempo é gasto em atividades pela redução ou abandono de atividades
necessárias para a obtenção e utilização prazerosas ou de interesse significativo por
da substância ou na recuperação de seus causa do uso ou do tempo gasto em
efeitos. obtenção, consumo e recuperação dos
6. Importantes atividades sociais, efeitos.
ocupacionais ou recreativas são 6. Uso persistente, a despeito de
abandonadas ou reduzidas em razão evidências claras de consequências
do uso. nocivas, evidenciadas pelo uso continuado
7. O uso continua, apesar da quando o sujeito está efetivamente
consciência de ter um problema físico consciente (ou espera-se que esteja) da
ou psicológico persistente ou recorrente natureza e extensão dos efeitos nocivos.
que tende a ser causado ou exacerbado
pela substância.

O DSM-IV permanece como referência e é amplamente


utilizado, mas em maio de 2013, foi lançada a quinta edição do DSM,
com algumas mudanças importantes sobre os transtornos decorren-
tes do uso de álcool e drogas:
154
UNIDADE 7
• Não haverá mais a distinção entre abuso e dependência –
nesta edição, unem-se ambos diagnósticos em um único, intitulado
"transtornos relacionados ao uso de substâncias";

• A classificação da gravidade do transtorno baseia-se na quan-


tidade de critérios preenchidos pelo indivíduo, sendo: 2 a 3 critérios,
transtorno leve; 4 a 5, moderado; e 6 ou mais, grave;

• O critério de "problemas legais recorrentes relacionados ao


uso da substância", anteriormente utilizado para o diagnóstico de
abuso, foi retirado;

• Incluiu-se o critério de fissura (craving), que é o forte desejo


ou urgência em consumir a substância.

Considerações finais
Os transtornos por uso de substâncias psicoativas, com todas
as suas características e consequências biopsicossociais, apresentam-
se, atualmente, como um grave problema de saúde pública.

A determinação dos diversos padrões de uso de substâncias


psicoativas é importante para estabelecer o melhor programa
terapêutico para esses indivíduos, além de permitir diagnóstico e
classificação acurados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). DSM-IV – Diagnostic


and statistical manual of mental disorders. 4. ed. Washington DC, 1994.

155
MÓDULO III
American Psychiatric Association (APA). DSM 5 - Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders, Fifth Edition. Arlington, VA: American Psychiatric
Association, 2013.

BABOR, T. F. Social, scientific, and medical issues in the definition of alcohol and drug
dependence. In: EDWARDS, G., LADER, M. (Ed.). The nature of drug dependen-
ce. Oxford: Oxford University Press, 1990.

BERTOLOTE, J. M. Glossário de termos de psiquiatria e saúde mental da CID-


10 e seus derivados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

EDWARDS, G.; GROSS, M. Alcohol dependence: provisional description of a clinical


syndrome. Bristish Medical Journal, v. 1, n. 6017, p. 1058-1061, 1976.

GHODSE, H. Drugs and addictive behaviour: a guide to treatment. 2. ed. Oxford:


Blackwell Science, 1995.

LARANJEIRA, R.; NICASTRI, S. Abuso e dependência de álcool e drogas. In:


ALMEIDA, O. P.; DRATCU, L.; LARANJEIRA, R. Manual de psiquiatria. Rio de
Janeiro: Guanabara Koogan, 1996. p. 83-88.

LEITE, M. C. Fatores preditivos da resposta terapêutica em tratamento


ambulatorial para dependentes de cocaína. 200 p. Tese (Doutorado em
Psiquiatria) - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo,
1999.

LOWINSON, J. H. et al. Substance abuse: a comprehensive textbook. 2. ed.


Baltimore: Willian & Wilckins, 1997.

MASUR, J.; CARLINI, E. A. Drogas: subsídios para uma discussão. 4. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1993.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CID-10 – Critérios diagnósticos


para pesquisas. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1997.

156
UNIDADE 7
RESUMO DA AULA

Dependendo do contexto, a relação do indivíduo com uma


substância psicoativa pode ser inofensiva ou apresentar poucos riscos,
mas também pode assumir padrões de utilização altamente disfuncio-
nais, com prejuízos biológicos, psicológicos e sociais. Nota-se que as
visões preconceituosas e de cunho moral com relação ao dependente
químico (considerando o beber excessivamente como falha de
caráter) são ultrapassadas. Sistemas classificatórios têm sido discutidos
e revisados periodicamente com o intuito de melhorar o diagnóstico e
a classificação de transtornos mentais, incluindo a dependência de
substâncias, além de prover definições claras de termos relacionados.

Dentre tais definições, sobressaem o uso (autoadministração


de qualquer quantidade de substância psicoativa), o abuso ou uso
nocivo (padrão de uso com aumento de risco de consequências
prejudiciais para o usuário) e a dependência (presença de determina-
dos sinais/sintomas, como abstinência, tolerância, desejo incontrolá-
vel e compulsivo de beber, uso persistente a despeito das consequên-
cias nocivas, entre outros). Apesar das pequenas diferenças entre as
definições/critérios dos transtornos relacionados ao uso de drogas,
a definição deles com base em critérios práticos e confiáveis é
importante, porque um bom diagnóstico é a primeira etapa antes de
qualquer abordagem.

Depois de aprender os padrões de uso de drogas e conceitos


relacionados, na próxima unidade você estudará alguns conceitos
sobre a epidemiologia do uso de substâncias psicotrópicas, os
principais e mais recentes estudos sobre o uso, abuso e dependência
química no Brasil.

157
MÓDULO III
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. O uso de drogas se relaciona à autoadministração de substâncias


psicoativas. Sendo assim, assinale a alternativa correta:

a. Todo usuário de drogas se tornará um dependente.

b. O usuário problemático, certamente, desenvolverá depen-


dência.

c. O usuário social poderá ser um usuário problema, depen-


dendo do consumo.

d. O usuário social é aquele que não apresenta sinais para o


desenvolvimento de dependência, porém alguns problemas
relacionados ao uso de substâncias.

e. O usuário problemático é aquele cujo problema está


relacionado à quantidade de drogas administrada, não aos
fatores sociais e psicológicos.

2. A dependência de drogas é um fenômeno biopsicossocial que pode


ser caracterizado de acordo com as classificações de dois critérios
diagnósticos: DSM-IV e CID-10. Apesar de se expressarem de
maneiras diferentes, ambas consideram a síndrome de abstinência e a
tolerância os principais sintomas que caracterizam a doença. Assinale
a alternativa que define esses sintomas:

a. A síndrome de abstinência é um conjunto de sinais e


sintomas desagradáveis, tanto físicos como psicológicos, que
aparecem quando ocorre a interrupção do uso da droga. A
tolerância se refere à administração da dose. Indivíduos
dependentes necessitam de doses menores para obter o
efeito desejado.

158
UNIDADE 7
b. A síndrome de abstinência é um conjunto de sinais e sin-
tomas desagradáveis, tanto físicos como psicológicos, que
ocorrem mesmo sob o efeito da droga. A tolerância se refere à
administração da dose. Indivíduos dependentes necessitam
de doses menores para obter o efeito desejado.

c. A síndrome de abstinência é um conjunto de sinais e sinto-


mas desagradáveis, tanto físicos como psicológicos, que
aparecem quando ocorre a interrupção do uso da droga. A
tolerância se refere à administração da dose. Indivíduos
dependentes necessitam de doses maiores para obter o efeito
desejado.

d. A síndrome de abstinência é um conjunto de sinais e sinto-


mas desagradáveis, tanto físicos como psicológicos, que
ocorrem mesmo sob o efeito da droga. A tolerância se refere à
administração da dose. Indivíduos dependentes necessitam
de doses maiores para obter o efeito desejado.

e. N. D. A.

159
UNIDADE 8

EPIDEMIOLOGIA
DO USO DE SUBSTÂNCIAS
PSICOTRÓPICAS NO BRASIL:
DADOS RECENTES
• Conceito de epidemiologia e terminologias do uso
de substâncias psicotrópicas

• Importância dos estudos epidemiológicos sobre o uso


de drogas

• Resultados dos principais levantamentos


epidemiológicos realizados no país, separados
por população geral ou específica

III
EPIDEMIOLOGIA DO USO DE SUBSTÂNCIAS
PSICOTRÓPICAS NO BRASIL: DADOS RECENTES
José Carlos Fernandes Galduróz

Conceitos fundamentais
Epidemiologia
A palavra vem do grego epideméion (aquele que visita): epí
(sobre), demós (povo), logos (palavra, discurso, estudo).

Etimologicamente, epidemiologia significa “ciência do que


ocorre com o povo”.

Por exemplo: “Quantas pessoas estão infectadas com o vírus da


AIDS?”, “quantas são fumantes?” ou, ainda, “quantas ganham salário
mínimo?”. São questões com as quais se preocupa a epidemiologia.

Prevalência
É a proporção de casos existentes de certa doença ou
fenômeno em uma população determinada e em um tempo determina-
do. Por exemplo: “Quantos fumantes havia entre os moradores da
cidade de São Paulo em 2001?”. Casos existentes: fumantes; população
determinada: moradores de São Paulo; tempo determinado: o ano de
2001.

Incidência
É o número de casos novos de certa doença ou fenômeno em
uma população determinada, em um tempo determinado. Por
exemplo: “Em 2001, quantos casos novos de fumantes houve entre os
moradores da cidade de São Paulo?”.
163
MÓDULO III
Definições importantes
Uso na vida

Qualquer uso (inclusive um único uso experimental) alguma


vez na vida.

Uso no ano

Uso, ao menos uma vez, nos últimos 12 meses que antecede-


ram a pesquisa.

Uso no mês

Uso, ao menos uma vez, nos últimos 30 dias que antecederam


a pesquisa.

Uso frequente

Uso, em seis ou mais vezes, nos últimos 30 dias que antecede-


ram a pesquisa.

Uso pesado

Uso, em 20 ou mais vezes, nos últimos 30 dias que antecede-


ram a pesquisa.

Uso abusivo

Quando a pessoa começa a ter problemas físicos, mentais e


sociais aparentes devido ao uso da substância. Mesmo que parcial-
mente, ela ainda consegue cumprir com suas obrigações cotidianas.

Dependência

Quando a pessoa não consegue mais cumprir com suas


obrigações cotidianas devido ao uso da substância ou aos efeitos
adversos de seu uso (“ressaca”). Ela passa quase todo o tempo sob
efeito da droga, “curando a ressaca” ou tentando obter a substância.

164
UNIDADE 8
Objetivos dos estudos epidemiológicos
na área de drogas
• Diagnosticar o uso de drogas em determinada população;

• Possibilitar a implantação de programas preventivos adequa-


dos à população pesquisada.

Tipos de estudos
Levantamentos epidemiológicos
Fornecem dados diretos do consumo de drogas. Podem ser:

• domiciliares (pesquisam o uso de drogas entre moradores de


residências sorteadas);

• com estudantes (alunos do ensino fundamental, médio ou


superior);

• com crianças e adolescentes em situação de rua (informa-


ções coletadas entre crianças e adolescentes que vivem a
maior parte do tempo na rua);

• com outras populações específicas, por exemplo: profissio-


nais do sexo, trabalhadores da indústria, policiais etc.

Indicadores epidemiológicos
Fornecem dados indiretos do consumo de drogas de determi-
nada população. Podem ser:

• internações hospitalares por dependência;

• atendimentos ambulatoriais de usuários de drogas/álcool;

• atendimentos em salas de emergência por overdose;


165
MÓDULO III
• laudos cadavéricos de mortes violentas (fornecidos pelo
Instituto Médico Legal – IML);

• apreensões de drogas feitas pelas polícias federal, estaduais e


municipais;

• prescrições de medicamentos (ex.: benzodiazepínicos e


anfetamínicos);

• mídia (notícias sobre drogas veiculadas pelos meios de


comunicação);

• casos de violência decorrentes do uso de drogas;

• prisões de traficantes.

Dados recentes sobre o consumo de drogas


no Brasil
Levantamentos populacionais
Os dados diretos que serão apresentados a seguir foram
obtidos a partir de vários estudos promovidos pela Secretaria
Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) em parceria com
diversos centros de pesquisa, como o Centro Brasileiro de
Informações sobre Drogas (CEBRID), da Universidade Federal de
São Paulo (UNIFESP), a Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas
(UNIAD), da UNIFESP, a Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS) e o Programa do Grupo Interdisciplinar de Estudos de
Álcool e Drogas (GREA), da Faculdade de Medicina da Univer-
sidade de São Paulo (FMUSP).

O I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas


Psicotrópicas no Brasil (2001), realizado nas 107 maiores cidades
166
UNIDADE 8
do país, com pessoas com idade entre 12 e 65 anos de ambos os sexos,
apontou que 68,7% delas já haviam feito uso na vida de álcool. Além
disso, estimou-se que 11,2% da população brasileira apresentava
dependência dessa substância, o que correspondia a 5.283.000
pessoas.

Os dados do II Levantamento (2005) apontaram que 12,3%


das pessoas com idade entre 12 e 65 anos das 108 maiores cidades
brasileiras eram dependentes de álcool, prevalência superior à
encontrada no I Levantamento, que foi de 11,2%. Além disso, no II
Levantamento, cerca de 75% dos entrevistados relataram já terem
feito uso de álcool na vida , 50% no último ano e 38% no último mês. Os
dados também indicaram o consumo de álcool em faixas etárias cada
vez mais precoces, sugerindo a necessidade de revisão das medidas de
controle, prevenção e tratamento.

Comparações entre os dois levantamentos


domiciliares (2001 e 2005)

Observação importante: embora as porcentagens


estejam, geralmente, maiores na comparação entre os
levantamentos de 2001 e 2005, isso não reflete cientifica-
mente aumento real e significativo, segundo as análises
estatísticas aplicadas.

Da população pesquisada em 2005, 22,8% já fizeram uso na


vida de drogas, exceto tabaco e álcool, correspondendo a 10.746.991
pessoas. Em 2001, os achados foram, respectivamente, 19,4% e

167
MÓDULO III
9.109.000 pessoas. Em pesquisa semelhante realizada nos EUA, em
2004, essa porcentagem atingiu 45,4%.

A estimativa de dependentes de álcool em 2005 foi de 12,3%


e de tabaco 10,1%, o que corresponde a populações de 5.799.005 e
4.760.635 pessoas, respectivamente, havendo aumento de 1,1%
quando as porcentagens de 2001 e 2005 são comparadas, tanto para
álcool como para tabaco.

O uso na vida de maconha em 2005 apareceu em primeiro


lugar entre as drogas ilícitas, com 8,8% dos entrevistados, aumento
de 1,9% em relação a 2001. Comparando o resultado de 2005 com
o de outros estudos, pode-se verificar que ele é menor que o de países
como EUA (40,2%), Reino Unido (30,8%), Dinamarca (24,3%),
Espanha (22,2%) e Chile (22,4%), porém maior que o da Bélgica
(5,8%) e da Colômbia (5,4%).

A segunda droga com maior uso na vida (exceto tabaco e


álcool) foram os solventes (6,1%), com aumento de 0,3% em relação
a 2001, porcentagem inferior à encontrada nos EUA (9,5%) e superior
à de países como Espanha (4,0%), Bélgica (3,0%) e Colômbia (1,4%).

Entre os medicamentos usados sem receita médica, os


benzodiazepínicos (ansiolíticos) tiveram prevalência de uso na vida
de 5,6%, com aumento de 2,3% quando comparado com 2001,
porcentagem inferior à verificada nos EUA (8,3%).

Quanto aos estimulantes (medicamentos anfetamínicos), o


uso na vida foi de 3,2% em 2005, aumentando 1,7% em comparação
com 2001, porcentagem próxima à de vários países, como Holanda,
Espanha, Alemanha e Suécia, mas muito inferior à dos EUA (6,6%).
Vale dizer que foi a única categoria de drogas cujo aumento de 2001
para 2005 foi estatisticamente significativo.

168
UNIDADE 8
Em relação à cocaína, 2,9% dos entrevistados declararam ter
feito uso na vida, no levantamento realizado em 2005. Em compara-
ção com os dados de 2001 (2,3%), houve, portanto, um aumento de
0,6% no número de pessoas utilizando esse derivado de coca.
Diminuiu o número de entrevistados de 2005 (1,9%) em
relação ao de 2001 (2,0%) relatando o uso na vida de xarope à base
de codeína.

O uso na vida de heroína em 2001 foi de 0,1%; em 2005,


houve sete relatos, correspondendo a 0,09%. Esse dado é menor que o
achado nos EUA (1,3%).

Álcool
A Figura 1 mostra as porcentagens de entrevistados de ambos
os sexos que preenchiam os critérios de dependência do álcool.

19,5
17,1
20
18
16 12,3
14 11,2
12
6,9
% 10 5,7
8
6
4
2
0
TOTAL Masculino Feminino ano2001
ano2005

Figura 1 – Comparação entre os Levantamentos Domiciliares sobre o Uso de Drogas


Psicotrópicas no Brasil de 2001 e 2005, segundo dependência de álcool.
Fonte: SENAD e CEBRID – UNIFESP.

Tabaco
Nas faixas etárias estudadas, mais homens relataram uso na
vida que as mulheres em ambos os levantamentos, como consta na
Figura 2.
169
11,3
MÓDULO III
10,1
10,1
12 9,0
9,0 7,9
10
8
%6
4
2
0
TOTAL Masculino Feminino
ano2001
ano2005

Figura 2 – Comparação entre os Levantamentos Domiciliares sobre o Uso de Drogas


Psicotrópicas no Brasil de 2001 e 2005, segundo o uso na vida de tabaco e dependência,
distribuído por sexo.
Fonte: SENAD e CEBRID – UNIFESP.

Drogas psicotrópicas (exceto tabaco e álcool)


A Figura 3 mostra o uso na vida, distribuído por gênero, em 2001 e
2005, para 15 drogas.
Houve aumento de prevalência de 2001 para 2005 de nove drogas
(maconha, solventes, benzodiazepínicos, cocaína, estimulantes, alucinóge-
nos, barbitúricos, crack e esteroides anabolizantes), diminuição de quatro
(orexígenos, xaropes com codeína, opiáceos e anticolinérgicos) e o mesmo
consumo de duas (merla e heroína).
10
9 8,8

8
6,9
7
ano2001
6,1
6 5,8 ano2005
5,6

5
% 4,3
4,1
4
3,3 3,2
2,9
3
2,3
2,0 1,9
2
1,5 1,4 1,3
1,1 1,1
0,9
1 0,7 0,7
0,5 0,6 0,5 0,4 0,3 0,2 0,2 0,1 0,09
0
ha es os os na a) es os os os os ac
k es la na
on
t
en ni
c aí ín t ce gi
c en ric cr nt er oí
en g í c e an á r g tú a m r
ac ol
v
exí ep co c od ul opi né nó bi o liz he
m z i i
s or ia s( tim ol uc ba
r
ab
d
op
e es ic al n
n zo r a nt sa
be xa de
roi
te
es
Figura 3 – Comparação entre os Levantamentos Domiciliares sobre o Uso de Drogas
Psicotrópicas no Brasil de 2001 e 2005, segundo o uso na vida de drogas, exceto álcool e
tabaco.
Fonte: SENAD e CEBRID – UNIFESP.
170
UNIDADE 8
Outro importante levantamento, publicado em 2007 pela
SENAD em parceria com a UNIAD – UNIFESP, investigou os
Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira. O estudo
foi realizado em 143 municípios do país e detectou que 52% dos
brasileiros adultos (acima de 18 anos) haviam feito uso de bebida
alcoólica pelo menos uma vez no ano anterior à pesquisa. Do conjunto
dos homens adultos, 11% relataram beber todos os dias e 28% de
uma a quatro vezes por semana. Esse levantamento, que utilizou uma
metodologia de pesquisa diferente dos anteriores, constatou que 9%
da população brasileira apresentava dependência de álcool, o que
representou diminuição nos percentuais apresentados anteriormente.

A SENAD realizou, ainda, em parceria com a UFRGS, uma


pesquisa sobre o Uso de Bebidas Alcoólicas e Outras Drogas nas
Rodovias Brasileiras e Outros Estudos. Essa pesquisa, realizada
nas rodovias federais das 27 capitais brasileiras, abrangendo motoris-
tas de carros, motos, ônibus e caminhões, particulares e profissionais,
foi lançada em 2010 e apontou, dentre outros achados, que 25% dos
motoristas entrevistados referiram ter consumido cinco ou mais
doses de bebida alcoólica (beber pesado episódico ou binge drinking)
entre duas e oito vezes no último mês. Também demonstrou que os
motoristas que apresentaram resultados positivos nos testes para
álcool ou outras drogas tinham índices de transtornos psiquiátricos
(depressão, hipomania/mania, transtorno de estresse pós-traumá-
tico, transtorno de personalidade antissocial ou dependência/abuso
de álcool ou outras substâncias) mais elevados que os que apresenta-
vam resultados negativos nos referidos testes (sóbrios).

171
MÓDULO III
Populações específicas
Em 2004, dando sequência à pesquisa com estudantes do
ensino fundamental e médio, foi realizado, também pela SENAD em
parceria com o CEBRID – UNIFESP, o V Levantamento Nacional
sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino
Fundamental e Médio da Rede Pública das 27 Capitais Bra-
sileiras. Esse estudo indicou que o primeiro uso de álcool se dava por
volta dos 12 anos de idade e predominantemente no ambiente
familiar. No entanto, as intoxicações alcoólicas ou mesmo o uso
regular de álcool raramente ocorriam antes da adolescência. A
pesquisa demonstrou, ainda, que 65,2% dos jovens já haviam
ingerido álcool alguma vez na vida, 63,3% haviam feito algum uso no
último ano e 44,3% haviam consumido alguma vez no último mês.
Outros dados preocupantes se referiram à frequência do uso dessa
substância: 11,7% faziam uso frequente (seis ou mais vezes no mês) e
6,7%, uso pesado (20 ou mais vezes no mês). Embora não sejam
drogas psicotrópicas, o uso na vida de energéticos por estudantes foi
expressivo em todas as capitais: 12,0% no total. Essas substâncias
merecem atenção especial, pois, segundo vários estudos, podem
prolongar o efeito excitatório do álcool.

No segundo semestre de 2010, dando continuidade a essa


série histórica, foram divulgados resultados preliminares do
VI Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas Psicotró-
picas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio da Rede
Pública e Privada das 27 Capitais Brasileiras. A inovação dessa
pesquisa foi a inclusão na amostra da rede privada de ensino, o que
representa um perfil mais próximo da realidade do consumo de
álcool e outras drogas nesse segmento. Verificou-se diminuição
estatisticamente significativa do consumo de álcool, anfetamínicos e
solventes entre os estudantes do ensino fundamental e médio em um
172
UNIDADE 8
período de 23 anos (entre o o I Levantamento, de 1987, e o mais
recente, de 2010). Entretanto, observou-se aumento significativo do
consumo de maconha e cocaína nesse mesmo período. Esse padrão
de uso de drogas dos estudantes brasileiros se assemelha ao de
estudantes norte-americanos. À exceção dos inalantes, estima-se que
o Brasil apresenta, atualmente, menores prevalências de consumo de
drogas que os demais países, para a mesma população.

Com relação ao uso de drogas entre crianças e adolescentes


em situação de rua, foi publicado em 2003 pela SENAD, em parceria
com o CEBRID – UNIFESP, um importante levantamento realizado
em todas as capitais do Brasil com jovens de 10 a 18 anos de idade.
Nessa pesquisa, constatou-se que, entre os entrevistados que não
moravam com a família, 88,6% haviam usado algum tipo de droga
(incluindo álcool e tabaco) no mês anterior à entrevista. Especi-
ficamente com relação ao álcool, 43% do total de entrevistados
(incluindo os que moravam e os que não moravam com a família)
relataram ter feito uso no último mês.

Outra população estudada recentemente foram os universitá-


rios. O I Levantamento Nacional sobre o Uso de Álcool, Tabaco e
Outras Drogas entre Universitários das 27 Capitais Brasileiras,
lançado em junho de 2010 pela SENAD, em parceria com o GREA –
FMUSP, demonstrou que 86,2% (12.673) dos entrevistados já
haviam feito uso de bebida alcoólica em algum momento da vida.
Dentre eles, a proporção entre homem e mulher foi igual: 1:1.
Contudo, quanto à frequência e à quantidade, os homens beberam
mais vezes e em maior quantidade que as mulheres. Os dados
também apontaram um consumo mais frequente de álcool entre os
universitários que na população em geral.

173
MÓDULO III
Indicadores epidemiológicos
Como mencionado, os indicadores epidemiológicos forne-
cem dados indiretos sobre o comportamento da população em
relação ao uso de drogas psicotrópicas. Dados sobre internações
hospitalares para tratamento da dependência mostram que uma
análise de séries temporais de 21 anos – 1988-2008 – indicou redução
do total de internações no período (de 64.702 internações, em 1988,
para 24.001, em 2008). A redução parece ter acompanhado as ações
adotadas nos últimos anos no Brasil, com destaque para a criação, a
partir de 2002, dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas
(CAPS AD). Por outro lado, ao serem analisadas as apreensões de
drogas feitas pela Polícia Federal no período de 2004 a 2008,
constatou-se que a quantidade de apreensões tanto de cocaína como
de maconha se manteve estável, havendo, entretanto, diminuição das
apreensões dos frascos de “lança-perfume” e aumento da quantidade
de comprimidos de ecstasy em 2007 e 2008.

Outro indicador importante se refere ao uso indevido de


medicamentos psicotrópicos. No Brasil, o uso indevido de benzo-
diazepínicos (ansiolíticos) passou a ser motivo de preocupação no
final da década de 1980. Estudos mais recentes mostram que os
benzodiazepínicos compõem a classe de medicamentos psicotrópi-
cos mais prescritos, com base na análise de receitas médicas retidas
em estabelecimentos farmacêuticos. São as mulheres as maiores
consumidoras dessas substâncias, e os médicos sem especialização, os
maiores prescritores. No entanto, os benzodiazepínicos não são a
única classe de medicamentos psicotrópicos sujeitos ao “abuso
terapêutico”. Há a prescrição indiscriminada de anfetaminas (inibi-
dores do apetite) para fins estéticos para pacientes sem evidência de
indicação clínica, com índice de massa corporal (IMC) maior que
30kg/m2.

174
UNIDADE 8
Considerações finais
Pode parecer estranho que, para uma mesma droga, apareçam
porcentagens diferentes. Isso ocorre porque cada tipo de levanta-
mento estuda determinada população com particularidades próprias.
A Tabela 1 ilustra esse aspecto. É possível notar, por exemplo, que na
pesquisa domiciliar (incluindo pessoas de 12 a 65 anos de idade) o
uso na vida de solventes foi relatado por 5,8% dos entrevistados,
enquanto entre jovens (estudantes, universitários e crianças e adoles-
centes em situação de rua) a porcentagem foi bem maior. Isso signi-
fica que, quando se pretende aplicar um programa preventivo ou uma
intervenção, é importante conhecer antes o perfil daquela população
específica, pois suas peculiaridades são relevantes para um planeja-
mento adequado.

Levantamentos
Estudantes Crianças
Drogas Domiciliar do Ensino e adolescentes Universitários
Fundamental em situação
e Médio de rua
Maconha 6,9% 7,6% 40,4% 26,1%
Solventes 5,8% 13,8% 44,4% 20,4%
Cocaína 2,3% 2,0% 24,5% 7,7%

Tabela 1 – Comparação do uso na vida de algumas drogas em quatro diferentes


populações pesquisadas.
Fonte: SENAD, CEBRID – UNIFESP e GREA – FMUSP.

Ainda é preciso lembrar que, embora existam estudos sobre o


panorama do uso de drogas no Brasil, os dados disponíveis nem
sempre são suficientes para avaliações específicas. Além disso, o uso
de drogas é algo dinâmico, em constante variação de um lugar para
outro e mesmo em determinado lugar. Por tais razões, são necessários
programas permanentes de pesquisas epidemiológicas, para que
novas tendências possam ser detectadas e programas de prevenção e
intervenção adequadamente desenvolvidos.
175
MÓDULO III
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, A. G.; DUARTE, P. C. A. V.; OLIVEIRA, L. G. (Org.). I Levan-


tamento Nacional sobre o Uso de Álcool, Tabaco e Outras Drogas entre
Universitários das 27 Capitais Brasileiras. Brasília: SENAD, 2010.

BEAGLEHOLE, R.; BONITA. R.; KJELLSTROM, T. Epidemiologia básica.


Washington: Organización Panamericana de la Salud, 1994. 186 p.

BRASIL. O adolescente e as drogas no contexto da escola. Curso de formação em


prevenção do uso indevido de drogas para educadores de escolas públicas. v. 1.
Brasília: SENAD/MEC, 2004. 84 p.

CARLINI, E. A. et al. I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas


Psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 107 maiores cidades do país – 2001.
São Paulo: CEBRID – UNIFESP, 2002. 380 p.

CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas. Disponível


em: <http://www.cebrid.epm.br>. Acesso em: 01/01/2011.

CONACE – Consejo Nacional para el Control de Estupefacientes, Ministerio del


Interior. Quinto informe anual sobre la situación de drogas en Chile, 2005.
Disponível em: <http://www.conacedrogas.cl>. Acesso em: 01/01/2011.

EMCDDA – European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction. Disponível
em: <http://www.emcdda.eu.int>. Acesso em: 01/01/2011.

GALDURÓZ, J. C. F. et al. V Levantamento Nacional sobre o Consumo de


Drogas Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio da
Rede Pública de Ensino nas 27 Capitais Brasileiras – 2004. São Paulo: CEBRID
– UNIFESP, 2005. 398 p.

INCB – International Narcotic Control Board. Report for 2009: Psychotropic


substances – Statistics for 2008 – Assessments of annual medical and scientific
requirements or substances in schedules II, III and IV of the Convention on
Psychotropic Substances of 1971. New York: United Nations, 2010. 369 p.

LARANJEIRA, R. et al. I Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo


de Álcool na População Brasileira. Brasília: SENAD, 2007.

NAPPO, S. A. et al. Use of anorectic amphetamine-like drugs by Brazilian women.


Eating Behaviors, v. 3, n. 2, p. 153-165, 2001.

NIDA – National Institute on Drug Abuse. High School and youth trends.
Disponível em: <http://www.drugabuse.gov/infofacts/hsyouthtrends.html>. Acesso
em: 01/01/2011.
176
UNIDADE 8
NOTO, A. R. et al. Analysis of prescription and dispensation of psychotropic
medications in two cities in the state of São Paulo, Brazil. Revista Brasileira de
Psiquiatria, v. 24, n. 2, p. 68-73, 2002.

NOTO, A. R. et al. Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas entre


Crianças e Adolescentes em Situação de Rua nas 27 Capitais Brasileiras –
2003. São Paulo: CEBRID – UNIFESP, 2004. 246 p.

POLÍCIA FEDERAL. Disponível em: <http://www.dpf.gov.br>. Acesso em: 01/04/2010.

SAMHSA – Substance Abuse and Mental Health Services Administration. National


Household Survey on Drug Abuse. Office of Applied Studies: 1999-2000. U.S.
Deparment National Household Survey on Drug Abuse. U.S. Department of Health
and Human Services, 2001. Disponível em: <http://www.oas.samhsa.gov/nsduh/
reports.htm >. Acesso em: 01/01/2011.

177
MÓDULO III
RESUMO DA AULA

No Brasil já foram realizados estudos epidemiológicos


interessantes sobre o uso de álcool, tabaco e outras drogas, tanto na
população geral (12 a 65 anos de idade) como entre estudantes e
crianças e adolescentes em situação de rua. No entanto, programas
permanentes de pesquisas epidemiológicas são importantes para que
novas tendências do uso de drogas possam ser detectadas e programas
de prevenção e intervenção adequadamente desenvolvidos. Primeiro,
porém, é necessário definir alguns conceitos principais, como preva-
lência, uso na vida e dependência para que seja possível interpretar o
diagnóstico do uso de drogas em determinada população.

Na próxima unidade, destaca-se uma droga ilícita muito im-


portante: o crack. Serão abordadas informações sobre essa substân-
cia, seus efeitos sobre o sistema nervoso central e o psiquismo e as
consequências de seu uso sobre o organismo. Também se discute o
contexto social do uso de crack e se relatam as abordagens terapêuti-
cas consideradas mais efetivas.

178
UNIDADE 8
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. Assinale prevalência (P) ou incidência(I):

( ) Na cidade de Paulínia, 43% da população se considera


fumante.

( ) Na USP, 85% dos alunos declararam ter feito uso de álcool


alguma vez na vida.

( ) Em 2010, constataram-se 120 mil novos casos de câncer


causados pelo cigarro.

( ) Em 2010, cerca de 18 mil pessoas foram internadas por


conta da dependência de crack.

( ) 32% dos alunos brasileiros consumiram alguma droga na


vida.

2. Um estudo mostrou que 310 de 2.477 pessoas examinadas na


cidade X com idade entre 52 e 85 anos eram fumantes. Essa medida é
um exemplo de:

a. Incidência.

b. Risco atribuível.

c. Risco relativo.

d. Prevalência.

e. Razão de mortalidade proporcional.

179
UNIDADE 9

CRACK
UMA ABORDAGEM
MULTIDISCIPLINAR
• Informações gerais sobre o crack
(o que é e epidemiologia do uso)

• Efeitos sobre o sistema nervoso central

• Consequências sociais

• Abordagens terapêuticas consideradas mais efetivas

III
CRACK:
UMA ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR
Marcelo Santos Cruz
Renata Werneck Vargens
Marise de Leão Ramôa

Introdução

Atualmente, o crescimento do consumo e das consequências


relacionadas ao uso do crack constitui um grande desafio para a
implementação de uma política de atenção aos problemas com álcool
e outras drogas no Brasil. Este desafio exige respostas eficazes do
governo e da sociedade para a construção de um programa de inter-
venção integrada, como, por exemplo, ações relacionadas à promoção
da saúde, de conscientização e informação sobre os riscos do uso do
crack, disponibilização de serviços de atendimento e estudos clínicos
sobre tratamento, dentre outros.

O consumo do álcool, tabaco e outras drogas agrava problemas


sociais, traz sofrimento para indivíduos e famílias e tem consequências
econômicas importantes. Neste contexto, o surgimento e o aumento
rápido do consumo do crack desde a década de noventa incrementam
a intensidade destes problemas, ampliando e agravando condições de
vulnerabilidade especialmente para as parcelas carentes da população.
No Brasil, o consumo cresceu principalmente entre crianças, adoles-
centes e adultos que vivem na rua, motivando pressões diversas sobre
os governantes e sobre a sociedade civil pela necessidade de ações que
deem aos usuários de crack oportunidades de viver de forma digna e
com saúde (DUAILIBI; RIBEIRO; LARANJEIRA, 2008).

183
MÓDULO III
Em muitos aspectos, o uso e os problemas relacionados ao con-
sumo de crack não são diferentes dos que acontecem com outras dro-
gas. Porém, essas diferenças existem. Para que as ações empreendidas
sejam efetivas, há a necessidade de conhecer de forma mais profunda
os problemas relacionados ao uso do crack. A necessidade de conhe-
cimento se estende à importância de capacitar os profissionais que
lidam no dia a dia com pessoas que usam crack e seus familiares.

Sendo assim, o objetivo deste capítulo é resumir informações


sobre o crack, seus efeitos sobre o Sistema Nervoso Central e o psi-
quismo e as consequências de seu uso sobre o corpo. Também abor-
daremos o contexto e o impacto social do uso do crack e relataremos
as abordagens terapêuticas consideradas mais efetivas. O enfoque des-
crito se sustenta na compreensão de que o consumo e os problemas
associados ao crack devem ser entendidos como determinados por
múltiplos aspectos, incluindo as dimensões biológicas, psíquicas e
socioculturais, tanto na origem dos problemas como nas propostas de
abordagem.

O que é crack?
O crack é uma forma distinta de levar a molécula de cocaína ao
cérebro. Sabe-se que a cocaína é uma substância encontrada em um
arbusto originário da região dos Andes, sendo a Bolívia, o Peru e a
Colômbia seus principais produtores. Os nativos destas regiões mas-
cam as folhas de coca há muito tempo, desde antes da chegada dos con-
quistadores espanhóis no século XVI. No século XIX, a planta foi le-
vada para a Europa onde se identificou qual era a substância que pro-
vocava seu efeito. Esta foi, então, chamada de cocaína.

184
UNIDADE 9
A partir daí, processos químicos passaram a ser utilizados para
separar a cocaína da folha de coca, gerando um pó branco denomina-
do cloridrato de cocaína. Desde o século XIX, o cloridrato de cocaína
é utilizado por meio de inalação nasal ou dissolvido em água para inje-
ção. Utilizando diferentes processos de fabricação, além do pó bran-
co, é possível produzir formas que podem ser fumadas. São elas a mer-
la, a pasta de coca e o crack.

Estas diferentes formas de administração da molécula de co-


caína – inalada, injetada ou fumada – têm efeitos distintos no indiví-
duo. Quando a droga é fumada, isto faz com que uma grande quanti-
dade de moléculas de cocaína atinja o cérebro quase imediatamente
após o uso, produzindo um efeito explosivo, descrito pelos usuários
como uma sensação de prazer intenso. Isso acontece porque a fumaça
vai para os pulmões que são altamente vascularizados, levando rapi-
damente a droga ao cérebro. Então, a droga é velozmente eliminada
do organismo, produzindo uma súbita interrupção da sensação de
bem-estar, seguida, imediatamente, por imenso desprazer e enorme
vontade de reutilizar a droga.

Esta sequência é vivenciada pelos usuários com um comporta-


mento compulsivo, em que os indivíduos caem, com frequência, numa
espiral em que os atos de usar a droga e procurar meios de usar nova-
mente se alternam cada vez mais rapidamente. Esse efeito rápido e in-
tenso também é descrito por usuários de cocaína injetável. No entanto,
para o uso injetável é necessária uma cocaína bastante pura, o que torna
esta forma de uso muito mais cara do que o uso do crack. O preço é ou-
tra diferença entre o crack e a cocaína em pó, sendo o primeiro muito
mais barato. Em outras palavras, o crack é uma forma muito barata de
levar as moléculas de cocaína ao cérebro, de maneira mais rápida e com
efeitos muito mais intensos.

185
MÓDULO III
Epidemiologia
O surgimento do uso do crack no Brasil foi detectado por redu-
tores de danos (profissionais que compõem o programa de Redução
de Danos) que trabalhavam com usuários de drogas injetáveis no iní-
cio da década de 1990.

Quando comparamos a distribuição do uso de vários tipos de


drogas entre a população brasileira, percebemos que, considerando a
população como um todo, o uso do crack é muito raro. No entanto,
quando se enfoca determinados segmentos da população, encontra-
mos um padrão de consumo bastante variado. Por exemplo, de acordo
com o II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psico-
trópicas no Brasil realizado nas 108 maiores cidades do país, 0,7% da
população adulta relatava ter feito uso de crack pelo menos uma vez na
vida, o que significa um contingente de mais de 380 mil pessoas. A
maior porcentagem de uso de crack na vida foi encontrada entre
homens, na faixa etária de 25 a 34 anos, constituindo 3,2% da popula-
ção adulta ou cerca de 193 mil pessoas. Além disso, a comparação dos
resultados do I Levantamento, realizado em 2001, e o II Levanta-
mento, realizado em 2005, mostrou que houve aumento estatistica-
mente significativo daqueles que relataram uso de crack no mês da pes-
quisa. Embora usuários de crack se encontrem em todas as regiões, as
regiões Sul e Sudeste concentram a maior parte dos usuários identifi-
cados na pesquisa.

Os estudos que enfocaram estudantes do ensino fundamental e


médio, conduzidos entre 1987 e 2004 em São Paulo e depois no Brasil,
encontraram um crescimento do consumo de cocaína em cidades da
região Nordeste (Salvador, Recife e Fortaleza), além de Belo Horizonte
e Rio de Janeiro. Vários estudos foram feitos com estudantes em várias
cidades do Brasil, encontrando taxas de uso de cocaína, pelo menos

186
UNIDADE 9
uma vez na vida, sempre menores que 3,6%. No entanto, no I
Levantamento Nacional sobre o Uso de Álcool, Tabaco e outras Drogas
entre Universitários das 27 Capitais Brasileiras, se somados os percen-
tuais de uso de cocaína, merla e crack na vida, a prevalência é de 9,7%.

Quando a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas


(SENAD), por meio do Centro Brasileiro de Informações sobre
Drogas Psicotrópicas (CEBRID), foi estudar o uso de drogas por meni-
nos e meninas em situação de rua, encontrou taxas bem maiores: o uso
de cocaína no último mês foi de 45% entre os menores no Rio de
Janeiro, 31% em São Paulo e 20% em Recife. O uso frequente de crack
foi mencionado em quase todos os estados, sendo maior em São
Paulo, Recife, Curitiba e Vitória (variando entre 15% e 26%). O cresci-
mento da procura de tratamento por usuários de crack, observado na
década de 1990 em outras capitais, ocorre, atualmente, no Rio de
Janeiro.

A ação da droga no sistema nervoso central


A dependência é uma complicação que pode ocorrer entre
usuários de cocaína e crack. A dependência estimada é de 5% a 12%
dos que experimentam a droga. A dependência se relaciona a proble-
mas pessoais, familiares e sociais bastante graves. Comparando o uso
de crack com outras formas de uso da cocaína, há uma proporção
maior de uso intenso e de aumento da fissura entre aqueles que usam
crack.

Fumar o crack é a via mais rápida de fazer que a droga chegue ao


cérebro e provavelmente esta é a razão para a rápida progressão para a

187
MÓDULO III
dependência. Com isso, os efeitos aparecem muito mais rápido do que
por outras vias. Entre 10 e 15 segundos os primeiros efeitos do crack já
ocorrem, enquanto os efeitos após cheirar a cocaína em pó acontecem
após 10 a 15 minutos, e após a injeção, entre 3 e 5 minutos. Essa carac-
terística faz do crack uma droga “poderosa” do ponto de vista do usuá-
rio, já que o prazer acontece quase que instantaneamente após seu uso.

A ação do crack no cérebro


Quando o crack atinge o cérebro, produz uma sensação de pra-
Núcleo Accumbens. zer e satisfação. A área do cérebro estimulada pela droga é a mesma
que é ativada quando os instintos de sobrevivência e reprodução são
satisfeitos, como, por exemplo, quando a pessoa tem satisfação sexual
ou quando bebe água quando se tem sede. Esta é uma das principais
regiões envolvidas com os quadros de dependência. Com o uso de
crack, esta região pode ser estimulada enormemente, causando sensa-
ções de prazer que excedem àquelas experimentadas em situações nor-
mais. Esta região do cérebro também inclui importantes centros de
Hipocampo e amígdalas
cerebelosas. memória. Estes centros ajudam a lembrar o que foi feito para levar o
indivíduo ao estado de prazer. Quando a pessoa faz uso de crack, estas
regiões registram memória de pessoas, lugares, objetos e situações que
levaram àquela sensação. Assim, diversos estímulos associados a estas
memórias podem ativar o desejo de voltar a experimentar aquela situa-
ção prazerosa. Este é o mesmo fenômeno que ocorre quando o indiví-
duo sente o cheiro de uma comida e seu organismo sofre reações antes
mesmo de ele se alimentar.

Córtex pré-frontal. Há outra região do cérebro que também é atingida pelo crack.
Essa região é responsável por atividades relacionadas à solução de pro-

188
UNIDADE 9
blemas, à flexibilidade mental, ao julgamento moral e à velocidade de
processamento de informações. É onde o cérebro integra as informa-
ções e avalia as diversas decisões que pode tomar. Assim, é possível que
antes de se tornar dependente o indivíduo consiga suprimir a urgência
originada nas áreas relacionadas à satisfação e à memória do prazer,
escolhendo se quer ou não usar a droga e que, uma vez dependente, sua
capacidade de julgamento fica prejudicada, tornando-se mais propen-
so a seguir os estímulos de urgência que levam ao uso da droga.

Com o uso continuado, os efeitos de curto e médio prazo vão se


acumulando e permitem o surgimento de efeitos de longo prazo, que
podem durar meses ou anos e ser irreversíveis.

Danos físicos
Intoxicação
Os efeitos do crack aparecem quase imediatamente depois de
uma única dose. Estes efeitos incluem aceleração do coração, aumento
da pressão arterial, agitação psicomotora, dilatação das pupilas,
aumento da temperatura do corpo, sudorese e tremor muscular. A
ação no cérebro provoca sensação de euforia, aumento da autoestima,
indiferença à dor e ao cansaço, sensação de estar alerta especialmente a
estímulos visuais, auditivos e ao toque. Os usuários também podem
apresentar tonturas e sensação de perseguição (síndrome paranoide).

Abstinência
Como para outros aspectos, a abstinência de cocaína inalada é
mais estudada do que a do crack, no entanto, nada faz supor que have-

189
MÓDULO III
ria diferenças importantes nos sintomas apresentados, mas sim em sua
intensidade. A experiência clínica sugere que o início dos sintomas de
abstinência do crack seja mais rápido e os sintomas mais intensos do
que os da abstinência da cocaína inalada, ou seja, os sintomas da absti-
nência do crack seriam mais intensos e de surgimento mais rápido do
que os da abstinência de cocaína.

A abstinência é composta por três fases: o crash, a síndrome dis-


fórica tardia e a extinção:

I. Crash: É quando acontece uma drástica redução no


humor e na energia, apresentando inquietação, ansiedade
e irritabilidade. Pode ocorrer paranoia. Instala-se cerca de
5 a 10 minutos depois de cessado o uso. Muitas vezes são
estes sintomas que fazem com que o paciente use continu-
amente até a exaustão.

II. Síndrome disfórica tardia: Os primeiros dias são demarca-


dos por desgaste físico extremo. Frequentemente, dorme-
se muito, podendo ocorrer sonhos vívidos e desagradáve-
is, e despertar-se para ingerir grandes quantidades de ali-
mentos. Com a recuperação física, as alterações de humor
ficam mais evidentes: inquietação, ansiedade, irritabilida-
de, sonhos vívidos e intensa vontade de usar a droga. O
auge da abstinência ocorre entre 2 e 4 dias após o uso. Há
recaídas frequentes como forma de tentar aliviar os sinto-
mas disfóricos.

III. Extinção: Os sintomas disfóricos diminuem ou cessam


por completo a e fissura se torna menos frequente. As alte-
rações de humor podem durar meses.

190
UNIDADE 9
Overdose
Pode ser definida como a falência de um ou mais órgãos decor-
rente do uso agudo da substância e consequente aumento da estimula-
ção central simpática.

Efeitos do crack no corpo


Os principais efeitos do uso do crack são decorrentes da ação
local direta dos vapores gerados em alta temperatura pela queima da
droga (como queimaduras e olhos irritados) e dos efeitos farmacológi-
cos da substância. Os efeitos farmacológicos incluem a ação da droga
sobre os neurotransmissores (substâncias químicas produzidas pelos
neurônios) dopamina e noradrenalina com intensa estimulação do sis-
tema nervoso e cardiovascular.

Vias aéreas
O pulmão é o principal órgão exposto aos produtos da queima
do crack. Os sintomas respiratórios agudos mais comuns são: tosse
com produção de escarro enegrecido; dor no peito com ou sem falta
de ar; presença de sangue no escarro; agravamento de asma. A tosse é o
sintoma mais comum, estando presente em até 61% dos casos, e a pre-
sença de sangue no escarro foi relatada em até 26% dos pacientes. O
escarro escuro é característico do uso de crack e é atribuído à inalação
de resíduos de carbono de materiais utilizados para acender o cachim-
bo com a droga. Atenção especial deve ser dada ao tratamento de paci-
entes com tuberculose. Muitas vezes estes pacientes convivem em
ambientes fechados, dividem os instrumentos de consumo da droga e
apresentam baixa adesão ao tratamento, favorecendo, desta forma, a
disseminação do bacilo da tuberculose.

191
MÓDULO III
Coração
O uso do crack provoca o aumento da frequência cardíaca e da
pressão arterial, podendo ocorrer isquemias e infartos agudos do cora-
ção. A ocorrência de isquemia não está relacionada à quantidade con-
sumida, à via de administração ou à frequência de uso. Ainda há risco
de arritmias cardíacas e problemas no músculo cardíaco.

Sistema nervoso
O uso de crack pode resultar em uma variedade de manifesta-
ções neurológicas, incluindo acidente vascular cerebral (derrames
cerebrais), dor de cabeça, tonturas, inflamações dos vasos cerebrais,
atrofia cerebral e convulsões.

Trato digestivo
Os sintomas mais comuns são náusea, dor abdominal e perda
de apetite.

Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS


O consumo de crack e cocaína tem sido associado diretamente
à infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) e outras
doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). O uso do crack tem asso-
ciação direta com a aceleração da progressão da infecção pelo HIV e
também por reduzir a adesão ao tratamento. Os comportamentos de
risco mais frequentemente observados são o número elevado de par-
ceiros sexuais, o uso irregular de camisinha e a troca de sexo por droga
ou por dinheiro para adquirir a droga. As mulheres usuárias de crack
têm mais relações sexuais em troca de dinheiro ou droga em relação a

192
UNIDADE 9
usuárias de outras drogas e têm mais chance de se envolverem com
este tipo de atividade que os homens, se expondo a riscos com maior
frequência. Deve ser levada em consideração a vulnerabilidade social a
que muitas delas estão expostas. Vale ressaltar que existe possibilidade
de transmissão de HIV através de lesões orais causadas pelos cachim-
bos. O uso de crack também tem sido associado diretamente a outras
DSTs, como gonorreia, sífilis e HTLV-1 (vírus pertencente à mesma
família do HIV), entre outras.

Um estudo recente realizado no Rio de Janeiro e em Salvador


com jovens usuários de crack contatados na rua mostrou que eles
expressam grande demanda de serviços sociais e de saúde, mas têm
muitas dificuldades para acessar estes serviços. Comportamentos de
risco para DST e HIV são muito frequentes entre usuários de crack em
situação de rua que apresentam taxas de infecção por HIV (3,7 % no
Rio de Janeiro e 11,2 % em Salvador), bem maiores que a taxa da popu-
lação em geral (menos de 1%).

