Maria João Baessa Pinto: A Importância e o Papel Das Instituições Islâmicas Na Educação e Formação em Moçambique

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 19

CIEA7 #8:

POLÍTICAS PÚBLICAS EM EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO. A COLABORAÇÃO ENTRE O


ESTADO E A SOCIEDADE CIVIL.

Maria João Baessa Pinto


[email protected]

A Importância e o Papel das Instituições Islâmicas na educação e


formação em Moçambique:
estudo de caso da província de Nampula

Esta comunicação insere-se no âmbito do Projecto “O papel das organizações da sociedade


civil na educação e formação: o caso de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e
Príncipe” do CEA/ISCTE. O seu objectivo é analisar o papel e a importância das Instituições
Islâmicas no actual sistema de educação e formação moçambicano e, em particular, na
província de Nampula. Procede-se a uma caracterização geral do sistema educativo na
província de Nampula e nomeadamente do sistema de ensino islâmico bem como da sua
articulação com o sistema de ensino oficial.
O foco da análise é a actividade das escolas corânicas das Confrarias Sufis, a principal
instituição de transmissão do conhecimento islâmico em Moçambique. Será dada especial
atenção à actuação do Conselho Islâmico e da África Muslim Agency, duas ONG de
orientação Wahhabita que, a partir do final da década de 80, promovem activamente o
ensino islâmico reformado em Moçambique.

Islamismo em Moçambique, Educação, Desenvolvimento.


Centro de Estudos Africanos – ISCTE.

7.º CONGRESSO IBÉRICO DE ESTUDOS AFRICANOS | 7.º CONGRESO DE ESTUDIOS AFRICANOS | 7TH CONGRESS OF AFRICAN STUDIES
LISBOA 2010
Maria João Baessa Pinto 2

INTRODUÇÃO

A educação e o conhecimento ('ilm) ocupam uma posição importante no Islão e


têm desfrutado de uma longa tradição intelectual desde o seu aparecimento. A
importância da educação repetidamente enfatizada no Alcorão em centenas de
referências ao conhecimento presentes no livro sagrado, constitui um forte estímulo
para a comunidade islâmica se esforçar e dedicar-se ao ensino e aprendizagem. O
advento do Alcorão (no século VII) revolucionou a sociedade árabe maioritariamente
iletrada, que gozava de uma rica tradição oral. O Alcorão foi considerado a palavra de
Deus e a leitura e a escrita tornaram-se requisitos essenciais para o acesso à bênção
divina. A aspiração para a maioria dos fiéis a estudar o Alcorão e a necessidade de
tornar os ensinamentos mais acessíveis à comunidade islâmica, deu origem à Kuttab,
a escola corânica tradicional, que funciona em diversos espaços, nas mesquitas, em
casas particulares, lojas, ou mesmo ao relento.
O currículo da escola corânica tradicional foi essencialmente concebido para
crianças e jovens, que iniciam a aprendizagem por volta dos quatro ou cinco anos. O
sistema Kuttab difunde um ensino centrado no estudo do Alcorão e nas obrigações
religiosas (abluções, jejum e oração), compreende um número muito limitado de
disciplinas e enfatiza a memorização e recitação como meio de aprendizagem, sendo
quase inexistente a análise e discussão do significado do texto. Depois de terem
decorado a maior parte do Alcorão, os estudantes podem avançar para níveis
superiores de ensino e continuar os seus estudos nas madrassas clássicas (de ensino
de ‘ilm - conhecimento religioso islâmico). A escola Kuttab tem desempenhado a sua
função social vital como o único veículo de instrução pública formal para crianças e
continuou até ao aparecimento dos modelos ocidentais de ensino, nos tempos
modernos, a ser um importante meio de instrução religiosa em muitos países islâmicos
e regiões maioritariamente islâmicas, como é caso das comunidades costeiras
islamizadas do Norte de Moçambique.
Em Moçambique as escolas corânicas tradicionais são designadas madrassa.
Na sua maioria correspondem à escola de mesquita e continuam a manter as mesmas
características clássicas (aprende-se a recitar o Alcorão e conhecer os preceitos
básicos da religião). Até aos anos 90 não há conhecimento da existência de
madrassas clássicas (de ‘ilm) em Moçambique. Contudo os muçulmanos
moçambicanos tinham acesso aos ‘ilm dos centros tradicionais de estudo islâmico da
África Oriental, Zamzibar, Lamu, Comores e também no Yemen, Egipto e a partir do
século XX na Arábia Saudita, Sudão e Líbia (Bonate 1999: 2). Embora a instrução em
árabe e o estudo islâmico avançado estivesse limitado pela classe, os muçulmanos do
3 A Importância e o Papel das Instituições Islâmicas na educação

