Os Concelhos - Maria Helena Cruz

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«Em prol do bom

governo da cidade»:
a presença das elites
urbanas nas cortes
medievais portuguesas

Maria Helena da Cruz Coelho


Universidade de Coimbra

«Por serviço de Deus e vosso e bem desta terra»1– com este comum fundamento
das hierarquias, do serviço divino e terreno, da grande comunidade do reino e
da pequenas comunidades das terras, os procuradores dos concelhos expõem
nas Cortes de Trezentos e Quatrocentos os pedidos ou formulam os agravos
para os quais clamam por resolução.

1. Alegação num capítulo especial da Guarda às Cortes de Évora/Viana de 1481-1482. (Veja-se COELHO, Maria
Helena da Cruz Coelho; REPAS, Luís Miguel, Um cruzamento de fronteiras. O discurso dos concelhos da Guarda
em Cortes. Campo das Letras: Porto, 2006, 143).

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MARIA HELENA DA CRUZ COELHO

1. A GÉNESE DA REDE CONCELHIA

Mas antes de nos centrarmos sobre eles, como é nosso objectivo, conheçamos
essas terras, esses concelhos.

Ao posicionarmos na Baixa Idade Média encontramo-nos já num trajecto avan-


çado da evolução do movimento concelhio. Sem nos determos na longa for-
mação dessas comunidades nos séculos altomedievais, lembremos apenas o
mapa do Portugal concelhio a partir de finais do século XI até aos inícios do
século XIV. Para tal recorremos à outorga das cartas de foral pelos monarcas
portugueses. Não sem antes tecermos algumas considerações prévias que con-
textualizem esse quadro a apresentar.

Antes de mais torna-se claro que a concessão de uma carta de foral, não cria,
por via de regra, um concelho mas apenas o reconhece juridicamente. A vida
colectiva, com os seus usos e costumes, já preexistia em muitos casos, sendo
apenas ratificada pelo poder régio com esta carta, que definia os direitos e
deveres dos seus vizinhos e enquadrava a comunidade no âmbito dos poderes
locais que dominavam o território. Poderes locais em que estes senhorios co-
lectivos conviviam com os senhorios de nobres ou da Igreja e com os domínios
tutelados directamente pela realeza.

Logo, ainda que os forais pouco o refiram, muitos podiam ter sido reclamados
junto dos monarcas pelas localidades, enquanto outros resultariam mais deci-
sivamente de um programa político da coroa. Em qualquer dos casos os forais
dirigiam-se a terras já com uma prévia ocupação social do espaço, ainda que os
monarcas estivessem, na maioria delas, a dinamizar o seu povoamento e defe-
sa, a codificar o normativo da sua organização interna e a definir os encargos
para com a fiscalidade régia. Claro que se falamos em cartas outorgadas pela
realeza, não esqueceremos que um número significativo de forais foi concedido
por senhores da Igreja ou da nobreza com destaque para as Ordens religioso-
militares.

Mais será de acrescentar que a generalização do quadro evolutivo dos conce-


lhos encobre matizes que deveremos ter presentes. Assim, ao reportamo-nos,
num todo, a concelhos, teremos de estar conscientes que estas circunscrições
são muito diversas entre si. Umas traduzem-se em centros urbanos de grande

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ou média dimensão, enquanto outras se reportam a comunidades rurais. A


localização no território em espaços litorâneos ou do interior, em terras altas
ou de planície, em espaços de domínio consolidado ou em limites fronteiriços
ditarão a variedade de vocações geo-estratégicas, de aptidões económicas e de
estratificação social. O posicionamento a Norte ou no Centro-Sul do reino ex-
plicarão o enraizamento de civilizações ou culturas diferentes, sentindo-se nos
concelhos mais meridionais as marcas da islamização que o moçarabismo mais
favoreceu. Diferenças de escala geográfica e territorial e de desenvolvimento
sócio-económico e cultural ditarão, pois, inevitáveis gradações nas liberdades e
poderes concedidos aos diversos concelhos.

Conscientes destes pressupostos, tracemos então o panorama do crescimento


do Portugal concelhio2.

Criado o Condado Portucalense, em 1096, logo os seus chefes, nas pessoas


do conde D. Henrique da Borgonha e de D. Teresa apoiaram estes centros. A
linha do Mondego, que nos inícios do século XII representava a extrema do
Condado, é colocada pelos condes à guarda de uma rede de concelhos de vo-
cação militar, que vêem as suas prerrogativas legitimadas por forais, como os
de Coimbra, Soure e Sátão de 1111 e depois os de Azurara, Tavares, Ferreira
de Aves e Viseu.

O primeiro monarca português, D. Afonso Henriques, com larga visão de chefe


militar e político, corroborará esta actuação condal. Saem da chancelaria régia
cerca de quatro dezenas de cartas de foral, que incidem sobre localidades do
Douro médio, consolidando uma mancha concelhia numa área de implantação
senhorial, reforçam a fronteira concelhia da Beira e adensam a linha do Mon-
dego, estendendo-se por fim ao território recém conquistado do Tejo de aquém
e de além.

O seu sucessor, Sancho I, mais não fez que continuar esta política, decalcando-
a até geo-estrategicamente. Outorgou, nos seus 26 anos de reinado, um total

2. Sobre esta política foraleira, veja-se COELHO, Maria Helena da Cruz, «Concelhos», in Portugal em Definição de
Fronteiras. Do Condado Portucalense à Crise do Século XIV, coord. de Coelho, Maria Helena da Cruz e Homem,
Armando Luís de Carvalho, vol. III de Nova História dir. de Serrão, Joel e Marques, A. H. de Oliveira. Editorial
Presença, Lisboa, 1996, 554-584.

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de cerca de cinco dezenas de forais, contemplando todo o espaço do reino de


Portugal de então, que escassamente ultrapassava o Tejo, depois das derrotas
infligidas pelos almóadas.

Com D. Afonso II e D. Sancho II o movimento abranda, devotando-se o primei-


ro monarca a uma inovadora política administrativa de centralização burocráti-
ca, para se vir a cair, no governo do segundo, numa profunda crise que levou
mesmo à deposição do soberano em 1245, designando-se, por ordem papal,
um governador do reino na pessoa do seu irmão. Nestes reinados, mais ainda
que nos anteriores, o protagonismo dos senhores na outorga de cartas de foral
sobreleva o dos próprios monarcas.

Em 1248 começa então a governar o novo monarca, D. Afonso III, e, reposta


a ordem, crescerá o número dos concelhos no reino. Este rei concede mais de
seis dezenas de forais que incidem sobre a fronteira galega, a região central
transmontana, posicionada em torno de Vila Real, que assim se valoriza, e o sul
alentejano e algarvio.

Finalmente D. Dinis ultrapassa o seu antecessor ao conceder mais de oito deze-


nas de cartas de foral que reforçam os objectivos de povoamento e colonização.
Trás-os-Montes é a região que nitidamente pretende incrementar, sobretudo
agora na sua parte oriental, em torno de Bragança, não descurando porém o
Alentejo e Algarve. Concorda, no essencial, com as linhas de rumo de seu pai,
completando-as-valorização de áreas até aí menos atendidas, como o Norte
interior, e reconhecimento de centros urbanos fronteiriços mais recentemente
incorporados na Coroa, a sul do Tejo.

E, assim, enquanto Portugal se ia definindo territorialmente, avançando para


sul na conquista de terra aos muçulmanos, ia-se compondo, sobretudo depois
dos governos de D. Afonso III e D. Dinis, a rede de cidades, vilas e lugares
que davam corpo ao Portugal concelhio medieval. E tal acontecia ao mesmo
tempo que aqueles monarcas assinavam os tratados de Badajoz em 1267 e o de
Alcañices em 1297, que definiam as fronteiras sul e oriental do reino.

Assumiam-se então os concelhos como áreas imunes, vigorando no seu interior


normas próprias, que os mandantes locais, sobremaneira os juízes no judicial
e os almotacés no económico, faziam executar. Os vizinhos viam respeitada

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a sua morada, a sua família e a sua propriedade. Socialmente, em tempos de


confronto com os muçulmanos e de expansão territorial, as clivagens sociais
demarcavam-se militarmente. No topo da hierarquia social estavam os cavalei-
ros vilãos, beneficiados com isenções económicas e privilegiados com honras
sociais e judiciais, sendo os peões o estrato trabalhador e contribuinte por exce-
lência. Mas a esta dicotomia bélica correspondia uma diferenciação económica.
Os cavaleiros ancoravam o seu estatuto numa riqueza essencialmente assente
na terra ou na criação de gado, dedicando-se a peonagem à exploração de terra
alheia, ao pequeno comércio e ao artesanato.

