Tese Henrique Barandier
Tese Henrique Barandier
Tese Henrique Barandier
RIO DE JANEIRO
2015
Henrique Gaspar Barandier
Rio de Janeiro
2015
I
Barandier, Henrique Gaspar.
B225 Negligência urbanística e projeto urbano na cidade do Rio de Janeiro /
Henrique Gaspar Barandier. Rio de Janeiro: UFRJ / FAU, 2015.
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Prof. Ora. Denise Barcellos Pinheiro Machado - Orientadora
(PROURB - FAU/UFRJ)
Rio de Janeiro
2015
AGRADECIMENTOS
III
Agradeço também à equipe do Laboratório de Projetos Urbanos - LAPU,
coordenado pela Prof. Denise Barcellos Pinheiro Machado. Em especial a Maria
Beatriz Afflalo Brandão, nossa querida Bitiz, que sempre esteve disposta a discutir
temas relacionados a nossas teses e aos pesquisadores de iniciação científica
Patricia Knop e Daniel Mello, que na reta final muito me ajudaram na formatação
de mapas, tabelas, imagens, transcrições, sempre com dedicação, curiosidade e
bom humor.
Por fim, meus os agradecimentos aos meus familiares. Sem o apoio diário deles,
prático e emocional, teria sido bastante difícil. Primeiro agradeço aos meus pais,
Antonio Carlos e Maria da Paz, por tudo, sempre, sendo quase impossível
expressar em palavras a relevância deles nesse período um tanto quanto
conturbado. E, para concluir, agradeço, evidentemente, a Milena, minha
companheira de vida, que foi a primeira a me encorajar e a me mostrar que era o
momento de se fazer o doutorado. Junto com ela, agradeço a nossos amados
filhos Daniel e Michel, que ainda pequenininhos, talvez tenham tido dificuldades
de entender alguns momentos de distanciamento que acabaram sendo
necessários. Todos eles viveram comigo esse processo e tiveram a generosidade
de me aturar. Mas acho que vão ficar satisfeitos com resultado final, ou pelo
menos aliviados. Juntos, partiremos para outras aventuras.
IV
RESUMO
Tendo como interesse principal a reflexão sobre a cidade do Rio de Janeiro, que
nesses últimos anos passa por grandes obras, mas não necessariamente por
transformações significativas, o trabalho analisa a prática de projetos urbanos,
que tem sido privilegiada na gestão urbana carioca das últimas décadas, num
contexto em que subjaz um quadro de negligência urbanística que se impõe de
diferentes formas sobre o território, em especial, pelas tendências de segregação
socioespacial e de reprodução de padrões insustentáveis de urbanização
determinadas por dois fenômenos principais: dispersão urbana e informalidade
urbana crescente.
V
ABSTRACT
This dissertation studies the urban negligence that pervades the practices in public
administration in Brazilian cities which it is physically expressed through territorial
inequalities that, in many cases, is fostered by public actions or by government
oversight.
As the prime concern is to consider the city of Rio de Janeiro, which, in recent
years, has undergone major civil construction works although they did not
necessarily led to meaningful transformations; this study assesses the practice of
urban planning in a context that underlines a framework of urban negligence in the
city, taking into consideration that urban planning has been privileged in “carioca”
urban administration practice for the last decades; The framework of urban
negligence is imposed over the territory through many ways; in particularly, the
trends of socio-spatial segregation and reproduction of unsustainable urbanization
patterns which are characterized by two main phenomena: growing urban
dispersion and urban informality.
On one hand, it is observed that the practice of urban planning in Rio de Janeiro
did not break with the traditional ruling principles of urbanism, which from the
theoretical point of view, the concept of urban planning would be in opposition. So
much that it did not break with the rationale that fosters unequal and excluding
urban developments in the city. On the other hand, this paper also explores the
changes in meaning and organization of urban planning that have revealed how
this practice, as it has existed in Rio de Janeiro in recent decades, is disconnected
from the revisions of the normative and instrumental apparatus of urban
administrations – traditionally being elitist, technocratic and bureaucratic. The
practice of urban planning has been much more determined by the profile and
priorities of each mayor than by the nurture of a culture of urban projects linked to
the continuous process of discussions about the city, thus allowing different
thoughts and disputes to permeate in the democratic construction.
Key words: Urban Negligence; Urban Project; Rio de Janeiro; Right to the City
VI
RESUMÉ
Cette thèse examine les formes de négligence urbanistique qui pénètrent les
pratiques de gestion des villes brésiliennes et qui s'expriment physiquement et
particulièrement par des inégalités territoriales, souvent déclenchées par l'action
publique ou par les omissions de l'Etat.
Le domaine d'intérêt de ce travail est une réflexion sur Rio de Janeiro, ville qui au
cours des dernières années est le siège de grands travaux, mais sans entraîner
nécessairement des transformations significatives. L'étude analyse la pratique de
projets urbains – privilégiés par la gestion urbaine "carioca" des dernières
décennies – dans un contexte sous-tendu par un cadre de négligence
urbanistique qui s'impose de diverses façons sur le territoire, tout particulièrement
au moyen de certaines tendances de ségrégation socio-spatiale et de
reproduction de standards non durables d'urbanisation entrainées par deux
phénomènes principaux : la dispersion et l'informalité urbaine croissante.
Il est utile d'observer, d'une part, que la pratique des projets urbains à Rio de
Janeiro n'a pas répudié l'urbanisme normatif traditionnel, auquel, du point de vue
théorique, s'opposerait la notion de projet urbain. Il n'a pas, non plus, rompu avec
les logiques qui orientent le développement urbain inégal et excluant de la ville.
D'autre part, l'étude aborde les changements constatés des significations et des
formats du projet urbain au fil des dernières décennies, qui révèlent la façon dont
ces pratiques, comme elles se reconfigurent à Rio – détachées de la révision de
l'appareil normatif et instrumental de gestion urbaine de tradition élitiste,
technocratique et bureaucratique – sont beaucoup plus établies par le profil et par
les priorités de chaque maire, que par la constitution d'une culture de projets
urbains liée à un processus de discussion continu sur la ville, perméable aux
différentes visions et aux différends qui font partie du processus de construction
démocratique.
VII
LISTA DE FIGURAS
Figura 05. Área urbanizada do Rio de Janeiro nas décadas de 1970 e 2010......70
Figura 13. Cidade do Rio de Janeiro - Área Central: uma visão de futuro........... 143
Figura 15. Projetos urbanos na área central nos anos 1990 (exemplos)............. 145
Figura 25. Perímetros da operação Puerto Madero, Paris Rive Gauche e Porto
Maravilha.............................................................................................................. 200
VIII
Figura 26. Puerto Madero e Paris Rive Gauche................................................... 201
LISTA DE MAPAS
Mapa 01. Bairros que ganharam e bairros que perderam população na década
de 1990 na cidade do Rio de Janeiro................................................................... 46
Mapa 02. Bairros que ganharam e bairros que perderam população na década
de 2000 na cidade do Rio de Janeiro................................................................... 47
Mapa 14. Empreendimentos licenciados na OUC Porto Maravilha (até 2014).... 206
IX
LISTA DE TABELAS
X
Tabela 14. Licenciamento de novas edificações na Região Portuária entre
2009 e 2014.......................................................................................................... 202
XI
PEU - Projeto de Estruturação Urbana
PIB - Produto Interno Bruto
PMCMV - Programa Minha Casa Minha Vida
POUSO -
PPP - Parceria Público-Privada
PROAPAR - Programa Municipal de Parcerias Público-Privadas
RDC - Regime Diferenciado de Contratações Públicas
RMRJ - Região Metropolitana do Rio de Janeiro
SABREN - Sistema de Assentamentos de Baixa Renda
SFH - Sistema Financeiro de Habitação
SMU - Secretaria Municipal de Urbanismo
VLT - Veículo Leve sobre Trilhos
ZUM - Zona Urbana Mista
XII
ÍNDICE
INTRODUÇÃO..................................................................................................... 01
Capítulo 1
NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA: REFERÊNCIAS CONCEITUAIS..................... 10
Capítulo 2
DISPERSÃO URBANA, INFORMALIDADE URBANA E O QUADRO DE
NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO................. 39
XIII
2.3.2. Índices de Aproveitamento de Terreno (IAT), Macrozoneamento e
Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC).................................... 91
Capítulo 3
TRÊS GERAÇÕES DE PROJETOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO............ 100
3.2.4. O fim do ciclo dos anos 80: o Plano Diretor de 1992....................... 126
XIV
3.5.2. Projetos urbanos e o desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro.. 172
Capítulo 4
NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA NA RENOVAÇÃO URBANA DA ÁREA
PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: O PROJETO PORTO MARAVILHA........ 174
4.1. "Sonho que virou realidade" ou projeto sem adesão social................... 175
CONCLUSÃO...................................................................................................... 214
XV
INTRODUÇÃO
Pensando na cidade do Rio de Janeiro, que nesses últimos anos passa por
grandes obras, mas não necessariamente por transformações significativas,
optou-se por desenvolver a reflexão sobre a ideia de negligência urbanística a
1
partir da prática de projetos urbanos no contexto carioca. Mais precisamente,
abrangendo as três últimas décadas, quando o projeto urbano se constituiu como
prática privilegiada do urbanismo contemporâneo nos mais diferentes países,
inclusive no Brasil, onde as experiências do Rio de Janeiro têm grande destaque.
Nesse sentido, a expressão "negligência urbanística" é empregada como
contraponto aos discursos de exaltação de um novo futuro para determinadas
áreas ou mesmo para a cidade como um todo que autoridades e mídia assumem
frequentemente em relação a certos projetos urbanos. Contraponto que nos
permite refletir sobre práticas do urbanismo numa realidade de desigualdades
territoriais e urbanísticas históricas e na qual se observa, tomando emprestadas
as expressões de Milton Santos (2012), a configuração de "zonas luminosas" que
"se justapõem, superpõem e contrapõem" a "zonas urbanas opacas" (SANTOS,
2012. p.325).
Estas, como se verá, não são estanques. Elas se sobrepõem, sendo, por vezes,
difícil localizar os fenômenos urbanos numa ou noutra especificamente. Portanto,
não é o interesse aqui tê-las como categorias para enquadramentos rígidos. Na
verdade, constituem as referências que orientam o trabalho na exploração da
tensão entre negligência urbanística e projetos urbanos na cidade do Rio de
Janeiro. Ao mesmo tempo, a identificação e compreensão de tais dimensões é
resultado das análises empíricas desenvolvidas ao longo da pesquisa e que
levaram à proposição do conceito de negligência urbanística.
2
(2016) - como as demais, por exemplo, a renovação da área portuária com o
midiático "Porto Maravilha"1, deflagradas num momento da economia do país
ainda favorável, motivam e justificam as reflexões em torno de formas de
negligência urbanística e da prática de projetos urbanos. Apesar das promessas
de "legado olímpico", tais obras, que canalizam recursos para áreas já priorizadas
pelo mercado imobiliário e/ou representam a abertura de novos vetores para a
sua atuação, reforçam tendências de segregação socioespacial e de reprodução
de padrões insustentáveis de urbanização na cidade.
1
A Operação Urbana Consorciada (OUC) Porto Maravilha foi instituída em 2009 com objetivo de
promover a renovação urbana da área portuária. A operação tem vigência de 15 anos, renovável
por mais 15.
3
dos últimos 45 anos que consiste na ocupação da região da Barra da Tijuca,
ininterruptamente implementada desde então. Cabe observar, seguindo
considerações de Magalhães (2009), que, contrariamente ao que diz o senso
comum, não é exatamente verdade que a cidade é construída sem planejamento.
Pelo menos uma parte dela é planejada. E todo o conjunto da cidade, de algum
modo, é resultado também de decisões de planejamento. A questão, como
destaca o autor, é que "o planejamento pode estar em dissonância com a cidade;
pode trabalhar no seu enfraquecimento" (MAGALHÃES, 2009. p.159). Como dito
acima, pode ser negligente. Ao abordar o tema, Magalhães se refere com ênfase
ao processo de ocupação da região da Barra da Tijuca que "não apenas projetou
uma expansão maior do que a cidade então existente, como concebeu a
desconstrução da sua centralidade" (MAGALHÃES, 2009. p.159).
4
de Luta pela Reforma Urbana propunha uma "agenda unificada para as cidades"
(MARICATO, 2011. p.101) com a qual os projetos em andamento no Rio de
Janeiro à época, de algum modo, dialogavam. Essa agenda, construída em torno
de uma série de propostas que buscavam a afirmação do direito à cidade,
resultaria na incorporação de alguns dispositivos pela Constituição Federal de
1988 que apontavam caminhos para novas práticas de gestão urbana: o princípio
da função social da cidade e da propriedade urbana; o aproveitamento obrigatório
de imóveis vazios ou subutilizados em zonas urbanas com infraestrutura
instalada; a regularização fundiária de interesse social; e a participação social na
formulação e implementação da política urbana.
O Plano Diretor do Rio de Janeiro de 1992, ainda que não possa ser considerado
propriamente como um plano que propusesse a reorientação do processo de
desenvolvimento urbano, trazia dispositivos que, se aplicados, poderiam interferir
mais diretamente no mercado fundiário e imobiliário no sentido de promoção do
que o Estatuto da Cidade2, aprovado em 2001, chamaria da "justa distribuição do
benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização" (art. 2o).
A partir dos anos 1990, mais precisamente 1993, quando o prefeito César Maia
assume a administração municipal do Rio de Janeiro, se institui um novo discurso
para a cidade, numa perspectiva completamente oposta ao espírito que de algum
modo estava presente naquele plano diretor recém aprovado. O novo prefeito
estruturava seu discurso em duas perspectivas principais: a da ordem urbana e a
da transformação do Rio de Janeiro numa "cidade global". Na gestão urbana, a
orientação central prescrevia que era preciso agir. E é nesse contexto que se
esboça o urbanismo de projetos que caracterizaria os anos 1990, privilegiando o
"desenho enquanto instrumento de ação urbanística" (IPLANRIO, 1996. p.21).
5
exercício das funções municipais de controle do uso e ocupação do solo urbano -
e a incorporação de instrumentos de combate à retenção especulativa da terra ou
destinados à captura pelo poder público de parte da valorização fundiária não
aconteceram, tal como o plano diretor pelo menos pressupunha. Assim, a política
de projetos urbanos se desenvolveria sem alterar significativamente as práticas
de gestão do urbanismo ordinário da cidade.
6
especificamente, aquilo que foi nomeado como "formas de negligência
urbanística", tratadas conceitualmente em três dimensões: estrutural, operacional
e projetual.
7
pois diferentemente do mais usual, deslocou-se o olhar da análise de casos de
referência isolados, da abordagem de determinadas temáticas ou recortes
temporais relativamente curtos para um exame de mais longo prazo e de conjunto
dos projetos urbanos propostos para a cidade. Assim, busca-se compreender seu
impacto nas transformações urbanas do período e nas tendências da dinâmica
urbana da cidade, alimentando a discussão sobre negligência urbanística.
8
oferta de novas possibilidades de atuação do mercado imobiliário, caso se
confirmem como opções rentáveis.
9
Capítulo 1
NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA: REFERÊNCIAS CONCEITUAIS
Este capítulo aborda, numa primeira parte, referências conceituais sobre o termo
"negligência" que alimentaram a proposição da noção de "negligência urbanística"
como a questão a ser explorada neste trabalho. Em seguida, desliza para a
análise das formas de negligência urbanística a partir da proposição de três
dimensões principais: estrutural, operacional e projetual. Tais dimensões não
pretendem configurar propriamente critérios para enquadramento de fenômenos,
mas sim se constituírem como referências para um exercício analítico que
envolve múltiplas escalas do espaço urbano e diferentes instrumentos de
intervenção na cidade, considerando, no entanto, que no âmbito desta tese, o
foco de interesse recai sobre a prática de projetos urbanos nas três últimas
décadas na cidade do Rio de Janeiro.
10
Ao analisar a situação atual do urbanismo de projetos na França, Roux (2012) faz
algumas considerações interessantes, entre as quais destaca que "grandes
projetos urbanos não representam mais que uma ínfima parte do que é
construído, sem correspondência com sua reputação..." (ROUX, 2012, tradução
nossa). Na verdade, os projetos urbanos incidem em fragmentos da cidade,
sendo discutível se seus efeitos de fato se irradiam para além dos seus limites, ou
em que medida isso se dá, ainda mais no caso de grandes metrópoles.
11
1.1. SIGNIFICADOS DA NEGLIGÊNCIA E ABORDAGENS PRELIMINARES
Pensando nos fenômenos urbanos, muitos dos quais têm sido facilmente
naturalizados, ou tratados como inexoráveis, e sobre práticas urbanísticas
desenraizadas, as noções de insensibilidade e indiferença parecem úteis para se
compreender posturas negligentes no campo do planejamento urbano e do
urbanismo. Assim, é possível considerar que para além do sentido de omissão,
mais claramente associado ao termo negligência, a noção de "negligência
urbanística" se situa entre a insensibilidade e a indiferença em relação ao espaço
urbano, à cidade e ao processo de urbanização.
4
"Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa", 3a ed., 1999. Negligência. [Do lat.
negligentia.] S.f. 1. Desleixo, descuido, incúria. 2. Desatenção, menoscabo, menosprezo. 3.
Preguiça, indolência. (Cf. negligencia, do v. negligenciar).
5
"Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa" (edição on-line: http://houaiss.uol.com.br/).
Negligência. substantivo feminino ( sXIV). 1. falta de cuidado; incúria ‹ trata a casa e a família
com muita n. › 2. falta de apuro, de atenção; desleixo, desmazelo ‹ veste-se com n. › 3. falta de
interesse, de motivação; indiferença, preguiça ‹ n. no trabalho leva ao desemprego › 4. jur.
inobservância e descuido na execução de ato
12
urbano e, nesse sentido, ainda que indiretamente, ajudam a moldar a noção de
negligência urbanística e sua abrangência possível. De um lado, coloca-se a
dimensão jurídica do termo, que implica na ideia de responsabilidade e que está
vinculada a condutas esperadas de cada sujeito. Sendo assim, seja pela ação ou
seja pela inação, condutas negligentes de uns podem ter consequências para si
mesmos e para outros. E, numa outra perspectiva, ao explorar a expressão
"doenças negligenciadas" utilizada na área da saúde, sinaliza-se que também no
urbano se pode identificar temas ou situações negligenciadas, que, em alguma
medida, podem ser compreendidos como posturas deliberadas de não
enfrentamento.
13
pela "intenção de prejudicar ou fraudar outrem" ou, no caso do direito penal, pela
"intenção de praticar um mal que é capitulado como crime, seja por ação ou por
omissão" (SIDOU, 2000. p.316). A "culpa", por sua vez, é definida a partir da
"violação ou inobservância de uma regra de conduta que produz lesão ao direito
alheio" (SIDOU, 2000. p.243). Nesse caso, não é propriamente o resultado da
ação que está em questão e se considera que o agente da ação não tinha por
objetivo provocar o dano causado. Prado (2010) ressalta, portanto, que a "a
conduta típica culposa é valorada negativamente por sua contradição a uma
norma objetiva de cuidado" (PRADO, 2010. p.341).
Ainda de acordo com Prado, o direito brasileiro prevê três modalidades de culpa,
"através das quais se pode violar o cuidado" (PRADO, 2010. p.343). São elas:
imprudência, negligência e imperícia, explicadas por Tubenchlak (1978) da
seguinte forma:
"As distinções supra não possuem maior relevância, pois a locução 'negligência'
envolve os conceitos de imprudência e imperícia. O agente, ao praticar uma
conduta imprudente ou imperita, negligencia no tocante à conduta legítima que
devia praticar. Não é sem razão que os penalistas alemães tratam o crime culposo
de crime negligente." (TUBENCHLAK,1978. p.111).
O autor pondera ainda sobre as condições para que determinada ação negligente
entre na esfera criminal. Segundo Tubenchlak,
14
Nessa perspectiva, o termo negligência recai sobre o sujeito e sua conduta no
caso concreto. Talvez se possa pensar que uma das dimensões de "negligência
urbanística" esteja relacionada, por exemplo, justamente aos processos de
licenciamento e fiscalização regidos por uma legislação que estabelece - nem
sempre de forma clara e muitas vezes de modo contraditório - parâmetros a
serem observados. Tanto em parcelamentos como em edificações, as obrigações
a serem cumpridas pelos proponentes e os procedimentos a serem seguidos nos
processo de análise, em tese, representariam a defesa do interesse público e
coletivo. A sua inobservância, então, poderia indicar uma forma de negligência.
15
Ao traçar um panorama sobre o debate do tema "negligência infantil", a autora
destaca a tendência de se deslocar o foco associado essencialmente ao
comportamento dos pais ou responsáveis pelas crianças, na linha da
responsabilização de sujeitos, para a compreensão das "crianças e suas
necessidades". Dessa forma, haveria uma aceitação crescente de que o
fenômeno da negligência é determinado também pelo meio, pois as situações de
negligência poderiam não ser determinadas exatamente pela omissão dos pais ou
responsáveis, mas decorrentes de suas circunstâncias - econômicas, sociais,
culturais, etc. - que os levariam a não ter condições para atender as necessidades
da criança.
6
Nesse sentido, tem-se em consideração o entendimento de MOURA e ANDRADE E SILVA
(2008) quando questionam se desastres “naturais” não seriam, na verdade, fruto da negligência
humana. Segundo os autores “desastres não são naturais, mas decorrentes da ação humana”.
Dessa forma, “eventos naturais somente se convertem em desastres quando seres humanos
vivem nas áreas onde ocorrem e agravam as causas de seus processos”. E complementam
dizendo que “os impactos dos fenômenos naturais na sociedade tornam-se problemáticos pelo
modo de ocupação do solo, pela qualidade construtiva e pela presença ou ausência de infra-
estrutura adequada”, ou seja, pelas condições em que as cidades ou partes delas são construídas.
7
Livre tradução. No original, em francês: "homicides involontaires par violatio manifestement
deliberée d'une obligation de securité ou de prudence" e "mise en danger d'autrui (risque immediat
de mort ou d'infirmité) par violatio manifestement deliberée d'une obligation de securité ou de
prudence" . Ver: Cour d'appel de Poitiers, Tribunal de grande instance des Sables-d'Olonne,
Jugement Correctionnel du 12 décembre 2014 em: http://www.irma-
grenoble.com/PDF/actualite/articles/XYNTHIA_jugement_2014.pdf (acesso em 10 de fevereiro de
2015, às 07:50h).
16
Para além da inobservância de condutas e procedimentos aplicáveis ao
licenciamento de construções e ao papel da autoridades públicas em situações de
emergência, de acordo a decisão, se compreendeu que os agentes públicos
envolvidos agiram de forma consciente e deliberada. Não apenas concederam
licenças de construção em área inundável, como não tomaram medidas
preventivas de informação à população sobre riscos conhecidos, nem as medidas
que estariam a seu alcance no momento do evento, em socorro às vitimas.
17
de mecanismos para bloqueio da transmissão, nem são de interesse comercial
para a indústria farmacêutica. Como não poderia deixar de ser, são doenças que
ocorrem em países menos desenvolvidos e atingem, majoritariamente,
populações pobres.
18
A organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) afirma que
Pontes (2009) registra que no final dos anos 2000 o Brasil apresentava
investimentos crescentes em estudos visando ao desenvolvimento de novas
formas de tratamento dessas doenças e ocupava lugar de destaque no tema
entre os países em desenvolvimento. Apesar de reconhecer avanços no país,
apresenta números que revelam a dimensão do problema em escala mundial:
A cada dia, cerca de três mil pessoas morrem no mundo vítimas de doenças
negligenciadas como malária, leishmaniose visceral, doença de Chagas e doença
do sono. São mais de 1 milhão de mortes por ano. Um dos motivos para esse
número elevado de óbitos é a falta de ferramentas adequadas para o diagnóstico
e tratamento destas doenças. Elas afetam as populações mais empobrecidas nos
países menos desenvolvidos do mundo, e, portanto, não constituem um mercado
lucrativo para as indústrias farmacêuticas. (PONTES, 2010. p. 69).
O caso recente da febre ebola parece bastante ilustrativo desse fenômeno, ainda
que ela não figure na lista de "doenças negligenciadas" da Organização Mundial
de Saúde (OMS). O efeito devastador do vírus ebola em alguns países da África
no segundo semestre de 2014 e, sobretudo, o risco de sua propagação na Europa
e Estados Unidos mobilizaram autoridades de diversos países se tornando uma
19
questão internacional. Os debates em torno do fenômeno envolviam as ameaças
representadas pelo vírus ao atravessar continentes, mas também as
responsabilidades dos países desenvolvidos em relação ao enfrentamento da
doença no continente africano. Um dos argumentos era de que se esses países
tivessem agido anteriormente em relação à doença, que já era conhecida há
anos, provavelmente não só não haveria o temido risco de propagação do vírus
fora da África como, e principalmente, milhares de vidas poderiam ter sido
preservadas.
Uma questão fundamental de política urbana, mas que sempre foi negligenciada
na tradição do urbanismo brasileiro, foi finalmente enfrentada pelo Estatuto da
Cidade: quem paga, e como, a conta do financiamento do desenvolvimento
20
urbano. Afirmando o princípio da justa distribuição dos ônus e benefícios da
urbanização, o Estatuto da Cidade estipulou a outorga onerosa de direitos de
construção e uso; a existência de diferentes categorias de indenização, com a
desapropriação sendo exceção no regime da função social da propriedade; a
captura de mais-valias e a gestão social da valorização imobiliária; bem como a
noção de que mera expectativa de direito não é direito, sendo que não há direitos
adquiridos em matéria urbanística. (FERNANDES, 2013. p.228).
8
O Regime Diferenciado de Contratações Públicas foi instituído pela Lei Federal no 12.462 de 4 de
agosto de 2011, visando especialmente obras de aeroportos, Copa do Mundo e Jogos Olímpicos,
mas aplicável também a obras do Programa de Aceleração do Crescimento e outros casos. Pelo
dispositivo, todas as atividades relacionados à obra, incluindo o projeto ficam a cargo do
construtor, o que estabelece um claro conflito de interesses.
21
As projeções atuais sobre crescimento demográfico e sobre a proporção entre
população urbana e população rural confirmam a ideia de urbanização completa
da sociedade não apenas do ponto de vista das relações econômicas, modos de
produção e processos decisórios, mas também fisicamente com o avanço da
urbanização. Os dados apresentados no relatório da Organização das Nações
Unidas (ONU) intitulado "World Urbanization Prospects - The 2014 Revision" dão
a dimensão dos desafios para as cidades neste século XXI: a população urbana,
que hoje representa 54% da população mundial total, em 2050 corresponderá,
segundo estimativas, a 66%. A expectativa é que em pouco mais de 30 anos,
sejam aproximadamente mais 2,5 bilhões de pessoas vivendo em cidades, sendo
esse crescimento populacional concentrado majoritariamente na Ásia e na África.
O mesmo relatório destaca ainda que "como o mundo continua a se urbanizar, os
desafios da sustentabilidade urbana serão cada vez mais concentrados nas
cidades, sobretudo nos países de renda média-baixa (...)" (ONU, 2014).
9
Nesse contexto, os desafios para as cidades no século XXI mudam de contornos. Tanto pela sua
condição de contribuinte das emissões de gases do efeito estufa - dados da ONU indicam que as
cidades são responsáveis por cerca de 70% das emissões mundiais - como pela necessidade de
se adaptarem a uma realidade em que riscos e ameaças associados ao aquecimento global e à
22
No entanto, o problema atual da urbanização tem também outras dimensões que,
assim como a questão ambiental, estão relacionados ao modelo atual de
desenvolvimento. Para Harvey (2014) estamos "em meio a uma enorme crise –
ecológica, social e política – de urbanização planetária sem, ao que parece, se
percebê-la". A urbanização, na visão do autor, cada vez mais se torna a principal
forma de acumulação de capital, com suas próprias formas de barbárie em nome
do lucro.
Nos interessa aqui destacar que, para Secchi, "a cada vez que a estrutura da
economia e da sociedade muda, a questão urbana remonta ao primeiro plano" e
seria esse o caso no momento atual. O autor acrescenta, ainda, que "a
emergência de uma nova questão urbana é gerada também das políticas e
projetos para a cidade - em particular, políticas espaciais (...)". Secchi relativiza a
visão dominante de que o combate às desigualdades seja tarefa, por definição, de
ocorrência de eventos climáticos extremos são eminentes e os impactos decorrentes podem ser
desastrosos.
