Algumas Contribuições Do Feminismo À Psicologia Social
Algumas Contribuições Do Feminismo À Psicologia Social
Algumas Contribuições Do Feminismo À Psicologia Social
Revista de Pensamiento e
Investigación Social
ISSN: 1578-8946
[email protected]
Universitat Autònoma de Barcelona
España
Mayorga, Claudia
Algumas contribuições do feminismo à psicologia social comunitária
Athenea Digital. Revista de Pensamiento e Investigación Social, vol. 14, núm. 1, enero-abril, 2014, pp.
221-236
Universitat Autònoma de Barcelona
Barcelona, España
Abstract
Keywords This article analyzes the contributions of feminist debate about intersectionality
Community social of social categories for Community Social Psychology in Brazil. This was set up as
psychology dedicated to theoretical analyze the social inequalities that characterize contempo-
Intervention rary societies and propose methodological processes of intervention for question-
Post-colonial feminism ing and processing of these realities. We discuss how the emergence of new actors
Intersectionality and demands on public space, as distinct from the 60/70, is required to understand
the oppression from various power systems such as gender, race and sexuality.
We conclude that intersectional analysis should consider different levels of rela-
tionships between categories, the history of the same differential and common as-
pects of different systems of power as naturalization of inequality, the relation-
ship between public and private relationship between equality and difference.
Analyses based on intersectionality can contribute to processes of social interven-
tion that considers the complexity of contemporary societies.
Mayorga, Claudia (2014). Algumas contribuições do feminismo à psicologia social comunitária. Athenea Digital,
14(1), 221-236. http://dx.doi.org/10.5565/rev/athenead/v14n1.1089
Introdução
A questão da mudança social está, mais uma vez, colocada para todos nós, em um con -
texto mundial em que grandes transformações vêm ocorrendo e em que os eixos de
poder e também de dominação/opressão têm se reconfigurado, apontando para novas
complexidades. Essa reconfiguração não se dá sem a presença contundente de diversos
atores/atrizes na cena pública que tem tensionado de forma contundente instituições
que pareciam estar consolidadas, mesmo que parcialmente, como o campo dos direitos,
da cidadania, da política. Para nós, do campo do feminismo, e também de uma posição
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orientada à transformação social, a pergunta sobre a intervenção social deve ser cons-
tantemente reformulada e, neste momento histórico, devemos atentar a algumas espe-
cificidades. As reflexões aqui apresentadas têm sido desenvolvidas a partir de tra-
balhos de intervenção comunitária junto a jovens mulheres, mulheres que atuam como
lideranças comunitárias em contextos de favela, mulheres negras, migrantes brasilei-
ras na Espanha e jovens feministas universitárias.
Falar da intervenção social no Brasil hoje exige uma retomada breve das origens
desse campo na América Latina, nos anos 60/70 do século passado. Isso não para bus-
car alguma essência ou ato solene de fundação, como adverte Michel Foucault
(1971/1994), mas para, à luz de uma perspectiva genealógica, considerar a emergência
desse campo do conhecimento com base na análise das discórdias, dissensos e conflitos
que ocorreram naquele momento e melhor compreensão dos desafios atuais desse
campo do conhecimento.
No campo das ciências sociais e humanas na América Latina, aqueles foram anos
marcados por um intenso debate e por uma emergência de ideias políticas e econômi-
cas acerca das noções de desenvolvimento e subdesenvolvimento, pobreza e desigual-
dades, que eram também temas que tomavam o interesse de governantes dos países la-
tino-americanos. Estava colocada para essas sociedades a necessidade de superação do
subdesenvolvimento que se apresentava através da desigualdade social, dos problemas
econômicos e da imensa pobreza. Diante dessa necessidade, distintas interpretações e
orientações para a superação do subdesenvolvimento foram apresentadas. Por um
lado, encontrávamos posições que defendiam que o subdesenvolvimento fazia parte do
percurso evolutivo da modernização e industrialização e que, à medida que os países
latino-americanos fossem se modernizando, a pobreza seria pouco a pouco superada.