Mas se os monarcas consentiram e até fomentaram estes poderes, procuraram


submetê-los aos objectivos da coroa que, passo a passo, foi visando um reforço
do poder régio. Materializado nos seus delegados com actuação local, mormen-
te o alcaide, detentor do castelo e do poder militar, e os mordomos e almoxari-
fes, cobradores das rendas e direitos reais, sendo estreita, ainda que não poucas
vezes conflituosa, a relação entre esses oficiais e as autoridades locais.

2. A EVOLUÇÃO CONCELHIA NOS SÉCULOS XIV E XV

Nos séculos XIV e XV redimensionou-se a malha controladora da coroa. A ide-


ologia e prática de um poder central e centralizador repercutiu-se nas unidades
de poder local que eram os senhorios e concelhos.

O poder régio afirmava-se com reais atribuições normativas-legislativas, com


uma assinalável capacidade financeira, sustentada por uma actuante rede fiscal,
e um efectivo controlo militar e social do território e dos seus habitantes. O seu
aparelho burocrático estruturava-se em órgãos especializados nas suas diversas
funções, suportados por oficiais competentes, em grande parte leigos e letra-
dos, que garantiam o exercício do poder alargado da Coroa, desde o centro até
às periferias, impondo a justiça e uma efectiva cobrança fiscal que a conjuntura
de guerra de finais de Trezentos e de Quatrocentos exigia.

A nível dos concelhos, como nos interessa percepcionar, os monarcas impuse-


ram o seu controlo judicial através de corregedores, que nomeados para uma
comarca, supervisavam toda a actuação dos governantes dos municípios que
cabiam dentro dessa circunscrição judicial. Mais proximamente ainda nomea-
rão juízes de fora ou juízes por el-rei para certos concelhos e múltiplos outros

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juízes com competências específicas, que potencializavam a intervenção régia


na justiça. Ao mesmo tempo foram impondo uma coesa e activa máquina de
cobradores do fisco, que garantiam uma drenagem das rendas concelhias para
os cofres do Estado e, em simultâneo, um corpo de recrutadores de homens
para o exército e galés, entre anadéis e coudéis, que satisfaziam a necessidade
de gente para a guerra3.

Saliente-se, porém, que todo este procedimento da Coroa não pretendia anular
o poder local concelhio. Na realidade, a realeza de Trezentos e Quatrocentos,
para a afirmação e viabilização da sua política, não prescindia e mesmo exigia
um vivo e actuante poder local corporizado em senhorios e concelhos. Poderes
que, no geral, entre si se opunham e com os quais podiam mesmo jogar os
monarcas de acordo com os seus objectivos e diferentes circunstâncias. Mas
genericamente pretendiam articulá-los com a política da Coroa através de fun-
cionários e órgãos4.

Estas medidas de centralização régia reproduziam-se a nível do poder concelhio5.

Na realidade, as estruturas económicas e sociais dos centros urbanos foram-se


adensando e diversificando ao longo dos séculos XIV e XV.

A crise, ditada pela conjunção de fomes, epidemias e enfrentamentos bélicos,


que atravessou Portugal como os demais reinos da Cristandade, teve conse-
quências múltiplas e diferenciadas.

A quebra demográfica foi acentuada provocando carência de mão-de-obra e


mobilidade populacional. No campo faltavam os braços para amanhar as ter-

3. Cfr. ANDRADE, Amélia Aguiar, «Estado, Territórios e ‘Administração Régia Periférica», in A Génese de Estado Mo-
derno no Portugal Tardo-medievo (séculos XIII-XV). Ciclo de Conferências. UAL, Lisboa, 1999, 151-187; COELHO,
Maria Helena da Cruz e MAGALHÃES, Joaquim Romero, O Poder Concelhio. Das Origens às Cortes Constituintes.
Notas de História Social, 2ª ed. revista. CEFA, Coimbra, 2008, 23-28.
4. Veja-se COELHO, Maria Helena da Cruz, «O Estado e as Sociedade urbanas», in A Génese do Estado Moderno,
269-292. Para um confronto, no quadro dos diversos reinos peninsulares, deste entrecruzar do poder régio nos
concelhos e a sua autonomia municipal, leia-se LADERO QUESADA, Miguel Ángel, Ciudades de la Espña medie-
val. Dykinson, Madrid, 2010, 87-93.
5. COELHO, Maria Helena da Cruz e Magalhães, Joaquim Romero, O Poder Concelhio. Das Origens às Cortes
Constituintes. Notas de História Social, 29-34.

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ras e muitas ficavam abandonadas e incultas. As dificuldades e incertezas da


produção compeliram muitos camponeses a seguir outros caminhos. Abando-
navam a terra e buscavam a cidade, na esperança de melhor vida. Os centros
urbanos cresciam, assim, com estas migrações, debatendo-se com renovados
problemas de abastecimento e habitabilidade, com o difícil controlo da mão-
de-obra assalariada, com candentes questões sociais provocadas por uma po-
pulação flutuante e desenquadrada de pobres, vagabundos e marginais.

O controlo da massa populacional das vilas e cidades, a resolução dos novos


problemas que se lhe colocavam, a direcção das múltiplas actividades econó-
micas e a manutenção da ordem exigiam aos concelhos um conjunto de oficiais
especializados com competências definidas e assembleias verdadeiramente de-
liberativas e actuantes. Assim os almotacés, que supervisavam os pesos e me-
didas e vigiavam o tabelamento dos preços, passaram a ser em número de 24,
escolhidos 2 por cada mês. Já para manter a ordem, aumentaram as magistra-
turas judiciais e, a par dos juízes gerais, surgiram, com funções particularizadas,
entre outros, os juízes dos órfãos, os juízes dos ovençais, os juízes dos judeus
ou os juízes dos mouros.

Logo, nos séculos XIV e XV, o número de oficiais aumentou e as suas funções
especializaram-se. Criaram-se mesmo novos oficiais.

Nos regimentos dos corregedores de 1332 e 1340, o monarca, pretendendo que


a administração municipal se processasse de uma forma mais permanente e es-
pecializada, exigia que tais magistrados fomentassem o aparecimento nos con-
celhos de oficiais locais, que se dedicassem em particular à sua administração.
Surgem então os vereadores, cargo novo e de longa duração na vida municipal,
que, em número, oscilam de 1 a 4, conforme a projecção dos concelhos, e fi-
cam afectos anualmente às tarefas administrativas e burocráticas6.

6. Em certos momentos mais conflituosos politicamente, em que os monarcas queriam ter um particular controlo
sobre os municípios, ao lado destes vereadores, ou mesmo substituindo-os, aparecem os regedores nomeados
pelo poder régio (COELHO, Maria Helena da Cruz e MAGALHÃES, Joaquim Romero, O Poder Concelhio, p. 39,
nota 28). Surgem durante o reinado de D. Fernando e estão documentados, em estudos para Évora entre 1377 e
1430 (Beirante, Maria Ângela, Évora na Idade Média, FCG-INIICT,1995, 613-623, 678) e para Lisboa entre Setem-
bro de 1370 a Novembro de 1394 (FARELO, Mário Sérgio da Silva, A oligarquia camarária de Lisboa (1325-1433),
Faculdade e Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2008, 282-290 –tese de doutoramento policopiada).

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Estes e outros magistrados e oficiais, especializados na justiça, na administração


e nas finanças concelhias passaram a ser as traves mestras do poder concelhio.
Com juízes, vereadores, almotacés, tesoureiro, procurador e escrivães se for-
mavam então as Câmaras, que doravante decidiam sobre o viver concelhio. As
assembleias deliberativas restringiam-se a uns quantos oficiais e homens bons
devotados ao exercício do poder local. As reuniões deixaram de ter lugar no adro
da igreja, na praça ou num qualquer lugar público e passaram a realizar-se no in-
terior de uma casa, numa câmara, um espaço mais restrito e privado. As decisões
não eram agora públicas, mas secretas, não eram partilhadas por todos, mas ape-
nas por uns quantos. Secretismo e restrição numérica conduziram, obviamente,
ao elitismo. Para o que muito veio a contribuir o método eleitoral.

A memória deste passado chegou até nós nas actas de vereação, que nos infor-
mam sobre o número de sessões por ano camarário, sobre os oficiais e homens
bons nelas presentes e sobre as decisões tomadas. As mais completas que co-
nhecemos dizem respeito à cidade do Porto7e à vila de Loulé8.

Os monarcas, ao legislarem sobre as eleições concelhias, apoiaram esta tendên-


cia elitista da governança municipal, que servia a sua política. Na verdade só
essas elites poderiam enquadrar o povo comum e dirigir, ordeira e pacificamen-
te, o mundo relacional e laboral urbano, e assim garantir uma compensadora
arrecadação dos impostos para o erário régio e um efectivo recrutamento de
gente para as campanhas bélicas.