23
políticas econômicas e sociais e não propriamente da competência do urbanismo.
Para Secchi, "o urbanismo deve responder por responsabilidades maiores e
bem definidas no agravamento das desigualdades e toda política que busca
eliminá-las ou combatê-las, deve tomar o projeto da cidade como ponto de
partida." (SECCHI, 2014. p.11, grifo nosso).
A ideia de que o projeto de cidade deve ser o ponto de partida para construção de
políticas de combate a desigualdades chama atenção para a habitual
desvinculação entre políticas macroeconômicas, que tendem a ser o eixo
determinante dos projetos de desenvolvimento, e a estruturação do território e dos
espaços urbanos. As políticas macroeconômicas, mesmo quando cumprem o
papel de impulsionar a economia e gerar emprego, podem também produzir
efeitos desastrosos sobre as cidades. É o caso, por exemplo, como ressalta
Maricato, dos incentivos à indústria automobilística que vigoraram por alguns
anos no Brasil, após a crise mundial de 2008 até muito recentemente, e também
da construção em massa de conjuntos habitacionais desde 2009. Concebidas
como políticas anticíclicas, não incorporam na sua formulação os efeitos sobre as
cidades.
A situação das cidades piorou muito nos últimos 30 anos e continuará a piorar,
ainda que os investimentos em habitação e saneamento tenham sido retomados
pelo governo federal a partir de 2003. Não houve mudança de rota no rumo que
orientou a construção das cidades, especialmente das metrópoles. A ausência de
controle sobre o uso e ocupação do solo - questão central para garantir justiça
social e preservação ambiental - é evidenciada pela ocorrência de enchentes e
desmoronamentos como centenas de vítimas fatais e milhares de desabrigados,
fatos notáveis nas cidades de todo o país na temporada de chuvas dos anos de
2007, 2008, 2009, 2010. As conquistas institucionais não lograram mudar as
principais forças que conduzem as cidades brasileiras para a condição de tragédia
social e ambiental: a forma desigual e especialmente a forma ambientalmente
predatória do mercado fundiário e imobiliário cuja atitude especulativa foi
potencializada pela introdução de investimentos maciços dos programas federais."
(MARICATO, 2011. p.77-78)
24
Magnaghi (2003) fala do desenvolvimento econômico desterritorializado,
caracterizado fundamentalmente pelo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB),
um indicador, segundo o autor, "equivocado e cada vez mais contestado". Nesse
modelo de desenvolvimento, explica Magnaghi, há a desvinculação entre lugares
institucionais de decisão (nacionais ou internacionais) e o território. Pode se dizer,
nesse sentido, que a cidade é negligenciada pelos processos e políticas
macroeconômicos, ainda que caminhemos para a "urbanização completa da
sociedade", como Lefebvre (2008) anunciava há cerca de quarenta anos.
25
de urbanização acelerado no século XX, mas resultado da lógica do
desenvolvimento urbano que continua a produzir desigualdades e disfunções
espaciais.
26
relacionada ao papel dos projetos urbanos na configuração e reconfiguração dos
espaços da cidade.
10
A autora trata o direito à cidade como “núcleo de um sistema composto de um feixe de direitos
incluindo o direito à moradia (implícita a regularização fundiária), à educação, ao trabalho, à
saúde, aos serviços públicos (implícito o saneamento), ao lazer, à segurança, ao transporte
público, à preservação do patrimônio cultural, histórico e paisagístico, ao meio ambiente natural e
construído equilibrado (implícita a garantia do direito a cidades sustentáveis)” (CAVALLAZZI,
2009. p. 41). Com esse entendimento, pode-se compreender o direito à cidade, então, como porta
de acesso a outros direitos, fundamentais ao exercício da cidadania.
27
protegendo os interesses da acumulação urbana (proveniente da produção da
cidade) da concorrência de outros circuitos, seja realizando encomendas de
construção de vultosas obras urbanas, ou ainda pela omissão em seu papel de
planejador do crescimento urbano. (RIBEIRO; SANTOS JUNIOR, 2012. p.13)
28
Contudo, o próprio autor ressalta que "são certamente muitos os limites dessa
nova ordem jurídico-urbanística consolidada pelo Estatuto da Cidade, muitos são
os gargalos que ainda requerem um tratamento jurídico e legislativo adequado"
(FERNANDES, 2013. p.229). A lei - seja o Estatuto da Cidade ou qualquer outra -
pode, de fato, ser considerada como algo relevante, como um marco importante
de um processo, como uma referência simbólica, até mesmo um passo essencial,
mas não tem a capacidade, por si mesma, de transformar a realidade. Dependerá
sempre de como será interpretada, das condições concretas de implementação,
que, não raramente, se constroem no embate do conflito de interesses, nos
processos sociais.
11
O Ministério das Cidades foi criado em 2003, suprindo um vazio institucional em relação à
questão urbana e agrupando, num primeiro momento, uma equipe oriunda justamente dos
movimentos pela reforma urbana.
12
A Campanha Nacional "Planos Diretores Participativo: Cidade de Todos", considerando o prazo
previsto pelo Estatuto da Cidade (até 2006), incentivou - e pressionou - os municípios, mobilizando
a sociedade civil, a elaborarem seus planos diretores, de modo a incorporar as diretrizes e
instrumentos previstos na lei federal.
13
Pesquisa qualitativa de avaliação dos Planos Diretores Participativos elaborados após a
aprovação do Estatuto da Cidade, promovida pelo Ministério das Cidades entre 2007 e 2010. A
pesquisa envolveu a análise de 526 planos, oferecendo, apesar de seus limites, uma visualização
do conteúdo das leis municipais aprovadas.
29
nem todos os Planos Diretores são efetivamente resultado de um pacto social para
a gestão do território municipal e também não são todos os planos que dialogam
com os preceitos sociais do Estatuto da Cidade, especialmente quanto à
instituição de instrumentos de gestão do solo urbano. (SANTO JUNIOR;
MONTANDON, 2011. p.28-29).
30
de propostas de redução de potencial construtivo ou adoção da outorga onerosa
do direito de construir). Curiosamente, cabe observar, que o que estamos aqui
qualificando como resistências a uma mudança de paradigma no planejamento
urbano, que o Estatuto da Cidade permitiria, não são oriundas apenas de grandes
proprietários ou incorporadores. Passa também pelos demais atores sociais,
pelas mais diferentes razões. Podemos pensar, por exemplo, em agentes
políticos que têm na informalidade ambiente mais fértil para exercer práticas
assistencialistas e clientelistas, assim como aqueles que preferem não contrariar
interesses individuais de eleitores e financiadores de campanha. Ou em técnicos
municipais, muitos deles mais resistentes às mudanças nos processos de
trabalho que a implementação de novos instrumentos urbanísticos pode
representar do que propriamente ao conteúdo dos mesmos, ainda que
frequentemente as duas coisas se confundam. E também por todo tipo de
pessoas, mesmo aquelas que não são proprietárias, incluindo pobres, que têm a
"casa própria" como sonho e, por extensão, também se mostram resistentes a
mecanismos que interfiram no poder quase absoluto da propriedade, imaginando
que um dia, enfim, poderão ser proprietários.
31
percepção determinava marchas e contramarchas, que confluíam para o
alongamento dos prazos.
15
E o caso da OUC Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, é exemplar, pois configurou uma
estratégia de transferência de terra pública para o setor privado que será beneficiado por obras
financiadas com a arrecadação de recursos por meio da concessão pública de direito de construir
adquirido por um banco público.
32
por promover injustiças espaciais. O modelo estático de regulação urbana, que
tem no instrumento do zoneamento funcional seu maior expoente, produziu um
sistema normativo, ainda hoje arraigado em boa parte dos municípios brasileiros,
baseado em idealizações tecnocráticas e que jamais conseguiu dar conta da
complexidade da urbanização desigual das cidades brasileiras.
De acordo com Rolnik, é preciso compreender que mais "do que definir formas de
apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular
a produção da cidade, a legislação urbana age como marco delimitador de
fronteiras de poder." (Rolnik, 1999. p.13). Nesse sentido, a legislação pode ser
entendida como instrumento que, contraditoriamente, nega o acesso pleno à
cidade para uma parte significativa da população, pois, ainda segundo a mesma
autora, ela apenas
para uma cidade das elites e das classes médias [que] não atende às demandas
das classes de baixa renda, e faz com que estas sejam atendidas pelo mercado
imobiliário informal. O Estado não reconhece as práticas sociais destes grupos, e
tenta impingir normas que não levam em conta a realidade urbana e suas
contradições. (SILVA, 2006. p.99).
33
O Brasil teve avanços desde o processo de redemocratização nos anos 1980,
cujos marcos legais e simbólicos principais são o capítulo da política urbana da
Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade. Ao serem aprovados,
sinalizavam para possibilidades de construção de cidades mais inclusivas e,
especialmente o Estatuto da Cidade, expunha, por meio das diretrizes para
política urbana no Brasil (art. 2º), o diagnóstico de uma série de conflitos nas
cidades brasileiras.
Os principais projetos urbanos precursores dos anos 1980 (ver capítulo 3) foram
concebidos segundo uma visão reformadora. No sentido de que buscavam
conciliar a elaboração de projetos de intervenção urbana com a revisão, ainda
que parcial, da base legal do urbanismo municipal, o que acabaria confluindo para
34
a revisão do plano diretor de 1992. A partir de 1993, quando os projetos urbanos
passaram a ser verdadeiramente o carro-chefe da administração municipal, essa
perspectiva reformadora perdeu relevância. Os principais projetos desse período,
embora trouxessem um conteúdo de inovação importante - a valorização do
desenho urbano -, do ponto de vista da execução eram como obras públicas
tradicionais. Não dependiam de mudanças na base legal do urbanismo ordinário,
que continuou operando segundo a lógica de uma legislação antiga, sem se
mexer com as regras em que o mercado imobiliário já se movimentava e que
jamais favoreceu a inclusão sócio-territorial.
A questão operacional, entretanto, não diz respeito apenas às normas em si, mas
às práticas de gestão de modo amplo, que envolvem tradicionalmente atividades
de planejamento, licenciamento e fiscalização. Conforme aponta Garcia, "as
ações, diretrizes e políticas definidas no planejamento exigem uma conversão
para o nível de praxis, demandando atos regularizados e rotinas, (...), que
demandam pessoas, informações e processos de trabalho" (GARCIA, 2012.
p.212). A integração entre essas atividades essenciais nem sempre ocorre
efetivamente, como destaca o próprio Garcia:
Apesar do licenciamento ser prática comum nos Municípios (mesmo com toda a
sua deficiência), sua relação com o planejamento nem sempre se dá de modo
evidente. Em alguns casos as licenças são emitidas sem que preexistam
dispositivos de orientação e disciplinamento em relação aos impactos na
paisagem, no trânsito, na vizinhança, no ambiente, na economia etc. definidos a
partir de um desejo coletivo de ordem. Noutros casos, é o próprio processo de
planejamento que ignora o licenciamento enquanto instrumento efetivo de controle
do uso e ocupação do solo, indispensável para a implementação do próprio plano
(...) (GARCIA, 2012. p.214).
35
1.2.3. Negligência urbanística projetual
Roncayolo explica que "o projeto urbano perdeu pouco a pouco sua consistência"
(RONCAYOLO, 2008. p.1890), o que exige, cada vez mais, análise de seu
significado em cada realidade específica. Sua difusão nas últimas décadas,
claramente, está associada a um tipo de urbanismo genérico, de caráter liberal
(BOURDIN, 2014), que se mostra dominante nesse início de século. Harvey
(2002) fala de um modo de intervenção que busca "criar uma imagem positiva e
de alta qualidade" das cidades por meio da "repetição em série de modelos bem
sucedidos" num contexto em que "a sombria história da desindustrialização e da
reestruturação" deixou "a maioria das cidades grandes do mundo capitalista
avançado com poucas opções além da competição entre si, em especial como
16
De acordo como os autores, "a identificação da gestão da cidade com a gestão de empresa traz
o problema de compatibilidade conceitual: como conciliar os elementos de regulação e de duração
com os elementos da vida das empresas que são frenquentemente de curto prazo? De fato, o
projeto urbano, o projeto aplicado à cidade, toca o interesse público, enquanto o projeto de
empresa refere-se ao interesse privado" (MERLIN E CHOAY, 2010, tradução nossa).
36
centros financeiros, de consumo e de entretenimento". Ainda segundo o autor,
"dar determinada imagem à cidade através da organização de espaços urbanos
espetaculares se tornou um meio de atrair capital e pessoas (de certo tipo) (...)"
(HARVEY, 2002. p.92).
Entre esses dois polos, se pode pensar a prática de projetos urbanos do Rio de
Janeiro nas últimas três décadas. Numa cidade marcada por desigualdades, a
questão de fundo é se os projetos urbanos têm servido à reconstituição da
urbanidade e à integração socioespacial ou, opostamente, ao aprofundamento da
segregação urbana. A resposta não é tão simples e é, de certo modo, ambígua,
pois é possível reconhecer experiências que opera(ra)m nos dois sentidos nas
últimas décadas. É o que mostra a análise das três gerações de projetos urbanos
na cidade do Rio de Janeiro descritas nesta tese entre os anos 1980 e o período
atual (capítulo 3).
37
O "Porto Maravilha", examinado no capítulo 4, sintetiza todos esses aspectos e
exatamente por isso se caracteriza como uma operação urbana, pode se dizer,
sem projeto. O processo de transformação em curso na área portuária do Rio de
Janeiro é de tal forma marcado pela dispersão de ações numa área gigantesca,
que é difícil imaginar que resultado terá. Seja do ponto de vista do próprio
ambiente construído renovado, seja do ponto de vista do impacto da renovação
dessa área na dinâmica da cidade, em especial do centro. As incertezas sobre o
destino da área portuária são grandes, geradas por uma operação que maneja
terras públicas e índices urbanísticos fomentando especulações e sugerindo um
dinamismo irreal da cidade.
***
38
Capítulo 2
DISPERSÃO URBANA, INFORMALIDADE URBANA E O QUADRO DE
NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Certamente, não são fenômenos novos, uma vez que acompanham o processo
de urbanização da cidade em todo o século XX. Porém, o modo como se
configuram nas últimas décadas é diferente e, aparentemente, bastante peculiar
da cidade do Rio de Janeiro. Nesse período recente, o crescimento populacional
acelerado não pode mais explicá-los, pois, como veremos, a população carioca
tem crescido pouco nas últimas décadas. Entretanto tem se construído muito,
sobretudo nos bairros com menos infraestrutura e pressionando a expansão da
urbanização, provocando significativos movimentos internos da população e, em
grande parte, na informalidade. Os efeitos sobre as áreas de urbanização mais
antigas e melhor infraestruturadas variam entre a hiper-valorização dos bairros
mais nobres e a deterioração de bairros dos subúrbios, reforçando desigualdades
territoriais.
39
urbanísticas" continuam vigorando, quatro décadas depois, apesar de suas
sucessivas alterações, moldando a cidade que se constrói dia a dia, formal ou
informalmente, ao longo do tempo. A partir delas, do que chamamos de dispersão
e informalidade "planejadas", discute-se, na continuidade deste capítulo, o papel
preponderante da base operacional do urbanismo, representada pela legislação
urbanística, na configuração da cidade.
40
Pelo contrário, há uma tendência de perda de população nesses estados17. Esses
dois fatores, determinantes do processo de urbanização acelerada de meados do
século XX, hoje não são relevantes, ainda que, de algum modo, permaneçam no
imaginário coletivo.
17
De acordo com estudos que embasaram o Plano Nacional de Habitação (PLANHAB), 2007, os
saldos migratórios projetados por região para o período de 2000 a 2020 indicam que as regiões
Nordeste e Sudeste perderão população, enquanto que as demais ganharão, sobretudo a região
Centro-Oeste (PLANHAB, 2007 - apud CEDEPLAR, 2007).
41
apresente nenhuma interpretação inovadora sobre fenômenos que já
caracterizavam o desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro na década anterior.
Mas é exatamente por isso que se torna relevante para este trabalho, pois expõe
a continuidade de um quadro que já era conhecido, apesar de discursos e
práticas, entre elas a de projetos urbanos, que seriam transformadoras da cidade.
Os principais processos que estão em curso que podem ser depreendidos da
análise dos dados são os seguintes:
42
Tabela 01
Taxas Geométricas de Crescimento Anual da População
da Cidade do Rio de Janeiro entre 1980 e 2010
Taxa de Crescimento
Período
Anual
1980 / 1991 0,67%
1991 / 2000 0,74%
2000 / 2010 0,76%
Fonte: IBGE, Censos Demográficos.
18
Acessibilidade no sentido de acesso à infraestrutura, aos serviços, às melhores condições de
urbanidade.
19
Em linhas gerais, as APs 1, 2 e 3 compreendem às áreas de urbanização mais antiga. A AP1
corresponde, mais ou menos, à área central; a AP2 envolve a zona sul, área mais nobre da cidade
e parte da zona norte; e a AP3 abrange os bairros do subúrbio. As APs 4 e 5 são de urbanização
mais recente e as que tem recebido grandes contingentes populacionais nas últimas décadas. A
AP4 engloba as regiões da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá; e a AP5, de ocupação mais
popular, tem os bairros de Bangu, Campo Grande e Santa Cruz.
43
mais antiga e com melhor infraestrutura instalada (APs 1, 2 e 3) para vasta área a
oeste do município (APs 4 e 5) onde se estruturaram os principais vetores de
expansão urbana das últimas décadas.
AP3
AP5 AP1
AP4 AP2
Nos anos 1980 e 1990, esse processo foi tão vigoroso que, conforme mostram os
números a seguir (ver Tabela 02), as APs 1 e 2 perderam população e a AP 3
praticamente manteve-se estável, enquanto AP 4 e AP 5 absorveram mais de
100% do incremento demográfico da cidade em cada período.
Tabela 02
População e Incremento Demográfico do Município do Rio de Janeiro, por Área de
Planejamento, no Período 1980 a 2000 e Participação das Áreas de Planejamento 4 e 5 no
Incremento Total
Incremento Incremento
1980 1991 1980-1991 2000 1991-2000
Absoluto Relativo Absoluto Relativo
Rio de Janeiro 5.090.790 5.480.778 389.988 7,66% 5.857.904 377.126 6,88%
Área de Planejamento 1 338.531 303.695 -34.836 -10,29% 268.280 -35.415 -11,66%
Área de Planejamento 2 1.130.135 1.034.612 -95.523 -8,45% 997.478 -37.134 -3,59%
Área de Planejamento 3 2.250.180 2.323.990 73.810 3,28% 2.353.590 29.600 1,27%
Área de Planejamento 4 356.349 526.302 169.953 47,69% 682.051 155.749 29,59%
Área de Planejamento 5 1.015.595 1.292.179 276.584 27,23% 1.556.505 264.326 20,46%
O Censo IBGE 2010 revela algumas alterações nesse quadro que merecem
destaques e reflexões (ver Tabela 03). O primeiro aspecto a registrar é que
apesar de, em termos relativos, o crescimento populacional do Rio de Janeiro não
44
ser tão expressivo, em números absolutos significa mais de 450 mil pessoas a
mais na cidade na última década. Cabe assinalar, apenas como elemento de
comparação, que apenas 44 dos 5.565 municípios brasileiros tinham, em 2010,
população superior a 450 mil habitantes20. Por outro lado, observando os dados
intra-urbanos, verifica-se inversão importante de uma das tendências registradas
nas últimas décadas. Nos anos 2000 todas as Áreas de Planejamento tiveram
acréscimo de população.
Tabela 03
População e Incremento Demográfico do Município do Rio de Janeiro, por Área
de Planejamento, no Período 2000 a 2010 e Participação das Áreas de
Planejamento 4 e 5 no Incremento Total
Incremento
2000 2010 2000-2010
Absoluto Relativo
Rio de Janeiro 5.857.904 6.320.446 462.542 7,90%
Área de Planejamento 1 268.280 297.976 29.696 11,07%
Área de Planejamento 2 997.478 1.009.170 11.692 1,17%
Área de Planejamento 3 2.353.590 2.399.159 45.569 1,94%
Área de Planejamento 4 682.051 909.368 227.317 33,33%
Área de Planejamento 5 1.556.505 1.704.773 148.268 9,53%
Participação das APs 4 e 5 no
81,20%
Incremento Total
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. Tratamento de dados pelo autor.
20
IBGE, Censo 2010.
45
A nova tendência em direção a área central se deve, provavelmente, a diferentes
razões, dentre as quais algumas merecem destaque. Ao longo da década de
2000, principalmente na segunda metade, houve a oferta de novos produtos
imobiliários que contribuíram para um movimento de famílias de classe média
para a área central. Em São Cristóvão, foram lançados novos edifícios
residenciais como efeito da aprovação, em 2004, do Projeto de Estruturação
Urbana (PEU) - a nova legislação urbanística que definiu novos parâmetros de
uso e ocupação do solo visando atrair novos empreendimentos imobiliários para
os bairros da região. No Centro, alguns empreendimentos conseguiram ser
viabilizados mesmo dentro das Áreas de Proteção do Ambiente Cultural
(APACs)21. Tanto pela identificação de possibilidades de adensamento
residencial, como no caso do conjunto residencial “Cores da Lapa”22, como por
retrofits de antigas construções.
21
Instituídas por lei ou decreto, as APAC visam a preservação de conjunto urbanos de valor
histórico e cultural, se sobrepondo à legislação de uso e ocupação do solo e, normalmente,
restringindo o potencial construtivo dos imóveis situados no seu perímetro. Em geral, várias
edificações do conjunto são gravadas segundo níveis de proteção de acordo com sua relevância
histórica e cultural.
22
O Cores da Lapa, construído em plena APAC Cruz Vermelha, é um conjunto de mais de 600
unidades residenciais que, segundo notícias veiculadas na grande imprensa, foram todas
vendidas no próprio dia do lançamento, em 2005. Seria, nessa perspectiva, um "caso de sucesso"
que indicava a área central como um mercado potencial para moradia de famílias de classe média.
23
Segundo dados divulgados no sítio da antiga Secretaria Municipal de Habitat (atual Secretaria
Municipal de Habitação) na internet, das 8.303 unidades comercializadas e entregues até fevereiro
de 2009 no Rio de Janeiro, no âmbito do PAR, apenas 65 eram localizadas na AP1, todas no
bairro Centro. Porém, para o ano de 2009, era prevista a comercialização de mais 496 unidades
na AP1, nesse caso, todas no bairro Mangueira. Em relação ao Programa Novas Alternativas, de
acordo com informações fornecidas pela coordenação do mesmo para esta pesquisa, até 2010
foram concluídas 125 unidades.
48
Tabela 04
Incremento de Domicílios Particulares Permanentes no Município do Rio de Janeiro, por
Área de Planejamento, no Período 1991 a 2010
Incremento Incremento
1991 2000 1991-2000 2010 2000-2010
Absoluto Relativo Absoluto Relativo
Rio de Janeiro 1.601.272 1.802.347 201.075 12,56% 2.144.445 342.098 18,98%
Área de Planejamento 1 100.878 85.162 -15.716 -15,58% 104.721 19.559 22,97%
Área de Planejamento 2 356.320 363.800 7.480 2,10% 404.255 40.455 11,12%
Área de Planejamento 3 655.206 710.107 54.901 8,38% 792.124 82.017 11,55%
Área de Planejamento 4 151.586 204.396 52.810 34,84% 309.067 104.671 51,21%
Área de Planejamento 5 337.282 438.882 101.600 30,12% 534.278 95.396 21,74%
Fonte: IBGE, Censos Demográficos. Tratamento de dados pelo autor.
49
área central pelo mercado dirigido, sobretudo, a famílias de média e alta renda, a
atuação muito restrita dos programas habitacionais na área central e a incrível
alta dos preços dos imóveis desde 2008 são indícios de radicalização do
processo de segregação da cidade, que tradicionalmente tem empurrado para as
favelas, para a zona oeste e para as periferias metropolitanas a população mais
pobre. Nesse sentido, como se verá a seguir, as favelas cresceram na cidade do
Rio de Janeiro ao longo da década de 2000, bem como outras formas de
irregularidade urbanística mais difíceis de serem caracterizadas.
Tabela 05
População Total e População Residente em Favela no Rio de Janeiro, no Período 1980 a
2010
Rio de Janeiro 1980 1991 2000 2010
População Total 5.090.790 5.480.778 5.857.904 6.320.446
População Residente
717.066 882.667 1.092.783 1.393.314
em Favela
Participação da
População Residente 14,09% 16,10% 18,65% 22,04%
em Favela no Total
Fonte: IBGE, Censos Demográficos; PCRJ, Armazém de Dados. Tratamento de dados pelo autor.
24
Apenas como registro, vale mencionar que o crescimento muito superior da população em
favela não se deve ao crescimento vegetativo eventualmente mais alto desse segmento.
25
Considera-se favela aqui o que o IBGE classifica como aglomerado subnormal, definido da
seguinte forma: “conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais (barracos, casas
etc.), ocupando – ou tendo ocupado – até período recente, terreno de propriedade alheia (pública
ou particular); dispostas, em geral, de forma desordenada e densa; e carentes, em sua maioria, de
serviços públicos e essenciais.”
50
Tabela 06
Incremento Total da População e da População Residente em Favela no Rio de Janeiro,
no Período 1980 a 2010
Incremento Incremento Incremento
1980-1991 1991-2000 2000-2010
Rio de Janeiro Absoluto Relativo Absoluto Relativo Absoluto Relativo
População Total 389.988 7,66% 377.126 6,88% 462.542 7,90%
População Residente
165.601 23,09% 210.116 23,80% 300.531 27,50%
em Favela
Participação da
População Residente
42,46% 55,72% 64,97%
em Favela no
Incremento
Fonte: IBGE, Censos Demográficos; PCRJ, Armazém de Dados. Tratamento de dados pelo
autor.
Figura 02. Favelas na cidade do Rio de Janeiro. Tidas por muito tempo, e mesmo ainda hoje,
como local transitório de moradia, as favelas permaneceram, se consolidaram e continuam a
crescer. Atualmente, aparentemente, mais verticalmente, o que constitui uma nova questão a ser
compreendida e tratada no âmbito de políticas para favelas. Fontes: Henrique Barandier, 2015;
Henrique Barandier, 2014; Jacira Saavedra, s/d.
51
poucas áreas, apontadas como favelas pelo IPP-RIO, não foram assim
consideradas pelo IBGE. Dessa forma, o IPP-RIO, usando suas bases
cartográficas e aerofotogramétricas, fez algumas estimativas para complementar
os dados, o que, ao fim e ao cabo, resultou num acréscimo de 4% sobre a
população calculada pelo IBGE. (CAVALIERI; VIAL, 2012. p.1).
Ainda que tenham apontado ressalvas em relação aos dados produzidos pelo
IBGE e adotem uma postura cautelosa em relação à comparação entre 2000 e
2010, Cavalieri e Vial consideram que "ao que tudo indica, as favelas continuaram
a crescer na última década, numa velocidade superior à da cidade como um
todo". Segundo seus cálculos, na década de 2000, "enquanto as favelas se
expandiram a uma taxa de 19%, a população da “não-favela” cresceu apenas
5%". Tomando como referência apenas os dados do IBGE, os números desse
período seriam de 27,50% e 3,40%, respectivamente. Apesar das diferenças, até
certo ponto expressivas, tanto os cálculos de Cavalieri e Vial como os dados do
IBEG indicam que a favelização ainda crescente é um fenômeno real.
Desde os anos 1980, mas de forma mais expressiva a partir dos anos 1990, o Rio
de Janeiro tem tido investimentos significativos em urbanização de favelas, o que
incide sobre um imenso passivo urbanístico e social, promovendo necessárias
melhorias das condições urbanísticas nessas áreas. Porém não se configura
como alternativa em relação ao contínuo crescimento das favelas como
demonstram os dados. São ações de caráter curativo que não atuam diretamente
na causa, de modo que o problema aumenta mesmo com a continuidade de
programas de urbanização.
52
clandestinos e irregulares constituem outro padrão de assentamento popular
informal também bastante expressivo. O mapa de favelas e loteamentos informais
de baixa renda (ver Mapa 03) da cidade mostra que enquanto nas áreas de
urbanização mais antiga da cidade (APs 1, 2 e 3) há predominância de
assentamentos populares do tipo favelas, nas áreas de expansão (APs 4 e 5) a
presença mais marcante é dos loteamentos clandestinos e irregulares.
