Goricki

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Universidade de Zagreb

Faculdade de Letras

Departamento de Estudos Românicos

Cátedra de Língua Portuguesa

A poesia de Noémia de Sousa e a Negritude


Tese de mestrado

Estudante: Orientadora:

Petra Gorički Dr. sc. Majda Bojić

Em Zagreb, julho de 2018


Sveučilište u Zagrebu

Filozofski fakultet

Odsjek za romanistiku

Katedra za portugalski jezik i književnost

Poezija Noémije de Souse i pokret „Negritude”


Diplomski rad

Studentica: Mentorica:

Petra Gorički Dr. sc. Majda Bojić

U Zagrebu, srpanj 2018.


University of Zagreb

Faculty of Humanities and Social Sciences

Department of Romance Languages

Poetry of Noémia de Sousa and the Negritude


Diploma thesis

Student: Mentor:

Petra Gorički Dr. sc. Majda Bojić

Zagreb, July 2018


Sumário

1. Introdução ................................................................................................................................... 1
2. A história da Negritude ............................................................................................................... 2
2.1. O Pan-Africanismo .................................................................................................................... 2
2.2. Os renascimentos negros ........................................................................................................... 3
2.2. A Negritude ............................................................................................................................... 5
3. A Negritude de expressão portuguesa ......................................................................................... 8
4. Noémia de Sousa....................................................................................................................... 11
4.1. Sangue Negro ................................................................................................................ 14
4.2. Poética e estilo de Noémia de Sousa ............................................................................. 18
4.2.1. A voz poética de Noémia de Sousa ............................................................................... 18
4.2.2. Estilo ............................................................................................................................. 22
5. Análise de canções .................................................................................................................... 25
5.1. Nossa voz................................................................................................................................. 25
5.2. Se me quiseres conhecer .......................................................................................................... 28
5.3. Deixa passar o meu povo ......................................................................................................... 30
5.4. Magaíça ................................................................................................................................... 34
5.5. Negra ....................................................................................................................................... 36
5.6. Um dia ..................................................................................................................................... 38
5.7. Poema para Rui de Noronha .................................................................................................... 40
5.8. Godido ..................................................................................................................................... 44
5.9. A Billie Holiday, cantora ......................................................................................................... 46
5.10. Sangue Negro .................................................................................................................... 49
6. Conclusão.................................................................................................................................. 53
7. Bibliografia e Webgrafia ........................................................................................................... 55
Resumo

A obra poética da autora moçambicana Noémia de Sousa foi escolhida para estudo com o
propósito de analisar o contexto histórico em que a poesia da autora surgiu, ou seja, observar
como a sua produção poética foi influenciada por movimentos literários da época – a Negritude
e o Renascimento Negro. São assim analisados os poemas organizados no seu único livro,
Sangue Negro, publicado em 2001. Este trabalho propõe-se estudar um conjunto de dez poemas
mais conhecidos e divulgados da autora: Nossa voz; Se me quiseres conhecer; Deixa passar o
meu povo; Magaíça; Negra; Um dia; Poema para Rui de Noronha; Godido; A Billie Holiday,
cantora; Sangue Negro.

Palavras-chave: Noémia de Sousa, Sangue Negro, Negritude, Renascimento Negro Norte-


Americano

Sažetak

Poezija mozambičke autorice Noémije de Souse odabrana je za temu ovoga rada s ciljem
analize povijesnoga konteksta u kojem je nastala autoričina poezija, odnosno utjecaja
književnih pokreta toga razdoblja na poeziju autorice – pokreta “Negritude” i “Crnačka
renesansa”. Stoga su analizirane pjesme iz knjige “Sangue Negro” (2001.), jedine autoričine
objavljene knjige. Ovaj se rad temelji na analizi deset najpoznatijih pjesama autorice: “Nossa
voz”, “Se me quiseres conhecer”, “Deixa passar o meu povo”, “Magaíça”, “Negra”, “Um dia”,
“Poema para Rui de Noronha”, “Godido”, “A Billie Holiday, cantora”, “Sangue Negro”.

Ključne riječi: Noémia de Sousa, Sangue Negro, Negritude, Crnačka renesansa


1. Introdução

Este trabalho aborda a obra Sangue Negro da escritora moçambicana Carolina Noémia
Abranches de Sousa Soares, conhecida como Noémia de Sousa. A poesia de Noémia de Sousa
é muito importante no contexto do desenvolvimento das literatura e nação moçambicanas
essencialmente devido à temática e ao engajamento da autora na luta pela independência do
seu país.

Os poemas que constituem o livro Sangue Negro foram escritos num período de transição
da história de Moçambique, no período da luta pela independência do país. Apesar de serem
escritos e publicados durante o tempo da censura, os poemas de Noémia de Sousa conseguiram
atingir o seu público alvo. Os poemas causaram grande perturbação em Moçambique, mas
também em todos os países africanos de língua portuguesa, tornando-se numa arma de protesto
contra a opressão dos colonizadores portugueses.

A voz poética de Noémia de Sousa é influenciada por vários movimentos literários e


culturais: Pan-Africanismo, Renascimento Negro Norte-Americano, Indigenismo Haitiano,
Negrismo Cubano, Modernismo e Regionalismo Brasileiro, Realismo e Neorrealismo Europeu,
Negritude. Graças aos seus poemas Sangue Negro e Negra, Noémia de Sousa transformou-se
no ícone da moçambicanidade e Negritude portuguesa.

Através da análise dos poemas mais conhecidos e divulgados de Noémia de Sousa,


procurar-se-á tentar revelar a relação entre a Negritude e a sua poesia. Os motivos recorrentes
da Negritude francófona – a África, o negro e a Mãe Negra – ocupam nos versos de Noémia
de Sousa um lugar de destaque. Deve-se, portanto, destacar a influência da Negritude e dos
movimentos literários afro-americanos na sua poesia. A exaltação da cor negra e a
reivindicação das raízes africanas sugerem que os poemas de Noémia de Sousa são uma
declaração dos valores da cultura moçambicana.

1
2. A história da Negritude
2.1. O Pan-Africanismo

A história da Negritude tem o seu começo no final do século XIX, quando surge nos
Estados Unidos o movimento nomeado de Pan-Africanismo, o precursor do movimento da
Negritude. Nascido no período de transição entre a abolição da escravatura e o começo do
colonialismo, este movimento procurou reivindicar igualdade e liberdade para todos os
africanos e afro-americanos. O movimento foi fundado na primeira Conferência Pan-africana
realizada em 1900 em Londres por Henry Sylvester-Williams, um advogado de Trinidad, e foi
o primeiro encontro pan-africano de líderes negro-africanos que se opunham ao colonialismo
e ao racismo.
O movimento baseia-se na ideia do sociólogo e filósofo americano William Edward
Burghardt Du Bois (1868-1963), considerado um dos pais do movimento pan-africano, por ter
sido um dos primeiros que propagou o retorno às origens negras e o orgulho racial. Para
incentivar os africanos e afro-americanos a se unirem, Du Bois organizou quatro congressos
pan-africanos entre 1919 e 1927 – em Paris (1919), Londres (1921), Londres e Lisboa (1923),
e Nova Iorque (1927). Os Congressos Pan-Africanos foram uma crítica importante do domínio
colonial europeu em África e do racismo, que os europeus exerciam sobre os negros.
Os objetivos principais do movimento foram a confirmação da dignidade do homem negro;
a criação de condições para que o povo negro se possa expressar livremente; a defesa dos
direitos dos negros ao trabalho, ao amor e à igualdade; o reconhecimento das culturas negras,
do passado doloroso e da origem africana.1 Os escritores pan-africanos do século XX tentaram
demonstrar que todos os países africanos têm direito a serem independentes e que o povo
africano não deve ser oprimido.
Anos depois, em outubro de 1945, outro Congresso Pan-Africano foi realizado em
Manchester, em Inglaterra. Nesse congresso que ficou bem conhecido na história do Pan-
Africanismo, Kwame Nkrumah, Jomo Kenyatta e George Padmore desempenharam os papéis
mais proeminentes. George Padmore tornou-se uma das figuras mais importantes do
movimento pan-africano, ao lado de Du Bois. Para Padmore, a ideia do Pan-Africanismo surgiu
como uma manifestação da solidariedade fraterna entre os africanos e os povos de descendência
africana.2 Em 1958, Padmore organizou duas conferências em Acra, no Gana, e foi responsável
pelo retorno do movimento a África.

1
Cvjetičanin 1974, 455
2
Nantambu 1998, 561

2
Apesar de terem existido duas vertentes do movimento pan-africano – uma que propunha
“um retorno apenas simbólico a África como uma forma de se reencontrar com as origens
africanas”, e outra que propunha “um retorno físico de todos os negros em diáspora ao
continente africano”3 – este movimento lutou para

retirar a África das garras dos homens maus que a roubaram e violentaram; que
escravizaram o povo africano e o afastaram da família, da sua terra natal, das suas
tradições culturais e o levaram à força para outras partes do mundo, longe dos seus lares
ancestrais, e lá o transformaram em bens móveis sub-humanos.4

2.2. Os renascimentos negros

Nas primeiras décadas do século XX, surgem no mundo diversos movimentos literários e
culturais que lutam pela libertação e liberdade de expressão do povo oprimido. Nos Estados
Unidos surge o Renascimento Negro Norte-Americano, que engloba três vertentes – o Black
Renaissance, o New Negro, e o Harlem Renaissance – inspiradas nas más condições de vida
dos negros, que eram excluídos da sociedade americana. Os escritores negro-americanos do
início do século XX foram os primeiros a abordar a questão, até então “proibida”, da relação
entre negros e brancos.5 Os participantes do movimento começaram a falar sobre os seus
problemas, procuraram revalorizar as raízes culturais africanas e construir um novo negro,
consciente do papel que a tradição africana tinha na formação da nação americana.
Conforme Pires Laranjeira, a ideia de Renascimento, Indigenismo e Negrismo surgiu nos
Estados Unidos e nas Antilhas, como consequência das Luzes e do Romantismo.6 Se
observarmos a produção literária dos escritores norte-americanos do Renascimento Negro
constatamos que ela apresenta algumas características gerais - “[a] expo[sição] [d]o sofrimento
dos “desterrados do mundo”” e “um forte compromisso com a luta pelo reconhecimento dos
direitos civis dos afrodescendentes e contra o preconceito racial”.7 O Renascimento Negro
abrangeu uma variedade de elementos e estilos culturais, incluindo a perspetiva pan-africana e
a música negra – o jazz, o soul e o blues. Pires Laranjeira reconhece o facto de que os autores

3
D. A. Santos 2007, 72-73
4
Clarke 2012, 101, tradução nossa
5
Cvjetičanin 1974, 454
6
Laranjeira 1995, 27
7
Fonseca 2014, 2

3
negro-americanos conheciam as tradições africanas e a história do povo africano apenas através
da literatura que atingiu as Américas.8 Quer isto dizer, que de facto os negro-americanos são
descendentes do povo africano que chegou às Américas, mas eles mesmos não viveram em
África e, portanto, não conheciam as histórias africanas senão através dos livros e da língua
oral.
Ao Renascimento Negro integraram-se escritores e artistas como Langston Hughes,
Countee Cullen, Claude McKay, W. E. B. Du Bois, Sterling A. Brown, Jean Toomer, Josephine
Baker, Paul Robeson e Marian Anderson. Ao lado da coletânea The Weary Blues, de Langston
Hughes, o maior poeta do movimento, uma das publicações mais importantes é a antologia The
New Negro, organizada por Alain Locke e publicada em 1925. Conforme Cvjetičanin, os poetas
do movimento exigiram a liberdade do povo negro, abordando o retorno a África, à terra dos
antepassados, onde encontrariam os valores autênticos.9
Deve-se considerar o facto de que o movimento do Renascimento Negro dá incentivo a
alguns dos temas que depois marcarão o movimento da Negritude: a celebração das tradições,
diferentes religiões e culturas africanas, a busca de revalorização da origem africana, a questão
de como transmitir a experiência da vida negra, a representação da África como um espaço de
harmonia entre o homem e a natureza. O movimento do Renascimento Negro, com as suas
vertentes, provocou um alvoroço e teve como resultado o despertar do povo negro, que
começou a afirmar a sua consciência de ser negro. A poesia marcada pela oralidade e tradição
africana estabeleceu a base da corrente literária da Negritude.
Durante este período, nas Antilhas, a exaltação da consciência de ser negro surge nos
movimentos do Indigenismo Haitiano e Negrismo Cubano. O Indigenismo surgiu no Haiti em
1927 em torno da revista La Revue Indigène. O Indigenismo Haitiano caracteriza-se pela busca
ávida da identidade nacional haitiana, a revalorização da cultura autóctone e popular, dos
falares crioulos e do conjunto das crenças e dos sentimentos comuns, tais como o vodu.
Segundo Cvjetičanin, os autores do Indigenismo Haitiano salientaram o facto de que a cultura
das Antilhas, principalmente a cultura haitiana, ter raízes africanas.10 Cvjetičanin nota ainda
que “eles pensam África como vivendo no tempo dourado que existia antes da colonização, ou
como um paraíso futuro”.11

