Tese Henrique Barandier

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

HENRIQUE GASPAR BARANDIER

NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA E PROJETO URBANO


NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

RIO DE JANEIRO
2015
Henrique Gaspar Barandier

NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA E PROJETO


URBANO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Urbanismo, Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em Urbanismo,

Orientador: Prof. Dra. Denise Barcellos Pinheiro Machado

Rio de Janeiro
2015

I
Barandier, Henrique Gaspar.
B225 Negligência urbanística e projeto urbano na cidade do Rio de Janeiro /
Henrique Gaspar Barandier. Rio de Janeiro: UFRJ / FAU, 2015.

xv, 237 f.: il.; 30 cm.


Orientador: Denise Barcellos Pinheiro Machado.
Tese (doutorado) – UFRJ / PROURB / Programa de Pós-Graduação em
Urbanismo, 2015.
Referências bibliográficas: f. 223-237.
1. Revitalização urbana – Rio de Janeiro (RJ). 2. Gestão urbana – Rio de
Janeiro (RJ) - História. 3. Projeto urbano - Rio de Janeiro (RJ). 4. Projeto Porto
Maravilha - Rio de Janeiro (RJ). 5. Planejamento urbano - Rio de Janeiro (RJ) –
Aspectos políticos. 6. Gestão pública – Rio de Janeiro (RJ) – Qualidade. I.
Machado, Denise Barcellos Pinheiro. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em
Urbanismo. III. Título.
CDD 711.4098153
Henrique Gaspar Barandier

NEGLIGÊNCIA URBANlsTICA E PROJETO


URBANO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Urbanismo, Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em Urbanismo,

Aprovada em 26 de agosto de 2015 por

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Prof. Ora. Denise Barcellos Pinheiro Machado - Orientadora
(PROURB - FAU/UFRJ)

Prof. Ora. Lucia Maria Sã Antunes Costa


(PROURB - FAU/UFRJ)

Rio de Janeiro
2015
AGRADECIMENTOS

Gostaria de registrar nessas páginas iniciais meus agradecimentos a todos que


de algum modo me ajudaram no processo de elaboração desta tese. Foram
muitas pessoas e de diferentes formas, mas faço aqui alguns destaques por
razões diversas.

Começo pelos agradecimentos institucionais. Primeiro, agradeço ao CNPq pela


concessão da bolsa que me deu um suporte importante ao longo de todo o
período doutorado. E, igualmente, agradeço à CAPES pela bolsa para realização
de estágio no exterior, que foi muito proveitoso para o desenvolvimento do
trabalho.

Em relação ao período no exterior, na França, agradeço ao Laboratoire


Techniques, Territoires et Sociétés - LATTS, École de Ponts, Université Paris-Est
por me acolher durante um ano, me oferecendo as melhores condições de
trabalho. E faço um agradecimento muito especial ao meu orientador de lá, Prof.
Pierre Arnaud-Barthel, pela generosidade, apoio constante e trocas
enriquecedoras em torno dos temas de pesquisa. Agradeço ainda aos colegas -
doutorandos, pesquisadores e professores - do Axe de Recherche Économie
Politique de la Production Urbaine, do qual tive a oportunidade de participar
enquanto estive no LATTS e acompanhar o momento inicial de sua estruturação.

Obviamente, agradeço também, e muito, ao PROURB.

Agradeço a todo corpo docente do programa, mas em especial aos professores


com quem tive maior convívio dentro e fora de sala de aula nesse período de
doutorado e que muito contribuíram para o desenvolvimento do trabalho e meu
como pesquisador. Destaco as Professoras Rachel Coutinho, Margareth Pereira,
Rosângela Cavallazzi, Lucia Costa, Lilian Vaz e Luciana Andrade. E faço um
agradecimento especial à Professora Ana Lucia Britto que, no âmbito do projeto
CAPES-COFECUB por ela coordenado, viabilizou minha bolsa para o doutorado
sanduíche.

Entre os professores, no entanto, não seria possível deixar fazer o agradecimento


mais do que especial à minha orientadora, Professora Denise Barcellos Pinheiro
Machado, com quem tenho imenso prazer de trabalhar com há vários anos. Ela
foi fundamental durante todo percurso, sendo sempre companheira e acolhedora,
mas também crítica nos momentos necessários para o avanço do trabalho.

Ainda no PROURB, agradeço à equipe da secretaria, Keila, Margareth e Marcia,


que com competência e cordialidade sempre me apoiaram e orientaram nos
trâmites institucionais e em nome delas, todo o corpo de funcionários.

E claro, agradeço a todos os colegas, em especial os da minha turma de 2011,


com quem tive o prazer de conviver nesses anos, sobretudo nos seminários de
tese, onde aprendi muito com trabalhos tão diversos e interessantes. Mas faço
agradecimento especialmente a Rossana, que tendo ido para França antes de
mim para o doutorado sanduiche, me ajudou muito nas providências antes da
partida e no momento de instalação.

III
Agradeço também à equipe do Laboratório de Projetos Urbanos - LAPU,
coordenado pela Prof. Denise Barcellos Pinheiro Machado. Em especial a Maria
Beatriz Afflalo Brandão, nossa querida Bitiz, que sempre esteve disposta a discutir
temas relacionados a nossas teses e aos pesquisadores de iniciação científica
Patricia Knop e Daniel Mello, que na reta final muito me ajudaram na formatação
de mapas, tabelas, imagens, transcrições, sempre com dedicação, curiosidade e
bom humor.

Alguns agradecimentos mais pessoais são também necessários. Primeiro,


agradeço aos grandes amigos Thereza Cristina Baratta e Ricardo Moraes. Ao
agradecê-los, faço minha reverência a toda equipe do IBAM, instituição onde
tenho trabalhado há muitos anos, tendo sido importantíssima na minha trajetória
profissional, o que, de algum modo, se reflete nesta tese. Agradeço-os pelo
companheirismo de sempre, pelo estímulo, pelas contribuições que deram ao
trabalho.

Em seguida, agradeço muito a Mariana e Gilney, pela amizade, pelo incentivo e


pelo grande apoio que me deram na temporada na França, onde moram já há
muitos anos.

Por fim, meus os agradecimentos aos meus familiares. Sem o apoio diário deles,
prático e emocional, teria sido bastante difícil. Primeiro agradeço aos meus pais,
Antonio Carlos e Maria da Paz, por tudo, sempre, sendo quase impossível
expressar em palavras a relevância deles nesse período um tanto quanto
conturbado. E, para concluir, agradeço, evidentemente, a Milena, minha
companheira de vida, que foi a primeira a me encorajar e a me mostrar que era o
momento de se fazer o doutorado. Junto com ela, agradeço a nossos amados
filhos Daniel e Michel, que ainda pequenininhos, talvez tenham tido dificuldades
de entender alguns momentos de distanciamento que acabaram sendo
necessários. Todos eles viveram comigo esse processo e tiveram a generosidade
de me aturar. Mas acho que vão ficar satisfeitos com resultado final, ou pelo
menos aliviados. Juntos, partiremos para outras aventuras.

IV
RESUMO

A presente tese trata de formas de negligência urbanística que permeiam as


práticas de gestão nas cidades brasileiras e se expressam fisicamente, sobretudo,
pelas desigualdades territoriais, muitas vezes fomentadas pela ação pública ou
por omissões do Estado.

Tendo como interesse principal a reflexão sobre a cidade do Rio de Janeiro, que
nesses últimos anos passa por grandes obras, mas não necessariamente por
transformações significativas, o trabalho analisa a prática de projetos urbanos,
que tem sido privilegiada na gestão urbana carioca das últimas décadas, num
contexto em que subjaz um quadro de negligência urbanística que se impõe de
diferentes formas sobre o território, em especial, pelas tendências de segregação
socioespacial e de reprodução de padrões insustentáveis de urbanização
determinadas por dois fenômenos principais: dispersão urbana e informalidade
urbana crescente.

De um lado, se observa que a prática de projetos urbanos no Rio de Janeiro não


rompeu com o urbanismo normativo tradicional, que, do ponto de visto teórico, a
noção de projeto urbano se contraporia. E também não rompeu com lógicas que
orientam o desenvolvimento urbano desigual e excludente na cidade. Por outro
lado, são abordadas mudanças nos significados e formatos do projeto urbano nas
últimas décadas, que revelam como essa prática, no modo como tem se
configurado no Rio de Janeiro, desvinculada da revisão do aparato normativo e
instrumental de gestão urbana - de tradição elitista, tecnocrática e burocrática -,
tem sido muito mais determinada pelo perfil e prioridades de cada prefeito do que
pela constituição de uma cultura de projetos urbanos relacionada a um processo
de discussão continuado sobre a cidade, permeável às diferentes visões e
disputas que fazem parte da construção democrática.

Conceitualmente, a noção de negligência urbanística é desenvolvida a partir de


três dimensões principais: negligência urbanística estrutural; negligência
urbanística operacional; e negligência urbanística projetual. Para abordá-las em
reflexões sobre o Rio de Janeiro, o exercício analítico empreendido se divide em
três vertentes. A primeira é dedicada à análise da dinâmica urbana recente da
cidade, da permanência de uma legislação urbanística anacrônica e dos
retrocessos do novo plano diretor aprovado em 2011. Em seguida, são
identificadas e caracterizadas três gerações de projetos urbanos que abrangem
os anos 1980 e o contexto de redemocratização do país; os anos 1990 e a
oposição entre a agenda da reforma urbana e a agenda neoliberal para as
cidades; e o período atual, iniciado nos anos 2000 e marcado pela realização de
grandes eventos esportivos internacionais no Rio de Janeiro com suas promessas
de legado urbano. Por fim, é analisado o projeto de renovação da área portuária
em andamento desde 2009, com a instituição da Operação Urbana Consorciada
Porto Maravilha.

Palavras-chave: Negligência Urbanística; Projeto Urbano; Rio de Janeiro; Direito


à Cidade

V
ABSTRACT

This dissertation studies the urban negligence that pervades the practices in public
administration in Brazilian cities which it is physically expressed through territorial
inequalities that, in many cases, is fostered by public actions or by government
oversight.

As the prime concern is to consider the city of Rio de Janeiro, which, in recent
years, has undergone major civil construction works although they did not
necessarily led to meaningful transformations; this study assesses the practice of
urban planning in a context that underlines a framework of urban negligence in the
city, taking into consideration that urban planning has been privileged in “carioca”
urban administration practice for the last decades; The framework of urban
negligence is imposed over the territory through many ways; in particularly, the
trends of socio-spatial segregation and reproduction of unsustainable urbanization
patterns which are characterized by two main phenomena: growing urban
dispersion and urban informality.

On one hand, it is observed that the practice of urban planning in Rio de Janeiro
did not break with the traditional ruling principles of urbanism, which from the
theoretical point of view, the concept of urban planning would be in opposition. So
much that it did not break with the rationale that fosters unequal and excluding
urban developments in the city. On the other hand, this paper also explores the
changes in meaning and organization of urban planning that have revealed how
this practice, as it has existed in Rio de Janeiro in recent decades, is disconnected
from the revisions of the normative and instrumental apparatus of urban
administrations – traditionally being elitist, technocratic and bureaucratic. The
practice of urban planning has been much more determined by the profile and
priorities of each mayor than by the nurture of a culture of urban projects linked to
the continuous process of discussions about the city, thus allowing different
thoughts and disputes to permeate in the democratic construction.

Conceptually, the notion of urban negligence is developed from three main


dimensions: urban structural negligence, urban operational negligence and urban
project negligence. This analytical exercise about the city of Rio de Janeiro is
divided in three parts. The first one is dedicated to the analysis of the recent urban
dynamics, to the study of the extension of an anachronous urban legislation and
the setbacks produced by the new master plan, approved in 2011. The second
part identifies and characterizes three generations of urban projects, starting in the
80’s and the country’s re-democratization context; the 90’s and the dichotomy
between the urban reform agenda and the neo-liberal agenda for the cities and the
final period, beginning in 2000 up to the current days, that it is marked by
international mega sports events being held in the city and their promises of urban
legacies. The third and last point investigates the project for the renovation of the
Harbor area, ongoing since 2009, and the constitution of Porto Maravilha Urban
Operations Consortium.

Key words: Urban Negligence; Urban Project; Rio de Janeiro; Right to the City

VI
RESUMÉ

Cette thèse examine les formes de négligence urbanistique qui pénètrent les
pratiques de gestion des villes brésiliennes et qui s'expriment physiquement et
particulièrement par des inégalités territoriales, souvent déclenchées par l'action
publique ou par les omissions de l'Etat.

Le domaine d'intérêt de ce travail est une réflexion sur Rio de Janeiro, ville qui au
cours des dernières années est le siège de grands travaux, mais sans entraîner
nécessairement des transformations significatives. L'étude analyse la pratique de
projets urbains – privilégiés par la gestion urbaine "carioca" des dernières
décennies – dans un contexte sous-tendu par un cadre de négligence
urbanistique qui s'impose de diverses façons sur le territoire, tout particulièrement
au moyen de certaines tendances de ségrégation socio-spatiale et de
reproduction de standards non durables d'urbanisation entrainées par deux
phénomènes principaux : la dispersion et l'informalité urbaine croissante.

Il est utile d'observer, d'une part, que la pratique des projets urbains à Rio de
Janeiro n'a pas répudié l'urbanisme normatif traditionnel, auquel, du point de vue
théorique, s'opposerait la notion de projet urbain. Il n'a pas, non plus, rompu avec
les logiques qui orientent le développement urbain inégal et excluant de la ville.
D'autre part, l'étude aborde les changements constatés des significations et des
formats du projet urbain au fil des dernières décennies, qui révèlent la façon dont
ces pratiques, comme elles se reconfigurent à Rio – détachées de la révision de
l'appareil normatif et instrumental de gestion urbaine de tradition élitiste,
technocratique et bureaucratique – sont beaucoup plus établies par le profil et par
les priorités de chaque maire, que par la constitution d'une culture de projets
urbains liée à un processus de discussion continu sur la ville, perméable aux
différentes visions et aux différends qui font partie du processus de construction
démocratique.

Conceptuellement, la notion de négligence urbanistique est développée à partir de


trois dimensions principales : négligence urbanistique structurelle, négligence
urbanistique opérationnelle, et négligence urbanistique projectuelle. Pour aborder
ces dimensions dans le cadre des réflexions faites sur Rio de Janeiro, l'exercice
analytique entrepris est partagé en trois volets. Le premier se consacre à l'analyse
de la dynamique urbaine récente de la ville, de la permanence d'une législation
urbanistique anachronique et des régressions apportées par le nouveau schéma-
directeur adopté en 2011. Ensuite trois générations de projets sont identifiées et
caractérisées, englobant les années 1980 et le contexte de redémocratisation du
pays ; les années 1990 et l'opposition entre l'agenda de la réforme urbaine et
l'agenda néolibérale établie pour les villes ; et la période actuelle commencée en
2000 et marquée par la réalisation de grands évènements sportifs internationaux à
Rio et ses promesses de legs urbain. Finalement, sont analysés le projet de
rénovation de la zone portuaire, en cours depuis 2009, à partir de la création de
l'Opération Urbaine Concertée Porto Maravilha.

Mots-clés: Négligence Urbanistique; Projet Urbain; Rio de Janeiro; Droit à La Ville

VII
LISTA DE FIGURAS

Figura 01. Áreas de Planejamento da Cidade do Rio de Janeiro......................... 44

Figura 02. Favelas na cidade do Rio de Janeiro.................................................. 51

Figura 03. Conjuntos Zé Keti e Ismael Silva (PMCMV)........................................ 68

Figura 04. Anúncio de aprovação do projeto Centro da Barra............................. 69

Figura 05. Área urbanizada do Rio de Janeiro nas décadas de 1970 e 2010......70

Figura 06. Centro da Barra e Centro do Rio......................................................... 72

Figura 07. Macrozoneamento do Município do Rio de Janeiro............................ 93

Figura 08. Barra da Tijuca: criação de acessos....................................................116

Figura 09. Centro do Rio e perímetros do Corredor Cultural................................118

Figura 10. Corredor Cultural................................................................................. 120

Figura 11. Projeto Rio Cidade (exemplos)............................................................ 136

Figura 12. Programa Favela Bairro (exemplos).................................................... 141

Figura 13. Cidade do Rio de Janeiro - Área Central: uma visão de futuro........... 143

Figura 14. Projeto Teleporto................................................................................. 144

Figura 15. Projetos urbanos na área central nos anos 1990 (exemplos)............. 145

Figura 16. Arquitetura icônica na cidade do Rio de Janeiro................................. 154

Figura 17. Projetos para a Favela Santa Marta.................................................... 160

Figura 18. Grandes obras em favelas...................................................................161

Figura 19. Projeto Teleporto Rio na área portuária (1985)................................... 176

Figura 20. Cidade do Samba e projeto do Museu Guggenheim.......................... 178

Figura 21. OUC Porto Maravilha (Localização).................................................... 183

Figura 22. Trump Towers e Porto Vida Residencial............................................. 186

Figura 23. Porto Olímpico..................................................................................... 195

Figura 24. Obras viárias no Porto Maravilha........................................................ 197

Figura 25. Perímetros da operação Puerto Madero, Paris Rive Gauche e Porto
Maravilha.............................................................................................................. 200

VIII
Figura 26. Puerto Madero e Paris Rive Gauche................................................... 201

Figura 27. Porto Maravilha: simulação 3D............................................................ 212

LISTA DE MAPAS

Mapa 01. Bairros que ganharam e bairros que perderam população na década
de 1990 na cidade do Rio de Janeiro................................................................... 46

Mapa 02. Bairros que ganharam e bairros que perderam população na década
de 2000 na cidade do Rio de Janeiro................................................................... 47

Mapa 03. Favelas e loteamentos clandestinos e irregulares na cidade do Rio


de Janeiro............................................................................................................. 54

Mapa 04. Bairros do Rio de Janeiro que tiveram unidades do PMCMV


licenciadas entre 2009 e 2013.............................................................................. 62

Mapa 05. Bairros do Rio de Janeiro que tiveram unidades do PMCMV


licenciadas na faixa de 0 a 3 SM entre 2009 e 2013............................................ 64

Mapa 06. Principais movimentos populacionais na direção oeste do território


da cidade do Rio de Janeiro nas últimas décadas............................................... 74

Mapa 07. Concentração territorial de famílias de baixa e alta renda na cidade


do Rio de Janeiro em 2000................................................................................... 76

Mapa 08. Concentração territorial de famílias de baixa e alta renda na cidade


do Rio de Janeiro em 2010................................................................................... 77

Mapa 09. Síntese das transformações urbanas em curso na cidade do Rio de


Janeiro.................................................................................................................. 99

Mapa 10. Rio 2016: Regiões Olímpicas............................................................... 165

Mapa 11. Concepção urbanística da OUC Porto Maravilha................................. 191

Mapa 12. Índices de Aproveitamento de Terreno (IATs) na área de renovação


da OUC Porto Maravilha (área de aplicação dos CEPACs)................................. 193

Mapa 13. Empreendimentos anunciados na OUC Porto Maravilha (até 2014)....205

Mapa 14. Empreendimentos licenciados na OUC Porto Maravilha (até 2014).... 206

Mapa 15. Empreendimentos licenciados na OUC Porto Maravilha com


utilização de CEPACs (até 2014)......................................................................... 207

IX
LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Taxas Geométricas de Crescimento Anual da População da Cidade


do Rio de Janeiro entre 1980 e 2010....................................................................43

Tabela 2. População e Incremento Demográfico do Município do Rio de


Janeiro, por Área de Planejamento, no Período de 1980 a 2000 e Participação
das Áreas de Planejamento 4 e 5 no Incremento Total........................................ 44

Tabela 3. População e Incremento Demodráfico do Município do Rio de


Janeiro, por Área de Planejamento, no Período de 2000 a 2010 e Participação
das Áreas de Planejamento 4 e 5 no Incremento Total........................................ 45

Tabela 4. Incremento de Domicílios Particulares Permanentes no Município do


Rio de Janeiro, por, Área de Planejamento, no Período 1991 a 2010................. 49

Tabela 5. População Total e população Residente em Favela, no Período 1980


a 2010................................................................................................................... 50

Tabela 6. Incremento Total da População e da População Residente em


Favela no Rio de Janeiro, no Período 1980 a 2010............................................. 51

Tabela 7. Total de Unidades Residenciais Acrescidas ao Estoque do Rio de


Janeiro, nos Períodos 1991-2000 e 2000-2010, segundo dados dos Censos
Demográficos do IBGE......................................................................................... 56

Tabela 8. Estimativa do Total de Unidades Residenciais Irregulares Acrescidas


ao Estoque do Rio de Janeiro, nos Períodos 1991-2000 e 2000-2010,
Segundo Comparação Entre Dados dos Censos Demográficos do IBGE e do
Licenciamento Urbanístico do Município.............................................................. 59

Tabela 9. Total de Unidades Residenciais Licenciadas no Rio de Janeiro, por


Área de Planejamento, no Período 2007-2013.....................................................60

Tabela 10. Total de Empreendimentos e Unidades Licenciadas no Âmbito do


Programa Minha Casa Minha Vida no Município do Rio de Janeiro, por Área
de Planejamento e por ano no Período 2009 a 2013........................................... 60

Tabela 11. Total de Empreendimentos e Unidades Licenciadas no Âmbito do


Programa Minha Casa Minha Vida no Município do Rio de Janeiro, por Área
de Planejamento e Percentual em Relação à Cidade, no Período 2009 a 2013. 61

Tabela 12. Total de Empreendimentos e Unidades Licenciados no Âmbito do


Programa Minha Casa Minha Vida no Município do Rio de Janeiro, por Faixa
de Renda, no Período 2009 a 2013...................................................................... 65

Tabela 13, Total de Unidades Licenciadas no Âmbito do Programa Minha


Casa Minha Vida no Município do Rio de Janeiro, por Área de Planejamento e
por Faixa de Renda, no Período 2009 a 2013...................................................... 66

X
Tabela 14. Licenciamento de novas edificações na Região Portuária entre
2009 e 2014.......................................................................................................... 202

Tabela 15. Empreendimentos que consumiram estoque de potencial adicional


construtivo da OUC Porto Maravilha nos anos de 2012, 2013 e 2014.................203

Tabela 16. Licenciamento de novas edificações na Área de Planejamento 4 da


Cidade do Rio de Janeiro entre 2009 e 2014....................................................... 210

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACRJ - Associação Comercial do Rio de Janeiro


ADEMI - Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário
AEIS - Área de Especial Interesse Social
APA - Área de proteção Ambiental
APAC - Área de Proteção do Ambiente Cultural
ATE - Área Total Edificada
BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento
BNH - Banco Nacional de Habitação
BRT - Bus Rapid Transit
CAIXA - Caixa Econômica Federal
CDURP - Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de
Janeiro
CEPAC - Certificado de Potencial Adicional de Construção
CF88 - Constituição Federal de 1988
EIV - Estudo de impacto de Vizinhança
FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
IAB - Instituto de Arquitetos do Brasil
IAT - Índice de Aproveitamento de Terreno
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
MIS - Museu da Imagem e do Som
MSF - Médicos Sem Fronteiras
OMS - Organização Mundial de Saúde
ONU - Organização das Nações Unidas
OODC - Outorga Onerosa do Direito de Construir
OUC - Operação Urbana Consorciada
PAC - Programa de Aceleração do Crescimento
PCRJ - Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
PDBG - Programa de Despoluição da Baía de Guanabara

XI
PEU - Projeto de Estruturação Urbana
PIB - Produto Interno Bruto
PMCMV - Programa Minha Casa Minha Vida
POUSO -
PPP - Parceria Público-Privada
PROAPAR - Programa Municipal de Parcerias Público-Privadas
RDC - Regime Diferenciado de Contratações Públicas
RMRJ - Região Metropolitana do Rio de Janeiro
SABREN - Sistema de Assentamentos de Baixa Renda
SFH - Sistema Financeiro de Habitação
SMU - Secretaria Municipal de Urbanismo
VLT - Veículo Leve sobre Trilhos
ZUM - Zona Urbana Mista

XII
ÍNDICE

INTRODUÇÃO..................................................................................................... 01

Capítulo 1
NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA: REFERÊNCIAS CONCEITUAIS..................... 10

1.1. Significados da negligência e abordagens preliminares........................ 12

1.1.1. Negligência e a dimensão jurídica do termo.................................... 13

1.1.2. Temas negligenciados..................................................................... 17

1.1.3. Urbanização, desenvolvimento e negligência.................................. 21

1.2. Negligência urbanística em três dimensões: estrutural, operacional e


projetual.............................................................................................................. 25

1.2.1. Negligência urbanística estrutural.................................................... 27

1.2.2. Negligência urbanística operacional................................................ 32

1.2.3. Negligência urbanística projetual..................................................... 36

Capítulo 2
DISPERSÃO URBANA, INFORMALIDADE URBANA E O QUADRO DE
NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO................. 39

2.1. Notas sobre a dinâmica urbana recente do Rio de Janeiro.................... 40

2.1.1. Baixo crescimento da população e expansão acelerada da


cidade........................................................................................................ 42

2.1.2. Favelização contínua e crescimento da informalidade urbana........ 47

2.1.3. A informalidade urbana: um fenômeno para além das favelas........ 52

2.1.4. O impacto do Programa Minha Casa Minha Vida............................ 59

2.2. Dispersão urbana e informalidade "planejadas"...................................... 68

2.2.1. A Barra da Tijuca............................................................................. 68

2.2.2. Excesso de normas e estado de anomia......................................... 79

2.3. Um novo plano diretor para a cidade?...................................................... 88

2.3.1. O plano diretor de 2011 e as grandes obras em curso no Rio de


Janeiro....................................................................................................... 89

XIII
2.3.2. Índices de Aproveitamento de Terreno (IAT), Macrozoneamento e
Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC).................................... 91

2.4. Conclusões parciais.................................................................................... 96

Capítulo 3
TRÊS GERAÇÕES DE PROJETOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO............ 100

3.1. Sobre projetos urbanos e o debate no contexto brasileiro 101

3.1.1. Projetos urbanos, ambiguidades, contradições............................... 101

3.1.2. Projeto urbano no contexto brasileiro.............................................. 107

3.2. Primeira geração de projetos urbanos (1979 a 1992): experiências


precursoras......................................................................................................... 112

3.2.1. A cidade, definitivamente, avança em direção à Barra.................... 116

3.2.2. O Corredor Cultural na área central do Rio de Janeiro................... 118

3.2.3. Ações em favelas - mudança de postura......................................... 122

3.2.4. O fim do ciclo dos anos 80: o Plano Diretor de 1992....................... 126

3.3. Segunda geração de projetos urbanos (1993 a 2000): urbanismo de


projetos............................................................................................................... 130

3.3.1. Rio Cidade e Favela Bairro.............................................................. 134

3.3.2. Projetos urbanos para a área central............................................... 142

3.3.3. A consolidação da Barra da Tijuca.................................................. 147

3.4. Terceira geração de projetos urbanos (2000 a ): urbanismo


genérico............................................................................................................... 148

3.4.1. O foco sobre objetos arquitetônicos................................................ 150

3.4.2. Porto Maravilha e ausência de projeto para a área central............. 155

3.4.3. Grandes obras também em favelas e novamente as remoções..... 158

3.4.4. Jogos Panamericanos e Olimpíadas: a opção pela Barra............... 163

3.5. Conclusões parciais.................................................................................... 170

3.5.1. Forma urbana, objetos de intervenção e agentes formuladores


dos projetos............................................................................................... 170

XIV
3.5.2. Projetos urbanos e o desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro.. 172

Capítulo 4
NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA NA RENOVAÇÃO URBANA DA ÁREA
PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: O PROJETO PORTO MARAVILHA........ 174

4.1. "Sonho que virou realidade" ou projeto sem adesão social................... 175

4.1.1. Vários projetos para a área portuária do Rio de Janeiro................. 175

4.1.2. O "pacote legislativo" do Porto Maravilha........................................ 180

4.2. Porto Maravilha e o destino da área portuária do Rio de Janeiro.......... 183

4.2.1. Concepção urbanística do Porto Maravilha..................................... 186

4.2.2. O "Programa Básico de Ocupação da Área"................................... 189

4.2.3. O perímetro da operação e as perspectivas de sua ocupação....... 197

4.2.4. Incertezas no processo de renovação da área portuária................. 200

4.2.5. O Porto Maravilha e a cidade do Rio de Janeiro............................. 208

4.3. Conclusões Parciais................................................................................... 209

CONCLUSÃO...................................................................................................... 214

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................... 223

XV
INTRODUÇÃO

O cenário de vastas áreas de urbanização precária que caracteriza as cidades


brasileiras, sobretudo as grandes metrópoles é desolador. A informalidade urbana
estrutural já bem descrita na nossa literatura, ao mesmo tempo resultado e
produtora de desigualdades, expõe a contraposição entre a cidade em grande
parte autoconstruída em áreas inadequadas à ocupação urbana e a cidade
produzida pelo mercado imobiliário formal de acordo (mas nem sempre) com as
normas urbanísticas e dirigida às classes sociais mais favorecidas.

A imagem da informalidade urbana, ainda crescente, apesar dos avanços


conceituais, legais e na ação das diferentes esferas de governo em relação ao
tema nas últimas décadas, foi o que suscitou, inicialmente, a inquietação que
conduziria à proposição de uma expressão para indicar a temática principal desta
tese: "negligência urbanística".

O termo negligência foi adotado porque pareceu interessante para qualificar, no


âmbito de uma reflexão teórica, posturas, processos, opções técnicas e políticas
que permeiam a gestão das cidades brasileiras. Entre os seus vários sentidos,
negligência pode, por exemplo, indicar omissão e desleixo, o que muito tem a ver
com a postura do Estado diante da expansão periférica das áreas urbanas, da
reprodução da informalidade urbana e da oferta restrita de moradia adequada e
bem localizada nas cidades. Pode ser considerada, também, como uma
modalidade de maus-tratos - tomando como referência sua aplicação em relação
a crianças, adolescentes e idosos - e, nesse sentido, nos leva a pensar como
nossas cidades vêm sendo maltratadas cotidianamente, não apenas por
governantes, mas pela própria sociedade, como demonstram seus espaços
públicos degradados e preteridos pelos shopping centers, condomínios fechados
etc. Pode, igualmente, significar indiferença, aplicável, por exemplo, à abordagem
de problemas e conflitos sociais no espaço urbano pelo viés tecnocrático, ainda
muito presente na formulação e implementação de políticas, programas e projetos
urbanísticos. A noção de negligência sugere ainda a ideia de responsabilidade,
algo que na gestão urbana parece se diluir entre a tendência à naturalização do
processo de urbanização e certa dissimulação diante de uma realidade em que o
direito à cidade é constantemente negado.

Pensando na cidade do Rio de Janeiro, que nesses últimos anos passa por
grandes obras, mas não necessariamente por transformações significativas,
optou-se por desenvolver a reflexão sobre a ideia de negligência urbanística a

1
partir da prática de projetos urbanos no contexto carioca. Mais precisamente,
abrangendo as três últimas décadas, quando o projeto urbano se constituiu como
prática privilegiada do urbanismo contemporâneo nos mais diferentes países,
inclusive no Brasil, onde as experiências do Rio de Janeiro têm grande destaque.
Nesse sentido, a expressão "negligência urbanística" é empregada como
contraponto aos discursos de exaltação de um novo futuro para determinadas
áreas ou mesmo para a cidade como um todo que autoridades e mídia assumem
frequentemente em relação a certos projetos urbanos. Contraponto que nos
permite refletir sobre práticas do urbanismo numa realidade de desigualdades
territoriais e urbanísticas históricas e na qual se observa, tomando emprestadas
as expressões de Milton Santos (2012), a configuração de "zonas luminosas" que
"se justapõem, superpõem e contrapõem" a "zonas urbanas opacas" (SANTOS,
2012. p.325).

A questão, então, que impulsionou o presente trabalho foi buscar compreender


que cidade vem sendo desenhada ao longo dessas décadas em que se anunciam
sucessivos projetos urbanos, que seriam capazes de promover grandes
transformações na cidade do Rio de Janeiro e, simultaneamente, assiste-se um
processo de negligência urbanística que se impõe de diferentes formas sobre o
território.

Considerando que as nuances em torno da palavra negligência permitem


imaginar múltiplas formas de como ela se configura na gestão das cidades e no
espaço urbano, foram delimitadas teórica e metodologicamente três dimensões
principais: negligência urbanística estrutural, negligência urbanística operacional e
negligência urbanística projetual.

Estas, como se verá, não são estanques. Elas se sobrepõem, sendo, por vezes,
difícil localizar os fenômenos urbanos numa ou noutra especificamente. Portanto,
não é o interesse aqui tê-las como categorias para enquadramentos rígidos. Na
verdade, constituem as referências que orientam o trabalho na exploração da
tensão entre negligência urbanística e projetos urbanos na cidade do Rio de
Janeiro. Ao mesmo tempo, a identificação e compreensão de tais dimensões é
resultado das análises empíricas desenvolvidas ao longo da pesquisa e que
levaram à proposição do conceito de negligência urbanística.

Olhando para o Rio de Janeiro atual, as grandes obras em andamento, tanto


aquelas diretamente ligadas à preparação da cidade para receber os grandes
eventos esportivos internacionais - Copa do Mundo (2014) e Jogos Olímpicos

2
(2016) - como as demais, por exemplo, a renovação da área portuária com o
midiático "Porto Maravilha"1, deflagradas num momento da economia do país
ainda favorável, motivam e justificam as reflexões em torno de formas de
negligência urbanística e da prática de projetos urbanos. Apesar das promessas
de "legado olímpico", tais obras, que canalizam recursos para áreas já priorizadas
pelo mercado imobiliário e/ou representam a abertura de novos vetores para a
sua atuação, reforçam tendências de segregação socioespacial e de reprodução
de padrões insustentáveis de urbanização na cidade.

Entretanto, não se trata de questão circunstancial. Inscreve-se numa tradição de


projetos urbanísticos que, de acordo com Andrade (2009), são concebidos na
perspectiva da expansão urbana e tendo como pressuposto o desenvolvimento,
assumindo não raramente caráter ufanista. Para o autor, planos e projetos para o
Rio de Janeiro das últimas décadas, de modo geral, não reconheceram que a
cidade vive, pelo menos desde a transferência da capital federal para Brasília, o
que ele classifica como tempos de retração. Numa cidade em que o crescimento
populacional é baixo e estável há pelo menos três décadas, é mesmo
surpreendente que planos e projetos preconizem recorrentemente sua expansão,
tanto horizontal, como vertical. E mais impressionante ainda, que tal expansão
urbana, de fato realizada como demonstra a movimentação da população carioca
em direção à zona oeste do município e o substancial crescimento de unidades
imobiliárias nessa região, se dê juntamente com o aumento da favelização e da
informalidade urbana. São, na verdade, processos interligados. Andrade aponta o
desconhecimento do momento de retração do Rio de Janeiro como "uma das
principais causas da inadequação dessas propostas e de sua incapacidade de
servirem, nem mesmo como acessórios, ao atendimento das demandas da
cidade" (ANDRADE, 2009. p.5). Mas que tem como pano de fundo justamente o
que é aqui caracterizado como negligência urbanística.

A hipótese principal da tese aqui apresentada é, pois, que no Rio de Janeiro


subjaz um quadro de negligência urbanística, que envolve uma realidade urbana
complexa, certamente, mas também a gestão urbana que mistura aspectos tais
como: omissão, clientelismo, conservadorismo, priorização dos bairros da zona
sul que constituem a Cidade Maravilhosa dos cartões postais, onde se
concentram as classes mais ricas, e a execução sem revisões críticas
consistentes ou redirecionamento da principal diretriz de planejamento da cidade

1
A Operação Urbana Consorciada (OUC) Porto Maravilha foi instituída em 2009 com objetivo de
promover a renovação urbana da área portuária. A operação tem vigência de 15 anos, renovável
por mais 15.

3
dos últimos 45 anos que consiste na ocupação da região da Barra da Tijuca,
ininterruptamente implementada desde então. Cabe observar, seguindo
considerações de Magalhães (2009), que, contrariamente ao que diz o senso
comum, não é exatamente verdade que a cidade é construída sem planejamento.
Pelo menos uma parte dela é planejada. E todo o conjunto da cidade, de algum
modo, é resultado também de decisões de planejamento. A questão, como
destaca o autor, é que "o planejamento pode estar em dissonância com a cidade;
pode trabalhar no seu enfraquecimento" (MAGALHÃES, 2009. p.159). Como dito
acima, pode ser negligente. Ao abordar o tema, Magalhães se refere com ênfase
ao processo de ocupação da região da Barra da Tijuca que "não apenas projetou
uma expansão maior do que a cidade então existente, como concebeu a
desconstrução da sua centralidade" (MAGALHÃES, 2009. p.159).

A segunda hipótese é de que a prática de projetos urbanos no Rio de Janeiro não


rompeu com o urbanismo normativo tradicional, ao qual, do ponto de vista teórico,
a noção de projeto urbano se contraporia. E também não rompeu com lógicas que
orientam o desenvolvimento urbano desigual e excludente, constituindo-se assim
também em mecanismos de promoção da valorização de determinadas
localizações.

A legislação urbanística tradicional, aplicada de modo seletivo e burocrático nas


cidades brasileiras, sem reconhecer conflitos sociais e a cidade construída fora da
norma, participa diretamente da produção de desigualdades territoriais,
favorecendo a configuração de espaços de hiper aproveitamento do solo e
espaços de exclusividade de uso. Em geral, baseia-se na concessão de índices
urbanísticos que quando combinada com a execução de obras públicas e
expansão do perímetro urbano, tendem a resultar em ganhos extraordinários por
parte de proprietários de terrenos e/ou incorporadores, devido à valorização do
solo.

Nos anos 1980, as experiências cariocas de projetos urbanos, que serão


chamadas nesta tese de precursoras, se inseriam na perspectiva de revisão da
legislação urbanística, num contexto de abertura política e de reorganização da
sociedade brasileira após 20 anos de ditadura civil-militar, que possibilitou o
surgimento de novas práticas sociais e a reconstrução de agendas das políticas
públicas.

No campo das questões urbanas, a articulação entre movimentos sociais,


academia, entidades profissionais, ONGs etc. em torno do Movimento Nacional

4
de Luta pela Reforma Urbana propunha uma "agenda unificada para as cidades"
(MARICATO, 2011. p.101) com a qual os projetos em andamento no Rio de
Janeiro à época, de algum modo, dialogavam. Essa agenda, construída em torno
de uma série de propostas que buscavam a afirmação do direito à cidade,
resultaria na incorporação de alguns dispositivos pela Constituição Federal de
1988 que apontavam caminhos para novas práticas de gestão urbana: o princípio
da função social da cidade e da propriedade urbana; o aproveitamento obrigatório
de imóveis vazios ou subutilizados em zonas urbanas com infraestrutura
instalada; a regularização fundiária de interesse social; e a participação social na
formulação e implementação da política urbana.

O Plano Diretor do Rio de Janeiro de 1992, ainda que não possa ser considerado
propriamente como um plano que propusesse a reorientação do processo de
desenvolvimento urbano, trazia dispositivos que, se aplicados, poderiam interferir
mais diretamente no mercado fundiário e imobiliário no sentido de promoção do
que o Estatuto da Cidade2, aprovado em 2001, chamaria da "justa distribuição do
benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização" (art. 2o).

A partir dos anos 1990, mais precisamente 1993, quando o prefeito César Maia
assume a administração municipal do Rio de Janeiro, se institui um novo discurso
para a cidade, numa perspectiva completamente oposta ao espírito que de algum
modo estava presente naquele plano diretor recém aprovado. O novo prefeito
estruturava seu discurso em duas perspectivas principais: a da ordem urbana e a
da transformação do Rio de Janeiro numa "cidade global". Na gestão urbana, a
orientação central prescrevia que era preciso agir. E é nesse contexto que se
esboça o urbanismo de projetos que caracterizaria os anos 1990, privilegiando o
"desenho enquanto instrumento de ação urbanística" (IPLANRIO, 1996. p.21).

Paralelamente à prioridade dada à política de projetos e obras, se introduziria um


novo instrumento de planejamento, denominado de estratégico, que
desqualificaria o plano diretor, embora este tivesse força de lei e o outro não.
Numa década marcada pela hegemonia neoliberal, a contraposição entre os dois
modelos de planejamento seria exacerbada por disputas político-ideológicas.
Nesse contexto, a revisão da legislação urbanística - referência essencial para o
2
Lei Federal 10.257 de 10 de julho de 2001, que "regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição
Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências". O Estatuto da
Cidade tramitou por 13 anos no Congresso Nacional até ser aprovado em 2001. Porém uma série
de planos diretores, incluindo o do Rio de Janeiro, aprovados no início dos anos 1990, já
incorporaram alguns dos instrumentos que seria consagrados posteriormente na lei federal. Como
no caso carioca, isso não representou propriamente que tais instrumentos, como o "solo criado" e
o IPTU progressivo no tempo, por exemplo, tenham sido efetivamente aplicados.

5
exercício das funções municipais de controle do uso e ocupação do solo urbano -
e a incorporação de instrumentos de combate à retenção especulativa da terra ou
destinados à captura pelo poder público de parte da valorização fundiária não
aconteceram, tal como o plano diretor pelo menos pressupunha. Assim, a política
de projetos urbanos se desenvolveria sem alterar significativamente as práticas
de gestão do urbanismo ordinário da cidade.

E a terceira e última hipótese diz respeito aos significados e formatos do projeto


urbano nas últimas décadas no Rio de Janeiro. Mesmo num ambiente de
continuidade política e ideológica da administração municipal nos últimos cerca de
20 anos, o papel do projeto urbano se altera ao longo do tempo. A questão aqui é
que se observa que não se constituiu propriamente uma cultura de projetos
urbanos no Rio de Janeiro, relacionada a um processo de discussão continuado
sobre a cidade, permeável às diferentes visões e disputas que fazem parte da
construção democrática. Os principais projetos urbanos de cada período,
implantados ou não, estão muito mais relacionados ao perfil de cada prefeito,
revelando uma fragilidade em relação ao seu papel.

No período mais recente, a prática de projetos urbanos está voltada para as


grandes obras e a construção de pretensos novos "ícones urbanos". Um
urbanismo genérico, que combina obras públicas, super valorização de imagens e
interesses do mercado imobiliário, num processo em que a ação projetual e a
estratégia de redesenho da cidade se tornam algo de menor relevância. A
operação Porto Maravilha, instituída em 2009, como veremos, é o exemplo mais
claro desse processo, que permite pensar a ideia de negligência urbanística, nas
suas diferentes dimensões, mas mais diretamente ligada à própria concepção de
projeto.

Considerando tais hipóteses e do que se configurou ao longo do processo de


trabalho como dimensões da negligência urbanística, a tese está estruturada em
quatro capítulos, além desta introdução e de uma conclusão. No seu
encadeamento, abrange, inicialmente, um exercício conceitual em torno da noção
proposta de negligência urbanística. Em seguida, as reflexões se dão em torno da
cidade do Rio de Janeiro, num trabalho analítico em que se apresenta uma visão
de contexto, uma leitura sobre a prática de projetos urbanos nas três últimas
décadas e a análise de um projeto específico.

Dessa forma, o Capítulo 1 é dedicado à exploração de referências conceituais


que balizaram a proposição da expressão negligência urbanística e, mais

6
especificamente, aquilo que foi nomeado como "formas de negligência
urbanística", tratadas conceitualmente em três dimensões: estrutural, operacional
e projetual.

Como destacado inicialmente, essas três dimensões se sobrepõem, de modo que


elementos ou características de todas elas estão presentes nos três capítulos
analíticos. No entanto, há algumas ênfases, que decorrem das hipóteses de
trabalho, sendo elas que orientam mais claramente a organização e o
encadeamento dos capítulos.

O Capítulo 2 trata de questões da cidade do Rio de Janeiro, que se mostram


relevantes para a compreensão do quadro de negligência urbanística. São
analisados tanto a dinâmica urbana recente como aspectos relativos a alguns
instrumentos normativos que ilustram como a gestão opera processos urbanos
estruturantes.

Na exame da dinâmica urbana do Rio de Janeiro, distinguem-se dois processos


paralelos e interligados que, a nosso ver, estão diretamente relacionados ao
quadro de negligência urbanística da cidade: a dispersão urbana e a
informalidade urbana. A partir de dados censitários e do licenciamento urbanístico
municipal, busca-se identificar impactos, sobre o território, do crescimento
demográfico das últimas décadas, dos movimentos internos da população e da
crescente informalidade urbana. Esta visão global parece essencial, pois revela
processos que são efetivamente estruturantes, ainda que, como afirmam Tsiomis
(1996) e Roncayolo (2000), "a cidade nos escape".

Em seguida, são trabalhadas duas "decisões urbanísticas" maiores, herdadas dos


anos 1960 e 1970, mas cujos efeitos se dão ao longo do tempo e são
fundamentais para a compreensão do Rio de Janeiro atual. A decisão de
urbanização da região da Barra da Tijuca e a edição do Decreto 322/1976, que
estabelece o zoneamento da cidade, ainda hoje em vigor, apesar de suas
inúmeras alterações e outras normas que incidem sobre o uso e ocupação do
solo no município. Por fim, são analisados alguns aspectos do Plano Diretor de
2011 que ilustram o retrocesso que ele representa em relação a perspectivas de
renovação da legislação urbanística que orienta a produção cotidiana da cidade.

O foco do Capítulo 3 incide sobre a prática de projetos urbanos propriamente,


propondo uma leitura de como ela se configurou em cerca de 30 anos. Há, nesse
sentido, uma contribuição específica à reflexão teórica sobre projetos urbanos,

7
pois diferentemente do mais usual, deslocou-se o olhar da análise de casos de
referência isolados, da abordagem de determinadas temáticas ou recortes
temporais relativamente curtos para um exame de mais longo prazo e de conjunto
dos projetos urbanos propostos para a cidade. Assim, busca-se compreender seu
impacto nas transformações urbanas do período e nas tendências da dinâmica
urbana da cidade, alimentando a discussão sobre negligência urbanística.

Na interpretação adotada foram demarcadas três gerações de projetos urbanos


no Rio de Janeiro, num recorte temporal que vai dos anos 1980 aos dias atuais. A
primeira delas se desenvolve na década de 1980, no período da
redemocratização do país. A segunda refere-se à década de 1990, quando os
projetos urbanos despontam como instrumentos associados às políticas
neoliberais do período e ao discurso do planejamento estratégico. E a terceira,
que começa no início dos anos 2000 e se estende aos dias atuais, é fortemente
marcada pela agenda dos eventos esportivos internacionais na cidade.

A caracterização destas três gerações de projetos urbanos identificadas é


precedida de uma abordagem mais conceitual sobre a noção de projeto urbano,
que contextualiza a experiência carioca e contribui para a melhor compreensão da
introdução, desenvolvimento e especificidades da prática e da reflexão teórica
sobre projetos urbanos no Brasil.

De um lado, retomando a discussão sobre o caráter difuso da noção de projeto


urbano, relacionada a um debate mais geral sobre o papel do projeto urbano na
cidade contemporânea. De outro, pensando o debate sobre projeto urbano no
contexto brasileiro, muito determinado pelo embate entre a agenda da reforma
urbana e a agenda neoliberal para as cidades, que acaba sintetizado na oposição
plano e projeto.

E o Capítulo 4 localiza a discussão sobre negligência urbanística em um caso


concreto, em andamento, tendo como ênfase a reflexão sobre a concepção
urbanística do projeto, mas incorporando também o seu significado na dinâmica
da cidade. O projeto estudado é o da renovação da área portuária do Rio de
Janeiro, iniciado em 2009 com a instituição da Operação Urbana Consorciada
(OUC) Porto Maravilha. As características dessa grande operação confirmam, a
nosso ver, a pertinência das preocupações suscitadas nas hipóteses formuladas e
no próprio decorrer da tese. Uma operação de alto caráter especulativo, que não
contém uma estratégia urbanística clara e na qual o mais importante são os
números grandiosos, a profusão de imagens, a realização de grandes obras e a

8
oferta de novas possibilidades de atuação do mercado imobiliário, caso se
confirmem como opções rentáveis.

Ao final do trabalho, na conclusão, são retomadas as hipóteses que pautaram os


estudos realizados para demarcar as principais contribuições da tese e, ao
mesmo tempo, indicar novas possibilidades de pesquisa em torno da noção de
negligência urbanística e das reflexões que ela pode suscitar.

9
Capítulo 1
NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA: REFERÊNCIAS CONCEITUAIS

Este capítulo aborda, numa primeira parte, referências conceituais sobre o termo
"negligência" que alimentaram a proposição da noção de "negligência urbanística"
como a questão a ser explorada neste trabalho. Em seguida, desliza para a
análise das formas de negligência urbanística a partir da proposição de três
dimensões principais: estrutural, operacional e projetual. Tais dimensões não
pretendem configurar propriamente critérios para enquadramento de fenômenos,
mas sim se constituírem como referências para um exercício analítico que
envolve múltiplas escalas do espaço urbano e diferentes instrumentos de
intervenção na cidade, considerando, no entanto, que no âmbito desta tese, o
foco de interesse recai sobre a prática de projetos urbanos nas três últimas
décadas na cidade do Rio de Janeiro.

Como ver-se-á detalhadamente no capítulo 3, nesse período, sobretudo a partir


dos anos 1990, a ênfase da gestão urbana em projetos representaria, de acordo
com seu discurso legitimador, a renovação do modo de pensar e agir na cidade.
Contudo, mesmo reconhecendo a relevância de algumas experiências, observa-
se que o esboço de um urbanismo de projetos nos anos 1990 marca uma ruptura
que, de um lado, interrompe o processo de revisão dos instrumentos de
planejamento da cidade à luz da Constituição Federal de 1988 e, de outro,
deságua no "urbanismo genérico" que caracteriza os projetos urbanos cariocas
principalmente a partir dos anos 2000, incluindo as intervenções realizadas na
preparação da cidade para os grandes eventos esportivos internacionais.

No pano de fundo desse processo delineia-se a oposição entre projetos urbanos e


instrumentos de planejamento que visam orientar o desenvolvimento urbano e os
investimentos públicos, bem como regular a produção cotidiana da cidade. Nesse
contexto, a produção extraordinária - ou as soluções ad hoc, como denomina
Ascher (2004) -, é privilegiada em relação ao urbanismo ordinário, que no caso
carioca continuou sendo exercido segundo legislação urbanística anacrônica, com
a qual a prática de projetos urbanos não rompeu, como buscar-se-á demonstrar
nos capítulos 2 e 3, para orientar o controle do uso e ocupação do solo.

10
Ao analisar a situação atual do urbanismo de projetos na França, Roux (2012) faz
algumas considerações interessantes, entre as quais destaca que "grandes
projetos urbanos não representam mais que uma ínfima parte do que é
construído, sem correspondência com sua reputação..." (ROUX, 2012, tradução
nossa). Na verdade, os projetos urbanos incidem em fragmentos da cidade,
sendo discutível se seus efeitos de fato se irradiam para além dos seus limites, ou
em que medida isso se dá, ainda mais no caso de grandes metrópoles.

No caso do Rio de Janeiro, e das cidades brasileiras em geral, onde a ilegalidade


é mais a regra que a exceção (MARICATO, 2000) e expressão das desigualdades
socioespaciais na cidade, essa questão parece ainda mais complexa e
fundamental. Em meio a uma série de projetos urbanos e à incessante
reprodução de imagens mostrando como seriam os espaços urbanos
"revitalizados" (o que inclui projetos concebidos apenas como hipóteses
espaciais, sem grandes pretensões de serem realizados, mas que integram
estratégias de marketing urbano)3, a cidade segue seu curso marcado por dois
fenômenos principais que qualificam o desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro:
a dispersão urbana e a informalidade urbana crescente. Conjugados, tais
processos reproduzem padrões de urbanização que parecem insustentáveis e
tendem à radicalização da segregação social no espaço urbano.

A política de projetos urbanos desvinculada da revisão do aparato normativo e de


todo o instrumental de gestão urbana - de tradição elitista, tecnocrática e
burocrática - e, sobretudo, com as práticas para lidar com a produção cotidiana da
cidade e promover justiça espacial, acaba sendo de alcance bastante limitado ou
se configurando também como meio de acirramento de desigualdades. E é nesse
sentido que a noção de negligência urbanística parece ganhar relevância,
tornando-se além de uma hipótese, uma entrada conceitual para a reflexão sobre
a prática de projetos urbanos no Rio de Janeiro.
3
No artigo citado anteriormente, intitulado "Le projet urbain, image ou realité?", o autor, Jean-
Michel Roux, critica o caráter midiático de muitos projetos urbanos, em geral objeto de concursos,
no caso francês, mas que não são efetivamente implementados. E fala de "lugares onde se
sedimentam camadas de proposições, cada uma ignorando a precedente e sendo ignorada pela
seguinte", num tipo de "espetáculo permanente" baseado num "urbanismo de desenho, de
projeções e de maquetes" (ROUX, 2012, tradução nossa).

11
1.1. SIGNIFICADOS DA NEGLIGÊNCIA E ABORDAGENS PRELIMINARES

A palavra negligência, no seu sentido mais geral, remete à ideia de descuido, de


desatenção. Ou seja, negligenciar uma determinada questão seria como que
descuidar-se dela.

Os dicionários de língua portuguesa "Aurélio"4 e "Houaiss"5 definem "negligência"


de modo muito parecido, porém com algumas nuances. Desleixo, descuido (ou
falta de cuidado), incúria, desatenção (ou falta de atenção) e preguiça são, para
os dois dicionários, termos que podem ter o sentido de negligência. Todos eles
têm conotação negativa, uma vez que relacionam a negligência, antes de tudo, a
uma postura passiva e despreocupada em relação a determinado assunto ou
sujeito, podendo ser compreendida como forma de omissão.

O "Aurélio" remete também à "indolência", palavra que, segundo o próprio


dicionário, pode ter o sentido de "insensibilidade". Já o "Houaiss" inclui entre os
significados de "negligência" o termo "indiferença".

Pensando nos fenômenos urbanos, muitos dos quais têm sido facilmente
naturalizados, ou tratados como inexoráveis, e sobre práticas urbanísticas
desenraizadas, as noções de insensibilidade e indiferença parecem úteis para se
compreender posturas negligentes no campo do planejamento urbano e do
urbanismo. Assim, é possível considerar que para além do sentido de omissão,
mais claramente associado ao termo negligência, a noção de "negligência
urbanística" se situa entre a insensibilidade e a indiferença em relação ao espaço
urbano, à cidade e ao processo de urbanização.

Com objetivo de apresentar uma abordagem preliminar sobre o termo negligência


aplicado a reflexões sobre a cidade, seguem-se algumas questões gerais
relativas ao processo de urbanização no modelo de desenvolvimento atual. Antes,
porém, discutir-se-á o termo negligência a partir de dois vieses específicos, mas
que suscitam pontos interessantes que podem ser relacionadas também ao

4
"Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa", 3a ed., 1999. Negligência. [Do lat.
negligentia.] S.f. 1. Desleixo, descuido, incúria. 2. Desatenção, menoscabo, menosprezo. 3.
Preguiça, indolência. (Cf. negligencia, do v. negligenciar).
5
"Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa" (edição on-line: http://houaiss.uol.com.br/).
Negligência. substantivo feminino ( sXIV). 1. falta de cuidado; incúria ‹ trata a casa e a família
com muita n. › 2. falta de apuro, de atenção; desleixo, desmazelo ‹ veste-se com n. › 3. falta de
interesse, de motivação; indiferença, preguiça ‹ n. no trabalho leva ao desemprego › 4. jur.
inobservância e descuido na execução de ato

12
urbano e, nesse sentido, ainda que indiretamente, ajudam a moldar a noção de
negligência urbanística e sua abrangência possível. De um lado, coloca-se a
dimensão jurídica do termo, que implica na ideia de responsabilidade e que está
vinculada a condutas esperadas de cada sujeito. Sendo assim, seja pela ação ou
seja pela inação, condutas negligentes de uns podem ter consequências para si
mesmos e para outros. E, numa outra perspectiva, ao explorar a expressão
"doenças negligenciadas" utilizada na área da saúde, sinaliza-se que também no
urbano se pode identificar temas ou situações negligenciadas, que, em alguma
medida, podem ser compreendidos como posturas deliberadas de não
enfrentamento.

Constitui-se assim um pano de fundo que introduz a reflexão conceitual sobre o


termo negligência urbanística e suas três dimensões aqui determinadas e
trabalhadas teoricamente. Destaca-se que, nos limites adotados no trabalho, a
noção de negligência urbanística é tratada fundamentalmente em relação ao
papel do poder público no processo de desenvolvimento urbano.

1.1.1. Negligência e a dimensão jurídica do termo

Dentre as definições apresentadas pelo dicionário "Houaiss" para o termo


"negligência", uma diz respeito ao seu caráter jurídico. Nessa perspectiva,
"negligência" é entendida como "inobservância e descuido na execução de ato".
As aplicações mais conhecidas dessa interpretação, provavelmente, se referem a
casos de insucessos em procedimentos médicos ou de acidentes de trânsito, que
podem, eventualmente, estar relacionados justamente a condutas negligentes de
médicos ou motoristas. Nesses casos, embora o agente envolvido não tenha a
intenção de provocar dano a terceiro, pode ter responsabilidades no caso de agir
com negligência.

Dois aspectos são importantes de serem considerados na abordagem jurídica. O


primeiro é que a "negligência" está relacionada à não observação de uma conduta
esperada de um sujeito. E o segundo é a noção de culpa, uma vez que, conforme
define o "Dicionário Jurídico: Academia Brasileira de Letras Jurídicas",
"negligência" significa, no campo jurídico, "falta de cuidado capaz de determinar
responsabilidade por culpa" (SIDOU, 2000. p.571).

Sendo assim, é necessário também observar a distinção entre "dolo" e "culpa" e,


consequentemente, de "delito doloso" e "delito culposo". O "dolo" caracteriza-se

13
pela "intenção de prejudicar ou fraudar outrem" ou, no caso do direito penal, pela
"intenção de praticar um mal que é capitulado como crime, seja por ação ou por
omissão" (SIDOU, 2000. p.316). A "culpa", por sua vez, é definida a partir da
"violação ou inobservância de uma regra de conduta que produz lesão ao direito
alheio" (SIDOU, 2000. p.243). Nesse caso, não é propriamente o resultado da
ação que está em questão e se considera que o agente da ação não tinha por
objetivo provocar o dano causado. Prado (2010) ressalta, portanto, que a "a
conduta típica culposa é valorada negativamente por sua contradição a uma
norma objetiva de cuidado" (PRADO, 2010. p.341).

Ainda de acordo com Prado, o direito brasileiro prevê três modalidades de culpa,
"através das quais se pode violar o cuidado" (PRADO, 2010. p.343). São elas:
imprudência, negligência e imperícia, explicadas por Tubenchlak (1978) da
seguinte forma:

"A conduta imprudente manifesta-se através de um atuar positivo (ex: direção de


automóvel em excessiva velocidade); a conduta negligente, por um
comportamento negativo (ex: deixar de puxar o freio de mão ao estacionar o carro
numa ladeira); a conduta imperita, que pode ser positiva ou negativa, implica em
um desconhecimento de regra técnica de profissão, arte ou ofício."
(TUBENCHLAK,1978. p.111).

No entanto, o próprio autor relativiza essas distinções, atribuindo ao termo


"negligência" uma abrangência mais ampla, que abarca as outras duas
modalidades de culpa, conforme se segue:

"As distinções supra não possuem maior relevância, pois a locução 'negligência'
envolve os conceitos de imprudência e imperícia. O agente, ao praticar uma
conduta imprudente ou imperita, negligencia no tocante à conduta legítima que
devia praticar. Não é sem razão que os penalistas alemães tratam o crime culposo
de crime negligente." (TUBENCHLAK,1978. p.111).

O autor pondera ainda sobre as condições para que determinada ação negligente
entre na esfera criminal. Segundo Tubenchlak,

"a todo instante praticam-se condutas negligentes no âmbito das relações. O


Direito Criminal só vem a interessar-se pelas negligências de que advenham
eventos de certo porte. Mesmo assim, é insuficiente a constatação de um simples
nexo causal. O resultado desaprovado deve originar-se, especificamente, de uma
falta de diligência, e as circunstâncias concretas indicarem que o evento não se
verificaria se o agente se conduzisse com as cautelas devidas."
(TUBENCHLAK,1978. p.112).

14
Nessa perspectiva, o termo negligência recai sobre o sujeito e sua conduta no
caso concreto. Talvez se possa pensar que uma das dimensões de "negligência
urbanística" esteja relacionada, por exemplo, justamente aos processos de
licenciamento e fiscalização regidos por uma legislação que estabelece - nem
sempre de forma clara e muitas vezes de modo contraditório - parâmetros a
serem observados. Tanto em parcelamentos como em edificações, as obrigações
a serem cumpridas pelos proponentes e os procedimentos a serem seguidos nos
processo de análise, em tese, representariam a defesa do interesse público e
coletivo. A sua inobservância, então, poderia indicar uma forma de negligência.

Mas além de condutas negligentes de um ou outro agente interveniente (no


campo do urbanismo, por exemplo), é possível pensar também no contexto no
qual esses agentes estão inseridos, pois também o meio pode influenciar as
condutas individuais, o que parece ser mais apropriado em termos de negligência
urbanística. Na área da psicologia existe esse debate, de onde se pode extrair
alguns elementos para sua melhor compreensão. Faleiros (2011) ao estudar o
tema da "negligência infantil", aponta dificuldades para uma definição consistente,
com critérios objetivos que auxilie o diagnóstico da situação de negligência,
entendida como uma das modalidades de maus-tratos contra a criança. A autora
explica que:

"Diferentemente dos outros tipos de maus-tratos (mais propriamente atinentes a


situações de abusos) que se manifestam a partir de ações (comportamentos) dos
responsáveis sobre as crianças, a negligência se dá pela omissão (ausência de
comportamento), ou seja, quando algo que deveria ser feito, não o é (...)"
(FALEIROS, 2011. p. 24).

Ou seja, um dos problemas seria que caracterizar a ausência de um


comportamento é bastante mais difícil do que caracterizar um fato ocorrido
efetivamente, ainda mais porque a negligência pode estar associada a diversos
tipos de situações. Além disso, de acordo com a mesma autora, é preciso
considerar que há questões culturais que perpassam a definição de
comportamentos adequados ou não, há diferenças nos cuidados esperados em
relação à idade da criança e pode haver correlação entre negligência e pobreza,
"o que dificulta o seu diagnóstico no sentido de se saber se a negligência se deve
à condição de pobreza ou se resulta de padrões específicos dos cuidados
dispensados pelos responsáveis" (FALEIROS, 2011. p. 25, apud. GELLES;
CRITENDEN; SULLIVAN).

15
Ao traçar um panorama sobre o debate do tema "negligência infantil", a autora
destaca a tendência de se deslocar o foco associado essencialmente ao
comportamento dos pais ou responsáveis pelas crianças, na linha da
responsabilização de sujeitos, para a compreensão das "crianças e suas
necessidades". Dessa forma, haveria uma aceitação crescente de que o
fenômeno da negligência é determinado também pelo meio, pois as situações de
negligência poderiam não ser determinadas exatamente pela omissão dos pais ou
responsáveis, mas decorrentes de suas circunstâncias - econômicas, sociais,
culturais, etc. - que os levariam a não ter condições para atender as necessidades
da criança.

Quando tratamos de negligência urbanística, também parece difícil caracterizar,


segundo critérios objetivos, as condutas negligentes, bem como e em que medida
se pode estabelecer responsabilidades do sujeito ou como o meio no qual ele
está inserido influencia suas condutas. Recentemente, na França, um caso
envolveu essa discussão. Trata-se da condenação de um antigo prefeito de uma
pequena cidade e sua primeira secretária adjunta, responsável pelo setor de
urbanismo, que chama atenção justamente pela decisão de responsabilização de
autoridades públicas pelos efeitos desastrosos6 de uma grande tempestade.

A localidade de Faute-sur-Mer foi atingida, em 2010, por uma tempestade


chamada de "Xynthia", que provocou inundações e resultou na morte de quase
trinta pessoas. No processo judicial que se seguiu, as duas autoridades foram
acusadas de "homicídios involuntários" e de "colocar terceiros em perigo" pela
"violação manifestamente deliberada de uma obrigação de segurança ou de
prudência"7 e condenadas, ainda que caibam recursos.