26
Enquanto o IBGE registrou, em 2010, 763 aglomerados subnormais na cidade, o Sistema de
Assentamentos de Baixa Renda (SABREN) indica a existência de 599 favelas (que podem ser dos
tipos “isolada” ou “complexo” que reúne duas ou mais comunidades), 87 comunidades
urbanizadas e 983 loteamentos clandestinos e irregulares.
27
Veríssimo apud Fernandes e Affonsin, 2003 (Curso Regularização Urbanística e Fundiária de
Assentamentos Informais de Baixa Renda, IBAM, 2007).
53
Na verdade, pode se dizer que a própria dinâmica urbana produz informalidades.
Smolka (2008) relaciona uma série de fatores, além da pobreza, que contribuem
para a reprodução da informalidade no Brasil e na América Latina, entre os quais:
a urbanização acelerada de décadas anteriores; o alto preço das terras servidas
de infraestrutura; longo período sem políticas e programas habitacionais;
investimentos inadequados em infraestrutura; impossibilidades de se atender
plenamente às exigências da legislação vigente; e, sobretudo, a alta rentabilidade
dos promotores imobiliários informais28.
Se, no caso do Rio de Janeiro, e no Brasil de modo geral, houve avanços nas
últimas décadas em relação a ação pública em assentamentos informais de baixa
renda - apesar do ressurgimento no período recente de ações de remoção
mesmo em áreas de ocupação consolidada - parte significativa da cidade ainda
se constrói à margem da legislação urbanística e do sistema de controle urbano,
em grande medida ainda baseado no modelo tradicional de planejamento -
modernista, funcionalista, tecnocrático, elitista etc. Um tipo de urbanismo que
segundo Maricato "não tem comprometimento com a realidade concreta, mas com
uma ordem que diz respeito a uma parte da cidade, apenas" (MARICATO, 2002.
p. 122).
O tema não é propriamente novo, mas sua permanente atualidade não deixa de
ser surpreendente. Tendo como referência dados oficiais disponíveis, verifica-se
que a dinâmica urbana da cidade do Rio de Janeiro na década de 2000 continua
a produzir informalidade. O exercício de reflexão em torno de alguns números
apresentados a seguir permite se estimar a dimensão da produção irregular no
Rio de Janeiro, mostrando que, de fato, abrange um universo bem maior que
apenas o das favelas.
28
Anotações de aula no curso "Recuperação de Mais-valias Fundiárias na América Latina /
Financiamento do Desenvolvimento Urbano no Brasil: desafios para a implementação do Estatuto
da Cidade”, realizado em na sede do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), em
2008.
55
distância entre o sistema formal preconizado pela legislação urbanística e a
produção da cidade real29.
A partir dos dados dos Censos do IBGE, se pode obter o incremento de unidades
residenciais ao estoque imobiliário do Rio de Janeiro nas duas últimas décadas.
Desse total, é possível distinguir o incremento em favelas, tomando como
referência os dados de aglomerados subnormais e o incremento no restante da
cidade (ver Tabela 07).
Tabela 07
Total de Unidades Residenciais Acrescidas ao Estoque do Rio de Janeiro, nos Períodos
1991-2000 e 2000-2010, segundo dados dos Censos Demográficos do IBGE
1991-2000 2000-2010
Unidades Residenciais
Incremento Participação Incremento Participação
Acrescidas ao Estoque
Absoluto no Incremento Absoluto no Incremento
Total de Domicílios
201.075 100,00% 342.098 100,00%
Particulares Permanentes
Domicílios Particulares
84.093 41,82% 119.870 35,04%
Permanentes em Favelas
Domicílios Particulares
Permanentes não 116.982 58,18% 222.228 64,96%
localizados em Favelas
Fonte: Censos Demográficos do IBGE – tratamento de dados pelo autor.
29
A lógica de organização dos dados segue a adotada em estudo anterior, intitulado “Projeto
Caracterização da Irregularidade Urbanística Edilícia e Fundiária: Subsídios para a Regularização
na Cidade do Rio de Janeiro”, do qual este autor participou da elaboração (AGRAR, 2002).
30
Os Pousos, atualmente à Secretaria Municipal de Urbanismo, foram criados para garantir a
presença governamental nas favelas beneficiadas por programas de urbanização após o término
das obras.
56
A concessão de “habite-se” corresponde ao procedimento final do processo de
licenciamento urbanístico, sendo condição para caracterizar a regularidade
administrativa do imóvel. Por isso, é possível considerar, pelo menos em tese,
que o imóvel que não recebeu “habite-se” possui algum tipo de irregularidade.
Assim, adotando-se como critério para caracterização de unidade produzida
regularmente a concessão de "habite-se" pela Secretaria Municipal de Urbanismo
(SMU) da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ), observa-se que o total
de unidades residenciais regulares acrescidas ao estoque imobiliário da cidade na
década de 2000 parece ser bem menor do que o aumento total de unidades
residenciais no mesmo período.
57
então implantada. Ainda assim, é possível estimar que entre 2000 e 2010 o total
de "habite-se" concedidos pela SMU para unidades residenciais tenha sido da
ordem de 113.000 unidades.
Os dados mostram que entre 2005 e 2010 foram concedidos "habite-se" para
62.616 unidades residenciais. E considerando os dados disponíveis para a zona
sul, dados de licenças para novas construções de anos anteriores, de
lançamentos imobiliários e análises sobre o mercado no período é possível
estimar que entre 2000 e 2004 tenham sido concedidos "habite-se" para cerca de
50.000 unidades residenciais. Assim, entre 2000 e 2010, teriam sido algo em
torno de 113.000 unidades residenciais novas que completaram o processo
formal de licenciamento urbanístico. Trata-se de uma estimativa, mas muito
provavelmente corresponde em ordem de grandeza ao que foi realizado.
A Tabela 08, abaixo, sintetiza os seguintes números para últimos períodos inter-
censitários: incremento de domicílios particulares permanentes (IBGE);
incremento de domicílios particulares permanentes em favelas (IBGE); e o total de
unidades residenciais que receberam a certidão de “habite-se” (SMU).
33
De acordo com o IBGE, domicílio particular permanente “é o domicílio construído para servir
exclusivamente à habitação e que, na data de referência, tinha a finalidade de servir de moradia a
uma ou mais pessoas”.
58
Tabela 08
Estimativa do Total de Unidades Residenciais Irregulares Acrescidas ao Estoque do Rio
de Janeiro, nos Períodos 1991-2000 e 2000-2010, Segundo Comparação Entre Dados dos
Censos Demográficos do IBGE e do Licenciamento Urbanístico do Município
1991-2000 2000-2010
Unidades Residenciais
Incremento Participação Incremento Participação
Acrescidas ao Estoque
Absoluto no Incremento Absoluto no Incremento
Domicílios
Total
Unidades
Residenciais que 95.748* 47,62% 113.000** 33,03%
receberam "Habite-
se"
Domicílios
Particulares
84.093 41,82% 119.870 35,04%
Permanentes em
Favelas
Irregular
Estimativa do total de
Unidades
Residenciais não
Localizados em 21.234 10,56% 109.228** 31,93%
Favelas que não
receberam "Habite-
se"
Estimativa do Total de
Unidades Residenciais
105.327 52,38% 229.482*** 67,08%
Irregulares Acrescidas
ao Estoque
* Os dados de “habite-se” para o período 1991-2000 foram extraídos do Relatório Final do Projeto
Caracterização da Irregularidade Urbanística Edilícia e Fundiária: Subsídios para a Regularização na
Cidade do Rio de Janeiro (AGRAR, 2002).
** Dados estimados a partir das informações disponíveis sobre licenciamento urbanística, que não
compreende os dados totais para a cidade para o período 2000 a 2004.
*** Resultado também estimado por ser baseado em estimativas quanto ao total de "habite-se" concedidos.
Fonte: Censos Demográficos do IBGE; SMU/PCRJ; AGRAR, 2002 – tratamento de dados pelo autor.
O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), do governo federal, que começou
a operar em 2009, vem também influenciando a dinâmica urbana recente do Rio
de Janeiro. Os dados de licenciamento de projetos lançados no âmbito do
59
programa indicam algumas tendências que deverão se confirmar à medida que os
projetos sejam efetivamente executados. Obviamente, projetos licenciados podem
ser executados em horizontes temporais bastante variáveis e até mesmo nem
chegarem a ser construídos. Ainda assim, o quadro montado a partir do
licenciamento permite considerações sobre os movimentos do mercado imobiliário
formal e suas implicações sobre a distribuição espacial da produção residencial.
Tabela 09
Total de Unidades Residenciais Licenciadas no Rio de Janeiro, por Área de Planejamento,
no Período 2007-2013
Unidades Residenciais Licenciadas
Ano AP1 AP2 AP3 AP4 AP5 Rio
Abs. % Total Abs. % Total Abs. % Total Abs. % Total Abs. % Total Abs.
2013 1.676 5,28 1.024 3,22 6.213 19,56 14.894 46,89 7.955 25,05 31.762
2012 627 2,39 537 2,05 4.833 18,46 18.102 69,14 2.082 7,95 26.181
2011 1.201 4,52 2.593 9,75 5.652 21,25 11.203 42,13 5.944 22,35 26.593
2010 111 0,27 1.347 3,31 8.820 21,68 8.738 21,48 21.665 53,26 40.681
2009 1.601 4,21 886 2,33 6.256 16,44 11.470 30,14 17.840 46,88 38.053
2008 813 3,12 895 3,43 7.257 27,83 11.518 44,18 5.590 21,44 26.073
2007 296 1,43 1.380 6,66 2.726 13,15 10.757 51,91 5.565 26,85 20.724
Total 6.325 3,01 8.662 4,12 41.757 19,88 86.682 41,26 66.641 31,72 210.067
Fonte: SMU/PCRJ – tratamento de dados pelo autor.
Tabela 10
Total de Empreendimentos e Unidades Licenciadas no Âmbito do Programa Minha Casa
Minha Vida no Município do Rio de Janeiro, por Área de Planejamento e por ano no Período
2009 a 2013
2009 2010 2011 2012 2013
Emp. Unid. Emp. Unid. Emp. Unid. Emp. Unid. Emp. Unid.
AP1 2 572 0 0 21 1.565 17 209 4 259
AP2 0 0 0 0 1 48 0 0 0 0
AP3 7 2.104 28 6.805 12 2.636 10 2.252 5 734
AP4 8 3.240 6 1.665 25 3.274 5 1.540 10 1.780
AP5 41 14.080 121 20.141 26 4.948 6 831 20 4.638
Total 58 19.996 155 28.611 85 12.471 38 4.832 39 7.411
Fonte: SMU/PCRJ – tratamento de dados pelo autor
34
Apenas no segundo semestre de 2009 é que começaram a ser emitidas as licenças de projetos
do PMCMV.
60
elevação desse total em 2010. Trata-se do primeiro impacto do PMCMV revelado
por esses números. Em 2009 o programa foi responsável por cerca de 50% das
unidades residenciais licenciadas no município e em 2010 por cerca de 70%. O
total de unidades licenciadas pelo programa em 2010 é maior do que o total que
vinha sendo licenciado para toda a cidade nos últimos anos. Nos anos seguintes,
se observa significativa redução do número de unidades licenciadas pelo
PMCMV, bem como de sua participação no total licenciado pelo município.
Tabela 11
Total de Empreendimentos e Unidades Licenciadas no Âmbito do Programa Minha Casa
Minha Vida no Município do Rio de Janeiro, por Área de Planejamento e Percentual em
Relação à Cidade, no Período 2009 a 2013
Empreendimentos Unidades
% em relação ao % em relação ao
Total Total
total da cidade total da cidade
AP1 44 11,73 2.605 3,55
AP2 1 0,27 48 0,07
AP3 62 16,53 14.531 19,82
AP4 54 14,40 11.499 15,68
AP5 214 57,07 44.638 60,88
Total 375 100,0 73.321 100,0
Fonte: SMU/PCRJ – tratamento de dados pelo autor
61
Os dados do licenciamento mostram que no Rio de Janeiro, no período analisado,
a produção habitacional subsidiada, e com alguma capacidade de atender
famílias de renda inferior a 3 salários mínimos35, foi direcionada para as áreas
mais distantes do centro, com menos infraestrutura e serviços disponíveis, no
limite da urbanização (ver Mapa 05). Ou seja, onde a terra era mais barata. Mais
uma vez, um programa de provisão habitacional começa a ser implementado sem
a adoção de qualquer mecanismo que permita baixar o preço da terra e viabilizar
a produção de habitação em áreas urbanas consolidadas.
Esse quadro não é específico do Rio de Janeiro, mas no caso carioca chama
atenção que, de algum modo, a última década registrara diminuição relativa da
expansão urbana para a zona oeste, o que era positivo. De acordo com dados
dos Censos do IBGE, como visto anteriormente, o crescimento populacional na
AP5 na década de 2000 foi bem menor que nas décadas anteriores.
Paralelamente, verificou-se, inclusive, o retorno de população a bairros de
urbanização mais antiga que vinham perdendo moradores. Na contramão desses
movimentos - que eram ainda incipientes - os dados do licenciamento sugerem
que o PMCMV se configura como novo indutor da ocupação da zona oeste. Mais
do que isso, um programa que viabiliza a construção de casas, mas reforçando a
lógica de segregação social do espaço urbano. As tabelas apresentadas a seguir
mostram a proporção dos empreendimentos e unidades licenciados por faixas de
renda e a localização dos empreendimentos na cidade. Conforme enquadramento
adotado pelo PMCMV, empreendimentos e unidades são classificados em três
faixas de renda: até 3 salários mínimos; de 3 a 6 salários mínimos; e de 6 a 10
salários mínimos.
35
Cerca de 90% do déficit habitacional no Brasil refere-se a famílias de até 3 salários mínimos,
que nunca tiveram condições para acessar os programas de produção de habitação.
63
Considerando a cidade como um todo (ver Tabela 12), destaca-se que mais de
40% das unidades licenciadas foram para a faixa de 0 a 3 salários mínimos, o que
não deixa de ser interessante do ponto de vista do atendimento a uma faixa da
população que historicamente tem tido dificuldades de acesso a habitação formal
até mesmo por meio de programas governamentais. Porém a análise dos dados
detalhados mostra que a maior parte das unidades para a faixa de até 3 salários
mínimos, cerca de 70%, foi licenciada nos dois primeiros anos do programa (2009
e 2010). A partir daí, em todos os anos (2011, 2012 e 2013) a faixa mais alta, de 6
a 10 salários mínimos, foi sempre a que teve mais unidades licenciadas. Ou seja,
após um momento inicial de muitos projetos aprovados para a faixa de renda mais
baixa, houve uma diminuição desse fluxo e o programa, no Rio de Janeiro, passa,
aparentemente, a ser dirigido principalmente para o atendimento da faixa de
renda mais alta admitida no programa, que não pode efetivamente ser
classificada como baixa renda.
Tabela 12
Total de Empreendimentos e Unidades Licenciados no Âmbito do Programa Minha Casa
Minha Vida no Município do Rio de Janeiro, por Faixa de Renda, no Período 2009 a 2013
Empreendimentos Empreendimentos Empreendimentos
para a faixa de 0 a 3 para a faixa de 3 a 6 para a faixa de 6 a 10
SM SM SM
Total de Total de Total de
Total de Total de Total de
Empreendi Empreendi Empreendi
Unidades Unidades Unidades
-mentos -mentos -mentos
Rio de Janeiro 105 29.405 174 19.648 96 24.268
Participação no total da
28% 40,10% 46,40% 26,80% 25,60% 33,10%
cidade
Fonte: SMU/PCRJ – tratamento de dados pelo autor.
65
Tabela 13
Total de Unidades Licenciadas no Âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida no
Município do Rio de Janeiro, por Área de Planejamento e por Faixa de Renda, no Período
2009 a 2013
Empreendimentos Empreendimentos Empreendimentos
Total de
para a faixa para a faixa para a faixa
Empreendimentos
de 0 a 3 SM de 3 a 6 SM de 6 a 10 SM
% do % do % do % do
Absoluto Absoluto Absoluto Absoluto
Total Total Total Total
Rio de Janeiro 29.405 100,00 19.648 100,00 24.268 100,00 73.321 100,00
Área de Planejamento 1 1.180 4,01 523 2,66 902 3,72 2.605 3,55
Área de Planejamento 2 0 0 0 0 48 0,20 48 0,07
Área de Planejamento 3 4.040 13,74 4.534 23,08 5.957 24,55 14.531 19,82
Área de Planejamento 4 4.691 15,95 0 0 6.808 28,05 11.409 15,58
Área de Planejamento 5 19.494 66,29 14.591 74,26 10.553 43,49 44.638 60,88
Fonte: SMU/PCRJ – tratamento de dados pelo autor.
Merece registro o fato de haver unidades licenciadas para área central da cidade
(AP1) e também para a área do subúrbio (AP3). Mas é muito pouco, menos de
25% do total de unidades licenciadas. Globalmente, a tendência é de, novamente,
se implementar um programa de construção de casas desvinculado de uma
política consistente de democratização do acesso à cidade.
Barandier Junior (2012) analisa os projetos licenciados dos três primeiros anos do
PMCMV (2009 a 2011) no Rio de Janeiro pela lente da mobilidade urbana e avalia
que o programa
66
verificado nessa região tende a superar a capacidade de transporte."
(BARANDIER JUNIOR, 2012. p. 165).36
36
O autor explica que a literatura sobre o tema não consensual em relação a áreas de influência
de pólos geradores de tráfego. Contudo, há uma concordância de que o tempo de deslocamento
de 30 minutos é limite máximo para defini-la. Assim, Barandier Junior utilizou no seu estudo esse
critério para avaliar o atendimento ou não dos empreendimentos do PMCMV por estações de
transporte público. O resultado, foi aquele indicado: mais de 60% das unidades estão além desse
limite.
67
Figura 03. Conjuntos Zé Keti e Ismael Silva (PMCMV).
Construídos na área central, na rua Frei Caneca, os conjuntos
seguem o mesmo padrão reproduzido em larga escala no âmbito
do PMCMV. Fonte: Henrique Barandier, 2015.
68
Figura 04. Anúncio de aprovação do projeto Centro da Barra.
O Governo do Estado da Guanabara, durante o mandato de
Negrão de Lima, anuncia a aprovação do projeto do Centro da
Barra em 08/12/1969. Fonte: Acervo O GLOBO.
Lucio Costa justificou o Plano Piloto da Baixada de Jacarepaguá dizendo que com
os novos acessos, a região se tornara exposta "a uma ocupação imobiliária
indiscriminada e predatória". Era necessário, então, definir o destino daquela
imensa área, estabelecer os "critérios de urbanização" e garantir "o
desenvolvimento ordenado da região" (COSTA, 1995. p. 346). O próprio Lucio
Costa, considerando o desafio de orientar a ocupação de uma porção do território
de praias e dunas que pareciam não ter fim (COSTA, 1995. p. 348), mostrava no
memorial descritivo do plano-piloto as contradições da decisão de se promover a
expansão da cidade naquela direção. Dizia o urbanista:
69
Quatro décadas mais tarde, tendo em vista os padrões urbanísticos e
arquitetônicos da região que hoje conhecemos, é difícil considerar que a esperada
compensação tenha se dado. Mas independentemente das questões urbano-
ambientais locais, interessa aqui observar que o Plano Piloto da Baixada de
Jacarepaguá parte de uma série de pressupostos questionáveis do ponto de vista
do significado da ocupação dessa área para a cidade. Ainda mais quando
analisados a partir dos referenciais teóricos contemporâneos, e, acima de tudo, a
partir do reconhecimento da dinâmica urbana atual da cidade.
As figuras a seguir mostram a área urbanizada do Rio de Janeiro nos anos 1970 e
nos anos 2010. Apenas pela ilustração é possível imaginar o esforço
empreendido para se viabilizar a ocupação da extensa área da Baixada de
Jacarepaguá na proporção que ela se deu nesse período.
Figura 05. Área urbanizada do Rio de Janeiro nas décadas de 1970 e 2010. Em menos de 40
anos a cidade cresceu expressivamente para a direção oeste, mesmo com taxas de crescimento
populacional mantidas baixas no período. Fontes: Mapa Turístico da Guanabara (1974); Prefeitura
do Rio, Mapa Uso do Solo - Áreas Urbanizadas (2012). Tratamento: Henrique Barandier, 2015.
70
A constatação desse intenso processo de urbanização na direção oeste do
município permite nos perguntarmos sobre o que seria a cidade do Rio de Janeiro
hoje se todos os recursos, públicos e privados, investidos para viabilizá-lo
tivessem sido alocados na área que já era, então, urbanizada. Ainda mais quando
se sabe que, no mesmo período, a maioria dos bairros de urbanização mais
antiga perdeu população e que bairros da zona norte e do subúrbio sofreram
grande deterioração.
Como se sabe, o Centro Metropolitano não foi implementado tal como o proposto
por Lucio Costa, embora o urbanista afirmasse que isso só se daria no longo
prazo, "quando a infra-estrutura, organizada nas bases civilizadas e generosas
que se impõem existir, e a força da expansão o impuser - aí então sim, terá
chegado o momento de implantar o novo centro (...)" (COSTA, 1995. p. 352). De
certo modo, porém, a ideia de uma forte centralidade na região da Barra da Tijuca
vem claramente se configurando pelo menos nas duas últimas décadas. Após um
período de aparente esgotamento da capacidade de suporte dessa região em
razão da infraestrutura precária, os investimentos recentes promovidos pelo poder
público, grande parte deles relacionados aos grandes eventos esportivos,
parecem renovar as possibilidades de consolidação da nova centralidade de
alcance metropolitano imaginada por Lucio Costa.
71
A justificativa para a previsão do Centro Metropolitano na Baixada de
Jacarepaguá é pura retórica, sustentada por uma série de desenhos que buscam
mostrar que esse "não será apenas um novo centro relativamente autônomo à
maneira de Copacabana e Tijuca, mas, como se verá adiante, novo polo estadual
de convergência e irradiação" (COSTA, 1995. p. 347). Lucio Costa desconsidera,
ou omite, que segundo o critério geográfico por ele valorizado, o centro antigo do
Rio de Janeiro é que seria – e é – o centro da região metropolitana.
Figura 06. Centro da Barra e Centro do Rio. O esquema de Lucio Costa que aponta o que seia o
centro geográfico do Rio de Janeiro como lugar para se implantar o novo Centro Metropolitano
para ligar norte-sul, leste-oeste, se baseia nos limites administrativos da Guanabara e não a
verdadeira dimensão metropolitana. Fontes. Costa (1995); Google Earth; Tratamento: Henrique
Barandier, 2015.
ultrapassa os limites iniciais em que foi posto, pois o que importa aqui não é tão
somente a solução urbanística adequada a um programa de caráter recereativo,
residencial e turístico, como talvez se imagine. O que está concomitante e
verdadeiramente em jogo é a própria estruturação urbana definitiva da
cidade-estado. E constata-se, então paradoxalmente, que a contribuição básica
deste plano-piloto é precisamente esta, que aflora antes mesmo de ser abordado
o conteúdo específico e limitado do problema proposto. (COSTA, 1995. p. 348.
Grifo nosso).
72
região da Barra da Tijuca, longe de reestabelecer a unidade eventualmente
perdida da cidade, tem produzido novas formas de segregação. No sentido
adotado por Villaça, segregação "é um processo segundo o qual diferentes
classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes
regiões gerais ou conjuntos de bairros da metrópole" (VILLAÇA, 1998. p. 142). O
autor faz a ressalva de que "concentração não é exclusividade"37 e afirma que "a
segregação é a mais importante manifestação social-urbana da desigualdade que
impera na nossa sociedade" (VILLAÇA, 2012. p. 43-44).
A densidade relativamente alta que tinha o Rio de Janeiro até os anos 1950/1960
favorecia, certamente, maior homogeneização da distribuição dos serviços
urbanos. A dispersão urbana, fortemente impulsionada pela construção de
conjuntos habitacionais populares em áreas distantes da zona oeste nos anos
1960 e pela urbanização da região da Barra da Tijuca a partir dos anos 1970,
promoveu a diminuição da densidade da área urbanizada carioca, deixando ainda
mais bem demarcadas as distinções entre zonas ricas e pobres.
37
Trata-se de ressalva interessante no caso do Rio de Janeiro, pois o fato de haver, por exemplo,
favelas na valorizada Zona Sul, não torna a cidade "mais democrática" como vez por outra se diz.
A maior parte de favelas e demais formas de assentamentos populares precários se localiza nos
subúrbios e na faixa norte da Zona Oeste. E a concentração das famílias mais ricas nos bairros da
Zona Sul junto à orla marítima é um dado inquestionável.
73
A saída de população de bairros mais antigos teve, entretanto, efeitos diversos
nas diferentes regiões da cidade. Bairros da zona sul, próximos às praias,
continuaram sempre se valorizando. Por outro lado, bairros da zona norte e
subúrbios, na grande maioria, sofreram processos de deterioração38. Nessas
áreas, a diminuição de população residente de faixa de renda mais alta foi
acompanhada da perda de atividades econômicas, como por exemplo antigas
fábricas que fecharam, e do aumento da favelização.
38
O termo "deterioração" é empregado para designar o processo de perda de qualidade urbana
vivido por esses bairros ao longo do tempo, reconhecendo, porém, o alerta feito por Villaça quanto
à sua utilização. Ao analisar o caso de São Paulo, o autor questiona a ideia dominante de que "o
centro da cidade está se deteriorando". Villaça explica que "a deterioração, ou apodrecimento, é
um processo natural que só ocorre com seres vivos. Essa ideia pretende esconder o processo
real, rotulado de 'decadência', que é de responsabilidade da classe dominante, mas que não o
quer assumir. A verdade é que a chamada 'decadência' decorreu do fato de essa classe ter
abandonado o centro de São Paulo (...)". No caso do subúrbio do Rio de Janeiro, não é
exatamente a classe dominante que o abandona, mas o processo é similar. Esses bairros são
abandonados por uma classe média que viu na nova frente de urbanização da Barra da Tijuca
uma possibilidade de se reposicionar espacialmente e, até, socialmente. E nesse sentido é que se
trata de um movimento bastante diferente do observado na Zona Sul, de onde saíram sobretudo
aqueles que tinham dificuldades econômicas para se manter nessa área mais nobre da cidade e
migraram para a região da Barra da Tijuca.
75
Além do alto custo da urbanização da vasta região da Barra da Tijuca, outra
dimensão importante que contribui para o entendimento do quadro de segregação
urbana crescente na cidade diz respeito ao financiamento da manutenção de
serviços e padrões de urbanização. Apesar do alto valor nominal do IPTU
arrecadado na AP4, em grande parte determinado pelo peso do bairro da Barra
da Tijuca, o montante auferido por hectare é bastante baixo. Significa dizer que o
custo de manutenção da baixa densidade daquela região, embora seja em grande
parte ocupada por famílias de maior poder aquisitivo, é muito provavelmente
suportado também pelo restante da cidade. Estudo desenvolvido em 2008 pelo
IBAM, com base em dados oficiais do período entre 2000 e 2005 explicam essa
questão, mostrando a relação entre IPTU arrecadado e hectare líquido nas
diferentes áreas de planejamento da cidade. Nessa simulação, os valores
verificados na AP2 são altíssimos, comparados com os das demais APs, seguida
da AP1. Já AP3 e AP4 mantiveram valores de arrecadação por hectare
semelhantes, bem abaixo do que se observou na AP1 e acima dos resultados
para a AP5, que é, de fato, inexpressivo.
Mesmo levando em conta que o IPTU não é o imposto que melhor explica a
dinâmica econômica da cidade, resulta bastante significativo que a arrecadação
da AP4 seja tão baixa quando medida por unidade de área. A relevância desse
indicador pode ser deduzida do fato de ser esta uma região que, como já vimos,
concentra a quase totalidade da expansão imobiliária da cidade e, com ela, veicula
fortíssimas pressões pela construção de novos equipamentos e infra-estruturas,
estas com custos diretamente (e rendimento inversamente) proporcionais às
distâncias percorridas.
(...) [os dados analisados parecem] sugerir que, na hipótese de que a AP2 “pague”
um IPTU à altura de seus padrões de urbanização e serviços construídos no
passado e mantidos no presente, então a APs 3 “paga”, quem sabe, um IPTU à
altura dos padrões de urbanização de que desfrutou em algum momento do
passado e que absolutamente não se mantêm no presente e a AP4 paga um IPTU
muito abaixo dos padrões de urbanização de que já desfruta no presente e, a
julgar pelos novos investimentos regularmente executados e outros anunciados,
muitíssimo inferior aos padrões de urbanização de que desfrutará no futuro.