8
Laranjeira 2000, XII
9
Cvjetičanin 1974, 455
10
Ibid., 456
11
Ibid.

4
As personagens principais do Indigenismo Haitiano eram Jean Price-Mars, Léon Laleau,
Jacques Roumain, René Depestre, Jean François Briette, Roussau Camille, Félix Morisseau-
Leroy e Jacques Stéphen Alexis. Deve-se salientar o facto de que o género literário mais
destacado no Indigenismo Haitiano é a prosa. Quanto à temática, os autores escreveram
principalmente sobre a escravidão, o exílio, a segregação entre negros e brancos, o trabalho
forçado e a nostalgia pela África.
Outro movimento importante é o Negrismo Cubano. O Negrismo Cubano inspira-se em
ritmos populares, sendo a poesia o género literário mais predominante. Segundo Cvjetičanin,
os autores afro-cubanos usaram palavras de origem espanhola, que ganharam um significado
novo e um ritmo tipicamente africano.12 Ainda segundo Cvjetičanin, os autores do Negrismo
Cubano misturaram o ritmo africano e o verso de copla, canção popular espanhola.13 O
principal representante do Negrismo Cubano era Nicolás Guillén, “a voz mais alta da negritude
de expressão hispano-americana”.14 Em 1934 ele publicou o livro West Indies, Ltd., uma
coletânea de poemas com implicações políticas.
De acordo com Patrick Chabal, o que a literatura do movimento do Renascimento Negro e
a literatura dos escritores negros das Antilhas têm em comum é a tentativa de destacar as
qualidades do povo negro e da cultura negra que por muito tempo foram oprimidas, ignoradas
ou ridicularizadas.15 Chabal nota ainda que estas literaturas marcam “o fim de qualquer
tentativa de integrar e assimilar a cultura branca/europeia e a necessidade de dar voz à
população negra”.16

2.2. A Negritude

Nos anos 30 do século XX, surge uma nova corrente literária e cultural, chamada da
Negritude. O termo Négritude aparece pela primeira vez em 1939 no poema “Cahier d’un
retour au pays natal” de Aimé Césaire e depois dá nome ao movimento cultural e literário que
marcará a década de 1930. As principais figuras do movimento – Aimé Césaire, Léopold Sédar
Senghor e Léon Damas – colaboraram na publicação do jornal L’Étudiant Noir (1935). O jornal

12
Cvjetičanin 1974, 458
13
Ibid.
14
Andrade e Tenreiro 2000, 19
15
Chabal 1996, 24
16
Ibid., 24-25

5
uniu todos os estudantes negros que estudaram em Paris e que perceberam que “a civilização
ocidental não era um modelo universal e absoluto tal como era ensinado na colônia”.17
A publicação do jornal foi “um marco importante na luta empreendida por escritores,
artistas e intelectuais em favor da conscientização do homem negro sobre os seus direitos e
pela valorização de expressões culturais africanas sufocadas pela colonização”.18 O jornal
L’Étudiant Noir defendeu o retorno às raízes africanas como forma de luta contra a assimilação,
mas também favoreceu o comunismo e o surrealismo como instrumentos ideológicos de
libertação19.
Os escritores negritudianos inspiraram-se em movimentos do Pan-Africanismo,
Renascimento Negro Norte-Americano, Indigenismo Haitiano e Negrismo Cubano. Importa
igualmente considerar o impacto da poesia de Nicolás Guillén sobre os escritores da Negritude,
principalmente sobre Damas e Césaire. Conforme Cvjetičanin, Damas e Césaire consideraram
Guillén o precursor da Negritude pois ele tinha expressado os seus sentimentos num protesto
contra o destino indigno do povo negro das Antilhas.20
Outras publicações importantes foram o livro Pigments de Damas, publicado em 1937, e
várias obras de Senghor – o artigo “Ce que l’homme noir apporte” (1939), Chants d’ombre
(1945), Hosties noires (1948) e Éthiopiques (1956). Senghor publicou a sua obra mais
importante, Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache, em 1949. A obra de Senghor
é considerada o manifesto da revolução negra contra a pressão política e cultural dos
colonizadores, ou seja, dos países ocidentais.
A antologia de poesia de Senghor teve uma grande repercussão graças ao prefácio de Jean-
Paul Sartre, intitulado “Orphée Noir”. Segundo Pires Laranjeira, trata-se de um trabalho teórico
que analisa o problema negro de ponto de vista marxista.21 No prefácio, Sartre fala sobre a
Negritude como a revolta dos negros contra os brancos e opõe “ao mundo tecnológico e
racionalista dos europeus o mundo natural e sensitivo dos africanos, num posicionamento que
receberia críticas devastadoras dos homens empenhados na abertura de África ao mundo
moderno, através de revoluções socialistas”.22 Sartre também constata que o movimento da
Negritude tem um papel revolucionário por causa da rejeição dos valores culturais dos
colonizadores e da estimulação do orgulho racial no povo negro.23 Além disso, Sartre salienta

17
Domingues 2005, 27
18
Fonseca 2014, 248
19
Cf. Cvjetičanin 1974, 460; Domingues 2005, 28
20
Cvjetičanin 1974, 458
21
Laranjeira 1995, 28
22
Ibid.
23
Domingues 2005, 31

6
os aspetos da negritude que referem expressões de negação: a rejeição do colonialismo, o
racismo antirracista e o sofrimento do povo negro.24
Pires Laranjeira afirma que

[a] Negritude é a expressão literária, sobretudo poética, do “ser negro”, instaurando um


discurso cujo enunciador é nitidamente negro e não branco. […] A Negritude é, em
síntese, a valorização das culturas e do modo de estar no mundo do negro (assunção
mais nítida em Senghor) e, em simultâneo, o posicionamento ideopolítico anti-colonial
e anti-imperialista (infinitamente mais notório em Césaire).25

Como pode ser observado nas palavras de Pires Laranjeira, cada um dos líderes do movimento
da Negritude – Senghor, Césaire e Damas – tem a sua definição de Negritude. Segundo
Cvjetičanin, Senghor define a Negritude como a herança cultural, os valores e o espírito da
civilização negro-africana, enquanto a definição de Césaire se baseia em quatro aspetos da
negritude – a cor, a raça, a psicologia e a reivindicação. 26 Cvjetičanin ainda nota que Damas
define Negritude como a rejeição da assimilação e a defesa das qualidades dos negros.27
Segundo Pires Laranjeira, os líderes do movimento queriam formar um estilo novo, próprio
da Negritude, e separar-se dos modelos das literaturas dos colonizadores.28 Disto resulta que
uma das características mais importantes do movimento é a exaltação da raça e da cor negra:

A África, o negro e a Mãe Negra (Mãe-África ou Mãe-Terra) ocupam nos textos um


lugar de destaque, como referências, alusões ou temas, numa declaração humanística
de povos até aí apresentados e representados (na literatura colonial) como destituídos
de história, cultura e mesmo de sentimentos.29

Ainda segundo Pires Laranjeira, outra característica da Negritude é a negação da dominação


das culturas europeias sobre as culturas africanas.30

24
Cvjetičanin 1974, 473
25
Laranjeira 2000, XII
26
Cvjetičanin 1974, 462
27
Ibid.
28
Laranjeira 1995, 29
29
Ibid.
30
Ibid.

7
3. A Negritude de expressão portuguesa

Apesar de o contexto histórico-político não permitir a organização de um movimento como


o da Negritude francófona, houve uma tendência na poética de alguns autores africanos de
língua portuguesa de seguir os temas e os motivos dos autores da Negritude francófona:

A fase negritudiana é universal na evolução da literatura africana, apesar de tomar


várias formas e mesmo de ser designada por diferentes nomes. Em poucas palavras, o
que designo por negritude é simplesmente a tentativa de resgatar e proclamar a cultura
indígena africana como a base para a literatura africana. Embora nas colónias africanas
portuguesas a negritude nunca tenha tomado a forma amplificada e exaltada que
assumiu no império francês, houve um processo semelhante, mesmo que não tenha
havido “influência” direta. A negritude é, desta forma, a mais explícita e manifesta fase
de nacionalismo cultural que se pode encontrar na literatura africana moderna.31

A Negritude lusófona surgiu durante a ditadura fascista de António de Oliveira Salazar, no


período de censura. Este período de censura teve o seu ponto máximo em 1965, quando a
Sociedade Portuguesa de Escritores, a Casa dos Estudantes do Império, as Edições Imbondeiro
e outras associações foram fechadas.32 Durante este mesmo período, as publicações como
Mensagem, Certeza, Cultura (II) também foram proibidas.
O movimento da Negritude teve um papel importante na construção das literaturas
nacionais das ex-colónias portuguesas na África – Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo
Verde e São Tomé e Príncipe. Conforme Rubens Pereira dos Santos, “a literatura desses países,
a poesia em particular, partiu para mostrar o que os seus intelectuais faziam em termos da
cultura e qual o vínculo dos escritos com o ser negro, o ser africano”.33
A Negritude lusófona provém da Negritude francófona que inspirou os estudantes africanos
de língua portuguesa que estudaram em Lisboa ou Paris, lugares onde entraram em contacto
direto com as ideias de Senghor, Damas e Césaire. Francisco José Tenreiro, de São Tomé e
Príncipe, e Agostinho Neto, de Angola, são considerados os autores mais influenciados pela
Negritude francófona.
Tenreiro foi o primeiro a usar a palavra Negritude na África portuguesa, no seu poema Ilha
do Nome Santo, publicado em 1942. Deve-se também considerar a influência da literatura dos

31
Chabal 1994, 55
32
Laranjeira 1994, XIII
33
Santos 2009, 2

8
negro-americanos na poesia de Tenreiro. Conforme Chabal, o poema Ilha do Nome Santo é a
resposta de Tenreiro à experiência dos negro-americanos e à literatura negro-americana.34
Chabal também nota o carácter negritudiano dos poemas de Tenreiro, notável no livro de poesia
Coração em África, que consiste em poemas de autoafirmação africana e são-tomense.35 De
acordo com as características da poesia da Negritude, a poesia de Tenreiro fala sobre temas
como a dessegregação do povo negro, a melancolia e o sofrimento da diáspora negra. Conforme
Pires Laranjeira, Tenreiro atribui ao colonizador “o papel de fonte de todos os males da
colonização, responsabilizando-o pela exploração, repressão, miséria e degradação em que vive
o colonizado”.36 Chabal nota que Agostinho Neto escreveu poesia de carácter negritudiano para
expressar vigorosamente o nacionalismo cultural de Angola.37
Além do estímulo da Negritude francófona, a Negritude lusófona também foi influenciada
pelas obras dos autores do Renascimento Negro Norte-Americano, Indigenismo Haitiano e
Negrismo Cubano. Ao lado de Tenreiro, escritores como José Craveirinha e Noémia de Sousa
também acharam inspiração em temas e obras dos autores do Renascimento Negro Norte-
Americano. Como nota Chabal, os autores moçambicanos familiarizaram-se com a música e a
literatura negro-americanas através da África do Sul:

Para aqueles que sabiam inglês (e muitos são em Moçambique) o acesso à África do
Sul significava acesso à cultura de língua inglesa, assim como acesso a largos
segmentos da cultura africana. […] Para os artistas moçambicanos a ligação com a
África do Sul poderia significar uma orientação vital para o mundo exterior.38

Pires Laranjeira nota a influência da literatura negro-americana em Mário Pinto de


Andrade, que publicou “A literatura negra e os seus problemas” em 1951, no jornal
Mensagem.39 Mário Pinto de Andrade usou a palavra Negritude para “designar a generalidade
das características da poesia negra das Américas, mas igualmente de Césaire e Senghor,
mostrando que existia, de facto, a estratégia de pensar a nova poesia africana por comparação
com os modelos afro-americanos e afro-francófonos”.40
No caso da Negritude lusófona, deve-se também salientar tanto a influência da literatura
brasileira do Modernismo e Regionalismo, como a influência da literatura do Realismo e

34
Chabal 1996, 25
35
Ibid.
36
Laranjeira 2005, 49
37
Chabal 1996, 25
38
Chabal 1994, 38
39
Laranjeira 2000, XVI
40
Ibid.

9
Neorrealismo europeu. Patrick Chabal salienta as razões da inspiração portuguesa na literatura
brasileira – o primeiro é o facto do Brasil ser uma ex-colónia portuguesa que desenvolveu com
sucesso a sua própria literatura nacional.41 Desta maneira os autores africanos de língua
portuguesa seguiam os modelos da literatura brasileira na sua tentativa de formar uma literatura
nacional. Além disso, Chabal nota a importância da literatura brasileira do Modernismo, que
reflete a realidade do mundo contemporâneo e também a literatura regionalista que fornece um
bom exemplo de incorporação da “cor local” na literatura nacional:

A literatura brasileira refletia plenamente a história, a cultura e a língua locais, e


envolvia os leitores numa experiência literária completamente coerente com a vida dos
brasileiros. Estes eram exatamente os objetivos dos escritores africanos de língua
portuguesa, cuja ambição de criar uma literatura ‘nacional’ poderia assim encontrar
inspiração concreta em outra ex-colónia portuguesa.42

Os autores africanos de língua portuguesa foram influenciados pelo Realismo e


Neorrealismo europeu e também pelo Realismo norte-americano. Os temas realistas e
neorrealistas sobre problemas sociais e políticos da época forneceram a base à expressão
literária dos autores da Negritude lusófona que escreveram sobre a opressão colonial:

O Neorrealismo (português, italiano, norte-americano e brasileiro) […] fornece os


instrumentos estéticos e ideológicos para a representação do espaço e do tempo
coloniais: relações de produção, com personagens desempenhando papéis profissionais
e atividades próprias dos colonizados […]; definição clara e concisa do espaço
geográfico e cultural (como em muitos poemas de “retratos de proletários”, de Noémia,
Craveirinha e outros); pinceladas rápidas sobre a história da colonização […].43

41
Chabal 1996, 26
42
Ibid.
43
Laranjeira 2005, 52

10
4. Noémia de Sousa

Noémia de Sousa, de nome completo Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares, nasceu
em 20 de setembro de 1926, na Catembe, ex-província da antiga capital de Moçambique,
Lourenço Marques, hoje conhecido como Maputo. Noémia viveu com a sua família na
Catembe até aos seis anos, altura em que eles se mudaram para Lourenço Marques.
Ela era mestiça – o seu pai era descendente de Portugueses, Goeses e Macuas, e a sua mãe
era mulata, filha de um alemão branco e uma negra, filha de um chefe ronga. O pai de Noémia
era um funcionário público e ensinou-a a ler quando ela tinha quatro anos. Embora o pai a
tivesse ensinado a ler, foi através da sua mãe que Noémia aprendeu muito sobre a cultura
moçambicana:

