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Brasileira e
Cidadania
Hugo Martarello de Conti
Patricia Villen Meirelles Alves
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ISBN 978-85-522-1445-8
CDD 301
Thamiris Mantovani CRB-8/9491
2019
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Sumário
Unidade 1
Ética e política.....................................7
Seção 1.1
Por que pensar sobre a ética?........9
Seção 1.2
Por que discutir política?.............23
Seção 1.3
É possível ser ético no mundo
contemporâneo?...........................39
Unidade 2
Cidadania e direitos humanos...........59
Seção 2.1
O que faz um cidadão?................61
Seção 2.2
Direitos humanos: por que e para
quem?..........................................78
Seção 2.3
Democracia e cidadania: quem tem o
poder?..........................................96
Unidade 3
Dilemas éticos da sociedade brasileira
.........................................................115
Seção 3.1
A corrupção tem solução?.........117
Seção 3.2
Por que a miséria persiste em nosso
país?...........................................141
Seção 3.3
Como combater nosso racismo?161
Unidade 4
Pluralidade e diversidade no século XXI
.........................................................187
Seção 4.1
Toda democracia é plural?........189
Seção 4.2
O que é “ideologia de gênero”?.208
Seção 4.3
Vivemos uma onda de fanatismo?
...................................................228
Palavras do autor
C
aro aluno, existindo uma grande quantidade de disciplinas
específicas de seu curso de graduação, a elaboração de uma
matéria destinada a analisar diferentes aspectos da realidade
brasileira e da cidadania
pode parecer um pouco estranha, não é mesmo?
A uma primeira vista, esse estranhamento é compreensível se nos
baseamos em alguns dos padrões modernos de ensino, de trabalho e – por
que não? – do modo como levamos nossas vidas, caracterizados pela
especia- lização dos estudos e das profissões em áreas cada vez mais
particulares. Sob esse ponto de vista, pode mesmo ser difícil identificar a
utilidade de estudarmos temas tão amplos da realidade nacional.
Entretanto, como veremos, alguns aspectos mais gerais de nosso país
não estão totalmente desligados do desenvolvimento universitário e
profissional dos indivíduos, mas, sim, fornecem instrumentos e reflexões
extremamente impor- tantes para essa evolução. Isso ocorre porque não se
pode separar completamente o desempenho profissional de um indivíduo, e até
mesmo sua existência enquanto ser humano, das relações sociais em que ele
está inserido; conforme defende o ex-presidente dos Estados Unidos Barack
Obama:
Ética e política
Convite ao estudo
Prezado aluno, aqui iniciamos nossa jornada em direção à complexa
rede de relações, valores e estruturas que compõem a realidade brasileira.
Em sua opinião, nossa sociedade tem como orientação principal de seu
funciona- mento os princípios ou o poder? Agimos coletivamente em
função de uma busca para estabelecermos aquilo que consideramos correto
ou nossa reali- dade pode ser melhor compreendida a partir das relações de
força que são estabelecidas em nosso país?
Repare que essa busca pela ação correta pode incluir processos amplos
de nossa vida em coletividade: há algum problema em empresas privadas
finan- ciarem campanhas políticas? Seria correto manter benefícios para
funcio- nários públicos que já recebem salários altíssimos?; mas também
envolve decisões de nossa vida privada: se uma regra nos parece injusta,
devemos obedecê-la? Considerar uma ação correta ou incorreta é algo que
se faz sozinho ou deve-se levar em conta aspectos sociais?
A mesma abrangência deve ser considerada na análise das relações de
poder, já que elas se manifestam em escalas elevadas: até onde deve ir a
inter- venção do Estado brasileiro em nossa sociedade? A maioria deve
sempre se impor?; e em nosso cotidiano individual: o serviço público que
utilizo é um favor que me foi oferecido ou é um direito que me é
assegurado? Meu ato individual pode ter impacto na sociedade?
Portanto, se pretendemos analisar toda uma diversidade de fatores da
vida coletiva de nosso país, é provável que essas duas orientações – princí-
pios e poder – apareçam em nossa análise. Por isso, é interessante recor-
rermos a dois domínios do conhecimento voltados a esses assuntos: a ética
e a política. Embora esses temas sejam tratados frequentemente em nosso
dia a dia, o estudo mais aprofundado desses campos do conhecimento,
conforme faremos nesta primeira unidade, será um importante suporte para
compre- endermos o ambiente que nos cerca e até mesmo nosso próprio
cotidiano.
Para tanto, utilizaremos algumas referências tradicionais do pensa-
mento e da filosofia política ocidentais, que servirão de instrumento para
que possamos refletir sobre dilemas e impasses éticos e políticos
constatados no Brasil contemporâneo, nas mais diversas áreas, como meio
ambiente ou
diversidade étnico-cultural da população brasileira. Assim, a partir de uma
compreensão humanista do que consiste a vida em sociedade, poderemos,
então, identificar alguns requisitos para uma participação cidadã na
comuni- dade que nos abriga.
A análise desses dois temas clássicos das ciências humanas, ética e
política, tem especial importância na atualidade, já que os amplos campos
de estudo dessas disciplinas podem contrastar com a precisão e a
especialização de novas áreas do conhecimento humano. Assim, a ética
ainda teria aplicação prática nos dias de hoje? A ciência pode substituir as
reflexões éticas? E as ponderações políticas seriam abstratas demais para
afetar nosso cotidiano?
As respostas a essas indagações – e a outras que certamente surgirão –
serão trabalhadas à medida que analisarmos os fundamentos da filosofia
ética e suas relações com os dilemas que despontam em nosso cotidiano,
bem como os diferentes tipos de organização política e seus vínculos com
nosso desenvolvimento enquanto sociedade.
Seção 1.1
Diálogo aberto
Em pleno século XXI, você provavelmente já
notou que o desenvolvi- mento tecnológico tem
criado novas ferramentas técnicas capazes de atribuir
às máquinas funções antes exclusivas da ação
humana. Se é verdade que o processo de substituição
da atividade de homens e mulheres pela operação de
equipamentos artificiais pode ser percebido ao longo
de toda a história, não seria um exagero considerar
que, atualmente, esse processo se vê intensi- ficado e
atinge patamares antes inimagináveis; avanços nas
áreas de robótica, automação e conectividade, por
exemplo, ampliam a possibilidade de utili- zação da
tecnologia para a realização das mais diversas tarefas
exigidas nas sociedades contemporâneas. Assim, a
tecnologia poderia resolver todos os problemas do
convívio em sociedade, definindo quais seriam as
condutas e os procedimentos corretos a serem
tomados diante de uma situação concreta?
As máquinas realizam as tarefas com maior
precisão, maior velocidade e menor margem de erro
do que os homens. Desse modo, a maior produ-
tividade e eficiência decorrentes do uso da tecnologia
constituiriam motivo suficiente para defender o uso
de máquinas indiscriminadamente em todos os
setores da atividade humana? A performance elevada
é critério suficiente para solucionar problemas de
10 - U1 / Ética e
Nota-se, prezado aluno, que a vida em coletividade
exige certas definições do que devemos ou não
devemos fazer, solicitando de nossa racionalidade um
esforço para identificar em que consiste agir
corretamente. Bem-vindo ao estudo da ética, campo
fundamental para definirmos qual a essência da
humanidade que queremos compor.
12 - U1 / Ética e
pessoais. Assim, na formação da moral, mais
importante do que a existência de uma lei, estão as
convicções individuais, que podem ou não coincidir
com a norma jurídica.
Nesse sentido, a moral de uma pessoa pode até
mesmo contrariar uma norma social. Veja como a
opinião do entrevistado a seguir questiona a
moralidade de uma série de regras brasileiras:
14 - U1 / Ética e
Pesquise mais
A concepção aristotélica sobre a ética
encontra sua mais significa- tiva elaboração
na obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles.
Nesse livro, supostamente dedicado ao filho
ou ao pai do filósofo, ambos nomeados
Nicômaco, o filósofo grego investiga os
fundamentos do caráter e o exercício das
virtudes humanas, motivo pelo qual a obra se
tornou um clássico da reflexão ética.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Edipro,
2014.
16 - U1 / Ética e
como se fossem conceitos equivalentes, e mesmo em
obras clássicas de nosso campo de estudo a
qualificação “moral” é utilizada na apreciação do
compor- tamento ético. Há que se reconhecer,
entretanto, a existência de importantes diferenças
entre esses conceitos, conforme estudaremos a seguir.
Etimologicamente, a palavra “moral” deriva do
termo latim moralis, cujo significado se aproxima de
“relativo aos costumes”. Trata-se de um conjunto de
normas que regulamenta a conduta dos indivíduos em
sociedade, em conformidade com as tradições,
referências educacionais e culturais, e práticas
rotineiras.
Embora tanto a ética quanto a moral busquem a
orientação do que é certo e errado no agir humano, a
ética pressupõe que essa qualificação é resultado de
uma elaboração baseada na coletividade, que
ultrapassa os indivíduos considerados isoladamente –
não há, portanto, uma “ética individual”. A moral, por
sua vez, fundamenta sua apreciação na razão e
consciência pessoais, ainda que conside- rando as
repercussões e influências sociais desse ato.
Assim, a moral pode apresentar uma maior
diversidade, uma vez que reflete condutas, práticas e
desejos que variam para cada indivíduo, tempo e
local da ação. Já a ética se ocupa da sistematização
da moralidade, objeto de seu estudo, apresentando,
portanto, princípios e regras relativamente mais
amplos e duradouros.
Essas diferenças possibilitam, inclusive, a
Seção 1.1 / Por que pensar sobre a ética? -
divergência entre enquadra- mentos éticos e morais,
haja vista que uma convenção moralmente aceita
em uma sociedade específica pode não satisfazer uma
reflexão ética, por não se adequar a princípios gerais
do que seria bom, justo ou correto.
Nesse mesmo sentido, é comum que grupos
distintos de indivíduos, ainda que compondo uma
mesma coletividade – seja ela um país, uma cidade ou
até mesmo uma classe de alunos universitários –
tenham comportamentos orientados por padrões
diferentes daquilo que consideram moralmente
aceitável, uma vez que os costumes, tabus e vontades
incorporados por cada um deles diferem entre si.
Quando tratamos da ética, entretanto, isso não
acontece, já que as concepções morais serão
interpretadas para que se identi- fique padrões éticos
aplicáveis a todos.
A problematização de aspectos da vida social que, por
vezes, são equivocada- mente equiparados à ética não
acontece apenas com a moral, já que frequente- mente
a religião é aplicada em situações que exigiriam uma
análise ética.
De imediato, podemos identificar a origem de tais
confusões no fato de que tanto a ética quanto a
religião exercem a função de prescrever regras de
conduta e postura apropriadas aos indivíduos.
Adicionalmente, obser- va-se nas esferas ética e
religiosa a existência de conceitos opostos utilizados
18 - U1 / Ética e
como referência à ação humana: bem e mal, certo e errado,
por exemplo, são parâmetros utilizados nos dois domínios
aqui apreciados.
Apesar de tais aproximações, a ética e a religião
apresentam divergências que justificam sua distinção
em campos do saber autônomos. Primeiramente,
como vimos, o pensar ético é eminentemente
racional, determinado por processos lógicos
inteligíveis, enquanto a compreensão religiosa, em
seus mais diversos credos, apresenta forte
componente dogmático, valendo-se de liturgias,
mandamentos e sacralizações que transcendem os
limites e temas puramente racionais. Ainda, a
fundamentação ética, com base nessa racio- nalidade
compartilhada por todos os seres humanos, busca
regramentos aplicáveis a toda a coletividade, em um
processo que difere da pluralidade religiosa que
podemos constatar na sociedade.
Exemplificando
Ética e religião
Leia o trecho a seguir e repare como o argumento de
Dalai Lama, líder religioso
do budismo tibetano, aproxima-se do que estudamos
“
nesta seção:
20 - U1 / Ética e
ou não a uma religião, todos nós temos
uma ética elementar e humana em nós.