SAIBA MAIS
Um estudo anterior realizado em Salvador havia mostrado
que a prevalência de HIV entre usuárias de crack era de 1,6%, per-
centual maior que a prevalência brasileira (0,47%), porém menor
que em estudos realizados com usuários de drogas não injetáveis
na cidade de São Paulo (11%). Esse estudo atribuiu esse achado às
ações de redução de danos que ocorrem nas proximidades do local
de seleção das entrevistadas. Esse mesmo estudo apontou que
cerca de um terço das entrevistadas já haviam tido relações sexuais
em troca de dinheiro ou droga.

193
MÓDULO III
Fome, sono e sexo
O uso de crack pode diminuir temporariamente a necessidade
de comer e dormir. Muitas vezes os usuários saem em “jornadas” onde
consomem a droga durante dias seguidos. Frequentemente, a alimen-
tação e o sono ficam prejudicados, ocorrendo um processo de emagre-
cimento e esgotamento físico. Os hábitos básicos de higiene também
podem ficar comprometidos. O crack pode aumentar o desejo sexual
no início, porém, com o uso continuado da droga, o interesse e a
potência sexual diminuem.

Gravidez (gestante e bebê)


O crack, quando consumido durante a gestação, chega à cor-
rente sanguínea aumentando o risco de complicações tanto para a mãe
quanto para o bebê. Para a gestante, aumenta o risco de descolamento
prematuro de placenta, aborto espontâneo e redução da oxigenação
uterina. Para o bebê, o crack pode reduzir a velocidade de crescimento
fetal, o peso e o perímetro cefálico (diâmetro da cabeça) ao nascimen-
to. Há ainda riscos de má-formação congênita, maior risco de morte
súbita na infância, alterações comportamentais e atraso no desenvolvi-
mento. O crack também passa pelo leite materno, assim, a amamenta-
ção não é recomendada.

Associação com bebidas alcoólicas


Se o crack for fumado associado ao consumo de bebidas alcoó-
licas, as duas substâncias podem se combinar formando a cocaetileno.
Essa substância tóxica produz um efeito mais intenso que o crack sozi-
nho e aumenta o risco de complicações fatais.

194
UNIDADE 9
Intoxicação por metal
Quando o consumo de crack é feito em latas, além do vapor da
droga, o alumínio se desprende com facilidade da lata aquecida e tam-
bém é aspirado. O alumínio é um metal que se espalha pela corrente
sanguínea e é capaz de causar danos ao organismo decorrentes da into-
xicação pelo metal.

Outros
Várias situações já foram relacionadas ao uso de crack, como
lesões do fígado, dos rins, dos músculos, infecções oculares, lesões de
córnea e queimaduras nas mãos, na boca, no nariz e no rosto.

Danos psíquicos
Alterações cognitivas
O crack afeta o cérebro de diversas maneiras. A ação vasocons-
trictora (contração dos vasos sanguíneos) diminui a oxigenação cere-
bral alterando-o tanto estruturalmente quanto funcionalmente. O uso
do crack pode prejudicar as habilidades cognitivas envolvidas especi-
almente com a função executiva e com a atenção. Este comprometi-
mento altera a capacidade de solução de problemas, a flexibilidade
mental e a velocidade de processamento de informações.

Alguns efeitos revertem rapidamente e outros persistem por


semanas, mesmo depois da droga não ser mais detectável no cérebro. A
reversibilidade destes efeitos com a abstinência prolongada ainda é
incerta. As alterações cognitivas devem ser levadas em conta no plane-
jamento do tratamento destes pacientes. O prejuízo cognitivo pode
195
MÓDULO III
interferir na adesão destes pacientes ao tratamento proposto e na ela-
boração de estratégias de enfrentamento de situações de risco.

Quadros psiquiátricos
As complicações psiquiátricas são o principal motivo de busca
por atenção médica e podem decorrer tanto da intoxicação aguda
quanto da abstinência. A prevalência de transtornos mentais é maior
entre usuários de crack se comparada a usuários de cocaína inalada.

Outro diagnóstico, além dos problemas relacionados ao uso de


crack, é chamado de comorbidade. A depressão e a ansiedade são as
comorbidades psiquiátricas mais recorrentes, atingindo quase metade
dos usuários. Os transtornos de personalidade mais prevalentes entre
usuários de drogas são o dissocial (ou antissocial) e o com instabilidade
emocional. Sintomas paranoides, na maior parte das vezes transitórios,
são observados com frequência. O usuário de crack utiliza o álcool de
modo menos frequente e pesado que o usuário de cocaína inalada. A
maconha muitas vezes é utilizada com intuito de reduzir a inquietação
e a fissura decorrentes do uso de crack.

A presença de uma comorbidade piora o prognóstico de ambos


os quadros. Estudos recentes também têm relatado dificuldades entre
pacientes em abstinência de cocaína na “regulagem das emoções” (re-
ferindo-se à capacidade de entender e integrar as emoções com outras
informações cerebrais) e também no controle de impulsos.

Consequências sociais
Em São Paulo, um estudo com trabalhadoras do sexo que usam
crack, mostrou que a maioria destas mulheres é jovem, mãe, com baixa

196
UNIDADE 9
escolaridade, vive com familiares ou parceiros e se sustenta sozinha. A
maioria trocava sexo por crack diariamente (de um a cinco parceiros
por dia), não escolhia o parceiro, o tipo de sexo nem exigia o uso da
camisinha. Outro estudo sobre mulheres trabalhadoras do sexo em
Santos mostrou a associação entre uso do crack, uso de cocaína injetá-
vel e positividade para o HIV.

Também em São Paulo, um estudo de seguimento (follow-up)


de cinco anos com 131 pacientes que estiveram internados mostrou
que 18% morreram no período estudado. A taxa de mortalidade anual
(2,5%) era sete vezes maior que a da população geral da cidade. A maio-
ria dos que morreram eram homens com menos de 30 anos, solteiros e
com baixa escolaridade. As causas externas foram responsáveis por
69% destas mortes, sendo 56,6% por homicídio, 8,7% por overdose e
4,3% por afogamento. Entre as causas naturais (não externas), 26,1%
foram por HIV/AIDS e 4,3% por Hepatite B.

Abordagens terapêuticas
O tratamento da dependência do crack reside, em sua maior
parte, em abordagens psicoterápicas e psicossociais. Os resultados de
pesquisas sobre o uso de medicações no tratamento da dependência
do crack são apresentados a seguir, tornando clara sua pouca eficácia,
pelo menos até o momento. Além disso, a hospitalização, quando
necessária, não é suficiente no tratamento destes quadros. Deve ser
feita uma avaliação abrangente, considerando a motivação do paciente
para o tratamento, seu padrão de uso da droga, comprometimentos
funcionais e problemas clínicos e psiquiátricos associados.
Informações de familiares e amigos podem ser acrescentadas.
Condições médicas e psiquiátricas associadas devem ser tratadas de
maneira específica.
197
MÓDULO III
Farmacoterapia
Apesar de grande quantidade de estudos científicos ter pesqui-
sado os tratamentos farmacológicos para dependência de cocaína,
incluindo estudos recentes específicos para a dependência de crack,
até o momento não existe qualquer medicação aprovada especifica-
mente para o tratamento da dependência de cocaína seja em pó ou sob
forma de crack.

Pacientes dependentes de cocaína mantêm o uso de forma com-


pulsiva mesmo sabendo que isto pode lhes trazer graves prejuízos.
Tentando modificar este quadro, diversas medicações têm sido estu-
dadas para o tratamento da dependência, mas sem sucesso. O uso de
antipsicóticos não traz benefícios, não produz controle de efeitos cola-
terais, não reduz a vontade (fissura) de usar a droga nem diminui a
quantidade consumida de cocaína durante o tratamento.

Vários anticonvulsivantes e diversos antidepressivos já foram


estudados e também não se mostraram eficazes. O estudo de psicoesti-
mulantes mostrou resultados inconclusivos, sem redução do uso, mas
com algumas substâncias mostrando tendência de aumento do perío-
do de abstinência.

É importante lembrar que embora não existam, no momento,


medicações que diminuam a vontade de usar o crack, a prescrição des-
sas pode ser indicada para o tratamento das intoxicações, sintomas de
abstinência e principalmente para o tratamento das comorbidades.
Assim, se um usuário de crack melhora de um possível quadro depres-
sivo com o uso de um antidepressivo, ele tem melhor resultado no tra-
tamento da dependência do crack.

Abordagem psicossocial
A revisão dos estudos científicos realizada pela Agência
Nacional para Tratamento do Uso Prejudicial de Substâncias da Grã

198
UNIDADE 9
Bretanha em 2002, já enfatizava que há evidências de tratamentos efi-
cientes para dependência do crack. De fato, os autores afirmam que tra-
tar a dependência de crack não é difícil nem necessariamente implica
em habilidades totalmente novas.

O que é essencial compreender é que as abordagens terapêuti-


cas incluem não apenas os aspectos médicos ou biológicos, mas ações
que privilegiem o contexto socioemocional dos indivíduos envolvi-
dos. Como já foi descrito, não há medicações que por si só tratem a
dependência do crack. Tanto para o tratamento e reinserção social
quanto para as atividades de prevenção é indispensável realizar ações
que aumentem a vinculação daqueles que usam a droga aos serviços e
profissionais de saúde.

Por este motivo, é importante saber que usuários de crack pro-


curam tratamento com mais frequência em serviços informais, dirigi-
dos para as suas necessidades, que contam com pessoas que conhecem
os problemas com o crack e as demandas dos usuários, que podem,
inclusive, ser promovidos por ex-usuários. Há múltiplos serviços que
os usuários podem acessar sem agendamento prévio, como os Centros
de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), redes de usuári-
os, como os Narcóticos Anônimos (NA), e linhas telefônicas 24h,
como o serviço LIGUE 132. Esses dispositivos podem ser usados para
aumentar seu acesso ao tratamento.

Intervenções psicossociais sem prescrição de medicações,


mas com aconselhamento extra-hospitalar, têm boa relação custo
benefício para pacientes sem complicações. No entanto, para pacien-
tes com quadros mais graves de dependência, abordagens psicotera-
pêuticas individuais ou em grupo são igualmente eficientes. Pacientes
com múltiplas necessidades respondem melhor à abordagem em
grupo em um esquema intensivo e com atividades práticas. Nos casos
em que o paciente não tiver suporte social e tiver problemas psíquicos
graves, a internação pode ser necessária.
199
MÓDULO III
Pacientes que têm suas necessidades abordadas por profissio-
nais empáticos têm melhores resultados. Em um estudo de revisão, os
autores afirmam que a abstinência precoce é fortemente relacionada à
abstinência persistente. Uma vez que parte dos pacientes chega enca-
minhada pela Justiça, é importante ampliar e aperfeiçoar a discussão
sobre os problemas com drogas com os profissionais do judiciário.

Como o uso de álcool associado é muito comum, assim como


os problemas familiares, psicológicos e físicos, é importante que as ins-
tituições ofereçam tratamento para estes problemas adicionais que
têm de ser enfocados, pois são determinantes na evolução do trata-
mento do usuário. Por exemplo, uma pessoa que usa crack e que, após
interromper o uso, volta a beber, tem enorme chance de recair com o
crack, assim como uma pessoa que só usa crack após ter bebido (“efei-
to gatilho”) deve interromper o uso do álcool também. A recuperação
mantida permite a reconstrução de laços afetivos e sociais.

Muitos usuários veem um lugar para onde ir como um primeiro


passo na busca por tratamento. Por isso, locais que oferecem atendi-
mento para outros problemas (de saúde mental, emergência ou servi-
ços sociais) são uma ótima fonte de informações sobre serviços para
dependência de álcool e outras drogas.

As consequências sociais como parte do impacto


do uso de drogas
A discussão sobre os pressupostos para a implantação de políti-
cas públicas na área de álcool e outras drogas se faz necessária devido à
intensificação do uso de crack e outras drogas no espaço urbano. Para
tal, é importante nos familiarizarmos com conceitos como reabilita-
ção psicossocial e desfiliação e com a discussão acerca dos modelos asi-
lar e psicossocial presentes na cultura brasileira.
200
UNIDADE 9
A necessidade de integrar a dimensão social dos problemas
com o crack reflete a compreensão da relevância desta dimensão tanto
em sua origem quanto nas propostas de abordagem. O foco desta
dimensão social é a violência e a miséria. A violência está dramatizan-
do sintomas da sociedade e a droga ocupa esse mesmo lugar, dessa for-
ma, é natural que ela siga as mudanças culturais, como é o exemplo da
presença do crack hoje, uma droga presente em diversas comunidades,
em espaços insalubres onde há associação direta com a exploração
sexual de crianças e adolescentes.

Crianças, adolescentes e jovens passam a ser expulsos das


comunidades onde vivem, muitas vezes porque não tem mais dinhei-
ro para pagar pela droga, passaram a cometer furtos ou foram rechaça-
dos por moradores de áreas consideradas nobres da cidade devido ao
fato de fazerem uso de crack nas calçadas da cidade, pois alguns trafi-
cantes não permitem a utilização dessa droga nas suas áreas de domí-
nio. Um exemplo importante aconteceu em um bairro da Zona Sul da
cidade do Rio de Janeiro. Depois de uma ação isolada de repressão,
diversos jovens passaram a usar o crack diante dos moradores do bair-
ro e estes jogaram água sobre os usuários, o que nos remete à ideia de
“higienização” social. Entendemos que esses jovens denunciam
diversos movimentos: o do tráfico de drogas, a sociedade excludente
e uma gestão da miséria, por isso, passam a incomodar, chegando a
viver como “refugiados em seus territórios de vida”.
Como fala o diretor do
Núcleo de Direitos Huma-
nos da SMAS/RJ, o médico
sanitarista Marcelo Cu-
Desinstitucionalização e reabilitação psicossocial
nha.
Aqui se fala em desinstitucionalização do espaço urbano, pois
da mesma forma que os manicômios foram criados para excluir a lou-
cura do espaço urbano, agora há um movimento de promover exclusão
social em alguns espaços da cidade. A institucionalização da população

201
MÓDULO III
de rua não se dá via espaço físico, no sentido de um estabelecimento,
como o manicômio. A desinstitucionalização do espaço urbano pode
ser compreendida a partir de Saraceno (1999), que afirma que o mani-
cômio e sua lógica não estão nas arquiteturas dos espaços ou em luga-
res abertos ou fechados, mas na forma como os sujeitos se posicionam.

Portanto, é necessário estar atento à lógica manicomial, aquela


que institui a negação do uso da palavra, do próprio corpo, dos objetos
pessoais, do direito ao uso do espaço doméstico e da casa, de ir e vir etc.
A rua hoje passa a ser um espaço de clausura para muitos que não
podem mais circular em seus territórios de origem. Assim, percebe-se
a importância de políticas intersetoriais com Saúde, Educação,
Assistência Social etc. articuladas. A reabilitação psicossocial está
estreitamente relacionada à ideia de casa ou do morar e diferencia o
estar e o morar. Um dos elementos fundamentais na qualidade de vida
de um indivíduo e de sua capacidade contratual (capacidade de pro-
mover trocas sociais) é representado pelo quanto “estar” em determi-
nado lugar se transforma em “habitar” esse lugar. O estar se refere a
uma mera ocupação do espaço por parte do indivíduo, já o habitar, à
capacidade de se ampliar a contratualidade, tanto em relação à organi-
zação material como simbólica dos espaços, dos objetos e das relações
afetivas.

Utilizamos o conceito de reabilitação psicossocial como instru-


mento para o monitoramento e avaliação dos serviços implantados.

Segundo Saraceno, reabilitação seria “um conjunto de estraté-


gias adotadas com o objetivo de aumentar as possibilidades de trocas
de recursos e de afetos e que, só a partir de uma dinâmica de trocas, se
cria um efeito habilitador”.

Muitos usuários de drogas são expulsos de suas comunidades


por regras estabelecidas pelo tráfico ou pela milícia. Dessa forma, a rua

202
UNIDADE 9
passa a se constituir enquanto espaço para os “desfiliados”. Estes não
contam mais com estruturas sociais como família, comunidade e
pátria.

A desfiliação surge como uma ruptura em relação às normas de


reprodução social hegemônicas que controlam a inscrição social. O tra-
balho sustentável e a sociabilidade sociofamiliar são os principais res-
ponsáveis pela integração e inserção. A ausência desses dois elementos
caracteriza a situação de desfiliação, “um modo particular de dissocia-
ção do vínculo social”. A zona de integração seria aquela em que o suje-
ito dispõe de garantias de um trabalho permanente e que conta com
suportes relacionais sólidos; a zona de vulnerabilidade “associa preca-
riedade do trabalho e fragilidade relacional” e a zona de desfiliação
“conjuga ausência de trabalho e isolamento social”.

A desfiliação denota a não inscrição nas regras da filiação e da


reprodução, bem como nas relações sociais hegemônicas, que pode se
dar pela negação dos indivíduos ou pela falta de oportunidade deste
acesso. Isso ocorre quando crianças e adolescentes em situação de rua
chegam a espaços ditos de cuidado e sequer são recebidos ou são
expulsos de forma simbólica, com alegações de que não se adequaram
ao modelo estabelecido. A criminalização das pessoas que usam dro-
gas ilícitas torna muito difícil sua chegada e permanência nos serviços
de saúde, educação e assistência, dentre outros, mesmo de caráter
comunitário. Quando o pertencimento social é negado ou abandona-
do, a violência pode se constituir enquanto uma alternativa de vida.
Ela é evidenciada no aniquilamento, exclusão ou abuso do outro, seja
ele um indivíduo, um grupo ou uma comunidade. Assim, a violência
não envolve apenas o uso de força física, mas também a negação de
direitos sociais. A abordagem psicossocial está radicalmente presente
nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). As considerações do
modo psicossocial sobre formas de sofrimento vão para além da noção

203
MÓDULO III
de doença. Por isso, os recursos usados na atenção também precisam ir
muito além dos recursos medicamentosos, com atividades em grupos,
atendimentos individuais, oficinas de geração de renda, entre outros, o
que justifica a lógica da redução de riscos e danos presente em tais dis-
positivos de saúde.

Conclusão
Para concluirmos este capítulo sobre o crack em uma perspecti-
va psicossocial é importante reforçar que a abordagem ao usuário deve
considerar não somente os sintomas e os efeitos da droga em seu corpo
e psiquismo, mas também os fatores sociais e culturais presentes em
seu contexto, que, em algumas situações, podem se configurar como
fatores de risco ou, em outras, como fatores de proteção para o uso de
crack. O desafio dos profissionais da área de saúde se situa na capaci-
dade de olhar o usuário de forma integral, compreendendo seu con-
texto social e identificando as situações de vulnerabilidade a que este
está exposto, para que, assim, seja possível otimizar as potencialidades
e minimizar os riscos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACKERMAN, J. P.; RIGGINS, T.; BLACK, M. M. A review of the effects of prenatal


cocaine exposure among school-aged children. Pediatrics, v. 125, n. 3, p. 554-565,
2010.
AFONSO, L.; MOHAMMAD, T.; THATAI, D. Crack whips the heart: a review
of the cardiovascular toxicity of cocaine. American Journal of Cardiology, v. 100,
n. 6, p. 1040-1043, 2007.

204
UNIDADE 9
AMATO, L. et al. Antipsychotic medications for cocaine dependence. The Cochrane
database of systematic reviews, v. 3, 18 jul. 2007.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA. Abuso e dependência: crack.
Revista da Associação Médica Brasileira, São Paulo, vol. 58, no. 2, mar./abr. 2012.
BAUM, M. K. et al. Crack-cocaine use accelerates HIV disease progression in a cohort of
HIV-positive drug users. Journal of Acquired Immune Deficiency Syndromes, vol.
50, n. 1, p. 93-99, 1 jan. 2009.
CARLINI, E. A.; GALDUROZ, J. C. (Coord.). I Levantamento domiciliar sobre o
uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 107 maiores cidades do
país – 2001. São Paulo: SENAD/CEBRID, 2002.
______. II Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no
Brasil: estudo envolvendo as 108 maiores cidades do país – 2005. São Paulo:
SENAD/CEBRID, 2005.
CASTEL, R. Da indigência à exclusão, a desfiliação: precariedade do trabalho e
vulnerabilidade relacional. In: LANCETTI, A. (Org.). Saúde e loucura 4: grupos e
coletivos. São Paulo: HUCITEC; 1994.
______. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Rio de
Janeiro: Vozes; 1998.
CASTELLS, X. et al. Efficacy of psychostimulant drugs for cocaine dependence. The
Cochrane database of systematic reviews, vol. 2, 17 fev. 2010.
CHEN, C.Y.; ANTHONY, J. C. Epidemiological estimates of risk in the process of
becoming dependent upon cocaine: cocaine hydrochloride powder versus crack
cocaine. Psychopharmacology, vol. 172, n. 1, p. 78-86, 2004.
COSTA, J. F. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
CRUZ, M. S. Cocaína. In: Egypto, A. C. et al. (Org.). Tá na roda: uma conversa sobre
drogas. São Paulo: J. Sholna, 2003. p. 159-171.
______. O crack e sua espiral compulsiva. O Estado de São Paulo, São Paulo, 12
jul. 2009.
DACKIS, C. A.; O'BRIEN C. P. Cocaine dependence: a disease of the brain's reward
centers. Journal of Substance Abuse Treatment, vol. 21, n. 3, p. 111-117, 2001.
DI SCLAFANI, V. et al. Neuropsychological performance of individuals dependent on
crack-cocaine, or crack-cocaine and alcohol, at 6 weeks and 6 months of abstinence.
Drug and Alcohol Dependence, vol. 66, n. 2, p. 161-171, 2002.
DUAILIBI, L. B.; RIBEIRO, M.; LARANJEIRA, R. Profile of cocaine and crack users
in Brazil. Cadernos de Saúde Pública, vol. 24, n. 4, p. 545-547, 2008.
FALCK, R. S. et al. The prevalence of psychiatric disorder among a community sample
of crack cocaine users: an exploratory study with practical implications. The Journal
of Nervous and Mental Disease, vol. 192, n. 7, p. 503-507, 2004.

205
MÓDULO III
FOX, H. C. et. al. Difficulties in emotion regulation and impulse control during cocaine
abstinence. Drug and Alcohol Dependence, vol. 89, n. 2-3, p. 298-301, 2007.
GALDURÓZ, J. C. F. et. al. V Levantamento nacional sobre o consumo de drogas
psicotrópicas entre estudantes do ensino fundamental e médio da rede pública
de ensino nas 27 capitais brasileiras – 2004. São Paulo: SENAD/ CEBRID, 2004.
GOLDBERG, J. Clínica da psicose: um projeto na rede pública. Rio de Janeiro: Te
Corá; Instituto Franco Basaglia, 1996.
GOLDER, S.; LOGAN, T. K. Correlates and predictors of women's sex trading over
time among a sample of out-of-treatment drugs abusers. AIDS and Behavior, vol. 11,
n. 4, p. 628-640, 2007.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis:
Vozes, 1986.
HAASEN, C. et al. Relationship between cocaine use and mental health problems in a
sample of European cocaine powder or crack users. World Psychiatry, vol. 4, n. 3, p.
173-176, 2005.
HAIM, D. Y. The pulmonary complications of crack cocaine: a comprehensive review.
Chest, vol. 107, n. 1, p. 233-240,1995.
HOFF, A. L. et al. Effects of crack cocaine on neurocognitive function. Psychiatry
Research, vol. 60, n. 2-3, p. 167-176, 1996.
KAEZ, R. A instituição e as instituições. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991.
LIMA, M. S. de et al. Withdrawn: antidepressants for cocaine dependence. The
Cochrane database of systematic reviews, vol. 17, n. 2, 2010.
MAGALHÃES, M. P.; BARROS, R. S.; SILVA, M. T. A. Uso de drogas entre
universitários: a experiência da maconha como fator delimitante. ABP-APAL, vol.
13, p. 97-104, 1991.
MINAYO, M. C. S. A Violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cadernos
de Saúde Pública, vol. 10, n. 1, p. 7-18, 1994.
MINOZZI, S. et al. Anticonvulsants for cocaine dependence. The Cochrane
database of systematic reviews, vol. 2, 16 abr. 2008.
NAPPO, A. S. et al. Comportamento de risco de mulheres usuárias de crack em
relação a DST/AIDS. São Paulo: CEBRID; 2004.
NIDA – National Institute on Drug Abuse. Disponível em: html>http://
www.drugabuse.gov/sites/default/files/cocainerrs.pdf>. Acesso em: 25/02/2015.
NATIONAL TREATMENT AGENCY FOR SUBSTANCE MISUSE. Research
into practice 1b, ago. 2002. Disponível em: <http://ibrarian.net/navon/
paper/Commissioning_cocaine__crack_treatment.pdf?paperid=3506566>.
Acesso em: 25/02/2015.
NESTLER, E. J. The neurobiology of cocaine addiction. Science & Practice
Perspectives, vol. 3, n. 1, p. 4-10, 2005.

206
UNIDADE 9
NOTO, A. R. et al. Levantamento nacional sobre o uso de drogas entre crianças e
adolescentes em situação de rua nas 27 capitais brasileiras – 2003. São Paulo:
SENAD/CEBRID, 2003.
NUIJTEN, M. et, al. Cocaine Addiction Treatments to improve Control and reduce Harm
(CATCH): new pharmacological treatment options for crack-cocaine dependence in the
Netherlands. BMC Psychiatry, vol. 11, p. 135, 19 ago. 2011.
NUNES, C. L. et al. Assessing risk behaviors and prevalence of sexually transmitted
and blood-borne infections among female crack cocaine users in Salvador, Bahia,
Brazil. Brazilian Journal of Infectious Diseases, vol. 11, n. 6, p. 561-566, 2007.
OLIVEIRA, L. G. et al. Neuropsychological assessment of current and past crack
cocaine users. Substance Use & Misuse, vol. 44, n. 13, p. 1941-1957, 2009.
PECHANSKY, F. et. al. Brazilian female crack users show elevated serum aluminum
levels. Revista Brasileira de Psiquiatria, n. 1, p. 39-42, 2007.
RAMÔA, M. O grupo de autoajuda em dois contextos: alcoolismo e doença
mental. 1999. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Departamento de Psicologia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.
______. Desinstitucionalização da clínica na reforma psiquiátrica: um estudo
sobre o projeto CAPSad. 2005. Tese (Doutorado em Psicologia) – Departamento de
Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
SACHS, R.; ZAGELBAUM, B. M.; HERSH, P. S. Corneal complications associated
with the use of crack cocaine. Ophthalmology, vol. 100, n. 2, p. 187-191, 1993.
SARACENO, B. Libertando identidades. Rio de Janeiro: Te Corá; Instituto Franco
Basaglia, 1999.
SILVA, N. G. Fatores associados à infecção por HIV entre trabalhadoras do
sexo na cidade de Santos. 2004. Dissertação (Mestrado em Epidemoiologia) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.
SOARES, B. et. al. Withdrawn: dopamine agonists for cocaine dependence The
Cochrane database of systematic reviews, vol. 17, n. 2, 2010.
TREADWELL, S. D.; ROBINSON. T. G. Cocaine use and stroke. Journal of
Postgraduate Medicine, vol. 83, n. 980, p. 389-394, 2007.
WILSON, T.; DEHOVITZ, J. A. STD's, HIV, and crack cocaine: a review. AIDS
Patient Care and STDs, vol. 11, n. 2, p. 62-66, 1997.
ZALUAR, A. Condomínio do diabo. Rio de Janeiro: Revan; UFRJ, 1994.
CRUZ, M. S. et. al. Key drug use, health and socio-economic characteristics of young
crack users in two Brazilian cities. The International Journal on Drug Policy, vol.
24, n. 5, p. 432-438, set. 2013. No prelo.

207
MÓDULO III
RESUMO DA AULA

No Brasil, o consumo cresceu principalmente entre crianças,


adolescentes e adultos em situação de rua. Em muitos aspectos, o con-
sumo de crack e os problemas relacionados a ele não são diferentes do
que ocorre com outras drogas, mas há diferenças que devem ser mais
bem exploradas. O crack é a via mais rápida de fazer que a droga che-
gue ao cérebro e, provavelmente, essa é a razão para a rápida progres-
são para a dependência, caracterizada pela perda de controle do uso e
por prejuízos decorrentes do consumo da droga. O uso de crack não
causa efeitos apenas sobre o organismo de maneira direta, mas tam-
bém está associado a outros problemas, como a prostituição, o sexo
desprotegido (que implica doenças sexualmente transmissíveis) e
outras consequências sociais.

Um bom exemplo de abordagem psicossocial será descrito e


servirá como base para desenvolvermos outros planos de ação para
que seja possível reduzir o uso dessa substância e os problemas relacio-
nados a ela.

Este é o fim do módulo sobre drogas, no qual você aprendeu:

• a definição de droga, sua classificação e seus efeitos no orga-


nismo;

• os conceitos de uso, abuso (uso nocivo) e dependência de


substâncias psicotrópicas;

• os conceitos de epidemiologia e dados recentes sobre o con-


sumo de drogas no Brasil.

No próximo módulo, discutiremos sobre o tratamento do uso


prejudicial de drogas.
208
UNIDADE 9
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. “O crescimento do consumo de crack e dos problemas a ele


relacionados constitui, atualmente, um grande desafio para a
implementação de uma política de atenção aos problemas com
drogas no Brasil. Esse desafio exige respostas eficazes do governo e da
sociedade na construção de um programa de intervenção integrada
que inclua ações de promoção da saúde e de conscientização e
informação sobre os riscos do uso de crack.” Entre os danos deletérios
do crack, os físicos parecem ser importantíssimos por realmente
tornarem o indivíduo incapacitado em suas atividades. Focando a
substância, qual é o principal fator que determina o aumento da
fissura e necessidade de consumo imediato?

a. A forma fumada da cocaína apresenta tempo de ação mais


lento que as formas cheirada e injetada.

b. As formas cheirada e injetada da cocaína apresentam tempo


de ação mais lento que a forma fumada.

c. Tanto a forma fumada como as cheirada e injetada apre-


sentam mesmo tempo de ação aos efeitos; não há diferença
entre elas.

d. Todas as anteriores.

e. N. D. A.

2. Sobre as alterações cognitivas causadas pelo crack, é correto


afirmar:

a. Prejudica as habilidades cognitivas envolvidas especialmen-


te com a função de planejamento, tomada de decisões e aten-
ção, alterando a capacidade de solução de problemas.

b. Aumenta o controle de impulsos.

209
MÓDULO III
c. Não prejudica a adesão dos pacientes ao tratamento propos-
to e a elaboração de estratégia de enfrentamento de situações
de risco.

d. Todos os efeitos se revertem rapidamente.

e. N. D. A.

210
MÓDULO IV
TRATAMENTO DO USO PREJUDICIAL DE DROGAS

Neste módulo, o tema abordado é o tratamento do uso


prejudicial de drogas, desde seus princípios até o
detalhamento de algumas técnicas de intervenção,
dividido em:

Unidade 10 – Modelos de tratamento

Unidade 11 – Entrevista motivacional e intervenção


breve para usuários de drogas
UNIDADE 10

MODELOS DE TRATAMENTO
• Princípios gerais do tratamento das dependências químicas

• Elementos da avaliação do indivíduo

• Manejo psiquiátrico

• Tratamentos específicos

• Regime de tratamento

• Características clínicas que influenciam o tratamento

• Principais modelos de tratamento

• Considerações sobre internação psiquiátrica


e a nova lei sobre drogas

IV
MODELOS DE TRATAMENTO
Sandra Scivoletto
Rogerio Shigueo Morihisa

Introdução
Em razão de sua etiologia multifatorial, envolvendo aspectos
individuais, biológicos, psicológicos, sociais e culturais, os transtor-
nos por uso de substâncias psicoativas apresentam ampla variedade
de propostas de tratamento.

Embora a relação problemática entre as drogas e o indivíduo já


venha sendo estudada e debatida como uma questão de saúde nos
últimos dois séculos, os tratamentos especializados para a dependên-
cia de drogas começaram a surgir somente no século XIX.

No Brasil, há algumas décadas, os tratamentos para dependen-


tes de substâncias psicoativas estavam restritos às internações de
longa duração em comunidades terapêuticas que seguiam as diretri-
zes dos grupos de ajuda mútua e, em outros casos, às internações
hospitalares e aos consultórios particulares, basicamente direciona-
dos à desintoxicação. Com o avanço das ciências que estudam os
fenômenos mentais, observaram-se a descoberta de importantes
medicamentos e a comprovação da eficácia de numerosas técnicas
terapêuticas psicossociais.

Aqui serão apresentadas, de maneira resumida, as principais


abordagens terapêuticas e modelos de tratamento para abuso e
dependência de álcool e outras drogas. Ao final, um caso clínico
fictício procura ilustrar uma proposta de tratamento multimodal, ou
seja, que envolva a utilização de múltiplas modalidades de tratamen-
to, e multidisciplinar.

215
MÓDULO IV
Princípios gerais do tratamento das dependências
químicas
O tratamento de indivíduos com abuso e dependência de
drogas inclui a realização de uma avaliação completa, o tratamento
dos sintomas de intoxicação e da abstinência quando necessário, a
avaliação da presença de comorbidades psiquiátricas e das condições
médicas gerais e o desenvolvimento e implementação de um plano de
tratamento. As metas do tratamento dependem da faixa etária do
indivíduo e do grau de comprometimento. Podem variar desde a
abstinência completa de qualquer psicotrópico (especialmente para
os mais jovens, que ainda estão em fase de desenvolvimento neuroló-
gico e cognitivo), passando pela redução do consumo e dos efeitos de
tais substâncias, assim como da frequência e da gravidade da recaída,
até a melhora no funcionamento psicológico e social.

Segundo o National Institute on Drug Abuse (NIDA), dos


Estados Unidos, os princípios para um tratamento eficaz são os
seguintes:

1. Não há um tratamento único que seja apropriado


a todos os indivíduos.
É imprescindível que a proposta terapêutica seja individualiza-
da, com a combinação adequada de modalidades de intervenção que
objetivem tratar os problemas e necessidades de cada indivíduo,
contribuindo, assim, para o sucesso do tratamento e para a reinserção
familiar, social e laboral.

2. O tratamento deve estar sempre disponível.


Visto que os indivíduos com abuso ou dependência de drogas
apresentam-se, muitas vezes, ambivalentes quanto a iniciar ou não o

216
UNIDADE 10
tratamento, é importante estar disponível quando eles sinalizam estar
prontos para tal. Candidatos potenciais ao tratamento podem perder
a oportunidade de iniciá-lo caso o serviço não esteja disponível ou não
seja acessível com facilidade.

3. O tratamento efetivo deve contemplar as várias


necessidades da pessoa e não somente seu uso de drogas.

Para ser eficaz, o tratamento tem de abordar o uso de drogas e


quaisquer problemas médicos, psicológicos, sociais, vocacionais e legais
associados, especialmente no caso de adolescentes.

4. A proposta terapêutica deve ser continuamente


avaliada e, se necessário, modificada para assegurar que
se mantenha atualizada de acordo com as necessidades
do indivíduo.

Durante o tratamento, além do aconselhamento ou psicotera-


pia, o indivíduo também pode necessitar de medicamentos, outros
serviços médicos, terapia e orientação familiar, reabilitação vocacio-
nal ou ocupacional e outras orientações ou serviços sociais e legais. É
fundamental que o tratamento seja apropriado à idade, gênero, grupo
étnico e cultural.

5. É importante que o indivíduo permaneça no tratamento


durante um período adequado.

A duração apropriada do tratamento depende dos problemas e


necessidades de cada indivíduo. Pesquisas indicam que, na maioria
das vezes, uma melhora significativa é alcançada depois de três meses
de tratamento. Após esse período, as abordagens adicionais podem

217
MÓDULO IV
promover um progresso mais rápido para a recuperação. Visto que os
pacientes abandonam o tratamento prematuramente, os programas
deveriam incluir estratégias que mantenham os indivíduos compro-
metidos com o tratamento.

6. O aconselhamento (individual ou em grupo) e outras


terapias comportamentais são componentes
indispensáveis para o tratamento eficaz da dependência.

Na terapia, os indivíduos abordam questões sobre motivação,


desenvolvem habilidades para resistir ao consumo de drogas,
substituem atividades relacionadas ao uso de drogas por outras
construtivas e recompensadoras e melhoram suas estratégias para
resolução de problemas. A terapia comportamental também facilita
as relações interpessoais e a reinserção na família e na comunidade.

7. Para muitos indivíduos, os medicamentos são um


importante elemento no tratamento, especialmente
quando combinados com aconselhamento e outras
terapias comportamentais.

A metadona e o levo-alfa-acetilmetadol (LAAM) são muito


eficazes no tratamento de indivíduos dependentes de heroína e
outros opioides, pois estabilizam sua vida e reduzem o consumo de
drogas. Naltrexona é uma medicação eficaz para dependentes de
opioides que também apresentam dependência de álcool. Para os
dependentes de nicotina, os produtos que repõem essa substância
(adesivos e gomas de mascar) ou a bupropiona podem ser compo-
nentes eficazes no tratamento. Para indivíduos com comorbidades
psiquiátricas, a combinação de terapia comportamental e medicação
pode ser crucial para o sucesso do tratamento.

218
UNIDADE 10
8. Indivíduos com abuso ou dependência de drogas
em comorbidade com outros transtornos mentais devem
ser tratados de maneira integrada.
Visto que o abuso ou dependência de drogas e os transtornos
mentais frequentemente ocorrem simultaneamente em um mesmo
indivíduo, ambos devem ser avaliados e tratados conjuntamente.
Muitos só conseguirão manter a abstinência se a outra patologia estiver
tratada adequadamente.

9. A desintoxicação é somente a primeira etapa


do tratamento para dependência e, por si só, pouco
modifica o consumo de drogas em longo prazo.
A desintoxicação médica trata os sintomas físicos agudos da
abstinência de maneira eficaz. Ainda que ela raramente seja, por si só,
suficiente para manter a abstinência por longo tempo, para alguns
indivíduos serve como poderoso precursor para um tratamento eficaz.

10. O tratamento não precisa ser voluntário para ser eficaz.


Uma forte motivação costuma facilitar o processo de tratamen-
to. Medidas compulsórias ou recompensas da família, do ambiente de
trabalho ou do sistema judiciário podem aumentar significativamente
a taxa de indivíduos que iniciam o tratamento e nele se mantêm, bem
como o sucesso do tratamento da dependência de drogas.

11. O possível uso de drogas durante o tratamento deve


ser monitorado continuamente.

Lapsos e recaídas no uso de drogas fazem parte do processo de


obtenção de abstinência – muitas técnicas para evitar recaídas fun-
cionam no início e perdem o efeito ao longo do tempo, precisando ser

219
MÓDULO IV
readequadas às mudanças no estilo de vida do paciente. O monitora-
mento objetivo do uso de drogas, incluindo, se necessário, testes
toxicológicos, em geral auxilia o indivíduo a se manter abstinente
durante o processo de tratamento. Tal supervisão pode, ainda, pro-
porcionar evidências precoces do consumo de drogas, possibilitando
a reavaliação da proposta de tratamento.

12. Os programas de tratamento devem incluir exames


para HIV/AIDS, hepatite B e C, tuberculose e outras
doenças infecciosas e aconselhamento para auxiliar o
indivíduo a modificar ou substituir os comportamentos
que colocam tanto ele quanto os outros em risco de
infecção.

O aconselhamento pode auxiliar indivíduos a evitar comporta-


mentos de risco para a saúde, além de ajudar aqueles já infectados a
manejar sua doença.

13. A recuperação da dependência de drogas pode ser um


processo longo e frequentemente requer múltiplas
tentativas de tratamento.

Como em outras doenças crônicas, é possível que ocorra


recaída durante ou após episódios bem-sucedidos de tratamento. Os
indivíduos com transtornos por uso de drogas podem precisar de
tratamentos prolongados e múltiplas tentativas de tratamento para
alcançar a abstinência por um longo período e um funcionamento
plenamente restabelecido. A participação em programas de ajuda
mútua durante e após o tratamento na maioria das vezes é útil para a
manutenção da abstinência.

220
UNIDADE 10
Recomendações da Associação Americana
de Psiquiatria
Os programas de tratamento eficazes para abuso e dependên-
cia de drogas tipicamente incorporam muitos componentes, cada um
direcionado a um aspecto particular da doença e suas consequências.

Existe extensa evidência de que o tratamento para dependência


de drogas é tão eficaz quanto os tratamentos para a maioria das
condições médicas crônicas. Porém, muitas pessoas não acreditam
nisso, em parte devido a expectativas irreais. Várias pessoas relacio-
nam a dependência a simplesmente usar drogas e, com isso, esperam
que o problema seja resolvido rapidamente. Se isso não ocorre, o
tratamento é falho. Entretanto, visto que a dependência é uma doença
crônica, o objetivo final de abstinência em longo prazo requer,
frequentemente, múltiplas e repetidas tentativas de tratamento.

A seguir, apresenta-se o resumo das recomendações com


substancial confiabilidade clínica da Associação Americana de Psi-
quiatria (APA, 2006) para o tratamento de indivíduos com transtor-
nos por uso de substâncias psicoativas. Essas recomendações aplicam-
-se perfeitamente à realidade brasileira.

1. Elementos da avaliação
A avaliação completa é essencial para guiar o tratamento do
indivíduo com abuso ou dependência de drogas.

A avaliação inclui:

a) história passada e presente detalhada do consumo de


drogas e efeitos destas no funcionamento cognitivo, psicológi-
co e comportamental do indivíduo;

b) avaliação médica e psiquiátrica geral;


221
MÓDULO IV
c) levantamento do histórico de tratamentos psiquiátricos
prévios;

d) avaliação familiar e social;

e) testes toxicológicos para drogas de abuso, quando necessá-


rios;

f) exames laboratoriais para investigar a presença de outras


condições médicas frequentemente coexistentes com trans-
tornos por uso de drogas;

g) obtenção de informações adicionais com familiares ou pes-


soas de seu convívio, quando autorizada pelo indivíduo.

2. Manejo psiquiátrico

O manejo psiquiátrico é primordial no tratamento de indiví-


duos com abuso ou dependência de drogas.

Os objetivos específicos são:

a) motivar o indivíduo à mudança;

b) estabelecer e manter uma aliança terapêutica;

c) monitorar o estado clínico do indivíduo;

d) tratar os quadros de intoxicação e abstinência;

e) desenvolver e facilitar a aderência à proposta terapêutica;

f) prevenir a recaída;

g) promover psicoeducação sobre abuso e dependência de


drogas;

h) reduzir as doenças e sequelas relacionadas.

222
UNIDADE 10
O manejo psiquiátrico é frequentemente associado a outras
abordagens, como comunidades terapêuticas, clínicas, programas de
desintoxicação e tratamentos ambulatoriais e de internação.

3. Tratamentos específicos
As abordagens farmacológica e psicossocial são geralmente
aplicadas em programas que combinam diferentes modalidades de
tratamento.

• Tratamentos farmacológicos
A abordagem farmacológica é benéfica para determinados
indivíduos com transtornos por uso de substâncias psicotrópicas,
sendo indicada para tratamento de outras patologias associadas ou
sintomas importantes causados pela dependência, como depressão,
ansiedade ou quadros psicóticos. Entretanto, medicações específicas
para diminuir a vontade de usar a droga ou controlar o impulso de
consumi-la ainda estão em fase de desenvolvimento, com resultados
controversos.

As categorias de tratamentos farmacológicos são:

a) medicações para tratar a intoxicação e os quadros de absti-


nência;

b) medicações para diminuir os efeitos que promovem ou


facilitam a autoadministração das drogas de abuso;

c) medicações que desencorajam o uso de drogas por induzir


consequências desagradáveis pela interação do medicamento
com a droga de abuso;

d) terapia de substituição por agonistas, ou seja, medicamen-


tos que competem pelos mesmos receptores em que age a dro-
ga de abuso;
223
MÓDULO IV
e) medicações para tratar outros transtornos psiquiátricos
associados.

• Tratamentos psicossociais
São um componente essencial no programa de tratamento dos
transtornos por uso de drogas. Os tratamentos psicossociais baseados
em evidência científica incluem: terapia cognitivo-comportamental
(prevenção de recaída, treinamento de habilidades), entrevista
motivacional, técnica dos Doze Passos, terapia psicodinâmi-
ca/interpessoal, grupos de ajuda mútua, intervenções breves, terapia de
grupo, terapia de casal e terapia familiar.

4. Formulação e implementação de um plano de tratamento


Os objetivos do tratamento e as modalidades terapêuticas
utilizadas para alcançá-los podem variar para cada indivíduo, bem
como para um mesmo indivíduo nas diferentes fases da doença. Visto
que a dependência é uma doença crônica, os indivíduos normalmente
necessitam de tratamentos longos, embora a intensidade e os compo-
nentes específicos do tratamento possam variar ao longo do processo.

O plano de tratamento inclui os seguintes componentes:

a) manejo psiquiátrico;

b) estratégias para alcançar a abstinência ou reduzir os efeitos


das substâncias de abuso;

c) esforços para aumentar a adesão ao programa de tratamen-


to, prevenir a recaída e melhorar o funcionamento global;

d) tratamentos adicionais necessários para indivíduos com


comorbidades clínicas ou psiquiátricas.

224
UNIDADE 10
A duração do tratamento deve ser definida de acordo com as
necessidades de cada indivíduo e pode variar de poucos meses a vários
anos. É importante intensificar o monitoramento do uso de drogas nos
períodos em que o indivíduo possa estar sob maior risco de recaída,
como nos estágios iniciais do tratamento, nos períodos de transição
para níveis de cuidado menos intensivo e no primeiro ano após o
tratamento ativo ter cessado.

5. Regime de tratamento

Varia de acordo com a disponibilidade de modalidades


específicas de tratamento, o grau de restrição de acesso às drogas, a
disponibilidade de cuidados médicos gerais e psiquiátricos e a
filosofia do tratamento a ser indicado.

Os indivíduos devem ser tratados em um ambiente seguro e


que seja o menos restritivo possível para que o tratamento seja eficaz.
Os regimes comumente disponíveis para tratamento incluem hospi-
tais, comunidades terapêuticas, hospitais-dia e ambulatórios. Deci-
sões acerca do regime de tratamento devem ser baseadas na capaci-
dade do indivíduo de cooperar com o tratamento oferecido e se
beneficiar dele, conter o uso de drogas e evitar comportamentos de
risco, bem como na necessidade de tratamentos específicos disponí-
veis somente em alguns regimes. Os indivíduos mudam de um nível
de cuidado a outro conforme os fatores acima e sua capacidade de se
beneficiar dos diferentes níveis de cuidado.

6. Características clínicas que influenciam o tratamento

O planejamento e a implementação do tratamento devem


considerar: as condições médicas gerais e a presença de comorbidades

225
MÓDULO IV
psiquiátricas, fatores relacionados ao gênero, idade, condição social e
de moradia, fatores culturais e características familiares. Dada a alta
prevalência de abuso e dependência de drogas em comorbidade com
outros transtornos psiquiátricos, é importante distinguir os sintomas
do uso de substâncias psicotrópicas daquelas relacionadas a outros
transtornos, providenciando tratamento específico, tanto farmacoló-
gico como psicoterápico, para o quadro comórbido .

Principais modelos de tratamento


1. Tratamentos psiquiátrico e farmacológico

O tratamento psiquiátrico é a base do tratamento para


indivíduos com abuso e dependência de drogas e tem os seguintes
objetivos específicos:
• Estabelecer e manter uma aliança terapêutica;
• Monitorar o estado clínico do indivíduo;
• Diagnosticar e tratar eventuais comorbidades;
• Tratar a intoxicação e os quadros de abstinência;
• Desenvolver e facilitar a aderência ao plano de tratamento;
• Prevenir recaídas;
• Promover psicoeducação sobre a doença;
• Reduzir doenças e sequelas associadas ao abuso e dependên-
cia de drogas.
O tratamento farmacológico, por sua vez, é um dos de menor
efetividade quando comparado com outros tratamentos psiquiátri-
cos e tem se limitado a três episódios:
• Intoxicação;
• Síndrome de abstinência;
• Complicações clínicas.
226
UNIDADE 10
É importante ressaltar que os tratamentos psiquiátrico e
farmacológico são apenas dois dos componentes do plano de
tratamento e não devem ser utilizados de maneira isolada.

2. Entrevista motivacional
Essa técnica postula que a aderência ao tratamento depende
da motivação do indivíduo. A motivação não deve ser vista como
um problema de personalidade ou um traço que a pessoa carrega
consigo quando procura o terapeuta, e sim como um estado de
prontidão ou de avidez para a mudança, que pode oscilar de tempos
em tempos ou de uma situação a outra. Segundo esse conceito de
motivação, Prochaska e DiClemente (1982) descreveram uma
série de estágios pelos quais as pessoas passam no curso da modifi-
cação de um problema, aplicáveis tanto à automudança como à
mudança assistida por terapeuta.

Saída permanente
Recaída
Manutenção

Contemplação
Ação Pré-contemplação

Determinação

O ponto de partida para o processo de mudança é o estágio da


pré-contemplação. Nesse ponto, a pessoa não está cogitando a
possibilidade de mudança – ela ainda nem considerou ter um
problema ou precisar fazer uma mudança. Se o indivíduo é abordado,
227
MÓDULO IV
pode ficar mais surpreso que na defensiva e raramente se apresenta
para tratamento, a não ser sob coerção.

Na contemplação existe alguma consciência do problema e a


pessoa entra em um período de ambivalência (tanto considera como
rejeita a mudança). O indivíduo simultaneamente (ou em alterna-
ções rápidas) experimenta razões para a preocupação e para a
despreocupação, motivação para mudar e para continuar inalterado.

A tarefa do terapeuta é ajudar a inclinar a balança em favor da


mudança, em direção ao estágio da determinação, no qual o
indivíduo pode dizer coisas como: “Eu preciso fazer algo em relação a
este problema!”, “Isso é sério! Alguma coisa tem de mudar!”ou “O
que posso fazer? Como posso mudar?”.

Esse estágio é semelhante a uma janela que se abre por


determinado período. Se durante esse tempo a pessoa entra em ação,
o processo de mudança continua. A tarefa do terapeuta é ajudá-la a
encontrar uma estratégia de mudança que seja aceitável, acessível,
adequada e eficaz.

No estágio da ação, o indivíduo engaja-se em ações específicas


para chegar a uma mudança, podendo ou não ser assistido por
aconselhamento formal. O objetivo nessa fase é produzir uma
mudança em uma área-problema.