6
Nesse sentido, tem-se em consideração o entendimento de MOURA e ANDRADE E SILVA
(2008) quando questionam se desastres “naturais” não seriam, na verdade, fruto da negligência
humana. Segundo os autores “desastres não são naturais, mas decorrentes da ação humana”.
Dessa forma, “eventos naturais somente se convertem em desastres quando seres humanos
vivem nas áreas onde ocorrem e agravam as causas de seus processos”. E complementam
dizendo que “os impactos dos fenômenos naturais na sociedade tornam-se problemáticos pelo
modo de ocupação do solo, pela qualidade construtiva e pela presença ou ausência de infra-
estrutura adequada”, ou seja, pelas condições em que as cidades ou partes delas são construídas.
7
Livre tradução. No original, em francês: "homicides involontaires par violatio manifestement
deliberée d'une obligation de securité ou de prudence" e "mise en danger d'autrui (risque immediat
de mort ou d'infirmité) par violatio manifestement deliberée d'une obligation de securité ou de
prudence" . Ver: Cour d'appel de Poitiers, Tribunal de grande instance des Sables-d'Olonne,
Jugement Correctionnel du 12 décembre 2014 em: http://www.irma-
grenoble.com/PDF/actualite/articles/XYNTHIA_jugement_2014.pdf (acesso em 10 de fevereiro de
2015, às 07:50h).

16
Para além da inobservância de condutas e procedimentos aplicáveis ao
licenciamento de construções e ao papel da autoridades públicas em situações de
emergência, de acordo a decisão, se compreendeu que os agentes públicos
envolvidos agiram de forma consciente e deliberada. Não apenas concederam
licenças de construção em área inundável, como não tomaram medidas
preventivas de informação à população sobre riscos conhecidos, nem as medidas
que estariam a seu alcance no momento do evento, em socorro às vitimas.

Sem se entrar no mérito da decisão propriamente ou nas especificidades do caso,


interessa observar que estava em questão, sobretudo, a omissão, no episódio
considerada deliberada, frente aos riscos associados à ocorrência de eventos
naturais severos. Porém, trata-se de um caso extremo e, portanto, dificilmente
generalizável, até porque o julgamento não reconheceu falhas do sistema de
segurança que envolve também outras instâncias governamentais, o que seria
uma das alegações da defesa.

No Brasil, talvez seja bem mais difícil caracterizar as responsabilidades de


agentes políticos ou técnicos em eventos desse tipo, considerando que o passivo
urbanístico de nossas cidades é gigantesco e que a capacidade técnica de boa
parte dos municípios é reconhecidamente bastante frágil. Nesse sentido,
poderíamos dizer que o meio pode ser muito determinante de condutas
aparentemente negligentes, mas ao mesmo tempo pode servir para encobri-las. A
linha divisória pode ser bastante tênue.

No contexto atual, de mudanças climáticas, os eventos extremos tendem a ser


mais frequentes e mais severos, o que representa novos desafios para as cidades
que se somam aos antigos. A necessidade das cidades se adaptarem a essa
nova realidade, bem como a perspectiva real de falta de recursos essenciais à
vida, como água e energia, talvez sejam as chaves para se pensar, no século
XXI, novas formas de construir cidades, mais solidárias e menos negligentes em
relação ao território e aos padrões de urbanização.

1.1.2. Temas negligenciados

Na área da saúde, a expressão "doenças negligenciadas" é utilizada para


designar um conjunto de doenças que, embora se saiba da existência e dos
riscos que representam para grandes populações, não são priorizadas na
aplicação de recursos para pesquisas que visem ao seu tratamento ou à criação

17
de mecanismos para bloqueio da transmissão, nem são de interesse comercial
para a indústria farmacêutica. Como não poderia deixar de ser, são doenças que
ocorrem em países menos desenvolvidos e atingem, majoritariamente,
populações pobres.

Estudo elaborado pela Associação Brasileira de Ciência em 2010 que analisa a


situação de "doenças negligencias" no Brasil esclarece, na sua introdução, sobre
a origem, conteúdo e utilização do termo:

O emprego do termo “doenças negligenciadas” é relativamente recente e


polêmico. Foi originalmente proposto na década de 1970, por um programa da
Fundação Rockefeller como “the Great Neglected Diseases”, coordenado por
Kenneth Warren. Em 2001 a Organização Não Governamental “Médicos Sem
Fronteiras” (MSF) em seu documento “Fatal Imbalance” propôs dividir as doenças
em Globais, Negligenciadas e Mais Negligenciadas (MSF 2001). Neste mesmo
ano o Relatório da Comissão sobre Macroeconomia e Saúde (OMS, 2001)
introduziu uma classificação similar, dividindo as doenças em Tipo I (equivalente
às doenças globais dos MSF), Tipo II (Negligenciadas/MSF) e Tipo III (Mais
Negligenciadas/MSF). Esta tipologia tem sido desde então utilizada para se referir
a um conjunto de doenças causadas por agentes infecciosos e parasitários (vírus,
bactérias, protozoários e helmintos) que são endêmicas em populações de baixa
renda vivendo, sobretudo em países em desenvolvimento na África, Ásia e nas
Américas. O adjetivo “negligenciada” originalmente proposto tomou como base o
fato de que por um lado elas não despertam o interesse das grandes empresas
farmacêuticas multinacionais, que não veem nessas doenças compradores
potenciais de novos medicamentos, e por outro o estudo dessas doenças vem
sendo pouco financiado pelas agências de fomento. Para muitos a utilização do
conceito de doenças emergentes e re-emergentes é mais adequada para se referir
a este conjunto de doenças. (SOUZA, 2010. p. 1).

Independentemente da pertinência ou não da expressão, ela carrega uma


dimensão política importante, pois convida à reflexão sobre opções de
investimentos, sobre o papel de governos, sobre as responsabilidades dos
envolvidos, sejam eles agentes públicos ou privados, na área da saúde, sobre o
próprio papel da sociedade e sobre o abismo entre países ricos e pobres e dentro
de países, por exemplo como o Brasil, entre ricos e pobres. Numa interpretação
mais radical do significado de "doenças negligenciadas", se poderia dizer que a
desatenção - descuido, omissão, negligência - em relação a tais doenças decorre
de escolhas, sejam elas comerciais, políticas ou mesmo científicas. Não se trata
propriamente de desconhecimento da questão. Assim, poderiam ser entendidas
como doenças que são por opção negligenciadas.

18
A organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) afirma que

"São doenças tratáveis e curáveis que afetam, principalmente, populações com


poucos recursos financeiros que, justamente por isso, não despertam o interesse
da indústria farmacêutica. Os métodos de tratamento e diagnóstico dessas
doenças são antigos e inadequados e demandam investimento em pesquisa e
desenvolvimento para se tornarem mais simples e efetivos." (MSF:
http://www.msf.org.br/noticias/o-assunto-e-doencas-negligenciadas, acessado em
23/01/2015 às 15:30h).

Pontes (2009) registra que no final dos anos 2000 o Brasil apresentava
investimentos crescentes em estudos visando ao desenvolvimento de novas
formas de tratamento dessas doenças e ocupava lugar de destaque no tema
entre os países em desenvolvimento. Apesar de reconhecer avanços no país,
apresenta números que revelam a dimensão do problema em escala mundial:

A cada dia, cerca de três mil pessoas morrem no mundo vítimas de doenças
negligenciadas como malária, leishmaniose visceral, doença de Chagas e doença
do sono. São mais de 1 milhão de mortes por ano. Um dos motivos para esse
número elevado de óbitos é a falta de ferramentas adequadas para o diagnóstico
e tratamento destas doenças. Elas afetam as populações mais empobrecidas nos
países menos desenvolvidos do mundo, e, portanto, não constituem um mercado
lucrativo para as indústrias farmacêuticas. (PONTES, 2010. p. 69).

Ao explicar, por exemplo, a situação da doença de chagas, com incidência no


Brasil, Pontes destaca que ela está restrita à América Latina. Porém começa a
ultrapassar fronteiras e "a se tornar uma preocupação de saúde pública nos
Estados Unidos e na Espanha, onde a migração de latinos é mais intensa"
(PONTES, 2010. p.71). Tal observação mostra de modo mais claro que enquanto
estão territorialmente confinadas e incidem sobre populações pobres, as doenças
chamadas de negligenciadas não se apresentam como problemas reais, apesar
do alto número de enfermos e vítimas fatais. Quando ultrapassam esses limites
passam a ser objeto de preocupação dos grupos que se consideravam a salvo, e,
poderíamos acrescentar, as populações ou lugares que já eram afetadas pela
doença passam a ser vítimas de novas formas de preconceito.

O caso recente da febre ebola parece bastante ilustrativo desse fenômeno, ainda
que ela não figure na lista de "doenças negligenciadas" da Organização Mundial
de Saúde (OMS). O efeito devastador do vírus ebola em alguns países da África
no segundo semestre de 2014 e, sobretudo, o risco de sua propagação na Europa
e Estados Unidos mobilizaram autoridades de diversos países se tornando uma

19
questão internacional. Os debates em torno do fenômeno envolviam as ameaças
representadas pelo vírus ao atravessar continentes, mas também as
responsabilidades dos países desenvolvidos em relação ao enfrentamento da
doença no continente africano. Um dos argumentos era de que se esses países
tivessem agido anteriormente em relação à doença, que já era conhecida há
anos, provavelmente não só não haveria o temido risco de propagação do vírus
fora da África como, e principalmente, milhares de vidas poderiam ter sido
preservadas.

Alguns paralelos talvez possam ser traçados entre o significado de doenças


negligenciadas e questões urbanas. Num plano mais geral, da urbanização
mundial, poderíamos pensar que as precárias condições de grandes aglomerados
urbanos de países subdesenvolvidos na África, Ásia e também América Latina
não fazem parte das preocupações dos país ricos. A não ser quando a situação
desses os impacta de algum modo. Por exemplo, quando despontam levantes
sociais, como na primavera árabe do início da década ou, num exemplo local, as
manifestações de junho de 2013 no Brasil. Afinal, é nas cidades que podem se
forjar movimentos insurgentes contra a ordem econômica e social. Também nos
países ricos, as diferenças e conflitos sociais se expressam territorialmente no
configuração do espaço urbano e vêm à tona em momentos de eclosão de
manifestações por vezes violentas como nos subúrbios de Paris em 2005, em
Londres em 2012 ou neste ano de 2015 em Baltimore.

Na escala das cidades, e mais especificamente das cidades brasileiras, também é


possível imaginar questões negligenciadas nas práticas de gestão. Poderíamos
pensar, entre outras, por exemplo, nos vazios urbanos e imóveis subutilizados, na
deterioração do patrimônio cultural, na oferta de moradia social em áreas
(centrais) bem servidas de infraestrutura etc. Em geral até reconhecidas em
diversos diplomas legais, enfrentam entraves de difícil superação numa realidade
em que muitas vezes limitações técnicas e financeiras são alegadas para encobrir
falta de vontade política e que, não raramente, decisões judiciais protegem
interesses econômicos, particularmente os relativos à propriedade. Analisando os
mais de dez anos de vigência do Estatuto da Cidade, Fernandes (2013) aponta
uma questão que, embora central na lógica do desenvolvimento urbano, foi
tradicionalmente desconsiderada pelo urbanismo no Brasil:

Uma questão fundamental de política urbana, mas que sempre foi negligenciada
na tradição do urbanismo brasileiro, foi finalmente enfrentada pelo Estatuto da
Cidade: quem paga, e como, a conta do financiamento do desenvolvimento

20
urbano. Afirmando o princípio da justa distribuição dos ônus e benefícios da
urbanização, o Estatuto da Cidade estipulou a outorga onerosa de direitos de
construção e uso; a existência de diferentes categorias de indenização, com a
desapropriação sendo exceção no regime da função social da propriedade; a
captura de mais-valias e a gestão social da valorização imobiliária; bem como a
noção de que mera expectativa de direito não é direito, sendo que não há direitos
adquiridos em matéria urbanística. (FERNANDES, 2013. p.228).

Em outra escala de apreensão das questões urbanas, a das obras públicas,


podemos pensar também que os conhecidos e recorrentes problemas no Brasil
de alterações de projeto no decorrer da obra, não cumprimento de prazos,
orçamentos extrapolados, baixa qualidade de execução etc. são
fundamentalmente relacionados à negligência do projeto, algo comum tanto na
esfera pública quanto privada. A possibilidade de contratação de obra pública sem
projeto completo - ou, mais grave ainda, sem projeto algum, como admite o
regime de "contratação integrada" introduzido recentemente pela Lei do Regime
Diferenciado de Contratações Públicas (RDC)8 - é um dos absurdos que incidem
diretamente na configuração das cidades e dos espaços urbanos. Sem entrar no
mérito de outras questões relacionadas ao tema - éticas, de utilização de recursos
públicos etc - quando o projeto é negligenciado, a possibilidade de que obras
cheguem a um resultado final de boa qualidade, em prazos e custos adequados,
é substancialmente reduzida, se não inviabilizada. As cidades brasileiras, onde
essa prática tem sido a regra, não deixam dúvidas.

1.1.3. Urbanização, desenvolvimento e negligência

Preliminarmente, podem ser vislumbrados dois aspectos que devem ser


considerados para qualificação da expressão "negligência urbanística" num
sentido amplo e pertinente ao processo de urbanização no modelo atual de
desenvolvimento. O primeiro diz respeito à dimensão do fenômeno da
urbanização neste século em escala planetária e o problema das desigualdades
crescentes ligados à questão urbana contemporânea. O segundo se refere a
processos políticos e macroeconômicos que impulsionam o desenvolvimento,
mas que não têm necessariamente preocupação com seus rebatimentos na
estruturação da cidade e da ocupação do território.

8
O Regime Diferenciado de Contratações Públicas foi instituído pela Lei Federal no 12.462 de 4 de
agosto de 2011, visando especialmente obras de aeroportos, Copa do Mundo e Jogos Olímpicos,
mas aplicável também a obras do Programa de Aceleração do Crescimento e outros casos. Pelo
dispositivo, todas as atividades relacionados à obra, incluindo o projeto ficam a cargo do
construtor, o que estabelece um claro conflito de interesses.

21
As projeções atuais sobre crescimento demográfico e sobre a proporção entre
população urbana e população rural confirmam a ideia de urbanização completa
da sociedade não apenas do ponto de vista das relações econômicas, modos de
produção e processos decisórios, mas também fisicamente com o avanço da
urbanização. Os dados apresentados no relatório da Organização das Nações
Unidas (ONU) intitulado "World Urbanization Prospects - The 2014 Revision" dão
a dimensão dos desafios para as cidades neste século XXI: a população urbana,
que hoje representa 54% da população mundial total, em 2050 corresponderá,
segundo estimativas, a 66%. A expectativa é que em pouco mais de 30 anos,
sejam aproximadamente mais 2,5 bilhões de pessoas vivendo em cidades, sendo
esse crescimento populacional concentrado majoritariamente na Ásia e na África.
O mesmo relatório destaca ainda que "como o mundo continua a se urbanizar, os
desafios da sustentabilidade urbana serão cada vez mais concentrados nas
cidades, sobretudo nos países de renda média-baixa (...)" (ONU, 2014).

Num mundo globalizado, os modos como vêm se conformando e como se


consolidarão as cidades - ou aglomerados urbanos - que receberão tal
contingente populacional nas próximas décadas é também uma questão global.
Nesse sentido, vale lembrar as palavras de Rogers e Gumuchdjian, em suas
reflexões e proposições relativas a "cidades para um pequeno planeta":

"A sobrevivência da sociedade sempre dependeu da manutenção do equilíbrio


entre variáveis de população, recursos naturais e meio ambiente. O desleixo para
com este princípio foi desastroso e as consequências, fatais para as antigas
civilizações. Da mesma forma, estamos sujeitos às leis de controle da
sobrevivência, entretanto, somos os primeiros a constituir uma civilização global e,
portanto, os primeiros que enfrentam, simultaneamente, a expansão da população
a nível mundial, a destruição dos recursos naturais e do meio ambiente."
(ROGERS; GUMUCHDJIAN, 2008. p.13, grifo nosso).

A questão ambiental apontada por Rogers e Gumuchdjian se configura de modo


mais contundente em torno do fenômeno das mudanças climáticas, sobre o qual
já não há mais controvérsias em relação ao fato de que, diante dele, os riscos
globais e as incertezas que se impõem à sociedade contemporânea exigirão tanto
ações globalmente articuladas como novas formas de gestão territorial9.

9
Nesse contexto, os desafios para as cidades no século XXI mudam de contornos. Tanto pela sua
condição de contribuinte das emissões de gases do efeito estufa - dados da ONU indicam que as
cidades são responsáveis por cerca de 70% das emissões mundiais - como pela necessidade de
se adaptarem a uma realidade em que riscos e ameaças associados ao aquecimento global e à

22
No entanto, o problema atual da urbanização tem também outras dimensões que,
assim como a questão ambiental, estão relacionados ao modelo atual de
desenvolvimento. Para Harvey (2014) estamos "em meio a uma enorme crise –
ecológica, social e política – de urbanização planetária sem, ao que parece, se
percebê-la". A urbanização, na visão do autor, cada vez mais se torna a principal
forma de acumulação de capital, com suas próprias formas de barbárie em nome
do lucro.

Enquanto nos países subdesenvolvidos ou "em desenvolvimento", que são os que


receberão maiores contingentes populacionais em cidades nas próximas
décadas, os desafios da agenda urbano-ambiental do século XXI se sobrepõem
às questões urbanas não resolvidas no século XX, tais como garantia de
condições básicas de urbanização, moradia e acesso aos serviços tipicamente
urbanos para o conjunto da população, no estágio atual da urbanização, segundo
Secchi (2014), mesmo nos países desenvolvidos, "as diferenças entre ricos e
pobres se tornam mais visíveis" e "as injustiças sociais se revelam sempre sob a
forma de injustiças espaciais" (SECCHI, 2014. p.18). Para o autor, se configura aí
uma "nova questão urbana" que não é apenas "uma causa acessória da crise que
atravessam hoje as principais economias do planeta" e que tem como um dos
aspectos principais o problema "do aumento e do agravamento contínuo das
desigualdades sociais", ou seja, "da separação crescente entre ricos e pobres".
Segundo o autor:

"Enquanto uma diminuição da população vivendo em situação de extrema pobreza


e uma melhora da qualidade de vida da maior parte dos países pobres foram
constatadas na escala do planeta - aspectos verdadeiramente devidos ao
desenvolvimento de determinadas grandes áreas dos continentes asiático e sul-
americano - a maior parte dos observadores contemporâneos está de acordo em
reconhecer que no interior da maioria dos países, incluindo os mais ricos, um
fosso crescente se abre entre riqueza e pobreza." (SECCHI, 2014. p.17-18).

Nos interessa aqui destacar que, para Secchi, "a cada vez que a estrutura da
economia e da sociedade muda, a questão urbana remonta ao primeiro plano" e
seria esse o caso no momento atual. O autor acrescenta, ainda, que "a
emergência de uma nova questão urbana é gerada também das políticas e
projetos para a cidade - em particular, políticas espaciais (...)". Secchi relativiza a
visão dominante de que o combate às desigualdades seja tarefa, por definição, de

ocorrência de eventos climáticos extremos são eminentes e os impactos decorrentes podem ser
desastrosos.

23
políticas econômicas e sociais e não propriamente da competência do urbanismo.
Para Secchi, "o urbanismo deve responder por responsabilidades maiores e
bem definidas no agravamento das desigualdades e toda política que busca
eliminá-las ou combatê-las, deve tomar o projeto da cidade como ponto de
partida." (SECCHI, 2014. p.11, grifo nosso).

A ideia de que o projeto de cidade deve ser o ponto de partida para construção de
políticas de combate a desigualdades chama atenção para a habitual
desvinculação entre políticas macroeconômicas, que tendem a ser o eixo
determinante dos projetos de desenvolvimento, e a estruturação do território e dos
espaços urbanos. As políticas macroeconômicas, mesmo quando cumprem o
papel de impulsionar a economia e gerar emprego, podem também produzir
efeitos desastrosos sobre as cidades. É o caso, por exemplo, como ressalta
Maricato, dos incentivos à indústria automobilística que vigoraram por alguns
anos no Brasil, após a crise mundial de 2008 até muito recentemente, e também
da construção em massa de conjuntos habitacionais desde 2009. Concebidas
como políticas anticíclicas, não incorporam na sua formulação os efeitos sobre as
cidades.

"As políticas macroeconômicas impactam a sociedade e o território. Para dar um


exemplo, o comemorado aumento da produção de automóveis no Brasil em 2008
e 2010 - e consequente aumento do PIB - tende a ser desastroso para as cidades.
Estas exigem um olhar específico, o ambiente construído incorpora o território e o
meio ambiente. Conjuntos habitacionais que muitos julgam ser soluções para o
déficit habitacional podem trazer mais problemas do que constituir soluções (...).

A situação das cidades piorou muito nos últimos 30 anos e continuará a piorar,
ainda que os investimentos em habitação e saneamento tenham sido retomados
pelo governo federal a partir de 2003. Não houve mudança de rota no rumo que
orientou a construção das cidades, especialmente das metrópoles. A ausência de
controle sobre o uso e ocupação do solo - questão central para garantir justiça
social e preservação ambiental - é evidenciada pela ocorrência de enchentes e
desmoronamentos como centenas de vítimas fatais e milhares de desabrigados,
fatos notáveis nas cidades de todo o país na temporada de chuvas dos anos de
2007, 2008, 2009, 2010. As conquistas institucionais não lograram mudar as
principais forças que conduzem as cidades brasileiras para a condição de tragédia
social e ambiental: a forma desigual e especialmente a forma ambientalmente
predatória do mercado fundiário e imobiliário cuja atitude especulativa foi
potencializada pela introdução de investimentos maciços dos programas federais."
(MARICATO, 2011. p.77-78)

24
Magnaghi (2003) fala do desenvolvimento econômico desterritorializado,
caracterizado fundamentalmente pelo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB),
um indicador, segundo o autor, "equivocado e cada vez mais contestado". Nesse
modelo de desenvolvimento, explica Magnaghi, há a desvinculação entre lugares
institucionais de decisão (nacionais ou internacionais) e o território. Pode se dizer,
nesse sentido, que a cidade é negligenciada pelos processos e políticas
macroeconômicos, ainda que caminhemos para a "urbanização completa da
sociedade", como Lefebvre (2008) anunciava há cerca de quarenta anos.

Tanto a ideia de "desleixo" evocada por Rogers e Gumuchdjian, como a de


"responsabilidade" proposta por Secchi, ou a percepção de processos
econômicos maiores indicados por Harvey, Maricato e Maghaghi que, embora
essencialmente urbanos, tendem a desconsiderar e até mesmo negar a própria
cidade, ou melhor, o direito à cidade (Harvey, 2012), sugerem que a ideia de
negligência, que aqui chamamos de urbanística, pode ser abordada em diferentes
dimensões. Tanto na escala da urbanização mundial, como na escala urbana
local. Tanto na formulação das políticas gerais, como da política urbana
especificamente. Tanto no campo próprio do urbanismo, como em outros campos
do conhecimento. Tanto no projeto de cidade, como em cada projeto urbano
específico ou nos projetos arquitetônicos e nas normas urbanísticas.

1.2. Negligência urbanística em três dimensões: estrutural, operacional e


projetual

As formas de negligência urbanística podem ser múltiplas e difíceis de serem


caracterizadas de modo objetivo, pois dizem respeito às diferentes escalas do
fenômeno urbano, aos processos de produção e reprodução das cidades, às
formas de intervir no espaço urbano, aos papéis desempenhados pelos diversos
atores urbanos, aos sistemas de valores que organizam a sociedade etc.

No entanto, elas são reconhecíveis. E quando se trata de um país como o Brasil,


em que a modernização incompleta não garantiu padrão de urbanização
adequado a grande parte das áreas urbanas e, mais do que isso, contribuiu para
produzir desigualdades nas cidades, a noção de negligência urbanística revela-se
mais do que apropriada. As extensas áreas ocupadas por favelas e outros tipos
de assentamentos precários presentes em todas as grandes cidades brasileiras e
também em muitas, talvez a maioria, das médias e pequenas são a expressão
incontestável dessa realidade. E não se trata apenas da herança de um processo

25
de urbanização acelerado no século XX, mas resultado da lógica do
desenvolvimento urbano que continua a produzir desigualdades e disfunções
espaciais.

Nas palavras de Maricato (2000), trata-se de um processo de urbanização que


"segrega e exclui" e que se caracteriza, de modo geral, pela dispersão urbana
descontínua - que deixa vazios no interior da malha urbana e produz o
esvaziamento de áreas consolidadas - combinada com a ocupação de áreas
ambientalmente frágeis, insuficiência de infraestrutura e serviços urbanos,
habitações precárias autoconstruídas e informalidade crescente.

Apesar dos avanços institucionais e jurídicos no campo das questões urbanas


desde a redemocratização do país, com a Constituição Federal de 1988, com o
Estatuto da Cidade e diversos outros marcos legais, as mudanças nas práticas de
gestão são lentas, marcadas por avanços e recuos, ambiguidades, contradições e
disputas. E não necessariamente caminham no sentido de construção de cidades
mais inclusivas. É bem esse o cenário que marcou o final da década de 2000 e a
primeira metade desta, quando, em meio a uma nova onda desenvolvimentista no
país, as formas de segregação urbana se renovaram, impulsionadas pela própria
ação pública e pelas renovadas associações entre poder púbico e forças
econômicas nas cidades.

E é nesse sentido que a noção de negligência se mostra ainda mais pertinente


para reflexão sobre o momento atual, pois além de haver conhecimento
acumulado sobre as questões urbanas, particularmente sobre o problema da
desigualdade-informalidade-precarieade, há hoje instrumentos incorporados ao
ordenamento jurídico que possibilitam novas formas de ação, particularmente dos
municípios. Evidentemente, esse quadro é determinado em grande parte por
interesses econômicos poderosos, estratégias políticas, posições ideológicas, que
se entrelaçam num quadro de negligência urbanística que permeia a gestão
urbana.

Buscando entender como esse quadro de negligência urbanística se configura


nas práticas de gestão, podemos pensá-lo a partir de três dimensões principais:
a) uma que é estrutural, porque diz respeito a como e em que o Estado
fundamenta sua ação em relação à cidade; b) outra que é operacional, pois
relacionado ao instrumental utilizado pelo poder público, em particular o
município, no controle urbanístico; c) e finalmente uma terceira que é projetual,

26
relacionada ao papel dos projetos urbanos na configuração e reconfiguração dos
espaços da cidade.

A partir dessas três dimensões, a noção de negligência urbanística é tratada


neste trabalho prioritariamente no que diz respeito ao papel do poder público no
desenvolvimento urbano, na promoção da justiça socioespacial e do direito à
cidade, entendido, de acordo com Cavallazzi (2009), como “feixe de direitos”10.
Certamente, se poderia falar da negligência urbanística presente na ação de
diferentes atores sociais na cidade, entendendo, num sentido amplo, que todos
têm responsabilidades na construção do espaço urbano. Porém, a obrigação do
Estado de garantir direitos sociais, seu poder regulador e sua capacidade de
intervenção por meio da realização de obras públicas, que em tese deveriam
atender aos interesses da coletividade, fazem dele um ator maior e central para a
formulação conceitual aqui pretendida.

1.2.1. Negligência urbanística estrutural

O quadro de exclusão territorial das cidades brasileiras sugere uma primeira


dimensão da negligência urbanística que é estrutural. Ou seja, a própria lógica
de urbanização é negligente em relação ao tipo de cidade que dela resulta.
Ribeiro e Santos Junior (2012) explicam que:

A cidade brasileira contemporânea resulta da combinação de dois mecanismos


complementares: a liberdade para os agentes capitalistas tratarem e negociarem a
cidade (em especial a moradia e o solo urbano) como mercadoria (ou seja, a livre
mercantilização) e a perversa política de tolerância com todas as formas de uso e
apropriação do solo urbano (o que permitiu não somente as ocupações ilegais das
favelas e loteamentos irregulares, mas também as formas ilegais de ocupação de
áreas nobres pelas classes médias e pelas elites). (RIBEIRO; SANTOS JUNIOR,
2012. p.13).

Os dois mecanismos apontados pelos autores são reveladores do modo como as


cidades brasileiras se estruturam, tendo o Estado como o principal agente:

10
A autora trata o direito à cidade como “núcleo de um sistema composto de um feixe de direitos
incluindo o direito à moradia (implícita a regularização fundiária), à educação, ao trabalho, à
saúde, aos serviços públicos (implícito o saneamento), ao lazer, à segurança, ao transporte
público, à preservação do patrimônio cultural, histórico e paisagístico, ao meio ambiente natural e
construído equilibrado (implícita a garantia do direito a cidades sustentáveis)” (CAVALLAZZI,
2009. p. 41). Com esse entendimento, pode-se compreender o direito à cidade, então, como porta
de acesso a outros direitos, fundamentais ao exercício da cidadania.

27
protegendo os interesses da acumulação urbana (proveniente da produção da
cidade) da concorrência de outros circuitos, seja realizando encomendas de
construção de vultosas obras urbanas, ou ainda pela omissão em seu papel de
planejador do crescimento urbano. (RIBEIRO; SANTOS JUNIOR, 2012. p.13)

A omissão do Estado em relação ao que deveria ser o seu papel de garantir a


construção da cidade equilibrada e equitativa, ou seja, a negligência urbanística
do Estado, produziu cidades que, ainda segundo os mesmos autores, são
"inacabadas, pois estas são incapazes de mediar os conflitos e integrar, mesmo
que parcialmente, as distintas classes e grupos sociais" (RIBEIRO; SANTO
JUNIOR, 2012. p.14).

No centro dessa questão está o problema da terra, do “nó da terra” na sociedade


brasileira como enfatiza Maricato (2011). Carlos Nelson dizia que quando
perguntam qual o maior problema urbano brasileiro, "nem é preciso pensar duas
vezes: É a terra!" (SANTOS, 1986). Décadas depois, o problema central ainda
continua o mesmo, apesar do enorme avanço que representou a Constituição
Federal de 1988 afirmar a função social da propriedade urbana e, uma dezena de
anos depois, o Estatuto da Cidade consagrar diversos instrumentos que podem,
dependendo de como forem utilizados, ao menos contribuir para favorecer o
acesso à terra urbanizada.

O Estatuto da Cidade constitui o marco legal e simbólico mais representativo de


um processo de mobilização social e política em torno da luta pela reforma
urbana. Juntamente com uma série de outras leis, que vão, talvez, desde a lei de
parcelamento (Lei Federal 6.766/79) às diversas leis federais aprovadas a partir
dele (entre as quais a que criou o Sistema e Fundo de Habitação Nacional de
Interesse Social, os marcos regulatórios do saneamento básico e da mobilidade
urbana etc.) passando pelo capítulo de política urbana da Constituição Federal e
o reconhecimento constitucional do direito à moradia, se estabeleceu um novo
ordenamento jurídico no país para o trato da questão urbana, fundamentado no
princípio da função social da propriedade urbana. Para Fernandes (2013)

Em termos conceituais, o Estatuto da Cidade consolidou um novo paradigma


jurídico sobre a questão da propriedade imobiliária, concebida não mais apenas
em função do reconhecimento dos direitos individuais, mas também e sobretudo
em função do reconhecimento das responsabilidades e obrigações sociais
que resultam da condição de ser proprietário de um bem imóvel, bem como
dos direitos coletivos e sociais sobre o solo urbano e seus recursos.
(FERNANDES, 2013. p.225, grifo nosso).

28
Contudo, o próprio autor ressalta que "são certamente muitos os limites dessa
nova ordem jurídico-urbanística consolidada pelo Estatuto da Cidade, muitos são
os gargalos que ainda requerem um tratamento jurídico e legislativo adequado"
(FERNANDES, 2013. p.229). A lei - seja o Estatuto da Cidade ou qualquer outra -
pode, de fato, ser considerada como algo relevante, como um marco importante
de um processo, como uma referência simbólica, até mesmo um passo essencial,
mas não tem a capacidade, por si mesma, de transformar a realidade. Dependerá
sempre de como será interpretada, das condições concretas de implementação,
que, não raramente, se constroem no embate do conflito de interesses, nos
processos sociais.

A obrigatoriedade constitucional de municípios com mais de 20.000 habitantes


elaborarem planos diretores e o atrelamento da aplicação de instrumentos
previstos no Estatuto da Cidade à previsão no instrumento de planejamento
municipal motivou a campanha promovida pelo Ministério das Cidades11, entre
2005 e 2006, pela elaboração de Planos Diretores Participativos12. Buscava-se
conferir a um instrumento vinculado à tradição tecnocrática, um novo papel,
transformando seu processo de elaboração num espaço público e democrático de
discussão e decisão sobre a cidade. Pode-se dizer que a campanha teve algum
êxito nesse sentido, pois inúmeras cidades que jamais haviam tido nenhuma
forma de discussão mais aberta com a sociedade sobre suas perspectivas de
futuro, sobre seu planejamento, ensaiaram algumas experiências.

A pesquisa nacional de avaliação dos Planos Diretores Participativos13 reconhece


o expressivo número de municípios, mais de 1.400, que se dedicaram, de algum
modo, à tarefa de elaboração dos planos diretores. E destaca que parte
significativa desses incorporaram muitos instrumentos jurídicos-urbanísticos
previstos no Estatuto da Cidade, mas normalmente apenas reproduzindo o texto
da lei federal, sem necessariamente estarem vinculados a estratégias urbanas
claras. Do ponto de vista qualitativo, a avaliação é que

11
O Ministério das Cidades foi criado em 2003, suprindo um vazio institucional em relação à
questão urbana e agrupando, num primeiro momento, uma equipe oriunda justamente dos
movimentos pela reforma urbana.
12
A Campanha Nacional "Planos Diretores Participativo: Cidade de Todos", considerando o prazo
previsto pelo Estatuto da Cidade (até 2006), incentivou - e pressionou - os municípios, mobilizando
a sociedade civil, a elaborarem seus planos diretores, de modo a incorporar as diretrizes e
instrumentos previstos na lei federal.
13
Pesquisa qualitativa de avaliação dos Planos Diretores Participativos elaborados após a
aprovação do Estatuto da Cidade, promovida pelo Ministério das Cidades entre 2007 e 2010. A
pesquisa envolveu a análise de 526 planos, oferecendo, apesar de seus limites, uma visualização
do conteúdo das leis municipais aprovadas.

29
nem todos os Planos Diretores são efetivamente resultado de um pacto social para
a gestão do território municipal e também não são todos os planos que dialogam
com os preceitos sociais do Estatuto da Cidade, especialmente quanto à
instituição de instrumentos de gestão do solo urbano. (SANTO JUNIOR;
MONTANDON, 2011. p.28-29).

No âmbito da mesma pesquisa, Oliveira e Biasotto (2011) analisaram a


incorporação do tema do acesso à terra urbanizada nos planos e avaliam que:

o potencial dos instrumentos de intervenção no mercado de terras, de


redistribuição da renda gerada pelo desenvolvimento urbano e de promoção da
redução das desigualdades sociais no acesso à terra urbanizada e à cidade
praticamente não foi aproveitado (OLIVEIRA; BIASOTTO, 2011. p.59).

Os processos de elaboração dos planos diretores14, em diferentes realidades


urbanas, já mostravam que as resistências a quaisquer mudanças que pretendam
incidir sobre o controle da terra são ainda imensas no Brasil, um país de forte
tradição patrimonialista. Não se pode desconsiderar que havia e ainda há muito
desconhecimento e desinformação sobre o conteúdo do Estatuto da Cidade e,
num sentido mais amplo, sobre os processos urbanos, sobre os conflitos de
interesses na produção do espaço urbano e sobre a maneira desigual com que os
diferentes atores conseguem intervir na cidade. Porém, nos processos de
elaboração de planos diretores dos anos 2000 e nos anos seguintes quando estes
deveriam ser implementados, tais resistências afloraram muito fortemente em
relação aos institutos que incidem diretamente sobre a propriedade, concebida,
como explica Fernandes

quase que exclusivamente como mercadoria, seu valor de troca prevalecendo


sobre qualquer valor de uso, e a possibilidade de usar/gozar/dispor do bem imóvel
sendo também interpretada como a possibilidade livre de não usar/gozar/dispor do
bem – em outra palavras, de especular (FERNANDES, 2013. p.223).

As justificativas mais correntes para não se avançar na utilização de instrumentos


que possibilitariam a ação mais direta do Município na propriedade visando à
promoção da função social da cidade e da propriedade urbana, normalmente,
aventavam incapacidades técnicas e institucionais para implementá-los, como se
essas não pudessem ser superadas a partir de decisões políticas, e não
raramente se evocavam infundados "direitos adquiridos" (por exemplo, nos casos
14
Este autor teve a oportunidade de participar diretamente de alguns e acompanhar outras tantos
como consultor do IBAM (Instituto Brasileiro de Administração Municipal) que prestou serviços de
consultoria a vários municípios, o que permitiu o acúmulo de algum conhecimento sobre o tema
pelo trabalho de campo.

30
de propostas de redução de potencial construtivo ou adoção da outorga onerosa
do direito de construir). Curiosamente, cabe observar, que o que estamos aqui
qualificando como resistências a uma mudança de paradigma no planejamento
urbano, que o Estatuto da Cidade permitiria, não são oriundas apenas de grandes
proprietários ou incorporadores. Passa também pelos demais atores sociais,
pelas mais diferentes razões. Podemos pensar, por exemplo, em agentes
políticos que têm na informalidade ambiente mais fértil para exercer práticas
assistencialistas e clientelistas, assim como aqueles que preferem não contrariar
interesses individuais de eleitores e financiadores de campanha. Ou em técnicos
municipais, muitos deles mais resistentes às mudanças nos processos de
trabalho que a implementação de novos instrumentos urbanísticos pode
representar do que propriamente ao conteúdo dos mesmos, ainda que
frequentemente as duas coisas se confundam. E também por todo tipo de
pessoas, mesmo aquelas que não são proprietárias, incluindo pobres, que têm a
"casa própria" como sonho e, por extensão, também se mostram resistentes a
mecanismos que interfiram no poder quase absoluto da propriedade, imaginando
que um dia, enfim, poderão ser proprietários.

O fim do período de elaboração de planos diretores coincidiu com um momento


econômico favorável do país, de muito investimento público em obras de
infraestrutura, ampliação do crédito habitacional, aquecimento do mercado
imobiliário em todas as regiões e uma guinada na orientação política do governo
federal em relação às cidades, passando da priorização do planejamento à
priorização da execução de obras.

Nesse novo contexto, independente de qualquer avaliação sobre a relevância ou


não dos planos diretores, veio à tona mais claramente outra questão, relativa à
disputa sobre o significado daqueles instrumentos que haviam sido consagrados
no Estatuto da Cidade. A análise de Bassul (2011) sobre a aprovação da lei
federal oferece elementos esclarecedores para o entendimento de razões pelas
quais uma lei gestada nos movimentos sociais comprometidos com a reforma
urbana, o direito à cidade e à democratização do espaço urbano, não apenas
encontra dificuldades para sua efetivação como a implementação de alguns de
seus instrumentos passa a atender a interesses opostos aos que estavam na
origem da concepção do marco legal.

De início, tanto quanto ocorrera com o Projeto nº 775, de 1983, o Estatuto da


Cidade sofreu resistências do empresariado conservador. Aos olhos de grande
parte desse setor, era um texto “de esquerda” — estatizante e burocrático. Essa

31
percepção determinava marchas e contramarchas, que confluíam para o
alongamento dos prazos.

Ao longo do tempo, contudo, o projeto demonstrou ser não uma proposta


socializante, como temiam alguns, mas uma lei útil ao capitalismo desenvolvido.
Afinal, o combate à retenção ociosa de terrenos urbanos, por exemplo, serve ao
interesse público, mas igualmente atende a um dos princípios da iniciativa
privada: maior oferta de terra como fator de produção. Do mesmo modo, a
adoção de instrumentos jurídicos inovadores com vistas à regularização
fundiária e a transferência do direito de construir, por exemplo, que propiciam
compensações adequadas aos proprietários de terrenos objeto de ocupações
ilegais, operam em proveito de comunidades de baixa renda, mas igualmente
conciliam interesses conflitantes. Sem falar na possibilidade da realização de
operações urbanas consorciadas, instrumento de grande interesse para o
mercado. Na verdade, o Estatuto da Cidade pode ser proveitoso para os
diversos agentes — sociais ou econômicos, públicos ou privados —
intercorrentes no processo de urbanização, o que explica, em grande parte, a
unanimidade obtida. (BASSUL, 2011. p.11-12).

Se as dificuldades para alterar o caráter quase absoluto da propriedade urbana


em favor do cumprimento de sua função social já eram grandes, foram agravadas
com a mudança de orientação política em relação ao planejamento,
particularmente o planejamento urbano municipal, na definição de prioridades de
ação e investimentos. E no momento em que os instrumentos do Estatuto da
Cidade passam a ser utilizados, como ocorre mais claramente com as OUCs15,
para viabilizar novas formas de valorização e concentração fundiárias, as
possibilidades de se avançar de forma mais consistente no problema essencial e
estrutural de democratização do acesso à terra urbana tornam-se ainda mais
complexas.

1.2.2. Negligência urbanística operacional

A negligência urbanística estrutural conduz a outra dimensão da negligência


urbanística que é operacional, que diz respeito aos instrumentos utilizados pela
sociedade, por meio do Estado, para regular a cidade. A legislação urbanística e o
aparato estatal para garantir sua aplicação, que supostamente cumpririam esse
papel, no entanto, compreendem uma série de mecanismos que acabam também

15
E o caso da OUC Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, é exemplar, pois configurou uma
estratégia de transferência de terra pública para o setor privado que será beneficiado por obras
financiadas com a arrecadação de recursos por meio da concessão pública de direito de construir
adquirido por um banco público.

32
por promover injustiças espaciais. O modelo estático de regulação urbana, que
tem no instrumento do zoneamento funcional seu maior expoente, produziu um
sistema normativo, ainda hoje arraigado em boa parte dos municípios brasileiros,
baseado em idealizações tecnocráticas e que jamais conseguiu dar conta da
complexidade da urbanização desigual das cidades brasileiras.

De acordo com Rolnik, é preciso compreender que mais "do que definir formas de
apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular
a produção da cidade, a legislação urbana age como marco delimitador de
fronteiras de poder." (Rolnik, 1999. p.13). Nesse sentido, a legislação pode ser
entendida como instrumento que, contraditoriamente, nega o acesso pleno à
cidade para uma parte significativa da população, pois, ainda segundo a mesma
autora, ela apenas

aparentemente funciona, como uma espécie de molde da cidade ideal ou


desejável. Entretanto (...) ela delimita [para a maior parte das cidades latino-
americanas, provavelmente] apenas a menor parte do espaço construído, uma vez
que o produto - cidade - não é fruto da aplicação inerte do próprio modelo contido
na lei, mas da relação que esta estabelece com as formas concretas de produção
imobiliária na cidade. Porém, ao estabelecer formas permitidas e proibidas, acaba
por definir territórios dentro e fora da lei, ou seja, configura regiões de plena
cidadania e regiões de cidadania limitada. (ROLNIK, 1999. p.13).

Os princípios do urbanismo moderno-funcionalista forjaram a legislação


urbanística no Brasil ao longo do século XX, desconsiderando dinâmicas da
cidade existente e lançando mão de padrões pré-concebidos, expressos por meio
de índices urbanísticos e pela separação de usos como forma de garantir que
cada parte da cidade cumprisse plenamente sua função definida a partir de um
modelo teórico. Modelo que foi incapaz de garantir a pretensa ordem social e
formal da cidade e, pelo contrário, gerou mais segregação (SANTOS, 2009).

Ao analisar as noções de ordem e irregularidade no espaço urbano, Silva (2006)


ressalta que "a falência dos mecanismos de controle urbanístico é visível nas
nossas cidades" (SILVA, 2006. p.90). A autora se refere justamente à ordem
funcionalista que produziu normas

para uma cidade das elites e das classes médias [que] não atende às demandas
das classes de baixa renda, e faz com que estas sejam atendidas pelo mercado
imobiliário informal. O Estado não reconhece as práticas sociais destes grupos, e
tenta impingir normas que não levam em conta a realidade urbana e suas
contradições. (SILVA, 2006. p.99).

33
O Brasil teve avanços desde o processo de redemocratização nos anos 1980,
cujos marcos legais e simbólicos principais são o capítulo da política urbana da
Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade. Ao serem aprovados,
sinalizavam para possibilidades de construção de cidades mais inclusivas e,
especialmente o Estatuto da Cidade, expunha, por meio das diretrizes para
política urbana no Brasil (art. 2º), o diagnóstico de uma série de conflitos nas
cidades brasileiras.

Apesar da sofisticação da legislação federal e do esforço para se elaborar novos


instrumentos municipais de planejamento e gestão (planos diretores pós-Estatuto
da Cidade) que pudessem contribuir para efetivação do direito à cidade, a
renovação de instrumentos operacionais do planejamento urbano e, mais ainda,
das práticas de gestão são extremamente tímidas. Como já destacamos, os
planos diretores não aproveitaram como poderiam, pelo menos ensaiando
inovações, o potencial dos instrumentos do Estatuto da Cidade. E os processos
de elaboração dos planos não foram necessariamente acompanhados da revisão
da legislação urbanística ordinária, o que muitas vezes resultou em
incompatibilidades deixadas à interpretação dos licenciadores e justificativas para
não serem levados adiante.

No Rio de Janeiro, a questão da revisão da legislação urbanística tem contornos


bem particulares. Alguns dos dispositivos previstos no plano diretor de 1992 se
anteciparam ao conteúdo que seria incorporado ao Estatuto da Cidade, aprovado
quase dez anos depois, porém não foram implementados - em especial o solo
criado e o IPTU progressivo no tempo. A revisão do plano diretor, que deveria
ocorrer em 2002, prevista pelo próprio plano e obrigatória de acordo com Estatuto
da Cidade, só se completou em 2011, com nítidos retrocessos em relação à
agenda da reforma urbana. Em todo esse período, mais de 20 anos, a cidade
continua sendo regida por uma legislação urbanística anacrônica de viés
modernista-funcionalista-tecnocrático e de difícil compreensão, uma vez que se
configura por complexa sobreposição de normas, e que "se mantém como força
de reprodução dos processos tradicionais de exclusão territorial urbana"
(BIASOTTO, 2012. p.38).

Os principais projetos urbanos precursores dos anos 1980 (ver capítulo 3) foram
concebidos segundo uma visão reformadora. No sentido de que buscavam
conciliar a elaboração de projetos de intervenção urbana com a revisão, ainda
que parcial, da base legal do urbanismo municipal, o que acabaria confluindo para

34
a revisão do plano diretor de 1992. A partir de 1993, quando os projetos urbanos
passaram a ser verdadeiramente o carro-chefe da administração municipal, essa
perspectiva reformadora perdeu relevância. Os principais projetos desse período,
embora trouxessem um conteúdo de inovação importante - a valorização do
desenho urbano -, do ponto de vista da execução eram como obras públicas
tradicionais. Não dependiam de mudanças na base legal do urbanismo ordinário,
que continuou operando segundo a lógica de uma legislação antiga, sem se
mexer com as regras em que o mercado imobiliário já se movimentava e que
jamais favoreceu a inclusão sócio-territorial.

A questão operacional, entretanto, não diz respeito apenas às normas em si, mas
às práticas de gestão de modo amplo, que envolvem tradicionalmente atividades
de planejamento, licenciamento e fiscalização. Conforme aponta Garcia, "as
ações, diretrizes e políticas definidas no planejamento exigem uma conversão
para o nível de praxis, demandando atos regularizados e rotinas, (...), que
demandam pessoas, informações e processos de trabalho" (GARCIA, 2012.
p.212). A integração entre essas atividades essenciais nem sempre ocorre
efetivamente, como destaca o próprio Garcia:

Apesar do licenciamento ser prática comum nos Municípios (mesmo com toda a
sua deficiência), sua relação com o planejamento nem sempre se dá de modo
evidente. Em alguns casos as licenças são emitidas sem que preexistam
dispositivos de orientação e disciplinamento em relação aos impactos na
paisagem, no trânsito, na vizinhança, no ambiente, na economia etc. definidos a
partir de um desejo coletivo de ordem. Noutros casos, é o próprio processo de
planejamento que ignora o licenciamento enquanto instrumento efetivo de controle
do uso e ocupação do solo, indispensável para a implementação do próprio plano
(...) (GARCIA, 2012. p.214).

Observa-se, ainda, que, em geral, as atividades de licenciamento e fiscalização,


são desprestigiadas nas administrações municipais brasileiras. Tanto do ponto de
vista do status profissional dos que a exercem, como da própria alocação de
recursos para o seu bom funcionamento frente à dinâmica urbana e frente a uma
legislação urbanística e ambiental normalmente pesada. São atividades tidas
como menores na gestão urbana, embora lidem com a construção da cidade no
dia a dia, lá na ponta, na relação direta com o cidadão. As atividades de
planejamento, tradicionalmente tidas como mais nobres, continuam, com
frequência, a serem desenvolvidas nos gabinetes, revendo permanentemente as
normas vigentes, sem terem ou sem considerarem o feedback do licenciamento e,
não raramente, descoladas do mundo real.

35
1.2.3. Negligência urbanística projetual

Uma terceira dimensão da negligência urbanística é projetual e diz respeito à


própria natureza dos projetos urbanos, os tipos de intervenções, como essas
dialogam ou interferem na dinâmica urbana e as concepções urbanísticas
adotadas.

A prática de projetos urbanos revela contradições entre um arcabouço teórico que


busca situá-la como alternativa aos pressupostos do urbanismo funcionalista e
para enfrentamento das problemáticas próprias da cidade contemporânea e suas
formas de apropriação por agentes econômicos e políticos. De acordo com Merlin
e Choay (2010), tais contradições vão desde aspectos conceituais mais gerais
como, por exemplo, o entendimento do projeto urbano como parte da lógica da
associação entre gestão urbana e gestão empresarial – que põe em conflito a
necessidade do tempo longo da cidade e as expectativas de resultados em tempo
curto das empresas16 –, a questões mais pragmáticas como a utilização eleitoral
dos projetos urbanos no jogo político. Do ponto de vista arquitetônico urbanístico,
essas contradições podem se traduzir em conteúdos esvaziados dos projetos
urbanos, reduzindo-os, muitas vezes, à produção de formas e imagens para servir
às estratégias de marketing urbano e favorecer interesses privados de
empreendedores e grupos econômicos - ou “exigências do mercado” – em
detrimento dos interesses coletivos.

Roncayolo explica que "o projeto urbano perdeu pouco a pouco sua consistência"
(RONCAYOLO, 2008. p.1890), o que exige, cada vez mais, análise de seu
significado em cada realidade específica. Sua difusão nas últimas décadas,
claramente, está associada a um tipo de urbanismo genérico, de caráter liberal
(BOURDIN, 2014), que se mostra dominante nesse início de século. Harvey
(2002) fala de um modo de intervenção que busca "criar uma imagem positiva e
de alta qualidade" das cidades por meio da "repetição em série de modelos bem
sucedidos" num contexto em que "a sombria história da desindustrialização e da
reestruturação" deixou "a maioria das cidades grandes do mundo capitalista
avançado com poucas opções além da competição entre si, em especial como

16
De acordo como os autores, "a identificação da gestão da cidade com a gestão de empresa traz
o problema de compatibilidade conceitual: como conciliar os elementos de regulação e de duração
com os elementos da vida das empresas que são frenquentemente de curto prazo? De fato, o
projeto urbano, o projeto aplicado à cidade, toca o interesse público, enquanto o projeto de
empresa refere-se ao interesse privado" (MERLIN E CHOAY, 2010, tradução nossa).

36
centros financeiros, de consumo e de entretenimento". Ainda segundo o autor,
"dar determinada imagem à cidade através da organização de espaços urbanos
espetaculares se tornou um meio de atrair capital e pessoas (de certo tipo) (...)"
(HARVEY, 2002. p.92).

Ao menos teoricamente, entretanto, o projeto urbano pode ser compreendido


também como "uma mediação entre ideia e realização de formas, uma mediação
entre reflexão global e possibilidades locais, entre desejos e meios de ação, entre
decisores, atores e o suposto "beneficiário", o "habitante" sob todas as formas"
(RONCAYOLO, 2008. p.185). Nessa perspectiva, Farias Filho (2007) ressalta que
noção e prática de projetos urbanos encerram uma polarização: “onde uns vêem
um instrumento de manipulação da cidade articulado pelas forças econômicas,
outros observam um modus operandi capaz de contribuir para a melhoria e
democratização do espaço urbano” (FARIAS FILHO, 2007. p.1).

Entre esses dois polos, se pode pensar a prática de projetos urbanos do Rio de
Janeiro nas últimas três décadas. Numa cidade marcada por desigualdades, a
questão de fundo é se os projetos urbanos têm servido à reconstituição da
urbanidade e à integração socioespacial ou, opostamente, ao aprofundamento da
segregação urbana. A resposta não é tão simples e é, de certo modo, ambígua,
pois é possível reconhecer experiências que opera(ra)m nos dois sentidos nas
últimas décadas. É o que mostra a análise das três gerações de projetos urbanos
na cidade do Rio de Janeiro descritas nesta tese entre os anos 1980 e o período
atual (capítulo 3).

No entanto, ao se lançar o olhar para a prática de projetos urbanos ao longo do


tempo, é possível perceber como a ação projetual vai se tornando cada vez mais
negligente em relação a essa perspectiva da democratização do espaço urbano,
da concepção de um projeto de cidade mais inclusiva. Nesse sentido, as ações de
preparação da cidade do Rio de Janeiro para os grandes eventos esportivos
nacionais e a operação urbana "Porto Maravilha", que integram o que
identificamos como a terceira geração de projetos urbanos, expressam mais
claramente a ideia de negligência urbanística projetual. No seu conjunto, são
concentradoras de investimentos em áreas cuja expectativa de apropriação de
valorizações fundiárias pelo mercado imobiliário é gigantesca, reforçam
tendências de segregação no espaço urbano, reproduzem modelos urbanísticos e
arquitetônicos exógenos e desprezam a participação social. São, na verdade,
grandes operações imobiliárias e financeiras ou grandes obras de infraestrutura
cujos “projetos urbanos” vêm “a reboque”.

37
O "Porto Maravilha", examinado no capítulo 4, sintetiza todos esses aspectos e
exatamente por isso se caracteriza como uma operação urbana, pode se dizer,
sem projeto. O processo de transformação em curso na área portuária do Rio de
Janeiro é de tal forma marcado pela dispersão de ações numa área gigantesca,
que é difícil imaginar que resultado terá. Seja do ponto de vista do próprio
ambiente construído renovado, seja do ponto de vista do impacto da renovação
dessa área na dinâmica da cidade, em especial do centro. As incertezas sobre o
destino da área portuária são grandes, geradas por uma operação que maneja
terras públicas e índices urbanísticos fomentando especulações e sugerindo um
dinamismo irreal da cidade.

***

As três dimensões de negligência urbanística propostas se sobrepõem na gestão


urbana e nas diferentes escalas de intervenção na cidade. Contudo, dependendo
do fenômeno observado, se pode verificar com mais ênfase uma ou outra
dimensão. Assim, quando tratamos dos fenômenos da dispersão urbana e da
informalidade urbana vêm à tona as dimensões estrutural e operacional. Ao
examinarmos as gerações de projetos urbanos na cidade do Rio de Janeiro, a
ênfase é sobre as dimensões operacional e projetual, porém numa visão de
processo no tempo. E lançando o foco sobre a operação urbana Porto Maravilha,
a ênfase é na dimensão projetual, ainda que a as outras duas também estejam
presentes na análise empreendida.

38
Capítulo 2
DISPERSÃO URBANA, INFORMALIDADE URBANA E O QUADRO DE
NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

No Rio de Janeiro, pelo menos dois fenômenos se mostram essenciais para


compreensão do desenvolvimento urbano das três últimas décadas: a dispersão
urbana e a informalidade urbana. Esses são aqui ressaltados como expressão
física e territorial do quadro de negligência urbanística no Rio de Janeiro e
abordados a partir da análise da dinâmica urbana recente da cidade, na parte
inicial do capítulo.

Certamente, não são fenômenos novos, uma vez que acompanham o processo
de urbanização da cidade em todo o século XX. Porém, o modo como se
configuram nas últimas décadas é diferente e, aparentemente, bastante peculiar
da cidade do Rio de Janeiro. Nesse período recente, o crescimento populacional
acelerado não pode mais explicá-los, pois, como veremos, a população carioca
tem crescido pouco nas últimas décadas. Entretanto tem se construído muito,
sobretudo nos bairros com menos infraestrutura e pressionando a expansão da
urbanização, provocando significativos movimentos internos da população e, em
grande parte, na informalidade. Os efeitos sobre as áreas de urbanização mais
antigas e melhor infraestruturadas variam entre a hiper-valorização dos bairros
mais nobres e a deterioração de bairros dos subúrbios, reforçando desigualdades
territoriais.

Na verdade, esses dois processos que ocorrem concomitantemente e se


alimentam - dispersão da urbanização e crescimento da informalidade urbana -
são estruturantes na dinâmica urbana carioca, sendo o primeiro fomentado
diretamente pela ação pública e o segundo reflexo, em grande parte, da omissão
que historicamente caracterizou a postura do Estado em relação à questão
habitacional, resultando no gigantesco passivo urbanístico-ambiental atual.

Mas estão relacionados também com opções do próprio planejamento, como


demonstram o "Plano Piloto para urbanização da baixada compreendida entre a
Barra da Tijuca, o Pontal de Sernambetiba e Jacarepaguá" (1969), ou mais
simplesmente "Plano Lucio Costa", e o Decreto 322/1976, que trata do
zoneamento e normas de edificação no município do Rio de Janeiro.
Representantes legítimas do planejamento urbano tradicional, totalizante e
totalitário, tanto na forma mais poética do Plano Lucio Costa, quanto na forma
mais burocrática e tecnocrática do Decreto 322/76, as duas "decisões

39
urbanísticas" continuam vigorando, quatro décadas depois, apesar de suas
sucessivas alterações, moldando a cidade que se constrói dia a dia, formal ou
informalmente, ao longo do tempo. A partir delas, do que chamamos de dispersão
e informalidade "planejadas", discute-se, na continuidade deste capítulo, o papel
preponderante da base operacional do urbanismo, representada pela legislação
urbanística, na configuração da cidade.

Ao final do capítulo, fazemos algumas considerações relativas ao plano diretor da


cidade aprovado em 2011. A edição de um novo plano, ao contrário do que se
poderia supor, não representou qualquer possibilidade de que o modo de se
conceber a intervenção pública na cidade, por meio de obras ou legislação, venha
a ser alterada num futuro próximo. Pelo contrário, sugere retrocessos. De um
lado, abordamos a desvinculação deste que seria o instrumento geral do
planejamento urbano municipal das inúmeras obras em curso no Rio de Janeiro e
que já estavam na agenda da cidade no momento de sua aprovação. Por outro,
buscamos traduzir o significado do tratamento dado aos Índices de
Aproveitamento de Terreno (IAT) e à Outorga Onerosa do Direito de Construir
(OODC), que anulam o que, possivelmente, o plano de 1992 tinha de mais
avançado: o coeficiente de aproveitamento básico único igual um. Embora nunca
tenha sido aplicado, pelo menos estava lei. A análise do novo Plano Diretor do
Rio de Janeiro é apenas parcial. Porém se concentra nos aspectos conceituais
essenciais que nos permitem apontá-lo como produto de um ambiente de
negligência urbanística.

2.1. Notas sobre a dinâmica urbana recente do Rio de Janeiro

A cidade do Rio de Janeiro, já há algumas décadas, apresenta baixas taxas de


crescimento de população. Os dados do último Censo Demográfico do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, confirmam tal tendência,
fenômeno comum às principais metrópoles brasileiras, em que pese as
especificidades de cada uma delas.

No caso do Rio de Janeiro, os dados indicam pequena elevação das taxas


médias geométricas de crescimento anual nas duas últimas décadas - de 1990 e
de 2000 - mas, ainda assim, são taxas de crescimento estáveis. Outro aspecto
importante a considerar, é que, como vários estudos vêm mostrando, a migração
de população para os estados do sudeste, atualmente, não é mais uma questão.

40
Pelo contrário, há uma tendência de perda de população nesses estados17. Esses
dois fatores, determinantes do processo de urbanização acelerada de meados do
século XX, hoje não são relevantes, ainda que, de algum modo, permaneçam no
imaginário coletivo.

Mesmo tendo crescimento populacional a taxas baixas e estáveis, a malha urbana


do Rio de Janeiro continua a expandir muito. E essa é uma das questões de
fundo sobre sua dinâmica urbana recente e sobre o papel a ser desempenhado
pelo urbanismo nesse contexto. Andrade (2009) destaca que a cidade vive
atualmente um período de retração, mas que, paradoxalmente, "o Rio de Janeiro,
além de se retrair, se muda". (ANDRADE, 2009. p.5). E se muda num processo
de urbanização que avança, com descontinuidades, e tem a ocupação
intensificada sobre as áreas com menos ou nenhuma infraestrutura, deixando um
rastro de subaproveitamento em bairros antigos.

Os dados dos últimos Censos Demográficos demonstram o impressionante


movimento da cidade em direção à zona oeste e o gradativo aumento da
população residente em favelas, em termos absolutos e relativos. A excessiva
expansão da cidade resulta em problemas urbanos cada vez mais complexos,
particularmente em relação às infraestruturas e à mobilidade. E a informalidade
urbana, em particular a favelização, uma das faces mais visíveis da segregação
socioespacial, também aumenta.

Para melhor compreensão do significado desses dados em termos urbanísticos,


as tendências indicadas pelas informações censitárias são correlacionadas com
dados do licenciamento urbanístico municipal referentes a: licenças de construção
de unidades residenciais; concessão de “habite-se” para unidades residenciais; e,
mais especificamente, licenças de construção de unidades residenciais no âmbito
do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV).

Não se trata de mero levantamento de dados quantitativos, mas da apropriação


de dados oficiais para expressar, em números e também espacialmente, como
vem se dando o desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro. Os números, mesmo
com eventuais imprecisões, permitem o dimensionamento dos fenômenos, o que
é essencial para a formulação de políticas. A análise aqui empreendida talvez não

17
De acordo com estudos que embasaram o Plano Nacional de Habitação (PLANHAB), 2007, os
saldos migratórios projetados por região para o período de 2000 a 2020 indicam que as regiões
Nordeste e Sudeste perderão população, enquanto que as demais ganharão, sobretudo a região
Centro-Oeste (PLANHAB, 2007 - apud CEDEPLAR, 2007).

41
apresente nenhuma interpretação inovadora sobre fenômenos que já
caracterizavam o desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro na década anterior.
Mas é exatamente por isso que se torna relevante para este trabalho, pois expõe
a continuidade de um quadro que já era conhecido, apesar de discursos e
práticas, entre elas a de projetos urbanos, que seriam transformadoras da cidade.
Os principais processos que estão em curso que podem ser depreendidos da
análise dos dados são os seguintes:

a) Embora seja ainda muito forte o vetor de expansão da cidade em direção à


zona oeste, na década de 2000 alguns bairros mais centrais ou de
urbanização mais antiga voltaram a registrar aumento da população
residente;

b) Assim como vem se verificando ao longo das últimas décadas, as taxas de


crescimento da população residente em favela na década de 2000 também
foram muito maiores do que as da população total;

c) O acréscimo de novas unidades ao estoque residencial continua se dando


em ritmo acelerado, apesar da estabilidade do incremento demográfico;

d) A produção irregular de unidades habitacionais foi ampliada na década de


2000, correspondendo à maior parte das novas unidades agregadas ao
estoque residencial no período;

e) O PMCMV, na forma como vem sendo implementado, tem impulsionado


novo movimento de direcionamento das populações mais pobres para as
áreas mais distantes do território municipal, desprovidas de infraestrutura
adequada, equipamentos e serviços urbanos.

2.1.1. Baixo crescimento da população e expansão acelerada da cidade

As taxas geométricas de crescimento anual da população da cidade do Rio de


Janeiro vêm se mantendo relativamente baixas e estáveis nas últimas décadas,
apesar da ligeira tendência de elevação, conforme indicam os números abaixo
(ver Tabela 01).

42
Tabela 01
Taxas Geométricas de Crescimento Anual da População
da Cidade do Rio de Janeiro entre 1980 e 2010
Taxa de Crescimento
Período
Anual
1980 / 1991 0,67%
1991 / 2000 0,74%
2000 / 2010 0,76%
Fonte: IBGE, Censos Demográficos.

O ritmo de crescimento populacional da cidade, nesses últimos 30 anos, é dos


menores entre as grandes capitais do país e permanece ainda menor que a
média nacional, que vem caindo muito a cada década. Em tese, trata-se de
quadro favorável ao planejamento. Porém, esses índices não são os mesmos na
escala metropolitana e, de forma alguma, uniformemente distribuídos na escala
intra-urbana.

A Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) teve, na década de 2000, taxa


de crescimento da população de 1,45% ao ano. Excluída a cidade do Rio de
Janeiro do cálculo, verifica-se que os demais municípios da RMRJ, em conjunto,
tiveram crescimento da ordem de 2,20% ao ano, bem acima do registrado para a
capital. Obviamente, ao menos parte desse crescimento tão superior está
associado à dinâmica metropolitana, que inviabiliza a localização de famílias mais
pobres nas áreas de melhor acessibilidade18 da metrópole e até mesmo em áreas
periféricas dentro dos limites geográficos do município do Rio de Janeiro. Embora
relevante para compreensão mais abrangente e completa dos processos em
curso no Rio de Janeiro, a análise dos dados referentes à Região Metropolitana
não é enfatizada nesta tese. Optou-se por limitar as considerações aqui expostas
ao estudo da dinâmica interna do município do Rio de Janeiro, o que já envolve
questões bastante complexas e suficientemente expressivas para alimentar a
reflexão sobre o nosso quadro de negligência urbanística.

Tomando por referência a subdivisão do município em Áreas de Planejamento


(APs)19 o fenômeno observado internamente no Rio de Janeiro é o de um
gigantesco processo de transferência da população das áreas de urbanização

18
Acessibilidade no sentido de acesso à infraestrutura, aos serviços, às melhores condições de
urbanidade.
19
Em linhas gerais, as APs 1, 2 e 3 compreendem às áreas de urbanização mais antiga. A AP1
corresponde, mais ou menos, à área central; a AP2 envolve a zona sul, área mais nobre da cidade
e parte da zona norte; e a AP3 abrange os bairros do subúrbio. As APs 4 e 5 são de urbanização
mais recente e as que tem recebido grandes contingentes populacionais nas últimas décadas. A
AP4 engloba as regiões da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá; e a AP5, de ocupação mais
popular, tem os bairros de Bangu, Campo Grande e Santa Cruz.

43
mais antiga e com melhor infraestrutura instalada (APs 1, 2 e 3) para vasta área a
oeste do município (APs 4 e 5) onde se estruturaram os principais vetores de
expansão urbana das últimas décadas.

AP3

AP5 AP1

AP4 AP2

Figura 01. Áreas de Planejamento da Cidade do Rio de


Janeiro. A AP1 (área cetral), AP2 (zona sul e parte da zona
norte) e AP3 (zona norte / subúrbios) compreendem às áreas de
urbanização mais antiga e melhor infraestruturada. A AP4
(regiões da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá) e AP5 (Bangu,
Campo Grande e Santa Cruz) são de urbanização mais recente e
as que tem recebido grandes contingentes populacionais nas
últimas décadas.

Nos anos 1980 e 1990, esse processo foi tão vigoroso que, conforme mostram os
números a seguir (ver Tabela 02), as APs 1 e 2 perderam população e a AP 3
praticamente manteve-se estável, enquanto AP 4 e AP 5 absorveram mais de
100% do incremento demográfico da cidade em cada período.

Tabela 02
População e Incremento Demográfico do Município do Rio de Janeiro, por Área de
Planejamento, no Período 1980 a 2000 e Participação das Áreas de Planejamento 4 e 5 no
Incremento Total
Incremento Incremento
1980 1991 1980-1991 2000 1991-2000
Absoluto Relativo Absoluto Relativo
Rio de Janeiro 5.090.790 5.480.778 389.988 7,66% 5.857.904 377.126 6,88%
Área de Planejamento 1 338.531 303.695 -34.836 -10,29% 268.280 -35.415 -11,66%
Área de Planejamento 2 1.130.135 1.034.612 -95.523 -8,45% 997.478 -37.134 -3,59%
Área de Planejamento 3 2.250.180 2.323.990 73.810 3,28% 2.353.590 29.600 1,27%
Área de Planejamento 4 356.349 526.302 169.953 47,69% 682.051 155.749 29,59%
Área de Planejamento 5 1.015.595 1.292.179 276.584 27,23% 1.556.505 264.326 20,46%

Participação das APs 4 e


114,24% 111,39%
5 no Incremento Total
Fonte: IBGE, Censos Demográficos. Tratamento de dados pelo autor.

O Censo IBGE 2010 revela algumas alterações nesse quadro que merecem
destaques e reflexões (ver Tabela 03). O primeiro aspecto a registrar é que
apesar de, em termos relativos, o crescimento populacional do Rio de Janeiro não

44
ser tão expressivo, em números absolutos significa mais de 450 mil pessoas a
mais na cidade na última década. Cabe assinalar, apenas como elemento de
comparação, que apenas 44 dos 5.565 municípios brasileiros tinham, em 2010,
população superior a 450 mil habitantes20. Por outro lado, observando os dados
intra-urbanos, verifica-se inversão importante de uma das tendências registradas
nas últimas décadas. Nos anos 2000 todas as Áreas de Planejamento tiveram
acréscimo de população.

Tabela 03
População e Incremento Demográfico do Município do Rio de Janeiro, por Área
de Planejamento, no Período 2000 a 2010 e Participação das Áreas de
Planejamento 4 e 5 no Incremento Total
Incremento
2000 2010 2000-2010
Absoluto Relativo
Rio de Janeiro 5.857.904 6.320.446 462.542 7,90%
Área de Planejamento 1 268.280 297.976 29.696 11,07%
Área de Planejamento 2 997.478 1.009.170 11.692 1,17%
Área de Planejamento 3 2.353.590 2.399.159 45.569 1,94%
Área de Planejamento 4 682.051 909.368 227.317 33,33%
Área de Planejamento 5 1.556.505 1.704.773 148.268 9,53%
Participação das APs 4 e 5 no
81,20%
Incremento Total
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. Tratamento de dados pelo autor.

As APs 4 e 5, que juntas vinham tendo incremento populacional absoluto superior


ao da própria cidade, na década de 2000 tiveram sua participação reduzida a
81,20%. Ainda assim, a AP4 teve elevação de seu crescimento relativo, não
sendo possível minimizar o significado do grande movimento da cidade em
direção à zona oeste, até mesmo pelos números absolutos envolvidos: entre 2000
e 2010 essa região recebeu mais de 375 mil pessoas.

O que aparece realmente como novidade, e até certo ponto surpresa, é o


crescimento da população residente na AP1, área central da cidade. Há décadas,
a diminuição da população residente na área central é tida como uma questão
que mobiliza debates sobre a cidade. Apesar de projetos e ações empreendidas
nos anos 1980 e 1990 na perspectiva de revitalização da área central, tinha
havido diminuição da população nessas décadas e por isso a reversão dos anos
2000 é um destaque importante (ver Mapas 01 e 02)

20
IBGE, Censo 2010.

45
A nova tendência em direção a área central se deve, provavelmente, a diferentes
razões, dentre as quais algumas merecem destaque. Ao longo da década de
2000, principalmente na segunda metade, houve a oferta de novos produtos
imobiliários que contribuíram para um movimento de famílias de classe média
para a área central. Em São Cristóvão, foram lançados novos edifícios
residenciais como efeito da aprovação, em 2004, do Projeto de Estruturação
Urbana (PEU) - a nova legislação urbanística que definiu novos parâmetros de
uso e ocupação do solo visando atrair novos empreendimentos imobiliários para
os bairros da região. No Centro, alguns empreendimentos conseguiram ser
viabilizados mesmo dentro das Áreas de Proteção do Ambiente Cultural
(APACs)21. Tanto pela identificação de possibilidades de adensamento
residencial, como no caso do conjunto residencial “Cores da Lapa”22, como por
retrofits de antigas construções.

É possível considerar ainda, que parte desse crescimento tenha se viabilizado a


partir de programas habitacionais dirigidos às classes médias e baixas, em
especial o PAR – Programa de Arrendamento Residencial da Caixa Econômica
Federal e o Programa Novas Alternativas da própria Prefeitura. Porém não deve
ser tanto, pois os resultados desses programas são, numericamente, bastante
limitados23.

Porém o fator determinante para explicar o significativo crescimento populacional


na AP1 é o crescimento de população residente em favela de 26.051 habitantes.
Ou seja, o correspondente a mais de 85% dos novos moradores da AP1.

A análise sobre o incremento de domicílios particulares permanentes, no mesmo


período de 2000 a 2010 (ver Tabela 04), permite reflexões adicionais sobre os
movimentos internos da cidade do Rio de Janeiro indicados acima.

21
Instituídas por lei ou decreto, as APAC visam a preservação de conjunto urbanos de valor
histórico e cultural, se sobrepondo à legislação de uso e ocupação do solo e, normalmente,
restringindo o potencial construtivo dos imóveis situados no seu perímetro. Em geral, várias
edificações do conjunto são gravadas segundo níveis de proteção de acordo com sua relevância
histórica e cultural.
22
O Cores da Lapa, construído em plena APAC Cruz Vermelha, é um conjunto de mais de 600
unidades residenciais que, segundo notícias veiculadas na grande imprensa, foram todas
vendidas no próprio dia do lançamento, em 2005. Seria, nessa perspectiva, um "caso de sucesso"
que indicava a área central como um mercado potencial para moradia de famílias de classe média.
23
Segundo dados divulgados no sítio da antiga Secretaria Municipal de Habitat (atual Secretaria
Municipal de Habitação) na internet, das 8.303 unidades comercializadas e entregues até fevereiro
de 2009 no Rio de Janeiro, no âmbito do PAR, apenas 65 eram localizadas na AP1, todas no
bairro Centro. Porém, para o ano de 2009, era prevista a comercialização de mais 496 unidades
na AP1, nesse caso, todas no bairro Mangueira. Em relação ao Programa Novas Alternativas, de
acordo com informações fornecidas pela coordenação do mesmo para esta pesquisa, até 2010
foram concluídas 125 unidades.

48
Tabela 04
Incremento de Domicílios Particulares Permanentes no Município do Rio de Janeiro, por
Área de Planejamento, no Período 1991 a 2010
Incremento Incremento
1991 2000 1991-2000 2010 2000-2010
Absoluto Relativo Absoluto Relativo
Rio de Janeiro 1.601.272 1.802.347 201.075 12,56% 2.144.445 342.098 18,98%
Área de Planejamento 1 100.878 85.162 -15.716 -15,58% 104.721 19.559 22,97%
Área de Planejamento 2 356.320 363.800 7.480 2,10% 404.255 40.455 11,12%
Área de Planejamento 3 655.206 710.107 54.901 8,38% 792.124 82.017 11,55%
Área de Planejamento 4 151.586 204.396 52.810 34,84% 309.067 104.671 51,21%
Área de Planejamento 5 337.282 438.882 101.600 30,12% 534.278 95.396 21,74%
Fonte: IBGE, Censos Demográficos. Tratamento de dados pelo autor.

Há muito tempo já se vem observando o fenômeno de diminuição das famílias


brasileiras. Evidentemente, os novos arranjos resultantes da diminuição do
número de filhos por mulher ou aumento de famílias de composição nucelar
pressionam a demanda por domicílios. Assim, a demanda por novos domicílios
não é determinada apenas pelo crescimento da população, mas também por
mudanças na estrutura das famílias. Poderia se dizer, ainda, que ações dirigidas
ao combate do déficit habitacional também resultariam na maior produção de
novos domicílios num determinado período, o que talvez possa ter alguma
relevância na década de 2000 no Rio de Janeiro.

Apesar de tais fatores, que ajudam a explicar o significativo crescimento do


parque residencial do Rio de Janeiro, os números do Censo 2010 ainda assim se
mostram bastante expressivos. O estoque de unidades residenciais cresceu
quase 20% em 10 anos. E, claramente, esse crescimento se dá com a expansão
da malha urbana, como os dados do incremento populacional já indicavam. Ou
seja, não se trata de intensificar o aproveitamento de infraestruturas já instaladas.
A AP4, por exemplo, teve ampliação de mais de 50% do total de domicílios
particulares permanentes nos anos 2000. Por outro lado, e até
surpreendentemente, o ritmo de crescimento da AP5 diminuiu, o que pode ser
compreendido como indicador positivo do período.

Os dados mais gerais de população e domicílios indicam dois movimentos em


curso na cidade do Rio de Janeiro: um de manutenção do vetor de expansão para
a zona oeste, na última década com maior peso na ocupação da AP4, e outro,
menos intenso, de retorno aos bairros mais centrais da AP2 e AP1. Se num
primeiro momento, o retorno aos bairros centrais parece ser algo positivo, não há
indícios claros de que tenha surgido qualquer reversão de lógica do processo de
urbanização mais geral. Os novos produtos imobiliários ofertados na zona sul e

49
área central pelo mercado dirigido, sobretudo, a famílias de média e alta renda, a
atuação muito restrita dos programas habitacionais na área central e a incrível
alta dos preços dos imóveis desde 2008 são indícios de radicalização do
processo de segregação da cidade, que tradicionalmente tem empurrado para as
favelas, para a zona oeste e para as periferias metropolitanas a população mais
pobre. Nesse sentido, como se verá a seguir, as favelas cresceram na cidade do
Rio de Janeiro ao longo da década de 2000, bem como outras formas de
irregularidade urbanística mais difíceis de serem caracterizadas.

2.1.2. Favelização contínua e crescimento da informalidade urbana

Se a população total do Rio de Janeiro vem tendo crescimento relativamente


baixo e estável nas últimas décadas, a população residente em favela na cidade
apresenta taxas de crescimento extremamente elevadas24. Em 30 anos, essa
população quase duplicou e em 2010 ultrapassou a marca de um quinto da
população total do Rio de Janeiro. São quase 1,4 milhões de pessoas vivendo em
favelas, segundo dados do Censo 201025 (ver Tabela 05).

Tabela 05
População Total e População Residente em Favela no Rio de Janeiro, no Período 1980 a
2010
Rio de Janeiro 1980 1991 2000 2010
População Total 5.090.790 5.480.778 5.857.904 6.320.446
População Residente
717.066 882.667 1.092.783 1.393.314
em Favela
Participação da
População Residente 14,09% 16,10% 18,65% 22,04%
em Favela no Total
Fonte: IBGE, Censos Demográficos; PCRJ, Armazém de Dados. Tratamento de dados pelo autor.

Além da participação cada vez maior da população residente em favela no total


da população, é importante observar que também a participação desse grupo no
incremento populacional total do município também vem aumentando: na última
década, segundo dados do IBGE, praticamente 65% do crescimento populacional
se deu em favelas (ver Tabela 06).

24
Apenas como registro, vale mencionar que o crescimento muito superior da população em
favela não se deve ao crescimento vegetativo eventualmente mais alto desse segmento.
25
Considera-se favela aqui o que o IBGE classifica como aglomerado subnormal, definido da
seguinte forma: “conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais (barracos, casas
etc.), ocupando – ou tendo ocupado – até período recente, terreno de propriedade alheia (pública
ou particular); dispostas, em geral, de forma desordenada e densa; e carentes, em sua maioria, de
serviços públicos e essenciais.”

50
Tabela 06
Incremento Total da População e da População Residente em Favela no Rio de Janeiro,
no Período 1980 a 2010
Incremento Incremento Incremento
1980-1991 1991-2000 2000-2010
Rio de Janeiro Absoluto Relativo Absoluto Relativo Absoluto Relativo
População Total 389.988 7,66% 377.126 6,88% 462.542 7,90%
População Residente
165.601 23,09% 210.116 23,80% 300.531 27,50%
em Favela
Participação da
População Residente
42,46% 55,72% 64,97%
em Favela no
Incremento
Fonte: IBGE, Censos Demográficos; PCRJ, Armazém de Dados. Tratamento de dados pelo
autor.

Figura 02. Favelas na cidade do Rio de Janeiro. Tidas por muito tempo, e mesmo ainda hoje,
como local transitório de moradia, as favelas permaneceram, se consolidaram e continuam a
crescer. Atualmente, aparentemente, mais verticalmente, o que constitui uma nova questão a ser
compreendida e tratada no âmbito de políticas para favelas. Fontes: Henrique Barandier, 2015;
Henrique Barandier, 2014; Jacira Saavedra, s/d.

No entanto, Cavalieri e Vial (2012) alertam: "deve-se tomar muito cuidado ao


comparar resultados dos dois Censos [de 2000 e 2010]". Os autores esclarecem
que entre 2000 e 2010 houve alterações significativas na delimitação dos
aglomerados subnormais na cidade do Rio de Janeiro, afim de compatibilizar
critérios adotados pelo IBGE e pela Prefeitura. Dessa forma, parte do expressivo
crescimento das favelas nos dados do IBGE se deve à incorporação de unidades
que no Censo 2000 não haviam sido computadas como tal. Ou seja, em 2000, a
contagem estaria subdimensionada, tendo passado por uma correção em 2010.

De acordo com os autores, entretanto, a PCRJ não questiona os números totais


indicados pelo IBGE. Pelo contrário, a estimativa é que o total de habitantes em
favelas em 2010 fosse até um pouco maior do que aquele registrado pelo órgão
de pesquisa nacional.

Apesar da grande melhoria observada quanto ao Censo anterior, algumas


diferenças persistiram em relação aos parâmetros adotados pelo IPP-RIO,
principalmente, porque o IBGE impõe um número mínimo de 51 domicílios para
considerar um conjunto como aglomerado subnormal. Além disso, algumas outras

51
poucas áreas, apontadas como favelas pelo IPP-RIO, não foram assim
consideradas pelo IBGE. Dessa forma, o IPP-RIO, usando suas bases
cartográficas e aerofotogramétricas, fez algumas estimativas para complementar
os dados, o que, ao fim e ao cabo, resultou num acréscimo de 4% sobre a
população calculada pelo IBGE. (CAVALIERI; VIAL, 2012. p.1).

Ainda que tenham apontado ressalvas em relação aos dados produzidos pelo
IBGE e adotem uma postura cautelosa em relação à comparação entre 2000 e
2010, Cavalieri e Vial consideram que "ao que tudo indica, as favelas continuaram
a crescer na última década, numa velocidade superior à da cidade como um
todo". Segundo seus cálculos, na década de 2000, "enquanto as favelas se
expandiram a uma taxa de 19%, a população da “não-favela” cresceu apenas
5%". Tomando como referência apenas os dados do IBGE, os números desse
período seriam de 27,50% e 3,40%, respectivamente. Apesar das diferenças, até
certo ponto expressivas, tanto os cálculos de Cavalieri e Vial como os dados do
IBEG indicam que a favelização ainda crescente é um fenômeno real.

Certamente, a precisão dos números é importante, pois eles ajudam na


compreensão dos problemas, na definição de estratégias de ação do poder
público e no monitoramento de políticas, programas e projetos. Entretanto, nesse
caso específico, no que diz respeito a questões estruturais, as diferenças
apontadas nas taxas de favelização não alteram a questão de fundo. De um modo
ou de outro, elas reafirmam que a lógica de produção e reprodução da cidade
conduz parte da população, cada vez maior, a se localizar em favelas.

Desde os anos 1980, mas de forma mais expressiva a partir dos anos 1990, o Rio
de Janeiro tem tido investimentos significativos em urbanização de favelas, o que
incide sobre um imenso passivo urbanístico e social, promovendo necessárias
melhorias das condições urbanísticas nessas áreas. Porém não se configura
como alternativa em relação ao contínuo crescimento das favelas como
demonstram os dados. São ações de caráter curativo que não atuam diretamente
na causa, de modo que o problema aumenta mesmo com a continuidade de
programas de urbanização.

2.1.3. A informalidade urbana: um fenômeno para além das favelas

O fenômeno da informalidade urbana no Rio de Janeiro não se restringe às


favelas, embora essa seja a sua face mais visível e em relação à qual os dados
disponíveis permitem o dimensionamento mais confiável. Os loteamentos

52
clandestinos e irregulares constituem outro padrão de assentamento popular
informal também bastante expressivo. O mapa de favelas e loteamentos informais
de baixa renda (ver Mapa 03) da cidade mostra que enquanto nas áreas de
urbanização mais antiga da cidade (APs 1, 2 e 3) há predominância de
assentamentos populares do tipo favelas, nas áreas de expansão (APs 4 e 5) a
presença mais marcante é dos loteamentos clandestinos e irregulares.

A expressiva participação de loteamentos clandestinos e irregulares26 ilustra que


por trás da informalidade urbana existe um mercado informal e ilegal que rege o
acesso à terra em condições urbanísticas, ambientais e jurídicas inadequadas, o
que para os mais pobres é quase sempre a única alternativa de acesso à
moradia.

Mas o fenômeno da informalidade é ainda mais amplo e apesar de sua quase


indissociabilidade em relação à pobreza, não se trata de "privilégio" dos pobres27.
A associação direta entre pobreza e informalidade urbana, na forma de causa e
consequência, encobre outros elementos associados ao fenômeno e, de certo
modo, o naturaliza e alimenta preconceitos. Fernandes (2011) assinala que
"embora a maioria dos habitantes de assentamentos informais seja, de fato,
pobres, pobreza não é a única causa do loteamento informal de terras"
(FERNANDES, 2011. p. 14). Tomando como referência o exemplo do Rio de
Janeiro, o autor confirma seu argumento lembrando que na cidade "as taxas de
crescimento informal têm sido superiores às taxas de crescimento da população
urbana e da pobreza" (FERNANDES, 2011. p. 14).

26
Enquanto o IBGE registrou, em 2010, 763 aglomerados subnormais na cidade, o Sistema de
Assentamentos de Baixa Renda (SABREN) indica a existência de 599 favelas (que podem ser dos
tipos “isolada” ou “complexo” que reúne duas ou mais comunidades), 87 comunidades
urbanizadas e 983 loteamentos clandestinos e irregulares.
27
Veríssimo apud Fernandes e Affonsin, 2003 (Curso Regularização Urbanística e Fundiária de
Assentamentos Informais de Baixa Renda, IBAM, 2007).

53
Na verdade, pode se dizer que a própria dinâmica urbana produz informalidades.
Smolka (2008) relaciona uma série de fatores, além da pobreza, que contribuem
para a reprodução da informalidade no Brasil e na América Latina, entre os quais:
a urbanização acelerada de décadas anteriores; o alto preço das terras servidas
de infraestrutura; longo período sem políticas e programas habitacionais;
investimentos inadequados em infraestrutura; impossibilidades de se atender
plenamente às exigências da legislação vigente; e, sobretudo, a alta rentabilidade
dos promotores imobiliários informais28.

Se, no caso do Rio de Janeiro, e no Brasil de modo geral, houve avanços nas
últimas décadas em relação a ação pública em assentamentos informais de baixa
renda - apesar do ressurgimento no período recente de ações de remoção
mesmo em áreas de ocupação consolidada - parte significativa da cidade ainda
se constrói à margem da legislação urbanística e do sistema de controle urbano,
em grande medida ainda baseado no modelo tradicional de planejamento -
modernista, funcionalista, tecnocrático, elitista etc. Um tipo de urbanismo que
segundo Maricato "não tem comprometimento com a realidade concreta, mas com
uma ordem que diz respeito a uma parte da cidade, apenas" (MARICATO, 2002.
p. 122).

O tema não é propriamente novo, mas sua permanente atualidade não deixa de
ser surpreendente. Tendo como referência dados oficiais disponíveis, verifica-se
que a dinâmica urbana da cidade do Rio de Janeiro na década de 2000 continua
a produzir informalidade. O exercício de reflexão em torno de alguns números
apresentados a seguir permite se estimar a dimensão da produção irregular no
Rio de Janeiro, mostrando que, de fato, abrange um universo bem maior que
apenas o das favelas.

Ao ensaiarmos a comparação entre dados dos Censos do IBGE e dados do


licenciamento urbanístico do município, os resultados obtidos são expressivos.
Sabe-se que a validade de tal comparação é relativa, uma vez que se baseia em
dados construídos segundo conceitos e metodologias que não são
necessariamente coincidentes. Entretanto, indica ordens de grandeza do
fenômeno da informalidade que reforçam o argumento de que há enorme

28
Anotações de aula no curso "Recuperação de Mais-valias Fundiárias na América Latina /
Financiamento do Desenvolvimento Urbano no Brasil: desafios para a implementação do Estatuto
da Cidade”, realizado em na sede do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), em
2008.

55
distância entre o sistema formal preconizado pela legislação urbanística e a
produção da cidade real29.

A partir dos dados dos Censos do IBGE, se pode obter o incremento de unidades
residenciais ao estoque imobiliário do Rio de Janeiro nas duas últimas décadas.
Desse total, é possível distinguir o incremento em favelas, tomando como
referência os dados de aglomerados subnormais e o incremento no restante da
cidade (ver Tabela 07).

Tabela 07
Total de Unidades Residenciais Acrescidas ao Estoque do Rio de Janeiro, nos Períodos
1991-2000 e 2000-2010, segundo dados dos Censos Demográficos do IBGE
1991-2000 2000-2010
Unidades Residenciais
Incremento Participação Incremento Participação
Acrescidas ao Estoque
Absoluto no Incremento Absoluto no Incremento
Total de Domicílios
201.075 100,00% 342.098 100,00%
Particulares Permanentes

Domicílios Particulares
84.093 41,82% 119.870 35,04%
Permanentes em Favelas

Domicílios Particulares
Permanentes não 116.982 58,18% 222.228 64,96%
localizados em Favelas
Fonte: Censos Demográficos do IBGE – tratamento de dados pelo autor.

Destaca-se, inicialmente, que se a participação da população residente em favela


no incremento populacional da cidade aumentou nas últimas décadas (ver Tabela
06, no item anterior), a participação dos domicílios em favelas no incremento total
de domicílios da cidade, contrariamente, diminuiu. Houve um acréscimo em
termos absolutos, mas diminuição em termos relativos. Seria possível supor,
numa leitura preliminar, que houve aumento da participação da produção formal.
No entanto, os dados do licenciamento urbanístico, apresentados mais adiante,
sugerem o contrário. Resta, então, a hipótese de que houve aumento da
produção informal fora das favelas. Possivelmente até como resultado das ações
de urbanização e do controle urbanístico resultante da ação dos Postos de
Orientação Urbanística e Social (Pouso)30 em favelas já urbanizadas, como
indicam Vial e Cavalieri (2009).

29
A lógica de organização dos dados segue a adotada em estudo anterior, intitulado “Projeto
Caracterização da Irregularidade Urbanística Edilícia e Fundiária: Subsídios para a Regularização
na Cidade do Rio de Janeiro”, do qual este autor participou da elaboração (AGRAR, 2002).
30
Os Pousos, atualmente à Secretaria Municipal de Urbanismo, foram criados para garantir a
presença governamental nas favelas beneficiadas por programas de urbanização após o término
das obras.

56
A concessão de “habite-se” corresponde ao procedimento final do processo de
licenciamento urbanístico, sendo condição para caracterizar a regularidade
administrativa do imóvel. Por isso, é possível considerar, pelo menos em tese,
que o imóvel que não recebeu “habite-se” possui algum tipo de irregularidade.
Assim, adotando-se como critério para caracterização de unidade produzida
regularmente a concessão de "habite-se" pela Secretaria Municipal de Urbanismo
(SMU) da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ), observa-se que o total
de unidades residenciais regulares acrescidas ao estoque imobiliário da cidade na
década de 2000 parece ser bem menor do que o aumento total de unidades
residenciais no mesmo período.

É verdade que é muito difícil dimensionar e caracterizas as irregularidades, pois


essas podem ser de diferentes naturezas: urbanísticas, fundiárias, construtivas ou
mesmo documentais. A princípio, deve-se admitir que pelo menos parte dos
imóveis irregulares não cumpriu, tão somente, procedimentos burocráticos, tais
como pagamento de taxas, o que não implicaria, necessariamente, em
divergência entre o imóvel construído e a legislação urbanística vigente. No caso
do Rio de Janeiro, especificamente, sabe-se que se tornou prática comum, nos
anos 1990 e 2000, a realização de obras sem licença para posterior legalização
com os benefícios de um decreto que admitia, para alguns tipos de
empreendimentos e em determinadas áreas da cidade, a legalização com
parâmetros urbanísticos mais vantajosos que o admitido pela legislação
ordinária31 (AGRAR, 2002; Cardoso, 2003). Apesar das possíveis explicações, o
fato é que a grande defasagem entre a produção real cidade e a parcela que
cumpriu efetivamente o processo formal de licenciamento sugere a incapacidade
do próprio sistema existente de realizar o pretendido controle urbanístico.

Os dados disponíveis sobre concessão de "habite-se" para unidades residenciais


pela SMU não abrangem integralmente o período 2000 a 2010, sendo a
divulgação de tais dados32 dividida em dois períodos. Em relação ao primeiro, de
2000 a 2004, as informações são parciais e constam de um relatório que analisa,
para esses anos, informações do licenciamento apenas da zona sul da cidade.
Para o período a partir de 2005, as informações são bem completas, abrangendo
a cidade toda, seguindo nova metodologia de organização dos dados que foi
31
Trata-se do Decreto 9218/90, que vigou entre 1990 e 2008. Criado para legalizar construções
irregulares, tinha em sua origem um caráter até social, pois buscava trazer parte da cidade para a
legalidade, para o sistema formal. Sendo continuamente reeditado, passou a funcionar como uma
"sobre-legislação", o que provavelmente tem algum reflexo na concessão de "habite-se". Pois no
caso de legalização, os processos se encerram com a "aceitação de obras".
32
Dados divulgados no sítio na internet da SMU: http://www.rio.rj.gov.br/web/smu/informacoes-
urbanisticas (acessado em 28/01/2015 às 13:40h).

57
então implantada. Ainda assim, é possível estimar que entre 2000 e 2010 o total
de "habite-se" concedidos pela SMU para unidades residenciais tenha sido da
ordem de 113.000 unidades.

Os dados mostram que entre 2005 e 2010 foram concedidos "habite-se" para
62.616 unidades residenciais. E considerando os dados disponíveis para a zona
sul, dados de licenças para novas construções de anos anteriores, de
lançamentos imobiliários e análises sobre o mercado no período é possível
estimar que entre 2000 e 2004 tenham sido concedidos "habite-se" para cerca de
50.000 unidades residenciais. Assim, entre 2000 e 2010, teriam sido algo em
torno de 113.000 unidades residenciais novas que completaram o processo
formal de licenciamento urbanístico. Trata-se de uma estimativa, mas muito
provavelmente corresponde em ordem de grandeza ao que foi realizado.

A própria dificuldade em se ter informações precisas já representa um problema


de gestão urbana. Pois os órgãos de licenciamento são (ou deveriam ser) fontes
de informações valiosas para subsidiar o planejamento que deve (ou deveria)
acompanhar o processo cotidiano de construção da cidade.

Considerando que no período de 2000 a 2010 foram acrescidos 342.098


domicílios particulares permanentes33 ao estoque imobiliário da cidade (ver
Tabela 07, acima) e que apenas cerca de 113.000 receberam "habite-se", pode
se estimar que na década de 2000 mais de 200.000 unidades residenciais tenham
sido produzidas à margem do processo formal ou sem cumpri-lo integralmente.
Parte desse total, logicamente, corresponde às unidades situadas em favela, que
salvo eventuais exceções (talvez aquelas unidades construídas no âmbito de
projetos de urbanização, por exemplo) não terão passado pelo processo de
licenciamento.

A Tabela 08, abaixo, sintetiza os seguintes números para últimos períodos inter-
censitários: incremento de domicílios particulares permanentes (IBGE);
incremento de domicílios particulares permanentes em favelas (IBGE); e o total de
unidades residenciais que receberam a certidão de “habite-se” (SMU).

33
De acordo com o IBGE, domicílio particular permanente “é o domicílio construído para servir
exclusivamente à habitação e que, na data de referência, tinha a finalidade de servir de moradia a
uma ou mais pessoas”.

58
Tabela 08
Estimativa do Total de Unidades Residenciais Irregulares Acrescidas ao Estoque do Rio
de Janeiro, nos Períodos 1991-2000 e 2000-2010, Segundo Comparação Entre Dados dos
Censos Demográficos do IBGE e do Licenciamento Urbanístico do Município
1991-2000 2000-2010
Unidades Residenciais
Incremento Participação Incremento Participação
Acrescidas ao Estoque
Absoluto no Incremento Absoluto no Incremento
Domicílios
Total

Particulares 201.075 100,00% 342.098 100,00%


Permanentes
Estimativa do total de
Regular

Unidades
Residenciais que 95.748* 47,62% 113.000** 33,03%
receberam "Habite-
se"
Domicílios
Particulares
84.093 41,82% 119.870 35,04%
Permanentes em
Favelas
Irregular

Estimativa do total de
Unidades
Residenciais não
Localizados em 21.234 10,56% 109.228** 31,93%
Favelas que não
receberam "Habite-
se"
Estimativa do Total de
Unidades Residenciais
105.327 52,38% 229.482*** 67,08%
Irregulares Acrescidas
ao Estoque
* Os dados de “habite-se” para o período 1991-2000 foram extraídos do Relatório Final do Projeto
Caracterização da Irregularidade Urbanística Edilícia e Fundiária: Subsídios para a Regularização na
Cidade do Rio de Janeiro (AGRAR, 2002).
** Dados estimados a partir das informações disponíveis sobre licenciamento urbanística, que não
compreende os dados totais para a cidade para o período 2000 a 2004.
*** Resultado também estimado por ser baseado em estimativas quanto ao total de "habite-se" concedidos.
Fonte: Censos Demográficos do IBGE; SMU/PCRJ; AGRAR, 2002 – tratamento de dados pelo autor.

Apesar dos limites das informações disponíveis e da própria metodologia adotada,


é possível estimar que apenas cerca de um terço da produção de unidades
residenciais da cidade do Rio de Janeiro, no período entre 2000 e 2010, atendeu
a todos os requisitos do processo formal de licenciamento urbanístico.
Aproximadamente, então, dois terços do total teriam algum tipo de irregularidade,
o que sugere, no mínimo, a existência de um fosso entre sistema vigente e a
realidade da cidade.

2.1.4. O impacto do Programa Minha Casa Minha Vida

O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), do governo federal, que começou
a operar em 2009, vem também influenciando a dinâmica urbana recente do Rio
de Janeiro. Os dados de licenciamento de projetos lançados no âmbito do

59
programa indicam algumas tendências que deverão se confirmar à medida que os
projetos sejam efetivamente executados. Obviamente, projetos licenciados podem
ser executados em horizontes temporais bastante variáveis e até mesmo nem
chegarem a ser construídos. Ainda assim, o quadro montado a partir do
licenciamento permite considerações sobre os movimentos do mercado imobiliário
formal e suas implicações sobre a distribuição espacial da produção residencial.

Nos primeiros anos do PMCMV, houve grande quantidade de empreendimentos e


unidades residenciais licenciados, o que elevou significativamente o total
licenciado na cidade nesse período. As Tabelas 09 e 10 mostram,
respectivamente, o total de unidades residenciais licenciadas entre 2007 e 2013
na cidade do Rio de Janeiro e o total de empreendimentos e de unidades
residenciais licenciadas no âmbito do PMCMV entre 2009 e 201334.

Tabela 09
Total de Unidades Residenciais Licenciadas no Rio de Janeiro, por Área de Planejamento,
no Período 2007-2013
Unidades Residenciais Licenciadas
Ano AP1 AP2 AP3 AP4 AP5 Rio
Abs. % Total Abs. % Total Abs. % Total Abs. % Total Abs. % Total Abs.
2013 1.676 5,28 1.024 3,22 6.213 19,56 14.894 46,89 7.955 25,05 31.762
2012 627 2,39 537 2,05 4.833 18,46 18.102 69,14 2.082 7,95 26.181
2011 1.201 4,52 2.593 9,75 5.652 21,25 11.203 42,13 5.944 22,35 26.593
2010 111 0,27 1.347 3,31 8.820 21,68 8.738 21,48 21.665 53,26 40.681
2009 1.601 4,21 886 2,33 6.256 16,44 11.470 30,14 17.840 46,88 38.053
2008 813 3,12 895 3,43 7.257 27,83 11.518 44,18 5.590 21,44 26.073
2007 296 1,43 1.380 6,66 2.726 13,15 10.757 51,91 5.565 26,85 20.724
Total 6.325 3,01 8.662 4,12 41.757 19,88 86.682 41,26 66.641 31,72 210.067
Fonte: SMU/PCRJ – tratamento de dados pelo autor.

Tabela 10
Total de Empreendimentos e Unidades Licenciadas no Âmbito do Programa Minha Casa
Minha Vida no Município do Rio de Janeiro, por Área de Planejamento e por ano no Período
2009 a 2013
2009 2010 2011 2012 2013
Emp. Unid. Emp. Unid. Emp. Unid. Emp. Unid. Emp. Unid.
AP1 2 572 0 0 21 1.565 17 209 4 259
AP2 0 0 0 0 1 48 0 0 0 0
AP3 7 2.104 28 6.805 12 2.636 10 2.252 5 734
AP4 8 3.240 6 1.665 25 3.274 5 1.540 10 1.780
AP5 41 14.080 121 20.141 26 4.948 6 831 20 4.638
Total 58 19.996 155 28.611 85 12.471 38 4.832 39 7.411
Fonte: SMU/PCRJ – tratamento de dados pelo autor

A análise dos quadros acima permite constatar, inicialmente, o grande aumento


de unidades residenciais licenciadas em 2009 e 2010. Já havia uma tendência de
crescimento desde 2006, mas em 2009 o salto foi bastante grande e houve ainda

34
Apenas no segundo semestre de 2009 é que começaram a ser emitidas as licenças de projetos
do PMCMV.

60
elevação desse total em 2010. Trata-se do primeiro impacto do PMCMV revelado
por esses números. Em 2009 o programa foi responsável por cerca de 50% das
unidades residenciais licenciadas no município e em 2010 por cerca de 70%. O
total de unidades licenciadas pelo programa em 2010 é maior do que o total que
vinha sendo licenciado para toda a cidade nos últimos anos. Nos anos seguintes,
se observa significativa redução do número de unidades licenciadas pelo
PMCMV, bem como de sua participação no total licenciado pelo município.

O segundo aspecto importante diz respeito à distribuição espacial das unidades


produzidas pelo programa. A AP2 que engloba a zona sul da cidade permanece,
ao longo dos anos, absolutamente resguardada da produção realizada pelo
PMCMV. Apenas um único empreendimento registrado entre 2009 e 2013, ainda
assim localizado em Vila Isabel, na zona norte, a uma razoável distância dos
bairros nobres situados junto à orla marítima.

Registra-se que embora a AP2 seja uma área de urbanização consolidada e,


portanto, onde se constrói menos, não se trata de uma área estagnada. Há,
dentro dela, processos de renovação e lançamentos imobiliários. No período
indicado, foram mais de 6.000 unidades residenciais licenciadas nessa área de
planejamento, sendo apenas 48 pelo PMCMV, no empreendimento de Vila Isabel.
Da mesma forma, na AP4, onde se verifique número significativo de
empreendimentos do PMCMV, chama atenção o fato de nenhum deles está
localizado na Barra da Tijuca e apenas um no Recreio dos Bandeirantes, bairros
também situados junto à orla marítima e onde predominam famílias de maior
poder aquisitivo (ver Mapa 04). Por outro lado, cerca de 60% dos
empreendimentos e das unidades licenciadas pelo PMCMV se localizam na AP5,
como mostra o quadro abaixo (ver Tabela 11).

Tabela 11
Total de Empreendimentos e Unidades Licenciadas no Âmbito do Programa Minha Casa
Minha Vida no Município do Rio de Janeiro, por Área de Planejamento e Percentual em
Relação à Cidade, no Período 2009 a 2013
Empreendimentos Unidades
% em relação ao % em relação ao
Total Total
total da cidade total da cidade
AP1 44 11,73 2.605 3,55
AP2 1 0,27 48 0,07
AP3 62 16,53 14.531 19,82
AP4 54 14,40 11.499 15,68
AP5 214 57,07 44.638 60,88
Total 375 100,0 73.321 100,0
Fonte: SMU/PCRJ – tratamento de dados pelo autor

61
Os dados do licenciamento mostram que no Rio de Janeiro, no período analisado,
a produção habitacional subsidiada, e com alguma capacidade de atender
famílias de renda inferior a 3 salários mínimos35, foi direcionada para as áreas
mais distantes do centro, com menos infraestrutura e serviços disponíveis, no
limite da urbanização (ver Mapa 05). Ou seja, onde a terra era mais barata. Mais
uma vez, um programa de provisão habitacional começa a ser implementado sem
a adoção de qualquer mecanismo que permita baixar o preço da terra e viabilizar
a produção de habitação em áreas urbanas consolidadas.

Esse quadro não é específico do Rio de Janeiro, mas no caso carioca chama
atenção que, de algum modo, a última década registrara diminuição relativa da
expansão urbana para a zona oeste, o que era positivo. De acordo com dados
dos Censos do IBGE, como visto anteriormente, o crescimento populacional na
AP5 na década de 2000 foi bem menor que nas décadas anteriores.
Paralelamente, verificou-se, inclusive, o retorno de população a bairros de
urbanização mais antiga que vinham perdendo moradores. Na contramão desses
movimentos - que eram ainda incipientes - os dados do licenciamento sugerem
que o PMCMV se configura como novo indutor da ocupação da zona oeste. Mais
do que isso, um programa que viabiliza a construção de casas, mas reforçando a
lógica de segregação social do espaço urbano. As tabelas apresentadas a seguir
mostram a proporção dos empreendimentos e unidades licenciados por faixas de
renda e a localização dos empreendimentos na cidade. Conforme enquadramento
adotado pelo PMCMV, empreendimentos e unidades são classificados em três
faixas de renda: até 3 salários mínimos; de 3 a 6 salários mínimos; e de 6 a 10
salários mínimos.

35
Cerca de 90% do déficit habitacional no Brasil refere-se a famílias de até 3 salários mínimos,
que nunca tiveram condições para acessar os programas de produção de habitação.

63
Considerando a cidade como um todo (ver Tabela 12), destaca-se que mais de
40% das unidades licenciadas foram para a faixa de 0 a 3 salários mínimos, o que
não deixa de ser interessante do ponto de vista do atendimento a uma faixa da
população que historicamente tem tido dificuldades de acesso a habitação formal
até mesmo por meio de programas governamentais. Porém a análise dos dados
detalhados mostra que a maior parte das unidades para a faixa de até 3 salários
mínimos, cerca de 70%, foi licenciada nos dois primeiros anos do programa (2009
e 2010). A partir daí, em todos os anos (2011, 2012 e 2013) a faixa mais alta, de 6
a 10 salários mínimos, foi sempre a que teve mais unidades licenciadas. Ou seja,
após um momento inicial de muitos projetos aprovados para a faixa de renda mais
baixa, houve uma diminuição desse fluxo e o programa, no Rio de Janeiro, passa,
aparentemente, a ser dirigido principalmente para o atendimento da faixa de
renda mais alta admitida no programa, que não pode efetivamente ser
classificada como baixa renda.

Tabela 12
Total de Empreendimentos e Unidades Licenciados no Âmbito do Programa Minha Casa
Minha Vida no Município do Rio de Janeiro, por Faixa de Renda, no Período 2009 a 2013
Empreendimentos Empreendimentos Empreendimentos
para a faixa de 0 a 3 para a faixa de 3 a 6 para a faixa de 6 a 10
SM SM SM
Total de Total de Total de
Total de Total de Total de
Empreendi Empreendi Empreendi
Unidades Unidades Unidades
-mentos -mentos -mentos
Rio de Janeiro 105 29.405 174 19.648 96 24.268
Participação no total da
28% 40,10% 46,40% 26,80% 25,60% 33,10%
cidade
Fonte: SMU/PCRJ – tratamento de dados pelo autor.

A distribuição espacial do PMCMV mostra que o programa, de fato, tende a


impulsionar a ocupação da zona oeste (AP4 e AP5), onde estão localizadas mais
de 75% do total das unidades habitacionais licenciadas. O programa tende, então,
a reforçar a lógica principal que orienta a dinâmica urbana da cidade, que é de
expansão da urbanização e dispersão. A distribuição das unidades licenciadas
por faixa de renda acaba (Tabela 13), também, por reforçar desigualdades. Dois
terços daquelas destinadas à faixa de até 3 salários mínimos estão localizadas na
AP5, onde prioritariamente o programa incide. O mais surpreendente, entretanto,
é que quase 75% das unidades licenciadas para a faixa intermediária de 3 a 6
salários mínimos também estão na AP5. Ou seja, mesmo para essa faixa de
renda um pouco maior, a viabilização de habitação formal em bairros mais
centrais e com melhores condições de infraestrutura também se mostra difícil.

65
Tabela 13
Total de Unidades Licenciadas no Âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida no
Município do Rio de Janeiro, por Área de Planejamento e por Faixa de Renda, no Período
2009 a 2013
Empreendimentos Empreendimentos Empreendimentos
Total de
para a faixa para a faixa para a faixa
Empreendimentos
de 0 a 3 SM de 3 a 6 SM de 6 a 10 SM
% do % do % do % do
Absoluto Absoluto Absoluto Absoluto
Total Total Total Total
Rio de Janeiro 29.405 100,00 19.648 100,00 24.268 100,00 73.321 100,00
Área de Planejamento 1 1.180 4,01 523 2,66 902 3,72 2.605 3,55
Área de Planejamento 2 0 0 0 0 48 0,20 48 0,07
Área de Planejamento 3 4.040 13,74 4.534 23,08 5.957 24,55 14.531 19,82
Área de Planejamento 4 4.691 15,95 0 0 6.808 28,05 11.409 15,58
Área de Planejamento 5 19.494 66,29 14.591 74,26 10.553 43,49 44.638 60,88
Fonte: SMU/PCRJ – tratamento de dados pelo autor.

Merece registro o fato de haver unidades licenciadas para área central da cidade
(AP1) e também para a área do subúrbio (AP3). Mas é muito pouco, menos de
25% do total de unidades licenciadas. Globalmente, a tendência é de, novamente,
se implementar um programa de construção de casas desvinculado de uma
política consistente de democratização do acesso à cidade.

Barandier Junior (2012) analisa os projetos licenciados dos três primeiros anos do
PMCMV (2009 a 2011) no Rio de Janeiro pela lente da mobilidade urbana e avalia
que o programa

"(...) repete a prática do modelo de urbanização sem compromisso com a


sustentabilidade, que produziu as condições de crescimento periférico e
fragmentação urbana, criando impactos geradores de deseconomias urbanas e
aumentando os custos sociais através do modelo vigente de circulação."
(BARANDIER JUNIOR, 2012. p. 56).

Considerando a localização das unidades licenciadas em relação à rede atual de


transporte público e também em relação à rede futura, prevista pelos vários
projetos em andamento na cidade, inclusive os relacionados aos Jogos Olímpicos
de 2016, o autor conclui, entre outros aspectos, que:

"- (...) apenas 13,5% das unidades se localizam a menos de 10 minutos a pé da


rede estrutural e que a maior parte das unidades, ou 60,4% dessas, estarão
localizadas a uma distância superior a 30 minutos a pé.

- Ainda que as AP 3 e 4 estejam recebendo investimentos significativos em


sistemas de BRT, a AP 5, que responde pela maior parte das unidades PMCMV
não obterá vantagens na mesma proporção. Desse modo, o crescimento

66
verificado nessa região tende a superar a capacidade de transporte."
(BARANDIER JUNIOR, 2012. p. 165).36

Além da desarticulação entre empreendimentos habitacionais e sistema de


transportes, outros aspectos sugerem que os custos sociais e urbanísticos da
implementação do programa serão significativos, mesmo que promovendo
alguma redução do déficit habitacional (ANDRADE, 2012). A análise dos
empreendimentos indica a formação de grandes conjuntos habitacionais,
sobretudo para a faixa de interesse social (até 3 salários mínimos), apesar do
programa restringir o número de unidades por empreendimento. Tendo como
referência projetos licenciados no Rio de Janeiro entre 2009 e 2011, quando,
como destacado anteriormente foram aprovados a maior parte de unidades para a
faixa de até 3 salários mínimos, Andrade explica que para driblar a restrição,
projetos vinham sendo desmembrados em várias operações de crédito, mas
localizadas em terrenos contíguos, o que também vem sendo verificado nas
outras regiões do país (CARDOSO; ARAGÃO, 2013).

Por outro lado, a produção em larga escala se dá com a reprodução de projetos


arquitetônicos padronizados, baseados nos modelos mais convencionas de
blocos de apartamentos, com planta em "H" e distribuídos sequencialmente em
terrenos para formação de condomínios. Como já visto em outros momentos, não
se integram à cidade existente. Mesmo alguns projetos propostos pelo poder
público e na área central, o modelo se repete. É o caso dos conjuntos
implantados no terreno da antiga penitenciária da rua Frei Caneca, numa
localização privilegiada na área central da cidade. Caracteriza-se como um
conjunto "burocraticamente projetado e padronizado" e de "tipologia urbana e
arquitetônica superada" (MAYA; COLCHETE, 2014).

36
O autor explica que a literatura sobre o tema não consensual em relação a áreas de influência
de pólos geradores de tráfego. Contudo, há uma concordância de que o tempo de deslocamento
de 30 minutos é limite máximo para defini-la. Assim, Barandier Junior utilizou no seu estudo esse
critério para avaliar o atendimento ou não dos empreendimentos do PMCMV por estações de
transporte público. O resultado, foi aquele indicado: mais de 60% das unidades estão além desse
limite.

67
Figura 03. Conjuntos Zé Keti e Ismael Silva (PMCMV).
Construídos na área central, na rua Frei Caneca, os conjuntos
seguem o mesmo padrão reproduzido em larga escala no âmbito
do PMCMV. Fonte: Henrique Barandier, 2015.

Com o PMCMV, o vetor de expansão da cidade na parte norte da zona oeste


parece estar sendo revigorado, o que, em termos gerais, não é algo positivo.
Significa a ampliação da ocupação da região com menos condições de
infraestrutura e serviços. E com o agravante de ser desnecessário numa cidade
com áreas subaproveitadas ou mesmo vazias na parte de urbanização mais
consolidada e cujo crescimento populacional é relativamente baixo e estável,
como se procurou demonstrar neste item.

2.2. Dispersão urbana e informalidade "planejadas"

2.2.1. A Barra da Tijuca

Em 1969, menos de uma década depois da transferência da capital federal para


Brasília, é lançado no Rio de Janeiro o plano de ocupação da região da Barra da
Tijuca elaborado pelo urbanista Lucio Costa. A ocupação dessa vasta área que
engloba toda a Baixada de Jacarepaguá é, sem dúvida, um dos marcos da
urbanização recente do Rio de Janeiro. A abertura de acessos para a região, até
então relativamente resguardada pela geografia de morros, lagoas e dunas,
alterou significativamente a dinâmica urbana carioca dos anos 1970 para cá.

68
Figura 04. Anúncio de aprovação do projeto Centro da Barra.
O Governo do Estado da Guanabara, durante o mandato de
Negrão de Lima, anuncia a aprovação do projeto do Centro da
Barra em 08/12/1969. Fonte: Acervo O GLOBO.

Lucio Costa justificou o Plano Piloto da Baixada de Jacarepaguá dizendo que com
os novos acessos, a região se tornara exposta "a uma ocupação imobiliária
indiscriminada e predatória". Era necessário, então, definir o destino daquela
imensa área, estabelecer os "critérios de urbanização" e garantir "o
desenvolvimento ordenado da região" (COSTA, 1995. p. 346). O próprio Lucio
Costa, considerando o desafio de orientar a ocupação de uma porção do território
de praias e dunas que pareciam não ter fim (COSTA, 1995. p. 348), mostrava no
memorial descritivo do plano-piloto as contradições da decisão de se promover a
expansão da cidade naquela direção. Dizia o urbanista:

Assim, o primeiro impulso, instintivo, há de ser sempre o de impedir que se faça lá


o que quer que for. Mas, por outro lado, parece evidente que um espaço de tais
proporções e tão acessível não poderia continuar indefinidamente imune, teria
mesmo de ser, mais cedo ou mais tarde, urbanizado. A sua intensa ocupação é, já
agora irreversível. (COSTA, 1995. p. 348).

Anos depois, mas ainda nos primórdios da ocupação da região da Barra, em


1974, Lucio Costa parece que já antevia o destino que teria a "nova cidade" em
construção:

É pois natural que encare os aterros, os andaimes, as estruturas, o casario que se


vai adensando, e toda essa prevista poluição paisagística gradativa e crescente,
com certa dose de constrangimento e pesar - para não dizer com sentimento de
culpa -, na esperança de que a futura definição dos núcleos devidamente
espaçados, as áreas livres e o denso envolvimento arbóreo confiram ao conjunto
coerência urbano-ambiental capaz de compensar, numa certa medida, pelo
perdido. (COSTA, 1995. p. 356).

69
Quatro décadas mais tarde, tendo em vista os padrões urbanísticos e
arquitetônicos da região que hoje conhecemos, é difícil considerar que a esperada
compensação tenha se dado. Mas independentemente das questões urbano-
ambientais locais, interessa aqui observar que o Plano Piloto da Baixada de
Jacarepaguá parte de uma série de pressupostos questionáveis do ponto de vista
do significado da ocupação dessa área para a cidade. Ainda mais quando
analisados a partir dos referenciais teóricos contemporâneos, e, acima de tudo, a
partir do reconhecimento da dinâmica urbana atual da cidade.

Se é possível entender o plano de Lucio Costa no momento em que foi elaborado


- ainda que naquela época os paradigmas modernistas já estivessem sendo
amplamente criticados fora do Brasil -, sua implementação sem revisões críticas
ao longo de quarenta anos é uma das expressões mais claras da negligência
urbanística que permeia a gestão urbana do Rio de Janeiro.

Em todo esse período, as diretrizes de ocupação da região da Barra não foram


efetivamente revisadas, nem por planos, nem pela prática de projetos urbanos.
Não se criou mecanismos que tivessem por objetivo reter a expansão urbana na
direção oeste do território municipal, discutível enquanto prioridade a partir do
momento que se compreende que o crescimento populacional tende a se
estabilizar em ritmo lento. Contrariamente, as ações públicas, por meio de obras,
alterações da legislação urbanística e implantação de grandes projetos, têm sido,
em geral, no sentido de promover a intensificação da ocupação da região,
mantendo-se, desse modo, o espírito do plano.

As figuras a seguir mostram a área urbanizada do Rio de Janeiro nos anos 1970 e
nos anos 2010. Apenas pela ilustração é possível imaginar o esforço
empreendido para se viabilizar a ocupação da extensa área da Baixada de
Jacarepaguá na proporção que ela se deu nesse período.

Figura 05. Área urbanizada do Rio de Janeiro nas décadas de 1970 e 2010. Em menos de 40
anos a cidade cresceu expressivamente para a direção oeste, mesmo com taxas de crescimento
populacional mantidas baixas no período. Fontes: Mapa Turístico da Guanabara (1974); Prefeitura
do Rio, Mapa Uso do Solo - Áreas Urbanizadas (2012). Tratamento: Henrique Barandier, 2015.

70
A constatação desse intenso processo de urbanização na direção oeste do
município permite nos perguntarmos sobre o que seria a cidade do Rio de Janeiro
hoje se todos os recursos, públicos e privados, investidos para viabilizá-lo
tivessem sido alocados na área que já era, então, urbanizada. Ainda mais quando
se sabe que, no mesmo período, a maioria dos bairros de urbanização mais
antiga perdeu população e que bairros da zona norte e do subúrbio sofreram
grande deterioração.

Para contornar o dilema de planejar a ocupação de uma área que a princípio, na


sua própria visão, não deveria ser ocupada, Lucio Costa naturaliza o processo de
expansão urbana, classificando-o como inevitável. Em seguida, constrói uma
leitura do território que compreende a ocupação da Baixada de Jacarepaguá
como a possibilidade de se reestabelecer a unidade perdida entre as zonas sul e
norte e zonas leste e oeste do Rio de Janeiro. Estando localizado no centro
geográfico do município, o novo Centro Metropolitano previsto pelo plano
cumpriria esse papel.

Verifica-se assim que essa planície central, providencialmente preservada, além


de possibilitar novamente a união das metades norte e sul da cidade, separadas
quando a unidade urbana original se rompeu, está igualmente em posição de
articular-se, por esses dois eixos paralelos, àquela área destinada à indústria
pesada, no extremo oeste do Estado, com foco natural em Santa Cruz, o que lhe
confere então condições para ser já não apenas o futuro Centro Metropolitano
norte-sul, assinalado anteriormente, mas também leste-oeste, ou seja, com o
correr do tempo, o verdadeiro coração da Guanabara. (COSTA, 1995. p. 348).

Como se sabe, o Centro Metropolitano não foi implementado tal como o proposto
por Lucio Costa, embora o urbanista afirmasse que isso só se daria no longo
prazo, "quando a infra-estrutura, organizada nas bases civilizadas e generosas
que se impõem existir, e a força da expansão o impuser - aí então sim, terá
chegado o momento de implantar o novo centro (...)" (COSTA, 1995. p. 352). De
certo modo, porém, a ideia de uma forte centralidade na região da Barra da Tijuca
vem claramente se configurando pelo menos nas duas últimas décadas. Após um
período de aparente esgotamento da capacidade de suporte dessa região em
razão da infraestrutura precária, os investimentos recentes promovidos pelo poder
público, grande parte deles relacionados aos grandes eventos esportivos,
parecem renovar as possibilidades de consolidação da nova centralidade de
alcance metropolitano imaginada por Lucio Costa.

71
A justificativa para a previsão do Centro Metropolitano na Baixada de
Jacarepaguá é pura retórica, sustentada por uma série de desenhos que buscam
mostrar que esse "não será apenas um novo centro relativamente autônomo à
maneira de Copacabana e Tijuca, mas, como se verá adiante, novo polo estadual
de convergência e irradiação" (COSTA, 1995. p. 347). Lucio Costa desconsidera,
ou omite, que segundo o critério geográfico por ele valorizado, o centro antigo do
Rio de Janeiro é que seria – e é – o centro da região metropolitana.

Figura 06. Centro da Barra e Centro do Rio. O esquema de Lucio Costa que aponta o que seia o
centro geográfico do Rio de Janeiro como lugar para se implantar o novo Centro Metropolitano
para ligar norte-sul, leste-oeste, se baseia nos limites administrativos da Guanabara e não a
verdadeira dimensão metropolitana. Fontes. Costa (1995); Google Earth; Tratamento: Henrique
Barandier, 2015.

Porém, reconhece e enfatiza que com a perspectiva de implantação do novo


Centro Metropolitano, o problema de ocupação da Baixada de Jacarepaguá

ultrapassa os limites iniciais em que foi posto, pois o que importa aqui não é tão
somente a solução urbanística adequada a um programa de caráter recereativo,
residencial e turístico, como talvez se imagine. O que está concomitante e
verdadeiramente em jogo é a própria estruturação urbana definitiva da
cidade-estado. E constata-se, então paradoxalmente, que a contribuição básica
deste plano-piloto é precisamente esta, que aflora antes mesmo de ser abordado
o conteúdo específico e limitado do problema proposto. (COSTA, 1995. p. 348.
Grifo nosso).

Ou seja, Lucio Costa propõe uma dimensão à urbanização da região da Barra da


Tijuca que ela inicialmente não tinha (ou não teria necessariamente). E com isso,
estabelece uma tensão até hoje não superada entre um centro tradicional que
apesar de tudo se mantém na sua robustez (IBAM, 2008) e a centralidade
dispersa que vem constantemente sendo revigorada pela própria ação pública.

Apesar da brilhante e poética exposição de argumentos de Lucio Costa em favor


da ocupação da área "onde um dia afinal surgirá, definitiva, a Metrópole" (COSTA,
1995. p.354), o que a realidade tem mostrado é que o processo de ocupação da

72
região da Barra da Tijuca, longe de reestabelecer a unidade eventualmente
perdida da cidade, tem produzido novas formas de segregação. No sentido
adotado por Villaça, segregação "é um processo segundo o qual diferentes
classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes
regiões gerais ou conjuntos de bairros da metrópole" (VILLAÇA, 1998. p. 142). O
autor faz a ressalva de que "concentração não é exclusividade"37 e afirma que "a
segregação é a mais importante manifestação social-urbana da desigualdade que
impera na nossa sociedade" (VILLAÇA, 2012. p. 43-44).

A densidade relativamente alta que tinha o Rio de Janeiro até os anos 1950/1960
favorecia, certamente, maior homogeneização da distribuição dos serviços
urbanos. A dispersão urbana, fortemente impulsionada pela construção de
conjuntos habitacionais populares em áreas distantes da zona oeste nos anos
1960 e pela urbanização da região da Barra da Tijuca a partir dos anos 1970,
promoveu a diminuição da densidade da área urbanizada carioca, deixando ainda
mais bem demarcadas as distinções entre zonas ricas e pobres.

Como visto anteriormente, o movimento da cidade em direção a Zona Oeste é


acompanhado da perda de população pelos bairros de urbanização mais antiga e
mais bem infraestruturados. Essa transferência da população se dá em duas
direções distintas. Uma ao longo da orla marítima, viabilizada fundamentalmente
pela criação da Barra da Tijuca no final dos anos 1960, e outra por trás dos
grandes maciços que emolduram a paisagem carioca.

A primeira direção concentra famílias de classes média e alta, vindas de bairros


tradicionais das Zonas Sul e Norte (Copacabana, Ipanema, Leblon, Tijuca entre
outros) onde se instalaram as elites na primeira metade do século XX, ou dos
subúrbios, de onde partiram famílias de classes emergentes em direção aos
novos bairros em construção perto da orla. A outra direção de expansão da
urbanização na Zona Oeste, por trás dos morros, é de ocupação essencialmente
popular, baseada, em grande parte, na reprodução de loteamentos clandestinos e
irregulares (ver Mapa 06).

37
Trata-se de ressalva interessante no caso do Rio de Janeiro, pois o fato de haver, por exemplo,
favelas na valorizada Zona Sul, não torna a cidade "mais democrática" como vez por outra se diz.
A maior parte de favelas e demais formas de assentamentos populares precários se localiza nos
subúrbios e na faixa norte da Zona Oeste. E a concentração das famílias mais ricas nos bairros da
Zona Sul junto à orla marítima é um dado inquestionável.

73
A saída de população de bairros mais antigos teve, entretanto, efeitos diversos
nas diferentes regiões da cidade. Bairros da zona sul, próximos às praias,
continuaram sempre se valorizando. Por outro lado, bairros da zona norte e
subúrbios, na grande maioria, sofreram processos de deterioração38. Nessas
áreas, a diminuição de população residente de faixa de renda mais alta foi
acompanhada da perda de atividades econômicas, como por exemplo antigas
fábricas que fecharam, e do aumento da favelização.

Esse processo tem por consequência a consolidação de uma imensa faixa do


território, que atravessa os subúrbios em direção à zona oeste marcada pela
presença significativa de assentamentos precários - favelas, conjuntos
habitacionais em mal estado de conservação, loteamentos clandestinos e
irregulares (ver Mapa 03). Paralelamente, se reforça a tendência de concentração
das famílias mais ricas em alguns bairros da Zona Sul que se tornaram "hiper
valorizados" como se indicam os Mapas 07 e 08 a seguir.

38
O termo "deterioração" é empregado para designar o processo de perda de qualidade urbana
vivido por esses bairros ao longo do tempo, reconhecendo, porém, o alerta feito por Villaça quanto
à sua utilização. Ao analisar o caso de São Paulo, o autor questiona a ideia dominante de que "o
centro da cidade está se deteriorando". Villaça explica que "a deterioração, ou apodrecimento, é
um processo natural que só ocorre com seres vivos. Essa ideia pretende esconder o processo
real, rotulado de 'decadência', que é de responsabilidade da classe dominante, mas que não o
quer assumir. A verdade é que a chamada 'decadência' decorreu do fato de essa classe ter
abandonado o centro de São Paulo (...)". No caso do subúrbio do Rio de Janeiro, não é
exatamente a classe dominante que o abandona, mas o processo é similar. Esses bairros são
abandonados por uma classe média que viu na nova frente de urbanização da Barra da Tijuca
uma possibilidade de se reposicionar espacialmente e, até, socialmente. E nesse sentido é que se
trata de um movimento bastante diferente do observado na Zona Sul, de onde saíram sobretudo
aqueles que tinham dificuldades econômicas para se manter nessa área mais nobre da cidade e
migraram para a região da Barra da Tijuca.

75
Além do alto custo da urbanização da vasta região da Barra da Tijuca, outra
dimensão importante que contribui para o entendimento do quadro de segregação
urbana crescente na cidade diz respeito ao financiamento da manutenção de
serviços e padrões de urbanização. Apesar do alto valor nominal do IPTU
arrecadado na AP4, em grande parte determinado pelo peso do bairro da Barra
da Tijuca, o montante auferido por hectare é bastante baixo. Significa dizer que o
custo de manutenção da baixa densidade daquela região, embora seja em grande
parte ocupada por famílias de maior poder aquisitivo, é muito provavelmente
suportado também pelo restante da cidade. Estudo desenvolvido em 2008 pelo
IBAM, com base em dados oficiais do período entre 2000 e 2005 explicam essa
questão, mostrando a relação entre IPTU arrecadado e hectare líquido nas
diferentes áreas de planejamento da cidade. Nessa simulação, os valores
verificados na AP2 são altíssimos, comparados com os das demais APs, seguida
da AP1. Já AP3 e AP4 mantiveram valores de arrecadação por hectare
semelhantes, bem abaixo do que se observou na AP1 e acima dos resultados
para a AP5, que é, de fato, inexpressivo.