Devemos cuidar e valorizar este
fundamento ético comum. É a ética e não
a religião que está enraizada na natureza
humana. (ALT; LAMA, 2017, [s.p.], grifo
nosso)
Exemplificando
Ética e religião II
Agora, leia o excerto redigido pelo papa
Francisco e perceba como a argumentação
desenvolvida pelo chefe da Igreja Católica se
vincula a alguns pontos elencados nesta
“
seção – adicionalmente, repare como há uma
convergência lógica com a redação de Dalai
Lama, trazida no segmento Exemplificando
anterior:
22 - U1 / Ética e
para nós, têm a sua máxima expressão
e a sua fonte em Deus. Sentimo-los
como preciosos aliados no
compromisso pela defesa da dignidade
humana, na construção duma
convivência pacífica entre os povos e na
guarda da criação. Um espaço peculiar é
o dos chamados novos Areópagos,
como o ‘Átrio dos Gentios’, onde
‘crentes e não-crentes podem dialogar
sobre os temas fundamen- tais da ética,
da arte e da ciência, e sobre a busca da
trans- cendência’. Também este é um
caminho de paz para o nosso mundo
ferido. (FRANCISCO, 2013, [s.p.], grifo
nosso)
Reflita
“ O cidadão obediente II
Era assim que as coisas eram, era esta a
nova lei do território, baseada na ordem
do Führer; o que quer que ele (Eichmann)
tenha feito, fez, até onde podia ver, como
um cidadão obediente às leis. Ele fez seu
dever, conforme disse à polícia e à corte
várias e várias vezes; ele não apenas
obedeceu ordens, ele também obedeceu
a lei. (ARENDT, 2006, p. 135, tradução
nossa)
26 - U1 / Ética e
O trecho citado foi retirado do livro Eichmann
em Jerusalém, de Hannah Arendt. Nessa obra,
a filósofa relata o julgamento de Adolf
Eichmann, um tenente-coronel das forças
nazistas alemãs que teve papel fundamental
na organização dos campos de extermínio do
Holocausto. Ao longo livro, Eichmann nega que
tenha agido com crueldade no processo que
levou ao assassinato de milhões de judeus nas
décadas de 1930 e 1940. Conforme se
depreende do excerto, o tenente-coronel
justificou sua conduta pela simples obediência
a mandamentos superiores, como ordens de
seus chefes e as leis vigentes naquele período,
algo que, segundo ele, retiraria qualquer culpa
de suas ações.
Com base nos temas discutidos nesta seção,
você diria que a obediência é sempre uma
virtude? De um ponto de vista ético, como
você analisa o argumento de Eichmann?
28 - U1 / Ética e
nos auxiliam a encontrar algumas respostas para
problemas cotidianos que atingem a humanidade,
formulando maiores certezas em temas antes
duvidosos, temos de reconhecer que as
potencialidades oferecidas pelo desenvolvimento
científico contemporâneo abrem novos campos de
discussão envolvendo a ética.
Inovações nas áreas de biotecnologia, tecnologia
da informação e automação, por exemplo, ao mesmo
tempo em que aumentam os horizontes da ação
humana, levantam questionamentos éticos essenciais:
devemos clonar seres humanos? As empresas de
telecomunicação deveriam assumir compromissos no
combate à propagação de notícias falsas? Podemos
criar robôs militares com capacidade letal? Assim, a
ampliação das atividades que conseguimos fazer
eleva proporcionalmente os questionamentos sobre o
que efetivamente devemos fazer.
Assimile
“ Ética e técnica
Técnica e ética completam-se,
necessariamente, para impul- sionar os
povos e as civilizações a se unirem. A
tecnologia, divorciada da ética, conduz à
inevitável fratura da humanidade. A
ética, ignorante do saber tecnológico, é
ineficiente e vazia. O grande projeto de
humanização do mundo exige que a
Seção 1.1 / Por que pensar sobre a ética? -
ciência e a técnica sejam finalmente
reconhecidas como patrimônio da
humanidade, insuscetíveis, portanto, de
qualquer tipo de apropriação, privada ou
estatal. (COMPARATO, 2016, p. 439)
30 - U1 / Ética e
“ [...] o ser humano só realiza
integralmente as suas poten- cialidades,
isto é, somente se aproxima do modelo
superior de pessoa, quando vive numa
sociedade cuja organização política não
se separa das exigências éticas e
regula, de modo harmonioso, todas as
dimensões da vida social. (COMPARATO,
2016, p. 587)
32 - U1 / Ética e
É óbvio que a evolução da tecnologia nos fornece
incontáveis benefícios para a organização e
funcionamento de nossas sociedades, entretanto
devemos manter sempre em mente que essas
inovações auxiliam, mas não substituem o raciocínio
humano e as avaliações éticas que são necessárias ao
nosso cotidiano.
A definição de que a vida humana importa mais do
que bens materiais, de que a gravidade de uma
doença é motivo legítimo para que se adiante um
paciente na fila de atendimentos médicos ou de que a
função de salvar vidas poderia justificar o excesso de
velocidade de um automóvel são ponderações éticas
que só os humanos são capazes de realizar.
As máquinas até podem ser programadas de acordo
com algumas considerações éticas, estabelecidas por
seres humanos, todavia, as diferentes justificativas
que um mesmo ato pode ter – o excesso de
velocidade mencionado, por exemplo – e a
impossibilidade de se prever de antemão todas as
situações cotidianas que envolveriam um juízo
ético apresentam limites para a visão tecnicista de
que a tecnologia fornece solução para todos os
problemas humanos.
Esse posicionamento seguramente reflete uma
postura humanista que, em pleno exercício de nossas
liberdades, rejeitaria uma condução automati- zada,
mecanicista e – por que não? – antiética de nossas
vidas.
34 - U1 / Ética e
d) A função normativa da ética auxilia a busca por
uma melhor convivência nas sociedades.
e) Atualmente, a ética já esgotou sua função
Thais Skodowski, do R7
05/02/2018 - 13h53 (Atualizado em
05/02/2018 - 15h41)
O novo Presidente do TJ-SP (Tribunal de
Justiça de São Paulo) [...] afirmou nesta
segunda-feira (5) que não vê problemas
em juízes com imóvel próprio na cidade
onde atuam receberem auxílio-
-moradia.
- Eu acho que é [ético] porque a Lei
36 - U1 / Ética e
Orgânica da Magistratura Nacional prevê
(o recebimento do benefício). O auxílio-
moradia
Diálogo aberto
Caro aluno, por mais avesso ao tema que você
eventualmente seja, certa- mente já se encontrou
envolvido em uma discussão sobre política. Seja
como forma de manter a interação com algum
desconhecido, em uma leve e despretensiosa
conversa no elevador, ou como afirmação de suas
maiores convicções, numa acalorada discussão sobre
o que julga mais importante nesta vida, a política é
tópico recorrente em nosso dia a dia.
Basta nos lembrarmos dos impasses que surgem em
nossas redes sociais
– ou em nossas reuniões de família – para
percebermos que, mesmo entre pessoas que não
dedicam suas vidas a estudar a política, este tema está
presente em nossos cotidianos. Nesse sentido, não
seria difícil recordar ao menos uma discussão política
que você presenciou – ou da qual participou – nas
últimas eleições, não é mesmo?
Se a frequência com que tratamos deste tema é alta,
a profundidade das argumentações envolvidas nos
debates rotineiros nem sempre apresenta a mesma
estatura, seja em função da natureza complexa dos
conceitos envol- vidos ou da repulsa que não raras
vezes é atribuída a este assunto. De todo modo, o
desafio que se impõe diante desta situação exige de
nós um estudo mais cuidadoso sobre as características
Seção 1.2 / Por que discutir política? -
da política, em benefício de nossas conversas
corriqueiras e, como constataremos, de uma
infinidade de aspectos da vida cotidiana que se
relaciona à matéria.
Assim, um bom começo para nossa reflexão
seria questionarmos se a administração pública –
atividade essencial da política – funcionaria de modo
parecido com a administração privada. Administrar
um Estado é uma empreitada semelhante a cuidar,
por exemplo, de uma casa ou de uma empresa? Ou
existem motivações e objetivos especiais da política
que tornam essa área algo diferente daquilo que
fazemos em nossa vida particular? Se, mesmo em
uma empresa, a “gestão dos negócios” é algo diferente
da “política da organização”, seria possível tratar a
qualidade das políticas públicas como sendo uma
questão apenas de gestão? Se queremos um país
democrático, basta que as coisas funcionem como
previsto ou é preciso pensar em valores que devem
orientar este funcionamento?
Ao final desta seção, prezado aluno, não apenas
nossas frequentes conversas sobre política poderão se
desenvolver do modo mais embasado, mas nossas
próprias percepções acerca do caráter abrangente
24 - U1 / Ética e
e transformador da política em nossa realidade
conferirão ao tema ares mais prazerosos e
emancipadores.
26 - U1 / Ética e
humanas o prosseguimento deste arranjo coletivo, por
meio da consolidação de famílias, em seguida,
aldeias, e, subsequentemente, cidades. O homem
seria, portanto, um animal político, isto é, orientado
por sua própria natureza para o desenvolvimento
social e cívico em coletividades organizadas; nesta
condição, a estruturação de sociedades não visaria
apenas à sobrevivência da espécie humana, mas
também à promoção do bem-estar, compreendido
igualmente como desígnio natural da essência
humana. Neste contexto, a realização plena das
faculdades humanas estaria situada justamente nesta
entidade coletivamente formada, necessária para o
adequado florescimento da natureza política que
nos distingue; em contraste, a eventual negativa do
aspecto cívico do homem produziria, segundo a
perspectiva aristotélica, seres detestáveis,
predispostos à exploração imoral dos outros e à
guerra contínua.
Vinculando a felicidade humana ao pleno exercício
desta natureza cívica, Aristóteles conecta a
satisfação individual ao engajamento nestes processos
coletivos de busca de um bem comum,
diferenciando, assim, os habitantes dos cidadãos, na
medida em que estes últimos não apenas residem em
sociedade organizada, como os primeiros, mas
também atuam em prol desta concepção coletiva da
existência humana. A valorização e a consequente
necessidade de responsabilização pelo convívio
coletivo ficam explícitas nos ensinamentos do
filósofo:
Seção 1.2 / Por que discutir política? -
“ O Estado, ou sociedade política, é até
mesmo o primeiro objeto a que se
propôs a natureza. O todo existe
necessariamente antes da parte. As
sociedades domésticas e os indivíduos
não são senão as partes integrantes da
Cidade, todas subordinadas ao corpo
inteiro, todas distintas por seus poderes e
suas funções, e todas inúteis quando
desarticuladas, semelhantes às mãos e
aos pés que, uma vez separados do
corpo, só conservam o nome e a
aparência, sem a realidade, como uma
mão de pedra. O mesmo ocorre com os
membros da Cidade: nenhum pode
bastar-se a si mesmo. Aquele que não
precisa dos outros homens, ou não pode
resolver-se a ficar com eles, ou é um
deus, ou um bruto. Assim, a inclinação
natural leva os homens a este gênero de
sociedade. (ARISTÓTELES, 2006, p. 5)
“
30 - U1 / Ética e
1. o significado de governo, entendido
como direção e adminis- tração do poder
público, sob a forma do Estado. O senso
comum social tende a identificar governo
e Estado, mas governo e Estado são
diferentes, pois o primeiro diz respeito a
programas e projetos que uma parte da
sociedade propõe para o todo que a
compõe, enquanto o segundo é formado
por um conjunto de instituições
permanentes que permitem a ação dos
governos. [...]
32 - U1 / Ética e
ilícitos ou ilegítimos. Este terceiro
significado é o mais corrente para o senso
comum social e resulta numa visão
pejorativa da política. Esta aparece como
um poder distante de nós (passa-se no
governo ou no Estado), exercido por
pessoas diferentes de nós (os
administradores e profissionais da
política), através de práticas secretas que
beneficiam quem as exerce e prejudicam
o restante da sociedade. (CHAUI, 2000, p.
476 – grifo nosso)
Exemplifica ndo
“
descumprimento de uma regra pode gerar, os
indivíduos mostram-se, em linhas gerais,
dispostos a aceitar o que manda a norma. Esta
relação, todavia, existe também no sentido
oposto, já que não são raras as vezes em que
são justamente os hábitos de conduta popular
os fundamentos para a edição de uma lei. Leia
a reportagem a seguir e veja como este
processo pode ser importante para nossa vida
em sociedade.
40 - U1 / Ética e
conflito permanente, uma vez que cada indivíduo,
temendo por sua vida, desenvolveria métodos para se
proteger, estimulando que os demais também
ampliem seu poderio; a inexistência de garantias de
proteção tornaria o medo uma constante da existência
humana, já que os indivíduos constituiriam ameaças
uns aos outros, conforme ilustra a famosa ideia de
que “o homem é o lobo do homem”. Nesta situação,
seria razoável que os homens acordassem em abrir
mão de parte de suas liberdades individuais para,
coletivamente, estabelecer uma autoridade superior,
capaz de assegurar a paz; trata-se da formação do
Estado soberano, ao qual os súditos cederiam seu
poder.