Entretanto, fazer uma mudança não garante que ela será


mantida. Durante a manutenção, o desafio é manter a mudança
obtida e evitar a recaída. Esse estágio pode exigir um conjunto de
habilidades e estratégias diferentes das que foram inicialmente
necessárias para a obtenção da mudança (estratégias de prevenção da
recaída).

228
UNIDADE 10
Por fim, se a recaída ocorre, o indivíduo deve recomeçar o
processo, em vez de ficar preso a esse estágio. Deslizes e recaídas são
normais e a tarefa do terapeuta é ajudar a pessoa a evitar o desânimo e
a desmoralização, continuar a contemplar a mudança, renovar a de-
terminação e retomar a ação e a manutenção de esforços.

Estágios Tarefas do Terapeuta

Levantar dúvidas: aumentar a percepção do indivíduo sobre


Pré-contemplação
os riscos e problemas de seu comportamento atual.

“Inclinar a balança”: evocar as razões para a mudança,


Contemplação os riscos de não mudar; fortalecer a autossuficiência
do indivíduo para a mudança do comportamento atual.

Determinação Ajudar o indivíduo a determinar a melhor linha de ação


a ser seguida na busca da mudança.

Ação Ajudar o indivíduo a dar passos rumo à mudança.

Manutenção Ajudar o indivíduo a identificar e utilizar estratégias


de prevenção de recaída.

Ajudar o indivíduo a renovar os processos de contemplação,


Recaída determinação e ação sem que ele fique imobilizado
ou desmoralizado devido à recaída.

O que é entrevista motivacional?

• Consiste em um meio particular de ajudar as pessoas a reco-


nhecer e fazer algo a respeito de seus problemas presentes e
potenciais;

• É muito útil com indivíduos que relutam em mudar e que são


ambivalentes quanto à mudança;

• Pretende ajudar a resolver a ambivalência e colocar a pessoa


em movimento no caminho para a mudança;

• Pode ser, ainda, um prelúdio para o tratamento, criando


abertura para a mudança e pavimentando o caminho para o
trabalho terapêutico a ser seguido;

229
MÓDULO IV
• O terapeuta não assume papel autoritário; a responsabilida-
de pela mudança é deixada para o indivíduo;

• A pessoa sempre é livre para aceitar ou não os conselhos;

• As estratégias são mais persuasivas que coercitivas, mais


encorajadoras que argumentativas;

• O terapeuta busca criar uma atmosfera positiva que conduza


à mudança.

3. Terapia cognitivo-comportamental
Nesse modelo, a dependência é vista como um comportamen-
to apreendido, passível de ser mudado com a participação ativa do
indivíduo no processo de mudança.

A terapia cognitiva possui três proposições fundamentais:

• A atividade cognitiva influencia o comportamento;

• A atividade cognitiva pode ser monitorada e alterada;

• O comportamento desejado pode ser influenciado mediante


a mudança cognitiva.

A terapia cognitiva se baseia na premissa de que a inter-relação


entre cognição, emoção e comportamento está implicada no funcio-
namento normal do ser humano e, especialmente, na psicopatologia.
Um evento comum do cotidiano pode gerar diferentes formas de
sentir e agir em diversas pessoas, mas não é o evento em si que gera as
emoções e comportamentos, e sim o que pensamos sobre o evento.

A terapia cognitiva identifica e trabalha três níveis de cognição:


crenças nucleares, crenças subjacentes e pensamentos automáticos.

a) Crenças nucleares (core beliefs)


São nossas ideias e conceitos mais enraizados e fundamentais
acerca de nós mesmos, das pessoas e do mundo. As crenças são
230
UNIDADE 10
incondicionais, ou seja, independentemente da situação que se
apresente ao indivíduo, ele pensará de modo consoante suas crenças.

Elas vão se formando desde as experiências mais primitivas e se


fortalecem ao longo da vida, moldando a percepção e a interpretação
dos eventos, modelando nosso jeito psicológico de ser. Caso não haja
correção das crenças nucleares disfuncionais, o indivíduo as cristaliza-
rá como verdades absolutas e imutáveis. Para alcançar mudanças
duradouras, as crenças nucleares disfuncionais devem ser modificadas.

b) Crenças subjacentes
São:

• construções cognitivas disfuncionais, subjacentes aos pensa-


mentos automáticos;

• regras, padrões, normas, premissas e atitudes que adotamos


e que guiam nossa conduta;

• crenças identificadas normalmente na forma condicional


(“se... então...”).

Essas crenças pressupõem que, desde que determinadas


regras, normas e atitudes sejam cumpridas, não haverá problemas, e o
indivíduo se mantém relativamente estável e produtivo. No entanto,
se os pressupostos não estão sendo cumpridos, a pessoa se torna
vulnerável ao transtorno emocional quando as crenças nucleares
negativas são ativadas. As regras geralmente são expressas na forma de
afirmações do tipo “tenho de”, “devo”.

Embora o indivíduo construa e mantenha os pressupostos


subjacentes como tentativa de lidar com suas crenças nucleares
disfuncionais, ele acaba as confirmando e reforçando.

c) Pensamentos automáticos
São os pensamentos que não são percebidos conscientemente,
pois acontecem de maneira rápida, involuntária, automática. Eles são
231
MÓDULO IV
específicos para cada situação, podendo ser ativados por eventos
externos ou internos. São as cognições mais fáceis de acessar e
modificar, porém podem não ocorrer na forma de pensamento, mas
de imagens.

As características dos pensamentos automáticos são:

• Coexistem com o fluxo de pensamentos manifestos;

• Aparecem espontaneamente e não como resultado de re-


flexão ou vontade;

• São geralmente aceitos como verdadeiros, sem avaliação


crítica;

• Se não monitorados, passam completamente despercebidos,


a emoção associada é mais frequentemente reconhecida;

• Estão associados a emoções específicas, consoante seu con-


teúdo e significado;

• São geralmente breves, rápidos e fugazes, de modo telegráfico;

• Podem ocorrer na forma verbal ou como imagens;

• Pode-se aprender a identificar pensamentos automáticos;

• Pode-se avaliá-los quanto a sua validade e/ou utilidade.

Pensamentos
automáticos

Crenças subjacentes
(pressupostos e regras)

Crenças nucleares
(esquemas)

232
UNIDADE 10
O principal objetivo dessa terapia é sinalizar ao indivíduo a
relação entre seus pensamentos, emoções e ações em relação às
drogas, identificando as diferentes funções das substâncias psicotró-
picas em sua vida. A compreensão e as atribuições sobre o uso de
drogas são fundamentais para o tratamento. Ao terapeuta cabe:
• Identificar as crenças;
• Modificar os pensamentos automáticos;
• Sinalizar a relação entre cognição, emoção e comportamentos.

Esse processo é realizado por meio de tarefas autoperceptivas


– o indivíduo pode perceber sua dependência e modificar seu estado
disfuncional – e comportamentais.

4. Prevenção de recaída
A prevenção de recaída consiste em ajudar a pessoa a se tornar
ciente de situações de risco, identificar sinais preliminares de recaída e
desenvolver planos explícitos para lidar com as situações de risco. É
importante explorar com o indivíduo as expectativas relacionadas a
futuros problemas e trabalhar todas as que forem irrealistas, pois
muitos criam expectativas de nunca mais encontrar dificuldades
(“imunidade existencial”).

O programa de prevenção de recaída é um tratamento


cognitivo-comportamental cujo objetivo é manter uma mudança de
comportamento desejada e ensinar a pessoa a prever e lidar com o
problema da recaída.

O termo “recaída” pode ser definido como uma falha na tentativa


de mudança de um comportamento-alvo. Costuma-se dizer que
determinado indivíduo recaiu quando ele, além de ter retornado ao uso
de drogas após um período de abstinência, também apresentou
mudança em seu estilo de vida (encontrar novamente amigos usuários
233
MÓDULO IV
ou frequentar locais onde costumava consumir drogas). É importante
diferenciar lapso de recaída:
• O lapso pode ser visto como uma violação nas regras para a
manutenção da abstinência;
• A recaída apresenta, além do uso da droga, um retorno ao
comportamento anterior.

A recaída é um processo que envolve atitudes, comportamentos e


pensamentos, sendo possível reconhecê-la antes mesmo que aconteça. O
primeiro passo para a prevenção de recaída é o terapeuta ajudar o
indivíduo a identificar as situações de alto risco de consumo – provocadas
por estímulos externos ou internos – para, então, auxiliá-lo a encontrar
alternativas para preveni-la. É importante que a pessoa reconheça o maior
número de situações de risco para que saiba detectá-las e preveni-las.

5. Psicoterapia familiar
O abuso ou dependência de drogas geralmente representa um
impacto profundo sobre toda a família, desestruturando-a e
“adoecendo-a”, e as abordagens psicológicas reconhecem a impor-
tância do papel da família tanto na prevenção como no tratamento
dos dependentes de drogas. Segundo os pressupostos cognitivos e
sistêmicos, o hábito do uso de drogas é circular, repetitivo e reforçado
pela expectativa em relação aos efeitos imediatos da substância. A
teoria sistêmica da família enfatiza que a pessoa, apesar de suas
características individuais, não está isolada do contexto sociofamiliar.
É na família que as experiências são construídas, transformadas ou
repetidas, dependendo da qualidade das interações.

Avaliar e tratar a dependência na perspectiva familiar implica


conhecer os contextos familiares nos quais o usuário está inserido. O
tratamento deve, como foco, atenuar preconceitos, crenças moralis-
tas e culpas.
234
UNIDADE 10
A terapia familiar tem por objetivo:

• Auxiliar a família a resgatar competências;

• Desenvolver habilidades na resolução de problemas;

• Trabalhar o impacto da presença da droga no sistema fami-


liar e os padrões de relacionamento disfuncionais.

6. Grupos de ajuda mútua

Alcoólicos Anônimos
Surgiu nos EUA em 1935, propondo o tratamento para a
dependência de álcool. Esse modelo visa à total abstinência do álcool,
oferecendo um programa no qual as pessoas que a ele aderem têm a
chance de revisar seus valores e seu estilo de vida. O grupo é formado
por indivíduos dependentes dispostos a compartilhar experiências,
forças e esperanças para a manutenção da sobriedade, e o anonimato é
seu alicerce principal.

Aos membros do grupo são sugeridos Doze Passos para atingir


e manter a abstinência. Os cinco primeiros são:

1) Assumir a dependência;

2) Perceber a necessidade de ajuda;

3) Alçar contato com um poder superior;

4) Escrever um relatório completo de sua vida;

5) Compartilhar com outro companheiro ou com um profis-


sional.

Os demais passos são utilizados para a manutenção da


abstinência e, no caso de uma recaída, repete-se todo o processo
novamente.
235
MÓDULO IV
Modelo Minnesota
Seus princípios são:

• Tratar, mas não curar;

• Baseia seu programa nos Doze Passos dos Alcoólicos Anô-


nimos;

• Recomenda a abstinência total de álcool e outras drogas;

• Cria um ambiente no qual a comunidade terapêutica é total-


mente aberta;

• Trabalha com uma equipe multidisciplinar que inclui um


profissional denominado “conselheiro”, que pode ser um de-
pendente em recuperação;

• Apresenta um programa essencialmente didático, aplicável a


qualquer pessoa;

• O foco do tratamento é a mudança no estilo de vida.

Considerações sobre internação psiquiátrica


e a Nova Lei sobre Drogas
A concepção da atual Política do Ministério da Saúde para a
Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas se baseia nas
recomendações básicas para ações na área de saúde mental da
Organização Mundial da Saúde (2002), que são:

1) Promover assistência no âmbito de cuidados primários;

2) Disponibilizar medicamentos de uso essencial em saúde


mental;

3) Promover cuidados comunitários;

236
UNIDADE 10
4) Educar a população;

5) Envolver comunidades, famílias e usuários;

6) Estabelecer políticas, programas e legislação específicos;

7) Desenvolver recursos humanos;

8) Atuar de forma integrada com outros setores;

9) Monitorar a saúde mental da comunidade;

10) Apoiar mais pesquisas.

O Ministério da Saúde, ancorado pela Lei Federal nº 10.216/


2001 (Brasil – MS, 2002) e por meio de portarias internas, vem
estruturando os serviços de atenção a usuários de álcool e outras
drogas nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS
AD). São serviços comunitários ambulatoriais que tomam para si a
responsabilidade de cuidar de pessoas que sofrem de transtornos
mentais, especialmente os severos e persistentes, em seu território de
abrangência.

Não obstante esse modelo de tratamento ambulatorial


mostrar-se adequado para uma parcela considerável de indivíduos,
existem casos em que tais recursos se mostram insuficientes.

Levando em conta que alguns indivíduos não conseguem se


manter abstinentes em tratamento ambulatorial e apresentam
comportamentos de risco à sociedade e à sua integridade física e/ou
mental e que a Lei nº 11.343/2006 prescreve, como medida de
atenção, dentre outras atividades, aquelas que visem à redução dos
riscos e dos danos sociais e à saúde associados ao uso de drogas, há de
se considerar a possibilidade de internação involuntária, amparada
pela Lei nº 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos

237
MÓDULO IV
das pessoas portadoras de transtornos mentais. Esse recurso se aplica
especialmente aos adolescentes, que ainda não estão aptos a escolher
o que é melhor para garantir sua saúde, habilidade que geralmente
está mais comprometida pelo uso de drogas.

Conclusão
Ainda que existam várias formas de tratamento nos dias atuais,
nenhuma intervenção se mostrou mais efetiva que outra, pois a
efetividade do tratamento depende de sua indicação adequada.
Considerando que o quadro clínico e as consequências advindas da
dependência de álcool e drogas dependem de quem usa (indivíduo e
fase de vida), em que contexto se usa, do tipo de droga consumida, da
quantidade e da frequência de uso, a indicação de tratamento depen-
derá da avaliação minuciosa inicial. Como essas consequências
variam muito, a diversidade de tratamentos existentes é benéfica, uma
vez que torna possível atender a diferentes demandas de indivíduos
distintos ou de um mesmo indivíduo em outra fase dessa doença
crônica.

Portanto, o tratamento deve ser o mais individualizado


possível. Ainda que não exista um único tratamento ideal, algum
tratamento é melhor que nenhum e, quanto mais cedo for iniciado,
melhores as chances de uma resposta favorável.

Posteriormente, na Unidade 14, “Políticas de saúde para a


atenção integral a usuários de drogas”, serão discutidos a política de
saúde brasileira e o acesso aos serviços públicos no sistema de saúde,
principalmente com relação à rede assistencial para a atenção a
usuários de álcool e outras drogas.

238
UNIDADE 10
Exemplo prático (caso clínico)
E.F.B., masculino, 18 anos, solteiro.

Desde a idade pré-escolar era tido como uma criança agitada,


inquieta, que parecia estar a todo instante “ligada em 220 V”. Vivia
sendo criticado por familiares por seu comportamento inadequado
em vários ambientes. Mexia em tudo e não parava quieto por um
minuto sequer. Era constantemente repreendido por seus pais em
praticamente todos os lugares. Na escola, tal comportamento se
mantinha e, embora tivesse facilidade para fazer amigos, também os
perdia com a mesma rapidez por causa de sua impulsividade. Logo
nos primeiros anos na escola já havia se tornado o “boi de piranha” da
turma.

Essas alterações comportamentais se mantiveram na adoles-


cência, época em que, por curiosidade, experimentou maconha pela
primeira vez. Gostou do efeito “relaxante” que a droga lhe causou,
sentindo-se tranquilo como nunca havia se sentido. Passou a fazer uso
mais frequente dessa substância e na sequência experimentou cocaína.
Com essa droga, apresentou uma até então desconhecida sensação de
felicidade e de poder. O consumo, que antes era restrito aos finais de
semana, começou a ser mais frequente, chegando ao crack. A cocaína e
o crack se tornaram suas drogas de escolha, e ele fazia uso, ainda, de
maconha de forma abusiva. Em consequência disso, passou a
apresentar um menor rendimento escolar, com repetências. Aos 16
anos, evadiu-se da escola, sem completar o ensino médio, e envolveu-
se com grupos desviantes. Decidiu, então, praticar atos ilícitos –
inicialmente, dentro de casa, pegando dinheiro dos pais e vendendo
objetos para comprar a droga; depois, na rua, praticando furtos e
assaltos. Os pais não sabiam mais o que fazer e se perguntavam quando
foi que perderam o filho, queixando-se das desgraças que ele trazia
àquela casa. Acreditavam que o jovem já havia nascido com problemas
239
MÓDULO IV
de caráter, visto que sempre foi “encapetado”. Viam-no como um caso
perdido.

O jovem apresentava um quadro grave de dependência de


cocaína e crack, além de abuso de maconha. Chegou ao tratamento
pela primeira vez aos 18 anos, motivado por sintomas de perseguição e
alucinações visuais e auditivas que vinha apresentando há mais de 30
dias, além de quadros de agressividade física dirigida a si e a terceiros.

Um plano de tratamento inicial possível para esse jovem seria


o seguinte:

1) Tratamentos psiquiátrico e farmacológico:

• Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade;

• Abuso de maconha e dependência de cocaína e crack;

• Psicose, possivelmente secundária aos efeitos das drogas de


abuso.

2)Regime de tratamento:

• Primeiro, internação em hospital psiquiátrico, tanto para


promoção inicial da abstinência como para tratamento dos
quadros psiquiátricos comórbidos, objetivando a preserva-
ção de sua integridade física e psíquica;

• Posteriormente, tratamento ambulatorial, com acompa-


nhamento multidisciplinar (psicoterapia cognitivo-
-comportamental, entrevista motivacional, prevenção de
recaída e consultas psiquiátricas e clínicas).

3) Terapia e orientação familiar desde o início do processo de


tratamento.

4) Tratamento psicológico específico para as comorbidades


existentes.
240
UNIDADE 10
5) Acompanhamento psicopedagógico objetivando a reinser-
ção escolar.

6) Orientação profissional.

7) Grupos de ajuda mútua, como os narcóticos anônimos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALCOHOLICS ANONYMOUS WORLD SERVICES INC. Os doze passos e as


doze tradições. Disponível em: <http://www.na.org>. Acesso em: 01/02/2011.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). Practice guideline for the


treatment of patients with substance use disorders. Disponível em:
<http://www.psychiatryonline.com/pracGuide/pracGuideTopic_5.aspx>. Acesso
em: 01/02/2011.

BERENSTEIN , I. Família e doença mental. São Paulo: Escuta, 1988.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Legislação em saúde mental


1990-2002. 3. ed. Brasília, 2002.

______. Presidência da República. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas.


Legislação e políticas públicas sobre drogas no Brasil. Brasília, 2008.

BURNS, J. E. O modelo Minnesota no Brasil. 2. ed., jul. 1988. Disponível em:


<http://vilaserena.com.br/ventos/modminn.pdf>. Acesso em: 01/02/2011.

KNAPP, P. et al. Terapia cognitivo-comportamental na prática psiquiátrica.


Porto Alegre: Artmed, 2004.

241
MÓDULO IV
MARLATT, G. A.; GORDON, J. R. Prevenção de recaída: estratégias de
manutenção no tratamento de comportamentos adictivos. Porto Alegre: Artes
Médicas Sul, 1993.

MILLER, W. R.; ROLLNICK, S. Motivational interviewing: preparing people to


change addictive behavior. New York: The Guilford Press, 1991.

MINUCHIN, S. Famílias, funcionamento e tratamento. Porto Alegre: Artes


Médicas, 1988.

NIDA – National Institute on Drug Abuse. Principles of drug addiction treatment: a


research-based guide. Disponível em: <http://www.drugabuse.gov/podat/podatindex.
html >. Acesso em: 01/02/2011.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório sobre a saúde mental no


mundo 2001 – Saúde mental: nova concepção, nova esperança. Brasil, 2002.

242
UNIDADE 10
RESUMO DA AULA

A efetividade do tratamento depende de indicação adequada.

Considerando que o quadro clínico e as consequências


advindas da dependência de álcool e outras drogas dependem de
quem usa (indivíduo e fase de vida), em que contexto se usa, do tipo
de droga consumida, da quantidade e da frequência de uso, a indi-
cação de tratamento dependerá da avaliação minuciosa inicial.
Como essas consequências variam muito, a diversidade de trata-
mentos existentes é benéfica, uma vez que torna possível atender a
diferentes demandas, de indivíduos distintos ou de um mesmo indi-
víduo em outra fase dessa doença crônica.

O tratamento deve ser o mais individualizado possível.

Na próxima aula, verificaremos o papel das intervenções bre-


ves no tratamento de indivíduos dependentes.

243
MÓDULO IV
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. Entre os medicamentos NÃO recomendados para auxiliar no


tratamento da dependência, encontram-se:

a. Medicamentos para tratar a intoxicação e a abstinência.

b. Medicamentos para diminuir os efeitos que facilitem a auto-


administração de drogas.

c. Antibióticos, anti-inflamatórios e analgésicos.

d. Terapia de substituição com agonistas.

e. Medicamentos para tratar outros transtornos psiquiátricos


associados à dependência.

2. O tratamento da dependência deve, por si só, ser o mais indivi-


dualizado possível, já que as consequências decorrentes do uso de
drogas variam para cada um. Assinale a alternativa que NÃO corres-
ponde a uma dessas consequências:

a. Indivíduo e fase da vida.

b. Contexto.

c. Tipo de droga.

d. Quantidade de droga.

e. N. D. A.

244
UNIDADE 10
3. Sabe-se que o regime de tratamento varia de acordo com a
disponibilidade de modalidades específicas de tratamento, o grau de
restrição de acesso às drogas, a disponibilidade de cuidados médicos
gerais e psiquiátricos e a filosofia do tratamento a ser indicado. Assim,
as principais decisões a serem tomadas em relação a esse tratamento
devem ser baseadas principalmente:

a. Na capacidade do indivíduo de cooperar com o tratamento.

b. Na ineficiência da terapia.

c. No tipo de droga utilizada.

d. No tipo de abordagem psiquiátrica.

e. N. D. A.

245
UNIDADE 11

ENTREVISTA MOTIVACIONAL
E INTERVENÇÃO BREVE
PARA USUÁRIOS DE DROGAS
• Intervenção breve (IB)

• Evidências da efetividade da intervenção breve

• Triagem do uso de drogas e identificação


da motivação para mudança de comportamento

• Princípios da intervenção breve

• Utilização de técnicas da entrevista motivacional


para a realização de uma boa intervenção breve

IV
ENTREVISTA MOTIVACIONAL E INTERVENÇÃO
BREVE PARA USUÁRIOS DE DROGAS
Denise De Micheli

Talvez você conheça ou mesmo já tenha sido procurado por


alguém que tenha problemas com o uso de álcool e/ou outras drogas.
Embora o consumo dessas substâncias seja um problema relativa-
mente comum nos dias de hoje, as pessoas, em geral, só buscam ajuda
quando muitas áreas de sua vida já foram afetadas por ele. A depen-
dência de álcool e/ou outras drogas é um problema de saúde e,
quanto mais cedo se iniciar um tratamento ou intervenção, maior será
a chance de sucesso.

Dessa maneira, diante do crescente uso de substâncias,


múltiplas estratégias de intervenção têm sido propostas nas últimas
duas décadas na tentativa de reduzir os problemas a ele associados.
Uma modalidade de intervenção que tem despertado o interesse de
clínicos e demais profissionais é a intervenção breve (IB), pelo fato de
os resultados obtidos em tratamentos intensivos não terem demons-
trado superioridade quando comparados a esse tipo de abordagem.
Além disso, os custos de um tratamento devem ser justificados pelos
benefícios que este traz. Os altos custos dos tratamentos intensivos
explicam a procura de novas formas de tratamento, menos custosas e
mais efetivas, como as intervenções breves. Uma das razões do baixo
custo é que a IB pode ser utilizada por profissionais com diferentes
tipos de formação, bastando que recebam treinamento prévio para
isso.

249
MÓDULO IV
A técnica de IB foi proposta por pesquisadores canadenses, em
1972, como abordagem terapêutica para usuários de álcool. Refere-se
a uma estratégia de intervenção bem estruturada, focal e objetiva, que
usa procedimentos técnicos específicos, permitindo estudos sobre
sua efetividade. Um de seus principais objetivos é promover o desen-
volvimento da autonomia das pessoas, atribuindo-lhes a capacidade
de assumir a iniciativa e a responsabilidade por suas escolhas.

Assim, pode-se dizer que a IB consiste em uma modalidade de


atendimento com tempo limitado, com foco na mudança de compor-
tamento do usuário. É indicada para pessoas que fazem uso nocivo ou
abusivo de substâncias. O uso é considerado nocivo ou abusivo
quando começa a causar problemas importantes em diferentes áreas
da vida do indivíduo. O termo “nocivo”, utilizado pela Classificação
Internacional de Doenças (CID-10), refere-se ao uso que resulta em
danos físicos ou mentais ao usuário, enquanto “abuso”, adotado pela
Associação Psiquiátrica Americana (APA), considera não só os danos
físicos ou mentais, mas também as consequências sociais relaciona-
das ao uso.

Portanto, por sua brevidade, a IB é indicada para pessoas que


apresentam menor comprometimento relacionado ao uso de drogas,
não sendo, portanto, recomendada como modalidade de intervenção
para pessoas que apresentam problemas graves relacionados à depen-
dência de substâncias. Isso porque, em geral, tais pessoas apresentam
inúmeros comprometimentos relacionados ao uso de drogas e, nesse
caso, uma IB não seria capaz de contemplar todos eles em curto
espaço de tempo. Entretanto, pode ser útil para sensibilizar usuários
mais resistentes a aceitar o tratamento.

Nesse sentido, a ideia é mostrar ao usuário que o uso de álcool


e/ou outras drogas o coloca em situações de risco. Então, depois de

250
UNIDADE 11
identificar a presença do problema e mostrar os efeitos e consequên-
cias do consumo abusivo, o passo seguinte é motivar a pessoa a mudar
seu hábito de uso.

A proposta é que a intervenção seja breve, objetiva e dirigida à


mudança da forma como a pessoa usa a droga. A IB pode levar de 5 a
30 minutos, dependendo do tempo que o profissional e o usuário
dispõem para isso.

Evidências da efetividade da intervenção breve


Pesquisas mostram que as IBs podem diminuir o consumo de
álcool e outras drogas e que funcionam para diversos tipos de pacien-
tes: adultos, adolescentes, idosos, homens e mulheres, usuários abusi-
vos de álcool e/ou outras drogas etc.

A efetividade da IB pode ser igual ou até mesmo superior à de


outras intervenções que exigem maior tempo. Além disso, a IB tem
baixo custo de execução. Alguns estudos indicam que, em apenas 5 a
10 minutos da consulta de rotina para aconselhamento dos usuários
de risco de álcool, é possível reduzir o consumo médio em 20-30%.

Wilk et al. (1997) realizaram 12 estudos controlados sobre a


efetividade da IB dirigida a alcoolistas e concluíram que aqueles que
receberam IB apresentaram duas vezes mais chance de redução do
consumo de álcool do que aqueles que não receberam. Segundo os
pesquisadores, a “IB é uma medida de baixo custo e efetiva para
usuários moderados/pesados de álcool em ambientes ambulatoriais”.

Outro estudo que avaliou a efetividade dessa técnica foi


conduzido por Moyer et al. (2002). Seu objetivo foi comparar, em
relação à redução ou interrupção do consumo, grupos que receberam
251
MÓDULO IV
IB, grupos controle (sem intervenção) e grupos que receberam
tratamento mais intensivo, todos eles compostos por usuários de
álcool e/ou outras drogas. A conclusão sobre a efetividade da IB foi
favorável principalmente entre usuários menos graves. De acordo
com os pesquisadores,

atenção deve ser dada para o fato de que a IB não deve ser substituída
por um tratamento especializado; mas, em casos graves, pode e deve
ser utilizada como um recurso de motivação para o usuário.

Triagem do uso de drogas e identificação


da motivação para mudança de comportamento
A triagem ou rastreamento do uso de álcool e/ou outras drogas
é uma forma simples de identificação dos diferentes níveis de
consumo, desde o uso social até o de risco. Recomenda-se que essa
triagem seja feita de modo sistemático, com a utilização de instrumen-
tos ou questionários específicos, denominados instrumentos de
triagem.

Alguns instrumentos ou questionários foram adaptados e


validados para uso na população brasileira e encontram-se disponíveis
para tal. É o caso do CAGE, que é constituído por quatro questões
referentes ao anagrama Cut-down, Annoyed, Guilty e Eye-opener:
“Alguma vez o(a) senhor(a) sentiu que deveria diminuir a quantidade
de bebida alcoólica ou parar de beber?” (cut-down); “As pessoas o(a)
aborrecem porque criticam o seu modo de tomar bebida alcoólica?”
(annoyed); “O(a) senhor(a) se sente chateado(a) consigo mesmo(a)
pela maneira como costuma tomar bebidas alcoólicas?” (guilty);
“Costuma tomar bebidas alcoólicas pela manhã para diminuir o
nervosismo ou ressaca?” (eye-opener). O AUDIT (Alcohol Use
Disorders Identification Test), que em português significa “teste para

252
UNIDADE 11
identificação de problemas relacionados ao uso de álcool”, também é
amplamente utilizado. Tanto o CAGE como o AUDIT foram
desenvolvidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com o
objetivo de identificar a dependência de álcool. Já o ASSIST (Alcohol,
Smoking and Substance Involvement Screening Test, ou “questionário de
triagem de álcool, tabaco e outras substâncias”), também criado pela
OMS, avalia o uso de álcool e outras drogas, bem como problemas
relacionados. Para a triagem da população adolescente, o DUSI (Drug
Use Screening Inventory ,ou “inventário de triagem de uso de drogas”) e
o Teen-ASI (Addiction Substance Index ou “escala de gravidade de
dependência”), ambos validados por pesquisadores brasileiros,
analisam o uso de álcool e outras drogas.

Assim, a triagem é o primeiro passo para a avaliação do


consumo de álcool e/ou outras drogas e de problemas relacionados.
Além disso, vários estudos mostram que a triagem pode representar
grande oportunidade para abordar, com o usuário, os diferentes
aspectos do consumo, assim como para aumentar sua motivação para
mudança de comportamento.

Ao avaliar ou investigar o consumo de álcool e/ou outras


drogas, é importante identificar a disposição ou motivação da pessoa
para o tratamento ou intervenção. Para isso, o indivíduo deve se sentir
à vontade para falar sobre si mesmo, sobre os problemas que está
vivendo e sobre a relação destes com o uso de drogas. Muitos usuários
não acham que o uso que fazem de álcool e/ou outras drogas lhes
traga problemas e, por essa razão, mostram-se pouco ou mesmo nada
motivados a receber intervenção. Entretanto, alguns percebem os
problemas decorrentes do uso de substâncias, mostrando-se motiva-
dos a receber intervenção.

De acordo com pesquisadores que trabalham com a técnica da


entrevista motivacional, a motivação é um estado de prontidão ou
disposição para mudança, que pode variar de tempos em tempos

253
MÓDULO IV
ou de uma situação para outra. Esse é um estado interno, mas pode
ser influenciado (positiva ou negativamente) por fatores externos
(sejam pessoas ou circunstâncias).

Tal prontidão ou disposição para mudança foi descrita pelos


psicólogos James Prochaska e Carlo DiClemente por meio dos
chamados estágios de mudança. A identificação do estágio em que o
usuário se encontra permitirá que se avalie quanto ele está disposto a
mudar seu comportamento de uso de substâncias ou seu estilo de
vida. Com base nessa identificação, será possível saber como se
posicionar durante a intervenção.

1. Estágio de pré-contemplação
O usuário não encara seu uso como problemático ou causador
de problemas, tampouco considera algum tipo de mudança. Em geral,
não busca tratamento voluntariamente, e sim por causa dos pais,
família, escola, trabalho ou por encaminhamento judiciário. O indiví-
duo nesse estágio:

• não está consciente de que seu comportamento está cau-


sando problemas a si ou a outros;

• acredita estar imune às consequências adversas do uso (por


exemplo, acredita que não se tornará dependente ou que tem
controle sobre o uso);

• resiste ou nega as consequências trazidas pelo uso de drogas;

• não manifesta a intenção de parar ou reduzir o consumo.

2. Estágio de contemplação
O indivíduo se mostra ambivalente em relação a seu uso. Em
geral, reconhece o problema, mas procura justificar ou minimizar
seu comportamento. Por exemplo, à pergunta “Você percebe que seu
254
UNIDADE 11
consumo está bastante elevado e que isso pode estar relacionado aos
problemas que vem apresentando no trabalho?”, ele responde: “Sim,
percebo; mas não é sempre que isso acontece/não é bem assim”. Isso
reflete que parte dele quer mudar, mas outra parte não. Muitos usuá-
rios ficam bastante tempo nesse estágio.

3. Estágio de ação
Para atingir esse estágio, é necessário que o indivíduo:

• perceba que seus problemas têm solução;

• acredite que é capaz de mudar;

• desenvolva um plano de ação, que pode significar reduzir ou


parar o consumo.

4. Estágio de manutenção
É o estágio de mudança mais importante, mas também o mais
difícil. Para permanecer nele, muitas vezes o indivíduo tem de
reorganizar seu estilo de vida, desenvolver habilidades de enfrenta-
mento de dificuldades e procurar se engajar em outras atividades
sociais e recreacionais. Isso, muitas vezes, não é fácil, pois requer que
ele parta para outro grupo de amigos, outro modo de vida, ou seja,
comece tudo de novo.

5. Recaída

Consiste no retorno ao comportamento de consumo (que


pode ser problemático ou não). A recaída é frequentemente acionada
por emoções, conflitos com outras pessoas, pressão dos amigos ou
outros estímulos, como voltar a um lugar no qual costumava
consumir a droga ou encontrar alguém com quem a usava. Muitas

255
MÓDULO IV
vezes, a recaída acontece porque a pessoa está confiante e acha que
já pode “controlar” o uso. Ao tentar fazer esse “uso controlado”, é
comum perder o controle e recair. É importante salientar que alguns
deslizes e recaídas são normais e até esperados quando o usuário está
tentando mudar seu padrão de comportamento.

Assim, para que mude seu comportamento, o indivíduo pre-


cisa estar pronto e disposto e sentir-se capaz de realizar essa mudança.
Estar pronto e disposto a diminuir ou parar o uso depende muito da
importância dada pelo usuário à necessidade de mudar. Pensar em
mudar é importante, mas nem sempre é suficiente para colocar a mu-
dança em prática. Algumas vezes, uma pessoa está disposta a mudar,
porém não acredita ser capaz disso. Portanto, mostre ao usuário a
importância e os ganhos provenientes dessa mudança e demonstre a
ele quanto acredita em sua capacidade de mudar.

Princípios da intervenção breve


Miller e Sanchez (1993) propuseram alguns elementos essen-
ciais ao processo de IB, reunidos na abreviação FRAMES:

F (feedback ): Triagem ou avaliação do uso de substância


e devolutiva ao usuário

Avaliam-se o consumo de álcool e/ou outras drogas e proble-


mas relacionados a esse consumo por meio de instrumentos padroni-
zados. Após essa avaliação, é dado um retorno, ou feedback, ao usuário
sobre os riscos atrelados a seu padrão de consumo. Isso pode servir
também de ponto de partida para convidá-lo a receber intervenção.

256
UNIDADE 11
R (responsibility ): Responsabilidade e metas

Nessa etapa, procura-se realizar uma “negociação” com o


usuário a respeito das metas a serem atingidas: se ocorrerá interrup-
ção do consumo ou o uso moderado. Enfatiza-se aqui a responsabili-
dade do indivíduo para atingir a meta estabelecida, mostrando que ele
é o responsável por seu comportamento e por suas escolhas sobre
usar drogas ou não. A mensagem a ser transmitida pode ser algo do
tipo: “Consumir drogas é uma escolha sua e ninguém pode fazê-lo
mudar seu comportamento ou decidir por você. Se você perceber que
isso está prejudicando sua vida, sua saúde ou seus relacionamentos e
quiser mudar, posso tentar ajudá-lo, mas a decisão é sua.” Isso faz com
que a pessoa sinta que pode ter o controle de seu comportamento e de
suas consequências. Vários autores relatam que tal percepção de
“responsabilidade” e “controle da situação” pelo usuário pode ser um
elemento motivador para a mudança de comportamento e quebra de
resistência.

A (advice ): Aconselhamento

Diversos estudos indicam que orientações claras sobre a


diminuição ou interrupção do uso de drogas reduzem o risco de
problemas futuros, aumentam a percepção do risco pessoal, e servem
de motivação para que o usuário considere a possibilidade de mudar
seu comportamento. Procure associar os problemas por ele relatados
ao uso que faz de substâncias e ajude-o a refletir sobre isso, pois
algumas vezes o usuário não percebe que é o uso de álcool e/ou outras
drogas que está interferindo em sua saúde ou em sua relação familiar
ou profissional (por exemplo, álcool e úlceras gástricas, tabaco e
enfisema pulmonar, maconha e problemas de memória). Mostre que,
se ele reduzir ou parar o uso de drogas, a possibilidade de futuros

257
MÓDULO IV
problemas relacionados ao uso também diminuirá. Isso pode levá-lo a
perceber os riscos que envolve seu uso de drogas e servir como razão
para considerar a mudança de comportamento. Peça ao usuário que
liste as vantagens e desvantagens do uso de drogas e comente sobre
elas. É importante fornecer orientações claras, livres de qualquer
preconceito e, sempre que possível, ter em mãos materiais informati-
vos sobre drogas para dar ao usuário.

M (menu
menu of options
options): Menu de opções de estratégias para
modificação do comportamento (reduzir ou parar o consumo)
Nessa etapa, busca-se identificar, com o usuário, as situações
de risco que favorecem o consumo de substâncias, como onde ocorre
o uso, em companhia de quem ou em quais situações (sociais ou de
sentimentos pessoais). Com tal identificação, é possível orientá-lo no
desenvolvimento de habilidades e estratégias para evitar ou lidar de
outra maneira com essas situações de risco. Pergunte ao usuário onde
ocorria o consumo e em companhia de quem. Não pergunte o nome
das pessoas que faziam uso com ele, mas apenas que tipo de relaciona-
mento mantêm (ou mantinham) entre si: se são (eram) amigos,
namorados, primos etc. Em seguida, peça-lhe que conte em que
situações usava (onde estava, com quem e o que estava sentindo
antes de usar). Procure entender se as situações de maior risco eram
ocasiões sociais (por exemplo, estar com amigos no bar, em festas, na
saída do trabalho) ou situações em que ele se sentia triste, aborrecido,
deprimido, contrariado (sentimentos pessoais). Desse modo, você
identificará algumas das situações de risco que o levaram (ou levam)
a usar drogas e, então, poderá orientá-lo sobre o que fazer para evitar
essas situações. Lembre-se de que fornecer alternativas de estratégias
e escolhas pode ajudá-lo a sentir que tem o controle e a responsabili-
dade de realizar a mudança, aumentando sua motivação. É importan-

258
UNIDADE 11
te tentar fazer com que o próprio usuário pense nas estratégias, mas,
caso ele tenha dificuldades, você pode sugerir algumas. Veja alguns
exemplos de opções e estratégias:

• Sugira a ele que faça um diário sobre seu uso da substância,


registrando: onde costuma (ou costumava) usar, em que
quantidade, em companhia de quem, por qual razão etc. Isso
ajudará a identificar as possíveis situações de risco;

• Identifique, com o usuário, algumas atividades que possam


lhe trazer prazer: realizar uma atividade física, tocar um
instrumento, ler um livro, sair com pessoas não usuárias etc.
Após essa identificação, proponha a ele que substitua o uso
de drogas por essa(s) atividade(s);

• Forneça informações sobre onde buscar ajuda especializa-


da, se for o caso, ou tente fazê-lo refletir sobre aquilo de que
ele gosta, além do uso da substância. Se ele não souber,
utilize isso para estimulá-lo a se conhecer melhor, descobrir
novas coisas, novos interesses. Procure ter sempre à mão
opções gratuitas de lazer dos mais diferentes tipos (ativi-
dades esportivas, apresentações de música, oficinas de
artesanato etc.) para sugerir a ele;

• Descubra algo que o usuário gostaria de ter e lhe dê a ideia de


ecomomizar o dinheiro que normalmente gastaria com
drogas para adquirir aquele bem. Faça as contas com ele
sobre quanto gasta. Por exemplo, um fumante que gasta
R$ 3,00 por dia com cigarros em um mês economizaria
R$ 90,00, e em seis, R$ 540,00, valor suficiente para com-
prar uma TV nova ou pagar mais da metade de um compu-
tador completo. Contas simples como essa podem ajudá-lo
a perceber o prejuízo financeiro, além dos problemas de
saúde.

259
MÓDULO IV
E (empathy ): Empatia
É fundamental evitar o comportamento confrontador ou
agressivo. O usuário deve se sentir à vontade para falar de seus
problemas e dificuldades. Demonstre a ele que você está disposto a
ouvi-lo e que entende seus problemas, até mesmo a dificuldade de
mudar.

S (self-efficacy ): Autoeficácia
O objetivo é aumentar a motivação do usuário para o processo
de mudança, auxiliando-o a ponderar os prós e contras associados ao
uso de substâncias. Encoraje-o a confiar nos próprios recursos e a ser
otimista em relação à sua habilidade para mudar o comportamento,
reforçando os aspectos positivos.

Utilização de técnicas da entrevista motivacional


para a realização de uma boa intervenção breve
Não é difícil imaginar a origem da entrevista motivacional
(EM). Ela foi desenvolvida com base no conceito de motivação, isto é,
um conjunto de fatores psicológicos, conscientes ou não, de ordem
fisiológica, intelectual ou afetiva, que determinam certo tipo de
conduta em alguém.

A motivação não deve ser encarada como um traço de


personalidade inerente ao caráter da pessoa, mas como um estado de
prontidão ou vontade de mudar, que pode flutuar de um momento
para outro e de uma situação para outra, ou seja, a motivação tem
característica dinâmica. Nesse sentido, aumentar a motivação significa
aumentar a probabilidade de que o indivíduo siga uma linha de ação
que gere algum tipo de mudança. Esse é o foco da entrevista motivacio-
nal, e seus cinco princípios básicos são:
260
UNIDADE 11
1. Expressar empatia
A atitude que fundamenta o princípio da empatia é a aceitação.
É importante observar que aceitação não é a mesma coisa que
concordância ou aprovação, ou seja, é possível aceitar e compreender o
ponto de vista do indivíduo sem necessariamente concordar com ele.
Isso significa acolher, aceitar e entender o que ele diz, sem fazer
julgamentos a seu respeito. Utilizando a “escuta reflexiva”, procura-se
compreender os sentimentos e as perspectivas do usuário, sem julgá-lo,
criticá-lo ou culpá-lo. Por exemplo: “Você está querendo me dizer que
seu consumo está causando problemas em seu trabalho?” ou “Se eu
entendi bem, você disse que costuma beber grandes quantidades
quando está com seus amigos de trabalho...”. Isso evita que a pessoa
negue alguma afirmação já feita, mencionando que não foi o que ela
quis dizer ou que você entendeu errado. A empatia do profissional está
associada à boa resposta do usuário à intervenção ou orientação
realizada.

2. Desenvolver discrepância
Um dos princípios da entrevista motivacional é mostrar ao
usuário a discrepância entre o comportamento que ele tem e suas
metas pessoais e o que pensa que deveria fazer. Um bom modo de
ajudá-lo a compreender esse processo é fazer uma comparação,
exemplificando com a discrepância, que muitas vezes existe, entre
onde se está e onde quer ou gostaria de estar. Muitas vezes, pergun-
tar ao usuário como ele se imagina daqui a algum tempo (dois ou três
anos, por exemplo) e o que ele está fazendo para atingir sua meta
poderá ajudá-lo a entender essa discrepância.

261
MÓDULO IV
3. Evitar a confrontação direta
Em todo momento você deve evitar confrontar diretamente o
usuário. Abordagens desse tipo nada mais fazem do que tornar o indiví-
duo resistente à intervenção. Coloque seus argumentos de modo claro,
mas sempre convidando-o a pensar sobre o assunto.

4. Lidar com a resistência

O usuário pode se mostrar resistente às sugestões e propostas


de mudança. Porém, lembre-se de que ele não é um adversário a ser
derrotado, ou seja, o que fazer quanto a um problema é, em última
instância, uma decisão dele, e não sua. Entenda que a ambivalência e a
resistência para a mudança de comportamento são normais em todas
as pessoas, e sua atitude, como profissional, deve ter a finalidade de
levar o usuário a considerar novas informações e alternativas em rela-
ção ao uso da substância.

5. Fortalecer a autoeficácia

Autoeficácia se refere à crença de uma pessoa em sua capaci-


dade de realizar e ter sucesso em uma tarefa específica. Várias mensa-
gens promovem a autoeficácia. Uma delas é a ênfase na responsabili-
dade pessoal, ou seja, mostre ao usuário que ele não somente pode,
mas deve fazer a mudança, uma vez que ninguém pode fazer isso por
ele. Encoraje e estimule o paciente a cada etapa vencida. Ele se sentirá
fortalecido.

Esses princípios de EM, associados aos de IB, favorecem


melhor resposta do usuário.

262
UNIDADE 11

Lembre-se: uma intervenção breve eficiente não


consiste apenas em utilizar as técnicas propostas, mas
também em criar um ambiente de apoio para o usuário.

Comportamentos a serem evitados ao realizar a IB


1. Perguntar e responder
Muitas vezes a ansiedade do profissional não permite dar
tempo para o indivíduo responder às perguntas feitas, pois o “metra-
lha” com perguntas que ele mesmo responde, por exemplo: “Quando
você bebe, em geral, que tipo de bebida é: cerveja, cachaça, vinho...?
E você bebe em casa ou na rua com amigos?”.

2. Agir como técnico


O profissional passa a imagem de que tem todas as respostas, o
que não propicia um ambiente de apoio ao indivíduo.

3. Culpa e responsabilidade
Muitas vezes o indivíduo quer discutir sobre “de quem é a
culpa” quanto a seu consumo. O profissional deve entender e
esclarecer à pessoa que eles não estão ali para decidir quem é o
culpado, mas o que pode ser mudado e os benefícios dessa mudança.

Por fim, é importante ter em mente que usuários de drogas


apresentam maiores chances de mudança de comportamento
quando:

• percebem que o uso da substância é responsável por seus


problemas;

• acreditam que as coisas podem melhorar;


263
MÓDULO IV
• creem que são capazes de mudar;

• relacionam seus problemas ao uso da droga.

Aproveite tudo o que você aprendeu aqui e use as técnicas de


intervenção breve e entrevista motivacional para orientar as pessoas que
apresentam problemas relacionados ao uso de drogas. Lembre-se de
que é fundamental adotar uma atitude de acolhimento e compreensão,
sem preconceitos. Ouça-as e ajude-as a perceber a real gravidade do
problema.

Por exemplo, se um familiar procurar você, preocupado com


um filho que começou a usar drogas, diga-lhe que é preciso fazer algo,
mas que não se desespere, pois um tratamento por internação não é
aconselhável para esse tipo de caso. Oriente a pessoa usando os vários
materiais que a SENAD oferece, em linguagem adequada para
indivíduos de diferentes idades, e mostre-lhe que há vários recursos
na comunidade aos quais ela pode ter acesso. Se o caso for mais grave,
recomende-lhe que procure a ajuda de um profissional de saúde. Em
todas as situações, procure motivá-la e passe-lhe as informações que
você tem sobre o assunto.

Lembre-se: é importante “despertar” o usuário e ajudá-lo


a iniciar seu processo de mudança!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BABOR, T. F.; HIGGINS BIDDLE, J. C. Alcohol screening and brief intervention:


dissemination strategies for medical practice and public health. Addiction, v. 95, n. 5,
p. 677-686, 2000.

264
UNIDADE 11
CHISHOLM, D. et al. Reducing the global burden of hazardous alcohol use:a
comparative cost-effectiveness analysis. Journal of Studies on Alcohol, v. 65, n. 6,
p. 782-793, 2004.

DE MICHELI, D.; FISBERG, M.; FORMIGONI, M. L. O. S. Estudo da efetividade


da intervenção breve para o uso de álcool e outras drogas em adolescentes atendidos
num serviço de assistência primária à saúde. Revista da Associação Médica
Brasileira, v. 50, n. 3, p. 305-313, 2004.

DE MICHELI, D.; FORMIGONI, M. L. O. S. Drug use by Brazilian students:


associations with family, psychosocial, health, demographic and behavioral characte-
ristics. Addiction, v. 99, n. 5, p. 570-578, 2004.

_____. Psychometric properties of the Brazilian version of DUSI (Drug Use


Screening Inventory). Alcoholism: Clinical and Experimental Research, v. 26, n.
10, p. 1523-1528, 2002.

_____. Screening of drug use in a teenage Brazilian sample using the Drug Use
Screening Inventory (DUSI). Addictive Behaviors, v. 25, n. 5, p. 683-691, 2000.

FLEMING, M.; MANWELL, L. B. Brief intervention in primary care settings: a


primary treatment method for at-risk, problem and dependent drinkers. Alcohol
Research & Health, v. 23, n. 2, p. 128-137, 1999.

MILLER, W. R. Motivation for treatment: a review with special emphasis on


alcoholism. Psychological Bulletin, v. 98, n. 1, p. 84-107, 1985.

MILLER, W. R.; ROLLNICK, S. Motivational interviewing: preparing people to


change addictive behavior. New York: Guilford Press, 1991.

MILLER, W. R.; SANCHES, V. C. Motivating young adults for treatment and


lifestyle change. In: HOWARD, G. (Ed.). Issues in alcohol use and misuse in young
adults. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1993.

MOYER, A. et al. Brief interventions for alcohol problems: a meta-analytic review of


controlled investigations in treatment-seeking and non-treatment seeking populations.
Addiction, v. 97, n. 3, p. 279-292, 2002.

NEUMANN, G. B. R. Intervenção breve. In: FORMIGONI, M. L. O. S. A interven-


ção breve na dependência de drogas: a experiência brasileira. São Paulo: Contexto,
1992.

265
MÓDULO IV
OCKENE, J. K. et al. A residents’ training program for the development of smoking
intervention skills. Archives of Internal Medicine, v. 148, n. 5, p. 1039-1045, 1988.

