Os Concelhos - Maria Helena Cruz
Os Concelhos - Maria Helena Cruz
Os Concelhos - Maria Helena Cruz
governo da cidade»:
a presença das elites
urbanas nas cortes
medievais portuguesas
«Por serviço de Deus e vosso e bem desta terra»1– com este comum fundamento
das hierarquias, do serviço divino e terreno, da grande comunidade do reino e
da pequenas comunidades das terras, os procuradores dos concelhos expõem
nas Cortes de Trezentos e Quatrocentos os pedidos ou formulam os agravos
para os quais clamam por resolução.
1. Alegação num capítulo especial da Guarda às Cortes de Évora/Viana de 1481-1482. (Veja-se COELHO, Maria
Helena da Cruz Coelho; REPAS, Luís Miguel, Um cruzamento de fronteiras. O discurso dos concelhos da Guarda
em Cortes. Campo das Letras: Porto, 2006, 143).
Mas antes de nos centrarmos sobre eles, como é nosso objectivo, conheçamos
essas terras, esses concelhos.
Antes de mais torna-se claro que a concessão de uma carta de foral, não cria,
por via de regra, um concelho mas apenas o reconhece juridicamente. A vida
colectiva, com os seus usos e costumes, já preexistia em muitos casos, sendo
apenas ratificada pelo poder régio com esta carta, que definia os direitos e
deveres dos seus vizinhos e enquadrava a comunidade no âmbito dos poderes
locais que dominavam o território. Poderes locais em que estes senhorios co-
lectivos conviviam com os senhorios de nobres ou da Igreja e com os domínios
tutelados directamente pela realeza.
Logo, ainda que os forais pouco o refiram, muitos podiam ter sido reclamados
junto dos monarcas pelas localidades, enquanto outros resultariam mais deci-
sivamente de um programa político da coroa. Em qualquer dos casos os forais
dirigiam-se a terras já com uma prévia ocupação social do espaço, ainda que os
monarcas estivessem, na maioria delas, a dinamizar o seu povoamento e defe-
sa, a codificar o normativo da sua organização interna e a definir os encargos
para com a fiscalidade régia. Claro que se falamos em cartas outorgadas pela
realeza, não esqueceremos que um número significativo de forais foi concedido
por senhores da Igreja ou da nobreza com destaque para as Ordens religioso-
militares.
O seu sucessor, Sancho I, mais não fez que continuar esta política, decalcando-
a até geo-estrategicamente. Outorgou, nos seus 26 anos de reinado, um total
2. Sobre esta política foraleira, veja-se COELHO, Maria Helena da Cruz, «Concelhos», in Portugal em Definição de
Fronteiras. Do Condado Portucalense à Crise do Século XIV, coord. de Coelho, Maria Helena da Cruz e Homem,
Armando Luís de Carvalho, vol. III de Nova História dir. de Serrão, Joel e Marques, A. H. de Oliveira. Editorial
Presença, Lisboa, 1996, 554-584.
Saliente-se, porém, que todo este procedimento da Coroa não pretendia anular
o poder local concelhio. Na realidade, a realeza de Trezentos e Quatrocentos,
para a afirmação e viabilização da sua política, não prescindia e mesmo exigia
um vivo e actuante poder local corporizado em senhorios e concelhos. Poderes
que, no geral, entre si se opunham e com os quais podiam mesmo jogar os
monarcas de acordo com os seus objectivos e diferentes circunstâncias. Mas
genericamente pretendiam articulá-los com a política da Coroa através de fun-
cionários e órgãos4.
3. Cfr. ANDRADE, Amélia Aguiar, «Estado, Territórios e ‘Administração Régia Periférica», in A Génese de Estado Mo-
derno no Portugal Tardo-medievo (séculos XIII-XV). Ciclo de Conferências. UAL, Lisboa, 1999, 151-187; COELHO,
Maria Helena da Cruz e MAGALHÃES, Joaquim Romero, O Poder Concelhio. Das Origens às Cortes Constituintes.
Notas de História Social, 2ª ed. revista. CEFA, Coimbra, 2008, 23-28.
4. Veja-se COELHO, Maria Helena da Cruz, «O Estado e as Sociedade urbanas», in A Génese do Estado Moderno,
269-292. Para um confronto, no quadro dos diversos reinos peninsulares, deste entrecruzar do poder régio nos
concelhos e a sua autonomia municipal, leia-se LADERO QUESADA, Miguel Ángel, Ciudades de la Espña medie-
val. Dykinson, Madrid, 2010, 87-93.
