Mundominas
Mundominas
Mundominas
Juiz de Fora
Faculdade de Letras da UFJF
2011
3
AGRADECIMENTOS
À Terezinha Maria Scher Pereira, minha orientadora sempre, pela amizade, compreensão e
sugestões sempre instigantes e pontuais.
Às professoras Maria Luiza Scher e Marília Rothier Cardoso, pelo carinho e apoio durante o
curso de mestrado.
À professora Helena Maria Rodrigues Gonçalves por me ensinar a ler a “palavra mundo”.
Ao professor Carlos Cortez Romero pela amizade e apoio dado desde os primeiros anos de
graduação.
6
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 08
3 MUNDOMINAS ............................................................................................................... 51
3.1 MURILO E O ESTADO ................................................................................................. 54
3.1.1 Drummond – Nava – Murilo ..................................................................................... 59
3.1.1.1 A viagem de 24: Murilo e a Antropofagia ................................................................. 63
3.2 UMA POÉTICA DA AMIZADE: MINAS-ROMA ....................................................... 69
3.2.1 Professor Aguiar-Spinoza .......................................................................................... 74
5 CONCLUSÃO .................................................................................................................. 98
1 INTRODUÇÃO
analisados os seguintes textos de Drummond sobre Minas: “São Francisco de Assis”, do livro
Poemas (1930); “Contemplação de Ouro Preto”, de Passeios na Ilha (1952); “Viagem de
Sabará”, de Confissões de Minas (1944); “Meu Irmão Pensado em Roma”, “Halley” e
“Escritório”, da série Boitempo & A Falta que ama (1968-1979).
A partir da questão da memória individual e da cidade, pode-se fazer um mapeamento
do Modernismo mineiro em direção ao mundo, seguindo uma nova significação contida no
termo chave do trabalho – o conceito mundominas. Sabe-se da importância do Modernismo
mineiro e de como existe um museu de papel bastante significativo para ser explorado: a
revista de vanguarda Verde, criada em Cataguases; a produção dos poetas da geração de 20,
em Belo Horizonte, entre os quais Drummond e Emílio Moura, além do convívio entre
intelectuais, como Murilo Mendes, Murilo Rubião e Henriqueta Lisboa, em Belo Horizonte
durante os anos 1940.
Muitos desses poetas mudaram-se para o Rio de Janeiro, lugar das experiências de
deslocamento de Murilo e da ressignificação de Minas Gerais. Na maneira sugestiva como
esse espaço é delineado por Murilo nas teias dos arquivos da história e das artes, ao descrever
os cenários de Ouro Preto e Juiz de Fora, sempre pela perspectiva do Outro, pode-se repensar
o modernismo mineiro, considerando mundominas como um conceito alegórico. A articulação
entre a crítica e a teoria literária com a crítica cultural, biográfica e interdisciplinar é
fundamental tanto na recriação do espaço mineiro, a partir do tratamento memorialístico dado
à recordação de viagem a Ouro Preto e à própria revisitação do mundo infantil em Juiz de
Fora, quanto na associação entre a Europa e Minas.
A abordagem aqui proposta parte das pesquisas desenvolvidas no projeto “Prática
Política e Poética – Um Estudo da Amizade em Murilo Mendes como Estratégia de
Sobrevivência entre Mundos Diversos”, coordenado pela Prof. Dra. Terezinha Maria Scher
Pereira. A pesquisa procurou investigar a ambiência intelectual de Murilo Mendes na Europa,
avaliando as referências a espaços regionais e a relação com outros artistas europeus e
brasileiros das mais diversas áreas.
Assim, no capítulo “Eixos Inesperados: Arquivos da memória e deslocamentos de
Murilo Mendes”, procura-se fazer uma releitura da relação Ouro Preto e Juiz de Fora,
aproximando as duas cidades por um viés historiográfico e crítico da mineiridade. A rua
Halfeld, em Juiz de Fora, é revisitada a partir de uma abordagem histórico-literária, em que
Murilo dá voz ao Outro. Alguns textos sobre a história de Juiz de Fora são base para análise
da releitura da principal rua da cidade. As “Chronicas Mundanas”, escritas por Murilo entre
1920 e 1921, na sua cidade natal, são o eixo principal da comparação.
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Pode-se entender que Murilo apropria-se de uma certa tendência do romance histórico
e, a partir de uma revisitação dialética, promove um jogo de forças e uma luta de classes na
rua Halfeld rememorada em Idade do Serrote. Em uma tática de afirmação do Modernismo, a
relação entre Juiz de Fora e o mundo é lida através do olhar do poeta maduro, que nega o
professor de poesia e poeta Belmiro Braga. A análise do retrato de Murilo Mendes, pintado
por Guignard, em 1931, delineia o início dos deslocamentos no itinerário do jovem poeta
mineiro, já vivendo no Rio de Janeiro. Dentro desse capítulo, uma leitura do poema “São
Francisco de Assis”, de Drummond, e a “Capela do Padre Faria”, de Murilo, ratificam as
perspectivas de representação nos dois poetas e a questão do trauma histórico e do embate
entre vencedores e vencidos.
Através das leituras de Mal de Arquivo e Espectros de Marx, uma análise de Derrida
evidencia a ideia de arquivos-espectro, corroborada pelo conceito de história, em Walter
Benjamin. Associada à dimensão política, a noção estética torna essencial a problemática da
herança, na medida em que ela indica o viés estratégico da desconstrução pela motivação e
compromisso com o Outro, vivo, morto ou ainda porvir. Dessa forma, a ideia de “espectro do
Barroco” permeia as leituras dos poemas e textos, buscando legitimar o conceito de
contemplação do irrealizado proposta por Murilo. A teoria de uma poética da aprendizagem
entre a realidade e o irrealizado dá-se através do enfrentamento do espectro da morte em
Ouro Preto e pelo personagem do Tio Lucas, de Idade do Serrote.
Nesse sentido, se, por um lado, a morte é lida como alegoria da aprendizagem, por
outro lado, os poemas sobre Ouro Preto são lidos como alegoria do irrealizável, contrapondo-
se aos símbolos de uma Ouro Preto historicista, no sentido tradicional, como observamos na
metáfora das flores, em Contemplação de Ouro Preto e no Romanceiro da Inconfidência, de
Cecília Meireles. O espírito e a forma do Barroco são discutidos pela associação entre
alegoria e símbolo nas teses benjaminianas. Constituem o índice de leitura do capítulo o mito,
a ruína, a contemplação e a herança espectral do Barroco e da arquitetura barroca mineira
como valor.
Buscando uma analogia entre a poética muriliana e a viagem dos antropofágicos a
Ouro Preto, em 1924, como marco inicial do projeto modernista de se escrever sobre esta
cidade, o terceiro capítulo parte da análise do principal termo da dissertação: “mundominas”.
Patrocinadas pelo governo, as viagens dos intelectuais tinham no ministro da Educação e
Cultura, Gustavo Capanema, um articulador das ideias dos artistas e intelectuais, cujas obras
colaboravam para o processo de legitimação do patrimônio histórico nacional. O poema
“Luminárias de Ouro Preto”, de Murilo, dedicado ao então ministro Capanema, é
13
representativo dessa política literária. O objetivo dessa análise política é perceber a estratégia
de deslocamento muriliano, já que, a partir da publicação de Contemplação de Ouro Preto,
financiado pelo governo democrático de Getúlio Vargas (1951-1954), Murilo iniciará suas
incursões europeias, até firmar residência definitiva em Roma. Percebem-se os impasses do
escritor modernista brasileiro, cuja obra só podia circular pela via privada das amizades ou
pela via pública dos projetos estatais.
Na análise desses deslocamentos, outras viagens a Ouro Preto afirmam o imaginário
da cidade como símbolo tanto do patrimônio quanto de uma identidade nacional. Além da
relação com Drummond, faz-se uma leitura crítica da obra Roteiro Lírico de Ouro Preto
(1937), de Afonso Arinos de Melo Franco. O livro, que deveria ser sobre a cidade de Ouro
Preto, acaba direcionando seu foco narrativo para as histórias do personagem denominado “o
poeta”, que, na verdade, é o escritor Pedro Nava, acompanhante do narrador, Afonso Arinos,
na visitação a Ouro Preto. Nava escreveu o prefácio da segunda edição do livro, em 1980,
reafirmando e estendendo o movimento memorialístico mineiro dos modernistas ao espaço
de Ouro Preto. Para o autor juizforano, as velhas histórias de Ouro Preto são memórias do
próprio sangue gravadas no corpo. Na relação Drummond-Murilo-Nava, a dialógica entre o
memorialismo mineiro e as incursões modernistas a Ouro Preto traz à tona o ensaio “Poesia e
Ficção na autobiografia”, de Antonio Candido, que relaciona os três autores e seus escritos
memorialísticos.
Da mesma forma, pensando-se em outras incursões a Ouro Preto, além das já
observadas em Drummond, Pedro Nava, Afonso Arinos e Cecília Meireles, o espectro da
primeira viagem modernista a esta cidade, que irradia o ideal de se escrever sobre a mesma,
sugere apontamentos da recepção muriliana aos antropofágicos: em que pontos a poesia de
Murilo aproxima-se e em que pontos afasta-se do principal movimento do Modernismo
brasileiro. A viagem de 1924 é símbolo da novidade do pensamento modernista que percebe,
no Barroco mineiro, as incorporações de uma arte popular e uma arte erudita. Nesse sentido, a
relação com Tarsila do Amaral é fundalmental, simbolizando a relação entre literatura, pintura
e paisagem mineira.
Como, na poética e na vida de Murilo, Roma é o ponto final do itinerário
“mundomineiro”, esta dissertação associa a “cidade eterna” e Minas, na análise do retrato do
“Professor Aguiar”, em Idade do Serrote, e o retrato de “Spinoza”, em Retratos-relâmpago.
Dessa forma, em um espaço rasurado e não delimitado, é proposta, na leitura das duas obras,
uma noção de trânsito entre os afetos da infância em Minas e os afetos do poeta canônico.
14
O divórcio em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu da realidade
brasileira fazia com que a paisagem da Minas barroca surgisse aos olhos
modernistas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto, do quadro de
novidade e originalidade que eles procuravam. E não falaram, desde a primeira hora,
numa volta às origens da nacionalidade, na procura de um filão que conduzisse a
uma arte genuinamente brasileira? Pois lá nas ruínas mineiras haviam de encontrar,
certamente, as sugestões dessa arte (BROCA, apud SANTIAGO, 2002, p. 121).
Enquanto Ouro Preto ficou preservada como arquivo da memória nacional, Juiz de
Fora foi formando-se subterraneamente na travessia das caravanas que trilhavam o caminho
do ouro. Em lampejos de uma breve memória, nesses dois momentos de sua poética, Murilo
viajará, entre as raízes mineiras, para uma Juiz de Fora da infância, em uma visão muito
16
particular, que privilegia os parentes, mulheres por quem se interessou e tipos sociais da
cidade.
Na representação de duas cidades que configuram eixos-inesperados, ambas as obras,
embora, aparentemente, não tenham pontos em comum, dialogam quanto à confluência do
espaço mineiro, representando momentos diversos da poética muriliana. A partir dessa
primeira confluência, o confronto entre as mesmas destacará aspectos relacionais da incursão
mineira.
Se, esteticamente, as obras são diferentes, obviamente, as cidades ainda mais. No
prefácio escrito por Marcos Neves para o livro Juiz de Fora em 2 tempos, organizado e
editado pelo jornal local Tribuna de Minas, a diferença é o ponto principal que definirá a
identidade de Juiz de Fora. Percebe-se uma intenção de afastamento da herança colonial como
eixo fundador, situando a cidade provinciana em uma esfera europeizada:
Por duas vezes Sabará me deu esta sensação de dor feliz acabando em dissolução.
Duas vezes operou em mim o sortilégio das cidades mortas de Minas, que são as
cidades mais vivas de Minas, em que pese a Juiz de Fora, Belo Horizonte, Uberaba,
Ponte Nova, Cataguases (DRUMMOND, 1959, p. 44).
17
As cidades que representam o progresso são lidas a contrapelo das cidades decadentes
do ciclo do ouro, embora mortas, serão mais vivas do que Juiz de Fora. De fato, enquanto as
modernas cidades não têm o mesmo apelo, mantém-se a vivacidade poética de Ouro Preto.
Juiz de Fora só será revisitada na poética memorialística, na efemeridade da epifania de uma
totalidade expressa na efabulação do cometa Halley, o mundo em Minas por alguns instantes:
Porém este salto do Barroco à vanguarda é povoado por espectros que unirão, em sua
espectralidade, as ruínas da história e o tempo mítico da obra muriliana, o vestígio e o rastro
deixados pelo Caminho Novo:
O jogo hoje inverte-se: enquanto Juiz de Fora é a cidade ruína, que perdeu prestígio,
poder econômico e considerável parte da arquitetura neoclássica, Ouro Preto, a cidade da
decadência do ciclo de Ouro, é um importante roteiro turístico. Minas Gerais sempre foram
duas: uma, lembrança da infância; outra, lembrança de viagem no Modernismo brasileiro.
Drummond, nascido em Itabira, Murilo e Nava, nascidos em Juiz de Fora, percorreram esse
duplo caminho. Um trajeto que vai configurando-se a partir de anotações e observações nos
cadernos da memória, reais ou não, compondo o itinerário da viagem.
1
Dados consultados no portal da Universidade Federal de Juiz de Fora.