WILK, A.; JENSEN, N.; HAVIGHURST, T. Meta-analysis of randomized control


trials addressing brief interventions in heavy alcohol drinkers. Journal of General
Internal Medicine, v. 12, n. 5, p. 274-283, 1997.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Brief intervention Study Group. A cross-


national trial of brief interventions with heavy drinkers. American Journal of Public
Health, v. 86, n. 7, p. 948-955, 1996.

266
UNIDADE 11
RESUMO DA AULA

As técnicas de intervenção breve devem motivar o usuário a


mudar seus hábitos de acordo com a autonomia individual.

A entrevista motivacional é uma técnica de IB que visa a moti-


var o usuário a mudar ou desenvolver uma conduta ou hábito
adequado para ele.

Porém, para que o tratamento dos indivíduos ande em para-


lelo com seus grupos de convivência, o papel da família é funda-
mental, tanto no desenvolvimento da personalidade deles como no
auxílio e manutenção do tratamento.

267
MÓDULO IV
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. “A técnica de intervenção breve foi proposta por pesquisadores


canadenses, em 1972, como abordagem terapêutica para usuários de
álcool. Refere-se a uma estratégia de intervenção bem estruturada,
focal e objetiva, que usa procedimentos técnicos específicos,
permitindo estudos sobre sua efetividade.” Nesse contexto, assinale a
alternativa que, de fato, demonstra os principais objetivos desse tipo
de terapia:

a. Autonomia do usuário, custo alto e realização multidisciplinar.

b. Autonomia do usuário, custo baixo e realização multidisciplinar.

c. Dependência do usuário, custo alto e realização multidisci-


plinar.

d. Dependência do usuário, custo baixo e realização multidisci-


plinar.

e. Autonomia do usuário, custo baixo e realização médica.

2. Assinale a alternativa que corresponde a instrumentos de triagem


ou rastreamento de uso de álcool e/ou outras drogas:

a. CAGE, Audit e DSM-IV.

b. CID-10, ASSIST e CAGE.

c. DUSI, Teen-ASI e ASSIST.

d. DSM-IV, CID-10 e CAGE.

e. CID-10, ASSIST e Teen-ASI.

268
UNIDADE 11
3. Os estágios de mudança podem ser enumerados na seguinte
ordem:

a. pré-contemplação, contemplação, recaída, manutenção e ação.

b. contemplação, pré-contemplação, manutenção, ação e recaída.

c. pré-contemplação, contemplação, ação, manutenção e recaída.

d. recaída, manutenção, ação, contemplação e pré-contem-


plação.

e. ação, recaída, pré-contemplação, contemplação e manutenção.

269
MÓDULO V
PREVENÇÃO DO USO DE DROGAS
E REDUÇÃO DE DANOS

Importantes aspectos relacionados ao uso de drogas


são abordados neste módulo, dividido em:

Unidade 12 – Família: uso e abuso de drogas – entre


o risco e a proteção

Unidade 13 – Redes sociais

Unidade 14 – Políticas de saúde para a atenção


integral a usuários de drogas

Unidade 15 – Estratégias de redução de danos


para pessoas com problemas com drogas na interface dos
campos de atuação da Justiça e da Saúde
UNIDADE 12

FAMÍLIA
USO E ABUSO DE DROGAS –
ENTRE O RISCO E A PROTEÇÃO

• Definição de resiliência e como esse termo pode


ser adaptado às Ciências da Saúde

• O papel da família no uso de drogas

• O papel da família na prevenção ao uso de drogas

• O papel da família no tratamento do indivíduo


usuário de drogas

V
FAMÍLIA: USO E ABUSO DE DROGAS –
ENTRE O RISCO E A PROTEÇÃO
Eroy Aparecida da Silva
Denise De Micheli

A família através dos tempos


A história da família nos remete a aproximadamente 4 milhões
de anos atrás. Em seu processo evolutivo no decorrer dos tempos,
passou por inúmeras transformações, garantindo-lhe hoje um concei-
to amplo e variado, envolvendo múltiplos aspectos: demográficos,
jurídicos, vínculos íntimos, afetivos e de parentesco, crenças e tradi-
ções intrafamiliares, passagem de diferentes ciclos vitais, transmissão
de bens, dentre outros. Portanto, tem sido objeto de estudo de várias
áreas da ciência. Contudo, há um consenso, nesse universo conceitual
diverso, de que a família é o modelo básico de socialização dos indiví-
duos nas sociedades ocidentais e que atualmente ultrapassa os víncu-
los sanguíneos. Família é então definida como um sistema vivo, ou
seja, uma rede de relações com regras, costumes, valores e crenças em
constante troca com o meio social. As mudanças pelas quais passam as
famílias estão diretamente relacionadas às modificações sociocultu-
rais como um todo. Assim, a família transforma e é transformada pelo
meio externo e é em seu interior que a identidade pessoal é formada.

Não existe um modelo único de família; ao contrário, as famí-


lias apresentam muitas diversidades e constroem valores, regras e
formas de afetividade com base na própria história, com múltiplas
realidades e diferentes contextos. A partir das décadas de 1950 e 1960,

275
MÓDULO V
o modelo de família passou por profundas modificações socioculturais
e afetivas. A inserção da mulher no mercado de trabalho, o advento da
pílula anticoncepcional, a diminuição do número de filhos, a valoriza-
ção da criança como um ser de direito, os movimentos políticos e a
contracultura influenciaram diretamente a constituição da família,
transformando, assim, as relações de poder e tornando os papéis e
tarefas do homem e da mulher mais igualitários, embora ainda hoje
prevaleçam “resquícios culturais” da supremacia do sexo masculino
sobre o feminino, mas que apontam uma mudança significativa para
maior equilíbrio entre os gêneros.

Desafios da família contemporânea


Novos valores sociais e culturais, a globalização e a revolução
tecnológica trouxeram para a família atual muitos desafios: enfrenta-
mento da violência urbana, desemprego, doenças sexualmente trans-
missíveis, como a AIDS, alterações abruptas no ecossistema, uso e
abuso de drogas psicotrópicas, dentre outros.

Este texto tratará brevemente de alguns desafios da família


contemporânea diante do uso de drogas, desde a prevenção até o
tratamento, abordando temas como: preconceitos; (des)informação,
reações e temores dos pais em relação ao uso de drogas dos filhos;
razões que levam o adolescente a experimentar, abusar e desenvolver
dependência de drogas; importância da construção de políticas fami-
liares; socialização na família dos adolescentes em conflito com a lei.

Pesquisas sobre o funcionamento familiar referem que muitos


desses desafios contemporâneos aumentaram o nível de estresse
intrafamiliar, repercutindo diretamente nos vínculos familiares,

276
UNIDADE 12
colaborando para que pessoas lancem mão de substâncias psicoativas
de maneira abusiva com diversas funções no próprio ambiente familiar.

Embora nem todas as pessoas que usam drogas se tornem


dependentes, com o decorrer do uso podem começar a viver problemas
na escola, no trabalho ou em casa. Esses problemas são variados e vão
desde mudanças de humor ou na qualidade de sono (comprometendo
a saúde física) até violência intra e interfamiliar, causando alterações
psíquicas e relacionais.

Família e uso de drogas


Em geral, o uso e abuso de drogas é um tema que preocupa os
familiares, e as reações destes são variadas ao tratar do assunto. Os
pais de crianças e jovens têm grande temor em relação ao uso de
drogas e, muitas vezes, observam-se sentimentos de raiva, inseguran-
ça, estresse e impotência entre aqueles que já convivem com o abuso
ou dependência de álcool e/ou outras drogas dos filhos. Sentimentos
como esses também ocorrem em outras relações familiares (filhos e
pais, esposa e marido) nas quais uso de drogas se faz presente. Nos
depoimentos de pais cujos filhos estão envolvidos no tráfico de
drogas ou cumprindo medidas socieducativas são comuns sentimen-
tos perturbadores de medo, cansaço e culpa.

Muitas vezes a imagem que surge na cabeça dos pais ao pensar


sobre drogas é relacionada a substâncias ilegais como cocaína, crack,
maconha e heroína. Entretanto, resultados de estudos epidemiológicos
mostram que as drogas de maior consumo no Brasil (tanto entre adultos
como entre adolescentes) são as lícitas, ou seja, aquelas vendidas livre-

277
MÓDULO V
mente, destacando-se bebidas alcoólicas, cigarro, muitos medicamen-
tos e alguns solventes, como cola de sapateiro, acetona e tíner.

Para discutir tal assunto de maneira clara, é necessário ampliar


nossa compreensão para muito além da droga, observando a pessoa
como um todo e o meio em que ela vive, e, além disso, lidar com os
estigmas e preconceitos que permeiam esse tema. Assim, é no ambiente
familiar que a prevenção tem início. Preocupações frequentes dos pais
em relação às consequências do abuso e da dependência de drogas,
principalmente as lícitas, quando devidamente consideradas, podem
auxiliar na construção de programas de ações comunitárias visando à
prevenção.

O papel da família na prevenção ao uso de drogas


Estudos na área de prevenção ressaltam a importância
do papel da família, desempenhando tanto um fator de risco como
de proteção ao uso de drogas psicoativas.

O sistema familiar é uma das principais fontes formadoras de


comportamentos e crenças sobre saúde. Nesse sentido, a prevenção
do uso de drogas tem início na família e continua na escola.

Assim, podemos dizer que a prevenção começa na infância


com as questões aparentemente mais simples do dia a dia dos pais, da
criança e da família como um todo. A valorização de hábitos saudáveis
pode ser um bom começo: a alimentação, o cuidado com o corpo, a
utilização adequada de medicações (com orientação de um profissio-
nal de saúde), entre outros. Além disso, os comportamentos dos pais
são modelos para os filhos e, desse modo, é importante estar atento
aos próprios hábitos – por exemplo, consumo excessivo de bebidas

278
UNIDADE 12
alcoólicas, cigarros ou medicamentos –, bem como à forma de lidar
com as dificuldades e com a ansiedade na própria família.

A prevenção também pode acontecer no processo de convi-


vência cotidiana nos mais diferentes aspectos: expressividade e envol-
vimento afetivos, comunicação clara e sincera, aprendizado sobre os
limites, isenção de culpa e discernimento quanto às tarefas e papéis de
pais e filhos. Esse processo é fundamental para que situações de prote-
ção ocorram com crianças e adolescentes e estes tenham os riscos rela-
cionados a vulnerabilidades, entre elas uso de drogas, diminuídos.

Entretanto, vale ressaltar que, dependendo do contexto no


qual está inserida, a família fica prejudicada em suas tarefas básicas em
relação ao cuidado, fenômeno conhecido como invisibilidade familiar
e social. Estudos com grupos de pessoas, incluindo famílias vivendo
na marginalidade, apontam que elas passam por um processo de
desfiliação, predispondo-as a riscos significativos. A desfiliação é um
fenômeno de desqualificação, dissociação e invalidação social na
maneira como a sociedade vai determinando o lugar que cada um
ocupa em seu meio. Nesse cenário, as famílias, principalmente as de
classes socialmente desfavorecidas, foram, em um passado recente,
demasiadamente culpabilizadas e julgadas em sua “falta de competên-
cia” nas tarefas de cuidar, quando, na verdade, não haviam aprendido
esse exercício em razão de contextos variados e adversos. O ambiente
familiar vulnerável, pais que abusam de drogas, falta de autoridade e
de envolvimento afetivo dos pais e outros fatores de natureza
macrossocial estão associados a fatores de risco que, em um ciclo
contínuo, predispõem crianças e jovens à desfiliação, e o abuso de
drogas faz parte da trajetória para a marginalidade e exclusão social.

Nesse sentido, a prevenção do uso de drogas passa pela


(in)formação/educação dos pais em relação às ações e atitudes
equilibradas nas práticas educacionais sobre autoestima, autonomia e

279
MÓDULO V
competência de crianças e adolescentes. Os pais, embora busquem “o
melhor para seus filhos”, não raras vezes também necessitam de
orientações e informações adequadas para conseguir desempenhar
seus papéis de formadores.

É necessário que a família construa bases para a transmissão da


informação e também funcione como modelo de identificação positiva
na prática do aprendizado de comportamentos saudáveis, desde que,
para isso, sejam construídas condições contextuais favorecedoras,
como emprego, saúde e inclusão social.

A participação da família no tratamento


para dependência de drogas
As propostas de tratamento para dependentes de drogas estão
relacionadas às várias intervenções de acordo com a necessidade de
cada um: diagnóstico, desintoxicação, uso de medicação, terapia
individual ou em grupo e internações. Vale destacar que, quando a
droga está presente na vida de uma pessoa, todo seu ambiente familiar
é afetado e muitos estudos ressaltam a importância da participação
dos familiares no tratamento dos dependentes.

Várias pesquisas indicam que adolescentes dependentes de


drogas cujos pais participam do tratamento apresentam resultados
positivos. Dependentes de drogas adultos também melhoram
significativamente quando sua família é incluída no tratamento. O
envolvimento da comunidade é outro aspecto muito importante na
construção de políticas familiares relacionadas ao abuso de álcool e
outras drogas, permitindo que esse tema seja tratado sem julgamentos
morais e tanto o usuário como sua família recebam atenção e respeito.
Políticas familiares são práticas comuns nos países europeus e

280
UNIDADE 12
ampliam os cuidados em relação à família para além das políticas
públicas de assistência, com a participação direta dos sistemas
familiares na construção de programas voltados para a saúde física,
mental e social das famílias. Estão orientadas para a construção de
redes de sustentação das relações familiares no decorrer do tempo,
ajudando as famílias a resgatar sua autoestima e agir com responsabili-
dade diante de situações adversas. Dessa perspectiva, a família deixa de
ser considerada mera destinatária passiva de intervenção e passa a ser
encarada como sistema ativo, participante e responsável na constru-
ção proposta, tanto de prevenção como de tratamento para uso, abuso
e dependência de drogas.

A família, o adolescente e o uso de drogas


O conceito de adolescência foi proposto pela primeira vez em
1904 pelo psicólogo norte-americano Stanley Hall, que a definiu
como um período tempestuoso e turbulento, ressaltando principal-
mente os aspectos negativos e pejorativos dessa fase.

Hoje, a adolescência não é mais vista como tempestuosa, mas


como um período evolutivo e de transição entre a infância e a idade
adulta. Assim, a existência de períodos conturbados ou “crises”
depende muito da maneira como nós olhamos e interpretamos a
manifestação e a intensidade desses comportamentos entre os adoles-
centes. Assim, podemos estar diante de momentos de indecisão
característicos dessa fase, uma vez que os juízos de valor ainda estão
em desenvolvimento, ou de situações paradoxais, nas quais mesmo
um adulto amadurecido não teria certeza.

Em cada etapa fisiológica, o indivíduo passa por um complexo


processo de diferenciação e maturação. Para que esse processo
281
MÓDULO V
aconteça de modo adequado, ele necessita de impulsos internos e
estímulos externos, os quais podem influenciar positiva ou negativa-
mente seu comportamento, expondo-o muitas vezes a situações de
risco.

Assim, a adolescência é um período de maior suscetibilidade e


vulnerabilidade às influências externas (estímulos externos) e, conse-
quentemente, de maior risco, em razão da curiosidade inerente e
natural dessa fase da vida. Vale ressaltar que, nesse período, as influên-
cias externas ganham importância progressiva. Para alguns pesquisa-
dores, essa é uma época de experimentação natural não apenas de
drogas, mas de diferentes comportamentos e busca de sensações
novas.

Segundo o V Levantamento Nacional sobre o Consumo de


Drogas Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino Fundamental e
Médio nas 26 Capitais Brasileiras e Distrito Federal, promovido pela
SENAD (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas) em parceria
com o CEBRID (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas
Psicotrópicas), 60,5% dos estudantes já tiveram algum contato com
álcool e 16,9%, com tabaco (na vida). No que se refere ao uso de
outras drogas (exceto álcool e tabaco), a Tabela 1 apresenta as
porcentagens de acordo com os tipos de uso, sexo e faixa etária.

Tabela 1 - Consumo de drogas psicotrópicas (exceto álcool e tabaco) entre estudantes

Masculino Feminino 10-12 13-15 16-18 >18


anos anos anos anos
Uso na vida 26,2 24,9* 10,4 22,5 42,8 46,4
Uso no ano 11,0 10,3 5,4 9,6 17,0 15,3
Uso no mês 6,1 4,9* 2,7 4,9 8,7 9,3
Frequente 0,9 0,7 0,3 0,6 1,6 1,2
Pesado 1,3 0,9* 0,4 1,0 1,8 2,2

* Diferença estatisticamente significante.

282
UNIDADE 12
É possível observar que as porcentagens de consumo dobram
na faixa etária inicial de transição para a adolescência (entre 10 e 13
anos) em praticamente todos os padrões de consumo, bem como ta-
xas de consumo expressivas entre os adolescentes e em idades bastan-
te precoces. Nesse sentido, vale lembrar que muitos estudos relacio-
nam a precocidade do uso ao desenvolvimento de dependência – ou
seja, quanto mais cedo o jovem inicia o uso de substâncias, maiores as
chances de ele se tornar dependente.

Razões para o uso de drogas


Considerando esse contexto de busca de novas experiências e
sensações (novos lugares, músicas, amigos, sexo e também drogas),
deve-se mencionar que ter novas experiências não necessariamente
significará problemas para os jovens; ao contrário, muitos se tornarão
adultos saudáveis. No entanto, alguns passam a ter problemas a partir
dessas novas experiências, e é por essa razão que vários estudiosos
consideram a adolescência um período de risco para o envolvimento
com drogas. Ao menos em parte, esse risco pode ser atribuído às
próprias características da adolescência, como necessidade de
aceitação pelo grupo de amigos, desejo de experimentar comporta-
mentos vistos como “de adultos”, sensação de onipotência (“comigo
isso não acontece”), grandes mudanças corporais gerando insegu-
rança e aumento da impulsividade.

A curiosidade, sentimento natural dos adolescentes, é um


dos fatores de maior influência na experimentação de álcool e/ou
outras drogas, bem como a opinião dos amigos e a facilidade para

283
MÓDULO V
conseguir drogas. A curiosidade é um dos fatores que os impulsio-
nam a buscar novas sensações.

De modo geral, eles vivem o “aqui e agora”, apresentando


inabilidades para planejar ou antecipar situações, e essa limitada
perspectiva de tempo pode contribuir para a dificuldade de adiar
gratificações. A droga, então, representa a gratificação imediata.

Contudo, não só a busca de prazer está associada ao consumo


de drogas. O uso para aliviar ou evitar sensações e/ou situações
desprazerosas também é frequente. Sintomas depressivos na adoles-
cência, por exemplo, podem fazer parte de uma adolescência normal,
mas muitas vezes também representam um fator de risco. O jovem
que está triste, ansioso e/ou desanimado por vezes procura atividades
ou coisas que o ajudem a se sentir melhor. Nesse sentido, as drogas
podem proporcionar, de maneira imediata, uma melhora ou alívio
desses sintomas. Quanto mais impulsivo e menos tolerante à
frustração for o adolescente, maior será tal risco. Alguns estudos
mostram que adolescentes que apresentam sintomas depressivos
(por exemplo, isolam-se da família e dos amigos ou sentem-se
infelizes, descontentes e incompreendidos, com baixa autoestima) e
buscam no uso de drogas alívio para os sentimentos desagradáveis
passam mais rápido da fase de experimentação para o abuso e,
consequentemente, para a dependência.

Traumas como perdas significativas, abuso físico/sexual e


agressão e outros fatores estressantes também estão associados ao
uso de drogas. Vários estudos mencionam que crianças que sofrem
abuso físico/sexual apresentam maiores chances de ter algum
transtorno afetivo e de usar drogas.

Outro fator importante se refere à precocidade no uso de


drogas. Pesquisas mostram que tal precocidade está relacionada a

284
UNIDADE 12
inabilidades de enfrentamento, baixa autoestima e insegurança. No
que se refere às habilidades de enfrentamento, vale mencionar que
não são todas aprendidas na adolescência. Muitas delas têm origem e
são desenvolvidas ao longo da infância e nas fases iniciais da adoles-
cência. Assim, o afeto, a atenção e o cuidado dos pais/responsáveis
desenvolvem sentimentos de segurança na criança, os quais perdura-
rão ao longo da adolescência, habilitando o indivíduo a enfrentar
situações desagradáveis. Esses sentimentos de segurança, de cuidado
e de conexão com a família têm sido apontados como fatores de
resiliência em situações estressantes, de mudanças e de frustrações.
Termo utilizado original-
Muitos pesquisadores da área de psicologia do desenvolvi- mente pela física, cujo
significado é “resistência ao
mento pontuam a possibilidade de o uso de drogas em fases iniciais da choque”, ou seja, pro-
priedade pela qual a energia
adolescência comprometer o desenvolvimento e aprimoramento das armazenada em um corpo
deformado é devolvida
habilidades de enfrentamento, uma vez que pode alterar o funciona- quando cessa a tensão causa-
dora da deformação elástica.
mento normal de regiões corticais do cérebro responsáveis por tais Essa ideia foi adaptada às
ciências da saúde, incluindo a
atividades. Segundo Nowinski (2003), estratégias de enfrentamento psicologia, como o processo e
a capacidade de adaptação
como solução de problemas e assertividade fazem parte das funções bem-sucedida de uma pessoa
em circunstâncias desafia-
cognitivas que são desenvolvidas e aprimoradas na adolescência. doras, ameaçadoras – por
exemplo, situações de risco e
Portanto, adolescentes que usam drogas para aliviar e/ou evitar adversidades crônicas (MAS-
TEN; GARMEZY, 1985).
No estudo com a família, as
situações desagradáveis provavelmente não desenvolveram essas expressões “resiliência fami-
liar” e “família resiliente” se
habilidades nem as desenvolverão com a manutenção do uso. referem à família que, mes-
mo diante de sérios proble-
mas e adversidades, demons-
tra flexibilidade na capacida-
de de adaptação, apresen-
tando resultados produtivos,
como coesão, comunicação
aberta, busca de resolução
dos problemas de maneira
A família compartilhada e sistema de
crenças positivas para seu
A família pode ser considerada fator de risco ou de proteção bem-estar (WALSH, 1996).

para o uso de substâncias psicoativas. Como fator de proteção, deve


proporcionar autonomia para o jovem e favorecer seus papéis adultos
(socialização/individuação) para um desenvolvimento sadio, com
autonomia, independência e condições para tomar as próprias

285
MÓDULO V
decisões, lembrando que a continência familiar é fundamental para a
formação de um jovem seguro e autoconfiante. Além disso, destaca-
se a importância do papel familiar na formação do adolescente. Cabe
à família proporcionar que a criança aprenda a lidar com limites e frus-
trações. Crianças que crescem em um ambiente com regras claras e
limites geralmente são mais seguras e sabem o que podem e devem
ou não fazer. Quando deparam com um limite, sabem lidar com a
frustração.

Dessa maneira, no âmbito familiar, estudos evidenciam como


fatores que protegem o adolescente do uso de drogas: a relevância dos
vínculos familiares; o apoio da família no processo de aquisição da
autonomia pelo adolescente; o monitoramento dos pais no processo
de crescimento e desenvolvimento do adolescente; o estabelecimen-
to de normas e regras claras para os comportamentos sociais,
incluindo o uso de drogas.

Outro aspecto protetor importante é a percepção de cuidado e


monitoramento dos pais pelos adolescentes, a qual está vinculada ao
sentimento de pertencimento a uma família. Estudos têm constatado
que adolescentes que mencionam menor percepção de cuidado
apresentam maiores chances de sexo sem proteção e de uso frequente
de álcool e maconha.

No que se refere à família como fator de risco, pesquisas mos-


tram a contribuição genética no desenvolvimento da dependência de
substâncias psicoativas, uma vez que filhos de pais dependentes de
álcool e/ou outras drogas têm risco quatro vezes maior de se tornar de-
pendentes. Além do aspecto genético, outros fatores parentais podem
ser considerados de risco para o uso de drogas pelos adolescentes, entre
eles fraqueza ou ausência de vínculos que unem pais e filhos, envolvi-
mento materno insuficiente, práticas disciplinares inconsistentes ou
coercitivas, excessiva permissividade, dificuldades para estabelecer
286
UNIDADE 12
limites, superproteção, educação autoritária associada a pouco zelo e
pouca afetividade nas relações e permissividade do uso de drogas pelos
pais. De Micheli e Formigoni (2002) investigaram qual o local e a
companhia relacionada ao primeiro uso de álcool e/ou outras drogas
pelos adolescentes e verificaram que o primeiro uso de álcool ocorreu,
em geral, na própria casa e na companhia de familiares, o que confirma
a tese de uma atmosfera familiar tolerante e permissiva quanto ao uso.
Além disso, essa permissividade familiar muitas vezes pode estar
relacionada ao próprio consumo feito pelos pais, ou seja, o parâmetro, a
referência do tipo de droga e de que quantidade pode ser usada é o
próprio consumo. De acordo com a Teoria do Aprendizado Social,
quanto mais cedo a criança é exposta a um padrão de comportamento
de risco, maiores são as chances de repetir o mesmo comportamento.

A Teoria do Aprendizado Social enfatiza que o compor-


tamento humano é aprendido pela observação e modelagem,
ou seja, pela observação de outras pessoas, havendo interação
recíproca e contínua entre as influências comportamentais,
ambientais e sociais. Processos como atenção, reprodução
motora, memória e motivação estão envolvidos no aprendiza-
do (BANDURA, 1971).

A socialização das famílias de adolescentes


em conflito com a lei
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE, 2006) mostraram que a taxa de adolescentes entre 12 e 18
287
MÓDULO V
anos em conflito com a lei é de 15%, ou seja, 0,2% de toda a população
do país. A região Sudeste concentra a maior parte em termos
proporcionais, da ordem de 40%.

O levantamento realizado pelo Instituto Latino-Americano das


Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delin-
quente (ILANUD, 2002) demonstrou que é expressiva a quantidade
de usuários de drogas entre os adolescentes privados de liberdade no
país: em 2002, 85,6% faziam uso antes da apreensão, especialmente de
maconha (67,1%), álcool (32,4%), cocaína/crack (31,3%) e inalantes
(22,6%). Adolescentes infratores tendem a construir suas redes sociais
com pessoas do próprio meio de infração, buscando estímulo e apoio
em suas ações ilegais, como roubos, tráfico ou uso de drogas.

As famílias de adolescentes em conflito com a lei devem ser


compreendidas levando em conta o contexto geral em que o ato
infracional foi cometido. Muitas vezes, o adolescente está repetindo uma
“tradição familiar” cometendo delitos, outras, o ato delinquente é uma
tentativa dramática do adolescente de, por meio da transgressão, levar
seu sistema familiar a compreender que as regras familiares habituais
necessitam de reajuste. Os comportamentos delinquentes e os atos
infracionais de adolescentes são sintomas-comunicação pelos quais uma
mensagem está sendo passada para a família, pois foram esgotadas ou
interditadas outras vias de comunicação.

Diante dessas evidências, é possível afirmar que o número de


adolescentes com comportamentos de risco como o uso de drogas e a
prática de infrações é significativo, razão pela qual é indispensável
a criação de programas preventivos direcionados especificamente
para os adolescentes e seus familiares. Nesse sentido, é importante
que os profissionais das instituições judiciárias que tratam com o
usuário de drogas ampliem a visão sobre esse tema. O abusador ou
dependente de drogas é uma pessoa que muitas vezes não é um
288
UNIDADE 12
“infrator inconsequente”, mas necessita de orientação e tratamento,
que se tornarão possíveis com a realização de um trabalho psicossocial
abrangente, incluindo medidas socioeducativas e a participação da
família no processo de mudança.

Conclusões
Este texto priorizou o papel da família na prevenção do uso de
drogas e na promoção da resiliência. Como observado, o problema
do uso de drogas não pode ser reduzido ao contexto individual. A
pessoa está inserida em uma rede de relações que tem (ou deveria
ter) início na família e vive em um contexto sociocultural e histórico.
Assim, a família desempenha um importante papel como mantene-
dora de cuidados materiais e emocionais, além de possuir maiores
chances de promover condições e possibilidades para o desenvolvi-
mento de práticas fundamentais de preservação da saúde e da vida
entre crianças e adolescentes. Por isso, os programas de prevenção
de uso de drogas devem contemplar e disseminar as práticas de
orientação familiar e valorizar as competências das famílias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALAVARSE, G. M. A.; CARVALHO, M. D. B. Álcool e adolescência: o perfil de


consumidores de um município do norte do Paraná. Esc. Anna Nery, v. 10, n. 3, p. 408 -
-416, 2006.

BANDURA, A. Social learning theory. New York: General Learning Press, 1971.

289
MÓDULO V
BARROS, M. A.; PILLON, S. C. Programa Saúde da Família: desafios e
potencialidades frente ao uso de drogas. Rev. Eletr. Enferm., v. 8, n. 1, p. 144-149,
2006. Disponível em: <http://www.fen.ufg.br/revista/revista8_1/
revisao_02.htm>. Acesso em: 01/02/2011.

CARLINI, A. E. et al. I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas


Psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 107 maiores cidades do país – 2001.
São Paulo: CEBRID – UNIFESP, 2002.

CASTEL, R. As armadilhas da exclusão social. In: CASTEL, R.; WANDERLEY, L.


E. W.; BELFIORE-WANDERLEY, M. Desigualdade e a questão social. São
Paulo: Educ, 2004. p. 17-50.

_____. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis:


Vozes, 2005.

CERVENY, C. M. O. (Org.). Família em movimento. São Paulo: Casa do Psicólogo,


2007. p. 155-172.

DE MICHELI, D.; FORMIGONI, M. L. O. S. Are reasons for the first use of drugs and
family circumstances predictors of future use patterns? Addictive Behaviors, v. 27,
n. 1, p. 87-100, 2002.

DONATTI, P. Sociologia delle polítiche familiari. Roma: Carocci, 2003.

_____. L’approcio relazionale alla famiglia. Bologna, 2006.

FLISHER, J. J.; GEREIN, N. Adolescentes. In: HEGGENHOUGEN, H. K.; QUAH,


S. R. (Ed.). International encyclopedia of public health. San Diego: Academic
Press, 2008. v.1, p. 48-55.

GALDURÓZ, J. C. F. et al. V Levantamento sobre o Consumo de Drogas


Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio nas 27
Capitais Brasileiras – 2004. São Paulo: CEBRID – UNIFESP, 2005.

HAWKINS, J. D.; CATALANO, R. F. Communities that care: action for drug


abuse prevention. San Francisco: Jossey-Bass Publishers, 1992.

HINZT, H. C. Espaço relacional na família atual. In: CERVENY, C. Família em


movimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. p. 155-172.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Adolescentes em conflito com a


lei cumprindo medida de internação, por região – 2006. Disponível em:
http://www.promenino.org.br/noticias/especiais/juventudeatras-das-grades-a-
realidade-dos-adolescentes-em-conflito-com-a-lei-no-brasil. Acesso em: 01/02/2011.

290
UNIDADE 12
ILANUD – Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do
Delito e Tratamento do Delinquente. Ato infracional atribuído ao adolescente –
2000 a 2001. Disponível em: <http://www.promenino.org.br/TabId/77/
ConteudoId/6dcc8634-56b0-48db-b75f-00965a8535e2/Default.aspx>. Acesso
em: 01/02/2011.

JUNQUEIRA, M. R.; JACOBY, M. O olhar dos adolescentes em conflito com a lei


sobre o contexto social. Revista Virtual Textos & Contextos, ano V, n. 6, dez. 2006.

KANDEL, D. B. Parenting styles, drug use, and children’s adjustment in families of


young adults. Journal of Marriage and the Family, v. 52, n. 1, p. 183-196, 1990.

KANDEL, D. B.; KESSLER, R. C.; MARGULIES, R. Z. Antecedents of adolescent


initiation into stages of drug use: a developmental analysis. Journal of Youth and
Adolescence, v. 7, n. 1, p. 13-40, 1978.

LIMA, R. A. S.; AMAZONAS, M. C. L. A.; MOTTA, J. A. G. Incidência de stress e


fontes estressoras em esposas de portadores da síndrome de dependência do álcool.
Estudos de Psicologia, v. 24, n. 4, p. 431-439, out./dez. 2007.
MASTEN, A. S.; GARMEZY, N. Risk, vulnerability and protective factors in
development psychopathology. In: LAHEY, B. B.; KAZDIN, A. E. (Ed.). Advances
in clinical child psychology. New York: Plenum Press, 1985. p. 1-52.
MOURA, Y. G.; SILVA, E. A.; NOTO, A. R. Redes sociais no contexto de uso de drogas
entre crianças e adolescentes em situação de rua. Psicologia em Pesquisa, UFJF, v. 3,
n. 1, p. 31-46, jan./jun. 2009.
NOWINSKI, J. Substance abuse in adolescents and young adults. New York:
Norton, 2003.
PONCIANO, E. L. T. Habitando espaços em movimento: indivíduo, família e
contexto sócio-histórico. Dissertação (Doutorado) – Departamento de Psicologia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
ROCHA, S. M. Adolescência, uso de drogas e ato infracional, [20--]. Disponível em:
<http://www.mp.rn.gov.br/caops/caopij/doutrina/doutrina_ato_infracional_droga.
pdf>. Acesso em: 01/02/2011.
SARTI, C. A. Algumas questões sobre família e políticas sociais. In: JACQUET, C.;
COSTA, L. (Org.). Família em mudança. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2004.
p. 193-213.
_____. Família e individualidade: um problema moderno. In: A família
contemporânea em debate. São Paulo: Cortez, 2003. p. 39-49.
SCHENKER, M.; MINAYO, M. C. S. A importância da família no tratamento do uso
abusivo de drogas: uma revisão da literatura. Caderno de Saúde Pública, v. 20, n. 3,
p. 649-659, 2004.

291
MÓDULO V
_____. Fatores de risco e proteção para o uso de drogas na adolescência. Ciência &
Saúde Coletiva, v. 10, n. 3, p. 707-717, 2005.
SILVA, E. A. Abordagens familiares. Jornal Brasileiro de Dependência Química,
v. 21, n. 4, supl. 1, p. 21-24, 2001.
SILVA, E. A. et al. Drogas na adolescência: temores e reações dos pais. Psicologia,Teoria
e Prática, v. 8, n. 1, p. 41-54, 2006.
SUDBRACK, M. F. O. Da obrigação à demanda, do risco à proteção e da dependência à
liberdade: abordagem da drogadição de adolescentes em conflito com a lei. In:
SUDBRACK, M. F. O. et al (Org.). Adolescentes e drogas no contexto da Justiça.
Brasília: Plano, 2003.
TARTER, R. E.; SAMBRANO, S.; DUNN, M. G. Predictor variables by developmental
stages: a center for substance abuse prevention multisite study. Psychology of Addictive
Behaviors, n. 16, supl. 4, p. S3-S10, 2002.
WALSH, F. The concept of family resilience: crisis and challenge. Family Process, v. 35,
n. 3, p. 261-281, 1996.
WIDOM, C. S. The cycle of violence. Science, v. 244, n. 4901, p. 160-166, 1989.

292
UNIDADE 12
RESUMO DA AULA

A família desempenha um papel importante como mante-


nedora de cuidados materiais e emocionais, além de possuir maiores
chances de promover condições e possibilidades para o desenvolvi-
mento de práticas fundamentais de preservação da saúde e da vida
entre crianças e adolescentes.

Além da família, o contexto social é importantíssimo para o


desenvolvimento da personalidade dos indivíduos e, dentro dele, as
redes sociais promovem o intercâmbio de informações, experiências
e conhecimentos. Essas redes serão estudadas a seguir.

293
MÓDULO V
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. Famílias que demonstram flexibilidade na capacidade de adap-


tação, apresentando resultados produtivos, como coesão, comu-
nicação aberta, busca de resolução dos problemas de maneira
compartilhada e sistema de crenças positivas para seu bem-estar do
grupo, são famílias:

a. Unidas.

b. Despreparadas.

c. Resilientes.

d. Informadas.

e. Prevenidas.

2. As mudanças ocorridas em um sistema familiar podem ser


extrapoladas pelas modificações socioculturais do meio externo e é
em seu interior que a identidade pessoal é formada. Isso porque:

a. É o modelo básico de socialização dos indivíduos.

b. É uma democracia.

c. Não é um modelo básico de socialização.

d. Não há nada que correlacione família, indivíduo e meio.

e. Todas estão corretas.

294
UNIDADE 12
3. A adolescência é um período marcado por maior experimentação
de comportamentos de risco, porque:

a. Nessa etapa de desenvolvimento fisiológico, os conflitos são


plenamente controlados pelo indivíduo.

b. Nessa etapa do desenvolvimento fisiológico, a pressão dos


grupos, pares e família não reflete na formação de opiniões.

c. Nessa etapa, os impulsos internos são responsáveis por todo o


comportamento do indivíduo.

d. Nessa etapa, impulsos internos e externos se correlacionam,


levando aos comportamentos.

e. Todas as anteriores.

295
UNIDADE 13

REDES SOCIAIS*
• Definição de rede e identidade social

• Objetivos e características do trabalho em rede

• A importância do trabalho em rede na prevenção


ao uso de drogas

• Dimensões do trabalho comunitário

• Exemplos de trabalhos em rede

* Texto adaptado do original do curso Prevenção ao Uso Indevido de Drogas – Capacitação


para Conselheiros e Lideranças Comunitárias , realizado pela SENAD em 2010
V
REDES SOCIAIS
Paulina do Carmo Arruda Vieira Duarte

O conceito de rede social, como o conjunto de relações


interpessoais concretas que vinculam indivíduos a outros indivíduos,
vem se ampliando a cada dia, à medida que se percebe o poder da
cooperação como atitude que enfatiza pontos comuns em um grupo
para gerar solidariedade e parceria.

O homem, como ser social, estabelece sua primeira rede de


relação com a família, que é também considerada o núcleo primário
de proteção. A interação com a família confere-lhe o aprendizado e a
socialização que se estendem para outras redes sociais. É pela
convivência com grupos e pessoas que se moldarão muitas das
características pessoais determinantes de sua identidade social.
Surgem, nesse contexto, o reconhecimento e a influência dos grupos
como elementos decisivos para a manutenção do sentimento de
pertinência e de valorização pessoal.

Todo indivíduo carece de aceitação, e é na vida em grupo que


ele vai externar e suprir essa necessidade. Os vínculos estabelecidos se
tornam intencionais, definidos por afinidades e interesses comuns.
Então, o grupo passa a influenciar comportamentos e atitudes,
funcionando como ponto em uma rede de referência composta por
outros grupos, pessoas ou instituições, cada qual com uma função
específica na vida da pessoa.

É o equilíbrio dessas interações que vai determinar a qualidade


das relações sociais e afetivas do indivíduo com os pontos de sua rede,
299
MÓDULO V
que são: a família, a escola, os amigos, os colegas de trabalho, entre
outros.

Assim, o indivíduo pode constituir ou fazer parte de uma rede


cujo padrão de interação será positivo, privilegiando atitudes e
comportamentos que valoriza na vida, ou negativo, marcado por
atitudes e comportamentos de agressão à vida.

É importante salientar que o padrão de interação nem sempre


se dá de maneira estanque, pois dificilmente uma pessoa se relaciona-
rá de forma totalmente negativa ou totalmente positiva.

Objetivos das redes sociais


• Favorecer o estabelecimento de vínculos positivos, por meio
da interação entre os indivíduos;

• Oferecer um espaço para reflexão, troca de experiências e


busca de soluções para problemas comuns, permitindo que
as diferenças sejam preservadas;

• Estimular o exercício da solidariedade e da cidadania;

• Mobilizar pessoas, grupos e instituições para a utilização de


recursos existentes na própria comunidade;

• Estabelecer parcerias entre setores governamentais e não


governamentais para implementar programas de orientação
e prevenção pertinentes a problemas específicos apresenta-
dos pelo grupo.

A construção da rede somente será concretizada quando se


associarem os princípios da responsabilidade pela busca de soluções
aos princípios da solidariedade e da cooperação.

300
UNIDADE 13

O trabalho em rede amplia o horizonte de possibilidades da


comunidade, dos profissionais e dos próprios cidadãos na busca de
alternativas de melhoria da qualidade de vida da comunidade e, também,
da solução de problemas específicos.

Características a serem identificadas


e desenvolvidas no trabalho em rede
• Acolhimento – Capacidade de acolher e compreender o ou-
tro sem impor quaisquer condições ou julgamentos nem
impor-se;
• Cooperação – Demonstração do real interesse em ajudar e
compartilhar na busca das soluções;
• Disponibilidade – Demonstração e associação a um com-
promisso solidário;
• Respeito às diferenças étnicas, econômicas e sociais –
Reconhecimento da diversidade e respeito por ela;
• Tolerância – Capacidade de suportar a presença ou interfe-
rência do outro, sem sentimento de ameaça ou invasão;
• Generosidade – Demonstração de um clima emocional po-
sitivo (apoio, carinho, atenção e “dar sem exigir retorno”).
A Figura a seguir ilustra um exemplo da articulação das
características de rede.

Acolhimento Cooperação

Respeito às diferenças

Disponibilidade

Generosidade

Fonte: o autor
Tolerância

301
MÓDULO V
A rede é, ao mesmo tempo, uma proposta de ação e um modo
espontâneo de organização, por meio do qual torna-se possível criar
novas formas de convivência entre as pessoas.

As redes sociais e a prevenção do uso de drogas


O uso de drogas é um importante problema de saúde pública
com enorme repercussão social e econômica para nossa sociedade.
Apesar dos esforços do poder público e da sociedade civil na busca de
alternativas, o aumento do consumo e o fato de as pessoas experimenta-
rem vários tipos de drogas cada vez mais cedo deixam um alerta em uma
direção comum: é preciso prevenir. Prevenir no sentido de educar o
indivíduo para assumir atitudes responsáveis no manejo de situações de
risco que possam ameaçar a opção pela vida.

Essa visão enfatiza a prevenção não apenas como um “pacote


pronto” de divulgação de informações sobre drogas, mas como um
processo que envolve a contribuição de todos, partilhando responsa-
bilidades, estreitando parcerias e aproveitando o que há de positivo
na comunidade. Assim, ganha destaque o saber construído entre
todos no encontro de várias experiências.

A articulação de diferentes pontos da rede social pode


melhorar os espaços de convivência positiva entre as pessoas,
favorecendo a troca de experiências para a identificação de situações
de risco pessoal e fragilidades sociais que possam levar ao uso de
drogas.

Há um caráter transformador nessa nova forma de pensar e


prevenir o uso de drogas por meio do trabalho comunitário e de

302
UNIDADE 13
construção de redes sociais, tendo em vista que este deixa de focalizar
exclusivamente os profissionais e inclui a participação de toda a
comunidade.

É impossível a proteção de todos os riscos, mas é preciso criar


condições para enfrentá-los. Por exemplo, ao participar do atendi-
mento oferecido nos Juizados Especiais Criminais (Jecrims), os
usuários têm a oportunidade de repensar suas escolhas, sua relação
com as drogas e seu envolvimento com a Justiça. Nos Jecrims, o
profissional exerce importante papel ao estabelecer um vínculo de
confiança e escuta do usuário e familiares. Dessa maneira, ajuda-os a
reforçar as redes sociais e os auxilia, também, na prevenção do uso de
drogas e na construção de novos fatores de proteção.

O apoio mútuo, a troca de experiências e a integração social


representam um dos caminhos na busca de alternativas que tragam
bem-estar para todos os integrantes da comunidade. A vivência
comunitária é um veículo para a ampliação da visão de mundo,
geração de conhecimentos, exercício da cidadania e transforma-
ção social.

Na ação comunitária, a ideologia preponderante é a coopera-


ção, cuja força se dá no estabelecimento de uma corrente solidária em
que cada pessoa é importante em sua necessidade ou em sua disponi-
bilidade para ajudar.

Essa proposta é inovadora, pois enfatiza a importância do


encontro dos saberes locais para a construção do saber coletivo. A
experimentação permanente, o movimento de integração contínua
entre os diversos indivíduos diante de uma tarefa comum a ser
cumprida não só abrem caminho para uma atuação efetiva, mas
também permitem a transformação.

303
MÓDULO V
O trabalho comunitário pode ser definido segundo três
dimensões:

• A participação, que gera mudanças na maneira de se


posicionar e nas atitudes práticas das pessoas diante do
problema. Nessa perspectiva, a intervenção adquire outra
eficácia, porque se fundamenta na contribuição de todos;

• O enraizamento social, ou seja, o trabalho tem sua origem


no grupo de pessoas para o qual a ação se dirige. Nesse caso,
enfatiza-se uma atuação de parcerias que tem como
resultado o funcionamento em rede de todas as iniciativas
ligadas à prevenção;

• As parcerias múltiplas, que permitem uma percepção global


dos recursos da comunidade e evitam que a intervenção seja
restrita à ação de especialistas. O trabalho exige a utilização
de recursos comunitários não mobilizados até então.

Por meio dessas dimensões, a maneira inovadora de perceber


o envolvimento das pessoas com as drogas na comunidade permite
conhecer melhor a realidade, na medida em que se articulam saberes
diferentes para chegar a um saber mais abrangente.

As ações de prevenção na comunidade assumem natureza


distinta e mais abrangente, e, por essa razão, os operadores do direito
precisam estar preparados e integrados nas redes sociais. É importante
que se incentive a troca de experiências para que visões diferentes do
problema se complementem e promovam a solidariedade diante das
dificuldades.

Ao mesmo tempo que a prevenção do uso abusivo de drogas


exige conhecimentos especializados, o trabalho comunitário de cons-
trução das redes sociais mostra que a prevenção é função de todos os

304
UNIDADE 13
cidadãos. Cada pessoa tem um papel a desempenhar e uma compe-
tência a oferecer para o objetivo comum de articular e sustentar a rede
social. Assim, inicia-se um processo de construção de um novo saber.
O saber popular junta-se aos saberes acadêmico e político para
construir um saber comum a todos.

O trabalho de prevenção desenvolvido desse modo vai muito


além da divulgação de conhecimentos específicos sobre as drogas. A
diversidade de experiências e visões sobre o problema, graças à
participação dos diferentes segmentos sociais ou das pessoas interes-
sadas em querer solucioná-lo, enriquece a comunidade, pois todos
têm alguma contribuição a dar, independentemente do papel social
desempenhado.

O desafio fundamental de quem trabalha nessa área é enfrentar


o sentimento de impotência diante de problemas de natureza social e
econômica. Nesse caso, a prática de redes sociais também oferece um
suporte relevante centrado na integração que se estabelece em torno
do objetivo comum que o grupo tem. Com esse modelo de atuação,
nascem novas maneiras de encarar o problema e abrem-se outras
perspectivas, pois a crise é considerada um momento de enorme
potencial para a mudança e para o surgimento de novas possibilidades.

A proposta de implantação de redes sociais favorece o


estabelecimento de estratégias que promovam a aproximação entre
as pessoas de determinada comunidade, reforçando os vínculos
afetivos entre elas e permitindo a circulação das informações necessá-
rias, trocas de experiências, aprendizados recíprocos e construção de
soluções coletivas.

Conhecimento da rede
O conhecimento dos recursos da comunidade é o maior
aliado do profissional. A identificação, a análise e a eleição do recurso
305
MÓDULO V
adequado aumentam as chances de o usuário e/ou familiares terem
acesso à melhor alternativa e se beneficiarem dela.

Quando nos referimos ao “recurso”, estamos falando de uma


rede composta por profissionais, instituições públicas e privadas, além
daquelas que compõem o terceiro setor e que hoje desempenham
importante papel como suporte às redes pública e privada de
tratamento e reinserção social. Conhecer pessoalmente o recurso para
o qual o usuário será encaminhado pode ser o primeiro passo para o
estabelecimento de uma produtiva parceria entre os profissionais do
Judiciário e o recurso comunitário.

Identificação dos recursos comunitários


A identificação dos recursos comunitários não deve estar
limitada:

• à necessidade de encaminhamento imediato;

• ao tipo de profissão ou atividade de quem procura o recurso;

• ao local onde se identifica o problema.

Como conhecer os recursos da comunidade

• Conhecendo a proposta da instituição;

• Buscando informações e referências com outros profissio-


nais da área;

• Conhecendo o local (dependências físicas, higiene, o aten-


dimento prestado pelos funcionários da instituição e, quan-
do possível, o grau de satisfação dos usuários do recurso);

• Acompanhando o atendimento prestado ao trabalhador.

306
UNIDADE 13
Experiências de trabalho em rede
Inúmeras experiências demonstram ser possível o trabalho em
rede. Apresentam-se, a seguir, algumas instituições, organizações,
associações, projetos e programas que realizam esses trabalhos com a
intenção de solucionar ou amenizar os problemas causados pelo uso
abusivo de álcool e outras drogas.

Associação Lua Nova

É uma iniciativa não governamental que tem como objetivo a


reinserção social de jovens mães e seus filhos em situação de vulnerabili-
dade social. Com sede em Sorocaba (SP), desenvolve ações de geração
de renda, trabalho, estudo, desenvolvimento comunitário e cidadania.
Tem como missão "resgatar e desenvolver a autoestima, o espaço social,
a cidadania e a autossustentabilidade de jovens mães vulneráveis, faci-
litando sua inserção como multiplicadoras de um processo de transfor-
mação de comunidades que se encontram em situação de risco”.

Para que isso ocorra, a ONG desenvolve uma série de progra-


mas. A etapa inicial é dar residência, alimentação e assistência médica,
psicológica e educacional às jovens e seus filhos. A etapa seguinte, cha-
mada de “lua crescente”, fomenta o planejamento da futura “vida em
família” e encoraja os primeiros passos para a independência socio-
econômica das residentes. Para chegar a essa etapa, as residentes parti-
cipam de projetos de geração de renda e trabalho, como o Criando Arte,
que consiste na formação de costureiras e criação, desenvolvimento,
produção e venda de bonecas e brindes, e a Panificadora Lua Crescente,
que trabalha na produção e venda de biscoitos artesanais.

Por meio de seu trabalho e dos métodos terapêuticos empre-


gados, a Associação Lua Nova se tornou uma importante referência

307
MÓDULO V
em termos de inserção social de jovens/adolescentes em situações de
risco. Reconhecendo a excelência desses programas e buscando um
efeito multiplicador de experiências bem-sucedidas, a Secretaria
Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) financiou a sistemati-
zação da metodologia Lua Nova com o objetivo de disseminá-la em
outros municípios brasileiros.

Para saber mais, acesse: <http://www.luanova.org.br>.