A escolha do funcionalismo local fazia-se por eleições directas, em sessões


amplamente apregoadas e decorrendo em espaços abertos, mesmo já depois

7. Para o Porto estão publicadas as seguintes anos: «Vereaçoens». Anos de 1390-1395, vol. II de Documentos e
Memórias para a História do Porto, comentário e notas de Basto, A. de Magalhães, Câmara Municipal, Porto, s.d.;
«Vereaçoens». Anos de 1401-1449, vol. XL de Documentos e Memórias para a História do Porto, com nota prévia
de Ferreira, J. A Pinto, Câmara Municipal, Porto, 1980; «Vereaçoens». Livro I, 1431-1432, vol. XLIV de Documentos
e Memórias para a História do Porto, leitura, índices de notas de Machado, João Alberto e Duarte, Luís Miguel,
Arquivo Histórico-Câmara Municipal, Porto, 1985; 1980. Muitas outras reuniões do século XV continuam ainda
inéditas.
8. Actas de Vereação de Loulé. Século XIV-XV, coord. de Serra, Manuel Pedro, Arquivo Histórico Municipal, Lou-
lé, 2000 (Sep. da revista Al-Ulyã, nº 7); Actas de Vereação de Loulé. Século XV, coord. de Serra, Manuel Pedro,
Arquivo Histórico Municipal, Loulé, 2004 (Sep. da revista Al-Ulyã, nº 10). Acresce que também para Montemor-o-
Novo existem alguns livros de vereação publicados por Fonseca, Jorge, Montemor-o-Novo no século XV, Câmara
Muncipal, Montemor-o-Novo, 1998.

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de existirem as câmaras. Eleger significava escolher. Formavam-se partidos,


facções, bandos. Por vezes os ânimos exaltavam-se e as eleições conduziam
à violência. Assim D. João l, em 1391, a pretexto ou com fundamento nessas
situações, mais gerais ou pontuais, impôs o regimento dos pelouros, que pu-
nha fim às eleições directas. Exigia que os homens da câmara escrevessem os
nomes dos que se julgavam aptos e dignos de serem juízes, vereadores, pro-
curadores ou detentores de outros cargos, que depois eram sorteados no dia
das eleições. E posteriormente, nas Ordenações Afonsinas, o método tornou-se
ainda mais indirecto e supervisado9.

Os eleitores e os elegíveis tendiam, pois, a ser os mesmos. A administração


local começava a estar nas mãos de uma elite do poder.

3. ELITES URBANAS E ELITES DE PODER POLÍTICO

Esclareça-se que ao utilizarmos o termo elites, elites urbanas ou elites do poder


político concelhio, não deixaremos de ter presente a vasta e densa historio-
grafia que esta temática tem envolvido10. As elites urbanas são compósitas e
plurais. Diferenciam-se como elites económicas, sociais, religiosas ou culturais.
O tempo de residência nos centros urbanos, a riqueza e a notabilidade são
elementos que as integram e diferenciam dos médios e comuns que constituem
a maioria da população das cidades e vilas11. Mas as elites do poder municipal,
que constituem um patriciado, uma aristocracia ou uma oligarquia, consoante

9. COELHO, Maria Helena da Cruz e MAGALHÃES, Joaquim Romero, O Poder Concelhio, 34, doc. X. A assem-
bleia já só apenas escolhia dois homens bons que eram os responsáveis pela designação da pauta dos elegíveis,
pauta que tinha de ser enviada ao rei para confirmação.
10. Entre a vasta bibliografia
bibliografia sobre a temática destaquem-se as actas que saíram de reuniões científicas
científicas que a de-
bateram, como Les élites urbaines au Moyen Âge. XXVIIe Congrès de la S.H. M.E. S. (Rome, mai 1996), Publications
de la Sorbonne, Paris, 1997 e La notabilité urbaine. Xe-XVIIIe siècles. Actes de la Table ronde organisé à la MRSH.
20 et 21 janvier 2006, CNRS-Université de Caen Basse Normandie, Caen, 2007.
11. DUTOUR, Thierry, no estudo, «La notabilité urbaine vue par les historiens médiévistes farncophones aux XIXe
et XXe siècles», in La notabilité urbaine. Xe-XVIIIe siècles. Actes de la Table ronde organisé à la MRSH. 20 et 21
janvier 2006, 7-22, apresenta um balança historiográfico sobre as mais antigas teses que opunham a burguesia/
cidade à nobreza/campo e sobre a redução das elites à riqueza e ao exercício do poder político para insistir
sobremaneira no novo conceito operatório da notabilidade urbana. E no mesmo sentido da explanação e apro-
fundamento das valências deste conceito da notabilidade se desenvolve a reflexão de CROQ, Laurence, «Essai
pour la construction de la notabilité comme paradigme sócio-politique», in La notabilité urbaine. Xe-XVIIIe siècles.
Actes de la Table ronde organisé à la MRSH. 20 et 21 janvier 2006, 23-38.

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os casos ou a terminologia dos historiadores, assumem-se ainda como uma elite


mais reduzida desse conjunto12. Todavia, nem mesmo esse grupo de indivíduos
ou famílias é imutável ou se mantém fechado. Estas elites do poder incorporam
tanto gente nobre como gente rica, com uma riqueza diferenciada, assente nos
réditos da agro-pecuária, do comércio ou do capital. Igualmente se permeabili-
zam aos homens que se notabilizam pelo saber ou pelos ofícios da burocracia
régia13. E com o rodar dos tempos, e conforme as conjunturas, assim os homens
e famílias do poder ascendem ou decaem14.

Os estudos sobre as elites do poder concelhio em Portugal não são muitos,


havendo-os em particular e bem actualizados para o Porto15 e Lisboa16, ainda
que o vasto número de estudos sobre cidades e vilas17 nos dêem também

12. Veja-se a discussão sobre as elites urbanas no quadro da França, Inglaterra e Itália no artigo de CROUZET-
PAVAN, Elisabeth, «Les elites urbaines: aperçus problématiques (France, Angleterre, Italie)», e ainda, centrado no
vocabulário das elites, o de BRAUNSTEIN, Philippe, «Pour une histoire des élites urbaines; vocabulaire, realités e
représenattions», in Les élites urbaines au Moyen Âge. XXVIIe Congrès de la S.H. M.E. S. (Rome, mai 1996), Publi-
cations de la Sorbonne, Paris, 1997, respectivamente, p. 9-28, 29-38.
13. Cfr. HOMEM, Armando Luís de Carvalho, GONÇALVES, Judite, «A prosopografia dos burocratas régios (sé-
culos XIII-XV): da elaboração à exposição dos dados», in Elites e Redes Clientelares na Idade Média. Problemas
Metodológicos, ed de Barata, Filipe Themudo, Edições Colibri-CIDEHUS, Lisboa, 2001,171-210; COELHO, Maria
Helena da Cruz, «Les relations du Savoir et du Pouvoir dans le Portugal médiéval (XIVe et XVe siècles)», in Europa
und die Welt in der Geschichte. Festschrift zum 60. Geburtstag von Dieter Berg, herausgegeben von Raphaela
Averkorn, Winfried Eberhard, Raimund Haas und Bernd Schmies, Verlag Dr. Dieter Winkler Bochum, 2004, 313-
334.
14. Leia-se MARTINS, Miguel Gomes, «A família Palhavã (1253-1357). Elementos para o estudo das elites diri-
gentes da Lisboa Medieval», Revista Portuguesa de História, XXXII, 1997-1998, 35-93; «Estêvão Cibrães e João
Esteves: A família Pão e Água em Lisboa (1269-1342)», Arqueologia e História, 53, 2001, 67-74; «Os Alvernazes.
Um percurso familiar e institucional entre finais de Duzentos e inícios de Quatrocentos», Cadernos do Arquivo
Municipal, 6, 2002, 10-43.
15. COSTA, Adelaide Lopes Pereira Millan da, «Vereação» e «Vereadores». O governo do Porto em finais do século
XV, Câmara Municipal do Porto, Porto, 1993. Esta obra apoia o seu estudo no método prosopográfico e dá-nos
a conhecer 96 oficiais camarários.
16. FARELO, Mário Sérgio da Silva, A oligarquia camarária de Lisboa (1325-1433), Faculdade e Letras da Uni-
versidade de Lisboa, Lisboa, 2008 (tese de doutoramento policopiada). Esta tese colige um corpo prosopográfcio
de 286 oficiais concelhios e 25 oficiais régios com actuação em Lisboa. Este autor, depois de analisar a diversa
terminologia dos homens do poder político urbano (páginas 26-32), considerou mais apropriado ao seu estudo a
utilização do conceito de oligarquia camarária.
17. Um elenco dos principais estudos sobre as cidades e vilas pode-se colher nos estudos de historiografia
historiografia
HOMEM, Armando Luís de Carvalho; ANDRADE, Amélia Aguiar; AMARAL, Luís Carlos: «Por onde vem o medie-
vismo em Portugal?», Revista de História Económica e Social, 22, 1988, 115-138; COELHO, Maria Helena da Cruz:
«Balanço sobre a história rural produzida em Portugal nas últimas décadas», in A cidade e o campo. Colectânea
de estudos, Centro de História da Sociedade e da Cultura, Coimbra, 2000, 23-40; COELHO, Maria Helena da Cruz:

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informações, sendo já possível caracterizar o seu perfil socio-económico e a


carreira destas elites18.