Mesmo levando em conta que o IPTU não é o imposto que melhor explica a
dinâmica econômica da cidade, resulta bastante significativo que a arrecadação
da AP4 seja tão baixa quando medida por unidade de área. A relevância desse
indicador pode ser deduzida do fato de ser esta uma região que, como já vimos,
concentra a quase totalidade da expansão imobiliária da cidade e, com ela, veicula
fortíssimas pressões pela construção de novos equipamentos e infra-estruturas,
estas com custos diretamente (e rendimento inversamente) proporcionais às
distâncias percorridas.

(...) [os dados analisados parecem] sugerir que, na hipótese de que a AP2 “pague”
um IPTU à altura de seus padrões de urbanização e serviços construídos no
passado e mantidos no presente, então a APs 3 “paga”, quem sabe, um IPTU à
altura dos padrões de urbanização de que desfrutou em algum momento do
passado e que absolutamente não se mantêm no presente e a AP4 paga um IPTU
muito abaixo dos padrões de urbanização de que já desfruta no presente e, a
julgar pelos novos investimentos regularmente executados e outros anunciados,
muitíssimo inferior aos padrões de urbanização de que desfrutará no futuro.
(IBAM, 2008. p.64 - Produto 2).

Os dados sugerem que a AP1 (área central) e a AP3 (subúrbios) além de


sofrerem os impactos mais severos decorrentes do deslocamento de famílias de
maior poder aquisitivo e atividades econômicas para a nova frente de
urbanização, também contribuem no financiamento desse processo e,
consequentemente, alimentando a diferenciação entre regiões da cidade e a
desigualdade intra-urbana.

78
Apesar da baixa densidade, a população atual da AP4 de cerca de 1 milhão de
habitantes não é desprezível. Esse é, provavelmente, o grande impasse que vive
a cidade do Rio de Janeiro, porque na precarizada AP3 vivem em torno 2,4
milhões de pessoas e na muito precária AP5, mais de 1,7 milhão. Em termos de
contingente populacional são muito mais relevantes. Mas os investimentos
concentram-se na AP4 e mais especificamente na Região Administrativa da Barra
da Tijuca, que abrange os bairros mais ricos (Barra da Tijuca, Joá, Itanhagá e
Recreio dos Bandeirantes) com apenas 300.000 habitantes (menos de 5% da
população do Rio de Janeiro).

2.2.2. Excesso de normas e estado de anomia

A legislação urbanística da cidade do Rio de Janeiro é formada por inúmeras


normas (Leis Complamentares, Leis Ordinárias, Decretos etc.) que conformam
um emaranhado de difícil leitura e compreensão. De acordo com o conteúdo
disponível na página da SMU na internet, atualmente estão em vigor 71 Leis
Complementares editadas entre 1991 e 2015, 302 Leis editadas entre 1967 e
2014 e 606 Decretos editados entre 1944 e 2015. Ou seja, quase mil atos que
regem a atividade de construir na cidade do Rio de Janeiro. E apesar de tantas
normas, o crescimento constante da informalidade urbana configura um quadro
de anomia da cidade.

É verdade que o bom trabalho da SMU, relativamente recente, de disponibilização


das normas vigentes na internet, ao menos tem facilitado a identificação de quais
vigoram efetivamente e como incidem em cada parte da cidade. Contudo, a
compreensão da legislação permanece sendo um desafio. Não se trata apenas da
grande quantidade de normas, mas também o fato de que a prática de alterações
pontuais da legislação e a edição de normas específicas para determinadas
partes da cidade, acaba por estabelecer referências conceituais distintas relativas
ao próprio zoneamento e à aplicação de parâmetros construtivos, o que pode,
inclusive, comprometer o presumido caráter isonômico da legislação urbanística.

Considerando apenas as normas gerais, ainda segundo a página da SMU na


internet, são 32 no total. Dentre elas figura o Decreto 322 de 3 março de 1976
(Dec. 322/76) que instituiu o Regulamento de Zoneamento do Município do Rio de
Janeiro. Esse decreto e suas alterações constituem a base das regras de uso e
ocupação do solo do município, embora vários bairros tenham tido, ao longo do

79
tempo, normas específicas editadas, por meio dos Projetos de Estruturação
Urbana (PEUs). Nesses casos, prevalece o que é estabelecido pelo PEU, o que
não abrange necessariamente todo o conteúdo regulado pelo Dec.322/76.39

Independentemente das alterações que sofreu ou de alguns bairros terem suas


normas específicas, o fato é que, quase quatro décadas depois de ser editado o
Dec. 322/76 continua em vigor. O fato é surpreendente, porque além do
anacronismo evidente, em termos urbanísticos, de uma norma funcionalista e
burocrática, o Dec. 322/76 tem ainda o "DNA" de um ato normativo editado em
pleno regime ditatorial, quando a possibilidade de discussão com a sociedade era
nenhuma.

O Dec. 322/76 se estrutura a partir de uma visão totalitária da cidade, que é


considerada de forma absolutamente estática e desconectada da realidade. A
subdivisão do território em zonas funcionais desconsidera o existente para
estabelecer a cidade idealizada naquele momento, naquele documento. Ao
mesmo tempo, desconsidera o dinamismo da cidade no tempo, criando critérios
de enquadramento de usos e atividades que chegam a ser incompreensíveis nos
dias atuais. Mas ainda assim, o decreto continua em vigor numa época em que,
no mínimo, é amplamente reconhecido entre os urbanistas a mistura de usos
como uma qualidade desejada para os espaços urbanos.

Rezende (1996) explica que o Dec.322/76, assim como seu antecessor, o Dec.
"E" 3800/70 que continua em vigor no que diz respeito ao regulamento de
parcelamento da terra, padece do mesmo mal de detalhamento excessivo: "com o
objetivo de tudo regular, acabavam por omitir alguma situação, o que passava a
ser considerado um caso omisso sujeito à interpretação da administração, por
vezes tendenciosa" (REZENDE, 1996. p. 890).

As regras arbitrárias de zoneamento e o excesso de normas construtivas acabam


por tornar o decreto absolutamente rígido. Paradoxalmente, vulnerável, pois toda
sorte de alteração é possível por meio da edição de novas normas pontuais, que
incidem numa ou noutra área da cidade e até mesmo em terrenos específicos. A
edição constante de normas urbanísticas, que alteram e/ou convivem com o
Dec.322/76 sem contudo revogá-lo, produz ainda dificuldades conceituais para

39
Segundo dados pela SMU, em apresentação das propostas de revisão da legislação urbanística
realizada no Conselho de Arquitetura e Urbanismo - CAU/RJ em 02 de julho de 2013, "109 bairros
estão envolvidos em PEUs e demais legislações específicas" e "representam 67% dos bairros e
cobrem 42% da área total do município".

80
compreensão da legislação vigente, pois se estabelece a convivência de
diferentes registros:

a ausência de uma lei geral renovada explicitando conceitos e categorias de uso e


ocupação do solo faz com que parâmetros simples, tais como gabarito, altura das
edificações, área total edificada entre outros que afetam, diretamente, o potencial
construtivo dos imóveis urbanos, sejam significativamente variados, tanto em
conteúdo, como em termos de incidência. Em outras palavras: o que vale para
uma determinada parcela do território urbano não, necessariamente, vale para
outra. (IBAM, 2008. p.6).

Dessa maneira, o Dec.322/76 sobrevive, sendo sobreposto por uma sucessão de


normas, o que praticamente impede a compreensão global da legislação
urbanística da cidade do Rio de Janeiro. Ou, por outro lado, admite múltiplas
interpretações nos casos concretos. A complexidade da legislação urbanística
carioca é descrita por Nacif Xavier40 da seguinte forma:

Essa verdadeira parafernália legal e documental constituía um gargalo que


comprometia o desempenho das atividades-fim da Secretaria, formando feudos de
saberes específicos, particularmente no que concerne ao licenciamento, na qual
alternativas autônomas surgiam como forma de enfrentar os problemas de
interpretação das leis, descambando, muitas vezes, em procedimentos acordados
entre os licenciadores e corroborando práticas discricionárias. Essa legislação,
excessiva e intrincada, representava um obstáculo à transmissão dos seus
conteúdos aos cidadãos, o que impedia que o processo pudesse ser desenvolvido
com transparência.

No meio de tantas leis, o controle do parcelamento da terra – que é a origem do


uso e da ocupação do solo em todo e qualquer cenário urbano – era relegado a
um segundo plano, no contexto do licenciamento. No que se refere à vinculação
do Plano Diretor com a legislação pontual, alvo de constantes alterações, ela
restringia-se ao atendimento das macro-diretrizes, mantendo um fosso entre a
visão macro e a visão micro do planejamento. O projeto urbano, além de não estar
previsto no Plano Diretor, não encontrava correspondência na legislação de uso e
ocupação do solo. (NACIF XAVIER, 2011. p.107-108).

O detalhamento excessivo da norma resulta em enormes dificuldades de


interpretação dos parâmetros aplicáveis nos casos concretos, mas também acaba
por se configurar como restrições exacerbadas ao projeto e, em última instância,
à criatividade. Mais do que a construção da boa cidade, a atuação do setor de
40
Hélia Nacif Xavier foi Secretária Municipal de Urbanismo entre 1997 e 2000, na gestão do
Prefeito Luiz Paulo Conde. Mesmo identificando e compreendendo o problema e apesar de ter
promovido ações no sentido de valorizar e descentralizar as atividades de licenciamento, não
conseguiu alterar a lógica enraizada da legislação urbanística carioca.

81
licenciamento, que seria fundamental para garantir os interesses coletivos na
produção do espaço, passa a ser muito mais no sentido do enquadramento dos
projetos às normas como objetivo em si. Embora não seja essa a única razão, é
possível considerar que esse aspecto contribua para que as construções na
própria cidade formal nas últimas quatro décadas sejam fortemente marcadas
pela baixa qualidade arquitetônica.

A permanência do Dec. 322/76 num período tão longo e com tantas mudanças -
no país, na própria cidade, no pensamento urbanístico - é instigante e, ao mesmo
tempo, reveladora. Uma nova legislação de uso e ocupação do solo significaria
intervir nas relações e espaços de poder acomodadas pelo tempo, tanto no
Executivo, como no Legislativo, na própria máquina administrativa e nas relações
entre poder público e setor privado, em especial o mercado imobiliário. Porque a
legislação urbanística não é produto independente das práticas sociais. É o
resultado - ela própria e sua aplicação - de correlações de forças que estruturam
a reprodução da cidade. Mesmo após a Constituição de 1988, do plano de diretor
de 1992 e sobretudo do Estatuto da Cidade de 2001, a cidade do Rio de Janeiro
não instituiu normas de uso e ocupação do solo que pudessem, ao menos,
sinalizar para a construção de uma cidade mais inclusiva. Pelo contrário, a
legislação urbanística fundamentada em concepções pré-Estatuto da Cidade vem
sendo desfeita e refeita cotidianamente, seguindo princípios como "flexibilização"
e "desregulamentação" dominantes a partir dos anos 1990 (NACIF, 2007)
apresentando-se como inovadores, mas que não alteram a lógica da estruturação
urbana.

Enquanto isso a cidade continua se desenvolvendo, majoritariamente como visto


no item 2.1.3, à margem da norma. Pois como bem explica Rolnik (1999) "mais
além do que definir formas de apropriação do espaço permitidas ou proibidas,
mais do que efetivamente regular a produção da cidade, a legislação urbana age
como marco delimitador de fronteiras de poder". E nesse sentido, "ao definir
formas proibidas permitidas, acaba por definir territórios dentro e fora da lei, ou
seja, configura regiões de plena cidadania e regiões de cidadania limitada". E a
autora ainda completa sua reflexão enfatizando que

mesmo quando a lei não opera no sentido de determinar a forma da cidade, como
é o caso de nossas cidades, de maiorias clandestinas, é aí onde ela é mais
poderosa no sentido de relacionar diferenças culturais com sistemas hierárquicos.
(ROLNIK, 1999. p. 13-14).

82
Para enfrentar, ainda que parcialmente, o fenômeno da informalidade urbana,
dois tipos de ação principais foram adotados nas últimas décadas no Rio de
Janeiro. Todos dois incidindo sobre a legislação, mas sem alterá-la na sua
concepção. Ou seja, tratando o fenômeno como exceção, apesar de sua
dimensão.

O primeiro tipo de ação se refere às áreas de especial interesse, recurso utilizado


para garantir a institucionalidade necessária à intervenção pública em
assentamentos informais de baixa renda, tanto para realização de obras como
para regularização fundiária e administrativa dos imóveis. Certamente, esse tipo
de ação representa um avanço significativo da legislação brasileira quando olhado
a partir da condição anterior em que a ameaça de remoção era sempre presente.
Contudo, se refere a intervenções, necessárias, sobre cada assentamento
individualmente e não à reformulação da ordem urbanística geral.

O crescimento constante da informalidade urbana demonstrado anteriormente


sugere que esse tipo de ação, como se verá com mais detalhes no Capítulo 3,
quando será analisada a prática de projetos urbanos no Rio de Janeiro, não incide
nas causas dos problemas, mas a posteriori, quando estão já materializados na
cidade. No caso do Rio de Janeiro, a figura da Área (ou Zona, como é mais
comumente adotado em outras cidades brasileiras) de Especial Interesse Social
(AEIS) vem sendo utilizada apenas para regularização de assentamentos
precários. Não se adotou esse instrumento, por exemplo, para gravar vazios
urbanos e reservar terras bem localizadas para a produção de moradia de
interesse social, o que teria outro significado.

Ao criticar o plano diretor de 1992, que consagrou as Áreas de Especial Interesse


Social na legislação carioca, Andrade (2009) chama atenção justamente para a
relação entre a regulação excessiva de um lado e a utilização de instrumentos de
regularização de outro. Segundo o autor,

"ao estabelecer normas rígidas para a área formal da cidade e nenhuma


capacidade de fiscalizar o mercado informal [o plano] cria uma intransponível
fronteira entre padrões urbanísticos que alcançam sua maior evidência ao criar as
AEIS." (ANDRADE, 2009. p.173).

Na verdade, o plano não estabeleceu propriamente as normas rígidas, pois elas


eram já vigentes. O plano, na verdade, previa instrumentos, dentre os quais as
AEIS, que sugeriam a reformulação, em novas bases conceituais, da legislação

83
urbanística. Mas isso não aconteceu e nem mesmo instrumentos que foram
integralmente regulamentados no próprio plano foram implementados, como por
exemplo o "solo criado"41. Esse instrumento, assim como o IPTU progressivo no
tempo, representava novas possibilidades de intervenção mais efetiva no
mercado imobiliário de modo a contribuir para políticas urbanas redistributivas.

Andrade complementa sua análise criticando a simples previsão das AEIS, pois
nelas, "pode-se o que não se pode em lugar nenhum. Reconhecem-se padrões
de habitabilidade vedados no resto da cidade e estabelece-se que duas cidades
coexistirão doravante. Uma regida pelos IAT e a outra pelos puxadinhos"
(ANDRADE, 2009. p.174).

Sobre o mesmo tema, Smolka (s/d) propõe uma reflexão interessante e também
provocadora, que parece bastante útil para compreensão dos limites das ações
de regularização frente à lógica da produção formal que permanece inabalável e
acaba por absorvê-las. O autor desenvolve a hipótese de que "as políticas de
regularização ora prevalecentes (...)podem estar contribuindo para o agravamento
do problema [da informalidade urbana]". E a partir dela expõe uma dilema e um
desafio:

O dilema é que não regularizar, simplesmente, não é uma opção política (senão
social e humanitária). O desafio apresenta-se em como regularizar, sem alimentar
o círculo vicioso da irregularidade, assegurando um conteúdo preventivo a tais
políticas e programas. (SMOLKA, s/d).

Explica ainda que o enfrentamento desse desafio passa pela "alteração


das regras do jogo imobiliário urbano", o que envolveria como o próprio autor
destaca "uma política fiscal mais contundente sobre o valor da terra urbanizada"
e, em termos mais gerais, mudanças mais radicais no sistema de regulação
urbana. Isso seria possível com vontade política, sobretudo após a aprovação do
Estatuto da Cidade. Contudo Smolka reconhece que:

Não é uma tarefa simples, uma vez que a postura dominante em relação, por um
lado, à tolerância às ‘soluções’ informais e, por outro, à inserção destes programas
de regularização na agenda pública parece bastante conveniente para o status
quo. As áreas nobres continuam protegidas pela sobre-regulação (ou regulação de
exclusão), e as áreas de expansão (periféricas) se tornam cada vez mais
desreguladas. (SMOLKA, s/d).

41
Mais adiante, neste Capítulo, a questão do solo criado é retomada com mais detalhes.

84
Para Smolka, "em síntese, a regularização de assentamentos informais
materializa a resposta neoliberal para a informalidade, sem (ou melhor, para não)
alterar as regras do jogo imobiliário urbano." (SMOLKA, s/d).

O segundo tipo de ação se refere à edição de normas de legalização de


construções erguidas sem a necessária aprovação prévia do projeto e em
desconformidade com os parâmetros urbanísticos vigentes. Vez por outra, na
cidade do Rio de Janeiro, a Prefeitura edita normas que permitem, por tempo
determinado, que interessados que tenham construído irregularmente, tanto as
próprias unidades residenciais como ampliações, obtenham a regularização
administrativa mediante pagamento de contrapartida financeira. Essas normas
não incidem especificamente sobre um assentamento determinado, como no caso
das AEIS, mas em bairros, áreas de planejamento ou até o município inteiro.

Como, em geral, as taxas cobradas são altas, as "mais valias", como se


convencionou chamar no Rio de Janeiro esse tipo de medida, tendem a ser
utilizadas para regularização de "puxadinhos" de classes médias e altas, afinal a
irregularidade não é privilégio dos pobres. Do ponto de vista urbanístico, trata-se
de uma forma de atuação que já se mostrou irrelevante para o enfrentamento da
informalidade, servindo muito mais como elemento de deslegitimação da
legislação ordinária, possivelmente, com alguma vantagem arrecadatória para os
cofres municipais.

Na mesma lógica, uma norma editada em 1990, que vigorou por quase vinte anos
após sucessivas reedições, se destaca por seu caráter peculiar e os efeitos que
produziu. O Decreto 9218/1990 permitia "a legalização de obras existentes de
construção, modificação e acréscimos em edificações residenciais" em algumas
condições previamente estabelecidas. A norma partia do reconhecimento da
existência de grande número de construções executadas sem licença e
estabelecia regras menos restritivas que as da legislação vigente para viabilizar a
regularização. Pode-se dizer que tinha, originalmente, ao menos na intenção, uma
justificativa social, pois pretendia criar condições para que uma parte do parque
edificado ilegalmente pudesse entrar na formalidade, inclusive para viabilizar
transações formais, por exemplo, de compra e venda. As características dos
imóveis que poderiam ser enquadrados nas condições previstas pelo decreto
correspondiam às de padrões de construção comuns a famílias de padrão de
renda mais baixo e as taxas cobradas para legalização permitiam a busca pela
regularização.

85
O decreto destinava-se, especificamente, à legalização de construções, pois era
condição necessária que a edificação estivesse em loteamento aprovado e que o
respectivo lote tivesse existência jurídica comprovada. Para a regularização das
edificações por esse decreto, não eram exigidos os seguintes parâmetros: "área
livre no lote, afastamento frontal, prismas de iluminação ou ventilação, local para
estacionamento ou guarda de veículos e número de edificações no lote" (Decreto
9218/1990, art. 5o). No entanto, o número máximo de edificações no lote deveria
ser de dez, o número máximo de pavimentos igual a três e não se aplicava a usos
não residenciais, entre outras condições para enquadramento dos casos.

Editado em 9 de março de 1990, o decreto seria aplicado aos requerimentos


feitos até 31 de dezembro do mesmo ano. Era, portanto, de caráter transitório.
Porém ele foi reeditado inúmeras vezes, tendo vigorado até dezembro de 2008.
Nesse período, o que se viu foi esse decreto se configurar como uma "extra-
legislação", pois conhecido seu funcionamento, passou a ser largamente utilizado,
sobretudo na AP3 e AP4, por indivíduos e também promotores imobiliários que
construíam fora da lei, mas dentro dos parâmetros legalizáveis pelo decreto. Após
a construção, ou mesmo durante as obras, entrava-se com pedido de legalização.
Além das vantagens de uma legislação menos exigente, o tempo de aprovação
era mais rápido. O longo e tormentoso processo de aprovação de um projeto no
sistema de licenciamento urbanístico era substituído por expedito processo de
aprovação com base nos benefícios do Decreto 9218/90.

Além da inversão do racional projetar, licenciar e construir para o construir e


legalizar "as built", a força do Decreto 9218/90 expõe a fragilidade do sistema
municipal de controle urbanístico, bem descrito por Cardoso (2003)42:

A perda de legitimidade da lei se constitui como um processo de retroalimentação.


Ou seja, a lei é desconhecida e desrespeitada em massa; a Prefeitura não
privilegia a sua atualização e simplificação e não dispõe de mecanismos de
enforcement; os técnicos se sentem deslegitimados pela falta de suporte
institucional e reafirmam a deslegitimação em suas práticas. O resultado, no caso
do Rio de Janeiro, segundo as palavras de um técnico, é que “é mais fácil
regularizar, depois de pronto, do que aprovar antes de fazer”. Ou seja, existem
vários procedimentos – formais e informais – de facilitação dos processos de
regularização, mesmo em caso de irregularidades substantivas, enquanto o

42
O artigo de Cardoso analisa a questão da irregularidade urbanística baseou-se em resultados
de pesquisa desenvolvida pela Agrar (2002) para a Prefeitura do Rio de Janeiro, da qual este
autor participou como membro da equipe técnica e Coordenador dos Levantamentos nos Órgãos
de Licenciamento e Fiscalização e ele como consultor.

86
processo de licenciamento tradicional permanece obscuro, lento, complexo e,
consequentemente, caro. (CARDOSO, 2003. p.13).

Tomando o Decreto 322/76 como símbolo do urbanismo sem projeto e


segregador que rege o cotidiano da construção da cidade do Rio de Janeiro, além
das considerações aqui expostas, parece inacreditável que o projeto de lei de uso
e ocupação do solo encaminhado pelo Poder Executivo à Câmara de Vereadores
em 2013 possa mantê-lo em vigor. Mas é o que aí está. O Projeto de Lei
Complementar no 33/2013, neste momento em tramitação, que "define as
condições disciplinadoras de uso e ocupação para ordenamento territorial da
cidade do Rio de Janeiro", estabelece, ainda que seja em suas disposições
transitórias, que:

Art. 302 Até que seja elaborada legislação de uso e ocupação do solo local,
permanecerão em vigor as condições estabelecidas pelo Regulamento de
Zoneamento aprovado pelo Decreto nº 322, de 3 de março de 1976 e pela
legislação de uso e ocupação do solo local em vigor, quanto aos seguintes
aspectos:

I - Índice de Aproveitamento do Terreno e Área Total Edificável;


II – Taxa de Ocupação Máxima;
III - Área mínima útil da unidade;
IV - Altura máxima e número de pavimentos das edificações;
V - Afastamentos mínimos: frontal, das divisas e entre edificações no lote;
VI – Embasamento;
VII - Limite Máximo de Profundidade;
VIII - Galeria de Pedestres;
IX - Estacionamento e Guarda de Veículos;
X – Limite de Zona;
XI – Tipos de Edificações;
XII – Categoria dos lotes por zonas;
XIII – Usos e Atividades permitidos nas zonas.

A simples mudança da legislação urbanística não é suficiente para alterar o


modelo de desenvolvimento urbano de uma cidade. É na gestão, no processo
contínuo de planejamento, na definição das prioridades de investimentos, na
democratização das decisões etc. que se pode construir, na prática, novas formas
de regulação urbana. Contudo, e no Rio de Janeiro muito particularmente, renovar
a anacrônica legislação vigente é condição essencial para intervir nos processos
estruturais de dispersão e informalidade urbana.

87
2.3. Um novo plano diretor para a cidade?

O Plano Diretor Decenal do Rio de Janeiro, instituído pela Lei Complementar no


16 de 4 de junho de 1992, tinha como perspectiva sua execução no prazo de dez
anos (art. 2o) com a previsão de revisão no prazo de cinco anos a partir de sua
publicação (art. 230). O fato de não ter sido executado plenamente não constitui
em si um problema, nem indica necessariamente que planos são inúteis ou
invariavelmente ineficazes. Mas no caso do Rio de Janeiro, esse plano diretor
teve seu conteúdo esvaziado a partir do ano seguinte à sua aprovação, com o
início da primeira gestão do prefeito César Maia. O novo prefeito pôs em marcha
uma política urbana que não se vinculava ao plano diretor recém aprovado, ainda
que esse continuasse em vigor enquanto lei municipal.

Em 2002, quando já era novamente prefeito, César Maia não envidou esforços
para promover revisão do plano diretor, mesmo tendo sido cumprido o período de
dez anos estimado para sua implementação e apesar da obrigatoriedade de fazê-
la em razão do disposto no Estatuto da Cidade, aprovado em 2001. Em 2006, um
pouco pressionado pelo prazo legal definido na lei federal para que os municípios
adequassem seus planos diretores ao novo marco legal da política urbana, o
Prefeito acabou encaminhando, burocraticamente, um novo projeto de lei para a
Câmara de Vereadores, onde ficou tramitando nos anos seguintes, sem suscitar
debates mais relevantes ou se configurar como prioridade da administração
municipal.

A revisão do plano diretor do Rio de Janeiro se daria efetivamente, de forma


confusa, na gestão do prefeito Eduardo Paes iniciada em 2009. Sua aprovação
ocorreu no final de 2010, tendo sido instituído pela Lei Complementar no 111 de 1o
de fevereiro de 2011. Se é possível entender a postura da administração César
Maia de promover o esvaziamento do plano diretor de 1992, pois se tratava de um
choque entre concepções de planejamento, parece mais complexo compreender
o significado desse novo plano diretor de 2011 para a administração Eduardo
Paes, uma vez que já nasce esvaziado.

Para os objetivos desta tese, interessava observar como esse novo plano diretor
orienta a articulação dos projetos em curso ou previsto com diretrizes urbanísticas
mais gerais de planejamento. Por outro lado, interessava também verificar as
bases conceituais para regulação do uso e ocupação do solo. Ou seja, verificar se
o plano apontava para alguma mudança substancial na lógica de produção
ordinária da cidade, entendida aqui como anacrônica e segregadora.

88
Trata-se, portanto, de uma análise parcial do plano diretor do Rio de Janeiro, mas
suficiente para identificar o total descolamento entre planos e projetos e o
retrocesso conceitual que este representa em relação ao plano de 1992.

2.3.1. O plano diretor de 2011 e as grandes obras em curso no Rio de Janeiro

Ainda em 2009, o novo prefeito enviou para Câmara Municipal, que aprovou
rapidamente, um "pacote legislativo" (ver Capítulo 4) para instituição da Operação
Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio. O interessante aqui é observar
que essa lei altera o plano diretor então vigente - aquele de 1992 que ficara tanto
tempo adormecido e cujo processo de revisão havia sido retomado por esse
mesmo prefeito, no início de seu primeiro mandato. Para viabilizar o projeto de
renovação da área portuária, definido pelo novo gestor como prioridade da
cidade, a revisão daquele que deveria ser o instrumento básico da política urbana
era atropelada. Aparentemente, a alteração tinha por objetivo garantir a
segurança jurídica da operação urbana consorciada proposta, pois esse
instrumento, consagrado no Estatuto da Cidade, não havia sido previsto no plano
diretor de 1992.

É curioso, porém, observar que o novo plano diretor, aprovado pouco mais de um
ano depois, não faz menção sequer à existência da OUC Porto Maravilha. Ou
seja, o instrumento, que em tese daria as diretrizes do desenvolvimento urbano
da cidade para os próximos anos, não considerou que, no momento de sua
aprovação, estava já em curso uma operação que pretendia promover a
construção de mais de 4 milhões m2 na área portuária, envolvendo obras
estimadas em cerca de R$8 bilhões.

No mesmo ano de 2009, o mundo ficou sabendo que o Rio de Janeiro seria a
sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Alcançava-se, assim, aquilo que, para os
governantes, tinha se transformado no grande objetivo da cidade nos últimos
anos. A preparação do evento possibilitaria investimentos em infraestrutura que,
segundo todas as promessas, mudariam a cidade. Vale lembrar que para a
disputa, a cidade apresentou um "Dossier de Candidatura"43 que já indicava os
locais de competições, as principais obras que seriam realizadas e afirmava:

43
Disponível em: <http://www.cidadeolimpica.com.br/empresaolimpica/legislacao-e-
documentos/page/6/>. Acesso em: 30/05/15, às 22:01h.

89
Um Comitê de Legado Urbano, dirigido pelas autoridades municipais, também foi
formado para estudar as instalações escolhidas para os Jogos e garantir o
alinhamento completo do Plano Mestre dos Jogos aos objetivos de longo
prazo da cidade, trazendo assim vantagens para todos. (Rio 2016, 1999. p. 20.
Grifo nosso).

Seria de se esperar que o plano diretor - instrumento municipal de planejamento


urbano por definição de longo prazo - indicasse de modo mais preciso como se
daria tal alinhamento. Até porque, foi aprovado mais de um ano depois de se
saber que o Rio de Janeiro seria a sede do evento. Porém o plano diretor de 2011
não faz mais do que uma singela referência aos Jogos Olímpicos para dizer que:

A implementação da Política de Transportes do Município contemplará todos os


projetos da área de transportes que serviram de base para a candidatura da
Cidade a sede das Olimpíadas, em 2016, e a uma das sedes da Copa do Mundo,
em 2014. (Plano Diretor do Rio de Janeiro 2011, art. 217, parágrafo único).

Fora isso, apenas estabelece que as "áreas-objeto e sob influência da


implantação de equipamentos para a Copa do Mundo 2014 e os Jogos Olímpicos
Rio 2016" são consideradas, como outras tantas, "áreas sujeitas à intervenção do
poder público" (sic) que são aquelas passíveis de aplicação da outorga onerosa
do direito de construir. Não há nenhuma correlação estabelecida de modo claro
entre as obras olímpicas e as estratégias de desenvolvimento urbano. Nem
mesmo o sistema de BRTs44 tido pela prefeitura como uma "revolução dos
transportes" na cidade ou a expansão do metrô em direção à Barra da Tijuca são
explicitamente tratados no plano diretor.

No mesmo ano de 2009, o governo federal lançava o Programa Minha Casa


Minha Vida (PMCMV). Como visto no item 2.1.4, o programa provocou
imediatamente a elevação significativa do total de unidades residenciais
licenciadas na cidade, inclusive para famílias de baixa renda, com rendimento de
até 3 salários mínimos. Da mesma forma, o plano diretor faz apenas uma
referência genérica ao programa, dizendo que é um dos objetivos da política
habitacional atender às disposições contidas na "Lei nº 11.977, de 7 de julho de
2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa Minha Vida e a regularização
dos assentamentos localizados em área urbana" (Art. 200, inciso V). Não é
traçada no plano nenhuma estratégia concreta para orientar a utilização dos
recursos aportados pelo programa para a viabilização, por exemplo, da produção

44
Bus Rapid Transit, na sigla em inglês.

90
de unidades habitacionais bem localizadas e de boa qualidade arquitetônica para
famílias de baixa renda.

E no ano seguinte, 2010, a própria Prefeitura do Rio lançava o programa "Morar


Carioca" com objetivo de urbanizar todas as favelas da cidade até 2020 e
acenando com orçamento também na faixa dos R$8 bilhões. Assim como nos
casos citados acima, esse programa não é tratado no plano diretor.

O plano diretor de 2011 também praticamente não altera as regras de uso e


ocupação do solo (e o Decreto 322/76 continua em vigor). A opção, que aliás foi
também adotada por muitos municípios em seus processos de revisão de plano
diretor, foi de prever outras leis que o farão (ou não) futuramente. No entanto, não
deixou de realizar uma mudança substancial: acabou com o coeficiente de
aproveitamento básico único e igual a um (previsto, mas jamais aplicado) para
adotar coeficientes diferenciados por bairros e normalmente bem mais elevados
do que os antigos. Medida que muda completamente - e podemos dizer, distorce -
a lógica de aplicação da outorga onerosa do direito de construir.

Dessa forma, o que se pode apreender é que continuam existindo na gestão


urbana do Rio de Janeiro dimensões paralelas, que não se cruzam jamais:
diretrizes de planejamento; grandes obras; programas habitacionais; regulação de
uso e ocupação do solo.

2.3.2. Índices de Aproveitamento de Terreno (IAT), Macrozoneamento e Outorga


Onerosa do Direito de Construir (OODC)

O tratamento dado aos IATs, ao macrozoneamento e à OODC no plano diretor de


2011 do Rio de Janeiro constituem exemplos que, somados à desvinculação entre
plano, projetos e obras, confirmam a tendência de manutenção de uma
ultrapassada lógica de regulação do uso e ocupação do solo e alimentação do
quadro de negligência urbanística instalado na cidade.

91
IATs e macrozoneamento

A definição de IATs45 no plano diretor de 2011 configura uma das mudanças mais
significativas em relação ao plano diretor anterior, ao menos em termos
conceituais. Nessa nova edição, com a supressão do dispositivo que estabelecia
o coeficiente de aproveitamento básico único para toda a cidade igual a um, os
IATs que antes determinavam o potencial construtivo máximo em cada área da
cidade foram transformados, na versão atual, em coeficiente de aproveitamento
básico, ou seja, aquele que pode ser exercido gratuitamente. A reprodução dos
textos das duas leis expressa claramente a diferença.

No Plano Diretor de 1992:


O Poder Público poderá autorizar a criação de solo como excedente do
coeficiente um, mediante pagamento, observado o Índice de Aproveitamento de
Terreno - IAT e os demais parâmetros urbanísticos fixados pela legislação. (Art.
24, grifo nosso).

No Plano Diretor de 2011:


Os índices [IATs] definidos neste Anexo VII indicam o limite máximo, por bairro,
de aproveitamento de terreno sem aplicação de outorga onerosa (sic),
obedecidos os índices e parâmetros mais restritivos estabelecidos na legislação
urbanística em vigor, de acordo com o §4º do art.38 desta Lei Complementar
(Anexo VII, grifo nosso).

Nota-se ainda um esforço de redação - "o limite máximo, por bairro, de


aproveitamento de terreno sem aplicação de outorga onerosa" -, aparentemente
para não dizer objetivamente que em 1992 IAT era um coeficiente máximo de
aproveitamento de terrenos e em 2011 passou a ser um coeficiente básico de
aproveitamento de terrenos.

Essa mudança altera completamente o sentido do solo criado, que era previsto no
plano de 1992, e que passou a ser chamado de outorga onerosa do direito de
construir, tal como foi denominado no Estatuto da Cidade. Em São Paulo, o
coeficiente de aproveitamento máximo adotado é 4,0. Enquanto isso, no Rio de
Janeiro, com esse novo entendimento, o coeficiente de aproveitamento básico de
vários bairros é entre de 3,0 a 4,0, tendo ainda bairros em que o índice chega a
5,0, 11,0 e até a 15,0. Em sentido oposto ao tomado no Rio de Janeiro, na última
revisão do plano diretor de São Paulo, de 2014, foi adotado o coeficiente de

45
Após a aprovação do Estatuto da Cidade, tem sido mais usual a utilização do termo coeficiente
de aproveitamento pelos outros municípios, mas o significado é o mesmo de índice de
aproveitamento de terreno adotado no Rio de Janeiro.

92
aproveitamento básico único e igual a um. O que provavelmente levará ao
aumento da arrecadação com a outorga onerosa do direito de construir que já
vinha sendo aplicada pelo município46.

Pode-se argumentar, cinicamente, que, no caso do Rio de Janeiro, como o solo


criado nunca foi aplicado, a mudança não tem maior impacto, pois, na prática, o
IAT acabava se tornando mesmo básico e máximo, simultaneamente.

Além dessa questão conceitual mais central, chama atenção outro aspecto, que
diz respeito à relação (ou falta de) entre IATs e macrozoneamento. O novo plano
estabelece um macrozoneamento distinto do de 1992, subdividindo a cidade em
quatro macrozonas: "Macrozona de Ocupação Controlada"; "Macrozona de
Ocupação Incentivada"; "Macrozona de Ocupação Condicionada"; "Macrozona de
Ocupação Assistida"47.

Figura 07. Macrozoneamento do Município do Rio de Janeiro.


Fonte: Plano Diretor, 2011.

O anexo VII do plano diretor de 2011 apresenta os valores dos IATs, organizados
por macrozona e bairros, sugerindo haver alguma correlação entre as diretrizes
de ocupação (controlada, incentivada, condicionada ou assistida) e o potencial
construtivo admitido pela legislação urbanística. Contudo, a variação do IAT entre
bairros de uma mesma macrozona é tão grande que essa correlação não é clara.

46
Entre 2010 e 2014, o município de São Paulo arrecadou mais de R$900 milhões com a
aplicação da outorga onerosa do direito de construir, sem contar nesse montante os valores
arrecadados nas operações urbanas consorciadas por meio de Certificados de Potencial Adicional
de Construção - CEPACs. Claramente, não são recursos desprezíveis, que se não fossem
arrecadados pela municipalidade seriam apropriados pelos proprietários de terrenos e/ou
incorporadores.
47
No plano diretor de 1992, o macrozoneamento subdivida o território municipal em três tipos de
macrozonas: macrozonas urbanas; macrozonas de expansão urbana; e macrozonas de restrição à
ocupação urbana. Embora mais lógica conceitualmente, essa subdivisão também não tinha
impacto significativo, uma vez que todo o território municipal foi considerado urbano.

93
Por outro lado, mesmos valores de IAT são verificados em macrozonas
diferentes. E se observa, ao mesmo tempo, que os IATs estabelecidos são
praticamente os mesmos previstos em 1992 (lembrando que o antes era
coeficiente máximo, passou a ser tratado como coeficiente básico), salvo algumas
alterações - para cima - em alguns casos específicos. Deduz-se, então, que a
mudança na concepção do macrozoneamento não produz alteração significativa
naquele que é um dos mais importantes, senão o principal, parâmetro urbanístico
que o município no Brasil pode utilizar para regular o aproveitamento do solo
urbano. Apesar da mudança de nomes e delimitações nas macrozonas, o plano
não mexe naquilo que está estabelecido em termos de parâmetros urbanísticos.
Ou seja, não mexe naquilo que em termos práticos pode alterar as regras do jogo
na produção do espaço urbano.

Embora seja esperado que o planejamento almeje, de modo geral, que a


ocupação urbana seja controlada e condicionada, esses termos são utilizados
para designar macrozonas definidas no plano diretor que englobam justamente a
Zona Sul, Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes. Mesmo sendo mera
utilização de termos que eventualmente pode ser considerada inadequada, uma
vez que o conteúdo é o que importa, não deixa de ser curioso observar que as
áreas demarcadas como "de ocupação controlada" e "de ocupação condicionada"
correspondam exatamente às áreas mais nobres da cidade. Fica a impressão,
subliminar, de que o plano diretor já indica previamente, provavelmente
sugestionado pela observação da realidade, quais as áreas em que a norma pode
ou deve efetivamente valer e onde o controle e o condicionamento da ocupação
urbana podem não ser exatamente uma prioridade.

Outorga Onerosa do Direito de Construir

A aprovação do Estatuto da Cidade em 2001 superou eventual lacuna jurídica


(pela ausência de uma lei federal que regulasse a matéria) que fora utilizada
como justificativa, no Rio de Janeiro, para a não aplicação do solo criado, tal
como previsto pelo plano diretor de 1992. Esse instituto, do solo criado, discutido
desde os anos 1970 no Brasil48, inclusive em instâncias do Poder Judiciário, é
ainda de aplicação restrita em razão, certamente, dos interesses políticos e

48
O documento conhecido como "Carta de Embu", de 1976, estabeleceu as bases conceitual e
jurídica sobre o instituto do "solo criado", referência para a incorporação da Outorga Onerosa do
Direito de Construir no Estatuto da Cidade (2001).

94
econômicos que envolve. Entendê-lo no plano diretor de 2011 do Rio de Janeiro é
algo revelador do próprio conteúdo do plano.

Essencialmente, o solo criado, ou a outorga onerosa do direito de construir,


estabelece que a edificação acima de um determinado coeficiente de
aproveitamento de terreno definido pela legislação municipal deva ser deva ser
objeto de concessão onerosa e não gratuita, como é a prática corrente nas
cidades brasileiras. A ideia central é que o direito de construir (ao menos em
parte) pertence à coletividade e por isso deve ser adquirido pelos proprietários
interessados em exercer o potencial construtivo admitido pela legislação
urbanística que exceda o patamar básico. Essa abordagem seguia a interpretação
europeia (francesa e italiana) do instrumento, tendo como perspectiva controlar os
preços da terra e promover a redistribuição da valorização fundiária para
combater a especulação imobiliária e a segregação urbana (RIBEIRO;
CARDOSO, 1992).

A incorporação de instrumentos previstos no Estatuto da Cidade pelos planos


diretores municipais, quando ocorre, tem revelado diferentes interpretações sobre
seus objetivos. No caso da outorga onerosa do direito construir no plano do Rio
de Janeiro, há o que se pode afirmar como desvirtuamento absoluto do sentido
original de instrumento, concebido com a intenção de recuperar para a
coletividade, ainda que parcialmente, a valorização fundiária decorrente do
processo de urbanização.

Por meio da outorga onerosa do direito de construir, a concessão pública do


direito de construir passa a ser gratuita apenas até um determinado limite - o
coeficiente de aproveitamento básico - acima do qual incide a cobrança de
contrapartida do interessado e daí o nome outorga onerosa. O coeficiente básico
igual em toda a cidade tende a promover maior isonomia entre os terrenos de
diferentes regiões. E a valorização diferenciada em razão de atribuição de
potenciais construtivos máximos diferentes - o que pode se justificar por inúmeras
razões - seria equalizada pela cobrança da outorga do direito de construir. Nessa
linha de raciocínio, as áreas mais valorizadas, pagariam valores mais altos de
outorga - exatamente por serem mais valorizadas -, confirmando o caráter
potencialmente redistributivo do instrumento e contribuindo, se bem aplicados os
recursos auferidos, para efetivação de uma das mais importantes diretrizes do
Estatuto da Cidade: a "justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do
processo de urbanização".

95
Ao dar aos IATs previstos no plano diretor de 1992 como índices máximos o
sentido de coeficiente de aproveitamento básico, o plano diretor de 2011 rompe
inteiramente com essa lógica. Mas o plano desconstrói definitivamente o
instrumento quando estabelece que "a outorga onerosa (...) somente poderá ser
exercida em Áreas Sujeitas à Intervenção previstas no Anexo IV e definidas em
Lei como Áreas de Especial Interesse Urbanístico ou de Operações Urbanas
Consorciadas" (art. 79, parágrafo 2o). Ou seja, o instrumento perde seu caráter
geral, para incidir em apenas algumas áreas, aquelas objeto de projetos urbanos.
E como nesses casos, o instrumento da OUC permite que os recursos da outorga
onerosa sejam aplicados exclusivamente na área da operação para o
financiamento das obras planejadas, o sentido redistributivo é praticamente
eliminado.

Não é à toa que, na forma como foi tratada no plano diretor de 2011, a outorga
onerosa não incide nos bairros mais valorizados da cidade. Continuarão
valorizados e os proprietários privados e incorporadores continuarão se
apropriando de toda a valorização fundiária decorrente do processo de
urbanização, inclusive aquela originada pela ação do poder público, por meio da
execução de obras e pela própria legislação urbanística na concessão de índices
urbanísticos.

Se é verdade que não foram viabilizadas as condições políticas para


implementação do solo criado tal como previsto no plano diretor de 1992, pelo
menos existia na lei um dispositivo que sinalizava para a necessidade de retornar
para a coletividade parte da renda da terra urbana. Nesse sentido, o plano diretor
de 2011 significa um retrocesso absoluto em relação ao de 1992, pois retorna à
situação pré Estatuto da Cidade, pré Constituição de 1988 e pré Movimento de
Luta pela Reforma Urbana, ainda que na prática nunca tenha deixado de ser
assim.

2.4. Conclusões parciais

Embora as cidades estejam em constante mutação nas suas partes, mudar suas
lógicas de estruturação requer processos longos. As transformações urbanas, em
geral, são lentas, salvo em momentos mais radicais de "bota abaixo", de grandes
projetos de renovação urbana ou de ocupação de novas áreas antes não
incorporadas a malha urbana.

96
Na história do Rio de Janeiro, esses momentos mais radicais resultaram em
importantes impulsos para a expansão cidade e, invariavelmente, maior
segregação urbana. Foi assim no início do século XX com a reforma de Pereira
Passos e também nos anos 1950/60, com o rodoviarismo combinado com
remoções de favelas e construção dos distantes conjuntos habitacionais.

O momento atual talvez não seja tão radical quanto os anteriores, do ponto de
vista de demolições na cidade existente que favoreceram novas possibilidades de
aproveitamento do solo pelo mercado, ainda que intervenções de grande porte
estejam sendo realizadas, com tendência a provocar os mesmos efeitos já
conhecidos. É o que sugerem a concentração de investimentos ligados aos Jogos
Olímpicos na região da Barra da Tijuca, a nova infraestrutura de transporte
convergindo para a mesma região, as unidades habitacionais da faixa de mais
baixa renda sendo construídas nas áreas mais distantes e de infraestrutura mais
precária, a abertura de uma nova frente de investimentos imobiliários na área
central concentrada na região portuária e, paralelamente às ações mais
diretamente associadas a obras, uma política de segurança pública que concentra
sua atuação prioritariamente nas favelas em torno da Zona Sul, formando uma
espécie de arco de proteção das áreas mais nobres da cidade (ver Mapa 09).

Soma-se ao conjunto de obras em andamento, a permanência de uma legislação


urbanística anacrônica, representada pela inércia em relação ao processo de
ocupação da região da Barra da Tijuca e em relação ao Decreto 322/76 que
continua em vigor. A cidade tem demonstrado enorme dificuldade, ou melhor,
resistência, em renovar seu aparato normativo, que forma a base operacional
fundamental do urbanismo. Do urbanismo do cotidiano, que lida diretamente com
o processo de construção da cidade, que ocorre, sobretudo, fora dos grandes
projetos. O plano diretor de 1992 ao menos sinalizava para algumas inovações
possíveis nos instrumentos de regulação urbana, na perspectiva de efetivação do
direito à cidade, mas esses acabaram sendo relegados. E com o plano diretor de
2011 subvertidos em seus objetivos.

A priorização dos projetos urbanos na gestão da cidade desassociada do


processo de planejamento urbano ordinário, reduzido a revisões pontuais das
normas e aplicação parcial e discricionária delas no licenciamento,
aparentemente, contribuiu significativamente para esse quadro de inércia.
Quando, nos anos 1990, a palavra de ordem era a de que "era preciso agir" -
diante de uma interpretação de que a cidade estava abandonada etc. - essa
desvinculação se mostrou eficaz no curto prazo. A execução de uma série de

97
obras de qualificação do espaço público realizadas simultaneamente teve impacto
significativo num primeiro momento em que a cidade parecia reconstruir sua
imagem. No longo prazo, porém, nem se constituiu uma cultura de projetos
urbanos na cidade, nem se reformulou as bases e práticas do urbanismo
operacional, nem se reverteu processos urbanos que tendem a produzir uma
cidade mais desigual. Esses temas serão abordados também no próximo capítulo,
dedicado à análise da prática de projetos urbanos no Rio de Janeiro nas últimas
três décadas.

98
Capítulo 3
TRÊS GERAÇÕES DE PROJETOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO

No contexto brasileiro, a cidade do Rio de Janeiro pode ser considerada como um


laboratório de experiências em projetos urbanos em razão das diversas
propostas, de diferentes naturezas, que têm sido anunciadas nas últimas
décadas, ainda que nem sempre efetivamente implementadas. Tais experiências,
desde há muito, têm sido objeto de análises e críticas, cujas interpretações e
avaliações em relação a seus pressupostos, objetivos e resultados têm
contribuído para o debate sobre projeto urbano no Brasil.

Neste capítulo, são analisados projetos urbanos propostos para o Rio de Janeiro
no período que vai dos anos 1980 aos dias atuais. O recorte temporal adotado
tem como referência inicial o processo de redemocratização do país, um contexto
favorável ao surgimento de novas práticas sociais. E se estende até a presente
década de 2010, uma vez que a realização dos Jogos Olímpicos em 2016
motivou uma série de intervenções urbanas que estão em curso e que exigem
interpretações sobre o que se pode esperar como "legado" para a cidade.

Ao ser abordada a prática de projetos urbanos numa visão de mais longo prazo e
de conjunto, busca-se contribuir, conceitualmente, para uma melhor compreensão
do projeto urbano no contexto carioca, enfatizando como seu papel e formato se
alteram ao longo do tempo. Do ponto de vista da configuração da cidade, são
examinadas não apenas características dos projetos, em particular em relação à
forma urbana, mas também como essa prática impacta ou não as tendências da
dinâmica urbana. E a partir desses aspectos, considerando mudanças de
contexto e de formas de intervenção, são trabalhados elementos que contribuem
para a reflexão sobre negligência urbanística, tanto em relação à própria prática
projetual como em relação ao planejamento e controle urbano.

De acordo com a análise aqui empreendida, a prática de projetos urbanos no Rio


de Janeiro é marcada por três momentos principais, que identificamos como
gerações de projetos urbanos. O primeiro, nos anos 1980, é o de experiências
precursoras, quando, no ambiente de abertura democrática, se buscava formas
de participação social e a proposição de novos temas para a agenda urbana. O
momento seguinte, mais claramente demarcado entre 1993 e 2000, é de inflexão,
quando se estrutura um novo discurso sobre a cidade no qual o projeto urbano,
como estratégia de intervenção pública, assume lugar central. E o terceiro
momento se inicia no começo dos anos 2000, quando surge uma série de

100
intervenções concebidas em torno de grandes projetos arquitetônicos, muitos
deles de forte apelo midiático e, eventualmente, assinados por estrelas da
arquitetura internacional. Como produtos dessa mesma geração de projetos
urbanos, figuram também os inúmeros projetos e obras associados direta ou
indiretamente à realização dos eventos esportivos na cidade.

Inicialmente, antes da análise da experiência do Rio de Janeiro propriamente e


com objetivo de contextualizá-la, são trabalhadas questões relativas à reflexão
teórica sobre projetos urbanos. De um lado abordando ambiguidades e
contradições de uma noção considerada imprecisa por diversos autores, mas que
diz respeito, de fato, a uma prática corrente internacionalmente. Por outro,
destacando aspectos principais do debate sobre projetos urbanos no contexto
brasileiro, cuja prática se vincula muito fortemente à ascensão dos ideais
neoliberais que pautam as políticas públicas a partir dos anos 1990.

Em seguida, são analisadas as três gerações de projetos urbanos identificadas.


Elas são trabalhadas, em suas especificidades, a partir das características
principais dos projetos urbanos propostos, destacando-se, em todas, as posturas
em relação à área central e em relação às favelas, duas temáticas recorrentes na
cidade do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, o processo de ocupação da região
da Barra da Tijuca é trabalhado sempre como referência para se compreender o
contexto mais geral de desenvolvimento urbano do município, pois é para aquela
direção que a cidade se voltou desde os anos 1970, mas com mais vigor a partir
dos anos 1980, como visto no capítulo 2.

3.1. Sobre projetos urbanos e o debate no contexto brasileiro

3.1.1. Projeto urbano, ambiguidades, contradições

A utilização do termo projeto urbano nas últimas décadas está associado, a


princípio e do ponto de vista teórico, a "um momento de transição entre a maneira
tradicional de pensar o urbanismo e uma nova abordagem, menos rígida e mais
aberta às transformações e aos debates" (INGALLINA, 2003. p. 3, tradução
nossa). Nessa transição, apenas parcial e incompleta, os projetos urbanos
assumem múltiplos formatos e significados, segundo os diferentes contextos -
urbanos, políticos, econômicos, sociais etc. - em que são propostos e

101
implementados. Razão pela qual Pinheiro Machado (2010) enfatiza a constatação
de que "os projetos urbanos são específicos e singulares".

Entretanto, é forçoso reconhecer que quando a prática de projetos urbanos saiu


das fronteiras dos países centrais para se tornar universal, mais claramente a
partir dos anos 1990, o fez em meio à "difusão de um urbanismo liberal genérico"
(BARTHEL, 2010, tradução nossa), que em realidades diversas tem reproduzido
padrões urbanos e arquitetônicos similares, normalmente associados a processos
de concentração de recursos em determinadas partes das cidades, de elitização
dos espaços urbanos objeto de intervenções que não raramente representam
grande mobilização de recursos públicos e novas formas de apropriação da renda
fundiária por grupos econômicos que se beneficiam das intervenções urbanísticas
de grande porte.

Expressão de uma nova perspectiva de conceber e orientar a estruturação do


espaço urbano ou nova maneira de organizar a ação de agentes econômicos na
cidade, a prática de projetos é reconhecida como forma de intervenção
privilegiada do urbanismo contemporâneo nos mais diversos países. É
razoavelmente consensual na literatura sobre o tema, que o projeto urbano na
sua versão atual se desenvolve, ao menos inicialmente, a partir da crítica ao
urbanismo modernista/funcionalista e do contexto de transformações econômicas
e políticas do final do século XX.

"O termo 'projeto urbano' apareceu verdadeiramente, na sua versão conjuntural,


no momento em que, ao final do grande período de expansão dos anos 60, se
experimentava dissociar a planificação excessivamente sistemática e mecânica do
espaço e descobrir novas racionalidades, menos desvinculada dos homens, mais
próximas de suas aspirações, e provavelmente mais complexas" (RONCAYOLO,
2000. p.25, tradução nossa).

Cerca de quatro décadas depois, as abordagens sobre o projeto urbano e as


interpretações sobre o seu papel são múltiplas e mesmo contraditórias e
conflitantes. Tudo coerente com o tempo de incertezas em que vivemos, da
modernidade líquida descrita por Bauman (2001; 2007). Ainda mais para um
termo que ganha expressão na Europa - sendo introduzido somente mais tarde no

102
Brasil - justamente na época em que se revelava mais claramente a crise da
modernidade: o momento do “aparecimento da incerteza lá onde tudo parecia
seguro, regrado, regulado e, portanto, predicável” (MORIN, 2012. pp. 19-20).

Grande parte dos autores, senão a totalidade, compartilha o entendimento de que


o termo "projeto urbano" carrega ambiguidades. Embora não comporte uma
definição única ou fechada - a noção de projeto urbano é polissêmica (MERLIN;
CHOAY, 1998) - e apesar da noção de projeto urbano ser considerada imprecisa
por vários autores (GENESTIER, 1993; INGALLINA, 2003), é em torno da prática
de projetos urbanos que tem se dado boa parte do debate sobre problemas
urbanos atuais e sobre desafios da cidade do século XXI.

Ao refletir sobre o sentido da expressão "projeto urbano", no início dos anos 90,
Genestier dizia que aqueles que a pronunciavam "[queriam] inicialmente marcar
sua adesão à ideologia antifuncionalista" e que por meio dela se exprimia uma
"atitude favorável à cidade". No entanto, o autor crítica o termo, mostrando que
justamente por se tratar de uma expressão imprecisa era cômoda para os
"diferentes atores da urbanização", incluindo políticos locais e técnicos. Na sua
visão, o termo oferecia "a vantagem (duvidosa, em relação às exigência da
democracia) de proferir princípios e orientações gerais camuflando problemas
reais" (GENESTIER, 1993, tradução nossa).

O que é tido por impreciso sob um determinado ponto de vista, à medida que
circulam diferentes compreensões sobre o mesmo termo, pode ser também
entendido como riqueza de um termo que não se encerra, teoricamente, em
modelos pré-concebidos. Roncayolo dizia que "o interesse essencial do 'projeto
urbano', é justamente esse tipo de instabilidade que nos faz intervir na reflexão
sobre a maneira de construir finalmente as cidades (...)" (RONCAYOLO, 2000.
p.26, tradução nossa). Considerando a questão da imprecisão do termo como
ultrapassada atualmente, Tsiomis e Ziegler se interrogam sobre o que é objeto do
projeto urbano. E afirmam que "não há um objeto, mas objetos de escalas e
temporalidades diferentes e com atores diversos" (TSIOMIS; ZIEGLER, 2007.
p.24, tradução nossa). Nesse sentido, "projeto urbano é uma noção extensível e
polissêmica" que envolve uma "pluralidade de objetos" (TSIOMIS; ZIEGLER,

103
2007. p.24, tradução nossa) que pode ser tanto a cidade consolidada como a
cidade dispersa, o centro ou a periferia e pode assumir significados próprios em
cada contexto específico.

Entretanto, na sua difusão, o termo "projeto urbano" passou a ser utilizado,


sobretudo a partir dos anos 90, para designar diferentes tipos de intervenção na
cidade, tornando cada vez mais difícil compreender a que se refere exatamente, a
que tipo de urbanismo, de visão de cidade ele serve. Levy chama atenção para o
fato de que a noção de projeto urbano "penetrou a prática urbanística e parece
recobrir indiferentemente todas as tendências urbanísticas sem distinção" (LEVY,
2003. p.1, tradução nossa). O mesmo autor que valorizava a instabilidade da
noção, diria depois que o projeto urbano “se dispersou e sobretudo ele consistiu
em esconder os papéis e as questões relacionadas ao futuro da cidade ou a
dificuldade para os definir mais firmemente” (RONCAYOLO, 2008. p.189,
tradução nossa).

Se o projeto urbano é objeto de análise para os diversos campos disciplinares que


se interessam pela cidade e o espaço urbano nas suas múltiplas dimensões -
econômica, social, política etc., para o campo da arquitetura e do urbanismo é
também objeto da prática profissional. E é justamente nos movimentos de revisão
doutrinária desse campo profissional que o projeto urbano ganha relevância. Para
Vogel (2000) a noção de projeto urbano está relacionada à "retomada da cidade
pelos arquitetos"49 (VOGEL, 2000. p. 96, tradução nossa).

A crítica aos postulados da "Carta de Atenas", já nos anos 60, abria caminhos
para novas preocupações e para a experimentação de novas formas de intervir no
espaço urbano. Devillers, por exemplo, destaca que a noção de projeto urbano
surge quando se verifica que "o problema não é mais de construir cidades novas,
mas de requalificar a urbanização existente" (DEVILLERS, 1994. p.12, tradução
nossa). Ao marcar a questão da requalificação da urbanização existente, o autor
remete para uma nova postura que se esboçava à época - de "faire la ville sur la

49
É importante considerar que na França não há, como no Brasil, a unicidade na formação do
arquiteto e urbanista. Durante a formação universitária, estudantes de diferentes áreas podem se
dirigir para a formação em urbanismo, com grande participação de oriundos da geografia.

104
ville"50 - em contraposição a práticas como a tabula rasa, a produção de grandes
conjuntos monofuncionais, a expansão urbana ilimitada, que marcaram a
produção modernista-funcionalista do pós-guerra. Enfatiza-se o papel essencial
do espaço público e a necessidade de superação de lógicas setoriais nas políticas
urbanas. Nessa visão, o projeto é revalorizado e a noção de projeto urbano
aparece como possibilidade frente ao urbanismo puramente normativo, de
modelos pré-concebidos e de planos de massa.

Mangin e Panerai situam o projeto urbano tanto como "reivindicação política",


como "reivindicação teórica", pois sua prática pressupõe - e busca instaurar -
novas formas de articulação de atores sociais na formulação e implementação de
projetos, bem como exige "novos instrumentos conceituais e novas técnicas de
projeto". Para esses autores, que analisam o papel do projeto urbano a partir,
sobretudo, da forma urbana e das relações entre os edifícios e a cidade, o projeto
urbano é tido como o meio próprio para redefinir tais relações, num momento em
que, segundo eles, no contexto francês, a arquitetura se via livre "de suas
obsessões formalistas e o urbanismo livre de seus pensadores tecnocráticos".
Ainda segundo Mangin e Panerai é o momento, entre os 1960 e 1970, do início de
reconstrução de uma disciplina, quando formulação teórica e novas práticas se
dão quase que concomitantemente promovendo a "reconstituição de um saber
sobre a cidade, sobre a arquitetura e suas relações". (MANGIN; PANERAI, 2009.
p. 13-27, tradução nossa).

Além da crítica ao modelo funcionalista em torno tanto de seus princípios como de


resultados de sua aplicação sobre o ambiente construído, problemas urbanos
próprios da cidade contemporânea, pós-industrial, abriam novas questões para
arquitetos e urbanistas e demandavam novas abordagens. A obsolescência de
espaços anteriormente produtivos, o esvaziamento de centros tradicionais, a
deterioração dos grandes conjuntos monofuncionais, a excessiva expansão de
áreas urbanizadas das cidades são alguns dos temas que impulsionam a
valorização do projeto como instrumento de intervenção.

50
A expressão "faire la ville sur la ville" amplamente difundida na bibliografia francesa sobre
projeto urbano pode ser entendida como princípio ligado à noção de projeto urbano, essencial
para grande parte de arquitetos e urbanistas, que remete para ideia de construir ou reconstruir a
cidade sobre ela mesmo, ou seja, partindo do existente.

105
Ao mesmo tempo, a crise do Estado-Providência, ou Estado do Bem-Estar,
expõe, pelo viés da gestão e do papel do Estado, outra face da crise do
urbanismo modernista-funcionalista, cuja tradição, segundo Portas "está ligada,
ou foi legitimada", justamente por esse modelo de Estado interventor. A
incapacidade do Estado, diante da crise econômica, de garantir a coesão social e
de prover integralmente infraestrutura e serviços urbanos associa-se, então, à
própria crítica da qualidade urbanística da produção do pós-guerra. A dimensão
da gestão passa a ser também central para se pensar o urbanismo e essa nova
condição, como explica Portas, faz com que as noções de tempo e de recursos
tenham que ser incorporadas às concepções e estratégias de planejamento e
projeto. (PORTAS, 1996)

Novos problemas urbanos, redefinição do papel do Estado, crise da modernidade,


são múltiplas as razões que estão na origem da emergência da noção de projeto
urbano. Mas no Rio de Janeiro, na experiência brasileira, nos países em
desenvolvimento de modo geral e mesmo nos países centrais, a prática de
projetos urbanos se associou mais explicitamente ao discurso neoliberal que
capturou a agenda urbana desde os anos 1990. Embora a teoria do projeto
urbano se refira a um tipo de urbanismo que recusa modelos e que se desenvolve
a partir de um projeto de cidade, do contexto local e da articulação de atores, a
prática de projetos urbanos se reproduz num contexto de globalização da
economia, de "uniformização de modelos urbanísticos" (BERRY-CHIKHAOUI;
DEBOULET; ROULLEAU-BERGER, 2007, p.13, tradução nossa).

A prática de projetos urbanos se reproduz, então, de modo contraditório à própria


formulação teórica original em torno de sua noção, uma vez que em grande
medida se inscreve num contexto de conformação de novas "fórmulas para as
cidades", que tende a homogeneizar problemáticas e soluções. Recorrentemente,
os projetos urbanos são apresentados como ações estratégicas para a atração de
novos investimentos e de turismo, para a construção de uma nova imagem da
cidade, para o reposicionamento das cidades nas redes nacionais ou
internacional. Um discurso genérico, de forte viés ideológico, que favorece a
reprodução de modelos.

106
3.1.2. Projeto urbano no contexto brasileiro

A expressão "projeto urbano" começa a circular no contexto brasileiro


efetivamente na década de 1990. É na primeira metade dessa década que
algumas administrações municipais adotam estratégias de estruturação da
política urbana em torno de projetos de intervenção urbanística, ganhando grande
visibilidade. São os casos de Curitiba e Rio de Janeiro.

A capital paranaense já se destacava no cenário nacional desde os anos 1970


pelas soluções na área de transportes. Mas entre o final dos anos 1980 e início
dos anos 1990 inaugura uma série de equipamentos (Jardim Botânico, Rua 24
Horas, Ópera de Arame, Universidade Livre do Meio Ambiente entre outros) que
se articulam ao sistema de transportes e suas inovações do período, como a
implantação do "ligeirinho" e as estações tubo, com a revalorização dos parques
públicos, num amplo programa de marketing urbano. A cidade é alçada à
condição de referência nacional e internacional se autopromovendo como capital
ecológica e social, apesar dos problemas sócio-ambientais de sua região
metropolitana, comuns aos grandes aglomerados urbanos brasileiros, tais como
expansão da informalidade urbana e ocupação de áreas de mananciais.