5. COELHO, Maria Helena da Cruz e Magalhães, Joaquim Romero, O Poder Concelhio. Das Origens às Cortes
Constituintes. Notas de História Social, 29-34.
Logo, nos séculos XIV e XV, o número de oficiais aumentou e as suas funções
especializaram-se. Criaram-se mesmo novos oficiais.
6. Em certos momentos mais conflituosos politicamente, em que os monarcas queriam ter um particular controlo
sobre os municípios, ao lado destes vereadores, ou mesmo substituindo-os, aparecem os regedores nomeados
pelo poder régio (COELHO, Maria Helena da Cruz e MAGALHÃES, Joaquim Romero, O Poder Concelhio, p. 39,
nota 28). Surgem durante o reinado de D. Fernando e estão documentados, em estudos para Évora entre 1377 e
1430 (Beirante, Maria Ângela, Évora na Idade Média, FCG-INIICT,1995, 613-623, 678) e para Lisboa entre Setem-
bro de 1370 a Novembro de 1394 (FARELO, Mário Sérgio da Silva, A oligarquia camarária de Lisboa (1325-1433),
Faculdade e Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2008, 282-290 –tese de doutoramento policopiada).
A memória deste passado chegou até nós nas actas de vereação, que nos infor-
mam sobre o número de sessões por ano camarário, sobre os oficiais e homens
bons nelas presentes e sobre as decisões tomadas. As mais completas que co-
nhecemos dizem respeito à cidade do Porto7e à vila de Loulé8.
7. Para o Porto estão publicadas as seguintes anos: «Vereaçoens». Anos de 1390-1395, vol. II de Documentos e
Memórias para a História do Porto, comentário e notas de Basto, A. de Magalhães, Câmara Municipal, Porto, s.d.;
«Vereaçoens». Anos de 1401-1449, vol. XL de Documentos e Memórias para a História do Porto, com nota prévia
de Ferreira, J. A Pinto, Câmara Municipal, Porto, 1980; «Vereaçoens». Livro I, 1431-1432, vol. XLIV de Documentos
e Memórias para a História do Porto, leitura, índices de notas de Machado, João Alberto e Duarte, Luís Miguel,
Arquivo Histórico-Câmara Municipal, Porto, 1985; 1980. Muitas outras reuniões do século XV continuam ainda
inéditas.
8. Actas de Vereação de Loulé. Século XIV-XV, coord. de Serra, Manuel Pedro, Arquivo Histórico Municipal, Lou-
lé, 2000 (Sep. da revista Al-Ulyã, nº 7); Actas de Vereação de Loulé. Século XV, coord. de Serra, Manuel Pedro,
Arquivo Histórico Municipal, Loulé, 2004 (Sep. da revista Al-Ulyã, nº 10). Acresce que também para Montemor-o-
Novo existem alguns livros de vereação publicados por Fonseca, Jorge, Montemor-o-Novo no século XV, Câmara
Muncipal, Montemor-o-Novo, 1998.
9. COELHO, Maria Helena da Cruz e MAGALHÃES, Joaquim Romero, O Poder Concelhio, 34, doc. X. A assem-
bleia já só apenas escolhia dois homens bons que eram os responsáveis pela designação da pauta dos elegíveis,
pauta que tinha de ser enviada ao rei para confirmação.
10. Entre a vasta bibliografia
bibliografia sobre a temática destaquem-se as actas que saíram de reuniões científicas
científicas que a de-
bateram, como Les élites urbaines au Moyen Âge. XXVIIe Congrès de la S.H. M.E. S. (Rome, mai 1996), Publications
de la Sorbonne, Paris, 1997 e La notabilité urbaine. Xe-XVIIIe siècles. Actes de la Table ronde organisé à la MRSH.
20 et 21 janvier 2006, CNRS-Université de Caen Basse Normandie, Caen, 2007.
11. DUTOUR, Thierry, no estudo, «La notabilité urbaine vue par les historiens médiévistes farncophones aux XIXe
et XXe siècles», in La notabilité urbaine. Xe-XVIIIe siècles. Actes de la Table ronde organisé à la MRSH. 20 et 21
janvier 2006, 7-22, apresenta um balança historiográfico sobre as mais antigas teses que opunham a burguesia/
cidade à nobreza/campo e sobre a redução das elites à riqueza e ao exercício do poder político para insistir
sobremaneira no novo conceito operatório da notabilidade urbana. E no mesmo sentido da explanação e apro-
fundamento das valências deste conceito da notabilidade se desenvolve a reflexão de CROQ, Laurence, «Essai
pour la construction de la notabilité comme paradigme sócio-politique», in La notabilité urbaine. Xe-XVIIIe siècles.