No Porto, 43,8% dos oficiais camarários da segunda metade do século XV são


mercadores e cidadãos e 37,5% escudeiros (maioritariamente) e cavaleiros, vas-
salos de reis, fidalgos e eclesiásticos19.

Também em Évora o poder político se reparte entre uma média e pequena no-
breza e mercadores que investem parte do seu capital em terras e gados20.

Esta presença conjunta de nobres e homens dedicados ao investimento mo-


netário e mercantil, operações que desde cedo se viram legitimadas21, vai ser
um dado adquirido para muitas outras cidades ou vilas, como Loulé, Coimbra
e Guarda, sobretudo no século XV22. E entre tais grupos sociais haveria mesmo

«Historiographie et état actuel de la recherche sur le Portugal au Moyen Age», Memini. Travaux et documents,
9-10, 2005-2006,9-60.
18. Ainda que muitos trabalhos sobre cidades e vilas nos dêem informações sobre o tema remetemos mais es-
pecificamente para os estudos de COELHO, Maria Helena da Cruz: «Les elites muicipales», Anais-Série História,
2, 1995, 51-56 e de GOMES, Rita Costa, «As elites urbanas no final da Idade Média. Três pequenas cidades do
interior», in Estudos e Ensaios de Homenagem a Vitorino Magalhães Godinho, Livraria Sá da Costa Editora, Lis-
boa, 1988, 229-237, bem como para as actas do colóquio Elites e Redes Clientelares na Idade Média. Problemas
Metodológicos, ed. de Barata, Filipe Themudo, Edições Colibri-CIDEHUS, Lisboa, 2001. Para um confronto com
a composição social das elites de localidades de outros reinos, veja-se entre outros, DERVILLE, Alain: «Les élites
urbaines en Flandre et en Artois»; JANSEN, Philippe: «Élites urbaines, service de la commune et processus d’aris-
tocartisation: le cas de Macerata aux XIVe-XVe siècles», in Les Élites Urbaines au Moyen Âge. XXVII Congrès de la
Société des Historiens Médiévistes de l’Énseignement Supérieur Public, Paris, Publications de la Sorbonne, 1997,
respectivamente, 119-200, 201-223; GOICOLEA JULIÁN, Fco. Javier: «Sociedade y poder Concejil. Una aproxima-
ción a la elite dirigente urbana de la Rioja Alta Medieval», Studia Historica, 17, 1999, 87-112; JARA FUENTE, José
Antonio, «Sobre el concejo cerrado. Asamblearismo y participación política en las ciudades castellanas de la Baja
Edad Media (Conflictos inter o intra-clase)», Studia Historica, 17, 1999, 113-136.
19. Cálculos obtidos a partir do 96 ofi
oficiais
ciais referidos na citada obra de Adelaide Lopes Pereira Millan da Costa.
20. BEIRANTE, Maria Ângela: Évora na Idade Média, FCG-INIICT, 1995, 563-568.
21. Uma contextualização geral desta temática encontra-se em LE GOFF, Jacques: «Profissões lícitas e profissões
ilícitas no Ocidente medieval», in Para um Novo Conceito de Idade Média. Tempo, Trabalho e Cultura no Oci-
dente, trad. port., Editorial Estampa, Lisboa, 1980, 85-99 e Mercadores e Banqueiros na Idade Média, trad. port.,
Gradiva, Lisboa, 1982 e GUREVIC, Aron Ja.: «O Mercador», in O Homem Medieval, trad. port., Editorial Presença,
Lisboa, 1989, 165-189. Para a análise do caso português, e mais concretamente dos mercadores de Coimbra, veja-
se Maria Helena da Cruz COELHO: «Homens e Negócios», in Ócio e Negócio, Inatel, Coimbra, 1998, 127-202.
22. COELHO, Maria Helena da Cruz e MAGALHÃES, Joaquim Romero: O Poder Concelhio, 22-23; COELHO,
Maria Helena da Cruz: O Baixo Mondego nos Finais da Idade Média, 2ª ed., I, Imprensa Nacional-Casa da Moe-
da, Lisboa, 1989, 501-504; GOMES, Rita Costa: A Guarda medieval. 1200-1500, Cadernos da Revista de História
Económica e Social, 9-10, Sá da Costa, Lisboa, 1987, 124-128.

JESÚS ÁNGEL SOLÓRZANO TELECHEA y BEATRIZ ARÍZAGA BOLUMBURU (Eds.) 309


MARIA HELENA DA CRUZ COELHO

uma certa miscegenação, que foi ocorrendo já desde séculos anteriores, a partir
das últimas franjas do primeiro e dos mais altos escalões do segundo, em
particular da cavalaria-vilã. E teria particular incidência nos centros urbanos,
onde o comércio, o capital, a terra e os cargos enredavam os diversos estratos
sociais num jogo relacional de riqueza, notabilidade e poder.

Em Lisboa, cidade em que estatutariamente se exigia a repartição dos cargos


concelhios entre fidalgos e cidadãos, 40% dos seus oligarcas pertenciam à aris-
tocracia, mas nesta se englobava uma média e pequena nobreza de sangue,
nunca a alta nobreza, e ainda cavaleiros e escudeiros, que podiam ter provindo
da aristocracia vilã, sendo muitas vezes difícil, se não impossível, a sua dife-
renciação. Para além disso, muitos destes elementos nobiliárquicos estavam
ligados ou ao serviço do rei e da coroa, com bem se compreende pela função
de capitalidade e residência da corte nesta cidade. Cerca de um quarto dos
oligarcas eram mercadores e, sobretudo a partir da década de 70 do século
XIV, marcam também presença, ainda que em mais escassa percentagem, os
letrados23.

As elites dirigentes recorrem a diversas estratégias para se manter no poder.


Garantem a sua coesão e o seu grupo restrito pelas alianças de parentesco e
matrimónio, pela tendência para a hereditariedade e rotatividade dos cargos.

Estes homens do poder, no Porto, a segunda cidade medieval portuguesa, não


chegariam a uma centena no século XV. Nesse centro urbano o oficialato segue
um percurso que o leva de procuradores do concelho a vereadores e juízes,
ainda que tal sequência não se verifique sempre. Mantêm-se longo tempo no
poder – assumem vários cargos ao longo dos anos; desempenham funções de
interinidade; depois de deixarem os cargos camarários continuam nas assem-
bleias municipais como homens bons; da mesma forma que, deixando de ser
oficiais, desempenham vários cargos citadinos, na direcção da instituições de

23. FARELO, Mário Sérgio da Silva: ob. cit., 169-206. Os letrados perfazem apenas 12,2% dos oligarcas camarários
(cfr. FARELO, Mário Sérgio da Silva, ob. cit., 197). Uma análise concreta dos espaços e homens presentes, onde,
entre outros, os letrados e homens do saber também marcam presença, na reunião extraordinária que escolheu
os procuradores dos Concelhos que nas Cortes de Santarém deviam jurar D. Beatriz, filha de D. Fernando, e D.
João I de Castela, como herdeiros da coroa portuguesa, encontra-se no estudo de Coelho, Maria Helena da Cruz:
«No palco e nos bastidores do poder local», in O poder local em tempo de Globalização. Uma história e um futuro,
Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2005, 49-55.

310 LA GOBERNANZA DE LA CIUDAD EUROPEA EN LA EDAD MEDIA


«EM PROL DO BOM GOVERNO DA CIDADE»: A PRESENÇA DAS ELITES URBANAS…

assistência, de confrarias ou na vedoria das obras e assumem missões diplomá-


ticas e de representação do concelho no exterior24.

No Porto 62,5 % desses homens tiveram uma carreira alongada por mais de
20 anos, chegando mesmo uns quantos aos 40 anos. Já em Lisboa 82,4% dos
dirigentes ficaram aquém dos 20 anos de carreira, demonstrando uma maior
mobilidade do grupo, para além de se verificar que, no processo de ascensão
de um indivíduo ou família, a presença camarária era apenas uma etapa que
culminava na burocracia e no serviço régio25.

Ultrapassadas as diferentes caracterizações sociológicas e de carreira, as elites


portuguesas do poder urbano convergem, no século XV, em certos denomi-
nadores comuns – por um lado uma hostilização e afastamento do poder dos
artesãos; por outro uma tendência para o enobrecimento, no sentido de pre-
tenderem mimetizar, no seu comportamento, os modelos e valores de vida,
morte, memória e representação simbólica da nobreza26, se não chegam mesmo
a alcançar um certa nobilitação, gravitando como vassalos, clientes ou criados,
nos círculos dos privilegiados ou da corte régia.