No caso do Rio de Janeiro, as marcas principais são as intervenções de


qualificação de espaços públicos, de urbanização de favelas e as propostas para
a área central, como veremos a seguir, neste mesmo capítulo. Ao privilegiar a
atuação por projetos, buscava-se também construir uma nova imagem para a
cidade, numa estratégia de inseri-la no circuito de cidades globais. A experiência
carioca é marcada ainda pela presença de consultores internacionais51 que
participam da formulação e legitimação de um novo discurso sobre a cidade e da

51
Destaque para Manuel de Forn e Jordi Borja, consultores do Plano Estratégico concluído em
2005 e para Oriol Bohigas e Nuno Portas, consultores em projetos para a área central do Rio de
Janeiro. A atuação desses consultores internacionais não se limita à prestação dos serviços de
consultoria em si. Eles participam também de eventos não só promovidos pela Prefeitura, mas
também de eventos acadêmicos e profissionais, bem como têm textos publicados contribuindo
para a introdução no contexto brasileiro do debate internacional sobre projetos urbanos.

107
difusão do discurso do planejamento estratégico e do projeto urbano como novos
instrumentos de gestão da cidade contemporânea.

Paralelamente, no mesmo início de anos 1990, também a academia começa a ter


a prática de projetos urbanos como objeto de análise e crítica, assim como a
desenvolver reflexão teórica mais estruturada em torno de seu significado no
contexto brasileiro. Nesse processo, no âmbito acadêmico se configuram o que
Farias Filho (2013) chama de dois ambientes de pesquisas:

em uma sala tomam assento aqueles que investem na reformulação conceitual do


projeto arquitetônico-urbanístico, em resposta aos desafios da cidade
contemporânea; na outra sala, adentram aqueles que desenvolvem uma crítica
materialista da condição neoliberal do urbanismo e do planejamento urbano.
(FARIAS FILHO, 2013. p.11-12)

No primeiro, se encontram pesquisadores oriundos majoritariamente da área de


arquitetura e urbanismo, mas não somente, que se dedicam a reflexões em torno
do projeto ou do processo projetual - atividade central da formação do arquiteto e
urbanista -, segundo diferentes abordagens, entre as quais pode-se destacar:
morfologia urbana; concepção, configuração e representação do espaço urbano;
instrumentos de intervenção urbana; problemáticas espaciais da cidade
contemporânea; participação social etc.

Destaca-se que muitas vezes os pesquisadores são também profissionais que


atuam na elaboração de projetos de arquitetura ou de urbanismo, reunindo
experiências que alimentam a pesquisa teórica, mas que têm na produção
acadêmica elementos de legitimação de um novo campo de atuação profissional
que se abre de modo mais claro nos anos 1990 no Brasil. Em parte, essa
produção se apresenta como prescritiva, em parte, como registro e difusão de um
incipiente urbanismo de projetos.

Mas também se inserem nesse mesmo ambiente aqueles que embora críticos ao
discurso e à agenda neoliberal para as cidades, reconhecem a valorização do
projeto e do desenho urbano como algo importante e necessário para a promoção

108
da qualidade de vida urbana e a própria democratização da cidade. A questão do
projeto e da concepção da forma urbana, sem dúvida, toca muito especialmente
os arquitetos e urbanistas e nem sempre tem a mesma relevância para outras
disciplinas que se ocupam da cidade e do espaço urbano.

Tsiomis e Ziegler (2007) observam que nessas duas posturas há tanto


subestimação como superestimação em relação ao "lugar da concepção das
formas [urbanas] e do trabalho do arquiteto"(...). Para os autores, a primeira
posição, é frequentemente adotada "por parte daqueles [da sociologia, economia,
geografia...] que veem na arquitetura unicamente uma produção de imagens,
mais do que o estabelecimento de formas significantes". Por outro lado, observam
que, de fato, "certos políticos, no fundo, não demandam ao arquiteto outra coisa
que a produção de uma imagem marcante, confundindo a dimensão
fundamentalmente política do urbanismo com projetos rapidamente realizados,
para exibição ao longo do mandato eleitoral" (TSIOMIS; ZIEGLER, 2007. p. 26-27,
tradução nossa).

O segundo ambiente envolve pesquisadores de diferentes campos disciplinares


que, via de regra, estabelecem relação direta entre projetos urbanos, ou Grandes
Projetos Urbanos (GPUs) - denominação mais utilizada nessa linha teórica - e a
implementação de políticas urbanas neoliberais. Embora seja evidente tal relação
e amplamente reconhecido que a prática de projetos urbanos das últimas
décadas se desenvolve num contexto de redefinição do papel do Estado e de
reestruturação do capitalismo, a pré-determinação de uma lógica superior à qual
os projetos urbanos estariam vinculados tende a minimizar especificidades que
esses podem assumir, bem como possíveis mediações locais, e a deslocar a
atividade projetual para um campo ideológico específico.

A compreensão do debate sobre projeto urbano no Brasil passa pelo


entendimento do contexto bastante particular da virada dos anos 1980 para os
anos 1990 no país. No processo de redemocratização da década de 1980,
movimentos sociais, academia, ONGs, associações profissionais, se organizaram
em torno da luta pela reforma urbana, do direito à cidade e do direito à moradia. A
articulação entre lideranças populares, intelectuais e profissionais permitiu a

109
formação de uma consciência crítica sobre a realidade urbana brasileira e a
organização do Movimento Nacional de Luta pela Reforma Urbana. A partir da
emenda popular apresentada pelo movimento, a Constituição Federal de 1988
incorporou o que seriam as bases para reforma urbana: a afirmação do princípio
da função social da cidade e da propriedade urbana; a utilização compulsória de
imóveis vazios ou subutilizados em áreas urbanas bem infraestruturadas; a
regularização fundiária de interesse social. A transição democrática, o novo marco
constitucional, a chegada de partidos de esquerda ao poder executivo de
importantes cidades, notadamente São Paulo, indicavam, no final dos anos 1980,
possibilidades reais de mudanças de prioridades na política urbana brasileira.

No entanto, a ascensão dos ideias neoliberais nos anos 1990 foi acompanhada
de outra agenda para as cidades, se sobrepondo àquela preconizada pelo
movimento da reforma urbana. A polarização político ideológica que se acirraria
ao longo da década se traduziu, no campo da política urbana, na oposição entre
plano e projeto, entre planejamento urbano e planejamento estratégico, entre
participação social e parcerias público-privada, entre regulação urbana e
flexibilização da legislação urbanística...

Claramente, se opunham dois modelos de planificação. Um que buscava a


afirmação dos direitos sociais, o fortalecimento da regulação urbana pelo Estado
e a intervenção no mercado fundiário por meio da revisão da legislação
urbanística e a intensificação do controle social na implementação da política
urbana. Outro que reivindicava normas urbanísticas flexíveis, a regulação urbana
pelo mercado e, nesse caso sim, a implementação de projetos urbanos como
estratégia para atração de investidores, turismo e conferir à cidade a imagem de
modernidade e dinamismo.

Além da noção de projeto urbano entrar no contexto brasileiro atrelada à onda


neoliberal dos anos 1990, sendo de fato difícil de desassociar uma coisa e outra,
é preciso considerar que no ideário da reforma urbana, o projeto - condição
essencial para produção do espaço urbano e da arquitetura de qualidade - não
era tido como instrumento de promoção de justiça social na cidade.

110
Apesar de assumir postura extremamente crítica em relação ao planejamento
estratégico e à prática de projetos urbanos, Vainer (2013) reconhece que a
literatura produzida nessa perspectiva, de modo geral, tem "se consagrado antes
à crítica do modelo e dos conceitos que o amparam, raramente capazes de extrair
suas consequências práticas e descer ao terreno das cidades reais para ver o que
está sendo feito delas" (VAINER, 2013. p.139).

Dessa forma, o debate sobre projeto urbano no Brasil é fortemente marcado por
posturas "a priori" e pela classificação dos autores que se dedicam ao tema em
"apologistas" ou "críticos" do projeto urbano conforme enquadramento proposto
por Novais et al, onde apologistas são os que "entendem os GPUs como práticas
adequadas ao mundo contemporâneo" e os críticos são aqueles "que põem o
acento sobre seus efeitos perversos" (NOVAIS et al, 2007). A classificação
explicita visões divergentes que, certamente, contribui para melhor compreensão
dos embates e disputas que estão em jogo em torno da prática de projetos
urbanos. Por outro lado, reforça a visão dicotômica dos prós e dos contras como
se o instrumento, em si, fosse portador de significado, desconsiderando
abordagens reflexivas. No entanto, a própria pesquisa da qual participam Novais
et al, indica que os projetos urbanos assumem formatos e significados próprios
em cada contexto, que "nem sempre podem ser claramente relacionados ao
processo de globalização", embora, normalmente, façam referências "a projetos
internacionais supostamente bem sucedidos" em seus "discursos de legitimação"
(NOVAIS et al, 2007).

Como destacado anteriormente, a noção de projeto urbano carrega ambiguidades


e contradições, podendo mudar de enfoque ou sentido dependendo de quem está
falando (diferentes disciplinas, diferentes atores sociais, diferentes visões políticas
etc.). Essa característica impõe dificuldades para se fazer generalizações sobre a
prática de projetos urbanos. Além disso, como observa Lungo (2005) é preciso
considerar também "a enorme diversidade de projetos, o que representa um
grande desafio analítico" (LUNGO, 2005. p.17).

Possivelmente por essas dificuldades, os trabalhos de reflexão em torno dos


projetos urbanos, em geral, se dedicam à descrição e análise de casos ou à

111
abordagem de determinadas temáticas, eventualmente com estudos
comparativos. Ainda assim, alguns autores têm buscado aprofundar teoricamente
a compreensão do projeto urbano no contexto brasileiro. Pinheiro Machado
(2003), por exemplo, estuda o que identifica como categorias constituintes do
projeto urbano (programa, tempo, escala, composição, princípios / conceitos /
discursos, metodologias, e decisão / gestão) para propor uma grade analítica de
projetos urbanos, segundo problemáticas urbanas recorrentes da cidade
contemporânea. Somekh (2009) tenta pensar a prática de projeto urbano de modo
articulado com a implementação do Estatuto da Cidade e os instrumentos jurídico-
urbanísticos nele previstos. Farias Filho (2013b) e Vescina (2010) analisam
possibilidades do projeto urbano, comumente pensado como instrumento de ação
em áreas centrais, para compreensão e intervenção no espaço metropolitano, em
áreas periféricas de cidades brasileiras.

Neste trabalho, se propõe a construção de uma visão de médio e longo prazo da


prática de projetos urbanos no Rio de Janeiro, apresentada a seguir, que permite
propor uma série de interpretações sobre como ela vem ou não interferindo na
dinâmica da cidade. E permite observar ainda como os instrumentos técnicos e
políticos essenciais para orientar a gestão urbana - plano e projeto - têm se
tornado cada vez mais frágeis e desprezados, reforçando o que nos parece
configurar um quadro de negligência urbanística.

3.2. Primeira geração de projetos urbanos (1979 a 1992): experiências


precursoras

Identificamos como primeira geração de projetos urbanos aquelas iniciativas


desenvolvidas entre 1979, ano da Lei da Anistia, que abre mais claramente o
caminho para a democratização do país, e 1992, ano da aprovação do Plano
Diretor Decenal do Rio de Janeiro e da eleição do prefeito César Maia, que
redirecionaria a política urbana do município a partir do ano seguinte.

O regime político iniciado em 1964 levou o país a duas décadas de uma ditadura
civil-militar que se impôs pela força, sufocou a efervescência política e cultural dos
anos 60, retomou o desenvolvimento econômico com endividamento externo e
concentração de renda e se esvaiu nos anos 80, em meio à grave crise

112
econômica. A "década perdida", como ficou conhecida a década de 80, foi
marcada pelo baixo crescimento econômico, hiper-inflação e sucessivos planos
econômicos fracassados.

No campo da habitação, os efeitos da crise foram severos e culminariam com a


extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH), criado em 1964, logo no início
do regime ditatorial. O BNH já havia passado por outras crises, mas no início dos
anos 80, com o aumento do desemprego e os baixos salários, seguidos de
medidas que levaram ao aumento das prestações da casa própria acima da
inflação, o crescimento da inadimplência de mutuários resultou na
desestruturação do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) (AZEVEDO, 1988).

Apesar das críticas à produção e às prioridades do BNH, o banco era o órgão


estruturador da política habitacional no país. Sem ele, a partir de 1896, foram
quase vinte anos de um vazio institucional em relação ao tema da habitação na
esfera federal. Como destaca Andrade, as propostas de reestruturação do SFH
elaboradas já na Nova República52 não prosperaram, o BNH foi extinto e "o
acesso à moradia ficou ainda mais difícil para os pobres" (ANDRADE, 2011, 94).

A década de 80, entretanto, foi também aquela em que se concretizou a transição


para a democracia, impulsionada por ampla mobilização social. Nesse contexto,
se buscava instituir novas práticas e espaços de participação social nas políticas
públicas, envolvendo os mais diferentes setores (sindicais, estudantis,
associações de bairros, ONGs, etc.). Do ponto de vista político, não se trata de
uma década perdida (MARAGONI, 2012), mas sim de um importante momento
histórico do Brasil que culminou com a promulgação da Constituição Federal de
1988.

Na esteira do processo de redemocratização do país, a década de 80 constitui um


momento em que a questão urbana ganha nova expressão e algumas
experiências de gestão - notadamente a da Prefeitura de São Paulo53, maior

52
Andrade apresenta e analisa os relatórios do Grupo de Trabalho para Reformulação do SFH
(GTR-SFH) e do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), ambos de 1986, que apresentavam críticas
"à política adotada pelo BNH" e propostas para reestruturação da política habitacional e urbana.
Apesar das expectativas e do ambiente político relativamente favorável a mudanças, nesse
mesmo ano de 1986 o BNH foi extinto.
53
Em 1988, a candidata Luiza Erundina foi eleita prefeita de São Paulo pelo Partido dos
Trabalhadores, que, à época, se mostrava como partido capaz de instaurar novas práticas na
política. A gestão de Luiza Erundina foi um marco para a política urbana, levando para a prática
ideais da reforma urbana. Mais especificamente em relação à política habitacional, a
administração de São Paulo conseguiu implantar um programa diversificado, demonstrando a

113
cidade do país - e também de projetos - com destaque para o Corredor Cultural54
no Rio de Janeiro - buscavam caminhos para superação da tradição tecnocrática-
modernista-funcionalista. Alguns aspectos sintetizam esse período em relação à
política urbana:

 o movimento pela reforma urbana se estruturava e ganhava expressão ao


articular diferentes atores sociais;

 as associações de moradores, no caso do Rio de Janeiro, tinham atuação


em discussões da cidade – tanto as de bairros como as de favelas;

 as dimensões dos problemas urbanos com a expansão das grandes áreas


metropolitanas estavam já muito evidentes;

 o fracasso da atuação do BNH e a extinção do Banco abriam uma imensa


lacuna no campo da política habitacional;

 novos temas despontavam na agenda urbana, em especial a questão


ambiental e da preservação do patrimônio histórico e cultural, além da
moradia, indicando a necessidade de novas práticas na gestão das
cidades;

 os prefeitos voltavam a ser eleitos diretamente e a Constituição Federal de


1988 conferia autonomia aos municípios novas atribuições na divisão de
competências entre os entes federados.

É, sem dúvida, uma fase de transição de um período de decisões excessivamente


centralizadas no campo político e de um urbanismo ainda muito fundamentado na
matriz modernista-funcionalista, para uma fase de reestruturação da democracia e
na qual começam a despontar questionamentos aos pressupostos desse
urbanismo modernista-funcionalista. Tanto pelo pensamento crítico via reforma
urbana, como pelo olhar para experiências internacionais de intervenções no
espaço urbano.

possibilidade de se produzir arquitetura e urbanismo de boa qualidade para população de baixa


renda.
54
Projeto de preservação do patrimônio cultural na área central do Rio de Janeiro que se tornou
um marco não apenas para a própria cidade, mas nacionalmente, pelo ineditismo, pela
continuidade e pelos resultados importantes alcançados. O projeto será analisado logo adiante
neste trabalho.

114
No Rio de Janeiro, na década de 80, não havia propriamente um projeto de
cidade que orientava a política urbana, mas uma multiplicidade de iniciativas não
necessariamente articuladas ou mesmo coerentes, num momento de crise
econômica com significativo impacto social. Mais especificamente sobre o que se
pode, hoje, interpretar como significado da prática de projetos urbanos naquele
período, quatro aspectos destacados a seguir parecem os mais relevantes.

O primeiro é a consolidação da Barra da Tijuca como vetor de expansão urbana


da cidade, com a configuração do padrão de urbanização dispersa, estruturada
em torno de três elementos principais: "auto-estradas; shopping centers e
condomínios fechados" (NUNES-FERREIRA, 2014, p. 10). A ocupação da região
da Barra estava anunciada nos anos 1970, se consolida nos anos 1980 e se
amplia nas décadas seguintes.

Em seguida, outra marca da década de 1980 no Rio de Janeiro é a construção de


uma visão sobre preservação do patrimônio histórico e cultural, em especial da
área central, que valorizava conjuntos urbanos e não apenas os edifícios isolados,
os monumentos. É nesse contexto que se elabora e tem início a implementação
do projeto Corredor Cultural, um dos principais projetos urbanos da cidade nas
três últimas décadas, e seus desdobramentos.

Outro aspecto relevante é a mudança da postura em relação às favelas, que


deixavam de ser alvo de políticas de remoção para se tornarem objeto de ações
visando melhorias de infraestrutura e tentativas de regularização fundiária
(LEITÃO; BARBOZA; DECALAVE, 2014). Embora não se possa falar de uma
política de intervenção em favelas propriamente, a experiência dos anos 1980
seria importante para estruturação do programa Favela Bairro na década
seguinte.

Destaca-se, ainda, a aprovação do Plano Diretor de 1992, que é o instrumento


formal para o qual convergiram debates, embates e muitas das experiências dos
anos 1980. Seria o instrumento que orientaria a política urbana nos anos
seguintes, ou seja, que marcaria um novo ciclo de projetos e ações, embora
fosse, como se verá adiante, um plano pouco diretivo. Entretanto, o ano de 1993
é de ruptura, pois o novo prefeito que assume a gestão municipal busca instituir
um novo modelo de planejamento, menos regulador e mais negocial, menos
normativo e mais de ações.

115
3.2.2. A cidade, definitivamente, avança em direção à Barra

A aprovação do Plano Lúcio Costa55 em 1969 dava as bases iniciais para


ocupação da vasta área da baixada de Jacarepaguá, que se transformaria nas
décadas seguintes no principal vetor de expansão do Rio de Janeiro, alterando
completamente a dinâmica urbana da cidade.

Durante os anos 70, são iniciadas as obras para implementação do sistema viário
que faria a ligação da Barra da Tijuca com a zona sul e o Centro, bem como são
inaugurados os empreendimentos pioneiros que abririam os caminhos para o
novo "eldorado urbano" (LEITÃO, 1999). Alguns desses empreendimentos
pioneiros se transformariam nos símbolos mais reconhecidos do padrão
urbanístico que caracterizaria a ocupação da Barra da Tijuca: "o primeiro
hipermercado (Carrefour,1976); o primeiro condomínio-parque (Nova Ipanema,
1977) e o primeiro shopping center horizontal (Barrashopping, 1981)" (NUNES-
FERREIRA, 2014, p. 82).

Figura 08. Barra da Tijuca: criação de acessos. Com a criação


de acessos à vasta área quase desocupada se abriram os
caminhos para uma expansão urbana intensa nas últimas três
décadas. Fonte: DER/GB; Não identificado.

O complexo sistema de túneis e viadutos entre a Barra da Tijuca e a Gávea foi


finalmente concluído em 1982 (CARVALHO, 2004) com a inauguração do túnel
acústico sob o Conjunto Habitacional Marquês de São Vicente (Minhocão da
Gávea), projetado por Affonso Eduardo Reidy. A esse momento, já havia a
ligação com a zona sul da cidade, mas o novo túnel a tornou mais direta,
representou a conclusão da autoestrada Lagoa-Barra e impulsionou,
definitivamente, o movimento da cidade em direção à sua nova área de expansão.

55
"Plano Piloto para urbanização da baixada compreendida entre a Barra da Tijuca, o Pontal de
Sernambetiba e Jacarepaguá" elaborado por Lucio Costa.

116
Numa época em que a qualidade da produção arquitetônica da cidade conhecia
decadência notável56, a porta de entrada para o novo bairro à beira mar era
aberta através (literalmente) de um dos marcos da arquitetura moderna carioca,
desfigurando-o e prenunciando o que viria para frente. O estado implantava a
infraestrutura viária necessária para que a imensa área até então quase intocada
fosse apropriada pelo mercado imobiliário. A criação, com recursos públicos, de
condições de acessibilidade à área que ficara resguardada pelas montanhas que
a separavam da cidade, transformava a região da Barra em negócio
potencialmente lucrativo para a indústria da construção civil.

No ano anterior, era aprovado o Decreto 3046/81, que consolidou as instruções


normativas que orientavam a ocupação da área objeto do Plano Lucio Costa e
definiu mudanças de parâmetros urbanísticos que permitiriam maior
aproveitamento dos imóveis, ainda que contrariando diretrizes urbanísticas do
plano original. Assim, no início dos anos 80, a Barra já tinha seus primeiros
grandes empreendimentos lançados, uma legislação consolidada e adaptada às
expectativas do mercado imobiliário e completada a ligação viária com a zona sul.
Eram as condições necessárias para o primeiro boom imobiliário da região.

Embora fossem coisas aparentemente independentes, a política de preservação


na área central do Rio de Janeiro que se esboçava também no início dos anos 80,
em alguma medida, parece ter sido favorecida pelo interesse do mercado
imobiliário mais voltado para o promissor futuro da nova área de expansão
urbana, cujo próprio plano urbanístico de Lucio Costa previa ali a implantação do
novo "Centro Metropolitano". Comentando sobre resistências ao projeto do
Corredor Cultural, Augusto Ivan de Freitas Pinheiro, um de seus principais
formuladores, lembra que foram fortes, "mas não do setor imobiliário", que se
deslocava do Centro em direção a Botafogo e Barra57.

Por outro lado, desde essa época e mais claramente a partir dos anos 90, uma
contradição se estabeleceu em relação a prática de projetos urbanos na cidade
do Rio de Janeiro: enquanto a área central passaria a ser objeto de uma série de

56
Não à toa, o célebre Tom Jobim fazia, nessa época, a paródia de uma música que originalmente
cantava a bucólica Ipanema de meados do século XX para lamentar que "(...) Minha janela não
passa de um quadrado / A gente só vê Sergio Doutorado / Onde antes se via o Redentor (...)". A
construtora Sérgio Dourado era bastante atuante na cidade nos anos 70 e 80 e se caracterizava
pela produção em larga escala, baseada na reprodução de um padrão de construções, que não
valorizava o projeto arquitetônico.
57
Em entrevista publicada em: CAPÍTULOS da memória do urbanismo carioca: depoimentos ao
CPDOC/FGV/Américo Freire e Lúcia Lippi Oliveira, organizadores. Rio de Janeiro: Folha Seca,
2002. 232p. il.

117
projetos que, de diferentes modos, se apresentavam como alternativas para sua
revitalização urbana58, a região da Barra da Tijuca continuaria sendo beneficiada
por sucessivos investimentos públicos e mantendo-se, ainda hoje, como a área de
atuação privilegiada do mercado imobiliário formal.

3.2.2. O Corredor Cultural na área central do Rio de Janeiro

Enquanto a Barra da Tijuca se consolidava a partir de um plano original de Lucio


Costa estruturado segundo os princípios modernistas estabelecidos na Carta de
Atenas e baseado na forma tradicional de produção do espaço urbano -
realização de obras públicas (sobretudo viárias) e sucessivas adaptações da
legislação urbanística para atendimento de demandas do mercado imobiliário - o
projeto denominado "Corredor Cultural" despontava como experiência inovadora
nas práticas do urbanismo no Rio de Janeiro.

A partir de trabalhos que vinham sendo desenvolvidos desde 1979, o "Corredor


Cultural" é finalmente instituído em 1984, com a aprovação da lei municipal
506/84. A nova lei estabeleceu uma grande zona de preservação ambiental e
paisagística no Centro do Rio de Janeiro e "as condições de preservação,
reconstituição e renovação das edificações, bem como de revitalização de usos e
espaços físicos (...)".

Figura 09. Centro do Rio e perímetros do Corredor Cultural.


Grande parte do Centro do Rio foi protegida pela lei do Corredor
Cultural. Fonte: Instituto Municipal de Arte e Cultura, 1989.

58
Adota-se o termo revitalização urbana como um termo genérico, que indica a realização de
intervenções urbanas visando à transformação de uma determinada área já construída. O
conteúdo ideológico desse termo, assim como de outros de sentido mais ou menos similar
(regeneração urbana, reabilitação urbana e outros "re") não está propriamente em questão.

118
O caráter pioneiro da experiência do Corredor Cultural, como ação concreta em
oposição à lógica do urbanismo funcionalista, faz dela um marco a partir do qual
se pode referenciar a prática de projetos urbanos no Rio de Janeiro. Do ponto de
vista conceitual, o projeto introduz no contexto carioca, e mesmo brasileiro, a
noção de preservação de conjuntos construídos não pelo valor estilístico-
arquitetônico de obras exemplares, mas pelas ambiências que configuram e pela
importância histórica para as diferentes formas de expressão cultural.

Ao atribuir valor a determinados conjuntos urbanos, o Corredor Cultural


estabelece uma mudança de paradigma importante, pois introduziu uma visão
sobre a área central oposta à de demolição em massa para abertura de vias e/ou
construção de arranha-céus, tal como previam os projetos urbanísticos das
décadas anteriores para o Centro da Cidade.

Mas Pinheiro (2002) observa que tanto a legislação quanto projetos que existiam
para a área central eram tão radicais que, paradoxalmente, acabaram por garantir
a preservação de certos conjuntos urbanos, pois eram, na verdade, irrealizáveis.
Dessa forma, pode se dizer que, de algum modo, legislação e projetos que sequer
consideravam o valor histórico e cultural da área central, deram viabilidade a uma
política dirigida a espaços que haviam sobrevivido às grandes transformações
urbanas do século XX. Pinheiro explica que:

(...) Se, por um lado, ela [a legislação] liberava o gabarito das edificações, por
outro, os PAs, isto é, os Planos de Alinhamento, eram tão absurdos, alargavam
tanto as ruas, que o que sobrava dos lotes não era edificável.

(...) Ao propor um plano desse tipo [avenida Norte-Sul, projetada por Reidy, que
atravessava o Centro], o próprio governo congelou a área, pois é muito difícil
vender um imóvel ameaçado de desapropriação. (PINHEIRO, 2002. p. 205).

O autor menciona ainda o fato de muitos imóveis pertencerem a Ordens


Religiosas também como impeditivo à renovação da área central, pois "muitos
deles foram doados com cláusula de inalienabilidade". Seja pela megalomania
irrealizável de grandes projetos, seja por eventuais restrições a se transacionar
imóveis, seja pela importante presença estatal da cidade que foi capital federal
até 1960, seja por razões bem particulares do mercado imobiliário carioca, é
interessante observar que o Centro do Rio, de forma peculiar, se renovou ao
longo do século sempre em torno da própria Avenida Rio Branco, que no início
dos anos 80, com menos de cem anos, "já estava na quarta geração de prédios".

119
Paralelamente, setores da cultura, da imprensa e a classe dos arquitetos, por
meio do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), reivindicavam a preservação do
centro histórico, fortalecendo o trabalho desenvolvido por técnicos da Prefeitura.
Ao mesmo tempo, o trabalho era legitimado e instigado pela Câmara Técnica
criada para o Corredor Cultural, que reunia personalidades reconhecidas da área
da cultura e que não pertenciam aos quadros da Prefeitura.

Esse grupo, ao mesmo tempo que às vezes dava as opiniões mais


desconcertantes possíveis, trouxe para os técnicos da prefeitura uma outra
maneira de ver a cidade, mais poética, menos comprometida com os clichês do
urbanismo; não via apenas o projeto, de forma mecânica, mas olhava a cidade
como um espaço simbólico, da memória, da identidade. Acho que aí o trabalho
começou a se enriquecer bastante. Para a prefeitura, foi uma maravilha, porque
esse grupo deu uma legitimidade extraordinária ao Corredor Cultural. (PINHEIRO,
2002. p. 209).

O Corredor Cultural não se caracterizaria apenas pela proteção legal de um


conjunto urbano e pela fixação de parâmetros construtivos visando à preservação
do ambiente construído. Seu processo de implementação envolveu estratégias
também inovadoras de gestão, o que configura um dos elementos de destaque do
projeto. Além de observar uma legislação especial que, pode se dizer, se
sobrepõe a legislação geral da cidade, a atuação do Corredor Cultural envolveu
negociações com proprietários de imóveis para incentivá-los a recuperar antigos
sobrados segundo critérios técnicos para valorização da arquitetura e da
qualidade urbana; intervenções promovidas pelo poder público no espaço urbano;
transformação de algumas ruas em ruas de pedestres; realização de eventos e
outras formas de promover o aproveitamento da área central. E ao preservar a
tipologia dos sobrados, o Corredor Cultural favorecia e fomentava também a
mistura de usos, incluindo pequenos comércios e garantindo a permanência da
função residencial na área central.

Figura 10. Corredor Cultural. Casario na área do Corredor


Cultural e caderno de orientações técnicas para intervenções de
reforma ou construção nas áreas preservadas. Fonte: Henrique
Barandier, 2015; Instituto Municipal de Arte e Cultura, 1989.

120
Estando ainda hoje em vigência, pode se dizer que o Corredor Cultural teve
impactos bastante imediatos, nos anos 80 e 90, mas também outros que vêm se
configurando ao longo do tempo. A efervescência atual da Lapa59, por exemplo, é
resultado também dessa ação iniciada já há cerca de três décadas, que ora
permitiu o surgimento de iniciativas empreendedoras de grupos sociais, artísticos
etc., ora ensejou novas ações governamentais. Não é o caso aqui de discutir ou
avaliar a gigantesca transformação ocorrida na Lapa nos últimos cerca de 15
anos e eventuais processos decorrentes, tais como elitização de espaços e,
possivelmente, de “gentrificação”. Interessa destacar que se trata de um
fenômeno impressionante cujas dimensões provavelmente não podiam ser
sonhadas, lá na década de 80, pelos precursores do Corredor Cultural, mas cujas
raízes estão justamente na compreensão de novos papéis para área central que
não são incompatíveis, pelo contrário, com as atividades de um centro de
negócios.

A partir do Corredor Cultural e outras iniciativas, como o Projeto de Estruturação


Urbana (PEU) do bairro da Urca (1978), a ideia de preservação de conjuntos
urbanos pela delimitação de áreas a serem protegidas e objeto de ações
coordenadas visando à preservação e valorização do ambiente construído é
adotada em outros locais. Tanto na própria área central (Projeto SAGAS, na área
portuária; Cidade Nova e Catumbi; Cruz Vermelha, além de outras mais recentes)
como em outros bairros (Santa Teresa; Bairro Peixoto e muitos outros). Esse
movimento levou à incorporação do tema no Plano Diretor de 1992, que
estruturou a política de preservação do patrimônio histórico da cidade em torno de
um instrumento principal: a Área de Proteção do Ambiente Cultural (APAC)60.

Embora a experiência emblemática do Corredor Cultural fosse muito além de uma


simples mudança da legislação, é importante observar que a sua
institucionalização se dá exatamente pela construção de um marco legal que seria
a referência para estruturação de uma política mais ampla de preservação, a
partir da utilização de um novo instrumento normativo. A década de 1980 era, de
fato, um período de reforma do Estado brasileiro na transição para a democracia

59
A Lapa é uma área do Centro da Cidade de tradição noturna, que ao longo de décadas
conheceu períodos de altos e baixos. Nos anos 80 e 90, a marca da noite da Lapa era a
diversidade social e cultural. Ao longo do dia, se fortalecia como alternativa de localização
comercial próxima ao centro e, claro, muito mais barata.
60
O Plano Diretor de 1992 definia Área de Proteção do Ambiente Cultural – APAC como sendo
área de domínio público ou privado “que apresenta relevante interesse cultural e características
paisagísticas notáveis, cuja ocupação deve ser compatível com a valorização e proteção da sua
paisagem e do seu ambiente urbano e com a preservação e recuperação de seus conjuntos
urbanos”.

121
e era nessa perspectiva reformadora que se concebia a prática de projetos
urbanos, ainda que esse termo nem mesmo fosse utilizado.

Se o Corredor Cultural é o exemplo de projeto urbano mais expressivo nesse


período, algumas intervenções urbanas realizadas na virada para os anos 1990,
inclusive na própria área do Corredor Cultural, podem ser consideradas como
precedentes da política de projetos que seria desenvolvida nos anos seguintes, já
indicando outro tipo de projeto urbano que prevaleceria, fortemente baseado no
desenho urbano e na remodelação de espaços públicos. Entre elas, merecem
destaque as reurbanizações do Largo da Carioca (1990) e do Largo da Lapa
(1991) e a implantação de ruas de pedestres (ruas Uruguaiana, Rosário, Ouvidor,
entre outras - 1990/1991), todas na área central. A mais relevante nesse sentido,
entretanto, seria a reurbanização da orla da zona sul, com o projeto Rio-Orla, cujo
projeto foi escolhido por concurso público promovido pelo IAB, em 1990.

3.2.3. Ações em favelas - mudança de postura

Outra mudança de postura significativa observada na década de 80 se refere à


ação pública em favelas, quando se torna predominante a visão de que essas
deveriam ser urbanizadas e não removidas. Os anos de arbítrio das décadas de
1960 e 1970 haviam sido marcados por uma política forte de erradicação de
favelas na cidade do Rio de Janeiro, que, no entanto, foi iniciada antes mesmo do
Golpe de 1964, com o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda.

Até 1965, a Cohab tinha construído os conjuntos Vila Kennedy, Vila Aliança e Vila
Esperança, situados na periferia da cidade, com o objetivo de abrigar as famílias
removidas das favelas. O processo de remoção causou grande repercussão e
resistência da população favelada, embora tenha contado com apoio das camadas
médias e do setor imobiliários, diretamente beneficiado por algumas remoções.
(CARDOSO, 2007, p. 224-225).

As favelas se consolidaram no cenário carioca na primeira metade do século XX,


apesar da ameaça permanente de remoção e de por muito tempo serem
consideradas como um tipo de ocupação de caráter transitório. Desde o Plano
Agache (1929) as orientações de remoção das favelas faziam parte dos planos e
normas urbanísticas cariocas. Mas como explica Brum (2012), é o contexto
político e econômico dos anos 60 que possibilita a efetiva implementação da
política de remoções.

122
Na década de 1960, a política de segregação espacial da cidade promovida pelos
governos Federal e da Guanabara tomou proporções inéditas, com a remoção de
favelados das áreas centrais da cidade, particularmente na valorizada Zona Sul, e
a consequente transferência desses para terrenos vazios na periferia, a algumas
dezenas de quilômetros do centro da cidade e de seus antigos empregos.

(...) a partir de 1969, no contexto ditatorial, a remoção, ameaça sempre presente


na vida das favelas, pôde ser executada com força total, garantida por uma
repressão nunca vista antes. O poder do voto, que anteriormente havia sido
utilizado pelos favelados através de diversas estratégias de sobrevivência, estava
bastante enfraquecido, e os favelados veriam drasticamente reduzidas suas
margens de manobra para se contraporem aos interesses envolvidos na
erradicação das favelas.

(...)

A centralização política e administrativa do período da ditadura, por sua vez,


traduziu-se numa maior disponibilidade de recursos técnicos e financeiros,
propiciando as condições para a execução do propósito de ordenar o território
urbano numa escala jamais vista. (BRUM, 2012. p. 358-359).

Sobre o mesmo tema, Santos (2009) trata da tolerância das favelas na cidade
durante décadas - garantindo mão de obra barata perto do local de trabalho - e
das razões que levaram à implementação da política de remoções iniciada nos
anos 1960. Tanto a omissão em relação à formação desses grandes
assentamentos populares como a violência social e simbólica das remoções são
ilustrativas da dimensão estrutural da negligência urbanística que atravessa a
história da cidade do Rio de Janeiro.

Ninguém deixava os favelados onde estavam porque gostasse deles, ou porque


achasse que as oportunidades de uso do espaço urbano (o que inclui muitos mais
usos do que o da moradia, sendo o primeiro deles o uso para o trabalho)
devessem ser iguais para todos. As favelas, apesar de sempre muito ameaçadas,
foram aceitas durante algum tempo porque eram úteis e porque não havia
condições de mexer com elas. Por “condições” entendam-se força política (na
época, o populismo contava) e força econômica (ninguém sabia como criar os
enormes recursos financeiros necessários para resolver o problema).

Lá pelo início dos anos 60, as condições concretas vão mudar. As pressões do
Capital vão se fazer sentir de forma crescente. As favelas não estão mais nas
desvalorizadas entrelinhas urbanas. A pequena capacidade de expansão dos
investimentos urbanísticos na cidade vai obrigar a um superuso dos espaços que
já concentram as melhores condições. Neste quadro, as favelas perdem sua
funcionalidade: os terrenos que ocupam passam a valer demais para o uso que
têm. São agora cobiçados para a expansão das atividades produtivas, ou para

123
serem comercializados para provimento de moradias das classes mais abastadas,
ou para desenvolvimento de equipamentos e infraestrutura em áreas muito
valorizadas e já congestionadas. (SANTOS, 2009b: p.11).

Estima-se que nesse período cerca de 140.000 pessoas, de cerca de 80 favelas,


algo próximo à metade do total de favelas no início da década de 1960, tenham
sido removidas entre 1962 e 1974 (VALLADARES, 1978). Valladares mostra,
entretanto, que entre 1970 e 1974, apesar do programa de remoções tanto o
número de favelas quanto o de habitantes em favelas aumentaram
significativamente. Diz a autora:

Se nos doze anos considerados (1962 a 1974) o programa de remoção causou


grande impacto, chegando a erradicar um número considerável de favelas,
inclusive algumas das mais importantes, a favela, no entanto, persistiu em se
afirmar no espaço urbano.

Dados recentes mostram os índices de crescimento das favelas remanescentes e


um número espantoso de novas favelas surgidas em espaços antes vazios.
(VALLADARES, 1978. p.43).

A liberação de terrenos em áreas valorizadas da cidade, o drama social da


remoção, o desastre urbanístico dos grandes conjuntos habitacionais periféricos e
a incapacidade de se fazer frente ao crescimento da informalidade urbana são
provavelmente os impactos mais importantes da "era das remoções".

Em meio a uma política radical, a experiência - isolada e de resistência - de


urbanização da favela de Brás de Pina em 1968 é o marco do pensamento
urbanístico e social que se opunha às remoções, preconizando a integração dos
moradores de favelas à cidade e sua participação na formulação de projetos de
urbanização das comunidades. À época, era também a grande referência para o
movimento social de favelas na luta contra remoções (LEITÃO; BARBOZA;
DECALAVE, 2014).

No final dos anos 70, já no período de abertura política "lenta, gradual e segura",
o desgastado governo federal retoma a ideia de urbanização de favelas, diante da
fracassada Política Nacional de Habitação, incapaz de "ampliar a oferta de
unidades habitacionais de modo a atender a demanda das populações de baixa
renda na forma, no ritmo e na escala que se faziam necessários" (IBAM, 2002,
p.7).

124
Em 1979, o BNH cria o PROMORAR, programa que realizaria ações de
urbanização de favelas e que financiaria o Projeto Rio (1979), na favela da Maré,
localizada junto às margens da Baía da Guanabara. Ainda que possa ter sido
motivado muito mais pela intenção de "reconquistar o apoio dos favelados ao
Regime Militar, que sofria enormes críticas quanto à sua política social"
(GONÇALVES, s/d, p.12), o projeto representa uma ação importante, num
momento em que se iniciava o processo de redemocratização que descortinaria
um novo ambiente político para se pensar a ação em favelas e as questões
sociais de modo geral. No inícios dos anos 80, como destacam Leitão, Barboza e
Delecave "observa-se um novo discurso político, que considera necessário
resgatar a dívida social existente junto às comunidades faveladas" (LEITÃO;
BARBOZA; DECALAVE, 2014, p.3).

Com a eleição do Governador Leonel Brizola em 1982, a diretriz contrária à


política de remoções se consolida no Rio de Janeiro. O governo do estado lança o
programa "Cada Família um Lote" que apesar do fracasso em relação às suas
próprias metas, refutava explicitamente a ideia de remoção como alternativa à
questão das favelas. Além de prever a urbanização de alguns assentamentos,
enfatizava a regularização fundiária. De acordo com Compans (2003), o programa

tinha como objetivo distribuir um milhão de títulos de propriedade. Porém,


fracassou enormemente, ao ter conseguido entregar apenas 32.817 mil títulos em
todo o Estado. Do total previsto, 400 mil títulos deveriam corresponder à
regularização de lotes em favelas, que seriam urbanizadas por etapas até se
transformarem em bairros populares. Ao final de 1986, somente 13.604 destes
títulos foram entregues nas 15 favelas beneficiadas pelo Programa, todas na
capital. (COMPANS, 2003, p. 46)

Antes mesmo do "Cada Família um Lote", já se estruturava na Prefeitura do Rio


de Janeiro outro programa de intervenção em favelas que se tornaria mais
relevante ao longo dos anos 80. O programa denominado "Projeto Mutirão" seria
responsável pela condução de ações em diversas favelas da cidade, nem sempre
abrangentes, mas que apontavam na direção da urbanização como orientação
política. Originalmente, como explicam Leitão, Barboza e Delecave "o objetivo era
a promover a extensão de serviços públicos a comunidades faveladas", com foco
na implantação de infraestrutrua básica e construção de creches. Num primeiro
momento com maior ênfase na participação comunitária e posteriormente, com
redução da participação, mas com mais recursos e mais capacidade técnica. A
partir da segunda metade dos anos 80, o programa "passou a ter três vertentes:
Obras, Educação Sanitária e Reflorestamento" (LEITÃO; BARBOZA; DECALAVE,

125
2014). As ações de reflorestamento tornaram-se uma marca importante do
programa, que já na final do década começa a dar lugar a outras iniciativas.

Independentemente de resultados alcançados pelos programas realizados, os


anos 80 marcam uma mudança de postura das políticas públicas em relação às
favelas, tanto no Rio de Janeiro, como em diversas outras cidades. A Constituição
Federal de 1988 reflete esse movimento ao incorporar a questão da regularização
fundiária no seu capítulo dedicado à política urbana. O texto constitucional
compreende importantes dispositivos, expressos no art. 183, que facilitam o
exercício da usucapião urbana em áreas ocupadas por famílias de baixa renda.

Tal como acontecia em relação ao tema da área central, os anos 80 são o


momento em que técnicos municipais se engajam na construção de novas
percepções do problema das favelas, atuando in loco, e esboçando novas formas
de ação. Também de forma similar ao que acontecia no campo da preservação do
patrimônio histórico, as experiências em favelas dos anos 80 levaram à inclusão
no Plano Diretor de 1992 de uma figura jurídica-urbanística que seria fundamental
para a implementação de programas mais amplos de urbanização e regularização
de assentamentos de baixa renda: as Áreas de Especial Interesse Social (AEIS).

3.2.4. O fim do ciclo dos anos 80: o Plano Diretor de 1992

A Constituição Federal de 1988 alçou o Município à condição de ente federativo


autônomo, ao tempo que estabeleceu uma série de competências para as
municipalidades, dentre as quais a de "promover, no que couber, adequado
ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do
parcelamento e da ocupação do solo urbano" (art. 30). Em relação aos assuntos
urbanos, a Constituição reafirma o papel essencial da esfera municipal, indica a
necessidade dos municípios disporem de instrumentos de planejamento e
incorporarem as noções de função social da cidade e da propriedade urbana.

Os anos seguintes à promulgação da Constituição deram continuidade à


reorganização institucional do país de acordo com a nova Carta Magna,
envolvendo, por parte dos municípios a elaboração de suas Leis Orgânicas e para
muitos também a elaboração ou revisão do plano diretor, obrigatório para cidades

126
com mais de 20.000 habitantes61. De acordo com a Constituição Federal de 1988,
o plano diretor é entendido como "instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana".

Logo após a aprovação da Constituição Federal, vários municípios, notadamente


os maiores, iniciaram os processos de elaboração de seus planos diretores,
buscando incorporar nesses instrumentos a agenda da reforma urbana. No Rio de
Janeiro, o plano aprovado em 1992, apesar de seu caráter genérico em relação
ao direcionamento do desenvolvimento urbano, incorporava alguns dispositivos
que refletiam os debates dos anos 1980 e antecipavam conteúdos que figurariam
no Estatuto da Cidade62.

Trata-se de um instrumento formulado na concepção do planejamento regulador,


que buscava, na revisão do ordenamento jurídico, estabelecer as bases para o
desenvolvimento urbano. Nesse sentido, a principal inovação, mas que jamais foi
aplicada na cidade do Rio de Janeiro, foi a regulamentação do "solo criado", tal
como enfatizado no capítulo anterior.

No processo de elaboração do plano diretor do Rio de Janeiro de 1992, o solo


criado foi objeto de muitos debates que levaram à sua inclusão no texto legal.
Adotou-se a forma mais objetiva de aplicação do conceito: coeficiente básico igual
a um em toda a cidade, conforme previa o artigo 23:

Art. 23 - É fixado para todo o Município o coeficiente hum de aproveitamento do


terreno, que permite ao proprietário construir o equivalente à metragem quadrada
do terreno, sem qualquer pagamento relativo a criação de solo.

Pelo disposto nos artigos subsequentes, a construção acima de uma vez a área
do terreno poderia ser autorizada "mediante pagamento, observado o Índice de
Aproveitamento do Terreno - IAT e os demais parâmetros construtivos".

61
O artigo 182 da Constituição estabelece que: "O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal,
obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana". Tal dispositivo é controverso, uma vez que não fazia
parte das demandas da reforma urbana incorporadas à Constituição. Para vários autores, é visto
como artifício condicionar a um instrumento esvaziado pelas experiências anteriores e de caráter
essencialmente tecnocrático até então, a implementação dos dispositivos que buscavam interferir
na dinâmica urbana na perspectiva do direito à cidade. Ainda assim, os setores ligados à reforma
urbana passaram a ter a elaboração desse instrumento como bandeira. Porém, num esforço de
transformar esse instrumento de caráter estritamente técnico em instrumento da gestão
democrática da cidade, que regulamentaria em cada município os mecanismos para
implementação da reforma urbana de acordo com a realidade local.
62
Cabe mencionar que o Projeto de Lei 181/1989, apresentado pelo Senador Pompeu de Souza,
tramitou por 12 anos no Congresso Nacional até ser aprovado em 2001 como Estatuto da Cidade.

127
Complementando as condições de aplicação do solo criado, a lei definia a fórmula
de cálculo da contrapartida e que os recursos auferidos seriam aplicados no
Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano e destinado à "execução de
projetos de construção de habitações para a população de baixa renda e de
implantação de sistema de esgotamento sanitário nas comunidades por esta
ocupadas."

O solo criado, na agenda da reforma urbana, era considerado, provavelmente, o


principal mecanismo formulado para interferir e regular o mercado fundiário
urbano, por meio da

recuperação pública das chamadas mais-valias fundiárias, ou seja, a recuperação


da valorização da terra que ocorre sem a intervenção de seu proprietário, e que,
sem a instituição de mecanismo para que retorne à coletividade, acabaria por ser
apropriada de forma privada pelos proprietários dos terrenos beneficiados.
(FURTADO; BIASOTTO; MALERONKA, 2012. p.22)

Apesar de incluído e inteiramente regulamentado no Plano Diretor de 1992, o solo


criado não foi aplicado na cidade do Rio de Janeiro. A decisão política de não
implementar o instrumento era justificada por um debate jurídico sobre a
"competência municipal [para legislar sobre o assunto], na ausência de uma
legislação federal que lhe desse apoio, questão ultrapassada da regulamentação
da Outorga [Onerosa do Direito de Construir] pelo Estatuto da Cidade (REZENDE
et al, 2009. p.60). Confirmando a natureza política da decisão de não
implementação, mesmo após a aprovação do Estatuto da Cidade, o solo criado
continuou sem aplicação no Rio de Janeiro.

O plano trazia ainda outros instrumentos que, juntamente com o solo criado,
buscavam estabelecer novas formas de regulação urbana que não apenas o
zoneamento tradicional: operação interligada; urbanização consorciada; e imposto
progressivo sobre a propriedade territorial urbana. O único a ser efetivamente
aplicado, durante um determinado período, foi a operação interligada, que previa
a possibilidade de alteração de parâmetros urbanísticos para viabilizar
determinados projetos mediante pagamento de contrapartida pelo interessado. O
instrumento foi objeto de críticas de diversas naturezas, tanto em relação ao
impacto urbanístico, como aos valores de contrapartida ou aos procedimentos de
aprovação. Por outro lado, Nacif Xavier (2011) aponta que o instrumento era uma
possibilidade, ainda que limitada, para lidar com problemas do cotidiano de
aplicação de uma legislação urbanística carregada, numa época de

128
transformações constantes. Entretanto, sua aplicação acabou se tornando
controvertida.

Apesar de lançar alguns instrumentos que se aplicados, talvez pudessem ter


promovido alterações na dinâmica urbana da cidade, é forçoso notar a frágil visão
territorial do plano diretor de 1992 e a falta de propostas estruturantes para a
cidade, para orientar o desenvolvimento urbano. O artigo 45, primeiro do capítulo
que trata "da ocupação urbana", é bem ilustrativo dessa questão. Como se pode
ver a seguir, diz, no final das contas, que a ocupação urbana se dará para todos
os lados!

Art. 45 - A ocupação urbana do Município consolidará os grandes vetores de


crescimento do centro da Cidade para a Zona Norte - Área de Planejamento 3,
para a Zona Oeste - Área de Planejamento 5 e para a região de Jacarepaguá, na
Área de Planejamento 4, bem como os vetores que se irradiam a partir de centros
de comércio e serviços.

É curioso, entretanto, não haver referência explícita à região Barra da Tijuca,


objeto do Plano Lucio Costa, do final da década de 1960. Como mostrado
anteriormente, durante a década de 1980 essa região se consolidou como o
principal vetor de expansão do mercado imobiliário formal da cidade, justamente
após a conclusão das obras de ligação viária com a zona sul. Na época de
elaboração do plano diretor, o movimento para a Barra já era muito claro63 e o
Plano Lucio Costa tinha como uma de suas ideias fortes a instalação ali de um
novo centro metropolitano. Chega a ser surpreendente que o plano diretor não
trate dessa questão e não se posicione claramente em relação a ela.

O que se pode depreender da leitura do plano é que ele constata determinados


padrões urbanísticos e tendências de expansão da cidade e os consagra por meio
das diretrizes e da definição de IATs por bairro. Nesse sentido, é mais um
diagnóstico que verdadeiramente um plano para orientar o desenvolvimento
urbano. O que talvez explique a neutralidade em relação à região da Barra da
Tijuca, pois o plano de ocupação daquela área já estava dado.

Por um lado o plano diretor de 1992 incorpora princípios e instrumentos alinhados


à agenda da reforma urbana, o que pode ser considerado como seus principais
avanços. Destaca-se, nessa perspectiva, que o plano se posiciona claramente

63
Em 1988 houve até mesmo a realização de um plebiscito sobre a emancipação da Barra da
Tijuca, proposta que acabou derrotada, permanecendo essa região no Município do Rio de
Janeiro.

129
contra a remoção de favelas e por uma política de regularização e urbanização
dos assentamentos precários, o que ratifica, em lei, a postura sobre o tema
construída na década de 1980, oposta à política de remoções dos anos 1960 e
70. E ainda regulamenta a aplicação do solo criado no município, bem como
prevê a utilização do IPTU progressivo. Dois instrumentos que sinalizavam para a
necessidade de adoção de medidas de combate à especulação imobiliária, mas
que acabariam não sendo implementados.

E com base nas ações em favelas da década de 1980 e de preservação cultural


no Centro da cidade, o plano cria duas figuras jurídicas importantes: a Área de
Especial Interesse Social (AEIS) e Área de Proteção do Ambiente Cultural
(APAC). A primeira daria a base legal para a política de urbanização de favelas e
regularização de loteamentos clandestinos que seria desenvolvida na década de
1990. A segunda seria importante para as ações de proteção de conjuntos
urbanos de interesse histórico e cultural, não apenas na área central, mas em
toda cidade.

Em síntese, apesar de avanços dignos de nota, pode-se dizer que o plano diretor
de 1992 é omisso quanto ao projeto de cidade a ser implementado. Não define
ações estruturantes para favorecer ou inibir tendências do processo de
urbanização, bem como não faz qualquer referência a uma política de projetos
urbanos que mais claramente pudesse orientar investimentos na cidade. Sua
lógica segue sendo essencialmente a de regulação pela legislação urbanística e
prevê que normas específicas para conjuntos de bairros seriam elaboradas
posteriormente, de modo a detalhar a legislação do geral para o particular, por
meio dos Projetos de Estruturação Urbana (PEUs), figura que havia sido
introduzida na legislação carioca pelo Plano Urbanístico Básico (PUB-Rio) da
década de 70. Aposta na revisão da legislação urbanística por partes e ao longo
do tempo, o que só resultaria em mais sobreposição de normas, sem que se
rompesse com a ordem funcionalista vigente à época e que perdura até hoje.

3.3. Segunda geração de projetos urbanos (1993 a 2000): urbanismo de


projetos

O que identificamos aqui como a segunda geração de projetos urbanos no Rio de


Janeiro tem início em 1993 e se estende até o ano 2000, compreendendo as
gestões dos prefeitos César Maia (1993-1996) e Luiz Paulo Conde (1997-2000),
que havia sido secretário municipal de urbanismo na gestão de Maia e o

130
candidato oficial na eleição de 1996. Ao longo dos anos 1990, esses dois
personagens são os porta-vozes de um novo discurso sobre a cidade que
preconizava: o combate à desordem urbana; a inserção da cidade no circuito das
"cidades globais"; a planificação estratégica; as parceiras público-privadas; a
flexibilização da legislação urbanística.

Ao introduzirem esse novo discurso, indicavam também nova concepção de


planejamento, que rompia com referências do período anterior. Claramente, dois
modelos de planejamento se opunham e passariam a polarizar o debate sobre a
política urbana nos anos 1990 no Rio de Janeiro, o que se reproduziria também
em âmbito nacional. Um que buscava a afirmação de direitos sociais e
preconizava a regulação urbana pelo Estado, por meio da incorporação à
legislação urbanística de mecanismos de intervenção no mercado fundiário
urbano, de combate à especulação imobiliária e de controle social na
implementação da política urbana. E outro que propugnava o caráter negocial do
planejamento64, reivindicando normas urbanísticas flexíveis, menos intervenção
do Estado no funcionamento do mercado e a promoção de projetos urbanos como
instrumento para atração de investidores internacionais e fortalecer a
competitividade das cidades no mercado global.

O economista César Maia, durante sua campanha e antes de assumir o cargo de


Prefeito, dizia que a crise do Rio de Janeiro tinha razões urbanas, ou seja, da
própria cidade, o que seria muito mais importante do que os impactos da
transferência da capital federal para Brasília em 1960. Denunciava a falta de
planejamento urbano e criticava as políticas da década de 1980, classificada por
ele como "indutora do informal", uma vez que "procurava compensar a miséria e a
crise social com a liberação desregrada dos espaço públicos" (MAIA, Jornal do
Brasil: 29/11/92, p.13). Contra esse quadro, defendia o combate à desordem
urbana como ação fundamental, o que buscaria implementar em seus governos
tanto com intervenções físicas no espaço urbano, como com a utilização de forças
policiais. Paralelamente, afirmava que era questão estratégica para a economia
da cidade, a inserção do Rio de Janeiro na rede de "cidades globais" por meio de
investimentos na "indústria da cultura" e transformando-a em "locus preferencial
dos serviços avançados, do terciário superior" (MAIA, Jornal do Brasil: 29/11/92,
p.13).

64
Portas (2000) utiliza a expressão "gerenciamento negocial" para designar um tipo de processo
que na sua opinião deve ser integrado ao planejamento para "orientar a iniciativa e o investimento
privado para áreas de interesse coletivo, que tradicionalmente não lhe caberia assegurar,
oferecendo em troca garantias de edificabilidade, fiscais e outras".

131
O arquiteto Luiz Paulo Conde, renomado profissional, ex-presidente do
Departamento do Rio de Janeiro do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e
Diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (FAU/UFRJ) dizia que diante da "permissividade e do abandono do
espaço público" que reforçavam o "esvaziamento político-econômico" da cidade,
era necessário "agir de imediato" (CONDE: 2003, p.230). Ele era crítico do plano
diretor (e o Rio de Janeiro havia aprovado o seu em 1992, que incorporava, ao
menos parcialmente, reivindicações dos movimentos sociais pela reforma urbana)
como orientador da política urbana, pois considerava esse um instrumento
estático. Agir de imediato significava, então, a intervenção direta no espaço
urbano, a constituição de um "urbanismo de projetos".

No primeiro ano de seu governo (em 1993) César Maia já dava início a três
projetos que seriam marcantes em sua gestão: o projeto Teleporto, na área
central; a Linha Amarela, via expressa de ligação entre Aeroporto Internacional e
Barra da Tijuca, cruzando o subúrbio; e o Projeto Rio Cidade, um programa de
intervenções urbanas nos eixos comerciais de vários bairros da cidade. O quarto
grande programa seria o Favela Bairro, iniciado no ano seguinte e que alcançou
maior impacto e repercussão na gestão do prefeito Luiz Paulo Conde, entre 1997
e 2000.

O projeto Teleporto era, inicialmente, o principal projeto da gestão César Maia.


Era tido como essencial do ponto de vista econômico e estratégico para que a
cidade pudesse almejar a condição de "cidade global", um dos pilares do discurso
que o novo prefeito apresentava para a cidade. A Linha Amarela, na verdade, era
um projeto antigo65, que César Maia decide pela execução (ainda que a
conclusão tenha se dado só 1997, já na administração de Luiz Paulo Conde)
preservando seu caráter rodoviarista e dirigido aos automóveis.

Apesar dos vultuosos recursos investidos tanto no Teleporto, que jamais se


consolidou, quanto na Linha Amarela, os dois programas que acabam por se
tornar os de maior visibilidade do período são, efetivamente, o Rio Cidade e o
Favela Bairro. São os programas que dão, de fato, materialidade ao novo discurso
proposto por César Maia e Luiz Paulo Conde, credenciando o segundo, dada sua

65
Um conjunto de vias estruturantes para a cidade foi proposta no âmbito do Plano Doxiadis, da
década de 1960 e mantido em planos rodoviários posteriores. As vias foram chamadas de linhas
policromáticas, por se cada uma designada por uma cor (Linha Vermelha, Linha Azul, Linha
Marrom, Linha Verde e Linha Amarela).

132
participação decisiva na concepção e implementação dos dois, a suceder o
primeiro no cargo de prefeito66.

Os dois programas - Rio Cidade e Favela Bairro - foram concebidos de forma a


realizar projetos e obras em diversos bairros simultaneamente, o que conferiu à
ação sobre o espaço urbano uma nova dimensão. O desenho urbano, a
compatibilização de infraestruturas e qualificação dos espaços públicos eram os
elementos chave dos projetos urbanos. Para elaboração dos projetos, a mesma
estratégia foi adotada nos dois casos: promoção de concurso público para
seleção de equipes multidisciplinares coordenadas por arquitetos. Se antes, os
principais projetos urbanos tinham a liderança de técnicos municipais, agora os
arquitetos e empresas de arquitetura assumiam esse papel na elaboração das
propostas de intervenção no espaço urbano.

Ao longo da década de 1990, há também uma mudança importante em relação


aos tipos de propostas para a área central. Além de algumas intervenções no
espaço público de maior porte no Centro, como o próprio Rio Cidade da Av. Rio
Branco e a reforma da Praça XV, são propostos diversos projetos para os bairros
pericentrais. Nesses casos, os projetos não se limitavam apenas à proposição de
ações sobre o espaço público ou de recuperação de conjuntos históricos.
Propunham o redesenho de grandes áreas, algumas delas tidas como vazias ou
subutilizadas, com a proposição de novos usos e novos tipologias construtivas.
Embora não tenham sido efetivamente implementados, tais projetos cumpriam
papel importante do ponto de vista do discurso, pois sugeriam novas dinâmicas
para a área central da cidade.

Ainda em 1993, a Prefeitura dava início à elaboração do Plano Estratégico do Rio


de Janeiro, contando com a consultoria de experts catalães (Tubsa - Tecnologias
Urbanas Barcelona S.A., de Jordi Borja) que traria para cá a festejada experiência
de Barcelona, que teve como ponto alto a realização dos Jogos Olímpicos de
1992. A bem sucedida imagem de Barcelona era utilizada como referência para
justificar os diversos projetos em andamento no Rio de Janeiro e que seriam

66
Importante ressaltar que Luiz Paulo Conde não ingressa na gestão de César Maia como homem
forte a ponto de se supor que poderia vir a ser o candidato oficial para a sucessão. Apesar de seu
enorme prestígio profissional, não era uma figura pública reconhecida pelo eleitorado. Mas se
fortalece ao longo do gestão, exatamente por dar o tom do discurso e apresentar resultados na
cidade, e acaba se lançando candidato a prefeito em 1996. Nessa época, vale lembrar, não
vigorava ainda o instituto da reeleição, aprovado apenas em 1997. Ao longo de seu mandato,
Conde rompe politicamente com Maia e os dois acabam se enfrentando na disputa de 2000. A
reeleição, almejada por Conde, já era permitida no país, mas foi César Maia que se saiu vitorioso
e permaneceria no cargo de prefeito por mais dois mandatos, de 2001 a 2008.

133
incorporados - e assim legitimados (COMPANS, 2005) - ao Plano Estratégico,
cujo documento final ficaria pronto em 1995.

Embora o prefeito dissesse, à época, que não se tratava nem de um plano político
nem de um plano de governo, o Plano Estratégico se configurou como documento
de forte conteúdo simbólico, em torno do qual se articulou o empresariado para
estabelecer uma imagem de futuro para o Rio de Janeiro. Mesmo sem ser
aprovado por lei, o Plano Estratégico contribui para o esvaziamento do Plano
Diretor, uma vez que se apresentava como instrumento de planejamento
inovador. Nesse contexto, com a gestão voltada sobretudo para a prática de
projetos, os mecanismos que operam a construção cotidiana da cidade -
legislação urbanística e licenciamento - permaneceram relativamente intocados,
mantendo-se, por trás de um certo glamour das novas intervenções urbanas,
práticas antigas.

3.3.1. Rio Cidade e Favela Bairro

As "grandes vitrines" (BARANDIER, 2003. p.49) do novo discurso sobre a cidade


que pautava a gestão urbana do Rio de Janeiro nos anos 1990 foram os dois
programas que promoveram diversas intervenções urbanísticas simultaneamente
na cidade: o "Rio Cidade", visando à requalificação urbanística de importantes
eixos comerciais; e o "Favela Bairro", dedicado à urbanização de favelas. De
acordo com seus formuladores, o primeiro promovia "a reconstrução do espaço
carioca" e o "resgate da imagem carioca" e outro instituía "um programa de
integração social e urbanística entre as cidades formal e informal" (CONDE, 2003.
p.231; 239).

Os dois programas - Rio Cidade e Favela Bairro - introduziram, à época,


mudanças nas práticas urbanísticas correntes e foram eficazes ao apresentarem
resultados de modo relativamente rápido. Essa capacidade de mexer com a
cidade foi, sem dúvida, determinante para a eleição de Luiz Paulo Conde para o
cargo de prefeito em 1996. Quando analisados no médio ou longo prazo,
entretanto, devem tais programas devem ser circunscritos aos seus limites.

Uma das mudanças que eles promoveram se refere à participação dos arquitetos
não funcionários públicos na concepção e desenvolvimento dos projetos de
intervenção urbana, por meio da terceirização dessa atividade. Instaurava-se um
formato de trabalho novo, tanto para o setor público como para as empresas de

134
arquitetura, o que possibilitou, para a administração municipal, a elaboração de
diversos projetos simultaneamente, questão crucial para o sucesso dos dois
programas. Ao mesmo tempo, se abria um novo mercado para as empresas de
arquitetura junto ao setor público e os arquitetos assumiam um novo
protagonismo na prática de projetos urbanos, contribuindo, também, para maior
visibilidade dos programas.