A metáfora estabelecida por Hobbes para o produto
deste pacto social é a do Leviatã, gigantesco monstro
bíblico, o que reflete a concepção de poder absoluto
que o Estado assumiria nesta sua prerrogativa de
manutenção da ordem. Assim, neste sistema político,
seria legítimo que o ente soberano concentrasse o
poder de intervir, sem responsabilizações, em
“
quaisquer dos domínios da vida coletiva ou de seus
súditos, conforme efetivamente se observou nos
modelos de monarquia absolutista contemporâneos
deste pensador inglês. Segundo Hobbes, esta
concentração de poder se legitimaria pelo seguinte
argumento:
Assimi
le Leviatã
Repare em algumas das descrições atribuídas
ao monstro Leviatã extra- ídas do Capítulo 41
do Livro de Jó, do Antigo Testamento da Bíblia
“
cristã, a fim de compreender a magnitude do
poder do Estado hobbesiano:
42 - U1 / Ética e
como com selo apertado.
[...]
44 - U1 / Ética e
No século XVIII, entretanto, a forte conexão entre
o poder do monarca absolutista com as prerrogativas
do Estado passa a ser questionada, sobre- tudo à
medida que o crescimento econômico da burguesia
europeia se avoluma, demandando a equivalente
ampliação de direitos civis e políticos desta
importante camada social. O poder concentrado do
soberano, neste contexto, passa a ser compreendido
como uma afronta à liberdade indivi- dual, e o
estabelecimento de limites à intervenção do Estado
nas vidas privada e coletiva passa a ser defendido
com mais vigor.
Em linhas gerais, este liberalismo político reduz as
funções do Estado, de modo a classificá-lo como
“Estado mínimo” ou “Estado de polícia”, concen-
trando a atuação pública na proteção das garantias
individuais, como o direito à propriedade privada, na
manutenção da ordem social e na defesa frente a
ameaças externas. A aplicação prática desta nova
mentalidade se desenvolve por meio da imposição de
constituições às quais os monarcas deveriam se
subordinar, nas chamadas monarquias
constitucionais, da emergência de estruturas
republicanas, a exemplo dos Estados Unidos da
América, e, sob a influência de John Locke (1632-
1704), da lógica de separação dos poderes, nas quais a
existência de entes distintos passa a constituir
importante instru- mento de contenção do poder do
soberano.
46 - U1 / Ética e
pessoais, em um ambiente de contração dos vínculos
solidários e coletivos da sociedade, deu margem à
ampliação de injustiças sociais, fazendo com que
grande parcela das populações nacionais se visse
excluída dos benefícios do progresso.
A reação a este processo excludente manifesta-se já
no fim do século XIX e começo do XX, pela
retomada de concepções políticas favoráveis à maior
atuação Estatal, focada, neste momento, na solução
de graves problemas sociais – como a fome e o
desemprego. Nas experiências socialistas obser-
vadas, sobretudo, na União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas e em países do leste europeu, o Estado
assumiria a tarefa de reverter privilégios concen-
trados por certas classes sociais, defendendo a
expansão do controle estatal sobre os meios de
produção e a subsequente redistribuição das riquezas
de modo mais igualitário – e teria como contrapartida
a supressão de ideias de livre iniciativa e outras
liberdades da concepção liberal. O modelo de Estado
de bem-estar social, por sua vez, defenderia a
intervenção estatal não como detentora dos meios de
produção, mas, preponderantemente, reconhecendo as
funções de regulação e estímulo que a atividade
estatal pode exercer na dinâmica econômica e na
prestação de serviços públicos, conciliando interesses
privados e públicos, a exemplo do que se observou na
presidência de Franklin Delano Roosevelt (1882-
1945) nos Estados Unidos, nos anos de 1930 e 1940.
Pesquise mais
Os exemplos de que a defesa ou a rejeição da
intervenção estatal em setores da vida social
são influenciadas por ideologias ou
movimentos políticos contemporâneos são
fatos na história. Mas os países poderiam
sugerir práticas diferentes daquelas que
Seção 1.2 / Por que discutir política? -
usaram, com o objetivo de
50 - U1 / Ética e
esconder o caminho que percorreram até se
tornarem ricos? Seria possível que um país,
por exemplo, investisse diretamente em
setores da economia, intercedesse nas
relações de trabalho e, depois de atingir um
patamar elevado de desenvolvimento,
recomendasse que os demais países fizessem
justamente o contrário do que fez? Essa é a
tese do economista Ha-Joon Chang no livro:
CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia
do desenvolvimento
em perspectiva histórica. São Paulo: Editora
Unesp, 2003. Recomendamos, em especial, a
leitura do trecho entre as páginas 11 e 28.
56 - U1 / Ética e
1. Leia o trecho a seguir:
58 - U1 / Ética e
garantir a sobrevivência dos homens, e nada mais.
d) Na concepção aristotélica, os homens, considerados
60 - U1 / Ética e
Seção 1.3
Diálogo aberto
Prezado aluno, não é preciso ser muito atento à realidade brasileira para
perceber que o sucesso profissional, a plena satisfação pessoal, a segurança
financeira e a capacidade de vivenciar em total liberdade tudo aquilo que
valorizamos constituem objetivos difíceis de serem alcançados, não é
mesmo? Vivemos em um mundo repleto de obstáculos e hostilidades para
que sigamos os caminhos que estabelecemos em nosso desenvolvimento
pessoal.
Sendo assim, diante de uma infinidade de dificuldades que a vida
contem- porânea nos impõe – e que não foram criadas por nós mesmos,
mas pela forma como a sociedade decidiu se organizar –, seria razoável que
fossemos cobrados por ter um comportamento que valorizasse a
manutenção e a articulação dos vínculos sociais? Ou o mundo
contemporâneo exige que cuidemos exclusivamente de nossas próprias
vidas, exercendo o que melhor nos cabe fazer para nós mesmos, sem que
sejamos responsabilizados por problemas e situações que fogem da nossa
alçada particular?
Se a competição para obter uma vaga na faculdade, e depois um
emprego satisfatório, é intensa, devo pensar no que é bom para a sociedade
ou apenas assegurar meu crescimento pessoal? Se não determino
diretamente os rumos da sociedade, por que deveria assumir a
responsabilidade de alertar para os erros que eventualmente a coletividade
produzir? Se os padrões de felici- dade individual apresentam efeitos
colaterais nocivos, cabe ao indivíduo questionar esses padrões?
Em síntese, é possível manter, nos dias de hoje, condutas voltadas ao
desen- volvimento da sociedade ou a realidade contemporânea exige que o
indivíduo abandone perspectivas coletivas em benefício de seus ganhos
individuais?
As respostas a essas perguntas exigirão a análise de alguns elementos
de nosso regime econômico, investigando preceitos do sistema capitalista,
bem como demandarão reflexões sobre o que podemos entender por
liberdade e responsabilidade nos tempos atuais. Ainda, será interessante
investigar como os padrões de consumo vigentes se relacionam com o
ambiente em que vivemos e como esse mesmo ambiente se depara com
novas possibilidades de intervenção humana em seu funcionamento.
Assimile
Individualismo liberal
Nas ciências humanas é particularmente importante reconhecer que os
conceitos não surgem ou perdem a validade instantaneamente, mas se
inserem em processos coletivos de fortalecimento de ideias e concep-
ções relacionadas a dinâmicas sociais vigentes em um tempo e espaço.
Assim, o individualismo de que tratamos aqui deve ser compreendido
no contexto mais amplo do século XVIII, de questionamento do modelo
político do Absolutismo, regime caracterizado, majoritariamente, pela
extrema concentração de poder nas mãos de um monarca. Essa organi-
40 - U1 / Ética e
zação política reduzia a liberdade de ação dos indivíduos, uma vez que
homens e mulheres estavam sujeitos às determinações reais, que não
raras vezes se mostravam abusivas, se comparadas às prerrogativas que
temos na atualidade.
A reação a esse cerceamento à liberdade individual se apresentou, nessa
situação, por meio do Liberalismo, movimento que pregava o respeito e
o fortalecimento de direitos e garantias individuais contra essa alegada
opressão absolutista. Essa é a raiz do individualismo que caracteriza o
Estado e a economia liberais, em um processo legítimo e compreensível
de afirmação das potencialidades pessoais.
Reflita
Competição versus coordenação
A competição entre os agentes garante ao vencedor sempre o melhor
resultado possível? Ou a coordenação entre os indivíduos pode levar a
soluções mais proveitosas a todos eles?
Pesquise mais
A ética e o “espírito”
Uma das referências clássicas sobre a relação entre o sistema capitalista
e o comportamento individualista se encontra na obra A ética protes-
tante e o “espírito” do capitalismo, de Max Weber (1864-1920). Nesse
livro, o intelectual alemão identifica na religião protestante estímulos à
doutrinação e à salvação individuais que seriam importantes para que os
preceitos do capitalismo se desenvolvessem.
WEBER, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
42 - U1 / Ética e
Em termos práticos, portanto, o individualismo sintetizado por esses
dois autores representativos da economia capitalista nos sugere que
devemos nos preocupar apenas com nossos próprios interesses pessoais,
uma vez que não existiriam referências externas para guiar nosso
comportamento cotidiano e que os arranjos sociais mais satisfatórios nada
mais seriam do que a soma dessas buscas pessoais. Essa perspectiva,
popularmente resumida na frase “cada um cuida da sua vida”, reduziria a
importância e a aplicabilidade de orientações coletivas para a compreensão
e a melhoria de nossa sociedade, a exemplo da ética e da política.
Entretanto, a análise mais aprofundada desses argumentos e da própria
realidade em que vivemos levanta limites para a classificação do
individualismo como fator exclusivo da ação e da organi- zação humanas,
conforme veremos a seguir.
De imediato, podemos perceber que a competição individualista tende
a apresentar profundos efeitos sociais negativos. Se é verdade que a disputa
entre pessoas ou companhias pode levar à constante inovação e à consoli-
dação de métodos e práticas mais eficientes, não podemos deixar de focar
também naqueles que não obtêm êxito no processo de competição. Nesse
contexto, torna-se pertinente a ponderação feita pelo economista Paul
Singer (1932-1918):
44 - U1 / Ética e
dos que se arruinaram, empobreceram e foram socialmente
excluídos. O que acaba produzindo sociedades profundamente
desiguais. (SINGER, 2002, p. 8-9)
Pesquise mais
Estagnamos?
Depois de 15 anos de contínua redução, a desigualdade de renda no
Brasil, medida em 2017, parou de cair. Se a população brasileira fosse de
100 habitantes, o cidadão mais rico teria uma renda 36,3 vezes maior do
que os 50 mais pobres. A diferença entre a renda de negros e brancos foi
ainda mais acentuada.
Explore o relatório País estagnado: um retrato das desigualdades brasi-
leiras, produzido pela Oxfam Brasil, e repare na gravidade de alguns dos
problemas sociais existentes em nossa realidade contemporânea.
Figura 1.1 | Desigualdade de renda
Brasil - Renda de negros e brancos e variação das proporções entre renda de negros e
brancos na média geral, dentro dos 50% mais pobres e dos 10% mais ricos - 2016-2017
72% 13.754
68% 11.720
57%
53%
Renda (em
49%
45%
6.186
R$)
5.723
2.729 2.924
1.550 1.545
938965
675 658
2016 2017 2016 2017 2016 2017
Média geral 50% mais pobres 10% mais ricos
Negros Brancos Negros x
Fonte: Oxfam Brasil (2018, p. 21). Brancos
46 - U1 / Ética e
“ A interpretação errônea da postura complexa de Smith com
respeito à motivação e aos mercados e o descaso por sua análise
ética dos sentimentos e do comportamento refletem bem
quanto a economia se distanciou da ética com o desenvolvi-
mento da economia moderna. Smith de fato deixou contribui-
ções pioneiras ao analisar a natureza das trocas mutuamente
vantajosas e o valor da divisão do trabalho e, como essas contri-
buições são perfeitamente condizentes com o comportamento
humano sem bonomia e sem ética, as referências a essas partes
da obra de Smith têm sido profusas e exuberantes. Outras partes
dos escritos de Smith sobre economia e sociedade, que contêm
observações sobre a miséria, a necessidade de simpatia e o
papel das considerações éticas no comportamento humano,
particu- larmente o uso de normas de conduta, foram relegadas
a um relativo esquecimento à medida que essas próprias
considera- ções caíram em desuso na economia. (SEN, 1999, p.
43-44)
48 - U1 / Ética e
diferentes, portanto, de outras práticas focadas na atuação da vida pública,
a qual leva em conta, por definição, considerações que vão além dos
interesses de um único indivíduo.