Por isso, num capítulo geral das Cortes de Évora de 1481-82 as elites do poder
municipal, que se assimilavam aos «grandes», aos «maiores na Repubrica», aos
«nobres», aos «sabedores» aos «bons e antigos cidadãos», alegavam, numa bem
articulada fundamentação filosófica, que a eles competia «reger e governar» e
aos «meeãos obedecer e ajudar» e aos «mais baixos trabalhar e servir». Pediam,
então, que os mesteirais não estivessem nas câmaras das cidade e vilas, mas
somente os bons e nobres que despendiam as suas fazendas e vidas ao serviço
do rei e defesa do reino27. Esta preocupação dos dirigentes locais bem se com-
preende quando sabemos que, lentamente, graças à sua projecção económica

24. COSTA, Adelaide Lopes Pereira Millan da: ob. cit., 65-93.
25. FARELO, Mário Sérgio da Silva: ob. cit., 150-169.
26. Uma caracterização ampla das elites urbanas portuguesas apresenta DUARTE, Luís Miguel: «Os melhores da
terra (um questionário para o caso português)», e os métodos da sua abordagem são equacionados no estudo de
COSTA, Adelaide Lopes Pereira Millan da: «Prosopografia das elites concelhias e análise racional: a intersecção
de duas abordagens» in Elites e Redes Clientelares na Idade Média. Problemas Metodológicos, respectivamente
91-106, 63-70.
27. Cfr. COELHO, Maria Helena da Cruz e MAGALHÃES, Joaquim Romero: O Poder Concelhio, doc. XI. O rei é
muito evasivo na resposta, afirmando apenas que os mesteirais só tinham voz em Lisboa.

JESÚS ÁNGEL SOLÓRZANO TELECHEA y BEATRIZ ARÍZAGA BOLUMBURU (Eds.) 311


MARIA HELENA DA CRUZ COELHO

e serviço às elites, alguns artesãos foram individualmente conseguindo marcar


lugar nas vereações28. Para depois, devido ao crescente protagonismo dos mes-
teres na política do reino, certas recompensas lhes irem sendo concedidas, no
sentido de poderem estar presentes em representação dos ofícios nas reuniões
camarárias29, por meio dos procuradores dos mesteres, também chamados pro-
curadores do povo30.

Em paralelo os dirigentes municipais insistiam significativamente no seu esta-


tuto nobilitante, como os da cidade da Guarda que, nas Cortes de Évora de
1442, se diziam cavaleiros, escudeiros e homens bons, e lutavam pelas suas
prerrogativas31. Mais longe ainda se projectavam os homens do poder da vila
fronteiriça de Pinhel. Equiparavam-se então aos nobres de sangue, reclamando
que fidalgos, cavaleiros e escudeiros de linhagem e vassalos e cidadãos honra-
dos não fossem obrigados a ir até à forca ou ao pelourinho, como o corregedor
exigia quando fazia justiça, igualando-os aos «comuns» e «menores» e não lhes
guardando os seus privilégios32.

28. Maria Helena DA CRUZ: «No palco e nos bastidores do poder local», 56. Esta situação também se detecta em
Castela, onde era igualmente forte a oposição das oligarquias contra o acesso ao poder dos representantes do
«comum», como o demonstra Val Valdivieso, Maria Isabel, «Elites urbanas en la Castilla del siglo XV (Oligarquía y
Comum)», in Elites e redes clientelares na Idade Média, 84-86.
29. Veja-se FERRO,
F Maria José Pimenta: «A revolta dos mesteirais de 1383», in Actas das III Jornadas Arqueológicas
1977, Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1978, 359-383; HOMEM, Armando Luís de Carvalho, «Nó-
tula sobre um levantamento popular nas vésperas do Interregno», sep. Bracara Augusta, t. XXXII, fasc. 73-74 (85-
86), Jan.-Dez. de 1978, 3-19; COELHO, Maria Helena da Cruz: «No palco e nos bastidores do poder local», 57-61.
Sobre o associativismo dos oficiais mecânicos em terras de Castela, leia-se Monsalvo, José Maria, «Solidaridades
de oficio y estructuras de poder en las ciudades castellanas de la Meseta durante los siglos XIII al XV (aproxima-
ción al estudio del papel político del corporativismo artesanal)», in «El Trabajo en la Historia», Séptimas Jornadas
de Estudios Históricos organizadas por el Departamento de Historia Medieval, Moderna y Contemporánea de la
Universidad de Salamanca, Ediciones Universidad, Salamanca, 1996, 42-66.
30. Dois procuradores por cada mester, no total de 24, estavam na câmara de Lisboa, desde 1 de Abril de 1384,
ainda que o seu número viesse a ser reduzido e neste grupo se tivesse também sentido uma certa elitização
(FARELO, Mário Sérgio da Silva: A oligarquia camarária de Lisboa, 67-73); em Évora, em meados do século XV,
estavam em algumas reuniões da câmara os procuradores dos mesteres, também designados procuradores do
povo miúdo. Este direito foi-lhes reconhecido por D. Afonso V na sequência de um capítulo enviado às Cortes
de 1459, mas em 1491 perderam esse direito (BEIRANTE, Maria Ângela, Évora na Idade Média, 693-694). Sobre
o poder político dos mesteres do Porto, leia-se MELO, Arnaldo Rui Azevedo de SOUSA, Trabalho e Produção em
Portugal na Idade Média: o Porto, c. 1320-c.1415, I, Faculdade de Letras, Porto, 2001 (policopiado), 352-404.
31. COELHO, Maria Helena da Cruz; REPAS, Luís Miguel: Um cruzamento de fronteiras, 117-119.
32. Ibidem, 169. E o monarca dá-lhes razão, determinando que «os cidadaaos e boas pessoas» não devem ser
constrangidos a tais coisas.

312 LA GOBERNANZA DE LA CIUDAD EUROPEA EN LA EDAD MEDIA


«EM PROL DO BOM GOVERNO DA CIDADE»: A PRESENÇA DAS ELITES URBANAS…

Queriam mesmo que o seu estatuto tivesse uma digna representação cerimonial
e simbólica.

Desfilavam, pois, esses «maiores» das cidades e vilas, na procissão do Corpo de


Deus, com as suas varas do poder na mão, ao lado do Santíssimo, numa exibi-
ção da sacralidade desse poder33.

Queriam ver pintadas as suas armas e divisas na casa da câmara, em que se


reuniam, emulando os sinais de aparato e os símbolos emblemáticos das socie-
dades e culturas cortesã e nobiliárquica34.

Pretendiam exibir-se como gente nobre para propagandear o seu estatuto. As-
sim as elites políticas de Évora gastaram o pano tinto de Castela, que havia sido
comprado para as celebrações fúnebres em honra da rainha, em seu proveito
próprio, afim de se apresentarem nas cerimónias e exéquias com um rico ves-
tuário de luto35.

4. O DISCURSO DAS ELITES DO PODER CONCELHIO


EM CORTES

Muitas vezes, no percurso de uma carreira na governança, alguns homens virão


a ser os procuradores dos concelhos às Cortes36.

33. Sobre a estreita relação desta festa com os concelhos leia-se GONÇALVES, Iria: «As festas do ‘Corpus Christi’
do Porto na segunda metade do século XV, a participação do concelho», Estudos Medievais, 4/5, 1984/1985, 69-
89; SILVA, Maria João Violante Branco Marques da: «A procissão na cidade: reflexões em torno da festa do Corpo
de Deus na Idade Média Portuguesa», in A Cidade. Actas das Jornadas inter e pluridisciplinares, Universidade
Aberta, Lisboa, 1993, 197-217.
34. Assim o queriam os vereadores de Évora, o que não lhes consentiu D. Manuel, defensor de um poder real
forte e centralizante, em acto e representação, numa carta que dirige ao juiz da cidade em 1501 (PEREIRA, Ga-
briel: Documentos Históricos da Cidade de Évora, ed. fac-similada, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa,
1998,499).
35. TT-Leitura Nova, Odiana, liv. 6, fl.
fl. 105. Os dirigentes de Évora pediram então ao monarca que lhes levasse
em conta esta despesa e não se indispusesse com o seu acto. O rei concordou pontualmente, mas advertiu-os
que não mais o consentiria sem a sua prévia autorização.
36. Estão publicadas as seguintes Cortes: Cortes Portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-1357), edição de
Marques, A. H. de Oliveira et al, INIC, Lisboa, 1982; Cortes Portuguesas. Reinado de D. Pedro I (1357-1367), edi-
ção de Marques, A. H. de Oliveira et al., INIC, Lisboa, 1986; Cortes Portuguesas. Reinado de D. Fernando I, vol. I
(1367-1383), vol. II (1383), edição de MARQUES, A. H. de Oliveira et al., INIC-CEHUNL, Lisboa, 1990-1993; Cortes

JESÚS ÁNGEL SOLÓRZANO TELECHEA y BEATRIZ ARÍZAGA BOLUMBURU (Eds.) 313


MARIA HELENA DA CRUZ COELHO

De facto, os procuradores escolhidos para representarem os concelhos em


Cortes, saem dos homens da governança37. E nas Cortes, os concelhos que
aí se fazem ouvir38 vão discutir em comum os problemas apresentados pelo
rei –guerra, quebra da moeda, impostos extraordinários ou outros assuntos
políticos– mas também têm a capacidade de expor os seus próprios agravos e
pedidos, quer em capítulos gerais quer em capítulos especiais39.