Actes de la Table ronde organisé à la MRSH. 20 et 21 janvier 2006, 23-38.
12. Veja-se a discussão sobre as elites urbanas no quadro da França, Inglaterra e Itália no artigo de CROUZET-
PAVAN, Elisabeth, «Les elites urbaines: aperçus problématiques (France, Angleterre, Italie)», e ainda, centrado no
vocabulário das elites, o de BRAUNSTEIN, Philippe, «Pour une histoire des élites urbaines; vocabulaire, realités e
représenattions», in Les élites urbaines au Moyen Âge. XXVIIe Congrès de la S.H. M.E. S. (Rome, mai 1996), Publi-
cations de la Sorbonne, Paris, 1997, respectivamente, p. 9-28, 29-38.
13. Cfr. HOMEM, Armando Luís de Carvalho, GONÇALVES, Judite, «A prosopografia dos burocratas régios (sé-
culos XIII-XV): da elaboração à exposição dos dados», in Elites e Redes Clientelares na Idade Média. Problemas
Metodológicos, ed de Barata, Filipe Themudo, Edições Colibri-CIDEHUS, Lisboa, 2001,171-210; COELHO, Maria
Helena da Cruz, «Les relations du Savoir et du Pouvoir dans le Portugal médiéval (XIVe et XVe siècles)», in Europa
und die Welt in der Geschichte. Festschrift zum 60. Geburtstag von Dieter Berg, herausgegeben von Raphaela
Averkorn, Winfried Eberhard, Raimund Haas und Bernd Schmies, Verlag Dr. Dieter Winkler Bochum, 2004, 313-
334.
14. Leia-se MARTINS, Miguel Gomes, «A família Palhavã (1253-1357). Elementos para o estudo das elites diri-
gentes da Lisboa Medieval», Revista Portuguesa de História, XXXII, 1997-1998, 35-93; «Estêvão Cibrães e João
Esteves: A família Pão e Água em Lisboa (1269-1342)», Arqueologia e História, 53, 2001, 67-74; «Os Alvernazes.
Um percurso familiar e institucional entre finais de Duzentos e inícios de Quatrocentos», Cadernos do Arquivo
Municipal, 6, 2002, 10-43.
15. COSTA, Adelaide Lopes Pereira Millan da, «Vereação» e «Vereadores». O governo do Porto em finais do século
XV, Câmara Municipal do Porto, Porto, 1993. Esta obra apoia o seu estudo no método prosopográfico e dá-nos
a conhecer 96 oficiais camarários.
16. FARELO, Mário Sérgio da Silva, A oligarquia camarária de Lisboa (1325-1433), Faculdade e Letras da Uni-
versidade de Lisboa, Lisboa, 2008 (tese de doutoramento policopiada). Esta tese colige um corpo prosopográfcio
de 286 oficiais concelhios e 25 oficiais régios com actuação em Lisboa. Este autor, depois de analisar a diversa
terminologia dos homens do poder político urbano (páginas 26-32), considerou mais apropriado ao seu estudo a
utilização do conceito de oligarquia camarária.
17. Um elenco dos principais estudos sobre as cidades e vilas pode-se colher nos estudos de historiografia
historiografia
HOMEM, Armando Luís de Carvalho; ANDRADE, Amélia Aguiar; AMARAL, Luís Carlos: «Por onde vem o medie-
vismo em Portugal?», Revista de História Económica e Social, 22, 1988, 115-138; COELHO, Maria Helena da Cruz:
«Balanço sobre a história rural produzida em Portugal nas últimas décadas», in A cidade e o campo. Colectânea
de estudos, Centro de História da Sociedade e da Cultura, Coimbra, 2000, 23-40; COELHO, Maria Helena da Cruz:
Também em Évora o poder político se reparte entre uma média e pequena no-
breza e mercadores que investem parte do seu capital em terras e gados20.
«Historiographie et état actuel de la recherche sur le Portugal au Moyen Age», Memini. Travaux et documents,
9-10, 2005-2006,9-60.