Terapia Comunitária
Criada pelo psiquiatra e antropólogo Adalberto Barreto,
professor da Universidade Federal do Ceará, a metodologia da terapia
comunitária (TC) tem como fundamento o reconhecimento do
potencial e das competências presentes em cada pessoa, nos grupos e
na comunidade para o enfrentamento dos problemas cotidianos.

Nesse sentido, o trabalho comunitário se revela como impor-


tante estratégia na otimização dos recursos, pois visa a trabalhar a
saúde comunitária em espaços públicos, valorizando a prevenção e a
participação de todos.

O Brasil já conta com mais de 12 mil terapeutas formados, que


são profissionais das áreas de saúde, de educação, social e de seguran-
ça, além de outros voluntários. A TC também tem sido um
instrumento de mobilização de recursos locais e de reflexão sobre o
sofrimento de famílias com problemas decorrentes do uso de álcool
ou outras drogas por algum de seus membros, fortalecendo, assim, os
vínculos sociais e as redes de proteção. Nessa perspectiva, a Senad
promoveu a capacitação de 720 terapeutas comunitários para quali-
ficá-los especificamente no atendimento das questões relativas ao
tema.

Para saber mais, acesse: <http://www.abratecom.org.br>.


308
UNIDADE 13
Central Única das Favelas (CUFA)
É uma organização criada por jovens de várias favelas do país
que buscavam espaço para expressar atitudes, questionamentos ou
simplesmente sua vontade de viver.

Promove atividades nas áreas de educação, lazer, esportes,


cultura e cidadania por meio de recursos como grafite, formação de
DJs, break, rap, audiovisual, basquete de rua, literatura, entre outros.
O hip hop é sua principal forma de expressão e serve como ferramenta
de integração e inclusão social. A CUFA produz, distribui e veicula a
cultura hip hop em publicações, discos, vídeos, programas de rádio,
shows, concursos, festivais de música, cinema, oficinas de arte,
exposições, debates e seminários. A equipe está presente nos 26
estados da União e no Distrito Federal. É composta, em grande parte,
por jovens formados nas oficinas de capacitação e profissionalização
das bases da instituição oriundos das camadas menos favorecidas da
sociedade, que atuam em rede com as comunidades locais.

Para saber mais, acesse: <http://www.cufa.org.br>.

Conheça outros projetos de trabalho em rede

Projeto Pracatum

A Associação Pracatum Ação Social foi fundada em 1994 pelo


músico Carlinhos Brown com o objetivo de desenvolver um trabalho
fundamentado nos temas educação e cultura, mobilização social e
urbanização. Sua missão é a melhoria da qualidade de vida dos
moradores da comunidade do Candeal, em Salvador (BA), por meio
de desenvolvimento comunitário, saneamento básico e programas
educacionais e culturais. As iniciativas sociais incluem questões de

309
MÓDULO V
responsabilidade social e inserção dos jovens da comunidade no
mercado de trabalho. O lugar é um centro de referência em cursos de
formação profissional em moda, costura, reciclagem, idiomas e oficinas
de capoeira, música, dança e temáticas ligadas à cultura afro-brasileira,
além de uma escola infantil.

Para saber mais, acesse: <http://www.carlinhosbrown.com. br>.

Grupo Cultural AfroReggae


O Grupo Cultural AfroReggae é uma organização não
governamental que luta pela transformação social e, através da cultura
e da arte, desperta potencialidades artísticas que elevam a autoestima
de jovens das camadas populares. Tem como missão promover a
inclusão e a justiça social, utilizando a arte, a cultura afro-brasileira e a
educação como ferramentas para a criação de pontes que unam as
diferenças e sirvam como alicerces para a sustentabilidade e o exercício
da cidadania. Atua principalmente na comunidade de origem de seus
membros, Vigário Geral, no Rio de Janeiro, e promove atividades de
amparo a jovens em situação de vulnerabilidade, passíveis de
envolvimento com a criminalidade. Esses jovens passam a integrar
projetos sociais que abrangem atividades de dança, percussão, futebol,
reciclagem de resíduos e capoeira. Atualmente, o grupo tem diversos
projetos sociais e ações em todo o Brasil e fora dele.

Para saber mais, acesse: <http://www.afroreggae.org>.

Grupo Cultural Olodum


Possui a Escola Criativa Olodum, que desenvolve uma série de
cursos, tais como: oficina de mamulengos, dança, teatro, percussão,
dicção e postura de voz, reforço escolar, iniciação musical, História

310
UNIDADE 13
e Português. Na área de saúde, o projeto Pró-Saúde objetiva educar e
informar a população sobre a prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis. O grupo realiza, ainda, campanhas de limpeza urbana
que visam a manter a comunidade limpa e reaproveitar parte do lixo
como material reciclável.

Para saber mais, acesse: <http://www.facom.ufba.br/com


112/olodum _e_timbalada/olodum_index.htm>.

Programa Social da Mangueira


O Programa Social da Mangueira reúne um conjunto de ações
nas áreas de esporte, saúde, educação para o trabalho, lazer e cultura.
As atividades são voltadas para pessoas de diversas idades, de crianças
a idosos. Atualmente o Complexo Olímpico atende cerca de 2.500
crianças e adolescentes e mantém atividades para adultos. O reflexo
direto desse trabalho é o baixo índice de criminalidade infantil e o
aumento da escolaridade na comunidade da Mangueira. A Vila
Olímpica da Mangueira foi escolhida pela BBC de Londres como o
melhor projeto social da América do Sul.

Para saber mais, acesse: <http://www.mangueira.com.br


/site/ conteudo/programas_sociais.asp>.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARATANGY, L. R. Desafios da convivência: pais e filhos. São Paulo: Gente,1998.

ALBORNOZ, M.; ALFARAZ, C. Redes de conocimiento: construcción, dinámica y


gestión. Buenos Aires: RICYT, 2006. 314 p.
311
MÓDULO V
BARBOSA, M. T. S.; BYINGTON, M. R. L.; STRUCHINER, C. J. Modelos
dinâmicos e redes sociais: revisão e reflexões a respeito de sua contribuição para o
entendimento da epidemia do HIV. Caderno de Saúde Pública, v. 16, supl. 1, 2000.

BARNES, J. A. Redes sociais e processo político. In: FELDMAN-BIANCO, B. (Org.).


Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1987. p. 159-
-194.

CASTEL, R. As armadilhas da exclusão social. In: CASTEL, R.; WANDERLEY, L.


E. W.; BELFIORE, M. W. Desigualdade e a questão social. São Paulo: Educ, 2004.
p. 17-50.

_____. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis:


Vozes, 2005.

DUARTE, P. C. A. V. Redes sociais. In: Prevenção ao uso de álcool e outras drogas


no ambiente de trabalho: conhecer para ajudar. Curso a distância. Secretaria
Nacional Antidrogas, Serviço Social da Indústria e Universidade Federal de Santa
Catarina, Brasília, 2006.

_____. Reinserção social. In: Tratamento das dependências químicas: aspectos


básicos. Curso a distância. Secretaria Nacional Antidrogas e Universidade de São
Paulo, Brasília, 2002.

FALEIROS, V. P. Estratégias em serviço social. São Paulo: Cortez, 2001.

GOVERNO FEDERAL. Estudo qualitativo: as redes sociais e as representações de


risco entre usuários de drogas injetáveis. Série Avaliação – Projeto Ajude Brasil.
Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/51projeto
_ajudeBrasil.pdf >. Acesso em: 01/02/2011.

MIRANDA, C. F.; MIRANDA, M. L. Construindo a relação de ajuda. Belo


Horizonte: Crescer, 1983.

OPAS. Redes locales frente a la violencia familiar. Série: Violencia intrafamiliar y


salud. Documento de análise n. 2. La Asociación de Solidariedad para Países
Emergentes. Peru, jun. 1999.

SLUZKI, C. E. A rede social na prática sistêmica: alternativas terapêuticas. São


Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.

312
UNIDADE 13
RESUMO DA AULA

O conceito de rede social, como o conjunto de relações


interpessoais concretas que vinculam indivíduos a outros indivíduos,
vem se ampliando a cada dia, à medida que se percebe o poder da
cooperação como atitude que enfatiza pontos comuns em um grupo
para gerar solidariedade e parceria. No trabalho de prevenção ao uso
indevido de drogas, é fundamental o estabelecimento de múltiplas
parcerias cujo resultado é o funcionamento em rede de iniciativas
ligadas à prevenção.

A articulação de diferentes pontos da rede social pode


melhorar os espaços de convivência positiva entre as pessoas,
favorecendo a troca de experiências para a identificação de situações
de risco pessoal e fragilidades sociais que possam levar ao uso de
drogas. É importante apontar o caráter transformador dessa nova
forma de pensar e prevenir o uso de drogas por meio do trabalho
comunitário e de construção de redes sociais, tendo em vista que este
deixa de focalizar exclusivamente os profissionais e inclui a parti-
cipação de toda a comunidade.

A próxima unidade abordará as políticas de saúde para a


atenção integral ao usuário de drogas. Conhecer essas políticas e sua
aplicabilidade é fundamental para o trabalho do operador do direito,
pois elas estão diretamente relacionadas aos tipos de serviços de
atenção disponíveis para o encaminhamento de indivíduos com
problemas relacionados ao uso de drogas.

313
MÓDULO V
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. Qual o principal papel da rede social?

a. Gerar solidariedade e parceria.

b. Gerar benefício próprio e autonomia.

c. Auxiliar no desenvolvimento de novas frentes.

d. Estimular a individualização das atividades e relações inter-


pessoais.

e. N. D. A.

2. São exemplos do trabalho em rede:

a. Associação Lua Nova, terapia comunitária e AfroReggae.

b. Fazenda Comunitária e Grea.

c. Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos.

d. Comunidade Terapêutica Padre Haroldo Hamm e CUFA.

e. N. D. A.

314
UNIDADE 14

POLÍTICAS DE SAÚDE
PARA A ATENÇÃO INTEGRAL
A USUÁRIOS DE DROGAS
• Princípios doutrinários e diretrizes organizativas
do Sistema Único de Saúde (SUS)

• Reforma Psiquiátrica e criação de uma rede


assistencial baseada em dispositivos extra-hospitalares

• Lei nº 11.343/2006

• Política de Álcool e Outras Drogas

• Articulação das atividades e ações de saúde mental com


os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS)

• CAPS AD e Programa Nacional de Atenção Comunitária


Integrada aos Usuários de Álcool e Outras Drogas

V
POLÍTICAS DE SAÚDE PARA A ATENÇÃO
INTEGRAL A USUÁRIOS DE DROGAS
Telmo M. Ronzani
Daniela C. Belchior Mota

Para maior conhecimento de como os usuários do sistema de


saúde acessam os serviços de prevenção, tratamento e reabilitação e
para que o operador do direito tenha melhores condições de enca-
minhar ou prestar cuidado mais adequado ao usuário de álcool e
outras drogas, é importante que se conheça um pouco sobre a política
de saúde brasileira e como o acesso aos serviços é organizado no
sistema de saúde.

Por essa razão, apresentam-se aqui os seguintes temas:

• A política de saúde brasileira;

• A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral


a Usuários de Álcool e Outras Drogas;

• A rede assistencial para a atenção a usuários de álcool e


outras drogas.

A política de saúde brasileira


Na década de 1980, o intenso debate sobre os direitos humanos
teve como ponto culminante, no Brasil, a elaboração da Constituição
de 1988, a qual destacou a saúde como uma das condições essenciais à
vida digna, sendo, portanto, um direito humano fundamental. Assim, a
política de saúde brasileira foi formulada a fim de viabilizar a garantia
normativa máxima do direito à saúde.
317
MÓDULO V
Na política de saúde, a operacionalização desse princípio
constitucional ocorreu com a implantação do Sistema Único de
Saúde (SUS), cujo funcionamento é organizado pelas Leis nº 8.080/
1990 e nº 8.142/1990. Com o SUS, a saúde passou a ser pensada
como obrigatoriedade do Estado, por meio da responsabilidade das
esferas de governo federal, estaduais e municipais. Isso inclui não só a
gestão do sistema de saúde, mas também a participação dessas esferas
no financiamento e oferta de serviços. O SUS foi concebido com base
nos seguintes princípios doutrinários:

• Universalidade: assegura o direito à saúde a todos os cida-


dãos, independentemente de sua condição de saúde, gênero,
idade, região, condições financeiras etc.

• Integralidade: considera as diversas dimensões do proces-


so saúde-doença que afetam o indivíduo e a coletividade,
atuando na promoção, prevenção e tratamento de agravos.

• Equidade: garante o direito à assistência de acordo com o


nível de complexidade/anuência.

Para que o direito à saúde não seja negado na prática constitu-


cional, há diretrizes organizativas que visam a proporcionar maior
efetividade aos referidos princípios. Entre essas diretrizes, estão: a
descentralização, que aponta a esfera municipal como principal
forma de acesso aos serviços e à gestão de saúde; a hierarquização,
que se refere à criação de uma rede de cuidados em níveis de comple-
xidade para racionalização e melhor gasto dos serviços de saúde; a
participação comunitária ou controle social, que garante a partici-
pação de representantes da comunidade na proposição, fiscalização e
gestão dos sistemas de saúde.

Quanto à participação comunitária, destaca-se a institucionali-


zação dos Conselhos de Saúde e das Conferências de Saúde, definidas
pela Lei nº 8.142/1990. São espaços para que a população possa
318
UNIDADE 14
expor suas demandas e atuar na proposição de diretrizes para a
formulação de políticas e para que o modelo de gestão participativa
do SUS seja consolidado. Portanto, o SUS é o arranjo organizacional
para a implementação da política de saúde. Mas quais são as questões
que afetam a saúde da população e que devem estar incluídas na
agenda da política de saúde?

Embora tradicionalmente o uso de álcool e outras drogas


tenha sido alvo de abordagens moralistas e reducionistas, consideran-
do a diversidade de danos relacionados ao uso dessas substâncias, em
2003 foi publicada no Brasil a Política do Ministério da Saúde para a
Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Essa política
se comprometeu a enfrentar os diferentes problemas associados ao
consumo de álcool e outras drogas como uma questão de saúde
pública.

No próximo tópico você observará como a política de álcool e


outras drogas foi operacionalizada segundo a lógica da política de
saúde brasileira.

A Política do Ministério da Saúde para a Atenção


Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas
De maneira resumida, a história das políticas de saúde mental
no Brasil é marcada por embates e disputas de diferentes interesses, o
que levou à mobilização de diversos setores da sociedade para que
houvesse um cuidado mais digno e humanizado aos portadores de
sofrimento mental. Esse movimento ficou conhecido como Luta
Antimanicomial e propôs as mudanças para a Reforma Psiquiátrica,
que, de modo geral, defendia a inversão do sistema de manicômios
fechados para o tratamento de portadores de sofrimento mental, os

319
MÓDULO V
quais, na maioria das vezes, eram excludentes e desumanizados. Mais
tarde, graças a experiências exitosas que aconteceram no Brasil, foi
possível a formulação da Política de Saúde Mental do Ministério da
Saúde.

A política voltada aos usuários de álcool e outras drogas está


articulada com essa política. Um importante marco institucional é a
Lei nº 10.216/2002, a qual dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais, entre elas os usuários de
álcool e outras drogas, destacando que é responsabilidade do Estado
o desenvolvimento de ações de assistência e promoção de saúde
destinados à essa população. Essa lei direciona também o modelo
assistencial em saúde mental, de acordo com os preceitos do
movimento da Reforma Psiquiátrica, voltada para a criação de uma
rede assistencial baseada em dispositivos extra-hospitalares, a qual
será detalhada a seguir.

Especificamente em relação às políticas sobre álcool e outras


drogas, outro marco legislativo relevante é a Lei nº 11.343/2006,
que prescreve medidas para prevenção do uso de drogas, atenção e
reinserção social de usuários e dependentes, bem como estabelece
normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de
drogas. Segundo essa lei, o usuário e o dependente de drogas que, em
razão da prática de infração penal, estiverem cumprindo pena
privativa de liberdade ou submetidos à medida de segurança têm
garantidos os serviços de atenção à saúde, definidos pelo respecti-
vo sistema penitenciário. Além disso, a mesma lei faz a distinção entre
usuários/dependentes de drogas e traficantes. Embora o porte
continue sendo caracterizado como crime, usuários e dependentes
não estão mais sujeitos à pena privativa de liberdade, mas a medidas
socioeducativas.

320
UNIDADE 14
Desse modo, há a superação do modelo moralizante do
cuidado e o resgate da cidadania dos usuários como sujeitos com
plenos direitos, inclusive o de se cuidar. Da perspectiva teórico-
prática, a política do Ministério da Saúde se baseia nos princípios de
redução de danos, tendo em vista o rompimento com as metas de
abstinência como única possibilidade terapêutica.

A política para os usuários de álcool e outras drogas é conver-


gente com os princípios e orientações do SUS, buscando a universa-
lidade do acesso e do direito à assistência aos usuários. De acordo
com a perspectiva da política de saúde brasileira, é possível verificar
os seguintes pontos principais da política de álcool e outras drogas:

• A integralidade das ações, que envolve desde ações de


promoção e prevenção destinadas à população geral até ações
assistenciais para os usuários que necessitam de tratamento;

• A descentralização e autonomia da gestão pelos níveis


estaduais e municipais para o desenvolvimento de ações
voltadas ao álcool e outras drogas e a estruturação dos servi-
ços mais próximos do convívio social;

• A equidade do acesso dos usuários de álcool e outras drogas


às ações de prevenção, tratamento e redução de danos, de
acordo com prioridades locais e grau de vulnerabilidade;

• A mobilização da sociedade civil e o estabelecimento de


parcerias locais para a defesa e promoção dos direitos.

Para conquistar tais objetivos, a política está organizada segun-


do uma rede de atenção aos usuários de álcool e outras drogas, pois
não se pode considerar a assistência de maneira fragmentada, mas de
forma integral e intersetorial. Esses dois princípios são fundamentais
para nosso curso, porque é com base neles que podemos pensar quão

321
MÓDULO V
importante é articular o setor judiciário com o de saúde para que o
usuário tenha um cuidado integral, de acordo com suas necessidades e
problemas.

Tendo em vista a importância de que o operador jurídico incor-


pore a perspectiva do direito à saúde a sua prática e, desse modo,
proceda ao encaminhamento dos usuários de álcool e outras drogas
para o setor de saúde, descreve-se a seguir como a política brasileira de
álcool e outras drogas organiza a rede assistencial para essa população.

A rede assistencial para os usuários de álcool


e outras drogas
A política de saúde mental brasileira está voltada a viabilizar
que a atenção aos usuários seja baseada em evidências científicas e ao
cuidado integral aos portadores de transtornos mentais, o que envol-
ve práticas de promoção, prevenção e reabilitação.

Apoiada pela Lei nº 10.216/2002, a Política Nacional de Saúde


Mental tem suas diretrizes alinhadas com o processo de Reforma
Psiquiátrica, objetivando consolidar um modelo de atenção aberto,
extra-hospitalar, que possibilite a criação de uma rede assistencial que
promova a inserção dos usuários na comunidade.

De acordo com essa política, busca-se a implantação de


dispositivos assistenciais que evitem o isolamento social e a cronifica-
ção do usuário, isto é, o círculo vicioso de internações hospitalares,
que produzem um distanciamento permanente entre os usuários e
sua rede social.

322
UNIDADE 14
O aparato organizativo pensado para implementar a política e
promover a Reforma Psiquiátrica foram os Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), a fim de substituir de maneira organizada e
gradual o modelo hospitalocêntrico.
As atividades e responsabilidades dos CAPS para a organização
da política de saúde mental são:
• Direcionamento local das políticas e programas de saúde
mental, desenvolvendo projetos terapêuticos e comunitários;
• Dispensação de medicamentos, encaminhamento e acompa-
nhamento de usuários que moram em residências terapêuti-
cas, as quais são alternativas de moradia para os portadores
de transtornos mentais que não contam com suporte familiar
e social suficiente;
• Assessoramento e apoio ao trabalho dos agentes comunitá-
rios de saúde e equipes de saúde da família no cuidado
domiciliar;
• Promoção de saúde e de cidadania das pessoas com sofri-
mento psíquico;
• Atendimento em regime de atenção diária;
• Gerenciamento de projetos terapêuticos oferecendo cuida-
do clínico eficiente e personalizado;
• Promoção da inserção social dos usuários por meio de ações
intersetoriais que envolvam educação, trabalho, esporte,
cultura e lazer, montando estratégias conjuntas de enfrenta-
mento dos problemas;
• Organização da rede de serviços de saúde mental do terri-
tório;
• Suporte e supervisão da atenção à saúde mental na atenção
primária à saúde;
• Regulação da porta de entrada da rede de assistência em
saúde mental da área de abrangência do CAPS;
323
MÓDULO V
• Coordenação com o gestor local as atividades de supervisão de
unidades hospitalares psiquiátricas que atuem no território;
• Atualização da listagem dos pacientes da região que utilizam
medicamentos para a saúde mental.

As atividades desenvolvidas nos CAPS são:


• Atendimento individual;
• Atendimento em grupo e para a família;
• Atividades comunitárias;
• Assembleias ou reuniões de organização do serviço.

Da perspectiva de trabalho em rede e de atenção integral, cada


vez mais se procura articular as atividades e ações de saúde mental
com os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS). A reinserção
social dos portadores de sofrimento mental deve ser realizada na
comunidade onde vivem, e os serviços de APS, assim como as equipes
de saúde da família, podem desempenhar um papel fundamental
nesse processo. Há também a possibilidade de acompanhamento e
melhoria do acesso ao cuidado de saúde de pacientes que não
procuram o CAPS ou que podem ser acompanhados pelas equipes de
saúde da família. Observe, na Figura abaixo, como a rede de saúde
mental é pensada de uma perspectiva integral:

Rede do Centro de Atenção Psicossocial

Fonte: Ministério da Saúde.

324
UNIDADE 14
Os CAPS podem ser de tipo I, II, III, Álcool e Drogas
(CAPS AD) ou Infantojuvenil (CAPSi). A implantação desses
serviços é definida de acordo com o porte do município:
• Municípios com até 20.000 habitantes: rede básica com
ações de saúde mental;
• Municípios com 20.000 a 70.000 habitantes: CAPS I e rede
básica com ações de saúde mental;
• Municípios com mais de 70.000 a 200.000 habitantes: CAPS
II, CAPS AD e rede básica com ações de saúde mental;
• Municípios com mais de 200.000 habitantes: CAPS II,
CAPS III, CAPS AD, CAPSi e rede básica.

Caso o município não possua uma unidade CAPS AD, está


prevista a atenção aos usuários de álcool e outras drogas na moda-
lidade CAPS nele disponível.

Mas como funcionam especificamente os CAPS para usuários


de drogas e como a rede assistencial é organizada para essa população?

Da mesma forma como planejou a assistência à saúde mental,


o Ministério da Saúde está implementando os Centros de Atenção
Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD). Os CAPS AD são
dispositivos com funcionamento ambulatorial e de Hospital Dia, com
trabalho interdisciplinar e integral, procurando oferecer e criar uma
rede de atenção aos usuários de álcool e outras drogas. As atividades e
funções dos CAPS AD são:

• Prestar atendimento diário aos usuários dos serviços, segundo


a lógica de redução de danos;
• Gerenciar os casos, oferecendo cuidados personalizados;
• Prestar atendimento nas modalidades intensiva, semi-in-
tensiva e não intensiva, de acordo com a necessidade dos
usuários, garantindo que eles recebam atenção e acolhimento;

325
MÓDULO V
• Proporcionar condições para o repouso e desintoxicação
ambulatorial de usuários que necessitem de tais cuidados;
• Oferecer cuidados aos familiares dos usuários dos serviços;
• Promover, mediante diversas ações de esclarecimento e
educação da população, a reinserção social dos usuários,
utilizando recursos intersetoriais;
• Trabalhar, com usuários e familiares, os fatores de proteção
para uso e dependência de substâncias psicoativas, buscando
minimizar a influência dos fatores de risco para tal consumo;
• Visar à diminuição do estigma e preconceito relativos ao uso
de substâncias psicoativas, mediante atividades de cunho
preventivo e educativo.

É relevante acentuar que os CAPS AD são instâncias não só de


cuidado aos usuários, mas também de organização e articulação de
toda a rede de atenção aos usuários de álcool e outras drogas.
Com sua regulamentação, o Ministério da Saúde instituiu o Progra-
ma Nacional de Atenção Comunitária Integrada a Usuários de
Álcool e Outras Drogas, o qual objetiva:

• Aperfeiçoar as intervenções preventivas como forma de


reduzir os danos sociais e à saúde representados pelo uso
prejudicial de álcool e outras drogas;
• Organizar e regular as demandas e os fluxos assistenciais;
• Promover, em articulação com instituições formadoras, a
capacitação e supervisão das equipes de APS, serviços e pro-
gramas de saúde mental locais.
Com ênfase na reabilitação e reinserção social de seus usuários,
esse programa está voltado ao desenvolvimento de uma rede de
assistência centrada na atenção comunitária associada à rede de ser-
viços de saúde e sociais.

326
UNIDADE 14
Em situações de urgência decorrentes do consumo indevido
de álcool e outras drogas para as quais os recursos extra-hospitalares
disponíveis não tenham sido bem-sucedidos, está previsto o suporte
hospitalar à demanda assistencial por meio de internações de curta
duração em hospitais gerais (Portaria 2.629, de 28 de outubro de
2009), evitando a internação de usuários de álcool e outras drogas em
hospitais psiquiátricos.

Portanto, a política de álcool e outras drogas é intersetorial e


inclusiva, com ações em várias áreas: saúde, justiça, educação e social.
Por meio do estabelecimento dessa rede de atenção integral ao
usuário e da articulação do CAPS AD com outros níveis de atenção à
saúde e setores da sociedade, a política preconiza que a assistência
deve se pautar por ações de prevenção, tratamento e reinserção
social.

Além dos serviços que compõem a rede do Sistema Único de


Saúde, as comunidades terapêuticas se configuram como importan-
tes dispositivos para o tratamento de usuários de álcool e outras dro-
gas, respondendo por parte significativa dos serviços disponibilizados
em nosso país.

As comunidades terapêuticas surgiram em um contexto de


oposição ao hospital psiquiátrico e sua estrutura rígida, apresentando
uma abordagem de ajuda mútua na qual se almeja a participação ativa
dos usuários no processo terapêutico, em uma comunicação democrá-
tica e igualitária. No Brasil, a regulamentação desses serviços ocorreu
em 2001 e foi atualizada em 2011, com a publicação da Resolução 29
pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), sendo esta
um relevante instrumento técnico sobre as exigências mínimas para o
funcionamento das comunidades terapêuticas.

327
MÓDULO V
Assim, as comunidades terapêuticas podem se constituir uma
modalidade de suporte aos usuários, dado que a maioria delas é de
natureza filantrópica. Tendo em vista a necessidade de atender às
demandas de estruturação e fortalecimento da rede de serviços, a
SENAD, em parceria com o Ministério da Saúde, disponibiliza, por
meio de editais públicos, apoio financeiro a municípios para a
utilização de leitos por usuários de álcool e outras drogas em comuni-
dades terapêuticas. É importante que o operador do direito saiba que
esse pode ser mais um dispositivo assistencial integrado às redes locais
para prover o acolhimento aos usuários de álcool e outras drogas.

No Quadro a seguir estão sintetizados os principais pontos das


portarias que norteiam a atenção ao usuário de álcool e outras drogas.

Quadro 1 - Portarias relacionadas ao usuário de drogas

Portaria GM/MS nº 336/2002: estabelece as modalidades de


serviços CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi e CAPS AD para os
Centros de Atenção Psicossocial.

Portaria GM/MS nº 816/2002: institui, no âmbito do SUS, o


Programa Nacional de Atenção Comunitária a Usuários de
Álcool e Outras Drogas.

Portaria GM/MS nº 2.197/2004: institui, no âmbito do SUS, a


Política Nacional de Atenção Integral a Usuários de Álcool e
Outras Drogas

Portaria GM/MS nº 384/2005: autoriza os CAPS I a atender


usuários de álcool e outras drogas.

Portaria GM/MS nº 1.612/2005: credenciamento e habilitação


de serviços hospitalares de referência para atenção aos usuários
de álcool e outras drogas.

328
UNIDADE 14
Conclusão
Como você pôde observar, existem pressupostos e princípios
da política de saúde brasileira que precisamos resguardar não só como
cidadãos, mas como profissionais de diversas áreas, para que a
população tenha acesso à saúde universal e de qualidade, como
assegura a Constituição.

A política de drogas do Ministério da Saúde procura criar


mecanismos de atenção integral de acordo com a perspectiva geral do
SUS. No entanto, ainda deparamos com uma série de desafios e com a
necessidade de ampliação de nossa rede de cuidados, a fim de
melhorar o acesso ao tratamento e implementar ações de prevenção
mais efetivas.

Nesse sentido, é importante que o operador do direito conhe-


ça como funciona a rede de atenção e como é planejada a política de
drogas. Como apontado, a intersetorialidade e a integralidade são
fundamentais, e o trabalho integrado entre os setores judiciário e de
saúde pode melhorar de maneira significativa a atenção aos usuários.
Por essa razão, é importante conhecer um pouco mais sobre o que é
feito em seu município e procurar parceiros na área de saúde. Com
certeza essa parceria será recompensadora para as partes envolvidas,
sobretudo para o usuário/paciente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Leis nº 10.216, de 6 de abril de 2001; nº 11.343, de 23 de agosto de 2006.

_____. Portarias GM/MS 336, de 19 de fevereiro de 2002; 816, de 30 de abril de


2002; 2.197, de 14 de outubro de 2004; 384, de 5 de julho de 2005; 1.612, de 9
de setembro de 2005.
329
MÓDULO V
BRASIL. Ministério da Saúde. A Política do Ministério da Saúde para a Atenção
Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Brasília: Ministério da Saúde,
2004.

_____. A saúde mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília:


Ministério da Saúde, 2004.

CAMPOS, G. W. S. et al. (Org.). Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec,


2006.

FRENK, J. Dimensions of health system reform. Health Policy, n. 27, p. 19-34, 1994.

VASCONCELOS, C. M.; PASCHE, D. F. O Sistema Único de Saúde. In: CAMPOS,


G. W. S. et al. (Org.). Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2006.

330
UNIDADE 14
RESUMO DA AULA

A implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) foi a opera-


cionalização da garantia normativa máxima do direito à saúde. Com o
SUS, a saúde passou a ser pensada como obrigatoriedade do Estado,
por meio da responsabilidade das esferas de governo federal,
estaduais e municipais. O SUS foi concebido com base nos princípios
doutrinários de universalidade, integralidade e equidade. Para que o
direito à saúde não seja negado na prática constitucional, há diretrizes
organizativas que visam a proporcionar maior efetividade aos refe-
ridos princípios. Entre essas diretrizes estão a descentralização, a
hierarquização e a participação comunitária ou controle social.

Em relação ao uso indevido de drogas, em 2003 foi publicada


no Brasil a Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a
Usuários de Álcool e Outras Drogas. Essa política foi concebida e
articulada à Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde, que
direciona o modelo assistencial de acordo com os preceitos do
movimento da Reforma Psiquiátrica, voltada à criação de uma rede
baseada em dispositivos extra-hospitalares. O aparato organizativo
coerente com os preceitos da Reforma Psiquiátrica foram os Centros
de Atenção Psicossocial (CAPS) e, no caso do uso indevido de álcool
e outras drogas, os CAPS AD.

Ainda em relação às políticas de drogas, outro marco legis-


lativo fundamental é a Lei nº 11.343/2006, a qual prescreve medidas
para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de
usuários e dependentes de drogas, bem como estabelece normas para
repressão à produção não autorizada e ao tráfico de drogas. Segundo
essa lei, o usuário e o dependente de drogas que, em razão da prática
de infração penal, estiverem cumprindo pena privativa de liberdade
331
MÓDULO V
ou submetidos à medida de segurança têm garantidos os serviços de
atenção à saúde, definidos pelo respectivo sistema penitenciário.
Além disso, a mesma lei faz a distinção entre usuários/ dependentes
de drogas e traficantes. Embora o porte continue sendo caracterizado
como crime, usuários e dependentes não estão mais sujeitos à pena
restritiva de liberdade, mas a medidas socioeducativas.

A próxima unidade abordará as estratégias de Redução de


Danos (RD). A RD foca a saúde dos indivíduos e da comunidade em
geral, incluindo os diversos atores que trabalham na prevenção e no
tratamento do uso de drogas. Conhecer as estratégias de RD, seus
alcances, suas limitações e o debate que as envolve permitirá ao
profissional do campo jurídico formular sua compreensão e contribuir
para a definição das melhores alternativas para a questão das drogas
em nosso país.

332
UNIDADE 14
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. Considerando que o uso de drogas é um problema de saúde


pública, em 2003 foi publicada no Brasil a Política do Ministério da
Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas.
Dois princípios do SUS são fundamentais para a realização dessa
política, visto que ela:

a. Controla e universaliza as esferas.

b. Integra e descentraliza as esferas.

c. Integra e controla as esferas.

d. Descentraliza e controla as esferas.

e. Hierarquiza e monopoliza as esferas.

2. O Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada a


Usuários de Álcool e Outras Drogas NÃO objetiva:

a. Aperfeiçoar as intervenções preventivas como forma de


reduzir os danos sociais e à saúde representados pelo uso
prejudicial de álcool e outras drogas.

b. Organizar e regular as demandas e os fluxos assistenciais.

c. Promover, em articulação com instituições formadoras, a


capacitação e supervisão das equipes de APS, serviços e
programas de saúde mental locais.

d. Atender a comunidade.

e. N. D. A.

333
UNIDADE 15

ESTRATÉGIAS DE REDUÇÃO
DE DANOS PARA PESSOAS
COM PROBLEMAS COM
DROGAS NA INTERFACE DOS
CAMPOS DE ATUAÇÃO
DA JUSTIÇA E DA SAÚDE
• Contexto histórico, econômico e político das drogas

• Definição das estratégias de Redução de Danos

• Redução de Danos como estratégia de prevenção ao uso


indevido de drogas

• Limitações do tratamento compulsório e exigência


de abstinência

• Estratégias de Redução de Danos no tratamento

• Parcerias inovadoras entre Saúde e Justiça

V
ESTRATÉGIAS DE REDUÇÃO DE DANOS
PARA PESSOAS COM PROBLEMAS
COM DROGAS NA INTERFACE DOS CAMPOS
DE ATUAÇÃO DA JUSTIÇA E DA SAÚDE
Marcelo Santos Cruz

Introdução
As estratégias de Redução de Danos constituem um conjunto
de princípios e ações para a abordagem dos problemas relacionados ao
uso de drogas utilizado internacionalmente e apoiado pelas instituições
responsáveis pela formulação da Política Nacional sobre Drogas. Os
problemas com as drogas apresentam múltiplas dimensões, incluindo
seus aspectos jurídicos e de saúde, em situações frequentes que podem
ter graves consequências para os indivíduos e para a coletividade.
Conhecer as estratégias de Redução de Danos, seus alcances, limi-
tações e o debate que as envolve permitirá ao profissional do campo
jurídico formular sua compreensão e contribuir para a definição das
melhores alternativas para a questão das drogas em nosso país.

Redução de Danos (RD) constitui uma estratégia


de abordagem dos problemas com as drogas que não parte do
princípio de que deve haver imediata e obrigatória extinção
do uso, seja no âmbito da sociedade ou no caso de cada indi-
víduo, mas que formula práticas que diminuem os danos para
os usuários de drogas e para os grupos sociais com que con-
vivem.

337
MÓDULO V
O que são as estratégias de Redução de Danos?
Para saber o que são essas estratégias, é importante conhecer o
contexto em que surgiram e, para isso, deve-se saber um pouco de sua
história.

Drogas são substâncias utilizadas pelos seres humanos desde os


primórdios da humanidade que têm a propriedade de agir no cérebro,
modificando as funções mentais como o julgamento, o humor, a
percepção (relacionada aos órgãos dos sentidos – a audição, a visão
etc.) e o comportamento de maneira geral. Essa característica levou a
sua adoção em rituais religiosos, como medicamentos para o alívio de
sofrimentos ou simplesmente para produzir prazer. Entre as drogas
usadas há milhares de anos estão o álcool, o ópio (precursor da
morfina) e a Cannabis (planta da maconha). Ao longo da história da
humanidade, cada grupo social determinou as regras de utilização de
drogas e suas proibições. Isso ocorre ainda hoje, pois países e mesmo
religiões diferentes definem de maneira distinta as drogas que podem
e as que não podem ser usadas. O álcool, por exemplo, é uma droga
lícita no Ocidente e proibida entre os povos islâmicos.

Embora estejamos acostumados a relacionar a proibição ao


perigo oferecido por certa substância, essa concepção não é natural, e
sim determinada histórica e culturalmente. Drogas que em nossa
sociedade são lícitas podem ter grande potencial de dano. Álcool,
nicotina, opioides (como a morfina, a heroína, a codeína e a meperi-
dina), anfetaminas e benzodiazepínicos são drogas lícitas, que têm sua
produção, distribuição e consumo regulados por leis, mas podem
provocar dependência e morte. Além disso, o álcool, consumido em
ocasiões sociais e familiares, favorecendo a integração e a confraterni-
zação, é um fator determinante de doenças graves ou fatais e relaciona-
do a situações de violência e acidentes que matam algumas dezenas de
milhares de brasileiros todos os anos. Além de sua dimensão social e
338
UNIDADE 15
cultural, todas as drogas sempre tiveram grande importância econômi-
ca, pois sua comercialização gera riquezas e impostos.

Modos simplistas de compreender a relação desses fatores


com os riscos potenciais levaram a propostas ineficazes e equivocadas
para lidar com tais problemas. Entre elas estão as que supõem que a
ação biológica das drogas sobre o cérebro explica por si só todas as
alterações de comportamento e que todas as pessoas que usam drogas
têm efeitos iguais. Outra concepção antiga e muito arraigada é que as
pessoas que utilizam drogas são moralmente inferiores às demais e
que discipliná-las é suficiente para que modifiquem seu comporta-
mento. Mesmo se tentarmos reduzir a questão das drogas ao que
ocorre com cada indivíduo, esse problema mantém sua complexida-
de, pois o consumo envolve aspectos biológicos (a ação de cada droga
sobre o cérebro e o corpo), psicológicos (como o uso da substância é
inserido na história de cada um e a interação com sua personalidade),
familiares, ocupacionais etc. Tais fatores vão se combinar de uma
forma diferente para cada pessoa.

Assim, a separação das drogas entre lícitas e ilícitas não é


respaldada pelo conhecimento médico, biológico ou psicológico
atual. A legislação brasileira sobre as drogas mudou recentemente,
com ampla participação social, e continua sendo discutida por
juristas, legisladores, especialistas e outros setores da sociedade.

O proibicionismo
Mas de que maneira surgiu o modo como a atual sociedade
brasileira classifica as drogas como lícitas ou ilícitas? A legislação vem
sendo modificada ao longo de muitas décadas, como resultado de
339
MÓDULO V
tratados internacionais e da compreensão social sobre os perigos
associados ao uso de cada droga. Até o início do século XX, drogas
hoje ilícitas, como a cocaína, eram legalmente comercializadas no
Brasil, como parte da formulação de remédios. Entre o final do século
XIX e o começo do XX, um conjunto de forças sociais, que envolvia
interesses políticos, econômicos, preocupações morais e com a saúde,
deu origem a uma série de tratados internacionais proibindo a
produção, venda e consumo dessas substâncias e criando um rígido
controle sobre a produção, venda e consumo de outras, entre elas os
opioides. Autores como Lima (2009) sugerem que a preocupação
com a saúde foi uma motivação secundária, sendo a importância
política e econômica a verdadeira razão da proibição. A relevância da
influência de parcelas intensamente moralistas de algumas religiões,
especialmente na sociedade norte-americana, também é descrita
como indissociável da preocupação de que o uso de drogas produzis-
se a degeneração da sociedade. Nos Estados Unidos, a conjugação
dessas forças culminou na criação da Lei Seca, que, na década de
1930, proibia a produção, venda e consumo de bebidas alcoólicas. O
resultado foi o surgimento de um lucrativo comércio ilegal do álcool
comandado pela máfia, com grande aumento da criminalidade e da
violência.

Hoje, discute-se se a opção pela proibição das demais drogas


ocorrida no princípio do século XX está relacionada ao crescimento
de seu valor como mercadoria, impulsionando o tráfico e o aumento
da violência.

Na década de 1980, com o esmorecimento da Guerra Fria, o


governo Reagan acirrou as práticas proibicionistas criando a expres-
são “guerra às drogas” para designar o incremento do investimento
em ações de repressão do tráfico e do consumo de drogas. Mais uma
vez, a influência norte-americana determinou a direção da política
para as drogas nos demais países do Ocidente.
340
UNIDADE 15
Do ponto de vista da saúde, a estratégia do proibicionismo não
produziu a esperada diminuição dos problemas com as drogas. No
Brasil, até os anos 1990, com a prioridade colocada na repressão, as
ações de saúde, como o tratamento e a prevenção, contavam com
baixíssimo investimento governamental. No campo da prevenção, no
anseio de uma “sociedade livre de drogas”, a estratégia da guerra às
drogas copiava no Brasil a campanha norte-americana do “diga não às
drogas”, enfatizando os aspectos aterrorizantes como forma de
incentivar o distanciamento dos jovens do consumo. Pode-se supor
que uma compreensão que exagerava a dimensão biológica do
consumo enfatizava a necessidade de evitar o contato com as drogas a
qualquer custo. Ignoravam-se as determinações sociais e psicológicas
do uso de drogas na esperança de que os jovens não tivessem contato
com elas. Ao mesmo tempo, e até os dias atuais, crianças e jovens
convivem diariamente com mensagens sociais que vão em direção
oposta, pois incentivam o consumismo, o individualismo e a busca do
prazer imediato. Mudanças nas relações sociais, como o enfraque-
cimento da família, a instabilidade dos empregos e condições sociais
adversas também podem estar relacionadas ao aumento do consumo
de drogas. Para os grupos em piores condições sociais, a falta de pers-
pectivas profissionais e de figuras idealizadas que sirvam de exemplo
pode levar à valorização dos traficantes e do consumo, tornando o
tráfico de drogas um caminho atraente.

No que se refere à assistência à saúde, o proibicionismo tam-


bém se articula com abordagens de tratamento problemáticas. Isso
ocorre porque há frequente associação entre as ideias da "guerra às
drogas" e a exigência de abstinência imediata e generalizada para todas
as pessoas com problema com drogas. Essa concepção ignora que os
indivíduos que usam drogas, embora tenham muitas características de
comportamento semelhantes, são, ao mesmo tempo, muito diferentes

341
MÓDULO V
entre si. Usam drogas específicas de formas distintas, têm característi-
cas ou problemas psicológicos diversos e histórias de vida particulares.
Veremos adiante, de maneira mais detalhada, o impacto do proibicio-
nismo na assistência ao tratamento e as alternativas propostas pela
abordagem de Redução de Danos.

O ressurgimento da Redução de Danos


Práticas de Redução de Danos já eram utilizadas no início do
século XX e cederam à pressão proibicionista de meados do século.
Na década de 1980, na Holanda, usuários de drogas injetáveis (UDIs)
exigiram do governo a disponibilização de serviços que diminuíssem
seus riscos de contrair o vírus da hepatite B. Posteriormente, a
preocupação com o risco de contaminação com a AIDS deu grande
impulso à implementação das atividades de Redução de Danos.
Profissionais foram treinados para fazer contato e receber pessoas
que usavam drogas injetáveis, passando a desenvolver tais serviços em
locais de fácil acesso aos usuários, como em veículos que circulam ou
ficam estacionados em áreas da cidade com maior concentração de
UDIs. As práticas de Redução de Danos passaram a integrar as
estratégias de abordagem do problema com as drogas em inúmeros
países da Europa, na Austrália e nos Estados Unidos.

Surgidas como alternativa para as estratégias proibicionistas,


como a guerra às drogas, as práticas de Redução de Danos baseiam-se,
segundo Andrade (2002), em princípios de pragmatismo, tolerância
e compreensão da diversidade. São pragmáticas porque entendem ser
imprescindível continuar oferecendo serviços de saúde, visando
principalmente à preservação da vida, para todas as pessoas que têm
342
UNIDADE 15
problemas com drogas. Embora se compreenda que para muitos
indivíduos o ideal seria que não usassem mais drogas, sabe-se que isso
pode ser muito difícil, demorado ou até inalcançável. Portanto, é
pragmática a ideia de que é necessário oferecer serviços mesmo para
aquelas pessoas que não querem ou não conseguem interromper o
uso dessas substâncias. A oferta de tais serviços pode evitar que elas se
exponham a situações de risco e viabilizar sua aproximação das insti-
tuições, abrindo a possibilidade de que peçam ajuda posteriormente.
A estratégia de Redução de Danos é tolerante, pois não dá lugar ao
julgamento moral sobre os comportamentos relacionados ao uso de
substâncias e a práticas sexuais, evitando intervenções autoritárias e
preconceituosas. A diversidade é contemplada quando se compreen-
de que cada indivíduo estabelece uma relação particular com as subs-
tâncias e que a utilização de abordagens padronizadas como pacotes
prontos e impostos para todos é ineficaz e excludente.

Redução de Danos como estratégia de prevenção


As ações voltadas para a diminuição dos riscos de contaminação
com micro-organismos por via injetável ou sexual constituíram o im-
pulso inicial das estratégias de Redução de Danos. Posteriormente,
outras práticas de risco se tornaram foco de ações de Redução de
Danos, entre elas os problemas com drogas não injetáveis, como é o
caso do crack nos dias de hoje. Outras atividades preventivas
relacionadas ou não ao uso de drogas têm, atualmente, sido compreen-
didas como coerentes com os princípios de Redução de Danos. É o
caso do uso de cinto de segurança por motoristas de automóveis, do
capacete por motociclistas e da legislação e fiscalização que visam a

343
MÓDULO V
dissociar o uso do álcool da direção de veículos. A legislação sobre a
direção de veículos é compreendida como uma prática de Redução de
Danos, pois ela não proíbe a venda, produção ou mesmo o consumo do
álcool, mas define uma situação em que o uso do álcool não é
permitido, que é a direção de veículos. Nesse caso, a restrição não
invade o direito individual, pois a licença para dirigir é uma concessão
pública.

No Brasil, as estratégias de Redução de Danos foram


implementadas em decorrência da preocupação com o crescimento
do contágio com o HIV entre usuários de drogas injetáveis. Para estes,
as estratégias incluem a troca de seringas usadas por seringas estéreis e
descartáveis, a distribuição de preservativos, a disponibilização de
informações sobre como utilizar o equipamento de injeção com
menos risco de contaminação e sobre cuidados para a prática de sexo
seguro. Além disso, os usuários recebem informações sobre serviços
de saúde para a realização de exames e de tratamento para problemas
clínicos e para a dependência de drogas. Assim, a atividade de troca de
seringa não é um fim em si, mas um serviço oferecido com muitos
outros cujo objetivo geral é a preservação da saúde.

No Brasil, as primeiras ações de Redução de Danos surgiram em


Santos (SP), em 1992. No final da década de 1980, esse município
apresentava altíssimas taxas de prevalência de soropositividade para o
HIV entre usuários de drogas injetáveis. Em um primeiro momento, as
ações propostas foram identificadas, especialmente pelos operadores
do sistema penal, como auxílio ou apologia ao uso de drogas e, por isso,
houve repressão policial a essas atividades e ações civis e criminais
contra seus organizadores, alegando que estimulariam o consumo de
drogas, e, por isso, o projeto foi interrompido. Em 1994, o Conselho
Federal de Entorpecentes (CONFEN) deu parecer favorável à reali-
zação de atividades de Redução de Danos e, em 1995, teve início na
344
UNIDADE 15
Bahia o primeiro programa brasileiro. Tal programa introduziu ações
de Redução de Danos e de riscos associados ao uso de drogas, especial-
mente drogas injetáveis. Foram estabelecidas intervenções de campo
voltadas para os usuários de drogas, fornecendo não apenas informa-
ções sobre o HIV/AIDS, como também insumos de prevenção para
reduzir o risco de infecção pelo HIV.

Em 2003, mais de 150 programas de Redução de Danos esta-


vam em funcionamento no país com o apoio e, na maioria dos casos,
com o financiamento do Ministério da Saúde. Contrariando expecta-
tivas pessimistas, os estudos científicos que se seguiram mostraram que
a implantação dos programas de Redução de Danos não foi acom-
panhada de crescimento da soroprevalência do HIV. Segundo o
Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, o número de casos
notificados de AIDS entre usuários de drogas injetáveis maiores de 13
anos caiu de 4.092 (29,5% do total), em 1993, para 849 (7,7% do
total), em 2007. Estudos realizados em Santos, Rio de Janeiro e Salva-
dor encontraram importante queda na prevalência de soroposi-
tividade para HIV, hepatite B e C quando comparados com pesquisas
empreendidas nas mesmas cidades antes da instituição de estratégias
de Redução de Danos. Nos grupos atendidos pelas estratégias de
Redução de Danos, os estudos também constataram diminuição da
frequência do uso injetável e de compartilhamento de seringas em
Santos, no Rio de Janeiro e em Salvador e aumento do uso de preser-
vativos em Salvador. Essas pesquisas respondem favoravelmente a
uma das importantes indagações sobre as estratégias de Redução de
Danos: se elas são eficientes em diminuir danos e riscos. Outra questão
fundamental é se as estratégias de Redução de Danos aumentam o
consumo de drogas, ao que Mesquita e Bastos (2001) responderam
afirmando que nenhuma pesquisa demonstrou a associação de estra-
tégias de Redução de Danos com o aumento do consumo de drogas.

345
MÓDULO V
Com a ampliação e disseminação dos princípios e das práticas
de Redução de Danos, tal abordagem se expandiu de ações dirigidas à
prevenção para atividades de tratamento.