(IBAM, 2008. p.64 - Produto 2).
78
Apesar da baixa densidade, a população atual da AP4 de cerca de 1 milhão de
habitantes não é desprezível. Esse é, provavelmente, o grande impasse que vive
a cidade do Rio de Janeiro, porque na precarizada AP3 vivem em torno 2,4
milhões de pessoas e na muito precária AP5, mais de 1,7 milhão. Em termos de
contingente populacional são muito mais relevantes. Mas os investimentos
concentram-se na AP4 e mais especificamente na Região Administrativa da Barra
da Tijuca, que abrange os bairros mais ricos (Barra da Tijuca, Joá, Itanhagá e
Recreio dos Bandeirantes) com apenas 300.000 habitantes (menos de 5% da
população do Rio de Janeiro).
79
tempo, normas específicas editadas, por meio dos Projetos de Estruturação
Urbana (PEUs). Nesses casos, prevalece o que é estabelecido pelo PEU, o que
não abrange necessariamente todo o conteúdo regulado pelo Dec.322/76.39
Rezende (1996) explica que o Dec.322/76, assim como seu antecessor, o Dec.
"E" 3800/70 que continua em vigor no que diz respeito ao regulamento de
parcelamento da terra, padece do mesmo mal de detalhamento excessivo: "com o
objetivo de tudo regular, acabavam por omitir alguma situação, o que passava a
ser considerado um caso omisso sujeito à interpretação da administração, por
vezes tendenciosa" (REZENDE, 1996. p. 890).
39
Segundo dados pela SMU, em apresentação das propostas de revisão da legislação urbanística
realizada no Conselho de Arquitetura e Urbanismo - CAU/RJ em 02 de julho de 2013, "109 bairros
estão envolvidos em PEUs e demais legislações específicas" e "representam 67% dos bairros e
cobrem 42% da área total do município".
80
compreensão da legislação vigente, pois se estabelece a convivência de
diferentes registros:
81
licenciamento, que seria fundamental para garantir os interesses coletivos na
produção do espaço, passa a ser muito mais no sentido do enquadramento dos
projetos às normas como objetivo em si. Embora não seja essa a única razão, é
possível considerar que esse aspecto contribua para que as construções na
própria cidade formal nas últimas quatro décadas sejam fortemente marcadas
pela baixa qualidade arquitetônica.
A permanência do Dec. 322/76 num período tão longo e com tantas mudanças -
no país, na própria cidade, no pensamento urbanístico - é instigante e, ao mesmo
tempo, reveladora. Uma nova legislação de uso e ocupação do solo significaria
intervir nas relações e espaços de poder acomodadas pelo tempo, tanto no
Executivo, como no Legislativo, na própria máquina administrativa e nas relações
entre poder público e setor privado, em especial o mercado imobiliário. Porque a
legislação urbanística não é produto independente das práticas sociais. É o
resultado - ela própria e sua aplicação - de correlações de forças que estruturam
a reprodução da cidade. Mesmo após a Constituição de 1988, do plano de diretor
de 1992 e sobretudo do Estatuto da Cidade de 2001, a cidade do Rio de Janeiro
não instituiu normas de uso e ocupação do solo que pudessem, ao menos,
sinalizar para a construção de uma cidade mais inclusiva. Pelo contrário, a
legislação urbanística fundamentada em concepções pré-Estatuto da Cidade vem
sendo desfeita e refeita cotidianamente, seguindo princípios como "flexibilização"
e "desregulamentação" dominantes a partir dos anos 1990 (NACIF, 2007)
apresentando-se como inovadores, mas que não alteram a lógica da estruturação
urbana.
mesmo quando a lei não opera no sentido de determinar a forma da cidade, como
é o caso de nossas cidades, de maiorias clandestinas, é aí onde ela é mais
poderosa no sentido de relacionar diferenças culturais com sistemas hierárquicos.
(ROLNIK, 1999. p. 13-14).
82
Para enfrentar, ainda que parcialmente, o fenômeno da informalidade urbana,
dois tipos de ação principais foram adotados nas últimas décadas no Rio de
Janeiro. Todos dois incidindo sobre a legislação, mas sem alterá-la na sua
concepção. Ou seja, tratando o fenômeno como exceção, apesar de sua
dimensão.
83
urbanística. Mas isso não aconteceu e nem mesmo instrumentos que foram
integralmente regulamentados no próprio plano foram implementados, como por
exemplo o "solo criado"41. Esse instrumento, assim como o IPTU progressivo no
tempo, representava novas possibilidades de intervenção mais efetiva no
mercado imobiliário de modo a contribuir para políticas urbanas redistributivas.
Andrade complementa sua análise criticando a simples previsão das AEIS, pois
nelas, "pode-se o que não se pode em lugar nenhum. Reconhecem-se padrões
de habitabilidade vedados no resto da cidade e estabelece-se que duas cidades
coexistirão doravante. Uma regida pelos IAT e a outra pelos puxadinhos"
(ANDRADE, 2009. p.174).
Sobre o mesmo tema, Smolka (s/d) propõe uma reflexão interessante e também
provocadora, que parece bastante útil para compreensão dos limites das ações
de regularização frente à lógica da produção formal que permanece inabalável e
acaba por absorvê-las. O autor desenvolve a hipótese de que "as políticas de
regularização ora prevalecentes (...)podem estar contribuindo para o agravamento
do problema [da informalidade urbana]". E a partir dela expõe uma dilema e um
desafio:
O dilema é que não regularizar, simplesmente, não é uma opção política (senão
social e humanitária). O desafio apresenta-se em como regularizar, sem alimentar
o círculo vicioso da irregularidade, assegurando um conteúdo preventivo a tais
políticas e programas. (SMOLKA, s/d).
Não é uma tarefa simples, uma vez que a postura dominante em relação, por um
lado, à tolerância às ‘soluções’ informais e, por outro, à inserção destes programas
de regularização na agenda pública parece bastante conveniente para o status
quo. As áreas nobres continuam protegidas pela sobre-regulação (ou regulação de
exclusão), e as áreas de expansão (periféricas) se tornam cada vez mais
desreguladas. (SMOLKA, s/d).
41
Mais adiante, neste Capítulo, a questão do solo criado é retomada com mais detalhes.
84
Para Smolka, "em síntese, a regularização de assentamentos informais
materializa a resposta neoliberal para a informalidade, sem (ou melhor, para não)
alterar as regras do jogo imobiliário urbano." (SMOLKA, s/d).
Na mesma lógica, uma norma editada em 1990, que vigorou por quase vinte anos
após sucessivas reedições, se destaca por seu caráter peculiar e os efeitos que
produziu. O Decreto 9218/1990 permitia "a legalização de obras existentes de
construção, modificação e acréscimos em edificações residenciais" em algumas
condições previamente estabelecidas. A norma partia do reconhecimento da
existência de grande número de construções executadas sem licença e
estabelecia regras menos restritivas que as da legislação vigente para viabilizar a
regularização. Pode-se dizer que tinha, originalmente, ao menos na intenção, uma
justificativa social, pois pretendia criar condições para que uma parte do parque
edificado ilegalmente pudesse entrar na formalidade, inclusive para viabilizar
transações formais, por exemplo, de compra e venda. As características dos
imóveis que poderiam ser enquadrados nas condições previstas pelo decreto
correspondiam às de padrões de construção comuns a famílias de padrão de
renda mais baixo e as taxas cobradas para legalização permitiam a busca pela
regularização.
85
O decreto destinava-se, especificamente, à legalização de construções, pois era
condição necessária que a edificação estivesse em loteamento aprovado e que o
respectivo lote tivesse existência jurídica comprovada. Para a regularização das
edificações por esse decreto, não eram exigidos os seguintes parâmetros: "área
livre no lote, afastamento frontal, prismas de iluminação ou ventilação, local para
estacionamento ou guarda de veículos e número de edificações no lote" (Decreto
9218/1990, art. 5o). No entanto, o número máximo de edificações no lote deveria
ser de dez, o número máximo de pavimentos igual a três e não se aplicava a usos
não residenciais, entre outras condições para enquadramento dos casos.
42
O artigo de Cardoso analisa a questão da irregularidade urbanística baseou-se em resultados
de pesquisa desenvolvida pela Agrar (2002) para a Prefeitura do Rio de Janeiro, da qual este
autor participou como membro da equipe técnica e Coordenador dos Levantamentos nos Órgãos
de Licenciamento e Fiscalização e ele como consultor.
86
processo de licenciamento tradicional permanece obscuro, lento, complexo e,
consequentemente, caro. (CARDOSO, 2003. p.13).
Art. 302 Até que seja elaborada legislação de uso e ocupação do solo local,
permanecerão em vigor as condições estabelecidas pelo Regulamento de
Zoneamento aprovado pelo Decreto nº 322, de 3 de março de 1976 e pela
legislação de uso e ocupação do solo local em vigor, quanto aos seguintes
aspectos:
87
2.3. Um novo plano diretor para a cidade?
Em 2002, quando já era novamente prefeito, César Maia não envidou esforços
para promover revisão do plano diretor, mesmo tendo sido cumprido o período de
dez anos estimado para sua implementação e apesar da obrigatoriedade de fazê-
la em razão do disposto no Estatuto da Cidade, aprovado em 2001. Em 2006, um
pouco pressionado pelo prazo legal definido na lei federal para que os municípios
adequassem seus planos diretores ao novo marco legal da política urbana, o
Prefeito acabou encaminhando, burocraticamente, um novo projeto de lei para a
Câmara de Vereadores, onde ficou tramitando nos anos seguintes, sem suscitar
debates mais relevantes ou se configurar como prioridade da administração
municipal.
Para os objetivos desta tese, interessava observar como esse novo plano diretor
orienta a articulação dos projetos em curso ou previsto com diretrizes urbanísticas
mais gerais de planejamento. Por outro lado, interessava também verificar as
bases conceituais para regulação do uso e ocupação do solo. Ou seja, verificar se
o plano apontava para alguma mudança substancial na lógica de produção
ordinária da cidade, entendida aqui como anacrônica e segregadora.
88
Trata-se, portanto, de uma análise parcial do plano diretor do Rio de Janeiro, mas
suficiente para identificar o total descolamento entre planos e projetos e o
retrocesso conceitual que este representa em relação ao plano de 1992.
Ainda em 2009, o novo prefeito enviou para Câmara Municipal, que aprovou
rapidamente, um "pacote legislativo" (ver Capítulo 4) para instituição da Operação
Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio. O interessante aqui é observar
que essa lei altera o plano diretor então vigente - aquele de 1992 que ficara tanto
tempo adormecido e cujo processo de revisão havia sido retomado por esse
mesmo prefeito, no início de seu primeiro mandato. Para viabilizar o projeto de
renovação da área portuária, definido pelo novo gestor como prioridade da
cidade, a revisão daquele que deveria ser o instrumento básico da política urbana
era atropelada. Aparentemente, a alteração tinha por objetivo garantir a
segurança jurídica da operação urbana consorciada proposta, pois esse
instrumento, consagrado no Estatuto da Cidade, não havia sido previsto no plano
diretor de 1992.
É curioso, porém, observar que o novo plano diretor, aprovado pouco mais de um
ano depois, não faz menção sequer à existência da OUC Porto Maravilha. Ou
seja, o instrumento, que em tese daria as diretrizes do desenvolvimento urbano
da cidade para os próximos anos, não considerou que, no momento de sua
aprovação, estava já em curso uma operação que pretendia promover a
construção de mais de 4 milhões m2 na área portuária, envolvendo obras
estimadas em cerca de R$8 bilhões.
No mesmo ano de 2009, o mundo ficou sabendo que o Rio de Janeiro seria a
sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Alcançava-se, assim, aquilo que, para os
governantes, tinha se transformado no grande objetivo da cidade nos últimos
anos. A preparação do evento possibilitaria investimentos em infraestrutura que,
segundo todas as promessas, mudariam a cidade. Vale lembrar que para a
disputa, a cidade apresentou um "Dossier de Candidatura"43 que já indicava os
locais de competições, as principais obras que seriam realizadas e afirmava:
43
Disponível em: <http://www.cidadeolimpica.com.br/empresaolimpica/legislacao-e-
documentos/page/6/>. Acesso em: 30/05/15, às 22:01h.
89
Um Comitê de Legado Urbano, dirigido pelas autoridades municipais, também foi
formado para estudar as instalações escolhidas para os Jogos e garantir o
alinhamento completo do Plano Mestre dos Jogos aos objetivos de longo
prazo da cidade, trazendo assim vantagens para todos. (Rio 2016, 1999. p. 20.
Grifo nosso).
44
Bus Rapid Transit, na sigla em inglês.
90
de unidades habitacionais bem localizadas e de boa qualidade arquitetônica para
famílias de baixa renda.
91
IATs e macrozoneamento
A definição de IATs45 no plano diretor de 2011 configura uma das mudanças mais
significativas em relação ao plano diretor anterior, ao menos em termos
conceituais. Nessa nova edição, com a supressão do dispositivo que estabelecia
o coeficiente de aproveitamento básico único para toda a cidade igual a um, os
IATs que antes determinavam o potencial construtivo máximo em cada área da
cidade foram transformados, na versão atual, em coeficiente de aproveitamento
básico, ou seja, aquele que pode ser exercido gratuitamente. A reprodução dos
textos das duas leis expressa claramente a diferença.
Essa mudança altera completamente o sentido do solo criado, que era previsto no
plano de 1992, e que passou a ser chamado de outorga onerosa do direito de
construir, tal como foi denominado no Estatuto da Cidade. Em São Paulo, o
coeficiente de aproveitamento máximo adotado é 4,0. Enquanto isso, no Rio de
Janeiro, com esse novo entendimento, o coeficiente de aproveitamento básico de
vários bairros é entre de 3,0 a 4,0, tendo ainda bairros em que o índice chega a
5,0, 11,0 e até a 15,0. Em sentido oposto ao tomado no Rio de Janeiro, na última
revisão do plano diretor de São Paulo, de 2014, foi adotado o coeficiente de
45
Após a aprovação do Estatuto da Cidade, tem sido mais usual a utilização do termo coeficiente
de aproveitamento pelos outros municípios, mas o significado é o mesmo de índice de
aproveitamento de terreno adotado no Rio de Janeiro.
92
aproveitamento básico único e igual a um. O que provavelmente levará ao
aumento da arrecadação com a outorga onerosa do direito de construir que já
vinha sendo aplicada pelo município46.
Além dessa questão conceitual mais central, chama atenção outro aspecto, que
diz respeito à relação (ou falta de) entre IATs e macrozoneamento. O novo plano
estabelece um macrozoneamento distinto do de 1992, subdividindo a cidade em
quatro macrozonas: "Macrozona de Ocupação Controlada"; "Macrozona de
Ocupação Incentivada"; "Macrozona de Ocupação Condicionada"; "Macrozona de
Ocupação Assistida"47.
O anexo VII do plano diretor de 2011 apresenta os valores dos IATs, organizados
por macrozona e bairros, sugerindo haver alguma correlação entre as diretrizes
de ocupação (controlada, incentivada, condicionada ou assistida) e o potencial
construtivo admitido pela legislação urbanística. Contudo, a variação do IAT entre
bairros de uma mesma macrozona é tão grande que essa correlação não é clara.
46
Entre 2010 e 2014, o município de São Paulo arrecadou mais de R$900 milhões com a
aplicação da outorga onerosa do direito de construir, sem contar nesse montante os valores
arrecadados nas operações urbanas consorciadas por meio de Certificados de Potencial Adicional
de Construção - CEPACs. Claramente, não são recursos desprezíveis, que se não fossem
arrecadados pela municipalidade seriam apropriados pelos proprietários de terrenos e/ou
incorporadores.
47
No plano diretor de 1992, o macrozoneamento subdivida o território municipal em três tipos de
macrozonas: macrozonas urbanas; macrozonas de expansão urbana; e macrozonas de restrição à
ocupação urbana. Embora mais lógica conceitualmente, essa subdivisão também não tinha
impacto significativo, uma vez que todo o território municipal foi considerado urbano.
93
Por outro lado, mesmos valores de IAT são verificados em macrozonas
diferentes. E se observa, ao mesmo tempo, que os IATs estabelecidos são
praticamente os mesmos previstos em 1992 (lembrando que o antes era
coeficiente máximo, passou a ser tratado como coeficiente básico), salvo algumas
alterações - para cima - em alguns casos específicos. Deduz-se, então, que a
mudança na concepção do macrozoneamento não produz alteração significativa
naquele que é um dos mais importantes, senão o principal, parâmetro urbanístico
que o município no Brasil pode utilizar para regular o aproveitamento do solo
urbano. Apesar da mudança de nomes e delimitações nas macrozonas, o plano
não mexe naquilo que está estabelecido em termos de parâmetros urbanísticos.
Ou seja, não mexe naquilo que em termos práticos pode alterar as regras do jogo
na produção do espaço urbano.
48
O documento conhecido como "Carta de Embu", de 1976, estabeleceu as bases conceitual e
jurídica sobre o instituto do "solo criado", referência para a incorporação da Outorga Onerosa do
Direito de Construir no Estatuto da Cidade (2001).
94
econômicos que envolve. Entendê-lo no plano diretor de 2011 do Rio de Janeiro é
algo revelador do próprio conteúdo do plano.
95
Ao dar aos IATs previstos no plano diretor de 1992 como índices máximos o
sentido de coeficiente de aproveitamento básico, o plano diretor de 2011 rompe
inteiramente com essa lógica. Mas o plano desconstrói definitivamente o
instrumento quando estabelece que "a outorga onerosa (...) somente poderá ser
exercida em Áreas Sujeitas à Intervenção previstas no Anexo IV e definidas em
Lei como Áreas de Especial Interesse Urbanístico ou de Operações Urbanas
Consorciadas" (art. 79, parágrafo 2o). Ou seja, o instrumento perde seu caráter
geral, para incidir em apenas algumas áreas, aquelas objeto de projetos urbanos.
E como nesses casos, o instrumento da OUC permite que os recursos da outorga
onerosa sejam aplicados exclusivamente na área da operação para o
financiamento das obras planejadas, o sentido redistributivo é praticamente
eliminado.
Não é à toa que, na forma como foi tratada no plano diretor de 2011, a outorga
onerosa não incide nos bairros mais valorizados da cidade. Continuarão
valorizados e os proprietários privados e incorporadores continuarão se
apropriando de toda a valorização fundiária decorrente do processo de
urbanização, inclusive aquela originada pela ação do poder público, por meio da
execução de obras e pela própria legislação urbanística na concessão de índices
urbanísticos.
Embora as cidades estejam em constante mutação nas suas partes, mudar suas
lógicas de estruturação requer processos longos. As transformações urbanas, em
geral, são lentas, salvo em momentos mais radicais de "bota abaixo", de grandes
projetos de renovação urbana ou de ocupação de novas áreas antes não
incorporadas a malha urbana.
96
Na história do Rio de Janeiro, esses momentos mais radicais resultaram em
importantes impulsos para a expansão cidade e, invariavelmente, maior
segregação urbana. Foi assim no início do século XX com a reforma de Pereira
Passos e também nos anos 1950/60, com o rodoviarismo combinado com
remoções de favelas e construção dos distantes conjuntos habitacionais.
O momento atual talvez não seja tão radical quanto os anteriores, do ponto de
vista de demolições na cidade existente que favoreceram novas possibilidades de
aproveitamento do solo pelo mercado, ainda que intervenções de grande porte
estejam sendo realizadas, com tendência a provocar os mesmos efeitos já
conhecidos. É o que sugerem a concentração de investimentos ligados aos Jogos
Olímpicos na região da Barra da Tijuca, a nova infraestrutura de transporte
convergindo para a mesma região, as unidades habitacionais da faixa de mais
baixa renda sendo construídas nas áreas mais distantes e de infraestrutura mais
precária, a abertura de uma nova frente de investimentos imobiliários na área
central concentrada na região portuária e, paralelamente às ações mais
diretamente associadas a obras, uma política de segurança pública que concentra
sua atuação prioritariamente nas favelas em torno da Zona Sul, formando uma
espécie de arco de proteção das áreas mais nobres da cidade (ver Mapa 09).
97
obras de qualificação do espaço público realizadas simultaneamente teve impacto
significativo num primeiro momento em que a cidade parecia reconstruir sua
imagem. No longo prazo, porém, nem se constituiu uma cultura de projetos
urbanos na cidade, nem se reformulou as bases e práticas do urbanismo
operacional, nem se reverteu processos urbanos que tendem a produzir uma
cidade mais desigual. Esses temas serão abordados também no próximo capítulo,
dedicado à análise da prática de projetos urbanos no Rio de Janeiro nas últimas
três décadas.
98
Capítulo 3
TRÊS GERAÇÕES DE PROJETOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO
Neste capítulo, são analisados projetos urbanos propostos para o Rio de Janeiro
no período que vai dos anos 1980 aos dias atuais. O recorte temporal adotado
tem como referência inicial o processo de redemocratização do país, um contexto
favorável ao surgimento de novas práticas sociais. E se estende até a presente
década de 2010, uma vez que a realização dos Jogos Olímpicos em 2016
motivou uma série de intervenções urbanas que estão em curso e que exigem
interpretações sobre o que se pode esperar como "legado" para a cidade.
Ao ser abordada a prática de projetos urbanos numa visão de mais longo prazo e
de conjunto, busca-se contribuir, conceitualmente, para uma melhor compreensão
do projeto urbano no contexto carioca, enfatizando como seu papel e formato se
alteram ao longo do tempo. Do ponto de vista da configuração da cidade, são
examinadas não apenas características dos projetos, em particular em relação à
forma urbana, mas também como essa prática impacta ou não as tendências da
dinâmica urbana. E a partir desses aspectos, considerando mudanças de
contexto e de formas de intervenção, são trabalhados elementos que contribuem
para a reflexão sobre negligência urbanística, tanto em relação à própria prática
projetual como em relação ao planejamento e controle urbano.
100
intervenções concebidas em torno de grandes projetos arquitetônicos, muitos
deles de forte apelo midiático e, eventualmente, assinados por estrelas da
arquitetura internacional. Como produtos dessa mesma geração de projetos
urbanos, figuram também os inúmeros projetos e obras associados direta ou
indiretamente à realização dos eventos esportivos na cidade.
101
implementados. Razão pela qual Pinheiro Machado (2010) enfatiza a constatação
de que "os projetos urbanos são específicos e singulares".
102
Brasil - justamente na época em que se revelava mais claramente a crise da
modernidade: o momento do “aparecimento da incerteza lá onde tudo parecia
seguro, regrado, regulado e, portanto, predicável” (MORIN, 2012. pp. 19-20).
Ao refletir sobre o sentido da expressão "projeto urbano", no início dos anos 90,
Genestier dizia que aqueles que a pronunciavam "[queriam] inicialmente marcar
sua adesão à ideologia antifuncionalista" e que por meio dela se exprimia uma
"atitude favorável à cidade". No entanto, o autor crítica o termo, mostrando que
justamente por se tratar de uma expressão imprecisa era cômoda para os
"diferentes atores da urbanização", incluindo políticos locais e técnicos. Na sua
visão, o termo oferecia "a vantagem (duvidosa, em relação às exigência da
democracia) de proferir princípios e orientações gerais camuflando problemas
reais" (GENESTIER, 1993, tradução nossa).
O que é tido por impreciso sob um determinado ponto de vista, à medida que
circulam diferentes compreensões sobre o mesmo termo, pode ser também
entendido como riqueza de um termo que não se encerra, teoricamente, em
modelos pré-concebidos. Roncayolo dizia que "o interesse essencial do 'projeto
urbano', é justamente esse tipo de instabilidade que nos faz intervir na reflexão
sobre a maneira de construir finalmente as cidades (...)" (RONCAYOLO, 2000.
p.26, tradução nossa). Considerando a questão da imprecisão do termo como
ultrapassada atualmente, Tsiomis e Ziegler se interrogam sobre o que é objeto do
projeto urbano. E afirmam que "não há um objeto, mas objetos de escalas e
temporalidades diferentes e com atores diversos" (TSIOMIS; ZIEGLER, 2007.
p.24, tradução nossa). Nesse sentido, "projeto urbano é uma noção extensível e
polissêmica" que envolve uma "pluralidade de objetos" (TSIOMIS; ZIEGLER,
103
2007. p.24, tradução nossa) que pode ser tanto a cidade consolidada como a
cidade dispersa, o centro ou a periferia e pode assumir significados próprios em
cada contexto específico.
A crítica aos postulados da "Carta de Atenas", já nos anos 60, abria caminhos
para novas preocupações e para a experimentação de novas formas de intervir no
espaço urbano. Devillers, por exemplo, destaca que a noção de projeto urbano
surge quando se verifica que "o problema não é mais de construir cidades novas,
mas de requalificar a urbanização existente" (DEVILLERS, 1994. p.12, tradução
nossa). Ao marcar a questão da requalificação da urbanização existente, o autor
remete para uma nova postura que se esboçava à época - de "faire la ville sur la
49
É importante considerar que na França não há, como no Brasil, a unicidade na formação do
arquiteto e urbanista. Durante a formação universitária, estudantes de diferentes áreas podem se
dirigir para a formação em urbanismo, com grande participação de oriundos da geografia.
104
ville"50 - em contraposição a práticas como a tabula rasa, a produção de grandes
conjuntos monofuncionais, a expansão urbana ilimitada, que marcaram a
produção modernista-funcionalista do pós-guerra. Enfatiza-se o papel essencial
do espaço público e a necessidade de superação de lógicas setoriais nas políticas
urbanas. Nessa visão, o projeto é revalorizado e a noção de projeto urbano
aparece como possibilidade frente ao urbanismo puramente normativo, de
modelos pré-concebidos e de planos de massa.
50
A expressão "faire la ville sur la ville" amplamente difundida na bibliografia francesa sobre
projeto urbano pode ser entendida como princípio ligado à noção de projeto urbano, essencial
para grande parte de arquitetos e urbanistas, que remete para ideia de construir ou reconstruir a
cidade sobre ela mesmo, ou seja, partindo do existente.
105
Ao mesmo tempo, a crise do Estado-Providência, ou Estado do Bem-Estar,
expõe, pelo viés da gestão e do papel do Estado, outra face da crise do
urbanismo modernista-funcionalista, cuja tradição, segundo Portas "está ligada,
ou foi legitimada", justamente por esse modelo de Estado interventor. A
incapacidade do Estado, diante da crise econômica, de garantir a coesão social e
de prover integralmente infraestrutura e serviços urbanos associa-se, então, à
própria crítica da qualidade urbanística da produção do pós-guerra. A dimensão
da gestão passa a ser também central para se pensar o urbanismo e essa nova
condição, como explica Portas, faz com que as noções de tempo e de recursos
tenham que ser incorporadas às concepções e estratégias de planejamento e
projeto. (PORTAS, 1996)
106
3.1.2. Projeto urbano no contexto brasileiro
51
Destaque para Manuel de Forn e Jordi Borja, consultores do Plano Estratégico concluído em
2005 e para Oriol Bohigas e Nuno Portas, consultores em projetos para a área central do Rio de
Janeiro. A atuação desses consultores internacionais não se limita à prestação dos serviços de
consultoria em si. Eles participam também de eventos não só promovidos pela Prefeitura, mas
também de eventos acadêmicos e profissionais, bem como têm textos publicados contribuindo
para a introdução no contexto brasileiro do debate internacional sobre projetos urbanos.
107
difusão do discurso do planejamento estratégico e do projeto urbano como novos
instrumentos de gestão da cidade contemporânea.
Mas também se inserem nesse mesmo ambiente aqueles que embora críticos ao
discurso e à agenda neoliberal para as cidades, reconhecem a valorização do
projeto e do desenho urbano como algo importante e necessário para a promoção
108
da qualidade de vida urbana e a própria democratização da cidade. A questão do
projeto e da concepção da forma urbana, sem dúvida, toca muito especialmente
os arquitetos e urbanistas e nem sempre tem a mesma relevância para outras
disciplinas que se ocupam da cidade e do espaço urbano.