18. Ainda que muitos trabalhos sobre cidades e vilas nos dêem informações sobre o tema remetemos mais es-
pecificamente para os estudos de COELHO, Maria Helena da Cruz: «Les elites muicipales», Anais-Série História,
2, 1995, 51-56 e de GOMES, Rita Costa, «As elites urbanas no final da Idade Média. Três pequenas cidades do
interior», in Estudos e Ensaios de Homenagem a Vitorino Magalhães Godinho, Livraria Sá da Costa Editora, Lis-
boa, 1988, 229-237, bem como para as actas do colóquio Elites e Redes Clientelares na Idade Média. Problemas
Metodológicos, ed. de Barata, Filipe Themudo, Edições Colibri-CIDEHUS, Lisboa, 2001. Para um confronto com
a composição social das elites de localidades de outros reinos, veja-se entre outros, DERVILLE, Alain: «Les élites
urbaines en Flandre et en Artois»; JANSEN, Philippe: «Élites urbaines, service de la commune et processus d’aris-
tocartisation: le cas de Macerata aux XIVe-XVe siècles», in Les Élites Urbaines au Moyen Âge. XXVII Congrès de la
Société des Historiens Médiévistes de l’Énseignement Supérieur Public, Paris, Publications de la Sorbonne, 1997,
respectivamente, 119-200, 201-223; GOICOLEA JULIÁN, Fco. Javier: «Sociedade y poder Concejil. Una aproxima-
ción a la elite dirigente urbana de la Rioja Alta Medieval», Studia Historica, 17, 1999, 87-112; JARA FUENTE, José
Antonio, «Sobre el concejo cerrado. Asamblearismo y participación política en las ciudades castellanas de la Baja
Edad Media (Conflictos inter o intra-clase)», Studia Historica, 17, 1999, 113-136.
19. Cálculos obtidos a partir do 96 ofi
oficiais
ciais referidos na citada obra de Adelaide Lopes Pereira Millan da Costa.
20. BEIRANTE, Maria Ângela: Évora na Idade Média, FCG-INIICT, 1995, 563-568.
21. Uma contextualização geral desta temática encontra-se em LE GOFF, Jacques: «Profissões lícitas e profissões
ilícitas no Ocidente medieval», in Para um Novo Conceito de Idade Média. Tempo, Trabalho e Cultura no Oci-
dente, trad. port., Editorial Estampa, Lisboa, 1980, 85-99 e Mercadores e Banqueiros na Idade Média, trad. port.,
Gradiva, Lisboa, 1982 e GUREVIC, Aron Ja.: «O Mercador», in O Homem Medieval, trad. port., Editorial Presença,
Lisboa, 1989, 165-189. Para a análise do caso português, e mais concretamente dos mercadores de Coimbra, veja-
se Maria Helena da Cruz COELHO: «Homens e Negócios», in Ócio e Negócio, Inatel, Coimbra, 1998, 127-202.
22. COELHO, Maria Helena da Cruz e MAGALHÃES, Joaquim Romero: O Poder Concelhio, 22-23; COELHO,
Maria Helena da Cruz: O Baixo Mondego nos Finais da Idade Média, 2ª ed., I, Imprensa Nacional-Casa da Moe-
da, Lisboa, 1989, 501-504; GOMES, Rita Costa: A Guarda medieval. 1200-1500, Cadernos da Revista de História
Económica e Social, 9-10, Sá da Costa, Lisboa, 1987, 124-128.
uma certa miscegenação, que foi ocorrendo já desde séculos anteriores, a partir
das últimas franjas do primeiro e dos mais altos escalões do segundo, em
particular da cavalaria-vilã. E teria particular incidência nos centros urbanos,
onde o comércio, o capital, a terra e os cargos enredavam os diversos estratos
sociais num jogo relacional de riqueza, notabilidade e poder.
23. FARELO, Mário Sérgio da Silva: ob. cit., 169-206. Os letrados perfazem apenas 12,2% dos oligarcas camarários
(cfr. FARELO, Mário Sérgio da Silva, ob. cit., 197). Uma análise concreta dos espaços e homens presentes, onde,
entre outros, os letrados e homens do saber também marcam presença, na reunião extraordinária que escolheu
os procuradores dos Concelhos que nas Cortes de Santarém deviam jurar D. Beatriz, filha de D. Fernando, e D.
João I de Castela, como herdeiros da coroa portuguesa, encontra-se no estudo de Coelho, Maria Helena da Cruz:
«No palco e nos bastidores do poder local», in O poder local em tempo de Globalização. Uma história e um futuro,
Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2005, 49-55.
No Porto 62,5 % desses homens tiveram uma carreira alongada por mais de
20 anos, chegando mesmo uns quantos aos 40 anos. Já em Lisboa 82,4% dos
dirigentes ficaram aquém dos 20 anos de carreira, demonstrando uma maior
mobilidade do grupo, para além de se verificar que, no processo de ascensão
de um indivíduo ou família, a presença camarária era apenas uma etapa que
culminava na burocracia e no serviço régio25.
