A Vida e o Trabalho Nos Campos de Concentração Nazistas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS - ICHS

EMANUELLE MACHADO RODRIGUES

ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA : A VIDA E O TRABALHO NOS


CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO DURANTE A 2ª GUERRA MUNDIAL.

MARIANA
2021

1
EMANUELLE MACHADO RODRIGUES

ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA : A VIDA E O TRABALHO NOS


CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO DURANTE A 2ª GUERRA MUNDIAL.

Trabalho de Conclusão de Curso submetido à Universidade


Federal de Ouro Preto como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do Grau de Bacharel em
História. Sob a orientação do Prof. Dr. Jefferson José
Queler.

MARIANA
2021

2
07/03/2022 11:58 SEI/UFOP - 0267892 - Folha de aprovação do TCC

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

REITORIA

INSTITUTO DE CIENCIAS HUMANAS E SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE HISTORIA

FOLHA DE APROVAÇÃO

 
 
E. M. R.
 
Estratégias de sobrevivência: a vida e o trabalho nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial
 

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal


de Ouro Preto como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em História

Aprovada em 07 de janeiro de 2022


 
 
 
Membros da banca
 
 
Prof. Dr. J. J. Q. - Orientador(a) (Universidade Federal de Ouro Preto)
Profa. Dra. G. V. M. - (Universidade Federal de Ouro Preto)
 
 
 
 
 
J. J. Q., orientador do trabalho, aprovou a versão final e autorizou seu depósito na Biblioteca Digital de Trabalhos de Conclusão de Curso da UFOP em 13/01/2022
 
 

Documento assinado eletronicamente por Jefferson Jose Queler, PROFESSOR COLABORADOR, em 13/01/2022, às 10:19, conforme horário oficial de
Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

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Referência: Caso responda este documento, indicar expressamente o Processo nº 23109.000462/2022-38 SEI nº 0267892

R. Diogo de Vasconcelos, 122, - Bairro Pilar Ouro Preto/MG, CEP 35400-000

Telefone: 3135579406   - www.ufop.br

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AGRADECIMENTOS:

Acima de tudo, gratidão a Deus. Pois, sem Ele, nada disso seria possível …

Aos meus pais, Márcio e Marlene, por não medirem esforços para que este sonho se
tornasse realidade. Ao meu irmão, Miguel, que tanto amo. Meus queridos avós Marinho e
Ermelinda. Ao meu tio Renato, a quem tenho como exemplo de ser humano. À minha família, às
minhas madrinhas, por todo cuidado e carinho. Ao meu padrinho Roney, sempre lembrado …

Aos meus amigos, tão especiais, me faltam palavras … Vocês são incríveis! Thalita
Martins, Nágila Machado, Camila Miranda, Fernando Batisteli, Jean Lourenço, Higor Campos,
Izabella Resende, Rodolfo Braz. Vocês contribuem diariamente para o meu crescimento, tanto
pessoal quanto intelectual. Sorte a minha ter encontrado vocês! Em casa, na universidade e na vida,
tornaram meus dias mais leves, meu caminho mais feliz. Obrigada pelo incentivo e
companheirismo de sempre. Amo cada um de vocês, sentirei saudade.

Gratidão a universidade pública pelo ensino de qualidade e pelas políticas de inclusão e


permanência. Aos professores, especialmente Álvaro Antunes e Giulle da Matta. Ao meu
orientador, Prof. Dr. Jefferson Queler, pela atenção e paciência. Por apontar a direção, sempre
respeitando e valorizando minhas propostas.

E, por último mas, não menos importante, agradeço a mim mesma. Pela resiliência e
persistência. Não foi fácil mas, consegui! Dedico este trabalho a todos que de alguma forma
contribuíram para que direta ou indiretamente, eu chegasse até aqui. Vocês são parte deste
momento. É só o começo! Obrigada!

3
“Vocês que vivem seguros
Em suas cálidas casas,
Vocês que, voltando à noite,
Encontram comida quente e rostos amigos,
Pensem bem se isto é um homem
Que trabalha no meio do barro,
Que não conhece a paz,
Que luta por um pedaço de pão,
Que morre por um sim ou por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome,
Sem mais força para lembrar,
Vazios os olhos, frio o ventre,
Como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-nas em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.
Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
os seus filhos virem o rosto para não vê-los.”
Primo Levi

4
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO… .......................................................................................................... 7

2. PROBLEMÁTICA ........................................................................................................ 12

3. HIPÓTESES ................................................................................................................... 13
I - Traumas: Culpabilidade e a Síndrome do Sobrevivente .............................................. 13
II - Esquecimento… .......................................................................................................... 17
III - Desvalorização de narrativas .....................................................................................19

4. METODOLOGIA… ......................................................................................................20

5. Trauma e Testemunho: sobre as dificuldades em narrar um cenário


inimaginável ....................................................................................................................... 20
5.1 Panorama sobre o Antissemitismo: Da diáspora judaica à Solução
Final 25
5.2 Relações ambíguas: a compreensão do “Eu” prisioneiro e da morte sob o fator
instituição…........................................................................................................................ 35
5.3 Mundos divergentes: a vivência no Campo de Concentração pelo olhar de um
prisioneiro… ....................................................................................................................... 38
5.4 Estratégias de sobrevivência: as profissões e os trabalhos no
campo… .............................................................................................................................. 39

6. CONCLUSÃO…. ............................................................................................................ 44
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 48

5
Estratégias de sobrevivência: a vida e o trabalho nos campos de concentração durante a 2°
Guerra Mundial.

Resumo:
O projeto tem por objetivo analisar a vivência judaica nos campos de concentração tomando
como base o trabalho e outras relações estabelecidas dentro da hierarquia nazista entre os
agentes da SS e os próprios prisioneiros, para assim, buscar compreender as estratégias de
sobrevivência adotadas pelos judeus em campos de concentração durante a 2° Guerra Mundial.
Na tentativa de desconstruir o paradoxo forjado nos portões de Auschwitz pela inscrição:
“Arbeit Macht Frei”, tomarei como fontes principais os testemunhos de Primo Levi e Eddy de
Wind, ambos judeus sobreviventes, prisioneiros deste complexo, entre 1943 e 1945. Em suma,
buscarei demonstrar que o 1trabalho não se garantia como estratégia efetiva de sobrevivência,
tendo em vista a lógica arbitrária das políticas nazistas, porém, se mostrar “útil” aos olhos da
ordem dominante é uma potente estratégia reconhecida e adotada pela comunidade judaica ao
longo da História e, é essa resistência sútil, conscientemente delineada pelos judeus entre as
brechas do sistema que buscarei aqui evidenciar.

Palavras-chave: Judeus; Nazismo; Campos de concentração; Vida; Trabalho; Sobrevivência.

1
Para facilitar a compreensão das relações de poder traçadas entre os homens e as atividades coercitivas exercidas por
prisioneiros judeus nos campos de concentração nazistas adotei o uso expandido do conceito de Trabalho; conceito
que em síntese corresponde a realizações espontâneas que visam melhorias básicas vitais para a vivência humana
através das compensações obtidas pelos esforços no ofício.
6
1. Introdução:

A Segunda Guerra Mundial teve início no primeiro dia de Setembro de 1939 com a
invasão da Alemanha à Polônia e findou-se em 1945, no segundo dia de Setembro, quando
Mamoru Shigemitsu e Yoshijiro Umezo assinaram o termo de rendição japonesa, selando a
vitória dos Aliados sobre os países do Eixo. Ampliando a ideia de guerra maciça, pode-se dizer
que o surgimento da Segunda Guerra apresentou para o mundo o estado de guerra total
endossado pelo Fascismo, ideologia inaugurada na Itália, em 1919, sendo rapidamente adotada
por todo o globo, chegando ao poder pela primeira vez em 1922 na revolução anti-democrática
proposta por Mussolini.

Como política, o Fascismo foi caracterizado por Federico Finchelstein (2019) como
“uma ideologia transnacional com importantes variantes nacionais”. O Fascismo deixou um
lastro de violência pela Europa, o movimento pode ser descrito como uma combinação de
“terrorismo estatal, imperialismo e racismo”; antidemocráticos, antimarxistas e antiliberais, os
governos fascistas visavam domínio político e ideológico, pluralidade e dissidências entre os
civis poderiam ser facilmente punidas com a morte. Ancorados em uma política
ultranacionalista, fascistas evocaram um líder messiânico, carismático ao estilo Weberiano,
para concentrar os interesses “do povo” na figura de um líder forte e autoritário disposto a livrar
a nação de um suposto inimigo a ser eliminado. Em seu texto “Do Fascismo ao Populismo na
história”, Finchelstein aponta o estabelecimento do Holocausto na Alemanha como a
representação máxima do Fascismo.

Em um período marcado pela crise econômica global do Capitalismo simultâneo a crise


de representação democrática, em uma zona em que o Estado de Direito havia sido destituído
pelo Fascismo na maioria dos países, Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e Aliados (França,
Inglaterra, EUA, URSS) travaram uma guerra essencialmente ideológica, sem indícios
concretos de trégua de ambos os lados até o fim. Apesar da insatisfação e instabilidade pairar
sobre os ares europeus, após o fim da Primeira Guerra Mundial não existiam motivações
precedentes válidas para o início das hostilidades entre as potências, quer sejam razões
econômicas, militares, políticas, etc. Hobsbawm em seu livro “A era dos Extremos” sugere um
possível causador do segundo conflito, Adolf Hitler.

7
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi considerada por Hobsbawm (1995) o
conflito mais traumático do século XX. Inglaterra e França sofreram danos irreparáveis.
Entretanto, é possível afirmar que a guerra iniciada por Hitler trouxe para o mundo a maior
problemática do século XX: O questionamento da humanidade. Entre militares e civis,
especula-se que as políticas de massacre da Segunda Guerra Mundial sob situações diversas
teriam produzido 54 milhões de baixas. A morte sistemática deixou de ser somente um elemento
dos campos de batalha e passou a ser uma das engrenagens de instituições altamente
burocráticas, como os campos de concentração. Estima-se que somente nos ambientes
concentracionários tenham morridos 6 milhões de pessoas; entre as vítimas estavam minorias
que não se encaixavam no padrão ariano - judeus, ciganos, presos políticos, homossexuais,
doentes mentais, etc -. Segundo Hitler, essas pessoas representavam um empecilho para a glória
alemã, mal combatido com a morte através da chamada “Solução Final”.

O termo "Solução Final" corresponde ao estopim de uma série de etapas da busca nazista
pela aniquilação absoluta do povo judeu. A última e mais eficaz medida de morte idealizada. Após
verificar que as leis anti-semitas, os boicotes econômicos, o processo de emigração compulsória,
a instituição de guetos, isolamento, unidades móveis de extermínio (fuzilamento ou câmaras de
gás móveis) não seriam suficientes, os nazistas buscaram um meio para exterminar o maior número
de judeus em menor tempo e esforço possível. A partir do desejo de facilitar o extermínio em
massa dos judeus, surgiram os campos de concentração, espaços que poderiam ter como fim o
trabalho compulsório ou a morte imediata - especula-se que somaram mais de 40.000 entre 1933
e 1945 - , a materialização da Solução Final para dar fim à suposta ameaça mundial judaica. Em
1942, inaugurou-se um marco para a política genocida nazista. Uma espécie de fábrica de
extermínio de grandes proporções, Auschwitz II (Auschwitz Birkenau). Onde cerca de um milhão
de judeus foram cruelmente assassinados de diversas formas, como asfixia em câmara de gás,
fuzilamento, fome, frio, doenças, espancamento, etc.
Dentro desse período que inspirou o questionamento da humanidade estão inseridos os
testemunhos narrados por Primo Levi (1947) e Eddy de Wind. Levi, foi um químico judeu,
italiano da cidade de Turim, que preso em 1944 por soldados da SS (Schutzstaffel), esteve por
11 meses em Buna Monowitz, um dos campos dependentes do complexo de Auschwitz,
prestando coercitivamente trabalhos ao campo em uma fábrica de carvão. De Wind, um médico
judeu holandês que se disponibilizou para trabalhar em Westerbork - campo de trânsito
8
localizado no leste da Holanda - como tentativa de poupar sua mãe da deportação para
Auschwitz. Lá conheceu a jovem enfermeira Friedel, com quem se casou.

Em 1943 foi mandado junto de sua esposa para a morte no campo de concentração. É
interessante pontuar que diferente de Levi, Wind se voluntariou. Mesmo em um cenário
desesperançoso, ainda fora de Auschwitz viu em sua ocupação uma possibilidade de
sobrevivência, como demonstrou em algumas passagens de seu diário: “ [...] aí estava toda a
dúvida, talvez ele tivesse sorte, talvez. Ele era médico - ah, não, não ousava ter esperanças,
contudo devia ter.” (WIND,2019:23). Ainda sobre os “privilégios” da profissão, o sobrevivente
coloca: “Friedel não pode nem mesmo fazer isso, é prisioneira de um grau mais elevado. Eu
ainda posso me movimentar livremente pelo campo. Nem isso Friedel pode fazer.”
(WIND,2019:8). Tanto Levi em seu livro, publicado em 1947, quanto Wind com seu relato
escrito enquanto ainda estava em Auschwitz, nos proporcionam um testemunho pessoal dos
horrores vivenciados no campo. Os sobreviventes do holocausto em seus relatos questionam a
humanidade, a realidade e a veracidade dos fatos vivenciados, fatos que para os “de fora” soam
inimagináveis.