19
Com efeito, no mesmo momento que escreve sobre Ouro Preto, têm início
deslocamentos europeus de Murilo Mendes. Em 1952 viaja um ano pela Europa; entre 1953 e
1955, participa de missão cultural na Bélgica e na Holanda e leciona literatura brasileira na
Sobornne; finalmente, em 1957, transfere-se para a Itália, onde ocupa, na Universidade de
Roma, a cátedra de Literatura Brasileira.2 Na relação da obra memorialística, em Idade do
Serrote e Retratos-relâmpago, livros escritos na Europa, culmina o projeto de associar as
memórias de Minas com as memórias da Europa, em um exercício de crítica e autocrítica, de
saberes “poliédricos” sobre objetos, sobre a arte, a literatura e a filosofia, que já não se
distinguem dos sujeitos contemplados com “retratos” que demonstram o lampejo da utilização
de uma linguagem concisa, formada por fragmentos de citações que deslocam sujeito e objeto.
Na perspectiva da consolidação do Estado, a partir da arquitetura histórica, Ouro Preto
apresenta-se a partir de um “olhar domado” (MENDES,1994, p. 489). No entanto, a polifonia
dos poemas de Contemplação e a série de crônicas autônomas, de Idade do Serrote, abrem
dobras para uma leitura da multiplicidade em Ouro Preto e Juiz de Fora. Essa multiplicidade é
percebida na representação das imagens que mesclam o real com o imaginário, o passado, o
presente e o porvir. Em trecho de Idade do Serrote, o choque entre ilusão e realidade faz-se
necessário:
Somente muito mais tarde pude compreender que Alfanor estava certo: mesmo sem
o querer, levantara a meus olhos o véu de Maya, mostrando-me a grande ilusão, isto
é, o artifício, sem o qual não existe conhecimento da realidade. Desde então passei a
perceber a realidade sempre acompanhada de sua irmã gêmea, a ilusão, igualmente
geradora de múltiplas formas e situações (MENDES, 1994, p. 144).
2
Dados biografados por Fábio Lucas
20
Rapaz moderno
Se tens idílio
De amor eterno
Vai ao Vírgilio
Fazer um terno.
Um terno chique
Da cor da uva
E que te fique
Como uma luva.
Hoje o rapaz
No amor tem ágio
Se as roupas faz
Lá no Bisaggio (MENDES, 2003, p. 148).
Além da balada burguesa ou jingle local, com esquema abab, atribuída a Belmiro
Braga, Murilo transcreve bilhetes de amor e transfere ao leitor-crítico a dúvida e a ilusão do
arquivo: afinal, o trecho transcrito era uma anedota tão conhecida na cidade, que Murilo já a
tinha incorporado? Murilo teve acesso à carta, anotou o trecho e a guardou entre suas
recordações? Ou o trecho nunca existiu? E assim um trecho de uma carta de amor passa de
ouvido em ouvido na rua, com um final que, mesmo sendo uma citação de memória, pelo
menos é de co-autoria de Murilo Mendes:
Fábio R..., que divide seu tempo entre a bebida, o jogo e a redação de cartas que
envia com um pseudônimo aos destinatários; umas delas ficou célebre, dirigida a
Dona Josefina B..., seu texto era assim: “ Senhora, amo loucamente as pernas de sua
grande amiga Hermengarda O ... Quanto às suas próprias pernas merecem o
respeito e menor atenção de quem se subscreve com sóbrias homenagens, Dionísio
P.” (MENDES, 2003, p. 152).
As hipóteses sobre a autoria de certos trechos só poderiam ter sido respondidas pelo
poeta, parentes e amigos que já se foram, e assim ilustram como “o arquivamento tanto
produz quanto registra o evento. É também nossa experiência política dos meios chamados de
informação” (DERRIDA, 2001, p. 29). O mal está no desvio, destruição e na impaciência
constante do desejo de memória. Entre memória e desejo, o texto literário torna-se um arquivo
através da representação de arquivos outros, ligados à história, à arquitetura, à fotografia, aos
livros, cartas e crônicas.
21
Nesse sentido, podemos ler as obras das cidades em questão por um viés literário
crítico e também historiográfico. Um viés histórico que se dilui na alegoria da cidade como a
forma dentro do espaço de aprendizagem da arte, em uma história pré-fabricada pela poética
auto e alterbiografica. O poeta precisa destruir as cidades mineiras na concepção formal de
forma e espaço para transformá-las em poesia, reconstruindo-as.
Na narrativa histórica do início do século XX, Juiz de Fora é considerada a cidade das
fábricas, da arquitetura de estilo neoclássico e eclético e da racionalidade industrial. Murilo
Mendes confirma esse caráter moderno da cidade mineira em Idade do Serrote:
22
(...) ouço as sirenes das fábricas apitando para o almoço: Juiz de Fora, dizem,
antecipou-se a São Paulo em certos pontos da industrialização, conta com uma usina
hidroelétrica além de muitas fábricas de tecidos, de cerveja, de móveis, etc. Fábricas
de pesadelo segundo o poeta Arnaldo B..., inimigo da máquina; não ando lá por
dentro, pouquíssimas vezes entrei numa fábrica, todos os dias entro numa casa
comercial, entretanto acho a indústria mais simpática, Baudeleire diz que o comércio
é de fundo satânico, às vezes vou assistir à saída dos operários quando a chaminé
apita, na realidade para assistir as operárias, há mesmo certas feias que me agradam.
(MENDES, 2003, p. 146).
<<No footing>>... – Vimos ontem na rua Halfeld, das 6 às 8 horas: melle. Maria
Vida Barbosa Lage, no fulgor da sua beleza maravilhosa, num elegantíssimo vestido
de <<taffetas>> escuro.
(...)
Que as nossas graciosas conterrâneas acorram todas em bando, a nossa melhor rua, e
que não se exilem como freiras, em suas casas. Pois se elas são nossa maior alegria,
e o motivo supremo do nosso deslumbramento... (MENDES, 1920, p. 2)
3
Estas crônicas foram organizadas pela professora Terezinha Vânia Zimbrão da Silva, da Universidade Federal
de Juiz de Fora.
23
(...) por enquanto, é claro, ignoro Marx e Engels, mesmo a insuficiente encíclica
Rerum Novarum, pensar que Rui Barbosa só na última hora incluiu na sua
plataforma de candidato algumas linhas sobre a questão social, em todo caso já sei e
não é pouco, que os homens foram criados à imagem e semelhança de Deus, que
todos foram remidos pelo sangue de Jesus Cristo, portanto irmãos , afirmando-se
assim a unidade do gênero humano, só mais tarde irei saber que Lamennais catorze
anos antes de 1848 escrevera na Paroles d’um croyant: proletários de todos os
países, uni-vos; padre Dillinger outro dia lembrou num sermão que segundo Nosso
Senhor é mais fácil um camelo passar pela fundo de uma agulha que um rico entrar
no reino do céu; na verdade começo a sentir um grande desprezo pelo rico
materialão, ávido, o milhão feito homem, diz José de Alencar; o rico, o chato pra
burro (fórmula infeliz, muito em moda na época, empregada a torto e a direito)
(MENDES, 2003, p. 147).
24
Murilo vai trazendo à tona figuras da realidade nacional, como Rui Barbosa e José de
Alencar, ao lado de nomes internacionais, como Marx, Engels, Lamennais e o padre Dillinger.
Lado a lado com a religião, pelo seu apelo ao povo, a referência ao comunismo aponta para
um cristianismo rebelde.
A memória do arquivo no texto sobre a rua Halfeld corresponde a índices (listas de
afetos intelectuais), provas (como a constatação de que, catorze anos antes, padre Lamennais
dissera a mais famosa sentença proferida por Marx – basta consultar a obra de Lamennais
para se comprovar isso), testemunho (o cotidiano do footing por Juiz de Fora no início do
século XX) e memento (observações que parecem lembranças anotadas no relicário da
cidade).
O footing de Murilo responde, de certa forma, ao seguinte questionamento de Derrida
em Mal de Arquivo: “Como fazer as correspondências entre o memento, o índice, a prova e o
testemunho?” (DERRIDA, 2001, p. 7). Mais do que a memória tradicional como conservação,
as correspondências buscam os espectros daqueles que, com suas ações e palavras, marcaram
muito mais a memória do poeta do que a paisagem. Enquanto o espaço pode ser preservado,
as pessoas e ações que movimentam a cidade acionam as lembranças desta como arquivo que
“tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória” (DERRIDA, 2001,
p.22).
Nesse sentido, o texto da memória como arquivo nunca será original, será antes uma
vertigem, um não-saber ou uma invenção. Segundo Wander de Melo Miranda, há nesta
questão uma negatividade produtiva , já que um arquivo absoluto esvaziaria a imaginação
(Informação verbal)4. O footing refeito em Idade do Serrote contém ideias mais profundas do
que os das Chronicas Mundanas, não por um texto ter sido escrito pelo poeta consagrado e o
outro pelo jovem da província, mas, principalmente, por se tratar de um arquivo
ressignificado a partir de uma complexa herança. Esse acervo cultural engloba críticas, como
as feitas à plataforma política de Rui Barbosa e à moda do Romantismo brasileiro de criar
personagens caricatos como o tipo do rico “chato pra burro” (MENDES, 2003, p. 147),
relacionando política e literatura.
A rede de arquivos murilianos permite-nos encontrar leituras significativas
relacionadas ao contexto da escrita. A referência às vitrines da rua Halfeld, a Baudeleire, às
fábricas de Juiz de Fora e ao do Manifesto de Marx, não são mero acaso entre uma e outra
4
Aula do curso “Pesquisa em Acervos Literários e Culturais”, do Programa de Pós-Graduação em Letras-
Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em 23 de março de 2011.
25
5
Catálogo Murilo Mendes 1901-2001.
6
Termo sugerido pela Profª. Drª. Marília Rothier Cardoso da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-RJ), em minha banca de qualificação, em 14 de junho de 2010.
26
(...) Vitorino que pretende falar quatro línguas e não fala nenhuma (...); o prefeito O.
A..., untuoso, com gestos de lado e de prelado, tão enjoativo que parece autoenjoar-
se (...); Virgilio Bissagio parece que não varia os gestos (...); o ‘major’ Zénobio,
lesma de boné (...); o jornalista Alexandre G..., habitante segundo Quevedo da
‘bobeira bestial’ , rico em perdigotos (...) ; o industrial Veloso, pão duro, triste
porque enquanto anda na rua gasta os sapatos (...); Aristeu V..., funcionário público,
merdoso, ex-homem (...); Ernesto C..., pavão encardido, crítico literário de um jornal
da terra (...); o advogado Jarbas P..., olho postiço, voz esgarniçada, porque-me-
ufanista número 1 da cidade (...); o amanuense Tibúrcio, sempre à procura de
alguém pra bajular (...); o delegado Viegas, auto-cartaz da autoridade, evito-o, dobro
esquinas (...); o coletor Aristarco, pródigo em nomes feios, apelidaram-no Aristerco;
o bacharel Belisário..., bexiguento, sempre resmungão, gasta as noites visporando
(...) (MENDES, 2003, p. 145).
A maioria dos cidadãos-personagem, alvos das farpas murilianas, são aqueles que,
pela distinção e títulos na pequena cidade de Minas, figurariam em notas nas Chronicas
Mundanas, nome que se apresenta em vários sentidos: registro do cotidiano intrinsecamente
mundano que não implicaria uma negatividade ao se considerar o movimento pela cidade e os
importantes eventos culturais; ao mesmo tempo, a banalização da vida sem graça de uma
pequena cidade mineira, cujo progresso era notável, mas ainda não legitimado. Esses
personagens são como a cidade: seu verniz de modernidade e sofisticação esvair-se-á nas
décadas seguintes. Como o personagem de Ernesto C... , que “promete desde o ventre materno
uma monumental história da literatura que só resulta o anúncio; é, segundo Lichtenberg 7, uma
faca sem lâmina a que falta cabo” (MENDES, 2003, p. 145).
Por outro lado, Murilo é mais simpático na descrição dos habitantes mais sinceros,
assumidamente interioranos, seja na simplicidade dos trabalhos manuais, no ócio da boêmia,
no apelo popular ou intelectualidade “menor” que a maioria apresentava:
7
Lichtenberg é um entre os vários intelectuais citados em Idade do Serrote, que serão contemplados
posteriormente com um “retrato-relâmpago”.
27
Gerando um embate de forças nas entrelinhas da rua Halfeld, esses personagens são o
oposto dos tipos aristocratas burgueses, são figuras que se ligam ao poeta pelo afeto e pela
arte, chamados em cena a contrapelo do cenário histórico elitizado que compõe o imaginário
juizforano da Belle Époque8, no início do século XX.
Vale observar que 1968, ano de publicação de Idade do Serrote, coincide com o ano
mais truculento da ditadura militar brasileira, de maneira que, mesmo não sendo um livro com
questões assumidamente políticas, o trauma brasileiro não passa despercebido na figura do
delegado Viegas: “evito-o, dobro esquinas, tenho um medo danado da polícia, do exército, de
todos os fantasmas da ordem, fantasmas ativíssimos, sempre dispostos a errar, injustiçar e
crueldizar” (MENDES, 2003, p. 150). O momento histórico insurge nas esquinas do texto.