Desse modo, o exercício da liberdade, sob a perspectiva privada, estaria
vinculado à busca constante pelo acúmulo de riquezas ou ao consumo
desenfreado, bem como no usufruto do livre arbítrio e de direitos civis
específicos da esfera particular, em linha com o individualismo já mencio-
nado. O homem passaria a reduzir sua vida a um ciclo de trabalho árduo
que o permita exercer essas práticas individualistas, apresentando um
compor- tamento automatizado e superficial, no qual a exploração e a
insatisfação pessoal se tornariam constantes.
Crítica a essa perspectiva, Arendt apresenta uma compreensão da liber-
dade inteiramente oposta a esse modelo, vinculando o conceito ao pleno
exercício de práticas públicas. Como os homens nascem livres para
estabe- lecer diversas relações entre si, organizando sua vida coletiva,
existe uma ligação inseparável entre a liberdade e a política, e o campo
onde a liber- dade passa a ser desenvolvida deixa de ser a esfera
particular, tornando-se o espaço público. Nas palavras da autora, “ação e
política, entre todas as capacidades e potencialidades da vida humana, são
as únicas coisas que não poderíamos sequer conceber sem ao menos
admitir a existência da liber- dade” (ARENDT, 2005, p. 191). A
classificação da liberdade enquanto ação política ressalta a potência que
existe nesse valor, uma vez que estimula a ação conjunta que decidirá sobre
coisas de interesse comum, estabelecendo constantemente novas formas de
construir a realidade.
Esses fortes vínculos estabelecidos por Hannah Arendt entre o
indivíduo e a sociedade em sua compreensão da liberdade também são
percebidos quando focamos outra aptidão humana, a responsabilidade.
Assim como rejeita o isolamento individual do “cada um cuida da sua
vida”, a percepção arendtiana sobre a responsabilidade nega também a
ideia frequente em nossa sociedade de que não dispomos de condições para
avaliar a justiça ou injus- tiça da conduta alheia, ou, em termos rotineiros, o
“quem sou eu para julgar o que ele fez?”.
Se os seres humanos nascem com a capacidade de fazer reflexões, existiria
um comprometimento de cada indivíduo, ainda que ele não seja volunta-
riamente assumido, de estabelecer juízos e pensar a respeito dos aconteci-
mentos. A capacidade racional – e, portanto, a responsabilidade – não seria
exclusividade de filósofos ou governantes, já que todos temos o potencial
para pensar, estabelecer juízos e lembrar dos acontecimentos passados,
criando uma espécie de padrão comum daquilo que aceitamos enquanto
sociedade, percebido por todos os indivíduos.
Reflita
Não me importo
Leia o poema Intertexto, de Bertold Brecht (1898-1956), e reflita de que
forma esse conteúdo se relaciona com as ideias de responsabilidade e
banalidade do mal formuladas por Hannah Arendt.
“ INTERTEXTO
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
50 - U1 / Ética e
A renúncia ao processo individual de pensar ou a tentativa de se tornar
irresponsável por um juízo crítico – “Quem sou eu para julgar?”, “Se fazem
assim é porque deve estar certo...” – acaba por negar a própria condição
de pessoa dos seres humanos. Arendt, em linha com essa afirmação da
autonomia no exercício do pensar, critica a ideia de responsabilidade
coletiva
– “É porque todo mundo faz desse jeito” –, já que a responsabilização
coletiva impede que cada um assuma sua responsabilidade individual.
Os efeitos práticos do conceito de responsabilidade de Hannah Arendt
são importantíssimos para reforçar a importância do estudo da ética no
mundo contemporâneo, visto que – uma vez mais nesta seção – negam o
isolamento do indivíduo em relação ao grupo social do qual ele faz parte,
reforçando a necessidade de analisarmos as maneiras pelas quais nos
inserimos na reali- dade brasileira e de reconhecermos o compromisso de
cada um dos indiví- duos perante problemas atuais de nosso país.
Nesse cenário, um dos desafios mais significativos e atuais percebidos
pelo Brasil – e profundamente relacionado ao sistema econômico vigente
e às ideias de individualismo e responsabilidade trabalhadas nesta seção –
consiste na manutenção de uma ordem ambiental equilibrada em nosso
território, sobretudo em função dos padrões de consumo vigentes na
socie- dade contemporânea.
Avanços técnicos nos processos produtivos, bem como inovações na
organização e funcionamento de empresas, podem ser identificados como
fatores de ampliação da capacidade produtiva das companhias contemporâ-
neas, ampliando a oferta de bens e serviços em nossa sociedade. Do lado
dos consumidores, a multiplicação de necessidades materiais – sejam elas
reais ou imaginadas – para a satisfação de uma infinidade de tarefas
rotineiras bem como o significado que coletiva e individualmente damos
para a aquisição de novos produtos tendem a estimular a demanda por bens
e serviços em uma economia. O resultado do encontro dessas duas
tendências pode ser definido como o fortalecimento do consumismo.
Enquanto o conceito de consumo expressa majoritariamente a
aquisição de um bem ou de um serviço para satisfazer uma necessidade,
a ideia de consumismo, por sua vez, revela a intensificação desse processo,
atingindo níveis elevados de compra que nem sempre apresentam uma
utilidade real ou relevante. Assim, o consumismo pode ser ilustrado pela
aquisição frequente de produtos desnecessários, pela obtenção de bens
ou serviços que simbolizam um status elevado na sociedade em que
vivemos – artigos de luxo, por exemplo – ou pela compulsão a comprar,
como forma de compensar algum sentimento desagradável. Do lado da
oferta, o consumismo pode ser estimulado pelo reforço que a publicidade
fornece ao prazer ou prestígio de uma compra, pela criação constante de
Seção 1.3 / É possível ser ético no mundo contemporâneo? -
novas necessidades materiais – ou mesmo do sentimento de necessidade
– e pela produção proposital de bens com prazo reduzido de utilização,
que quebrarão ou se tornarão ultrapassados brevemente, exigindo novas
compras – a chamada obsolescência programada.
Seja como for, o comportamento consumista apresenta profundos
impactos no meio ambiente em que vivemos, seja porque os recursos
naturais são utilizados na produção desses bens e serviços, na condição
de insumos do processo produtivo, seja porque seu consumo produzirá
resíduos ou descartes prejudiciais ao ambiente. Os impactos ambien-
tais podem sem considerados externalidades negativas da dinâmica
econômica, isto é, efeitos não propositais de uma atividade econômica
que acabam afetando, nesse caso negativamente, pessoas que sequer
participaram dessa atividade.
Assim, quando uma fábrica polui o ar de uma cidade inteira, ou quando
nossos carros produzem fumaça que contribuem para essa poluição, perce-
bemos, uma vez mais, que nosso comportamento individual não se desen-
volve de modo separado da vida coletiva, reforçando a necessidade de
mantermos padrões éticos também no que se refere aos níveis de consumo
que desejamos enquanto indivíduos e sociedade. A aplicação dessa ética no
campo ambiental pode sugerir, por exemplo, a consolidação da reciclagem
enquanto prática habitual no Brasil, o compartilhamento de bens e
serviços que reduz os custos ambientais – dar carona, dividir
eletrodomésticos de uso esporádico entre vizinho ou familiares –, o
estabelecimento de clubes de trocas de produtos usados ou mesmo a
simples manutenção ou conserto de bens, evitando novas compras.
Nesse mesmo sentido, ética e meio ambiente apresentam importante
ponto de convergência em um dos campos mais representativos da
evolução tecnológica da contemporaneidade: a bioética. O avanço nas
pesquisas científicas envolvendo campos da biologia e da medicina
apresenta inegáveis benefícios para a humanidade, na medida em que nos
permite solucionar questões que há tempos impunham obstáculos ao
desenvolvimento humano
– por exemplo: a criação de vacinas e novos tratamentos auxilia o combate
a doenças graves; a melhoria no cultivo de vegetais ou na duração dos
alimentos constitui um aliado no combate à fome; e a compreensão da
genética humana pode ajudar a prevenir frequentes problemas de saúde.
Entretanto, o domínio de tecnologias antes inéditas amplia o potencial
de intervenção do homem sobre a natureza, possibilitando a realização de
novas atividades cujos resultados ainda são incertos, tanto do ponto de
vista biológico quanto em uma perspectiva dos efeitos sobre a convivência
e organização de nossas sociedades.
52 - U1 / Ética e
Exemplificando
Fábrica de humanos?
Em 2018, veio à tona a notícia de que um cientista chinês teria alterado
o DNA de alguns bebês, em um processo sem precedentes na história
médica de nosso planeta. As polêmicas que surgiram na comunidade
científica, e em diversos setores de nossa sociedade, evidenciam a sensi-
bilidade do tema, provocando importantes ponderações de ordem ética,
conforme se constata na reportagem a seguir:
SCHMIDT, Fabian. Opinião: não à edição genética de humanos. Deutsche
Welle, 27 nov. 2018.
Pesquise mais
Bioética – modo de usar
Não são poucas as atividades nas quais a atuação profissional deve
ser guiada por um código de ética. Nesse contexto, o surgimento de
temas específicos das ciências naturais, relacionados a questões essen-
ciais da existência humana, motivou a elaboração internacional de um
documento que associa a bioética às garantias fundamentais de nossas
sociedades. Trata-se da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos.
54 - U1 / Ética e
individualmente que a realidade nos
56 - U1 / Ética e
Faça valer a pena
Com base nos estudos sobre meio ambiente e consumo, assinale a alternativa correta:
a) Consumo e consumismo são termos sinônimos.
b) Na sociedade contemporânea, o ato de comprar produtos é sempre baseado em
uma necessidade real.
c) A prática do consumo não se relaciona com a preservação do meio ambiente,
uma vez que esses dois campos são completamente autônomos.
d) O consumo mais consciente, representado no texto-base pelos “quatro erres”,
pode ser compreendido como a afirmação da ética na relação entre consumo e meio
ambiente.
Com base nos pensamentos de Adam Smith e Amartya Sen trabalhados nesta seção
e ilustrados no texto-base, assinale a alternativa correta:
a) Sen afirma que é difícil encontrar justificativas para o comportamento
autointeres- sado na obra de Adam Smith, porque, como sabemos, Smith sequer
tocou no tema do autointeresse dos indivíduos.
b) Na opinião de Sen, é um erro reduzir a contribuição de Smith apenas ao tema do
autointeresse dos indivíduos, já que Smith também teria feito considerações éticas
sobre o comportamento humano.
c) Tanto Sen quanto Smith afirmam que ética e economia não se misturam.
d) Tanto Sen quanto Smith afirmam que o comportamento autointeressado é algo
absoluto, inexistindo outras motivações para a conduta humana.
e) Segundo Sen, o afastamento da economia moderna das questões éticas é algo
positivo.
58 - U1 / Ética e
neste contexto.
60 - U1 / Ética e
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Unidade 2
Convite ao estudo
Caro aluno, seja bem-vindo. A partir de agora começaremos o percurso
didático da Unidade 2, Cidadania e direitos humanos. Convidamos você a
entender como toda vez que uma dessas dimensões da vida em sociedade é
afetada, necessariamente, a outra encontra também mais obstáculos para a
sua plena realização. O desafio maior é entender de que forma, hoje, as
socie- dades estão (ou não) considerando seriamente a reflexão sobre as
questões implicadas nessas noções e quais são as consequências disso.
O tema das migrações será mobilizado por nos possibilitar discutir
questões importantes sobre a cidadania e os direitos humanos. A socióloga
Saskia Sassen, no seu livro Expulsões (2016), mostra como a mobilidade
forçada de pessoas é hoje um problema, que atinge muitos países do
mundo, sobretudo os do “Sul Global”, países da periferia do capitalismo ou
subdesen- volvidos. A autora discute o que chama de “lógicas de expulsão”
– algumas antigas, outras novas – que estão ativas na contemporaneidade
provocando o deslocamento forçado de massas de pessoas.
O quadro dessas expulsões é complexo e abrange desde a questão
do aumento das desigualdades e do desemprego no mundo, a crise e o
endividamento das economias dos países, até o aumento da violência e
de conflitos, a destruição da natureza, a expansão das fronteiras agrícolas,
a desertificação de regiões e o alagamento de outras. Fato é que há uma
quantidade cada vez maior de países que parece estar sofrendo com essas
lógicas de expulsões sistêmicas.