Era esta ainda uma das modalidades do governo das cidades pelas elites muni-
cipais, que apelavam à suprema autoridade do rei para impor e fazer acatar o
seu poder. Não menos essa reunião de Cortes era um momento propício para
firmar solidariedades entre as elites dos diversos concelhos, que já bem sabe-
riam comunicar entre si40, como também uma ocasião para se relacionar com
os demais poderes e com a sociedade política da corte.

Então os procuradores às Cortes, sobretudo nos capítulos especiais que apre-


sentavam em nome do concelho e do bem comum, defendiam essencialmente

Portuguesas. Reinado de D. Duarte (Cortes de 1436 e 1438), edição de Dias, João José Alves et al., CEH-UNL,
Lisboa, 2004; Cortes Portuguesas. Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1498), edição de Dias, João José AlVES et al.,
CEHUNL, Lisboa, 2002; Cortes Portuguesas. Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1499), edição de Dias, João José
Alves et al., CEHUNL, Lisboa, 2001; Cortes Portuguesas. Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1502), edição de Dias,
João José ALVES et al., CEHUNL, Lisboa, 2001. Os resumos dos capítulos gerais dos concelhos apresentados às
Cortes de 1385 a 1490 estão reunidos no volume segundo da obra de SOUSA, Armindo de, As Cortes Medievais
Portuguesas (1385-1490), I, Instituto Nacional de Investigação Científica-Centro de História da Universidade,
Porto, 1990. Por sua vez muitos capítulos especiais encontram-se publicados em diversos artigos sobre a temática,
como no nosso estudo, já referido, sobre os concelhos da Guarda.
37. No já aludido caso das Cortes de Santarém de 1383, o maior número de concelhos escolheram como procu-
radores escudeiros, muitas vezes vassalos e criados do rei, seguindo-se depois os que se fizeram representar por
oficiais eleitos dos concelhos (juízes, vereadores e procuradores) e por fim os que designaram tabeliães para essa
missão (COELHO, Maria Helena da Cruz: «No palco e nos bastidores do poder local», 55-56).
38. Sabemos que nas Cortes, que se realizaram entre 1385 e 1490, 123 terras participaram, na maioria concelhos,
ainda que neste número se incluam também 5 julgados e um couto. Já nas Cortes de Évora-Viana de 1481-1482
estiveram presentes 80 concelhos com assento em 16 bancos, possivelmente os que ao longo do tempo foram
ganhando o direito de serem convocados a Cortes, para além de mais 7 concelhos sem assento. Veja-se SOUSA,
Armindo de: As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490), I, 132-135, 188-206.
39. Os capítulos gerais devem ter surgido pela primeira vez nas Cortes de Santarém de 1331, concertando-se, já
em reunião, os diversos procuradores dos concelhos, em que por certo prevaleceria a vontade dos representantes
das cidades mais evoluídas. Os capítulos especiais deviam ser redigidos nas Câmaras e apresentados nas sessões
de Cortes. Os capítulos gerais, quando deferidos, tinham o valor de ordenações, já os especiais, quando deferi-
dos, tinham apenas valor privilégios.
40. Sobre o movimentos das comunicações nos municípios, leia-se COELHO, Maria Helena da Cruz: «A rede de
comunicações concelhias nos séculos XIV e XV», in As Comunicações na Idade Média, coord. de Coelho, Maria
Helena da Cruz, Fundação Portuguesa das Comunicações, Lisboa, 2002, 64-101.

314 LA GOBERNANZA DE LA CIUDAD EUROPEA EN LA EDAD MEDIA


«EM PROL DO BOM GOVERNO DA CIDADE»: A PRESENÇA DAS ELITES URBANAS…

os interesses dos homens do poder. Queixavam-se de intromissões externas


que lhe coarctavam os seus poderes e formulavam pedidos de política interna
que, embora formulados em nome do bem da terra, no geral favoreciam os
seus negócios e a sua projecção social41.

Numa primeira e constante linha de agravos, criticavam os oficiais régios da


justiça, do fisco, do recrutamento militar.

Acusavam os corregedores de permanecerem nos concelhos mais tempo do


que o devido, de se intrometerem nas eleições concelhias, de julgarem ques-
tões que não eram da sua competência. Denunciavam a multiplicidade de juí-
zes –dos órfãos, dos judeus, dos mouros, das sisas e de fora– que a especializa-
ção do direito e a complexidade do tecido social exigiram, que alongavam os
processos e sobrecarregavam os homens, em tempo e dinheiro. Reclamavam os
concelhos a eleição de muitos destes magistrados judiciais, enquanto os monar-
cas pretendiam que fossem por eles nomeados, para agraciar com tais cargos
certos homens da sua clientela.

Criticavam do mesmo modo e severamente os alcaides, que chefiavam os cas-


telos e fortificações, mas não cuidavam delas, e controlavam as prisões, onde
davam maus tratos aos presos e lhes exigiam maiores carceragens que as legais.
Além disso, ainda libertavam alguns malfeitores, de que depois dispunham
como mercenários nos seus actos opressivos. Ainda no plano militar prevarica-
vam os coudéis e anadéis, que detinham o magno poder de avaliar riquezas e
recrutar cavaleiros e peões para o exército. Obrigavam uns ao serviço militar e
dispensavam outros, que logo os serviam e lhes proporcionavam mão-de-obra
nas suas lavras42.

41. Sobre os muitos estudos de Humberto Baquero Moreno e de nós própria com base em capítulos especiais,
consulte-se COELHO, Maria Helena da Cruz e MAGALHÃES; Joaquim Romero: O Poder Concelhio, 170, nota
50. Os nossos estudos, mais sincrónicos ou diacrónicos, incidiram já sobre os capítulos especiais de todos os
concelhos numa Corte (nas de Lisboa de 1439), os diversos concelhos de algumas regiões em Cortes (Guarda e
Riba Côa), de um concelho presente em diversas Cortes (Viseu, Guimarães, Montemor-o-Velho) ou de temáticas
apresentadas nesses capítulos especiais (relacionadas com a problemática da fronteira minhota ou com as ques-
tões sociais).
42. Uma apresentação deste contexto de guerra através das Cortes se encontra no estudo de COELHO,
C Maria
Helena da Cruz: «As Cortes e a Guerra», Revista de História da Sociedade e da Cultura, 1, Coimbra, 2001, 61-80.

JESÚS ÁNGEL SOLÓRZANO TELECHEA y BEATRIZ ARÍZAGA BOLUMBURU (Eds.) 315


MARIA HELENA DA CRUZ COELHO

Muito lesiva era também a actuação do almoxarife e oficiais do fisco, que


cobravam os tributos por um valor mais elevado que o devido e reclamavam
avenças desvantajosas para os contribuintes, sempre cometendo excessos e não
respeitando os usos e costumes locais.

E todo este corpo de oficiais trazia ainda consigo escrivães e tabeliães, homens
que, com o poder da escrita, mais subjugavam os analfabetos e iletrados que
maioritariamente compunham a sociedade medieval43.

No balanço destas críticas, que apenas em síntese enunciámos, não podemos


deixar de pensar que, embora tivessem um fundamento real, elas deviam estar
muito empoladas pela rivalidade e desconfiança das elites dirigentes. Na verda-
de, todo este oficialato representava a extensão do poder régio nos concelhos,
que ensombrava a autoridade e o mando dos governantes locais e coarctava a
sua plena liberdade de agir segundo os seus objectivos e interesses44. Daí que
fossem, no geral, odiados pelas elites concelhias e, como veremos, contraria-
mente reclamados pelos homens que por elas eram governados.