Norte de Moçambique, ainda antes da chegada das Confrarias, não estavam isolados
do mundo mais amplo do Islão. No início do século XIX, as Comores tinham reputação
regional como centro de ensino islâmico, pelo que importantes famílias muçulmanas
do norte de Moçambique enviavam os seus filhos para estudarem com o mualimo das
Comores (Macagno 2004: 188).
O acesso dos muçulmanos à nova educação islâmica reformista, que coloca a
maior importância nas escrituras sagradas (Alcorão e Hadites) e no conhecimento da
língua árabe, levou-os ao questionamento e avaliação das práticas islâmicas ditas
tradicionais. Tudo o que não está de acordo com os textos sagrados passou a ser
considerado de bid’a (inovação) e deve ser combatido com a introdução de uma
educação islâmica mais correcta (Bonate 1999: 7-8). O surgimento do reformismo
islâmico em Moçambique (nas duas últimas décadas do século XX) faz emergir um
conflito entre os novos ulama e os líderes islâmicos tradicionais das confrarias em
torno de rituais funerários e outras celebrações religiosas. Por um lado temos os
defensores do dhikr (cânticos e tambores), que constituem inovações no Islão, apesar
da justificação histórica. Por outro lado temos os defensores do sukuti (silêncio) com
base nas escrituras sagradas.
Em Moçambique, à semelhança do que acontece no restante continente
africano, existe uma dicotomia entre o Islão culturalmente contextualizado (veiculado
pelas ordens sufis, em cujas escolas corânicas o ensino é ministrado pelos membros
das confrarias) e o Islão de cariz universal e absoluto, anti-sufi e que é promovido nas
escolas islâmicas reformadas (Arabiyya Islamiyya) onde o ensino é ministrado por
professores com ensino superior, os novos ulama, com saídas profissionais modernas
e com ligações ao Conselho Islâmico e a ONG como a Africa Muslim Agency (Bonate
1999: 14).

BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DAS ORIGENS DO ISLÃO EM

MOÇAMBIQUE

Moçambique é um país da África Oriental localizado na costa do oceano Índico


entre a Tanzânia e a África do Sul. É historicamente o posto mais avançado a sul do
Islão em África e permanece hoje o país mais a sul com maior percentagem de
muçulmanos entre a população nativa. Aproximadamente um terço da população é
muçulmano, constituindo a mais larga comunidade muçulmana na África Austral.
Tendem a concentrar-se na parte norte do país e nas províncias costeiras (Pinto 2002:
59).
Maria João Baessa Pinto 4