Essa perspectiva ajuda a compreender por que o Brasil ocupa hoje tanto
um lugar de país de emigração como de imigração. Por um lado, temos
problemas muito vivos no contexto atual, como os altos índices de desem-
prego, o aumento das desigualdades e da violência, o racismo, a xenofobia
e a intolerância às diferenças, o avanço das fronteiras agrícolas, ou seja,
fatores que podem provocar o deslocamento de população dentro do espaço
interno, nacional, e para fora do país. Por outro lado, o Brasil recebe muitos
imigrantes e refugiados de países como Haiti, Venezuela, Colômbia, Síria,
Angola, entre outros, o que é uma consequência e sintoma da atuação
dessas lógicas de expulsão em outras regiões do mundo.
De fato, no atual contexto globalizado, a situação de pessoas deslocadas
interna e internacionalmente é emblemática para pensarmos as fronteiras,
os desafios e as novas potencialidades da cidadania e dos direitos humanos.
Há muitas dimensões desses deslocamentos que podem ser objeto de
investi- gação. A questão central, que nos acompanhará ao longo desta
unidade, é de como os deslocamentos forçados refletem tendências de
funcionamento da cidadania e dos direitos humanos no Brasil e no mundo.
Com o intuito de fornecer elementos fundamentais para os temas desta
unidade, a primeira seção procura expor o significado da cidadania,
pensada a partir de três dimensões: local, nacional e global.
Na segunda seção, trataremos dos direitos humanos, apresentando como
essa instituição apareceu na história moderna, tornando-se um padrão de
referência universal para se pensar a vida em sociedade. No entanto,
discuti- remos seus limites e as fronteiras, cada vez maiores, na sociedade
atual para a aplicação desse direito, tendo em vista a predominância de
outras lógicas
– como o poder, a segurança, o nacionalismo, a riqueza – que se colocam
acima do ser humano.
Por fim, a última seção será dedicada a pensarmos a democracia, as
desigualdades e as diferenças. Esse exercício nos dará instrumentos para
a compreensão das barreiras à cidadania, que são muitas vezes invisíveis,
mas importantíssimas para pensarmos as possibilidades de atuação política,
sobretudo por grupos sociais marginalizados.
Esperamos, enfim, que esse percurso formativo possa encorajá-lo a
despertar o cidadão que há em você, buscando o conhecimento histórico-
-científico sobre os eixos desta unidade.
Seção 2.1
Diálogo aberto
Prezado aluno, esta seção dedica-se ao tratamento de uma questão de
fundamental importância para a vida em sociedade: a cidadania. Como
você responderia à pergunta sobre qual é o estado da cidadania no seu país
e no mundo hoje? Será que caminhamos para uma verdadeira evolução da
forma e do conteúdo da cidadania?
Para estabelecermos um termômetro relativo ao sentir-se e ao agir como
cidadão, bastaria iniciarmos com algumas perguntas essenciais: a forma
como você ouve falar dos problemas e projetos de seu bairro, cidade, país,
mundo, encorajam-no a buscar uma participação ativa e tomar as melhores
decisões para atender aos interesses da comunidade? Ou, ao contrário,
afastam-no e desestimulam-no do esforço por entender e participar dessas
decisões que afetam a sua vida e a de todos que estão ao seu redor? Por que
será que essa esfera de atuação política consciente dos reais problemas de
uma sociedade parece ficar cada vez mais distante e vazia de sentido? Será
que as dinâmicas do alto poder têm hoje interesse que você se sinta como
um cidadão da sua cidade, do seu país e, simultaneamente, do mundo? De
que forma esses problemas atingem sociedades que desrespeitam os
direitos humanos?
Esta seção lhe fornecerá instrumentos para entender como a noção
de “cidadão” variou muito ao longo do tempo: veremos que a história do
exercício da cidadania tem sido marcada por tensões, progressos e
regressos. Também veremos como o contexto globalizado dos dias atuais,
que tem suas economias, suas sociedades e suas culturas interligadas
globalmente, coloca uma dimensão mais complexa para pensarmos o
exercício da cidadania. A nova realidade do número cada vez maior de
pessoas deslocadas coloca desafios para pensarmos a cidadania, sobretudo
para desvincularmos o seu sentido da esfera restrita ao nacional.
Nesse cenário, como avaliar a “evolução” da cidadania diante do
cemitério de corpos de refugiados que se transformou o Mar Mediterrâneo
– cenário emblemático dos barcos lotados de homens, mulheres, crianças e
até bebês, buscando desesperadamente uma esperança de vida? Das
manifestações de racismo e xenofobia, enfim, da negação e da exclusão da
cidadania para as milhões de pessoas deslocadas interna e
internacionalmente? Diante da medida tomada pelo governo de Donald
Trump, nos Estados Unidos (EUA), para separar mais de mil crianças,
filhas de imigrantes indocumentados, dos
Assimile
Como você já deve ter visto ao longo de seus estudos, normalmente a
discussão sobre cidadania e política costuma remeter quase sempre à
Grécia Antiga. Isso não acontece simplesmente porque o passado grego
foi “mais importante”. Foi o olhar dos europeus modernos, em especial,
mais de um milênio após Aristóteles, que elegeu os gregos como ponto
de origem de sua civilização. Em outros termos, foi com a Europa do
Renascimento, das Grandes Navegações e do Iluminismo que o passado
grego e romano se tornou “clássico” – e, nesse sentido, mais importante
do que o passado de outros povos. Há um certo processo de “escolha”
Pesquise mais
Para saber mais sobre o debate a respeito das violações dos direitos
humanos no período anterior ao da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988),
o site do projeto Brasil: Nunca Mais é uma valiosa fonte:
Assimile
A cidade de São Paulo é um laboratório vivo para entendermos o sentido
da cidadania transnacional. Em um passado relativamente recente, essa
cidade era sobretudo formada por imigrantes europeus. Hoje, São Paulo
é considerada uma “cidade global”, por ser destino de moradia para
bolivianos, haitianos, senegaleses, sírios, moçambicanos, dentre um
leque muito diversificado de nacionalidades do mundo inteiro. Ali, você
pode ter contato com muitas iniciativas e organizações dos imigrantes e
refugiados, que, mesmo não tendo direito de voto no Brasil, reivindicam
seus direitos e espaços para expressar suas culturas e identidades.
Nesse ponto, adentramos no último tópico desta seção que diz respeito à
relação entre consciência ambiental e a cidadania. Pensar essa relação é
ideal para retomarmos diversos significados da cidadania até aqui tratados.
As décadas de 1970 e 1980 são marcos da emergência de um debate
ambiental que questiona o modelo de desenvolvimento que se espalhou
pelo mundo (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010). Além das crises
econômicas, esse período acompanha também recorrentes crises
ambientais. O desastre de Chernobyl (1986) passa a ser o símbolo do
despertar da consciência de uma “cidadania verde”, que não está
descolado do sentido da cidadania transnacional. Começa-se a refletir com
mais força sobre os impactos para a população local, mas também para a
vida humana no mundo todo, de ações que prejudicam a natureza, como a
mudança do curso de um rio, a poluição das águas, a expansão das
fronteiras agrícolas e a utilização dos agrotóxicos e transgênicos, além da
destruição das florestas.
Reflita
Você acharia estranho que nos primeiros artigos da nossa Constituição
estivesse previsto o direito da natureza? Talvez você esteja pensando
que a natureza não pode ser considerada um sujeito de direito. No
entanto, no Equador esse direito está previsto na Constituição (ACOSTA,
2016) e transformou-se em uma ferramenta de exercício da cidadania
ambiental. Você acredita que esse exemplo poderia nos ajudar a
repensar nossa cidadania no Brasil?
Pesquise mais
A obra organizada por Jaime e Carla Pinsky, História da
cidadania (2010), disponível em sua biblioteca virtual, fornece
um importante panorama da cidadania desde a Antiguidade.
Segundo o texto, a perspectiva das migrações ilumina qual aspecto sobre a cidadania?
a) As legislações vigentes contemplam os anseios de representação dos imigrantes.
b) A cidadania pensada a partir do princípio do nacional é inclusiva.
c) A cidadania reflete uma inclusão formal dos imigrantes.
d) A cidadania formal exclui os imigrantes.
e) A cidadania formal respeita os direitos das minorias internas ao estado-nação.
Diálogo aberto
Seja bem-vindo à Seção 2.2, que vai tratar de um
importante dilema da sociedade moderna: a afirmação,
por um lado, dos direitos humanos, e por outro lado, das
lógicas de punição que também se expressam nos crimes
contra a humanidade. Como veremos, um dos fenômenos
bastante ativos na contemporaneidade envolvendo os dois
lados desse dilema (direitos humanos e lógicas de punição)
diz respeito aos deslocamentos forçados de população.
De fato, as diferentes formas de desrespeito aos direitos
humanos, que se traduzem na impossibilidade de vida no
próprio local ou país de origem, provocam esses
deslocamentos. Todavia, a tendência dos Estados tem sido
tratar essas pessoas como potenciais criminosos, valendo-se
de uma lógica criminalizante e punitivista para governar
esses fluxos de pessoas, com variadas técnicas de vigilância e
controle nas fronteiras e dentro dos próprios países.
As declarações do presidente dos Estados Unidos,
Donald Trump, e de governantes como Viktor Orban
(Hungria) e Matteo Savini (Itália) exemplificam construção
de um discurso que associa automaticamente essa
população ao “crime”, estabelecendo um clima de
insegurança e medo que tem efeitos práticos concretos de
desrespeito aos direitos humanos dessas populações
também nos países para os quais elas emigram (ou tentam
emigrar).
No Brasil, como veremos, grupos internos, como a
população negra e periférica, são as maiores vítimas dessa
lógica punitivista. No entanto, o país não está separado do
contexto internacional de aumento das migrações e tende a
receber, cada vez mais, deslocados forçados e refugiados de
84 - U2 / Cidadania e direitos humanos
outros países. Sobretudo, é importante lembrarmos que o
Brasil também já foi, durante a ditadura, produtor de
refugiados. Esta seção nos ajudará a entender os fatores de
desrespeito aos direitos humanos nesse período obscuro da
nossa história e da de outros países da América Latina.
Naquele momento, os brasileiros foram reconhecidos
como refugiados, portanto tiveram seus direitos humanos
respeitados em diversos países, como Estados Unidos,
Inglaterra, França, Itália, Espanha, Portugal e outros.
Hoje, segundo dados do Comitê Nacional Para Refugiados
(CONARE, 2018), nós recebemos solicitantes de refúgio de
mais de 80 países, em particular haitianos, senegaleses,
venezuelanos, sírios e angolanos. Você avalia que o
Baptiste Regnault
Fonte:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jean-
Baptiste_Regnault_-_La_Libert%C3%A9_
ou_la_Mort.JPG. Acesso em: 14 jan. 2019.
Contemple a pintura de Jean Baptiste Regnault
(1754-1829), A liberdade ou a morte (1795). Repare
como a alegoria sugerida pelo pintor francês retrata
muito bem o espírito da época do Iluminismo. Sem
dúvida, o questionamento que essa imagem provoca
é ainda bastante atual.
Artigo II
1. Todo ser humano tem capacidade para
gozar os direitos e as liberdades estabelecidos
nesta Declaração, sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem
nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição.
2. Não será também feita nenhuma distinção
fundada na condição política, jurídica ou
internacional do país ou território a que pertença
uma pessoa, quer se trate de um território
independente, sob tutela, sem governo próprio,
quer sujeito a qualquer outra limitação de
soberania.
Artigo III
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à
segurança pessoal.
Artigo IV
Seção 2.2 / Direitos humanos: por que e para quem? -
Ninguém será mantido em escravidão ou
servidão; a escravidão e o tráfico de escravos
serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo V
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento
ou castigo
cruel, desumano ou degradante.
Artigo VI
Todo ser humano tem o direito de ser, em todos
os lugares, reconhecido como pessoa perante a
lei.
Artigo VII
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem
qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos
têm direito a igual proteção contra qualquer
discriminação que viole a presente Declaração e
contra qualquer incitamento a tal discriminação.
(ONU, 1948, p. 4-6)
Pesquise mais
Hanashiro (2001) oferece um histórico e um
panorama completo do desenvolvimento do sistema
de proteção aos direitos humanos nas Américas, que
encontrou sua condensação na Carta da
Organização dos Estados Americanos (OEA), na
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem (ambas de 1951) e na Convenção Americana
de Direitos (1978). Em 1969, esses direitos passaram
a ser operacionali- zados pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e, mais tarde,
em 1979, pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos.
Reflita
Ao marcharem, as “madres” falam bem alto o nome
de seus filhos assassi- nados pelo regime, e as
pessoas respondem: “presente”! Trata-se de uma
ação cidadã dessas mães, que hoje já são idosas,
entretanto não se cansam de marchar, na luta pela
justiça e pela memória de seus filhos desapare- cidos.