Em palestra feita no antigo Centro de Estudos Murilo Mendes, em 1994, Lucciana Stegagno
Picchio toca na ferida política de um Murilo deslocado, lembrando que, se “Vivendo de
sugestões do ambiente, habitava-lhe uma angústia de se estrangeiro em toda parte”
(PICCHIO, 1994, p. 1):
Poeta católico, Murilo Mendes, mesmo em Roma, não perdeu a fé. Contra qualquer
regime ditatorial, de esquerda ou de direita, durante os anos de ditadura no Brasil,
sofreu sob o ponto de vista ideológico. Ao mesmo tempo que sentia-se culpado por
ficar fora, também sentia-se culpado por ser brasileiro; queria voltar, mas uma força
impulsionava-o a ficar. (PICCHIO, 1994, p. 1)
A culpa a que Luciana Stegnano Picchio refere-se diz respeito ao fato de o poeta estar
longe do país em um momento político tão grave quanto o da ditadura militar. Eis a impressão
de Murilo sobre o autoritarismo pensando em Roma:
Este é o nosso mundo lacerado, filho do tampão com a ditadura. Da ditadura que de
vez em quando toma férias, engordando para voltar à carga. Da predominância do
efêmero. Das teorias rapidamente esgotadas. Dos objetos rapidamente consumidos
e consumados. Que, desejando recuperá-los, nós colamos e fotomontamos. O
mundo onde as coisas, laceradas pela espada do tempo ou do ditador, talvez
finalmente COLEM (MENDES, 1994, p. 1020).
8
Termo usado pela Prof. Dra. Teresinha Vânia Zimbrão no artigo Crônicas da Província.
28
Negado pelos modernistas, o passado não se desliga do saudosismo, antes quer negar
os antecessores mais próximos e contemporâneos, até mesmo os seus mestres, de forma que a
irônica e pejorativa eleição de um príncipe dos poetas representa essa ruptura. O príncipe dos
poetas seria aquele herdeiro das correntes românticas e simbolistas do início do século, no
Brasil, como se percebe no poema “O Príncipe dos Poetas”, de Drummond:
FAZER
É preciso fazer alguma coisa
Que pelo menos risque um círculo
Efêmero na água morta da cidade.
Vamos eleger o Príncipe dos Poetas Mineiros?
(...)
É sério, gente. Votos
para Belmiro Braga, o velho Augusto
de Lima e Noraldino e Mário Matos.
Poeta nenhum deixa de ter o seu votinho,
9
Menos nós, questão de ética ou de tática? (DRUMMOND, 1988, p. 736)
9
Em 1954 Drummond concede uma série de entrevistas à rádio do Ministério da Educação e Cultura, e, em um
desses programas de rádio, narra a eleição do príncipe do poetas, feita na redação do Diário de Minas, em 1926.
29
Desse modo, poder-se-ia dizer que Juiz de Fora e Ouro Preto giram pelo universo das
referências europeias afetuosas de Murilo, encobrindo os rastros do provincianismo em nome
de uma poética “maior”, do culto homem mineiro. No entanto, o que se entrevém é uma
atmosfera vaporosa em que giram Europa e Minas, num denominador comum, mundominas
30
Leitor ilustre... Estás de parabéns vou te deixar. Vou ver outras paisagens; a minha
alma, tão nova – e já tão velha – vai viver numa cidade maior, cidade onde os
cenários são de legenda e sonho. Talvez que eu volte breve: talvez que eu nunca
volte, embalado pela nostalgia infinita de outras terras, onde mais intensamente se
vive, e se sofre e se ama... (MENDES, 2004, p. 179).
Murilo vai ao Rio com impulso de extensão das fronteiras da existência. A linguagem
da crônica lembra o poema “Menino sem Passado”:
“Embalado pela nostalgia infinita de outras terras” (MENDES, 2004, p. 179), o Murilo
cronista começa a criar a persona do menino sem tradição, talvez com a intenção de viver,
sofrer e amar mais intensa e ironicamente, já que a negação é uma tática. Afinal, a poesia de
Murilo sempre será íntima e contaminada pelas tradições da infância.
Como registro das vivências no Rio, a poética muriliana potencializa-se em uma
teatralidade, marcada pelas distorções do “eu” fixado no espaço carioca, entre os irreverentes
valores nacionais modernistas e o desejo de mundivivência. Em diversos livros, há versos que
exemplificam essa não fixidez e as metáforas que a representam: “É necessário caminhar
sobre as ondas” (MENDES, 1994, p. 253), de “Angústia e Reação”, em Tempo e Eternidade;
“Procurei meu rosto, não o achei” (MENDES, 1994, p. 334), de “Estudo para um caos”, em
Metamorfoses; “Nada me fixa nos caminhos do mundo” (MENDES, 1994, p. 97), de Cantiga
de Malazarte, em Poemas.
Embora, no Rio, Murilo absorva uma nova atmosfera cultural, sua poética apresenta
uma utopia blochiana, do marxismo heretodoxo observado em “Rua Halfeld”. Para Ernerst
Bloch, a utopia transpõe a questão econômica e pauta-se em valores humanistas. Dessa forma,
transpondo os limites de Juiz de Fora, Murilo sente que, no Rio, “a vida se chama amanhã; o
mundo lugar para nós” (BLOCH, 2005, p. 118); nos limites de seu quarto, em Botafogo: “a
esperança está fundada no impulso humano para a felicidade e dificilmente poderá ser
destruída, e com suficiente clareza ela sempre foi um motor da história” (BLOCH, 2005, p.
430).
31
Na mesma analogia entre vida e arte, a leitura do retrato de Murilo Mendes no Rio,
pintado por Guignard, passa pela perspectiva da philia10, nesse caso, amizade construída pela
intelectualidade, sem desconsiderar a complexidade ideológica do movimento modernista em
suas diferenças e desavenças. Nesse aspecto, a valorização da amizade se daria tanto no nível
estético, na medida em que funcionária como motivo de organização da poética, quanto no
nível pessoal . Frederico Morais confirma o dado da philia nos retratos feitos por Guignard,
quando este viveu no Rio: “O retrato era precedido por uma convivência ou era fruto de uma
longa amizade” (MORAIS, 1979, p. 23).
Os retratos do Rio foram expostos pela Pró-Arte, Escola Nacional de Belas Artes, em
maio de 1931. Entre eles está o de Murilo Mendes. A maioria dos quadros que estão visíveis
na foto apresenta uma estabilidade na figura do retratado, com exceção do de Guignard,
destaca-se o de Murilo.
10
O conceito de philia, em Murilo Mendes, foi parte da minha pesquisa no projeto “Prática Política e Poética –
Um Estudo da Amizade em Murilo Mendes como Estratégia de Sobrevivência entre Mundos Diversos”,
orientado pela Prof. Dra. Terezinha Maria Scher Pereira.
32
A pintura busca sempre elementos de eternidade, e por isso ela tende ao divino. O
desenho, muito mais agnóstico, é um jeito de definir transitoriamente, se posso me
exprimir assim. Ele cria por meio de traços convencionais, os finitos de uma visão,
de um momento, de um gesto. Em vez de buscar as essências misteriosas e eternas, o
desenho é uma espécie de definição, da mesma forma que a palavra monte substitui
a coisa monte para a nossa compreensão intelectual (ANDRADE, 1975, p. 75).
Essa citação abre o artigo “Pedro Nava se desenha”, de Eneida Maria de Souza, para
quem Mário elege o desenho e sua característica de esboço para romper com os limites da
moldura e, ao mesmo tempo, com a ideia de totalização.
A linha do desenho é traço, ou seja, rastro. Representa o “agora” (AGAMBEN, 2009,
p. 66) de Agamben, contendo “sempre a forma de um limiar inapreensível entre um ‘ainda
não’ e um ‘não mais’” (AGAMBEN, 2009, p. 67). O desenho revela esse Murilo em trânsito,
34
Uma ocasião, Murilo Mendes pôs em dúvida que poetas incrédulos ou pouco fiéis ao
cristianismo pudessem escrever poemas sobre a vida de Cristo. Alegava que ele
próprio, leitor assíduo da Escritura não se atrevia a tanto. Manuel Bandeira,
ouvindo-o, sorriu. Eu confesso que não gostei dessa limitação dos direitos poéticos.
Murilo era intransigente nessas coisas (DRUMMOND, 2006, p. 325).
Drummond não acredita na limitação dos direitos poéticos, em poemas como “São
Francisco de Assis”, o poeta joga com a questão da crença religiosa e da representação:
35
Deslizam os bem-aventurados
Depois de soprarem na luz,
Indicando o Ar essencial,
A dupla respiração da alma
Alimentada por êxtases infinitamente pequenos:
Mas quem lhes recolhera a plenitude,
Quem lhes transcreveria o árduo silêncio
Enquanto dominavam a ordem tríplice
Do mundo, demônio e carne?
perceber esse escuro não é uma forma de inércia ou de passividade, mas implica
uma atividade e uma habilidade particular que , no nosso caso, equivalem a
neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro
especial, que não é, no entanto separável daquelas luzes (AGAMBEN, 2009, p. 63).
No site oficial de Ouro Preto (2011), a história da capela faz perceber como sua
construção é fruto de um trauma, de uma inversão histórica em que o jogo de poder inverte-
se, e o escravo domina o branco. Em 1740, reedificada e enriquecida, a capela abrigou a
confraria dos brancos do Rosário expulsa pela maioria dos negros. Na leitura do poema, essa
inversão de poder dos negros vencidos não permite realizar o desejo de paz na cidade marcada
pela barbárie, pois ela se repete pelos vencidos. Ou seja, na interpretação histórico-literária, a
potência do lugar de enunciação do subalterno não se realizou, já que a inversão da barbárie
mantém a história da violência colonial preservada na pequena capela.
Dessa forma, o poema de Contemplação que parece mais próximo do êxtase religioso,
não conclui esta manifestação. Mesmo no caso do poeta performático, o fato histórico cria
uma interdição, segundo Wander de Melo Miranda: “não pode um corpo ressentido realizar
um corpo recalcado”.11 (Informação verbal). “Quedemo-nos sem gesto, sem palavra”
(MENDES, 1994, p. 488) e “Quedemos-nos olvidados” (MENDES, 1994, p. 488). A história
é esquecimento, o leitor que lê o poema da capela, mesmo sem conhecer seu trauma, poderá
reconhecer que Murilo subverte a ordem do êxtase religioso.
A Minas barroca lança-se ao pensamento oriental da meditação diante da lógica
interna das rimas do “r” do “minúsculo rosário”, que faz um mínimo “ruído” “no espírito
rodando”, em um “recinto” em que a “riqueza” é “renúncia”, em que o ouro “recolhido” é
inerte, em um estado de “Espírito que natureza e ar não subjugam” (MENDES, 1994, p. 488).
Toda a liturgia barroca é desmontada, “a sonoridade dos antigos cânticos” e “os panejamentos
do incenso” somente “turbariam o apetite de levitação”, na perspectiva orientalista que gera
uma nova luz sobre a sombra da igreja, sobre o fracasso do catolicismo colonial e sobre o
presente. Essa nova perspectiva vai contra a arte domada, de forma que Murilo utiliza a
expressão “riqueza domada” no poema (MENDES, 1994, p. 488). Essa pequena capela revela
o catolicismo de igrejas humildes, do qual nos fala Picchio:
Costumo dizer que há duas histórias:a história construída com altos personagens,
guerreiros, príncipes, papas, inventores, industriais, escritores, cientistas, artistas,
etc, e a história menor; a da gente humilde, anônima, do povo fértil em variados
aspectos humanos, comparsas participantes de uma realidade que escapa muitas
vezes aos protagonistas de “El grand teatro del mundo”, como dizia Calderon
(MENDES, 1994, p. 1360).
descrevem cenários e nomes de Ouro Preto e da bíblia, à maneira popular. Sobre o caráter do
Romanceiro, Cecília Meireles afirma:
Do poema “Cenário”, esses versos compõem com “Fala Inicial” os dois únicos de
cunho pessoal. Diferente de Cecília, Murilo atravessa Minas pelo viés do irrealizado, da
materialidade que levita, da decadência da matéria domada, em uma perspectiva que se
aproxima muito mais do imaterial. Rompendo com a tradição do patrimônio histórico
nacional, essa imaterialidade incorpora o tom e o tema popular de muitos versos de Ouro
Preto, a cidade que tradicionalmente privilegia os grandes monumentos católicos. No poema
“Flores de Ouro Preto”, dedicado a Cecília Meireles, a oposição da relação entre Murilo e
autora é nítida na visão de assombro do presente:
esse Barroco na Ouro Preto dos anos 1940 não é mais possível: a arquitetura barroca
preservada é como “buquê de flores extintas” (MENDES, 1994, p. 471). No entanto, a cidade
sóbria, confrontada em dois tempos na “medida da eternidade” e “vivendo a luz do céu”
(MENDES, 1994, p. 471) revela a questão muriliana na descrição da cidade entre seu passado
e presente: é uma questão de conjurar espírito e forma.
Usadas à exaustão no livro, as palavras assombração, espectro e morte criam um
psiquismo caótico e assombrado em Murilo, por sempre querer perceber o mundo. Nesse
caso, precisa aceitar o espectro, como propõe Derrida: “aprender a viver com os fantasmas, no
encontro, na companhia ou no corporativismo, no comércio sem comércio dos fantasmas”
(DERRIDA, 1994, p. 11). Ver a “cidade sóbria” e “medida na eternidade” (MENDES, 1994,
p. 741) traz em si “a experiência do passado como porvir” (DERRIDA, 1994, p. 12). No
projeto de uma poética da eternidade, de abstração do espaço e do tempo, isso significa buscar
justiça em nome dos que não estão mais entre nós, mas que ressurgem na espectralidade, pois
Por isso as flores de Ouro Preto são mortas, pois, para perceber o mundo como
pretende, nos outros textos “geográficos” das cidades, propõe-se a tarefa poética de
contemplar a fantasmagoria, de lidar com as formas de assombração que rondam o Brasil e a
própria infância do autor. A partir de Contemplação, Murilo dará início aos seus diários de
viagem, um movimento de percepção do mundo. O itinerário poético na contemplação de
Ouro Preto está gravado no final do livro, na primeira edição de 1954: “Ouro Preto-Mariana-
Rio 1949-1950” (MENDES, 1954, p. 171): a libertação acontece no Rio, como ele sugere no
“Grafito no Pão de Açúcar”.