Tal vertente se associava a uma perspectiva liberal, que via, no desenvolvimento
econômico, a possibilidade de superação do subdesenvolvimento, e foi adotada por go-
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vernos ditatoriais na América Latina, como foi o caso do Brasil. Por outro lado, diver -
sos pensadores e movimentos políticos e sociais começaram a problematizar essa po-
sição, já que o desenvolvimento econômico não estava significando a superação da po-
breza nos países da América Latina, mas sim a sua expansão. Autores como Theotonio
dos Santos (1966; 1968; 1969), Vânia Bambirra (1972; 1977) e Ruy Marini (2000), dentre
outros, vão analisar, por meio da chamada Teoria da Dependência, que o subdesenvol-
vimento não seria uma simples etapa a ser superada no percurso “linear” rumo ao de-
senvolvimento, mas sua reprodução, nos países chamados periféricos, ocuparia uma
função específica no capitalismo mundial, condição instituída por relações imperialis-
tas. A dependência dos países periféricos em relação aos países do centro se expressa-
va, segundo esses autores, a partir de uma subordinação econômica, tecnológica e
científica e, além disso, marcava tanto processos externos (relação entre os países)
quanto internos (relação entre as elites e as classes populares dentro dos países). Por-
tanto, fazia-se necessária, segundo essa vertente crítica, a superação da dependência.
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Importante contribuição para esses problemas tem sido desenvolvida pelas pers-
pectivas feministas que envolvem o debate no campo da epistemologia feminista, e do
que se chamou feminismo pós-colonial. Propomos, a seguir, examinar as contribuições
da noção de interseccionalidade e de articulação entre categorias sociais e as possibili-
dades de interpretação das relações de opressão nas sociedades contemporâneas que
essa perspectiva oferece e que podem ser tomadas como ponto de partida para proces-
sos de intervenção social e comunitária.
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das feministas como sendo não mulheres ou menos mulheres, evidenciando a tensão
entre gênero e sexualidade, assim como o problema da prostituição e da pornografia,
que dividiu as feministas entre abolicionistas e pela legalização ou regulamentação da
prostituição e pornografia. Destacamos também os conflitos entre as jovens feministas
e as militantes mais “históricas” do feminismo em muitas organizações feministas,
conferências e seminários em todo o mundo (Adrião, 2008).
Foi desse antagonismo dentro do próprio feminismo que nasceu a noção de inter-
seccionalidade (Crenshaw, 1994). Contudo, não se trata de afirmar simplesmente a ne-
cessidade de trabalhar com a multiplicidade de diferenças que caracterizam as mulhe-
res a partir de uma somatória de opressões. É muito importante compreender como es-
sas diferenças se instituem como desigualdade e devem-se analisar quais sistemas as
produzem e também como estão em interseção. Isso porque principalmente categorias
como gênero, raça, classe e sexualidade se expressam, muitas vezes, através de antago-
nismos. Desse modo, a noção de interseccionalidade será tomada como uma resposta à
necessidade evidente em nossas sociedades para compreender as formas de opressão
de forma articulada, considerando a complexidade das sociedades contemporâneas,
bem como para construir enfrentamentos que possam ser não fragmentados.
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exemplo, em saber de que maneira se expressa cada uma dessas categorias em um de-
terminado problema, ou, em um segundo nível, podemos focar as relações entre as ca-
tegorias e o modo como relacionam umas com as outras. Assim, não é suficiente anun-
ciar que vamos fazer uma leitura de gênero, raça, classe, sexualidade, mas é fundamen-
tal delimitar um marco analítico que indague sobre as formas de relação e não pro-
ponha, de antemão, o tipo de relação antes de estudar o problema ou supor que há
uma relação necessária (Hernandes, 2009). Além disso, podemos lançar mão de formas
diversas de entender a relação entre categorias: a partir da ideia de dupla ou múltipla
discriminação (Collins, 2000; Davis, 2004; hooks, 1981; 1984), ou de efeitos cumulativos
(Díaz, 2005), ou ainda pode-se tomar a sexualidade, o gênero ou o sexo como metáfo-
ras raciais (Arango, 2006; Dorlin, 2006).
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cava as experiências das jovens estudantes daquela escola, passou a nos interessar a
forma de relação entre elas.
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uma escolha autônoma das mulheres pela prática da prostituição se dá através do dis-
curso que apregoa que a escolha por tal ocupação ocorre devido a motivos estritamen-
te econômicos, geralmente em um momento de necessidade extrema. Dessa forma,
para uma análise interseccional crítica da experiência das prostitutas, foi necessário
explicitar as dinâmicas a partir das quais os elementos relacionados à classe social fre-
quentemente invisibilizavam as questões da relação entre sexualidade e autonomia,
contribuindo, mais uma vez, para a reprodução das desigualdades de gênero. Isso por-
que tal posição reforça o lugar de vítima das mulheres e nega qualquer possibilidade
de agência delas na prática da prostituição. É claro que tal cuidado analítico não nos
isentou de abordar a questão da classe social. Contudo, a forma hierárquica como essas
categorias organizam a compreensão dessa experiência precisou ser desconstruída.