109
formação de uma consciência crítica sobre a realidade urbana brasileira e a
organização do Movimento Nacional de Luta pela Reforma Urbana. A partir da
emenda popular apresentada pelo movimento, a Constituição Federal de 1988
incorporou o que seriam as bases para reforma urbana: a afirmação do princípio
da função social da cidade e da propriedade urbana; a utilização compulsória de
imóveis vazios ou subutilizados em áreas urbanas bem infraestruturadas; a
regularização fundiária de interesse social. A transição democrática, o novo marco
constitucional, a chegada de partidos de esquerda ao poder executivo de
importantes cidades, notadamente São Paulo, indicavam, no final dos anos 1980,
possibilidades reais de mudanças de prioridades na política urbana brasileira.
No entanto, a ascensão dos ideias neoliberais nos anos 1990 foi acompanhada
de outra agenda para as cidades, se sobrepondo àquela preconizada pelo
movimento da reforma urbana. A polarização político ideológica que se acirraria
ao longo da década se traduziu, no campo da política urbana, na oposição entre
plano e projeto, entre planejamento urbano e planejamento estratégico, entre
participação social e parcerias público-privada, entre regulação urbana e
flexibilização da legislação urbanística...
110
Apesar de assumir postura extremamente crítica em relação ao planejamento
estratégico e à prática de projetos urbanos, Vainer (2013) reconhece que a
literatura produzida nessa perspectiva, de modo geral, tem "se consagrado antes
à crítica do modelo e dos conceitos que o amparam, raramente capazes de extrair
suas consequências práticas e descer ao terreno das cidades reais para ver o que
está sendo feito delas" (VAINER, 2013. p.139).
Dessa forma, o debate sobre projeto urbano no Brasil é fortemente marcado por
posturas "a priori" e pela classificação dos autores que se dedicam ao tema em
"apologistas" ou "críticos" do projeto urbano conforme enquadramento proposto
por Novais et al, onde apologistas são os que "entendem os GPUs como práticas
adequadas ao mundo contemporâneo" e os críticos são aqueles "que põem o
acento sobre seus efeitos perversos" (NOVAIS et al, 2007). A classificação
explicita visões divergentes que, certamente, contribui para melhor compreensão
dos embates e disputas que estão em jogo em torno da prática de projetos
urbanos. Por outro lado, reforça a visão dicotômica dos prós e dos contras como
se o instrumento, em si, fosse portador de significado, desconsiderando
abordagens reflexivas. No entanto, a própria pesquisa da qual participam Novais
et al, indica que os projetos urbanos assumem formatos e significados próprios
em cada contexto, que "nem sempre podem ser claramente relacionados ao
processo de globalização", embora, normalmente, façam referências "a projetos
internacionais supostamente bem sucedidos" em seus "discursos de legitimação"
(NOVAIS et al, 2007).
111
abordagem de determinadas temáticas, eventualmente com estudos
comparativos. Ainda assim, alguns autores têm buscado aprofundar teoricamente
a compreensão do projeto urbano no contexto brasileiro. Pinheiro Machado
(2003), por exemplo, estuda o que identifica como categorias constituintes do
projeto urbano (programa, tempo, escala, composição, princípios / conceitos /
discursos, metodologias, e decisão / gestão) para propor uma grade analítica de
projetos urbanos, segundo problemáticas urbanas recorrentes da cidade
contemporânea. Somekh (2009) tenta pensar a prática de projeto urbano de modo
articulado com a implementação do Estatuto da Cidade e os instrumentos jurídico-
urbanísticos nele previstos. Farias Filho (2013b) e Vescina (2010) analisam
possibilidades do projeto urbano, comumente pensado como instrumento de ação
em áreas centrais, para compreensão e intervenção no espaço metropolitano, em
áreas periféricas de cidades brasileiras.
O regime político iniciado em 1964 levou o país a duas décadas de uma ditadura
civil-militar que se impôs pela força, sufocou a efervescência política e cultural dos
anos 60, retomou o desenvolvimento econômico com endividamento externo e
concentração de renda e se esvaiu nos anos 80, em meio à grave crise
112
econômica. A "década perdida", como ficou conhecida a década de 80, foi
marcada pelo baixo crescimento econômico, hiper-inflação e sucessivos planos
econômicos fracassados.
52
Andrade apresenta e analisa os relatórios do Grupo de Trabalho para Reformulação do SFH
(GTR-SFH) e do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), ambos de 1986, que apresentavam críticas
"à política adotada pelo BNH" e propostas para reestruturação da política habitacional e urbana.
Apesar das expectativas e do ambiente político relativamente favorável a mudanças, nesse
mesmo ano de 1986 o BNH foi extinto.
53
Em 1988, a candidata Luiza Erundina foi eleita prefeita de São Paulo pelo Partido dos
Trabalhadores, que, à época, se mostrava como partido capaz de instaurar novas práticas na
política. A gestão de Luiza Erundina foi um marco para a política urbana, levando para a prática
ideais da reforma urbana. Mais especificamente em relação à política habitacional, a
administração de São Paulo conseguiu implantar um programa diversificado, demonstrando a
113
cidade do país - e também de projetos - com destaque para o Corredor Cultural54
no Rio de Janeiro - buscavam caminhos para superação da tradição tecnocrática-
modernista-funcionalista. Alguns aspectos sintetizam esse período em relação à
política urbana:
114
No Rio de Janeiro, na década de 80, não havia propriamente um projeto de
cidade que orientava a política urbana, mas uma multiplicidade de iniciativas não
necessariamente articuladas ou mesmo coerentes, num momento de crise
econômica com significativo impacto social. Mais especificamente sobre o que se
pode, hoje, interpretar como significado da prática de projetos urbanos naquele
período, quatro aspectos destacados a seguir parecem os mais relevantes.
115
3.2.2. A cidade, definitivamente, avança em direção à Barra
Durante os anos 70, são iniciadas as obras para implementação do sistema viário
que faria a ligação da Barra da Tijuca com a zona sul e o Centro, bem como são
inaugurados os empreendimentos pioneiros que abririam os caminhos para o
novo "eldorado urbano" (LEITÃO, 1999). Alguns desses empreendimentos
pioneiros se transformariam nos símbolos mais reconhecidos do padrão
urbanístico que caracterizaria a ocupação da Barra da Tijuca: "o primeiro
hipermercado (Carrefour,1976); o primeiro condomínio-parque (Nova Ipanema,
1977) e o primeiro shopping center horizontal (Barrashopping, 1981)" (NUNES-
FERREIRA, 2014, p. 82).
55
"Plano Piloto para urbanização da baixada compreendida entre a Barra da Tijuca, o Pontal de
Sernambetiba e Jacarepaguá" elaborado por Lucio Costa.
116
Numa época em que a qualidade da produção arquitetônica da cidade conhecia
decadência notável56, a porta de entrada para o novo bairro à beira mar era
aberta através (literalmente) de um dos marcos da arquitetura moderna carioca,
desfigurando-o e prenunciando o que viria para frente. O estado implantava a
infraestrutura viária necessária para que a imensa área até então quase intocada
fosse apropriada pelo mercado imobiliário. A criação, com recursos públicos, de
condições de acessibilidade à área que ficara resguardada pelas montanhas que
a separavam da cidade, transformava a região da Barra em negócio
potencialmente lucrativo para a indústria da construção civil.
Por outro lado, desde essa época e mais claramente a partir dos anos 90, uma
contradição se estabeleceu em relação a prática de projetos urbanos na cidade
do Rio de Janeiro: enquanto a área central passaria a ser objeto de uma série de
56
Não à toa, o célebre Tom Jobim fazia, nessa época, a paródia de uma música que originalmente
cantava a bucólica Ipanema de meados do século XX para lamentar que "(...) Minha janela não
passa de um quadrado / A gente só vê Sergio Doutorado / Onde antes se via o Redentor (...)". A
construtora Sérgio Dourado era bastante atuante na cidade nos anos 70 e 80 e se caracterizava
pela produção em larga escala, baseada na reprodução de um padrão de construções, que não
valorizava o projeto arquitetônico.
57
Em entrevista publicada em: CAPÍTULOS da memória do urbanismo carioca: depoimentos ao
CPDOC/FGV/Américo Freire e Lúcia Lippi Oliveira, organizadores. Rio de Janeiro: Folha Seca,
2002. 232p. il.
117
projetos que, de diferentes modos, se apresentavam como alternativas para sua
revitalização urbana58, a região da Barra da Tijuca continuaria sendo beneficiada
por sucessivos investimentos públicos e mantendo-se, ainda hoje, como a área de
atuação privilegiada do mercado imobiliário formal.
58
Adota-se o termo revitalização urbana como um termo genérico, que indica a realização de
intervenções urbanas visando à transformação de uma determinada área já construída. O
conteúdo ideológico desse termo, assim como de outros de sentido mais ou menos similar
(regeneração urbana, reabilitação urbana e outros "re") não está propriamente em questão.
118
O caráter pioneiro da experiência do Corredor Cultural, como ação concreta em
oposição à lógica do urbanismo funcionalista, faz dela um marco a partir do qual
se pode referenciar a prática de projetos urbanos no Rio de Janeiro. Do ponto de
vista conceitual, o projeto introduz no contexto carioca, e mesmo brasileiro, a
noção de preservação de conjuntos construídos não pelo valor estilístico-
arquitetônico de obras exemplares, mas pelas ambiências que configuram e pela
importância histórica para as diferentes formas de expressão cultural.
Mas Pinheiro (2002) observa que tanto a legislação quanto projetos que existiam
para a área central eram tão radicais que, paradoxalmente, acabaram por garantir
a preservação de certos conjuntos urbanos, pois eram, na verdade, irrealizáveis.
Dessa forma, pode se dizer que, de algum modo, legislação e projetos que sequer
consideravam o valor histórico e cultural da área central, deram viabilidade a uma
política dirigida a espaços que haviam sobrevivido às grandes transformações
urbanas do século XX. Pinheiro explica que:
(...) Se, por um lado, ela [a legislação] liberava o gabarito das edificações, por
outro, os PAs, isto é, os Planos de Alinhamento, eram tão absurdos, alargavam
tanto as ruas, que o que sobrava dos lotes não era edificável.
(...) Ao propor um plano desse tipo [avenida Norte-Sul, projetada por Reidy, que
atravessava o Centro], o próprio governo congelou a área, pois é muito difícil
vender um imóvel ameaçado de desapropriação. (PINHEIRO, 2002. p. 205).
119
Paralelamente, setores da cultura, da imprensa e a classe dos arquitetos, por
meio do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), reivindicavam a preservação do
centro histórico, fortalecendo o trabalho desenvolvido por técnicos da Prefeitura.
Ao mesmo tempo, o trabalho era legitimado e instigado pela Câmara Técnica
criada para o Corredor Cultural, que reunia personalidades reconhecidas da área
da cultura e que não pertenciam aos quadros da Prefeitura.
120
Estando ainda hoje em vigência, pode se dizer que o Corredor Cultural teve
impactos bastante imediatos, nos anos 80 e 90, mas também outros que vêm se
configurando ao longo do tempo. A efervescência atual da Lapa59, por exemplo, é
resultado também dessa ação iniciada já há cerca de três décadas, que ora
permitiu o surgimento de iniciativas empreendedoras de grupos sociais, artísticos
etc., ora ensejou novas ações governamentais. Não é o caso aqui de discutir ou
avaliar a gigantesca transformação ocorrida na Lapa nos últimos cerca de 15
anos e eventuais processos decorrentes, tais como elitização de espaços e,
possivelmente, de “gentrificação”. Interessa destacar que se trata de um
fenômeno impressionante cujas dimensões provavelmente não podiam ser
sonhadas, lá na década de 80, pelos precursores do Corredor Cultural, mas cujas
raízes estão justamente na compreensão de novos papéis para área central que
não são incompatíveis, pelo contrário, com as atividades de um centro de
negócios.
59
A Lapa é uma área do Centro da Cidade de tradição noturna, que ao longo de décadas
conheceu períodos de altos e baixos. Nos anos 80 e 90, a marca da noite da Lapa era a
diversidade social e cultural. Ao longo do dia, se fortalecia como alternativa de localização
comercial próxima ao centro e, claro, muito mais barata.
60
O Plano Diretor de 1992 definia Área de Proteção do Ambiente Cultural – APAC como sendo
área de domínio público ou privado “que apresenta relevante interesse cultural e características
paisagísticas notáveis, cuja ocupação deve ser compatível com a valorização e proteção da sua
paisagem e do seu ambiente urbano e com a preservação e recuperação de seus conjuntos
urbanos”.
121
e era nessa perspectiva reformadora que se concebia a prática de projetos
urbanos, ainda que esse termo nem mesmo fosse utilizado.
Até 1965, a Cohab tinha construído os conjuntos Vila Kennedy, Vila Aliança e Vila
Esperança, situados na periferia da cidade, com o objetivo de abrigar as famílias
removidas das favelas. O processo de remoção causou grande repercussão e
resistência da população favelada, embora tenha contado com apoio das camadas
médias e do setor imobiliários, diretamente beneficiado por algumas remoções.
(CARDOSO, 2007, p. 224-225).
122
Na década de 1960, a política de segregação espacial da cidade promovida pelos
governos Federal e da Guanabara tomou proporções inéditas, com a remoção de
favelados das áreas centrais da cidade, particularmente na valorizada Zona Sul, e
a consequente transferência desses para terrenos vazios na periferia, a algumas
dezenas de quilômetros do centro da cidade e de seus antigos empregos.
(...)
Sobre o mesmo tema, Santos (2009) trata da tolerância das favelas na cidade
durante décadas - garantindo mão de obra barata perto do local de trabalho - e
das razões que levaram à implementação da política de remoções iniciada nos
anos 1960. Tanto a omissão em relação à formação desses grandes
assentamentos populares como a violência social e simbólica das remoções são
ilustrativas da dimensão estrutural da negligência urbanística que atravessa a
história da cidade do Rio de Janeiro.
Lá pelo início dos anos 60, as condições concretas vão mudar. As pressões do
Capital vão se fazer sentir de forma crescente. As favelas não estão mais nas
desvalorizadas entrelinhas urbanas. A pequena capacidade de expansão dos
investimentos urbanísticos na cidade vai obrigar a um superuso dos espaços que
já concentram as melhores condições. Neste quadro, as favelas perdem sua
funcionalidade: os terrenos que ocupam passam a valer demais para o uso que
têm. São agora cobiçados para a expansão das atividades produtivas, ou para
123
serem comercializados para provimento de moradias das classes mais abastadas,
ou para desenvolvimento de equipamentos e infraestrutura em áreas muito
valorizadas e já congestionadas. (SANTOS, 2009b: p.11).
No final dos anos 70, já no período de abertura política "lenta, gradual e segura",
o desgastado governo federal retoma a ideia de urbanização de favelas, diante da
fracassada Política Nacional de Habitação, incapaz de "ampliar a oferta de
unidades habitacionais de modo a atender a demanda das populações de baixa
renda na forma, no ritmo e na escala que se faziam necessários" (IBAM, 2002,
p.7).
124
Em 1979, o BNH cria o PROMORAR, programa que realizaria ações de
urbanização de favelas e que financiaria o Projeto Rio (1979), na favela da Maré,
localizada junto às margens da Baía da Guanabara. Ainda que possa ter sido
motivado muito mais pela intenção de "reconquistar o apoio dos favelados ao
Regime Militar, que sofria enormes críticas quanto à sua política social"
(GONÇALVES, s/d, p.12), o projeto representa uma ação importante, num
momento em que se iniciava o processo de redemocratização que descortinaria
um novo ambiente político para se pensar a ação em favelas e as questões
sociais de modo geral. No inícios dos anos 80, como destacam Leitão, Barboza e
Delecave "observa-se um novo discurso político, que considera necessário
resgatar a dívida social existente junto às comunidades faveladas" (LEITÃO;
BARBOZA; DECALAVE, 2014, p.3).
125
2014). As ações de reflorestamento tornaram-se uma marca importante do
programa, que já na final do década começa a dar lugar a outras iniciativas.
126
com mais de 20.000 habitantes61. De acordo com a Constituição Federal de 1988,
o plano diretor é entendido como "instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana".
Pelo disposto nos artigos subsequentes, a construção acima de uma vez a área
do terreno poderia ser autorizada "mediante pagamento, observado o Índice de
Aproveitamento do Terreno - IAT e os demais parâmetros construtivos".
61
O artigo 182 da Constituição estabelece que: "O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal,
obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana". Tal dispositivo é controverso, uma vez que não fazia
parte das demandas da reforma urbana incorporadas à Constituição. Para vários autores, é visto
como artifício condicionar a um instrumento esvaziado pelas experiências anteriores e de caráter
essencialmente tecnocrático até então, a implementação dos dispositivos que buscavam interferir
na dinâmica urbana na perspectiva do direito à cidade. Ainda assim, os setores ligados à reforma
urbana passaram a ter a elaboração desse instrumento como bandeira. Porém, num esforço de
transformar esse instrumento de caráter estritamente técnico em instrumento da gestão
democrática da cidade, que regulamentaria em cada município os mecanismos para
implementação da reforma urbana de acordo com a realidade local.
62
Cabe mencionar que o Projeto de Lei 181/1989, apresentado pelo Senador Pompeu de Souza,
tramitou por 12 anos no Congresso Nacional até ser aprovado em 2001 como Estatuto da Cidade.
127
Complementando as condições de aplicação do solo criado, a lei definia a fórmula
de cálculo da contrapartida e que os recursos auferidos seriam aplicados no
Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano e destinado à "execução de
projetos de construção de habitações para a população de baixa renda e de
implantação de sistema de esgotamento sanitário nas comunidades por esta
ocupadas."
O plano trazia ainda outros instrumentos que, juntamente com o solo criado,
buscavam estabelecer novas formas de regulação urbana que não apenas o
zoneamento tradicional: operação interligada; urbanização consorciada; e imposto
progressivo sobre a propriedade territorial urbana. O único a ser efetivamente
aplicado, durante um determinado período, foi a operação interligada, que previa
a possibilidade de alteração de parâmetros urbanísticos para viabilizar
determinados projetos mediante pagamento de contrapartida pelo interessado. O
instrumento foi objeto de críticas de diversas naturezas, tanto em relação ao
impacto urbanístico, como aos valores de contrapartida ou aos procedimentos de
aprovação. Por outro lado, Nacif Xavier (2011) aponta que o instrumento era uma
possibilidade, ainda que limitada, para lidar com problemas do cotidiano de
aplicação de uma legislação urbanística carregada, numa época de
128
transformações constantes. Entretanto, sua aplicação acabou se tornando
controvertida.
63
Em 1988 houve até mesmo a realização de um plebiscito sobre a emancipação da Barra da
Tijuca, proposta que acabou derrotada, permanecendo essa região no Município do Rio de
Janeiro.
129
contra a remoção de favelas e por uma política de regularização e urbanização
dos assentamentos precários, o que ratifica, em lei, a postura sobre o tema
construída na década de 1980, oposta à política de remoções dos anos 1960 e
70. E ainda regulamenta a aplicação do solo criado no município, bem como
prevê a utilização do IPTU progressivo. Dois instrumentos que sinalizavam para a
necessidade de adoção de medidas de combate à especulação imobiliária, mas
que acabariam não sendo implementados.
Em síntese, apesar de avanços dignos de nota, pode-se dizer que o plano diretor
de 1992 é omisso quanto ao projeto de cidade a ser implementado. Não define
ações estruturantes para favorecer ou inibir tendências do processo de
urbanização, bem como não faz qualquer referência a uma política de projetos
urbanos que mais claramente pudesse orientar investimentos na cidade. Sua
lógica segue sendo essencialmente a de regulação pela legislação urbanística e
prevê que normas específicas para conjuntos de bairros seriam elaboradas
posteriormente, de modo a detalhar a legislação do geral para o particular, por
meio dos Projetos de Estruturação Urbana (PEUs), figura que havia sido
introduzida na legislação carioca pelo Plano Urbanístico Básico (PUB-Rio) da
década de 70. Aposta na revisão da legislação urbanística por partes e ao longo
do tempo, o que só resultaria em mais sobreposição de normas, sem que se
rompesse com a ordem funcionalista vigente à época e que perdura até hoje.
130
candidato oficial na eleição de 1996. Ao longo dos anos 1990, esses dois
personagens são os porta-vozes de um novo discurso sobre a cidade que
preconizava: o combate à desordem urbana; a inserção da cidade no circuito das
"cidades globais"; a planificação estratégica; as parceiras público-privadas; a
flexibilização da legislação urbanística.
64
Portas (2000) utiliza a expressão "gerenciamento negocial" para designar um tipo de processo
que na sua opinião deve ser integrado ao planejamento para "orientar a iniciativa e o investimento
privado para áreas de interesse coletivo, que tradicionalmente não lhe caberia assegurar,
oferecendo em troca garantias de edificabilidade, fiscais e outras".
131
O arquiteto Luiz Paulo Conde, renomado profissional, ex-presidente do
Departamento do Rio de Janeiro do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e
Diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (FAU/UFRJ) dizia que diante da "permissividade e do abandono do
espaço público" que reforçavam o "esvaziamento político-econômico" da cidade,
era necessário "agir de imediato" (CONDE: 2003, p.230). Ele era crítico do plano
diretor (e o Rio de Janeiro havia aprovado o seu em 1992, que incorporava, ao
menos parcialmente, reivindicações dos movimentos sociais pela reforma urbana)
como orientador da política urbana, pois considerava esse um instrumento
estático. Agir de imediato significava, então, a intervenção direta no espaço
urbano, a constituição de um "urbanismo de projetos".
No primeiro ano de seu governo (em 1993) César Maia já dava início a três
projetos que seriam marcantes em sua gestão: o projeto Teleporto, na área
central; a Linha Amarela, via expressa de ligação entre Aeroporto Internacional e
Barra da Tijuca, cruzando o subúrbio; e o Projeto Rio Cidade, um programa de
intervenções urbanas nos eixos comerciais de vários bairros da cidade. O quarto
grande programa seria o Favela Bairro, iniciado no ano seguinte e que alcançou
maior impacto e repercussão na gestão do prefeito Luiz Paulo Conde, entre 1997
e 2000.
65
Um conjunto de vias estruturantes para a cidade foi proposta no âmbito do Plano Doxiadis, da
década de 1960 e mantido em planos rodoviários posteriores. As vias foram chamadas de linhas
policromáticas, por se cada uma designada por uma cor (Linha Vermelha, Linha Azul, Linha
Marrom, Linha Verde e Linha Amarela).
132
participação decisiva na concepção e implementação dos dois, a suceder o
primeiro no cargo de prefeito66.
66
Importante ressaltar que Luiz Paulo Conde não ingressa na gestão de César Maia como homem
forte a ponto de se supor que poderia vir a ser o candidato oficial para a sucessão. Apesar de seu
enorme prestígio profissional, não era uma figura pública reconhecida pelo eleitorado. Mas se
fortalece ao longo do gestão, exatamente por dar o tom do discurso e apresentar resultados na
cidade, e acaba se lançando candidato a prefeito em 1996. Nessa época, vale lembrar, não
vigorava ainda o instituto da reeleição, aprovado apenas em 1997. Ao longo de seu mandato,
Conde rompe politicamente com Maia e os dois acabam se enfrentando na disputa de 2000. A
reeleição, almejada por Conde, já era permitida no país, mas foi César Maia que se saiu vitorioso
e permaneceria no cargo de prefeito por mais dois mandatos, de 2001 a 2008.
133
incorporados - e assim legitimados (COMPANS, 2005) - ao Plano Estratégico,
cujo documento final ficaria pronto em 1995.
Embora o prefeito dissesse, à época, que não se tratava nem de um plano político
nem de um plano de governo, o Plano Estratégico se configurou como documento
de forte conteúdo simbólico, em torno do qual se articulou o empresariado para
estabelecer uma imagem de futuro para o Rio de Janeiro. Mesmo sem ser
aprovado por lei, o Plano Estratégico contribui para o esvaziamento do Plano
Diretor, uma vez que se apresentava como instrumento de planejamento
inovador. Nesse contexto, com a gestão voltada sobretudo para a prática de
projetos, os mecanismos que operam a construção cotidiana da cidade -
legislação urbanística e licenciamento - permaneceram relativamente intocados,
mantendo-se, por trás de um certo glamour das novas intervenções urbanas,
práticas antigas.
Uma das mudanças que eles promoveram se refere à participação dos arquitetos
não funcionários públicos na concepção e desenvolvimento dos projetos de
intervenção urbana, por meio da terceirização dessa atividade. Instaurava-se um
formato de trabalho novo, tanto para o setor público como para as empresas de
134
arquitetura, o que possibilitou, para a administração municipal, a elaboração de
diversos projetos simultaneamente, questão crucial para o sucesso dos dois
programas. Ao mesmo tempo, se abria um novo mercado para as empresas de
arquitetura junto ao setor público e os arquitetos assumiam um novo
protagonismo na prática de projetos urbanos, contribuindo, também, para maior
visibilidade dos programas.
De outro lado, o projeto é valorizado como instrumento técnico que deve orientar
a execução das obras. Num país em que a contratação de obras públicas sem
projeto completo (por vezes sem projeto algum) previamente definido é (ainda
hoje) prática corrente, a defesa do projeto tinha também uma dimensão política
relevante e cara à categoria dos arquitetos e urbanistas.
A seleção, por concurso público organizado pelo IAB, de equipes para elaboração
dos projetos é outro aspecto importante na estruturação e implementação inicial
desses programas. No Rio de Janeiro e no resto do Brasil, essa modalidade de
licitação não era comum para contratação de projetos de intervenção urbana,
embora houvesse o precedente recente (1990) do concurso para o projeto Rio
Orla, que reconfigurou a orla marítima do Leme ao Pontal (zona sul, Barra da
Tijuca e Recreio dos Bandeirantes).
O concurso para o Rio Cidade (1993) provavelmente terá sido o primeiro certame
dessa natureza que teve vários vencedores simultaneamente. Foram habilitadas
17 equipes para desenvolverem os projetos da primeira fase do programa. Além
dessa particularidade, destaca-se que foi um concurso em que os participantes
deveriam apresentar propostas metodológicas para elaboração de projetos de
intervenção urbana. Era algo diferente do usual, que indicava certa inexperiência
dos arquitetos com o tema (reconfiguração de espaços públicos) e sugeria a ideia
135
de que os projetos propriamente ditos deveriam ser construídos num processo de
trabalho que envolvesse diferentes agentes sociais e por essa razão não
poderiam ser eles próprios objeto do concurso. Curiosamente, entretanto, não é
possível perceber em que medida os projetos executados resultam de
abordagens metodológicas supostamente distintas. Parecem muito mais o
resultado de decisões dos arquitetos, recuperando a velha imagem do "arquiteto-
autor", com suas idiossincrasias e, eventualmente, gestos arquiteturais banais:
Para a segunda fase do Rio de Cidade foi realizado novo concurso (1997) que
selecionou, dessa vez, 23 equipes, ainda que nem todos os projetos tenham sido
executados. O concurso foi, novamente, de metodologia, porém as equipes
participantes tinham que apresentar soluções para alguma das áreas previstas no
edital. Nesse momento, o formato se mostrou no mínimo confuso, pois, de fato, a
primeira fase do programa, após 15 projetos executados, já tinha estabelecido a
metodologia (ou pelo menos o escopo dos trabalhos) a ser seguida. O Favela
Bairro, por sua vez, teve continuidade e foi ampliado com viabilização de
empréstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o que permitiu a
136
realização de número muito maior de projetos, mas sem novos concursos. Optou-
se, a partir de então, por selecionar as equipes por processos de licitação mais
convencionais, do tipo "técnica e preço", que normalmente exigiam experiências
anteriores similares, reduzindo, provavelmente, o número de arquitetos/equipes
aptos a serem habilitados.
O programa Rio Cidade adotou como lema "o urbanismo de volta as ruas"
(IPLANRIO, 1996), buscando "afirmar a importância das ruas para o equilíbrio da
vida social nas cidades e, em consequência, trabalhar para a sua reabilitação".
Apresentava-se como contraposição aos princípios doutrinários do urbanismo
moderno que prevaleceram desde os anos 1940/1950 e pregavam o
desaparecimento da "rua corredor" (LE CORBUSIER, 2000. p.68) e a demolição
do "centro das grandes cidades" (LE CORBUSIER, 2000. p.81) ou seja, da cidade
existente. Contrapunha-se também ao planejamento urbano tradicional, baseado
em planos que teriam a tendência de "tornarem-se um fim em si mesmo". O
programa que privilegiava a ação concreta na cidade teria sido, então, uma
alternativa em que
137
politicamente inviáveis, as rupturas traumáticas, as grandes "cirurgias" e os altos
custos sociais do "passar a borracha" sobre o existente para a construção do novo
(IPLANRIO, 1996. p.25).