Você já é pai ou mãe de um filho ou deseja ser no
futuro? Você pode entender a dor dessas “madres” e
a importância da sua ação cidadã?
Fonte:
https://media.minutouno.com/adjuntos/150/imagen
es/022/989/0022989998.jpg. Acesso em: 14 jan.
2019.
“
próprios indivíduos e pensada cientificamente. Segundo
Foucault,
“
sexos na sociedade brasileira também com base em:
Exemplificando
Repare quantas vezes você escuta nos jornais e nos
programas televi- sivos notícias sobre crimes e sobre
a ação da polícia. Compare com o tempo dedicado a
discutir projetos para construir uma sociedade com
trabalho digno para todos, com acesso universal à
educação de quali- dade, à cultura, à moradia, ou
mesmo para revitalizar os espaços públicos das
cidades para que as pessoas andem nas ruas e
frequentem praças, parques, evitando, assim, a
propagação da violência.
Assimile
1. Nós sabemos que a principal vítima das lógicas
punitivistas no Brasil é a população negra (MOURA;
RIBEIRO, 2014) e no contexto internacional são os
imigrantes e refugiados.
Figura 2.4 | Raça, cor ou etnia das pessoas privadas
de liberdade e da população total
Bran
ca
Negr
a
Ama
rela
Indí
gina
Outr
as
Seção 2.2 / Direitos humanos: por que e para quem? -
Fonte: BRASIL (2017, p. 32).
Diálogo aberto
Caro aluno, seja bem-vindo à Seção 2.3. Aqui
discutiremos os direitos fundamentais em sua relação com
a democracia, a cidadania e o reconheci- mento das
diferenças.
Você já parou para pensar em quais são os grupos
sociais do Brasil que mais sofrem com as barreiras no
acesso à cidadania e quais são essas barreiras – visíveis,
mas também muitas vezes invisíveis – por eles enfren-
tadas para a atuação política, ou seja, para a representação
e a reinvindi- cação de seus direitos?
Para refletirmos sobre essas questões no contexto
nacional, tenta- remos entender alguns problemas do
funcionamento das sociedades atualmente, em particular o
aumento das desigualdades e sua relação intrínseca com a
culpabilização e a exclusão dos grupos sociais margi-
nalizados denominados pelas ciências sociais de
“diferença”. No mundo inteiro, mas no Brasil em
particular, essa lógica tem crescido, apesar de também
existirem contratendências guiadas pela defesa dos direitos
fundamentais e dos direitos humanos e por políticas de
inclusão e de reconhecimento das diferenças.
O continente europeu é hoje um dos principais
destinos de imigrantes e refugiados expulsos de seus países.
Sabemos que, ali, os efeitos da crise mundial eclodida em
2007/2008 acirram conflitos já existentes e criam novos. De
fato, os imigrantes e refugiados passam a ocupar o lugar da
“diferença” nessas sociedades e, muitas vezes, são
identificados como o “bode expiatório” de todos os
problemas existentes – desemprego, crimina- lidade,
terrorismo, dificuldade de acesso a serviços públicos,
“
para garantia da democracia:
Reflita
Você já parou para pensar, por exemplo, na relação
dos estremecimentos dos valores democráticos –
espelhados nos novos cenários políticos em ascensão
no atual contexto de crise mundial –, com o
desrespeito dos direitos fundamentais?
“
funda- mental para grupos mais atingidos pelas
desigualdades:
Exemplificando
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, chauvinismo quer
dizer: “1 patriotismo fanático, agressivo 1.1 p. ext. entusiasmo excessivo
pelo que é nacional, e menosprezo sistemático pelo que é estrangeiro
1.2 p. ext. entusiasmo intransigente por uma causa, atitude ou grupo”. A
etimologia, origem dessa palavra, vem de “Chauvin, nome de um
soldado francês que exaltava ingenuamente as armas do primeiro
Império, tipo popularizado e ridicularizado por seu extremado
patriotismo”.
“A tensão latente entre cidadania e identidade nacional”, referida pelo autor, pode
ser aplicada no seguinte caso:
a) No acolhimento de imigrantes e refugiados que parte do princípio do reconheci-
mento de suas culturas e línguas.
b) No reconhecimento da cidadania dos imigrantes e refugiados, a despeito de terem
entrado pelas fronteiras, sem o visto.
c) No acesso à educação e aos serviços de saúde que são direitos fundamentais
esten- didos a todos os seres humanos que se encontram no território nacional.
d) No entendimento de que a democracia e a cidadania não se limitam ao território
nacional, mas articulam-se à dimensão internacional.
e) Na afirmação de que a cidadania tem base tão somente nacional e que a exclusão
das diferenças garante a efetividade dos direitos fundamentais para os próprios
nacionais.
Convite ao estudo
Caro aluno, seja bem-vindo à Unidade 3. Seguiremos tratando de
questões de enorme relevância para entendermos e enfrentarmos problemas
que são, ao mesmo tempo, atuais e históricos de nosso país. Abordaremos,
mais amplamente, três obstáculos centrais para a construção de uma socie-
dade democrática e mais justa: a corrupção, a miséria e o racismo.
Se, por um lado, é verdade que esses problemas não são novos e se
conso- lidaram como elementos estruturais, constituintes da sociedade
brasileira
– como todos os dados mostram –, por outro, também é correto afirmar
que em cenários de crise econômica e política as contradições já existentes
explicitam-se e acirram-se. Em um país com um quarto de sua população
vivendo abaixo da linha da miséria (são 55 milhões de brasileiros vivendo
com renda mensal menor do que R$ 400), um cenário de crise econômica
e inflação é mais do que um incômodo: é um risco de vida. Do mesmo
modo, em cenários de crise e aumento do desemprego, populações
historica- mente marginalizadas são aquelas que mais sofrem e se veem,
muitas vezes, obrigadas a aceitar condições de exploração desumanas para
sobreviverem. No caso brasileiro, por exemplo, a população
afrodescendente é especial- mente atingida por esse quadro, pois convive
com taxas de desemprego muito acima daquelas enfrentadas pela
população branca.
Ao mesmo tempo, diante das aflições sociais, são buscadas soluções
imediatistas – para não dizer “mágicas” – para problemas complexos.
Sobretudo nesses momentos, a política, tida como um espaço plural de
debates e negociação de impasses, passa a ser entendida não como o campo
em que poderíamos resolver nossos obstáculos, mas como o próprio obstá-
culo. Diante da crise, na mesma medida em que grande parte da sociedade
passa a buscar “salvadores” – líderes que seriam capazes de resolver
sozinhos todos os nossos problemas –, passa-se também a procurar os
culpados de tal situação: não raramente trabalhadores imigrantes são
considerados injustamente como os causadores do desemprego ou
estudantes cotistas são acusados de “roubarem” as vagas das universidades.
Assim, nesse cenário, enquanto a crise econômica reforça o fosso que
separa os mais ricos dos mais pobres e, no caso brasileiro, reitera as
estatísticas que separam negros e brancos, a “política” se torna sinônimo de
“corrupção”, e a xenofobia cresce.
Não à toa, é comum na população uma sensação de desesperança,
muitas vezes resumida nos termos populares de “esse país não tem jeito”.
Isso não significa, porém, que nossa sociedade seja marcada apenas pela
desesperança ou pela inércia diante dos acontecimentos: a corrupção, por
exemplo, é um tema debatido por todos – independentemente de seu
posicionamento ou visão de mundo – e em todos os ambientes. Mesmo
entre desconhecidos, em um caixa de supermercado, o assunto aparece com
frequência, em conversas que podem durar apenas alguns segundos ou
gerar longas e acalo- radas discussões. Podemos dizer, de outro modo, que
a sociedade brasileira também oferece suas respostas para seus dilemas,
denunciando injustiças e discutindo soluções. Da mesma forma, podemos
afirmar que predomina na população um desejo de oferecer propostas que
levariam a sociedade para uma outra direção. A constatação do problema
ou o simples desejo de mudança, porém, não são suficientes para que
apontemos soluções reais e sustentáveis para o nosso futuro. É preciso
partir de um diagnóstico preciso, que vai além do senso comum e das
respostas prontas como “só no Brasil”.
Se nossos problemas têm uma origem histórica – e eles têm –, isso
significa que eles também são possíveis de serem solucionados. Em outros
termos, se os impasses que enfrentamos se originam na ação humana, é
também a ação humana o caminho para a sua resolução. O
conhecimento de experiências bem-sucedidas de transformação social,
assim como dos princípios da ética, da política e da cidadania, deve,
portanto, ocorrer lado a lado com a ciência aprofundada de como se
estruturam nossos problemas. Independentemente de sua opinião prévia, ao
discutir, por exemplo, programas sociais de renda mínima ou cotas étnicas,
você saberia dizer quais têm sido os efeitos reais – os dados – dessas
políticas no Brasil ou no mundo? Independentemente de sua posição
política ou partidarismos, saberia apontar dados sobre a corrupção no país,
assim como os poderes responsáveis por seu combate?
A luta contra a corrupção, o racismo e a miséria são questões urgentes
da população brasileira – e mundial –, que invadem a sala de aula, porque
certa- mente estão determinando a sociedade ao seu redor. O desafio que
cabe em um percurso de formação universitária é exatamente o de colocar
essas questões em um plano objetivo, com o devido distanciamento, para
podermos enxergar com mais nitidez quais elementos são de fato
importantes para proporcionar os parâmetros científicos de entendimento da
nossa própria realidade. Só assim poderemos pensar com mais clareza nos
caminhos que podem ser alternativos a esse desenho de uma sociedade em
crise.
Seção 3.1
A corrupção tem solução?
Diálogo aberto
Caro aluno, convidamos você a refletir sobre um dos
temas mais discu- tidos nos últimos anos no Brasil: a
corrupção.
Nesta seção veremos que a corrupção não é um
problema exclusivamente brasileiro e não se restringe
aos fatos da atualidade, mas, é claro, há períodos e
lugares em que a corrupção está mais presente. Apesar
de ser complexo, é possível identificar as causas que
levam determinado país, em determinado momento da
sua história, a ser marcado por casos de corrupção.
Conforme destacou o estudo de Cavalcanti (1991),
escrito no início da década de 1990, quando o tema da
corrupção viria a explodir no Brasil com o processo de
impeachment do presidente Fernando Collor de Mello,
“ Os brasileiros estão profundamente
convencidos de que aqui vivem os políticos
mais corruptos do mundo – ou pelo menos
os mais impunes –, convicção essa
largamente partilhada por inúmeros outros
povos em relação a seus próprios países.
Nada parece capaz de abalar essa estranha
convicção. (CAVALCANTI, 1991, p. 18)
“
português, assume o significado de
“
Segundo o jornalista e historiador Gilberto Maringoni de
Oliveira (2010, [s.p.]),
Assimile
Veja como a ciência social define a corrupção:
Exemplificando
Impostômetro e sonegômetro
“
de a sociedade brasileira se relacionar com o público
(PINTO, 2011, p. 8). Segundo a autora:
“
uma prática ilegal e exercida impunemente pela elite do
país durante décadas após a sua independência:
Exemplificando
A ilegalidade do tráfico negreiro
O historiador Luiz Felipe de Alencastro,
especialista no tema, coloca, de forma exemplar,
o caráter estruturalmente ilegal e imoral da
escravidão/ tráfico negreiro na fundação de nosso
país. Segundo ele, desde 1818 havia tratados
que vetavam o tráfico de escravos, mas isso
não coibiu a entrada de milhares de africanos no
país, do citado ano até 1856. Muitos desses
escravos, mesmo com a lei de 1831, que garantia
“
a sua liberdade, foram mantidos cativos pelos
seus senhores que não foram, posteriormente,
condenados por tal crime. Como o autor cita,
foram 760 mil escravos que entraram até 1856 e
que foram mantidos, ilegalmente, como escravos
até a publicação da Lei Áurea, em 1888.
Observe:
“
movidas pela “desorganização”, “falta de espírito de
solidariedade”, “individualismo” e manutenção de
“privilégios e hierarquias”. Para Holanda, o
patrimonialismo – visão que resguarda o próprio
patrimônio privado – é a marca da gestão política no
país, herdada dos portugueses:
Assimile
O presidencialismo de coalizão
Para compreender a expressão “presidencialismo
de coalizão”, leia o trecho do artigo de Sylvio
Costa (2013), disponível no portal Congresso em
“
Foco, indicado a seguir:
A expressão “presidencialismo de
coalizão” foi usada há 25 anos no
título de um artigo acadêmico do
cientista político Sérgio Abranches,
ao qual se atribui a criação do
termo. Ela designa a realidade de
um país presidencialista em que a
fragmentação do poder parlamentar
entre vários partidos (atualmente, 23
Pesquise mais
O movimento global Transparência
Internacional não considera a corrupção como
algo natural, impossível de ser combatida nas
empresas, no Estado, no cotidiano das pessoas.