Nesse contexto, pode se dizer que há uma valorização do projeto. De um lado


como instrumento de ação direta no espaço urbano - e nesse sentido em
contraposição ao urbanismo normativo de caráter mais passivo. Esse aspecto, na
verdade, se torna, possivelmente, uma das questões centrais para o setor de
urbanismo do município, que passa a ter como prioridade os projetos urbanos,
seja no âmbito do Rio Cidade ou de outras ações, como, por exemplo, os projetos
para a área central. Tanto defensores do urbanismo de projetos como seus
críticos, alinhados principalmente no campo da reforma urbana, fomentam a
polarização entre plano, ou melhor, planejamento e projeto como sendo coisas
contraditórias.

De outro lado, o projeto é valorizado como instrumento técnico que deve orientar
a execução das obras. Num país em que a contratação de obras públicas sem
projeto completo (por vezes sem projeto algum) previamente definido é (ainda
hoje) prática corrente, a defesa do projeto tinha também uma dimensão política
relevante e cara à categoria dos arquitetos e urbanistas.

A seleção, por concurso público organizado pelo IAB, de equipes para elaboração
dos projetos é outro aspecto importante na estruturação e implementação inicial
desses programas. No Rio de Janeiro e no resto do Brasil, essa modalidade de
licitação não era comum para contratação de projetos de intervenção urbana,
embora houvesse o precedente recente (1990) do concurso para o projeto Rio
Orla, que reconfigurou a orla marítima do Leme ao Pontal (zona sul, Barra da
Tijuca e Recreio dos Bandeirantes).

O concurso para o Rio Cidade (1993) provavelmente terá sido o primeiro certame
dessa natureza que teve vários vencedores simultaneamente. Foram habilitadas
17 equipes para desenvolverem os projetos da primeira fase do programa. Além
dessa particularidade, destaca-se que foi um concurso em que os participantes
deveriam apresentar propostas metodológicas para elaboração de projetos de
intervenção urbana. Era algo diferente do usual, que indicava certa inexperiência
dos arquitetos com o tema (reconfiguração de espaços públicos) e sugeria a ideia

135
de que os projetos propriamente ditos deveriam ser construídos num processo de
trabalho que envolvesse diferentes agentes sociais e por essa razão não
poderiam ser eles próprios objeto do concurso. Curiosamente, entretanto, não é
possível perceber em que medida os projetos executados resultam de
abordagens metodológicas supostamente distintas. Parecem muito mais o
resultado de decisões dos arquitetos, recuperando a velha imagem do "arquiteto-
autor", com suas idiossincrasias e, eventualmente, gestos arquiteturais banais:

(...) Para resgatar essa memória, os arquitetos desenharam, no pavimento da rua,


a rótula dos trilhos com uma rosácea no interior e um grande obelisco iluminado
ao centro. Um pórtico escultural, arqueado sobre as linhas desenhadas no piso,
completa a composição, como que materializando a projeção daquelas no espaço
tridimensional. O conjunto pretendeu, ainda, assinalar os limites do bairro com seu
vizinho Leblon. (IPLANRIO, 1996. p.69).

Figura 11. Projeto Rio Cidade (exemplos). Intervenções no


bairro do Leblon e Campo Grande, coordenados pelos arquitetos
Indio da Costa e Nilton Montarroyos, respectivamente Fonte:
Indio da Costa A.U.D.T (www.indiodacosta.com); IPLANRIO,
1996.

De modo similar, o concurso para o Favela Bairro (1994) também foi de


metodologias e selecionou 15 equipes para desenvolverem o primeiro lote de
projetos do programa, que abrangeu favelas de porte médio (de 500 a 2.500
domicílios) de diferentes tipologias (em encosta, plana, à beira da baía, à margem
de linha de trem etc.).

Para a segunda fase do Rio de Cidade foi realizado novo concurso (1997) que
selecionou, dessa vez, 23 equipes, ainda que nem todos os projetos tenham sido
executados. O concurso foi, novamente, de metodologia, porém as equipes
participantes tinham que apresentar soluções para alguma das áreas previstas no
edital. Nesse momento, o formato se mostrou no mínimo confuso, pois, de fato, a
primeira fase do programa, após 15 projetos executados, já tinha estabelecido a
metodologia (ou pelo menos o escopo dos trabalhos) a ser seguida. O Favela
Bairro, por sua vez, teve continuidade e foi ampliado com viabilização de
empréstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o que permitiu a

136
realização de número muito maior de projetos, mas sem novos concursos. Optou-
se, a partir de então, por selecionar as equipes por processos de licitação mais
convencionais, do tipo "técnica e preço", que normalmente exigiam experiências
anteriores similares, reduzindo, provavelmente, o número de arquitetos/equipes
aptos a serem habilitados.

Além da realização de diversos projetos simultaneamente, outro aspecto


frequentemente ressaltado em relação a esses programas diz respeito à
distribuição espacial das ações. Não estariam restritos às áreas mais nobres da
cidade, atuando também em bairros do subúrbio que não eram beneficiados pelos
investimentos públicos havia muito tempo (MAGALHÃES, 2008. p.211). No caso
do Favela Bairro, considerando que o programa interveio em mais de cem
favelas, seria praticamente impossível ser diferente, uma vez que a maior parte
delas está justamente nos subúrbios. Em relação ao Rio Cidade, de fato, foram
realizadas intervenções em bairros do subúrbio e da parte pobre da zona oeste.
Ainda assim, a primeira fase do programa, entre 1993 e 1996, se caracterizou
pela concentração de ações justamente na zona sul, centro e região da Tijuca,
com abrangência territorial bem menor que subúrbios e zona oeste, mas que
juntos receberam mais da metade dos projetos executados. É nessa fase, com
concentração de investimentos nos bairros mais nobres, que o programa tem
maior repercussão, integrando a estratégia de promoção de uma nova imagem da
cidade. Na segunda fase do programa, entre 1997 e 2000, efetivamente foram
realizadas mais ações no subúrbio e zona oeste, mas ficando em segundo plano
em relação ao Favela Bairro que se tornou o carro-chefe do governo municipal.

O programa Rio Cidade adotou como lema "o urbanismo de volta as ruas"
(IPLANRIO, 1996), buscando "afirmar a importância das ruas para o equilíbrio da
vida social nas cidades e, em consequência, trabalhar para a sua reabilitação".
Apresentava-se como contraposição aos princípios doutrinários do urbanismo
moderno que prevaleceram desde os anos 1940/1950 e pregavam o
desaparecimento da "rua corredor" (LE CORBUSIER, 2000. p.68) e a demolição
do "centro das grandes cidades" (LE CORBUSIER, 2000. p.81) ou seja, da cidade
existente. Contrapunha-se também ao planejamento urbano tradicional, baseado
em planos que teriam a tendência de "tornarem-se um fim em si mesmo". O
programa que privilegiava a ação concreta na cidade teria sido, então, uma
alternativa em que

evitaram-se, assim, o idealismo e a abstração, a megalomania e as soluções


totalizantes, a falta de sintonia com as forças vivas da sociedade e as proposições

137
politicamente inviáveis, as rupturas traumáticas, as grandes "cirurgias" e os altos
custos sociais do "passar a borracha" sobre o existente para a construção do novo
(IPLANRIO, 1996. p.25).

Discursos e práticas, no entanto, não deixam de conter contradições. A maior


delas é um programa concebido, segundo seus próprios formuladores, a partir da
crítica à postura urbanística moderna, não intervir na região da cidade - a da
Barra da Tijuca - que foi, efetivamente, construída segundo um plano urbanístico
modernista. Não há, nesse período dos anos 1990, qualquer intervenção nem
projetual - no espírito de valorização das ruas pregado pelo Rio Cidade - nem
normativa que indicasse mudanças nos padrões de ocupação dessa região ou
que impusesse restrições à tendência de expansão da cidade em sua direção.
Pelo contrário, a grande obra pública dos anos 1990 na cidade do Rio de Janeiro,
que sozinha consumiu mais recursos que todos os projetos da primeira fase do
programa Rio Cidade juntos e, igualmente, mais recursos que todos os projetos
da primeira fase do Programa Favela Bairro, foi a abertura da Linha Amarela,
ligando a Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional67. Tal via é uma legítima
representante do urbanismo rodoviarista, que privilegia o automóvel, e que, em
tese, era combatido pelo programa Rio Cidade e pelo pensamento urbanístico
que se pretendia instaurar com o novo discurso sobre a cidade dos anos 1990. E
não obstante o fato de acabar sendo também utilizada pelos bairros suburbanos
por ela atravessados, favoreceu sobretudo a região da Barra da Tijuca, que na
década seguinte à inauguração da via conheceria seu maior crescimento em
termos absolutos - tanto em relação à população residente quanto ao total de
domicílios construídos, como mostram os números apresentados no capítulo 2.

Do ponto de vista conceitual, o programa Rio Cidade trouxe, com ares de


inovação, noções tais como "metástase urbana", "contaminação positiva",
"acupuntura urbana" (PORTAS, 2000; PINHEIRO MACHADO, 2003; MOREIRA,
2007), disseminadas com a experiência de Barcelona, que justificariam a
estratégia de realização de intervenções pontuais na cidade. Tais noções
estavam associadas à ideia de que "ações localizadas e exemplares" valorizariam
identidades dos lugares e estimulariam novas dinâmicas sociais e econômicas,
bem como atitudes dos próprios usuários pela qualificação do espaço urbano.
Tais desdobramentos, na verdade, foram mínimos, praticamente irrelevantes.

67
De acordo com informação publicada pelo Jornal do Brasil em 11/10/1997, o custo da
construção da Linha Amarela foi de R$348 milhões, ainda que tenha contado com participação,
minoritária, de recursos da empresa vencedora da concessão da via. A primeira fase do programa
Rio Cidade teve orçamento de R$200 milhões (IPLANRIO, 1996) e do Favela Bairro U$300
milhões (PROAP I / BID) que à época correspondia a mais ou menos R$300 milhões.

138
É verdade que as obras realizadas resultaram em espaços públicos, em geral, de
melhor qualidade. Mas apesar de toda a propaganda em torno do Rio Cidade - de
acordo com seus promotores se tratou de "uma inadiável operação de resgate da
avariada imagem carioca: a de eterna Cidade Maravilhosa" (IPLANRIO, 1996.
p.24) - no fundo, tratava-se um programa de intervenções de caráter meramente
local. É possível argumentar que o programa não tinha objetivo de mudar, intervir,
na estrutura da cidade, tendo como meta a qualificação do espaço público, ou
melhor, de alguns espaços públicos e nesse sentido teria sido exitoso. Mas outra
abordagem possível, é que o programa introduz uma lógica de ações
pulverizadas que dão sensação de que a cidade está em plena transformação ao
passo que estruturalmente pouco se está mudando.

O programa Favela Bairro segue a mesma linha discursiva do Rio Cidade,


embora aborde uma temática sobre a qual já havia bastante reflexão teórica e
alguma experiência prática. Esse acúmulo anterior, sem dúvida, foi aproveitado
na construção do programa que se estruturou em torno da ideia de que a
intervenção física na favela seria o motor para sua integração com a cidade
formal. Magalhães68 definiu o Favela Bairro como sendo

"a consolidação de um consenso social no qual se refere à necessidade de


integração das favelas à malha urbana, mediante sua transformação em bairros
populares. A complementação de infra-estruturas, equipamentos e serviços
urbanos é acompanhada, de modo coordenado, de ações que apóiam o
desenvolvimento de atividades que visam à geração de emprego e renda e de
outras voltadas para a atenção à infância, à adolescência e à terceira idade".
(MAGALHÃES, 2002. p.70)69.

Se é exagero dizer que o objetivo de integração favela-bairro tenha sido atingido


nas áreas beneficiadas, é inegável que o programa promoveu melhorias
significativas em quantidade expressiva de favelas da cidade. E essa dimensão
que o programa alcança faz dele uma marca dos anos 1990 e um marco nas
políticas para favelas, não apenas no Rio de Janeiro, mas nacional e
internacionalmente70.

68
Sérgio Magalhães, arquiteto e Secretário Municipal de Habitação nas gestões César Maia e
Conde. Esteve à frente da estruturação da secretaria, a partir de 1994, e sua indicação ao cargo
reforçou politicamente Luiz Paulo Conde, com quem tinha já grande vinculação.
69
De acordo com o autor, o texto original foi apresentado no Seminário Nacional sobre Habitação,
no Rio de Janeiro, em 1996.
70
Ainda que se possa dizer que o financiamento do programa pelo BID tenha sido uma ação do
organismo internacional para demonstrar sua ação na área social, isso não diminui os resultados
do Favela Bairro.

139
Como já descrito, nos anos 1980 se consolida o princípio da não remoção de
favelas, o que representava à época importante conquista da cidadania, num
momento de redemocratização do país. O Favela Bairro ratifica esse princípio
com uma política de urbanização, mesmo sendo bastante limitado quanto à
regularização fundiária.

O plano diretor de 1992 lançou as bases para o "Programa de Urbanização e


Regularização Fundiária das Favelas" como um dos prioritários para a política
habitacional do Município (art. 146). Apesar de diferenças em relação ao indicado
pelo plano diretor (como por exemplo, a participação comunitária como critério
para definição de favelas a serem beneficiadas ou a ênfase na regularização
fundiária) o Favela Bairro concretiza o que havia ali sido previsto.

Seria arriscado especular sobre o que teria sido a política habitacional do


município ou, mais especificamente, o programa de urbanização de favelas, se
não tivesse havido o empréstimo junto ao BID. Num primeiro momento, contando
com recursos municipais, o programa abrangeu 17 favelas, o que até já se podia
considerar algo expressivo em relação a experiências anteriores. Logo em
seguida, em 1995, foi firmado o contrato com o BID para convênio denominado
Programa de Urbanização de Assentamentos Populares do Rio de Janeiro
(PROAP), que possibilitou a expansão do programa, na sua primeira fase, a mais
de 50 favelas. O fato é que recursos foram viabilizados - com endividamento do
município - e a administração municipal teve a sabedoria de concentrar as ações
em favelas, antes dispersas em várias secretarias (obras, desenvolvimento social
e urbanismo) ao constituir uma secretaria municipal de habitação (criada em
1994) que implementou esse e outros programas (CARDOSO; ARAÚJO, 2007).

Além da dimensão assumida pelo Favela Bairro - ampliado em 2000 com PROAP
II - e do envolvimento de empresas de arquitetura terceirizadas para elaboração
dos projetos (e também por causa disso) o programa avançou no entendimento
do conteúdo do projeto urbanístico em favela naquele momento. Ainda que
experiências de urbanização de favelas tenham sido realizadas anteriormente
(Brás de Pina, Projeto Rio, Pavão Pavãozinho etc.) o Favela Bairro consolida o
que a partir dele pode ser considerado como escopo mínimo de projetos desse
tipo. Nesse sentido, destaca-se que o objeto de cada projeto era a favela como
um todo (pelo menos no caso das de médio porte, que eram as atendidas pelo
programa). O plano de intervenções deveria, então, resultar da compreensão da
estrutura da favela, suas diferenças internas e relação com o entorno. E, de outro

140
lado, o projeto urbanístico deveria ser pensado de forma integral, envolvendo
infraestrutura, redução de riscos, espaços públicos, equipamentos comunitários, o
que representava um avanço em relação às ações fragmentadas dos períodos
anteriores que muitas vezes favoreciam à política da "bica d'água"71.

Figura 12. Programa Favela Bairro (exemplos). Projetos para as favelas


Fernão Carrdim (Jorge Mário Jauregui) e Borel/Chácara do Céu (ArquiTraço
Cooperativa). Fonte: Jorge Mario Jáuregui @telier Metropolitano
(www.jauregui.arq.br/); ArquiTraço Cooperativa
(http://www.arquitraco.com.br/#/projeto)

A implementação do programa, porém, demonstra seus limites. Sem desmerecer


a mudança de patamar em relação à questão das favelas e sem entrar na
complexa questão da manutenção dos investimentos realizados - que diz respeito
à gestão pós-intervenção - uma questão, ao menos, merece atenção particular.
Embora essencial, o próprio tempo vem demonstrando que a urbanização das
favelas é apenas uma das dimensões do problema e, sobretudo, que não incide
sobre as causas da informalidade urbana, que não parou de crescer mesmo com
a vigência do programa.

Pode-se argumentar que sem o Favela Bairro e sem o Pouso72 teria sido pior, o
que, certamente, é verdade. Vial e Cavallieri (2009) argumentam, com base em
estudos sobre área territorial ocupada por favelas de mesmo porte, verificada a
partir de ortofotos do município, que entre 1999 e 2008 as "favelas urbanizadas se
expandiram, proporcionalmente, cerca de quatro vezes menos do que as não
urbanizadas" (VIAL; CAVALLIERI, 2009. p.4). E mais, que as favelas que tiveram
Pouso apresentaram expansão horizontal menor do que as que não receberam
essa presença institucional após as obras. Os dados são positivos e indicam um
efeito claro da política de urbanização, porém não abrangem a expansão vertical,

71
Expressão que era comumente utilizada na crítica a políticas clientelistas que por muito tempo
eram as únicas (fora as de remoção) para assentamentos de baixa renda.
72
Posto de Orientação Urbanística e Social (ver capítulo 2).

141
que parece ser um fenômeno importante em muitas favelas, mesmo aquelas
urbanizadas e que contam com atuação do Pouso.

Independentemente do peso da expansão vertical das favelas, entretanto, é


necessário observar que a expansão de favelas e da informalidade urbana de
forma geral continua crescente na cidade do Rio de Janeiro (ver capítulo 2). E
esses dados remetem para questões que são estruturais e também operacionais
do controle urbanístico. Porque a política urbana centrada em projetos e obras -
seja nas áreas formais com projetos tipo Rio Cidade, seja nas áreas informais
com projetos tipo Favela Bairro - não interfere necessariamente na lógica de
produção da cidade, que é historicamente excludente. Ou não é suficiente para
transformá-la. Mesmo com suas limitações como instrumento orientador do
desenvolvimento urbano, o plano diretor de 1992 apontava para a necessidade de
mudanças nos mecanismos de regulação do uso e ocupação do solo. Mas isso foi
secundarizado na década de 1990 por uma política que do ponto de vista
urbanístico priorizou a prática de projetos e do ponto de vista ideológico era
conservadora e liberal.

3.3.2. Projetos urbanos para a área central

Paralelamente à implementação dos programas Rio Cidade e Favela Bairro, uma


série de projetos urbanos propostos para a área central integra as iniciativas do
urbanismo de projetos que se esboçou no Rio de Janeiro nos anos 1990.

Teleporto, Projeto SA's, Enseada da Gamboa, Frente Marítima, Píer Mauá, dentre
outros, ainda que não tenham sido efetivamente implementados, introduzem um
novo tipo de projeto urbano para a área central carioca. Diferentemente do
Corredor Cultural, que tinha como foco a preservação de conjuntos urbanos e se
desdobrou em diversas ações pontuais de melhorias nos espaços públicos e em
edificações ou monumentos históricos no Centro (MAGALHÃES, 2001), esses
outros projetos propõem o redesenho de grandes áreas e abrangem também os
bairros pericentrais.

Trata-se de mudança de tipo de projetos, de escala de intervenção e de


localização de ações que fica mais claramente demarcada na gestão de Luiz
Paulo Conde. Ao assumir o cargo de prefeito, em 1997, o arquiteto afirmava que a
área central seria a sua "menina dos olhos". Na visão de Conde, o fortalecimento
do Centro passava também pela recuperação dos bairros em torno dele, pelo

142
reaproveitamento de espaços que perderam funções, se deterioraram e, em
alguns casos, foram descaracterizados por intervenções urbanísticas mais
drásticas.

Apesar de serem projetos relativamente autônomos na sua concepção, em 1999,


a Prefeitura produz um mapa, intitulado “Mapa Cidade do Rio de Janeiro – Área
Central: uma visão de futuro”, que apresentava as diversas propostas para a área
central trabalhadas pela prefeitura naquele momento. Esse documento se torna
importante registro histórico, porque, lançado na ocasião de uma reunião de
Chefes de Estado da América Latina na cidade do Rio de Janeiro, dava a ideia de
um novo dinamismo da região e passava a imagem de articulação entre as
intervenções propostas (BARANDIER, 2003).

Figura 13. Cidade do Rio de Janeiro - Área Central: uma


visão de futuro. Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro,
1999.

Desses, o Teleporto foi o primeiro projeto de grande porte a ser lançado, ainda no
primeiro ano do mandato de César Maia (1993). Do ponto de vista urbanístico, era
um projeto de renovação urbana tradicional - ou seja, que pressupunha a
demolição do existente para construção do novo. Abrangendo uma área de cerca
de 22 ha, junto ao Centro Administrativo da Cidade Nova (Prefeitura do Rio),
promoveu a demolição de antigos sobrados para viabilizar novo padrão de
ocupação urbana, em localização privilegiada da área central. Foi prevista a
construção de mais de 400 mil m2 de escritórios, comércios, hotéis, para a
instalação de grandes empresas e companhias de serviços que se beneficiariam
da moderna infraestrutura de comunicação que seria ali instalada. No discurso, se
tratava de um projeto que permitiria as condições de integração do Rio de Janeiro
com o mundo, credenciando seu acesso ao círculo das "cidades globais". No
entanto, apesar de todos os investimentos realizados na preparação da área, um

143
único edifício foi erguido (em 1994) passando ele próprio a ser reconhecido como
o "Teleporto".

Figura 14. Projeto Teleporto. Plano de massa do projeto, previa


intensa ocupação da quadra em torno do Centro Administrativo
do Município, na Cidade Nova. Apesar da prioridade que tinha o
projeto e do grande volume de recursos alocados em obras, o
projeto não se realizou. Por muito tempo, um único prédio (foto à
direita) ficou sendo ele próprio chamado de Teleporto. Fonte:
SMU/ IPLANRIO/ CUN (Projeto SA'S: Conceito, Área de
Abrangência, Perspectivas), 1998.

Ainda na gestão César Maia, outro grande projeto começou a ser a desenvolvido,
mas ganharia expressão realmente na gestão de Luiz Paulo Conde. Trata-se do
Projeto SAs, que acaba por incorporar o perímetro designado para o Teleporto e
lançar diretrizes para o redesenho urbano de toda a área da Cidade Nova,
Estácio, até a Praça da Cruz Vermelha.

Contando com a consultoria do arquiteto português Nuno Portas, o projeto propõe


o redesenho de uma extensa área que, se acreditava, poderia vir a ser o principal
vetor de expansão da área central. A proposta combinava a preservação de
conjuntos urbanos de interesse histórico73 com a ocupação de áreas vazias ou
passíveis de renovação e previa usos diversificados, inclusive moradia. Bem
desenvolvido em termos morfológicos, com indicação de padrões de ocupação
para as diferentes subáreas do projeto, não se conseguiu formatar um modelo de
gestão para sua implementação que combinasse as componentes físicas (obras
de infraestrutura e espaço público) e econômicas (engenharia financeira e
envolvimento social) (PORTAS, 1999).

Em outros termos, não se conseguiu atrair o interesse do mercado para o projeto.


Como ficaria claro a partir de então, as tão desejadas parcerias público-privadas
para implementação de projetos urbanos dependeriam, para se viabilizarem, de
muito investimento público nas áreas de intervenção e/ou vantagens
extraordinárias para o setor privado. No caso do Rio de Janeiro, essa condição
73
Como por exemplo a Vila Operária da Avenida Salvador de Sá, conjunto habitacional construído
no início do século XX, no âmbito da reforma de Pereira Passos.

144
parece ainda mais acentuada pelo fato de haver uma concentração expressiva do
setor imobiliário na região da Barra, onde há um vasto estoque de terras a ser
explorado e poucas restrições à expansão desse mercado.

Com o retorno de César Maia em 2001, agora como adversário de Luiz Paulo
Conde, o Projeto SAs perdeu relevância e foi sendo abandonado com o tempo,
em razão também da priorização dada à área portuária. No entanto, atualmente é
justamente na área objeto de preocupação do Projeto SAs, entre o Centro
Administrativo e a Praça da Cruz Vermelha - e poderíamos estendê-la até a Praça
XV - que vêm sendo localizados vários dos empreendimentos mais importantes
da área central do Rio de Janeiro desde meados dos anos 2000, mas sem
estarem pautados por um projeto urbano claro.

Ao longo dos anos 1990, foram também propostos projetos para São Cristóvão e
área portuária que, embora não implementados (Arena Quinta da Boa Vista,
Enseada da Gamboa, Píer Mauá), indicavam áreas bem localizadas da cidade,
em torno do Centro, que poderiam ser objeto de intervenções urbanísticas, numa
visão ampliada da área central.

Figura 15. Projetos urbanos na área central nos anos 1990 (exemplos). Arena multiuso em
São Cristóvão, Projeto Eneada da Gamboa e Projeto Píer Mauá, projetos não executados. Fonte:
Barandier, 2003.

No campo da habitação, algumas ações merecem destaque por representarem


inovações conceituais, apesar do alcance muito limitado que tiveram. Em 1994,
importante trabalho intitulado "Levantamento de Oportunidades Habitacionais"74
mostrava o potencial da área central da cidade, em especial os morros da zona
portuária, para construção de habitação de baixa e média renda. São identificados
inúmeros terrenos vazios, feitas "simulações de empreendimentos habitacionais"
e recomendadas revisões da legislação urbanística. O Conjunto Habitacional da
Saúde (1996) que foi efetivamente construído é o exemplo concreto que mostra a
viabilidade das possibilidades apontadas no trabalho. No entanto, foi o único, não

74
Trabalho elaborado pela Cooperativa de Profissionais do Habitat para a Prefeitura da Cidade do
Rio de Janeiro.

145
tendo o estudo desdobrado em outras ações tal como indicado ser possível. Outra
iniciativa importante foi o Programa Novas Alternativas, ainda em andamento, que
tem por objetivo a "recuperação e reaproveitamento de imóveis em mal estado,
subutilizados, ruínas e lotes vazios contribuindo para romper com o quadro de
estagnação e degradação de áreas importantes para a cidade"75. No âmbito do
programa foram implementados alguns projetos de reabilitação de cortiços, de
intervenção em sobrados em ruínas para produção de unidades habitacionais e
outras iniciativas. Apesar dos cerca de vinte anos de vigência e do reconhecido
valor de promover o uso habitacional em bairros centrais associado à
recuperação e valorização do patrimônio histórico edificado, o programa tem
números modestos quanto às realizações. Praticamente, continua sendo uma
ação de caráter experimental, o que não deixa de ser revelador das dificuldades
de superação dos entraves para se produzir habitação, ainda mais para baixa
renda, em áreas centrais.

Em comparação com o tipo de intervenção na área central da década anterior,


pode se dizer que aquelas premissas do Corredor Cultural, da preservação do
patrimônio e da participação social, não eram mais as fundamentais nos anos
1990. A grande ênfase estava na qualificação do espaço público baseada no
desenho urbano, o que de modo geral estava associado ao discurso da ordem e,
no limite, poderia conduzir à apropriação seletiva das áreas de intervenção por
determinados grupos sociais. Porém, os projetos, na maioria dos casos, não
foram implementados ou foram implementados apenas parcialmente. Nesse
sentido, o argumento utilizado em outro momento por este autor permanece
válido para explicar o significado desses projetos urbanos dos anos 1990 para a
área central do Rio de Janeiro.

(...) poder-se-ia supor que esses projetos, os de grande porte principalmente,


apresentados como planos de ocupação de grandes áreas, não foram elaborados
necessariamente para serem implantados. Neste sentido, alguns projetos
poderiam ser apenas hipóteses espaciais para uma estratégia, vaga, de criação
de novos espaços de centralidade, visando à ascensão do Rio de Janeiro ao
patamar de cidade global, produzidos para atrair eventuais parceiros privados. O
simples anúncio dos mesmos, então, cumpriria um importante papel dentro da
lógica das estratégias de marketing urbano, que muitas parecem ser a própria
finalidade dos projetos. Ainda que não se concretizem, as ações propostas
incentivavam os debates sobre o futuro da cidade, tornando-a aparentemente

75
Definição utilizada pelo gerente do programa, arquiteto Ahmed Nazih, em apresentação
realizada no âmbito do Projeto Moradia, Instituto Pólis. Disponível em:
<http://www.moradiacentral.org.br/pdf/apr_sp_Rio_NovasAlternativas_Nazih.pdf>. Acesso em:
17/05/2015, às 22:38h.

146
dinâmica, o que é ainda mais expressivo quando se trata da área central.
(BARANDIER, 2006. p.165).

3.3.3. A consolidação da Barra da Tijuca

Despontando nos anos 1980 como vetor de expansão residencial praticamente


irreversível de média e alta renda, a ocupação da região da Barra da Tijuca se
consolida nos anos 1990 com o crescimento das atividades de comércios e
serviços. Nesse movimento, se chega supor que a Barra da Tijuca poderia se
tornar uma nova centralidade capaz de competir com a primazia da área central
tradicional.

Esse fenômeno não chegou (ainda) a se concretizar plenamente, pois, o


deslocamento de empresas do Centro para a região da Barra, que se verificou
nos anos 1990, esbarrou, aparentemente, na saturação da precária infraestrutura
instalada na região (IBAM, 2008). Dessa forma, as vantagens locacionais do
Centro eram ainda grandes, o que se verificaria com os novos lançamentos na
área central na década seguinte.

No entanto, isso não impediu a intensificação da ocupação da região Barra, nem


a sua transformação numa das principais áreas de entretenimento da cidade. Os
novos shoppings centers construídos nos anos 1990, deixam de ser apenas
centros comerciais para se tornarem grandes centros de lazer e entrenimento
(Downtown Shopping, New York City Center etc.) cujos raios de influência
abrangem possivelmente toda a cidade. Paralelamente, há o surgimento de
universidades, a concentração de centros médicos entre outras atividades que
configuram a consolidação dessa região.

Apesar do discurso urbanístico dos anos 1990 em favor da cidade existente e da


política de projetos voltada para a valorização dos espaços públicos, para um
"urbanismo de volta as ruas", sua antítese - a Barra da Tijuca dos automóveis,
dos condomínios fechados e dos shopping centers - não apenas se fortalece
como é também favorecida por intervenções viárias tais como a duplicação da
Avenida das Américas76 e a já citada Linha Amarela.

76
A principal via da região que começa com no túnel da Estrada Lagoa-Barra e atravessa os
bairros da Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes em paralelo à praia.

147
3.4. Terceira geração de projetos urbanos (2000 a ): urbanismo genérico

Em 2001, César Maia reassume o cargo de Prefeito do Rio de Janeiro, vencendo


Luiz Paulo Conde, e ficaria no cargo até o final de 2008. No primeiro dia de 2009,
assume o cargo o atual Prefeito Eduardo Paes, hoje (2015) em seu segundo
mandato. Eduardo Paes, que iniciou sua carreira política justamente com César
Maia, em sua primeira gestão entre 1993 e 1996, quando, ainda muito jovem,
ocupou o cargo de sub-prefeito da Barra.

Nesses quatro mandatos (dois de César Maia e dois de Eduardo Paes, sendo o
segundo ainda em andamento) se configura o que designamos como terceira
geração de projetos urbanos. Se não chega a ser uma ruptura com a geração de
projetos anterior, dos anos 1990, claramente há mudanças significativas.

A nova geração de projetos urbanos, ainda em curso, caracteriza-se por grandes


obras, por intervenções arquitetônicas de grande apelo midiático, algumas delas
assinadas por estrelas da arquitetura internacional, e pelas obras realizadas em
nome dos grandes eventos esportivos internacionais: Jogos Panamericanos
(2007); Copa do Mundo de Futebol (2014) e Jogos Olímpicos (2016).

Sem a formulação intelectual de Conde, César Maia volta sua ação para duas
direções que abrangem referenciais relativamente genéricos em relação à cidade.
Primeiro, as candidaturas a sede de grandes eventos esportivos internacionais, o
que parece ter se tornado quase uma obsessão dos governantes cariocas e que
acabou tendo êxito (no sentido em que as candidaturas foram efetivamente
acolhidas). Em menos de dez anos, o Rio de Janeiro receberia os mais
importantes deles, inclusive os Jogos Olímpicos, que é, certamente, o de maior
impacto para a cidade.

O outro foco seria a revitalização da área portuária, que sempre pareceu mais
uma prioridade do então Secretário de Urbanismo Alfredo Sirkis, que do próprio
prefeito77. Tanto que em oito anos à frente da prefeitura, o projeto não foi
alavancado. No entanto, o Prefeito Eduardo Paes, ao assumir o cargo em 2009,
decidiu por efetivamente priorizar a área portuária, lançando já no seu primeiro

77
Isso talvez explique, por exemplo, a razão pela qual não consta nenhuma mensagem do
Prefeito, nem mesmo protocolar, no livro da grande exposição inaugurada em dezembro de 2001,
ainda no primeiro ano de mandato, no Centro de Arquitetura e Urbanismo da Prefeitura. A
exposição lançava a discussão sobre o Porto do Rio, com estudos desenvolvidos por técnicos da
própria prefeitura, profissionais e acadêmicos, bem como apresentava projetos de revitalização de
áreas portuárias pelo mundo.

148
ano de governo a mega operação urbana "Porto Maravilha" que está em
andamento (analisada nos seus aspectos urbanísticos no capítulo 4).

No plano do discurso, as duas linhas de ação guardam similaridades com aquela


adotada no início do primeiro governo César Maia em relação ao Teleporto, que
seria condição para o Rio de Janeiro se tornar uma "cidade global". Da mesma
forma, receber os eventos esportivos seria fundamental para se projetar a cidade
internacionalmente, fomentar o turismo e viabilizar investimentos em infraestrutura
urbana. E o mesmo valeria para revitalização da área portuária, afinal de contas,
como dizia Sirkis, "em Barcelona, Londres, Lisboa, Buenos Aires e Belém do Pará
este sonho se materializou".78

O urbanismo carioca da década de 2000, no nosso ver, se descola de qualquer


discurso mais estruturado, diferentemente do que se passava nos anos 1990, e
assume um caráter genérico, em que se almeja a construção de uma imagem de
cidade internacional. A realização dos eventos esportivos e o lançamento de
projetos assinados por estrelas da arquitetura mundial fazem parte dessa
estratégia, sendo possível afirmar que há um esvaziamento do pensamento
urbanístico na gestão da cidade do Rio de Janeiro nesse período.

As administrações César Maia e Eduardo Paes seguem mais ou menos essa


mesma linha, mas com a diferença de que o primeiro mandato do atual prefeito
coincide com o momento em que o Brasil entrava num ciclo econômico favorável;
que o governo federal passou a investir recursos pesados em infraestrutura e
habitação (principalmente por meio do Programa de Aceleração do Crescimento -
PAC e PMCMV); e que o Rio de Janeiro é finalmente escolhido para ser sede dos
Jogos Olímpicos, em 2016. Esses fatores combinados com um prefeito
voluntarioso e o alinhamento político das três esferas de governo79 - municipal,
estadual e federal - fazem convergir para o Rio de Janeiro volume expressivo de
recursos para realização de inúmeras obras simultaneamente. E nesse processo,
as grandes empreiteiras despontam como protagonistas, assumindo novos
papéis. Deixam de ser apenas executoras de obras de infraestrutura, para serem
também formuladoras e até gestoras de projetos urbanos.

78
Ver apresentação do Catálogo da Exposição Porto do Rio. Centro de Arquitetura e Urbanismo
do Rio de Janeiro (PCRJ), 2001. Porto do Rio (Catálogo da Exposição)
79
O alinhamento político entre Prefeito, Governador e Presidente foi durante bastante tempo
saudado pelos governantes como algo importantíssimo para o Rio de Janeiro, o que mais parece
revelar a fragilidade das relações republicanas no país. Numa outra perspectiva, pode se dizer que
esse alinhamento político inédito tem permitido que os governos operem como mais gostam, sem
oposição e, portanto, com pouco ou nenhum debate com a sociedade.

149
3.4.1. O foco sobre objetos arquitetônicos

Ao refletir sobre o que seriam novos paradigmas do urbanismo no século XXI,


Moscato (2006) se refere a alguns princípios teóricos: mudança de noção sobre a
história, o que permite se construir sem o respeito às tipologias existentes; o
abandono das posturas contextuais e privilégio do objeto arquitetônico; retorno à
cultura do bloco e da quadra aberta; incorporação da natureza através da noção
de paisagem. Embora esses princípios não constituam propriamente teorias,
perpassem atitudes dominantes nos projetos urbanos recentes. E pelo menos um
deles merece destaque por parecer se aplicar às experiências de intervenções
urbanas no Rio de Janeiro nos anos 2000 e 2010. Trata-se do terceiro ponto
ressaltado por Moscato, expresso no entendimento do autor de que "os novos
projetos urbanos abandonam as posturas contextuais e as tentativas de leitura da
cidade existente para se transformar em objetuais e concebidos a partir de uma
definição objetual da cidade" (Moscato, 2006: p.40).

Se nos anos 1990, as iniciativas que caracterizaram a prática de projetos urbanos


no Rio de Janeiro - notadamente os programas Rio Cidade e Favela Bairro, mas
também os projetos para a área central - tinham como preocupação principal o
tratamento do espaço público, a partir da leitura e reconhecimento do ambiente
construído existente, nos anos 2000 o foco recai sobre a inserção de objetos
arquitetônicos novos na paisagem urbana.

Ao longo de seu novo mandato como prefeito, iniciado em 2001, César Maia
lança cinco projetos principais que compunham o que foi chamado de "Pentágono
do Milênio". Eles configurariam um "sistema de objetos" visando à conformação
de uma nova imagem da cidade (RIBEIRO, 2009). São eles: o Centro Luiz
Gonzaga de Tradições Nordestinas, em São Cristóvão, ocupando o antigo
Pavilhão de São Cristóvão (executado); a Cidade do Samba, na Gamboa
(executado); a Cidade da Música (atualmente, Cidade das Artes), na Barra da
Tijuca (executado); o Museu Guggenheim, no Píer Mauá (não executado); e o
Estádio Olímpico João Havelange (atualmente Nilton Santos, mas mais conhecido
como "Engenhão"), no Engenho de Dentro (executado, no âmbito das obras
realizadas para os Jogos Panamericanos de 2007).

Em certos casos, a própria relação do objeto arquitetônico com o espaço urbano é


negada, como, por exemplo, no projeto da "Cidade do Samba" (2005). Embora

150
inscrito nos esforços da prefeitura em nome da revitalização da área portuária, o
empreendimento, que ocupou um dos grandes terrenos vazios ali disponíveis, é
fechado para o exterior. Do ponto de vista da solução físico-espacial adotada, é
completamente voltado para si mesmo. A "Cidade da Música"80, construída na
Barra da Tijuca, também se configura como um objeto em si mesmo, porém se
insere na paisagem como um monumento, um tanto quanto perdido entre as vias
de grande porte que o circundam, porém com uma arquitetura mais sofisticada do
que o que se vê na "Cidade do Samba". Em comum, esses dois projetos se
apresentam como "cidades temáticas" e coincidentemente ou não acabaram se
constituindo como espaços mal integrados ao meio urbano onde estão
localizados, ou melhor, mal integrados à cidade real.

O caso do Estádio Olímpico é um pouco diferente, mas o resultado é similar. O


novo equipamento, que por suas dimensões e pelos fluxos que geraria, alteraria a
dinâmica do bairro no qual foi inserido, não integrou um projeto urbanístico mais
amplo que abrangesse sua área de entorno81. Nem os impactos do novo
equipamento sobre o conjunto existente foram tratados adequadamente, nem as
possibilidades decorrentes de suas atividades foram trabalhadas de modo a
agregar valor ao bairro. Exatamente a mesma coisa se repetiu quando da
reforma82 do Maracanã para a Copa do Mundo de 2014. Foi realizada a obra do
estádio e nada de relevante no entorno83.

O projeto do Centro de Tradições Nordestinas, certamente o mais simples, de


pequeno porte comparado com os demais, talvez seja o mais bem resolvido dos
projetos que compunham o "Pentágono do Milênio". Ele se utiliza de uma
estrutura existente - o pavilhão de exposições projetado por Sérgio Bernardes nos
anos 1950, que há muito estava em precárias condições - e mantém o uso já
tradicional da praça. Assim, tem muito mais um caráter local e não se pretende
uma obra de impacto, com objetivo de criar um novo símbolo urbano ou introduzir

80
Atualmente chamado de "Cidade das Artes".
81
Tanto que agora, para os Jogos Olímpicos, está se fazendo o tratamento do entorno do estádio
do Engenhão, ação que integra o chamado legado olímpico, mas que evidentemente deveria ter
acompanhado a própria construção do estádio na época dos Jogos Panamericanos, em 2007.
82
O que se realizou foi praticamente a renovação do estádio. Em meio a muitas polêmicas, a obra
alterou completamente a configuração interna do estádio, mantendo a estrutura exterior, com
algumas intervenções, como novas rampas de acesso.
83
Em 2008, a equipe de consultores do Atelier Parisien de l'Urbanisme (APUR) propunha, no
âmbito da cooperação técnica entre a Prefeitura do Rio de Janeiro e a Prefeitura de Paris,
justamente uma operação urbana mais ampla motivada pela reforma do Maracanã, que previa o
tratamento do entorno e a integração com o bairro de São Cristóvão, situado do outro lado da linha
do trem. A proposta, porém, jamais foi adiante.

151
no local novas atividades que pudessem se sobrepor à tradicional "feira dos
nordestinos".

O projeto para o Museu Guggenheim na área portuária, por sua vez, é o oposto.
Mesmo sem ter sido executado, é o projeto que marca decididamente o tipo de
intervenção urbana centrada no objeto arquitetônico e, nesse caso como em
alguns outros subsequentes (entre eles o da Cidade da Música), também no
próprio arquiteto. Sem entrar aqui no mérito da polêmica sobre a atuação de
arquitetos estrangeiros no Brasil, o projeto elaborado pelo francês Jean Nouvel
introduz um fato novo, pelo menos na história recente do Rio de Janeiro: a
contratação de um arquiteto de renome internacional para projetar uma grande
obra. Mais do que a contratação de um arquiteto, trata-se da contratação de uma
grife da arquitetura. Nesse sentido, independentemente da eventual qualidade do
projeto, do ponto de vista da estratégia urbana adotada, o projeto se torna algo
menos importante. O que interessa mais é o efeito midiático que ele produz, o
"marketing urbano".

Molina (2014) explica que paralelamente às tentativas de diversos autores (Huet,


Panerai, Castex, Devillers, entre outros) de "colocar em palavras os princípios de
uma 'arquitetura de qualidade', de uma 'arquitetura urbana', do 'projeto urbano', ou
ainda de uma análise 'tipo-morfológica'", afirmando a singularidade do projeto e
sua vinculação ao contexto urbano, em contraposição aos princípios
funcionalistas, emerge outra tendência desde o final do século XX que se
caracteriza pela "personalização da ação arquitetural e urbana" (MOLINA, 2014.
p.2, tradução nossa). E é nessa perspectiva que surgem os projetos de "grandes
obras" na cidade do Rio de Janeiro ao longo das décadas de 2000 e 2010. A
afirmação de tal tendência se dá pelo surgimento de "estrelas" da arquitetura e do
urbanismo contemporâneos que renovam a imagem do grande arquiteto,
retomando a ideia de um ser demiurgo, em oposição justamente ao discurso do
projeto urbano contextual e processual. Ainda que as cidades busquem, com
esses arquitetos e suas grandes obras, se destacar no cenário internacional, a
valorização da personalidade do arquiteto conduz à formação de modelos e,
enfim, a um urbanismo genérico que se reproduz em diversas cidades, por todo o
mundo, nas últimas décadas. Molina observa ainda que:

apesar das estratégias de distinção tanto dos promotores de projetos urbanos


como dos profissionais responsáveis pelos projetos, é forçoso constatar que
atualmente as mesmas assinaturas arquiteturais e urbanas se encontram em
todas as cidades do globo (Renard, 2012). Como seus concorrentes nacionais ou
internacionais, as cidades querem ter seu edifício assinado por Portzamparc,

152
Nouvel, Piano ou Hadid. Assim, paradoxalmente, se operam uma certa
homogeneização e mundialização de modos fazer a cidade, e uma banalização da
grife. (MOLINA, 2014. p.4, tradução nossa).

Com o projeto da filial do Museu Guggenheim (2002), propunha-se a construção


de um equipamento cultural e de entretenimento de uma rede internacional,
projetado por um famoso arquiteto estrangeiro, que seria elemento propulsor da
renovação da área portuária. No entanto, o projeto foi muito criticado por vários
setores da sociedade carioca ligados à cultura e acabou sendo arquivado após
embates políticos e até judiciais. As críticas iam dos altos custos de implantação e
operação do museu à sua desvinculação da política cultural local ou nacional. E,
do ponto de vista urbanístico, os questionamentos recaíam sobre a simples
priorização de um objeto arquitetônico e a construção de um novo ícone urbano
como estratégia para valorização da imagem da cidade.

Mesmo sem ter sido construído, o projeto do Museu Guggenheim abriu caminho
para outras iniciativas similares na cidade do Rio de Janeiro que reforçam e
consolidam a tendência de hiper valorização do objeto arquitetônico por meio da
proposição de novos ícones urbanos assinados por arquitetos de prestígio
internacional. Enquanto o projeto do Museu Guggenheim era alvo de todas as
críticas, a Prefeitura do Rio dava início ao projeto da "Cidade da Música"
(inaugurada em 2008 e atualmente chamada de "Cidade das Artes"), com o
arquiteto Christian de Portzamparc. Em seguida, foi lançado, pelo governo do
estado, o projeto para a nova sede do Museu da Imagem e do Som (MIS)84, ainda
em construção, na praia de Copacabana, de autoria de Diller Scofidio + Renfro. E
mais recentemente, o projeto do Museu do Amanhã, também em construção,
concebido por Santiago Calatrava, no mesmo Píer Mauá para onde havia sido
projetada a filial do Museu Guggenheim por Jean Nouvel.

O caráter icônico dos edifícios é ressaltado pelas próprias instituições em seus


veículos oficiais de comunicação. A Cidade das Artes é tida como um "grande
ícone arquitetônico planejado pelo arquiteto francês Christian Portzamparc"85. O
MIS é entendido "como um novo ícone arquitetônico para a cidade"86. E o Museu

84
Neste caso o projeto foi selecionado por um concurso de ideias promovido pelo Governo do
Estado em parceria com a Fundação Roberto Marinho.
85
Ver sítio da Cidade das Artes na internet:
<http://www.cidadedasartes.org/institucional/index/cidade-das-artes>. Acesso em 17/04/2015, às
09:21h.
86
Ver sítio do MIS na internet: <http://www.mis.rj.gov.br/arquitetura/>. Acesso em 17/04/2015, às
9:11h.

153
do Amanhã é identificado como "novo marco na arquitetura do Rio de Janeiro"87.
Da mesma forma, o AquaRio (aquário em construção na área portuária) também
se apresenta como "um novo ícone para o Rio de Janeiro"88, embora não seja
projeto de uma estrela da arquitetura internacional89. Claramente, é um período
em que cresce o desejo de construção de novos "ícones urbanos", justamente
porque na concepção urbanística predominante, o ambiente construído passam a
ser apenas pano de fundo de objetos arquitetônicos que marcarão a paisagem
urbana.

Figura 16. Arquitetura icônica na cidade do Rio de Janeiro. Cidade das Artes, na Barra da
Tijuca; Museu da Imagem e do Som, em Copacana; e ÁquaRio, na área portuária. Fontes:
http://www.archdaily.com.br/158494/cidade-das-artes-christian-de-portzamparc
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/09/1346390-arquiteta-americana-apresenta-projeto-do-
museu-da-imagem-e-do-som-do-rio.shtml; http://www.aquariomarinhodorio.com.br/oprojeto.html.

Ao analisar o contexto de lançamento do projeto para o MIS, Kamita (2009) crítica


a tendência que se anunciava pelos sucessivos projetos de mesma natureza:

O que me parece inédito nessa equação entre arquitetura e o seu potencial de


renovação urbanística é justamente que isso ocorra quando o edifício vê cada vez
mais corroído a sua materialidade, ficando reduzida à sua dimensão icônica.
Espaços, programas, usos, estruturas parecem termos e conceitos que não mais
se aplicam, ou não são mais necessários. O que se destaca, é tão somente a sua
imagem (pelo menos, é isso o que dela se espera e é o que a mídia, o mercado,
as administrações públicas se interessam), mas para que esta sustente seu
interesse ela precisa efetuar verdadeiros malabarismos, contorcer-se, numa
verdadeira ginástica para alcançar uma forma instigante que não só atraia o olhar,
mas sobretudo que não se esgote rapidamente. (Kamita, 2009: s/n).

87
Ver sítio do Museu do Amanhã na internet: <http://museudoamanha.org.br/arquitetura/edificio/>.
Acesso em 17/04/2015, às 09:28h.
88
Ver sítio do AquaRio na internet: <http://www.aquariomarinhodorio.com.br/index.html>. Acesso
em 21/04/2015, às 10:29h.
89
Nesse caso, é interessante que encontrar informações sobre o arquiteto (Alcides Horácio
Azevedo), que não é nenhuma estrela internacional, nem mesmo nacional, é até difícil.

154
3.4.2. Porto Maravilha e ausência de projeto para a área central

Desde os anos 1980, talvez até antes, sempre se falou muito do "esvaziamento"
da área central do Rio de Janeiro. Do ponto de vista populacional, sem dúvida, os
dados mostram a diminuição da população residente nos bairros centrais nos
anos 1980 e 1990, embora indiquem uma pequena reversão dessa tendência na
década de 2000. Do ponto de vista econômico, no entanto, a noção de
"esvaziamento" é relativa. Pode se falar, sim, do esvaziamento econômico e
político da cidade Rio de Janeiro (Andrade, 2009) o que há de ter produzido
efeitos sobre a área central. Mas se comparada com o restante da cidade, a área
central - e o centro especificamente - jamais perdeu sua posição dominante,
concentrando, à despeito do expressivo crescimento da Barra da Tijuca, o maior
estoque de unidades imobiliárias não residenciais da cidade e mantendo seu
caráter de centralidade metropolitana (IBAM, 2008).

Ainda assim, o espaço urbano central do Rio de Janeiro é marcado por "diferentes
situações de vazio urbano" que Borde classifica em três categorias principais: os
vazios estruturais, os vazios conjunturais e os vazios projetuais (BORDE, 2006).
Para a autora, os vazios estruturais dizem respeito a situações de obsolescência
de antigos espaços produtivos, como área portuária e áreas industriais. Os vazios
conjunturais englobam ruínas urbanas e edifícios que por razões diversas,
inclusive o próprio esvaziamento econômico da cidade, perderam seus usos,
ficando desocupados ou subutilizados. E os vazios projetuais referem-se "a
diferentes tipos de intervenção do Estado", que na área central em geral se
apresentam como áreas remanescentes de intervenções urbanas que não
alcançaram plenamente a "expectativa inicial de urbanização".

Várias dessas situações de vazio foram objeto de projetos urbanos nos anos
1990, que se não foram efetivamente implementados, ao menos propiciavam a
reflexão sobre formas de aproveitamento de espaços vazios ou subutilizados na
área central. Para Portas (2000) um dos legados da administração Conde era
justamente a diversidade de projetos propostos especialmente para a área central
na perspectiva de aproveitamento de vazios urbanos.

No entanto, nos anos 2000, a partir do novo mandato de César Maia, essa
diversidade de projetos dá lugar à priorização da área portuária e de algumas
ações pontuais (como o Centro de Convenções na Cidade Nova, o novo Circo
Voador na Lapa, a reurbanização da rua Riachuelo etc.). Ao mesmo tempo, se
observa o aumento da demanda por espaços corporativos por parte de grandes

155
empresas no Rio de Janeiro, que ao invés de confirmar o movimento em direção
à Barra da Tijuca, que marcara os anos 1990, resulta na busca por opções na
área central, em razão das melhores condições de infraestrutura ali encontradas.
Fortemente vinculado ao crescimento da economia do petróleo na cidade, esse
processo se manifesta tanto pelo lançamento de novas unidades imobiliárias,
como pelo "retrofit" de prédios antigos, sobretudo no próprio bairro Centro.
Surgem, ainda, lançamentos residenciais na área central, tanto na revalorizada
região da Lapa, como na região de São Cristóvão após a aprovação de nova
legislação urbanística em 2004.

Após duas décadas de vários projetos que buscavam reverter a tendência de


esvaziamento, ainda que relativo, da área central, uma nova dinâmica imobiliária
começa efetivamente a ser esboçada na década de 2000. Essa nova dinâmica
não é, entretanto, tratada no âmbito de um (ou alguns) projeto urbano explícito,
que articule ações e que oriente o processo de transformação urbana em curso
no coração da metrópole.

A análise dos lançamentos imobiliários na década de 2000 (IBAM, 2008;


BARANDIER, 2010) indica, por exemplo, que entre a Praça XV e a Cidade
Nova/Estácio, atravessando a APAC da Cruz Vermelha, se conformava um novo
eixo de empreendimentos, muitos deles públicos ou ligados a Petrobrás,
curiosamente acompanhando a abandonada previsão de expansão da Linha 2 do
metrô90. Essa área, para a qual haviam sido propostos alguns projetos urbanos na
década de 1990 (notadamente Projeto SA's e Frente Marítima) deixa de ser objeto
de preocupação da prefeitura nos anos 2000, que volta seus olhares
prioritariamente para a área portuária (BARANDIER, 2010). Esse vazio de
projetos se reforçaria ainda mais no final da década de 2000 e início da década
de 2010, quando grandes instituições públicas (INCA, BNDES, Eletrobrás) lançam
projetos de grande porte, na esteira do surto desenvolvimentista do período.
Projetos sem conexão entre eles pela falta de um projeto urbano articulador que
pudesse potencializar os efeitos de diferentes iniciativas e pautá-las por uma
visão integradora do espaço urbano, inclusive em sua dimensão social.

90
De acordo com o projeto original do metrô, a linha 2 que vem do subúrbio e para na estação
Estácio, na área pericentral, deveria ser estendida até a Praça XV, no coração do Centro do Rio e
onde se localiza a estação das barcas que ligam a cidade a Niterói, do outro lado da Baía de
Guanabara. Apesar de obras realizadas nos anos 80, a implantação desse projeto foi interrompido
deixando incompleta a ligação entre a zona norte e o centro. Nos anos 90 e 2000, a expansão do
metrô privilegiou a zona sul e agora, mais recentemente, a Barra da Tijuca, levando a uma solução
muito particular de uma extensa linha de metrô, sendo desprezada qualquer ideia de constituição
de um sistema em rede.

156
Nesse contexto, a opção pela área portuária, gestada desde o início dos anos
2000 e que se viabiliza efetivamente com o lançamento da operação urbana Porto
Maravilha em 2009, deixa, na verdade, o restante da área central sem projeto. E
ao se abrir na área portuária a possibilidade de ocupação nos moldes propostos,
um dos cenários seria a própria transferência do centro da cidade (essa questão
será retomada no capítulo 4). Tal hipótese, embora pareça absurda, permeia o
próprio discurso de empreendedores imobiliários que estão atuando na renovação
da área portuária. Para Alvarenga91 (2014)

(...) o Porto Maravilha será o foco dos melhores desenvolvimentos imobiliários da


cidade pelos próximos 15 ou 20 anos. Até 2020, o atual Centro será substituído
pela zona portuária como o maior mercado de espaços corporativos classe A
da cidade, com mais de um milhão de metros quadrados em espaços rentáveis de
escritórios. A partir de então, as avenidas Rio Branco e Presidente Vargas
permanecerão sendo endereços importantes, mas terão sido totalmente
suplantadas em espaços de qualidade ao longo do Binário, nova via de tráfego
que cortará a região, e pela Avenida Francisco Bicalho. (ALVARENGA, 2014:
p.111. Grifo nosso).

Apesar de toda a propaganda em torno dos empreendimentos lançados na área


portuária e mais ainda em torno da operação Porto Maravilha a partir de 2009, a
terceira geração de projetos urbanos do Rio de Janeiro é marcada por um vazio
de projetos urbanos para a área central. O trecho entre a Praça XV e a Cidade
Nova não foi e não é objeto de qualquer projeto que articule os diversos
empreendimentos públicos e privados que ali vem sendo lançados nos últimos 10
a 15 anos. Sem uma visão articulada dessas ações, é difícil, por exemplo, avaliar
o impacto desses novos empreendimentos sobre a APAC Cruz Vermelha, marco
da política preservacionista construída nos anos 1980, que parece estar sob
ameaça. O próprio projeto urbano para a área portuária não é claro, apesar das
inúmeras obras viárias em andamento. E numa visão mais ampla da área central
como um todo, não se discute os efeitos da renovação da área portuária - caso se
viabilize efetivamente - sobre o centro tradicional cuja permanência através dos
tempos pode e deve ser entendido como um valor da cidade.

91
Ana Carmem Alvarenga é arquiteta e lidera, desde 2007, o escritório Tishman Speyer no Rio de
Janeiro, empresa que atua no setor de empreendimentos coorporativos, com projetos em
desenvolvimento na área portuária.

157
3.4.3. Grandes obras também em favelas e novamente as remoções

No ano 2000, último ano de mandato do Prefeito Luiz Paulo Conde, foi aprovado
o empréstimo do BID para a segunda fase do Programa Favela Bairro, o que
garantiu sua continuidade no novo mandato de César Maia iniciado em 2001.
Previsto inicialmente para ser executado entre 2000 e 2004, o PROAP II92 foi
estendido ainda até 2006, mas já demonstrando enfraquecimento do programa
que não teria, imediatamente, sua renovação junto ao organismo internacional.

No entanto, em 2007, o governo federal lançou o Programa de Aceleração do


Crescimento (PAC), tendo como um de seus eixos de investimentos a
urbanização de assentamentos precários. Dessa forma, se abriu nova fonte de
recursos para ações em favelas, tendo como prioridade inicial intervenções em
grandes complexos de cidades situadas em regiões metropolitanas (Ministério
das Cidades, 2010. p.23). No Rio de Janeiro, por esse critério, na primeira fase do
programa, foram alocados recursos para intervenções em quatro grandes
conjuntos: Complexo do Alemão (R$833,2 milhões); Rocinha (R$231,2 milhões);
Complexo do Cantagalo - Pavão Pavãozinho (R$63,6 milhões); e Complexo de
Manguinhos (sem informação)93. O PAC representaria, então, novo impulso para
a urbanização de favelas, com alguns dados novos: o aporte significativo de
recursos por intervenção, o que se refletiria no tipo de projetos propostos, e a
participação mais direta também do Governo do Estado.

O Favela Bairro tinha como foco de atuação as favelas de porte médio (entre 500
e 2500 domicílios)94 e os programas dele derivados, Bairrinho e Grandes Favelas,
os assentamentos de menos de 500 e mais de 2500 domicílios respectivamente.
O PAC direcionou a ação para os grandes complexos de favelas que, até por
suas dimensões, têm presença marcante na cidade. Diferentemente da
experiência do Favela Bairro, os projetos desenvolvidos no âmbito do PAC
promoveram grandes obras, configurando um novo tipo de intervenção em
favelas.

92
Programa de Urbanização de Assentamentos Populares do Rio de Janeiro. O PROAP I (1995-
2000) e o PROAP II (2000-2006) financiaram projetos e obras em favelas (Favela Bairro) e
loteamentos irregulares ou clandestinos, com recursos do BID e da Prefeitura Municipal do Rio de
Janeiro. Durante esse período, outras fontes de financiamento também participaram de ações em
favelas no Rio de Janeiro, como a Caixa Econômica Federal e União Europeia.
93
Os valores indicados dos investimentos foram extraídos da publicação do Ministério das
Cidades intitulada "Urbanização de favelas: a experiência do PAC" que descreve as ações em
cada área de intervenção, mas não incorpora o projeto para o Complexo de Manguinhos.
94
Destaca-se, entretanto, a Prefeitura viria a criar também dois outros programas, semelhantes ao
Favela Bairro para atuar também nas favelas de pequeno e grande porte: os programas
"Bairrinho" e "Grandes Favelas".

158
Apesar da grande visibilidade do programa Favela Bairro, pode se dizer que ela
estava mais relacionada à realização de várias intervenções simultaneamente e o
reconhecimento que, com ele, a política de urbanização de favelas assumiu uma
dimensão nova, deixando o caráter quase que meramente experimental de
programas anteriores. Nos anos 2000, ao se incorporar aos projetos de
urbanização de favelas elementos tais como planos inclinados, elevadores e
teleféricos, as intervenções, que na experiência do Favela Bairro tinham, na maior
parte das vezes, impacto relativamente neutro na paisagem urbana, passaram a
ter também grande visibilidade para fora das favelas.

Essa mudança de postura em relação aos projetos em favelas também é


identificada por Leitão, Barboza e Decalave (2014) a partir da análise das
propostas apresentadas no concurso, organizado pelo IAB, para seleção de 40
equipes que atuariam no programa "Morar Carioca". Em 2010, já na
administração Eduardo Paes (iniciada em 2009), o "Morar Carioca" é lançado com
a ambiciosa meta de se urbanizar todas as favelas da cidade até 2020. Para
tanto, de acordo com o anúncio inicial, seriam direcionados ao programa a
fantástica cifra de R$8 bilhões95, envolvendo fontes de financiamento diversas. Os
autores descrevem as mudanças no tipo de proposições apresentadas pelos
concorrentes da seguinte forma:

É possível perceber algumas diferenças no perfil das propostas de intervenção


apresentadas para o Concurso Morar Carioca, quando comparadas com aquelas
selecionadas pelo Programa Favela Bairro, em 1994. Neste último, as
intervenções eram restritas à qualificação dos espaços públicos e melhoria de
serviços de infraestrutura nas favelas, além da construção de equipamentos
comunitários. Essas intervenções, de modo geral, procuravam alterar o mínimo
possível a estrutura espacial da favela, sendo as realocações de moradia
propostas somente quando se tratava de reassentar famílias que ocupavam áreas
de risco ou para viabilizar melhores condições de acessibilidade. (...)

Havia, no passado recente, entre os arquitetos urbanistas, quase que um


consenso sobre o respeito à permanência do habitat construído pelos moradores,
ao longo de anos e com recursos e esforços próprios. Dessa forma, seria uma
atitude autoritária promover cirurgias urbanas significativas, impondo novas
soluções morfológicas. (...)

95
Como registro e elemento de comparação, vale lembrar que as duas fases do Favela Bairro
juntas, PROAP I e PROAP II, envolveram U$600 milhões, o que em números atuais, com dólar em
alta, representariam cerca de R$2 bilhões.

159
No concurso Morar Carioca, por sua vez, as equipes propuseram intervenções
mais ousadas, com significativas reestruturações da malha urbana da favela.
Foram propostas aberturas de vias de maior porte, construção de teleféricos e de
planos inclinados. Conjuntos habitacionais verticalizados com a liberação de área
para construção de espaços de recreação e lazer foram apresentados em
diferentes versões, com a justificativa de assegurar assim melhores condições de
habitabilidade para a população local. (LEITÃO; BARBOZA; DECALAVE, 2014.
p.7).

A presença significativa desse tipo de proposta entre as concorrentes confirma a


tendência que se desenvolveu ao longo dos anos 2000, especialmente com as
obras do PAC. O primeiro precedente, no entanto, é o projeto para a favela Santa
Marta, no bairro de Botafogo, do ano 2000. A urbanização dessa favela, uma das
principais da zona sul do Rio de Janeiro, tem algumas particularidades que a
distingue das demais do mesmo período.

Em 1999, na contramão da política de urbanização implementada pela Prefeitura


por meio do Programa Favela Bairro, o governo do estado anunciava um projeto
para a favela Santa Marta que previa a substituição das casas existentes por
pequenos edifícios. De acordo com as informações divulgadas pela imprensa à
época, as famílias seriam transferidas, a cada grupo de cinquenta, para unidades
provisórias enquanto se construiria os novos edifícios no local e assim até que a
favela fosse inteiramente substituída (Jornal do Brasil, 18 de novembro de 1999,
p.22). Obviamente, o projeto provocou polêmica e não foi levado adiante. O
episódio, porém, marcou o retorno do governo estadual à questão das favelas,
que tinha ficado praticamente a cargo da prefeitura nos anos 1990. No ano
seguinte, seria lançado o concurso, também organizado pelo IAB, de ideias para
urbanização da favela Santa Marta, numa promoção conjunta de prefeitura e
governo do estado.