Ao pensar-se no trauma do itinerário Barroco, na rememoração do passado tão
presente que é associado à infância, podemos nos perguntar “para onde vai o Barroco na
poética de Murilo?”, como pergunta Derrida “Whiter marxism?”, “Para onde vai o marximo?”
(DERRIDA, 1994, p. 25). Baseando-se no primeiro capítulo sobre o eixo inesperado Ouro
Preto-Juiz de Fora, pode-se dizer que a noção de Barroco mineiro como história e memória,
após a decadência, vai para a formação das Gerais através das Minas, em que se configuram
dois tipos diferentes de cidades: uma cujo urbanismo Barroco é preservado; e outra que
desponta para o progresso e o refinamento efêmeros. Assim, embora as duas Minas sejam
espectros de uma potencialidade de mundo, jamais superam a marca da província. Ao mesmo
43
Como propõe Brandão (2010), o cruzar de olhares dos intelectuais modernistas gera
arquivos-espectro cuja característica muitas vezes é de encobrimento do factum,
possibilitando leituras não oficiais da memória mineira. O valor da arte surgida no Brasil do
século XVIII, como tema ou escola, é moldado à maneira vanguardista, tanto que os poemas
de Murilo sobre Ouro Preto revelam mais sobre o Modernismo do que sobre o próprio
Barroco mineiro ou o estilo Barroco em sua especificidade.
Associada a essa leitura de Derrida e dos arquivos, a leitura de Walter Benjamin
corrobora a espectralidade barroca como valor da humanidade. Em “Origem do Drama
Barroco Alemão”, Benjamin afirma não só o conceito de Barroco como recorrente na história
do homem, mas também o tom fragmentário da vida, a partir da ideia de símbolo e alegoria.
As flores de Cecília Meireles em Ouro Preto representariam uma totalidade da história
poetizada: no Romanceiro da Inconfidência, o poema oferece uma coroa de flores aos
personagens históricos. No entanto, Murilo, em “Flores de Ouro” encobre esse sentido
histórico com prematuras flores murchas e mortas. Assim a alegoria muriliana distingue-se
do símbolo da cidade barroca como cidade das flores, reconhecendo o Barroco como espectro
na
44
No movimento de subida e descida da alma teatral, que anda com uma candeia na mão
em busca do gênio das Minas, os ares são salutares, de forma que a figura do gênio vai
perdendo-se na descrição das igrejas de pedra-sabão e das figuras populares e sacras
chamadas à cena do poema, reafirmando o catolicismo popular do poeta:
Na busca pelo gênio, chega-se a “uma só fé, um só pão” “do povo rústico e chão”
(MENDES, 1994, p. 466). As flores e o gênio estão mortos, a verdade da liturgia, alegoria da
45
Nesse sentido, se, por um lado, podemos perceber o espírito Barroco na escrita de Murilo, não uma
forma barroca, por outro lado também é difícil perceber a estética surrealista em uma forma concreta: seus
pressupostos são como uma pulsão fragmentada da alma. Assim, entre a redondilha maior, a redondilha menor,
os endecassílabos, os ditirâmbicos vagando entre versos livres e sonetos brancos, a forma dos poemas de Ouro
Preto é uma expressão da ruína da forma numa espécie de espírito libertador da paisagem convencional barroca.
Em uma “avacalhação” da forma, que transita entre estilos eruditos e populares, a hibridez formal dos poemas
relaciona a poética muriliana com heranças diversas, talvez em uma tentativa de desinstitucionalização do
patrimônio e da verdade histórica, como temos visto até aqui, para uma nova aprendizagem através da poética.
Nas memórias das cidades, a atividade de colecionador não estaria somente na reunião
de livros, quadros, gravuras, depoimentos e correspondências de artistas, mas também na
própria obra muriliana, uma obra de rememoração através de recortes da cultura ocidental e
de outras culturas.
Para Deleuze (1987), na releitura em Proust e os signos, a escrita das memórias
recupera o passado, mas rejeita uma escrita tradicional, alçando-a para o futuro. O conceito
da Recherche – a busca – amplia um conjunto de signos e imagens relacionadas à arte, à
amizade, à filosofia e à corporeidade. A leitura de Deleuze tende ao constante e dissonante
movimento dos seres e das coisas no fluxo temporal, nas incorporações da tradição e do novo.
Embora experiência seja aprendizagem e revelação, apresentando imagens diversas
associadas às cidades, aos intelectuais, às situações e emoções, “a Recherche é ritmada não
apenas pelos depósitos ou sedimentos de memória, mas pelas séries de decepções contínuas e
pelos meios postos em prática para superá-las em cada série” (DELEUZE, 1987, p. 26).
Na busca de uma aprendizagem da escrita e da arte, Murilo forma arquivos do
passado projetando para o futuro, construindo uma obra viva. É uma busca positiva e, ao
mesmo tempo, agônica, como apontam diversos críticos do poeta. Agônica pelo que
simbolizaria a Recherche que, no corpus proposto, representaria uma superação da falta e da
46
morte nas relações intelectuais e afetivas: “quase já não distinguia amor e morte” (MENDES,
1994, p. 492). O enfrentamento das “séries de decepções” é um estratagema de arte como
resistência: “O FIM só é trágico para quem não o mereceu” (MENDES, 1994, p.55).
A não passividade diante da morte e do inexorável é mola propulsora da busca,
experiência e aprendizagem, como signos da memória e deslocamento, mesmo quando reclusa
e solitária, como o próprio poeta assinala no retrato de seu Tio Lucas, em Idade do Serrote:
Declarava que tudo era ilusão e fantasmagoria; considerava-se um nada. O que mais
me colpiu no relato de seus últimos tempos de vida foi a singular palavra que
distribuía entre seus clientes e conhecidos: “O homem deve ajudar a morte”, ou
segundo outros, “O homem deve influir na morte”. Muitos anos depois liguei
naturalmente essa palavra – em qualquer das duas versões à conhecida frase de Rilke
que desejava morrer de sua própria morte (MENDES, 1994, p. 936).
Cada livro de prosa do poeta Murilo Mendes já tem seu homólogo, seu
correspondente, ao nível do sentido, na obra em verso. De forma que muitas vezes a
prosa pode ser considerada mesmo em função de sua poesia, como sua nota
referencial, explicitação e solução (PICCHIO, 1980, p. 15).
Picchio ainda sugere que o homólogo poético de A Idade do Serrote está propagado
por toda a obra de Murilo. A tarefa de enfrentar a solidão, a morte, a fantasmagoria e o nada,
apreendida pela figura legendária de Tio Lucas, atravessa os versos de Contemplação de Ouro
Preto, que sugerem a libertação e a aprendizagem projetada para o futuro no meio da cidade
assombrada por espectros:
Na análise do conceito de ruína como alegoria, deve-se atentar para o fato de que,
embora a Ouro Preto seja ruína no século XVIII, para Murilo, em outro conceito
benjaminiano, é resíduo. Qual o sentido do monumental em Ouro Preto, já que a cidade fica
preservada? Na medida em que fica cercada e cristalizada em um projeto de apropriação
nacional, a cidade não se fragmenta. Enfim, embora ela seja, sim, uma ruína como cidade
modelo do século XVIII, Minas toda é um resíduo do passado, transposta no Caminho Novo.
Assim, o poeta pode transformar o espaço em fragmento, em ruína criativa, para que
se faça uma reconstrução alegórica dentro da poesia ou pela poesia, que só faz sentido se a
cidade for realmente arruinada na monumentalidade institucional, para poder tornar- se poesia
e ser recriada no sentido alegórico. Da mesma maneira, Tio Lucas que, ao largar a faculdade
de Medicina no Rio e passar a viver entre as margens de um rio mineiro, ganha fama de
curandeiro e desmistifica o caráter cientificista legitimado na medicina, metamorfoseando o
saber prático em oculto:
Durante muito tempo discutia-se na família se Tio Lucas teria ou não aplicado a seus
clientes o curare, nome que me causava certa apreensão. Ninguém ignora que o
curare é um veneno violentíssimo, extraído da casca de um cipó, usado por algumas
tribos indígenas para ervar suas flechas. O curare, além desse grande poder ofensivo,
possui alguns sinônimos igualmente fortes: ticuna, uirari, voorara (MENDES, 1994,
936).
Por outro lado, a morte é desvirtuada do conceito comum da cultura ocidental, em sua
positividade como movimento inerente à vida. A figura de Tio Lucas é alegoria dessa
aceitação que se segue a uma superação da morte e do morrer. Na memória-aprendizagem do
Murilo menino e adolescente, o Tio Lucas representa o “antiacadêmico” e de “alto espírito
livre” (MENDES, 1994, 936), aquele que, através da morte, revela o futuro do menino.
49
Ó Grécia! Ó Grécia!
Em Ouro Preto desvendei teu símbolo:
Prelúdio foste de uma vida eterna... (MENDES, 1994, p. 533)
Como observa Tania Rivera em uma análise freudiana de transtornos de viagem, tal
desvio pode ser lido como um “transtorno de memória” , termo usado por Freud em carta
aberta, entitulada “Um transtorno da memória na Acrópole”, ao escritor francês Romand
Rolland. Nesta carta o psicanalista faz um relato de viagem, com planos de passear alguns
dias com seu irmão na ilha de Corfu, na Grécia. Durante o percurso, eles param em Trieste na
Itália e são convencidos por um amigo a ir para Atenas. Um estranho mau-humor toma conta
dos dois, tornando enigmáticos os motivos que os fizeram mudar o roteiro de viagem. Ao ver
a Acrópole a reação é de total surpresa: “ De modo que tudo isso existe tal como aprendemos
no colégio!” (FREUD, 1974, p. 3329). Há um espanto diante de tal constatação, pelo fato de
representar uma dúvida e incredulidade, resultado de uma deformação que leva a concluir
que a situação atual do monumento grego conteria um elemento de questionamento da
realidade. Murilo faz o mesmo questionamento ao desvendar o símbolo grego na igreja
barroca. Dessa forma, a contemplação representa uma Grécia que surge como símbolo de
resistência à morte, que ronda Ouro Preto, como conclui o poema:
Ó Grécia! Ó Grécia!
Desencadeada e domada.
Cristais do Carmo, espelhos refinados,
Não entrarei vosso oriente lúcido
Obscuro é o nosso oferecido amor
-Nem mesmo o podemos conhecer - ,
Inda obscuro é o céu de nuvens esgarçadas,
Obscuro o que evocamos da infância crisálida.
Uma cruz, esta sim, refletireis,
Dom de beleza e morte – afinal abraçados. (MENDES, 1994, p. 533)
3 MUNDOMINAS
O claroenigmático está na relação vivificada do acordar e no enigma que é o sono (para além
de qualquer interpretação, como é possível com os sonhos):
A eternidade nasceu pois para mim redonda e branca, vinda da forma do queijo de
Minas que despontava na mesa ainda fresco, trazendo uns restos de água alegre – ou
do leite? – do dilúvio. A eternidade me dava de comer nas mãos. Até que um dia
apareceu lá em casa o queijo do tipo flamengo, vermelho; alguns, é verdade,
redondos, mas outros com pretensões a quadrados ou retangulares. Desde então meu
conceito de eternidade perdeu a primitiva pureza ortodoxa. De resto, entre o redondo
e o quadrado, entre o branco e o vermelho meu espírito balança desde o inicio. E não
sei bem se a eternidade é efêmera (MENDES, 1994, p. 1009).
Segundo Arruda (1999), o espectro do exílio está sempre no encalço dos mineiros.
Desde a decadência, a diáspora é um dos símbolos que compõem o mito da mineiridade, e,
nesse sentido, o Estado tem uma influência pontual no caso dos modernistas: “Para os
“letrados”, a ruptura dos laços natais esteve fortemente conectada à imersão no aparelho do
Estado, absorvidos que foram pelo regime, principalmente a partir dos anos 30” (MICELE
apud ARRUDA, 1999, p. 206).
O tratamento dado pelo Estado a Ouro Preto era, por vezes, bastante supérfluo, como
se percebe na leitura dos jornais da época, como na propaganda do Grande Hotel, de Ouro
56
Preto, um texto de exaltação, sugerindo que Ouro Preto era um lugar de paz e aconchego, o
contrário da cidade-fantasma de Murilo. A propaganda circulou em várias edições do Diário
de Notícias nos anos 194012:
Na cidade monumento onde tudo - até as pedras, as árvores e os edifícios - nos fala
do passado grandioso do Brasil; onde tudo nos recorda as figuras de Tiradentes,
Aleijadinho, Tomás Antônio Gonzaga e Marília de Dirceu, compondo-a e
embelezando-a com a própria vida plena de nobreza e heroísmo, o Grande Hotel é o
mirante ideal para um regresso confortável à infância da nacionalidade. Ali, gozando
das comodidades e do requinte a que nos habituaram os grandes centros tumultuosos
e tentaculosos, podemos nos deliciar com as obras primas da arte colonial e que o
gênio imperecível de Antônio Francisco Lisboa emprestou vigor capaz de vencer a
poeira augusta dos séculos (GRANDE HOTEL, 1945, p. 4).
Na cerração,
Vista de frente,
Vista dos fundos
Lá das Cabeças,
Lá do Rosário,
Do Grande Hotel
Do alto da cruz (MENDES, 1994, p. 480).
Faz pouco tempo o Ministério da Educação financiou mais uma excursão das
“formigas”, grupo de senhoritas que de quando em quando visitam regiões dos
estados vizinhos à Capital Federal. Desta vez o motivo da viagem foi Ouro Preto,
relicário do Brasil e sede de nossos mais velhos sonhos de liberdade. (...) Ouro Preto
devia receber mais atenção do ministro Capanema. (...) Mas tudo isso só seria
possível se houvesse competência e direção em nossos homens de governo no
sentido de cultura do povo, e não essa deplorável herança de senhoras feudais.