A institucionalização/naturalização da morte e o questionamento da humanidade estão


intrinsecamente ligados aos componentes da alma, do corpo e do espaço ocupado pelos homens
daquele período. Primo Levi coloca a coexistência de duas realidades: a dos libertos e a dos
prisioneiros dos campos de concentração. O autor Márcio Seligmann-Silva aponta em seu texto
“Narrar o Trauma - A questão dos testemunhos de catástrofes históricas” (2008), as expressões
“aos outros” e “dos outros” constantemente usadas por Levi (1988) em seu testemunho para
tratar da barreira imaginada pelos sobreviventes que, no mundo de Hitler, separou mundo real
e um mundo inimaginável vivenciado dentro dos campos de concentração. Wind também
propõe esse distanciamento entre vida real e a vida em Auschwitz na seguinte passagem: “Para
nós é mais longe, muito mais longe, infinitamente longe. Aquelas montanhas não são deste
mundo, não são do nosso mundo. Pois entre nós e as montanhas há os fios.” (WIND, 2019:17).

Essa divisão de vivências humanas trouxe grande dificuldade para a narração e


compreensão dos horrores do campo. A impossibilidade “dos outros” de assimilar a realidade
por trás dos muros do Lager, por muitas vezes foi mobilizada de forma tendenciosa para
invalidar o testemunho do sobrevivente, visto que, de tão absurdo, por vezes, para aqueles que
9
não vivenciaram a realidade dos campos, os discursos se tornavam fantasiosos por serem
“inimagináveis”.

Quando as portas dos campos se fechavam, já não havia mais espaço para o Eu
individual. Enquanto a política nazista dos campos trabalhava para despersonalizar o indivíduo,
tornando-o parte de um coletivo dispensável, o caminho de volta para a sociedade no pós-
guerra, era contrário. O judeu deixava de ser o alvo e passava a ser sobrevivente, alguém que
se destacava no meio por ter algo a dizer “aos outros”. No Holocausto, percebe-se que o trauma
é vivido coletivamente mas, a narrativa pós traumática se dá de forma solitária. E, essa narrativa
sistematizada em Testemunho é essencial fundamental para a reconstrução do evento histórico.
Além disso, permite que a vítima perca o rótulo de sobrevivente. As ideias desenvolvidas por
Seligmann-Silva, no texto aqui trabalhado, nos permite concluir que o ato de narrar uma
experiência traumática permite que o indivíduo abandone a sobrevida, à medida que passa pelo
processo de reinserção na sociedade, contribuindo para a sua readaptação à realidade.

No testemunho de Robert Antelme (1957) trazido na obra de Seligmann-Silva, a vítima


fala sobre o aspecto sufocante de narrar o trauma; o testemunho revive as feridas do
sobrevivente. Mas, ainda que dolorosas, as memórias daquele período traumático são
necessárias para estabelecer e legitimar uma narrativa verdadeira sobre os horrores vividos no
campo. E os relatos dos sobreviventes do Holocausto demonstravam essa preocupação, como
pode-se perceber nos relatos de Levi (1988) e Wind. Nas palavras de Wind: “Tenho que
continuar vivendo para contar sobre isso, para contar a todos, para convencer as pessoas de
que aconteceu de verdade …”. (WIND, 2019: 220).

Chamados por números ou identificados por uma estrela de Davi bordada ao peito, os
prisioneiros judeus passavam por um processo de desumanização, tortura e humilhação. Imerso
no estado de apatia ou negação, os “muselmann”2 sobreviviam em condições miseráveis, à
medida que sua própria humanidade se degradava diariamente. Para se obter uma porção maior
de sopa ou de um pedaço de pão, até mesmo um espaço melhor para dormir nos catres, os
valores que enquanto libertos direcionavam a vida já não existiam mais. Importava apenas a

2
Sinônimo de mulsumano em alemão, trata-se de um jargão dos campos de concentração. Eram chamados
“muselmann” aqueles homens que haviam sido privados da capacidade de resistir; ou seja, prisioneiros em um
profundo estágio de despersonalização e apatia.
10
sobrevivência, mesmo que para isso precisassem assegurar alguns “privilégios” que colocavam
seus semelhantes em desvantagens.

Nas palavras de Gérard Vincent, em “História da vida privada: da primeira guerra a


nossos dias”:

“De um ponto de vista psicanalítico, a maioria dos prisioneiros dos campos de


extermínio se suicidava ao aceitar a morte sem resistir […] Utilizando o terror, os SS
conseguiam que seus adversários fizessem o que eles queriam.” (VINCENT, G.;
2009; pág. 201).

Os campos de concentração eram regidos por sistemas hierárquicos. Neles, os


prisioneiros buscavam estratégias de sobrevivência. Dessa forma, tiveram a “sorte” da
sobrevivência aqueles que buscaram estratégias para resistir às políticas adotadas pela solução
final. Segundo Levi (1990), os homens que ocuparam um lugar na hierarquia do campo, seja
por relações políticas ou sociais externas ou pela valorização e necessidade de determinados
conhecimentos técnicos no campo, foram os responsáveis pelos testemunhos mais fiéis à
realidade, visto que, não tatearam o fundo do Lager. De alguma forma, estes prisioneiros se
resguardavam, não viveram a fundo os horrores do campo como a maioria. Apesar de uma visão
“adocicada” do holocausto, esse afastamento permitido pela “excepcionalidade” do prisioneiro
garantiu - “mesmo que parcial e limitado” - testemunhos próximos à vivência naquele outro
mundo. Nas palavras de Levi destacadas no texto de Seligmann-Silva (2008):

“A história do Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio,
não tatearam o seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de observação
ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão.” (Levi P.; 1990; pág. 5).

Para alguns dos sobreviventes para narrar o holocausto não bastava somente não ter
“tateado o fundo do poço” como destacou Levi (1990). Mais que isso, acreditavam que poderiam
escrever sobre os campos de concentração só as pessoas que nunca pisaram na lama daquele chão,
os que estiveram por lá apenas por meio da imaginação. Para compreender as estratégias de vida
é necessário adentrar as entranhas do campo e do prisioneiro. Para isso, partirei de conceitos e
perspectivas fundamentais para alcançar a complexa vivência desses homens naquele período. O
trabalho se desenrolará em torno de três pressupostos principais, são eles: a compreensão do “Eu”

11
enquanto judeu e prisioneiro, trabalho e sobrevivência em situações extremas e as relações traçadas
entre os prisioneiros nos campos de concentração.
Buscarei ainda analisar contextos históricos que culminaram em Guerra e Holocausto,
evidenciando os questionamentos da humanidade no âmbito de suas especificidades - valores,
comportamentos, sentimentos e sensações - surgidos com a implementação da Solução Final. Para
assim, buscar compreender a agência judaica ao longo da história, me atentando especialmente às
estratégias de sobrevivência adotadas pelos judeus enquanto prisioneiros dos campos nazistas de
concentração. Para além, evidenciarei conceitos caros para a compreensão do período, tais como
Fascismo, Estado e Antissemitismo, tendo como objetivo principal dar voz as vítimas silenciadas,
entendendo-os como um grupo pensante que partindo das possibilidades oferecidas pelo contexto
agiram e resistiram. Por fim, ao longo dessas páginas retomarei os horrores da guerra pois, assim
como Wind e Levi, acredito que devem sempre ser resgatados a fim de fazer com que os homens
em seu íntimo questionem a própria humanidade, reflitam o ser humano em condições extremas e
a dificuldade de reinserção social de sobreviventes de eventos traumáticos.

2. Problemática:

Após estudo acerca das estratégias de sobrevivência nos campos de concentração,


tomando como base as memórias transcritas nos testemunhos de sobreviventes do Holocausto,
é possível apreender que para os prisioneiros o trabalho seria a estratégia mais viável de
sobrevivência. Tendo como base a premissa levantada seria possível afirmar que o trabalho
representou uma possibilidade concreta de resistir as políticas nazistas e consequentemente
sobreviver aos horrores vivenciados diariamente no holocausto? Trabalhadores altruístas que
visavam o bem-estar coletivo são recorrentemente rememorados em bibliografias, mas existem
trabalhos prestados nos campos que foram ocultados da História. É correta essa seletividade de
memórias?

Para além, coloco outras problemáticas: ciente das condições impostas pelos campos, é
moralmente correto questionar a estratégia de sobrevivência adotada por um prisioneiro em um
contexto extremo? Por que as vítimas foram silenciadas e tiveram retirados seus papéis de
sujeitos pensantes e agentes diante das possibilidades do contexto? Mesmo que isso implicasse

12
indiretamente a morte de outro homem, pensar em si próprio permite que a condição intrínseca
de vítima do prisioneiro seja questionada?

3. Hipóteses:

I - Traumas: Culpabilidade e a Síndrome do Sobrevivente.

Entre os prisioneiros que tiveram a “sorte” de sobreviver, a negação e o silenciamento


em relação ao ocorrido são sintomas de uma vontade latente de esquecimento. Escolher a vida
em um campo de concentração implicava o assassinato dos considerados menos aptos; velhos
e crianças, doentes e mais fracos. A realidade dos campos rumava em direção oposta a
normalidade observada na sociedade “de fora”. Quando prisioneiros, os homens podem se
portar de formas antes inimagináveis, nas palavras de G. Botz e M. Pollak: “A humilhação
permanente, o sentimento total de impotência, de covardia, numa situação onde apenas a
sobrevivência importa, corroem para sempre todo orgulho e amor-próprio”. (BOTZ,
POLLAK, 1982: 28/45).

Quando voltava a integrar a sociedade, o sobrevivente se perguntava até onde chegou


sua desumanização em busca pela sobrevivência. A presença do trauma e o constante
sentimento de culpa poderiam resultar em diversas sequelas: sintomas psíquicos,
comportamentais e físicos. Entre eles, angústia fóbica, depressão crônica, perda da memória,
insônia, cefaleia, nervosismo, transtorno gastrointestinal, pesadelos, impotência, dificuldades
de reinserção. Estes sintomas são característicos do fenômeno mental denominado “Síndrome
do Sobrevivente”. Essa síndrome é descrita no capítulo “Guerras ditas, guerras silenciadas e
o enigma identitário”, volume 5° volume de História da Vida Privada (2009).

Neste, o autor Vincent aponta que a patologia é marcada pelo constante questionamento
“por que ele, e não eu?”, que é frequentemente observada em indivíduos que sobreviveram a
eventos traumáticos. A síndrome é provocada e fomentada essencialmente pelo sentimento de
culpa, especialmente pela culpa de ter sobrevivido a tragédias, além do mais, o indivíduo
acredita fielmente ter feito algo de errado, algo que influenciou diretamente na morte dos outros.
Pensamento que contraria a razão, visto que, sob qualquer hipótese a vítima não pode ser
responsabilizada por ações protagonizadas sob coação.Essa síndrome foi documentada pela

13
primeira vez na década de 60, vale ressaltar que as características observadas neste período
correspondiam às particularidades apresentadas em sobreviventes dos campos de concentração,
em função disso, a síndrome do sobrevivente também é conhecida como a síndrome do campo
de concentração.

Dessa forma, tomados por culpa e sequelas, muitas vezes estes prisioneiros optaram
pelo silêncio. Esse fato impede que se saiba mais sobre essa face da história. Nas palavras de
Vincent:

“Quanto aos que escaparam dos campos de concentração, muitos devendo sua
sobrevivência à morte do companheiro, foram irremediavelmente acometidos
pela “síndrome do sobrevivente” … Em Verdun, havia os bons (nós) e os maus
(os que estavam na nossa frente). Entre o resistente que “falou” por ter sido
torturado (ou porque lhe torturaram o filho diante de seus olhos) e o que nunca se
engajou na Resistência (pronto para reconstruir a posteriori uma biografia
imaginária), quem é o bom? Quem é o mau? Quem tem o direito de julgar? E
quem pode saber o que se passou? Muitas vezes as vítimas optam pelo silêncio.”
(VINCENT, G.; 2009; pág.190).

Além do sentimento intrínseco de culpa pela morte de outros prisioneiros, os


sobreviventes tinham que lidar com a contestação de depoimentos prestados para os diversos
tribunais que se formaram nos países aliados, especialmente EUA e URSS, para o julgamento
dos nazistas. Após estudo do texto “As mulheres do Nazismo” (2014), da autora Wendy Lower,
compreende-se que os julgamentos - entre sentenças e recursos - se estenderam até a década de
90 e que os tribunais aliados, localizados na parte Ocidental da Alemanha e conduzidos por
juízes norte-americanos, foram seletivos nas condenações. O lado estadunidense visava a
reconstrução da Alemanha e optou assim por condenar majoritariamente “os cabeças” do
Holocausto, ignorando as demais peças da engrenagem da política genocida orquestrada por
Henrich Himmler a mando do Fuhrer.

Como observado por Arendt em “Eichmann em Jerusalém” (1999), o Estado de


exceção estabelecido por Hitler foi bastante cauteloso, o sigilo marcou todas as ações do Reich.
As políticas antissemitas eram tratadas com cuidado, faladas e documentadas tendenciosamente
de forma subliminar e requintada; somente os oficiais da SS sabiam o que acontecia realmente

14
quando os 3Einsatzgruppen saíam às ruas ocupadas e quando os trens de carga chegavam aos
destinos finais.