Figura 17. Projetos para a Favela Santa Marta. Projeto de remoção de


casas e construção de prédios (não executado) e projeto de urbanização
escolhido por concurso público (já executado). Fonte: Jornal do Brasil,
18/11/1999; IAB / Apresentação da arquiteta Fernanda Salles.

160
O projeto vencedor, coordenado pela arquiteta Fernanda Salles, previa a
instalação de um plano inclinado para superar a acentuada declividade do morro
onde se localiza a favela. A solução não era exatamente nova, pois já havia sido
adotada no favela do Pavão Pavãozinho, em Ipanema, nos anos 1980. Mas teve
destaque no caso da favela Santa Marta e representou um marco daquele projeto
de urbanização perceptível também de fora dos limites da favela.

Ao longo da década, outros elementos apareceriam na paisagem urbana carioca


com as obras de urbanização de favelas: o elevador no complexo Cantagalo -
Pavão Pavãozinho; a elevação da linha férrea no Complexo de Manguinhos; a
passarela projetada por Oscar Niemeyer em frente à Rocinha; o teleférico do
Complexo do Alemão; o teleférico do Morro da Providência.

Figura 18. Grandes obras em favelas. Elevador na Favela Pavão-Pavãosinho; Teleférico no


Complexo do Alemão e Teleférico no Morro da Providência. Fontes: Henrique Barandier, 2014;
http://www.rj.gov.br/web/setrans/exibeconteudo?article-id=1400288;
http://www.portomaravilha.com.br/web/sup/apresentacao.pdf.

Paralelamente às grandes obras e aos novos símbolos urbanos inseridos em


algumas das favelas mais emblemáticas da cidade, ocorre, nesse mesmo
período, o retorno de uma prática que parecia superada: a da remoção em
favelas. Magalhães (2013) observa que a retomada a ideia de remoção retorna a
agenda pública no Rio de Janeiro em meados dos anos 2000 e se afirma a partir
de 2009, com o início do mandato de Eduardo Paes. Ou autor destaca três
momentos dessa nova conjuntura:

o primeiro se caracteriza por um intenso esforço em trazer para o debate público


constituído em torno do “problema favela” a palavra “remoção”; o segundo pela
consolidação da crítica aos críticos da remoção como política, utilizando-se e
apoiando-se nos desdobramentos dos das “chuvas de abril” de 2010; por fim, os
deslocamentos populacionais passam a ser tratados, logo após, como um “legado”
da organização e realização dos Jogos Olímpicos de 2016 e da Copa do Mundo
de 2014. A conjuntura específica aberta neste período, principalmente a partir dos
megaeventos esportivos, acabaria por formar o contexto favorável à retomada da
via da erradicação como maneira especifica do Estado lidar com as favelas,
ressignificando o termo “remoção”, e situando-o como uma dimensão importante

161
nas práticas de gestão do Estado de determinados territórios e populações.
(MAGALHÃES, 2013: p.2-3).

As novas formas de remoção aparecem mais claramente vinculada às obras


realizadas em razão dos eventos esportivos internacionais e à operação urbana
na área portuária, tal como denuncia o "Dossiê do Comitê Popular da Copa e das
Olimpíadas no Rio de Janeiro" (2014):

Os megaeventos esportivos no Rio de Janeiro marcaram o retorno da forma mais


violenta de desrepeito ao Direito à Moradia na cidade. A coalizão de forças
políticas somada aos interesses de grandes empreiteiras acelerou a “limpeza
social” de áreas valorizadas da cidade, e acelerou a abertura de novas frentes
lucrativas para empreendimentos de alto padrão. A atualização dos dados reforça
o que já vinha se demonstrando. Trata-se de uma política de relocalização dos
pobres na cidade a serviço de interesses imobiliários e oportunidades de
negócios, acompanhada de ações violentas e ilegais.

De acordo com o levantamento apresentado no Dossiê, foram 4.772 famílias


removidas na cidade, "totalizando cerca 16.700 pessoas de 29 comunidades" -
dados esses considerados pelo próprio documento como subdimensionados.
Ainda segundo o mapeamento realizado pelo Comitê, 3.507 dessas famílias
foram removidas em razão de obras diretamente ligadas aos megaventos
esportivos.

Se a questão da remoção se manifesta mais explicitamente na forma de conflitos


em torno dos megaeventos esportivos, é possível dizer também que, ao longo dos
anos 2000, se constroem mecanismos discursivos e formais de legitimação dessa
prática. O novo plano diretor da cidade, aprovado em 2011 em substituição ao de
1992, apesar de se constituir muito mais como um documento pro forma, ilustra
essa questão com as mudanças de enfoque sobre as favelas.

No plano de 1992, um dos princípios da política de uso e ocupação do solo do


município era justamente a "não remoção de favelas" (Art. 44), dispositivo que
desaparece da lei de 2011. Na nova versão do plano diretor, a urbanização de
favelas é considerada como uma das diretrizes da política urbana, mas
"ressalvadas as situações de risco e de proteção ambiental" (Art. 3o). Algo
bastante diferente do que era preconizado em 1992, quando, segundo o plano
diretor, os projetos de urbanização de favelas deveriam contemplar "quando
possível tecnicamente, soluções que eliminem os fatores de risco para os
moradores". Ou seja, a opção era claramente por engendrar esforços necessários

162
para garantir a permanência das pessoas nas áreas ocupadas. O novo texto
incorporado ao plano de 2011 é ambíguo e sugere a interpretação de que no caso
de situações de risco e de proteção ambiental a urbanização não seria a ação
adequada. Claramente, se opera no texto da lei uma mudança de enfoque sobre
as favelas, oferecendo respaldo para possíveis ações de remoção. Pois se sabe
que muitas situações de risco podem ser eliminadas, por exemplo, com obras de
engenharia, como demonstra fartamente a experiência do próprio programa
Favela Bairro. E se sabe também que quando se trata de assentamentos de baixa
renda, o interesse de proteção ambiental pode colidir com outro direito social: o
direito à moradia. E aí, é no caso concreto que a questão deve ser analisada.

Outro aspecto que merece atenção no plano diretor de 2011 que está relacionada
à essa resignificação da questão da favela, diz respeito à ênfase atribuída à
noção de paisagem. O plano valoriza a paisagem carioca a ponto de considerada
como "o mais valioso ativo da cidade, responsável pela sua consagração como
um ícone mundial (...)" (Art. 169). Embora se possa concordar com a relevância
da paisagem na conformação da cidade do Rio de Janeiro, o problema, na
perspectiva da questão das favelas, da moradia e da segurança na posse, é que
não há no plano qualquer dispositivo que reconheça as favelas existentes como
parte integrante dessa paisagem, o que abre a possibilidade por todo tipo de
interpretação.

Essas novas abordagens contidas no plano diretor de 2011 alimentam, ao menos


subliminarmente, a ideia de remoção como um tipo de intervenção não apenas
possível, como justificável e necessário.

3.4.4. Jogos Panamericanos e Olimpíadas: a opção pela Barra

Desde os anos 1990, se alimentou no Rio de Janeiro a ideia, influenciada pela


propaganda da experiência de Barcelona como caso de sucesso, de que a
realização das Olimpíadas e/ou outros grandes eventos eram oportunidades para
a cidade viabilizar investimentos em infraestrutura, atrair empresas que
movimentariam a economia local e se afirmar como destino turístico privilegiado
no cenário internacional.

Nos anos 2000/2010, as promessas de grandes transformações urbanas a partir


da realização de megaeventos esportivos poderiam, enfim, se tornar reais, afinal
três dos maiores deles seriam realizados na cidade em menos de dez anos: os

163
Jogos Panamericandos em 2007; a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e o
Jogos Olímpicos em 201696.

Sem dúvida, trata-se de um período de realização de muitas obras na cidade do


Rio de Janeiro. No entanto, do ponto de vista urbanístico, importa observar, antes
de tudo, que, com as obras relacionadas aos eventos esportivos e as ações
conduzidas de modo geral pela prefeitura, há, claramente, uma opção política
pela região da Barra da Tijuca, ainda que nem todas as intervenções sejam
localizadas especificamente nessa região. Assim, ainda que se fale em
"transformações urbanas", as obras executadas e em andamento acabam por
reforçar, de modo geral, tendências que estavam em curso na cidade.

De acordo com as informações disponibilizadas sobre os projetos em


implementação direta ou indiretamente associados aos Jogos Olímpicos, os
investimentos são organizados em duas categorias: "Projetos Olímpicos
Municipais", que são aqueles diretamente ligados aos Jogos, e "Plano de Políticas
Públicas", que envolve as ações das três esferas de governo e que não são
diretamente vinculadas ao evento olímpico, "mas que estão sendo concretizadas
graças à realização dos Jogos"97.

Considerando apenas a primeira categoria, estão previstos o total de


investimentos de R$6,6 bilhões, distribuídos em quatro "regiões olímpicas": Barra
da Tijuca, Deodoro, Copacabana e Maracanã (ver Mapa 10). Os projetos
localizados na Região da Barra da Tijuca, entre eles a Vila dos Atletas e o Parque
Olímpico, representam pouco mais de 84,4% dos investimentos, o que por si só
demonstra a absoluta priorização dessa região98.

96
Em relação às intervenções no espaço urbano, são os Jogos Panamericanos e principalmente
os Jogos Olímpicos que têm realmente relevância, uma vez que as ações para a Copa do Mundo
praticamente ficaram restritas à reforma (polêmica) do estádio do Maracanã.
97
As informações constam do site "Cidade Olímpica": www.cidadeolimpica.com.br, que apresenta
o quadro de projetos e investimentos por categoria, identificando os valores correspondentes a
cada ação.
98
Os números correspondem ao que consta da Matriz de Responsabilidades atualizada em 28 de
janeiro de 2015, que não tinha ainda valores definidos para as instalações complementares de
nenhuma das regiões. Disponível em: <http://www.apo.gov.br/wp-
content/uploads/2015/01/MatrizV3-28_01_2015.pdf?66df7a>. Acesso em 04/05/2015, às 16:32h.

164
As ações relativas ao "Plano de Políticas Públicas" estão organizadas em seis
temas: Mobilidade; Meio Ambiente; Renovação Urbana; Social; Educação,
Ciência e Tecnologia; e Infraestrutura Esportiva99. Do total de cerca de R$24,5
bilhões de investimentos, aproximadamente R$13,6 bilhões se referem a obras de
mobilidade, R$8,95 bilhões a renovação urbana e aproximadamente R$1,7 bilhão
a ações de meio ambiente, o que somado ultrapassa 98% do total. A
territorialização desses investimentos também aponta para a priorização da região
da Barra da Tijuca. Cerca de 38,2% do total correspondem aos recursos
destinados à renovação da área portuária e implantação do sistema de veículos
leves sobre trilhos (VLT) na área central. Porém, mais de 54% estão relacionadas
às obras de mobilidade que convergem para a região da Barra da Tijuca (metrô e
linhas de BRT) e obras de saneamento e recuperação ambiental na mesma
região da Barra da Tijuca.

A análise conjunta das duas categorias de investimentos mostra que 60% dos
recursos mobilizados favorecem diretamente a intensificação da urbanização e da
ocupação da região da Barra da Tijuca, onde atualmente já se concentra o
mercado imobiliário formal da cidade. Mesmo com o significativo aporte de
recursos na área central do Rio de Janeiro, a operação urbana Porto Maravilha
não representa uma contraposição real à tendência de dispersão urbana, que
deverá, inclusive, ser fomentada com o expressivo volume de investimentos na
região da Barra da Tijuca. A renovação da área portuária pode ser entendida
como abertura de uma nova área de exploração do mercado imobiliário que,
possivelmente, competirá - e já está competindo - com o centro atual da cidade,
mas com pouca ou nenhuma interferência sobre o mercado da região da Barra da
Tijuca.

Para bom entendimento do significado dessas duas áreas de concentração dos


investimentos públicos para a dinâmica urbana carioca, a análise do Engenheiro
Claudio Hermolim, diretor da construtora e incorporadora PDG e 2o vice-
presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário
(ADEMI-RJ)100, é esclarecedora e dispensa quaisquer comentários adicionais:

99
As informações foram extraídas da planilha do Plano de Políticas Públicas atualizada em 24 de
abril de 2015. Disponível em: <http://www.apo.gov.br/wp-
content/downloads/abril/PlanodePoliticasPublicasV2.pdf?66df7a>. Acesso em 04/05/2015, às
16:48h.
100
Entrevista concedida ao Canal Menorah na TV, publicada em 29 de janeiro de 2015. Disponível
em: < https://www.youtube.com/watch?v=2BjqQLlyDaQ&feature=youtu.be>. Acesso em
13/02/2015, às 09:59h.

166
Todos esses investimentos de infraestrutura, como a gente falou aqui sobre os
BRT's, expansão do metrô e outras vias, elas são expansões da cidade e abrem
novos horizontes para o mercado imobiliário. A gente falou sobre o Recreio. O
Recreio, até pouco tempo atrás, antes de você ter o BRT Transoeste, antes de
você ter o metrô chegando à Barra da Tijuca, ou a própria duplicação da Avenida
das Américas, era quase que uma roça. Então, a pessoa morar no Recreio, ela
parecia que estava morando numa outra cidade. Na hora que você duplica a
Avenida das Américas, traz o BRT e o BRT se liga ao metrô da Barra da Tijuca, é
como se você estivesse incluindo o Recreio dos Bandeirantes dentro da cidade do
Rio de Janeiro. E você gera atratividade para o mercado imobiliário porque as
pessoas passam a ter interesse em morar lá. Porque eles não veem mais o
Recreio como quase uma outra cidade e sim como mais um bairro da cidade do
Rio de Janeiro. O Porto Maravilha é uma outra oportunidade de investimento,
porque a região do Porto, ela já é uma região que naturalmente ela tem a logística
pronta, né?! O nosso porto, ele está do lado do centro, dos metrôs, está do lado
do Aeroporto Santos Dummont, do lado da Ponte Rio-Niterói, Avenida Brasil e
Linha Vermelha, ou seja, em termos de logística, está tudo pronto, você não
precisa fazer mais nada como você teve que fazer lá no Recreio dos Bandeirantes.
Então o Porto, ele já tinha essa vocação pela logística já implantada. O que
faltava? O poder público entrar lá e gerar atratividade. Por que o poder público
precisava entrar lá? Porque mais de 80% dos terrenos do Porto são públicos, seja
federal, municipal, ou estadual. Então se não houvesse uma intervenção do poder
público para transformar esses terrenos em oportunidade para o mercado
imobiliário, nada poderia ser feito, né?! Porque os outros 15% dos terrenos não
iam fazer nenhum tipo de transformação. Quando o poder público entrou de
cabeça, isso liderado pelo prefeito Eduardo Paes, que foi uma das grandes
bandeiras da sua campanha, foi efetivamente deixar esse legado do Porto
Maravilha. Ele caiu de cabeça, fez com que o governo federal sentasse na mesa
com o governo estadual e com o governo municipal, pegassem todos esses
terrenos que estavam subaproveitados, abandonados, tinham invasões no Porto,
ocupando uma área que pode ser super valorizada com comunidades ou outras
coisas ainda piores, ele então entrou, limpou, fez a operação consorciada e hoje
a gente está vendo um outro horizonte se criar no Porto Maravilha. Eu não tenho
dúvida que a região do Porto vai ser uma região muito valorizada da cidade do Rio
de Janeiro. (Hermolim, 2014. Grifo nosso).

A preparação da cidade para os Jogos Panamericanos, realizados em 2007, já


indicava a opção pela região da Barra da Tijuca como lugar privilegiado de
investimentos na cidade. Além da construção de várias instalações esportivas, a
região recebeu também a "Vila do Pan", um grande conjunto de 17 prédios e
1.480 apartamentos utilizados pelos atletas durante os jogos.

Do ponto de vista arquitetônico e urbanístico, o projeto em nada difere do padrão


de condomínios fechados reproduzido pelo mercado imobiliário na região da
Barra da Tijuca. Porém, sua viabilização contou com uma articulação entre

167
setores público e privado que já indicava a lógica que orientaria operações
imobiliárias e projetos urbanos, ligados ou não aos eventos esportivos, a partir de
então. Nessa suposta parceira público-privada, alguns mecanismos adotados
permitiram benefícios extraordinários aos empreendedores privados, conforme
explica Veríssimo (2011).

O primeiro deles, que já se tornou até comum nas práticas urbanísticas do Rio de
Janeiro, é o aumento do potencial construtivo do terreno e mudança de usos
admitidos no local, entre outras vantagens, por meio da alteração pontual das
normas vigentes. Ao se adaptar a legislação urbanística, que no caso era
bastante restritiva até pela fragilidade ambiental da área, se promoveu também
expressiva valorização do imóvel, uma vez que este passou a poder receber um
número muito maior de unidades. Outro aspecto relevante foi a participação da
prefeitura na implantação de infraestrutura para o empreendimento, o que em
condições normais, inclusive de acordo com a previsão legal, seria a cargo do
empreendedor.

Não é demais lembrar que, em se tratando de produto similar ao que usualmente


já era ofertado no mercado imobiliário da região da Barra da Tijuca, o caso não
representava nenhum risco adicional ao empreendedor. Ainda assim, além das
vantagens urbanísticas já indicadas, Veríssimo observa que a Vila do Pan foi
beneficiada também por: uma linha de crédito específica e mais favorável que as
disponíveis à época; o aluguel das unidades construídas durante o período de
utilização do conjunto pela organização dos Jogos; e a propaganda (categoria de
custo de qualquer empreendimento imobiliário) gratuita em razão da grande
exposição do equipamento olímpico nas diferentes mídias (Veríssimo, 2011). Na
chamada parceria público-privado, o que poderia ser entendido como o ganho
público seria o fato de se ter as unidades para atender aos atletas durante o
evento esportivo. Não há, porém, nenhum ganho real para a cidade com o
empreendimento que possa ser compreendido como benefício coletivo. Nem
mesmo a exigência de ao menos um percentual de unidades de interesse social
foi imposta aos empreendedores, o que poderia ter até uma dimensão simbólica
importante.

Em 2004, representante da ADEMI explicava, de acordo com matéria publicada


pelo Jornal O Dia, o papel desempenhado pela construção da Vila do Pan de
fomentar o mercado, mas se antecipando a ele, e de promover previamente a
valorização de área ainda pouca ocupada onde foi construída:

168
O Pan veio acelerar ainda mais o crescimento imobiliário na região. A
coordenadora da Pesquisa Ademi, Gabriella Szklo, explica que a expansão é
natural porque só há terreno na área e o Pan está antecipando os projetos de
lançamento. (Jornal O DIA, 24 de outubro de 2004. Grifo nosso)101

Para os Jogos Olímpicos de 2016, os dois empreendimentos principais - Vila dos


Atletas e Parque Olímpico - localizam-se também na região da Barra da Tijuca,
relativamente próximos à Vila do Pan. Os empreendimentos são diretamente
beneficiados pelo sistema de BRTs em implantação - tido com um dos principais
itens do legado olímpico - pelo Parque dos Atletas (grande parque público),
situado entre os dois, e pela intervenção denominada "viário olímpico", que
envolve duplicação de vias, melhorias de calçadas, entre outras ações que
garantirão a integração físico-espacial entre a Vila dos Atletas e o Parque
Olímpico.

A Vila dos Atletas talvez seja o empreendimento que melhor expressa a opção
pela região da Barra da Tijuca. Estão sendo construídos ali "3.604 apartamentos
com 31 prédios de 17 pavimentos, distribuídos por sete condomínios
independentes e aproximadamente 1,8 milhão m² de área construída"102. Trata-se
de um empreendimento privado que, tal como a Vila do Pan, servirá aos atletas
durante os eventos olímpicos. Mas não está se fazendo ali nada diferente do que
já se faz nessa região da Barra da Tijuca. A grande diferença é que o
empreendimento conta com o impulso dado pela realização de um megaevento e,
acima de tudo, com os investimentos públicos que ocorrem paralelamente. Numa
área de ocupação ainda esparsa, com grandes glebas vazias, não apenas se
autoriza a construção de significativa quantidade de edifícios, como se promove,
com alocação de recursos públicos, melhorias urbanísticas que dão suporte (e
possivelmente viabilidade) aos empreendimentos privados - o atual e os futuros. E
não se trata apenas de uma discussão da alocação de recursos públicos, mas de
construção de cidade. Mesmo que todas essas ações envolvessem unicamente
recursos privados, ainda assim, seria necessário discutir e estabelecer o interesse
público delas. Ou seja, seria necessário se ter muito claro qual impacto e quais os
benefícios que um empreendimento como este promove na cidade.
Conceitualmente, esse é um aspecto que parece essencial na reflexão sobre o
papel do poder público no desenvolvimento urbano, que deve pautar e direcionar

101
Disponível em: < http://www.ademi.org.br/article.php3?id_article=5541>. Acesso em:
06/05/2015, às 10:16h.
102
Dados extraídos do site do empreendimento "Ilha Pura", cuja primeira etapa de execução
compreende a Vila dos Atletas, abrangendo cerca de apenas um terço da gleba. Disponível em: <
http://ilhapura2016.com.br/descricao/>. Acesso em: 05/05/2015, às 18:36h.

169
a ação privada, visando que a cidade e a propriedade urbana cumpram suas
funções sociais, tal como estabelecido pela Constituição Federal.

Da mesma forma que nos interrogávamos anteriormente (ver capítulo 2) sobre o


que seria a cidade do Rio de Janeiro hoje se não tivesse sido feita a opção, a
custos altíssimos, pela expansão urbana e ocupação da vasta área da região da
Barra da Tijuca, se pode perguntar sobre o significado dos investimentos
olímpicos se esses tivessem sido concentrados na área central e subúrbios.
Talvez se pudesse estar discutindo de fato um legado para a cidade. Até porque a
história recente do Rio de Janeiro mostra que a expansão para oeste tem se
constituído como fator de promoção de maior segregação do espaço urbano
carioca.

3.5. Conclusões parciais

3.5.1. Forma urbana, objetos de intervenção e agentes formuladores dos projetos

As três gerações de projetos urbanos identificadas e descritas neste capítulo


revelam mudanças de significado e forma do papel do projeto urbano na cidade
do Rio de Janeiro nas últimas décadas. E se traduzem também em concepções
urbanísticas diversas, ainda que se possa observar, sobretudo a partir de 1993,
uma clara continuidade política e ideológica na administração municipal.

Para além do contexto mais geral de cada período e consideradas as


especificidades de cada projeto, merecem destaque ao menos três aspectos que
parecem essenciais para compreensão das distinções de cada período: a forma
urbana, os objetos de intervenção e os agentes formuladores dos projetos.

Nos projetos dos anos 1980, a forma urbana é compreendida como processo. Ou
seja, o projeto parte do reconhecimento do existente, que não é apenas o espaço
físico, mas também suas formas de apropriação pelos grupos sociais. O resultado
formal da intervenção se definirá ao longo do tempo e em função da participação
e adesão dos usuários ao projeto. Nos anos 1990, a forma urbana é desenhada.
Tem também como princípio o respeito ao existente, mas agora tem mais peso a
visão que confere certa autonomia à forma urbana. É valorizada a capacidade do
projeto urbano de reordenar os espaços públicos e reconfigurar o ambiente
construído a partir do desenho urbano. A partir dos anos 2000, a forma urbana é
tratada como imagem. A cidade existente é o pano de fundo e as intervenções

170
urbanas produzem novos símbolos, se expressam por grandes obras que
sugerem uma cidade dinâmica.

Quanto aos objetos de intervenção dos projetos urbanos também há mudanças


significativas, mas nesse caso é necessário distinguir as diferentes temáticas
abordadas. Ainda que anos 1990, como se viu, o espaço público seja o objeto
principal do projeto urbano, as abordagens sobre as duas temáticas mais
recorrentes - área central e favelas - permitem pontuar as características de cada
geração de projetos urbanos.

Em relação a área central, a primeira geração de projetos tem como objeto o


próprio bairro Centro. De um lado, trata da proteção legal de alguns conjuntos
urbanos. Por outro envolve inúmeras pequenas intervenções nos espaços
públicos (ruas, praças e largos). Na segunda geração de projetos urbanos,
embora tenham continuidade as ações do período anterior, o espaço pericentral
passa a ser objeto de projetos urbanos. Aí não são apenas os espaços públicos,
mas áreas deterioradas e/ou subaproveitadas para as quais são propostos
projetos com o intuito de introduzir novas dinâmicas na área central. E a terceira
geração de projetos tem como objeto prioritário a área portuária. Trata-se de uma
grande área vista como vazio (apesar dos usos e atividades ali existentes) a ser
ocupado.

Do mesmo modo, a temática das favelas não envolve um único objeto de


intervenção. Nos anos 1980, o objeto das ações em favelas não é bem
delimitado. As ações são pulverizadas, às vezes muito pontuais numa ou noutra
favela. Nos anos 1990, a problemática das favelas é bem mais conhecida, até
mesmo pelas experiências da década anterior, o que favoreceu intervenções mais
articuladas. Mas é importante destacar que as ações de urbanização passam a
abranger, ao menos potencialmente, o conjunto de favelas da cidade e cada
projeto tem como objeto uma favela integralmente. Ou seja, o objeto da
intervenção é a favela como um todo e os programas municipais abrangem todos
os tipos de favela. Nos projetos da última geração, há o interesse específico sobre
as favelas mais emblemáticas da cidade. É nessas favelas que são construídas
as grandes obras - em especial os teleféricos, planos inclinados, elevadores -
cujos impactos não se restringem às próprias favelas, mas extrapolam para a
cidade e redefinem a paisagem urbana.

A outra diferença marcante e, pode se dizer, definidora da natureza dos projetos


urbanos de cada geração diz respeito aos agentes formuladores dos projetos.

171
Nos anos 1980, os protagonistas são os técnicos municipais. Ao mesmo tempo
que buscavam novas práticas do urbanismo, favorecidas pelo ambiente de
redemocratização, eram agentes da máquina pública, o que talvez explique a
dupla característica dos projetos de serem ações no espaço urbano ao longo do
tempo e de se traduzirem também em propostas normativas. Nos anos 1990, o
arquiteto profissional liberal e de escritórios de arquitetura assume o
protagonismo.Trata-se de um novo agente na formulação de propostas
urbanísticas para a cidade, pois não são mais apenas uma categoria profissional
que discute a cidade, mas são responsáveis pela coordenação de projetos. E a
resposta desse tipo de profissional é por meio do desenho urbano, de projetos
que devem orientar a execução das obras. A partir dos anos 2000, surgem na
cena carioca projetos elaborados por estrelas da arquitetura internacional, que
contribuem decisivamente para a valorização de objetos arquitetônicos nos
projetos urbanos e a dimensão icônica da arquitetura. Paralelamente, as grandes
empreiteiras e suas subsidiárias do ramo de construção imobiliária é que passam
a ter papel privilegiado na definição e mesmo concepção dos projetos urbanos.
Não é à toa que grandes obras voltam à ordem do dia, associadas à liberação de
índices urbanísticos e impulsionadas pelo novo sopro desenvolvimentista vivido
pelo país que, mais recentemente, parece já ter entrado em novo ciclo
(descendente) da economia.

3.5.2. Projetos urbanos e o desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro

As três gerações de projetos urbanos da cidade do Rio de Janeiro aqui analisadas


têm em comum o fato de não terem interferido naquilo que é abordado nesta tese
como os dois grandes processos urbanos estruturantes da cidade nas ultimas
décadas: a dispersão urbana, com movimento da cidade na direção oeste do
território, e o crescimento da informalidade urbana.

A primeira geração de projetos urbanos, pode se dizer, se beneficiou e se


viabilizou em alguma medida justamente em razão desses processos. A
consolidação da região da Barra da Tijuca como vetor de expansão da cidade
abria espaço para as ações preservacionistas no centro, uma vez que era para
aquela região que se voltava o mercado imobiliário, inclusive com perspectivas de
lá se instalar o novo centro metropolitano. A expansão da informalidade, se não é
possível dizer que fosse propriamente fomentada, é forçoso observar que
resultava em novas áreas para o exercício do clientelismo político, no momento

172
em que o Estado se posicionava contrariamente às políticas de remoção de
favelas do passado.

A segunda geração de projetos urbanos ao mesmo tempo que se estrutura sob o


slogan do "urbanismo de volta às ruas" e da valorização do espaço público, que,
de certo modo, está relacionado com o resgate da cidade tradicional, não
intervém nesses processos maiores, já muito claros na década de 1990. Mas a
não intervenção nas lógicas do mercado era também postura coerente com as
opções políticas do período, que pregava a menor regulação dos mercados pelo
poder público. A região da Barra da Tijuca viu sua ocupação se intensificar,
continuando a ser beneficiada por investimentos públicos, inclusive grandes obras
viárias, o que se mostra contraditório com o discurso. E mesmo o amplo programa
de urbanização de favelas, apesar de sua relevância, não conseguiu conter a
informalidade crescente, pois não incidia sobre as causas.

E a terceira geração de projetos integra uma estratégia política que não apenas
não interfere nos fenômenos de dispersão e informalidade, como tende a
contribuir para reforçá-los. A concentração de investimentos na região da Barra
da Tijuca em nome da realização dos grandes eventos esportivos internacionais e
a convergência da nova infraestrutura de transportes (BRTs e expansão do metrô)
para essa região demonstram a opção pela criação de novas condições para
intensificar sua ocupação. Ao mesmo tempo, a produção habitacional, no
momento em que finalmente há política de subsídio no país, direciona a
população de baixa renda para o limite da urbanização, longe do centro e longe
das áreas destinadas aos mercados de média e alta renda. A renovação da área
portuária, embora seja anunciada como prioridade, diante das renovadas
tendências de dispersão urbana, se mostra mais como projeto de caráter
especulativo do que como parte fundamental de um novo projeto de cidade.

173
Capítulo 4
NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA NA RENOVAÇÃO URBANA DA ÁREA
PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO

Em 2009, o poder público municipal deu início à implementação da "Operação


Urbana Consorciada (OUC) da região do Porto do Rio de Janeiro". O fato de se
tratar de um projeto em andamento e as polêmicas em torno do mesmo impõem
certos limites à análise da operação, mais conhecida como "Porto Maravilha".
Ainda assim se justifica no âmbito desta tese, pois se trata de um projeto de
grande porte, carro-chefe da atual administração junto com as intervenções
olímpicas, que nos permite, a partir de um caso específico, refletir sobre as
diferentes formas de negligência urbanística: estrutural, operacional e,
especialmente, a projetual.

Primeiro projeto urbano carioca a utilizar o instrumento da OUC, previsto no


Estatuto da Cidade, a operação vem realizando diversas obras, com objetivo de
promover a renovação da área portuária num prazo de 15 anos. Além de
abranger uma área que é, há muito tempo, tida como campo de possibilidades
para a cidade, essa operação urbana envolve a movimentação de expressivo
montante de recursos e um modelo de gestão que a distingue de todas as demais
experiências urbanísticas realizadas no Rio de Janeiro. Entretanto, estrutura-se
em torno de um projeto urbano frágil e sem adesão social. É festejada como a
maior "parceria público-privada do país", mas trata-se de uma operação que
privilegia o arranjo financeiro e a criação de oportunidades para o mercado, em
detrimento do projeto como elemento estruturador do processo de transformação
da área de intervenção.

Na análise aqui empreendida, abordamos inicialmente algumas questões de


ordem mais geral, que dizem respeito à problemática da área portuária do Rio de
Janeiro, aos vários projetos propostas nos últimos anos e ao lançamento do
projeto Porto Maravilha. Em seguida, trabalhamos o projeto urbano proposto,
ressaltando que suas fragilidades configuram um quadro de muitas incertezas
quanto ao destino da área portuária carioca. Com ênfase nos aspectos
urbanísticos da operação, são abordadas tanto questões pertinentes à escala da
própria área de intervenção, como outras relativas à operação na escala da
cidade.

174
5.1. "Sonho que virou realidade" ou projeto sem adesão social

5.1.1. Vários projetos para a área portuária do Rio de Janeiro

Nas últimas décadas do século XX, o processo de desindustrialização, a


modernização de navios, o surgimento dos containers, a reestruturação do
capitalismo na globalização são alguns dos fatores que impactaram o
funcionamento de áreas portuárias por todo o mundo. A conexão física-espacial
entre as cidades e seus portos, que marcou e foi determinante para o
desenvolvimento de muitas delas deixava de ser necessária ou mesmo desejável.
As novas exigências espaciais para funcionamento dos portos resultaram, em
muitos casos, em relocalizações e/ou na perda de função de grandes áreas que
deram suporte às atividades portuárias entre os séculos XIX e XX, tornando-as
subutilizadas.

O fenômeno da obsolescência de espaços urbanos - que Merlin e Choay (1988)


relacionam ao surgimento de novas tecnologias, de novas formas de organização
do trabalho, de meios de aumentar a produtividade - atinge, nessa época, não
apenas as áreas portuárias, mas também áreas industriais, infraestruturas
ferroviárias etc., ocorrendo mais fortemente no hemisfério norte, mas também
com repercussões em países do sul. No mesmo período, os paradigmas do
urbanismo modernista-funcionalista estavam já em crise e é nesse contexto que
experiências de projetos urbanos despontam como alternativas para o
enfrentamento de problemáticas próprias da cidade contemporânea. O
reaproveitamento desses espaços torna-se o mote de inúmeras intervenções
urbanas, muitas vezes cumprindo papel central em estratégias de
reposicionamento das cidades na economia regional, nacional ou global.

Os projetos para áreas portuárias ocupam lugar de destaque nas experiências


internacionais de intervenções urbanas das últimas décadas, bem como na
bibliografia sobre projetos urbanos. Além de serem, normalmente, grandes áreas
de localização privilegiada em relação aos espaços centrais das cidades, portanto
com grande potencial de aproveitamento econômico, os espaços portuários
liberados, em muitos casos, abriram possibilidades de novas formas de interação
entre as cidades e seus waterfronts.

No Rio de Janeiro, o fenômeno de subutilização da retroárea do porto construído


no início do século XX se verifica a partir da década de 1960 e pelo menos desde

175
a década de 1980 diversos projetos já foram propostos para a área portuária, por
diferentes atores sociais e visando diferentes objetivos103.

Em 1985, a Revista da Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) divulgava


uma proposta de modernização do "Porto do Rio", concebida pelo empresariado,
que pretendia construir na área portuária um "centro internacional de comércio",
com infraestrutura avançada de telecomunicações que permitiria, segundo a
matéria, a "conexão com o mundo" e "maior eficiência e rapidez no comércio
exterior". A proposta pretendia constituir um "teleporto" na área portuária, por
meio do redesenho de um conjunto de quadras situadas ao longo do cais do
porto, a partir da Av. Francisco Bicalho, na altura da rodoviária. A área renovada
teria prédios de escritórios, centro de convenções, um "parque a beira mar", e
ainda adotaria soluções inovadoras de mobilidade, tais como: restrição ao uso de
carros particulares convencionais e previsão de circulação em carros elétricos;
trens de superfície com tecnologia eletromagnética que fariam a conexão com
linhas de metrô e aeroportos (Revista da ACRJ, Ano XLVII, n. 1215, nov/1985, p.
24-26). A proposta não foi adiante, mas talvez seja uma das primeiras ideias de
projeto urbano para a área portuária do Rio de Janeiro, já incorporando elementos
de um receituário que começava a se formar a partir de experiências
internacionais.

Figura 19. Projeto Teleporto


Rio na área portuária (1985).
Em meados dos anos 1980, a
ACRJ discutia um grande
projeto de renovação urbana na
área portuária, visando à
implantação ali de um teleporto.
Fontes: ACRJ /
http://docpro.com.br/revistadoe
mpresario/

No ano de 1987, dois outros projetos são propostos para a área portuária. Um,
intitulado "Plano de Desenvolvimento Portuário", encomendado pelo Ministério
dos Transportes em parceria com a Portobrás (Empresa de Portos do Brasil, já

103
A síntese aqui apresentada, que menciona os principais projetos para área portuária no período
entre os anos 1980 e 2010, se baseia em resultados de pesquisas anteriores desenvolvidas no
Laboratório de Projetos Urbanos - LAPU, PROURB/UFRJ, coordenado pela Prof. Denise Pinheiro
Machado, com as quais este autor colaborou entre os anos 1990 e 2000.

176
extinta), que tinha por objetivo a elaboração de um plano de ações para os dez
anos seguintes, em atendimento às necessidades decorrentes das expectativas
de expansão das atividades portuárias. O outro, foi o importante projeto SAGAS,
iniciado em 1984 e que resultou na criação Área de Proteção Ambiental (APA)
dos bairros de Saúde, Gamboa, Santo Cristo e Centro, instituída pela Lei 971 de 4
de maio de 1987 e regulamentada pelo Decreto 7351 de 14 de janeiro de 1988.
Seguindo a mesma linha do Corredor Cultural, o projeto SAGAS protegeu o
conjunto arquitetônico e urbanístico de valor histórico e cultural da área portuária
situado na área de ocupação mais antiga, anterior ao aterro para construção do
porto, incluindo os morros da região. Um grande número de imóveis foi
preservado e foram editados parâmetros urbanísticos com a intenção de manter
as características do tecido urbano histórico.

Dois anos depois, em 1989, a Portobras elaborava novo plano urbanístico, o


Plano de Desenvolvimento Urbano da Retaguarda do Porto do Rio de Janeiro.
Nesse plano, já se reconhece que algumas áreas não são mais adequadas às
necessidades operacionais das atividades portuárias, sendo previstas
possibilidades de incorporação das mesmas à cidade, com aproveitamento para
fins de comércio, serviços, residências e lazer.

Em 1991, a Cia Docas do Rio de Janeiro desenvolve mais um plano, agora


chamado "Área Portuária da Gamboa – Proposta de Revitalização", que,
considerando os diagnósticos que já vinham sendo apontados nos planos
anteriores, constitui uma proposta urbanística mais abrangente. O trabalho orienta
o aproveitamento de parte da área portuária por novos usos, nesse caso já
fazendo referências a experiências de outros países em revitalização de áreas
portuárias. As propostas indicam possibilidades de aproveitamento econômico
pela Cia Docas de áreas inexploradas naquele momento.

Em 1992, a prefeitura desenvolve o Projeto de Estruturação Urbana (PEU) da


Área Portuária. A proposta de nova legislação urbanística surgia no momento em
que a Cia Docas começava a sinalizar para as possibilidades de novas
destinações de parte da área de sua propriedade. A ação da prefeitura, de acordo
com a lógica que pautava a primeira geração de projetos urbanos identificada no
capítulo 3, promovia reformas normativas, tanto para a proteção do patrimônio
histórico, com o Projeto SAGAS, como para orientar os padrões de uso e
ocupação do solo na área de aterro do porto, com a elaboração do PEU.

177
Entre 1993 e 2000, já na fase da segunda geração de projetos urbanos, o modo
de atuação da prefeitura se altera. Passa a ser ela a principal formuladora de
propostas para a área portuária e várias são lançadas nesse período. Excetuando
o "Levantamento de Oportunidades Habitacionais" (1994) e o "Projeto Morro da
Conceição" (1998) que eram mais abrangentes, os demais projetos eram mais
localizados em alguns terrenos ou áreas: "Projeto Habitacional da Saúde" (1996);
"Projeto Enseada da Gamboa" (1997); "Projetos de Reabilitação de Cortiços /
Programa Novas Alternativas" (1997); "Projeto Píer Mauá" (1998). De acordo com
a lógica do urbanismo de projetos que pautava a gestão urbana naquele
momento, a implementação de vários projetos distribuídos pela extensa área
portuária deflagraria o processo mais amplo de sua incorporação à cidade.

A partir de 2001, a prefeitura volta a trabalhar em um plano global para a área


portuária, mas em torno de propostas de intervenções urbanísticas e não apenas
de propostas de reformulação da legislação. O "Plano de Recuperação e
Revitalização da Região Portuária" desenvolve ao longo de quase toda a década
diversos estudos e projetos, entre os quais o projeto executado da "Cidade do
Samba" (2005) e o não executado projeto para o Museu Guggenheim (2002).

Figura 20. Cidade do Samba e projeto do Museu Guggenheim. O projeto da Cidade do Samba
foi executado nos anos 2000, ocupando grande terreno da zona portuária e o projeto do arquiteto
Jean Nouvel, para construção do Museu Guggenheim no Píer Mauá, depois de muita polêmica,
não foi executado. Fonte: http://www.portomaravilha.com.br/; Ateliers Jean Nouvel
(http://www.jeannouvel.com/)

Ao analisar esses diversos planos e projetos para área portuária, Moreira (2004)
observa que ao longo do tempo se configura

a adoção de uma política para a área considerada histórica e de outra política para
a área portuária propriamente dita. A primeira objeto de proteção, e a segunda,
passível de renovação, com exceção da linha dos cais e seus armazéns, também
preservados. (MOREIRA, 2004. p. 96)

Para a autora, as propostas para a área portuária do Rio de Janeiro se situam


entre a tabula rasa e a preservação. A difícil conciliação dessas duas agendas
explica, em parte, por que tantos planos e projetos, ao longo de mais de vinte
anos, não foram implementados, até o lançamento o Porto Maravilha, quando a

178
linha da renovação se impôs. A questão fundiária - com predominância de
terrenos públicos, sendo a maior parte de propriedade da União - e as
divergências políticas entre titulares das três esferas de governo sempre foram
apontados, também, como fatores impeditivos da implementação de planos e
projetos na área portuária do Rio de Janeiro. Mas pelo menos dois outros
aspectos, relativos à própria configuração urbanística da área portuária do Rio de
Janeiro, também parecem importantes na comparação com processos de outras
cidades.

O primeiro diz respeito ao fato de que um dos grandes atrativos, comum à maioria
dos projetos em áreas portuárias, se não a todos, é a oportunidade de abertura da
cidade para o mar ou rio. A possibilidade de se criar uma nova frente para a
cidade, na linha d'água. No Rio de Janeiro, no entanto, essa questão nunca foi
exatamente importante, pois a cidade tem já uma fortíssima relação com o mar
em toda a Zona Sul, construída ao longo do século XX. A tendência de expansão
da cidade foi, nessas mesmas décadas de proposições para a área portuária, e
ainda é, pautada pela possibilidade de ocupação da orla da Barra da Tijuca e do
Recreio dos Bandeirantes. Talvez esse aspecto pudesse ter maior significado se
a área portuária fosse pensada no âmbito de um amplo projeto metropolitano em
torno da Baía de Guanabara.

Nessa hipótese, provavelmente se poderia, sim, falar um tipo de planejamento


reestruturador da dinâmica urbana e ambiental não apenas carioca, mas de
escala metropolitana. O que, inclusive, seria particularmente pertinente no
momento atual, em que não só o Rio de Janeiro lança seu Porto Maravilha, mas
também Niterói, do outro lado da baía, anuncia sua operação urbana na área
central. Mas isso jamais esteve em pauta e nem mesmo o Programa de
Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), em mais de vinte anos, conseguiu
apresentar resultados relevantes104.

O segundo aspecto que distingue significativamente a situação da área portuária


do Rio de Janeiro de outras, e muito particularmente a de Buenos Aires,
frequentemente tida como referência por ser uma experiência latino-americana, é
que apesar de fazer parte do que é reconhecido como área central da cidade, ela
está deslocada do Centro. No caso de Buenos Aires, o Puerto Madero está

104
Impossível deixar de registrar as polêmicas recentes em torno da qualidade das águas da Baía
de Guanabara para receber provas durante os Jogos Olímpicos. Anunciada inicialmente como
parte do legado olímpico, as autoridades públicas já reconheceram que a despoluição da baía não
será possível até 2016.

179
imbricado com Centro da cidade, com espaços simbólicos importantíssimos como
a Casa Rosada e a Avenida de Mayo, o que lhe conferia, aparentemente,
vantagens para sua reapropriação. Devendo se considerar, ainda, que no caso
carioca, a área portuária não é totalmente vazia. Estão ali presentes áreas
residenciais seculares, de camadas de renda mais baixa, o que não é,
definitivamente, um atrativo para os interesses do mercado imobiliário.

5.1.2. O "pacote legislativo" do Porto Maravilha

O projeto Porto Maravilha é, de certo modo, uma colagem de ideias ou partes de


vários desses projetos que vieram sendo propostos ao longo do tempo. Mas toma
forma com a constituição de um arranjo institucional que permitiu, pela utilização
do instrumento da operação urbana consorciada, a viabilização dos recursos
necessários à execução de uma série de obras viárias.

Apesar de há muito tempo a área portuária ser objeto de reflexões por parte dos
mais diferentes setores da sociedade, a configuração do projeto não se dá em
torno de pactos sociais amplos, mas pela ação voluntariosa do Poder Executivo
Municipal, em acordo com os governos Estadual e Federal e com apoio do setor
da construção civil.

Em 2009, o prefeito Eduardo Paes encaminhou para a Câmara de Vereadores os


projetos de lei que conformariam a base legal da OUC Porto Maravilha,
aprovados entre novembro e dezembro daquele ano, menos de um ano após o
início do mandato. As leis aprovadas foram:

 Lei Complementar 101 de 23 de novembro de 2009 que "Modifica o Plano


Diretor, autoriza o Poder Executivo a instituir a Operação Urbana
Consorciada da Região do Porto do Rio e dá outras providências";

 Lei Complementar 102 de 23 de novembro de 2009 que "Cria a Companhia


de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro -
CDURP e dá outras providências";

 Lei Complementar 105 de 22 de dezembro de 2009 que "Institui o


Programa Municipal de Parcerias Público-Privadas - PROPAR-RIO, e dá
outras providências".

180
O "pacote normativo"105 altera o plano diretor então vigente, cria a operação
urbana consorciada com definição de novos parâmetros urbanísticos, obras a
serem realizadas e condições de utilização dos Certificados de Potencial
Adicional de Construção (CEPACs), e cria a institucionalidade para se fazer a
concessão da gestão da área e dos recursos da operação para o setor privado.

Para a prefeitura, o Porto Maravilha é "um sonho que virou realidade". Contudo, a
opção pela linha da renovação urbana e das grandes obras, apesar do discurso
de revitalização e valorização do patrimônio cultural, provoca, desde os primeiros
momentos, reações de diversos setores dos movimentos sociais, de organizações
profissionais e da academia por diversas razões. Trata-se, na verdade, de um
projeto urbano sem adesão social.

Entre as críticas há, por um lado, o questionamento sobre a própria montagem da


operação, que possibilitou a canalização de recursos públicos para o
financiamento de obras, permite a cessão de terrenos públicos a empreendedores
privados e, ainda, prevê concessão de benefícios fiscais para investimentos ali
realizados. Por outro lado, a intervenção no Morro da Providência, tradicional
favela da cidade, foi marcada pelas ações de remoção de unidades habitacionais.
A justificativa seria pelo fato das casas estarem em situações de risco e das
relocações favorecerem o desadensamento da ocupação e de serem importantes
para a promoção do turismo (GALIZA; VAZ; SILVA)106. As remoções, não só de
casa, mas também de espaços públicos tradicionais, serviram à implantação de
projetos questionados pela própria comunidade, mas importantes do ponto de
vista midiático da OUC Porto Maravilha, como é o caso da implantação do
teleférico naquele morro.

105
Ao analisar o projeto Porto Maravilha, Oliveira (2012) também se refere a um “pacote de leis”
para descrever o modo como a operação urbana foi institucionalizada na cidade do Rio de Janeiro,
numa articulação entre Poder Executivo e Câmara de Vereadores. A autora mostra, e esse
aspecto é extremamente importante para compreensão do desenho da OUC Porto Maravilha, que
o projeto de lei que propõe sua criação resulta da adoção pelo Executivo das propostas contidas
em documento elaborado pelas construtoras que depois comporiam o consórcio que seria
responsável pela gestão da própria operação. Segundo Oliveira, nesse documento “já se
encontravam claramente explicitados o desenho estrutural da PPP, as principais diretrizes físico-
territoriais e parâmetros urbanísticos do projeto e o modus operandi dos CEPACs” (OLIVEIRA,
2012. p. 240).
106
Galiza, Vaz e Silva (s/d) afirmam que "a previsão inicial do projeto era de remover 832 famílias
(cerca de 3.650 pessoas), praticamente a metade dos moradores do morro, sem discussão prévia
ou definição concreta sobre reassentamentos na região". Ainda segundo as autoras, a mobilização
social e laudos técnicos que mostravam a inexistência de riscos na maioria dos casos levaram à
revisão do projeto e redução do número de demolições.

181
Além do processo de aprovação das leis que dão base à OUC Porto Maravilha ter
ocorrido de forma rápida, sem o necessário debate público prévio e atravessando
a revisão do plano diretor que estava em andamento na ocasião, é interessante
observar que ao mesmo tempo em que tramitava na Câmara de Vereadores o
"pacote legislativo" da OUC Porto Maravilha, outra importante lei era aprovada,
alterando completamente a legislação urbanística de grande parte da região da
Barra da Tijuca, do outro lado da cidade. A Lei Complementar 104 de 27
novembro de 2009, aprovada, portanto, quatro dias após a lei que criou a OUC
Porto Maravilha, instituiu "o Projeto de Estruturação Urbana - PEU dos bairros de
Vargem Grande, Vargem Pequena, Camorim e parte dos bairros do Recreio dos
Bandeirantes, Barra da Tijuca e Jacarepaguá, nas XXIV e XVI Regiões
Administrativas, integrantes das Unidades Espaciais de Planejamento números
46, 47, 40 e 45", apelidado de PEU Vargens.

O PEU Vargens alterou completamente os parâmetros urbanísticos na área de


expansão que ainda tinha ocupação bastante rarefeita. Os parâmetros até então
restritivos, tendo em vista, inclusive, a fragilidade ambiental de grande parte
daquelas terras, deram lugar a IATs de até 3 (três) em grande parcela do território
abrangido pela lei. A nova legislação representava, assim, estímulo ao mercado
imobiliário naquela região, potencial valorização do solo sem necessariamente
contrapartidas dos beneficiários e riscos ambientais importantes pela
possibilidade de adensamento admitida (NAME, 2010).

Mas o que chama atenção e merece destaque aqui é a contradição entre


discursos e práticas desde o primeiro ato formal de implantação da OUC Porto
Maravilha. Recentemente, o prefeito explicava a sua compreensão do significado
das transformações na área portuária:

Olha só, eu acho que assim, por trás das transformações físicas, na verdade, tem
um negócio muito mais importante. O Rio tem uma história de que é uma cidade
que foge dos seus problemas. A cidade começa aqui na região central aí degrada,
vai pra Botafogo, degrada vai pra Copacabana. Copacabana, no início século XX,
era vendida como a Barra da Tijuca é vendida hoje. Aí degrada, vai pra Ipanema e
Leblon, degrada vai pra Barra. Daqui a pouco, a gente vai parar em Itaguaí. Então,
o projeto de revitalização da região portuária, na verdade, tem a ver com o retorno
ao Centro do Rio, ao enfrentamento dos seus problemas, segue uma lógica
urbana que é adequada. Quanto mais crescemos horizontalmente, mais caro é o
custo, mais ambientalmente inadequado é. Então, por trás dessa transformação
física toda, ainda tem uma visão urbanística que diz: "olha, a gente não quer mais

182
um Rio crescendo horizontalmente, a gente não quer mais um Rio fugindo dos
seus problemas”. (Eduardo Paes, 2015)107

A aprovação de leis tão importantes - uma que a princípio seria em favor de um


"retorno ao Centro" e outra que estimula ainda mais a expansão urbana -, com
potencial de mexer significativamente com o mercado imobiliário na cidade, mas
ao mesmo tempo tão contraditórias, como o próprio pensamento do prefeito
expressa, só poderia se dar na forma de um "pacote legislativo", sem debates.

5.2. Porto Maravilha e o destino da área portuária do Rio de Janeiro

A OUC Porto Maravilha abrange perímetro de cerca de 500 ha e prevê a


construção de mais de 4,5 milhões m2 108 numa área que esteve por muitas
décadas fora do raio de atuação do mercado imobiliário carioca. De acordo com o
contrato de Parceria Público-Privada (PPP) firmado entre a Companhia de
Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CEDURP) -
poder concedente - e a Concessionária Porto Novo S/A109, o prazo de execução
do programa básico de ocupação da área é de 15 (quinze) anos, podendo ser
prorrogado por igual período para realização de serviços de natureza contínua, de
acordo com o disposto na LC101/09.

107
Entrevista concedida ao programa "Cidades e Soluções", exibido pela Globonews no dia 30 de
março de 2015, com o título “Vantagens e riscos da maior intervenção urbana do Brasil”.
Disponível em: <http://globosatplay.globo.com/globonews/v/4074684/>. Acesso em: 6/4/2015, às
17:31h.
108
De acordo com o "Estudo de Viabilidade - Operação Urbana Consorciada da Região do Porto
do Rio de Janeiro" e com o "Estudo de Impacto de Vizinhança", estima-se que a área total de
terrenos que podem abrigar empreendimentos imobiliários com absorção de potencial adicional de
construção seja de 681.466,13 m2. Considerando o coeficiente de aproveitamento básico igual a
um, o potencial construtivo total nesses terrenos seria de 4.770.967,96 m2, correspondentes aos
2 2
mesmos 681.466,13 m somados aos 4.089.501,83 m definidos como estoque adicional na
LC101/09.
109
A Concessionária Porto Novo S/A é uma sociedade empresarial de propósito especifico
constituída sob a forma de sociedade anônima, formada pela Construtora OAS Ltda, Construtora
Norberto Odebrecht Brasil S.A. e Carioca Chistiani-Nielsen Emgenharia S.A., algumas das
principais empreiteiras do país.

183
Figura 21. OUC Porto Maravilha (Localização). Perímetro (em
azul) da OUC Porto Maravilha. Fonte: Elaboração própria, 2014.

Vários aspectos distinguem o projeto Porto Maravilha de todos os outros projetos


urbanos realizados no Rio de Janeiro, dentre os quais se pode destacar: a grande
área de abrangência da OUC, tanto em relação ao seu perímetro, quanto em
relação à expectativa de área total a ser construída; o tempo relativamente longo
para execução das obras; o expressivo montante de recursos envolvidos na
implementação da operação; o arranjo institucional e financeiro montado para
viabilizá-la. Soma-se a essas características, o fato de se ter como objeto de
intervenção uma área da cidade que por décadas, como vimos acima, vem
mobilizando expectativas quanto às possibilidades de seu reaproveitamento.

Contudo, a análise da concepção urbanística adotada no projeto em curso, de


renovação urbana da área portuária, nos permite afirmar que a ação projetual e a
estratégia de redesenho da cidade se mostram como algo de menor relevância na
estruturação da operação. Como afirma o próprio prefeito Eduardo Paes, esta
deve ser entendida, antes de tudo, como uma "unidade de negócio"110. Nesse
sentido, as questões mais importantes são, por um lado, os números grandiosos e
a profusão de imagens que promovem o "negócio", no caso, de forte caráter
especulativo. Por outro, a mobilização de recursos para financiar obras a serem
realizadas por grandes empreiteiras e a oferta de novas áreas para atuação do
mercado imobiliário, na hipótese de se mostrarem como opção rentável para esse
setor.

Apesar de ser festejada por seus promotores como a "maior parceria público-
privada do país", como se isso fosse um fim em si mesmo, os recursos que

110
Entrevista concedida ao programa "Juca Entrevista", exibido ESPN Brasil, em setembro de
2013.

184
financiam as obras da OUC Porto Maravilha foram aportados pela Caixa
Econômica Federal (Caixa) e não por empreendedores privados como sugere a
ideia de parceria público-privada. Utilizando recursos do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS), a Caixa adquiriu a totalidade dos CEPACs postos à
venda pelo Município na operação111. Ou seja, foram recursos públicos, ou
melhor, dos trabalhadores, que deram viabilidade às obras de reurbanização ora
em execução, sem a necessidade de empreendedores privados anteciparem
qualquer investimento na área. Trata-se, portanto, de um engenhoso arranjo
financeiro, que envolve o aporte de recursos do FGTS, a venda de terrenos
públicos e incentivos fiscais112, sustenta e garante a realização das obras públicas
previstas, mesmo que empreendedores privados decidam não investir na região.

Em tese, a Caixa terá o retorno do investimento com a revenda dos títulos


adquiridos junto ao Município. Esses tenderiam a se valorizar ao longo do tempo,
em função da valorização fundiária decorrente da execução das obras e dos
novos lançamentos imobiliários que surgirem na região. No entanto, sempre há
riscos, como demonstra a conjuntura econômica atual. Na hipótese do mercado
não se interessar por investir na área da operação e, portanto, não comprar os
CEPACs, por qualquer razão que seja, a Caixa poderá não alcançar o retorno
desejado e talvez nem mesmo o valor investido.

Na configuração estabelecida para a operação, as empresas interessadas em


realizar empreendimentos na área de intervenção precisam comprar CEPACs da
Caixa, para poder exercer o potencial construtivo adicional dos terrenos previsto
pela lei da OUC. Porém, como veremos adiante neste capítulo, os números
relativos à implementação da operação até o momento divulgados parecem bem
abaixo daqueles previstos no estudo de viabilidade da operação113, mesmo
considerando o cenário pessimista adotado no documento114.

111
Convém sempre lembrar, ainda que tenha sido amplamente divulgado, que a Caixa foi a única
interessada a se apresentar no leilão dos CEPACs. Dito de outra forma, nenhum investidor privado
se interessou por disputar a aquisição do potencial construtivo adicional da região do porto do Rio
de Janeiro.
112
Tal arranjo financeiro é apresentado sob o sofisma de "parceria público-privada", por meio da
implementação de uma operação urbana consorciada. A lógica desse instrumento,vale lembrar,
seria a da mobilização de recursos privados para financiar intervenções urbanas estruturais. O que
se realiza na área portuária do Rio de Janeiro, entretanto, é o inverso, ainda que a Prefeitura
Municipal tenha conseguido montar uma estratégia para não injetar diretamente recursos na
operação.
113
"Estudo de Viabilidade - Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio de Janeiro",
elaborado pela Amaral d'Ávila Engenharia de Avaliações. Disponível em:
<http://www.portomaravilha.com.br/web/esq/estudosTecnicos.aspx>. Acesso em: 03/07/2014 às
12:43h.
114
O Estudo de Viabilidade propõe três cenários para implementação da OUC: um realista, um
otimista e um pessimista. No cenário realista, o consumo do estoque de CEPACs ocorreria no

185
As obras em execução e anunciadas no âmbito da OUC Porto Maravilha, bem
como os empreendimentos já licenciados, indicam que as transformações em
curso apontam, caso se realizem como planejado, para a conformação de uma
nova grande área de negócios, com moradia dirigida para classes média e média-
alta, hotéis e atividades culturais e de entretenimento, além de uma área livre ao
longo do cais, voltada para a Baía de Guanabara. Um programa que atende ao
receituário dos projetos concebidos na lógica do "empresariamento urbano"
(HARVEY, 1997) presente nas últimas décadas no Rio de Janeiro e que se
reforça intensamente a partir do final da década de 2000, especialmente com a
preparação da cidade para receber os grandes eventos esportivos internacionais.

Se a lógica da operação pode ser entendida por esse viés ideológico, que permite
compreender a lógica que domina a gestão urbana do Rio de Janeiro atualmente
e já há algum tempo, a abordagem aqui proposta busca se ater a aspectos
urbanísticos mais objetivos e ao resultado espacial que pode ser vislumbrado com
a possível implantação da operação. Dessa forma, se faz emergir no caso
concreto o caráter negligente do projeto - ou do que se pode depreender que seja
o projeto diante das informações disponíveis.

5.2.1. Concepção urbanística do Porto Maravilha

A concepção urbanística adotada no projeto Porto Maravilha não difere


substancialmente de práticas tradicionais do urbanismo brasileiro. Parte, antes de
tudo, da visão da área de intervenção como um vazio a ser ocupado e, nessa
perspectiva, o existente não é algo fundamental na formulação do projeto. Nem
moradores da área, nem as instituições ali instaladas, nem valores arquitetônicos
e urbanísticos, nem mesmo a relação do sítio com a paisagem circundante são
elementos estruturadores do projeto. A visão da área renovada se sobrepõe ao
existente e sugere a criação de um espaço urbano genérico, como mostram
imagens de empreendimentos que vêm sendo anunciados (mas que não serão
necessariamente executados).

período de 11 a 12 anos. No otimista, em período de 8 a 9 anos. E no pessimista, em 14 anos. Em


todos eles, o consumo de CEPACs será de praticamente 100% do estoque. Não é proposta
nenhuma simulação em que o estoque ofertado se mostre excessivo em relação à demanda no
tempo definido para implementação da operação.

186
Figura 22. Trump Towers e Porto Vida Residencial. Vários
anúncios de projetos são feitos, mas a quantidade dos que foram
efetivamente licenciados ainda é pequena. O Porto Vida
Residencial teve as obras iniciadas. Fonte: Trump Towers (Foto
de Divulgação); http://www.portovida-residencial.com/.

De acordo com a lei que a instituiu, a OUC Porto Maravilha compreende um


conjunto de intervenções "com objetivo de alcançar transformações urbanísticas
estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental (...)" (LC 101/09, art. 1o).
Ainda segundo a mesma lei, a reestruturação urbana pretendida se dará "por
meio da ampliação, articulação e requalificação dos espaços livres de uso público
da região do Porto, visando à melhoria da qualidade de vida de seus atuais e
futuros moradores, e à sustentabilidade ambiental e socioeconômica da região."
(LC 101/09, art. 1o).

O que é apresentando como objetivos da OUC compreende, na verdade,


intenções absolutamente genéricas que poderiam ser válidas para qualquer
operação urbana no Rio de Janeiro ou em qualquer outra cidade. As diretrizes
estabelecidas para a operação são igualmente genéricas. E o "programa básico
de ocupação da área", que, de algum modo, poderia explicitar o interesse público
da operação urbana, também não define claramente o tipo de ocupação
pretendida.

Do ponto de vista conceitual, o documento legal que institui a OUC não expõe o
significado para o Rio de Janeiro da reversão, aparentemente pretendida, de uma
área que esteve por anos estagnada, em uma das áreas mais dinâmicas da
cidade. A questão de fundo é que o projeto não se justifica apenas pelo
reconhecimento da existência de uma grande área bem localizada e subutilizada.
O destino a ser dado a essa área é o que está em jogo, com o agravante dela ser
composta em grande parte por terrenos públicos. E isso implica na definição de
como e por quem a área será ocupada; de como essa operação, dado o seu
porte, vai interferir ou não nos processos estruturantes de dispersão e
informalidade urbana e, mais especificamente, de qual será seu impacto sobre o
Centro da cidade.

187
Sem objetivos e diretrizes claramente definidos, em torno dos quais se deveria
construir a adesão social ao projeto, a operação urbana, do modo mais
convencional possível, se estrutura, basicamente, em torno da abertura de
algumas vias, da instalação de infraestrutura e da concessão de índices
urbanísticos.

Esse tipo de concepção espacial está ligado ao pensamento urbanístico de


meados do século XX que negligenciou o projeto. Lion (2012) explica que o
projeto urbano é "uma démarche de transformação" que "consiste em investigar e
analisar o território" e de "formular hipóteses que farão nascer um projeto". A
questão, então, é de "fazer viver esse projeto e de adaptá-lo permanentemente",
o que significa, para o autor, algo absolutamente distinto "da soma de regras e
cadernos de encargos" (LION, 2012. p.15, tradução nossa). No entanto, a OUC
Porto Maravilha acaba por desdobrar exatamente num tipo de caderno de
encargos que estabelece os serviços envolvidos na gestão terceirizada da área
de intervenção.

Concebida de forma estática, a norma aprovada escamoteia conflitos, não


estabelece claramente uma estratégia de ocupação da área de intervenção ao
longo do tempo e corre o risco de ser alterada pontualmente a cada momento
para atender interesses de ocasião115. Em suma, a operação urbana em tela não
resulta de um projeto urbano claro e não instaura, efetivamente, um processo
projetual de renovação da área portuária, capaz de lidar com diferentes escalas
de intervenção, diferentes temporalidades, diferentes interesses de atores sociais,
que constituem questões maiores na formulação e implementação de projetos
urbanos (TSIOMIS; ZIEGLER, 2007).

115
Em 2012, com menos de três anos de vigência da lei da operação urbana da região portuária,
por exemplo, foi aprovada a Lei Complementar 123/2012 que altera parâmetros urbanísticos de
um terreno específico. Situado num setor cujo gabarito definido pela OUC era de 18 metros e 6
pavimentos, aprovou-se, exclusivamente para esse terreno, o gabarito de 30 metros e 7
pavimentos, mediante o pagamento de contrapartida. No caso, o objetivo era dar viabilidade à
construção da sede do Banco do Central do Brasil. Independentemente de se considerar ou não
essa ação como importante para a revitalização da área portuária, o que interessa observar é que
a operação não estabelece mecanismos ou estratégias para lidar com o projeto ao longo do
tempo, o que forçosamente implica em ajustes, alterações. Dessa forma, se abre um precedente
que pode favorecer futuramente todo tipo de negociação individual e casuística em detrimento de
um projeto urbano global, o que, aliás, corresponde ao modo tradicional de se fazer o urbanismo
no Rio de Janeiro. Registra-se, ainda, que tal mudança foi admitida mediante o pagamento de
contrapartida financeira e não em função do interesse público e critérios urbanísticos que
eventualmente poderiam justificar tal alteração. O que pode parecer uma medida de justiça social,
pois os recursos devem ser destinados a ações na área de entorno, constitui um mecanismo, no
mínimo controverso, de venda de direito, no caso do direito de construir.