Acho que o meu pai seria – apesar de eu o ter perdido quando tinha oito anos – o que
me levou a interessar-me por aquilo que era a leitura, a escrita, interesse em saber. Não
digo “cultura”, porque do lado da minha mãe aprendi outras coisas, a cultura do povo.
A minha mãe era semi-analfabeta. Perdeu o pai muita nova, depois frequentou a escola
da missão ali perto… Mas tinha tudo da cultura moçambicana, dos hábitos, dos
costumes… […] O que aprendi com a minha mãe foi a nossa cultura popular, os nossos
hábitos, o que se deve ou não deve fazer, a cultura daquela área ali do Sul.44

Dado o seu pai falar português e a sua mãe falar ronga, Noémia falava ambas as línguas,
mas só mais tarde aprendeu a ler ronga. O pai morreu quando ela tinha oito anos e a família
teve de se mudar para Munhuana, um distrito menos prestigiado da cidade de Lourenço
Marques. A mãe de Noémia teve de arranjar um trabalho para sustentar os seus seis filhos, dois
deles a estudar em Portugal. Por causa de dificuldades financeiras da sua família, Noémia não
foi para a universidade, mas foi para a escola comercial onde aprendeu inglês e francês. Noémia
também teve de começar a trabalhar para ajudar a mãe no sustento da família. Assim aos 16
anos, ela arranjou um emprego como secretária numa firma indiana.45
O seu irmão Nuno Abranches introduziu-a junto de alguns colaboradores do jornal da
Mocidade Portuguesa, dirigido pelo poeta Virgílio de Lemos. Noémia publicou o seu primeiro
poema, Canção Fraterna, em 1948, no referido jornal, mas assinou-a apenas com as iniciais
N. S.:

44
Chabal 1994, 107-108
45
Cf. Chabal 1994, 113; Saúte 2001, 12

11
Resolvi escrever um poemazinho que era O Irmão Negro, e pus umas iniciais, porque
não queria que se soubesse que era eu, por vergonha. Tinha para aí 19 anos. Assinei
com os meus nomes que eu menos utilizava. O meu nome é Carolina Noémia
Abranches de Sousa, e usava Carolina Abranches, só. E então pus “Noémia” e “Sousa”,
que eram os que eu não usava. Pus N. S. E durante muito tempo julgavam que era o
meu irmão.46

A publicação do poema causou perturbação “pelo conteúdo de seus versos voltados para a
denúncia da escravidão e pela declarada adesão à potencialidade de emancipação humana
configurada pelo(a) suposto(a) escritor(a)”.47 Depois publicou o poema Poesia não venhas! em
1949, no jornal O Brado Africano. Novamente usou apenas as iniciais N. S., escrevendo sobre
as condições político-culturais em Moçambique.
Noémia afiliou-se à Associação Africana, mas também colaborou com o jornal O Brado
Africano onde estava encarregue da Página Feminina. Durante a sua colaboração com O Brado
Africano, Noémia de Sousa incorporou textos literários, biografias curtas, poesia e resenhas de
filmes na Página Feminina. Além disso, Sousa usava a página das mulheres como meio de
divulgação dos seus próprios textos e dos textos dos seus camaradas sobre nacionalismo
africano e oposição marxista ao regime do Estado Novo.48
Apesar de usar pseudónimos, o mais notável sendo o de Vera Micaia, a sua escrita chamou
a atenção da PIDE por causa da sua associação com os nacionalistas que lutaram pela
independência moçambicana. Em 1951, ela decidiu partir para Portugal e começar os seus
estudos em Lisboa. Em Portugal, ela colaborou com o Centro de Estudos Africanos, onde ela
conheceu Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto e Francisco José Tenreiro,
as personagens que mais tarde se tornariam os representantes mais importantes da luta pela
independência dos países africanos sob o domínio colonial português. Em Lisboa ela trabalhou
como tradutora numa agência de notícias, graças ao seu conhecimento de inglês e francês.
Noémia de Sousa partiu para a França em 1964 com o seu marido, Gualter Soares, mas
voltou a Lisboa em 1973, depois de se ter separado do seu marido. Aí começou a trabalhar para
a Reuters, uma agência de notícias britânica, e depois para a Lusa, uma agência de notícias
portuguesa. Continuou a morar em Portugal, onde faleceu a 4 de dezembro de 2002, em
Cascais.49

46
Chabal 1994, 114
47
Sousa 2008, 3
48
Owen 2007, 47
49
Cf. Owen 2007, 45; Saúte 2001, 19

12
Apesar de não estarem reunidos em livro, os seus poemas tinham um impacto grande em
todos os países africanos de língua portuguesa, não apenas em Moçambique. Conforme Nelson
Saúte, os poemas de Noémia de Sousa “tinham sido adotados para estudos nos compêndios da
escola da FRELIMO na Luta Armada e agora eram lidos nas escolas moçambicanas”.50 Noémia
publicara os seus poemas em publicações moçambicanas como O Brado Africano,
Moçambique 58, Msaho, Itinerário, mas também em publicações estrangeiras como Mensagem
(Angola), Vértice (Portugal), Notícias do Bloqueio (Portugal), e Sul (Brasil).
Além disso, os poemas de Noémia de Sousa haviam sido incluídos em muitas antologias
de poesia da época, o que facilitou a divulgação dos seus poemas no continente africano, mas
também no resto do mundo. A Casa dos Estudantes do Império editou e publicou várias
antologias de poesia entre 1951 e 1953 que incluíam a poesia de Noémia de Sousa. Em 1953,
Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro publicaram O Caderno de Poesia Negra de
Expressão Portuguesa, em que reuniram poemas de Alda do Espírito Santo, Francisco José
Tenreiro, Agostinho Neto, António Jacinto, Viriato da Cruz e Noémia de Sousa. Neste caderno,
Mário Pinto de Andrade refere-se a Noémia de Sousa como “a voz da circunstancialidade negra
de Moçambique” e “a voz singular das moças das docas, das irmãs do mato, dos que voltam
das minas do Rand, magaíças”.51
Mário Pinto de Andrade também foi responsável pela organização de duas outras
antologias: Poesia negra de expressão portuguesa (1958), e Antologia temática de poesia
africana em dois volumes (o primeiro volume, Na noite grávida dos punhais, foi publicado em
1975, e o segundo volume, O canto armado, em 1979). Manuel Ferreira incorporou a poesia
de Noémia de Sousa no terceiro volume da antologia No reino de Caliban, publicado em 1985.
Fátima Mendoça e Nelson Saúte colaboraram na organização da Antologia da nova poesia
moçambicana em 1993, que precedeu a publicação do livro Sangue Negro, organizado por
Nelson Saúte em 2001.
A obra de Noémia de Sousa faz hoje parte de numerosas antologias moçambicanas e
africanas (angolanas, zambianas e argelinas), mas também aparece em antologias de poesia do
Brasil, dos Estados Unidos e de vários países europeus, como as de Portugal, Bélgica, Itália,
França e o Reino Unido. Noémia de Sousa é considerada por Nelson Saúte a “mãe dos poetas
moçambicanos”52, enquanto José Craveirinha intitula-a “cantadora dos esquecidos, […] o
poeta número um de Moçambique, o poeta dos versos que exprimem dor, desenganos, orgulho

50
Saúte 2001, 20
51
Andrade e Tenreiro 2000, 17
52
Saúte 2001, 24

13
e ameaças, mas esmola nunca”.53 Pires Laranjeira também nota que Craveirinha considera
Noémia

uma poetisa verdadeiramente moçambicana, com uma “mensagem única rescendendo


a seiva de cajueiros e micaias quando ela diz ‘nossa voz shipalapala’” e o “mocharisse
dia péla dambo” (pássaro que na hora do crepúsculo solta o seu mais belo canto), devido
à sua “devoção e orgulho de africana”, porque a sua poesia é “cem por cento africana”
e “seus poemas é ela cantando para a sua mãe África” e todos os seus “irmãos de
destino”.54

4.1. Sangue Negro

Noémia de Sousa escreveu os 43 poemas do caderno policopiado Sangue Negro entre 1948
e 1951. Conforme Coelho, “[d]o caderno, saiu uma versão intitulada Poemas inéditos (1964),
ed. da CEI com apenas 40, e corre em Moçambique uma outra, fotocopiada, com o mesmo
número de textos”.55
Embora os poemas circulassem em vários jornais, revistas e sítios da internet, não foram
publicados em livro até 2001. Nelson Saúte foi responsável pela organização dos poemas em
livro, intitulado Sangue Negro. O livro foi publicado com o apoio da Associação dos Escritores
Moçambicanos. A própria Noémia deu a sua permissão para publicação dos poemas em livro,
mas “não o releu, nem o corrigiu, tendo concordado que os poemas permaneceriam na versão
(original) policopiada, que se encontra depositada no Arquivo Histórico de Moçambique,
devendo apenas ser atualizada a respetiva ortografia”.56
A coletânea Sangue Negro contem 46 poemas “carregados do sentimento de resistência ao
colonialismo”.57 De acordo com Freitas, os poemas “enfatizam a ideia de que os negros
africanos estão conscientes de seus valores e precisam enfatizá-los através de vários meios”.58
Os poemas são organizados em seis grupos temáticos: Nossa voz, Biografia, Munhuana 1951,
Livro de João, Sangue Negro, e Dispersos. Ao lado dos 43 poemas do caderno policopiado, a

53
Craveirinha 2000, 102
54
Laranjeira 1995, 269
55
Coelho 2003, 735
56
Saúte 2001, 23
57
Bonini 2016, 108
58
Freitas 2010, 9

14
coletânea Sangue Negro contem mais três poemas, organizados no último grupo temático
intitulado Dispersos.
Conforme Pires Laranjeira, o livro Sangue Negro é dedicado a dois amigos de Noémia de
Sousa. Um deles é João Mendes, a quem Noémia dedicou uma secção de poemas inteira,
intitulada Livro de João.59 No início do livro, aparecem duas epígrafes – “Um escarro no rosto
não tem expressão sente-se”, de Miguel Torga, e “Para quem espera, como nós, é sempre a
hora de cantar”, de Carlos de Oliveira.
O primeiro grupo temático, Nossa Voz, é composto por seis poemas: Nossa voz; Nossa irmã
a lua; Súplica; Abri a porta companheiros; Passe; e Justificação. Todos os seis poemas tratam
da solidariedade negra e estão escritos na primeira pessoa do plural, com concordância
masculina/neutra. Conforme Elenor K. Jones, isto implica que Sousa está a falar para mulheres
e homens negros. Jones ainda nota que os poemas do primeiro grupo temático têm sido
interpretados como uma afirmação de solidariedade e identificação com uma hipotética
universalidade de experiência negra.60
Depois segue Biografia, composta por oito poemas: Se me quiseres conhecer; Poema da
infância distante; Shimani; Deixa passar o meu povo; Poema para um amor futuro; Poema;
Se este poema fosse; e Instantâneo. O próprio título desta secção sugere que estes poemas
foram escritos de maneira mais biográfica. Noémia de Sousa identifica-se nestes poemas com
o povo negro e exprime os seus desejos de reivindicação das raízes africanas. Ela torna-se a
voz dos oprimidos e grita “seu grito inchado de esperança”.61
O terceiro grupo temático, Munhuana 1951, é composto por catorze poemas: Porquê;
Canção Fraterna; Negra; Irmãozinho negro tem um papagaio de papel; Lição; Patrão;
Magaíça; Zampungana; Cais; Moça das docas; Apelo; Samba; O homem morreu na terra do
algodão e Dia a dia. Esta secção deve o nome ao distrito onde Noémia de Sousa morava com
a sua família depois da morte do seu pai. Os poemas que fazem parte desta secção falam sobre
pessoas pobres, pessoas oprimidas, escravos, irmãos negros, patrões que batem nos negros,
magaíças, moças das docas, morte e esperança.
Seis poemas fazem parte do antepenúltimo grupo temático intitulado Livro de João. Estes
são: Poema; Descobrimento; Carta; Grito; Um dia; e Poema de João. Esta secção é dedicada
a João Mendes, um amigo branco de Noémia de Sousa, que foi preso e depois exilado para
Angola. Conforme Owen, Sousa deu um nome bíblico a esta secção, de acordo com o Livro de

59
Laranjeira 1995, 270
60
Jones 2015, 131
61
N. de Sousa 2001, 50

15
João que faz parte do Novo Testamento. Desta maneira, Sousa evoca uma forma de
messianismo marxista, representando João Mendes como Cristo, a personagem que irá salvar
as pessoas,62 o que é evidente no Poema de João, onde Sousa se refere a João Mendes como
“João que seria Cristo por nós”.63 O tema comum destes seis poemas é o da luta – “luta que
prossegue sempre, cada vez mais firme,/ cada vez mais certa”.64 Noémia de Sousa considera
João Mendes o seu “irmão branco”, “companheiro branco” que “nos estendeste tua mão aberta
de jovem/e nos trouxeste a luminosa certeza da nossa redenção”.65 Apesar de ser branco, João
Mendes lutou pela independência do povo negro moçambicano porque achava que todas as
pessoas são iguais e têm direito a ser livres, não importa qual seja a cor da sua pele: “Povo é
sempre Povo, em qualquer pedaço do mapa!”66
O penúltimo grupo temático, Sangue Negro, abrange nove poemas: Poesia não venhas!;
Solidão; Poema para Rui de Noronha; Godido; Poema; A Billie Holiday, cantora; Poema a
Jorge Amado; Bayete e Sangue Negro. Quase todos os poemas, com exceção de Poema a Jorge
Amado, estão escritos na primeira pessoa do singular. O Poema a Jorge Amado está escrito na
primeira pessoa do plural. Outra coisa que estes poemas têm em comum é o facto de estarem
dedicados a alguém – Erico Cantro, Rui de Noronha, João Dias, Billie Holiday, Jorge Amado,
e Rui Knopfli. Apenas Sangue Negro, Poesia não venhas! e Poema não contêm nenhuma
dedicação. Esta secção abrange uma variedade de temas e motivos: de dor, cansaço, solidão,
nostalgia e resignação, a revolta, luta para uma nova África, e revalorização das raízes
africanas. Em dois poemas, Poema e Bayete, o eu-lírico dirige-se diretamente aos
colonizadores. No Poema, o eu-lírico levanta a sua cabeça e grita “Basta!”67, enquanto no
Bayete, o eu-lírico se recusa a ser subordinado e a agradecer aos colonizadores, fazendo-lhes
uma pergunta direta:
- Depois de tudo isto,
não achas demasiado exigir-me que baixe a lança e o escudo
e, de rojo, grite à capulana vermelha e verde
que me colocaste à frente dos olhos: BAYETE?68