A linguagem utilizada pelo alto escalão nazista era pouco acessível, o tabu era algo
desejável, lhes seriam favorável no pós guerra. Quanto menos se falava, menos se sabia, desta
forma atrocidades puderam ser omitidas, de modo a deslegitimar os discursos das vítimas. A
falta de provas escritas atrelada a correntes escapistas e limitantes como as doutrinas do “eterno
antissemitismo” e do “bode expiatório” favoreceram os alemães. Ancorados em falsos álibis
puderam retomar o discurso de vítima costumeiro, conhecido desde a Primeira Guerra Mundial.
As palavras acertadas de Arendt, no capítulo escrito sobre o Antissemitismo em “Origens do
Totlitarismo” (2012), nos permite identificar um imaginário cíclico contido na doutrina do
“eterno antissemitismo”. A naturalização dessa repetição antissemita é perigosa pois naturaliza
e coloca como condição intrínseca ao grupo judeu a exclusão, o ódio e o preconceito, variando
apenas a intensidade da perseguição, conforme o contexto histórico observado. Essa suposta
predestinação judaica à violência justifica as mazelas antissemitas à medida que coloca
humilhação e morte como “consequências naturais de um problema eterno”
(ARENDT,2012:31). Além disso, como consequência da superficialidade identificada nos
julgamentos do pós-guerra, todos os setores da sociedade alemã no ato da reconstrução contava
com a participação de nazistas, o que de certa forma, encurralava e coagia os judeus
remanescentes. O medo iminente de represálias fez com que muitos relatos fossem suprimidos.

Observando a descrição dos interrogatórios na obra de Lower, é perceptível o não


arrependimento dos fatos e a permanência da camaradagem de guerra entre os nazistas. A
fidelidade ao dever e ao Fuhrer permaneceu nos bancos dos tribunais. Os depoimentos eram
vagos como os de 4Joseffine Block, mencionados por Lower (2019): “não sei” … “não me
recordo dos detalhes” … “não me lembro”. Mesmo entre os baixos funcionários da máquina

3
Grupos paramilitares formados por membros da Schutzstaffel das forças policiais alemãs. Sobre o comando de
oficiais da Polícia de Segurança Alemã (Sicherheitspolizei) e do Serviço de Segurança (Sicherheitsdienst). A função
principal destes esquadrões era o assassinato dos inimigos políticos ou raciais do Reich. Foram responsáveis pela
morte de deficientes físicos, mentais, membros de partidos políticos, judeus e outros. Protagonizaram o primeiro
estágio da Solução Final,foram os primeiros a assassinar simultaneamente um grande número de judeus, a tiros ou
com o auxílio de um caminhão que abrigava um gás letal. Por vezes contavam com o apoio não só policial mas também
da população local durante a execução das emboscadas.

4
Datilógrafa da Gestapo em Viena que fazia visitas constantes ao marido Hans Block, um major da SS e chefe da
Gestapo em Drohobych, na Ucrânia.
15
nazistas e agregados - especialmente esposas - prevalecia a camaradagem patriota, não
poderiam incriminar os companheiros do alto escalão nazista, os quais só estariam cumprindo
um dever natural. A ideia de “dever natural” de limpeza do Reich requer atenção pois torna o
Holocausto um fenômeno inumano e impessoal, fato que retira a responsabilidade dos crimes
cometidas pelos nazistas. Muitos usaram da burocracia e do seguimento de ordens para se
isentar da culpa: “… aquelas pessoas que muitas vezes tinham postos , até altos postos, no
Terceiro Reich e que, depois do fim da guerra, disseram a si mesmas e ao mundo em geral que
tinham sido sempre “internamente opostas” ao regime.” (ARENDT, 1999:143).

Segundo Lower, os depoimentos dos judeus sobreviventes foram ouvidos mas, na


maioria das vezes, foram desconsiderados como provas efetivas de incriminação. A
desvalorização do relato judeu significou uma brecha para a defesa nazista. Puderam reclamar
a posição de vítimas de uma conspiração judaica, retomando a teoria de “bode expiatório”
negaram os fatos e responsabilizaram os próprios judeus pelas mortes ocorridas no Holocausto.
Podemos encontrar um exemplo da ideia corrente nas falas proferidas por Block, em 1949, em
Tribunal em Viena: “Afirmou que sua acusadora, sua ex-costureira judia, era a verdadeira
assassina, que tinha abandonado a filha de 1 ano para salvar a própria vida.” (LOWER,
2014:199).

Por mais revoltante que a fala de Block, autoproclamada “amiga dos judeus”, soe
atualmente, sua tática de defesa foi aceita no tribunal e a mesma foi inocentada. Tribunais
formados por “conterrâneos” sentenciavam de forma indiscriminada e tendenciosa; juízes
permaneciam céticos aos depoimentos judeus, demonstravam pouca empatia e alteridade para
com os sobreviventes e seus testemunhos além da falta do distanciamento necessário para a
crítica e compreensão do antissemitismo propagado pelos interrogados. Essa parcialidade em
grande parte tem a ver com a falha dos julgamentos; “ex - nazistas” eram ameaças
desconsideradas e voltavam rapidamente a integrar a sociedade. As palavras de Block são
reflexo da bola de neve que permanecia esmagando os judeus mesmo pós Holocausto. A
aceitação da “culpa da vítima” pelo judiciário e a leitura superficial de quem representava
perigo ou não, minimizou crimes, absolveu culpados e predestinou vítimas a continuar vivendo
em um terreno instável e perigoso. Minha hipótese é de que o constante sentimento de culpa
atrelado ao medo da descrença social e do judiciário, além de possíveis represálias de nazistas

16
reintegrados à sociedade por não representarem “grande risco” silenciaram testemunhos e,
consequentemente, histórias do Holocausto.

II - Esquecimento:

Além da institucionalização da morte, o regime concentracionário tem como


pilar principal a organização do esquecimento. Sobre essa afirmação, Hannah Arendt
(1989), observa que nos tempos obscuros que antecederam o Holocausto o direito a
lembrança não foi negado, nem mesmo ao inimigo. Contrariando as diretrizes dos
campos de concentração que tinham como política principal morte e anonimato.

O anonimato desses prisioneiros está intrinsecamente ligado à organização do


esquecimento instituída pelos regimes totalitários.A morte em um campo de
concentração representava a anulação de uma vida, de modo que fosse possível esquecer
a existência de alguém. Pode-se pensar que esse esquecimento institucionalizado está
atrelado a tentativa de negar os horrores da guerra e que o afastamento desses
prisioneiros das narrativas seja um meio de não partilhá-los com as sociedades
contemporâneas. Nas palavras de Héléne Piralian (2000), psicanalista armênia evocada
por Seligmann-Silva em seu texto (2008), esse silenciamento consolida um genocídio
negado. Ao não testemunharem o trauma vivido no Holocausto as vítimas sobreviventes
permitem que os horrores da guerra sejam esquecidos no tempo, impedindo a vivência
do luto e a busca por justiça de entes que sobreviveram. Dessa forma, nega-se o
genocídio e o ciclo de violência não se encerra, visto que, deslegitimada, a vítima
continua sendo violentada simbolicamente.

Um dos mecanismos adotados pelos genocidas para a instituição do


esquecimento é a busca pela eliminação total do grupo perseguido. Isso explica as
chamadas “5 marchas da morte” e o assassinato de crianças. A possibilidade de deixar

5
Já nos dias finais da Guerra, os Aliados cercaram os campos de concentração. A força militar alemã estava colapsando
quando soviéticos, britânicos, franceses e americanos chegaram por todos os lados para libertar as vítimasdo Holocausto
orquestrado pelos nazistas. Temendo a libertação, os alemães começaram a evacuar os prisioneiros dos campos de
concentração, inicialmente os próximos aos campos de batalha, mandando-os como mão-de-obra escrava para campos
construídos em território alemão. As primeiras evacuações se deram por meios de trens de carga, já as seguintes foram
por meio de longas caminhadas. As chamadas “Marchas da Morte” fizeram com que prisioneiros já debilitados
andassem longas distâncias no frio extremo sem roupas adequadas, sem descanso, água ou comida. Homens e
mulheres que não conseguiam seguir o ritmo ditado pela SS eram executados a tiros. As maiores marchas
17
remanescentes não estava nos planos nazistas, pois isso significava deixar provas e
testemunhas que pudessem incriminá-los mais tarde, além do mais, permitir que as
vítimas sobrevivessem poderia originar o desejo de vingança ao Reich. Nas palavras de
Seligmann-Silva:

“O genocida sempre visa a total eliminação do grupo para impedir as narrativas do terror
e qualquer possibilidade de vingança. Os algozes sempre procuram também apagar as
marcas de seu crime. Esta é uma questão central que assombra o testemunho do
sobrevivente em mais de um sentido.” (SILVA, S. M.; 2008; pág. 75).

Essa busca por apagamento dos rastros de violência comum na burocracia


nazista dificulta o testemunho do sobrevivente. Este, assombrado pelo sentimento de
irrealidade dos fatos vividos, tem de lidar também com outros sintomas originados pelo
trauma, como a culpa identificada na síndrome do sobrevivente. A ocultação das provas,
dos locais e marcas de violência colaboram para a construção de um discurso
negacionista. O negacionismo tende a distorcer a realidade e deslegitimar sujeitos, por
isso o testemunho se faz tão necessário quando se fala em Holocausto ou qualquer outra
catásrofe histórica. É função do historiador não permitir que o esquecimento impere e
que os sobreviventes não sejam manipulados por políticas ou discursos tendenciosos de
silenciamento.

Piralian (2000) coloca a importância de integrar o passado traumático à


realidade. Por mais que soe bárbaro e inimaginável,de fato, aconteceu. Incompreensão,
distanciamento e dificuldade de assimilar o desconhecido não podem deslegitimar e
tornar irreal o Holocausto. Trazer os fatos, através dos testemunhos, para a sociedade
possibilita a humanização do sobrevivente e a derrota do negacionismo. Só assim a
negação dos fatos, iniciada antes mesmo da implementação dos campos de
concentração, poderá ser combatida. A memória expressa nos testemunhos tem a função
de tornar real e conhecida a Solução Final, última tentativa nazista de aniquilar os judeus
da Europa.

registradas ocorreram no inverno de 1944-1945, enquanto os soviéticos se aproximavam de Auschwitz, durante a


libertação polonesa.
18
III - Desvalorização de narrativas:

Penso que pode ter ocorrido com os prisioneiros que trabalharam


coercitivamente para os nazistas o mesmo que se passava com os veteranos feridos de
guerra que sobreviveram às batalhas e retornavam às suas casas. Vincent descreve como
uma espécie de julgamento moral.

O silenciamento pode ter sido estabelecido através da indiferença. Nas palavras


de Gérard Vincent: “De qualquer maneira, para que contar o que tínhamos vivido, já
que ninguém nos escutava? Da mesma forma que nós, que tínhamos vontade de falar
de outra coisa.” (VINCENT, 2009:193). Da mesma forma que os soldados feridos não
foram tão glorificados quanto os “heróis” que perderam suas vidas, estes prisioneiros
não receberam a mesma atenção que os mortos ou os mártires sobreviventes. Seligmann
também retrata em seu texto essa mesma indignação, presente nas falas de Levi. Em
sonhos o sobrevivente revelava o medo da indiferença ao seu testemunho, temia que o
“público ouvinte” o abandonasse ou não acreditasse em suas palavras, taxando-o como
mentiroso. A indiferença e o questionamento são balizas fomentadas por negacionistas
de forma tendenciosa para confundir e silenciar os sobreviventes.

A narrativa dita “imaginada” pelos negacionistas supõe que a vítima confunda


realidade e imaginação, em uma tentativa maldosa de invalidar o testemunho. Outro
pilar de silenciamento de momentos obscuros da história é a curiosidade. Nessa
tendência não há a intenção de compreensão e reflexão, somente o desejo de saber sobre.
Assim, a vítima se enxerga como um “animal de zoológico”; questionada, estudada mas,
nunca humanizada e ouvida. Como em programas político-sociais - comissões da
verdade e anistias pós ditaduras observadas em países da América Latina - que visam
somente inocentar culpados ou acalmar uma parcela da sociedade. Ao não ter a atenção
devida, a vítima fica impossibilitada de sair da condição de sobrevivente, motivo de
grande tristeza e silenciamento de pessoas que enfrentaram contextos traumáticos.

19
4. Metodologia:

Este trabalho foi produzido a partir do estudo do contexto histórico em que está
inserido a 2ª Guerra Mundial e o Holocausto e da análise teórica de conceitos
fundamentais sobre o tema, tais como Fascismo e Antissemitismo. As ideias presentes
aqui foram desenvolvidas a partir da leitura crítica de livros e artigos renomados que
resgatam historiografia e testemunhos do Holocausto. Atrelada a formação teórica, o
trabalho terá como fator norteador os testemunhos de Primo Levi e Eddy de Wind,
acionados como fontes primárias.

5. Trauma e Testemunho: sobre as dificuldades em narrar um cenário inimaginável.

Quando pesquisamos o significado da palavra “Testemunho” em algum buscador, nos


deparamos com claras e aparentemente simples definições para este conceito, tão caro e
emblemático no que tange à escrita da História. “Alegações”, “Argumentações”, “Afirmações”
e muitos outros sinônimos, todos nos permitem pensar o testemunho como um ato de falar.
Falar sobre algo ou alguém, tendo como base a memória de experiências vivenciadas no
passado, seja ele longínquo ou recente. Mas, quando se trata de uma experiência traumática,
como as vivenciadas e narradas por Wind e Levi, vítimas do Holacausto judeu idealizado por
Hitler, o ato de testemunhar se torna ainda mais complexo, visto que a dor do trauma é latente
para a testemunha, confunde e por vezes sufoca a fala.