188
No entanto, o prefeito da cidade explica o que, para ele, é a medida do sucesso:
"[a área portuária] é o lugar da cidade onde mais tem especulação imobiliária,
mais do que a Barra, e graças a Deus é assim."116 O alcaide disse tal frase para
explicar as razões que o levaram a propor a transferência da Vila de Mídia e de
Árbitros dos Jogos Olímpicos 2016, prevista para ser localizada na área do porto,
para o bairro de Curicica, na região da Barra da Tijuca117. Na sua visão, esse
projeto era, inicialmente, importante para alavancar a renovação da área portuária
e para atrair novos investimentos. Atualmente, segundo o prefeito, ele não é mais
necessário, pois "ali há empresas grandes se estapeando para pegar terrenos e
fazer empreendimentos".

Os dois pequenos trechos da fala do chefe do Executivo Municipal parecem


bastante reveladores do que é, na essência, o Porto Maravilha: um lugar próprio
para a especulação imobiliária e onde se pode "pegar" terrenos e "fazer
empreendimentos".

5.2.2. O "Programa Básico de Ocupação da Área"

O "Programa Básico de Ocupação da Área" (LC101/09, arts.10 a 27) define:

 O novo sistema viário a ser implantado na área de abrangência da OUC


"com o objetivo de adequar a malha viária existente ao novo padrão de
ocupação a ser implementado" (LC101/09, art.11).

 A setorização da área da operação, que subdivide o território segundo


diferentes critérios que seriam "compatíveis com o padrão de ocupação a
ser implantado pela Operação Urbana Consorciada" (LC101/09, art.12).
Essa subdivisão delimita a área que chamaremos aqui de "área de

116
Entrevista do Prefeito Eduardo Paes, publicada www.oglobo.com em 18/3/2014. Acesso em
15/7/2014 às 17:54h (http://oglobo.globo.com/rio/olimpiadas-tem-que-servir-para-melhorar-lugares-
da-cidade-diz-eduardo-paes-11907485).
117117
Importante esclarecer que, inicialmente, o projeto olímpico não previa instalações na área
central. Ao ser confirmado o Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016, o IAB
passou a pressionar a prefeitura para alterar o projeto e realizar atividades na área central, em
especial a área portuária. Esse processo de negociações, levou a prefeitura a incorporar em parte
a reivindicação, levando para lá Vila de Mídia e de Árbitros, o que foi considerado pelo IAB uma
vitória para a cidade. A prefeitura decidiu, inclusive, pela realização de um concurso, organizado
pelo próprio IAB, para a escolha do projeto, que envolvia ainda um programa extenso, visando à
ocupação de uma parcela da área da OUC Porto Maravilha. Contudo, já com as obras em
andamento, o Prefeito toma a decisão surpreendente de transferir o equipamento para o bairro de
Curicica, na Região da Barra da Tijuca.

189
renovação"118. É aquela para a qual foi previsto estoque adicional de
construção e onde os podem ser utilizados os CEPACs.

O Mapa 11 (a seguir) mostra as principais intervenções viárias, a delimitação da


área de renovação e indica alguns empreendimentos que podem ser
considerados como âncoras da operação, bem como os principais projetos de
qualificação do espaço público.

118
Essa expressão não é utilizada na LC101/09, mas adotaremos aqui para nos referenciarmos à
área para a qual é prevista a utilização dos CEPACs.

190
Teoricamente, o instrumento da operação urbana consorciada, instaura um
regime especial na gestão urbana em um perímetro determinado do território.
Uma vez aprovada, a operação passa a ser a referência para aplicação das
normas urbanísticas, se sobrepondo à legislação ordinária, durante o período de
vigência da operação. Mas a LC101/09 estabelece novos parâmetros urbanísticos
apenas para parte da área de abrangência da operação. É criada a Zona Urbana
Mista (ZUM) (art.13) que corresponde praticamente à área de renovação, embora
não haja coincidência absoluta (por razões que não estão claras na norma). E nas
áreas do perímetro da operação "não incluídas em ZUM prevalecem as
disposições da legislação em vigor" (art.15).

Ou seja, mesmo em uma área de operação urbana, em que se pressupõe um


regime especial de gestão, prevalece a lógica da sobreposição de normas que
caracteriza a legislação urbanística do Rio de Janeiro. Nesse caso, com um
perímetro determinado a princípio para implementação de um projeto urbano,
seria possível fazer a consolidação da legislação na própria lei da operação,
facilitando a compreensão das regras válidas durante a vigência da OUC.

Sem qualquer explicação mais detalhada, o programa se refere a um "novo


padrão de ocupação" a ser implementado na área. Porém, o perímetro da
operação é subdividido em setores e subsetores, o que talvez pudesse indicar a
intenção de se induzir diferentes padrões de ocupação do solo, que estivessem
relacionados ao reconhecimento de características do tecido urbano existente.

A análise da distribuição de índices urbanísticos nos diversos setores e


subsetores (ver Mapa 12) confirma a leitura inicial de que a operação deva ser
compreendida a partir da distinção entre os limites da área de renovação e o
restante das áreas. É na área de renovação onde, de fato, se realiza a operação
urbana. Para os setores nela localizados, onde podem ser utilizados os CEPACs,
houve elevação substancial do potencial construtivo. E a sua efetiva realização,
pressupõe a demolição do existente. É um projeto realmente de renovação do
ambiente construído, no tradicional método de "tábula rasa".

Do ponto de vista da composição urbana, entretanto, não há por que se falar de


padrão ou padrões de ocupação, pois sem diretrizes claras de projeto, a
renovação, se houver, se dará, como afirma Magalhães, "ao sabor do
preenchimento de frios índices de aproveitamento dos terrenos e das vicissitudes
dos capitais que se constituem para o seu desenvolvimento" (MAGALHÃES,
2012).

192
O restante do território da operação, que não faz parte da área de renovação,
compreende áreas protegidas pelo patrimônio histórico e favelas. Essas, não
estão no coração da operação, mas serão impactadas (e já estão sendo) pela
realização de obras e pela ocupação da área de renovação, caso venha a ocorrer.

Na área de renovação, como são previstos, de modo geral, índices bastante


generosos, tudo passa a ser possível. Da distribuição de índices depreende-se,
apenas, que se admite a ocupação bastante mais intensa das áreas próximas a
Av. Francisco Bicalho, onde não só o coeficiente de aproveitamento máximo é
bastante elevado, chegando a 12 no sub setor M1, como se permite a construção
de edifícios de até 50 andares, com todos os riscos que isso possa representar
para a paisagem carioca.

O artigo 24 da LC101/09, por sua vez estabelece que na área de renovação "as
edificações não são sujeitas às restrições quanto: à tipologia; à projeção
horizontal; ao número de edificações no lote; ao número de unidades por
edificação". Essa aparente liberdade arquitetônica, no entanto, reforça a ideia da
falta de projeto; da indefinição de padrões morfológicos para orientar a ocupação
dos diferentes setores; da indefinição de critérios para o redesenho de quadras;
da falta de preocupação com a relação entre espaços públicos e privados, cheios
e vazios etc. Não há instrumento para trabalhar a escala das ruas, quadras e
lotes. E desse modo, o resultado espacial será dado pela soma de
empreendimentos autônomos a serem realizados no tempo.

A realização do "Concurso Porto Olímpico", lançado em 2010 e organizado pelo


IAB-RJ, poderia indicar que essas questões seriam tratadas no processo de
implementação da operação, com a elaboração de projetos para trechos da área
de intervenção. De acordo com o edital, tratava-se de um concurso

de idéias para a seleção da melhor proposta arquitetônica e de urbanização para


as instalações olímpicas e seu respectivo entorno localizadas na Região Portuária
desta cidade [Rio de Janeiro]. Entre estas se destacam a Vila de Mídia e Vila de
Árbitros que deverão atingir um mínimo de 10.600 quartos, o Hotel de 500 quartos
e o Centro de Convenções, que deverá abrigar instalações olímpicas provisórias.

Os desdobramentos ilustram bem o lugar do projeto urbano na OUC Porto


Maravilha. Apesar do extenso programa, que cobria cerca de 17 ha -
aproximadamente 7,5% da área de renovação -, apenas um empreendimento
teve projeto desenvolvido, licenciado e obras iniciadas até o momento. Trata-se
do primeiro (e ainda único) empreendimento residencial do Porto Maravilha, que

194
inicialmente abrigaria a Vila de Mídia e de Árbitros dos Jogos Olímpicos e para o
qual funcionários municipais teriam prioridade de compra.

Já nesse empreendimento se observa o desvirtuamento das ideias que pareciam


essenciais na concepção urbanística vencedora do concurso. De acordo com o
projeto vencedor, as praças e áreas verdes previstas deveriam ser protagonistas e
compor um sistema, constituindo-se como "áreas completamente integradas". A
concepção urbanística adotada se apresentava como "um modelo de ocupação
territorial híbrido onde praças e edifícios sejam indissociáveis"119. Mas como
mostra matéria do Jornal O Globo (2/6/2013, Caderno Morar Bem) sobre o
lançamento do empreendimento, "os espaços internos entre os prédios, que
teriam praças abertas para a rua e muito verde, foram substituídas por áreas de
lazer como as de condomínios fechados, com piscina, quadra poliesportivo e
espaço gourmet". Assim, o espaço público entendido como articulador do conjunto
edificado e de uma nova urbanidade sucumbe a um "produto padrão" determinado
pelo mercado imobiliário. Além disso, como mencionado anteriormente, em meio
às obras de um projeto que já se realizava de modo parcial e desvirtuado, o
prefeito decide pela mudança das instalações olímpicas previstas para o Porto
para outra região da cidade.

Figura 23. Porto Olímpico. Imagens do projeto vencedor do


concurso organizado pelo IAB. Fonte: Blac Arquitetura e Cidade

Na montagem da operação também não foi predeterminada a distribuição de usos


por setor, recurso comumente utilizado tanto para induzir a diversidade de usos
como para definir a própria equação financeira, uma vez que usos residenciais e
não residenciais têm valores de mercado diferentes. Apesar de serem previstas
as taxas de equivalência do uso residencial e não residencial para a aquisição de
potencial construtivo adicional em cada setor, a operação não estabelece cotas.
Sem mecanismos de indução, ficará para o mercado definir como fará o
aproveitamento do solo, o que sempre tenderá para os usos mais rentáveis. E
nesse contexto, logicamente, também não foi prevista qualquer cota de habitação

119
Ver BLAC Arquitetura e Cidade: Porto Olímpico.

195
de interesse social para os diferentes setores ou para novos empreendimentos, o
que poderia ser um elemento para promover alguma diversidade social no futuro.

Sem diretrizes morfológicas para transformação do espaço urbano, sem definição


de proporção de usos para garantir a diversidade e o próprio equilíbrio da
operação, o projeto urbano se reduz, praticamente, a uma relação de obras, na
maior parte viárias. As principais são duas grandes vias que atravessam toda a
extensão da área de renovação (ver Mapa 11, acima). A primeira, conhecida como
Binário do Porto, já foi construída, e a outra é a via expressa que substituirá o
viaduto perimetral cuja demolição também já foi executada.

O Binário do Porto, que corre paralelamente ao cais do porto e à avenida


Rodrigues Alves interliga as avenidas Rio Branco e Francisco Bicalho, tendo
também ligação prevista, por viaduto, para as principais vias de entrada e saída
da cidade (Avenida Brasil, Linha Vermelha e Ponte Rio-Niterói). Com cerca de
3,5Km de extensão, sendo 1,5Km em túnel, a via atende diretamente parte
significativa dos terrenos da área de renovação. Não tem, porém, nenhuma
função mais relevante para fora dos limites da operação, a não ser a de absorver
parte do fluxo de veículos anteriormente concentrado na Av. Rodrigues Alves e no
elevado perimetral. Com a via implantada, ou seja, após investimentos realizados,
resta aguardar para ver como o mercado se apropriará (ou não) dos terrenos por
ela servidos120.

A outra grande intervenção é a implantação da via expressa que absorverá,


juntamente com o Binário do Porto, o tráfego de veículos que utilizava o elevado
perimetral. Construído nos anos 50, no auge da "febre viária" no Rio de Janeiro
(ABREU, 1987), o viaduto que contornava o centro da cidade e a área portuária
ao longo da Baía de Guanabara era tido como um dos grandes desastres
urbanísticos da história urbana carioca. Já há algumas décadas se falava na sua
derrubada, porém é inegável que, uma vez construído, ele passou a ter função
relevante no sistema viário da cidade.

A midiática demolição desse viaduto é vista por França (2014) como um marco
que anunciava "a morte do rodoviarismo" no Brasil. As imagens difundidas pela

120
O Binário do Porto seria uma das intervenções que poderia extrapolar os limites da operação e
alcançar uma dimensão mais ampla. Jorgensen (2013), por exemplo, sugere que com uma
solução de transposição da Avenida Francisco Bicalho se poderia criar uma nova ligação da zona
norte e subúrbio com o Centro da cidade, pelos bairros de São Cristóvão e Benfica, o que
favoreceria os deslocamentos em direção ao Centro e, possivelmente, novas dinâmicas também
nessas áreas normalmente esquecidas pelos grandes projetos.

196
televisão realmente parecem sugerir que alguma mudança radical estaria em
curso. Porém tal intervenção não está associada a qualquer alteração na lógica
do sistema de mobilidade da cidade, que historicamente privilegia o transporte
individual. Tanto que novas avenidas, túneis, mergulhões e viadutos estão sendo
construídos na mesma área portuária, para garantir a circulação dos automóveis.
Mais do que isso, está em construção no mesmo local do viaduto perimetral uma
outra via tão rodoviarista quanto, mas subterrânea, ao custo de mais de
R$1bilhão121.

Figura 24. Obras viárias no Porto Maravilha. Enquanto a midiática demolição do viaduto
perimetral é uma das ações mais festejadas do Porto Maravilha, uma das primeiras obras
realizadas é justamente a construção de um outro viaduto, seguido de mais vias e túneis . Fonte:
Henrique Barandier, 2014.

Na verdade, a principal justificativa alegada para a demolição do viaduto


perimetral se refere ao seu impacto negativo no espaço urbano local e na
paisagem da cidade. Apesar de tal percepção ser bastante aceita entre os
diferentes atores sociais, a demolição do viaduto perimetral não era nada
consensual, particularmente entre urbanistas. Para alguns, essa ação deveria
estar atrelada a um plano de mobilidade urbana para a cidade, que indicasse
alternativas à via expressa que não fosse a construção de outra via expressa
como vem sendo feito. Para outros, uma vez que a estrutura viária existia, outras
formas de aproveitá-la deveriam ter sido consideradas122.

Do ponto de vista local, parece incontestável que o desaparecimento da via


elevada abre inúmeras possibilidades de recomposição dos espaços,
essencialmente públicos, entre a Praça XV e o Píer Mauá e ao longo do cais do
porto. Mas dentro da lógica do Porto Maravilha, não é evidente que isso seja uma
121
De acordo com informação constante do "Prospecto de Registro da Operação Urbana
Consorciada da Região do Porto do Rio de Janeiro" (p. 32), datado de 14 de junho de 2012 e
revisado em 27 de janeiro de 2014. Disponível em:
<http://www.portomaravilha.com.br/conteudo/canalInvestidor/prospecto-sem-marcas-revisao-
7.pdf>. Acesso em: 09/06/2015 às 10:07h.
122
Estudo desenvolvido por professores e alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
UFRJ, por exemplo, propunha o aproveitamento da estrutura existente "transformando sua função
original", como explica o Prof. Cristóvão Duarte, e com a "criação de um parque linear e um
transporte em massa sobre trilhos" ligando os aeroportos Santos Dumont e Galeão.

197
prioridade. A demolição do viaduto seria, antes de tudo, uma forma de atrair o
mercado imobiliário para a região, que passaria a ter, ali também, sua avenida
"beira-mar".

Em relação à paisagem urbana numa escala mais ampla, a demolição do viaduto


perimetral é, no mínimo, questionável diante dos novos índices urbanísticos
aprovados para Av. Rodrigues Alves que admitem, dependendo do trecho, novas
edificações de até 90, 120 ou 150 metros de altura. Se surgirem prédios dessa
altura, com quase 50 andares, o que de modo algum faz parte da tradição
urbanística do Rio de Janeiro, provavelmente se produzirá obstáculo ainda pior à
percepção das montanhas que emolduram a área central do Rio de Janeiro e que
compõem o sítio que desde 2012 faz parte da lista de patrimônio da humanidade
da UNESCO, na categoria paisagem cultural.

A demolição do elevado se impôs, sem debates mais profundos apesar das


polêmicas que suscitou, porque era uma ação essencial numa operação em que o
conjunto existente é visto como algo a ser substituído por um novo padrão
urbanístico pensado a partir de expectativas do mercado imobiliário e que por ele
será determinado com os empreendimentos que vier a realizar. Da mesma forma,
a execução de uma gigantesca obra de infraestrutura viária era uma ação
essencial no arranjo institucional da operação, que envolve grandes empreiteiras.

5.2.3. O perímetro da operação e as perspectivas de sua ocupação

O perímetro da operação urbana Porto Maravilha com cerca de 500 ha e o


potencial construtivo de mais de mais de 4,5 milhões m2 fazem dela uma
operação gigantesca, o que, por si só, já representa uma das grandes
dificuldades para se pensar como ela se desenvolverá ao longo do tempo. A
simples comparação com operações urbanas conhecidas de outras cidades, nos
permite qualificar de modo mais claro o que representa efetivamente tais
números.

Primeiramente, destaca-se que nem mesmo a maior das operações urbanas de


São Paulo, a OUC Água Espraiada, se propôs a tanto. Nessa operação, cujo
perímetro é quase três vezes maior que o da OUC Porto Maravilha, o potencial
construtivo adicional previsto foi de 3,75 milhões m2, dos quais, com pouco mais

198
de 10 anos de vigência, 3,06 milhões já foram consumidos123. Apesar do relativo
"sucesso" na venda de potencial construtivo, destaca-se que se trata de uma
situação bastante diferente do caso carioca. Por um lado, esse potencial
construtivo adicional é distribuído por uma área bem maior. Por outro, a operação
se realiza em área da cidade para onde o mercado imobiliário já direcionava sua
atuação, ao longo da marginal do rio Pinheiros. Do ponto de vista urbanístico,
entretanto, talvez não haja tanta diferença, pois, como mostra Maleronka, na OUC
Água Espraiada, o projeto urbano também foi "reduzido a um 'plano de
melhoramentos'" (MALERONKA, 2009, p. 127) combinando, como no Rio de
Janeiro, intervenções viárias e concessão de índices urbanísticos.

Mas experiências internacionais em projetos de grande porte, responsáveis por


significativas transformações urbanísticas das últimas décadas em cidades
importantes, ilustram ainda melhor que construir mais de 4 milhões m2 não será
algo tão simples, mesmo que seja no médio ou longo prazo.

O projeto de revitalização do porto de Buenos Aires, o conhecido Puerto Madero,


abrange extensa área ao longo do rio da Prata, ligada diretamente ao centro da
capital argentina. Frequentemente tido como uma referência para o Rio de
Janeiro, por se tratar de uma experiência em uma cidade também
latinoamericana, o perímetro da operação iniciada nos anos 1990 é de 170 ha. Na
impressionante mudança produzida em Puerto Madero, transformado em um
novo bairro de negócios, de turismo e de residência de alta renda, foram
construídos não mais que 2,25 milhões m2 124 entre 1992 e 2011.

Outros dois grandes projetos de renovação de waterfronts, Canary Wharf em


Londres e Battery Park City em Nova Iorque, de porte similar, também
apresentam números bem mais “modestos” que os do Porto Maravilha. Todos dois
têm perímetro de aproximadamente 40 ha e realizaram cerca de 1,5 milhão de m2
construídos em aproximadamente 20, 30 anos125.

Na renovação da parte leste da capital francesa com o projeto Paris Rive Gauche,
verifica-se que o perímetro daquela operação é de 130 ha e o programa inicial
previa a construção de 2,4 milhões m2. Iniciada em 1991, com aprovação do
123
Secretaria de Desenvolvimento Urbano de São Paulo, posição em 21/5/2014
(http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/desenvolvimento_urbano/sp_urbanismo/
arquivos/ouae/ouc_agua_espraiada_estoque_geral_21_05_2014.pdf)
124
Dados fornecidos pela Corporación Antiguo Puerto Madero S.A. em março de 2014, em
resposta a consulta feita por este autor.
125
Dados extraídos dos sítios oficiais na internet da Battery Park City Authority
(http://www.batteryparkcity.org/) e do Canary Wharf Group (http://group.canarywharf.com/).

199
plano urbanístico e definição da estrutura de gestão, atualmente, segundo dados
oficiais, 50% da operação foi realizada126, o que já foi suficiente para produzir
enorme transformação nessa parte da cidade.

Mesmo que se considere, no caso da área portuária do Rio de Janeiro, apenas a


área efetivamente de renovação urbana prevista pela operação, de
aproximadamente 220 ha127 (ver Mapa 11 acima), ainda assim, se trata de grande
extensão territorial, que exigiria, no mínimo o planejamento e indução de sua
ocupação ao longo do tempo. Tanto em Puerto Madero como em Paris Rive
Gauche, cujos perímetros são até menores, essa preocupação temporal é clara,
devendo ser considerado ainda, que nenhum dos dois partiu da expectativa de
acrescentar mais de 4 milhões m2 ao estoque construído.

Figura 25. Perímetros das operações Puerto Madero, Paris Rive Gauche e Porto Maravilha.
O perímetro do Porto Maravilha é mais de duas vezes os das grandes operações urbanas de
Buenos Aires e Paris, as duas há mais de 20 anos em andamento. E a área total construída
prevista também muito maior. Fonte: Elaboração própria, 2014.

No caso portenho, se realizou uma primeira etapa dedicada à recuperação dos


antigos galpões do porto para, no momento seguinte, se iniciar a ocupação do
lado oposto do dique, aí sim com novos edifícios. Havia uma estratégia do projeto
urbano, de urbanizar sucessivamente faixas de terreno, onde o retorno financeiro
da urbanização de uma faixa viabilizaria economicamente a urbanização da
seguinte.

No Paris Rive Gauche, cujo processo de renovação urbana se estrutura em torno


da cobertura da via férrea que separa um antigo bairro operário da margem
esquerda do rio Sena, o projeto também vem se implantando gradativamente. O
perímetro da operação é subdividido em 11 setores, cada um objeto de um
126
Dados extraídos do sítio oficial do Paris Rive Gauche na internet (www.parisrivegauche.fr). Os
50% indicados representam cerca de 0,9 milhão m2 construídos, pois não incluem a parte relativa
aos equipamentos públicos.
127
Número aproximado, calculado pelos autores a partir da análise das bases cartográficas
disponíveis.

200
trabalho específico de projeto dos espaços livres e construídos, definidos a partir
de diretrizes gerais para a área. Em diferentes estágios de implementação, a
ocupação desses setores vem se dando à medida que a cobertura da linha férrea
avança.

Figura 26. Puerto Madero e Paris Rive Gauche. As duas operações que envolveram
construções de grandes edifícios, expressiva produção imobiliária em grandes áreas de Buenos e
Pairs não chegaram, em 20 anos, à metade da área construída prevista na OUC Porto Maravilha.
Fonte: Henrique Barandier, 2008; www.parisrivegauche.com.

Se, por um lado, parece excessivo para uma única operação a perspectiva de
promover a construção de mais de 4 milhões m2, ainda mais sem uma estratégia
clara para que isso aconteça, por outro, a realização desse potencial construtivo
pode ter resultados espaciais ruins. Além da já mencionada questão da altura
admitida para novas edificações, esse volume, construído sobre uma área de
cerca de 220 ha, aquela passível de receber o potencial construtivo adicional,
representaria a densidade construída de mais de 18.000 m2/ha. Tal número é
similar ao observada no bairro de Copacabana, também no Rio de Janeiro, cuja
altíssima densidade construída é uma de suas características marcantes.

5.2.3. Incertezas no processo de renovação da área portuária

Os dados dos últimos anos do licenciamento urbanístico na área portuária dão


algumas pistas sobre como começa a se desenvolver o processo de
implementação da OUC Porto Maravilha. Merece registro, inicialmente, o fato de
que imediatamente após o lançamento da operação e, mais especificamente,
após o lançamento dos CEPACs em 2012, houve aumento significativo da área
construída licenciada na região portuária, como mostra a tabela 14, a seguir.

201
Tabela 14
Licenciamento de novas edificações na Região Portuária* entre 2009 e 2014
Área Total Total de Unidades Unidades não
Ano
Licenciada (m2) Unidades Residenciais Residenciais
Total 2009/2013 994.256,55 3.267 2.073 1.194
2014 84.832,00 336 139 197
2013 575.001,60 1.786 1.600 186
2012 172.732,06 703 234 469
2011 22.230,89 90 81 9
2010 79.505,00 350 19 331
2009 59.955,00 2 0 2
Fonte: Secretaria Municipal de Urbanismo, PCRJ (http://www.rio.rj.gov.br/web/smu/informacoes-urbanisticas).
Tratamento: Barandier, 2014.
* Os dados referem-se à I Região Administrativa (Portuária) da Cidade do Rio de Janeiro, cujo perímetro não coincide
exatamente com o perímetro da OUC Porto Maravilha. Ainda assim, os dados são representativos, pois a maior parte dos
projetos licenciados tende a estar dentro dos limites da operação.

A área construída licenciada, mesmo que em parte não chegue a ser realizada,
pois se refere a projetos, pode ser compreendida como indicador da dinâmica
imobiliária de um determinado local. Nesse sentido, os 575 mil m2 licenciados na
área portuária em 2013 são significativos e, de certo modo, explica o entusiasmo
do prefeito da Cidade quando dizia se tratar da área da cidade "com mais
especulação imobiliária". Entretanto, os menos de 85 mil m2 licenciados no ano
seguinte, em 2014, representam queda significativa, reforçando o argumento de
que a performance de 2013 se explica mais pela expectativa acumulada a partir
do anúncio da operação, do que realmente por um movimento mais estruturado
do mercado.

Considerando informações do licenciamento urbanístico do município do Rio de


Janeiro disponibilizadas no sítio da SMU na internet e as informações divulgadas
no pela CEDURP sobre os lançamentos imobiliários na área portuária, algumas
considerações podem ser feitas sobre o processo de implementação da OUC
Porto Maravilha.

Da área total licenciada nos anos de 2012 e 2013, pouco mais de 50% se referem
a empreendimentos que consumiram parte do estoque de potencial construtivo
adicional previsto pela operação. Em 2014, um único empreendimento consumiu
estoque adicional de construção, com sua área total edificada (ATE)
representando menos de 20% do que foi licenciado na Região Portuária naquele
ano.

202
No total, entre 2012 e 2014128, os três primeiros anos de comercialização dos
CEPACs no mercado secundário, 8 (oito) empreendimentos foram licenciados
utilizando parte do estoque adicional de construção da OUC, sendo apenas um
com previsão de unidades residenciais, conforme dados constantes da Tabela
15129.

Tabela 15
Empreendimentos que consumiram estoque de potencial adicional construtivo
da OUC Porto Maravilha nos anos de 2012, 2013 e 2014
Área Consumo
Área Área
Adicional de
Empreendimento / Área Total Adicional Adicional
Ano Uso 2 Não Estoque
Titular (m ) Residencial Total
2 Residencial 2 Adicional
(m ) 2 (m )
(m ) da OUC
Arrakis
Comercial e
Empreendimentos 2012 58.959,30 0 42.277,46 42.277,46 1,03%
Hotel
Imobiliários S/A
Porto 2016
Residencial
Empreendimentos 2013 130.662,16 78.800,83 1.096,69 71.897,52 1,76%
com lojas
Imobiliários S/A
TS 19 Participações
2013 Comercial 152.438,02 0 97.244,72 97.244,72 2,38%
Ltda
Uirapuru
2013 Comercial 28.817,49 0 23.575,05 23.575,05 0,58%
Participações Ltda
Autonomy GTIS
Barão de Tefé 2013 Comercial 31.129,09 0 26.464,55 26.464,55 0,65%
Empreend. Ltda
Odebrecht
Realizações
2013 Hotel 14.755,14 0 9.933,54 9.933,54 0,24%
Imobiliárias RJ04 El
Ltda
SPE STX
Desenvolvimento 2013 Hotel 6.389,32 0 4.158,40 4.158,40 0,10%
Imobiliário
Askella
Empreendimento 2014 Comercial 14.610,07 0 11.160,07 11.160,07 0,27%
Imobiliário S.A.
Total de Estoque de Potencial Adicional consumido 70.800,83 215.910,48 286.711,31 7,01%
Total de Estoque de Potencial Adicional remanescente 3.802.790,62 92,99%
Fonte: CDURP - Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro
(http://www.portomaravilha.com.br/web/esq/mnuTransparencia.aspx).
Tratamento: Barandier, 2015

Esses primeiros lançamentos licenciados indicam a predominância absoluta do


uso não residencial, ainda que em alguns casos com hotéis. Assim, a primeira
tendência que se evidencia é a limitada mistura de usos na área portuária em
processo de renovação, lembrando que a operação não estabelece cota de
potencial construtivo por uso. Em relação ao consumo do estoque adicional de
construção, o uso residencial atingiu cerca de 27,5% do que foi utilizado até o
momento. Como parâmetro de comparação, cabe observar que o Estudo de
Impacto de Vizinhança (EIV) considerou a proporção de 53% para usos

128
Informações extraídas dos Relatórios Trimestrais da CEDURP.
129
No primeiro semestre de 2015, houve mais um empreendimento licenciado com consumo de
CEPACs, este de uso misto, ou seja, com previsão de unidades residenciais. Porém, para as
análises deste trabalho, optou-se por considerar apenas os dados relativos aos anos já
encerrados, ficando de fora dados ainda parciais de 2015.

203
residenciais e 47% para usos não residenciais, ainda que a legislação não a
tenha fixado. E o "cenário realista" do Estudo de Viabilidade, indicava, de fato,
uma proporção bem maior usos não residenciais nos primeiros anos da operação,
porém previa que nos três primeiros anos já se teria consumido quase 1,7 milhão
m2 da área adicional de construção. Mesmo considerando o "cenário pessimista"
do estudo, que previa o consumo de cerca de 760 mil m2 nesse fase inicial, ainda
assim a realidade estaria bem abaixo, correspondendo a menos 40% desse total.

Em quase cinco anos de operação, um terço do prazo previsto para sua


implementação, apenas 7,01% do estoque de área adicional de construção foi
consumido (ou 7,74%, se acrescentarmos o empreendimento licenciado no
primeiro trimestre de 2015). Embora possam ser considerados números ainda
preliminares, pois apenas em 2012 começaram a ser comercializados os CEPACs
e é preciso considerar prazos de negociação dos projetos junto à Caixa -
detentora do potencial construtivo adicional da área de renovação - e do próprio
processo de licenciamento, ainda assim a proporção tão baixa parece coerente
com a percepção de que o processo de renovação da área portuária é ainda
cercado de incertezas.

Se o avanço das obras permite supor que as melhorias urbanísticas estimularão


novos empreendimentos, o cenário econômico desfavorável do país não permite
apostar em aumento dos investimentos privados pelo menos no curto prazo. Num
momento de aumento da inflação, redução do consumo, redução da poupança,
redução do crédito e aumento do desemprego, logicamente o mercado de imóveis
será afetado.

A CDURP, no entanto, mantém na sua página internet o mapa dos


empreendimentos que estariam em andamento (em negociação, em
licenciamento ou em construção) na área da operação, sugerindo um dinamismo
que é muito difícil saber até que ponto é real ou se está apenas no campo das
possibilidades ou das especulações. Mas, objetivamente, se compararmos o
mapa dos empreendimentos em andamento, com o de empreendimentos
licenciados e com o de empreendimentos licenciados com utilização de CEPACs,
a diferença entre eles era, até o final de 2014, bastante significativa (ver Mapas
13, 14 e 15)

204
Seja como for, o próprio governo municipal faz movimentos que indicam o
reconhecimento das fragilidades de uma operação concebida, antes de tudo, para
viabilizar recursos para algumas grandes obras. Recentemente foram aprovadas
a Lei 5.780/14 que "institui incentivos e benefícios fiscais para incremento da
produção habitacional na Área de Especial Interesse Urbanístico – AEIU do Porto
do Rio de Janeiro" e a Lei Complementar 143/14 que "incentiva a produção
habitacional na Área de Especial Interesse Urbanístico da Região do Porto do Rio
de Janeiro".

Certamente, a edição de tais normas só faz sentido diante da percepção de que o


ritmo das construções na área da operação anda abaixo das expectativas. Parece
haver também o reconhecimento de que a renovação da área portuária, nas
proporções anunciadas pela OUC Porto Maravilha, não acontecerá somente com
uso não residencial, o que nem seria desejável. E nem mesmo na proporção de
53% de uso residencial para 47% de uso não residencial, adotada no EIV como já
mencionado. Excetuando o Centro, onde há o predomínio de uso não residencial,
nenhum bairro da cidade tem índice tão alto de uso não residencial.

Diante das incertezas em relação aos destinos da área portuária, o prefeito


decide, então, incentivar a produção habitacional ali. De acordo com a LC 143/14,
as edificações destinadas ao uso residencial estão dispensadas de atendimento
de exigências tais como "projeção máxima horizontal da edificação";
"estacionamento de veículos"; "número de unidades por edificação"; "apartamento
de zelador" entre outras. Todas elas, exigências que estão em vigor justamente
porque a operação foi concebida de modo absolutamente tradicional e, sobretudo,
sem projeto, segundo critérios e parâmetros anacrônicos. Ao se tentar remendar,
utiliza-se o mesmo recurso de sempre: flexibilizar a legislação, reduzindo
obrigações urbanísticas do empreendedor. E, paralelamente, se oferece
benefícios fiscais, o que parece estabelecer uma contradição, pelo menos teórica,
uma vez que a operação se estrutura em torno de um instrumento que promove a
cobrança de uma taxa que tradicionalmente não era cobrada - a outorga onerosa
do direito de construir, nesse caso na forma de CEPAC.

Para se promover o uso residencial na área portuária em larga escala, como a


operação prevê, seriam necessárias ações políticas mais consistentes, que
interfiram na lógica mais ampla da dinâmica urbana da cidade. De um lado
impondo restrições à expansão urbana na região da Barra, de outro produzindo
habitação de interesse social. Nenhuma dessas duas linhas de ação foi

208
considerada no desenho da operação e tampouco nas medidas pontuais com as
quais se diz pretender incentivar a produção habitacional na área da operação.

5.2.4. O Porto Maravilha e a cidade do Rio de Janeiro

Além das incertezas sobre em que a OUC Porto Maravilha poderá resultar em
termos de ambiente urbano construído na área portuária, seu impacto na cidade
também é ainda uma incógnita. Se a operação poderia, de algum modo, ser
entendida como ação estratégica de uma política de recentralização do
desenvolvimento urbano, de contraposição à tendência de expansão e dispersão
da urbanização, o conjunto de outras ações em curso na cidade, apontam para o
sentido contrário.

Enquanto os principais empreendimentos relacionados aos Jogos Olímpicos 2016


concentram-se na região da Barra da Tijuca, a produção habitacional de baixa
renda, no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, se dirige para a zona
oeste, nos bairros de Campo Grande e Santa Cruz. Dois movimentos que não
apenas reforçam os grandes vetores de expansão da cidade, mas que também
realimentam tendências de segregação social do espaço urbano, como buscamos
explicitar no capítulo 2.

Retornando aos números, vale registrar que nos anos de 2012 e 2013, quando a
área construída licenciada na área portuária foi significativa, se verificou também
crescimento expressivo do licenciamento na AP4, que envolve Barra da Tijuca,
Recreio dos Bandeirantes e Jacarepaguá. Nessa região, a área total licenciada
passou de menos de 2 milhões m2 por ano em 2008 e 2009, para mais de 3
milhões m2 por ano em 2012 e 2013 (ver Tabela 16). Ou seja, a área da cidade
onde se concentra a atuação do mercado imobiliário do Rio de Janeiro nas
últimas décadas continua forte e a OUC Porto Maravilha, aparentemente, se
apresenta apenas como nova área disponível para eventuais novos mercados,
mas sem interferir significativamente ainda no mercado existente. No ano de
2014, quando a área licenciada caiu significativamente na AP4, o mesmo ocorreu
na região portuária. Com a diferença que a queda área construída licenciada de
2013 para 2014 foi de cerca de 45% na AP4 e de 85% na região portuária.

Registra-se ainda que entre 2009 e 2014, a AP4 foi responsável por 46,64% da
área construída licenciada na cidade do Rio de Janeiro. Nos anos de 2012 e
2013, quando houve o aumento da área licenciada na região portuária, a

209
participação da AP4 no total da cidade foi de mais de 60% e mais de 50%,
respectivamente. Em 2014, houve também queda nessa participação, que ficou
em 40,23%, mas taxa ainda superior às observadas em 2009 e 2010.

Tabela 16
Licenciamento de novas edificações na Área de Planejamento 4 da Cidade do Rio de
Janeiro entre 2009 e 2014
Área Total Total de Unidades Unidades não
Ano
Licenciada (m2) Unidades Residenciais Residenciais
Total 2009/2013 14.370.765,74 103.100 76.536 26.564
2014 1.770.153 15.205 12.129 3.076
2013 3.196.875,53 20.123 14.894 5.229
2012 3.153.976,28 22.562 18.102 4.460
2011 2.478.387,93 19.320 11.203 8.117
2010 1.900.813,00 11.767 8.738 3.029
2009 1.870.560,00 14.123 11.470 2.653
Fonte: Secretaria Municipal de Urbanismo, PCRJ (http://www.rio.rj.gov.br/web/smu/informacoes-urbanisticas).
Tratamento: Barandier e Pinheiro Machado, 2014.

Por outro lado, apesar de se observar, nos últimos anos, a demanda de novos
espaços comerciais na área central do Rio de Janeiro, essa vinha sendo suprida
por uma série de empreendimentos lançados em torno do eixo entre a Cidade
Nova e a Praça XV e por meio do "retrofit" de alguns edifícios no Centro da
Cidade. Apesar da pressão sobre áreas protegidas pelo patrimônio histórico
associada à ausência de projetos urbanos para lidar com tais empreendimentos,
era um processo que indicava tendências de fortalecimento do Centro.

O início da OUC Porto Maravilha interfere nessa dinâmica, absorvendo alguns


empreendimentos. É provável que haja, de fato, mercado para lançamentos que
venham ocorrer na área portuária, porém muito dificilmente o suficiente para
ocupar o volume construído projetado pela operação. A não ser que o movimento
em direção à área portuária se configure também como um processo de
esvaziamento do Centro consolidado, o que seria, certamente, nocivo para a
cidade.

5.3. Conclusões Parciais

Num contexto em que o planejamento urbano de longo prazo tem sido


sistematicamente negligenciado, a OUC Porto Maravilha se configura como um
instrumento para viabilização das ações do "aqui e agora", onde negócios
realizados são mais importantes do que a qualidade do espaço urbano a ser
construído. As consequências para a cidade e mesmo a real viabilidade da própria

210
operação são questões que parecem preocupações menores ou pelo menos não
são claras. A relação entre OUC Porto Maravilha e Plano Diretor do Rio de
Janeiro expressa bem esse quadro, como visto no capítulo 2. A forma como foi
aprovado o "pacote legislativo" que instituiu a operação é igualmente ilustrativo.
Mas é o mecanismo de estruturação da operação que se mostra o aspecto talvez
mais delicado. O prefeito explica como o concebeu: "eu peguei uma área que não
tinha nada, um monte de galpão abandonado, inventei ali de vender o ar (...)"
(Eduardo Paes)130.

Sem entrar no mérito sobre a percepção do prefeito em relação ao conjunto


construído da área portuária, o problema, a partir de sua declaração, é saber qual
o significado de se "comprar ar", saber quem, afinal, "compraria ar". No caso da
OUC Porto Maravilha, não foram as construtoras, empreiteiras, nenhuma
empresa privada. Quem "comprou ar", nesse caso, foi Caixa Econômica Federal,
ou seja, o setor público. E os dados do processo de implementação da operação,
até o momento, sugerem dificuldades para efetiva realização dos mais de 4
milhões de m2 de potencial construtivo adicional adquiridos, ao menos nos 15
anos previstos para operação.

Ao analisarmos a dinâmica urbana do Rio de Janeiro, podemos vislumbrar três


maneiras, não necessariamente excludentes de se realizar o potencial construtivo
tão grande na área portuária.

A primeira seria uma intervenção forte no mercado imobiliário da região da Barra


da Tijuca, por exemplo, restringindo significativamente as possibilidades de
construção nos bairros de maior atividade do mercado imobiliário. Mas a atuação
da prefeitura tem se caracterizado sido justamente por caminhar no sentido
oposto. Ou seja, o de estímulo à produção imobiliária naquela região, seja por
meio de mudanças na legislação urbanística, como o PEU Vargens, por exemplo,
seja pela concentração de investimentos relacionados aos eventos esportivos
internacionais.

A outra opção poderia ser a produção em larga escala de habitação de interesse


social na área portuária, o que também não se mostra como uma perspectiva real.
O que está sendo realizado de habitação de interesse social - são previstas cerca
de 500 unidades, produzidas pelo Programa Novas Alternativas - é muito pouco e
se dá, sobretudo, fora da área de renovação da OUC.

130
Entrevista concedida ao programa "Juca Entrevista", exibido ESPN Brasil, em setembro de
2013.

211
E a terceira possibilidade, essa, a princípio, indesejável, seria transferir parte
significativa do Centro para a área portuária. Na verdade, é mais ou menos nessa
linha que a OUC Porto Maravilha tem se desenvolvido. E se ela se fortalecer, a
ponto de viabilizar o potencial construtivo adicional previsto pela operação,
provavelmente representará o esvaziamento expressivo do centro tradicional.

Figura 27. Porto Maravilha: simulação 3D. Os poucos projetos


licenciados com utilização do CEPAC estão dispersos pela
enorme área da operação, com alguma concentração na área
mais próxima à Av. Francisco Bicalho, no lado oposto ao Centro
da Cidade. Fonte: Elaboração própria.

Diante desse quadro, dois cenários podem ser imaginados. Um, mais provável, é
que o potencial construtivo adicional da OUC não seja efetivamente realizado.
Nesse caso, a infraestrutura instalada e todas as obras realizadas, que em tese

212
dariam suporte a tal potencial construtivo, seriam subutilizadas. Dependendo do
que for realizado, correndo o risco da Caixa não obter o esperado rendimento
com a operação. E como não há uma estratégia clara para induzir a ocupação em
etapas - os empreendimentos vêm sendo lançados de forma pulverizada – corre-
se também o risco de se ter uma enorme área com aspecto de inacabada.

No outro cenário, de realmente a operação se viabilizar e o potencial construtivo


adicional se realizar plenamente, o problema seria de outra natureza. Nessa
hipótese, dada a falta de diretrizes que orientem efetivamente a composição
urbana da área, a possibilidade de um desastre urbanístico seria grande. Ainda
mais levando-se em consideração a altíssima densidade admitida na área de
renovação. Nesse caso, também se teria que avaliar as consequências para
outras áreas da cidade, especialmente sobre o Centro se essa renovação se der
fortemente baseada em empreendimentos não residenciais.

As incertezas em torno da OUC Porto Maravilha são muitas e, desse modo,


também quanto ao destino da área portuária. Possivelmente, o tempo exigirá que
a operação seja redesenhada. Nesse caso, talvez se possa construir uma
oportunidade de se repensar o papel da área portuária na cidade do Rio de
Janeiro e de se formular bases mais consistentes para o projeto urbano a ser
implementado.

213
CONCLUSÃO

Quando se levantou, para reflexão e discussão, o tema da forma negligente como


vêm sendo construídas as cidades, com a atenção voltada especialmente para as
brasileiras, pensava-se sobretudo, que elas poderiam, e podem, ser diferentes.
Menos desiguais e mais acolhedoras. Nesse sentido, a noção de negligência
urbanística tal como foi abordada, antes de mais nada, se contrapõe à
naturalização dos processos urbanos, algo que perpassa e, muitas vezes, justifica
discursos, práticas e também inações em relação às cidades.

A hipótese principal que norteou esta pesquisa era a de que se constituiu, ao


longo do tempo, um quadro de negligência urbanística no contexto carioca de tal
ordem, que compreendê-lo seria condição indispensável para o entendimento do
modelo de desenvolvimento urbano e o significado das tendências atuais do Rio
de Janeiro. A conjugação entre displicência no controle do uso e ocupação do
solo, concentração de investimentos públicos em áreas priorizadas pelo mercado
imobiliário e realização de intervenções urbanas de grande apelo midiático opera
na contramão de uma agenda para construção de uma cidade mais inclusiva e
ambientalmente mais equilibrada. Pelo contrário, reforçam-se tendências de
segregação socioespacial e de reprodução de padrões insustentáveis de
urbanização na cidade.

Embora os estudos aqui empreendidos se debrucem sobre a cidade do Rio de


Janeiro, pode-se extrair, como uma primeira conclusão, que o conceito de
negligência urbanística, núcleo da tese, tem caráter universal. É válido para
diferentes realidades, pois se apoia, segundo a fundamentação teórica
desenvolvida, na ideia de responsabilidade. Num sentido mais amplo, quando se
enfatiza a responsabilidade, se reafirma que cabe às sociedades contemporâneas
enfrentar de modo efetivo os problemas próprios do fenômeno da urbanização,
que, em diferentes contextos e de diferentes formas, se apresentam na
precariedade das cidades, ou de partes delas, nas desigualdades socioespaciais
das áreas urbanas, nas barreiras ao pleno exercício do direito à cidade.

A ideia de responsabilidade conduz a interrogações sobre quem são os agentes


da negligência urbanística. Neste trabalho, pautado pela análise da prática de
projetos urbanos e seu papel na gestão urbana, no caso, da cidade do Rio de
Janeiro, se ressalta o papel do poder público, central na formulação de políticas,
na regulação da produção do espaço urbano, na definição de investimentos,
enfim, na construção da cidade. A compreensão da noção de negligência

214
urbanística nas suas diferentes dimensões ressalta essa centralidade do poder
público. Mas a partir dela, outras abordagens, outras linhas de pesquisas são
cabíveis. Entre elas, a análise mais focada dos demais sujeitos da negligência
urbanística, para além do poder público, pode ser um caminho rico para o
aprofundamento teórico do próprio conceito.

Também pelo viés da responsabilidade, se pode pensar o significado de


negligência urbanística no âmbito das relações internacionais, entendendo a
urbanização como um fenômeno planetário sobre o qual países devem assumir
compromissos na perspectiva de construção de cidades sustentáveis. Pois é
possível cogitar responsabilidades dos Estados diante do modo socialmente
desigual e ambientalmente predatório do desenvolvimento urbano expresso, por
exemplo, pela realidade urbana de inúmeros países na América Latina, na África,
na Ásia.

Na área ambiental, se avança nessa linha, ainda que lentamente, com a


formulação dos acordos do clima. Frente ao fenômeno das mudanças climáticas e
em razão da maior consciência de que seus impactos atingem, e atingirão cada
vez mais, a todos, ainda que de forma mais severa os mais pobres, a discussão
das responsabilidades que cada país, e em especial os países mais ricos, deve
assumir visando ao maior controle de tais efeitos vem pautando acordos
internacionais para redução de emissões de gases de efeito estufa.

No campo do urbano, da moradia, essa maior consciência de que a urbanização


precária é resultado de um modelo de desenvolvimento excludente e que sua
expansão tal como se vislumbra no século XXI afetará a vida de todos é ainda
uma dimensão a ser construída. O caminho, no entanto, não é simples, pois a
cidade é objeto de processos especulativos poderosos, onde interesses
empresariais privados são incorporados à ação estatal e se sobrepõem cada vez
mais aos interesses coletivos.

Por outro lado, o descolamento das elites em relação ao “lugar”, fenômeno


favorecido pela globalização, mostra-se também como obstáculo. Apesar de tal
fenômeno não ter sido diretamente examinado nesta tese, parece também estar
relacionado com o que chamamos de negligência urbanística e pode igualmente
se configurar como outra linha teórica para o tema, igualmente nesse marco da
responsabilidade. Analisando as cidades no mundo de hoje, Bauman (2009)
destaca a radicalização da segregação em "dois mundos-de-vida-separados": um
dos espaços privilegiados e conectados de uma elite global, que se afasta do

215
local como espaço vivido, e outro dos espaços identificados por ele como
"produtos descartados por essa nova extraterritorialidade" (BAUMAN, 2009. p.26).
Nesse sentido, a noção de negligência urbanística pode ser entendida como
consequência de uma globalização por cima, em que as cidades, ou partes
inteiras das cidades, podem ser deixadas ao abandono. O autor descreve mais
especificamente como os integrantes dessa elite global se relacionam com a
cidade:

As pessoas da "primeira fila" não se identificam com o lugar onde moram, à


medida que seus interesses estão (ou melhor, flutuam) em outros locais. Pode-se
supor que não adquiriram pela cidade em que moram nenhum interesse, a não ser
os seguintes: serem deixadas em paz, livres para se dedicar completamente aos
próprios entretenimentos e para garantir os serviços indispensáveis (não importa
como sejam definidos) às necessidades e confortos da vida cotidiana. (...) Eles
não estão interessados, portanto, nos negócios de "sua" cidade: ela não passa de
um lugar como outros e como outros todos, pequeno e insignificante, quando visto
da posição privilegiada do ciberespaço, sua verdadeira - embora virtual - morada.

(...)

A segregação das novas elites globais; seu afastamento dos compromissos que
tinham com o populus do local no passado; a distância crescente entre os espaços
onde vivem os separatistas e o espaço onde habitam os que foram deixados para
trás; estas são provavelmente as mais significativas das tendências sociais,
culturais e políticas associadas à passagem da fase sólida para a fase líquida da
modernidade. (BAUMAN, 2009. p. 27-28).

Ainda demarcando resultados da pesquisa e viabilidades de desdobramentos


futuros, cabe ressaltar que a ideia de negligência associada aos processos de
urbanização está presente nas reflexões de vários autores, em geral
subliminarmente, mas às vezes de forma mais explícita, como na formulação de
Harvey (2013) sobre direito à cidade:

Saber que tipo de cidade queremos é uma questão que não pode ser dissociada
de que tipo de vínculos sociais, relacionamentos com a natureza, estilos de vida,
tecnologias e valores estéticos nós desejamos. O direito à cidade é muito mais
que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de
mudar a nós mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo, e não
individual, já que essa transformação depende do exercício de um poder coletivo
para remodelar os processos de urbanização. A liberdade de fazer e refazer as
nossas cidades, e a nós mesmos, é, a meu ver, um dos nossos direitos
humanos mais preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados. (HARVEY,
2013, grifo nosso).

216
A contribuição teórica principal do trabalho, então, está no exercício de constituir
essa associação entre negligência e processos de urbanização como questão
teórica, por meio da formulação do conceito de negligência urbanística. Tal
formulação se vale do pensamento crítico nas ciências sociais que têm a cidade
como objeto de estudo, mas se desenvolve aqui no campo do urbanismo, a partir
do cotejamento entre desenvolvimento urbano, instrumentos de planejamento e
práticas de projetos urbanos. Contudo, no nosso ver, a noção de negligência
urbanística, dada a abrangência que pode assumir, inclusive no debate sobre
direito à cidade, demonstra potencial para ser explorada também em outras áreas
do conhecimento, notadamente a sociologia urbana e o direito urbanístico.

Com base em elementos da realidade do Rio de Janeiro e na perspectiva da


gestão urbana, pôde-se esboçar três dimensões principais relativas à noção de
negligência urbanística: estrutural, operacional e projetual. Tais dimensões
emergem dos estudos sobre o Rio de Janeiro aqui desenvolvidos (capítulos 2, 3 e
4) e, ao serem amadurecidas conceitualmente, também alimentaram o próprio
exercício analítico empreendido que demonstra sua existência e pertinência.

Mesmo sem a pretensão de classificar os fenômenos e processos estudados


numa ou noutra dimensão especificamente, até porque, como já assinalado,
essas se sobrepõem, foi possível constatar que elas estão presentes na realidade
carioca. Muito claramente, no fomento à expansão urbana desnecessária e que
produz impactos negativos na cidade de diferentes ordens; na incapacidade de se
fazer frente à informalidade urbana crescente; nas resistências a mudanças reais
na concepção de regulação da produção urbana; na deslegitimação do plano
como instrumento de gestão e, mais ainda, do próprio processo de planejamento;
nos projetos que reproduzem localmente experiências tidas como de sucesso em
outras cidades, mas inadequadas ao nosso contexto; na ânsia por se construir
novos ícones arquitetônicos - que criam imagens, mas, possivelmente, destroem
identidades.

Todos esses aspectos, que se buscou demonstrar com dados e análises, tanto no
que diz respeito às tendências do desenvolvimento urbano carioca, como na
leitura da prática de projetos urbanos no Rio de Janeiro como um processo no
tempo e, por fim, na análise focada especificamente numa experiência de
intervenção urbana, confirmam a conformação do quadro de negligência
urbanística apontado inicialmente. E é em torno deles que se pode apontar

217
algumas questões trabalhadas e que devem ser ressaltadas por darem sentido
concreto à ideia de negligência urbanística.

O desenvolvimento urbano carioca das últimas décadas caracteriza-se por dois


processos concomitantes e interligados: dispersão urbana e crescimento da
informalidade urbana, que podem ser compreendidos como expressão físico-
territorial da negligência urbanística nas suas diferentes dimensões. Como
destacado anteriormente, se não são fenômenos propriamente novos, pois podem
ser observados ao longo de todo o século XX, o contexto recente é
substancialmente diferente. Desde a década de 1980, o crescimento populacional
no Rio de Janeiro é relativamente baixo e estável, não sendo razoável a
expansão urbana nas proporções em que ela vem se dando, bem como o
aumento expressivo da informalidade.

Num contexto diferente, se poderia supor que o direcionamento do


desenvolvimento urbano seria renovado, pautando-se por novos critérios. Porém
a história recente da cidade do Rio de Janeiro mostra, e os números do
deslocamento populacional interno e do crescimento do parque imobiliário não
deixam quaisquer dúvidas, que a decisão de ocupação da região da Barra da
Tijuca, posta em prática a partir da aprovação do Plano Lucio Costa em 1969,
principal mudança estrutural da cidade nas últimas décadas, continua a ser a
principal diretriz urbanística para o desenvolvimento da cidade. Se esta podia ser
aceitável, ainda que com ressalvas, na década de 1960, hoje é completamente
incompreensível. Porque o poder público pode intervir nesse processo ou, pelo
menos, não fomentá-lo, como tem feito sempre e mais ainda no momento atual,
com a concentração de investimentos olímpicos justamente nessa região.

Quanto à questão da informalidade urbana, que tem na favelização sua


expressão mais visível na cidade do Rio de Janeiro, parece indiscutível que os
programas de urbanização de favelas nos anos 1980 e 1990 representaram
avanços. O Programa Favela Bairro deu ao tema uma nova dimensão. As ações
em favelas deixaram de ser meramente experimentais, ou restritas a intervenções
muito pontuais, e passaram integrar um programa amplo, envolvendo não apenas
a execução de obras, mas um projeto urbanístico para cada assentamento
beneficiado. Contudo, para além do fato que tal política foi deixada de lado nos
últimos anos, inclusive com a retomada de práticas de remoção, os programas de
urbanização tratam de ações sobre a realidade fática, mas sem enfrentar as
causas da informalidade. E, nesse sentido, os números, tanto da continuidade do
crescimento em favelas como da informalidade de modo geral, são muitos

218
expressivos no Rio de Janeiro. Ainda que se trate de um fenômeno complexo e
multicausal, a informalidade é reveladora de uma ordem urbanística que privilegia
uma cidade idealizada, acessível apenas a uma parte da população. E é por isso
que se faz importante destacar como a cidade do Rio de Janeiro resiste em rever
sua legislação urbanística confusa e de difícil aplicação e, mais ainda, a
incorporar instrumentos que possam contribuir para a construção de regras
urbanísticas que favoreçam a democratização do acesso à terra urbanizada e à
justa distribuição dos benefícios e ônus do processo de urbanização.

Na verdade, como visto no decorrer do trabalho, optou-se, no início dos anos


1990, mais precisamente a partir de 1993, pela priorização dos projetos urbanos,
marcando um momento de inflexão, que determinaria a condução da gestão
urbana nos últimos cerca de 20 anos. O urbanismo de projetos esboçado nos
anos 1990 promove a interrupção no processo que, na década anterior,
combinava experiências de intervenções urbanísticas com mudanças no sistema
de planejamento ordinário da cidade, dialogando, de algum modo, com os
debates em torno da reforma urbana. É nesse momento de inflexão que se pode
situar razões originais que levaram à consolidação de uma prática de projetos
urbanos na cidade do Rio de Janeiro que convive com a manutenção da lógica de
condução do urbanismo ordinário que, em grande medida, tem produzido
fenômenos como os acima descritos. A desvinculação entre projeto urbano e
renovação da gestão urbana ordinária, tal como se procurou demonstrar
principalmente nos capítulos 2 e 3, certifica a segunda hipótese de que a prática
de projetos urbanos no Rio de Janeiro não rompeu com o urbanismo normativo
tradicional, ao qual, do ponto de vista teórico, a noção de projeto urbano se
contraporia.

A valorização do projeto como instrumento de intervenção na cidade


relativamente autônomo, no entanto, trouxe algumas novidades importantes que
merecem registro. Entre elas, a preocupação com o espaço público como
elemento estruturador da urbanidade, apesar do enviesado discurso de ordem
dominante. Não obstante, a partir da opção de privilegiar a ação, a prática de
projetos urbanos no Rio de Janeiro se desenvolve, pode-se dizer, segundo uma
lógica própria, desarticulada do "urbanismo cotidiano" que constrói a cidade dia a
dia dentro e fora da norma. O foco de renovação da gestão recai sobre
intervenções no espaço urbano, na perspectiva de construir uma nova imagem da
cidade. E nesse contexto, se advoga a flexibilização das normas urbanísticas ao
invés da renovação, em outras bases conceituais, do aparato normativo e
instrumental de gestão urbana ordinária de tradição elitista, tecnocrática e

219
burocrática. Passa-se, então, a privilegiar "oportunidades", normalmente de
negócios, em relação à discussão e definição de prioridades. As ações
exemplares ao processo de planejamento e à construção cotidiana da cidade.

Assim, é possível afirmar que apesar de experiências inovadoras e até mesmo


exitosas que eventualmente possam ser identificadas na prática de projetos
urbanos no Rio de Janeiro desde os anos 1980, a maneira como se opera a
construção da cidade continua sendo, de modo geral, determinada muito mais
pela execução de obras públicas setoriais (intervenções viárias, conjuntos
habitacionais, equipamentos urbanos etc), pela aplicação de legislação
urbanística anacrônica, pelas lógicas do mercado imobiliário e pelo puro "laisser-
faire". Paralelamente, tal como se configurou no Rio de Janeiro, sobretudo no
período mais recente, impulsionado por uma nova onda desenvolvimentista e pela
euforia com a realização de grandes eventos esportivos internacionais, o projeto
urbano acaba por se constituir como instrumento de um urbanismo de exceção,
que incide seletivamente no território e reforça dinâmicas de segregação no
espaço urbano.

No momento atual, a operação urbana de renovação da área portuária, talvez


possa ser considerada como a expressão máxima da negligência urbanística na
cidade do Rio de Janeiro. Uma operação gigantesca que, sem um projeto urbano
claro, se configura, acima de tudo, como grande arranjo institucional e financeiro,
que viabiliza a execução de obras e possibilita a transferência de terrenos
públicos para o setor privado.

Do ponto de vista urbanístico, se baseia na concessão de índices construtivos


combinada com a execução de obras de infraestrutura e viárias, mas com
liberdade para os empreendimentos privados definirem, segundo suas próprias
lógicas e interesses, a destinação da área. Nem mesmo uma proporção de
aproveitamento entre usos residenciais e não residenciais é prevista pela
operação. Muito menos, há previsão de que parte do potencial construtivo
adicional, mínima que seja, de uma área que é enorme, seja reservado para
habitação de interesse social. Além desses aspectos, e aí é onde a negligência
urbanística é mais evidente, apesar da magnitude da operação, não se tem
nenhuma clareza dos seus impactos sobre outras áreas da cidade, notadamente
o Centro. Ela é concebida como se estivesse se tratando de uma cidade num
ritmo de crescimento econômico e demográfico significativos, quando se sabe que
não ocorre nem uma coisa nem outra.

220
Por outro lado, os dados analisados sugerem que a realização do potencial
construtivo adicional previsto para a área é absolutamente improvável. A
comparação com outros exemplos de processos relevantes de renovação urbana
(Puerto Madero e Paris Rive Gauche) ilustra bem a questão (capítulo 4). Ainda
assim, existe um problema adicional no Porto Maravilha, pois se for efetivamente
realizado, as chances de um ambiente construído de péssima qualidade são
grandes. Não só pela altíssima densidade construída prevista, mas, sobretudo,
pela falta de projeto que dirija a operação e paute, pelos interesses públicos, a
atuação privada.

Ao identificar as três gerações de projetos urbanos na cidade do Rio de Janeiro,


sobre as quais incidiu esse estudo, foi possível demonstrar como essa prática se
altera substancialmente ao longo do tempo, tal como indicado em na terceira
hipótese de trabalho. Embora esta constatação não seja propriamente uma
novidade, a forma como se tratou a questão, por meio de uma cronologia
comentada e crítica dos projetos urbanos na cidade nas últimas três décadas,
gerou uma visão de conjunto que em si mesma constitui um resultado importante
da pesquisa. Confirma o entendimento de que o projeto urbano é singular e
específico, mas também que só pode ser compreendido no seu significado
quando analisado nas múltiplas escalas do espaço urbano e nas suas diferentes
temporalidades.

No caso do Rio de Janeiro, apesar de terem sido demarcadas três gerações de


projetos urbanos, pôde-se identificar continuidades de um processo que culminou
no momento atual, em que projetos urbanos são concebidos e implantados por
cima, pela força política e econômica sem rodeios. Um dos problemas
enfrentados na compreensão e descrição desse processo era justamente, pela
própria falta de distanciamento, o de delimitar o período atual. Adotou-se como
marco o início dos anos 2000, quando parece ser o momento em que se perdeu a
base conceitual que fundamentara no desenho urbano e na qualificação do
espaço público a prática de projetos urbanos dos anos 1990.

Se na década de 90 o debate sobre a cidade foi marcado pelo embate entre


concepções de planejamento que traduziam acirradas disputas ideológicas, a
partir dos anos 2000, e muito particularmente na cidade do Rio de Janeiro, o
discurso urbanístico foi esvaziado. A agenda do urbanismo carioca passa a ser
fortemente pautada pelos eventos esportivos internacionais a serem sediados na
cidade, justificada pelas promessas de "legado".

221
A aproximação da realização dos Jogos Olímpicos, em 2016, leva a pensar que
chegará ao fim mais uma geração de projetos urbanos na cidade do Rio de
Janeiro, restando a esperança de que se abra um novo ciclo de projetos, mas
também de reconfiguração mais ampla da gestão urbana. Olhando a cidade atual
e as práticas recentes do urbanismo carioca, parece claro que é necessário
construir alternativas para o Rio de Janeiro pós-2016, quando a cidade estará,
então, liberta da condição de sede de grandes eventos esportivos. Talvez aí seja
possível reconstruir espaços de reflexão, com a participação da sociedade, para
se pensar em um tipo de projeto urbano que contribua para desenhar cidades
mais justas e equilibradas reivindicadas pelos marcos legais do direito à cidade no
Brasil.

O conceito de negligência urbanística instiga o questionamento sobre os arranjos


políticos e os fundamentos técnicos que se entrelaçam na gestão urbana e
orientam sua condução, seja na cidade do Rio de Janeiro, seja em outras
realidades. A partir dele, nas três dimensões aqui propostas – estrutural,
operacional e projetual – acreditamos que se abre novas perspectivas para se
pensar o modo como as cidades são construídas e os desafios relacionados ao
fenômeno urbano no século XXI.

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