62
Owen 2007, 60
63
N. de Sousa 2001, 118
64
Ibid., 108
65
Ibid., 111
66
Ibid., 110
67
Ibid., 133
68
Ibid., 139

16
Apenas três poemas constituem o último grupo temático, intitulado Dispersos: Quero
conhecer-te África; 19 de Outubro; e A Mulher que ria à Vida e à Morte. Os poemas Quero
conhecer-te África e A Mulher que ria à Vida e à Morte estão escritos na primeira pessoa do
singular, enquanto o poema 19 de Outubro tem a forma de um canto em que aparecem a solista
mulher, o coro feminino e o coro de homens e mulheres. O poema Quero conhecer-te África
foi publicado em 1951 em Para uma cultura moçambicana. O tema do poema é o desejo do
eu-lírico de conhecer a África melhor e integrar-se com ela. Sousa escreveu o poema 19 de
Outubro em 1986, por altura de morte do Samora Machel. A própria Noémia disse que tinha
escrito esse poema para a cerimónia fúnebre de Samora:

Mas isto é uma coisa especial, porque não era para ser publicada em jornal, era para ser
dito por um coro de mulheres e uma voz de mulher e para acompanhar um documentário
sobre a cerimónia fúnebre do Samora. Soube depois que a coisa não foi realizada. Era
uma coisa que daria para a rádio, mas não dava para acompanhar as imagens. Depois,
no ano seguinte, no dia dos heróis, o meu sobrinho deu aquilo ao Mia Couto, para se
fazer daquilo um trabalho com um grupo de teatro. E acho que fizeram uma coisa com
isso, em que chorou tudo…69

O tema do poema é a imortalidade de Samora Machel, “[e]ste que morreu mas está vivo”.70 No
poema, a autora afirma que Samora Machel terá uma vida eterna, porque ele continuará a viver
através da luta dos seus companheiros:
Ele diz
a melhor maneira de chorar
um companheiro morto é continuar a luta.71

O poema A Mulher que ria à Vida e à Morte foi publicado em A meu ver, de Carlos Pinto
Coelho. Neste poema, Noémia de Sousa finalmente se reconcilia com os seus “espíritos
ancestrais” e “ri à vida e à morte”.72

69
Chabal 1994, 118
70
N. de Sousa 2001, 147
71
Ibid., 148
72
Ibid., 149

17
4.2. Poética e estilo de Noémia de Sousa
4.2.1. A voz poética de Noémia de Sousa

Segundo Pires Laranjeira,

é fundamental compreender que a escrita dos 43 poemas do caderno policopiado


Sangue Negro, de Noémia de Sousa, nos anos de 1948-51, em Lourenço Marques (hoje
Maputo), […] transforma radicalmente a perceção da literatura que se fazia em
Moçambique, passando a haver, de imediato, nesses e noutros círculos (de Angola e
Portugal), a ideia clara de que a moçambicanidade sem ambiguidades acabava de
nascer.73

Para Laranjeira, José Craveirinha talvez seja o pai da moçambicanidade, mas é Noémia de
Sousa a mãe da moçambicanidade. José Craveirinha e Noémia de Sousa desempenharam um
papel importante na construção de uma literatura moçambicana, graças ao seu engajamento na
construção da nação moçambicana. Eles foram responsáveis pela inauguração de um novo
estilo de poesia – a poesia combativa. A poesia deles era uma forma de criticar o colonialismo
e a opressão portuguesa, mas, ao mesmo tempo, conscientizar os negros do valor das suas raízes
africanas.

Chabal também fala de José Craveirinha e Noémia de Sousa no contexto da


moçambicanidade, afirmando que eles estavam conscientes de que estavam a produzir uma
literatura nacional.74 O papel de José Craveirinha e Noémia de Sousa na construção daquilo
que “foi, é, ou virá a ser a moçambicanidade”75 só foi visível posteriormente:

Assim, a realidade da moçambicanidade não é deduzida a partir das afirmações de


intenção feitas, na altura, por alguns escritores, mas pela influência que alguns textos
tiveram no desenrolar subsequente da literatura.76

A poesia de Noémia de Sousa trata de questões do coletivo – da nação moçambicana,


oprimida por muito tempo, e da valorização das raízes africanas e da cultura negra. Segundo
Freitas, o “eu” nos poemas de Noémia de Sousa representa o coletivo do povo moçambicano
que reivindica o seu direito de ter voz, de se expressar.77 Freitas ainda nota que Sousa se afirma
como porta-voz do povo moçambicano – ela pede perdão à sua Mãe-África por se ter alienado

73
Laranjeira 1995, 268
74
Chabal 1994, 53-54
75
Ibid., 54
76
Ibid.
77
Freitas 2010, 6

18
dela por tanto tempo, ou pede que a Mãe-África proteja os seus irmãos moçambicanos.78 Sousa
escreveu os seus poemas para “dar voz àqueles que não têm voz […] e reivindicar qualquer
coisa”.79
Muitos críticos reconhecem a influência do Neorrealismo europeu, do Modernismo
brasileiro e dos movimentos literários norte-americanos e antilhanos nos poemas de Noémia
de Sousa. No caso de Noémia de Sousa, a influência dos movimentos literários da época
resultou no aparecimento de uma Negritude intuitiva:

Embora a poetisa não conhecesse a Négritude francófona quando escreveu os poemas


(segundo o seu testemunho), a específica situação colonial de Moçambique, mais dada
à discriminação racial do que Angola, e o seu conhecimento de língua francesa e
inglesa, permitiram que as mesmas fontes (Black Renaissance norte-americana,
Indigenismo Haitiano e Negrismo Cubano), associadas à divulgação do Neo-realismo
e do Modernismo em Moçambique, originassem um discurso de Negritude intuitiva.80

A própria autora nota que não estava familiarizada com o que estava a acontecer na literatura
da Negritude em França antes de escrever os seus poemas:

Eu nem sabia que existia essa coisa, que se chamava “negritude”! Sabe que as
influências dali eram todas de língua inglesa, era raro chegar qualquer coisa francesa.
Não sabia nada o que estavam os outros a fazer, os Senghor e companhia só vim a
conhecer cá em Lisboa.81

Afirma, além disso, que a sua poesia era influenciada pelos movimentos americanos e pelos
neorrealistas portugueses – Joaquim Namorado, Miguel Torga, Jorge Amado.82 Nos poemas
de Noémia de Sousa, a descrição da realidade, da sociedade e das relações sociais é tipicamente
neorrealista. Sousa descreve ambientes opressivos e miseráveis e critica a injustiça social e a
miséria do povo negro. A autora usa figuras-personagens emblemáticas (moças das docas,
magaíças, zampunganas) e temas universais de denúncia (prostituição, trabalho forçado,
exploração, dominação, revolta, luta, esperança).
Noémia de Sousa inspirou-se no Pan-Africanismo e na solidariedade negra, mas também
nos temas recorrentes das literatura e cultura afro-americanas – a celebração das tradições e

78
Freitas 2010, 6
79
Chabal 1994, 117
80
Laranjeira 1995, 269-270
81
Chabal 1994, 117
82
Ibid., 118

19
culturas africanas, a exaltação da raça e da cor negras, a recusa da superioridade das culturas
europeias, a segregação, a escravidão, o trabalho forçado, a revolta, a miséria, a solidariedade,
a esperança, a nostalgia, a revolução, a independência. Ela procurou estabelecer um diálogo
entre os seus irmãos negro-americanos e moçambicanos, “um diálogo entre as vozes africanas
e textos culturais advindos de outras searas, com a distante América do Norte”. 83 Quando se
considera o facto de que a cultura negro-americana influenciar Noémia de Sousa, deve-se
salientar que ela dedicou um poema a Billie Holiday, a famosa cantora negro-americana, sua
“irmã americana”84. Neste poema – A Billie Holiday, cantora – Noémia de Sousa exprime as
mesmas ideias que expressavam os participantes do movimento do Renascimento Negro – ela
fala sobre os problemas dos seus irmãos negros, está consciente do papel que eles tinham na
formação das nações que agora excluem o povo negro e o oprimem:

Com a tua voz, irmã americana, veio


todo o meu povo escravizado sem dó
por esse mundo fora, vivendo no medo, no receio
de tudo e de todos…
O meu povo ajudando a erguer impérios
e a ser excluído na vitória…
A viver, segregado, uma vida inglória,
de proscrito, de criminoso…85

Os motivos típicos da Negritude também se podem encontrar na poesia de Noémia de Sousa


– a África, o negro, a Mãe-Negra, e a revalorização das raízes africanas e das tradições culturais
africanas. Além disso, no discurso poético de Noémia de Sousa, os procedimentos típicos dos
movimentos afro-americanos e antilhanos misturam se com os da Negritude. Pode-se observar
nos seus poemas que Sousa rejeita a superioridade das tradições portuguesas e da cultura
portuguesa e celebra as tradições e culturas africanas. Imitando o som do tambor e misturando
palavras de origem ronga com a língua portuguesa, Sousa revaloriza a cultura africana e celebra
as suas raízes africanas. Segundo Freitas, a produção literária de Noémia de Sousa “é marcada
pela presença constante das raízes profundamente africanas, abrindo os caminhos da exaltação
da Mãe-África, da glorificação dos valores africanos, do protesto e da denúncia”.86

83
Alós 2011, 65
84
N. de Sousa 2001, 134
85
Ibid., 135
86
Freitas 2010, 5

20
Além dos temas e motivos que exaltam a África e as raízes africanas, Noémia de Sousa é
uma das primeiras escritoras moçambicanas que chamou a atenção para a questão das mulheres
moçambicanas. Nos seus poemas ela explorou as experiências das mulheres negras, mestiças
e mulatas em Moçambique. Conforme Owen, Sousa falava das experiências específicas das
mulheres dentro do âmbito da miscigenação e da assimilação.87 Assim, Owen salienta que
Noémia de Sousa mostrou o impacto que a miscigenação e a assimilação tiveram nela – uma
filha mestiça, privada das suas raízes maternas africanas, uma vez que a assimilação à família
branca paterna portuguesa acarretava a rejeição das raízes da mãe africana.88 Embora não se
possa falar de Noémia de Sousa como uma autora feminista, deve-se salientar que

a escrita de Noémia presentifica a mulher como ser ativo e militante em relação às


causas políticas de seu país, assim prova que o ente feminino tem poder de despertar
em sua nação espíritos como os da consciência da coletividade e do patriotismo.89

A voz poética de Noémia de Sousa também se aproxima da literatura oral. Os seus poemas
possuem elementos da oralidade – repetições, exclamações, forma de cantos – que servem para
construir um discurso poético que se reconcilia com as raízes africanas e a tradição africana.
De acordo com Neves e Souza, nos versos de Noémia de Sousa existem marcas de oralidade
que possibilitam que o leitor possa ouvir as vozes dos contadores de histórias tradicionais orais
africanas.90 Neves e Souza reconhecem algumas marcas de oralidade nos versos de Noémia de
Sousa – a inserção de vocábulos de origem ronga, a oposição Eu-Nós vs. Tu e Eu/Nós vs. Vós,
a referência à música e às tradições africanas.91
Noémia de Sousa refere-se aos instrumentos africanos, tal como o tambor, várias vezes nos
seus poemas, mas também os interliga com os ritmos de blues, jazz e samba. O som do tambor
aparece em quase todos os seus poemas – “[t]al elemento faz ressoar a sua voz poética que
mantém em foco a cultura africana”.92

87
Owen 2007, 47-48
88
Ibid.
89
Freitas 2010, 12
90
Neves e Souza 2015, 2
91
Ibid., 5-6
92
Ibid., 7

21
4.2.2. Estilo

É um facto que os poemas de Noémia de Sousa se aproximam da literatura africana oral.