67
De acordo com informação publicada pelo Jornal do Brasil em 11/10/1997, o custo da
construção da Linha Amarela foi de R$348 milhões, ainda que tenha contado com participação,
minoritária, de recursos da empresa vencedora da concessão da via. A primeira fase do programa
Rio Cidade teve orçamento de R$200 milhões (IPLANRIO, 1996) e do Favela Bairro U$300
milhões (PROAP I / BID) que à época correspondia a mais ou menos R$300 milhões.
138
É verdade que as obras realizadas resultaram em espaços públicos, em geral, de
melhor qualidade. Mas apesar de toda a propaganda em torno do Rio Cidade - de
acordo com seus promotores se tratou de "uma inadiável operação de resgate da
avariada imagem carioca: a de eterna Cidade Maravilhosa" (IPLANRIO, 1996.
p.24) - no fundo, tratava-se um programa de intervenções de caráter meramente
local. É possível argumentar que o programa não tinha objetivo de mudar, intervir,
na estrutura da cidade, tendo como meta a qualificação do espaço público, ou
melhor, de alguns espaços públicos e nesse sentido teria sido exitoso. Mas outra
abordagem possível, é que o programa introduz uma lógica de ações
pulverizadas que dão sensação de que a cidade está em plena transformação ao
passo que estruturalmente pouco se está mudando.
68
Sérgio Magalhães, arquiteto e Secretário Municipal de Habitação nas gestões César Maia e
Conde. Esteve à frente da estruturação da secretaria, a partir de 1994, e sua indicação ao cargo
reforçou politicamente Luiz Paulo Conde, com quem tinha já grande vinculação.
69
De acordo com o autor, o texto original foi apresentado no Seminário Nacional sobre Habitação,
no Rio de Janeiro, em 1996.
70
Ainda que se possa dizer que o financiamento do programa pelo BID tenha sido uma ação do
organismo internacional para demonstrar sua ação na área social, isso não diminui os resultados
do Favela Bairro.
139
Como já descrito, nos anos 1980 se consolida o princípio da não remoção de
favelas, o que representava à época importante conquista da cidadania, num
momento de redemocratização do país. O Favela Bairro ratifica esse princípio
com uma política de urbanização, mesmo sendo bastante limitado quanto à
regularização fundiária.
Além da dimensão assumida pelo Favela Bairro - ampliado em 2000 com PROAP
II - e do envolvimento de empresas de arquitetura terceirizadas para elaboração
dos projetos (e também por causa disso) o programa avançou no entendimento
do conteúdo do projeto urbanístico em favela naquele momento. Ainda que
experiências de urbanização de favelas tenham sido realizadas anteriormente
(Brás de Pina, Projeto Rio, Pavão Pavãozinho etc.) o Favela Bairro consolida o
que a partir dele pode ser considerado como escopo mínimo de projetos desse
tipo. Nesse sentido, destaca-se que o objeto de cada projeto era a favela como
um todo (pelo menos no caso das de médio porte, que eram as atendidas pelo
programa). O plano de intervenções deveria, então, resultar da compreensão da
estrutura da favela, suas diferenças internas e relação com o entorno. E, de outro
140
lado, o projeto urbanístico deveria ser pensado de forma integral, envolvendo
infraestrutura, redução de riscos, espaços públicos, equipamentos comunitários, o
que representava um avanço em relação às ações fragmentadas dos períodos
anteriores que muitas vezes favoreciam à política da "bica d'água"71.
Pode-se argumentar que sem o Favela Bairro e sem o Pouso72 teria sido pior, o
que, certamente, é verdade. Vial e Cavallieri (2009) argumentam, com base em
estudos sobre área territorial ocupada por favelas de mesmo porte, verificada a
partir de ortofotos do município, que entre 1999 e 2008 as "favelas urbanizadas se
expandiram, proporcionalmente, cerca de quatro vezes menos do que as não
urbanizadas" (VIAL; CAVALLIERI, 2009. p.4). E mais, que as favelas que tiveram
Pouso apresentaram expansão horizontal menor do que as que não receberam
essa presença institucional após as obras. Os dados são positivos e indicam um
efeito claro da política de urbanização, porém não abrangem a expansão vertical,
71
Expressão que era comumente utilizada na crítica a políticas clientelistas que por muito tempo
eram as únicas (fora as de remoção) para assentamentos de baixa renda.
72
Posto de Orientação Urbanística e Social (ver capítulo 2).
141
que parece ser um fenômeno importante em muitas favelas, mesmo aquelas
urbanizadas e que contam com atuação do Pouso.
Teleporto, Projeto SA's, Enseada da Gamboa, Frente Marítima, Píer Mauá, dentre
outros, ainda que não tenham sido efetivamente implementados, introduzem um
novo tipo de projeto urbano para a área central carioca. Diferentemente do
Corredor Cultural, que tinha como foco a preservação de conjuntos urbanos e se
desdobrou em diversas ações pontuais de melhorias nos espaços públicos e em
edificações ou monumentos históricos no Centro (MAGALHÃES, 2001), esses
outros projetos propõem o redesenho de grandes áreas e abrangem também os
bairros pericentrais.
142
reaproveitamento de espaços que perderam funções, se deterioraram e, em
alguns casos, foram descaracterizados por intervenções urbanísticas mais
drásticas.
Desses, o Teleporto foi o primeiro projeto de grande porte a ser lançado, ainda no
primeiro ano do mandato de César Maia (1993). Do ponto de vista urbanístico, era
um projeto de renovação urbana tradicional - ou seja, que pressupunha a
demolição do existente para construção do novo. Abrangendo uma área de cerca
de 22 ha, junto ao Centro Administrativo da Cidade Nova (Prefeitura do Rio),
promoveu a demolição de antigos sobrados para viabilizar novo padrão de
ocupação urbana, em localização privilegiada da área central. Foi prevista a
construção de mais de 400 mil m2 de escritórios, comércios, hotéis, para a
instalação de grandes empresas e companhias de serviços que se beneficiariam
da moderna infraestrutura de comunicação que seria ali instalada. No discurso, se
tratava de um projeto que permitiria as condições de integração do Rio de Janeiro
com o mundo, credenciando seu acesso ao círculo das "cidades globais". No
entanto, apesar de todos os investimentos realizados na preparação da área, um
143
único edifício foi erguido (em 1994) passando ele próprio a ser reconhecido como
o "Teleporto".
Ainda na gestão César Maia, outro grande projeto começou a ser a desenvolvido,
mas ganharia expressão realmente na gestão de Luiz Paulo Conde. Trata-se do
Projeto SAs, que acaba por incorporar o perímetro designado para o Teleporto e
lançar diretrizes para o redesenho urbano de toda a área da Cidade Nova,
Estácio, até a Praça da Cruz Vermelha.
144
parece ainda mais acentuada pelo fato de haver uma concentração expressiva do
setor imobiliário na região da Barra, onde há um vasto estoque de terras a ser
explorado e poucas restrições à expansão desse mercado.
Com o retorno de César Maia em 2001, agora como adversário de Luiz Paulo
Conde, o Projeto SAs perdeu relevância e foi sendo abandonado com o tempo,
em razão também da priorização dada à área portuária. No entanto, atualmente é
justamente na área objeto de preocupação do Projeto SAs, entre o Centro
Administrativo e a Praça da Cruz Vermelha - e poderíamos estendê-la até a Praça
XV - que vêm sendo localizados vários dos empreendimentos mais importantes
da área central do Rio de Janeiro desde meados dos anos 2000, mas sem
estarem pautados por um projeto urbano claro.
Ao longo dos anos 1990, foram também propostos projetos para São Cristóvão e
área portuária que, embora não implementados (Arena Quinta da Boa Vista,
Enseada da Gamboa, Píer Mauá), indicavam áreas bem localizadas da cidade,
em torno do Centro, que poderiam ser objeto de intervenções urbanísticas, numa
visão ampliada da área central.
Figura 15. Projetos urbanos na área central nos anos 1990 (exemplos). Arena multiuso em
São Cristóvão, Projeto Eneada da Gamboa e Projeto Píer Mauá, projetos não executados. Fonte:
Barandier, 2003.
74
Trabalho elaborado pela Cooperativa de Profissionais do Habitat para a Prefeitura da Cidade do
Rio de Janeiro.
145
tendo o estudo desdobrado em outras ações tal como indicado ser possível. Outra
iniciativa importante foi o Programa Novas Alternativas, ainda em andamento, que
tem por objetivo a "recuperação e reaproveitamento de imóveis em mal estado,
subutilizados, ruínas e lotes vazios contribuindo para romper com o quadro de
estagnação e degradação de áreas importantes para a cidade"75. No âmbito do
programa foram implementados alguns projetos de reabilitação de cortiços, de
intervenção em sobrados em ruínas para produção de unidades habitacionais e
outras iniciativas. Apesar dos cerca de vinte anos de vigência e do reconhecido
valor de promover o uso habitacional em bairros centrais associado à
recuperação e valorização do patrimônio histórico edificado, o programa tem
números modestos quanto às realizações. Praticamente, continua sendo uma
ação de caráter experimental, o que não deixa de ser revelador das dificuldades
de superação dos entraves para se produzir habitação, ainda mais para baixa
renda, em áreas centrais.
75
Definição utilizada pelo gerente do programa, arquiteto Ahmed Nazih, em apresentação
realizada no âmbito do Projeto Moradia, Instituto Pólis. Disponível em:
<http://www.moradiacentral.org.br/pdf/apr_sp_Rio_NovasAlternativas_Nazih.pdf>. Acesso em:
17/05/2015, às 22:38h.
146
dinâmica, o que é ainda mais expressivo quando se trata da área central.
(BARANDIER, 2006. p.165).
76
A principal via da região que começa com no túnel da Estrada Lagoa-Barra e atravessa os
bairros da Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes em paralelo à praia.
147
3.4. Terceira geração de projetos urbanos (2000 a ): urbanismo genérico
Nesses quatro mandatos (dois de César Maia e dois de Eduardo Paes, sendo o
segundo ainda em andamento) se configura o que designamos como terceira
geração de projetos urbanos. Se não chega a ser uma ruptura com a geração de
projetos anterior, dos anos 1990, claramente há mudanças significativas.
Sem a formulação intelectual de Conde, César Maia volta sua ação para duas
direções que abrangem referenciais relativamente genéricos em relação à cidade.
Primeiro, as candidaturas a sede de grandes eventos esportivos internacionais, o
que parece ter se tornado quase uma obsessão dos governantes cariocas e que
acabou tendo êxito (no sentido em que as candidaturas foram efetivamente
acolhidas). Em menos de dez anos, o Rio de Janeiro receberia os mais
importantes deles, inclusive os Jogos Olímpicos, que é, certamente, o de maior
impacto para a cidade.
O outro foco seria a revitalização da área portuária, que sempre pareceu mais
uma prioridade do então Secretário de Urbanismo Alfredo Sirkis, que do próprio
prefeito77. Tanto que em oito anos à frente da prefeitura, o projeto não foi
alavancado. No entanto, o Prefeito Eduardo Paes, ao assumir o cargo em 2009,
decidiu por efetivamente priorizar a área portuária, lançando já no seu primeiro
77
Isso talvez explique, por exemplo, a razão pela qual não consta nenhuma mensagem do
Prefeito, nem mesmo protocolar, no livro da grande exposição inaugurada em dezembro de 2001,
ainda no primeiro ano de mandato, no Centro de Arquitetura e Urbanismo da Prefeitura. A
exposição lançava a discussão sobre o Porto do Rio, com estudos desenvolvidos por técnicos da
própria prefeitura, profissionais e acadêmicos, bem como apresentava projetos de revitalização de
áreas portuárias pelo mundo.
148
ano de governo a mega operação urbana "Porto Maravilha" que está em
andamento (analisada nos seus aspectos urbanísticos no capítulo 4).
78
Ver apresentação do Catálogo da Exposição Porto do Rio. Centro de Arquitetura e Urbanismo
do Rio de Janeiro (PCRJ), 2001. Porto do Rio (Catálogo da Exposição)
79
O alinhamento político entre Prefeito, Governador e Presidente foi durante bastante tempo
saudado pelos governantes como algo importantíssimo para o Rio de Janeiro, o que mais parece
revelar a fragilidade das relações republicanas no país. Numa outra perspectiva, pode se dizer que
esse alinhamento político inédito tem permitido que os governos operem como mais gostam, sem
oposição e, portanto, com pouco ou nenhum debate com a sociedade.
149
3.4.1. O foco sobre objetos arquitetônicos
Ao longo de seu novo mandato como prefeito, iniciado em 2001, César Maia
lança cinco projetos principais que compunham o que foi chamado de "Pentágono
do Milênio". Eles configurariam um "sistema de objetos" visando à conformação
de uma nova imagem da cidade (RIBEIRO, 2009). São eles: o Centro Luiz
Gonzaga de Tradições Nordestinas, em São Cristóvão, ocupando o antigo
Pavilhão de São Cristóvão (executado); a Cidade do Samba, na Gamboa
(executado); a Cidade da Música (atualmente, Cidade das Artes), na Barra da
Tijuca (executado); o Museu Guggenheim, no Píer Mauá (não executado); e o
Estádio Olímpico João Havelange (atualmente Nilton Santos, mas mais conhecido
como "Engenhão"), no Engenho de Dentro (executado, no âmbito das obras
realizadas para os Jogos Panamericanos de 2007).
150
inscrito nos esforços da prefeitura em nome da revitalização da área portuária, o
empreendimento, que ocupou um dos grandes terrenos vazios ali disponíveis, é
fechado para o exterior. Do ponto de vista da solução físico-espacial adotada, é
completamente voltado para si mesmo. A "Cidade da Música"80, construída na
Barra da Tijuca, também se configura como um objeto em si mesmo, porém se
insere na paisagem como um monumento, um tanto quanto perdido entre as vias
de grande porte que o circundam, porém com uma arquitetura mais sofisticada do
que o que se vê na "Cidade do Samba". Em comum, esses dois projetos se
apresentam como "cidades temáticas" e coincidentemente ou não acabaram se
constituindo como espaços mal integrados ao meio urbano onde estão
localizados, ou melhor, mal integrados à cidade real.
80
Atualmente chamado de "Cidade das Artes".
81
Tanto que agora, para os Jogos Olímpicos, está se fazendo o tratamento do entorno do estádio
do Engenhão, ação que integra o chamado legado olímpico, mas que evidentemente deveria ter
acompanhado a própria construção do estádio na época dos Jogos Panamericanos, em 2007.
82
O que se realizou foi praticamente a renovação do estádio. Em meio a muitas polêmicas, a obra
alterou completamente a configuração interna do estádio, mantendo a estrutura exterior, com
algumas intervenções, como novas rampas de acesso.
83
Em 2008, a equipe de consultores do Atelier Parisien de l'Urbanisme (APUR) propunha, no
âmbito da cooperação técnica entre a Prefeitura do Rio de Janeiro e a Prefeitura de Paris,
justamente uma operação urbana mais ampla motivada pela reforma do Maracanã, que previa o
tratamento do entorno e a integração com o bairro de São Cristóvão, situado do outro lado da linha
do trem. A proposta, porém, jamais foi adiante.
151
no local novas atividades que pudessem se sobrepor à tradicional "feira dos
nordestinos".
O projeto para o Museu Guggenheim na área portuária, por sua vez, é o oposto.
Mesmo sem ter sido executado, é o projeto que marca decididamente o tipo de
intervenção urbana centrada no objeto arquitetônico e, nesse caso como em
alguns outros subsequentes (entre eles o da Cidade da Música), também no
próprio arquiteto. Sem entrar aqui no mérito da polêmica sobre a atuação de
arquitetos estrangeiros no Brasil, o projeto elaborado pelo francês Jean Nouvel
introduz um fato novo, pelo menos na história recente do Rio de Janeiro: a
contratação de um arquiteto de renome internacional para projetar uma grande
obra. Mais do que a contratação de um arquiteto, trata-se da contratação de uma
grife da arquitetura. Nesse sentido, independentemente da eventual qualidade do
projeto, do ponto de vista da estratégia urbana adotada, o projeto se torna algo
menos importante. O que interessa mais é o efeito midiático que ele produz, o
"marketing urbano".
152
Nouvel, Piano ou Hadid. Assim, paradoxalmente, se operam uma certa
homogeneização e mundialização de modos fazer a cidade, e uma banalização da
grife. (MOLINA, 2014. p.4, tradução nossa).
Mesmo sem ter sido construído, o projeto do Museu Guggenheim abriu caminho
para outras iniciativas similares na cidade do Rio de Janeiro que reforçam e
consolidam a tendência de hiper valorização do objeto arquitetônico por meio da
proposição de novos ícones urbanos assinados por arquitetos de prestígio
internacional. Enquanto o projeto do Museu Guggenheim era alvo de todas as
críticas, a Prefeitura do Rio dava início ao projeto da "Cidade da Música"
(inaugurada em 2008 e atualmente chamada de "Cidade das Artes"), com o
arquiteto Christian de Portzamparc. Em seguida, foi lançado, pelo governo do
estado, o projeto para a nova sede do Museu da Imagem e do Som (MIS)84, ainda
em construção, na praia de Copacabana, de autoria de Diller Scofidio + Renfro. E
mais recentemente, o projeto do Museu do Amanhã, também em construção,
concebido por Santiago Calatrava, no mesmo Píer Mauá para onde havia sido
projetada a filial do Museu Guggenheim por Jean Nouvel.
84
Neste caso o projeto foi selecionado por um concurso de ideias promovido pelo Governo do
Estado em parceria com a Fundação Roberto Marinho.
85
Ver sítio da Cidade das Artes na internet:
<http://www.cidadedasartes.org/institucional/index/cidade-das-artes>. Acesso em 17/04/2015, às
09:21h.
86
Ver sítio do MIS na internet: <http://www.mis.rj.gov.br/arquitetura/>. Acesso em 17/04/2015, às
9:11h.
153
do Amanhã é identificado como "novo marco na arquitetura do Rio de Janeiro"87.
Da mesma forma, o AquaRio (aquário em construção na área portuária) também
se apresenta como "um novo ícone para o Rio de Janeiro"88, embora não seja
projeto de uma estrela da arquitetura internacional89. Claramente, é um período
em que cresce o desejo de construção de novos "ícones urbanos", justamente
porque na concepção urbanística predominante, o ambiente construído passam a
ser apenas pano de fundo de objetos arquitetônicos que marcarão a paisagem
urbana.
Figura 16. Arquitetura icônica na cidade do Rio de Janeiro. Cidade das Artes, na Barra da
Tijuca; Museu da Imagem e do Som, em Copacana; e ÁquaRio, na área portuária. Fontes:
http://www.archdaily.com.br/158494/cidade-das-artes-christian-de-portzamparc
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/09/1346390-arquiteta-americana-apresenta-projeto-do-
museu-da-imagem-e-do-som-do-rio.shtml; http://www.aquariomarinhodorio.com.br/oprojeto.html.
87
Ver sítio do Museu do Amanhã na internet: <http://museudoamanha.org.br/arquitetura/edificio/>.
Acesso em 17/04/2015, às 09:28h.
88
Ver sítio do AquaRio na internet: <http://www.aquariomarinhodorio.com.br/index.html>. Acesso
em 21/04/2015, às 10:29h.
89
Nesse caso, é interessante que encontrar informações sobre o arquiteto (Alcides Horácio
Azevedo), que não é nenhuma estrela internacional, nem mesmo nacional, é até difícil.
154
3.4.2. Porto Maravilha e ausência de projeto para a área central
Desde os anos 1980, talvez até antes, sempre se falou muito do "esvaziamento"
da área central do Rio de Janeiro. Do ponto de vista populacional, sem dúvida, os
dados mostram a diminuição da população residente nos bairros centrais nos
anos 1980 e 1990, embora indiquem uma pequena reversão dessa tendência na
década de 2000. Do ponto de vista econômico, no entanto, a noção de
"esvaziamento" é relativa. Pode se falar, sim, do esvaziamento econômico e
político da cidade Rio de Janeiro (Andrade, 2009) o que há de ter produzido
efeitos sobre a área central. Mas se comparada com o restante da cidade, a área
central - e o centro especificamente - jamais perdeu sua posição dominante,
concentrando, à despeito do expressivo crescimento da Barra da Tijuca, o maior
estoque de unidades imobiliárias não residenciais da cidade e mantendo seu
caráter de centralidade metropolitana (IBAM, 2008).
Ainda assim, o espaço urbano central do Rio de Janeiro é marcado por "diferentes
situações de vazio urbano" que Borde classifica em três categorias principais: os
vazios estruturais, os vazios conjunturais e os vazios projetuais (BORDE, 2006).
Para a autora, os vazios estruturais dizem respeito a situações de obsolescência
de antigos espaços produtivos, como área portuária e áreas industriais. Os vazios
conjunturais englobam ruínas urbanas e edifícios que por razões diversas,
inclusive o próprio esvaziamento econômico da cidade, perderam seus usos,
ficando desocupados ou subutilizados. E os vazios projetuais referem-se "a
diferentes tipos de intervenção do Estado", que na área central em geral se
apresentam como áreas remanescentes de intervenções urbanas que não
alcançaram plenamente a "expectativa inicial de urbanização".
Várias dessas situações de vazio foram objeto de projetos urbanos nos anos
1990, que se não foram efetivamente implementados, ao menos propiciavam a
reflexão sobre formas de aproveitamento de espaços vazios ou subutilizados na
área central. Para Portas (2000) um dos legados da administração Conde era
justamente a diversidade de projetos propostos especialmente para a área central
na perspectiva de aproveitamento de vazios urbanos.
No entanto, nos anos 2000, a partir do novo mandato de César Maia, essa
diversidade de projetos dá lugar à priorização da área portuária e de algumas
ações pontuais (como o Centro de Convenções na Cidade Nova, o novo Circo
Voador na Lapa, a reurbanização da rua Riachuelo etc.). Ao mesmo tempo, se
observa o aumento da demanda por espaços corporativos por parte de grandes
155
empresas no Rio de Janeiro, que ao invés de confirmar o movimento em direção
à Barra da Tijuca, que marcara os anos 1990, resulta na busca por opções na
área central, em razão das melhores condições de infraestrutura ali encontradas.
Fortemente vinculado ao crescimento da economia do petróleo na cidade, esse
processo se manifesta tanto pelo lançamento de novas unidades imobiliárias,
como pelo "retrofit" de prédios antigos, sobretudo no próprio bairro Centro.
Surgem, ainda, lançamentos residenciais na área central, tanto na revalorizada
região da Lapa, como na região de São Cristóvão após a aprovação de nova
legislação urbanística em 2004.
90
De acordo com o projeto original do metrô, a linha 2 que vem do subúrbio e para na estação
Estácio, na área pericentral, deveria ser estendida até a Praça XV, no coração do Centro do Rio e
onde se localiza a estação das barcas que ligam a cidade a Niterói, do outro lado da Baía de
Guanabara. Apesar de obras realizadas nos anos 80, a implantação desse projeto foi interrompido
deixando incompleta a ligação entre a zona norte e o centro. Nos anos 90 e 2000, a expansão do
metrô privilegiou a zona sul e agora, mais recentemente, a Barra da Tijuca, levando a uma solução
muito particular de uma extensa linha de metrô, sendo desprezada qualquer ideia de constituição
de um sistema em rede.
156
Nesse contexto, a opção pela área portuária, gestada desde o início dos anos
2000 e que se viabiliza efetivamente com o lançamento da operação urbana Porto
Maravilha em 2009, deixa, na verdade, o restante da área central sem projeto. E
ao se abrir na área portuária a possibilidade de ocupação nos moldes propostos,
um dos cenários seria a própria transferência do centro da cidade (essa questão
será retomada no capítulo 4). Tal hipótese, embora pareça absurda, permeia o
próprio discurso de empreendedores imobiliários que estão atuando na renovação
da área portuária. Para Alvarenga91 (2014)
91
Ana Carmem Alvarenga é arquiteta e lidera, desde 2007, o escritório Tishman Speyer no Rio de
Janeiro, empresa que atua no setor de empreendimentos coorporativos, com projetos em
desenvolvimento na área portuária.
157
3.4.3. Grandes obras também em favelas e novamente as remoções
No ano 2000, último ano de mandato do Prefeito Luiz Paulo Conde, foi aprovado
o empréstimo do BID para a segunda fase do Programa Favela Bairro, o que
garantiu sua continuidade no novo mandato de César Maia iniciado em 2001.
Previsto inicialmente para ser executado entre 2000 e 2004, o PROAP II92 foi
estendido ainda até 2006, mas já demonstrando enfraquecimento do programa
que não teria, imediatamente, sua renovação junto ao organismo internacional.
O Favela Bairro tinha como foco de atuação as favelas de porte médio (entre 500
e 2500 domicílios)94 e os programas dele derivados, Bairrinho e Grandes Favelas,
os assentamentos de menos de 500 e mais de 2500 domicílios respectivamente.
O PAC direcionou a ação para os grandes complexos de favelas que, até por
suas dimensões, têm presença marcante na cidade. Diferentemente da
experiência do Favela Bairro, os projetos desenvolvidos no âmbito do PAC
promoveram grandes obras, configurando um novo tipo de intervenção em
favelas.
92
Programa de Urbanização de Assentamentos Populares do Rio de Janeiro. O PROAP I (1995-
2000) e o PROAP II (2000-2006) financiaram projetos e obras em favelas (Favela Bairro) e
loteamentos irregulares ou clandestinos, com recursos do BID e da Prefeitura Municipal do Rio de
Janeiro. Durante esse período, outras fontes de financiamento também participaram de ações em
favelas no Rio de Janeiro, como a Caixa Econômica Federal e União Europeia.
93
Os valores indicados dos investimentos foram extraídos da publicação do Ministério das
Cidades intitulada "Urbanização de favelas: a experiência do PAC" que descreve as ações em
cada área de intervenção, mas não incorpora o projeto para o Complexo de Manguinhos.
94
Destaca-se, entretanto, a Prefeitura viria a criar também dois outros programas, semelhantes ao
Favela Bairro para atuar também nas favelas de pequeno e grande porte: os programas
"Bairrinho" e "Grandes Favelas".
158
Apesar da grande visibilidade do programa Favela Bairro, pode se dizer que ela
estava mais relacionada à realização de várias intervenções simultaneamente e o
reconhecimento que, com ele, a política de urbanização de favelas assumiu uma
dimensão nova, deixando o caráter quase que meramente experimental de
programas anteriores. Nos anos 2000, ao se incorporar aos projetos de
urbanização de favelas elementos tais como planos inclinados, elevadores e
teleféricos, as intervenções, que na experiência do Favela Bairro tinham, na maior
parte das vezes, impacto relativamente neutro na paisagem urbana, passaram a
ter também grande visibilidade para fora das favelas.
95
Como registro e elemento de comparação, vale lembrar que as duas fases do Favela Bairro
juntas, PROAP I e PROAP II, envolveram U$600 milhões, o que em números atuais, com dólar em
alta, representariam cerca de R$2 bilhões.
159
No concurso Morar Carioca, por sua vez, as equipes propuseram intervenções
mais ousadas, com significativas reestruturações da malha urbana da favela.
Foram propostas aberturas de vias de maior porte, construção de teleféricos e de
planos inclinados. Conjuntos habitacionais verticalizados com a liberação de área
para construção de espaços de recreação e lazer foram apresentados em
diferentes versões, com a justificativa de assegurar assim melhores condições de
habitabilidade para a população local. (LEITÃO; BARBOZA; DECALAVE, 2014.
p.7).
160
O projeto vencedor, coordenado pela arquiteta Fernanda Salles, previa a
instalação de um plano inclinado para superar a acentuada declividade do morro
onde se localiza a favela. A solução não era exatamente nova, pois já havia sido
adotada no favela do Pavão Pavãozinho, em Ipanema, nos anos 1980. Mas teve
destaque no caso da favela Santa Marta e representou um marco daquele projeto
de urbanização perceptível também de fora dos limites da favela.
161
nas práticas de gestão do Estado de determinados territórios e populações.
(MAGALHÃES, 2013: p.2-3).