Por isso, num capítulo geral das Cortes de Évora de 1481-82 as elites do poder
municipal, que se assimilavam aos «grandes», aos «maiores na Repubrica», aos
«nobres», aos «sabedores» aos «bons e antigos cidadãos», alegavam, numa bem
articulada fundamentação filosófica, que a eles competia «reger e governar» e
aos «meeãos obedecer e ajudar» e aos «mais baixos trabalhar e servir». Pediam,
então, que os mesteirais não estivessem nas câmaras das cidade e vilas, mas
somente os bons e nobres que despendiam as suas fazendas e vidas ao serviço
do rei e defesa do reino27. Esta preocupação dos dirigentes locais bem se com-
preende quando sabemos que, lentamente, graças à sua projecção económica
24. COSTA, Adelaide Lopes Pereira Millan da: ob. cit., 65-93.
25. FARELO, Mário Sérgio da Silva: ob. cit., 150-169.
26. Uma caracterização ampla das elites urbanas portuguesas apresenta DUARTE, Luís Miguel: «Os melhores da
terra (um questionário para o caso português)», e os métodos da sua abordagem são equacionados no estudo de
COSTA, Adelaide Lopes Pereira Millan da: «Prosopografia das elites concelhias e análise racional: a intersecção
de duas abordagens» in Elites e Redes Clientelares na Idade Média. Problemas Metodológicos, respectivamente
91-106, 63-70.
27. Cfr. COELHO, Maria Helena da Cruz e MAGALHÃES, Joaquim Romero: O Poder Concelhio, doc. XI. O rei é
muito evasivo na resposta, afirmando apenas que os mesteirais só tinham voz em Lisboa.
28. Maria Helena DA CRUZ: «No palco e nos bastidores do poder local», 56. Esta situação também se detecta em
Castela, onde era igualmente forte a oposição das oligarquias contra o acesso ao poder dos representantes do
«comum», como o demonstra Val Valdivieso, Maria Isabel, «Elites urbanas en la Castilla del siglo XV (Oligarquía y
Comum)», in Elites e redes clientelares na Idade Média, 84-86.
29. Veja-se FERRO,
F Maria José Pimenta: «A revolta dos mesteirais de 1383», in Actas das III Jornadas Arqueológicas
1977, Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1978, 359-383; HOMEM, Armando Luís de Carvalho, «Nó-
tula sobre um levantamento popular nas vésperas do Interregno», sep. Bracara Augusta, t. XXXII, fasc. 73-74 (85-
86), Jan.-Dez. de 1978, 3-19; COELHO, Maria Helena da Cruz: «No palco e nos bastidores do poder local», 57-61.
Sobre o associativismo dos oficiais mecânicos em terras de Castela, leia-se Monsalvo, José Maria, «Solidaridades
de oficio y estructuras de poder en las ciudades castellanas de la Meseta durante los siglos XIII al XV (aproxima-
ción al estudio del papel político del corporativismo artesanal)», in «El Trabajo en la Historia», Séptimas Jornadas
de Estudios Históricos organizadas por el Departamento de Historia Medieval, Moderna y Contemporánea de la
Universidad de Salamanca, Ediciones Universidad, Salamanca, 1996, 42-66.
30. Dois procuradores por cada mester, no total de 24, estavam na câmara de Lisboa, desde 1 de Abril de 1384,
ainda que o seu número viesse a ser reduzido e neste grupo se tivesse também sentido uma certa elitização
(FARELO, Mário Sérgio da Silva: A oligarquia camarária de Lisboa, 67-73); em Évora, em meados do século XV,
estavam em algumas reuniões da câmara os procuradores dos mesteres, também designados procuradores do
povo miúdo. Este direito foi-lhes reconhecido por D. Afonso V na sequência de um capítulo enviado às Cortes
de 1459, mas em 1491 perderam esse direito (BEIRANTE, Maria Ângela, Évora na Idade Média, 693-694). Sobre
o poder político dos mesteres do Porto, leia-se MELO, Arnaldo Rui Azevedo de SOUSA, Trabalho e Produção em
Portugal na Idade Média: o Porto, c. 1320-c.1415, I, Faculdade de Letras, Porto, 2001 (policopiado), 352-404.
31. COELHO, Maria Helena da Cruz; REPAS, Luís Miguel: Um cruzamento de fronteiras, 117-119.
32. Ibidem, 169. E o monarca dá-lhes razão, determinando que «os cidadaaos e boas pessoas» não devem ser
constrangidos a tais coisas.
Queriam mesmo que o seu estatuto tivesse uma digna representação cerimonial
e simbólica.