É interessante notar que esse movimento coloca
a discussão da corrupção em termos sistêmicos,
não apenas éticos, relacionados ao
comportamento de um indivíduo em particular.
Além disso, a luta anticorrupção jamais é
dissociada da luta pela justiça social, realização
de direitos e da paz.
Para saber mais, acesse o site do movimento,
indicado a seguir: TRANSPARÊNCIA
INTERNACIONAL BRASIL. Sobre a
transparência inter- nacional. [2018?].
“
percepção no Brasil desde 2014.
No entendimento da Transparência
Internacional, a piora no ranking se deve à
percepção de que os fatores estruturais da
corrupção nacional seguem inabalados,
tendo em vista que o Brasil não foi capaz
de fazer avançar medidas para atacar de
Diálogo aberto
Caro aluno, seja bem-vindo a mais uma seção.
Sabemos muito bem que a miséria no Brasil não é um
fenômeno novo; pelo contrário, tem raízes históricas
muito antigas, que se reproduzem ao longo do tempo.
Por conta de nossos objetivos, nós nos concentraremos
no século XXI – mas o encorajamos sempre a seguir
estudando a história do país para entender a
historicidade de nossos dilemas. Nesta seção,
buscaremos entender as dinâmicas mais características
da pobreza no mundo atual, sobretudo após a eclosão
da crise mundial (2007-2008) e sua manifestação com
mais força no Brasil, a partir de 2014.
Como você explicaria as estimativas de que, no
Brasil, cerca de 13 milhões de pessoas passam fome
enquanto 41 mil toneladas de alimentos são
desperdiçadas por ano?
Para alguns, a pobreza – e a fome decorrente dela – é
considerada como algo natural, que sempre existiu e
continuará existindo no futuro. Por isso, para estes, essa
questão diz respeito à sorte e ao comportamento do
indivíduo na socie- dade: se ele for esperto e não muito
azarado, pode se esforçar e lutar sozinho para combater
a pobreza e a fome. Se não conseguir, não haverá o
que fazer. Enquanto isso, muitos outros procuram as
razões desse problema em um plano espiritual que
explicaria o mundo terreno. Assim, a fome é vista como
uma sina, um destino, e os homens na Terra nada
podem fazer para modificá-la. Nessa perspectiva, no
máximo, é possível oferecer a caridade como paliativo.
No entanto, a visão científica é a de que esse
Seção 3.2 / Por que a miséria persiste em nosso país? -
fenômeno é produzido pelas relações socioeconômicas,
sendo possível identificar – e enfrentar – suas causas
objetivas. Independentemente das correntes teóricas, o
conhecimento produzido pelas diferentes ciências
sociais – a partir de método e evidências, portanto –,
como a economia, a sociologia e a ciência política,
concordam com o pressuposto de que a fome é um
problema que passa por escolhas políticas e
econômicas dos governos e da sociedade, podendo,
assim, ser combatida por políticas públicas e pela ação
da sociedade. Por exemplo, para José Graziano da
Silva, diretor geral da Organização das Nações Unidas
para a Alimentação e a Agricultura (FAO), e para Adolfo
Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz e membro da
Aliança da FAO pela Segurança Alimentar e Paz, a fome
é, na verdade, um crime que alimenta conflitos mais
graves nas socie- dades e ameaça a paz mundial (SILVA;
ESQUIVEL, 2018).
Pesquise mais
A pobreza rural e urbana em grande escala é um
problema tipica- mente moderno, produto das
transformações das sociedades, do modo de
produção capitalista e da Revolução Industrial.
Por esse mesmo motivo, a miséria no campo e a
condição de indigência e de sofrimento da classe
operária – em particular na Inglaterra, Escócia e
Irlanda da segunda metade do século XVIII em
diante – foram estudadas como um fenômeno, o
pauperismo, e passaram a ser objeto de estudo
das diferentes áreas da economia, da sociologia,
e até mesmo largamente retratada na literatura
da época.
“
acima da média global. Segundo Souza e Medeiros
(2017), a alta concentração de renda no topo da
pirâmide social permaneceu intocada na última década:
Assimile
O gráfico a seguir foi extraído de um estudo da Fundação Getúlio Vargas
(2018) e revela que, na década de 2003-2013, houve uma significativa
diminuição da miséria em relação aos patamares dos anos 1990.
Todavia, a partir de 2014, a taxa de miséria volta a subir.
Se a miséria continuar subindo, o país poderá voltar rapidamente aos
patamares de pobreza do início dos anos 1990, época em que o Brasil
enfrentava sérios problemas sociais. Por isso, o brusco aumento da
miséria, após 2014, faz necessária uma reflexão crítica às formas de
combate à miséria que não tocam nas questões estruturais envolvidas
nesse problema.
Fonte: https://portal.fgv.br/noticias/pobreza-e-desigualdade-aumentaram-ultimos-4-anos-
brasil-revela-estudo. Acesso em: 19 fev. 2019.
Reflita
Para Katia Maia, em entrevista concedida ao G1, “a terra expressa
muito o que é uma sociedade e a América Latina é a região com maior
desigualdade na concentração de terra no mundo” (GONZALEZ, 2016).
Ao comentar os dados fornecidos pela OXFAM sobre concentração de
terra no Brasil, Katia Maia explica que o país ocupa o quinto lugar na
América Latina – depois do Paraguai, Chile, Colômbia, Venezuela – em
termos de concentração de terra. Essa pesquisa também indica que
“aqueles [municípios] que estão em área de maior produção agrícola do
grande agronegócio têm os maiores níveis de pobreza e desigualdade.
Porque gera menos emprego e é mais concentrado [em termos fundiá-
rios]” (GONZALEZ, 2016).
O que essa constatação evidencia sobre a relação entre o agronegócio,
concentração de terra e pobreza no Brasil? A ideia de que o agronegócio
pode ser a salvação da pobreza no Brasil condiz com a realidade do país?
Reflita
A Índia é um país conhecido pela enorme quantidade de pessoas que
não têm habitação. Há pessoas tão pobres que são obrigadas a dormir
em seu local de trabalho, por exemplo, nas oficinas de costura, sentadas
em uma cadeira ou deitados sobre uma mesa; ou mesmo, sentadas
sobre os seus “tuc-tuc” – veículos parecidos com uma bicicleta,
destinados a transportar passageiros – estacionados na rua.
Fonte: iStock.
Pesquise mais
Você já ouviu falar na Carolina Maria de Jesus (1914-1977), uma escri-
tora que viveu por muitos anos a fome e a miséria e, apesar disso,
deixou diários escritos na década de 1960, que se transformaram em
livros e foram publicados no Brasil e em muitos outros países? Leia a
descrição de Carolina de Jesus de seu cotidiano: basta você escolher
uma semana de seus dias relatados. A autora o transportará para a
vida sofrida, porém reflexiva e combativa, de uma favelada. Repare
Assimile
É válido olhar para as respostas dos movimentos sociais às
desigualdades e à pobreza no Brasil, pois elas nos ajudam a entender
essas mazelas como socialmente produzidas. De fato, os movimentos
sociais refletem a ação organizada de uma coletividade para a defesa de
determinados interesses que são coletivos. As reivindicações desses
movimentos nos permitem identificar os fatores objetivos e as
especificidades que situam as desigualdades e a pobreza como um
fenômeno histórico, não como um processo inevitável.
Assim, evitamos cair nas armadilhas de representações das desigual-
dades sociais e da miséria como naturais, ou seja, como se fizessem
parte, desde sempre e para sempre, das sociedades; ou ainda como algo
decorrente de um mero “atraso” de populações que estão aprendendo a
se modernizar e quando, finalmente, se modernizarem e alcançarem os
padrões justos para o desenvolvimento, poderão sanar seus problemas
de desigualdade – ideia que remete à lógica das velhas teorias racistas e
evolucionistas do século XIX; ou, finalmente, como um problema indivi-
dual, resultante da indolência dos pobres.
Assimile
A literatura é hoje razoavelmente consensual em entender a pobreza
como um fenômeno multidimensional (OLIVEIRA; BUAINAIN; NEDER,
2012). Isso significa que a pobreza não é apenas uma questão de ter ou
não uma renda (ou do nível dessa renda), mas também de escolaridade,
tipo de emprego, acesso a saneamento básico, transporte, entre outros
fatores. Uma política pública eficiente deve levar em consideração essa
multidimensionalidade. No entanto, como vivemos em uma sociedade
na qual o dinheiro é central, muitos estudos baseiam suas análises da
pobreza em um de seus elementos fundamentais: a renda.
Excerto II:
Diálogo aberto
Caro aluno, seja bem-vindo à Seção 3.3, dedicada à
discussão do racismo, das desigualdades raciais e das
respostas que a sociedade brasileira tem proposto para
atuar nesses problemas.
No Brasil, presenciamos inúmeros casos graves de
racismo. Os assassi- natos constantes de jovens negros
são certamente o exemplo mais explícito dessa
gravidade. Basta lembrarmos do brutal assassinato, em
2018, da verea- dora negra da cidade do Rio de Janeiro,
defensora dos direitos da população negra, Marielle
Franco.
A indiferença reina, segundo a pesquisa da Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR) e do Senado Federal, que evidencia que 56%
da população brasileira considera que “a morte violenta
de um jovem negro choca menos a sociedade do que a
morte de um jovem branco” (ONUBR, [2017?]).
Na atualidade, o fato de o racismo ser considerado
um crime no Brasil, com penalidades previstas em lei,
parece não mais intimidar os ímpetos racistas latentes
em nossa sociedade. As redes sociais certamente são
os lugares em que esse temor se desfaz com menos
pudor, mas, para além das telas, a realidade no Brasil
também tem sido permeada de duras manifesta- ções
racistas por meio de xingamentos, humilhações de todo
tipo, pichações, violência psicológica e física contra os
negros e outros grupos vitimados por esse fenômeno.
É claro que o negro não é a única vítima do
racismo. Poderíamos perguntar, por exemplo, a um
brasileiro que já morou fora do Brasil, sobretudo nos
Seção 3.3 / Como combater nosso racismo? -
Estados Unidos e na Europa, se ele já sentiu na pele o
que é o racismo, às vezes mesmo sendo branco.
Poderíamos perguntar para os imigrantes e refugiados
de diferentes nacionalidades – não brancos ou de fé
religiosa não cristã – se são tratados, inclusive
legalmente, em posição de igualdade com os brasileiros
e o que isso significa em suas vidas.
No entanto, poderíamos também alargar o nosso
olhar para as nossas diver- sidades originárias, ou seja,
nossos povos indígenas. Para esses povos, segundo o
relatório da Comissão da Verdade, “o século XX se
caracterizou como um dos mais violentos da história
desde 1500” (BRIGHENTI, 2016, p. 240).
O que dizer então de nossos dias? Diversas
reportagens de jornais trazem
Assimile
O genocídio dos povos indígenas na América
Latina e no Brasil já foi documentado por muitos
estudos. No entanto, é importante atentarmos ao
que Souza e Wittman (2016) colocam em
evidência. Os autores chamam atenção ao fato
de que essas populações estão vivas e presentes
no território nacional, sendo também detentoras
de direitos, como todos os brasileiros. Nesse
sentido, destacam:
Pesquise mais
Sugerimos que você assista ao vídeo produzido
pela Editora Perspectiva sobre o livro do escritor
e Professor Abdias do Nascimento (1914-2011),
O genocídio do negro brasileiro em suas diversas
formas (1978). Perceba como o genocídio não
remete apenas à sua dimensão concreta, de
extermínio físico da população negra, mas
também à simbólica, relativa à psique, à
identidade do negro, que sofre diversos tipos de
violência cotidiana em uma sociedade racista.
O GENOCÍDIO do negro brasileiro em suas
diversas formas (1978). [S.l.]: Editora
Perspectiva, 2018. 1 vídeo (3min06s).
Exemplificando
O papel do movimento pró-cotas é provocar o
poder público a agir nas desigualdades raciais
seculares no Brasil. As discussões que surgiram
em torno da implantação da política de cotas nas
universidades públicas no Brasil, para o acesso e
a permanência estudantil de negros e indígenas,
explicitaram a atuação do racismo aqui:
Reflita
Confira as principais motivações que sustentam
as políticas de cotas raciais, na visão de Carvalho
(2005). Conforme destaca o autor, as cotas
“
raciais abrangem um campo mais amplo de lutas
antirracistas no Brasil.