Além da difícil tarefa de relembrar e externar situações traumáticas, as testemunhas do


Holocausto enfrentaram outras dificuldades ao narrar o período de horror vivenciado nos
campos de concentração. Desdém, descrédito e incompreensão foram algumas delas. Muitas
questões podem ser colocadas nesse momento: Como explicar um cenário inimaginável para
aqueles que não o amargaram? Como fugir de escutas curiosas e insensíveis, de interpretações
incrédulas e tendenciosas? Mas … Como falar quando não desejam ouvir? De fato, é certo e
necessário levar questionamentos às fontes históricas mas com o cuidado devido, para que
vítimas não sejam silenciadas, visto que, os testemunhos são essenciais para a construção da
narrativa histórica. Não só de testemunho pode-se produzir uma narrativa mas tampouco a
História se estabelece sem a devida valorização das mesmas. Cabe ao historiador adequar os

20
relatos individuais à realidade construída coletivamente para aquele período, levando em
consideração o trauma vivenciado e o contexto histórico em que a testemunha estava inserida,
sem deixar de lado o compromisso com a verdade.

Além da importância na construção da narrativa histórica, o testemunho se faz parte


fundamental no processo de fuga da “sobrevida” da testemunha de um evento traumático.
Narrar uma experiência traumática permite que o sobrevivente seja retirado do espaço limitante
de outridade colocado para ele. Trata-se de um renascimento por meio de um movimento de
fala e escuta. Em seu texto, Seligmann-Silva (2008) traz uma passagem onde Primo Levi fala
sobre uma espécie de “carência absoluta em narrar”, falar sobre o trauma ajuda a vítima a se
readaptar à realidade. Além disso, compartilhar a experiência torna o outro participante e, essa
é uma grande preocupação observada nos testemunhos de Wind e Levi. Em passagens explícitas
as vítimas demonstração essa motivação, buscam chamar a atenção “6dos outros” para o que
aconteceu quando a humanidade cedeu espaço ao ódio e ao preconceito na Europa. Essa
“dialogicidade implícita”, como chamou Seligmann-Silva , também tem a função política e
social de tornar real, cenário e vivência, ambos antes inimagináveis.

Dori Laub (1995), coloca que o Holocausto não é um evento histórico passível de
testemunho. Segundo o autor os relatos não partem de uma perspectiva imparcial, visto que, os
sobreviventes não conseguem se desvencilhar deste evento “contaminante”, comprometendo
assim a integridade e lucidez das narrativas. Esse discurso é bastante problemático à medida
que pode ser apropriado por correntes negacionistas para deslegitimar a vítima e abrandar as
narrativas das políticas nazistas, fomentando revisionismos históricos tendenciosos.

Dessa não possibilidade de desvencilhamento da experiência do Lager, surge a


expressão 7
“encriptados do lager”. Todos os homens que passaram pelos campos de
concentração de alguma forma permaneceram nessa cripta. Assim como entre os nazistas, entre
os próprios prisioneiros existia uma espécie de hierarquia. Supostamente, os “privilégios”

6
As expressões “dos outros” e “a eles” são derivadas de um imaginário proposto por Levi em seu testemunho. Segundo
ele, existia uma barreira estabelecida pelos muros do Lager, separando os prisioneiros/sobreviventes dos campos de
concentração das pessoas que não vivenciaram essa experiência. Tratava-se de vivências diferentes, onde as
experiências humanas vivenciadas no campo ocorriam de forma intensificada graças às condições a que eram
submetidos os prisioneiros.
7
Expressão formulada a partir do significado do termo “cripta” proposto por Nicolas Abraham e Maria Torok em
1995.
21
oferecidos no inferno aos prisioneiros eminentes - médicos, supervisores, enfermeiros,
prisioneiros políticos socialmente favorecidos, etc - permitiu com que não alcançassem o fundo
do poço como os mulsumanner. Assim, somente o testemunho desses homens “menos afetados”
poderiam ser levados em consideração. Mas, o testemunho de Wind desmente essa afirmativa;
era médico e, graças a sua condição, conseguiu se resguardar até certo ponto. Combatia o
processo de despersonalização se agarrando à imagem da amada Friedel e mantendo conversas
sobre “assuntos de fora” como política e sionismo. No hospital, por muitas vezes também foi
poupado da fome e de trabalhos exaustivos. Mas, isso não tornou frágil a cripta de Windy, o
homem que embebido do trauma criou um personagem para que ainda em Auschwitz
conseguisse testemunhar os horrores vividos. Assim, a vítima:

“Traumatizado, criou o personagem Hans para ser o narrador de sua própria história.
Diferente de alguns outros casos, o horror de sua experiência ainda era tão vívido que
ele não conseguia encontrar palavras para descrever aquilo em primeira pessoa. Esta
é a história de Eddy.” ( WIND, de E.; 2019; pág. 6)

Por mais sãos que tentassem se manter, ainda estariam em um campo de concentração.
Do mesmo modo que ser eminente na hierarquia dos prisioneiros não os tornavam menos
judeus. No fim, de uma forma ou de outra, a “cripta” alcançava todos aqueles homens. Windy
narrou seu testemunho ainda no campo, Levi um tempo depois mas, em ambos os relatos,
percebe-se a dificuldade de afastamento daquela experiência. Tratava-se de um “passado que
não passa”, uma experiência tão violenta que quando rememorada parecia ganhar contornos de
irrealidade. Essa sensação de irrealidade é um aspecto característico da memória de situações
traumáticas, a assimilação do horror vivenciado representada pela figura da cripta tem a
capacidade de desconstruir a realidade e anular o restante do mundo. Segundo Héléne Piralian
(2000), esse fenômeno divide o sobrevivente entre realidade e simbolização. Para Piralian, a
simbolização de um evento traumático torna possível a reconstrução de um espaço simbólico
de vida. Esse movimento de dar um novo tempo ao fato antes preservado, torna possível o
renascimento do sobrevivente, faz com o mesmo perceba que existe vida além do trauma.

O testemunho é peça fundamental para que o sobrevivente alcance essa dimensão da


simbolização, permitindo que o mesmo volte à vida. Entretanto, simbolizar não significa
esquecer o momento traumático, o trauma permanece entranhado dentro do sobrevivente.
Sempre haverá o mundo real, o cenário traumático e o campo simbólico. A presença constante
22
da lembrança de ter estado do “outro lado” da realidade está diretamente ligada ao
questionamento dos fatos ocorridos. Este é um ponto a ser observado pelo historiador, deve-se
oferecer uma escuta atenta e sensível ao sobrevivente, longe de julgamentos parciais mas, sem
perder o compromisso com a veracidade dos fatos. De modo a ajudar a vítima a conciliar as
regras de verossimilhança do “nosso mundo” e no caso aqui estudado, do universo
concentracionário alemão.

Além da simbolização, outro elemento interessante para pensarmos trauma e


testemunho destacado por Seligmann-Silva é a imaginação. Em sua obra, Seligmann-Silva traz
o já citado testemunho de Antelme (1957), um sobrevivente de Auschwitz, onde o mesmo
coloca que no momento de retorno à realidade parecia estar tomado por um delírio, parecia que
ainda permanecia no campo. Além disso, coloca a dificuldade de encontrar entre as palavras já
existentes meios para narrar a experiência vivida no Lager, segundo Antelme somente por meio
do uso da imaginação os sobreviventes poderiam traduzir este cenário inimaginável. Dessa
forma, a imaginação se apresenta como um mecanismo que permite ilustrar o trauma,
possibilitando o testemunho. Mas, é dessa premissa que advém muitas das críticas e acusações
direcionadas ao testemunho.

Muitos pensadores tendem a pensar o testemunho não como uma fonte original, fiel à
realidade mas como literatura, graças a seu possível aspecto imaginário. Mas, não se deve deixar
de lado o testemunho em função dessa aproximação com a imaginação, pelo contrário, deve-se
perceber na imaginação uma grande aliada para a construção da narrativa, à medida que ela nos
transmite mensagens e aludem imagens que uma fonte “dura”, autodenominada séria, que
supostamente representa fielmente a realidade não é capaz de proporcionar.

Podemos pensar a importância da imaginação em uma metáfora colocada por Wind para
traduzir seus sentimentos de medo e impotência diante aquela situação adversa. Assimila a
descrença que o assombrava a imagem de um 8golem. “E aí surgia de novo naquela bola de
barro que ficava na sua cabeça e que às vezes adquiria independência como um golem e
formava raciocínios inteiros sobre vida e morte” (WIND, 2019:78). Por meio da fonte é
possível conhecer o imaginário corrente entre os prisioneiros do campo mas, as figuras

8
Criatura de lama encontrada na tradição mística judaica.
23
propostas nos testemunhos dos sobreviventes nos aproximam, de certa forma, da realidade por
eles vivenciada, facilitando a compreensão. A imagem do Golem fazia Wind pensar em ceder
ao domínio nazista mas, para fugir do desânimo físico e psicológico, comum em um campo de
concentração, via em Friedel a solução para manter-se consciente, “pois ninguém quer se
degenerar completamente, por mais que esteja no lixo.” (WIND, 2019:77).

Além de contribuir com a aproximação entre o real e o “inimaginável”, a imaginação -


longe de qualquer tentativa de ficcionalização - ajuda no processo de simbolização do evento
traumático, facilitando o ato de testemunhar, diferente do que ocorre quando se espera da vítima
certa literalidade da cena traumática. Não é somente sobre conhecer mas também compreender.
O testemunho é uma das várias possibilidades da memória. A valorização da memória na
historiografia ocorreu após a chamada virada culturalista no seio das ciências humanas. Foi
nesse momento que o testemunho foi incorporado ao estudo e escrita do passado, assim como a
história oral e o uso das imagens. Graças às mudanças proporcionadas por essa “virada”
podemos identificar em fontes, que não só as positivistas, meios de interpretar as catástrofes do
século passado. Aristóteles, em seu tratado “De memoria et reminiscentia” (450 a 24),
caracterizou a memória como como um conjunto de imagens mentais - lembranças - das
impressões de um tempo determinado, acrescentou ainda que a memória está “guardada” na
alma, junto da imaginação. Assim, podemos pensar a memória como uma linha tênue entre o
real e a imaginação, que deve ser instigada e não ignorada.

Sobre o elemento político podemos pensar a indiferença ao testemunho como um meio de


legitimar o discurso do algoz. A valorização do testemunho rompe com a ideia colonial do discurso
do vencedor de que só os registros escritos podem ajudar na reconstrução de fatos passados. Jean
Norton Cru (citado por Rousseau, 2003) propôs essa crítica ao analisar as narrativas oficiais,
voltadas para as glórias dos heróis belicistas, da primeira guerra mundial. O autor propôs que a
historiografia se voltasse também aos testemunhos dos soldados, aqueles que, de fato, vivenciaram
a experiência do front. Essa contraposição historiográfica pode ser elencada como a primeira
tentativa de pensar e anexar o testemunho moderno à historiografia.

O testemunho é um conceito central no que tange a resistência e a busca por justiça e não
esquecimento das violências vividas em eventos traumáticos do período. É peça fundamental para
24
a reconstrução imparcial do passado e para o renascimento dos sobreviventes. Além disso, atua
também no Direito, parafraseando Seligmann-Silva (2008), fugindo de “um modo de pensar
falocêntrico calcado no discurso da comprovação e da atestação” de modo a não ser visto
somente como discurso de sobrevivente mas como elemento de preenchimento de lacunas,
garantindo um espaço de registro de outras interpretações para um mesmo fato, espaço que, por
muitas vezes é retirado por uma justiça falha, concebida em meio a fraturas e silêncios, como se
percebe nos julgamentos dos nazistas em Nuremberg, onde vítimas foram silenciadas e somente
os perpetradores do alto escalão foram condenados, visto que, a Alemanha precisava ser
reconstruída.

5.1 Panorama sobre o Antissemitismo: Da diáspora judaica à Solução Final.

Para introduzir o imaginário antissemita corrente na Europa do séc. XX tomarei como


ponto de partida um trecho de um diálogo entre Wind e Boekbinder, um líder 9 sionista que
também esteve no Bloco 10:

“Não existem judeus especiais, apenas uma questão social comum, contradições sociais
comuns, que são descarregadas sobre os judeus. Uma vez que sejam combatidas, a
questão judaica simplesmente deixará de existir.” (WIND, de E.; 2019; pág. 77).

Wind segue ao longo da conversa buscando explicar ao colega do bloco que o problema
não seria a tradição ou a religião judaica, mas sim o antissemistimo racial e étnico naturalizado e
aceito pela sociedade europeia, especialmente na Alemanha hitlerista. Boekbinder coloca que se
não os judeus não cedessem a assimilação permaneceriam sendo vistos como “elemento estranho”
na sociedade, apontamento que Wind discorda ao evidenciar a coexistência harmoniosa entre
diversos povos e culturas na Rússia. Não se tratava de uniformização mas de ódio e preconceito.
Endossado por políticas fascistas e imperialistas, o antissemitismo até então concentrado em
alguns países europeus, sem qualquer relevância política aparente como descreve Arendt (2012),

9
O Sionismo, também conhecido por “nacionalismo judaico” surge como uma oposição ao antissemistimo.
Historicamente, propõe a erradicação da Diáspora Judaica e o retorno dos judeus à Israel; judeus unidos na Terra
Prometida. Este movimento defende a manutenção da identidade judaica, opondo-se ao fenômeno da assimilação.
25
fomentou a chamada “questão judaica” observada como um elo entre nazismo e o segundo
conflito mundial, união que resultou em uma política de matança sistemática, o Holocausto.