A penetração islâmica em Moçambique data praticamente desde os primeiros


contactos estabelecidos no séc. VII na costa oriental de África, por via essencialmente
do desenvolvimento do comércio, que permitiu que a influência islâmica
permanecesse como a mais importante até à chegada dos portugueses nos finais do
século XV quando se confrontou com o desafio da cristianização identificado com o
poder político português. Para além do comércio, outros mecanismos de propagação
dos princípios religiosos islâmicos são também enumerados: a actividade missionária
(com particular relevo para a importância da língua e da escrita árabes), os
movimentos migratórios e as conquistas militares. Igualmente consensual a tese de
que a penetração do Islão em Moçambique se processou, essencialmente, do litoral
para o interior, do Norte para o Sul, num processo não uniforme, em ciclos
diferenciados, em vagas distintas. O Cristianismo e Islamismo, constituíram-se, desde
então, como sistemas de integração rivais, não só no plano ideológico e dos seus
aderentes, como no plano comercial. As confrarias vão constituir o instrumento
institucional responsável pelo difusão e incremento da islamização, em especial a
partir da Segunda Guerra Mundial, num processo de evolução, atravessado por
dissidências internas e processos de ruptura, associadas a disputas de natureza
religiosa, étnica e racial, e à natureza das articulações estabelecidas com as
comunidades muçulmanas localizadas no exterior, mas que exerciam influência
político-religiosa relativamente aos muçulmanos moçambicanos Monteiro, F. A. (1993:
92-96).
Medeiros, E. (1999: 71-74), refere-se igualmente às Confrarias como as
estruturas institucionais no quadro das quais “são tecidas as relações económicas,
sociais, jurídicas e políticas das comunidades islâmicas da região, tendo os
respectivos chefes e restantes dignitários suplantado nas funções e no prestígio as
antigas autoridades linhageiras”. O autor assinala a sua presença no litoral norte de
Moçambique e nas Ilhas, nomeadamente nas províncias de Cabo Delgado, Niassa,
Zambézia e Nampula, apresentando-as como o suporte de sociedades organizadas
em torno do comércio local (roupa, pesca, sal, ourivesaria, etc.) e de longa distância.
Segundo Medeiros, existem no Norte de Moçambique duas confrarias principais, a
Confraria Cadria e a Confraria Chadulia, com diversas ramificações, identificando as
suas origens1 e o seu papel sócio-religioso. Para o autor,

1
A primeira tem uma origem remota iraquiana e a segunda omanita, mas ambas chegaram a
Moçambique suaílizadas via Zanzibar e Comores. A partir de Brava, Lamo, Mombassa, Zanzibar e
Comores expandiu-se uma corrente de ensino corânico e de expansão islâmica em reacção à conquista
colonial. Para o caso de Moçambique, as rotas zanzibaritas, substituídas mais tarde pelas comorianas
(aquando da revolução de Okello), formam as mais importantes na linha de articulação da Ilha de
Moçambique (e, por via dela, os distritos do Norte) à Arábia Saudita.
5 A Importância e o Papel das Instituições Islâmicas na educação

(...) as confrarias na África Oriental, são sobretudo o espaço social de


ajuda-mútua, em particular no que diz respeito ao funerais dos confrades
falecidos, e uma rede especial de relações familiares, sociais,
económicas e jurídicas que ligam os membros e, através de relações
(para o exterior) de parentesco e das inter-relações das hierarquias, se
estabelece uma rede de relacionamento com outras confrarias e com a
restante sociedade civil (Pinto 2002: 70-71).

A EDUCAÇÃO ISLÂMICA EM MOÇAMBIQUE NO CONTEXTO COLONIAL

O sistema educativo colonial, com a sua dicotomia pronunciada


religiosa/secular, desenvolveu-se para formar funcionários que alimentassem as
necessidades burocráticas e administrativas do Estado. A educação secularizada, com
a supremacia da razão humana sobre a revelação divina e a separação entre Religião
e Estado, entrou em conflito com o pensamento islâmico e estilo de vida tradicional, e
pela primeira vez na história, a escola corânica encontrou-se numa posição periférica.
Desenvolveu-se uma dualidade de ensino: as escolas ocidentais eram responsáveis
pela educação das crianças europeias e das elites urbanas e as escolas corânicas
tradicionais ocupavam-se do ensino das populações pobres e indígenas rurais.
Confrontados com o secularismo do Estado, as escolas corânicas moveram-se para o
espaço privado das casas e mesquitas muçulmanas. A educação religiosa continuou
mas reduzida à esfera pessoal, não tendo lugar na educação pública. Se os
estudantes muçulmanos desejassem ter formação religiosa, poderiam completar sua
educação com a instrução moral existente em escolas religiosas tradicionais, Kuttab.
Como consequência, dois sistemas de ensino diferentes evoluíram de forma
independente, com pouca ou nenhuma relação oficial. Esta dualidade era visível em
Moçambique no tempo colonial. A língua do colonizador europeu que foi imposta como
língua de comunicação e de negócios, afectando a balança de poderes entre
muçulmanos e não muçulmanos e activando a resistência à escola do colonizador.
Enquanto as escolas coloniais (publicas ou sob a alçada dos missionários católicos)
estavam na sua maioria mobilizadas para a domesticação, as escolas corânicas
estavam empenhadas num processo cultural de resistência contra a colonização
(Akkari, A. 2004: 1-22).
As políticas educativas do Estado colonial em relação aos moçambicanos
começam a partir de 1926 com o novo estatuto das missões católicas portuguesas
enquanto instituições de educação e instrumentos de civilização. Em 1930, a
população africana do Norte de Moçambique era crescentemente muçulmana, com
Maria João Baessa Pinto 6