162
para garantir a permanência das pessoas nas áreas ocupadas. O novo texto
incorporado ao plano de 2011 é ambíguo e sugere a interpretação de que no caso
de situações de risco e de proteção ambiental a urbanização não seria a ação
adequada. Claramente, se opera no texto da lei uma mudança de enfoque sobre
as favelas, oferecendo respaldo para possíveis ações de remoção. Pois se sabe
que muitas situações de risco podem ser eliminadas, por exemplo, com obras de
engenharia, como demonstra fartamente a experiência do próprio programa
Favela Bairro. E se sabe também que quando se trata de assentamentos de baixa
renda, o interesse de proteção ambiental pode colidir com outro direito social: o
direito à moradia. E aí, é no caso concreto que a questão deve ser analisada.
Outro aspecto que merece atenção no plano diretor de 2011 que está relacionada
à essa resignificação da questão da favela, diz respeito à ênfase atribuída à
noção de paisagem. O plano valoriza a paisagem carioca a ponto de considerada
como "o mais valioso ativo da cidade, responsável pela sua consagração como
um ícone mundial (...)" (Art. 169). Embora se possa concordar com a relevância
da paisagem na conformação da cidade do Rio de Janeiro, o problema, na
perspectiva da questão das favelas, da moradia e da segurança na posse, é que
não há no plano qualquer dispositivo que reconheça as favelas existentes como
parte integrante dessa paisagem, o que abre a possibilidade por todo tipo de
interpretação.
163
Jogos Panamericandos em 2007; a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e o
Jogos Olímpicos em 201696.
96
Em relação às intervenções no espaço urbano, são os Jogos Panamericanos e principalmente
os Jogos Olímpicos que têm realmente relevância, uma vez que as ações para a Copa do Mundo
praticamente ficaram restritas à reforma (polêmica) do estádio do Maracanã.
97
As informações constam do site "Cidade Olímpica": www.cidadeolimpica.com.br, que apresenta
o quadro de projetos e investimentos por categoria, identificando os valores correspondentes a
cada ação.
98
Os números correspondem ao que consta da Matriz de Responsabilidades atualizada em 28 de
janeiro de 2015, que não tinha ainda valores definidos para as instalações complementares de
nenhuma das regiões. Disponível em: <http://www.apo.gov.br/wp-
content/uploads/2015/01/MatrizV3-28_01_2015.pdf?66df7a>. Acesso em 04/05/2015, às 16:32h.
164
As ações relativas ao "Plano de Políticas Públicas" estão organizadas em seis
temas: Mobilidade; Meio Ambiente; Renovação Urbana; Social; Educação,
Ciência e Tecnologia; e Infraestrutura Esportiva99. Do total de cerca de R$24,5
bilhões de investimentos, aproximadamente R$13,6 bilhões se referem a obras de
mobilidade, R$8,95 bilhões a renovação urbana e aproximadamente R$1,7 bilhão
a ações de meio ambiente, o que somado ultrapassa 98% do total. A
territorialização desses investimentos também aponta para a priorização da região
da Barra da Tijuca. Cerca de 38,2% do total correspondem aos recursos
destinados à renovação da área portuária e implantação do sistema de veículos
leves sobre trilhos (VLT) na área central. Porém, mais de 54% estão relacionadas
às obras de mobilidade que convergem para a região da Barra da Tijuca (metrô e
linhas de BRT) e obras de saneamento e recuperação ambiental na mesma
região da Barra da Tijuca.
A análise conjunta das duas categorias de investimentos mostra que 60% dos
recursos mobilizados favorecem diretamente a intensificação da urbanização e da
ocupação da região da Barra da Tijuca, onde atualmente já se concentra o
mercado imobiliário formal da cidade. Mesmo com o significativo aporte de
recursos na área central do Rio de Janeiro, a operação urbana Porto Maravilha
não representa uma contraposição real à tendência de dispersão urbana, que
deverá, inclusive, ser fomentada com o expressivo volume de investimentos na
região da Barra da Tijuca. A renovação da área portuária pode ser entendida
como abertura de uma nova área de exploração do mercado imobiliário que,
possivelmente, competirá - e já está competindo - com o centro atual da cidade,
mas com pouca ou nenhuma interferência sobre o mercado da região da Barra da
Tijuca.
99
As informações foram extraídas da planilha do Plano de Políticas Públicas atualizada em 24 de
abril de 2015. Disponível em: <http://www.apo.gov.br/wp-
content/downloads/abril/PlanodePoliticasPublicasV2.pdf?66df7a>. Acesso em 04/05/2015, às
16:48h.
100
Entrevista concedida ao Canal Menorah na TV, publicada em 29 de janeiro de 2015. Disponível
em: < https://www.youtube.com/watch?v=2BjqQLlyDaQ&feature=youtu.be>. Acesso em
13/02/2015, às 09:59h.
166
Todos esses investimentos de infraestrutura, como a gente falou aqui sobre os
BRT's, expansão do metrô e outras vias, elas são expansões da cidade e abrem
novos horizontes para o mercado imobiliário. A gente falou sobre o Recreio. O
Recreio, até pouco tempo atrás, antes de você ter o BRT Transoeste, antes de
você ter o metrô chegando à Barra da Tijuca, ou a própria duplicação da Avenida
das Américas, era quase que uma roça. Então, a pessoa morar no Recreio, ela
parecia que estava morando numa outra cidade. Na hora que você duplica a
Avenida das Américas, traz o BRT e o BRT se liga ao metrô da Barra da Tijuca, é
como se você estivesse incluindo o Recreio dos Bandeirantes dentro da cidade do
Rio de Janeiro. E você gera atratividade para o mercado imobiliário porque as
pessoas passam a ter interesse em morar lá. Porque eles não veem mais o
Recreio como quase uma outra cidade e sim como mais um bairro da cidade do
Rio de Janeiro. O Porto Maravilha é uma outra oportunidade de investimento,
porque a região do Porto, ela já é uma região que naturalmente ela tem a logística
pronta, né?! O nosso porto, ele está do lado do centro, dos metrôs, está do lado
do Aeroporto Santos Dummont, do lado da Ponte Rio-Niterói, Avenida Brasil e
Linha Vermelha, ou seja, em termos de logística, está tudo pronto, você não
precisa fazer mais nada como você teve que fazer lá no Recreio dos Bandeirantes.
Então o Porto, ele já tinha essa vocação pela logística já implantada. O que
faltava? O poder público entrar lá e gerar atratividade. Por que o poder público
precisava entrar lá? Porque mais de 80% dos terrenos do Porto são públicos, seja
federal, municipal, ou estadual. Então se não houvesse uma intervenção do poder
público para transformar esses terrenos em oportunidade para o mercado
imobiliário, nada poderia ser feito, né?! Porque os outros 15% dos terrenos não
iam fazer nenhum tipo de transformação. Quando o poder público entrou de
cabeça, isso liderado pelo prefeito Eduardo Paes, que foi uma das grandes
bandeiras da sua campanha, foi efetivamente deixar esse legado do Porto
Maravilha. Ele caiu de cabeça, fez com que o governo federal sentasse na mesa
com o governo estadual e com o governo municipal, pegassem todos esses
terrenos que estavam subaproveitados, abandonados, tinham invasões no Porto,
ocupando uma área que pode ser super valorizada com comunidades ou outras
coisas ainda piores, ele então entrou, limpou, fez a operação consorciada e hoje
a gente está vendo um outro horizonte se criar no Porto Maravilha. Eu não tenho
dúvida que a região do Porto vai ser uma região muito valorizada da cidade do Rio
de Janeiro. (Hermolim, 2014. Grifo nosso).
167
setores público e privado que já indicava a lógica que orientaria operações
imobiliárias e projetos urbanos, ligados ou não aos eventos esportivos, a partir de
então. Nessa suposta parceira público-privada, alguns mecanismos adotados
permitiram benefícios extraordinários aos empreendedores privados, conforme
explica Veríssimo (2011).
O primeiro deles, que já se tornou até comum nas práticas urbanísticas do Rio de
Janeiro, é o aumento do potencial construtivo do terreno e mudança de usos
admitidos no local, entre outras vantagens, por meio da alteração pontual das
normas vigentes. Ao se adaptar a legislação urbanística, que no caso era
bastante restritiva até pela fragilidade ambiental da área, se promoveu também
expressiva valorização do imóvel, uma vez que este passou a poder receber um
número muito maior de unidades. Outro aspecto relevante foi a participação da
prefeitura na implantação de infraestrutura para o empreendimento, o que em
condições normais, inclusive de acordo com a previsão legal, seria a cargo do
empreendedor.
168
O Pan veio acelerar ainda mais o crescimento imobiliário na região. A
coordenadora da Pesquisa Ademi, Gabriella Szklo, explica que a expansão é
natural porque só há terreno na área e o Pan está antecipando os projetos de
lançamento. (Jornal O DIA, 24 de outubro de 2004. Grifo nosso)101
A Vila dos Atletas talvez seja o empreendimento que melhor expressa a opção
pela região da Barra da Tijuca. Estão sendo construídos ali "3.604 apartamentos
com 31 prédios de 17 pavimentos, distribuídos por sete condomínios
independentes e aproximadamente 1,8 milhão m² de área construída"102. Trata-se
de um empreendimento privado que, tal como a Vila do Pan, servirá aos atletas
durante os eventos olímpicos. Mas não está se fazendo ali nada diferente do que
já se faz nessa região da Barra da Tijuca. A grande diferença é que o
empreendimento conta com o impulso dado pela realização de um megaevento e,
acima de tudo, com os investimentos públicos que ocorrem paralelamente. Numa
área de ocupação ainda esparsa, com grandes glebas vazias, não apenas se
autoriza a construção de significativa quantidade de edifícios, como se promove,
com alocação de recursos públicos, melhorias urbanísticas que dão suporte (e
possivelmente viabilidade) aos empreendimentos privados - o atual e os futuros. E
não se trata apenas de uma discussão da alocação de recursos públicos, mas de
construção de cidade. Mesmo que todas essas ações envolvessem unicamente
recursos privados, ainda assim, seria necessário discutir e estabelecer o interesse
público delas. Ou seja, seria necessário se ter muito claro qual impacto e quais os
benefícios que um empreendimento como este promove na cidade.
Conceitualmente, esse é um aspecto que parece essencial na reflexão sobre o
papel do poder público no desenvolvimento urbano, que deve pautar e direcionar
101
Disponível em: < http://www.ademi.org.br/article.php3?id_article=5541>. Acesso em:
06/05/2015, às 10:16h.
102
Dados extraídos do site do empreendimento "Ilha Pura", cuja primeira etapa de execução
compreende a Vila dos Atletas, abrangendo cerca de apenas um terço da gleba. Disponível em: <
http://ilhapura2016.com.br/descricao/>. Acesso em: 05/05/2015, às 18:36h.
169
a ação privada, visando que a cidade e a propriedade urbana cumpram suas
funções sociais, tal como estabelecido pela Constituição Federal.
Nos projetos dos anos 1980, a forma urbana é compreendida como processo. Ou
seja, o projeto parte do reconhecimento do existente, que não é apenas o espaço
físico, mas também suas formas de apropriação pelos grupos sociais. O resultado
formal da intervenção se definirá ao longo do tempo e em função da participação
e adesão dos usuários ao projeto. Nos anos 1990, a forma urbana é desenhada.
Tem também como princípio o respeito ao existente, mas agora tem mais peso a
visão que confere certa autonomia à forma urbana. É valorizada a capacidade do
projeto urbano de reordenar os espaços públicos e reconfigurar o ambiente
construído a partir do desenho urbano. A partir dos anos 2000, a forma urbana é
tratada como imagem. A cidade existente é o pano de fundo e as intervenções
170
urbanas produzem novos símbolos, se expressam por grandes obras que
sugerem uma cidade dinâmica.
171
Nos anos 1980, os protagonistas são os técnicos municipais. Ao mesmo tempo
que buscavam novas práticas do urbanismo, favorecidas pelo ambiente de
redemocratização, eram agentes da máquina pública, o que talvez explique a
dupla característica dos projetos de serem ações no espaço urbano ao longo do
tempo e de se traduzirem também em propostas normativas. Nos anos 1990, o
arquiteto profissional liberal e de escritórios de arquitetura assume o
protagonismo.Trata-se de um novo agente na formulação de propostas
urbanísticas para a cidade, pois não são mais apenas uma categoria profissional
que discute a cidade, mas são responsáveis pela coordenação de projetos. E a
resposta desse tipo de profissional é por meio do desenho urbano, de projetos
que devem orientar a execução das obras. A partir dos anos 2000, surgem na
cena carioca projetos elaborados por estrelas da arquitetura internacional, que
contribuem decisivamente para a valorização de objetos arquitetônicos nos
projetos urbanos e a dimensão icônica da arquitetura. Paralelamente, as grandes
empreiteiras e suas subsidiárias do ramo de construção imobiliária é que passam
a ter papel privilegiado na definição e mesmo concepção dos projetos urbanos.
Não é à toa que grandes obras voltam à ordem do dia, associadas à liberação de
índices urbanísticos e impulsionadas pelo novo sopro desenvolvimentista vivido
pelo país que, mais recentemente, parece já ter entrado em novo ciclo
(descendente) da economia.
172
em que o Estado se posicionava contrariamente às políticas de remoção de
favelas do passado.
E a terceira geração de projetos integra uma estratégia política que não apenas
não interfere nos fenômenos de dispersão e informalidade, como tende a
contribuir para reforçá-los. A concentração de investimentos na região da Barra
da Tijuca em nome da realização dos grandes eventos esportivos internacionais e
a convergência da nova infraestrutura de transportes (BRTs e expansão do metrô)
para essa região demonstram a opção pela criação de novas condições para
intensificar sua ocupação. Ao mesmo tempo, a produção habitacional, no
momento em que finalmente há política de subsídio no país, direciona a
população de baixa renda para o limite da urbanização, longe do centro e longe
das áreas destinadas aos mercados de média e alta renda. A renovação da área
portuária, embora seja anunciada como prioridade, diante das renovadas
tendências de dispersão urbana, se mostra mais como projeto de caráter
especulativo do que como parte fundamental de um novo projeto de cidade.
173
Capítulo 4
NEGLIGÊNCIA URBANÍSTICA NA RENOVAÇÃO URBANA DA ÁREA
PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO
174
5.1. "Sonho que virou realidade" ou projeto sem adesão social
175
a década de 1980 diversos projetos já foram propostos para a área portuária, por
diferentes atores sociais e visando diferentes objetivos103.
No ano de 1987, dois outros projetos são propostos para a área portuária. Um,
intitulado "Plano de Desenvolvimento Portuário", encomendado pelo Ministério
dos Transportes em parceria com a Portobrás (Empresa de Portos do Brasil, já
103
A síntese aqui apresentada, que menciona os principais projetos para área portuária no período
entre os anos 1980 e 2010, se baseia em resultados de pesquisas anteriores desenvolvidas no
Laboratório de Projetos Urbanos - LAPU, PROURB/UFRJ, coordenado pela Prof. Denise Pinheiro
Machado, com as quais este autor colaborou entre os anos 1990 e 2000.
176
extinta), que tinha por objetivo a elaboração de um plano de ações para os dez
anos seguintes, em atendimento às necessidades decorrentes das expectativas
de expansão das atividades portuárias. O outro, foi o importante projeto SAGAS,
iniciado em 1984 e que resultou na criação Área de Proteção Ambiental (APA)
dos bairros de Saúde, Gamboa, Santo Cristo e Centro, instituída pela Lei 971 de 4
de maio de 1987 e regulamentada pelo Decreto 7351 de 14 de janeiro de 1988.
Seguindo a mesma linha do Corredor Cultural, o projeto SAGAS protegeu o
conjunto arquitetônico e urbanístico de valor histórico e cultural da área portuária
situado na área de ocupação mais antiga, anterior ao aterro para construção do
porto, incluindo os morros da região. Um grande número de imóveis foi
preservado e foram editados parâmetros urbanísticos com a intenção de manter
as características do tecido urbano histórico.
177
Entre 1993 e 2000, já na fase da segunda geração de projetos urbanos, o modo
de atuação da prefeitura se altera. Passa a ser ela a principal formuladora de
propostas para a área portuária e várias são lançadas nesse período. Excetuando
o "Levantamento de Oportunidades Habitacionais" (1994) e o "Projeto Morro da
Conceição" (1998) que eram mais abrangentes, os demais projetos eram mais
localizados em alguns terrenos ou áreas: "Projeto Habitacional da Saúde" (1996);
"Projeto Enseada da Gamboa" (1997); "Projetos de Reabilitação de Cortiços /
Programa Novas Alternativas" (1997); "Projeto Píer Mauá" (1998). De acordo com
a lógica do urbanismo de projetos que pautava a gestão urbana naquele
momento, a implementação de vários projetos distribuídos pela extensa área
portuária deflagraria o processo mais amplo de sua incorporação à cidade.
Figura 20. Cidade do Samba e projeto do Museu Guggenheim. O projeto da Cidade do Samba
foi executado nos anos 2000, ocupando grande terreno da zona portuária e o projeto do arquiteto
Jean Nouvel, para construção do Museu Guggenheim no Píer Mauá, depois de muita polêmica,
não foi executado. Fonte: http://www.portomaravilha.com.br/; Ateliers Jean Nouvel
(http://www.jeannouvel.com/)
Ao analisar esses diversos planos e projetos para área portuária, Moreira (2004)
observa que ao longo do tempo se configura
a adoção de uma política para a área considerada histórica e de outra política para
a área portuária propriamente dita. A primeira objeto de proteção, e a segunda,
passível de renovação, com exceção da linha dos cais e seus armazéns, também
preservados. (MOREIRA, 2004. p. 96)
178
linha da renovação se impôs. A questão fundiária - com predominância de
terrenos públicos, sendo a maior parte de propriedade da União - e as
divergências políticas entre titulares das três esferas de governo sempre foram
apontados, também, como fatores impeditivos da implementação de planos e
projetos na área portuária do Rio de Janeiro. Mas pelo menos dois outros
aspectos, relativos à própria configuração urbanística da área portuária do Rio de
Janeiro, também parecem importantes na comparação com processos de outras
cidades.
O primeiro diz respeito ao fato de que um dos grandes atrativos, comum à maioria
dos projetos em áreas portuárias, se não a todos, é a oportunidade de abertura da
cidade para o mar ou rio. A possibilidade de se criar uma nova frente para a
cidade, na linha d'água. No Rio de Janeiro, no entanto, essa questão nunca foi
exatamente importante, pois a cidade tem já uma fortíssima relação com o mar
em toda a Zona Sul, construída ao longo do século XX. A tendência de expansão
da cidade foi, nessas mesmas décadas de proposições para a área portuária, e
ainda é, pautada pela possibilidade de ocupação da orla da Barra da Tijuca e do
Recreio dos Bandeirantes. Talvez esse aspecto pudesse ter maior significado se
a área portuária fosse pensada no âmbito de um amplo projeto metropolitano em
torno da Baía de Guanabara.
104
Impossível deixar de registrar as polêmicas recentes em torno da qualidade das águas da Baía
de Guanabara para receber provas durante os Jogos Olímpicos. Anunciada inicialmente como
parte do legado olímpico, as autoridades públicas já reconheceram que a despoluição da baía não
será possível até 2016.
179
imbricado com Centro da cidade, com espaços simbólicos importantíssimos como
a Casa Rosada e a Avenida de Mayo, o que lhe conferia, aparentemente,
vantagens para sua reapropriação. Devendo se considerar, ainda, que no caso
carioca, a área portuária não é totalmente vazia. Estão ali presentes áreas
residenciais seculares, de camadas de renda mais baixa, o que não é,
definitivamente, um atrativo para os interesses do mercado imobiliário.
Apesar de há muito tempo a área portuária ser objeto de reflexões por parte dos
mais diferentes setores da sociedade, a configuração do projeto não se dá em
torno de pactos sociais amplos, mas pela ação voluntariosa do Poder Executivo
Municipal, em acordo com os governos Estadual e Federal e com apoio do setor
da construção civil.
180
O "pacote normativo"105 altera o plano diretor então vigente, cria a operação
urbana consorciada com definição de novos parâmetros urbanísticos, obras a
serem realizadas e condições de utilização dos Certificados de Potencial
Adicional de Construção (CEPACs), e cria a institucionalidade para se fazer a
concessão da gestão da área e dos recursos da operação para o setor privado.
Para a prefeitura, o Porto Maravilha é "um sonho que virou realidade". Contudo, a
opção pela linha da renovação urbana e das grandes obras, apesar do discurso
de revitalização e valorização do patrimônio cultural, provoca, desde os primeiros
momentos, reações de diversos setores dos movimentos sociais, de organizações
profissionais e da academia por diversas razões. Trata-se, na verdade, de um
projeto urbano sem adesão social.
105
Ao analisar o projeto Porto Maravilha, Oliveira (2012) também se refere a um “pacote de leis”
para descrever o modo como a operação urbana foi institucionalizada na cidade do Rio de Janeiro,
numa articulação entre Poder Executivo e Câmara de Vereadores. A autora mostra, e esse
aspecto é extremamente importante para compreensão do desenho da OUC Porto Maravilha, que
o projeto de lei que propõe sua criação resulta da adoção pelo Executivo das propostas contidas
em documento elaborado pelas construtoras que depois comporiam o consórcio que seria
responsável pela gestão da própria operação. Segundo Oliveira, nesse documento “já se
encontravam claramente explicitados o desenho estrutural da PPP, as principais diretrizes físico-
territoriais e parâmetros urbanísticos do projeto e o modus operandi dos CEPACs” (OLIVEIRA,
2012. p. 240).
106
Galiza, Vaz e Silva (s/d) afirmam que "a previsão inicial do projeto era de remover 832 famílias
(cerca de 3.650 pessoas), praticamente a metade dos moradores do morro, sem discussão prévia
ou definição concreta sobre reassentamentos na região". Ainda segundo as autoras, a mobilização
social e laudos técnicos que mostravam a inexistência de riscos na maioria dos casos levaram à
revisão do projeto e redução do número de demolições.
181
Além do processo de aprovação das leis que dão base à OUC Porto Maravilha ter
ocorrido de forma rápida, sem o necessário debate público prévio e atravessando
a revisão do plano diretor que estava em andamento na ocasião, é interessante
observar que ao mesmo tempo em que tramitava na Câmara de Vereadores o
"pacote legislativo" da OUC Porto Maravilha, outra importante lei era aprovada,
alterando completamente a legislação urbanística de grande parte da região da
Barra da Tijuca, do outro lado da cidade. A Lei Complementar 104 de 27
novembro de 2009, aprovada, portanto, quatro dias após a lei que criou a OUC
Porto Maravilha, instituiu "o Projeto de Estruturação Urbana - PEU dos bairros de
Vargem Grande, Vargem Pequena, Camorim e parte dos bairros do Recreio dos
Bandeirantes, Barra da Tijuca e Jacarepaguá, nas XXIV e XVI Regiões
Administrativas, integrantes das Unidades Espaciais de Planejamento números
46, 47, 40 e 45", apelidado de PEU Vargens.
Olha só, eu acho que assim, por trás das transformações físicas, na verdade, tem
um negócio muito mais importante. O Rio tem uma história de que é uma cidade
que foge dos seus problemas. A cidade começa aqui na região central aí degrada,
vai pra Botafogo, degrada vai pra Copacabana. Copacabana, no início século XX,
era vendida como a Barra da Tijuca é vendida hoje. Aí degrada, vai pra Ipanema e
Leblon, degrada vai pra Barra. Daqui a pouco, a gente vai parar em Itaguaí. Então,
o projeto de revitalização da região portuária, na verdade, tem a ver com o retorno
ao Centro do Rio, ao enfrentamento dos seus problemas, segue uma lógica
urbana que é adequada. Quanto mais crescemos horizontalmente, mais caro é o
custo, mais ambientalmente inadequado é. Então, por trás dessa transformação
física toda, ainda tem uma visão urbanística que diz: "olha, a gente não quer mais
182
um Rio crescendo horizontalmente, a gente não quer mais um Rio fugindo dos
seus problemas”. (Eduardo Paes, 2015)107
107
Entrevista concedida ao programa "Cidades e Soluções", exibido pela Globonews no dia 30 de
março de 2015, com o título “Vantagens e riscos da maior intervenção urbana do Brasil”.
Disponível em: <http://globosatplay.globo.com/globonews/v/4074684/>. Acesso em: 6/4/2015, às
17:31h.
108
De acordo com o "Estudo de Viabilidade - Operação Urbana Consorciada da Região do Porto
do Rio de Janeiro" e com o "Estudo de Impacto de Vizinhança", estima-se que a área total de
terrenos que podem abrigar empreendimentos imobiliários com absorção de potencial adicional de
construção seja de 681.466,13 m2. Considerando o coeficiente de aproveitamento básico igual a
um, o potencial construtivo total nesses terrenos seria de 4.770.967,96 m2, correspondentes aos
2 2
mesmos 681.466,13 m somados aos 4.089.501,83 m definidos como estoque adicional na
LC101/09.
109
A Concessionária Porto Novo S/A é uma sociedade empresarial de propósito especifico
constituída sob a forma de sociedade anônima, formada pela Construtora OAS Ltda, Construtora
Norberto Odebrecht Brasil S.A. e Carioca Chistiani-Nielsen Emgenharia S.A., algumas das
principais empreiteiras do país.
183
Figura 21. OUC Porto Maravilha (Localização). Perímetro (em
azul) da OUC Porto Maravilha. Fonte: Elaboração própria, 2014.
Apesar de ser festejada por seus promotores como a "maior parceria público-
privada do país", como se isso fosse um fim em si mesmo, os recursos que
110
Entrevista concedida ao programa "Juca Entrevista", exibido ESPN Brasil, em setembro de
2013.
184
financiam as obras da OUC Porto Maravilha foram aportados pela Caixa
Econômica Federal (Caixa) e não por empreendedores privados como sugere a
ideia de parceria público-privada. Utilizando recursos do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS), a Caixa adquiriu a totalidade dos CEPACs postos à
venda pelo Município na operação111. Ou seja, foram recursos públicos, ou
melhor, dos trabalhadores, que deram viabilidade às obras de reurbanização ora
em execução, sem a necessidade de empreendedores privados anteciparem
qualquer investimento na área. Trata-se, portanto, de um engenhoso arranjo
financeiro, que envolve o aporte de recursos do FGTS, a venda de terrenos
públicos e incentivos fiscais112, sustenta e garante a realização das obras públicas
previstas, mesmo que empreendedores privados decidam não investir na região.
111
Convém sempre lembrar, ainda que tenha sido amplamente divulgado, que a Caixa foi a única
interessada a se apresentar no leilão dos CEPACs. Dito de outra forma, nenhum investidor privado
se interessou por disputar a aquisição do potencial construtivo adicional da região do porto do Rio
de Janeiro.
112
Tal arranjo financeiro é apresentado sob o sofisma de "parceria público-privada", por meio da
implementação de uma operação urbana consorciada. A lógica desse instrumento,vale lembrar,
seria a da mobilização de recursos privados para financiar intervenções urbanas estruturais. O que
se realiza na área portuária do Rio de Janeiro, entretanto, é o inverso, ainda que a Prefeitura
Municipal tenha conseguido montar uma estratégia para não injetar diretamente recursos na
operação.
113
"Estudo de Viabilidade - Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio de Janeiro",
elaborado pela Amaral d'Ávila Engenharia de Avaliações. Disponível em:
<http://www.portomaravilha.com.br/web/esq/estudosTecnicos.aspx>. Acesso em: 03/07/2014 às
12:43h.
114
O Estudo de Viabilidade propõe três cenários para implementação da OUC: um realista, um
otimista e um pessimista. No cenário realista, o consumo do estoque de CEPACs ocorreria no
185
As obras em execução e anunciadas no âmbito da OUC Porto Maravilha, bem
como os empreendimentos já licenciados, indicam que as transformações em
curso apontam, caso se realizem como planejado, para a conformação de uma
nova grande área de negócios, com moradia dirigida para classes média e média-
alta, hotéis e atividades culturais e de entretenimento, além de uma área livre ao
longo do cais, voltada para a Baía de Guanabara. Um programa que atende ao
receituário dos projetos concebidos na lógica do "empresariamento urbano"
(HARVEY, 1997) presente nas últimas décadas no Rio de Janeiro e que se
reforça intensamente a partir do final da década de 2000, especialmente com a
preparação da cidade para receber os grandes eventos esportivos internacionais.
Se a lógica da operação pode ser entendida por esse viés ideológico, que permite
compreender a lógica que domina a gestão urbana do Rio de Janeiro atualmente
e já há algum tempo, a abordagem aqui proposta busca se ater a aspectos
urbanísticos mais objetivos e ao resultado espacial que pode ser vislumbrado com
a possível implantação da operação. Dessa forma, se faz emergir no caso
concreto o caráter negligente do projeto - ou do que se pode depreender que seja
o projeto diante das informações disponíveis.