Logo no prefácio de seu livro “Origens do totalitarismo” (2012), Hannah Arendt


diferencia o antissemitismo “leigo” do século XIX do antissemitismo observado no XX. Ambas
as formas marcadas pelo preconceito religioso e pela desconfiança em relação ao povo judeu,
foram fomentados por uma disputa ideológica no âmbito político-social, entretanto, apesar de
apresentarem uma origem comum, as formas de antissemitismo desencadearam fenômenos
distintos nos dois séculos. Segundo Arendt, igualar essas formas de antissemitismo é fazer uma
análise simplista e generalizante do fenômeno que culminou no Holocausto; pensar que o povou
judeu foi perseguido, escorraçado e morto sistematicamente e continuamente desde o fim do
Império Romano até o século XX é tão absurdo quanto acreditar na ideia mirabolante e
conspiratória endossada por Hitler da existência de uma sociedade secreta, onde judeus
supostamente buscavam dominar o mundo desde a Antiguidade. O Antissemitismo visto no século
XX não se tratava de “uma versão secularizada de populares supertições medievais” (ARENDT,
2012:17). Mais que isso, foi um discurso que se instalou rapidamente pela sociedade europeia e,
quando potencializado pelo discurso nacionalista e racialista de Hitler, sistematizado no Estado
totalitário fascista alemão, naturalizou o genocídio do povo judeu. Não se tratava mais de
segregação política e social mas, de violência física, material e psicológica. De coisificar um povo
inteiro para exterminá-los, sem qualquer julgamento moral ou punição institucionalizada, graças
ao Estado de exceção instaurado nas zonas sob domínio alemão.

A percepção de Wind acerca das raízes da perseguição aos judeus é conhecida desde o
início do século XV, quando fechados em um mundo e pensamento próprio, judeus concluíram
que o que os diferenciavam de nações e gentios não se tratava de doutrina ou tradição mas, nas
palavras de Arendt, da 10
“natureza interior”, possivelmente da origem étnica. Essa auto
interpretação judaica serviu de premissa para o nascimento e entendimento do antissemistismo
como tal, movimento percebido entre os gentios somente na Era do Esclarecimento. A construção
do antissemitismo apresentado ao mundo pela política de Hitler perpassa vários momentos

10
Ainda no período Medieval percebeu-se que o antissemistismo não podia ser reduzido à religião. Cristãos ofereciam
o batismo para que os judeus se libertassem de perseguições, estratégia falha visto que a violência a eles destinada
também poderia ter como causa os fatores políticos e econômicos.
26
importantes da história, pode-se citar a dispersão dos cristãos europeus em comunidades étnicas,
a queda dos Habsburgos, o surgimento dos Estados-nações e do conceito de soberania, crises do
Capital e de representação democrática. A história de judeus e gentios está social e politicamente
intrinsecamente ligada desde a queda do Império Romano, quando começaram as perseguições.

Fugindo da elevação moral e passividade natural imposta ao “povo escolhido” por alguns
historiadores judeus - imaginário que reforça o estereótipo de mártir e, com isso, a segregação
entre os povos - o povo judeu compartilhava com seus opositores o passado de hostilidade, uma
cultura rica e diversa além do desejo de conquistar o direito de igualdade. Dentro das
11
possibilidades cerceadas pelo meio, mesmo que nunca organizados politicamente e sempre sob
a tutela dos governos aliados, os judeus atuavam na sociedade. Essa divisão entre gentios e judeus
ajudou na preservação e identificação de um povo e de uma cultura fechada em si própria durante
séculos, status colocado em cheque no XIX e XX, quando fugindo do antissemitismo, alguns
judeus buscaram se assimilar às populações não judaicas.

Apesar dos letrados europeus também nutrirem certo sentimento antijudaico, no XIX, o
antissemitismo vulgarizado só podia ser observado entre os considerados loucos e lunáticos. Não
era de bom tom assumir-se antissemita publicamente, essas “correntes subterrâneas” só emergiram
com o endosso dos regimes totalitários observados na 2ª Guerra Mundial. No fim do séc. XIX,
surgiram os primeiros partidos antissemitas, o que demonstra a superação da ideia de “conflitos de
interesses” entre gentios e judeus e a sobressaliência do desejo de politização e amparo estatal de
um preconceito contra um grupo minoritário. Mas foi a partir das políticas do séc. XX que o
antissemitismo foi colocado em evidência no cenário mundial, logo após o estabelecimento do III
Reich e a elevação da ala nazista ao poder e, com ela, surge a necessidade de separar cidadãos de
judeus ou descendentes de judeus. O resultado dessa política já sabemos; um crime de massa nunca
antes datado pela civilização Ocidental.

É interessante aqui frisar a relevância de um Estado soberano e da cidadania para a


preservação das minorias observada por Timothy Snyder (2016). Pode-se pensar o antissemitismo

11
Desde o ano 70, após a destruição do Templo de Jerusalém, os judeus não possuíam Estado nem território próprio.
A vivência e a atuação judaica nunca eram autônomas, sempre estiveram sob a tutela de autoridades não-judaicas que,
apesar de lhes possibilitarem meios de defesa em algumas localidades, não os tornavam menos vulneráveis e indefesos
em situações de violência.
27
em dois estágios, nos regime pré-totalitário - Poupulista - e totalitário - Fascista - e o marco divisor
dos tempos são os chamados “Protocolos de Sião”. Os supostos protocolos foram elaborados para
a alegação da agência de uma comunidade judaica secreta que, por caminhos esotéricos, buscava
a dominação global. Essa suposição de teor totalitário foi constantemente usado pela propaganda
nazista para inflamar o antissemitismo arraigado na comunidade europeia.

Segundo Arendt (2012), no regime pré-totalitário as ideias antissemitas já corriam na


sociedade mas, não livremente. Antes da efetivação dos governos totalitários, os Estados europeus
eram autônomos e soberanos, organizados em seções burocráticas individuais que resguardavam
o cidadão de mazelas políticas e sociais. No Nazismo percebe-se o hibridismo de setores da
máquina pública, todos trabalharam em prol dos interesses expressos pelo Fuhrer. Após absolutizar
o Estado alemão e anexar territórios vizinhos, Hitler tratou de retirar a cidadania do povo judeu,
deixando-os a mercê do ódio instaurado pelo antissemitismo que, a essa altura, graças ao Fascismo
instalado na Europa, corria livremente na sociedade. De acordo com a elucidação de Timothy
Snyder, em sua obra intitulada “Terra Negra”, foi somente após a retirada da cidadania plena do
povo judeu é que foi possível a emigração forçada, os saques materiais, a deportação e o
Holocausto, sem qualquer restrição ou julgamento, moral ou judicial, pois a proteção estatal não
se estendia aos apátridas.

A ascenção do antissemitismo moderno coincidiu com o colpaso de Estados-nações e do


nacionalismo tradicional. Os nazistas desprezavam profundamente os moldes limitantes e
retrógrados do Estado e do nacionalismo conhecidos no século XIX. Segundo Snyder (2016), a
lógica nazista, no que tange ao antissemitismo, não se limitava a um Estado, ou a um território
específico. A causa antissemita era vista como um movimento internacional, ou pelo menos
intereuropeu. O ápice do antissemitismo europeu ocorreu quando os judeus foram destituídos de
funções públicas, restando-lhes riqueza mas poquíssima influência. Na Alemanha, Hitler extinguiu
a presença judaica nos bancos, instituições em que ocuparam posições de destaque por mais de um
século. Com as perseguições, o grupo judeu se tornou impotente e, consequentemente perdeu o
poder e a função que exercia sobre os Estados, o que inspirou ódio e desconfiança do povo, como
observou Arendt (2012). A classe média emergida com o fim da monarquia observava receosa a
movimentação judaica. Por ocupar altas posições na sociedade e por estarem associados ao Estado

28
e ao liberalismo, o povo - também chamado de ralé -, culpava os judeus pelas mazelas sociais
enfrentadas. Com o nascimento das repúblicas, o sentimento de disputa foi aflorado.

Arendt (2012) aponta que a riqueza por si só não conferia poder aos judeus. Quando
desligados das atividades vinculadas ao Estado, o grupo perdeu não só o status privilegiado mas
também influência política, fato que alterou significativamente o equilíbrio da ordem social antes
assimilada. Sem as relações políticas, econômicas e sociais traçadas entre gentios e judeus, a linha
tênue que selava a paz entre os mundos desaparece, cedendo espaço ao antissemitismo. Sem
influência e com uma riqueza inativa, os judeus passaram a ser vistos pelo povo - classe média/ralé
- como parasitas. Com o cenário propício, os judeus foram facilmente apontados como
responsáveis por diversos conflitos da época, agentes ocultos provocadores do caos. A esse
12
imaginário se deve a construção do mito judaico-bolchevique, causador da disputa acalorada
entre a Alemanha Hitlerista e a URSS Stalinista, pausado somente durante o acordo de paz
Molotov- Ribbentrop que vigorou por apenas 2 anos.

O surgimento e a crescente antissemita observada na modernidade coincide com a


secularização de alguns preceitos espirituais e religiosos judaicos além do movimento de
assimilação a sociedade majoritária. A assimilação judaica é tópico importante a se observar no
estudo do antissemitismo pois é um marco divisor deste grupo. Com a ameaça latente de extinção
física do judeu e ideológica de um grupo, judeus enxergaram no antissemitismo um meio de evitar
a dissolução do grupo, pois enquanto houvesse antissemitismo haveria o grupo judeu. Conforme
elucidou Arendt (2012), judeus contrários a assimilação desconheciam os perigos do
antissemitismo moderno pois os igualavam ao antigo ódio anti-judaico, o qual já estavam
habituados. Estes judeus enxergavam na segregação um meio de preservar o grupo e os privilégios
de uma vida “normal”. Aqui é válido ressaltar que essa “normalidade” fazia parte da vida de judeus
exceção, considerados “tolerantes, educados, cultos, extraordinários e superiores” integrantes da
alta sociedade; banqueiros, financiadores de Estado, artistas, intelectuais, etc. Os privilégios não
se estendiam aos judeus marginalizados “pobres, imigrantes, apátridas e mal educados”. É

12
Teoria conspiratória amplamente difundida no século XX que vinculava a imagem de judeus e bolcheviques a um
suposto “plano de dominação mundial”. Sob essa perspectiva os judeus foram vistos como inventores do Comunismo,
onde o único objetivo da Revolução seria estender a influência do grupo judeu pelo mudo. Assim como integrantes de
outros grupos sociais, alguns judeus se filiaram ao Partido Comunista mas é ilógico apontá-los como precursores da
causa.
29
urgente a desconstrução do imaginário que reduz os judeus a uma grande família unida que
passivamente sofreu martírios ao longo de sua história. Como demonstrado por Arendt em
“Origens do Totalitarismo” (2012), desde o século XVII havia diferenciação entre os próprios
membros do grupo - enquanto os “comuns” viviam ainda no anonimato, regidos pelos antigos
padrões feudais, judeus “exceção” ocupavam lugares de influência nos centros urbanos e no setor
financeiro - e, essa diferenciação foi manipulada conscientemente - tanto pelos Estados quanto
pelos próprios judeus - para assegurar privilégios para os judeus apossados.

Em contrapartida, a assimilação judaica foi vista por muitos judeus como um meio de
integrar plenamente a sociedade, ocupando espaços antes impensados e garantido a cidadania
plena. O crescimento do movimento antissemita concomitante ao declínio do Estado - Nação
europeu em muito tem a ver com as relações traçadas entre os judeus e os estados ao longo dos
séculos. Desde as monarquias absolutistas o povo judeu exerceu influêcia sobre o governo dos
estados. No XVII, Hannah Arendt (2012) observou a influência judaica sobre o Estado- Nação,
quando no decorrer da expansão econômica, o crédito judaico foi solicitado. Segundo a autora, o
grupo era um “velho emprestador de dinheiro”, desde a nobreza europeia mantinham estreitas
relações com os governos; administravam finanças estatais e de soberanos, financiavam guerras,
selavam acordos de paz. Diferente do grupo judaico, integrantes de outros grupos sociais não se
envolviam nos negócios arriscados do Estado e se dispunham a fornecer crédito às instituições
estatais europeias. Assim “Era do interesse dos Estados conceder aos judeus certos privilégios
em troca e tratá-los como grupo à parte”. (ARENDT, 2012: 37). Mesmo emancipados, os judeus
permaneceram sendo vistos como um grupo à parte na sociedade, se os chamados “judeus-
exceção” fossem assimilados, os negócios do Estado seriam prejudicados.