A interface “Saúde e Justiça” e suas consequências


para as propostas de tratamento
No que se refere ao tratamento de pessoas com abuso ou
dependência de drogas, as concepções que deram origem ao proibi-
cionismo também produzem impasses com frequência. Uma
compreensão equivocada que privilegie os aspectos biológicos ou
morais do uso de substâncias produz formas de tratamento inadequa-
das e ineficazes. Uma compreensão biológica simplista pode supor
que todos os problemas provocados pelas drogas podem ser explica-
dos pela ação das substâncias no cérebro. Outra compreensão
biologicista equivocada é uma extrapolação do modelo das doenças
infecciosas para a situação do uso abusivo de drogas. Segundo essa
concepção, as drogas agiriam como micro-organismos que causariam
a doença ao serem introduzidas no corpo e a cura seria produzida pela
eliminação do agente infeccioso (no caso, a droga). Tal compreensão
pode estar por trás da ideia de que o mero afastamento do indivíduo da
substância (por exemplo, por meio de uma internação) ou o uso de
medicações que o “desintoxiquem” são suficientes como formas de
tratamento. Não é raro que pacientes sejam encaminhados com essa
expectativa ou que seus familiares ou eles próprios procurem trata-
mento com uma esperança exagerada do poder curativo de uma
internação. Quando uma internação ocorre com essa expectativa, a
não ser que o paciente se engaje em abordagens efetivas de trata-
mento, o resultado tende a ser frustrante, pois há grande probabilidade
346
UNIDADE 15
de que, após a alta, a situação se repita como anteriormente, com as
mesmas dificuldades de relacionamento e recaídas.

Isso ocorre porque a mera inexistência da droga no organismo


humano não faz cessar o desejo de usá-la. As alterações provocadas no
sistema nervoso central pelo uso crônico são responsáveis pelo
quadro de abstinência nos primeiros dias em que o indivíduo está sem
a droga. No entanto, ainda que semanas, meses ou anos se passem,
não há garantia de que o desejo intenso pela substância não persista
ou retorne. Pessoas que foram dependentes de nicotina e pararam de
fumar sabem que a vontade de fumar retorna, de maneira mais ou
menos intensa, inúmeras vezes, em muitos casos até anos depois da
interrupção do uso da droga. Elas descrevem que a parte difícil não é
cessar o uso da droga, mas conseguir evitar voltar a fumar. A explica-
ção para esse fenômeno envolve também aspectos biológicos (como
mudanças prolongadas ou persistentes no funcionamento cerebral),
mas certamente inclui as determinações psicológicas e socioculturais.
Exemplificando a interação complexa dos fatores (biológicos, psico-
lógicos e sociais) que dificultam a interrupção do uso de qualquer
droga, pode-se pensar nas pessoas que têm proble-mas com álcool e
cocaína. Em tais casos, além das alterações no funcionamento
cerebral, os indivíduos vivem situações que envolvem seu psiquismo
e suas relações com amigos, familiares e outros, que podem dificultar
bastante seus esforços para parar e manter-se sem utilizar a droga.

Assim, as abordagens terapêuticas não devem ser baseadas


apenas no afastamento, eliminação da droga do organismo ou rever-
são das alterações neuropatológicas, e sim estender-se aos aspectos
psicológicos (por meio dos vários recursos psicoterápicos) e
socioculturais (como a atenção à família e a reinserção social). Apesar
disso, ainda existem no Brasil profissionais e instituições que pro-

347
MÓDULO V
põem tratamentos baseados unicamente no afastamento da droga
por meio de internações (muitas vezes prolongadas) ou apenas na
administração de medicações.

Da mesma forma que uma compreensão biológica simplista, a


articulação de uma visão moralista do uso de drogas com o proibicio-
nismo provoca propostas de tratamento equivocadas, como a ideia de
que disciplinar, punir ou impor a religiosidade podem, simplesmente,
afastar o “desencaminhado” do mundo das drogas. Entre profissiona-
is de Saúde inadequadamente capacitados para atender usuários de
drogas, é comum a concepção de que todos eles são antissociais e que
nada há a fazer para ajudá-los. A capacitação dos profissionais é um
dos atuais desafios para a atenção à saúde nesse campo.

Ainda mais comum que os equívocos descritos é a proposta


frequentemente associada à estratégia proibicionista de exigir absti-
nência imediata para todos os pacientes que iniciam tratamento.

Tratamento compulsório e exigência de abstinência


Outro dos atuais desafios para a questão das drogas é a
necessidade de aperfeiçoar a abordagem dos problemas que
envolvem tanto aspectos da Saúde como da Justiça. Entre estes, uma
das situações mais frequentes é aquela em que um indivíduo detido
por posse de drogas é levado ao juiz, que tem de decidir sua pena. Até
a mudança da lei em 2006 e, principalmente, até o estabelecimento
de um promissor diálogo entre os profissionais da Saúde e da Justiça,
a decisão, em geral, era a de encaminhá-lo para tratamento compul-
sório, sob forma de internação ou ambulatorial. No entanto,
também havia casos de pessoas que recebiam a pena de prisão por
348
UNIDADE 15
porte de drogas, caso não se tratasse de dependentes, nos termos da
Lei nº 6.368/1976.

Na proposta denominada Justiça Terapêutica, era preocupan-


te que coubesse a um profissional que não era do campo da Saúde (o
juiz) determinações como quem devia ou não se tratar e os procedi-
mentos de seu tratamento (onde, como, por quem, durante quanto
tempo e com que frequência). O juiz também definia as sanções
cabíveis nos casos de faltas, abandono de tratamento e recaídas, pois
eram vistos como descumprimento a uma determinação legal e não
como intercorrências comuns e mais bem compreendidas e maneja-
das com os recursos da saúde. Houve até mesmo o encaminhamento
para tratamento de pessoas que não tinham problemas com as drogas,
mas eram abordadas em uso ou portando quantidade para tal, o que
não necessariamente as categorizaria como dependentes. Um
indivíduo detido por posse de maconha, por exemplo, não necessaria-
mente é dependente de maconha. Nesses casos, a situação era ainda
mais absurda, pois ou mandava-se tratar alguém que não tinha a
“doença” ou lhe restava a pena de prisão. Mesmo considerando os
méritos e boas intenções de projetos de Justiça Terapêutica, a tomada
de decisões pela Justiça sobre outros aspectos da saúde gera preocu-
pação. O Programa do Centro de Justiça Terapêutica de Pernambuco
prevê que

o cumprimento e o sucesso do tratamento poderá ocasionar o


arquivamento do processo se outra medida não for aplicada,
preservando o autor do sistema de encarceramento e da repercussão
negativa em sua vida civil e social.

Nesse caso, quem define e como se define quando o tratamen-


to teve sucesso ou não?

349
MÓDULO V
A sentença de encaminhamento para tratamento compulsório
podia ser respaldada pelo genuíno interesse em propiciar ajuda.
Entretanto, será que em muitos casos não era justificada por uma
compreensão moral ou pela ideia de que o mero afastamento da droga
ou outra forma de imposição da abstinência seria suficiente? Nesses
casos, em geral, os pacientes se colocavam em oposição passiva ao
tratamento, cumprindo burocraticamente o que lhes era imposto. Ao
final do tratamento compulsório, pessoas encaminhadas dessa ma-
neira não haviam mudado sua disposição para voltar a usar drogas.
Receber esse tipo de encaminhamento, com frequência, gerava
constrangimento nos profissionais de Saúde, que se sentiam obriga-
dos a realizar um trabalho em que não acreditavam.

Essa situação ocorre não apenas quando o tratamento é


imposto pela Justiça, mas também quando a família e/ou a equipe de
Saúde decidem, sem a participação do paciente, quando e de que
forma ele deve se tratar. Entrevistas realizadas com profissionais de
Saúde de serviços especializados na assistência a usuários de drogas
mostram que eles questionam o encaminhamento para tratamento
compulsório, relatando a dificuldade de engajamento do paciente
nesses casos e apontando que tal dificuldade também ocorre quando
o paciente chega trazido pela família e mesmo quando vem esponta-
neamente.

Recebi muitos pacientes encaminhados dessa forma quando se falava


em Justiça Terapêutica, hoje recebo poucos. Dos encaminhados pela
Justiça Terapêutica, a adesão era praticamente nenhuma, eles
permaneciam apenas pelo tempo estipulado pela Justiça. Mas essa
questão da adesão nessa clínica não é muito diferente. O toxicômano
se recusa a fazer laço com os ideais que orientam a vida em sociedade.
(psicanalista do CENTRA-RIO, apud MENDES, 2009).

350
UNIDADE 15
Após a nova Lei de Drogas, as entrevistas realizadas com
profissionais de Saúde de serviços especializados na assistência a
usuários de drogas evidenciam uma percepção favorável à mudança
na forma de encaminhamento de pessoas com problemas com drogas
por serviços da Justiça para essas instituições de saúde. Eles destacam
que a aproximação dos serviços da Saúde e da Justiça é bem-vinda,
pois permite melhor compreensão de parte a parte, a diminuição de
expectativas exageradas e, principalmente, a redução dos encaminha-
mentos para tratamentos compulsórios, “nos moldes da Justiça
Terapêutica” .

Equipes experientes no tratamento de dependentes de drogas


sabem que os melhores resultados ocorrem quando os pacientes estão
fortemente envolvidos com o tratamento. Isso significa que eles se
encontram francamente motivados não apenas a participar dos vários
procedimentos terapêuticos propostos, mas também a gerar mu-
danças psíquicas e comportamentais.

Pacientes motivados aceitam com mais empenho participar


com assiduidade de tratamento psicoterápico e grupos de ajuda mú-
tua. Quando necessitam de medicação, engajam-se em manter a
regularidade das doses prescritas e a assiduidade às consultas. No
entanto, mais importante que a participação do paciente nas práticas
de tratamento é sua disposição para mudanças psíquicas e de
comportamento. As mudanças psíquicas envolvem, por exemplo,
abrir mão de uma postura de oposição ao tratamento, à equipe e à
família, passando a se responsabilizar pelas consequências de suas
escolhas. No campo da psicoterapia, essa nova postura se manifesta
pelo surgimento de reflexões do paciente sobre suas dificuldades de
relacionamento e sobre a função de alívio de conflitos ou sofrimento
psíquico que a droga pode exercer para ele. Um paciente motivado ou
implicado no tratamento responde às indagações e hipóteses propos-

351
MÓDULO V
tas pelos terapeutas tomando-as como questões para si, ou seja,
produzindo novas formas de pensar sobre si mesmo, suas escolhas e
seus comportamentos. Mais do que isso, um paciente engajado no
tratamento propõe questões sobre si e as leva ao terapeuta, está atento
às respostas deste e observa de que maneira as experiências e os
modos de agir descritos por outros pacientes, companheiros de
grupo, são semelhantes aos seus. Ele percebe o tratamento não como
algo imposto por outro, mas como uma ferramenta sua para encon-
trar formas mais satisfatórias de viver. As mudanças no comporta-
mento, como a melhora no relacionamento com a família, o
afastamento de pessoas com quem usava drogas e o interesse em
atividades produtivas (por exemplo, educação ou trabalho), são
consequências das mudanças psíquicas, da melhora do bem-estar
emocional e também (mas não exclusivamente) da interrupção do
uso de drogas. Esse cuidado é importante, inclusive, porque há
pessoas que, mesmo estando abstinentes há muitos anos, continuam
tendo a vida girando em torno da droga.

No entanto, as equipes experientes no tratamento de depen-


dentes de drogas também sabem que a plena implicação do sujeito com
seu tratamento, em geral, não é a regra do que ocorre com os que
iniciam um tratamento, nem se produz imediatamente. A motivação
varia de um paciente para outro e, com frequência, a motivação de um
mesmo paciente é flutuante, oscilando em diferentes momentos de sua
trajetória. Esse é um dos motivos pelos quais os profissionais de Saúde
aprendem que não podem ter uma atitude passiva e ficar esperando
que o paciente decida se tratar, tampouco deixar por conta do paciente
tomar todas as decisões sobre os procedimentos indicados no
tratamento, pois, sendo a motivação instável, ele pode colocar
obstáculos ao tratamento que facilitem que a situação se mantenha
inalterada. Assim, as posturas extremas, como impor o tratamento,

352
UNIDADE 15
exigir abstinência e todas as mudanças de conduta ou, de outro lado,
simplesmente aguardar que cada paciente tome todas as decisões, são
equivocadas e improdutivas. Então, como sair desse impasse?
Para responder a tal pergunta, estudiosos de diferentes linhas
teóricas têm se dedicado a investigar e propor técnicas para ajudar os
pacientes que não estão plenamente motivados para o tratamento a se
aproximar desse estágio. Estudiosos da Psicologia Cognitivo-
-comportamental e da Psicanálise se dedicam a investigar o que
denominam, respectivamente, de “motivação para a mudança” e
“constituição da demanda de tratamento”.

Não sendo este espaço o mais indicado para o aprofundamen-


to de tais teorias, optou-se por destacar algumas de suas observações
Do ponto de vista da Psico-
mais relevantes. Entre os aspectos mais importantes sobre a motiva- patologia Fenomenológica,
o termo correto seria
ção de usuários de drogas, é importante destacar questões como a “ambitendência”, uma al-
teração da vontade.
ambiguidade, o controle da vontade e o vínculo terapêutico. No entanto, utiliza-se aqui
o termo “ambiguidade” por
ser consagrado pelo uso
Ambiguidade é uma disposição contraditória diante de uma com o significado descrito.

escolha. É uma dificuldade que se observa com frequência entre


pessoas com problemas com drogas no que se refere a sua motivação
para interromper o uso. Muitas vezes, elas querem intensamente
parar o uso da substância e no momento seguinte decidem reiniciá-lo.
Em alguns casos, os pacientes descrevem que, em um mesmo
momento, eles querem e não querem usar drogas, ou seja, percebem
seus danos e prejuízos e se preocupam com isso, querem evitá-los e
sabem que só o conseguirão interrompendo o uso da droga, no
entanto, permanecem com o desejo de manter o consumo. É preciso
conhecer o fenômeno da ambiguidade para não cair no erro de pensar
que um indivíduo que em um momento diz querer parar de usar
drogas e alguns minutos depois volta a usar necessariamente está
mentindo.

353
MÓDULO V
A ambiguidade apresentada por usuários de drogas também
deve ser compreendida como um fenômeno que tem determinação
tanto biológica como psicológica. Para que essa descrição seja com-
preendida de maneira empática por pessoas que não têm problemas
com drogas nem experiência na atenção a esses problemas, é interes-
sante pensar como todos os indivíduos se encontram em ambiguida-
de em algumas situações da vida. São exemplos corriqueiros: diminuir
ou não a ingestão de alimentos saborosos contraindicados porque
aumentam o colesterol ou acrescentam alguns centímetros à cintura,
começar ou não a fazer exercícios, telefonar ou não para aquela(e)
namorada(o) que já provocou tantos problemas, fazer ou não fazer só
mais esta “comprinha” etc.

A questão do controle da vontade se refere à dificuldade que


esses pacientes muitas vezes apresentam tanto em manter suas deci-
sões como em refrear seus impulsos de modo a evitar riscos ou situa-
ções das quais podem se arrepender posteriormente. Pacientes rela-
tam que as dificuldades de autocontrole não se restringem àquelas
relacionadas ao uso de drogas e incluem, por exemplo, envolver-se
com pessoas que os farão sofrer, comer, jogar ou gastar compulsiva-
mente. Diferentemente do que ocorre com pacientes diagnosticados
com transtorno de personalidade antissocial, os comportamentos
compulsivos de risco são relatados por pessoas com problemas com
drogas com grande angústia e arrependimento. A angústia pode estar
ligada à percepção da própria dificuldade de apreender e mudar com a
experiência, pois o sofrimento gerado pelo comportamento não pro-
duz aumento do controle da vontade em uma situação subsequente.

Outro conceito importante para o tratamento de pessoas com


problemas de drogas é o de vínculo terapêutico. O vínculo terapêuti-
co é aquele que se desenvolve entre o paciente e o profissional ou a

354
UNIDADE 15
equipe que o atende. Tal laço se desenvolve lentamente, pois geral-
mente os pacientes têm receio de ser enganados ou abandonados. O
vínculo também não tem desenvolvimento linear e sofre altos e baixos
de acordo com os sentimentos e acontecimentos que surgem no
tratamento. Porém, pouco a pouco esse vínculo se desenvolve,
propiciando a construção de confiança e facilitando o engajamento
do paciente. O conceito psicanalítico de “transferência” se refere a
certa forma de vínculo do paciente com o terapeuta que é considerada
ferramenta fundamental para as mudanças ocorridas em análise.

De maneira geral, as propostas de tratamento atuais enfatizam


a necessidade de aumentar a motivação ou demanda de tratamento.
Para isso, é importante considerar a ambiguidade quase sempre
presente em suas etapas iniciais. Muitas vezes, o engajamento no
tratamento só ocorre quando o sujeito já não aguenta sua vida e não
suporta as perdas que a droga tem gerado. As abordagens terapêuticas
envolvem vários recursos que, apoiados nas teorias e técnicas
psicoterápicas, favorecem a motivação, diminuem as resistências e
propiciam o estreitamento de um vínculo com o profissional e com a
instituição. Essas abordagens incluem atendimento médico, psicote-
rapia (individual ou em grupo), atendimento e orientação aos
familiares e atividades ocupacionais como oficinas terapêuticas. A
conjugação desses vários recursos frequentemente mobiliza profis-
sionais de múltiplas formações, como médicos, psicólogos, assisten-
tes sociais, enfermeiros e terapeutas ocupacionais, e produz bons
resultados, mostrando a importância do trabalho interdisciplinar
nesse campo.

Estratégias de Redução de Danos no tratamento


No tratamento baseado em Redução de Danos, os objetivos, as
metas intermediárias e os procedimentos são discutidos com o pa-
355
MÓDULO V
ciente, e não impostos. A interrupção do uso de drogas quase sempre
é um dos objetivos, mas outros avanços são valorizados, como evitar
colocar-se em risco, melhorar o relacionamento familiar e recuperar a
atividade profissional. A participação do paciente nas escolhas das
metas e etapas do tratamento valoriza e aumenta sua motivação e
engajamento. Por trajetórias diversas, muitos têm histórias de
relacionamentos conturbados com figuras significativas, e esse é um
dos motivos pelos quais é comum que pessoas com problemas com
drogas tenham problemas com sua autoestima. Essa insegurança é
agravada pelas sucessivas perdas decorrentes do uso de drogas. Por
isso, reagem de forma negativa e intensa quando se sentem contro-
ladas ou criticadas em suas opções.

Muitas vezes, indivíduos que têm problemas com drogas


propõem que o objetivo do tratamento seja controlar o uso de modo a
não ter mais os riscos e prejuízos. Os serviços e profissionais que têm
experiência nesse campo sabem que é muito raro que os pacientes
consigam tal fim e se esforçam para motivá-los a parar. O tratamento
que adota a Redução de Danos como estratégia não se prende ao
consumo da substância como foco. Os aspectos emocionais e sociais,
os modos como o paciente se relaciona com os demais e consigo
mesmo e a função que tem o uso da droga para ele são questões
centrais abordadas no tratamento. Com frequência, a mudança e
melhora nesses aspectos ocorrem em paralelo com a mudança na
relação com a droga. No que se refere ao uso da droga, é comum que
diminuições, interrupções e recaídas ocorram, mas, com o estabeleci-
mento do vínculo terapêutico e a implicação (ou engajamento) do
paciente no tratamento, as mudanças vão se tornando mais sólidas e
consistentes. A evolução flutuante, com avanços e recuos, paradas e
recaídas, também ocorre no tratamento com exigência de abstinência.
Uma das diferenças é que com a estratégia de Redução de Danos não
356
UNIDADE 15
há exclusão daqueles que não querem ou não conseguem interromper
o uso da substância.

A troca de uma droga por outra que diminua riscos e danos


também é um exemplo de prática de Redução de Danos. É o caso do
uso da metadona no tratamento de pessoas com dependência de
opioides, como a morfina ou a heroína. A metadona também é um
opioide e pode provocar dependência da mesma forma, entretanto,
como os riscos e danos são menores, essa substância é prescrita em
serviços médicos nos Estados Unidos e na Europa como forma de
facilitar a retirada da heroína ou como substituição quando os indi-
víduos não conseguem ou não querem interromper o uso. No Brasil,
os casos de dependência de opioides não são tão comuns, mas,
quando ocorrem, o tratamento da dependência também é realizado
em serviços médicos incluindo a troca provisória pela metadona. O
uso de benzodiazepínicos como o clordiazepóxido ou o diazepam no
tratamento da abstinência alcoólica, rotina nos serviços médicos no
Brasil e no exterior, constitui outro exemplo de terapia de substituição
e, portanto, de estratégia de Redução de Danos. Com a terapia de
substituição, a interrupção do uso de drogas pode ser um objetivo a ser
alcançado mais adiante. Assim, não há contradição entre Redução de
Danos e abstinência como meta, mas entre Redução de Danos e
abstinência como exigência para que os pacientes recebam serviços.

Experiências inovadoras na interação entre Justiça


e Saúde
Antes da mudança da lei, o Programa de Estudos e Assistência
ao Uso Indevido de Drogas (PROJAD), do Instituto de Psiquiatria da

357
MÓDULO V
Universidade Federal do Rio de Janeiro, recebia encaminhamentos
da Justiça para tratamento e os profissionais percebiam os resultados
como desanimadores. Com o advento da Lei nº 11.343/2006, o 9°
Juizado Especial Criminal (Jecrim) da Barra e o PROJAD estabelece-
ram uma parceria para o encaminhamento de pessoas envolvidas com
drogas. Os profissionais (juiz e assistente social do Jecrim) estiveram
na reunião de equipe do PROJAD para esclarecer as mudanças da lei e
as penalidades previstas. A convite da equipe do Jecrim, profissionais
do PROJAD (médica, psicóloga, terapeuta de família e assistente
social) passaram a frequentar periodicamente as audiências prelimi-
nares dos detidos com drogas. Essas audiências são coletivas (vários
noticiados por envolvimento com drogas são convocados) e
compõem-se de duas partes: uma informativa geral e outra mais
específica e individual, que discute com o noticiado medidas e penas
adequadas à situação. Na primeira parte, o juiz explana sobre as
consequências jurídicas dos atos (portar ou consumir droga) e as
penalidades previstas e esclarece que, em alguns casos, a diferença
jurídica entre aquele que é julgado como usuário de drogas e o
traficante pode ser tênue e não definida por critérios puramente
objetivos. A seguir, a equipe do PROJAD fala de estratégias (Redução
de Danos ou abstinência) e modalidades de tratamento oferecidas
pela rede pública de assistência. Essa explanação propõe mostrar que
a questão das drogas envolve Justiça, Saúde e dimensões sociais e
culturais, bem como demonstrar a disposição da equipe do PROJAD
para o engajamento do sujeito desde o início de seu tratamento. Na
segunda parte da audiência, enquanto juiz e promotor se reúnem com
cada autor do fato que motivou sua detenção para estabelecer de
maneira consensual uma sanção penal adequada a ser aceita pelo
usuário, a equipe do PROJAD se reúne com os demais detidos e
familiares que porventura tenham comparecido à audiência para
discutir sua situação.
358
UNIDADE 15
Essa audiência é, para alguns envolvidos, a própria pena de ad-
vertência, ficando sanadas as questões judiciais no momento dela.

Outros usuários têm como pena realizar uma visita ao


PROJAD (medida educativa de comparecimento a programa).
Outros autores do fato aceitam cumprir medida de prestação de
serviços no PROJAD, tendo de frequentar o serviço durante um
período determinado pelo juiz.

Nos casos de prestação de serviços no PROJAD, cada caso é


discutido e é definida sua participação. Os autores encaminhados
para esse fim são inseridos em atividades terapêuticas já existentes
(grupo de avaliação de demanda, grupos ou oficinas terapêuticas),
em que ficam como ouvintes, podendo colocar suas questões sempre
que assim o desejarem, sem que isso seja uma obrigação. O objetivo é
que tenham contato com outras pessoas em tratamento para que,
escutando suas histórias, possam se questionar a respeito de sua
relação com a droga, qual papel ela ocupa em sua vida e fazer uma
escolha mais responsável sobre a continuação ou não do uso da
substância.

É importante esclarecer que não se trata de encaminhamento


para tratamento, muito menos para tratamento compulsório. O
interessante é que a equipe observa que, com essa nova forma de
encaminhamento, muitos dos que terminam seu compromisso com a
Justiça pedem para ser atendidos em tratamento. Outros ainda
relatam ter modificado seu padrão de uso da droga ou mesmo sua
relação com ela, além de terem desconstruído ideias preconcebidas
relativas ao tratamento, como pensar que tratamento é para “loucos”
ou para quem já está no “fundo do poço”. Um protocolo de pesquisa
científica está sendo montado com o objetivo de investigar se essa
observação empírica se confirma.

359
MÓDULO V
Comunicações pessoais informam que outras experiências
interessantes têm sido desenvolvidas nessa nova interlocução entre
profissionais da Justiça e da Saúde.

Desafios
Ainda existem grandes desafios para que os problemas com as
drogas encontrem soluções mais satisfatórias. Entre esses desafios
enfrentados pelos profissionais da Justiça e da Saúde inclui-se a
situação do risco sem demanda de ajuda, aquela em que o indivíduo,
por conta de seu envolvimento com drogas, está colocando sua vida
em risco ou oferecendo risco de vida para os demais e, apesar disso,
não percebe a necessidade de tratamento ou não a aceita. Nessa
situação, é importante diferenciar o que é risco imediato, concreto e
grave e o que é risco suposto de longo prazo ou menos provável. Um
caso exemplar de risco suposto de longo prazo é o das pessoas que
fumam tabaco. Sabe-se da grande chance de morte produzida pela
droga (50% das pessoas que fumam morrem de doença associada ao
fumo, segundo a Organização Mundial da Saúde) e, no entanto, não
se cogita tratamento compulsório para fumantes. Por outro lado, um
jovem que usa uma droga e se coloca continuamente em risco sem
perceber a necessidade de tratamento pode precisar receber alguma
forma de controle externo para preservação de sua vida ou dos demais.
Como dito anteriormente, o controle da vontade pode ser
inconstante para algumas pessoas. De maneira geral, seus entes mais
próximos (familiares, amigos e colegas ou chefia de trabalho) podem
ajudá-las a restabelecer seu controle da vontade e, para isso, precisam
exercer alguma pressão, constituindo um controle externo provisório.
Em casos mais graves, ou quando os familiares não conseguem
funcionar como essa instância de controle externo, a intervenção da
360
UNIDADE 15
Justiça é necessária. Mesmo em situações menos graves, como
aquelas em que uma pessoa encaminhada aos juizados por porte de
maconha vai ao serviço de saúde cumprir a exigência legal de
comparecimento e depois pede tratamento, observa-se como a
função de controle externo (nesse caso, exercido pela Justiça) pode
ser produtiva. O problema é que devem ser levadas em conta a
complexidade das questões e a particularidade da situação diversa de
cada um dos envolvidos. O que funciona muito bem para um pode ter
resultados desastrosos para outro.

Para aperfeiçoar os procedimentos em casos como esses e para


a definição de melhores modos de abordar as situações em que o uso
de drogas se encontra na interface da Justiça e da Saúde, é imprescin-
dível o estreitamento da interlocução dos profissionais dessas áreas
de conhecimento. Esse diálogo promissor pode permitir a construção
conjunta de soluções nos campos da prevenção da assistência ao uso
prejudicial de drogas.

361
MÓDULO V
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, T. M. Redução de danos: um novo paradigma? In: Entre riscos e


danos: uma nova estratégia de atenção ao uso de drogas. Ministério da Saúde do
Brasil e União Europeia. Paris: Editions Scientifiques Acodess, 2002. p. 83-86.

ANDRADE, T. M. et al. Redução de danos e redução da prevalência de infecção pelo


HIV entre usuários de drogas injetáveis em Salvador – Bahia. In: BRASIL. Ministério
da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Coordenação Nacional de DST e AIDS. A
contribuição dos estudos multicêntricos frente à epidemia de HIV/AIDS entre
UDI no Brasil: 10 anos de pesquisa e redução de danos. Brasília: Ministério da
Saúde, 2001. p. 95-114.

BASTOS, F. I.; MESQUITA, F. Estratégias de redução de danos. In: SEIBEL, Sergio


D.; TOSCANO JR., Alfredo (Ed.). Dependência de drogas. São Paulo: Atheneu,
2001. p. 181-190.

BASTOS, F. I.; TELLES, P.; HACKER, M. Uma década de pesquisas sobre usuários
de drogas injetáveis e HIV/AIDS no Rio de Janeiro. Parte I: “Rumo a uma epidemia
sobre controle?”. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde.
Coordenação Nacional de DST e AIDS. A contribuição dos estudos multicêntricos
frente à epidemia de HIV/AIDS entre UDI no Brasil: 10 anos de pesquisa e
redução de danos. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. p. 49-78.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa


Nacional de DST e AIDS. Boletim Epidemiológico – AIDS e DST, jan./jun. 2004.
Disponível em: http://www.aids.gov.br/sites/default/files/BOLETIM2.pdf. Acesso
em: 03/03/2010.

CARLINI-COTRIM, B. Movimentos e discursos contra as drogas nas sociedades


ocidentais contemporâneas. Revista da Associação Brasileira de Psiquiatria,
v. 17, n. 3, p. 93-101, 1995.

CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e


dogmático da Lei 11.343/06. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

CRUZ, M. S. Considerações sobre possíveis razões para resistência às estratégias de


redução de danos. In: CIRINO, O.; MEDEIROS, R. (Org.). Álcool e outras drogas:
escolhas, impasses e saídas possíveis. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 13-24.

_____. Formação profissional para o atendimento a usuários de drogas. Tese


(Doutorado em Psiquiatria) – Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, set. 2001.

CRUZ, M. S.; FERREIRA, S. M. B. Determinantes socioculturais do uso abusivo de


álcool e outras drogas: uma visão panorâmica. In: CRUZ, M. S.; FERREIRA, S. M. B.
(Org.). Álcool e drogas: usos, dependência e tratamentos. Rio de Janeiro:
IPUB/CUCA, 2001. p. 95-113.

362
UNIDADE 15
CRUZ, M. S.; SÁAD, A. C.; FERREIRA, S. M. B. Posicionamento do Instituto de
Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos
problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas. Jornal Brasileiro
de Psiquiatria, v. 52, n. 5, p. 355-362, 2003.

DIAS, A. I. S. Políticas de Redução de Danos no Brasil e as lições aprendidas de


um modelo americano. Dissertação (Mestrado) – Escola Nacional de Saúde
Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2008.

LIMA, R. C. C. A história da droga e de seu proibicionismo: relações Brasil-EUA


e os organismos internacionais. Tese (Doutorado) – Escola de Serviço Social,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

MENDES, M. H. S. Drogas: lei, saúde e sociedade. Monografia apresentada no Curso


de Especialização em Assistência a Usuários de Drogas – Instituto de Psiquiatria,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

MESQUITA, F. et al. AIDS entre usuários de drogas injetáveis na região


metropolitana de Santos, na década de 1990. In: BRASIL. Ministério da Saúde.
Secretaria de Políticas de Saúde. Coordenação Nacional de DST e AIDS. A
contribuição dos estudos multicêntricos frente à epidemia de HIV/AIDS entre
UDI no Brasil: 10 anos de pesquisa e redução de danos. Brasília: Ministério da
Saúde, 2001. p. 11-48.

PODER JUDICIÁRIO DE PERNAMBUCO. Disponível em: <http://www.tjpe.


jus.br/justerap/apresentacao.asp>. Acesso em: 01/10/2014.

RODRIGUES, T. Narcotráfico: um esboço histórico. In: VENÂNCIO, R. P.;


CARNEIRO, H. (Org.). Álcool e drogas na história do Brasil. São Paulo: PUC
Minas, 2005.

SÁAD, A. C. Tratamento para dependência de drogas: uma revisão da história e dos


modelos. In: CRUZ, M. S.; FERREIRA, S. M. B. (Org.). Álcool e drogas: usos,
dependência e tratamentos. Rio de Janeiro: IPUB/CUCA, 2001. p. 11-32.

TOSCANO JR., A. Um breve histórico sobre o uso de drogas. In: SEIBEL, S. D.;
TOSCANO JR., A. (Ed.). Dependência de drogas. São Paulo: Atheneu, 2001. p.
181-190.

WHO – WORLD HEALTH ORGANIZATION. Tobacco key facts. Disponível


em: <http://www.who.int/topics/tobacco/facts/en/index.html>. Acesso em:
01/10/ 2014.

363
MÓDULO V
RESUMO DA AULA

Embora estejamos acostumados a relacionar a proibição ao


perigo oferecido por certa substância, essa concepção não é natural,
mas determinada histórica e culturalmente. A legislação sobre as
drogas vem sendo modificada ao longo de muitas décadas, como
resultado de tratados internacionais e da compreensão social sobre os
perigos associados ao uso de cada droga. Nas últimas décadas do
século XIX e primeiras do XX, um conjunto de forças sociais deu
origem a uma série de tratados internacionais proibindo a produção,
venda e consumo dessas substâncias. Na década de 1980, o governo
norte-americano acirrou as práticas proibicionistas criando a
expressão “guerra às drogas”. Do ponto de vista da saúde, a estratégia
do proibicionismo não produziu a esperada diminuição dos
problemas com as drogas, e as práticas de Redução de Danos
surgiram como alternativa para integrar as estratégias de abordagem
do problema com as drogas em inúmeros países.

As práticas de Redução de Danos se baseiam em princípios de


pragmatismo, tolerância e compreensão da diversidade. São prag-
máticas porque entendem ser imprescindível continuar oferecendo
serviços de saúde, visando principalmente à preservação da vida para
todas as pessoas que têm problemas com drogas. Embora se
compreenda que para muitos indivíduos o ideal seria deixar de usar
drogas, sabe-se que isso pode ser muito difícil, demorado ou até
inalcançável. Portanto, é pragmática a ideia de que é necessário
oferecer serviços mesmo para aquelas pessoas que não querem ou não
conseguem interromper o uso dessas substâncias.

364
UNIDADE 15
No que se refere ao tratamento de pessoas com abuso ou
dependência de drogas, as concepções que deram origem ao proibi-
cionismo também produzem impasses com frequência. Uma compre-
ensão equivocada que privilegie os aspectos biológicos ou morais do
uso de substâncias produz formas de tratamento inadequadas e inefi-
cazes. De maneira geral, posturas extremas, como impor o tratamento,
exigir abstinência e todas as mudanças de conduta ou, de outro lado,
simplesmente aguardar que cada paciente tome todas as decisões, são
igualmente equivocadas e improdutivas. No tratamento baseado em
Redução de Danos, os objetivos, as metas intermediárias e os proce-
dimentos são discutidos com o paciente e não impostos. A interrupção
do uso de drogas quase sempre é um dos objetivos, mas outros avanços
são valorizados, como evitar colocar-se em risco, melhorar o relacio-
namento familiar e recuperar a atividade profissional. A participação
do paciente nas escolhas das metas e etapas do tratamento valoriza e
aumenta sua motivação e engajamento.

A próxima unidade abordará o modelo restaurativo para a


solução adequada de conflitos, no contexto dos Juizados Especiais
Criminais e das Varas de Infância e Juventude.

365
MÓDULO V
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. Com base no texto sobre Redução de Danos, assinale verdadeiro


(V) ou falso (F):

( ) As abordagens terapêuticas devem ser baseadas no


afastamento da droga por meio de internações e adminis-
tração de medicações.

( ) As práticas de Redução de Danos podem ser dirigidas tanto


à prevenção do uso de drogas como ao tratamento.

( ) No caso de usuários de drogas injetáveis, estratégias de


Redução de Danos incluem a troca de seringas usadas por
seringas estéreis e descartáveis, mas constatou-se que isso
aumenta o consumo de drogas e não diminui danos ou
riscos de infecção pelo HIV.

( ) As atuais propostas de tratamento enfatizam a necessida-


de de aumentar a motivação ou demanda de tratamento,
diminuindo as resistências e propiciando o estreitamento
de um vínculo com o profissional da saúde.

( ) É necessário oferecer serviços também para as pessoas que


não querem ou não conseguem interromper o uso dessas
substâncias, pois isso pode viabilizar sua aproximação das
instituições, para que possam pedir ajuda posteriormente.

366
UNIDADE 15
2. Com relação aos princípios que norteiam as estratégias de Redução
de Danos, é correto afirmar que:

a. A abstinência é uma exigência para o que o usuário ingresse


no programa.

b. A autonomia da pessoa que usa drogas não é considerada na


escolha das estratégias.

c. A redução do uso de drogas pode ser uma meta negociada ao


longo do programa.

d. O uso de drogas é condição necessária para a adesão ao pro-


grama.

e. A diversidade e a complexidade da questão das drogas não


são consideradas na formulação das propostas.

367
MÓDULO VI
A JUSTIÇA RESTAURATIVA E AS BOAS PRÁTICAS
NOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS E VARAS
DE INFÂNCIA
O último módulo do curso aborda a Justiça Restaurativa
e as possibilidades práticas de sua aplicação, por meio de casos
concretos, no contexto dos Juizados Especiais Criminais e das
Varas de Infância e Juventude. Ele é dividido em:

Unidade 16 – O modelo restaurativo para a solução


adequada de conflitos, no contexto dos Juizados Especiais
Criminais e das Varas de Infância e Juventude

Unidade 17 – Prevenção ao uso de drogas nos Juizados


Especiais Criminais

Unidade 18 – Interface entre drogas, criminalidade e


adolescência: notas para compreensão do modelo legal vigente
UNIDADE 16

O MODELO RESTAURATIVO
PARA A SOLUÇÃO ADEQUADA
DE CONFLITOS,
NO CONTEXTO DOS JUIZADOS
ESPECIAIS CRIMINAIS E DAS
VARAS DE INFÂNCIA
E JUVENTUDE
• Política criminal humanista e Juizados Especiais
Criminais (Jecrims)

• Conceito de Justiça Restaurativa

• Prática da Justiça Restaurativa

• Experiências no Brasil

VI
O MODELO RESTAURATIVO PARA A SOLUÇÃO
ADEQUADA DE CONFLITOS, NO CONTEXTO
DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS
E DAS VARAS DE INFÂNCIA E JUVENTUDE
Roberto Portugal Bacellar
Joaquim Domingos de Almeida Neto

Pirro, rei do Épiro, passou à história como notável general da


Antiguidade, ao vencer o poderoso exército romano na batalha de
Ásculo, em 279 a.C. Todavia, esse triunfo militar causou-lhe tão
elevadas perdas que, segundo a tradição, teria dito: “Mais outra vitória
como esta e estou perdido”. Nascia aí a expressão “vitória de Pirro”, tão
cara a nossos juristas.

Tradicionalmente, o Direito Penal tem sido mero “multi-


plicador de danos”. Utilizando o modelo retributivo, da imposição
de um mal legalmente aceito em troca de outro mal praticado, pou-
co vem contribuindo para a obtenção da paz social.

No que diz respeito às drogas, essa política penal, de inspiração


norte-americana, até então existente, desprezava totalmente o usuário
de drogas e aplicava o modelo retributivo consistente na punição e na
palavra de ordem “pagar o mal com o mal”. Entretanto, esquecia-se de
promover políticas de atendimento, atenção e reinserção social dos
usuários de drogas que eram punidos com penas privativas de
liberdade – ou seja, eram punidos com a mesma pena dos traficantes,
mas em quantidade menor.

373
MÓDULO VI
Como alerta Maria Lúcia Karam (2006),

É preciso buscar instrumentos mais eficazes e menos nocivos do que o


fácil, simplista e meramente simbólico apelo à intervenção do sistema
penal, que, além de não realizar suas funções explícitas de proteção
de bens jurídicos e evitação de condutas danosas, além de não solucio-
nar conflitos, ainda produz, paralelamente à injustiça decorrente da
seletividade inerente à sua operacionalidade, um grande volume de
sofrimento e de dor, estigmatizando, privando da liberdade e alimen-
tando diversas formas de violência.

O momento histórico atual, em boa hora, passa a se inspirar em


um modelo ajustado a outra política: uma política criminal humanista.
O Brasil se afasta, portanto, do modelo repressivo norte-americano
integrado ao movimento de Lei e de Ordem.

Nascem, no contexto humanista, novos paradigmas socio-


jurídicos para o enfrentamento das drogas, distinguindo-se o traficante
(a quem ainda se reserva atuação punitiva) do usuário (para quem se
desenharam políticas de atenção, reinserção e redução das vulnera-
bilidades).

O próprio conceito de direitos humanos leva à necessidade de


repensar a atuação da Justiça penal impondo-se uma nova ao juiz do
século XXI: entregar o direito pacificado ao homem.

É claro que nem todo tipo de conflito permite a adoção de uma


justiça consensual, havendo necessidade de recurso à verdadeira
solução alternativa, a heterocomposição.

374
UNIDADE 16
Nesse sentido, pode-se visualizar graficamente a questão:

Autocomposição, Heretocomposição e tipos de delito

Fonte: o autor

A Constituição cidadã, em seu artigo 98, revoluciona o Direito


Penal brasileiro ao criar a possibilidade de adoção de resposta penal
negociada, dentro da própria estrutura do Estado: os Juizados Espe-
ciais Criminais.

Esse novo sistema de Justiça efetivamente revolucionou o


Judiciário com a extinção do inquérito policial, a implantação da
transação penal e da suspensão condicional do processo, a ampliação
das hipóteses de disponibilidade da ação penal e a aplicação de medidas
alternativas que, gradativamente, modificaram o modelo penal do país.

Acompanhando o movimento da novíssima defesa social, a


favor da descriminalização e contra o uso indiscriminado das penas
privativas de liberdade e das prisões preventivas, nos Jecrims foi
adotado um sistema de despenalização: a criminalidade violenta
continua recebendo tratamento punitivo, porém as pequenas
infrações (de menor potencial ofensivo) passam a ser mais bem
compreendidas e tratadas sem imposição de pena.

Em 2006, com a edição da nova Lei sobre Drogas (Lei nº 11.343,


de 23 de agosto de 2006), o legislador mais uma vez avança, promove

375
MÓDULO VI
alterações importantes e modifica conceitos arraigados de nosso
sistema jurídico. Estabelece para o crime de posse de drogas para uso
próprio penas e medidas diversas da privação da liberdade, além de
trazer para o próprio sistema de fixação das penas o consenso e a visão
interdisciplinar. Isso torna inegável a adoção do conceito de Justiça
Restaurativa pelo Direito Penal brasileiro.

Abandona-se, para toda uma classe de delitos, a visão retribu-


tiva do mal pelo mal, em favor de uma Justiça pós-moderna, que
encara o conflito com o propósito de promover a verdadeira pacifica-
ção e não mais sob a mera roupagem de um tipo penal abstrato.
A promessa de se resolver o problema da violência sem limite é a
razão pela qual aquela outra violência, a limitada, pode e deve ser
suportada, o motivo pelo qual alguns podem ser sacrificados para
tutela de todos os outros, a razão, enfim, pela qual a violência do
Direito Penal seria uma violência não violenta.”

O conceito de Justiça Restaurativa, hoje universal, decorre de


princípios básicos resumidos na Resolução do Conselho Econômico
e Social das Nações Unidas de 13 de agosto de 2002. São eles:

• Programa restaurativo – Qualquer programa que utiliza


processos restaurativos voltados para resultados restau-
rativos;

• Processo restaurativo – Participação coletiva e ativa da vítima


e do infrator, e, quando apropriado, de outras pessoas ou
membros da comunidade afetados pelo crime, na resolução dos
problemas causados pelo crime, geralmente com a ajuda de um
facilitador. O processo restaurativo abrange mediação, conci-
liação, audiências e círculos de sentença;

• Resultado restaurativo – Acordo alcançado por um pro-


cesso restaurativo, incluindo responsabilidades e programas,
tais como reparação, restituição, prestação de serviços
376
UNIDADE 16
comunitários, objetivando suprir as necessidades individuais e
coletivas das partes e logrando a reintegração da vítima e do
infrator.

Como vimos, o exemplo clássico da Justiça Retributiva


criminal se encontra nos Estados Unidos. Ali, segundo Vogel (2003),
“em 31 de dezembro de 2001 quase dois milhões de prisioneiros
estavam a ser mantidos nas prisões federais e estaduais, bem como em
cárceres locais”, índice que corresponde a mais de 450% da média
entre 1925 e 1974 (no ano 2000, o índice era de 478 encarcerados por
100 mil habitantes; entre 1925 e 1974, de 106 por 100 mil); “entre
1982 e 1997 as despesas com punições aumentaram uns colossais
381%, os custos policiais saltaram 204% e os desembolsos para fun-
ções judiciais expandiram-se 267%”, e o desperdício com o sistema de
Justiça criminal nos Estados Unidos foi de aproximadamente US$
130 bilhões em 1997; “o total de população adulta agora [2003] sob
controle correcional ultrapassa os 6,6 milhões”.

Naquele país, detectou-se que as infrações associadas às


drogas constituem os crimes mais comuns em todas as comunidades.
A partir de 1980 houve enorme salto no número de detenções
atribuíveis às drogas, especialmente em razão do ingresso do crack
entre as substâncias mais consumidas.

Diante desse quadro, foram implementados tribunais para


dependentes químicos, visando a conter o abuso de drogas, lícitas e
ilícitas, e estabelecendo a submissão ao tratamento, a manutenção da
abstinência e a troca da sanção mais gravosa (prisão) por uma sanção
mais leve. Entretanto, o sistema norte-americano, baseado em
autoincriminação e no instituto do plea bargain (aceitação de
responsabilidade penal sem processo), ainda reproduz o conceito
de Justiça Retributiva.

377
MÓDULO VI
O figurino legal do processo penal dificilmente serve para
revelar o interesse real das partes. A lide processual encobre a lide real
(sociológica) da vida. Ao juiz é entregue um caderno processual
(quod non est in actis non est in mundo) que compreende as provas e
descreve o litígio jurídico: é a parte visível do iceberg do litígio real
humano.
A Justiça Restaurativa ou reparadora pretende substituir o Direito
Penal, ou pelo menos a punição, por uma reparação na qual, de um
lado, a vítima (e também a comunidade) desempenharia um papel
central na resposta ao delito e na pacificação social, ao passo que, de
outro, se prescindiria em maior ou menor grau da retribuição como
eixo de uma justiça com sintomas de esgotamento. Esta nova Justiça
contribui para que cada parte assuma a responsabilidade por sua
conduta e para proteger a dignidade das pessoas. A mediação seria
sua expressão mais extensa porque implica na possibilidade de
produzir a reintegração social dos delinquentes e em responder às
necessidades das vítimas de acordo com os valores da comunidade
(SAMANIEGO, 2007, p. 76).

Renato Sócrates Gomes Pinto (2005) enfrenta o tema nos


seguintes termos:

A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, em


que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou
membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais,
participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a
cura das feridas, dos traumas e perdas causados pelo crime. Trata-se
de um processo estritamente voluntário, relativamente informal, a
ter lugar preferencialmente em espaços comunitários, sem o peso e o
ritual solene da arquitetura do cenário judiciário, intervindo um ou
mais mediadores ou facilitadores e podendo ser utilizadas técnicas de
mediação, conciliação e transação para se alcançar o resultado

378
UNIDADE 16
restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as necessidades
individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da
vítima e do infrator.

Analisando a possibilidade de aplicação no Direito Penal


brasileiro, Leonardo Sica (2007/2008) propõe uma reconstrução
dogmática do artigo 59 do Código Penal, utilizando o funcionalismo
redutor, que levaria a pena zero quando a mediação for suficiente e
necessária para a reprovação.

No modelo tradicional adversarial, o delito é visto como


violação da lei e à sociedade, sendo a vítima mero objeto de prova para
o processo, que persegue apenas a atribuição da culpa do réu e a
imposição de uma pena. A vontade das partes é desprezada,
entregando-se a um terceiro (o Estado-juiz) a solução do litígio
formal, em verdadeira “terceirização de responsabilidades”.

Em 2006, a Organização das Nações Unidas publicou o


Manual de Programas de Justiça Restaurativa, que apresenta questões-
-chave para a implementação de respostas ao fenômeno criminal
“assentes em abordagens de Justiça restaurativa, bem como um leque
de medidas e programas (flexíveis em sua adaptação aos diferentes
sistemas de Justiça criminal) inspirados nos valores da Justiça
restaurativa”.

O manual confirma e desenvolve a concepção da relevância


dos programas de mediação entre vítima e agressor como principais
iniciativas de Justiça Restaurativa. Nessa linha, elenca os três pressu-
postos básicos que devem preexistir para que a mediação vítima-
-agressor possa ter lugar:

1. O agressor deve aceitar (ou não negar) sua responsabilidade


pelo crime;

379
MÓDULO VI
2. Vítima e agressor devem ser livres de participar ou não
no processo;

3. Vítima e agressor devem sentir segurança ao participar no


processo de mediação.

Observa-se que, em sede penal, a mediação não deve visar ao


estabelecimento de um acordo. Ele é mero instrumento útil para
obtenção da pacificação de relações humanas em conflito,
deslocando o foco do processo para as pessoas envolvidas, tornando
desnecessária a imposição de uma resposta repressiva (retributiva)
substituída por uma resposta construtiva (restaurativa).

Nessa linha, o conceito que se encaixa no âmbito da construção do


novo paradigma elaborado a partir da ideia da Justiça restaurativa
é: a mediação é uma reação penal (concebida sob o ponto de vista
político-criminal) alternativa, autônoma e complementar à Justiça
formal punitiva, cujo objeto é o crime em sua dimensão relacional,
cujo fundamento é a construção de um novo sistema de regulação
social, cujo objetivo é superar o déficit comunicativo que resultou ou
que foi revelado pelo conflito e, contextualmente, produzir uma
solução consensual com base na reparação dos danos e na
manutenção da paz jurídica. (MANNOZZI, 2003, p. 359).

O Poder Judiciário, por meio da aplicação do que tem sido


denominado Justiça Restaurativa, está se aperfeiçoando para dar uma
resposta à solução dos problemas e não apenas à percepção do
passado, da retribuição do mal pelo mal (Justiça Retributiva).

A nova Lei nº 11.343/2006, que instituiu o Sistema Nacional


de Políticas sobre Drogas e prescreveu medidas de prevenção, aten-
ção e reinserção social de usuários e dependentes, representa um
firme passo em direção ao desenvolvimento de uma abordagem
técnica pelos operadores do direito.

380
UNIDADE 16
Essas novas soluções passam pela ideia fundamental da inter-
disciplinaridade e caberá aos operadores do direito vencer precon-
ceitos e implementar nos Jecrims ideias de mediação, intervenção
breve, reconstrução de relacionamentos, restauração de redes fami-
liares, formação de redes sociais, segundo uma nova visão sistêmica.