Pretendiam exibir-se como gente nobre para propagandear o seu estatuto. As-
sim as elites políticas de Évora gastaram o pano tinto de Castela, que havia sido
comprado para as celebrações fúnebres em honra da rainha, em seu proveito
próprio, afim de se apresentarem nas cerimónias e exéquias com um rico ves-
tuário de luto35.
33. Sobre a estreita relação desta festa com os concelhos leia-se GONÇALVES, Iria: «As festas do ‘Corpus Christi’
do Porto na segunda metade do século XV, a participação do concelho», Estudos Medievais, 4/5, 1984/1985, 69-
89; SILVA, Maria João Violante Branco Marques da: «A procissão na cidade: reflexões em torno da festa do Corpo
de Deus na Idade Média Portuguesa», in A Cidade. Actas das Jornadas inter e pluridisciplinares, Universidade
Aberta, Lisboa, 1993, 197-217.
34. Assim o queriam os vereadores de Évora, o que não lhes consentiu D. Manuel, defensor de um poder real
forte e centralizante, em acto e representação, numa carta que dirige ao juiz da cidade em 1501 (PEREIRA, Ga-
briel: Documentos Históricos da Cidade de Évora, ed. fac-similada, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa,
1998,499).
35. TT-Leitura Nova, Odiana, liv. 6, fl.
fl. 105. Os dirigentes de Évora pediram então ao monarca que lhes levasse
em conta esta despesa e não se indispusesse com o seu acto. O rei concordou pontualmente, mas advertiu-os
que não mais o consentiria sem a sua prévia autorização.
36. Estão publicadas as seguintes Cortes: Cortes Portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-1357), edição de
Marques, A. H. de Oliveira et al, INIC, Lisboa, 1982; Cortes Portuguesas. Reinado de D. Pedro I (1357-1367), edi-
ção de Marques, A. H. de Oliveira et al., INIC, Lisboa, 1986; Cortes Portuguesas. Reinado de D. Fernando I, vol. I
(1367-1383), vol. II (1383), edição de MARQUES, A. H. de Oliveira et al., INIC-CEHUNL, Lisboa, 1990-1993; Cortes
Era esta ainda uma das modalidades do governo das cidades pelas elites muni-
cipais, que apelavam à suprema autoridade do rei para impor e fazer acatar o
seu poder. Não menos essa reunião de Cortes era um momento propício para
firmar solidariedades entre as elites dos diversos concelhos, que já bem sabe-
riam comunicar entre si40, como também uma ocasião para se relacionar com
os demais poderes e com a sociedade política da corte.
Portuguesas. Reinado de D. Duarte (Cortes de 1436 e 1438), edição de Dias, João José Alves et al., CEH-UNL,
Lisboa, 2004; Cortes Portuguesas. Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1498), edição de Dias, João José AlVES et al.,
CEHUNL, Lisboa, 2002; Cortes Portuguesas. Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1499), edição de Dias, João José
Alves et al., CEHUNL, Lisboa, 2001; Cortes Portuguesas. Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1502), edição de Dias,
João José ALVES et al., CEHUNL, Lisboa, 2001. Os resumos dos capítulos gerais dos concelhos apresentados às
Cortes de 1385 a 1490 estão reunidos no volume segundo da obra de SOUSA, Armindo de, As Cortes Medievais
Portuguesas (1385-1490), I, Instituto Nacional de Investigação Científica-Centro de História da Universidade,
Porto, 1990. Por sua vez muitos capítulos especiais encontram-se publicados em diversos artigos sobre a temática,
como no nosso estudo, já referido, sobre os concelhos da Guarda.
37. No já aludido caso das Cortes de Santarém de 1383, o maior número de concelhos escolheram como procu-
radores escudeiros, muitas vezes vassalos e criados do rei, seguindo-se depois os que se fizeram representar por
oficiais eleitos dos concelhos (juízes, vereadores e procuradores) e por fim os que designaram tabeliães para essa
missão (COELHO, Maria Helena da Cruz: «No palco e nos bastidores do poder local», 55-56).
38. Sabemos que nas Cortes, que se realizaram entre 1385 e 1490, 123 terras participaram, na maioria concelhos,
ainda que neste número se incluam também 5 julgados e um couto. Já nas Cortes de Évora-Viana de 1481-1482
estiveram presentes 80 concelhos com assento em 16 bancos, possivelmente os que ao longo do tempo foram
ganhando o direito de serem convocados a Cortes, para além de mais 7 concelhos sem assento. Veja-se SOUSA,
Armindo de: As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490), I, 132-135, 188-206.