(ALENCAR, 1945, p. 6)
12
Consulta feita na Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
57
O artigo de Renato Alencar chama a atenção para uma visão mais séria da “cidade-
museu” (AMARAL, 1938, p. 6). Nesse sentido, podemos perceber a aproximação dos
intelectuais com o Estado como uma iniciativa do governo de solidificar Ouro Preto, no
imaginário nacional, como o símbolo tanto da história de luta pela independência quanto da
originalidade da arte nacional preservada na arquitetura.
Certamente, a recepção da viagem 1924 marca o Modernismo e irradia o ideal de se
escrever sobre Ouro Preto e sobre o gênio Aleijadinho. Entretanto, como já se observou, a
recepção representa a cidade barroca por outra perspectiva, uma vez que, no jogo político,
ela já havia sido monumentalizada pelo Estado. Murilo colabora com o governo democrático
de Vargas, publicando Contemplação, pelo Ministério da Educação e Cultura. A partir daí,
passa a fazer palestras na Europa, até firmar residência definitiva em Roma. A arte engajada
na rebeldia de uma certa destruição do monumento para adentrar nas ruínas da história e do
trauma ouropretano, ao mesmo tempo que revela a cultura do povo – é “moeda de troca” em
uma relação mundominas. É como se Murilo oferecesse poeticamente ao próprio Brasil o
Barroco mineiro à moda modernista em troca do Barroco romano e espanhol, indo lecionar
Literatura Brasileira em Roma, como adido cultural, até o fim da vida.
Na era Vargas, o patrimônio do país será exaltado como símbolo para a construção da
identidade de um Estado sólido. No entanto, a poética modernista irá revelar mais do que
uma cidade que será preservada pelo valor de uma cartilha cívica: o valor do patrimônio real e
dos seus desdobramentos em arquivos de cultura propicia a análise dos cruzamentos de uma
memória institucional, social e pessoal. Há uma subjetivação da história e da própria política
do regime que detém o poder. Murilo, assim como Drummond, servirá ao Estado.13
A rememoração crítica pelo intelectual moderno é crucial: nestas alturas dos anos
1950, o próprio movimento modernista deixa de ser uma novidade, sendo sacralizado como
assunto obrigatório nas escolas do país. Em depoimento à rádio do Ministério da Educação e
Cultura (1954), Drummond afirma o seguinte:
13
Murilo foi inspetor de Educação no Governo Getúlio Vargas, teve diversas publicações financiadas pelos
governos federal e estadual, e, em 1957, foi enviado pelo Itamaraty para a Itália, onde lecionou cultura e
literatura brasileira. Em carta a Alfredo Bosi dirá o seguinte: “Não trabalho na embaixada, nem nunca trabalhei;
sempre na universidade. Há vários anos atrás fui considerado adido cultural, mas só para efeito de elevação de
vencimentos;e durante algum tempo, só no papel”(MENDES, 1971, p.2).
58
glória, você sabe muito bem, cheira a mofo e até defunto. Era tão gostoso brincar de
Modernismo... Nos compêndios, nos tornamos defuntos importantes. O melhor é
não ter importância e estar vivo (DRUMMOND, p. 47-48, 2008).
Em Ouro Preto
-Viva sua luz –
Vi luminárias
Dependuradas,
Vi luminárias
Que a mão conduz,
Vi luminárias
Roxas, azuis.
Mas inda outras
Vi luminárias
Celoviárias
No amor ocultas,
Ó luminárias,
Ó planetárias!
Tu, Pai antigo,
Pastor eterno,
Motor divino,
Geraste a luz (MENDES, 1994, p. 501).
Muito além das luzes de Ouro Preto, as luminárias de Capanema e do povo integram o
poema cósmico que quer alcançar a luz oculta de Deus: “Fazeis ver tudo/ À luz do amor”
(MENDES, 1994, p. 504).
Se, por um lado, na perspectiva institucional, Ouro Preto apresenta-se na esfera do
“olhar domado” (MENDES, 1994, p. 489), por outro lado, a polifonia dos poemas de
Contemplação é a dobra de uma leitura da multiplicidade e imaterialidade. As casas e igrejas
são espectros da barbárie, da violência contra Tiradentes e os escravos. No entanto, pelo
menos no espaço da poética, essa barbárie pode representar uma potencialidade na fundação
de futuras políticas. Se o primeiro poema do livro “Motivos de Ouro Preto” começa com a
palavra assombração, o último poema, “Acalanto”, remete ao sono da preservação do
patrimônio como um “sono da libertação” (MENDES, 1994, p. 540).
A partir de um arquivo institucional, os arquivos-espectro dos vencidos sugerem um
futuro, uma realização daquilo que não se realizou. Ao evocar as figuras do passado mineiro,
59
retomar o projeto de 1924 e se relacionar diretamente com o governo, a partir dos anos 1950,
com a publicação de Contemplação, Murilo encontra-se no duplo lugar dos inconfidentes:
como políticos e como artistas.
Cabe pensar até que ponto a conjuração de espectros de Aleijadinho e Tiradentes
funcionam como uma conspiração de resistência da realização controladora da arte pelo
Estado, ou poderiam ser encarados como aceitação da presente institucionalização. 14 Esses
são os dois sentidos de conjuração, para Derrida, em Espectros de Marx: “lutar contra o poder
superior” (DERRIDA, 1994, p. 61) e “de outra parte a encantação mágica destinada a evocar,
a fazer vir pela voz, a convocar um feitiço ou um espírito” (DERRIDA, 1994, p. 61). Os dois
sentidos de conjuração atravessam as obras de Murilo Mendes, que não faz nenhuma menção
a Tiradentes como herói nacional, apenas como um grande amigo:
Por outro lado, Murilo faz um belo poema ao escultor Aleijadinho, retomando a ideia
de ordem na “matéria já domada” (MENDES, 1994, p. 533) de uma constelação em que
“fatigados caminhos refazemos” (MENDES, 1994, p. 532)
Na homenagem a Aleijadinho, Murilo reconhece que os caminhos são fatigados. A
representação de Ouro Preto seria, então, definitivamente rebelde. O próprio fato de Murilo
fazer um soneto branco a Aleijadinho poderia representar uma reação contra a forma
institucionalizada do soneto, refletindo na temática de um Aleijadinho que serve aos
interesses de manipulação do Estado.
14
Questão proposta pela Profa. Dra Marília Rothier Cardoso, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-RJ), em minha banca de qualificação de mestrado, em 14 de junho de 2010.
60
Seja pela perpetuação de uma existência que se vê finita e ameaçada pela morte, seja
pela ausência que gera o desejo, as memórias em sua estrutura de narração dos fatos datados
da vida, com as suas lembranças mais significativas, tiveram a estrutura tradicional
reinventada por Drummond e Murilo que, junto com Pedro Nava, construíram um grande
acervo cultural e literário da Minas modernista.
A poesia ganha nova dimensão, e essas memórias passam a ser essenciais como
últimos escritos dos poetas, revelando sua maturidade e estabelecendo novas relações com o
sistema poético. Para a literatura, a análise dessas obras não apenas reinventa o “livro de
memórias”, mas amplia o acervo cultural de Minas. A contemplação se configura pelo resgate
da memória da cidade mineira por meio de recordações de viagem dos poetas, em uma
relação positiva entre o público e o privado.
Assim, nas memórias ouropretanas, o título Contemplação de Ouro Preto, de Murilo
Mendes, que contém dezoito poemas sobre a cidade histórica, é uma referência explícita a
uma crônica de mesmo título, publicada no livro Passeios na Ilha, de Drummond, de 1952,
dois anos antes da publicação de Murilo. Os poemas deste seguem a mesmas temáticas da
crônica daquele: o roteiro de viagem, as ruínas, a preservação do patrimônio, a afetividade,
política, a morte, a memória subalterna dos escravos e boêmios, e, por fim, as figuras de
Aleijadinho e Alphonsus Guimaraens. De fato, em sua crônica, Drummond registra que
61
O poeta sentiu claramente a presença dos espíritos. “Pelo menos de um” – dizia ele,
apreensivo - , “que está aqui a meu lado, entre mim e você. Estou sentido o bicho.”
Mais tarde o poeta apurou, contando a sensação que tivera a um conhecido, que, de
fato, um certo Zé Periquito, já defunto, era visto a rondar a Igreja de S. José e os
muros do cemitério, em horas impróprias para pessoas vivas (FRANCO, 1980, p.
42).
O poeta caiu numa profunda depressão. Queria chamar a polícia pelo telefone.
Queria ser preso em Ouro Preto, como os seus colegas da Arcádia. Queria chamar a
polícia, para tocar violão, para dar tiro. Queria se rasgar, se entregar. Queria morrer
(FRANCO, 1980, p. 32).
mas em uma narrativa entrecortada pelas interdições boêmias de Nava, no meio das quais
encontramos também pontos de referências comuns na Contemplação de Murilo. Um deles é
a descrição das crianças da cidade, que Afonso iguala às crianças de Florença:
Em “Romance das Igrejas de Minas”, Murilo diz o seguinte sobre as crianças de Ouro
Preto:
Garotinhos retorcidos
Descendentes dos garotos
Que inspiraram Aleijadinho (MENDES, 1994, p. 465).
perpétua cheirasse’” (DRUMMOND, 1975, p. 36). Drummond vai percorrendo Ouro Preto e
deixando rastros que sugerem um Murilo leitor e companheiro de viagem. Nos poemas de
Contemplação, esses rastros são reconhecidos nos temas de uma história menor compondo
uma maior: múltiplo Barroco, afeição a Alhphonsus de Guimaraens, e até mesmo na menção
à grande figura afetiva e intelectual na vida de Murilo, o sogro Jaime Cortesão.
Iniciada com a viagem a Ouro Preto, a mirada em direção a Minas na obra de Murilo
propõe o seguinte questionamento: qual a perspectiva de Murilo ao passar por essa espécie de
lugar-comum do Modernismo? O poeta juiz-forano, que até a fase madura, nos anos 1950,
não havia estampado em sua obra, de forma contundente, sua mineiridade, parece não ter
resistido a uma espécie de trabalho poético de encomenda, sobre Ouro Preto, cidade ligada ao
projeto nacionalista do modernismo e do Estado.
Em carta a Alceu de Amoroso Lima, o juiz-forano demonstra certa curiosidade e
resistência com relação à atmosfera mineira: “Vim passar algumas semanas aqui, à procura
dessa coisa metafísica que é ‘o clima de Minas’. Ainda não o encontrei, mas acabo
encontrando” (MENDES, 1936, p. 1).
Nesse sentido, carregada do interesse em captar a cor local de Minas Gerais, a viagem
da caravana de São Paulo a esse Estado foi emblemática para o Modernismo. A redescoberta
do legado Barroco em uma vanguarda de cunho nacionalista transforma Ouro Preto em um
lugar de visitação obrigatória, símbolo de um patrimônio apropriado como movimento
artístico. O ponto de vista de Murilo Mendes sobre essa jornada aponta para o valor da
incorporação de ideias advindas de outros lugares culturais, influenciado pela intenção
antropofágica: “Tarsila inaugura um eixo inesperado: Sabará-Paris. Encontram-se num
território ideal Henri Rousseau, Léger, Gleizes, Lhote e nossos ingênuos decoradores de
capelas, arcas e baús, muitos deles anônimos.” (MENDES,1994, p. 1003).
Nesse sentido, a visão de Murilo é a de ampliação do espaço artístico mineiro para o
mundo. Ao afirmar, poeticamente, que Tarsila inaugura um eixo inesperado “Sabará-Paris” e
realiza uma síntese de culturas, desfaz-se o mito de que os antropofágicos buscavam em
Minas apenas uma arte genuinamente brasileira em oposição à cultura europeia. Apesar de
certo ufanismo, Mário de Andrade, em viagem a Ouro Preto, em 1919, ressalta o
cosmopolitismo da arquitetura barroca mineira que “assume a proporção dum verdadeiro
estilo, equiparando-se, sob o ponto de vista histórico, ao egípcio, ao grego, ao gótico. E é para
65
nós um motivo de orgulho bem fundado que isso tenha se dado no Brasil” (ANDRADE,
1993, p. 79).
De fato, redescoberta na produção textual de Oswald, Tarsila e Mario de Andrade, a
importância do Barroco mineiro foi incorporada à agenda governamental. Quando Murilo se
propõe a escrever sobre a cidade, Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral,Oswald de Andrade,
Mário de Andrade, Cecília Meireles e Drummond já o tinham feito. O que tem se delineado
nessas comparações é a dimensão do tratamento dado por Murilo ao tema de Ouro Preto em
função do projeto modernista desenhado a priori pelos autores já citados. Observando a
maneira particular como Murilo insere sua obra ao lado de outras que compõem o alto
modernismo brasileiro, o espaço mineiro traz novas nuances para questões complexas, como a
da Antropofagia e da identidade nacional, num redimensionamento da importância dada pela
crítica a essas problemáticas.