Uma das características essenciais da literatura africana oral é o ritmo. Conforme Cvjetičanin,
o ritmo na literatura oral vem das repetições – as repetições reforçam o sentido dos poemas
sendo um dos elementos mais significativos da herança cultural africana.93
O ritmo nos poemas de Noémia de Sousa tem um lugar de destaque. Através do ritmo, da
oralidade, da musicalidade e dos recursos estilísticos, a autora traz os ritmos africanos aos seus
versos:

A valorização do ritmo, da musicalidade, da repetição de termos e expressões, das


frases feitas, das sentenças, dos ditos e dos refrões, aspetos oriundos da oratura,
enriquecem o fazer poético de Noémia de Sousa, que estabelece um pacto com o
contexto, com a histórica local, o que reforça a autenticidade de sua poesia vincada na
moçambicanidade.94

Os poemas são escritos em verso livre, mas o ritmo surge do procedimento característico
da literatura oral: intensificação através da repetição. A autora repete certas palavras e usa
muitas anáforas. Além do uso das anáforas, vale a pena ressaltar que a autora também usa
vários recursos estilísticos nos seus poemas que contribuem para o ritmo: a prevalência da
adjetivação, da anáfora, da aliteração, da parataxe, da exclamação. 95 Nikica Talan nota, além
disso, o uso da elipse, do vocativo, da hipérbole, e da enumeração.96 Nos poemas de Noémia
de Sousa, são notáveis a abundância dos verbos e a alteração entre versos longos e versos
curtos. A autora recorre, também, ao uso das perguntas retoricas, como, por exemplo no poema
Porquê:

Por que é que as acácias de repente


floriram flores de sangue?
Por que é que as noites já não são calmas e doces,
por que são agora carregadas da electricidade
e longas, longas?
Ah, por que é que os negros já não gemem,
noite fora,

93
Cvjetičanin 1974, 430
94
Oliveira 2008, 72
95
Noa 2001, 153
96
Talan 2015, 164

22
por que é que os negros gritam,
gritam à luz do dia?97

Quanto à prevalência da adjetivação, na sua poesia a cor negra é predominante – “almas


sombrias”, “noite escura”, “voz negra”, “noites mulatas”, “mãos negras”, “batuques noturnos”,
“pau preto”, “irmão negro”, “noites deslumbrantes”, “capulana negra”, “rostos negro”, “cais
negro”, “indiferença sombria”, “navios negreiros”, “terra negra”, “cocuana negra”, “sangue
negro”, “virgem negra”, “vembas negras”. Noémia de Sousa usa os adjetivos que se associam
com a escuridão e a cor negra para descrever as difíceis condições de vida dos negros.
A autora também usa adjetivos e nomes – “fogueiras acesas”, “bailes frios iluminados”,
“lume da revolta”, “cenário brilhante”, “maravilhosa descoberta”, “camaradagem luminosa”,
“alegria radiante”, “eterno brilho de resignação”, “olho luminoso”, “Sol maravilhoso”, “luz
clara”, “sinais luminosos” – que se associam com a luz para chamar a atenção para a esperança
do povo negro. Sousa associa este tipo de adjetivos e nomes aos camaradas que lutam pela
libertação do país. O poema, Poema da infância distante, do qual transcreveremos um trecho,
demonstra essa ideia:
Eles me encheram a infância do sol que brilhou
no dia em que nasci.
Com a sua camaradagem luminosa, impensada,
sua alegria radiante,
seu entusiasmo explosivo diante
de qualquer papagaio de papel feito asa
no céu dum azul tecnicolor,
sua lealdade sem código, sempre pronta,
- eles encheram minha infância arrapazada
de felicidade e aventuras inesquecíveis.98

Vale a pena ressaltar que a poesia de Noémia de Sousa, além de se aproximar da literatura
oral, é cheia de emoção:

Antes de mais, convém salientar que a poesia de Noémia de Sousa se organiza num
discurso oralizado, exaltado, pleno de emoção. Assim, a enunciação caracteriza-se por
uma relação de permanente diálogo e interpelação entre o locutor e o alocutário. As

97
N. de Sousa 2001, 73
98
Ibid., 53

23
expressões interjeicionais, as exclamações, as reticências, os vocativos e apelativos, e
outros recursos de proximidade entre os interlocutores da enunciação, tipificam um
discurso não analítico, não tão distanciado do objeto […].99

Este estilo patético serve para transmitir a mensagem que a própria autora quer transmitir a
todos os seus leitores – que o objetivo da sua escrita é “dar voz àqueles que não têm voz”100
No que se refere à temática, Francisco Noa afirma que os temas recorrentes da poesia de
Noémia de Sousa são – a revolta, a valorização racial e da cultura, a infância, a esperança, a
angústia e a injustiça.101 Ao mesmo tempo, Freitas propôs dois temas principais da poesia de
Noémia de Sousa, que surgem da já mencionada dicotomia “nós/outros” – “nós” os de origem
africana, os “outros”, os colonizadores. O primeiro tema é “a contínua denúncia da total
incompreensão por parte do colonizador, que apenas capta a superficialidade dos rituais, não
compreendendo o âmago de África, demostrando, desta forma, uma visão plenamente
distorcida”, enquanto o segundo tema é “elogio aberto à raça negra, gritando bem alto e de
forma plenamente percetível que a presença do colonizador em África é sinônimo de força que
apenas veio denegrir a imagem daquela terra”. 102

99
Laranjeira 1995, 270
100
Talan 2015, 164
101
Noa 2001, 153
102
Freitas 2010, 6

24
5. Análise de canções

A parte central deste trabalho de conclusão de curso baseia-se na análise dos poemas de
Noémia de Sousa, organizados no livro Sangue Negro. Os poemas analisados podem ser
encontrados na primeira edição do livro Sangue Negro, publicado em 2001. Importa ressaltar
que esta análise foca apenas dez poemas, devido ao escopo e tamanho deste trabalho.
Os poemas que serão analisados são os poemas mais divulgados e conhecidos de Noémia
de Sousa: Nossa voz; Se me quiseres conhecer; Deixa passar o meu povo; Magaíça; Negra;
Um dia; Poema para Rui de Noronha; Godido; A Billie Holliday, cantora e Sangue Negro.
Segundo Pires Laranjeira, estes poemas são a melhor representação da poesia de Noémia de
Sousa e da sua africanidade e moçambicanidade.103
Quanto às temáticas desses poemas, vale ressaltar que as características comuns são a
inclusão dos motivos africanos e a exaltação da cor negra, as características típicas da
Negritude. Assim, esta análise pretende demonstrar que existe uma relação entre a Negritude e
a poesia de Noémia de Sousa, mesmo que ela seja indireta.

5.1. Nossa voz

O poema Nossa voz é o primeiro poema no livro Sangue Negro, da secção intitulada Nossa
voz. O poema é dedicado a José Craveirinha, um amigo e camarada de Noémia de Sousa.

Ao J. Craveirinha
Nossa voz ergueu-se consciente e bárbara
sobre o branco egoísmo dos homens
sobre a indiferença assassina de todos.
Nossa voz molhada das cacimbadas do sertão
nossa voz ardente como o sol das malangas
nossa voz atabaque chamando
nossa voz lança de Maguiguana
nossa voz, irmão,
nossa voz trespassou a atmosfera conformista da cidade
e revolucionou-a
arrastou-a como um ciclone de conhecimento.

103
Laranjeira 1995, 270

25
E acordou remorsos de olhos amarelos de hiena
e fez escorrer suores frios de condenados
e acendeu luzes de esperança em almas sombrias de desesperados…

Nossa voz, irmão!


nossa voz atabaque chamando.

Nossa voz lua cheia em noite escura de desesperança


nossa voz farol em mar de tempestade
nossa voz limando grades, grades seculares
nossa voz, irmão! nossa voz milhares,
nossa voz milhões de vozes clamando!

Nossa voz gemendo, sacudindo sacas imundas,


nossa voz gorda de miséria,
nossa voz arrastando grilhetas
nossa voz nostálgica de ímpis
nossa voz África
nossa voz cansada da masturbação dos batuques de guerra
nossa voz negra gritando, gritando, gritando!
Nossa voz que descobriu até ao fundo,
lá onde coaxam as rãs,
a amargura imensa, inexprimível, enorme como o mundo,
da simples palavra ESCURIDÃO:

Nossa voz gritando sem cessar,


nossa voz apontando caminhos
nossa voz xipalapala
nossa voz atabaque chamando
nossa voz, irmão!
nossa voz milhões de vozes clamando, clamando, clamando!

O poema contém seis estrofes e 38 versos, é escrito na primeira pessoa do plural e o eu-
lírico identifica-se com o coletivo – o povo moçambicano na sua totalidade. No primeiro verso,
a autora usa os adjetivos “consciente” e “bárbara” para descrever a voz do povo moçambicano.
O uso do adjetivo “consciente” indica que o povo moçambicano está consciente do papel que
eles têm na formação da nação moçambicana. Segundo Pires Laranjeira, o vocabulário do

26
primeiro verso (pensa-se, cremos nós, no adjetivo “bárbara”, atribuído à voz do povo
moçambicano) “pode entender-se como uma parcial cedência à superficialidade do estereótipo
africanístico herdado do exotismo da literatura colonial(ista)”.104
No segundo verso, a autora atribui qualidades negativas aos brancos – “branco egoísmo”.105
Sousa associa as características negativas com a cor branca, ou seja, os colonizadores.
Conforme Freitas, Sousa atribui a cor branca aos colonizadores, mas também aos negros que
se assimilaram com os brancos e rejeitaram a sua história, cultura, identidade, acabando a matar
os seus próprios irmãos negros.106
A autora usa contrastes para descrever as coisas positivas e as coisas negativas. Ela associa
a luz com os negros, e a escuridão com as coisas negativas. Este uso do contraste é notável no
verso “e acendeu luzes de esperança em almas sombrias de desesperados”.107 À esperança do
povo negro em ter uma vida melhor, a autora atribui a luz, mas ao mesmo tempo, as almas dos
negros estão sombrias porque eles tinham sido oprimidos por muito tempo. O início da quarta
estrofe também contém dois contrastes:

Nossa voz lua cheia em noite escura de desesperança


nossa voz farol em mar de tempestade108

Sousa compara a voz do povo moçambicano com a lua, mais uma vez associando a luz com os
negros. A voz do povo moçambicano é “farol em mar de tempestade”109 – este farol fornece a
luz e vai guiar o povo moçambicano no seu caminho para a independência.
Deve-se salientar o uso de exclamações e a inserção das palavras de origem ronga – os
procedimentos típicos do estilo de Noémia de Sousa. A autora usa exclamações para convocar
o povo moçambicano a se unir e lutar pela independência. Pela mesma razão, mas também para
fazer lembrar aos seus irmãos moçambicanos as suas raízes africanas, ela insere as palavras de
origem ronga nos seus versos. Neste poema, de Sousa usa a palavra “xipalapala”, o nome de
uma corneta usada para convocar o povo110, e a palavra “batuque”, que se refere ao som do

104
Laranjeira 1995, 270
105
N. de Sousa 2001, 33
106
Freitas 2010, 3
107
N. de Sousa 2001, 33
108
Ibid.
109
Ibid.
110
Laranjeira 1995, 380

27
tambor111. Usando o nome da chefe tribal, “Maguiguana”112, e o nome do bairro de Lourenço
Marques, “malanga”113, a autora salienta que o espaço do poema é Moçambique.
Noémia de Sousa dirige-se a José Craveirinha, chamando-o “irmão”. Ela convida-o a
participar na luta pela independência. Como nota C. M. Sousa, a última estrofe deste poema
aponta ao convite de Noémia de Sousa, ou seja, do povo moçambicano, dirigido a José
Craveirinha para participar na luta.114 Os versos de Noémia de Sousa cantam o som do atabaque
e da xipalapala “na evocação para a liberdade, enunciada no protesto que vibra das palavras de
cada ser que se fez ativo na confrontação do sistema vigente”.115

5.2. Se me quiseres conhecer

O poema Se me quiseres conhecer é o primeiro poema da secção intitulada Biografia. Sousa


dedicou o poema a Antero. O objeto do poema é uma escultura de pau preto, com a qual o eu-
lírico se identifica. Segundo Owen, “um desconhecido irmão maconde” retrabalhou uma
escultura cristã para fazer uma declaração religiosa que traz a ameaça oculta da luta iminente
contra o poder colonial.116 Esta figura de pau preto não leva em seu corpo o Jesus Cristo, mas
a revolução futura.117 Deve-se salientar a data da escrita do poema – 25 de dezembro de 1949
– porque a data evoca o dia do nascimento de Jesus Cristo, ou seja, no caso deste poema, a data
do nascimento da revolução contra o poder colonial.

Para Antero

Se me quiseres conhecer,
estuda com os olhos bem de ver
esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde
de mãos inspiradas
talhou e trabalhou
em terras distantes lá do Norte.

Ah, essa sou eu:

111
https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/batuque
112
Laranjeira 1995, 374
113
Ibid., 375
114
C. M. Sousa 2008, 7
115
Ibid.
116
Owen 2007, 56
117
Ibid.

28
órbitas vazias no desespero de possuir a vida,
boca rasgada em feridas de angústia,
mãos enormes, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura…
Torturada e magnífica,
altiva e mística,
África da cabeça aos pés,
- ah, essa sou eu:

Se quiseres compreender-me
vem debruçar-te sobre minha alma de África,
nos gemidos dos negros no cais
nos batuques frenéticos dos muchopes
na rebeldia dos machanganas
na estranha melancolia se evolando
duma canção nativa, noite dentro…

E nada mais me perguntes,


se é que me queres conhecer…
Que não sou mais que um búzio de carne,
onde a revolta de África congelou
seu grito inchado de esperança.