39. Os capítulos gerais devem ter surgido pela primeira vez nas Cortes de Santarém de 1331, concertando-se, já
em reunião, os diversos procuradores dos concelhos, em que por certo prevaleceria a vontade dos representantes
das cidades mais evoluídas. Os capítulos especiais deviam ser redigidos nas Câmaras e apresentados nas sessões
de Cortes. Os capítulos gerais, quando deferidos, tinham o valor de ordenações, já os especiais, quando deferi-
dos, tinham apenas valor privilégios.
40. Sobre o movimentos das comunicações nos municípios, leia-se COELHO, Maria Helena da Cruz: «A rede de
comunicações concelhias nos séculos XIV e XV», in As Comunicações na Idade Média, coord. de Coelho, Maria
Helena da Cruz, Fundação Portuguesa das Comunicações, Lisboa, 2002, 64-101.
41. Sobre os muitos estudos de Humberto Baquero Moreno e de nós própria com base em capítulos especiais,
consulte-se COELHO, Maria Helena da Cruz e MAGALHÃES; Joaquim Romero: O Poder Concelhio, 170, nota
50. Os nossos estudos, mais sincrónicos ou diacrónicos, incidiram já sobre os capítulos especiais de todos os
concelhos numa Corte (nas de Lisboa de 1439), os diversos concelhos de algumas regiões em Cortes (Guarda e
Riba Côa), de um concelho presente em diversas Cortes (Viseu, Guimarães, Montemor-o-Velho) ou de temáticas
apresentadas nesses capítulos especiais (relacionadas com a problemática da fronteira minhota ou com as ques-
tões sociais).
42. Uma apresentação deste contexto de guerra através das Cortes se encontra no estudo de COELHO,
C Maria
Helena da Cruz: «As Cortes e a Guerra», Revista de História da Sociedade e da Cultura, 1, Coimbra, 2001, 61-80.
E todo este corpo de oficiais trazia ainda consigo escrivães e tabeliães, homens
que, com o poder da escrita, mais subjugavam os analfabetos e iletrados que
maioritariamente compunham a sociedade medieval43.
45. COELHO, Maria Helena da Cruz: «Relações de domínio no Portugal concelhio de meados de Quatrocentos»,
Revista Portuguesa de História, XXV, 1990, 235-289.
46. Os deferimentos dos pedidos ou agravos dos concelhos, ainda que nem todos fossem deferimentos totais,
mas também parciais ou condicionais, sobrelevam os indeferimentos, quer nos capítulos gerais, em que perfazem
quase 60% das respostas régias (SOUSA, Armindo de, As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490), I, 540), quer
nos especiais, como nas Cortes de 1439, em que ascenderm a 78,7% (COELHO, Maria Helena da Cruz: «Relações
de domínio no Portugal concelhio de meados de Quatrocentos», 286-287).
47. Cfr. SOUSA, Armindo de: As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490), I, 210-214.
48. No volume II da sua obra, Armindo de Sousa indica as cotas destes documentos, excepto os de Beja e Elvas.
49. Nas pesquisas para este trabalho, deparamos com mais um capítulo especial do povo miúdo da vila de Beja,
sem data, mas que talvez tenha sido apresentado nas Cortes da Guarda de 1465 (TT-Leitura Nova, Odiana, liv.
São desde logo muito significativos os corpos que se fizeram representar, desde
os lavradores do termo aos pequenos comerciantes e artesãos das sedes urbanas.
Eram estes os meãos e baixos das cidades e vilas. Os lavradores viviam nas al-
deias, que sofriam o domínio das sedes urbanas sobre os seus termos. Finalmen-
te, os mais desprovidos, constituíam o povo miúdo de qualquer centro urbano.
Nos pedidos destas delegações não oficiais plasmava-se, muitas vezes, a antíte-
se do que escutámos nas anteriores. Agora os povos apelavam para a presença
dos oficiais régios, únicas autoridades fortes que poderiam coarctar os abusos
internos. Maximamente requeriam a presença do corregedor, esse braço exe-
cutivo e actuante do poder régio, como o faziam os mesteirais de Santarém50.
Logo devia estar na vila por dois meses –e não apenas por quinze dias como
queriam as elites dirigentes– porque, como expunham, ele executava melhor as
leis que os oficiais locais, era mais isento na cobrança de impostos e cumpria
mais depressa a justiça.
5, fls. 135v-136) e 11 capítulos especiais do povo miúdo de Elvas às Cortes de Coimbra-Évora de 1472-1473 (TT-
Leitura Nova, Odiana, liv. 6, fls. 43-46).