Em artigo intitulado “Ismael Nery”, na revista Festa, Murilo Mendes é assertivo ao se
proclamar “contra todas as concepções de folclore e nacionalismo que constituíram moda
nesses últimos anos” (MENDES, p. 71, 1935). Ao contrário de Mário e Oswald, o poeta
mineiro não se define como voltado à consciência nacional. Enquanto na primeira fase do
Modernismo Mário, ironicamente, proclamava que “(...) livres, pelo exemplo dos europeus,
vamos seguir o nosso caminho que é todo diverso do da Europa desinteressante” (ANDRADE
apud DUARTE, 1971, p. 300), Murilo, em seu primeiro livro, Poemas (1930), assumia uma
postura de não ensejar um choque entre centro e periferia, na legitimação da literatura
nacional:
15
Dado do Livro de Ouro da Mitologia
67
Murilo sugere que tanto ele quanto os modernistas sigam os passos do Aleijadinho, de
forma que o escultor transforma-se nesse heroí intelectual dos modernistas: "É nossa própria
forma o frio molde, / que maduros tentamos atingir / o exemplo que recebemos ofereces"
(MENDES, 1994, p. 533). Talvez possamos observar o Modernismo sob a estética barroca, já
que o Barroco não rompe com o clássico, antes, vai buscar a liberdade das formas, rompendo
com o academicismo clássico. Igualmente, o modernismo não rompe com a base clássica e
com a barroca, já que os artistas são eruditos e valorizam o diálogo com a tradição para que
esta não se perca. Mario de Andrade diz o seguinte sobre o Aleijadinho:
Como tantos outros, vi tantas cidades. Cada uma delas se me afigura uma entidade
de fisionomia própria, rica de personalidade e quase antropomórfica. E todas elas
diante de mim, desfilam, uma a uma, evocadas pela minha saudade. (...) que restará
depois, quando os canhões silenciarem? (AMARAL, p. 6, 1944).
São essas “mulheres sólidas” (MENDES, 1994, p. 101) que a tela “A Negra”
representa:
Fig.4: A Negra.
Fonte: Catálogo Raissoné.
70
Fig. 5 Distância.
Fonte: Catálogo Raissoné.
Sua principal interlocutora em Roma, Picchio faz pensar Murilo, a partir da análise de
sua prosa-poética, como o antropofagista do olho armado que transita do Brasil a Roma.
A mesma entrega do instante de viagem a Ouro Preto pode ser então percebida na
convivência em Roma.
A leitura das memórias de Murilo é enciclopédica e afetiva: o passado pessoal do
escritor é composto por figuras humanas conhecidas, como nome de ruas, referências
culturais e alguns mitos. As memórias do autor resgatam um passado coletivo que é tanto
regional quanto universal. Nesse caso, a linha que separa o que é universal do regional é
tênue, na maneira vanguardista de o autor mesclar tais conceitos, criando uma dicotomia pela
qual atravessa toda a obra literária. Murilo faz uma investigação não cronológica e cultural
como um poeta, narrador, historiador, crítico de arte e amigo, que por ser multifacetado, acaba
criando um novo conceito de memória, como gênero de vanguarda.
Merecidamente reconhecido pelo cânone, A Idade do Serrote figura como um grande
livro da literatura nacional, em que prosa e poesia são mescladas na visão do poeta sobre sua
infância em Juiz de Fora, interior de Minas Gerais. No entanto, A Idade do Serrote não é
apenas o ponto de partida, é a primeira sala da coleção de Murilo, que construiu o seu museu
de papel.
As memórias de Murilo apontam sempre para o futuro: trata-se das memórias de um
homem que é seu próprio contemporâneo, que só pode sê-lo na medida em que as recria a
partir das referências culturais. O diálogo entre tradição e modernidade aponta para o futuro
que é baseado nas referências passadas. Nesse aspecto, a amizade configura-se como dado
“fundamental não apenas pelo lado afetivo – intimista, mas também (ou principalmente) pelo
aspecto de vida para fora de si, para o mundo, para o outro” (PEREIRA, 2004, p. 54).
A leitura de diversas obras murilianas relacionadas à poética memorialística
proporciona uma visão esclarecedora de seu sistema poético; é possível reconhecer os temas
do cosmos da obra do poeta: o nascimento, o surrealismo, as relações afetivas, o futuro, a
eternidade, a reinvenção da tradição, a ironia, o estar no mundo, o caos e a morte.
73
Na tentativa de leitura dos setenta e três imagens pintadas por Murilo, em Retratos-
relâmpago, o leitor penetra em um universo íntimo das interfaces entre o plano literário e o
pessoal, em que a amizade construída na intelectualidade oferece a possibilidade de se
enxergar uma reconstrução íntima do contexto externo. As amizades intelectuais de Murilo
refletem a ação dos outros no em seu espírito. Como nos diz Drummond:
Em entrevista concedida por Silviano Santiago, ainda não publicada e realizada pelo
aluno João Paulo Silvéro dos Reis e pela Prof. Dra. Terezinha Maria Scher Pereira, em 2006,
sugere-se ler Murilo pelo viés da philia platônica. Em seu contexto platônico, philia engloba
amor/amizade entre dois. É interessante pensar o conceito em oposição com as categorias da
retórica clássica endeia (a falta) e aemulatio (igualdade ou superação). Ao analisar as
relações de philia entre escritores contemporâneos, os críticos estebelecem questões como:
“Um autor preenche algo que falta a outro?” ou “Quem forneceu o paradigma a quem?”. Tais
questões propostas por Silviano Santiago se definem a partir da retórica clássica que tinha um
vocábulo para explicar a complexidade dos sentimentos contraditórios(...). Trata-se de um
conceito de emulação (aemulatio). A positividade da philia está na aemulatio (e não na
“cordialidade”): sentimento que leva o indivíduo a tentar igualar-se a ou superar outrem,
como coloca Silviano Santiago.
Não pretende-se, neste trabalho, fazer uma análise dos “retratos-relâmpago”, de forma
que os conceitos explicitados são um mecanismo para elucidar o que Picchio (1980) considera
a Antropofagia em Murilo, podendo também ser lido pelo viés da amizade. A intenção é a de
explicitar como Retratos-relâmpago funciona como um projeto associado ao das poéticas de
Contemplação e Idade do Serrote: enquanto, no primeiro, a amizade transparece nas
dedicatórias aos amigos, no segundo a descrição das figuras afetivas liga-se ao território
mundominas. Em Idade do Serrote já se percebe que há algo além da cidade: a figura humana
é muito mais importante; os intelectuais da vanguarda retroagem no espaço mineiro
reconstruído pelos saberes populares; e esses saberes da convivência de Murilo com a
ambiência cultural do Brasil modernista, assim como as dedicatórias, contém uma potência
relâmpago.
74
Isso já está claro logo no primeiro poema de Contemplação dedicado ao crítico de arte
Ruben Navarra, “Motivos de Ouro Preto”. O ritmo caótico revela a pluralidade de visão,
ressaltando a presença do assombramento, dos espectros, da arte barroca, da imagem da
loucura na viúva de Ouro Preto, e, finalmente, a visão da morte e da piedade divina nas
expressões latinas do ritual da missa católica: “Kyrie eleison. Memento mori. Kyrie eleison”
(MENDES, 1994, p. 461).
Pode-se dizer que o poema é um espelho da própria figura de Navarra e que a
dedicatória contém a potência de um “retrato-relâmpago”. De fato, uma espécie de retrato de
Ruben foi feita em Roma, em dezembro de 1957, compondo o livro Conversa Portátil, que
reúne textos esparsos de 1931 a 1974. Murilo fala de como conhecera Navarra, da primeira
impressão hostil sucedida de grande confiança e admiração intelectual, das impressões em
relação ao seu pensamento e ao seu conhecimento:
Ruben cedo percebeu que a distinção entre arte antiga e moderna era fictícia, boa
para os manuais escolares. Via na arte, não apenas uma das expressões mais altas da
cultura, mas, pela sua própria continuidade, identificava-a com o destino do homem
(...) Tive a sorte de viajar com ele em terras de Minas Gerais. (...) Essa viagem
forneceria muitos elementos ao meu livro Contemplação de Ouro Preto, cujo
primeiro poema é justa e precisamente dedicado a Ruben Navarra. Meu amigo sentia
Ouro Preto como poucos. Além do conteúdo propriamente histórico da cidade, breve
assimilou Ouro Preto transfigurada pelo mito, a cidade magra que ele opunha à
robusta Bahia (MENDES, 1994, p. 1483).
Murilo segue com o retrato do amigo dizendo que faltava a Ruben uma viagem a Europa,
o que acabou acontecendo entre 1949 e 1950. No entanto, o impacto renascentista e as visões
do antigo mundo europeu levaram-no a um desligamento do mundo. Depois de receber uma
carta de Navarra, endereçada de Roma, Murilo passou a se preocupar com o futuro do amigo:
“Sua ruptura com o mundo atual crescia paralelamente à sua integração no mundo clássico ou
barroco” (MENDES, 1994, p. 1484). Tal gesto representa o oposto da poética da
aprendizagem e vocação para as artes e o Outro, que integra Murilo ao cosmo: uma estratégia
de sobrevivência entre mundos diversos.
No final do retrato de Ruben Navarra, Murilo registra que o amigo deixara muitos
escritos importantes sem publicação, e os identifica como três possíveis livros. Parece que o
poeta empenha-se na tarefa de uma edição póstuma, feita por um possível leitor do texto-
epitáfio de Ruben. Com essa intenção, o longo texto, poético e reflexivo, termina por
fornecer informações exatas e objetivas sobre Ruben: nome completo, vida profissional data e
local de nascimento e de morte. Nesse sentido, a amizade configura-se como forma de
resistência contra a morte. O “epitáfio” contém uma pontencialidade de realização futura, a
75
partir do conhecimento gerado nas relações afetivas. É dessa maneira que Murilo inscreve em
Roma, na fase final de sua vida, uma poética da amizade.
Percebemos como a amizade funciona, como na atividade política, como tática de
escape ao controle dos aparelhos de Estado. A sua escrita e viagens de trabalho, apoiadas nos
elos da philia, portanto elos fraternais, permitiram-lhe cumprir missões de tipo paternalista,
subvencionadas e dirigidas pelo governo, – sem se deixar cooptar. Seu apego às relações entre
companheiros, fora das hierarquias, é que lhe teriam permitido participar, a seu modo crítico e
autocrítico, de atividades de construção de um patrimônio nacional, sem nunca ter-se apegado
ao poder da nação, ao contrário, desqualificando sempre esse tipo de centralização de forças.
Foi através de deslocamentos para o local e o internacional, que logrou incentivar, pela
divulgação da arte, filiaçõs fraternas capazes de aumentar e multiplicar o pode e o valor do
patrimônio em resíduos artísticos que se sustentam, através dos tempos, pela potência de sua
própria constituição estética.
PROFESSOR AGUIAR
“(...) lê-me páginas de Spinoza, “meu pai espiritual”, diz, que não entendo mas que
me acendem a cabeça; repete muitas vezes: segundo Spinoza o poder de Deus é sua
própria essência; entrega-me uma folha de papel com um aforismo de Spinoza que
mais tarde meditarei: o desejo é a própria essência do homem, que dizer, o esforço
pelo qual o homem se aplica em perseverar no seu ser. (MENDES,1994,p.938)
SPINOZA
à “raça alegórica”, que seria a ressignificação de raça pela diáspora. Segundo Giovanni Reale
e Dario Antiseri, a família de judeus espanhóis de Spinoza refugiou-se na Holanda para
escapar às perseguições da Inquisição em Portugal. Como teólogo livre, Spinoza rompeu com
o credo da religião judaica e jamais aceitou uma cátedra universitária, por ver um
cerceamento das ideias e pensamentos pela função institucional. No entanto o filósofo
mantinha sua subsistência cortando vidros óticos, o que Murilo habilmente associa ao advento
da técnica especular surgida na pintura holandesa e flamenga no mesmo período.
78
4 O SIGNO PLÁSTICO
“No mundo das coisas e dos bichos tudo está ainda cheio de
acontecimentos de que o senhor pode participar.”
Rainer Maria Rilke
Partindo das memórias de A Idade do Serrote, os pares (Adão e Eva, prosa e poesia,
literatura e crítica, poesia e pintura, passado e presente) fundem-se na descrição do
nascimento do poeta menino, sob uma perspectiva mitológica, cristã e folclórica. A cidade
natal é reconstituída por um Murilo que dá o devido reconhecimento a Juiz de Fora e afirma
que o olho armado – oráculo muriliano – terá sido precoce. No entanto, a cidade é apenas um
ponto de partida que descortinará a eternidade, a abstração do tempo.
Com efeito, como nota em “O Tomate”, acontece outro “nascimento” do poeta pelas
afinidades intelectuais do adulto, como no contato com os movimentos da pintura de
vanguarda: “Li ‘Anicet’ aí pelas alturas de 1926. Eu acabara de nascer, como diria Cecília
Meireles” (MENDES, p. 1003, 1994). Ainda nesse texto de Poliedro, uma referência ao
romance de Aragon remete à crítica de arte na relação entre o crítico e o seu objeto:
“Monsieur est-il critique d’art? Que Monsieur me permette de regarder Monsieur”.16
Em um jogo performático de palavras bem-humoradas em francês, Murilo propõe que
o crítico de arte seja o objeto de contemplação. A relação entre o olho armado e o seu objeto
de escrutínio comporá a poesia. O olhar reforça a liberdade da crítica de arte diante do objeto
prático que, transformado pelo artista, será descartado como objeto legítimo por muitos
críticos. Face ao crítico especializado, muitas vezes, a intencionalidade artística é
desconfigurada na recepção da obra de vanguarda.
Mesmo com o esvaziamento da proposta da crítica vanguardista na
contemporaneidade, ainda é considerável o apelo do processo de fragmentação surrealista,
servindo como “ponto de partida para a reflexão sobre o enlaçamento do passado no presente,
cujas consequências são do interesse dos estudos contemporâneos de crítica, arte e cultura”
(PEREIRA, 1999, p. 90).
16
O Senhor é critico de arte? Permita-me contemplar o Senhor?