A necessidade de uma Justiça mais próxima das demandas


sociais é, atualmente, uma questão central na proposta de uma
democracia participativa. A estrutura jurídica formal, por si só, não
atende aos reclames da sociedade, apesar de possuirmos mecanismos
legais, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente e da
própria Constituição da República, que buscam garantir direitos
fundamentais.

Exige-se hoje uma tutela jurídica justa, efetiva e eficaz e,


mesmo assim, em tempo razoável (célere). O controle social do
Estado ainda está preso ao paradigma retributivo com indicação de
pena e privação de liberdade.

A ideia, nessa visão pós-moderna, é amenizar os danos gerados


pelo crime e restaurar as relações pela aplicação da Justiça Restau-
rativa, por consenso e com a participação da comunidade.

A sustentabilidade do Poder Judiciário passa pela percepção


de que o sistema judiciário, com sua atuação especializada (técnico-
-jurídica), mata processos, mas não soluciona conflitos nem pacifica
os contendores. No ambiente criminal, não recupera nem ressocializa
os condenados. Essas novas soluções passam pela fundamental
mudança de mentalidade dos operadores do direito.

Será preciso vencer preconceitos e implementar em todos os


Juízos brasileiros, inclusive nas Varas de Infância e Adolescência

381
MÓDULO VI
(Juventude), as ideias de solução das questões de fundo com a aplicação de
ferramentas de mediação, de intervenção breve, procurando a reconstrução
de relacionamentos, a restauração de redes familiares, a formação de redes
sociais, de acordo com uma visão holística, global e eslética.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVA, E. Metrópoles (in)sustentáveis. Bonsucesso: Relume Dumará, 1997.

BACELLAR, R. P. Juizados Especiais: a nova mediação paraprocessual. São Paulo:


Revista dos Tribunais, 2003.

BACELLAR, R. P.; MASSA, A. A. G. A dimensão sociojurídica e política da nova Lei


sobre Drogas (Lei 11.343/2006). Revista IOB de Direito Penal e Processual
Penal, v. 9, p. 177-195, 2008.

BJS – Bureau of Justice Statistics. Drugs, crime and the criminal Justice system: a
national report. Washington, DC: U.S. Department of Justice, 1992.

BOBBIO, N. Estado, governo e sociedade: por uma teoria geral da política. Trad.
Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. 20. ed. Rio de


Janeiro: Graal, 2004.

KARAM, M. L. Violência de gênero: o paradoxal entusiasmo pelo rigor penal.


Boletim IBCCRIM, n. 168, nov. 2006. Disponível em: <http://www.ibccrim.
org.br>. Acesso em: 28/10/2008.

MANNOZZI, G. La giustizia senza spada: uno studio comparato su giustizia


riparativa e mediazione penale. Milão: Giuffrè, 2003.

382
UNIDADE 16
MARTINS, N. B. Resolução alternativa de conflitos: complexidade, caos e
pedagogia. Curitiba: Juruá, 2006.

MASSA, A. A. G.; BACELLAR, R. P. A interface da prevenção ao uso de drogas e o


Poder Judiciário. 2º Seminário sobre Sustenta-bilidade, 2007. CD-ROM 1.

MASSA, A. A. G.; NOVAK, A. S.; SOUZA, R. P. Responsabilidade social: um


caminho para sustentabilidade. 2º Seminário sobre Sustentabilidade, 2007. CD-
ROM 1.

MESSNER, C. Ermete ovvero sul ruolo delle sanzioni alternative nella politica penale
minorile e l’idea della mediazione. Minorigiustizia, n. 1, p. 76, 1996.

MORIN, E. Epistemologia da complexidade. In: SCHNITMAN, D. F. (Org.).


Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

NETO, F.; FROES, C. Empreendedorismo social: a transição para a sociedade


sustentável. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2002.

ONU. Handbook on Restorative Justice Programmes, United Nations, New York.


Disponível em: <http://www.restorativejustice.org/editions/2007/feb07/
unhandbook>. Acesso em: 05/02/2008.

PINTO, R. S. G. Justiça restaurativa: é possível no Brasil? In: SLAKMON, C.; DE


VITTO, R.; PINTO, R. G. (Org.). Justiça restaurativa. Brasília: Ministério da
Justiça/Programa das Nações Unidas para o Desenvol-vimento – Pnud, 2005. p. 19-
39. Disponível em: <http://www.undp.org/ content/dam/aplaws/
publication/en/publications/democratic-governance/dg-publications-for-website/
justica-restaurativa-restorative-justice-/Justice_ Pub_Restorative%20Justice.pdf >.
Acesso em: 01/10/2014.

RAWLS, J. Uma teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Maria R. Esteves.
São Paulo: Martins Fontes, 2002.

SAMANIEGO, J. L. M. Mediación, reparación y conciliación en el Derecho


Penal. Granada: Comares, 2007.

SANTOS, B. S. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia


participativa. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

_____. Para uma revolução democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007.

_____. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. Trad.


Mouzar Benedito. São Paulo: Boitempo, 2007.

383
MÓDULO VI
SCURO, P. et al. Justiça restaurativa: desafios políticos e o papel dos juízes. In:
SLAKMON, C.; MACHADO, M. R.; BOTTINI, P. C. (Org.). Novas direções na
governança da justiça e da segurança. Brasília: Ministério da Justiça, 2006. v. 1,
p. 543-567.

SEM, A. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São


Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SICA, L. Justiça Restaurativa: críticas e contracríticas. Revista IOB de Direito


Penal e Processo Penal, Porto Alegre, vol. 8, n. 47, dez. 2007/jan. 2008, p. 158-189.
Disponível em: <http://lslannes.com.br/adm/contcli/223/Justica%20
Restaurativa%20Criticas%20e%20contra%20criticas>. Acesso em: 03/02/2015.

SLUZKI, C. E. A rede social na prática sistêmica: alternativas terapêuticas. Trad.


Claudia Berliner. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.

VOGEL, R. D. Capitalismo e encarceramento revisitado. Disponível em:


<http://resistir.info/mreview/capitalismo_encarceramento.html>. Acesso em:
01/02/ 2011.

ZOLO, D.; COSTA, P. O Estado de direito: história, teoria, crítica. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.

384
UNIDADE 16
RESUMO DA AULA

Ao sancionar o porte de drogas para uso pessoal com medidas


alternativas à prisão, a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) adotou,
no que toca a essa infração, o modelo de Justiça Restaurativa, por
meio do qual a solução dos conflitos dá-se não pela repressão/
retribuição, mas por uma resposta consensual e multidisciplinar,
construída com a participação dos envolvidos, especialmente o autor
do fato e a comunidade. Objetivam-se a redução e reparação dos
danos causados pela infração com procedimentos de mediação e
conciliação, tendo como fim último o atingimento da paz social. Com
base nessa nova visão sistêmica, o usuário de drogas se apresenta
como destina-tário de políticas de atenção, reinserção e redução das
vulnerabilidades, competindo aos Jecrims e às Varas de Infância e
Juventude tornar concreta essa nova perspectiva, fomentando a
reconstrução de relacionamentos, a restauração de redes familiares e
a formação de redes sociais.

Nesta unidade você viu o modelo restaurativo de Justiça Penal e


as possibilidades práticas de sua aplicação. Na próxima aprofunda-
remos os conceitos deste módulo examinando a evolução do modelo
até a proposta atual, por meio da análise de casos concretos.

385
MÓDULO VI
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. Em relação à chamada política de drogas proibicionista, que foi


hegemônica no mundo ao longo do século XX e possui inspiração
norte-americana, é INCORRETO afirmar que:

a. Baseia-se no movimento da lei e da ordem.

b. Possui como fundamento o modelo retributivo (punir o mal


do crime com o mal da pena).

c. Tem como foco central a pena privativa de liberdade.

d. Prevê, em relação ao usuário de drogas, o atendimento, a


atenção e a reinserção social.

e. Produz encarceramento em massa.

2. A Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) estabelece, em relação ao


crime de porte de drogas para uso pessoal:

a. Pena de detenção, de seis meses a dois anos.

b. Pena de reclusão, de dois a quatro anos.

c. Penas e medidas alternativas à privação de liberdade.

d. Pena de prisão perpétua.

e. Pena de morte.

386
UNIDADE 17

PREVENÇÃO
AO USO DE DROGAS
NOS JUIZADOS
ESPECIAIS CRIMINAIS
• Uso de drogas e política criminal

• O Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre


Drogas e a Justiça

• As drogas, a despenalização e a aplicação


da Lei nº 9.099/1995 (LJE)

• Plano piloto nos Juizados Especiais Criminais:


prevenção ao uso de drogas

• Crime e Justiça: prevenção ao uso de drogas


pelas lentes restaurativas

• Relação entre Justiça Restaurativa


e prevenção ao uso de drogas

VI
PREVENÇÃO AO USO DE DROGAS
NOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS
Roberto Portugal Bacellar
Adriana Accioly Gomes Massa

Introdução
O consumo de drogas é, sem dúvida, um fenômeno de preocu-
pação sociopolítica e de saúde pública que afeta os mais variados
sistemas sociais, como a família, as escolas, a polícia e o governo.

O antigo modelo “doença-jurídico” utilizado para o enfrenta-


mento do uso de drogas ilícitas no Brasil não reduziu o número de
usuários; contrariamente, houve aumento significativo. Novos mo-
delos foram estudados, e em 2005 foi publicada a Política Nacional
sobre Drogas, com postura descentralizadora e fundamentada no
princípio da responsabilidade compartilhada para o enfrentamento
dessa questão. Com essa recontextualização, várias práticas foram
aparecendo e, no âmbito do Judiciário paranaense, uma proposta de
alternativa penal, de cunho socioeducativo, respaldada em um novo
paradigma restaurativo e não mais punitivo, foi adotada, visando a
prevenir o uso de drogas como forma de precaver as consequências
sociais a ele relacionadas e favorecer o desenvolvimento de uma
sociedade mais saudável.

Da experiência advinda dos Juizados Especiais Criminais


(Jecrims) do Paraná, percebe-se que, quanto maior é o envolvimento
do indivíduo com o uso de drogas, maior é seu comprometimento no

389
MÓDULO VI
mundo da ilegalidade, ou seja, é comum que esse indivíduo, depen-
dente ou não, passe a cometer crimes para a manutenção do uso.

Há evidências de eventuais envolvimentos de usuários de


drogas com crimes como furto, roubo, invasão de domicílio e até
outros mais graves, a exemplo do latrocínio, todos previstos no
Código Penal brasileiro. A proposta deste texto é descrever a atuação
do Poder Judiciário no que concerne ao uso de drogas ilícitas, desde a
entrada em vigor da Lei nº 6.368/1976, considerando as alterações
posteriores, contidas na Lei nº 9.099/1995, dos Juizados Especiais,
até o advento da Lei nº 11.343/2006. Além disso, esta unidade
abordará os fundamentos da lógica jurídica em sua atuação com
usuários de drogas ilícitas, ressaltando os modelos de Justiça Restau-
rativa e Retributiva.

Uso de drogas e política criminal


A reflexão sobre o uso de drogas e a política criminal pode nos
levar a imaginar os crimes como doenças e a lei como a receita do
médico.

Mas tratar todas as doenças com o mesmo remédio trará o


resultado desejado?

A aplicação de pena privativa de liberdade (prisão, em sentido


amplo) é a solução para todos os casos quando a infração penal é o uso
de drogas?

No Brasil, as décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por uma


tentativa de controle do uso de drogas. A política de “combate às
drogas” previa o envolvimento dos poderes do Estado, por meio do

390
UNIDADE 17
Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN), atual Conselho
Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD). Nos estados e
municípios, havia um desdobramento dessas ações na forma de
Conselhos Estaduais e Municipais de Entorpecentes.

Essa política de inspiração norte-americana, até então adotada


no Brasil, anunciava um “combate”, uma “guerra contra as drogas”.
Sua perspectiva paradigmática se baseava em uma cosmovisão própria
e autoritária, partindo do princípio de que é possível existir uma socie-
dade perfeita, sem conflitos e controlável.

Nos anos 1980, foram notórias a expansão do narcotráfico e


sua estruturação como crime organizado, tendo em vista que essa
política não dava a devida atenção ao usuário de drogas, pois pouco
havia sido feito em termos de atendimento aos usuários de drogas.
Como consequência, na década seguinte, observou-se que 134 países
notificaram problemas relacionados ao uso indevido de drogas.

Além de uma política impositiva de abstenção e controle


social, dependentes químicos eram tratados com pacientes psiquiá-
tricos. De maneira geral, utilizava-se a internação como forma de
segregação e exclusão social. É interessante notar que na vigência
dessa política, segundo dados do Centro Brasileiro de Informações
sobre Drogas (CEBRID), teria havido aumento significativo do uso
de drogas no Brasil, principalmente a partir dos anos 1980.

Somente a partir de 1998, com a criação da Secretaria Nacional


Antidrogas, hoje denominada Secretaria Nacional de Políticas sobre
Drogas (SENAD), e o atual Sistema Nacional de Políticas Públicas
sobre Drogas, o Brasil começou a traçar uma política de redução
da demanda de drogas, que passou a envolver estratégias e ações de
prevenção, repressão, tratamento, recuperação, reinserção social e
redução de danos.

391
MÓDULO VI
Nessa mesma linha, a Política Nacional sobre Drogas (PNAD),
de 2005, manteve a estratégia de tratar da prevenção, do tratamento,
da recuperação, da reinserção social e da redução dos danos.

Assim, vivenciamos um momento histórico inspirado em uma


política criminal humanista. Definitivamente, o Brasil se afastou do
modelo norte-americano de “tolerância zero” e de repressão ao crime
apenas pela privação de liberdade (reclusão, detenção e prisão
simples), pelo agravamento das penas (longas e em regime fechado) e
pela eliminação de benefícios às pessoas em conflito com a lei.

Hoje não se imagina mais possível uma sociedade ideal,


perfeita, que tenha conseguido eliminar o crime e a violência. Sabi-
damente, banir o crime e a violência é uma missão árdua, se não
impossível.

Assimilou-se o conhecimento de que a criminalidade é


inerente à sociedade; portanto, deve-se aprender a conviver com ela,
procurando meios, formas e modelos para mantê-la em níveis
toleráveis.

Para isso, não há um único remédio nem uma única receita, e


temos de considerar as muitas variáveis inerentes aos conflitos que
ocorrem em uma sociedade complexa e em constante transformação.

Agora seguimos rumo a uma tendência destinada a encontrar a


harmonia entre uma política preventiva de restauração (Justiça
consensual, que sintoniza as relações sociais para prevenir futuros
crimes) e uma política punitiva de repressão (Justiça Retributiva, que
paga o mal com o mal), entendendo que o campo das políticas
públicas não pode mais ser analisado de uma óptica simplista, mas a
partir da complexidade social.

Nesse sentido, a Política Nacional sobre Drogas nasceu com o


propósito de construir uma sociedade protegida do uso de drogas
ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas.
392
UNIDADE 17
Os pressupostos da PNAD estão relacionados ao incentivo, à
orientação e ao aperfeiçoamento da legislação para a garantia da
implementação de fiscalização de ações decorrentes dessa política.

O Sistema Nacional de Políticas Públicas


sobre Drogas e a Justiça
O Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
(SISNAD), instituído e descrito formalmente na Lei nº 11.343/2006,
Trata-se de algo dife-
não exclui a repressão, mas de maneira adequada separa claramente a rente da descrimina-
lização, que implica
figura do usuário de drogas, que necessita de atenção (e será tratado retirar determinada
conduta do âmbito de
conforme a experiência preventiva dos Jecrims), da figura do trafi- preocupação do Direito
Penal, ou seja, deixar de
cante, a quem ainda prevalece a ideia da punição (e será tratado tratá-la como crime. O
conceito de despenali-
conforme a receita repressiva das Varas Criminais tradicionais). zação, por sua vez, ex-
plica-se pela redução do
tratamento penal de
Acompanhando, em relação aos usuários, o processo de qualquer forma, poden-
do revelar-se pela subs-
humanização do tratamento jurídico do uso de drogas, a nova lei, em tituição da pena de prisão
por penas de natureza
seu art. 28, eliminou a tradicional pena privativa de liberdade, menos severa (caso do
art. 28 da Lei nº 11.343/
2006) ou mesmo pela
propondo medidas socioeducativas. Ocorreu uma inovação consisten- simples redução da quan-
tidade de pena a ser apli-
te na chamada despenalização, pela qual o uso de drogas para cada.

consumo pessoal continua a ser uma infração penal, mas sem a


previsão de quaisquer formas de prisão. Com base nessa ideia, destaca-
se uma política criminal humanista, que afasta a aplicação de pena
privativa de liberdade nas infrações de menor potencial ofensivo,
mantendo-a nas infrações mais graves.

O tráfico continua recebendo tratamento punitivo, inclusive


com o agravamento das penas e a eliminação de benefícios, tal qual se
recomenda no movimento de lei e de ordem.
393
MÓDULO VI
Muito embora tenha havido significativo avanço na nova
legislação sobre drogas, em geral as políticas criminais, como formas
de controle social do Estado, ainda se encontram presas ao paradigma
retributivo, cerceado dos conceitos de punibilidade, com privação de
liberdade, resultando na ineficiência da construção de um sujeito
de direitos (objetivo da proposta ressocializadora das políticas
criminais dominantes), levando em conta as limitações do acesso às
políticas sociais e a própria seletividade das políticas penais.

A tendência à desconsideração dos aspectos relacionados ao


fenômeno da criminalidade – “resolvidos” pela sociedade com priva-
ção de liberdade, mesmo com conhecimento da ineficiência do sistema
penitenciário – faz emergir a necessidade de adotar políticas públicas
integradas e mais efetivas, a fim de que se abordem temas transversais
como cidadania, violência, direitos humanos etc.

As drogas, a despenalização e a aplicação


da Lei nº 9.099/1995 (LJE)
A Lei nº 11.343/2006 buscou integrar o Poder Judiciário, o
Poder Executivo e demais segmentos sociais e, como descrito
anteriormente, separou de maneira elogiável o uso para consumo
pessoal (usuário) do tráfico de drogas. Nos termos do art. 48 e
parágrafos da Lei nº 11.343/2006, os usuários serão processados e
julgados pelos Jecrims, com os benefícios da Lei nº 9.099/1995, e, no
curso do procedimento, poderão ser aplicadas as medidas despenaliza-
doras da nova lei sobre drogas.

Assim, ao usuário é aplicada a Justiça Restaurativa, e ao


traficante, a Justiça Retributiva. Vamos nos ater aqui aos usuários de
drogas para consumo pessoal, a quem poderão ser aplicadas as

394
UNIDADE 17
medidas despenalizadoras dos Juizados Especiais constantes na Lei
nº 9.099/1995 (LJE), conforme o procedimento que será explicado a
seguir.

Os usuários de drogas ilícitas (dependentes ou não), após la-


vratura de termo circunstanciado pela autoridade policial (civil ou
militar), serão encaminhados aos Jecrims, instituídos pela Lei
nº 9.099/1995, e lá poderão ser beneficiados com as medidas des-
penalizadoras da transação penal e da suspensão condicional do
processo. A transação penal (art. 76 da LJE) consiste na possibilidade
de o promotor de justiça, tendo elementos para promover uma
acusação formal contra o usuário (denúncia), propor, antes disso, a
aplicação de medidas alternativas, penas restritivas de direito ou
multa. Dentre essas medidas propostas, além da tradicional prestação
de serviços comunitários, pode estar a de frequentar programas ou
cursos educativos. Aceita a proposta, ela é homologada pelo juiz e,
quando cumprida, extingue-se a punibilidade.

A suspensão condicional do processo (art. 89 da LJE) também é


requerida pelo promotor de justiça por ocasião do oferecimento da
denúncia. São estabelecidas algumas condições que, uma vez aceitas
pelo autor do fato, permitem que o juiz, ao receber a denúncia,
suspenda o processo de dois a quatro anos. Dentre essas condições,
além da reparação do dano (salvo impossibilidade de fazê-lo), proibi-
ção de frequentar determinados lugares, comparecimento pessoal e
obrigatório ao juízo todos os meses e proibição de ausentar-se da
comarca sem autorização do juiz, igualmente pode estar a de frequen-
tar programas ou cursos educativos.

Vejamos a previsão relativa aos usuários de drogas para


consumo pessoal na Lei nº 11.343/2006:

395
MÓDULO VI
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou
trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em
desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às
seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso


educativo.

A aplicação dessas penas requer olhar atencioso, pois, sem


abordagens técnicas adequadas ao usuário de drogas, elas podem ser
banalizadas, como já ocorreu com a aplicação generalizada de cestas
básicas no caso dos crimes de menor potencial ofensivo.

Uma das inovações que merecem destaque é a advertência


sobre os efeitos das drogas prevista no inciso I do art. 28.

Em um programa iniciado nos Jecrims de Curitiba (PR), essa


medida, entre outras, passou a ser aplicada com base em um conheci-
mento científico multidisciplinar. O programa se utiliza de técnicas e
abordagens específicas no atendimento dos usuários de drogas. Tal
experiência foi motivada pelo alarmante índice de condenações e
posterior reincidência nos frequentes casos de utilização de drogas
para consumo pessoal.

Com base na conclusão inicial dirigida a orientar a aplicação de


uma técnica padrão para a abordagem de usuários e dependentes
de drogas, por ocasião das audiências preliminares (individuais),
foram estabelecidas algumas premissas.

Nos grupos de trabalho criados para discutir o assunto, os


especialistas informaram que, em muitos casos, a primeira pessoa com
396
UNIDADE 17
quem o usuário falará seriamente sobre o assunto poderá ser o juiz ou o
promotor de justiça. Por isso, se a primeira abordagem desses operado-
res do direito for referenciada por padrões técnicos, há melhores chan-
ces de prevenir (prevenção secundária), dar atenção e reinserir o
usuário ou dependente na sociedade, alcançando a desejada recupera- A prevenção secundária é
realizada em indivíduos
ção com evidente diminuição da reincidência. que já fazem uso de
qualquer droga e tem por
finalidade evitar que esse
Assim, percebeu-se a fundamental importância de que todos os uso se torne nocivo; seu
maior objetivo é a absti-
profissionais da rede pública (servidores) ou da sociedade civil que nência.

atuam com usuários de drogas sejam conhecedores dos instrumentais


técnicos mais efetivos de prevenção. De maneira mais ampla, uma boa
primeira abordagem pode ser o fator diferencial na interrupção da
escalada da violência associada ao uso de drogas.

Plano piloto nos Juizados Especiais Criminais


(Jecrims): prevenção ao uso de drogas
Antes ainda da publicação da Lei nº 11.343/2006, iniciou-se
uma pesquisa destinada a identificar o perfil básico dos usuários dos
Jecrims de Curitiba. Constatou-se que o uso de drogas foi a infração
que apresentou o maior índice percentual de beneficiários da transação
penal. Também verificou-se que mais de 70% dos casos de reincidência
na Justiça envolviam o uso de drogas. Com o consumo de drogas, a
rede social pessoal era alterada, prevalecendo as relações com outros
usuários e deixando cada vez mais restritos os vínculos anteriormente
estabelecidos, como os decorrentes das relações de trabalho, estudo e
família. Para manutenção do uso de drogas e, algumas vezes, para
sustentar a dependência, o indivíduo passava a furtar pequenos objetos
dentro de casa e, posteriormente, em sua comunidade. Do furto,
caminhava para outros crimes mais graves, em uma espiral destrutiva
(escalada da violência).
397
MÓDULO VI
Percebeu-se que a repetição de condutas infracionais e a
reincidência estavam relacionadas não só ao uso de drogas, mas
também a pequenos furtos e outras infrações, como violação de
domicílio, lesão corporal, ameaça e vias de fato, consideradas de menor
potencial ofensivo.

De acordo com a pesquisa mencionada, os noticiados (como


autores de atos infracionais) em cumprimento de medidas alternativas
por uso de drogas nos Jecrims de Curitiba tinham idade entre 18 e 25
anos, estavam desempregados e apresentavam alto índice de evasão
escolar.

Além disso, constatou-se que a droga ilícita mais utilizada era a


maconha, seguida do crack. Essa realidade é condizente com o V
Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas
entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio da Rede Pública de
Ensino nas 27 Capitais Brasileiras, promovido pela SENAD em par-
ceria com o CEBRID, que verificou que na região Sul as drogas ilícitas
mais utilizadas pelos estudantes, excetuando o álcool e o tabaco, foram
a maconha e a cocaína.

Também foi possível perceber um alto índice de descumpri-


mento das alternativas penais acordadas na transação penal, a maioria
das quais consistindo na prestação de serviços comunitários em insti-
tuições filantrópicas.

Nas prestações pecuniárias (convertidas em remédios, produtos


ou cestas básicas para instituições), observou-se que, quando cumprida
a alternativa penal proposta, comumente o pagamento era realizado
por algum familiar do transacionado. Em análise, verificou-se que esse
procedimento revelava a codependência do sistema familiar, dado que
está em sintonia com a teoria, que informa: a codependência abrange
todas as pessoas que se envolvem em uma relação dependente e que
têm como característica principal a extrema “ajuda” ao outro, sem
ajudar-se, tomando para si uma responsabilidade que não é sua.
398
UNIDADE 17
Concluiu-se, então, que a ausência de um trabalho específico
com usuários e dependentes de drogas possibilitava a inadequabilidade
das medidas alternativas propostas em audiência.

Sabe-se que a dependência química resulta de uma série de


fatores psicológicos, hereditários, familiares e sociais e expõe o
indivíduo ao preconceito e à rejeição. Isso destrói sua autoestima e
tolhe suas oportunidades, uma vez que a sociedade encara o uso de
drogas como algo que deve ser punido e condenável. Nesses casos, a
falta de auxílio técnico e de um olhar mais amplo poderá empurrar esses
cidadãos para a escalada da violência.

Para enfrentar essa realidade, foi criado, no primeiro semestre


de 2005, nos Jecrims de Curitiba, o programa de atenção sociojurídica
às pessoas envolvidas com uso de substâncias psicoativas, com o
objetivo de prevenir o uso abusivo e não penalizar o indivíduo pelo
consumo pessoal. A entrevista motivacional
é uma abordagem criada
para ajudar o indivíduo a
A abordagem adotada no programa é a do acolhimento inicial desenvolver um compro-
metimento e a tomar a
dessa população, utilizando-se da entrevista motivacional, entenden- decisão de mudar.

do que há um indivíduo que está sofrendo, desejando alívio e


“Experimentação: uso
esperando poder contar com alguém para ajudá-lo. ocasional, para satisfa-
zer a curiosidade ou
integrar-se a um grupo;
Com a vinculação da pessoa ao programa, as ações adotadas são: uso: consumo moderado
que não expõe o indivíduo
• Ampliar a rede social do indivíduo que faz uso de drogas; ou o grupo a situações de
risco para a sua saúde
física ou psicológica e do
• Possibilitar a identificação de seu padrão de uso de drogas qual não advém proble-
ma social; abuso: situa-
por meio de avaliações individuais e grupais; ção em que o consumo
causa danos à saúde
• Possibilitar a vivência em grupos que visem à obtenção de física, psíquica ou social
do indivíduo ou o expõe a
prazer por meio de comportamentos saudáveis; riscos; dependência: uso
compulsivo, priorização
• Oferecer suporte social para o pleno exercício da cidadania, do seu consumo em
detrimento dos danos que
visando à garantia de seus direitos sociais. causa e de outros inte-
resses pessoais, sociais ou
profissionais” (MALUF,
2002, p. 23-24).

399
MÓDULO VI
• Promover ações político-sociais voltadas ao enfrentamento
do uso de substâncias psicoativas.

Para melhor adequação das alternativas penais voltadas aos


usuários de substâncias psicoativas e como maneira de resolver o
“problema de fundo” no qual estes se encontram, criou-se a Oficina de
Prevenção ao Uso de Drogas (OPUD), de caráter socioeducativo,
condizente com a realidade e com as necessidades por eles apresenta-
das. A frequência a essa oficina é uma das condições introduzidas pelos
operadores de direito na aplicação das medidas despenalizadoras da
transação penal e da suspensão condicional do processo.

A Oficina de Prevenção ao Uso de Drogas realizada nos Jecrims


de Curitiba, com duração de 13 horas, em cinco encontros semanais,
conta com uma equipe multidisciplinar, formada por médicos,
psicólogos, sociólogos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais.

A OPUD estimula a autocrítica e possibilita a construção e


ampliação da rede social pessoal de cada participante por meio de
dinâmicas e montagens, além de encaminhamentos aos serviços
pertinentes e às políticas públicas, especialmente na área de assistência
social.

Esse trabalho tem como base o entendimento de que o universo


relacional do indivíduo compreende todo o contexto no qual ele está
inserido. As redes sociais pessoais se referem à soma de todas as
relações que ele percebe como significativas, contribuindo para a
construção de sua autoimagem e desempenhando papel fundamental
na construção de sua identidade.

As necessidades apresentadas nas oficinas estão diretamente


correlacionadas à dificuldade de acesso a recursos sociais, principal-
mente àqueles ligados a saúde, assistência social e educação.
400
UNIDADE 17
A ênfase desse programa é trabalhar com os usuários de
substâncias psicoativas sob o prisma biopsicossocial e espiritual, linha
já adotada cientificamente na área de dependência química, e o
enfoque de seu trabalho profilático é classificado como de prevenção
secundária.

É realizada constantemente a integração das redes de tratamento


de dependência química da Comarca de Curitiba e Região Metro-
politana com o Jecrim para a adequada prevenção terciária, quando
verificada a necessidade de tratamento. Concomitantemente, a
construção de uma rede social mais ampla, cujos participantes são
pessoas e organizações envolvidas e motivadas pela prevenção, é vista
como um caminho para o desenvolvimento de uma sociedade mais
saudável.

Houve significativa diminuição da repetição de conduta


infracional, com estabilização dos percentuais em índices muito
inferiores àqueles verificados anteriormente, na perspectiva da Jus-
tiça Retributiva. A utilização de práticas restaurativas foi fundamental
nos trabalhos dos Jecrims por meio da prevenção ao uso de drogas
(prevenção secundária), pois conseguiu interromper a escalada da
violência com a restauração das relações pessoais e sociais.

Crime e Justiça: prevenção ao uso de drogas


pelas lentes restaurativas
Em vez de punir o criminoso, a ideia de reparar ou amenizar os
danos gerados pelo crime está sendo construída por meio da Justiça
Restaurativa, e esta pode ser entendida como um novo paradigma que
busca restaurar relações conflituosas pelo consenso e com o envolvi-
401
MÓDULO VI
mento da comunidade, amparado por uma rede social, que participa
ativamente da construção de resoluções de conflitos, visando à cura das
feridas sociais, dos traumas e perdas causados pelo crime.

O modo de fazer justiça, em uma perspectiva restaurativa,


consiste em dar uma resposta às infrações e suas consequências,
contando com a participação de todos os envolvidos, inclusive a
comunidade, na resolução dos conflitos. As práticas de Justiça com o
objetivo restaurativo identificam os males infligidos e influem na
reparação dos danos, envolvendo as pessoas e transformando suas
atitudes. A ideia é restaurar os relacionamentos, e não se concentrar na
determinação de culpa.

A Justiça Restaurativa também representa um modelo para


alcançar a democracia participativa, uma vez que a vítima, o infrator e
a comunidade participam do processo decisório a fim de, construtiva-
mente, satisfazer seus interesses e alcançar a pacificação social.

Esse processo que busca resolver o problema de fundo do


conflito de maneira cooperativa e integrada, em forma de rede social,
amplia as possibilidades de construir um verdadeiro Estado
Democrático de Direito Social, empoderando a sociedade e desmono-
polizando o papel do Estado, que por enquanto atua somente de modo
retributivo.

Nesse aspecto, cabe distinguir, conceitualmente, esses dois


modelos de Justiça. Segundo Zehr (2008, p. 170), o crime, para a Jus-
tiça Retributiva, é como “uma violação contra o Estado, definida pela
desobediência à lei e pela culpa”. Assim, quem determina a culpa é a
Justiça, a qual atribui dor em uma disputa entre ofensor e Estado. Esse
modelo é regido por regras sistemáticas. Já para a Justiça Restaurativa,
o crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Nesse modelo, a
Justiça cria a obrigação de corrigir os erros, envolvendo vítima, ofensor

402
UNIDADE 17
e comunidade, com o intuito de buscar soluções que promovam
reparação, reconciliação e segurança.

Da óptica restaurativa, o crime passa a ser percebido como um


agravo à vítima, mas também pode ser um agravo ao ofensor. Partindo
do pressuposto de que muitos crimes nascem de violações, os
ofensores podem ter sido vítimas de abuso na infância e necessitam,
muitas vezes, de oportunidades e de um significado para a vida. Para
Zehr (2008), muitos ofensores buscam validação e empoderamento, e
o crime acaba se tornando uma forma de gritar por socorro e afirmar
sua condição como pessoa.

Qual a relação entre a Justiça Restaurativa e a prevenção ao uso


de drogas?

Investir na prevenção ao uso de drogas é investir na educação


para a vida, ou seja, ensina-se o indivíduo a conviver com drogas lícitas
e ilícitas em condições de optar por uma vida mais saudável e lúcida.
Como afirma Maluf (2002, p. 19), prevenir é “todo e qualquer ato que
tem como objetivo chegar antes que determinado fato aconteça, ou
seja, precaver”. Para tanto, é necessário também um trabalho de
redefinição ou construção de um plano de vida.

Tanto a prevenção ao uso de drogas como a Justiça Restaurativa


se propõem desenvolver um trabalho restaurador, emancipador do ser
humano, entendendo que o crime ou o uso de drogas estão relaciona-
dos a determinada situação, a um contexto muito mais amplo que o
próprio fato em si. Nesse aspecto, a educação preventiva pode facilitar
a socialização, ou seja, possibilitar a ampliação da rede social do
indivíduo, tornando mais complexo o processo de desenvolvimento
interpessoal, o que, segundo Vygotsky (1998), auxilia no desenvolvi-
mento cognitivo, pois a ação transformadora do processo intrapessoal
se dá por meio do desenvolvimento do relacionamento interpessoal.

403
MÓDULO VI
Apesar dos mais variados modelos de prevenção no sentido
restaurativo, o mais efetivo é o da educação afetiva, que enfatiza o
desenvolvimento inter e intrapessoal, a autonomia e a ampliação da
rede social, sendo as drogas mais um assunto a tratar.

Considerações finais
Esta unidade procurou demonstrar a eminente necessidade de
novos paradigmas sociojurídicos para o enfrentamento e realinhamen-
to das políticas criminais concernentes ao uso de drogas, tendo em
vista as consequências desse fenômeno no contexto social.

Nessa óptica, a Justiça Retributiva não consegue interromper


tal ciclo por não ter caráter preventivo e educativo, apenas punitivo. No
entanto, pelas lentes restaurativas é possível tratar da prevenção ao uso
de drogas no ambiente comunitário e também no âmbito da Justiça.

É preciso compreender que o uso/abuso de drogas ilícitas não


se encerra apenas em sua ilegalidade ou como um problema de polícia
ou de Justiça. Ao tratar do uso de drogas, é importante perceber a
complexidade que o tema traz, que sugere a integração dos mais
diversos segmentos sociais e governamentais, entendendo a temática
das drogas como um problema comum a todos, ressaltando, desse
modo, o fundamento no princípio da responsabilidade compartilhada,
conforme prevê a atual Política Nacional sobre Drogas.

Apresentou-se ainda, como exemplo, o modelo de Justiça


aplicado no âmbito dos Jecrims de Curitiba, que ao utilizar uma
proposta preventiva de caráter socioeducativo transforma a Justiça
criminal em um grande “hospital de relações humanas”, com o intuito
de promover, de maneira descentralizadora e por meio de redes
404
UNIDADE 17
cooperativas, a pacificação social, propiciando autonomia ao jurisdi-
cionado, e a restauração de relações sociais conflituosas em vez da
perda da liberdade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACELLAR, R. P. Juizados Especiais: a nova mediação paraprocessual. São Paulo:


Revista dos Tribunais, 2003.

BEATTIE, M. Codependência nunca mais: pare de cuidar dos outros e cuide de você
mesmo. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

FORWARD, S.; BUCK, C. Pais tóxicos: como superar a interferência sufocante e


recuperar a liberdade. Trad. Rose Nânime Pizzinga. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.

GALDURÓZ, J. C. F. et al. V Levantamento Nacional sobre o Consumo de


Drogas Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio da
Rede Pública de Ensino nas 27 Capitais Brasileiras. São Paulo: CEBRID –
UNIFESP, 2004.

GOMES, L. F. et al. Lei de Drogas comentada: Lei 11.343/2006. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007

MALUF, D. P. et al. Drogas: prevenção e tratamento: o que você queria saber e não
tinha a quem perguntar. São Paulo: CL-A Cultural, 2002.

MASSA, A. A. G.; BACELLAR, R. P. A dimensão sociojurídica e política da nova Lei


sobre Drogas (Lei 11.343/2006). Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal,
v. 9, p. 177-195, 2008.

_____. A interface da prevenção ao uso de drogas e o Poder Judiciário. 2º


Seminário sobre Sustentabilidade, 2007. CD-ROM 1.

405
MÓDULO VI
MINAYO, M. C. S. Sobre a toxicomania da sociedade. In: BAPTISTA, M.; CRUZ, M.
S.; MATIAS, R. Drogas e pós-modernidade: faces de um tema proscrito. v. 2. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2003.

SCURO, P. et al. Justiça restaurativa: desafios políticos e o papel dos juízes. In:
SLAKMON, C.; MACHADO, M. R.; BOTTINI, P. C. (Org.). Novas direções na
governança da Justiça e da segurança. Brasília: Ministério da Justiça, 2006. v. 1,
p. 543-567.

SLUZKI, C. E. A rede social na prática sistêmica: alternativas terapêuticas. Trad.


Claudia Berliner. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. Trad. José Cipolla Neto. 6. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.

ZEHR, H. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a Justiça. Trad. Tônia
Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.

406
UNIDADE 17
RESUMO DA AULA

A atual Política Nacional sobre Drogas foi implantada em


2005 e representou, de certa forma, uma ruptura com o modelo
anterior, baseado na ideologia da guerra ou combate às drogas a todo
custo. Há muitas propostas para lidar com esse problema, o qual não
apresenta solução definitiva, mas requer maior harmonia e tole-
rância no tratamento legal e policial.

Nesse sentido, muitas foram as normas de conteúdo


despenalizador em relação ao usuário que se sucederam no tempo, e a
previsão do art. 28 da Lei nº 11.343/2006 é exemplo disso. Porém, em
alguns lugares percebeu-se que seria necessária uma abordagem mais
técnica para lidar com o problema, requerendo a capacitação de
servidores e uma análise multidisciplinar de cada caso concreto, a fim
de encontrar a solução mais adequada. Dessa maneira, em 2005
criou-se, em Curitiba, o programa de atenção sociojurídica às pessoas
envolvidas com uso de substâncias psicoativas, que visa a demonstrar
compreensão do problema do usuário para fazer com que este
também o compreenda. Essa forma de buscar uma solução para um
problema tão complexo se utiliza de métodos da Justiça Restaurativa
como ferramenta essencial, privilegiando relações humanas em vez
de meras relações de poder no Judiciário, e tem apresentado sucesso
satisfatório.

Na próxima unidade, serão apresentadas considerações sobre


drogas, adolescência, criminalidade e suas inter-relações e o trata-
mento jurídico dedicado à questão.

407
MÓDULO VI
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. A atual Política Nacional sobre Drogas:

a. Concentra esforços na punição de traficantes e de usuários.

b. Almeja um mundo em que não haja conflitos sociais nem uso de


drogas.

c. Rompe com o obsoleto modelo punitivista, apresentando um


viés mais humanista no tratamento legal do usuário.

d. Foi criada em 1976, com a aprovação da Lei nº 6.368.

e. Deriva da ideologia de tolerância zero norteadora de ações de


repressão a pequenos delitos nos Estados Unidos.

2. Sobre a experiência paranaense acerca do tratamento jurisdicional


para o usuário de drogas, é INCORRETO afirmar que:

a. Dedica especial atenção à imposição da pena de advertência ao


autor do fato.

b. Foi motivada, em grande medida, pelos altos índices de rein-


cidência verificados entre acusados de porte de drogas para uso
próprio.

c. Privilegia a pena de multa antes de qualquer outra.

d. Decorreu de discussões mantidas no âmbito de grupos de traba-


lho especialmente criados para esse fim.

e. Tem por finalidade principal prevenir a reiteração delitiva do


usuário de drogas, a qual se tenciona atingir por meio do envol-
vimento de servidores públicos e sociedade civil com o pro-
blema, abordando-o de maneira preparada tecnicamente para
dedicar atenção e compreensão ao indivíduo.

408
UNIDADE 18

INTERFACE ENTRE DROGAS,


CRIMINALIDADE
E ADOLESCÊNCIA:
NOTAS PARA COMPREENSÃO
DO MODELO LEGAL VIGENTE

• Definição de “droga” e critérios de agrupamento

• Adolescência e puberdade: diferenciação

• Adolescência e uso de drogas: contexto histórico

• Adolescência e criminalidade: comparação de


gêneros, sistemas de justiça juvenil, relação entre
drogas e criminalidade e entre uso de drogas e ato
infracional e estratégias de atendimento ao adolescente
usuário de drogas autor de ato infracional

VI
INTERFACE ENTRE DROGAS, CRIMINALIDADE
E ADOLESCÊNCIA: NOTAS PARA COMPREENSÃO
DO MODELO LEGAL VIGENTE
Flavio Américo Frasseto
Luciene Jimenez

Introdução
O uso de drogas tem sido discutido em diferentes instâncias e
tematizado em inúmeras pesquisas abordando suas múltiplas
dimensões. Busca-se desde a compreensão dos motivos que levam ao
uso até formas de prevenção e tratamento eficazes.

A dimensão e a complexidade do uso e do comércio de drogas,


legais e ilegais, na contemporaneidade, reclama, em sua abordagem,
uma necessária aliança entre universidades, centros de pesquisa,
agências formuladoras e executoras de políticas públicas, profissionais
da área, usuários de drogas e familiares, distribuindo-se coletivamente
a responsabilidade entre todos.

Quando o tema “uso de drogas” é associado à adolescência, os


contornos da problemática parecem se adensar. A droga é vista como
potencializadora da crise natural da adolescência, intensificando
conflitos, comportamentos desajustados e inconsequentes, com forte
impacto para os próprios jovens, familiares e sociedade.

No limite, essa associação ganha contornos apavorantes,


vinculando-se o uso da droga (principalmente das drogas ilegais) a
uma escalada veloz e irreversível, de total alienação do sujeito e até de
envolvimento com crimes, prostituição, violência e todo tipo de

411
MÓDULO VI
adversidade que condenaria os adolescentes a um final rápido e
infeliz. Tudo isso sem que se disponha de instrumentos técnicos e
jurídicos orientando políticas públicas eficientes para enfrentar e
“vencer” o problema.

O presente texto, panorâmico e exploratório, espera referen-


ciar a compreensão do campo, permitindo, aos que nele atuam, um
fazer profissional crítico, eficaz e que respeite os direitos humanos.
Após breves considerações sobre drogas, adolescência, criminalidade
e suas inter-relações, serão apresentados alguns pontos controversos
do tratamento jurídico dedicado à questão, apontando-se o que se
deve evitar e o que cabe a cada um promover.

Drogas
A palavra “droga”, do holandês antigo “droog”, significa “folhas
secas”, evidenciando sua relação com o uso de plantas medicinais. Na
Grécia Antiga, utilizava-se “pharmakon” para se referir tanto a
remédio como veneno, mostrando a dubiedade histórica presente no
termo.

A definição da Organização Mundial de Saúde, datada de 1981


e ainda vigente, considera droga qualquer substância exógena ao
organismo com propriedade para atuar em um ou mais de seus
sistemas, produzindo alterações em seu funcionamento.

No Brasil, a Portaria nº 344/1998 do Ministério da Saúde e


suas atualizações trazem a relação das substâncias consideradas
“drogas” em território nacional, cuja produção e comercialização são
controladas por meio de restrições ou proibição. A diversidade de
substâncias é expressiva e inclui os psicoativos que agem no sistema
412
UNIDADE 18
nervoso central e podem alterar a percepção, a consciência, a vontade
e/ou os comportamentos. Há substâncias psicoativas ilegais, como a
maconha e a cocaína e seus derivados, e outras passíveis de prescrição
médica, como os benzodiazepínicos, amplamente utilizados por
mulheres adultas e idosos (FOSCARINI, 2010) sem que, para o
senso comum, sejam tratados como “drogas” propriamente ditas.

As drogas podem ser agrupadas a partir de diferentes critérios,


como pela ilegalidade ou legalidade do uso ou do comércio ou pelos
aparentes efeitos provocados no organismo – drogas depressoras,
estimulantes ou perturbadoras (NICASTRI, 2011).

Olmo (1999) propõe quatro grupos distintos: drogas institu-


cionalizadas ou legais (tabaco, cafeína, álcool etc.), as drogas farma-
cêuticas, as drogas industriais (solventes, aerossóis etc.), as drogas
proibidas ou clandestinas (maconha, cocaína etc.). Podemos agregar
ainda as chamadas drogas enteógenas – palavra que significa “trazer o
sagrado para si” – utilizadas para rituais místicos (salvia divinorum,
ayahuasca etc.).

O uso de drogas é uma prática universal e milenar, voltada para


os mais diversos fins, como religiosidade, cura, magia e lazer, sem
associação a algo essencialmente problemático. Muitos têm se
dedicado ao estudo das drogas a partir do ponto de vista histórico,
como parte da experiência humana, com finalidades diversas em
diferentes culturas e momentos históricos.

Alguns estudiosos ponderam que o poder da substância não


elimina necessariamente a capacidade do sujeito, dominando-o ou
subjugando-o a seus efeitos nocivos. Zinberg (1984), por exemplo,
desmistificou o uso da heroína, acompanhando usuários que
mantinham uma vida considerada normal, sendo o consumo da droga
apenas uma entre várias outras atividades de seu cotidiano.
413
MÓDULO VI
Na primeira metade do século XX, o uso ocasional ou contro-
lado recebeu pouca atenção dos pesquisadores que tenderam a
interpretá-lo como uma etapa para o uso compulsivo. Foi apenas a
partir da década de 1970 que o chamado “uso controlado” se tornou
objeto de atenção da comunidade acadêmica. Donas de casa,
gerentes de banco, médicos, professores, entre outros, são persona-
gens dificilmente associados ao uso de drogas, ainda que o façam. Foi
a dimensão problemática do consumo – no padrão daqueles cuja vida
se organiza em função de obter e utilizar a droga – que ganhou
destaque nas pesquisas e no imaginário social. Tudo isso favoreceu a
construção da ideia, muito distribuída, de que o uso de drogas –
especialmente as ilícitas – estaria sempre relacionado à autodestrui-
ção do indivíduo e à corrupção da sociedade.

Atualmente há uma tendência de se acreditar que a chamada


“escalada das drogas”, na qual os sujeitos iniciam com drogas “leves” e
dosagens pequenas e passam gradativamente para um uso intensivo
de drogas consideradas mais “pesadas”, não é inevitável, mas se torna
realidade apenas para uma parcela pequena entre todas as pessoas que
experimentam alguma droga na vida.

Se por um lado tal constatação desmistifica o poder das subs-


tâncias sobre a capacidade humana de manter a autonomia, por outro
lado deixa em aberto quais serão os usuários (muito numerosos,
ainda que minoritários) que darão sequência ao padrão de uso consi-
derado problemático.

Não se trata, portanto, de minimizar o problema, mas de


contextualizar e inserir nele as subjetividades inerentes ao ser
humano e, com elas, a pluralidade de relações possíveis de se manter
entre o sujeito e as drogas. Ao procedermos desta forma, observamos
que o momento da experimentação é de fundamental importância e
414
UNIDADE 18
sobre o qual é preciso adensar a pesquisa para melhor orientar as
estratégias de prevenção. Muitos apontam a adolescência como
época principal de experimentação e pré-configuração dos diversifi-
cados padrões de uso ao longo da vida.

Adolescência
A puberdade – que não se confunde com adolescência – é uma
fase do ciclo vital caracterizada por mudanças físicas, tais como
aumento da massa corporal, surgimento das características sexuais
secundárias e maturação sexual, decorrentes do aumento da produ-
ção de alguns hormônios. A puberdade é um evento orgânico,
biológico, o que quer dizer que suas manifestações, de modo geral,
independem de fatores sociais ou subjetivos e acontecem de modo
relativamente similar para todos os indivíduos.

O mesmo não se pode dizer da adolescência, categoria


histórica e fenômeno social, cultural e psicológico complexo, com
mudanças importantes em suas expressões dependendo do momen-
to histórico, do lugar e da classe social.

A palavra “adolescência” é recente na história, aparecendo


entre os séculos XVIII e XIX, cuja origem latina, “adolescere”, quer
dizer “crescer” ou “adoecer”. Este período, considerado de passagem
entre a infância e a idade adulta, vem sendo ampliado progressiva-
mente, gerando um tempo de adiamento para a conquista da
autonomia que se daria por meio da entrada no mercado de trabalho e
da independência financeira.

Diversos autores têm enfatizado os conflitos familiares, as


turbulências e as dificuldades presentes nesta fase por causa da busca
415
MÓDULO VI
da identidade e da autonomia em relação às figuras paternas e tendem
a considerar esta fase como universal. No entanto, não convém
sobrepor adolescência e puberdade, tampouco tomá-las como
sinônimos. Em diferentes tempos e culturas, existiram formas
distintas de compreender e lidar com as transformações orgânicas
decorrentes dos hormônios. Por outro lado, em uma mesma cultura
ou sociedade, coexistem adolescências vivenciadas em suas especifi-
cidades, dependendo da posição social do adolescente, bem como
dos bens e serviços de que desfruta, tais como educação, saúde e
trabalho, entre outros.