25/12/1949

O poema é escrito na primeira pessoa do singular e contém quatro estrofes e 30 versos. É


um convite ao leitor a conhecer o eu-lírico do poema, ou seja, a própria Noémia de Sousa. A
autora utiliza verbos na segunda pessoa do singular para se dirigir diretamente ao leitor do
poema, estabelecendo um diálogo com ele. O eu-lírico convida o leitor a estudar arte popular
de Moçambique, uma escultura maconde. Identificando-se com a escultura de pau preto, a
autora aceita as suas raízes africanas e valoriza a cultura africana. A autora também usa palavras
de origem ronga – “batuques”, “muchopes”, “machanganas” – o que mais uma vez mostra a
aceitação do eu-lírico das raízes africanas. Referindo-se aos “batuques”, o eu-lírico convoca o
som do tambor e o ritmo das canções africanas e aproxima-se da literatura oral. A referência a
diferentes grupos étnicos, os “muchopes” e os “machanganas”, serve para indicar que os

29
diferentes grupos étnicos são uma parte constituinte de Moçambique e da nação moçambicana.
A autora salienta o sofrimento, as características culturais e as características positivas dos
diferentes grupos étnicos que se rebelam contra a opressão portuguesa.
Na segunda estrofe, pode-se observar a ideia de Pan-Africanismo, quando o eu-lírico se
identifica como “África da cabeça aos pés”. O poema torna-se um apelo aos camaradas para
defender Moçambique no âmbito da situação colonial pan-africana, a fim de sublinhar a
experiência similar em outros países africanos.118 O eu-lírico apresenta-se na primeira pessoa
do singular e descreve-se usando vários adjetivos: “órbitas vazias”, “boca rasgada”, “mãos
enormes, espalmadas”, “corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis”, “torturada e magnifica,
altiva e mística”.119 A autora usa contrastes para formar uma denúncia contra os colonizadores
– a África é ao mesmo tempo “torturada” e “altiva”, mas também “magnífica” e “mística”.
Apesar de o povo africano ter sido torturado e as terras africanas terem sido exploradas pelos
colonizadores, a África ainda continua a erguer-se, “magnífica” e “mística” como antes da
colonização. Deve-se também salientar o significado do “corpo tatuado de feridas visíveis e
invisíveis”. Segundo Freitas, este verso é a prova de que o eu-lírico deste poema se dirige aos
colonizadores portugueses.120
Na última estrofe, a autora usa o motivo do “grito”, motivo recorrente dos seus poemas.
Esta estrofe implica a insatisfação do eu-lírico (“E nada mais me perguntes,/Se é que me queres
conhecer…”)121 em relação às condições de vida do povo moçambicano e ao desinteresse dos
colonizadores de conhecer Moçambique verdadeiramente.122

5.3. Deixa passar o meu povo

O poema Deixa passar o meu povo é o quarto poema da secção Biografia. Noémia de Sousa
dedicou este poema a João Silva. “Let my people go”, a frase que se repete várias vezes no
poema, foi o título inicial do poema. Segundo Pires Laranjeira, esta frase tem a sua origem no
espiritual do norte-americano James Weldon Johnson.123 O poema foi escrito em 1950, mas foi
publicado apenas em 1953 n’O Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa,
organizado por Mário de Andrade e Francisco José Tenreiro.

118
Chipasula 1994, 151
119
N. de Sousa 2001, 49
120
Freitas 2010, 10
121
N. de Sousa 2001, 50
122
Freitas 2010, 10
123
Laranjeira 1995, 271

30
Para João Silva

Noite morna de Moçambique


e sons longínquos de marimbas chegam até mim
- certos e constantes –
vindos não sei eu donde.
Em minha casa de madeira e zinco,
abro e deixo-me embalar…
Mas vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Marian cantam para mim
spirituals negros de Harlém.
“Let my people go”
- oh deixa passar o meu povo,
deixa passar o meu povo! –
dizem.
E eu abro os olhos e já não posso dormir.
Dento de mim, soam-me Anderson e Paul
e não são doces vozes de embalo.
“Let my people go”!

Nervosamente,
eu sento-me à mesa e escrevo…
Dentro de mim,
deixa passar o meu povo,
“oh let my peoplo go…”
E já não sou mais que instrumento
do meu sangue em turbilhão
com Marian me ajudando
com sua voz profunda – minha irmã!

Escrevo…
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado
e revoltas, dores, humilhações,
tatuando de negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço,
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique,

31
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças,
algodoais, o meu inesquecível companheiro branco
E Zé – meu irmão – e Saúl,
e tu, Amigo de doce olhar azul,
pegando na minha mão e me obrigando a escrever
com o fel que me vem da revolta.
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante,
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio
- “let my people go
oh let my people go!”

E enquanto me vieram de Harlém


vozes de lamentação
e meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insónia,
não poderei deixar-me embalar pela música fútil
das valsas de Strauss.
Escreverei, escreverei,
com Robeson e Marian gritando comigo:
Let my people go,
OH DEIXA PASSAR O MEU POVO!

25/1/50

O poema constitui-se de quatro estrofes e 54 versos. A autora usou a expressão “Let my


people go” várias vezes no poema como uma exclamação, sugerindo que o povo negro
despertou e está pronto a exigir a sua liberdade. Segundo Maria Geralda de Miranda, o “povo”
a que Noémia de Sousa se refere neste poema pode ser interpretado de duas maneiras: no
primeiro caso, o “povo” são todas as pessoas de origem africana, e no segundo, o “povo” é o
povo moçambicano. Se consideramos, junto com Miranda, que o “povo” se refere aos negros
em geral, o eu-lírico está a salientar o facto de que o povo negro está reunido na esperança de
liberdade e de justiça. No segundo caso, o “povo” refere-se ao povo moçambicano, reunido na
luta contra os colonizadores portugueses e a opressão colonialista.124

124
Miranda 2001, 59

32
O eu-lírico deste poema é “um predicador localizado numa noite morna de
Moçambique”125, escutando no rádio “vozes da América” que causam perturbação na sua alma
e nos seus nervos. O eu-lírico está a escutar os “spirituals negros de Harlém”, cantados pelos
cantores negros norte-americanos Paul Robeson e Marian Anderson.
No contexto deste poema, deve-se ressaltar a influência das três vertentes do Renascimento
Negro Norte-Americano: o Black Renaissance, o New Negro e o Harlem Renaissance. Paul
Robeson e Marian Anderson eram umas das mais importantes figuras do Harlem Renaissance,
tal como a cantora Billie Holiday, à qual Sousa também dedicou um poema.
O eu-lírico deste poema inspirou-se nos espirituals do Paul Robeson e Marian Anderson e
começou a escrever o seu próprio poema, refletindo acerca da problemática dos seus irmãos
moçambicanos. Todas as personagens que inspiraram Noémia de Sousa – Zé, Saúl, Marian,
Robeson – “todos se vêm debruçar sobre o [s]eu ombro”, e obrigaram-na a escrever o seu grito.
Neste poema, a autora mais uma vez rejeita a cultura europeia, o que se pode observar no
seguinte trecho:

E enquanto me vieram de Harlém


vozes de lamentação
e meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insónia,
não poderei deixar-me embalar pela música fútil
das valsas de Strauss.126

Estes versos são uma recusa da superioridade da cultura europeia – as “valsas de Strauss” já
não estão superordenadas aos spirituals que vêm de Harlém. Sousa revaloriza assim a música
e a cultura negro-americanas. O facto é que a música e a cultura negro-americanas provêm da
África, portanto, revalorizando a cultura negro-americana, a autora também revaloriza a
tradição africana e as raízes africanas. Contudo, a recusa da superioridade da cultura europeia
não significa que a autora nega o valor estético das valsas de Strauss. Conforme Pires
Laranjeira, os autores da Negritude de expressão portuguesa

125
Laranjeira 1995, 271
126
N. de Sousa 2001, 58-59

33
ironizar[am] com a superioridade artística da música erudita europeia, sem que isso
implique necessariamente a negação da sua alta elaboração cultural e do valor estético
que a consagra como ponto alto da evolução musical.127

Portanto, o facto de Noémia de Sousa rejeitar a tradição portuguesa pode indicar a influência
da Negritude.
Segundo a interpretação de Miranda, a autora transpõe as referências ao Harlem para o
espaço moçambicano, resultando no “rompimento das fronteiras nacionais em seu apelo aos
irmãos negros” que “deixa de ter caráter meramente moçambicano, passando a ecoar
metonimicamente como a voz de todos os escritores do continente africano, submetida a
diferentes regimes de opressão colonialista”128 O eu-lírico torna-se “porta-voz do desejo
coletivo de afirmação da nacionalidade” e Noémia de Sousa “transforma o espaço literário no
lugar de onde irradia as mensagens de união e de valorização da cultura africana, inserindo,
desta forma, no contexto da moçambicanidade as ideias defendidas pela Negritude”.129

5.4. Magaíça

O poema Magaíça faz parte da secção Munhuana 1951. Uma das características do estilo
de Noémia de Sousa pode-se observar no próprio título do poema. A autora utiliza uma palavra
de origem ronga, magaíça, usada para designar os trabalhadores moçambicanos das minas da
África do Sul. Conforme Chabal,

o tema do magaíza (emigrante trabalhador nas minas da África do Sul) é uma constante
na literatura moçambicana. Significa para Moçambique o que o mesmo contratado
representa para Angola – um símbolo da exploração do trabalhador negro. A
experiência do trabalhador emigrante das minas foi, ao longo de décadas, uma rica fonte
de inspiração para os escritores moçambicanos.130

A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda


engoliu o mamparra,
entontecido todo pela algazarra
incompreensível dos brancos da estação
e pelo resfolegar trepidante dos comboios,

127
Laranjeira 2005, 53
128
Alós 2011, 67
129
Miranda 2001, 59
130
Chabal 1994, 38

34
tragou seus olhos redondos de pasmo,
seu coração apertado na angústia do desconhecido
sua trouxa de farrapos
carregando a ânsia enorme, tecida
dos sonos insatisfeitos do mamparra.

E um dia,
o comboio voltou arfando, arfando…
oh Nhanisse, voltou!
E com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
é um ser deslocado,
embrulhado em ridículo.

Às costas – ah, onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça? –


trazes as malas cheias do falso brilho
dos restos da falsa civilização do compound do Rand.
E na mão,
Magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
à cata das ilusões perdidas,
da mocidade e da saúde que ficaram soterradas,
lá nas minas do Jone…

A mocidade e saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City.

7/1/1950

O poema contém quatro estrofes e 29 versos. O sujeito do poema é um magaíça, um homem


que trabalha nas minas da África do Sul. Este magaíça é um homem desanimado, cujos sonhos
de uma vida boa não se realizaram – os seus sonhos são “sonhos insatisfeitos”. Ele teve de
partir do seu país e tentar a sua sorte fora, nas minas da África do Sul e o “seu coração” está
“apertado na angústia do desconhecido”.131 As outras pessoas chamam-no de mamparra, o
epíteto depreciativo com que se designavam os trabalhadores recém-chegados à cidade.

131
N. de Sousa 2001, 84

35
Na segunda estrofe, o magaíça volta para a terra natal, mas as condições da sua vida não
melhoraram, ele ainda se sente miserável, “um ser deslocado”.132 Ele volta a casa, trazendo
consigo “as malas cheias do falso brilho”, “das ilusões perdidas”133, apenas para descobrir que
perdeu a sua juventude, a mocidade e a saúde nas minas do Jone.
Embora a raça, cor de pele ou etnia do magaíça, não estivessem confirmadas
explicitamente, Pires Laranjeira supõe que se trata de um homem negro.134 Este poema é um
poema típico da poética neorrealista porque trata de um tema socio-económico, da alienação e
da dominação. Ainda conforme Pires Laranjeira, o poema também se pode considerar como
um poema influenciado pela poética negritudiana, tanto pelo facto de que foi publicado ao lado
do poema Deixa passar o meu povo n’O Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa,
organizado por Mário de Andrade e Francisco José Tenrerio, mas também pelo facto de o
magaíça ser negro.

5.5. Negra

O poema Negra faz parte da terceira secção do livro Sangue Negro, intitulada Munhuana
1951. Neste poema, a autora dirige-se a sua Mãe – Mãe-África. O poema foi publicado na
revista Vértice em 1950, e na Mensagem em 1952.

Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos


quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias…
Teus encantos profundos de África.

Mas não puderam.


Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedaste-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,

132
N. de Sousa 2001, 84
133
Ibid.
134
Laranjeira 1995, 271

36
animalidade, magia…
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.

Em seus formais cantos rendilhados


foste tudo, negra…
menos tu.

E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE.

23/7/49

O poema é constituído de quatro estrofes e 26 versos. Segundo Pires Laranjeira, o tema do


poema é a incapacidade das pessoas que não conhecem a cultura moçambicana de poder
escrever sobre a mulher negra. Sousa fala sobre as “gentes estranhas” que queriam escrever
sobre a mulher negra, mas acabaram a escrever sobre os “mistérios profundos,/de delírios e
feitiçarias”,135 as coisas que na opinião destes representavam a negra. Sousa não valida o que
os autores colonialistas disseram sobre a mulher negra e a África, no que se torna “a
representação mais forte da resistência da africanidade”.136
Na segunda estrofe, a autora menciona que os textos dos autores colonialistas eram
“ausentes de emoção e sinceridade”.137 Eles usaram epítetos que se associam ao “mito poético
da negra sedutora e lúbrica”,138 criando máscaras para a mulher negra. As “máscaras” variam
de “esfinge de ébano”, “amante sensual”, “jarra etrusca”, “exotismo tropical”, “demência”,
“atracção”, “crueldade”, “animalidade” e “magia”.139 Todas estas máscaras são “palavras
vistosas e vazias”,140 sem significado verdadeiro do que a mulher negra realmente é:

135
N. de Sousa 2001, 76
136
Sant’anna 2009, 68
137
N. de Sousa 2001, 76
138
Laranjeira 1995, 271
139
N. de Sousa 2001, 76
140
Ibid.