79
Carpeaux citado por Fábio Lucas observa o seguinte na leitura da obra de Murilo:
17
Entre elas estão: Analu, Claúdia, Desdêmona, Marguí, Prima Julieta, as gêmeas Florinda e Florentina,
Adelaide, Asta Nielsen, Carmem, Abigail, Hortênsia, Teresa.
80
Na efabulação de uma gênese da linguagem são duas mulheres que darão luz à poesia.
O poema de ritmo tradicionalmente popular é marcado pelas repetições, rimas e musicalidade,
e contrasta com os outros de Ouro Preto, por não tratar da cidade em questão e apresentar um
tom alegre e esperançoso. Nesse mesmo poema, o ato de escrever poesia é comparado ao ato
de pintar uma tela, São Lucas passa a ser o primeiro pintor de Maria e Isabel:
como propõe Fábio Lucas “o ímpeto criador com a inteligência seletiva” (LUCAS, 2001, p.
23).
As confluências e impasses das imagens de Contemplação de Ouro Preto e Idade do
Serrote, diferentes na forma e no estilo, ensejam um confronto de soluções que abarca duas
perspectivas pontuais nos textos de prosa e poesia: visão barroca e surrealista de Murilo: “A
visão de Ouro Preto acentuou sua feição pelo Barroco e a convivência com poetas e pintores
europeus o fez mergulhar no surrealismo” (LUCAS, 2001, p. 118).
Ao lermos Contemplação, percebemos a caracterização de uma dimensão fônica da
linguagem, para inserir na dicção popular as sensações auditivas e visuais da convivência com
o Barroco em Ouro Preto. Os outros textos murilianos, como Idade do Serrote e Retratos-
relâmpago, são predominantemente visuais, trabalhando, o signo plástico. Em Contemplação
de Ouro Preto chama a atenção a musicalidade. Esse movimento de Murilo parece ser uma
tática de ressiginificação do passado.
Nesse sentido, encontram-se apenas momentos esparsos da contaminação barroquista no
surrealismo, sendo difícil encontrá-los em Contemplação, embora haja elementos do Barroco
e do surrealismo, não de forma significativa, mas perdidos como finalidade no texto. Há
alguns momentos como uma imagem surrealista em “Acalanto de Ouro Preto”:
registrada nas lembranças pessoais. Nesse poema, erudito – que estuda um poeta simbolista,
cujo movimento nunca se tornou popular no Brasil – a dicção é trazida para as memórias da
infância, mais um nexo com Idade do Serrote. Murilo reconhece uma dívida do vazio a
Alphonsus:
Essas observações demonstram como o olhar armado de Murilo transita entre o visual
e o verbal quando trata o acúmulo do vazio para compor o signo plástico característico do
poeta-crítico, crítico da poesia, da música e das artes, cuja poesia é caracterizada pela
imagética da plasticidade como junção do táctil, sonoro e visual.18
A essência do Barroco mineiro não serve de índice para uma leitura de Contemplação
como um livro Barroco. O mesmo acontece nas outras produções de escritores modernistas
sobre o Barroco mineiro: o sentido da escola é sempre encoberto pelo signo do novo. Ou seja,
a preservação ocupa lugar ideológico. Em Contemplação associa-se a um contexto religioso
simbólico de vinculação das partes a um todo, como a criação de um lugar estético, povoado
por imagens espectrais da cidade barroca.
Quanto à “dramaticidade barroca” comentada por Araújo (1972), comum em diversas
obras de Murilo e mais esparsa em Contemplação, pode-se encontrar uma resultante barroca
no estado de crise do Simbolismo expresso nas imagens do poema “Contemplação de
Alphonsus”. Para Fábio Lucas (1973), esta resultante barroca é observada pelo próprio
Murilo, quando o poeta mineiro encontra características pouco usuais na obra do poeta
simbolista:
18
Leitura de poemas proposta por pela Profa. Dra. Marília Rothier Cardoso, na banca de qualificação para esta
dissertação de mestrado, em 14 de junho de 2010.
84
4.1.1 Mapas
estou no ar
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo (MENDES, 1983, p. 31).
Fig.8: Mundominas
Fonte: De minha autoria
Dentro da Minas muriliana, cabe uma galeria: a Itália com as figuras de Retratos-
relâmpago; o retrato de Murilo Mendes pintado por Guignard, além das telas ouropretanas do
mesmo pintor; uma tela de Léger, os arquivos de Murilo no MAMM; a escrita de um poema
“Ao pintor”. Enfim, como nos diz o próprio poema, um pintor que não rompe com a tradição,
mas a transforma e desenvolve, através de seu olho oráculo, alegoria para ressignificação do
espaço mineiro.
88
4.2 O VISÍVEL
O desafio das especificidades proposto por Lessing (1991) e outros autores da época
propunha que “a poesia também pinta corpos, mas só de maneira alusiva através de ações”
(LESSING, 1991 p. 114), ao passo que “a pintura também pode imitar ações, porém só de
19
Dados biografados por Anatol Rosenfeld. (ROSENFELD, 1991, p. 11).
89
maneira alusiva através de corpos”. Parte da teoria sobre pintura e literatura de Lessing (1991)
se encontra no ensaio “Laocoonte ou sobre os limites da pintura e Poesia” (1766), em que as
formulações do autor não dão conta dos processos vanguardistas, mas permitem refletir sobre
desenvolvimento dos procedimentos artísticos que irão aproximar literatura e pintura, através
das alusões entre a tela e o poema em Murilo.
No entanto, na literatura e na pintura românticas, respectivamente, ainda permanece o
impasse ação x corpos. Uma exposição de 2008, do pintor Gaspar David Friedrich (1774-
1840), no Putney Art Theather, em Londres, abre o seu catálogo com os seguintes dizeres:
In paiting, however, the popular sucess of romantic artists such as Caspar David
Friedrich (1774-1840) was limited. Figurative representation was then the only
means of artistic expression available to the painter, an this can only begin to
suggest the lyrical feelings conveyed by the poetry of Keats or Schubert’s songs 20
(JENNINGS, 2008).
No mesmo catálogo, há uma citação de William Blake, poeta romântico cuja poesia
prometeica, segundo Alfredo Bosi, faz lembrar a de Murilo Mendes pelos arrancos erótico-
místicos: "Shall painting be confined to the sordid drudgery and facsimile representation of
merely mortal and perishing substances, and not be, as poetry and music are, elevated to its
own proper sphere of invention and visionary conception?".21 Essa relação com o
Romantismo é afirmada por Murilo em carta a Alceu Amoroso de Lima, datada de 23 de
Março de 1931:
20
Na pintura, no entanto o sucesso popular de artistas românticos, como Caspar David Friedrich (1774-1840) foi
limitado. A representação figurativa foi o único meio artístico de expressão disponível ao pintor, e isso só pode
ser o ponto de partida que sugira os sentimentos líricos transmitidos pela poesia de Keats nas Canções de
Schuberts.
21
A pintura deverá ser confinada à sórdida labuta e à representação facsímile de substâncias meramente mortais
e perecíveis, e não ser, como a poesia e a música, elevadas à sua própria esfera de invenção e concepção
visionária?
90
A queixa romântica europeia de uma pintura que vá além da mera representação pode
ser vista como propulsora das vanguardas que, por sua vez, chega a um grau tão potente de
expressão que influirá na poesia. Do Romantismo ao Modernismo, a questão inverte-se a
ponto de o pincel sobrepor-se à pena. As artes plásticas alcançam uma nova e própria esfera
de invenção e concepção visionária. Os comentários poéticos sobre os elementos da pintura
asseguram novo tratamento às temáticas românticas, caras também ao Modernismo: nostalgia
da infância e retorno às origens.
As telas vanguardistas encontram, na fragmentação e na relação entre tons, e não dos
objetos, uma resposta para a mera representação dos corpos. Essa resposta vanguardista pode
representar a metáfora da pintura na moldura do texto em uma nova experimentação da força
transformadora da natureza em oposição ao mundo prático, que não aceitaria a prática cubista
ou surrealista. O espaço configurado na tela é tão móvel quanto à ação temporal em um
poema: “Para os cubistas, o visível não era mais aquilo com que apenas o olho se defrontava,
mas a totalidade das vistas possíveis, extraídas de pontos ao redor do objeto (ou pessoa) sendo
retratado” (BERGER, 1999 p. 20). Essa é a realidade poliédrica da prosa muriliana, com
imagens irregulares, frases curtas, substantivações e narrativa entrecortada.
Um dos procedimentos das novas funções da pintura absorvidos pela literatura, a partir
do processo de composição de colagens, foi a collage, tornando-se força transformadora do
texto fragmentado e alterando os sentidos de recepção.22 Segundo Batchelor (1998), a
colagem surge no século XX, com o cubismo. Ao inserirem no espaço da tela materiais
retirados de objetos do cotidiano, como folhas de jornais, pedaços de madeira, entre outros,
pintores como Picasso e Braque realizaram uma série de colagens que redefiniram o
paradigma da obra de arte. O quadro é uma construção sobre um suporte, cuja plasticidade
derrubará a barreira entre escultura e pintura.
A colagem surrealista, para Lima (1984), representa uma linguagem plástica,
excessiva e dialética que possui condição de estabelecer uma troca que vai além das
limitações dos códigos e dos sinais da linguagem escrita, ou dos idiomas, pois lida com
imagens, como observamos na fotocolagem do olho de Guignard:
22
Há certa confusão nas terminologias colagem e collage. De acordo com LIMA (1984), a primeira, a grosso
modo, utiliza-se da cola em sua composição, já a segunda, configura-se com sobreposições cênicas, linguísticas
e, mais atualmente, digitais, no contexto radical de incorporação da imagem em outras representações
simbólicas, como é caso do texto recortado de Murilo. Ocorre a apropriação de uma abordagem técnica (uso da
cola) para uma abordagem conceitual da representação das outras artes.
91
A noção de que Ouro Preto dorme entre montanhas é um tema dos antropofágicos que
realizaram a histórica visita modernista de 1924, como nota Tarsila do Amaral, em artigo do
Diário de São Paulo, em 1938: “Dorme nas terras pioneiras a cidade-museu que é Ouro Preto”
(AMARAL, 1938, p. 6). Enquanto a intervenção dos antropofágicos aconteceu na esfera da
preservação, Murilo e Guignard falam em outro momento, quando as ruínas estão protegidas
pelas ações governamentais. Como foi visto, o tema do sono também é tratado por João
Cabral no texto “Considerações sobre o poeta dormindo”, de 1941.
Já no final do relato de sua formação, o olhar onipotente do menino-artista cumpre a
proposta da colagem surrealista de elementos da natureza, do universo, da mitologia e figuras
intelectuais que posteriormente serão material poético inserido no contexto da arte do século
XX. Além disso, o advento do cinema consolida e reconfigura a ideia de movimentação da
imagem na tela e no texto. Essa a definição é introduzida pelo diretor de “Vertov e sua
Câmera”, do soviético Dziga Vertov, dizendo muito sobre os modos como Murilo Mendes vê
o mundo:
93
Direcionado pela associação de olhares, aponta-se para o futuro nas memórias. Assim,
a tradição, a astronomia, costumes e lendas estão presentes para o poeta, mas seu
compromisso é com a novidade do mundo. Sob o signo do novo constrói-se a poética
memorialística, repleta de metáforas do universo muriliano: “a metáfora literária, plástica,
musical e científica” (MENDES, 1994, p. 973). Na reorganização do olhar Murilo ilustra uma
inusitada imagem de Sebastiana, em Idade do Serrote: “Sebastiana só tem peito e mão, eu
nunca vi os pés de Sebastiana, de resto Picasso disse a um discípulo que não existem pés na
natureza.” (MENDES, 2003, p.35)
Uma das mais perceptíveis preocupações da estética modernista e pós-moderna, o
tempo, nas memórias de Murilo, é tratado na perspectiva imaginativa do passado, na
94
4.3 O TÁCTIL
O aspecto táctil se dá no plano do pensamento, pelo símbolo das imagens dos poemas,
como em “Crucifixo fixo”, cujo aspecto táctil é marcado pela fixidez do crucifixo, mas
96
desaparecendo na imagem de Cristo. O crucifixo fixo, a coisa prática não gera mais do que o
sentimento frio do tato: Crucifixo fixo fixo / Crucifixo Deus parado / Para eu poder te fixar”
(MENDES, 1994, p. 514); entretanto a sensação táctil do arrepio religioso, da sonda da poesia
insurge em um Cristo palpável a partir da personificação do Crucifixo: “Crucifixo fixo fixo /
Nosso irmão Cristo Jesus”.
Essa subversão do tato como simples toque, como sensação poética atravessa o livro
de Ouro Preto em versos como: “Rude apetite dessa coisa eterna / Retida na estrutura de Ouro
Preto” (MENDES, 1994, p. 490), de “Montanhas de Ouro Preto”; “Ó luminárias /
Incendiárias” (MENDES, 1994, p. 504), de “Luminárias de Ouro Preto”; “Luar é verbo /
quase não é / Substantivo” , de “A Lua de Ouro Preto” (MENDES, 1994, p. 515).
O desafio da realização táctil na poesia é representado através do trabalho de
Aleijadinho: pode-se tocar a lua no pálio, graças ao escultor que tocou primeiro a pedra dura e
barroca de Ouro Preto. O legado de Aleijadinho é matéria já domada, cuja potencialidade
artística os modernistas tentam alcançar dando forma à pedra-linguagem, através de uma
poesia táctil, tão poética, significante e cosmopolita quanto a do escultor
4.4 O AUDÍVEL
Seria surpreendente que o som não pudesse sugerir a cor, que as cores não pudessem
sugerir uma melodia, e que o som e a cor fossem impróprios para traduzir idéias; as
coisas tendo-se exprimido sempre por uma analogia recíproca, “desde o dia em que
Deus proferiu o mundo como uma complexa e indivisível totalidade” (MENDES,
1996, p. 54).
para nós o tristíssimo Quindum sererê”( MENDES, 2003, p. 28). Logo depois de transcrever a
música, comenta: “Esta cantiga entrou nos meus poros, assimilei-a: começava a música, o
ritmo do homem começava, era uma vez e será para todo sempre. “(MENDES, p. 899, 1994).