A voz dos procuradores em Cortes erguia-se também contra a concorrência


do outro poder local, o dos senhores, fossem da fidalguia ou da clerezia. São
frequentes as queixas contra os seus «maus usos», contra as exacções que es-
tes lançavam sobre os vizinhos. Reclamavam jeiras, dias de trabalho gratuito
a trabalhar nas suas terras, tomavam-lhes géneros e roupas ou exigiam-lhes
aposentadorias. Prejudicavam os concelhos no seu todo, danificando com as
pastagens dos seus gados as terras de cultivo, apropriando-se de terras comu-
nais e reclamando nos seus senhorios passagens e portagens, que dificultavam

43. Sobre estes agentes da escrita veja-se COELHO,


C Maria Helena da Cruz: «Os Tabeliães em Portugal. Perfil
Profissional e Sócio-Económico», in Estudos de Diplomática Portuguesa, Edições Colibri-FLUC, Lisboa, 2001, pp.
93-137 e Nogueira, Bernardo Sá Nogueira, «Tabelionado e elites urbanas no Portugal Ducentista (1212-1279)», in
Elites e Redes Clientelares na Idade Média, 211-220.
44. Consulte-se a este propósito COELHO, Maria Helena da Cruz: «‘Entre Poderes’- análise de algusn casos da
centúria de Quatrocentos», Revista da Faculdade de Letras. História, 2ª série, 6, Porto, 1989, 105-135; «O poder
na Idade Média: um relacionamento de poderes», in Poder Central. Poder Regional. Poder Local. Um perspectiva
histórica, coord. de Luís Nuno Espinha da Silveira, Cosmos, Lisboa, 1997, 25-46; FERREIRA, Maria da Conceição
Falcão, Gerir e julgar em Guimarães no século XV. Subsídios para o estudo dos ofícios públicos, Arquivo Municipal
Alfredo Pimenta-Câmara Municipal de Guimarães, Braga, 1993; «Relações entre poder local de poder central:
aspectos de uma relação complexa», in Actas do Colóquio Internacional «Universo Urbanístico Português. 1415-
1822, CPCDP, Lisboa, 2001, pp. 69-78. Cortes de Leiria-Santarém,1433 (22), Lisboa, 1439 (46), Lisboa, 1455 (17).

316 LA GOBERNANZA DE LA CIUDAD EUROPEA EN LA EDAD MEDIA


«EM PROL DO BOM GOVERNO DA CIDADE»: A PRESENÇA DAS ELITES URBANAS…

a circulação e comercialização dos produtos. E não deixavam de impor os seus


acostados e clientelas no interior dos concelhos, homens a quem estendiam os
seus privilégios, e com os quais afrontavam e questionavam o poder e os car-
gos dos dirigentes locais. Esta força senhorial era pesada em certos concelhos
e muito pouco susceptível de ser dominada. Na verdade, pela repetição dos
agravos, verificamos que, mesmo dando o monarca razão aos concelhos, as
suas determinações não eram executadas.

Quando os procuradores pretendiam resolver problemas internos, os interesses


das elites mesclavam-se com os do concelho em geral, nas suas composições
específicas, como o estudámos para as Cortes de 143945.

No Portugal concelhio fronteiriço detectava-se uma preocupação contínua com


a defesa e possível guerra, uma vigilância dos intercâmbios comerciais com
castelhanos e galegos, olhando-se na fronteira beirã e alentejana para o con-
trabando de gado e na minhota ou algarvia disputando-se as valências do mar.
Já num Portugal mais comercial e bem posicionado nas vias de comunicação,
vigiavam-se as infraestruturas e os agentes de comércio, fixando a atenção nos
lugares de troca, de mercados e feiras, nas mercadorias em circulação, nos
impostos que sobre elas recaíam, nas facilidades de trânsito e comercialização,
no movimento das importações e exportações. Entretanto, num Portugal vin-
cadamente rural e ganadeiro, defendiam-se as lavouras e as pastagens, enfren-
tando-se interesses contrários de lavradores e criadores de gado, reclamando
estes terras e caminhos para os gados, enquanto os primeiros pugnavam pelas
suas terras de cultivo e por uma mão-de-obra permanente ou assalariada que
as amanhasse. Finalmente, num Portugal concelhio pressionado por senhores,
denunciava-se a carga fiscal por eles imposta, os seus abusos e a sua ingerência
na vida dos lugares.

Os reis deferiam no geral os pedidos dos concelhos46, mas do deferimento à


execução haveria grande margem, o que se deduz pelas repetitivas exposições

45. COELHO, Maria Helena da Cruz: «Relações de domínio no Portugal concelhio de meados de Quatrocentos»,
Revista Portuguesa de História, XXV, 1990, 235-289.
46. Os deferimentos dos pedidos ou agravos dos concelhos, ainda que nem todos fossem deferimentos totais,
mas também parciais ou condicionais, sobrelevam os indeferimentos, quer nos capítulos gerais, em que perfazem
quase 60% das respostas régias (SOUSA, Armindo de, As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490), I, 540), quer

JESÚS ÁNGEL SOLÓRZANO TELECHEA y BEATRIZ ARÍZAGA BOLUMBURU (Eds.) 317


MARIA HELENA DA CRUZ COELHO

de idênticos problemas. Todavia a insistência nas reclamações em Cortes, que,


como bem se sabe, tinha custos, igualmente nos demonstra que os concelhos
não desistiam das suas queixas e pretensões, as quais, teriam, sem dúvida, al-
gum efeito prático, mais pontual ou mais duradouro, até com a mudança nos
cargos e na sociedade dos prevaricadores.

5. OS AGRAVOS DAS DELEGAÇÕES PARALELAS


ÀS CORTES

Este era, porém, o diálogo oficial dos concelhos em Cortes.

Mas no seu reverso, conhecemos algumas delegações paralelas às Cortes47. De


facto, em certas reuniões de Cortes, alguns vizinhos dos concelhos, daqueles
que não frequentavam o círculo do poder local, mas normalmente apenas lhe
sentiam o peso, conseguiram fazer-se ouvir junto das mais altas instâncias. Por
certo nunca tiveram voz propriamente nas sessões amplas de Cortes, mas não
deixa de ser bem significativo haverem conseguido apresentar os seus pedidos
aos oficiais régios e haverem obtido uma decisão real.

Até às Cortes de Santarém de 1430 chegaram os moradores, lavradores e alde-


ãos dos julgados do Porto. Nas Cortes de Lisboa 1439 esteve o povo miúdo de
Évora. Às Cortes de Lisboa de 1459 rumaram os moradores do termo de Coim-
bra e de Ponte de Lima, os mesteirais de Santarém, e os lavradores de Torres
Novas. Por ocasião das Cortes da Guarda de 1465 exprimiram os seus agravos
os lavradores e o povo da Guarda e os procuradores do povo miúdo de Beja.
Nas Cortes de Santarém de 1469 queixou-se o povo miúdo de Estremoz48. Nas
Cortes de Coimbra-Évora de 1472-1473 apresentaram-se os procuradores do
povo miúdo de Elvas49. A par destas delegações algo heterodoxas estiveram
presentes os representantes oficiais dos respectivos concelhos.

nos especiais, como nas Cortes de 1439, em que ascenderm a 78,7% (COELHO, Maria Helena da Cruz: «Relações
de domínio no Portugal concelhio de meados de Quatrocentos», 286-287).
47. Cfr. SOUSA, Armindo de: As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490), I, 210-214.
48. No volume II da sua obra, Armindo de Sousa indica as cotas destes documentos, excepto os de Beja e Elvas.
49. Nas pesquisas para este trabalho, deparamos com mais um capítulo especial do povo miúdo da vila de Beja,
sem data, mas que talvez tenha sido apresentado nas Cortes da Guarda de 1465 (TT-Leitura Nova, Odiana, liv.

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«EM PROL DO BOM GOVERNO DA CIDADE»: A PRESENÇA DAS ELITES URBANAS…

São desde logo muito significativos os corpos que se fizeram representar, desde
os lavradores do termo aos pequenos comerciantes e artesãos das sedes urbanas.
Eram estes os meãos e baixos das cidades e vilas. Os lavradores viviam nas al-
deias, que sofriam o domínio das sedes urbanas sobre os seus termos. Finalmen-
te, os mais desprovidos, constituíam o povo miúdo de qualquer centro urbano.

Gente, portanto, no seu todo, trabalhadora e contribuinte, pouco permeabiliza-


da ao sentido da representação, da persuasão do discurso oral e menos ainda
aos recortes argumentativos da exposição escrita. Mas gente, sem dúvida, com
uma percepção das linhas identitárias dos seus problemas, com laços de soli-
dariedade social e mesmo com capacidade de assunção de um colectivo, que
queria ter voz para expor os males que sofria, e clamar remédio.

Nos pedidos destas delegações não oficiais plasmava-se, muitas vezes, a antíte-
se do que escutámos nas anteriores. Agora os povos apelavam para a presença
dos oficiais régios, únicas autoridades fortes que poderiam coarctar os abusos
internos. Maximamente requeriam a presença do corregedor, esse braço exe-
cutivo e actuante do poder régio, como o faziam os mesteirais de Santarém50.
Logo devia estar na vila por dois meses –e não apenas por quinze dias como
queriam as elites dirigentes– porque, como expunham, ele executava melhor as
leis que os oficiais locais, era mais isento na cobrança de impostos e cumpria
mais depressa a justiça.

Este apelo às autoridades régias, que supervisassem os mandantes concelhios,


não impedia as delegações dos mais humildes de criticarem certos oficiais ré-
gios que se excediam. Como acusavam os sempre abusadores fidalgos, que,
continuamente e por razões de pouca importância, aumentavam o número dos
seus vassalos, isentando-os dos encargos concelhios51 ou impunham diversos
«maus usos»52.