37
Em seus formais cantos rendilhados
foste tudo, negra…
menos tu.141

Na última estrofe, a autora reconhece exclusividade aos poetas negros para cantar a
verdadeira mulher negra. Ela afirma que apenas os poetas “do mesmo sangue, mesmos nervos,
carne, alma,/sofrimento” podem cantar a mulher negra “com emoção verdadeira e radical”.142
No último verso, a negra torna-se a mãe. No entanto, esta mãe é escrita em letras maiúsculas,
o que traz um novo significado para a própria palavra mãe. Segundo Pires Laranjeira, esta MÃE
ganha um novo significado – a de Mãe-Negra, mãe de todos os negros, Mãe-África:

A mulher negra, exaltada e elevada a esse cume da Mãe-África, recupera no texto a


integridade que o olhar cúpido do poeta exógeno vinha lançando sobre ela.143

5.6. Um dia

O penúltimo poema da secção intitulada Livro de João é o poema Um dia. O tema deste
poema é o da felicidade e unidade que surgirá depois da independência de Moçambique. É um
poema utópico – a autora imagina um país onde todos irão “de mãos dadas”,144 todos serão
amigos e a segregação cessará de existir. De acordo com Pires Laranjeira, este poema também
se pode definir como um texto prometeico porque trata de “uma série de desejos que se hão-de
cumprir” em Moçambique.145

Quando este nosso Sol ardente de África


nos cobrir a todos com a benção do mesmo calor,
quero ir contigo, amigo,
de mãos dadas, deslumbrados,
pelos trilhos abertos da nossa terra estranha,
adubada com sangue e suor de séculos…

Nas machambas,
o ruído repercutido de tractor

141
N. de Sousa 2001, 76
142
Ibid.
143
Laranjeira 1995, 272
144
N. de Sousa 2001, 115
145
Ibid.

38
soará como uma canção de triunfo.
Nas matas,
as tutas já não serão aves apenas
e no centro da vida,
nosso irmão negro, quebradas as grilhetas,
celebrará seu segundo nascimento
num batuque diferente de todos os outros…

Uma luz clara e doce se abrirá para todos


e nós iremos de mãos dadas,
amigo,
pelos trilhos verdes de Moçambique.

Na noite,
não mais soluçarão, estertoradas,
canções marimbadas por irmãos naufragados
(ô mamanô! ô tatanô!),
não mais a acusação muda dos olhos precoces
de crianças de ventres empinados
não mais jaulas erguidas para os inconformistas
gritando gritos de sangue
através de tudo!

Não mais, noite…


E nós iremos de mãos dadas,
amigo,
pelos trilhos abertos de Moçambique,
mergulhados no clarão eterno do dia infindável.

24/10/1949

O poema é escrito na primeira pessoa do singular e contém cinco estrofes e 33 versos. A


autora abre o poema usando a conjunção “Quando”, que indica que ela está certa de que o seu
país será independente no futuro. Se fosse diferente, ela usaria a conjunção “Se”, que indicaria
a possibilidade de Moçambique um dia ser independente. A sua terra natal foi “adubada com

39
sangue e suor de séculos”,146 o que indica que a escravidão e a opressão dos colonizadores
duraram por muito tempo.
Na segunda estrofe, a autora descreve o que será diferente depois da independência: “o
ruído repercutido de tractor/soará como uma canção de triunfo”, “as tutas já não serão aves
apenas”.147 O negro estará “no centro da vida”, celebrando “seu segundo nascimento/num
batuque diferente de todos os outros…”148 Este batuque será o som de uma canção de triunfo,
e o negro celebrará a sua vida nova que começará depois da independência.
Neste poema, a autora mais uma vez associa a luz com coisas positivas e a escuridão com
coisas negativas, o que se pode observar neste trecho:

Uma luz clara e doce se abrirá para todos


e nós iremos de mãos dadas,
amigo,
pelos trilhos verdes de Moçambique.149

A autora associa “uma luz clara e doce” com a liberdade e independência da sua terra natal.
Além disso, a cor de Moçambique é o verde – os “trilhos verdes” já não são trilhos cobertos do
sangue do povo negro. Na penúltima estrofe, Sousa enumera todas as coisas negativas que
cessarão de existir – as exclamações que exprimem dor e exaspero (“ô mamanô! ô tatanô!”), a
“acusação muda dos olhos precoces”, “jaulas erguidas para os inconformistas”, “gritos de
sangue”.150
Na última estrofe, a autora nota que não haverá mais a escuridão da noite depois da
independência e que todos os negros viverão unidos, “mergulhados no clarão eterno do dia
infindável”.151 A felicidade e a liberdade nunca cessarão de existir – serão infindáveis.

5.7. Poema para Rui de Noronha

Noémia de Sousa dedicou um poema a Rui de Noronha, um poeta moçambicano,


considerado o precursor da poesia moderna moçambicana. O poema é intitulado Poema para

146
N. de Sousa 2001, 114
147
Ibid.
148
Ibid.
149
Ibid.
150
Ibid., 115
151
Ibid.

40
Rui de Noronha e faz parte da secção Sangue Negro. Sousa escreveu o poema no aniversario
da morte de Rui de Noronha, em 25 de dezembro de 1949.

No aniversário da sua morte

Nas matas selvagens da nossa terra natal,


os trilhos abertos a golpes de catana
tomaram uma direção emocionantemente nova,
única e imutável.
Caminho com picos, ah sim, com espinhos,
mas caminho para nossos pés lanhados,
levando-nos para lá, Poeta…
Ante os novos horizontes abertos em dádiva,
nossas almas passivas aprendem a querer
com força, com raiva,
e se erguem, guerreiras, para a dura luta
e as bocas são uma linha forte e cerrada
no seu não decisivo como sentinela alerta.

Rui de Noronha,
nesta nova África de certezas e forças restauradas,
no meio dos “paixões” e das bebedeiras do Natal,
vens-me tu, torturado e solitário,
ainda projetado para os fundos abismos do teu eu,
mergulhado em verdes precipícios de tédio
e insatisfação…
Vens-me sangrando de teus amores, Poeta,
tens amores inumanos
com desesperos suicidas e orgulhos brâmanes
te tomando toda a vida de Homem.

Mas se tu me vens, Poeta,


desarmado e trágico,
eu te recolho fraternamente
na capulana quente da minha compreensão
e te embalo com a música da mais doce canção
ouvida da minha cocuana negra…
E tu dormes, Poeta,

41
dorme teu sono tão desejado,
repousa em fim dessas fictícias tragédias só tuas,
e não atentes na canção…
Deixa que a sua carícia te sare as feridas,
mas não atentes nela, não!
Que te pode despertar o xipócué do remorso
pois traz em si os feitiços mais poderosos
dos ngomas do Maputo
donde veio minha avó negra.
E talvez te pergunte, docemente:
ah, que fizeste de mim, Poeta,
cego e surdo e insensível,
que fizeste de África, Poeta?
- Que passaste e não a viste?
- Que se ergueu e não a sentiste?
- Que gritou e não a ouviste?
E os remorsos te seriam tão dolorosos
como matacanhas te invadindo o corpo todo, Poeta!

Ai dorme, dorme, Rui de Noronha,


meu irmão,
continua dormindo aprisionado
na palhota maticada do teu eu.
Não atentes na canção – é tarde…

Mas o archote, murcho e fraco,


que tuas mãos diáfanas mal logravam suster,
deixa que nós o levemos!
Embebê-lo-emos na resina das novas ânsias,
espetivá-lo-emos nas nossas fogueiras acesas,
manter-lhe-emos a vida chama
com lume das nossas esperanças sempre renovadas!

E depois, ah depois,
erguidos ao alto da Vida como um estandarte
por nossas brônzeas, fortes mãos
que a sua chama sanguínea de fulgor inextinguível

42
nos seja guia e inspiração
esporeando a revolta nascida nas veias entumecidas.

Como um cometa
atravessando a noite de nossos peitos esmagados.

25/12/49

O poema é escrito na primeira pessoa do singular e consiste em sete estrofes e 69 versos.


A autora descreve a sua terra natal como um espaço selvagem, o que está de acordo com as
descrições dos autores colonialistas que acham que a África apenas pode ser descrita como o
lugar onde não há civilização nenhuma e que os negros são pessoas “selvagens”.
O eu-lírico fala do caminho para a liberdade, que é um “caminho com picos, ah sim, com
espinhos”, ou seja, cheio de dificuldades que os negros tinham de enfrentar. No último verso
da primeira estrofe, a autora fala sobre o “não decisivo”, o não dos povos negros contra a
opressão dos colonizadores. Este “não” é o sinónimo do despertar do povo moçambicano que
começou a exigir a independência do seu país.
Na segunda estrofe, há referências à “nova África” – a África despertada, consciente de
que tem direito à liberdade. Além disso, a autora refere-se ao facto de Rui de Noronha se ter
suicidado por causa de uma desilusão amorosa152, como se pode observar neste trecho:

Vens-me sangrando de teus amores, Poeta,


tens amores inumanos
com desesperos suicidas e orgulhos brâmanes
te tomando toda a vida de Homem.153

A poetisa também pede Rui de Noronha para que ele não escreva sobre África: “não atentes
na canção…”154 Sousa pede-lhe que não escreva nenhum poema porque os seus poemas podem
resultar numa falsa descrição de África. Este poema pode, pois, considerar-se como uma crítica
dirigida a Rui de Noronha que se comportava como se não vivesse em Moçambique, em
África.155 A autora acha que Rui de Noronha já não pode escrever verdade sobre África: “Não
atentes na canção – é tarde…”156

152
Cf. Beraldo 2016, 350
153
N. de Sousa 2001, 127-128
154
Ibid., 128
155
Talan 2015, 163
156
N. de Sousa 2001, 128

43
Em vez de escrever poemas, a autora sugere a Rui de Noronha que ele deixe os outros
poetas escrever o que ele não escreveu:

Mas o archote, murcho e fraco,


que tuas mãos diáfanas mal logravam suster,
deixa que nós o levemos!157

O poeta guiará os outros poetas, será “guia e inspiração”.158

5.8. Godido

O poema Godido faz parte da secção intitulada Sangue Negro. Noémia de Sousa escreveu
este poema em memoria de João Dias, um jornalista negro cujo pai foi o editor do jornal O
Brado Africano. O poema tem o mesmo título que o conto escrito pelo próprio João Dias.

à memória de João Dias

Dos longes do meu sertão natal,


eu desci à cidade da civilização.
Embriaguei-me de pasmo entre os astros
suspensos dos postes das ruas
e atração das montras nuas
tomou-me a respiração.
Todo esse brilho de névoa, ténue e superficial
que envolve a capital,
me cegou e fez de mim coisa sua.

Quando cheguei,
trazia no olhar a luz verde dos negros simples
e uma dádiva maravilhosa em cada mão.

Mas a cidade, a cidade, a cidade!


Esmagou com os pneus do seu luxo,
sem caridade,
meus pés cortados nos trilhos duros do sertão.

157
N. de Sousa 2001, 129
158
Ibid.

44
Encarcerou-me numa neblina quase palpável de ódio e desprezo,
e ignorando a luz verde do meu olhar,
a maravilhosa oferta
(essa estrela, esse tesouro) de cada minha mão aberta,
exigiu-me impiedosamente a abdicação
da minha qualidade intangível de ser humano!

Nas noites frias,


sem batuque, sem lua,
as estrelas continuaram brilhando, insensíveis,
através da cacimba, suspensas dos postes da rua.
Minha consolação:
Minha Mãe silenciosa oferecendo-me suas costas nuas,
mornas como sol de inverno…
minha Mãe vencendo a cacimba e a solidão,
para me vir belekar,
humilde e sofredora, com suas tocantes canções de acalentar!

Ah, mas eu não me deixei adormecer!


Levantei-me e gritei contra a noite sem lua,
sem batuque, sem nada que me falasse da minha África,
da sua beleza majestosa e natural,
sem uma única gota da sua magia!
A luz verde incendiou-se no meu olhar
e foi fogueira vermelha na noite fria
dos revoltados.

Ainda grito,
porque quero ser ainda, sempre, pela vida fora,
o que foi outrora:
Rainha nas costas de minha Mãe!

Como tu, meu irmão negro, desorientado e perdido,


na cidade cruel…
Como tu!

Por isso é que este meu canto ingénuo que soa banal,

45
traz no seu fundo mais fundo, Godido, meu irmão
a marca rubra dum selo fraternal,
constante e imortal!

8/6/1950

O poema é escrito na primeira pessoa do singular e consiste em oito estrofes e 51 versos.


Na primeira estrofe, o eu-lírico fala sobre o brilho da cidade que o cegou e fez dele coisa sua.
Quando chegou à cidade, o eu-lírico era um “negro simples”, aberto às possibilidades que
estavam a esperar por ele na cidade. Porém, a cidade é cruel e desumana: “Esmagou com os
pneus do seu luxo,/sem caridade,/meus pés cortados nos trilhos duros do sertão.” 159 Por causa
do luxo e das luzes da cidade, o eu-lírico começou a ignorar as suas raízes e o seu olhar já não
brilhava com uma “luz verde”.
As noites que passou na cidade, longe do seu “sertão natal” são “noites frias,/sem batuque,
sem lua”160 – estas noites estão cobertas em escuridão. A única consolação para o eu-lírico é a
Mãe-África, o que aponta para a revalorização das raízes africanas do eu-lírico. A origem
africana do eu-lírico venceu “a cacimba e a solidão”161 e o eu-lírico começou a gritar,
consciente de que os negros devem ter palavra. A luz verde incendiou-se novamente no seu
olhar.
O eu-lírico quer que todos ouçam o que tem a dizer. O eu-lírico quer tornar-se a pessoa que
foi antes de chegar à cidade: “Rainha nas costas de minha Mãe!”162 O seu canto traz em si um
significado mais profundo – é uma homenagem a Godido, ao seu irmão João Dias.

5.9. A Billie Holiday, cantora

Noémia de Sousa dedicou dois poemas (referimo-nos apenas aos poemas que contêm as
dedicações nos títulos dos poemas) aos personagens masculinos, Jorge Amado e Rui de
Noronha, mas este poema é o único que a poetisa escreveu para homenagear uma personagem
feminina, a cantora norte-americana Billie Holiday. O poema A Billie Holiday, cantora faz
parte da penúltima secção Sangue Negro.

Era de noite e no quarto aprisionado em escuridão

159
N. de Sousa 2001, 130
160
Ibid.
161
Ibid., 131
162
Ibid.

46
apenas o luar entrara, sorrateiramente,
e fora derramar-se no chão.
Solidão. Solidão. Solidão.

E então,
tua voz, minha irmã americana,
veio do ar, do nada, nascida da própria escuridão…
Estranha, profunda, quente,
vazada em solidão.