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em um dos grupos de hip-hop, por exemplo, as questões de gênero passaram a ser visi-
bilizadas com mais intensidade e embates entre “manos” e “minas” passaram a ocorrer.
Tal explicitação possibilita um rearranjo interno no grupo, e, mais do que “deixar” as
mulheres do grupo se expressarem, novos elementos puderam emergir no que se refe-
re, por exemplo, a quem está autorizado a representar o grupo ou ainda quais conteú-
dos serão permitidos ou não nos duelos de MC’s que acontecem semanalmente (nos
duelos, homens e mulheres improvisam uma disputa cantada e em vários momentos a
desqualificação e ofensa às meninas esteve presente nos conteúdos das rimas). Não se
trata simplesmente de criar uma regra proibindo determinados conteúdos, mas da
emergência das vozes das mulheres na definição das “regras do jogo”, contribuindo
para a desconstrução de ideias naturalizadas, como a de que as mulheres não cantam
porque só lhes interessa a fofoca ou a dança, porque são tímidas e vergonhosas ou por-
que estão ali para arrumar namorado. A comparação com a dinâmica do racismo que
também naturaliza determinados discursos sobre negros e negras é um exercício im-
portante para a construção de equivalência entre as causas.
Para Sandra Harding (1986), em culturas estratificadas tanto por gênero quanto
por raça, o gênero sempre resulta como categoria racial e a raça como categoria de gê-
nero. Para Verena Stolcke (1993), se trata de compreender como a interseção entre
classe, raça e gênero produz experiências comuns e diferenças pelo fato de serem
mulheres e porque o gênero, a classe e a raça são constitutivos da desigualdade social.
Para essa autora, a desigualdade de gênero na sociedade de classes é resultado de uma
tendência histórica de naturalizar ideologicamente as desigualdades socioeconômicas
que imperam. Para Verena Stolcke (1993, p. 295),
Outra característica comum desses sistemas de poder refere-se à relação entre pú-
blico e privado, já que instituem dinâmicas em que experiências sociais marcadas por
raça, classe, gênero, sexualidade são frequentemente classificadas a partir de códigos
moralizantes, revelando um movimento de encolhimento do público e alargamento do
privado. Três sentidos tradicionais sobre a relação público-privado podem ser identifi-
cados: a) aquilo que se refere a uma dimensão coletiva ou individual (o pessoal é políti-
co); b) aquilo que se refere à visibilidade ou ocultamento/invisibilidade (dimensão do
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Por fim, os sistemas de poder indicados revelam a tensão entre igualdade e dife -
rença, uma vez que atuam fomentando lógicas da diferença ou do que Tzevetan Todo-
rov (1989) chamou de diferencialismo absoluto, o que exclui a possibilidade de reco-
nhecimento da igualdade. Um exemplo interessante é o de Wassyla Tamzali (2011), fe-
minista argelina. Ela dirige sua indignação a alguns feminismos ocidentais que têm
sido incapazes, segundo a autora, de se unirem às vozes das feministas islâmicas, sem -
pre em nome da cultura ou contra a islamofobia. Enfatiza que o relativismo com o qual
essa questão é abordada contribui para a essencialização da mulher muçulmana e aler-
ta para o perigo do retorno ao orientalismo, ou seja, a visão colonial das mulheres ge-
nericamente heterodesignadas como “árabes”. Wassyla Tamzali relata diálogos com
profissionais do direito na França com quem criticou decisões de juízes a favor de ho-
mens muçulmanos que violentaram suas mulheres ao utilizarem como argumento o
aspecto cultural e religioso, com objetivo de destacar a tolerância naturalizada com a
violência do outro.
Considerações finais
Neste artigo, após uma breve retomada histórica da intervenção social no Brasil e
América Latina, recorremos ao feminismo pós-colonial e destacamos a perspectiva da
interseccionalidade para análise das opressões nas sociedades contemporâneas. Identi-
ficamos que esse movimento analítico pode contribuir com os processos de inter-
venção social comunitária, pois esse é um campo que historicamente tem tomado as
desigualdades sociais e opressões como objetos de reflexão e tem buscado construir
perspectivas metodológicas que contribuam com a construção de um mundo menos
marcado por eixos de opressão (Haraway, 1988).
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Vale destacar, uma vez mais, que esse exercício exige uma posição de contínua re-
flexividade, pois não estamos trabalhando nem em termos epistemológicos e tampouco
políticos com a noção de neutralidade. A interseccionalidade é um exercício analítico
que estabelece a necessidade de revelar quem o faz, de quais lugares e diante de quais
problemas.
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