Seguindo o conceito de igualdade, elaborado ao fim da ordem feudal, no séc. XIX, foram
concedidos aos judeus igualdade de direitos, visto que, no Estado-Nação o fator responsável pelo
alcance da cidadania plena seria a nacionalidade. Essa igualdade livrou judeus de restrições
políticas, econômicas e sociais mas também reforçou certos privilégios e direitos especiais
concedidos ao grupo conforme os interesses do Estado. Assim a emancipação política e social dos
judeus foi sinônimo de igualdade mas ao mesmo tempo de distinção, nas palavras de Arendt:

“Portanto, a emancipação dos judeus, como lhes foi concedido pelo sistema de Estado
nacionais na Europa durante o século XIX, tinha dupla origem e o significado ambíguo.

30
Por um lado, ela decorria da estrutura política e jurídica de um sistema renovado, que só
podia funcionar nas condições de igualdade política e legal, a ponto de os governos, para
seu próprio bem, precisarem aplainar as desigualdades da velha ordem do modo mais
completo e mais rápido possível. Por outro lado, a emancipação resultava claramente da
gradual extensão de privilégios - originalmente concedidos a alguns indivíduos e, depois,
a pequenas camadas de judeus ricos - e que passaram a ser outorgados a todos os judeus
da Europa central e ocidental, para que atendessem às crescentes exigências dos negócios
estatais, a que os limitados grupúsculos de judeus ricos não conseguiam mais fazer face
sozinhos”. (ARENDT, H.; 2012; pág.37).

Dentro desse Estado norteado pela ideia de igualdade política e social, judeus constituíam
o único grupo isento. Essa excepcionalidade dentro da ordem vigente os impossibilitou de se
organizarem politicamente e, consequentemente, de pertencer ou estabelecer alguma classe. O
grupo não se encaixava em nichos; não eram latifundiários nem trabalhadores, sequer comerciantes
ou camponeses. Para Arendt (2012), o meio de inserção social judaico era o dinheiro, a riqueza
fazia com que parecessem membros da classe média burguesa, o que não era verdade, visto que,
não acompanhavam a ascensão capitalista da classe. Dessa forma, mesmo quando inseridos em
sociedade, o grupo judeu permanecia bem delineado, coexistindo entre as classes - seja na
aristocracia ou no momento da ascenção da burguesia - com a identidade preservada. Como dito
acima, a não assimilação judaica nos negócios da sociedade dita “normal” - antes do século XX -
beneficiava tanto os representantes do Estado quanto o grupo judaico e, só foi possível porque
ambos os lados cooperaram.

A presença judaica por trás das ações do Estado começou a declinar com o surgimento do
Imperialismo, no fim do século XIX. O capitalismo em expansão remodelou a essência do Estado-
Nação antes conhecida, o comércio europeu passou a ser orientado por um espírito de concorrência
e competição. Nesse contexto, judeus perderam o monopólio dos negócios estatais, alguns
individualmente conservaram suas posições de destaque, o que não ocorreu com o grupo como um
todo.

A desintegração do judeus como grupo no Ocidente ocorreu no momento da queda do


Estado-Nação, nas décadas que antecederam o início da 1ª Guerra Mundial. Apesar da
reorganização política e social, os judeus vivenciaram na década de 80 a chamada época de ouro,
período de trégua do antissemitismo. Trégua findada pelo primeiro conflito mundial. Privados de
privilégios, judeus enfrentaram a escassez do pós-guerra , reunidos em um grupo heterogêneo,

31
onde ricos e pobres se misturavam. Com o despretígio trazido pelo imperialismo e a instabilidade
europeia provocada pelos conflitos protagonizados pos suas nações, o judeu novamente se viu
desamparado na sociedade, “… intereuropeu e não nacional, tornou-se objeto de ódio, devido a
sua riqueza inútil, e de desprezo, devido a sua falta de poder”. (ARENDT, 2012: 41).

A riqueza que outrora permitia que os judeus passeassem pelas cortes e até mesmo
pertencessem à nobreza e, posteriormente, lhes garantiram a tutela estatal e privilégios no Estado-
nação já não assegurava as relações amigáveis traçadas entre Estado e Judeus. Assim, tendo como
pano de fundo, o fim da monarquia e da aristocracia, o fortalecimento da burguesia liberal e dos
investimentos privados, o surgimento dos ideais republicanos e a necessidade de autonomia e
soberania para o fortalecimento do Estado-nação; judeus foram gradualmente perdendo espaços
nos altos setores da sociedade. Prova que os judeus estavam cientes da instabilidade que os atingira
em meio às transformações políticas e sociais observadas nestes séculos é a aberta defesa da
monarquia em contraposição a adoção do regime republicano pelos 13Rothschild: “até então, os
Rothschild se acomodavam a qualquer sistema político que estivesse no poder. Parecia, portanto,
que a república era a primeira forma de governo que não precisava deles.” (ARENDT,
2012:149). Vale reforçar que o rompimento das relações não se deu de forma imediata porque os
judeus ainda representavam grandes fontes de crédito para os negócios estatais em função do não
pertencimento a classes sociais e suas fortes ligações internacionais.

Ainda buscando traçar um rápido panorama acerca deste fenômeno bastante complexo, no
XIX, o caso 14Dreyfus marca a extinção dos privilégios por muito tempo concedidos aos judeus.
Não existia mais nobreza, títulos ou riqueza que resguardasse os judeus de sua origem
marginalizada. No fim, eram todos "pários sem nação”, “… para quem os direitos humanos não
existem, e de quem a sociedade teria o prazer de retirar os seus privilégios”. (ARENDT,
2012:173). Como de fato ocorreu no século XX, quando a cidadania que garantia a proteção estatal
do grupo foi retirada, permitindo que a burocracia nazista usurpasse bens materiais e ceifasse a
vida de milhares - as listas de eportação de Eischmann, por exemplo, só foram possíveis porquê

13
Notável família judia que se consolidou como grande potência financeira, aliada de governos em toda Europa.
14
Caso judicial de um oficial francês de origem judaica que foi acusado de espionagem para os alemães. Dreyfus foi
condenado injustamente e sua condenação falaciosa causou grande mobilização entre a população francesa, sucitando
reflexões acerca do antissemitismo por toda a Europa.
32
os judeus estavam politicamente desamparados -, dentro e fora de campos de concentração durante
a 2ª Guerra Mundial. Sobre a importância da desvinculação judaica dos Estados para a efetivação
do Holocausto, Arendt sintetiza:

“Para que os judeus fossem removidos do planeta, antes de mais nada deviam ser
desvinculados do Estado [...] Só se pode fazer o que quiser com pessoas sem Estado”.
(SNYDER, T.; 2016; pág.140).

A esse desprestígio político e social foram somadas contra os judeus as teorias racialistas
e conspiratórias de Hitler. Como bem pontuou Snyder (2016), segundo a lógica do Fuhrer a vida
seria orientada por uma estrutura permanente onde as ditas “raças humanas” estariam condenadas
a uma luta mortal, onde as raças elevadas estariam em um processo evolutivo enquanto que as
baixas deveriam ser caçadas e mortas. A mistura das raças era condenável, o que explica as longas
e demoradas pesquisas genealógicas para a concessões de casamentos entre arianos, nenhuma raça
marginalizada poderia manchar o “naturalmente superior” sangue alemão. Sobre isso, escreveu
Hitler:

“Nossos inimigos raciais foram definidos pela natureza, e nossa missão é lutar, matar e
morrer. “A natureza desconhece limites políticos”, escreveu Hitler. “Ela põe formas de
vida neste mundo e as deixa livres no jogo pelo poder.” (SNYDER, T.; 2016:16)

Para Hitler, política nada mais era que natureza. Seguindo essa lógica de pensamento, nada
mais justo e legítimo que manipular os interesses de um Estado ainda debilitado pelas sanções
impostas - restrições políticas, econômicas e militares - ao país após responsabilização da 1ª Guerra
Mundial, para produzir uma guerra imperialista e sobretudo ideológica. A disputa entre as raças
constituía a essência da vida, Hitler via como sua missão principal o extermínio das minorias,
15
especialmente, os judeus, vistos como uma contrarraça. Além de constituírem historicamente
uma não raça, usavam de riqueza para operar Estados, a fim de dominar o mundo, segundo as
conspirações nazistas; “qualquer ideia universal era um mecanismo de domínio dos judeus.
Capitalismo e Comunismo eram judaicos.” (SNYDER, 2016:20)

15
Segundo Hitler, o único país que contava com a superioridade racial em condições de igualdade com a Alemanha,
seria a Inglaterra.
33
Mais que a preservação do Estado, o objetivo de Hitler era a preservação da espécie. Assim,
16
disseminou através das propagandas fascistas de Goebbels um nacionalismo extremado e um
imaginário terrorista onde judeus poderiam exterminar os “mais aptos”, invertendo a ordem
“natural” dos fatos. Como esperado, a sociedade alemã e, posteriormente, parcelas da comunidade
europeia rapidamente aderiram a ideia e passaram a integrar a máquina nazista. Alguns pela
possibilidade de ascenção social, como as moças do interior observadas por Wendy Lower (2014),
outros tomados pelo desejo de retomar o que supostamente lhes seriam tirado, inflamados pelo
antissemitismo genocida corrente na época.

Desse emaranhado ideológico emergiu os contornos da chamada “Solução Final”;


carnificina orquestrada pelo alto escalão nazista mas, consolidada com o apoio de vários setores
da sociedade alemã, seja de forma direta ou indireta e adotada por diversos países da Europa, sob
variados graus de intensidade, conforme seus interesses internos diante o desenrolar da guerra. As
palavras de Hannah Arendt demonstram dificuldade em não se comprometer com as políticas
Judenrein: “A única maneira possível de viver no Terceiro Reich e não agir como nazista consistia
em não aparecer de forma alguma: “retirar-se de toda participação significativa na vidapública”.
(ARENDT, 1999:143).

Partindo dessa premissa é interessante aqui destacar o caso de Adolf Eischmann, um


homem descrito por Arendt (1999) como “normal” - tinha convívio próximo com judeus e seu
maior interesse aparentemente era os benefícios trazidos pelas promoções dentro da hierarquia
nazista - de “inteligência mediana” e que por isso quase não tinha acesso ao restrito alto escalão
nazista e a sua linguagem altamente confidencial. Eichmann, portanto, não era um valorizado
“portador de segredos”, mas isso não o impediu de elaborar listas de deportações que levaram
milhares de pessoas ao encontro da morte em Auschwitz -Birkenau. Em um mundo às avessas, de
valores corrompidos, só “se podia esperar que apenas as “exceções” agissem “normalmente”.
(ARENDT, 1999:38).

16
Político do alto escalão nazista. Devoto do Fuhrer, atuou entre 1933-1945 como ministro da propaganda. Grande
orador, as falas de Goebbels tiveram papel importante para a poularização do antissemitismo na Alemanha.
34
17
Pogroms, desapropriação, emigração forçada, deportações; estágios de um plano que
inicialmente levariam os judeus a estabelecer comunidade em Madagascar mas que ao menor sinal
de inviabilidade, levou-os diretamente para a morte em guetos e em campos de concentração. O
único e primordial objetivo era tornar a Europa Judenrein - livre de judeus - não importava as vias.
Mirabolantes propostas foram elaboradas, espaços e meios - antes inimagináveis - de “limpeza
racial” foram secretamente modulados e aos poucos difundidos na sociedade europeia por meio de
mensagens subliminares. Palavras rebuscadas usadas para confabular uma “Solução Final”, termo
vago que, em suma, significava despersonalização gradual, lenta e dolorosa, para fins continentais
de aniquilação de um grupo inteiro em campos de concentração e extermínio. Felizmente, a
Solução Final não alcançou Levi e Wind, dois sobreviventes do complexo de Auschwitz que nos
permitem através de seus testemunhos valiosos compreender um dos períodos mais violentos da
humanidade.

5.2 Relações ambíguas: a compreensão do “Eu” prisioneiro e da morte sob o fator


instituição.

Desde o anúncio da deportação até o último dia em um campo de concentração, o


prisioneiro tinha a vida marcada pela incerteza. Silêncio e solidão. Estes homens, tratados como
peças, possuíam uma única certeza, a morte. Porém, apesar de certos de que iriam morrer, a
morte também era marcada pela obscuridade. Não havia ano, mês, dia ou hora marcada. Sobre
a morte, Wind coloca:

“No entanto sabemos ainda mais. Sabemos que, para nós, também há um único fim,
uma única libertação deste inferno de arame farpado: a morte. Sabemos que a morte
também pode nos chegar aqui de diversas formas. Pode vir como uma guerreira leal,
contra a qual um médico pode lutar. Embora essa morte tenha aliados torpes - a fome,
o frio e os parasitas -, continua sendo uma morte natural, a ser classificada entre causas
oficiais de morte. Mas, para nós, ela não virá assim. Virá da maneira que veio para os
milhões que nos precederam aqui. Virá para nós sorrateira e invisível, quase sem
cheiro.” (WIND, E de.; 2019; págs. 8/9)

17
Pogroms são atentados físicos ou materiais, violência destinada a grupos marginalizados socialmente que pode ser
organizada tanto por civis ou pelo próprio Estado. Estratégia muito utilizada na II Guerra Mundial para aterrorizar
judeus, o pogrom mais famoso foi chamado de “Kristallnacht” ou Noite dos Cristais, onde sinagogas foram
incendiadas, 7500 vitrines de lojas judaicas foram destruídas e 20 mil judeus foram deportados para campos de
concentração em toda Alemanha.
35
O ser humano é naturalmente instável e sobrecarregado. O fardo da insegurança
potencializado pela instabilidade e hostilidade dos campos de concentração se colocava como
força desestabilizadora para o prisioneiro. Essa desestabilização pode ser notada na forma com
que o prisioneiro lidava com o próprio eu e com o outro sob a ameaça constante de morte. Como
observado no testemunho de Levi (1988), alguns debochavam da situação, outros se mostravam
apáticos, não sentiam dor no corpo ou na alma; não sentiam medo; também poderiam se mostrar
violentos, sem escrúpulos, não raciocinavam. Sobre essa violência de caráter vicioso do
prisioneiro ocasionada pelo fardo da arbitrariedade dos campos, Friedel - enfermeira também
prisioneira e companheira de Windy - coloca sobre o tratamento das prisioneiras eleitas kapos
em relação às demais: “Era horrível para elas, é claro, mas agora achavam que tinham que
tornar as coisas horríveis para nós também [...] Sempre esse sistema de descarregar no outro”.
(WIND, 2019:147).