E começava assim a canção:


“Into each heart some rain must fall…”
Começava assim
e era só melancolia
do princípio ao fim,
como se teus dias fossem sem sol
e a tua alma aí, sem alegria…

Tua voz irmã, no seu trágico sentimentalismo,


descendo e subindo,
chorando para logo, ainda trémula, começar rindo,
cantando no teu arrastado inglês crioulo
esses singulares “blues”, dum fatalismo
rácico que faz doer
tua voz, não sei por que estranha magia,
arrastou para longe a minha solidão…

No quarto às escuras, eu já não estava só!


Com a tua voz, irmã americana, veio
todo o meu povo escravizado sem dó
por esse mundo fora, vivendo no medo, no receio
de tudo e de todos…

47
O meu povo ajudando a erguer impérios
e a ser excluído na vitória…
A viver, segregado, uma vida inglória,
de proscrito, de criminoso…

O meu povo transportando para a música, para a poesia,


os seus complexos, a sua tristeza inata, a sua insatisfação…

Billie Holiday, minha irmã Americana,


continua cantando sempre, no teu jeito magoado
os “blues” eternos do nosso povo desgraçado…
Continua cantando, cantando, sempre cantando,
até que a humanidade egoísta ouça em ti a nossa voz,

e se volte enfim para nós,


mas com olhos de fraternidade e compreensão!

24/5/49

O poema é escrito na primeira pessoa do singular e consiste em oito estrofes e 42 versos.


Na primeira estrofe pode-se observar que o eu-lírico se sente solitário “no quarto aprisionado
em escuridão”. Segundo Owen, a referência ao “quarto aprisionado em escuridão” é uma
evocação da história da escravidão.163
Na segunda estrofe a voz de Billie Holiday surge como um raio de sol, “nascida da própria
escuridão”.164 A autora refere-se a Billie Holiday como a sua “irmã americana”.165 A voz dela
veio de longe e o eu-lírico já não se sente solitário: “No quarto às escuras, eu já não estava
só!”166
Na terceira estrofe, a autora usa o recurso estilístico da alusão, referindo-se diretamente à
canção de Billie Holiday: “Into each heart some rain must fall…”167 Nos versos que se seguem,
o eu-lírico descreve esta canção melancólica:

163
Owen 2007, 70
164
N. de Sousa 2001, 134
165
Ibid.
166
Ibid., 135
167
Ibid., 134

48
Começava assim
e era só melancolia
do princípio ao fim,
como se teus dias fossem sem sol
e a sua alma aí, sem alegria…168

A autora também faz referência ao inglês crioulo da cantora americana, sugerindo a sua origem
mestiça. Além disso, a autora sugere que a mestiçagem é uma coisa que a cantora e ela mesma
têm em comum, procedendo, assim, à revalorização das raízes africanas.169
No contexto do poema, deve-se salientar o facto de que Noémia de Sousa defende as
mesmas ideias que os participantes do movimento do Renascimento Negro Norte-Americano.
Nos versos “O meu povo ajudando a erguer impérios/e a ser excluído na vitória…”170, pode-se
observar que a autora afirma que os negros estão conscientes do papel que tinham na formação
das nações que agora exercem a opressão contra o povo negro.
Na penúltima estrofe, o eu-lírico, ou seja, Noémia, dirige-se a Billie Holiday e pede-lhe
para que ela nunca pare a cantar: “Billie Holiday, minha irmã americana,/continua cantando
sempre, no teu jeito magoado/os “blues” eternos do nosso povo desgraçado…”171 A autora
reconhece a força da voz de Billie Holiday, que pode fazer “a humanidade egoísta” ouvir a voz
dos oprimidos e voltar-se para eles “com olhos de fraternidade e compreensão”.172

5.10. Sangue Negro

O poema Sangue Negro é o último poema da secção Sangue Negro. Neste poema, o eu-
lírico dirige-se a África, sua Mãe. De acordo com Mary L. Daniel, este poema pode ser visto
como um exemplo de “escrita feminina” em termos da sua linguagem metafórica e da
implicada solidariedade entre a autora e outras mulheres.173

Ó minha África misteriosa e natural,


minha virgem violentada,
minha Mãe!

168
N. de Sousa 2001, 134
169
Owen 2007, 70
170
N. de Sousa 2001, 135
171
Ibid.
172
Ibid.
173
Daniel 1996, 87

49
Como eu andava há tando desterrada,
de ti alheada
distante e egocêntrica
por estas ruas da cidade!
engravidadas de estrangeiros

Minha Mãe, perdoa!

Como se eu pudesse viver assim,


desta maneira, eternamente,
ignorando a carícia fraternamente
morna do teu luar
(meu princípio e meu fim)…
Como se não existisse para além
dos cinemas e dos cafés, a ansiedade
dos teus horizontes estranhos, por desvendar…
Como se nos teus matos cacimbados
não cantassem em surdina a sua liberdade,
as aves mais belas, cujos nomes são mistérios ainda fechados!

Como se teus filhos – régias estátuas sem par –,


altivos, em bronze talhados,
endurecidos no lume infernal
do teu sol causticante, tropical,
como se teus filhos intemeratos, sobretudo lutando,
à terra amarrados,
como escravos, trabalhando,
amando, cantando –
meus irmãos não fossem!

Ó minha Mãe África, ngoma pagã,


escrava sensual,
mística, sortílega – perdoa!

À tua filha tresvairada,


abre-te e perdoa!

50
Que a força da tua seiva vence tudo!
E nada mais foi preciso, que o feitiço ímpar
dos teus tantãs de guerra chamando,
dundundundundun – tãtã – dundundundun – tãtã
nada mais que a loucura elementar
dos teus batuques bárbaros, terrivelmente belos…

para que eu vibrasse


para que eu gritasse,
para que eu sentisse, funda, no sangue, a tua voz, Mãe!

E vencida, reconhecesse os nossos elos…


e regressasse à minha origem milenar.

Mãe, minha Mãe África


das canções escravas ao luar,
não posso, não posso repudiar
o sangue negro, o sangue bárbaro que me legaste…
Porque em mim, em minha alma, em meus nervos,
ele é mais forte que tudo,
eu vivo, eu sofro, eu rio através dele, Mãe!

25/2/49

O poema é escrito na primeira pessoa do singular e contém onze estrofes e 52 versos. O


poema abre com quatro epítetos que descrevem a África, ou seja, a Mãe-África: “misteriosa”,
“natural”, “virgem violentada”, “minha Mãe”.174 Este poema é um bom exemplo do uso da
adjetivação nos poemas de Noémia de Sousa. Além destes epítetos, o eu-lírico também chama
a Mãe-África “ngoma pagã”, “escrava sensual”, “mística” e “sortílega”.175
Na segunda estrofe, o eu-lírico admite que “andava há tanto desterrada”, alheada da sua
Mãe-África por “ruas da cidade”.176 Conforme Daniel, o tema deste poema é o do retorno da
filha pródiga arrependida, que regressa ao seio da sua Mãe e busca a reconciliação com ela.177
Deve-se considerar o facto de que este poema ter um significado mais profundo – uma apologia

174
N. de Sousa 2001, 140
175
Ibid., 141
176
Ibid., 140
177
Daniel 1996, 87

51
de própria autora que por tanto tempo teria estado alheada da sua terra natal e teria andado por
ruas das cidades europeias. É um facto que Noémia de Sousa passou um longo período da sua
vida na Europa, mas ela inspirou-se em África e nas suas raízes africanas e, por isso, o eu-lírico
pede neste poema à sua Mãe que lhe perdoe: “Minha Mãe, perdoa!”178
O eu-lírico pede perdão pela maneira como se comportou com os irmãos moçambicanos, o
que pode ser observado neste trecho:

como se teus filhos intemeratos, sobretudo lutando,


à terra amarrados,
como escravos, trabalhando,
amando, cantando –
meus irmãos não fossem!179

O eu-lírico sente-se culpada por ter vivido na cidade, longe dos problemas dos “matos
cacimbados”180 da sua terra natal. Noémia de Sousa explora a dicotomia entre o rural e o
urbano, uma das características das nações africanas modernas.181 É a presença estrangeira nas
cidades “engravidadas de estrangeiros” que incomoda o eu-lírico, que por tanto tempo vivia
“ignorando a carícia fraternamente/morna do teu luar”.182
Sousa imita o som do tambor (“dundundundundun – tãtã – dundundundun – tãtã”), a única
coisa que o eu-lírico necessita “para que eu vibrasse/para que eu gritasse/para que eu sentisse,
funda, no sangue, a tua voz, Mãe!”183 O som do tambor seria o sinal do perdão da Mãe-África
ao eu-lírico. O som dos batuques desperta no eu-lírico o verdadeiro orgulho africano e a
revalorização das raízes africanas.
Na última estrofe, o eu-lírico admite que não pode “repudiar/o sangue negro, o sangue
bárbaro que me legaste” e, por fim, reconhece que a sua origem africana é “mais forte que
tudo”.184

178
N. de Sousa 2001, 140
179
Ibid., 141
180
Ibid., 140
181
Daniel 1996, 87
182
N. de Sousa 2001, 140
183
Ibid., 141
184
Ibid., 142

52
6. Conclusão

O presente trabalho tratou da análise do livro Sangue Negro, coletânea dos poemas da
autora moçambicana Noémia de Sousa. O objetivo principal desse trabalho foi demonstrar que
a poesia de Noémia de Sousa foi influenciada pelos movimentos literários da época em que a
autora tinha escrito os seus poemas. É crucial levar em consideração o momento histórico em
que os poemas foram escritos – a luta pela independência de Moçambique, e a de outros países
africanas sob o domínio português, estava a começar. Vale a pena ressaltar que Noémia de
Sousa e José Craveirinha inauguraram um novo estilo de poesia na literatura moçambicana – a
poesia combativa. Além disso, graças ao seu engajamento na luta contra a opressão portuguesa,
os poemas de Noémia de Sousa tornaram-se uma arma de protesto e foram adotados para estudo
nas escolas pela FRELIMO.
O desenvolvimento deste trabalho propôs-se a compreender as principais características
dos movimentos literários que influenciaram a poesia da autora. No início, foram apresentados
o contexto histórico e as características gerais dos movimentos do Pan-Africanismo, do
Renascimento Negro Norte-Americano, do Indigenismo Haitiano, do Negrismo Cubano e da
Negritude. A seguir, uma parte do trabalho foi dedicada ao esclarecimento da influência que a
Negritude francesa teve no desenvolvimento da Negritude de expressão portuguesa. Além
disso, vale a pena referir que a Negritude lusófona foi influenciada por literatura brasileira do
Modernismo e Regionalismo e pela literatura do Realismo e Neorrealismo europeus. É crucial
levar em consideração a característica mais importante dos movimentos literários em questão:
a exaltação da raça e da cor negras, a revalorização das raízes africanas e a negação da
dominação dos colonizadores.
Seguidamente, foi apresentada a vida da poetisa, a sua voz poética e o seu estilo. Além
disso, foi apresentada a estrutura do livro Sangue Negro, que consiste em 46 poemas escritos
entre 1949 e 1951, organizados em seis grupos temáticos. O estilo de Noémia de Sousa,
marcado com temas que revalorizam as raízes africanas e celebram o povo negro, é um bom
exemplo de poética negritudiana. Apesar de a autora não conhecer a Negritude francófona, ela
inspirou-se no Pan-Africanismo e no Renascimento Negro Norte-Americano, cujos autores
admitiram a influência da Negritude francófona. Vale a pena ressaltar como a influência da
Negritude é notável nos motivos da poesia de Noémia de Sousa – a exaltação da cor negra, a
África, a Mãe-Negra, a revalorização das raízes africanas e das tradições culturais africanas.
Contudo, o acento desse trabalho foi colocado na análise dos dez poemas mais conhecidos
e divulgados da poetisa: Nossa voz; Se me quiseres conhecer; Deixa passar o meu povo;

53
Magaíça; Negra; Um dia; Poema para Rui de Noronha; Godido; A Billie Holiday, cantora; e
Sangue Negro. Através da análise desses poemas, pode-se concluir que a poetisa realmente se
inspirou no Pan-Africanismo, na solidariedade negra e nos temas recorrentes da literatura
negritudiana. Assim, este trabalho espera ter conseguido mostrar que a poesia de Noémia de
Sousa pode ser classificada como poesia negritudiana.
Para concluir, importa afirmar que Noémia de Sousa, nos seus poemas, mistura várias
influências, resultando numa poesia que dá palavra ao povo oprimido moçambicano. Portanto,
graças ao seu engajamento na luta pela independência de Moçambique, ela torna-se a “mãe dos
poetas moçambicanas”, abrindo as portas a uma nova poesia moçambicana. Afinal, a própria
Noémia reconhece a importância que a sua poesia teve no contexto da literatura moçambicana:

Eu acho que o meu papel dentro da literatura moçambicana foi importante, mesmo
sendo uma obra deficiente. Acho que daí vieram outros que fizeram coisas melhores.
Partiram daí, e fizeram coisas melhores, e eu acho que isso é importante. Vendo as
coisas à distância dá-me a impressão que de facto influenciei pessoas.185

185
Chabal 1994, 122

54
7. Bibliografia e Webgrafia

Bibliografia
ANDRADE, Mário Pinto de, e Francisco José Tenreiro. “Poesia negra de expressão
portuguesa.” Em Negritude Africana de Língua Portuguesa: Textos de Apoio (1947-
1963), editado por Pires Laranjeira, 13-21. Angelus Novus, 2000.

BERALDO, Wanderley. Poetas De Todos Os Tempos E Cantos. Clube de Autores, 2016.

CHABAL, Patrick. “Introduction.” Em The Postcolonial Literature of Lusophone Africa, de


Patrick Chabal, Moema Parente Augel, David Brookshaw, Ana Mafalda Leite e Caroline
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