O adolescente brasileiro de classe média que vivencia morató-


ria de preparação para o ingresso no mercado de trabalho, inicia sua
vida sexual e afetiva e expande suas redes sociais para além dos laços
familiares não pode ser comparado ao adolescente das periferias, que
desde a infância contribui para a manutenção da casa e para o cuidado
com seus irmãos mais novos. Por sua vez, ambos serão diferentes de
adolescentes indígenas, ciganos tradicionais ou daqueles cuja família
professa alguma ortodoxia religiosa. Assim, podemos afirmar que
existem diferentes adolescências, cujos significados e períodos são
muito distintos dependendo de vários fatores.

A compreensão psicossocial da adolescência é contrária à ideia


evolucionista da adolescência como momento ou etapa da evolução e
propõe apreendê-la enquanto agenciamento do processo social e
histórico humano ou construção social e cultural que desencadeia
efeitos psicológicos distintos.

Em síntese, podemos dizer que entre o marcador orgânico e


hormonal da puberdade e a adolescência como formação psíquica e
social, existe um abismo que deve ser ultrapassado por mediações
simbólicas. A adolescência, como passagem do mundo infantil para o

416
UNIDADE 18
adulto, nunca se completou plenamente apenas a partir das mudanças
biológicas ou orgânicas e sempre precisou de rituais presentes em
todas as sociedades (BIRMAN, 2009).

De uma forma geral, a adolescência é socialmente representa-


da como uma espécie de não lugar – território de passagem entre duas
etapas bem definidas: a infância, marcada pela dependência, e a vida
adulta, marcada pela autonomia. Nem criança nem adulto, mas ao
mesmo tempo um pouco dos dois, o adolescente ocupa uma posição
ambígua que se reflete na forma como ele se vê e, sobretudo, na forma
como é tratado pelo adulto. Em um mundo que valoriza a busca
frenética por manter-se jovem, a adolescência é alvo de idealização,
mas não deixa de perder, paradoxalmente, sua dimensão crítica de
“aborrescência” (CALLIGARIS, 2000).

Adolescência e uso de drogas


A adolescência, em nosso contexto histórico e cultural, tem
sido associada à fase na qual se iniciam os primeiros contatos com as
drogas. O menor controle parental, a influenciabilidade pelos grupos
de pares, a busca por novas experiências e sensações, o trabalho de
construção da própria identidade e a necessidade estressante de
afirmação e de dar conta de diversificadas exigências são situações
que predisporiam o adolescente à experimentação e ao uso continua-
do de drogas. Somam-se a isso outros fatores específicos de risco ou
vulnerabilidade, como ser do sexo masculino, conflitos intensos nas
relações familiares, inabilidade nas relações sociais, facilidade de
acesso às drogas, evasão escolar etc. (PRATTA; SANTOS, 2006;
VASTERS; PILLON, 2011).
417
MÓDULO VI
Por outro lado, há autores que destacam a estreita relação
entre a motivação para a experiência psicoativa e a subjetividade de
cada indivíduo, considerando também o contexto no qual se dá tal
experiência. Delmanto (2013), por exemplo, retoma Baudelaire
(1821-1867), que em seu “Poema do Haxixe” sugere considerar o
momento adequado para o uso da droga, evitando fazê-lo em
situações de tristeza ou dor, pois a droga que pode ampliar as
sensações prazerosas, também o faz com o sofrimento.

A relação entre o uso e o contexto de uso foi o tema central das


pesquisas de Zinberg (1984), para quem não existe a noção de
dependência de uma determinada droga, mas a repetição ou a
compulsão ao uso resultante de uma dinâmica sempre complexa e
mediada pelas condições e interações entre o contexto, a droga e o
momento do sujeito. Para alguns esta experiência pode encerrar-se ou
repetir-se esporadicamente, enquanto outros podem desenvolver o
uso intenso ou problemático com graves consequências para sua vida.

Segundo Carlini et al. (2010), diferentes países têm monitora-


do periodicamente por meio de levantamentos epidemiológicos a
magnitude do uso de drogas e dos riscos associados entre estudantes,
com a finalidade de orientar intervenções preventivas e subsidiar
políticas. No Brasil, o “VI Levantamento Nacional sobre o Consumo
de Drogas Psicotrópicas entre estudantes do Ensino Fundamental e
Médio das Redes Pública e Privada de Ensino”, publicado no ano de
2010, indicou que

álcool e tabaco são as drogas de maior prevalência de uso na vida, em


todas as capitais, seguidas pelos inalantes. O crack não é uma droga
de destaque entre estudantes. As prevalências de consumo diferem
substancialmente entre as regiões. Alunos de escolas particulares
apresentam maior prevalência de uso de drogas para os padrões de

418
UNIDADE 18
uso na vida e ano, porém os de escola pública apresentam maiores
índices de uso pesado, quando comparados os de escolas particulares.
[...] Vale destacar que os estudantes brasileiros não figuram entre os
que mais consomem drogas quando comparados com estudantes da
América do Sul, Europa e América do Norte. No comparativo
internacional, o Brasil apresenta índices baixos de consumo de
tabaco, crack e maconha, porém, aparece como um dos maiores
consumidores de inalantes. (CARLINI et al., 2010, p. 413).

Adolescência e criminalidade
Cesar (2005) lembra como a ideia de adolescência esteve,
desde seu início, relacionada à delinquência e a seu contramodelo
idealizado. Para os rapazes, o risco do vício, dos pequenos furtos, da
ociosidade; para as moças, o desregramento sexual. A partir do século
XX, o discurso da Psicologia legitimou esta fase da vida como um
momento de crise, conflito e desajuste, marcado pela transgressão e
testagem dos limites. A crítica aos padrões estabelecidos, como marca
da adolescência e da juventude, pôs esses grupos etários a serviço de
revoluções e contestações – não raramente violentas – da ordem
vigente. Essa mesma tendência transgressora estaria por trás de certa
vulnerabilidade maior desse grupo etário a comportamentos
criminosos. A imaturidade, inconsequência, influenciabilidade e
deficitária consciência moral também explicariam a ideia de certa
onipresença de violações penais nessa faixa etária.

Ainda que muitos desses traços não passem de representações


sociais estereotipadas e generalizantes, isso resulta em uma percep-
ção social arraigada – alimentada pela grande mídia – do fenômeno
em torno de três ideias, que Volpi qualifica como mitos: adolescentes

419
MÓDULO VI
são os responsáveis pela maior parte dos crimes, são autores dos
crimes mais graves e não são punidos pela lei. Estudos mostram que as
duas primeiras ideias não são comprovadas estatisticamente: a
participação de adolescentes nos delitos ficaria em torno de 10%, e a
maioria das transgressões são de pequeno potencial ofensivo. Já a
terceira ideia tem relação com as características peculiares do sistema
oficial de respostas à infração na adolescência, conforme trataremos
posteriormente. As duas primeiras ideias, ainda que não confirmadas,
tem forte impacto na configuração do sistema de respostas.

Os diferentes sistemas de justiça juvenil


Desde o final do século XIV, vigora no mundo ocidental a ideia
de que “menores” que praticam crimes devem receber penas distintas
às aplicadas a adultos. Desde então, o “não adulto” autor de um delito
vem tratado por um arcabouço legal e institucional próprio, incluindo
uma Justiça especializada. Sem discordar da necessidade de um
tratamento diferenciado, hoje prescrito na Convenção Internacional
Sobre os Direitos da Criança, as experiências internacionais no
atendimento de adolescentes autores de infração gravitam entre dois
polos, que conformariam as formas puras de dois modelos de Justiça
Juvenil conhecidos como “modelo de Justiça” e “modelo de bem-
estar social” (HAZEL, 2008).

No primeiro modelo, a resposta seria definida em função das


necessidades pessoais do infrator. Importa mais os motivos que
levaram o jovem a infracionar do que a infração propriamente dita,
resultando a intervenção em um esforço para neutralizar os fatores
associados ao comportamento delitivo, por meio de ações de
promoção social, educação ou tratamento. O segundo modelo, mais
420
UNIDADE 18
próximo do sistema penal de adultos, toma mais a infração como eixo
central do que o infrator. A resposta seria definida, sobretudo, a partir
de gravidade, circunstâncias e consequências da infração, obedecen-
do a critérios de proporcionalidade e objetivando primordialmente a
desaprovação da conduta transgressora e a responsabilização de seu
autor, tido como capaz de responder por seus atos ainda que de forma
distinta do adulto (Ibid.).

Esses dois modelos refletem a referida posição de ambiguida-


de associada à condição de adolescente, ora tratado como criança, e
portanto alvo de proteção e cuidado, ora tratado como adulto, e assim
apto a assumir as responsabilidades pelos seus atos ilícitos suportan-
do as respectivas sanções.

Na prática, nenhum país adota um modelo puro, ainda que um


ou outro se incline mais ou menos em direção a um desses dois
grandes polos. No Brasil, o regramento hoje vigente em matéria de
adolescente autor de ato infracional incorporou traços de ambos os
modelos, como se deduz dos objetivos da medida socioeducativa
anunciados no art. 1º, §2º da Lei nº 12.594, de 2012:

I - a responsabilização do adolescente quanto às consequências


lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua
reparação;

II - a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos


individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano
individual de atendimento;

III - a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições


da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou
restrição de direitos, observados os limites previstos em lei.

Os incisos I e II inclinam-se na direção do modelo de Justiça e o


inciso II revela forte relação com o sistema de bem-estar. A caracterís-
tica eclética de nosso sistema induz a diversificados dilemas na tarefa
421
MÓDULO VI
de aplicação da lei e na conformação das propostas de atendimento,
resultando em divergências interpretativas de alto impacto, muitas
delas ainda não resolvidas, como se mostrará mais adiante ao se tratar
especificamente dos temas que vinculam droga a ato infracional. O
caráter híbrido do sistema também o torna vulnerável a críticas de
toda ordem, especialmente aquelas que levianamente o reduzem à
sua dimensão protetiva e garantidora de direitos dos infratores,
apregoando a intensificação das respostas ou o rebaixamento da
maioridade penal.

As relações entre droga e criminalidade/violência


Como foi visto, na aplicação e execução de medidas aplicadas
ao adolescente autor de ato infracional, interessa tanto a natureza da
infração praticada como as causas, os fatores determinantes da infra-
ção. As drogas ocupam, na literatura especializada e no senso comum,
o papel de um relevante fator de risco para o envolvimento infracional,
de modo que convém explorar um pouco mais a relação entre drogas e
criminalidade.

Três formulações são inicialmente possíveis para explicar tal


relação. A primeira delas seria de que a droga causa o comportamento
delitivo; a segunda, de que o comportamento delitivo é que favorece o
uso de drogas; a terceira, de que não existe relação causal entre uso e
crime, ambos resultantes de outros fatores comuns.

Otero Lopez (1996, apud OLMO, s/d), ao examinar os


estudos até então produzidos para elucidar cientificamente esta
questão, conclui, afirmando que o panorama á ainda inconclusivo:

422
UNIDADE 18
A literatura existente é tanta, e os métodos utilizados para abordar o
problema da relação droga-delinquência são tão variados, que é
difícil identificar o que se conhece. Essa relação varia em função de
fatores como idade e sexo dos sujeitos investigados, tipo de droga,
padrão de consumo, como se define delinquência, qual método de
pesquisa utilizado. O único consenso existente é que a relação existe,
mas a natureza da vinculação permanece inespecífica e controversa.
Não é possível responder o quê causa o quê.

Goldstein (1985) identifica, para criticá-los, três grandes


modelos que explicariam a droga como produtora da criminalidade.
Na perspectiva psicofarmacológica, o uso de drogas favoreceria o
comportamento delitivo na medida em que altera os padrões
habituais de funcionamento psíquico do consumidor, tornando-o
irritável, irracional, impulsivo ou inconsequente. Sob efeito de
drogas, pessoas se tornam, por exemplo, violentas ou negligentes,
maridos agridem mulheres, discussões resultam em lesões corporais
ou homicídios, motoristas provocam acidentes de trânsito. Álcool e
barbitúricos seriam drogas mais diretamente relacionadas a este tipo
de criminalidade, que atingiria igualmente todas as classes sociais.
Contudo, embora seja inegável que os estados mentais desencadea-
dos pelas drogas possam favorecer esse tipo de criminalidade, a
verdade é que não se mostra possível estabelecer uma relação causal
direta entre o consumo e o crime, uma vez que nenhuma droga
possuiria propriedades criminógenas universais, ou seja, desencadea-
ria comportamentos delinquentes sempre que consumidas. Assim,
não se pode dizer que a droga produza o crime, mas que ela, assim
como uma infinidade de outros fatores de ordem cultural, psicológi-
ca, situacional etc. compõe um extenso mosaico de condições
geradoras da conduta. Uma política de prevenção desse tipo de crime
não pode centrar-se exclusivamente na repressão ou dificultamento
do uso de drogas.
423
MÓDULO VI
No modelo explicativo econômico-compulsivo, por outro
lado, os usuários de drogas praticariam crimes, majoritariamente
contra o patrimônio, a fim de obter recursos para aquisição de drogas.

A compulsão pelo uso levaria a pessoa, desesperada, a cometer


roubos, furtos, estelionatos etc. porque não pode ficar sem as drogas e
precisa pagar por elas. A tais crimes estão associadas drogas que
combinam custo elevado com alto potencial de dependência, como
heroína e cocaína. O crack, ainda que barato, se insere neste contexto,
dados os elevados padrões de consumo de grande parte de seus
usuários. O problema desse modelo explicativo resulta do fato de que
não é propriamente a droga e a compulsão por seu consumo que
geram a criminalidade, mas o fato de seus usuários não poderem pagar
por ela. Usuários que dispõem de recursos econômicos ou têm acesso
gratuito às drogas não cometerão delitos. No limite, crimes como
esses se agregam a muitos outros em cuja base necessária, ainda que
não suficiente, encontram-se as diversificadas formas de exclusão
social. Políticas de redução de danos que implicam fornecimento
controlado de drogas aos usuários podem ter um bom impacto na
redução dessa modalidade de crime, novamente demonstrando que a
droga não é sua causa.

O terceiro bloco explicativo, chamado sistêmico, refere-se


àquela parcela substantiva da criminalidade produzida pelos padrões
de interação dentro dos sistemas de tráfico e distribuição de drogas
ilegais. Tem a ver com os crimes associados à disputa de pontos de
produção, processamento e distribuição de drogas e insumos para
produzi-las, eliminação de informantes, garantia de obediência aos
subordinados, punição por dívidas e corrupção policial e política,
entre outros. Envolve todos os tipos de drogas ilícitas, sendo tanto
mais violenta e intensa quanto maiores os ganhos e mais complexo o
processo de produção. Ainda que seja visível a disseminação desse

424
UNIDADE 18
tipo de criminalidade, responsável pela morte violenta de grande
contingente de adolescentes, não se pode dizer que ela decorra
diretamente da droga. Ela é inerente a todo tipo de mercado ilegal
com forte pressão de demanda. Em uma palavra esse tipo de crime
não é promovido pela droga em si, mas por sua proibição. Aqui, para
além da simples declaração de “guerra às drogas”, trazer o uso ou
comércio de pelo menos parte delas à legalidade poderia reduzir o
problema.

As reflexões de Goldstein permitem problematizar as relações


simplificadoras que atribuem às drogas protagonismo e prevalência
na determinação de diversas formas de criminalidade, inclusive na
adolescência, realçando aspectos que o discurso da “droga maldita”
como fonte primária de todo mal objetiva, consciente ou inconscien-
temente, encobrir.

Contudo, isso não significa que o uso de drogas, especialmente


em seus padrões mais severos (dependência, uso problemático, uso
pesado etc.) não seja fonte de incalculável sofrimento para usuários,
familiares e comunidade, a merecer enfrentamento racional, persis-
tente e eficaz. Também não significa que em muitos casos, efetiva-
mente, o comportamento criminal não seja o sintoma, dentre muitos
outros, de um quadro persistente de uso compulsivo cujo tratamento
se mostra a estratégia absolutamente irrenunciável de prevenção da
reincidência, quadro esse cuja consideração deve ser decisiva na
aplicação e execução da medida aplicada.

Diante do que foi até agora considerado, na sequência, serão


apresentados alguns dos pontos mais críticos da aplicação da lei
diante de situações que envolvem o adolescente, o ato infracional e as
drogas.

425
MÓDULO VI
Ato infracional de tráfico de drogas e a medida
socioeducativa de internação
Salta aos olhos, como primeira questão emergente, a grande
quantidade de adolescentes no Brasil que cumprem medida socio-
educativa de internação pela prática de ato infracional equiparado a
tráfico de drogas. Dados recentes do Conselho Nacional de Justiça
apontam que, na região Sudeste, um terço (32%) dos internos
cumpre medida pelo cometimento desse tipo de infração (CNJ,
2012), perdendo apenas para o roubo.

No Estado de São Paulo, o percentual de participação desse


tipo de ato como motivo de internação cresceu de 20% em 2005 para
42% em 2012. Não há pesquisas confiáveis que expliquem satisfato-
riamente esse crescimento. Muitas hipóteses podem ser levantadas,
sendo provável o concurso de mais de uma delas para compor o
quadro explicativo do fenômeno:

• aumento da participação de adolescentes no tráfico;

• aumento da repressão policial ao tráfico (aumento das


denúncias);

• aumento da repressão ao tráfico praticado por adolescente;

• diminuição drástica, especialmente em São Paulo e algumas


regiões, da taxa de homicídios de adolescentes (não estão
morrendo, estão indo preso);

• mudança na qualificação jurídica de fatos como traficância


(impossibilidade de prisão por porte);

• excessivo rigor dos juízes na aplicação da medida.

426
UNIDADE 18
Em relação a este último aspecto, vale lembrar que o Estatuto
da Criança e do Adolescente veda a aplicação de internação como
primeira medida a adolescentes autores de ato infracional equiparado
a tráfico de drogas. O art. 122 dessa lei prevê o cabimento de tal
medida apenas diante de ato infracional praticado mediante violência
ou grave ameaça à pessoa ou na reiteração da prática de outras
infrações graves. Tráfico de drogas não é crime praticado mediante
violência e, quando se trata de uma primeira infração do adolescente,
não se pode cogitar a reiteração.

Não obstante a clara vedação legal, realçada pela Súmula 492


do Superior Tribunal de Justiça, juízes de primeira instância costu-
mam aplicá-la com relativa frequência, chancelados pelos respectivos
tribunais estaduais. Por vezes, tais decisões argumentam que o tráfico
de drogas implicaria, sim, violência contra a sociedade, que seria mais
do que violência contra a pessoa, fundamento descabido diante da
clara opção legal de excluir tal hipótese, bem como pela impossibili-
dade de interpretação ampliativa de dispositivo que disciplina caso de
privação de liberdade do cidadão. Outros julgados seguem a linha de
que, como a medida socioeducativa não seria pena, sanção ou castigo,
mas ajuda e assistência, o juiz pode aplicá-la sempre que considerá-la
necessária para ajudar o infrator, e não apenas quando a lei a autoriza.
Tal interpretação se mostra equivocada por ignorar o conteúdo
aflitivo, sancionatório e responsabilizador da medida, que reclama,
para que seja aplicada, rigorosa observância de todas as garantias do
devido processo legal. E, ademais, reproduz o modelo de atendimen-
to anterior ao ECA, que tinha como característica fundamental a
utilização de estratégias repressivas (ligadas a diversas formas de
institucionalização fechada) sob pretexto de proteção dos “menores”
necessitados, fossem eles carentes, abandonados ou infratores,

427
MÓDULO VI
proteção essa decidida conforme percepção subjetiva de cada
julgador. Com o advento do ECA, o foco se dá na proteção de direitos,
entre eles o direito de não ser institucionalizado (internado ou
abrigado) senão em último caso.

Também a partir do ECA operou-se uma separação funda-


mental entre as medidas aplicáveis em caso de violação dos direitos de
crianças e adolescentes (medidas de proteção) e em caso de ato
infracional praticado por adolescente (medida socioeducativa).
Assim, se o que inspira o julgador é uma vontade de proteção e
garantia de direitos, isso jamais poderia fundamentar a aplicação de
determinada medida socioeducativa, estratégia claramente voltada à
responsabilização do adolescente autor de ato infracional.

O uso massificado da medida de internação revela a prevalên-


cia da postura, ainda que disfarçada, meramente ou predominante-
mente repressiva diante do fenômeno complexo que é o engajamento
de adolescentes no comércio de drogas. Uma faceta da questão,
claramente esquecida em nosso país, é o fato de, segundo o art. 3º da
Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a
utilização de crianças e adolescentes para atividades ilícitas, particu-
larmente para a produção e tráfico de drogas, ser considerada
expressão das piores formas de trabalho infantil. O Brasil, ao subscre-
ver tal Convenção, assumiu o compromisso de adotar ações imedia-
tas para sua eliminação, o que implicaria, evidentemente, ações
afirmativas de inclusão social, geração de renda, proteção contra
represálias, capazes de suprir, com vantagem, os ganhos simbólicos e
materiais que o alistamento ao tráfico provê. Não restam dúvidas de
que também esse vazio de alternativas explica, ainda que não
justifique o uso da medida socioeducativa de internação como uma
espécie de panaceia para esses casos.
428
UNIDADE 18
Uso de drogas e ato infracional
Algumas pesquisas com jovens privados de liberdade revelam
o uso de drogas como algo assumido por grande parte deles. Uma
pesquisa encomendada pela Fundação Casa de São Paulo (2006)
apontou o uso de frequente de maconha por 62% dos internos. Além
disso, 46% disseram ter experimentado cocaína, 19% com uso
frequente. Assis e Constantino (2005) reportam-se a estudo que
concluíra que 85,6% dos adolescentes disseram fazer uso de algum
tipo de droga antes da apreensão (67,1% de maconha, 32,4% de
álcool, 31,3% de cocaína/crack e 22,6% de inalantes). Fuchs (2004,
apud Sinase 2006) informa taxas de uso de 70% entre dos que estão
em semiliberdade. Dos jovens em cumprimento de medida socioedu-
cativa de internação entrevistados em pesquisa nacional realizada
pelo CNJ, aproximadamente 75% faziam uso de drogas ilícitas, sendo
este percentual mais expressivo na região Centro-Oeste (80,3%)
(CNJ, 2012).

Ainda que significativos os dados reportados, o que deles se


pode concluir é que, onde há adolescente envolvido em ato infracio-
nal, há também alta probabilidade de existir consumo de alguma
droga. Não se pode, contudo, afirmar sequer se é o consumo que
favorece a prática infracional ou se é o envolvimento infracional e a
vivência a ele associada que favorecem, por facilidade de acesso ou
afirmação grupal, o uso. Também não se tem claro qual o padrão
desse uso, entrando nesses 80% desde um adolescente que em alguma
ocasião experimentou maconha até outro que faz uso diário de
grandes quantidades de crack.

Todavia, informações não sistematizadas sugerem que, entre


os infratores mais graves, é baixo o número – inferior a 10% – daqueles
que se prestam a um uso mais pesado ou problemático, próximo da
429
MÓDULO VI
dependência, até porque, nessa cultura, o “noia”, por seu descontrole,
inconstância e inconsequência, não é parceiro recomendável para
prática de crimes que exigem maior elaboração e planejamento.

Por outro lado, embora também careça de confirmação


científica, tem-se clara a percepção de que, entre os usuários proble-
máticos de crack, por exemplo, a maioria não apresenta vivência
criminal significativa, distinta dos problemas gerados pela ilicitude
peculiar ao próprio uso e, quando infracionam, praticam pequenos
furtos e roubos sem uso de arma de fogo, ligados à necessidade de
recursos para aquisição da droga, mas também para a sobrevivência,
em alguns casos, em situação de rua.

Estratégias de atendimento para adolescentes


usuários de droga autores de ato infracional
Resta apontar, ainda que brevemente, algumas questões
ligadas à aplicação e execução de medidas socioeducativas a adoles-
centes usuários de droga. Importa especificamente aqui o grupo, de
menor incidência, dos que fazem uso problemático de drogas, assim
considerados aqueles cujos hábitos de vida diária se voltam, em sua
quase totalidade, às tarefas de aquisição e uso das substâncias
psicoativas.

Assim, a primeira tarefa implicada, perante a notícia de que um


adolescente, suspeito da prática de ato infracional, faz uso de drogas, é
investigar seu padrão de uso e o impacto desse uso em sua rotina
diária, disposição psicológica e comportamento.

Não raro, ao uso de drogas é atribuída uma relevância despro-


porcional na ordem de fatores associados ao crime. Trata-se, por
430
UNIDADE 18
vezes, da parte da família e/ou do adolescente, de uma estratégia
inconsciente de autodefesa, atribuindo ao objeto externo droga, a
fonte de todo o mal e a causa principal do comportamento transgres-
sor. Da parte dos profissionais do atendimento e do sistema de justiça,
justificações dessa ordem simplificam o trabalho e facilitam a
definição de critérios decisórios e focos de intervenção. O “mistério”
embutido na opção criminal parece, com essa explicação, facilmente
revelar-se, apaziguando a inquietação todos diante da questão de por
que o adolescente infringiu a lei.

Tal associação simples, contudo, além de reforçar a estigmati-


zação dos usuários, que em sua vasta maioria não cometem crimes,
acaba encobrindo outros aspectos importantes a serem considerados
e trabalhados e, resulta, por vezes, na perpetuação da medida
socioeducativa enquanto não atestada a cura ou eficácia plena do
tratamento do usuário. Assim, trata-se de uma das expressões da
danosa medicalização, psiquiatrização ou patologização da criminali-
dade e/ou da criminalização da loucura ou doença mental. Um dos
efeitos perversos da medicalização é justamente o de situar o adoles-
cente na posição de objeto passivo, de indivíduo sujeitado pela droga
que, despersonalizado, passa a ser alvo, também passivo, de estratégi-
as invasivas de controle e conversão moral legitimadas pelo ideal
sanitário. Ao suprimir-se sua vinculação subjetiva com suas escolhas,
ele é objetificado e despotencializado. Assim, reconhecer sua capaci-
dade de responsabilização – que nada tem a ver com a submissão a
castigos severos – é necessário e dignificante.

Mas caso reste positivamente constatado que um adolescente


pratica ato infracional afetado, em sua consciência e vontade, por um
padrão compulsivo de consumo de drogas, o que, segundo a legisla-
ção vigente, deve ser feito?

431
MÓDULO VI
A resposta não é unívoca. A regra geral do ECA, quando
convertido o uso problemático em transtorno psiquiátrico, estaria
À luz, por exemplo, dos
critérios presentes na Clas-
ditada no art. 112, §3º:
sificação Internacional de
Doenças, em F19, para Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental (que
Transtornos mentais e
comportamentais devidos praticarem atos infracionais) receberão tratamento individual e
ao uso de múltiplas drogas
e ao uso de outras subs- especializado, em local adequado às suas condições.
tâncias psicoativas.
Os termos genéricos da expressão “local adequado” abriram
grande margem para especulações interpretativas, algumas susten-
tando que o prejuízo na saúde mental impossibilitava a aplicação de
medidas socioeducativas, cabendo apenas as medidas protetivas do
art. 101, V e VI, outras propondo o perfeito cabimento da medida
socioeducativa mais compatível com o tratamento necessário ao
adolescente, e outras ainda defendendo a aplicação de medida
socioeducativa, pela infração, assim como a proteção, diante da
toxicomania, para usar os termos da lei (art. 112, VII, 113 e 99 do
ECA).

No fundo, a polêmica deriva do caráter ambíguo da legislação,


que transita entre os modelos de bem estar e de Justiça, entre
assistência e tratamento do infrator e sua responsabilização pelo ato
cometido.

Para os partidários da perspectiva de bem-estar social, vol-


tando-se as medidas a tratar as causas do delito, sanando direitos
violados, inclusive à saúde, cabe a aplicação da medida socioeducativa
mais adequada justamente para garantir o tratamento necessário.

A posição daqueles que percebem a medida socioeducativa é


diferente, sobretudo como resposta adequada e proporcional ao
delito, buscando garantir a responsabilização do infrator e a desapro-
vação da conduta infracional. Para eles, se constatada a afetação da
higidez mental por conta do uso de drogas simultâneo a prática
432
UNIDADE 18
delitiva, não pode o adolescente receber medida socioeducativa, uma
Art. 45. É isento de pena o
vez que prejudicados seu entendimento e seu controle volitivo, pres- agente que, em razão da
dependência ou sob o
efeito, proveniente de caso
supostos essenciais a qualquer tipo de responsabilização, penal ou fortuito ou força maior, de
droga, era, ao tempo da
não. Ademais, considerando que a regra do art. 45 da Lei nº 11.343/ ação ou da omissão, qual-
quer que tenha sido a
2006 isenta de pena o adulto que cometer crime prejudicado no gozo infração penal praticada,
inteiramente incapaz de
de suas faculdades cognitivas e volitivas pela dependência de drogas, entender o caráter ilícito do
fato ou de determinar-se de
também não se deveria, aos adolescentes, pelo mesmo motivo, impor acordo com esse entendi-
mento.
medidas socioeducativas.
Inclusive à luz do dispõe a
O advento da Lei nº 12.594/2012, sem soterrar por completo a Lei nº 12.594/2012 em seu
art. 35: “Art. 35. A exe-
polêmica, trouxe novas luzes à questão. Primeiro, deixa clara, como já cução das medidas socio-
educativas reger-se-á pelos
salientado, a natureza híbrida da medida, voltada simultaneamente à seguintes princípios: I -
legalidade, não podendo o
adolescente receber trata-
responsabilização pelo ato e à garantia de direitos do infrator. Por mento mais gravoso do que
o conferido ao adulto.
outro lado, mais adiante, o capítulo que cuida da atenção integral à
saúde de adolescente em cumprimento de medida socioeducativa,
confirmada a hipótese de cumprimento de tal medida sem prejuízo
do simultâneo tratamento àqueles que forem diagnosticados com
algum transtorno mental, incluindo os quadros de dependência por
substância psicoativa. Nesse caso, os profissionais dos programas
socioeducativos devem ajustar o Plano Individual de Atendimento
(PIA) ao Projeto Terapêutico Singularizado (PTS), a cargo dos
profissionais da rede de saúde de referência. Quando incompatível o
regime de tratamento com o cumprimento da medida, hipótese que a
lei trata como exceção, a execução da medida socioeducativa pode ser
suspensa, levando a crer que será retomada depois de cessada a
incompatibilidade, com a estabilização do quadro clínico.

Assim, sem que isso impeça outras interpretações possíveis, a


legislação em vigor parece inclinada a não renunciar à responsabiliza-
ção do adolescente pelo ato praticado ainda que apresente quadro de
dependência de drogas.

433
MÓDULO VI
Ressalta-se que, não obstante tal posição, o legislador reforçou
também a excepcionalidade da internação, de modo que seguem as
medidas em meio aberto como as mais indicadas mesmo para casos
de adolescentes autores de ato infracional com uso problemático de
drogas.

Assim, é importante que exista uma rede de atenção devida-


mente aparelhada, com seus diversificados recursos, para o
No mínimo aqueles elen-
cados na Portaria MS nº
atendimento do adolescente, não se justificando, jamais, que seja a
3.088/2011, que disciplina
a rede de atenção psicos- medida de internação manejada por conta de uma deficiência, real ou
social para pessoas com
sofrimento ou transtorno cogitada, dos serviços de atenção a adolescentes usuários de drogas.
mental e com necessida-
des decorrentes do uso de Mesmo em casos de resistência ao tratamento ou de recaídas, tais
crack, álcool e outras
drogas no âmbito do SUS. questões devem ser trabalhadas a partir dos instrumentos da área da
saúde, sendo equivocado emprestar a coercitividade da medida
socioeducativa para “potencializar” o sucesso das ações de saúde.
Visitas domiciliares, estratégias de sensibilização, atendimento a
familiares, acionamento de serviços de urgência e remoção e, em
casos extremos, até mesmo a internação involuntária são estratégias a
serem decididas e executadas pelos profissionais da Saúde – ainda que

Registra-se aqui que a


com a colaboração dos agentes socioeducativos – sem concurso
internação psiquiátrica
compulsória, definida como judicial, como, aliás, deve se dar diante de qualquer outro caso de
aquela determinada pelo
juiz (art. 9 da Lei nº 10.216/ adolescente com uso problemático que não esteja inserido em
2001), refere-se em nosso
ordenamento jurídico exclu- medida socioeducativa.
sivamente à medida de
segurança aplicada ao adul-
to autor de crime declarado É absolutamente ilegal a aplicação da medida socioeducativa
inimputável. Em nenhum
outro caso cabe ao juiz man-
dar alguém para internação
de internação sob pretexto de que o adolescente precisaria ficar
sem que haja prescrição mé-
dica, e havendo prescrição o contido para poder se tratar. A imposição de tratamento sob conten-
concurso judicial é dispensá-
vel, devendo a providência ção, providência absolutamente excepcional, é um ato médico,
seguir o fluxo administrativo
da internação involuntária. estranho à competência jurisdicional (Lei nº 10.216/2001, art. 6º,
caput). Ademais, as instituições para cumprimento de medida
socioeducativa de internação não são espaços destinados a tratamen-
to. Se há necessidade, atestada por profissionais habilitados da rede
434
UNIDADE 18
de saúde, de tratamento sob internação hospitalar, ou de atenção em
unidades de acolhimento ou comunidades terapêuticas, e não há
vaga, cabe acionar o Estado para que disponibilize o recurso, renunci-
ando ao uso supletivo do sistema socioeducativo para viabilizar
qualquer tipo de atenção à saúde.
Se o médico prescreve
De todo modo, isso não desincumbe os programas socioedu- internação e não há vaga na
rede pública, a ordem
cativos de se aparelharem para bem atender às demandas por judicial que manda o estado
disponibilizar a vaga não
caracteriza internação com-
tratamento e orientação de seus adolescentes com histórico de uso de pulsória, mas justa inter-
ferência judicial para garan-
drogas. A Resolução 119 do Conselho Nacional dos Direitos da tia do direito à saúde. O juiz,
nesse caso, não está man-
Criança e a própria Lei nº 12.594/2012 prescrevem uma série de dando o adolescente se
tratar (internação compul-
recursos, providências e dispositivos destinados aos usuários do sória), mas está mandando o
Estado cumprir seu papel de
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo com problemas oferecer tratamento, sendo
que o tempo de permanência
fica a critério exclusivo da
com drogas. Elas vão desde a oferta de grupos de discussão sobre o equipe de saúde, não poden-
do nem devendo a alta
tema até, para os internados, o cumprimento da Portaria Inter- depender de autorização
judicial.
ministerial MS/SEDH/SPM nº 1.426 e da Portaria da Secretaria de
Atenção a Saúde nº 340, ambas de 14 de julho de 2004, que estabele-
cem normas para operacionalização das ações de saúde ao adolescen-
te sob cumprimento de medida, sempre na diretriz da incompletude
institucional (art. 94, §2º do ECA) e articulação intersetorial.

Toda estratégia de atendimento a adolescentes usuários de


droga deve ser desenhada e executada observando as diretrizes
previstas no art. 100, parágrafo único, incisos XI e XII do ECA,
garantindo-lhes o direito à informação, oitiva e participação. Devem
ter, pois, acesso a seu diagnóstico e conhecimento das estratégias de
intervenção disponíveis, que não serão adotadas sem a escuta prévia
de sua opinião e esclarecimento pormenorizado de eventuais motivos
para seu não acolhimento. A normativa vigente revela clara a
preferência por estratégias de atenção que operem na lógica não
coercitiva da pactuação e da itinerância, compatíveis com o modelo
de Redução de Danos. De qualquer maneira, parece recomendável
435
MÓDULO VI
que a rede de atenção disponha do máximo de recursos e técnicas
possíveis de atendimento, multiplicando – diante da ausência de
consenso quanto ao modelo ideal de tratamento – as possibilidades
de sucesso na intervenção.

Conclusão
Apresentando uma visão panorâmica das relações entre
drogas, adolescência, ato infracional e sistema socioeducativo, esta
unidade teve como escopo oferecer um ponto de vista mais crítico aos
profissionais que operam com essas imbricadas intersecções, de
modo a prevenir alguns equívocos que pouco têm contribuído para os
ideais de garantir os direitos dos adolescentes à saúde e responder, ao
mesmo tempo, aos justos reclamos sociais por menos crimes.

Assim, pretendeu-se aqui sugerir que os profissionais:

• não compactuem com visões simplistas e estereotipadas


sobre drogas, atentando para sua onipresença na história da
humanidade, para as tênues fronteiras que separam o lícito
do ilícito, o veneno do remédio, e para o fato de que as
modalidades vigentes de consumo, problemático ou não,
refletem, mais do que explicam, os grandes paradoxos da
contemporaneidade;

• percebam que todos os adolescentes vivenciam mudanças


não redutíveis, porém há um padrão universal, idealizado e
único, regulador do que seja o esperado e o desviado, o
normal e o patológico, para essa fase. Tomar consciência,
por outro lado, da ambiguidade com que é vista e tratada a
adolescência pelo mundo adulto, nos adverte de que a
436
UNIDADE 18
“crise” talvez não esteja apenas no adolescente, mas na
relação que estabelecemos com ele;

• atentem para que uso de drogas e práticas de delitos na


adolescência não são preditores necessários de dependência
ou carreira criminal futura. É preciso cuidadoso dimensio-
namento do significado dessas condutas para a vida de cada
adolescente, lembrando que, muitas vezes, tanto pelo delito
como pela droga, a intervenção excessiva ou desproporcio-
nal pode ser contraproducente;

• reconheçam que há evidências de correlação entre uso de


drogas e delinquência, sem comprovação, contudo, de que
uma cause a outra. É possível que ambas resultem de outros
fatores comuns, em um jogo complexo de determinações
que não permitem explicações e soluções simplistas e
unívocas por parte dos operadores;

• considerem o fato de que o tráfico de drogas na adolescência


não deve ser ordinariamente enfrentado pela via repressiva
da privação de liberdade, tanto pelas restrições legais a seu
uso quanto pelo reconhecimento de que se trata de uma das
piores formas de exploração do trabalho infantil que
reclama políticas inclusivas e não apenas segregadoras;

• não subestimem a importância do uso de drogas no envol-


vimento infracional: negligenciando, quando necessária, a
oferta de atendimento especializado competente que, ao
cuidar dos fatores associados ao uso, pode controlar tam-
bém fatores ligados à conduta delitiva, ou, então, não ate-
nuando responsabilidade pela prática infracional quando
constatado prejuízo cognitivo e volitivo gerados pela depen-
dência;

437
MÓDULO VI
• não superestimem a importância do uso de drogas no envol-
vimento infracional: patologizando a delinquência e o uso,
tirando a responsabilidade dos infratores, familiares, socie-
dade e estado e condicionando o encerramento da medida
socioeducativa ao sucesso do tratamento;

• não apliquem medida mais severa, especialmente a interna-


ção, sob pretexto de ser o infrator usuário de drogas, uma
vez que a demanda por tratamento de saúde supre-se por
aplicação de medida protetiva e não pelo agravamento da
resposta socioeducativa;

• não apliquem medidas de internação para suprir uma


lacuna de serviço regular de saúde ou para garantir conten-
ção supostamente necessária ao sucesso do tratamento e
não internem para proteger de ameaças de traficantes ou
vítimas de furto, acionando-se, nesses casos, os Programas
de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de
Morte;

• desvencilhem-se da ideia de que a internação (hospitalar


e/ou em comunidade terapêutica) é sempre a melhor
alternativa de tratamento.

Para finalizar, fica a recomendação de que, diante de fenôme-


nos tão complexos, uma voluntariosa pretensão de “salvar” nossos
jovens da “perdição” das drogas e do crime, experiências de frustração
podem levar rapidamente o profissional da postura onipotente para a
sensação de impotência. Assim, sociedade, adolescentes e famílias
esperam dos operadores apenas a prudência e o equilíbrio para reco-
nhecer o que deve ser feito e o que pode ser feito em cada caso.

438
UNIDADE 18
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDER, B. K. The globalization of addiction: a study in poverty of the spirit.


New York: Oxford University Press, 2008.

ASSIS,S. G.; CONSTANTINO, P. Perspectivas de prevenção da infração juvenil


masculina. Ciênc Saúde Coletiva, n.10, p. 81-90, 2005.

BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de


subjetivação. Parte 3: as subjetividades e as drogas. 7. Ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009. p. 195–250.

BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Aprova o Regulamento Técnico


sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Portaria SVS/MS nº
344, de 12 de maio de 1998. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/scriptsweb/
anvisalegis/visualizadocumento.asp?id=939&versao=2>. Acesso em: 07/10/2014.

______ Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispões sobre o Estatuto da Criança e


do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 30/09/2014.

______ Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção


Sobre os Direitos da Criança. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm>. Acesso em: 30/09/2014.

______ Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em
saúde mental. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_
2001/l10216.htm>. Acesso em: 30/09/2014.

______ Aprova as diretrizes para a implantação e implementação da atenção à


saúde dos adolescentes em conflito com a lei, em regime de internação e internação
provisória, e dá outras providências. Portaria Interministerial MS/SEDH/SPM nº
1.426, de 14 de julho de 2004. Disponível em: <http://dtr2001.saude.gov.br/sas/
PORTARIAS/Port2004/GM/GM-1426.htm>. Acesso em: 30/09/2014.

______ Secretaria de Atenção a Saúde. Portaria nº 340, de 14 de julho de 2004.


Disponível em: <http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2004/PT-
340.htm>. Acesso em: 30/09/2014.

______ Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de


Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso
indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece
normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define
crimes e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 30/09/2014.

439
MÓDULO VI
______ Ministério da Saúde. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas
com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack,
álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Portaria nº 3.088, de 23
de dezembro de 2011. Disponível em: <http://www.politicaspublicas.crppr.org.br/
wp-content/uploads/2012/12/PORTARIA-N%C2%BA-3088-11.pdf>. Acesso
em: 30/09/2014.

______ Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de


Atendimento Socioeducativo (Sinase) e regulamenta a execução das medidas
socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm>.
Acesso em: 30/09/2014.

______ Ministério da Justiça. Mundo Jovem. O que é a droga. Disponível em:


<http://www.obid.senad.gov.br/portais/mundojovem/conteudo/index.php?id_co
nteudo=11221&rastro=O+que+%C3%A9+a+Droga>. Acesso em: 22/05/2014.

______ Secretaria Especial de Direitos Humanos. Resolução CONANDA nº 119


de 11 de dezembro de 2006. SINASE – Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo. Brasília, 2006.

CALLIGARIS, C. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000.

CARLINI, E. A. et. al. VI Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas


Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio das Redes
Pública e Privada de Ensino nas 27 Capitais Brasileiras – 2010. São Paulo:
CEBRID; UNIFESP; SENAD, 2010.

CÉSAR, M. R. A. Da adolescência em perigo à adolescência perigosa. Educar em


Revista, [s.l.], n. 15, dez. 2005. Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/
index.php/educar/article/view/2048>. Acesso em: 01/06/ 2014.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2012. Panorama Nacional, a


Execução das Medidas Socioeducativas de Internação. Disponível em:
<http://www.tjsc. jus.br/infjuv/documentos/acoeseprojetos/CNJ_panorama_
nacional_medidas_socioeducativas.pdf>. Acesso em: 07 /10/2014.

DELMANTO, J. Para além da “fuga da realidade”: outras motivações para consumo


de psicoativos na contemporaneidade. Saúde & Transformação Social, v. 4 n. 2, p.
78-90, 2013. Disponível em: <http://www.incubadora.ufsc.br/index.php/
saudeetransformacao/article/view/2252>. Acesso em: 14/12/2012.

ESCOHOTADO, A. Historia general de las drogas. Madrid: Espasa Calpe, 2005.

FOSCARINI, P. T. Benzodiazepínicos: uma revisão sobre uso, abuso e dependência.


Trabalho de Conclusão de Curso da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, 2010.
440
UNIDADE 18
FUCHS, A. M. S. Entre o direito real e o direito legal: o desafio à efetivação da
cidadania do adolescente autor de ato infracional. Dissertação de Mestrado.
Universidade de Brasília; 2004.

FUNDAÇÃO CASA. Pesquisa com Internos 2006. Disponível em: http://www.


fundacaocasa.sp.gov.br/images/midia/PesquisaInternos.pdf. Acesso em:
04/11/2014.

GOLDSTEIN, P. J. The Drugs/Violence Nexus: A Tripartite Conceptual


Framework. In: INCIARDI, J. A.; MCELRATH, K. (Eds.). The American Drug
Scene: An Anthology. Los Angeles: Roxbury, 1995.

HAZEL, N. Cross-national comparison of youth justice. 2008. Disponível em:


<http://yjbpublications.justice.gov.uk/en-gb/Scripts/prodView.asp?
idproduct=368&eP=>. Acesso em: 22/05/2014.

NICASTRI, S. Drogas: classificação e efeitos no organismo. In: DUARTE, P. do C. A.


V.; ANDRADE, A. G. de. (Orgs.). Integração de competências no desempenho da
atividade judiciária com usuários e dependentes de drogas. Brasília: Ministério
da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2011. p. 59-90.

OLMO, R. del. Violencia juvenil y consumo de drogas. OPTAR, Boletim Foro, 34.
1999. Disponível em: <http://www.fad.es/sala_lectura/CongresoViolencia.pdf>.
Acesso em: 12/04/ 2014.

OLMO. R. del. Violencia juvenil y consumo de drogas: modelos teóricos (algunas


inquietudes preliminares). I Congreso Virtual de la FAD sobre Violencia y
Consumo de Drogas. Disponível em: <http://www.iin.oea.org/ Cursos_a_
distancia/UT1-Lecturas%203y4.pdf>. Acesso em: 14 /01/2008.

OTERO LOPEZ, J. M., 1996. Droga y Delincuencia: Concepto, Medida y Estado


actual del conocimiento. Madrid: Ediciones Piramide.

PRATTA, E. M. M; SANTOS, M. A. Reflexões sobre as relações entre drogadição,


adolescência e família: um estudo bibliográfico. Estud. psicol., Natal , v. 11, n. 3, dez.
2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid
=S1413294X2006000300009&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13/05/2014.

VASTERS, G. P.; PILLON, S. C. O uso de drogas por adolescentes e suas percepções


sobre adesão e abandono de tratamento especializado. Rev. Latino-Am.
Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 19, n. 2, abr. 2011. Disponível em: <http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010411692011000200013&l
ng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13/05/2014.

VOLPI, M. O adolescente e o Ato Infracional. São Paulo: Cortez, 1997.

441
MÓDULO VI
ZINBERG, N. Drug, set and setting: the basis for controlled intoxicant use. New
Haven: Yale University Press, 1984.

442
UNIDADE 18
RESUMO DA AULA

A partir de uma breve análise do tema das drogas, da adoles-


cência e do ato infracional, esta unidade analisa aspectos das diferen-
tes possibilidades de se pensar as relações entre essas três variáveis e
reflete criticamente sobre os modelos que estabelecem relação de
causalidade entre uso e comércio de drogas e a prática de delitos,
apontando existir, no máximo, uma correlação entre eles.

Esta unidade também evidencia a ambiguidade do marco legal


vigente em relação a medidas aplicadas aos autores de ato infracional
e como tal ambiguidade afeta a definição das respostas direcionadas a
adolescentes envolvidos no comércio de drogas e usuários de drogas
que praticam infrações de qualquer natureza.

Ao final, propõem-se algumas referências para orientar o fazer


dos profissionais que operam nesse campo.

443
MÓDULO VI
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

1. Vimos que as drogas podem ser agrupadas a partir de diferentes


critérios. Relacione cada grupo ao tipo de droga:
( ) drogas institucionalizadas ou legais
( ) drogas industriais
( ) drogas proibidas ou clandestinas
( ) drogas enteógenas (utilizadas para rituais místicos)

a. maconha e cocaína

b. tabaco, cafeína e álcool

c. salvia divinorum e ayahuasca

d. solventes e aerossóis

2. Segundo o texto, a adolescência, em nosso contexto histórico e


cultural, tem sido associada à fase na qual se iniciam os primeiros
contatos com as drogas. Para justificar essa afirmação, o autor traz
algumas situações e fatores específicos de risco ou vulnerabilidade que
predisporiam o adolescente à experimentação delas. São situações e/ou
fatores específicos apontados no texto:
a. trabalho de construção da própria identidade e conflitos
intensos nas relações familiares
b. busca por novas experiências e sensações e inabilidade nas
relações sociais
c. facilidade de acesso às drogas e influenciabilidade pelos grupos
de pares
d. menor controle parental e ser do sexo masculino
e. todas as anteriores
444
GABARITO
DOS EXERCÍCIOS
DE FIXAÇÃO
QUESTÃO RESPOSTA
UNIDADE 1 1 E
2 A
UNIDADE 2 1 C
2 E
3 D
UNIDADE 3 1 (X)
(X)
( )
(X)
( )
2 D
UNIDADE 4 1 C
2 E
UNIDADE 5 1 C, A, B
2 ( )
( )
( )
(X)
UNIDADE 6 1 B
2 D
3 V, V, V, F, F
4 D
5 C
UNIDADE 7 1 C
2 C
UNIDADE 8 1 P, P, I, I, P
2 D
UNIDADE 9 1 B
2 A
UNIDADE 10 1 C
2 E
3 A
UNIDADE 11 1 B
2 C
3 C
UNIDADE 12 1 C
2 A
3 D
UNIDADE 13 1 A
2 A
UNIDADE 14 1 B
2 E
UNIDADE 15 1 F, V, F, V, V
2 C
UNIDADE 16 1 D
2 C
UNIDADE 17 1 C
2 C
UNIDADE 18 1 B, D, A, C
2 E
447
O QUE É O LIGUE 132?
O Ligue 132 é uma central telefônica de orientações e informações sobre a prevenção
do uso indevido de drogas. O serviço atende de forma gratuita, diariamente, 24 horas
por dia, incluindo feriados e finais de semana. O atendimento é sigiloso e a pessoa não
precisa se identificar.

É BOM FALAR COM QUEM ENTENDE


• O atendimento é realizado por consultores capacitados e supervisionados por profis-
sionais, mestres e doutores, da área da saúde;
• Os profissionais indicam locais para tratamento;
• Oferecem aconselhamento por meio de intervenção breve para as pessoas que usam
drogas e seus familiares;
• Prestam informações científicas sobre drogas.

O Ligue 132 é o resultado de uma parceria entre a Secretaria Nacional de Políticas


sobre Drogas – SENAD, do Ministério da Justiça e a Universidade Federal de Ciências
de Saúde de Porto Alegre.
CONSELHO
NACIONAL
DE JUSTIÇA

978-85-5506-008-3

9 788555 060083

Você também pode gostar