5, fls. 135v-136) e 11 capítulos especiais do povo miúdo de Elvas às Cortes de Coimbra-Évora de 1472-1473 (TT-
Leitura Nova, Odiana, liv. 6, fls. 43-46).
50. Cortes de Lisboa de 1459, caps dos mesteirais de Santarém (TT-Chanc. Afonso V, liv. 36, fl.
fl. 229-229v, art. 1).
51. Cortes de Lisboa de 1459, caps. especiais de Ponte de Lima, art. 3 (TT-Além Douto, liv. 3, fl
fls.
s. 31v-32v, art. 2 e
5). E nesta crítica às opressões da fidalguia e ao seu expediente do acostameto para recrutar homens são apoiados
pelas queixas dos procuradores oficiais do concelho às mesmas Cortes (TT-Chanc. Afonso V, liv. 36, fls. 167-168v,
caps. especiais de Ponte de Lima, arts. 3,4,9,11,12).
52. Cortes de Lisboa de 1459, caps. do povo miúdo de Estremoz, arts. 1 e 2 (TT-Odiana, liv.4, fls.
fls. 233-234).

JESÚS ÁNGEL SOLÓRZANO TELECHEA y BEATRIZ ARÍZAGA BOLUMBURU (Eds.) 319


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As queixas erguiam-se ainda mais alto contra as elites do poder concelhio.


Como se compreende, os mandados sempre acusam os que mandam. Assim o
exprimiam claramente os «pequenos » de Ponte de Lima dizendo que os maio-
res do lugar eram irmãos, tios, primos e cunhados uns dos outros e por isso os
cargos, «nunca lhes sa(iam) das mãos», em especial o de juiz, quando havia aí
muitos outros creditados para os exercerem, pelo que pediam que houvesse um
juiz da vila e outro do termo para evitar um mando opressor e as «afeições»53.
Este vício da «afeição», ou seja, dos favores que garantiam as clientelagens e os
homens de maneio que suportavam as elites dirigentes, estava continuamente a
ser invocado e seria uma inequívoca realidade, como o seu perdurar no tempo
no-lo corrobora.

Os dirigentes obrigavam ou dispensavam os contribuintes do pagamento de


rendas, como entendiam. Não lhes convinha pois, como acontecia com os juí-
zes de Elvas, compelir os procuradores do número a advogarem os interesses
dos homens do povo, porque sabiam que muitas vezes estes apresentavam
queixas contra eles54.

Denunciavam ainda essas delegações o vício dos concluios, consequência de


um poder exercido por poucos, assegurado pela rotatividade nos cargos e
suportado por alianças familiares e de clintelagem. Assim expunham que as
ordenações concelhias apenas se aplicavam nas pessoas pobres e «miseráveis»,
sendo os honrados e poderosos sempre absolvidos, mesmo que culpados, pois
os dirigentes esperavam um semelhante tratamento quando aqueles fossem
oficiais55.

Por isso estes pequenos reclamavam certos ofícios. Logo, o povo da Guarda
queria ter na vereação um procurador do povo que vigiasse o lançamento dos
impostos e as contas dos procuradores do concelho56. Mais significativamente,

53. Cortes de Lisboa de 1459, caps. do povo de Ponte de Lima, art. 1. E no seu deferimento o monarca vai ainda
mais além, determinando que em cada ano haja tantos oficiais da vila como do termo.
54. Cortes de Coimbra-Évora de 1472-1473, caps. do povo miúdo de Elvas, arts. 2 e 10 (TT-LeituraNova, Odiana,
liv.6, fls. 46v-47).
55. Cortes de Lisboa de 1459, caps dos mesteirais de Santarém, art. 3.
56. Cortes da Guarda de 1465, caps. dos lavradores e povo da Guarda, art. 3 (TT-Beira, liv. 2, fl
fls.
s. 28v-29).

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«EM PROL DO BOM GOVERNO DA CIDADE»: A PRESENÇA DAS ELITES URBANAS…

e com muita ousadia, pediam, como o fez Coimbra57, que os mesteirais, à


semelhança do que acontecia em Lisboa e Santarém, estivessem presentes na
câmara –o que é reclamado, note-se, pelos moradores do termo da cidade– e
assim saberiam como andavam as coisas e como se gastava o dinheiro e ainda
defenderiam os lavradores. Pedido que o monarca deferiu e que, a haver sido
cumprido, daria assento aos mesteirais na câmara conimbricense em meados
do século XV, logo em tempos muito próximos de privilégios similares alcan-
çados por Tavira e Évora58.

O povo miúdo de Elvas denunciava ainda que a vila elegia para irem como
procuradores às Cortes «os milhores da vila», os quais sempre requeriam em ca-
pítulos a «sobjeyçom pera o povo» e o «quebramtamento dos (seus) privillegios
e liberdades». Queria então que com eles fosse um procurador do povo, mas o
monarca não permitiu tal inovação59.

A par do método dos favores, as elites jogavam com um outro, o do encobri-


mento e negação de provas. Os lavradores de Torres Novas sabiam possuir
privilégios e liberdades de reis e rainhas que os contemplavam, mas os oficiais
tinham-nos «em seu poder e de suas mãos fechados» e ainda que lhes fossem
pedidos não os mostravam, pelo que não se podiam deles socorrer60. Era o
exercício do poder a fundamentar-se, numa outra vertente, no monopólio do
poder sobre os escritos. Demonstração de uma consciência sobre o valor da es-
crita e da memória escrita como pilares da governação e mesmo da subjugação,
mormente numa sociedade quase só de iletrados e analfabetos.

57. Cortes de Lisboa de 1459, caps dos moradores do termo de Coimbra, art. 1 (TT-Chanc. Afonso V, liv. 36, fls.
fls.
164v-165).
58. Como já referimos, a presença dos mesteirais na câmara foi privilégio alcançado por Lisboa em 1384, como
recompensa dada pelo Mestre de Avis face ao seu apoio e serviços, e só bem mais tarde se estendeu a outras
cidades como ao Porto em 1392, sem direito a voto, e em 1475, com direito a ele, em 1436 a Santarém, em 1446
a Tavira e em 1459 a Évora (MARQUES, A. H. de Oliveira, Portugal na Crise dos séculos XIV e XV, Editorial Pre-
sença, Lisboa, 1985, 202).
59. Cortes de Coimbra-Évora de 1472-1473, caps. do povo miúdo de Elvas, art. 8.
60. Cortes de Lisboa de 1459, caps dos lavradores de Torres Novas, art. 11 (TT-Estremadura, liv. 7, fls. fls. 259v-
261v). Por sua vez os procuradores oficiais do concelho queixavam-se que os oficiais régios não lhes cumpriam
as cartas de privilégios reais (Cortes de Lisboa de 1459, caps especiais de Torres Novas, art. 9; TT-Chanc. Afonso
V, liv. 36, fls. 146-147).

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Mas esta gente inculta, quando exprimiu as suas vontades, soube bem fazer
apelo ao saber dos letrados. Porque a retórica argumentativa expressa no dis-
curso destas delegações paralelas é coerente, fundamentada e persuasiva.

Manifestamente o querer do povo miúdo chegou às Cortes numa voz de ho-


mens experientes e com conhecimentos jurídicos. E porque o monarca e seus
oficiais lhe teriam sido sensíveis, ou bem porque achariam pertinentes os seus
agravos e petições, quase todos obtiveram um deferimento total. Como aliás,
do mesmo modo, actuaram os monarcas para com os procuradores oficiais dos
concelhos, buscando, sem dúvida, a desejada concertação social.

Mas não deixa de ser deveras importante o conhecimento que possuímos des-
tas delegações paralelas, demonstrando como mesmo o povo miúdo detinha,
em Quatrocentos, uma capacidade para se organizar colectivamente e para
levar até à mais alta instância do governo do reino as suas pretensões. Acredi-
tando, por certo, que com essa denúncia alcançariam algum remédio para os
seus males.

Enfim os soberanos, conhecedores da multifacetada vida concelhia, atravessada


por forças várias e tensões contraditórias, e muito interessados num poder con-
celhio ordeiro, pacífico e laborioso, sustentador do edifício militar, fiscal e eco-
nómico da coroa, procuravam ouvir todos os estratos sociais e dar provimento
às sua reclamações. Escutavam as elites urbanas e os comuns.

Porque só a paz interna das cidades e vilas podia garantir o apoio fiscal e mili-
tar de que tanto necessitavam os monarcas, na conjuntura de conflitos bélicos,
internos e externos, vivida nos finais da centúria de Trezentos e Quatrocentos.
Como também só as cidades e vilas podiam fornecer homens e abastecer de
víveres os navios, que se lançavam na nova aventura e desafio de desbravar os
mares e de colonizar e explorar as terras que o bordejam e povoavam.

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