50. Cortes de Lisboa de 1459, caps dos mesteirais de Santarém (TT-Chanc. Afonso V, liv. 36, fl.
fl. 229-229v, art. 1).
51. Cortes de Lisboa de 1459, caps. especiais de Ponte de Lima, art. 3 (TT-Além Douto, liv. 3, fl
fls.
s. 31v-32v, art. 2 e
5). E nesta crítica às opressões da fidalguia e ao seu expediente do acostameto para recrutar homens são apoiados
pelas queixas dos procuradores oficiais do concelho às mesmas Cortes (TT-Chanc. Afonso V, liv. 36, fls. 167-168v,
caps. especiais de Ponte de Lima, arts. 3,4,9,11,12).
52. Cortes de Lisboa de 1459, caps. do povo miúdo de Estremoz, arts. 1 e 2 (TT-Odiana, liv.4, fls.
fls. 233-234).
Por isso estes pequenos reclamavam certos ofícios. Logo, o povo da Guarda
queria ter na vereação um procurador do povo que vigiasse o lançamento dos
impostos e as contas dos procuradores do concelho56. Mais significativamente,
53. Cortes de Lisboa de 1459, caps. do povo de Ponte de Lima, art. 1. E no seu deferimento o monarca vai ainda
mais além, determinando que em cada ano haja tantos oficiais da vila como do termo.
54. Cortes de Coimbra-Évora de 1472-1473, caps. do povo miúdo de Elvas, arts. 2 e 10 (TT-LeituraNova, Odiana,
liv.6, fls. 46v-47).
55. Cortes de Lisboa de 1459, caps dos mesteirais de Santarém, art. 3.
56. Cortes da Guarda de 1465, caps. dos lavradores e povo da Guarda, art. 3 (TT-Beira, liv. 2, fl
fls.
s. 28v-29).
O povo miúdo de Elvas denunciava ainda que a vila elegia para irem como
procuradores às Cortes «os milhores da vila», os quais sempre requeriam em ca-
pítulos a «sobjeyçom pera o povo» e o «quebramtamento dos (seus) privillegios
e liberdades». Queria então que com eles fosse um procurador do povo, mas o
monarca não permitiu tal inovação59.
57. Cortes de Lisboa de 1459, caps dos moradores do termo de Coimbra, art. 1 (TT-Chanc. Afonso V, liv. 36, fls.
fls.
164v-165).
58. Como já referimos, a presença dos mesteirais na câmara foi privilégio alcançado por Lisboa em 1384, como
recompensa dada pelo Mestre de Avis face ao seu apoio e serviços, e só bem mais tarde se estendeu a outras
cidades como ao Porto em 1392, sem direito a voto, e em 1475, com direito a ele, em 1436 a Santarém, em 1446
a Tavira e em 1459 a Évora (MARQUES, A. H. de Oliveira, Portugal na Crise dos séculos XIV e XV, Editorial Pre-
sença, Lisboa, 1985, 202).
59. Cortes de Coimbra-Évora de 1472-1473, caps. do povo miúdo de Elvas, art. 8.
60. Cortes de Lisboa de 1459, caps dos lavradores de Torres Novas, art. 11 (TT-Estremadura, liv. 7, fls. fls. 259v-
261v). Por sua vez os procuradores oficiais do concelho queixavam-se que os oficiais régios não lhes cumpriam
as cartas de privilégios reais (Cortes de Lisboa de 1459, caps especiais de Torres Novas, art. 9; TT-Chanc. Afonso
V, liv. 36, fls. 146-147).
Mas esta gente inculta, quando exprimiu as suas vontades, soube bem fazer
apelo ao saber dos letrados. Porque a retórica argumentativa expressa no dis-
curso destas delegações paralelas é coerente, fundamentada e persuasiva.
Mas não deixa de ser deveras importante o conhecimento que possuímos des-
tas delegações paralelas, demonstrando como mesmo o povo miúdo detinha,
em Quatrocentos, uma capacidade para se organizar colectivamente e para
levar até à mais alta instância do governo do reino as suas pretensões. Acredi-
tando, por certo, que com essa denúncia alcançariam algum remédio para os
seus males.
Porque só a paz interna das cidades e vilas podia garantir o apoio fiscal e mili-
tar de que tanto necessitavam os monarcas, na conjuntura de conflitos bélicos,
internos e externos, vivida nos finais da centúria de Trezentos e Quatrocentos.
Como também só as cidades e vilas podiam fornecer homens e abastecer de
víveres os navios, que se lançavam na nova aventura e desafio de desbravar os
mares e de colonizar e explorar as terras que o bordejam e povoavam.