Ainda sobre os seus nascimentos para o mundo poético diz: “Nasci coisando, nasci com a
música. Recordo-me perfeitamente de ouvir nosso Orfeu n° 1 Isidoro...” (MENDES, p. 900,
1994).
Segundo Trielle (1995), uma antologia de poemas sobre música e caracterizados pela
musicalidade não poderia deixar de incluir, em ordem cronológica, os seguintes: “O menino
sem passado”, “Mapa”, “A sesta”, “Modinha do Empregado de Banco”, “Noturno
Resumidos”, “Sonata de Luar”, “Cantiga de Malazarte” e “Ritmos Alternados”, de Poemas
(1930); “Mozart”, de Os quatro Elementos; “Poema Lírico”, “Novíssimo Orfeu” e “Começo
de Biografia”, de As Metamorfoses (1938-1941); “Canção Pesada”, “Murilo Menino” “Janela
do Caos” e “As Lavadeiras”, de Poesia Liberdade (1943); “Despedida de Orfeu”, de
Parábola (1946-1952); “Canção de Términe Imerese”, de Siciliana (1954-1955);
“Murilograma a Dallapiccola”, de Convergência (1970). Além disso, a terceira parte de
Retratos-relâmpago é toda dedicada a músicos.
Trielle (1995) aponta os procedimentos estilísticos de orientação nacionalista como a
paródia, os elementos do folclore e cantigas populares. Além de processos de composição,
que envolvem variação e repetição de melodia, como a suíte, que, segundo Aurélio (1993), é
uma sequência de dança destinada a um coro ou à interpretação musical em contrastes, em
poemas como “O Menino sem Passado”, “A sesta”, “Mapa”, “Noite Carioca” e “Marinha”.
Por fim a técnica dodecafônica, em “Janela do Caos”, de Poesia Liberdade (1930) que, de
acordo com o Dicionário Musical Del Chiaro (2010), consiste de doze sons livres, fugindo do
sistema e da harmonia tonal tradicional.
Se houve a encarnação do novo Orfeu na incorporação da tradição, Mozart é um outro
alter-ego. O livro As Metamorfoses é “dedicado ao meu amigo Wolfgang Amadeus Mozart”
(MENDES, p. 331, 1994). O compositor romântico é a “manhã da vida”, “aero-amigo”,
“poeta sem véspera” que, como músico pode abrir o arquivo do poeta – o mundo –,
representado pela caixinha de música do pai desmontada na infância, em um texto de
Poliedro. A música tem um sentido amplamente político para Murilo:
Embora objeto nostálgico, crepuscular, resolvi, movido pela pietas, anexá-lo aqui.
Na infância desmontei na casa de meu pai uma caixinha de música existente no oco
dum grande álbum de retratos, com os mortos de sobrecasaca ressuscitados
posteriormente pelo poeta Drummond, mais as mortas de vestido de cauda,
espartilhos e cabelos frisados. Eu queria ver a música da caixinha. Os meninos (não
só os meninos) gostam mais de desmontar do que de montar coisas (MENDES,
1994, p. 1005, grifo nosso).
Mais tarde me aconteceu uma certa Carmem, terrível espanhola, goyesca sem sabe-
lo furiosa, excedia-se, lançava altos gritos de revolta, exigindo-me uma tal atenção
do ouvido e outros sentidos que um dia, colérico, decidi toureá-la com o martelo à
guisa de muleta, olé! Rompeu-se em pedaços, nem ao menos chorei porque não
disponho – aí de mim – do “dom das lágrimas” (MENDES, 1994, p. 1006).
4 CONCLUSÃO
se alguém resolvesse ler um de meus romances, veria que neles abundam as listas, e
as origens desta predileção são duas, ambas devidas a meus estudos juvenis, certos
texto medievais e muitos textos joycianos (não se pode negligenciar as influências
de ritos e textos da Idade Média na formação do jovem Joyce) (ECO, p. 8, 2010).
Murilo cria livros de listas a partir da influência que se sobrepõe entre afeto e
aprendizagem artística. Segundo Eco (2010), enquanto nossa vida tem um limite, as listas
acenam com uma existência sem fim. Nossa predileção por elas estaria no fato de que não
queremos morrer. Ao tratar o tema da morte, Murilo utiliza essas listas como estratégias,
como um item refundador da cultura barroca, do Modernismo e da sua história pessoal.
Principalmente em sua obra memorialística, são encontradas listas de familiares, agregados,
cidades, santos, figuras da literatura, música, filosofia e artes, compondo um mosaico.
Representado pelo símbolo torcionário do serrote e pelos fantasmas de Ouro Preto, esse
mosaico produz unção e espanto.
Nas diversas analogias entre lugares, pessoas e objetos, os leitores podem criar
constelações sugeridas por Murilo: há um ordenamento da obra, conferindo certa harmonia à
vastidão. Embora não se perca a sensação de pânico e impossibilidade de abarcar algo que
parece infinito, pode-se deleitar com a limitação daquilo que é inapreensível. Dessa forma,
como a origem nunca pode ser recuperada, Murilo efabula sua gênese tanto poética quanto
histórica, entre o olhar domado e olhar armado.
A tensão dos arquivos do centro e periferia passa por uma reestruração crítica que,
na colagem poética, é conjurada em um mesmo plano. Ainda que as diferenças não sejam
desfeitas, em suas memórias ligadas à imagem, Murilo as transporta pra um mesmo lugar.
Inventadas, modificadas por impressões posteriores, sem o compromisso do documento, essas
memórias são sempre relacionadas com o futuro.
À guisa de conclusão, tentamos mostrar, por meio desta pesquisa, como a ideia do
olhar transgressor em Murilo, configura um olhar político (SARLO, Beatriz, 1997. p. 61).
101
Segundo a crítica argentina, Beatriz Sarlo, a lógica que deveria presidir à articulação do
discurso sobre a estética deveria ser consoante com os procedimentos políticos próprios da
obra artística. Esta tem o potencial de funcionar como uma máquina de transformação, pela
própria natureza desse tipo de discurso (que pode ousar todo o tipo de invenção, de bricolage,
de paródia, etc.) e pelo peso moral que a arte tem na sociedade, funcionando como resistência
a toda tendência homogeneizadora e mercadológica.
Os autores em foco, na análise do texto de Murilo, possibilitaram uma leitura que pode
ser vista como um posicionamento crítico revelador de uma possibilidade de reordenamento
do material crítico presente nos arquivos da literatura, história e arte. Esta possibilidade visa a
uma relação entre passado e presente da história e da cultura, numa possibilidade de utopia.
Sarlo define olhar político como o que deveria unir os discursos da arte e sobre a arte.
Em outras palavras, segundo a crítica argentina, devem-se aproximar os atos críticos de
leitura, tanto os elaborados nas obras artísticas quanto os propostos como ensaio. A obra de
Murilo, principalmente em Retratos-relâmpago, aproxima-se da ideia de ensaio, corroborando
o projeto intelectual das citações, fragmentos e dedicatórias que trazem em si uma marca de
cultura:
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109
Poeta católico, Murilo Mendes, mesmo em Roma, não perdeu a fé. Contra qualquer
regime ditatorial, de esquerda ou de direita, durante os anos de ditadura no Brasil, sofreu sob
o ponto de vista ideológico. Ao mesmo tempo que sentia-se culpado por ficar fora, também
sentia-se culpado por ser brasileiro; queria voltar, mas uma força impulsionava-o a ficar. Esse
sentimento conflituoso resultou na última obra em Italiano, Ipotesi: livro triste, espécie de
testamento do autor que expressa sua angústia pelo mundo dividido, pela bomba atômica, pela
Guerra Fria, pelo Muro de Berlim, pela cortina de ferro, por tudo que fosse divisão. Embora
não fosse o homem político das mãos dadas, como Drummond, desejava a paz universal.
Como não tinha interlocutores no Brasil, escrevia em italiano, seguindo uma
inspiração italiana. Vivendo de sugestões do ambiente, habitava-lhe uma angústia de ser
estrangeiro em toda parte. No Brasil já havia escrito prosa, como Discípulos de Emaús,
continuou na Itália com um livro de aforismos cristãos. Mais que católico, Murilo era adepto
de um cristianismo das origens numa Roma barroca. Tendo sofrido terrivelmente durante um
período, na Itália, começou a gostar da Espanha, a magra e românica Espanha, de João
Cabral. Em Barcelona, ia visitá-lo, conhecia as catedrais e igrejinhas românicas de barro.
Chegava a Roma e se deparava com a civilização que ele não queria. Não que odiasse Roma,
mas sua relação com ela era ambíguo.
Visando, na última parte da vida, perceber o mundo, começou a escrever livros de
viagem. Não se sentia essencialmente brasileiro tropical: não era contente no sol e nas praias
do Rio; odiava o mar; não ia à praia e, quando ia, ficava vestido e de chapéu. Ressentido, “eu
não tive Idade Média”, era um brasileiro com fome da Europa, onde buscou seu tempo
medieval. Com a idade, que também é um ressentimento, sua poesia se torna árida.
Exatamente por ser enxuta, representa a desmedida brasileira, aquela cordialidade da qual ele
também sentia saudades. Às vezes, comia as comidas italianas com saudades da farofa
brasileira.
Quanto aos livros de prosa, os tive durante 20 anos, caixas de Murilo por toda a parte.
Meu marido dizia: “Quando vamos nos libertar desse Murilo todo?”. Eu fazia sempre uma
1
Transcrição da palestra de Luciana Stegagno Picchio, feita pelos acadêmicos João Paulo Silvério dos Reis e
Lucas Mendes Fereira no Lançamento da obra “Poesia Completa e Prosa de Murilo Mendes”, no antigo Centro
de Estudos Murilo Mendes (CEMM), em 26 de março de 1994. A transcrição foi adaptada, pelo acadêmico
Lucas Mendes Ferreira, para a presente dissertação.
111
caixas grandes e colocava no armário do meu quarto, no armário do quarto do meu filho.
Aquela prosa era inédita, agora eu a vejo publicada e nestes dias às vezes abro-as e vejo que a
poesia e a prosa são mais semelhantes do que eu pensava.
Por exemplo, Saudade, que é uma mulher muito inteligente, muito fina, era a musa de
Murilo, que vocês verão quando ela vier em Agosto. Ela era muito cartesiana, filha de Jayme
Cortesão dizia: “Aí, Murilo! Você agora só faz diários de viagens”. Saudade dizia isto, mas
aqui [no livro] a prosa demonstra a viagem.
Da Vieira e Silva, colocava linhas e traços e eu publicava como se fosse um verbete
português com fotografias de cidades portuguesas. Vendia nos aeroportos e ganhava muito
dinheiro escrevendo isso, pois se vê que era um livro muito requintado e com bolinhas e
desenhos da Vieira da Silva. Foi publicado parcialmente em Portugal, livro caríssimo e que
agora está aqui, muito mais barato, embora o livro seja caro.
E depois também tem o livro espanhol, vocês conhecem a poesia de Murilo em Tempo
Espanhol. E esta [ a prosa do livro] é um pandango em prosa do Espaço Espanhol. O livro de
poesia é um livro metafórico no eixo da vertical, o dos poemas é um livro metonímico, com
uma sucessão horizontal. Ou pode-se dizer que o livro Tempo Espanhol do Murilo é um livro
auditivo, enquanto esse Espaço Espanhol é visual.
Ele se tornou um poeta muito visual e inventou uns gêneros poéticos que se chamavam
Murilogramas e grafitos. Via uma pessoa, via um personagem e a resumia ou em um grafito
ou em um Murilograma. O Murilograma era da parte do emitente, do emissor era um grafito.
Nos últimos anos em Roma, era muito amigo dos artistas plásticos e passou a vida
fazendo catálogos para pintores. Esses catálogos eram uma pequena obra-prima, porque
tinham um poema ou uma definição do autor, portanto isso está incluído nos Retratos-
Relâmpago e no livro Invenção do Finito. Este livro tem uma segunda parte com variantes e
notas de cada livro que eu escrevi.
E tem uma característica, por exemplo, muitos poetas morrem sem saber que morrem
e deixam tudo desorganizado; há uns que morrem deixando uma viúva que faz toda a edição;
há uns que têm uma amiga, de acordo com a saudade o faz. Só que há uns homens que
morrem, como Fernando Pessoa, deixando o espólio dentro do mar e que fazem uma equipe
enorme trabalhar por 10 anos para fazer a edição. E aqui foi feito por uma senhora. Tudo isso,
durante 18 anos, mas fiz outras coisas também.
E a edição deste livro hoje é como se estivesse devolvendo o Murilo ao Brasil. Eu
entrego Murilo, é um Murilo vosso e nosso, porque o Murilo foi também Italiano. Murilo
escreveu em Italiano, foi também nosso personagem na última parte da vida, um senhor muito
112
requintado e um pouco triste e curvo. Um pouco diferente do Murilo da lenda que vocês
fizeram aqui e se via na nossa memória. É um Murilo que sofreu muito, que sofreu
ideologicamente, que sofre na sua ideologia própria, católica cristã, por que Roma é um lugar
péssimo para ser católico. É o Murilo que nós todos vimos, enriquecido na Europa.
113