Assimile
A Lei n. 11. 645/2008 (BRASIL, 2008) modificou o
art. 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (1996), conforme indicado a
seguir:
“
Art. 26-A: Nos estabelecimentos de
ensino funda- mental e de ensino
médio, públicos e privados, torna-se
obrigatório o estudo da história e
cultura afro-brasileira e indígena.
§ 2o Os conteúdos referentes à
história e cultura afro-brasileira e dos
povos indígenas brasileiros serão
ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas
áreas de educação artística e de
literatura e história brasileiras.
(BRASIL, 2008, [s.p.])
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Unidade 4
Convite ao estudo
Caro aluno, poucos tópicos de nosso estudo sobre sociedade brasileira e
cidadania tendem a apresentar discussões mais sensíveis do que os temas
que nos esperam nesta unidade: a pluralidade e a diversidade em pleno
século
XXI. Isso porque, via de regra, lidar com realidades, dinâmicas ou
problemas estranhos a nosso cotidiano – processos incontornáveis
quando tratamos das mais variadas formas de pluralidade no Brasil
contemporâneo – requer o esforço mental de imaginar situações
possivelmente desconhecidas e de forçar o exercício da alteridade, isto é,
de reconhecer a existência do outro e respeitar suas características e sua
forma de vida, em um processo que pode ampliar nossa tolerância ou, em
sentido inverso, elevar nosso desconforto ao sairmos de nossos espaços
tradicionais.
Se é verdade que os avanços tecnológicos mais recentes podem
expandir padrões de vida ao redor do globo com maior facilidade, as
reações naturais a essa uniformização tendem a ressaltar diferenças, que
também serão divul- gadas com mais profusão nos meios tecnológicos. Os
processos de padroni- zação e diferenciação encontram-se, curiosamente,
intensificados nos dois sentidos.
Diante desse quadro, se queremos compreender alguns dos elementos
fundamentais para uma abordagem crítica dos dilemas éticos e políticos
atuais, com o objetivo de fortalecer nossa participação cidadã na sociedade
brasileira contemporânea, devemos refletir a respeito de questões impor-
tantes, como a relação entre a democracia e a pluralidade, levando em conta
toda uma série de conceitos específicos desses campos de estudo. Também,
para assegurar o aspecto humanista de nossa formação, precisaremos nos
atualizar sobre as novas formas de afirmação das identidades contemporâ-
neas; abordando, igualmente, a retomada de movimentos tradicionalistas e
avessos a essas novidades.
Assim, deveremos nos perguntar se essa tolerância de que falamos
é mesmo necessária. Se vivemos em um mundo mais receptivo ou mais
fechado a novidades do que em tempos passados. O transcorrer do tempo
traz consigo, automaticamente, mais liberdades e uma maior aceitação das
diferenças? Ou essa pluralidade pode ser reduzida conforme os dias
passam,
exigindo um esforço específico para sua manutenção? Além disso, essa
diver- sidade seria boa ou ruim para a formação das sociedades? A
intolerância afeta apenas as vítimas ou é prejudicial também a quem a
pratica?
Nesse mesmo sentido, o aspecto quantitativo das populações interfere na
qualidade das garantias dos grupos sociais de nosso país, isto é, ser maioria
ou minoria é importante para que se tenha este ou aquele direito no Brasil?
Ou a afirmação dos direitos não tem nada a ver com a quantidade de pessoas
de uma comunidade específica? As comunidades minoritárias de nosso país
devem observar obrigatoriamente o que a maioria da população determinou?
Será que alguns problemas já longínquos da espécie humana – racismo,
machismo, nacionalismos – foram solucionados ou, pelo contrário, acentu-
ados? Talvez, em verdade, estejamos criando novas formas de intolerância ou
de ceticismo acerca dos problemas globais – como o aquecimento da tempe-
ratura terrestre? Ou mesmo retomando antigas formas de fanatismo, como o
fundamentalismo religioso?
A causa feminista, por exemplo, já está superada ou seus argumentos
ainda têm validade, mesmo nos dias de hoje? E as novas formas de se lidar
com as questões de gênero e sexualidade, são um exagero ou têm
importância para os indivíduos e sociedades contemporâneas?
Sejam quais forem as respostas, prezado aluno, a busca para defini-las
exigirá, certamente, reflexões e questionamentos fundamentais para nos
situarmos de modo consciente na sociedade em que vivemos.
Seção 4.1
Diálogo aberto
Não raras vezes nos deparamos com notícias nos jornais – ou somos nós
mesmos os próprios autores das declarações – de que um governo tomou
uma atitude incompatível com os valores democráticos; de que determi-
nada prática constitui uma afronta à pluralidade ou às liberdades essenciais
da democracia; ou de que uma postura apresenta inclinações autoritárias.
Por mais que essas informações sejam compreensíveis para grande parte
da população, o exercício de explicar os conceitos que estão por trás dessas
simples afirmações torna-se um pouco mais complexo.
Essa dificuldade pode ser entendida como resultado do uso de termos
corriqueiros de nosso cotidiano, que, entretanto, possuem fundamentos um
pouco mais elaborados e não tão trabalhados em nosso dia a dia. Assim, se
tomamos de exemplo o próprio Brasil, poderíamos dizer que a realização
de eleições periódicas e legítimas é motivo suficiente para considerarmos o
país uma democracia plena? O que podemos dizer, por exemplo, diante da
ausência de representatividade das nações indígenas, que não possuem um
único congressista eleito desde a Constituição de 1988? Em outro exemplo
que parece colocar em dúvida a plenitude de nossa democracia, como
avaliar os dados inquietantes compilados pela Comissão de Combate à
Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro (CCIR), que demonstraram que
“
[...] mais de 70% de 1.014 casos de ofensas, abusos e atos
violentos registrados no Estado entre 2012 e 2015 são contra
praticantes de religiões de matrizes africanas. [...] Por um lado
o racismo e a discriminação que remontam à escravidão e que
desde o Brasil colônia rotulam tais religiões pelo simples fato de
serem de origem africana, e, pelo outro, a ação de movimentos
neopentecostais que nos últimos anos teriam se valido de mitos
e preconceitos para “demonizar” e insuflar a perseguição a
umban- distas e candomblecistas (PUFF, 2016, [s.p.]).
Assimile
Motim?
Leia o trecho do livro A república, de Platão, e assimile como a situação
descrita pelo filósofo ilustra, por meio de uma comparação envolvendo
embarcações, a ideia de caos produzida em uma democracia, segundo a
lógica aqui estudada:
Assimile
Declaramos!
Reflita
Religiões – no plural!
Pesquise mais
Questão de fé
Assimile
Liberdade de ser contrariado?
Exemplificando
Livre para...
Diálogo aberto
“Menina não pode sentar desse jeito!”, “Homem não
chora!”, “Mulher dirigindo é um perigo...”, “Menino é
mesmo desorganizado, não tem jeito...”. Você certamente
já ouviu uma dessas frases, não é mesmo, caro aluno?
Essas e, com certeza, mais uma infinidade de afirmações
que atribuem a homens e mulheres, a meninos e meninas,
aptidões e obrigações diferentes, estabe- lecendo certas
formas de agir – e, sobretudo, de não agir – a este ou
aquele sexo. Entretanto, se é verdade que essas alegações
são muito frequentes em nosso dia a dia, as justificativas
para tais posicionamentos nem sempre estão presentes ou
são satisfatórias. Afinal, o que justifica uma prática como
um comportamento deste ou daquele sexo? De onde se
origina a ideia de que uma atitude é coisa de homem ou de
mulher? Da biologia? Da tradição de nosso povo? Da
cultura vigente em nossa sociedade?
A fim de melhor entendermos como essas questões se
desenvolvem em nossa sociedade, focaremos nosso estudo
nos fundamentos e nas conse- quências do conceito de
gênero, tão frequente nas discussões atuais. Para tanto,
será enriquecedor voltarmos um pouco no tempo, nos
familiarizando com pensamentos e autoras que, alertando
para certas desigualdades entre homens e mulheres, nos
ajudarão a analisar a situação feminina contempo- rânea,
sobretudo no campo profissional.
Além de uma análise conceitual e histórica, essa reflexão
pode nos ajudar a entender uma outra situação recorrente
na sociedade brasileira: a violência contra a mulher e os
crescentes casos de feminicídio. Dependendo de seu sexo e
de sua vida até aqui, essa situação pode lhe parecer
Pesquise mais
Terceiro – ou diverso
Reflita
Papéis masculinos e femininos – ou papéis conferidos
a homens e mulheres?
Assimile
História masculina
Reflita
Diferenças e desigualdades
Pesquise mais
Sufragistas
Reflita
Machismo – uma faca de dois gumes
Exemplificando
Desigualdade desde cedo...
Pesquise mais
E no mundo?
Pesquise mais
“Mimimi” – ou não?
“ De onde surgiu?
O termo foi cunhado pela Igreja Católica, na
Conferência Episcopal do Peru, em 1998, para se
referir a uma linha de pensa- mento que seria
contrária à divisão da humanidade entre mascu-
lino e feminino. Nela, os gêneros são moldados
de acordo com a estrutura cultural e social dos
indivíduos. Essa ideologia é consi- derada pelos
religiosos um perigo para o mundo, uma
doutrina que poria em risco a concepção de
família.
Não é um conceito teórico.
A questão é que, entre pesquisadores da área,
essa linha de pensamento nem sequer existe.
Doutora em estudos de repre- sentatividade de
gênero pela UFSC (Universidade Federal de
Santa Catarina), a escritora Fernanda Friedrich
afirma que os teóricos não negam diferenças
físicas e biológicas de homens e mulheres. “O
que fazemos é identificar essas diferenças e
compreender como elas criam desigualdades
entre as pessoas. Por exemplo, por que um
homem branco tem uma relação com a
sociedade e uma mulher negra tem outra?”,
questiona. Como explica o pesquisador Rogério
Diniz Junqueira, do Centro de Estudos
Multidisciplinares Avançados da UnB
(Universidade de Brasília), o termo ideologia de
gênero não é considerado um conceito teórico,
Diálogo aberto
Prezado aluno, chegamos à última seção da última unidade
desta disci- plina. Nesse momento de nosso estudo, já deve
estar claro que a pluralidade e a diversidade constituem
atributos importantes para a democracia e a socie- dade
brasileiras. Sendo assim, seria enriquecedor para nosso país
que teste- munhássemos o florescimento de diferentes modos
de vida e de pensar em nosso território, não é mesmo?
Entretanto, ao defendermos a multiplicidade de pontos de
vista, é interessante nos questionarmos se qualquer opinião,
ideologia ou perspec- tiva encontraria proteção na tão
valorizada diversidade. E se, eventualmente, uma compreensão
de mundo pregasse exatamente a redução da pluralidade?
Devemos considerá-la como apenas mais um entendimento
diverso, em linha com a democracia plural, que deve, portanto,
ser respeitado? Ou existi- riam fatores específicos nesse
posicionamento que excluem essa concepção de mundo
daquilo que valorizamos enquanto sociedade diversificada?
Em suma: a intolerância deve ser tolerada? Se não toleramos
algo intolerante, estamos sendo, nós também, intolerantes?
Veja como essas reflexões têm aplicabilidade imediata em
nossa socie- dade contemporânea, sendo fácil identificarmos
manifestações extremas, muitas vezes violentas, que se
chocam com a diversidade já existente em nosso país. Um caso
emblemático nesse sentido foi o ataque a um refugiado sírio,
ocorrido em 2017, gravado em vídeo e tema da reportagem
citada a seguir:
Pesquise mais
Identidade
Pesquise mais
Intolerância
Reflita
Forte – só que ao contrário...
Exemplificando
Laicidade no Brasil
Reflita
Tudo é permitido...
Assimile
Um mundo virtual à nossa imagem e semelhança
Pesquise mais
Real ou mentira – eis a questão!
Fonte: https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,para-ipcc-planeta-nunca-esteve-pior-
imp-,1079259. Acesso em: 31 jan. 2019.
Pesquise mais
Inconveniente, mas presente
Exemplificando
Clima e tempo
Por que frio recorde nos EUA não é argumento válido para negar aqueci-
mento global. BBC Brasil, 2018.
AFFONSO, J.; VASSALLO, L. Liberdade de expressão não pode ser usada para discurso de ódio,
diz juiz. Estadão, São Paulo, 2017. Disponível em:
https://politica.estadao.com.br/blogs/faustol-
-macedo/liberdade-de-expressao-nao-pode-ser-usada-para-discurso-de-odio-diz-juiz/. Acesso
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