Os únicos momentos em que se podia perceber resquícios do verdadeiro eu do


prisioneiro, eram aqueles estimulados pelas condições biológicas: quando sentiam frio, fome
ou sede. Esse quadro reflete a validação dos princípios nazistas: primeiro a morte da alma, fim
da sobrevivência moral, em seguida e por mera consequência, a morte física. Para sobreviver
em sociedade o ser humano necessita de suporte. Esse suporte não é biológico. O suporte que
direciona a vida e a relação com os outros são personificados pelas instituições. Estas fornecem
ordem, direção e estabilidade para a conduta humana e dessa forma estabelece a ordem social.
Como pode-se ver em: “A inerente instabilidade do organismo humano obriga o homem a
fornecer a si mesmo um ambiente estável para sua conduta’’.(BERGER; LUCKMANN, 2004:
77).

O fator instabilidade atrelado a falta de determinadas instituições nos campos de


concentração também pode ser observado nas palavras de Primo Levi:

“Imagine-se, agora, um homem privado não apenas dos seres queridos, mas da sua
casa, seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será
um vazio, reduzido a puro sofrimento, esquecido de dignidade e discernimento - pois
quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo; transformado em algo tão
miserável, que facilmente se decidirá sobre a sua vida e sua morte [...].” (LEVI, P.;
1988; pág.33).

36
O homem que em sociedade vivia seguro dentro da estabilidade fornecida pelas
instituições que integrava - família, trabalho, escola, etc -, no campo se via incapaz de
desempenhar qualquer ação. Viver significava um peso, o homem antes instigado a reprodução
de hábitos, à medida que se torna prisioneiro, se vê obrigado a pensar em todas suas falas e
ações dentro de um ciclo vicioso, visto que, não é possível estabelecer hábitos pois a vida estaria
garantida somente no presente imediato.

Como pensar/planejar algo se a própria existência se mostrava essencialmente incerta?


A insegurança representava um fator importante no processo de perda de sanidade, estado que
dificultava qualquer ação ou reação. Como se percebe na seguinte passagem: “A insegurança
penetra em tudo e atinge os centros nervosos, porque as impressões ameaçadoras e não
peneiradas se acumulam pesadamente, enquanto a atividade se encalha”. (GEHLEN,
1984:102).

Psicologicamente afetado e consequentemente estagnado, o prisioneiro esperava a


morte. Mas, durante a espera, sua condição biológica trazia impulsos de esperança. Esperança
ao receber uma maior porção de comida ou um minuto a mais de descanso. Novamente, o
homem voltava a si através de sua condição biológica. Mas, quando a esperança se esvaia,
retornava a insegurança. A certeza da morte incerta desencadeou no íntimo desses homens a
sensação de se estar no inferno. Nas palavras de Primo Levi:

“Isto é o inferno. Hoje, em nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala grande e
vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gotejante mas que não tem água
potável, esperando algo certamente terrível, e nada acontece, e continua não
acontecendo nada. Como é possível pensar? Não é mais possível; é como se
estivéssemos mortos.” (LEVI, P.; 1988; págs. 25/26).

Assim como os prisioneiros judeus, os alemães também se transformaram na ausência


das instituições. Neste cenário essencialmente arbitrário, a crueldade dos “demônios” do
inferno citado por Levi era movida pelo álcool e pela crença inconsequente no antissemitismo
pregado pelo nacional-socialismo. Na suspensão de um Estado burocrático soberano e,
consequentemente, de normas e regras oficialmente instituídas, não havia punição para aqueles
que atentavam contra os homens pertencentes às minorias, como se é sabido desde as primeiras
ocupações. Nos campos de concentração, a violência ocorria livremente, sem qualquer

37
justificativa, se desferida contra um judeu inimigo, automaticamente se tornava legítima. Sobre
a atitude dos nazistas, Wind coloca:

“O instinto de crueldade, que em todo homem civilizado é sistematicamente reprimido


desde a primeira infância pelo ambiente e educação, foi desatado no povo alemão. A
moral nacional-socialista, mais o álcool necessário transformava a pessoa em um
demônio” (WIND, E. de; 2019; págs. 53/54).

5.3 Mundos divergentes: a vivência no Campo de Concentração pelo olhar de um


prisioneiro.

Para compreender as estratégias de sobrevivência adotadas pelos prisioneiros é


necessário admitir a existência de dois ambientes distintos e, em decorrência, dois modos de
vivenciar a humanidade. Tanto Wind (2019) quanto Levi (1988) esboçam em seus testemunhos
a existência de duas realidades distintas; havia o campo de concentração e a sociedade liberta,
o homem prisioneiro e o homem livre. Mundos e sujeitos essencialmente opostos.

O prisioneiro do campo era um homem disforme e esquálido que tinha um andar


arrastado, roupas imundas e esfarrapadas. Barbas e cabelos compulsoriamente tosquiados.
Nomes apagados e números tatuados. Era separado de sua família e de qualquer fato lhe
remetesse à antiga realidade. Diferente do homem que vivia livre em sociedade, o prisioneiro
não precisava de relógio ou de dinheiro. Nos campos, ninguém era dono do próprio tempo e já
não tinha sentido em possuir dinheiro ou algo visto como valioso no mundo exterior. Ao
adentrar os campos o prisioneiro tinha a sensação de estar fora do mundo e fora do próprio
corpo, não havia preocupação externa, interessava apenas “aqui e o agora”, Levi se
autoproclamava pertencente a uma outra espécie.

A realidade dos campos de concentração era incompreensível. Caracterizado como o


inferno por Primo Levi (1988), os campos pareciam ambientes destoantes quando comparados
ao resto do mundo. Um ambiente essencialmente hostil, de difícil adaptação, com leis e hábitos
próprios, onde prisioneiros sobreviveram sob constante ameaça de morte, trabalhando
exaustivamente em condições insalubres. Diferente do homem livre, o prisioneiro tinha a fome
regular, uma fome crônica. O prisioneiro também aprendia a roubar e a não ser roubado, tinham

38
peles amareladas e feridas físicas que não cicatrizavam. Nada no campo se assemelhava ao
mundo externo. Nem mesmo os homens.

Nos campos não havia tempo, não havia paciência com o semelhante, nem interesse em
ouvir as dores ou somente responder as questões dos novatos. Sem mencionar a dificuldade de
convivência ocasionada pela coexistência de variadas línguas e culturas. Havia sono mas não
podia descansar. As folgas eram raras. O prisioneiro levantava cedo e não tinha hora para
dormir, enquanto havia luz do dia se trabalhava, à noite uma pausa, não por necessidade ou
compaixão mas por precaução, o descanso servia para evitar fugas noturnas.

Ao levantar, correria. Limpeza, organização e movimento eram as palavras de ordem


dos campos. Em meio ao vento gélido, o homem prisioneiro era religiosamente contado, dia
após dia. Em seguida, se dirigia aos lavatórios para se limpar com água imunda, às latrinas e
por fim recebia um minguado pedaço de pão. A vida dos prisioneiros nos campos de
concentração só não seguiu essa ordem quando estavam doentes, nessa condição, eram
mandados à enfermaria ou para a morte direta, na câmara de gás.

Ao contrário do homem que vivia livre em sociedade, o homem do campo de


concentração não tinha perspectivas, certezas ou dignidade. Nem nome, família ou comida. Não
existiam condições básicas de sobrevivência, não havia tempo para se pensar o passado e nem
para cogitar o futuro. Como pondera Levi (1988), existia apenas o homem prisioneiro que se
assemelhava a um bicho, e um espaço, o campo, que poderia ser caracterizado como o fundo
do poço.

5.4 Estratégias de sobrevivência: as profissões e os trabalhos no campo.

Ao adentrar o mundo das estratégias de sobrevivência adotadas pelos prisioneiros, pode-


se levantar a seguinte questão: As profissões exercidas em sociedade pelos prisioneiros quando
libertos, podem ser colocadas como condicionantes favoráveis à obtenção de privilégios no
campo de concentração? De modo específico, pode-se dizer que determinadas profissões
teriam sido utilizadas como estratégia de sobrevivência?

39
Após duros anos de guerra, o governo alemão se deparou com um grande problema: a
escassez de mão de obra. A falta de homens aptos para trabalhar fez com que os campos de
concentração suspendessem as políticas de morte sistemática, além de propiciar pequenas
melhorias nas condições de vida enfrentadas pelos prisioneiros. Melhor alojamento, melhores
sapatos e roupas, mais comida. Coisas simples que, dentro do campo, se tratavam de um grande
privilégio. Wind narra em seu testemunho que sua condição de médico e possuir contatos
relevantes dentro da hierarquia do campo, possibilitou a si mesmo e à esposa Friedel, mesmo
que momentaneamente, um respiro aliviado. Um trecho que demonstra essa ideia parte do
registro do primeiro diálogo do casal em Auschwitz:

“Ah não é tão mau. Não precisamos trabalhar e é bem asseado. Friedel eu conversei
com o professor. Você não precisa ter medo, ele disse que, como esposa de um médico,
vai poupar você. [...] Friedel, querida, eu estou no hospital, também posso memanter
bem por lá …” (WIND, de E.; 2019; pág.53).

Medidas de suavização da rotina foram propostas com o intuito de prolongar a


expectativa de vida dos homens no campo de concentração. Visto que, um prisioneiro sadio e
hábil, capaz de resistir à fome, ao frio, a doenças e às condições exaustivas de trabalho,
significava um prisioneiro economicamente útil. Útil na indústria, nas residências nazistas, no
calçamento de ruas, nos hospitais e até mesmo executando o trabalho sujo dos crematórios e da
coleta dos pertences valiosos das igualmente vítimas do sistema. Inicialmente o prisioneiro era
submetido a uma espécie de seleção de caráter arbitrário. Essa seleção dividia homens em
válidos e inválidos. Os homens considerados válidos eram destinados a trabalhar pelo Reich.
Ao chegar no complexo de Auschwitz o prisioneiro era recepcionado pela ideia falaciosa de
que “ARBEIT MACHT FREI”18, colocada logo no portal do campo. Ao passar por esse portal,
iniciava-se uma série de etapas do longo e doloroso processo de desumanização vivenciado nos
campos por estes homens. Nos atentemos a uma das etapas iniciais retratadas por Levi (1988):
O homem tem o nome, os cabelos, a barba, as roupas, os sapatos e as bagagens retiradas. Não
se pode negar, questionar, falar, quiçá negociar. Somente obedecer em silêncio. Em troca, o

18
“O trabalho liberta.”

40
mesmo homem, recebia um uniforme rasgado e sujo, um número costurado no peito e outro
tatuado em alguma parte do corpo.

É necessário enfatizar que todos os homens seguiram este mesmo ritual. Sem exceções.
Para os nazistas, do portal para dentro do campo não existia este ou aquele, os privilégios antes
usufruídos em sociedade eram deixados para trás. A etapa exemplificada anteriormente marca
o fim da individualidade. Já não existiria o “eu”, existiriam somente membros de uma mesma
espécie. Mas, isso não significa que os prisioneiros se tratassem como iguais entre si. Havia
uma hierarquia orientada pelo “crime” que os levaram até aquele lugar. Etnia, credo, ideologias,
orientação sexual, patologias físicas ou mentais, crimes políticos, etc. No topo da lista estavam
os alemães imperiais e no final os judeus. E esse cenário desfavorável também pode ser
identificado no trabalho, como demonstra o processo de admissão coordenado por um
prisioneiro polonês no hospital do campo narrado por Wind. Wind questiona a diferença no
tratamento entre judeus e poloneses, quando o companheiro De Hond o integra à orientação da
seleção: “Você passou pelo alemão, mas não pelo polonês” (WIND, 2019:55). Em outra
passagem também é possível perceber a diferença de tratamento: “Dr. Benjamin e ele eram os
únicos judeus e os outros detentos também eram hostis com eles”. (WIND, 2019:59/60).