186
Figura 22. Trump Towers e Porto Vida Residencial. Vários
anúncios de projetos são feitos, mas a quantidade dos que foram
efetivamente licenciados ainda é pequena. O Porto Vida
Residencial teve as obras iniciadas. Fonte: Trump Towers (Foto
de Divulgação); http://www.portovida-residencial.com/.
Do ponto de vista conceitual, o documento legal que institui a OUC não expõe o
significado para o Rio de Janeiro da reversão, aparentemente pretendida, de uma
área que esteve por anos estagnada, em uma das áreas mais dinâmicas da
cidade. A questão de fundo é que o projeto não se justifica apenas pelo
reconhecimento da existência de uma grande área bem localizada e subutilizada.
O destino a ser dado a essa área é o que está em jogo, com o agravante dela ser
composta em grande parte por terrenos públicos. E isso implica na definição de
como e por quem a área será ocupada; de como essa operação, dado o seu
porte, vai interferir ou não nos processos estruturantes de dispersão e
informalidade urbana e, mais especificamente, de qual será seu impacto sobre o
Centro da cidade.
187
Sem objetivos e diretrizes claramente definidos, em torno dos quais se deveria
construir a adesão social ao projeto, a operação urbana, do modo mais
convencional possível, se estrutura, basicamente, em torno da abertura de
algumas vias, da instalação de infraestrutura e da concessão de índices
urbanísticos.
115
Em 2012, com menos de três anos de vigência da lei da operação urbana da região portuária,
por exemplo, foi aprovada a Lei Complementar 123/2012 que altera parâmetros urbanísticos de
um terreno específico. Situado num setor cujo gabarito definido pela OUC era de 18 metros e 6
pavimentos, aprovou-se, exclusivamente para esse terreno, o gabarito de 30 metros e 7
pavimentos, mediante o pagamento de contrapartida. No caso, o objetivo era dar viabilidade à
construção da sede do Banco do Central do Brasil. Independentemente de se considerar ou não
essa ação como importante para a revitalização da área portuária, o que interessa observar é que
a operação não estabelece mecanismos ou estratégias para lidar com o projeto ao longo do
tempo, o que forçosamente implica em ajustes, alterações. Dessa forma, se abre um precedente
que pode favorecer futuramente todo tipo de negociação individual e casuística em detrimento de
um projeto urbano global, o que, aliás, corresponde ao modo tradicional de se fazer o urbanismo
no Rio de Janeiro. Registra-se, ainda, que tal mudança foi admitida mediante o pagamento de
contrapartida financeira e não em função do interesse público e critérios urbanísticos que
eventualmente poderiam justificar tal alteração. O que pode parecer uma medida de justiça social,
pois os recursos devem ser destinados a ações na área de entorno, constitui um mecanismo, no
mínimo controverso, de venda de direito, no caso do direito de construir.
188
No entanto, o prefeito da cidade explica o que, para ele, é a medida do sucesso:
"[a área portuária] é o lugar da cidade onde mais tem especulação imobiliária,
mais do que a Barra, e graças a Deus é assim."116 O alcaide disse tal frase para
explicar as razões que o levaram a propor a transferência da Vila de Mídia e de
Árbitros dos Jogos Olímpicos 2016, prevista para ser localizada na área do porto,
para o bairro de Curicica, na região da Barra da Tijuca117. Na sua visão, esse
projeto era, inicialmente, importante para alavancar a renovação da área portuária
e para atrair novos investimentos. Atualmente, segundo o prefeito, ele não é mais
necessário, pois "ali há empresas grandes se estapeando para pegar terrenos e
fazer empreendimentos".
116
Entrevista do Prefeito Eduardo Paes, publicada www.oglobo.com em 18/3/2014. Acesso em
15/7/2014 às 17:54h (http://oglobo.globo.com/rio/olimpiadas-tem-que-servir-para-melhorar-lugares-
da-cidade-diz-eduardo-paes-11907485).
117117
Importante esclarecer que, inicialmente, o projeto olímpico não previa instalações na área
central. Ao ser confirmado o Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016, o IAB
passou a pressionar a prefeitura para alterar o projeto e realizar atividades na área central, em
especial a área portuária. Esse processo de negociações, levou a prefeitura a incorporar em parte
a reivindicação, levando para lá Vila de Mídia e de Árbitros, o que foi considerado pelo IAB uma
vitória para a cidade. A prefeitura decidiu, inclusive, pela realização de um concurso, organizado
pelo próprio IAB, para a escolha do projeto, que envolvia ainda um programa extenso, visando à
ocupação de uma parcela da área da OUC Porto Maravilha. Contudo, já com as obras em
andamento, o Prefeito toma a decisão surpreendente de transferir o equipamento para o bairro de
Curicica, na Região da Barra da Tijuca.
189
renovação"118. É aquela para a qual foi previsto estoque adicional de
construção e onde os podem ser utilizados os CEPACs.
118
Essa expressão não é utilizada na LC101/09, mas adotaremos aqui para nos referenciarmos à
área para a qual é prevista a utilização dos CEPACs.
190
Teoricamente, o instrumento da operação urbana consorciada, instaura um
regime especial na gestão urbana em um perímetro determinado do território.
Uma vez aprovada, a operação passa a ser a referência para aplicação das
normas urbanísticas, se sobrepondo à legislação ordinária, durante o período de
vigência da operação. Mas a LC101/09 estabelece novos parâmetros urbanísticos
apenas para parte da área de abrangência da operação. É criada a Zona Urbana
Mista (ZUM) (art.13) que corresponde praticamente à área de renovação, embora
não haja coincidência absoluta (por razões que não estão claras na norma). E nas
áreas do perímetro da operação "não incluídas em ZUM prevalecem as
disposições da legislação em vigor" (art.15).
192
O restante do território da operação, que não faz parte da área de renovação,
compreende áreas protegidas pelo patrimônio histórico e favelas. Essas, não
estão no coração da operação, mas serão impactadas (e já estão sendo) pela
realização de obras e pela ocupação da área de renovação, caso venha a ocorrer.
O artigo 24 da LC101/09, por sua vez estabelece que na área de renovação "as
edificações não são sujeitas às restrições quanto: à tipologia; à projeção
horizontal; ao número de edificações no lote; ao número de unidades por
edificação". Essa aparente liberdade arquitetônica, no entanto, reforça a ideia da
falta de projeto; da indefinição de padrões morfológicos para orientar a ocupação
dos diferentes setores; da indefinição de critérios para o redesenho de quadras;
da falta de preocupação com a relação entre espaços públicos e privados, cheios
e vazios etc. Não há instrumento para trabalhar a escala das ruas, quadras e
lotes. E desse modo, o resultado espacial será dado pela soma de
empreendimentos autônomos a serem realizados no tempo.
194
inicialmente abrigaria a Vila de Mídia e de Árbitros dos Jogos Olímpicos e para o
qual funcionários municipais teriam prioridade de compra.
119
Ver BLAC Arquitetura e Cidade: Porto Olímpico.
195
de interesse social para os diferentes setores ou para novos empreendimentos, o
que poderia ser um elemento para promover alguma diversidade social no futuro.
A midiática demolição desse viaduto é vista por França (2014) como um marco
que anunciava "a morte do rodoviarismo" no Brasil. As imagens difundidas pela
120
O Binário do Porto seria uma das intervenções que poderia extrapolar os limites da operação e
alcançar uma dimensão mais ampla. Jorgensen (2013), por exemplo, sugere que com uma
solução de transposição da Avenida Francisco Bicalho se poderia criar uma nova ligação da zona
norte e subúrbio com o Centro da cidade, pelos bairros de São Cristóvão e Benfica, o que
favoreceria os deslocamentos em direção ao Centro e, possivelmente, novas dinâmicas também
nessas áreas normalmente esquecidas pelos grandes projetos.
196
televisão realmente parecem sugerir que alguma mudança radical estaria em
curso. Porém tal intervenção não está associada a qualquer alteração na lógica
do sistema de mobilidade da cidade, que historicamente privilegia o transporte
individual. Tanto que novas avenidas, túneis, mergulhões e viadutos estão sendo
construídos na mesma área portuária, para garantir a circulação dos automóveis.
Mais do que isso, está em construção no mesmo local do viaduto perimetral uma
outra via tão rodoviarista quanto, mas subterrânea, ao custo de mais de
R$1bilhão121.
Figura 24. Obras viárias no Porto Maravilha. Enquanto a midiática demolição do viaduto
perimetral é uma das ações mais festejadas do Porto Maravilha, uma das primeiras obras
realizadas é justamente a construção de um outro viaduto, seguido de mais vias e túneis . Fonte:
Henrique Barandier, 2014.
197
prioridade. A demolição do viaduto seria, antes de tudo, uma forma de atrair o
mercado imobiliário para a região, que passaria a ter, ali também, sua avenida
"beira-mar".
198
de 10 anos de vigência, 3,06 milhões já foram consumidos123. Apesar do relativo
"sucesso" na venda de potencial construtivo, destaca-se que se trata de uma
situação bastante diferente do caso carioca. Por um lado, esse potencial
construtivo adicional é distribuído por uma área bem maior. Por outro, a operação
se realiza em área da cidade para onde o mercado imobiliário já direcionava sua
atuação, ao longo da marginal do rio Pinheiros. Do ponto de vista urbanístico,
entretanto, talvez não haja tanta diferença, pois, como mostra Maleronka, na OUC
Água Espraiada, o projeto urbano também foi "reduzido a um 'plano de
melhoramentos'" (MALERONKA, 2009, p. 127) combinando, como no Rio de
Janeiro, intervenções viárias e concessão de índices urbanísticos.
Na renovação da parte leste da capital francesa com o projeto Paris Rive Gauche,
verifica-se que o perímetro daquela operação é de 130 ha e o programa inicial
previa a construção de 2,4 milhões m2. Iniciada em 1991, com aprovação do
123
Secretaria de Desenvolvimento Urbano de São Paulo, posição em 21/5/2014
(http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/desenvolvimento_urbano/sp_urbanismo/
arquivos/ouae/ouc_agua_espraiada_estoque_geral_21_05_2014.pdf)
124
Dados fornecidos pela Corporación Antiguo Puerto Madero S.A. em março de 2014, em
resposta a consulta feita por este autor.
125
Dados extraídos dos sítios oficiais na internet da Battery Park City Authority
(http://www.batteryparkcity.org/) e do Canary Wharf Group (http://group.canarywharf.com/).
199
plano urbanístico e definição da estrutura de gestão, atualmente, segundo dados
oficiais, 50% da operação foi realizada126, o que já foi suficiente para produzir
enorme transformação nessa parte da cidade.
Figura 25. Perímetros das operações Puerto Madero, Paris Rive Gauche e Porto Maravilha.
O perímetro do Porto Maravilha é mais de duas vezes os das grandes operações urbanas de
Buenos Aires e Paris, as duas há mais de 20 anos em andamento. E a área total construída
prevista também muito maior. Fonte: Elaboração própria, 2014.
200
trabalho específico de projeto dos espaços livres e construídos, definidos a partir
de diretrizes gerais para a área. Em diferentes estágios de implementação, a
ocupação desses setores vem se dando à medida que a cobertura da linha férrea
avança.
Figura 26. Puerto Madero e Paris Rive Gauche. As duas operações que envolveram
construções de grandes edifícios, expressiva produção imobiliária em grandes áreas de Buenos e
Pairs não chegaram, em 20 anos, à metade da área construída prevista na OUC Porto Maravilha.
Fonte: Henrique Barandier, 2008; www.parisrivegauche.com.
Se, por um lado, parece excessivo para uma única operação a perspectiva de
promover a construção de mais de 4 milhões m2, ainda mais sem uma estratégia
clara para que isso aconteça, por outro, a realização desse potencial construtivo
pode ter resultados espaciais ruins. Além da já mencionada questão da altura
admitida para novas edificações, esse volume, construído sobre uma área de
cerca de 220 ha, aquela passível de receber o potencial construtivo adicional,
representaria a densidade construída de mais de 18.000 m2/ha. Tal número é
similar ao observada no bairro de Copacabana, também no Rio de Janeiro, cuja
altíssima densidade construída é uma de suas características marcantes.
201
Tabela 14
Licenciamento de novas edificações na Região Portuária* entre 2009 e 2014
Área Total Total de Unidades Unidades não
Ano
Licenciada (m2) Unidades Residenciais Residenciais
Total 2009/2013 994.256,55 3.267 2.073 1.194
2014 84.832,00 336 139 197
2013 575.001,60 1.786 1.600 186
2012 172.732,06 703 234 469
2011 22.230,89 90 81 9
2010 79.505,00 350 19 331
2009 59.955,00 2 0 2
Fonte: Secretaria Municipal de Urbanismo, PCRJ (http://www.rio.rj.gov.br/web/smu/informacoes-urbanisticas).
Tratamento: Barandier, 2014.
* Os dados referem-se à I Região Administrativa (Portuária) da Cidade do Rio de Janeiro, cujo perímetro não coincide
exatamente com o perímetro da OUC Porto Maravilha. Ainda assim, os dados são representativos, pois a maior parte dos
projetos licenciados tende a estar dentro dos limites da operação.
A área construída licenciada, mesmo que em parte não chegue a ser realizada,
pois se refere a projetos, pode ser compreendida como indicador da dinâmica
imobiliária de um determinado local. Nesse sentido, os 575 mil m2 licenciados na
área portuária em 2013 são significativos e, de certo modo, explica o entusiasmo
do prefeito da Cidade quando dizia se tratar da área da cidade "com mais
especulação imobiliária". Entretanto, os menos de 85 mil m2 licenciados no ano
seguinte, em 2014, representam queda significativa, reforçando o argumento de
que a performance de 2013 se explica mais pela expectativa acumulada a partir
do anúncio da operação, do que realmente por um movimento mais estruturado
do mercado.
Da área total licenciada nos anos de 2012 e 2013, pouco mais de 50% se referem
a empreendimentos que consumiram parte do estoque de potencial construtivo
adicional previsto pela operação. Em 2014, um único empreendimento consumiu
estoque adicional de construção, com sua área total edificada (ATE)
representando menos de 20% do que foi licenciado na Região Portuária naquele
ano.
202
No total, entre 2012 e 2014128, os três primeiros anos de comercialização dos
CEPACs no mercado secundário, 8 (oito) empreendimentos foram licenciados
utilizando parte do estoque adicional de construção da OUC, sendo apenas um
com previsão de unidades residenciais, conforme dados constantes da Tabela
15129.
Tabela 15
Empreendimentos que consumiram estoque de potencial adicional construtivo
da OUC Porto Maravilha nos anos de 2012, 2013 e 2014
Área Consumo
Área Área
Adicional de
Empreendimento / Área Total Adicional Adicional
Ano Uso 2 Não Estoque
Titular (m ) Residencial Total
2 Residencial 2 Adicional
(m ) 2 (m )
(m ) da OUC
Arrakis
Comercial e
Empreendimentos 2012 58.959,30 0 42.277,46 42.277,46 1,03%
Hotel
Imobiliários S/A
Porto 2016
Residencial
Empreendimentos 2013 130.662,16 78.800,83 1.096,69 71.897,52 1,76%
com lojas
Imobiliários S/A
TS 19 Participações
2013 Comercial 152.438,02 0 97.244,72 97.244,72 2,38%
Ltda
Uirapuru
2013 Comercial 28.817,49 0 23.575,05 23.575,05 0,58%
Participações Ltda
Autonomy GTIS
Barão de Tefé 2013 Comercial 31.129,09 0 26.464,55 26.464,55 0,65%
Empreend. Ltda
Odebrecht
Realizações
2013 Hotel 14.755,14 0 9.933,54 9.933,54 0,24%
Imobiliárias RJ04 El
Ltda
SPE STX
Desenvolvimento 2013 Hotel 6.389,32 0 4.158,40 4.158,40 0,10%
Imobiliário
Askella
Empreendimento 2014 Comercial 14.610,07 0 11.160,07 11.160,07 0,27%
Imobiliário S.A.
Total de Estoque de Potencial Adicional consumido 70.800,83 215.910,48 286.711,31 7,01%
Total de Estoque de Potencial Adicional remanescente 3.802.790,62 92,99%
Fonte: CDURP - Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro
(http://www.portomaravilha.com.br/web/esq/mnuTransparencia.aspx).
Tratamento: Barandier, 2015
128
Informações extraídas dos Relatórios Trimestrais da CEDURP.
129
No primeiro semestre de 2015, houve mais um empreendimento licenciado com consumo de
CEPACs, este de uso misto, ou seja, com previsão de unidades residenciais. Porém, para as
análises deste trabalho, optou-se por considerar apenas os dados relativos aos anos já
encerrados, ficando de fora dados ainda parciais de 2015.
203
residenciais e 47% para usos não residenciais, ainda que a legislação não a
tenha fixado. E o "cenário realista" do Estudo de Viabilidade, indicava, de fato,
uma proporção bem maior usos não residenciais nos primeiros anos da operação,
porém previa que nos três primeiros anos já se teria consumido quase 1,7 milhão
m2 da área adicional de construção. Mesmo considerando o "cenário pessimista"
do estudo, que previa o consumo de cerca de 760 mil m2 nesse fase inicial, ainda
assim a realidade estaria bem abaixo, correspondendo a menos 40% desse total.
204
Seja como for, o próprio governo municipal faz movimentos que indicam o
reconhecimento das fragilidades de uma operação concebida, antes de tudo, para
viabilizar recursos para algumas grandes obras. Recentemente foram aprovadas
a Lei 5.780/14 que "institui incentivos e benefícios fiscais para incremento da
produção habitacional na Área de Especial Interesse Urbanístico – AEIU do Porto
do Rio de Janeiro" e a Lei Complementar 143/14 que "incentiva a produção
habitacional na Área de Especial Interesse Urbanístico da Região do Porto do Rio
de Janeiro".
208
considerada no desenho da operação e tampouco nas medidas pontuais com as
quais se diz pretender incentivar a produção habitacional na área da operação.
Além das incertezas sobre em que a OUC Porto Maravilha poderá resultar em
termos de ambiente urbano construído na área portuária, seu impacto na cidade
também é ainda uma incógnita. Se a operação poderia, de algum modo, ser
entendida como ação estratégica de uma política de recentralização do
desenvolvimento urbano, de contraposição à tendência de expansão e dispersão
da urbanização, o conjunto de outras ações em curso na cidade, apontam para o
sentido contrário.
Retornando aos números, vale registrar que nos anos de 2012 e 2013, quando a
área construída licenciada na área portuária foi significativa, se verificou também
crescimento expressivo do licenciamento na AP4, que envolve Barra da Tijuca,
Recreio dos Bandeirantes e Jacarepaguá. Nessa região, a área total licenciada
passou de menos de 2 milhões m2 por ano em 2008 e 2009, para mais de 3
milhões m2 por ano em 2012 e 2013 (ver Tabela 16). Ou seja, a área da cidade
onde se concentra a atuação do mercado imobiliário do Rio de Janeiro nas
últimas décadas continua forte e a OUC Porto Maravilha, aparentemente, se
apresenta apenas como nova área disponível para eventuais novos mercados,
mas sem interferir significativamente ainda no mercado existente. No ano de
2014, quando a área licenciada caiu significativamente na AP4, o mesmo ocorreu
na região portuária. Com a diferença que a queda área construída licenciada de
2013 para 2014 foi de cerca de 45% na AP4 e de 85% na região portuária.
Registra-se ainda que entre 2009 e 2014, a AP4 foi responsável por 46,64% da
área construída licenciada na cidade do Rio de Janeiro. Nos anos de 2012 e
2013, quando houve o aumento da área licenciada na região portuária, a
209
participação da AP4 no total da cidade foi de mais de 60% e mais de 50%,
respectivamente. Em 2014, houve também queda nessa participação, que ficou
em 40,23%, mas taxa ainda superior às observadas em 2009 e 2010.
Tabela 16
Licenciamento de novas edificações na Área de Planejamento 4 da Cidade do Rio de
Janeiro entre 2009 e 2014
Área Total Total de Unidades Unidades não
Ano
Licenciada (m2) Unidades Residenciais Residenciais
Total 2009/2013 14.370.765,74 103.100 76.536 26.564
2014 1.770.153 15.205 12.129 3.076
2013 3.196.875,53 20.123 14.894 5.229
2012 3.153.976,28 22.562 18.102 4.460
2011 2.478.387,93 19.320 11.203 8.117
2010 1.900.813,00 11.767 8.738 3.029
2009 1.870.560,00 14.123 11.470 2.653
Fonte: Secretaria Municipal de Urbanismo, PCRJ (http://www.rio.rj.gov.br/web/smu/informacoes-urbanisticas).
Tratamento: Barandier e Pinheiro Machado, 2014.
Por outro lado, apesar de se observar, nos últimos anos, a demanda de novos
espaços comerciais na área central do Rio de Janeiro, essa vinha sendo suprida
por uma série de empreendimentos lançados em torno do eixo entre a Cidade
Nova e a Praça XV e por meio do "retrofit" de alguns edifícios no Centro da
Cidade. Apesar da pressão sobre áreas protegidas pelo patrimônio histórico
associada à ausência de projetos urbanos para lidar com tais empreendimentos,
era um processo que indicava tendências de fortalecimento do Centro.
210
operação são questões que parecem preocupações menores ou pelo menos não
são claras. A relação entre OUC Porto Maravilha e Plano Diretor do Rio de
Janeiro expressa bem esse quadro, como visto no capítulo 2. A forma como foi
aprovado o "pacote legislativo" que instituiu a operação é igualmente ilustrativo.
Mas é o mecanismo de estruturação da operação que se mostra o aspecto talvez
mais delicado. O prefeito explica como o concebeu: "eu peguei uma área que não
tinha nada, um monte de galpão abandonado, inventei ali de vender o ar (...)"
(Eduardo Paes)130.
130
Entrevista concedida ao programa "Juca Entrevista", exibido ESPN Brasil, em setembro de
2013.
211
E a terceira possibilidade, essa, a princípio, indesejável, seria transferir parte
significativa do Centro para a área portuária. Na verdade, é mais ou menos nessa
linha que a OUC Porto Maravilha tem se desenvolvido. E se ela se fortalecer, a
ponto de viabilizar o potencial construtivo adicional previsto pela operação,
provavelmente representará o esvaziamento expressivo do centro tradicional.
Diante desse quadro, dois cenários podem ser imaginados. Um, mais provável, é
que o potencial construtivo adicional da OUC não seja efetivamente realizado.
Nesse caso, a infraestrutura instalada e todas as obras realizadas, que em tese
212
dariam suporte a tal potencial construtivo, seriam subutilizadas. Dependendo do
que for realizado, correndo o risco da Caixa não obter o esperado rendimento
com a operação. E como não há uma estratégia clara para induzir a ocupação em
etapas - os empreendimentos vêm sendo lançados de forma pulverizada – corre-
se também o risco de se ter uma enorme área com aspecto de inacabada.
213
CONCLUSÃO
214
urbanística nas suas diferentes dimensões ressalta essa centralidade do poder
público. Mas a partir dela, outras abordagens, outras linhas de pesquisas são
cabíveis. Entre elas, a análise mais focada dos demais sujeitos da negligência
urbanística, para além do poder público, pode ser um caminho rico para o
aprofundamento teórico do próprio conceito.
215
local como espaço vivido, e outro dos espaços identificados por ele como
"produtos descartados por essa nova extraterritorialidade" (BAUMAN, 2009. p.26).
Nesse sentido, a noção de negligência urbanística pode ser entendida como
consequência de uma globalização por cima, em que as cidades, ou partes
inteiras das cidades, podem ser deixadas ao abandono. O autor descreve mais
especificamente como os integrantes dessa elite global se relacionam com a
cidade:
(...)
A segregação das novas elites globais; seu afastamento dos compromissos que
tinham com o populus do local no passado; a distância crescente entre os espaços
onde vivem os separatistas e o espaço onde habitam os que foram deixados para
trás; estas são provavelmente as mais significativas das tendências sociais,
culturais e políticas associadas à passagem da fase sólida para a fase líquida da
modernidade. (BAUMAN, 2009. p. 27-28).
Saber que tipo de cidade queremos é uma questão que não pode ser dissociada
de que tipo de vínculos sociais, relacionamentos com a natureza, estilos de vida,
tecnologias e valores estéticos nós desejamos. O direito à cidade é muito mais
que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de
mudar a nós mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo, e não
individual, já que essa transformação depende do exercício de um poder coletivo
para remodelar os processos de urbanização. A liberdade de fazer e refazer as
nossas cidades, e a nós mesmos, é, a meu ver, um dos nossos direitos
humanos mais preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados. (HARVEY,
2013, grifo nosso).
216
A contribuição teórica principal do trabalho, então, está no exercício de constituir
essa associação entre negligência e processos de urbanização como questão
teórica, por meio da formulação do conceito de negligência urbanística. Tal
formulação se vale do pensamento crítico nas ciências sociais que têm a cidade
como objeto de estudo, mas se desenvolve aqui no campo do urbanismo, a partir
do cotejamento entre desenvolvimento urbano, instrumentos de planejamento e
práticas de projetos urbanos. Contudo, no nosso ver, a noção de negligência
urbanística, dada a abrangência que pode assumir, inclusive no debate sobre
direito à cidade, demonstra potencial para ser explorada também em outras áreas
do conhecimento, notadamente a sociologia urbana e o direito urbanístico.
Todos esses aspectos, que se buscou demonstrar com dados e análises, tanto no
que diz respeito às tendências do desenvolvimento urbano carioca, como na
leitura da prática de projetos urbanos no Rio de Janeiro como um processo no
tempo e, por fim, na análise focada especificamente numa experiência de
intervenção urbana, confirmam a conformação do quadro de negligência
urbanística apontado inicialmente. E é em torno deles que se pode apontar
217
algumas questões trabalhadas e que devem ser ressaltadas por darem sentido
concreto à ideia de negligência urbanística.
218
expressivos no Rio de Janeiro. Ainda que se trate de um fenômeno complexo e
multicausal, a informalidade é reveladora de uma ordem urbanística que privilegia
uma cidade idealizada, acessível apenas a uma parte da população. E é por isso
que se faz importante destacar como a cidade do Rio de Janeiro resiste em rever
sua legislação urbanística confusa e de difícil aplicação e, mais ainda, a
incorporar instrumentos que possam contribuir para a construção de regras
urbanísticas que favoreçam a democratização do acesso à terra urbanizada e à
justa distribuição dos benefícios e ônus do processo de urbanização.
219
burocrática. Passa-se, então, a privilegiar "oportunidades", normalmente de
negócios, em relação à discussão e definição de prioridades. As ações
exemplares ao processo de planejamento e à construção cotidiana da cidade.
220
Por outro lado, os dados analisados sugerem que a realização do potencial
construtivo adicional previsto para a área é absolutamente improvável. A
comparação com outros exemplos de processos relevantes de renovação urbana
(Puerto Madero e Paris Rive Gauche) ilustra bem a questão (capítulo 4). Ainda
assim, existe um problema adicional no Porto Maravilha, pois se for efetivamente
realizado, as chances de um ambiente construído de péssima qualidade são
grandes. Não só pela altíssima densidade construída prevista, mas, sobretudo,
pela falta de projeto que dirija a operação e paute, pelos interesses públicos, a
atuação privada.
221
A aproximação da realização dos Jogos Olímpicos, em 2016, leva a pensar que
chegará ao fim mais uma geração de projetos urbanos na cidade do Rio de
Janeiro, restando a esperança de que se abra um novo ciclo de projetos, mas
também de reconfiguração mais ampla da gestão urbana. Olhando a cidade atual
e as práticas recentes do urbanismo carioca, parece claro que é necessário
construir alternativas para o Rio de Janeiro pós-2016, quando a cidade estará,
então, liberta da condição de sede de grandes eventos esportivos. Talvez aí seja
possível reconstruir espaços de reflexão, com a participação da sociedade, para
se pensar em um tipo de projeto urbano que contribua para desenhar cidades
mais justas e equilibradas reivindicadas pelos marcos legais do direito à cidade no
Brasil.
222
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
223
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em Urbanismo, 2010. Anais... Rio de Janeiro, 2010. 15p.
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gestão do solo urbano em disputa. In: FERREIRA, R.; BIASOTTO, R. (orgs).
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das Artes, 1995.
FERREIRA, João. São Paulo: O mito da cidade global. 2003. 336f. Tese
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