Mesmo tendo como capital Varsóvia, uma das cidades com maior índice de população
judaica na Europa fora da Palestina, o antissemitismo também se fazia presente no perímetro
polonês e a hostilidade se mostrava também nas relações traçadas dentro dos campos, salvo
algumas exceções. Snyder (2016) pontuou que a quebra da aliança entre Polônia e Alemanha
em 1938 - um dos fatores que desencadearam a eclosão do segundo conflito mundial - foi
motivada pela discordância no que se tratava à anexação dos Sudetos ucranianos e pelo
desconforto polonês em receber os judeus deportados de outros países europeus pelos alemães.
O orgulho em não ser judeu e a busca constante pelo afastamento rompeu os limites das cercas
de Auschwitz, o antissemitismo fomentou a segregação entre os prisioneiros nos campos.
Fenômeno facilmente identificado na lógica opressora que movia as engrenagens da máquina
nazista, formando um ciclo vicioso de violência, como registrou Wind:

“Era assim por toda a parte com os nazistas. Os homens da SS19 gritavam com todo
mundo, inclusive com os supervisores, os supervisores gritavam e batiam, inclusive

19
Schutzstaffel, abreviada como SS, trata-se uma organização paramilitar ligada a Hitler e ao alto escalão do Partido
Nazista, um dos exércitos responsáveis por disseminar o ódio e violência ao povo judeu durante a 2ª Guerra.
41
nos poloneses, e estes por sua vez escolhiam os mais fracos para gritar, que eram Hans
e um judeu polonês chamado Leib [...] O supervisor batia nos poloneses e os poloneses
batiam em Hans.” (WIND de E.; 2019; pág. 62)

Apesar da existência dos Lagerältest 20, Kapos21 e dos Kommandos de Especialistas, a


divisão destes prisioneiros baseada na profissão se dava apenas no trabalho. Ao fim dos turnos,
o prisioneiro do Kommando de Especialistas era tratado da mesma forma que o prisioneiro do
Kommando Comum. O fator espécie - espécie a ser eliminada - estava acima de qualquer
profissão. Como pode-se ver em:

“Trabalhamos todos, com exceção dos doentes [...] Quanto ao trabalho, estamos
divididos em perto de duzentos Kommandos, cada um com um mínimo de 15 homens
e um máximo de 150, comandados por um Kapo. Há Kommandos bons e ruins; a
maioria deles é destinada aos transportes, e o trabalho é duro [...] Há também
Kommandos de especialistas (eletricistas, ferreiros, pedreiros, soldadores, mecânicos,
etc), cada qual destinado a certa oficina ou setor da fábrica [...]. Isto, obviamente, só
acontece nas horas de trabalho; no resto do dia, os especialistas (que não passam de
300 ou 400 ao todo) não gozam de tratamento diferente dos trabalhadores comuns.” (
LEVI, P.; 1988; págs. 45,46).

Assim, não é possível afirmar que a profissão influenciasse diretamente na


sobrevivência do prisioneiro, visto que, como se viu acima, nos campos não havia instituições
que assegurassem quaisquer garantias. Dessa forma, as mortes ocorriam a todo momento de
forma arbitrária. Porém, pode-se presumir uma influência indireta.

Vale ressaltar que determinados serviços, ditos “informais”, como curativos e reparos
em roupas, ofertados pelos próprios prisioneiros no campo, além dos Kommandos designados
pelos nazistas, também permitiram melhores condições de vida através de porções extras de
comida. Mas, por se tratarem de grupos organizados, administrados por membros da SS, eram
os Kommandos os maiores responsáveis por garantir uma vivência menos indigna, o que de
certa forma, inspira a ideia de mais dias de vida.

Em alguns desses Kommandos nota-se condições melhores de higiene, alimentação e


trabalho ainda que em condições de extrema limitação, como era o caso de médicos e
enfermeiros. Sobre os médicos coloca Levi: “O médico veste roupa listrada como nós, mas,

20
Funcionários prisioneiros que trabalhavam como lideranças no campo de concentração.
21
Prisioneiros responsáveis pelo monitoramento de outros prisioneiros do campo.
42
por cima, um guarda-pó branco, com seu número costurado, e está bem mais gordo que nós.”
(LEVI, 1988:66).

Ainda no hospital, Wind descreve os enfermeiros e a estratégia que usavam para não se
transformarem em muselmann:

“Mas olhando os enfermeiros, eles parecem muito bem [...] Com certeza, mas,
primeiro, em geral são poloneses, que recebem encomendas, e, segundo,
frequentemente são os maiores escamoteadores, ou melhor dizendo, ladrões. [...] Os
enfermeiros distribuem a sopa. Os doentes recebem a parte rala, que fica por cima. O
pouco de batata e feijão que há na sopa fica para os enfermeiros. (WIND,de E.; 2019;
pág. 45).

Entretanto, as questões abrangidas pelo mundo do trabalho nos campos de concentração


são complexas. A profissão que poderia ser usada como meio de resistir mais um dia poderia
também se mostrar como um mecanismo de condenação à morte. Pode-se perceber a situação
nas palavras de Levi: “Todo mundo sabe que os “174 mil” são os judeus italianos: os bens
conhecidos judeus italianos, que chegaram a dois meses, todos advogados, todos doutores,
eram mais de 100 e já são apenas 40; os que não sabem trabalhar.” (LEVI,1988:67). As
problemáticas que englobam o trabalho e as profissões nos campos de concentração são mais
profundas do que parecem ser. Envolvem homens, relações, ideologias, corrupção,
arbitrariedade e outros fatores.

Podemos pensar nos grupos de trabalho, profissões e serviços ofertados pelo prisioneiro
nos campos não como uma estratégia concreta de sobrevivência, visto que, após adentrar o
campo de concentração nada poderia garantir a vida de um homem. Mas, ainda que incerto, o
trabalho se mostrou crucial para os judeus, como demonstra a seguinte passagem do livro “As
Mulheres do Nazismo”, onde a autora Wendy Lower escreve sobre a importância militar e
industrial da cidadezinha Volodymyr Volynsky, situada entre Ucrânia e Polônia: “Para os
judeus do lugar, tudo isso tinha uma importância crítica para sua sobrevivência pois
significava trabalho.” (LOWER, 2014:139). Assim como Lower (2014), Wind (2019) também
ressalta a importância do trabalho em seu relato quando aponta que as lideranças do campo
inventavam empregos visando a proteção de alguns prisioneiros privando-os do risco de
deportações.

43
Em suma, não é possível presumir que privilégios assegurados pela posição institucional
anteriormente ocupada garantiria melhores condições de vida nos campos de concentração.
Reiterando que a essência do campo é a arbitrariedade, não há qualquer segurança garantida
por instituição. Valores e normas do mundo externo não se aplicavam à realidade dos campos.
Dessa forma, o prisioneiro poderia garantir mais dias dignos de vida, mas não poderia presumir
até quando isso ocorreria.

6. Conclusão:

Ao longo dessas páginas busquei trabalhar conceitos históricos importantes para


compreender a sucessão de fatores e eventos que culminaram no objeto principal deste trabalho:
dar voz as vítimas silenciadas do Holocausto. Da queda do Império Romano a Solução Final
judeus se equilibraram na tênue linha social que os separavam dos gentios, só viviam
dignamente através da concessão de privilégios estatais dados em troca de créditos ao próprio
Estado. Como pudemos observar por meio dos registros destacados de Levi (1988) e Wind
(2019) em Auschwitz não foi diferente; se não dispunham de dinheiro no campo, o “trabalho”
constituía uma “riqueza”. É interessante aqui reforçar que quando faço uso da palavra trabalho
para abranger as atividades prestadas de forma coercitiva e insalubre por homens aprisionados
em campos de concentração não tomo como base o significado usual da palavra. Trabalho é
toda e qualquer atividade remunerada que visa proporcionar alimento, abrigo e conforto a uma
pessoa e aos seus, ocupação que dignifica e permite que o ser humano supra suas necessidades
básicas e, claramente, não era isso o que ocorria no Lager. No campo, a vítima trabalhava
porque se não mostrasse útil seria friamente executada.

Por meio da riqueza e, já nos campos, através do trabalho, judeus conseguiam dias de
vida minimamente estáveis mas, ao menor desconforto com os demais, logo voltavam à
"intrínseca condição” de párias subumanos. A vida do grupo judeu desde a diáspora foi pautada
em uma lógica “coisificadora” e utilitarista; enquanto úteis a ordem dominante poderiam
sobreviver, os judeus sabiam dessa possibilidade e sabiamente fizeram uso dessa estratégia ao
longo da história para sobreviver. Essa condição, entendida por natural, desde os primórdios do
antissemitismo foi potencializada pelas teorias racialistas difundidas pelo governo fascista de
44
Hitler. Podemos pensar a adesão imediata ao Nazismo pela população alemã e pela população
dos territórios anexados em guerra pela Alemanha sob a ótica da teoria do “poder poderoso”
elaborada por Byung Chul Han em seu livro “O que é poder?”

Neste livro Chul Han aborda as várias facetas pelas quais pode se apresentar o complexo
conceito de poder dentro das relações traçadas em sociedade. Em sua obra o autor traz
convincentes argumentos para evidenciar ao leitor que o poder “mais poderoso” observado nas
sociedades é aquele que não é passível de questionamentos, nem requer uso de violências. Nele,
o dominado naturaliza, acata e legítima espontaneamente as vontades do soberano. Foi através
do “poder poderoso” de Hitler diluído entre as gerações e da manipulação fascista da
desconfiança histórica da usurpação judaica - pautada na íntima ligação entre judeus e o Estado,
situação oposta às outras classes, especialmente o povo que vivia distanciado do Estado - que
grande parte da sociedade europeia colaborou para a efetivação da Solução Final, salvo algumas
poucas exceções. Além do mais, discordar do regime não constituía uma opção viável, visto
que “ nos regimes fascistas, a sociedade civil não tinha qualquer lugar. A dissidência não era
permitida.” (FINCHELSTEIN, 2019:17). Nas palavras acertadas de Arendt:

“A diferença fundamental entre as ditaduras modernas e as tiranias do passado está no


uso do terror não como meio de extermínio e amedrontamento dos oponentes, mas
como instrumento corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes”.
(ARENDT, H.; 2012; pág. 29)

A compreensão histórica carece de questionamentos, é importante que não sejamos


obedientes. Assim como Windy, Levi, Friedel, Antelme, Anne Frank, Helene Hannemann,
Fredy Hirsh, Dita Dorachova, Gisella Perl e tantas outras vítimas que resistiram como puderam,
homens que em meio ao caos não cederam às políticas de desmoralização, despersonalização e
retirada da humanidade. Guardaram rostos e nomes. Transcreveram memórias, nos
proporcionando testemunhos valiosos que permitem ao historiador reconstruir os caminhos
tortuosos percorridos pelas vítimas do Nazismo. Testemunho é resistência, valorizar as
narrativas de sujeitos que de alguma forma experimentaram o Holocausto é transgredir as
políticas do Nazismo, visto que evidencia a singularidade humana em contraposição a tendência
do anonimato adotado pelos regimes totalitários.

45
Já perto do fim, retomo aqui a urgência dos testemunhos para a escrita da narrativa
histórica. Não só de fontes documentais positivistas deve-se produzir um relato historiográfico,
o historiador deve estar atento à mais improvável evidência; um diário, uma letra de música,
uma foto, literatura. Todo e qualquer fragmento histórico válido deve ser apreendido.
Testemunhos permitem que viajemos no tempo; as palavras dos sobreviventes aqui destacadas
têm o poder de nos fazer experimentar minimamente um cenário inimaginável; a rotina, as
sensações, os sentimentos. Arrisco-me a dizer que, mais que os documentos supervalorizados,
os testemunhos nos tocam profundamente, facilitando nossa compreensão; compreensão de nós
mesmos, do outro e da História.

Finalizo com uma citação de Arendt que abarca tudo que penso sobre compreensão. É
dever do historiador não fazer uso de moldes rasos ou padrões pré-estabelecidos ao adentrar o
passado; todo evento histórico é único e deve ser observado a partir da singularidade de seu
próprio contexto, caso contrário, a narrativa se torna anacrônica, generalista e superficial. Não
podemos buscar respostas de questões contemporâneas no passado. De certo, existem raízes e
ressonâncias mas não respostas prontas. Não se deve julgar. Deve-se compreender com empatia,
alteridade e responsabilidade os tempos e os sujeitos. Historicizar e adentrar a genealogia de
conceitos importantes e suas ligações. Conceitos como Populismo e Fascismo, respectivamente
presentes na guerra e no pós - guerra, diferenciados pelo rigor democrático mas próximos em
tendências políticas autoritárias. Populismo e Fascismo não se confundem mas também não
podem ser colocados em extremos. Ambos estão sendo adotados indiscriminadamente pela
esquerda e pela direita para resumir fenômenos políticos atuais, movimento que polariza e
minimiza a experiência histórica, dificultando a compreensão conceitual.

De tão cruel o Holocausto soa inimaginável, distante do nosso mundo real. Mas, o
período, de fato ocorreu e, em um tempo de extremos, foi produzido por homens ditos normais
como todos nós. Como? Quando? Por quê? É dever do historiador trabalhar essas inquietações
para que esse período não inspire e legitime novos preconceitos, perseguições e mortes. O
historiador não é juiz, não é sua função buscar culpados mas também não deve negar
responsabilidades, não deve colocar os “vencidos” em um local de passividade mas também
não podem tirar-lhes a condição de vítima. O ofício historiográfico caminha sobre uma linha
tênue. Em suma, ao narrar a História deve-se estar atento às experiências e aos “porquês”.

46
Afinal, estudando História uma hora ou outra você aprende que nada é por acaso, tudo tem um,
dois, três … diversos porquês e múltiplos “lados”. Nas palavras de Arendt:

“Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou,
ao explicar fenômenos, utilizar-se de analogias e generalidades que diminuam o
impacto da realidade e o choque da experiência [...] Compreender significa, em suma,
encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela - qualquer que
seja.” (ARENDT, H.; 2012; pág. 12)

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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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