uma pequeníssima parte de convertidos católicos e muito poucos anglicanos no


Niassa, o que se começou a constituir como uma preocupação crescente para as
autoridades portuguesas. A campanha anti-islâmica dos portugueses em Moçambique
tomou quatro formas principais. Foram elas: repressão policial e militar das lideranças
islâmicas principalmente no Norte; supressão da educação islâmica; estabelecimento
da educação e da alçada da educação sob o monopólio dos missionários católicos
portugueses e isolamento forçado dos muçulmanos moçambicanos do contacto com o
resto do mundo islâmico. Esta aliança do Estado com a Igreja Católica resultou na
imposição de restrições ao Islão (encerramento de mesquitas e a proibição de
propagação do Islão junto dos moçambicanos). Em 1940, a concordata e o acordo
missionário entre o Estado português e o Vaticano, o regime colonial português
transfere para a igreja a responsabilidade do ensino rudimentar, uma espécie de
ensino pré-primário, que todas as crianças negras tinham a obrigação de frequentar
promovendo a política de assimilação (Bonate 1999: 5-6).
Na década de 50 assistiu-se à penetração de ideias nacionalistas, tendo
começado a surgir associações clandestinas nos quatro distritos do Norte da província
(Alpers 1999: 165-169). Bonnate (2007) refere que nos finais da década de 60 a
maioria dos chefes tradicionais muçulmanos do Norte de Moçambique apoiava os
movimentos de libertação, em parte por causa das políticas anti-islâmicas de Portugal
e em parte porque os movimentos de libertação de Moçambique eram apoiados pela
Tanganyika African National Union (TANU), que tinha um grande apoio muçulmano,
especialmente dos líderes das confrarias sufis. Perante esta ameaça, a administração
colonial iniciou, paralelamente à atitude repressiva, uma nova política em relação ao
Islão em Moçambique. Os portugueses iniciam uma política de captação dos chefes
tradicionais muçulmanos e dos líderes das confrarias sufis, representantes da maioria
dos muçulmanos dos territórios do Norte de Moçambique, através da manifestação
pública de apoio em detrimento do grupo wahabita2 que começa a emergir nos anos
60 do século XX (Bonnate 2007). A nova política incluía a abertura das mesquitas sob
a alçada das confrarias.
A influência do wahabismo foi inicialmente identificada no Sul do país. A
administração portuguesa pressupôs que o foco de expansão do movimento era a
Mesquita Anuaril Isslamo, em Lourenço Marques, dominada por muçulmanos de
origem asiática, considerada pelas autoridades coloniais como uma potencial ameaça.
A mesquita foi fundada por dois afro-indianos que após a conclusão dos estudos

2
O wahabismo, corrente no Islão que defende o retorno ao Islão primitivo como fonte de unidade e
identidade muçulmana, a renovação da língua árabe e da educação islâmica tornou-se em Moçambique
uma categoria de acusação difusa e ambígua contra alguns muçulmanos, muitas vezes utilizado como
sinónimo de integrismo e de oposição às confrarias.
7 A Importância e o Papel das Instituições Islâmicas na educação

religiosos na Arábia Saudita, regressam a Moçambique, reunindo maioritariamente


crentes das zonas peri-urbanas, defensores da visão wahabita do Islão. O conflito
entre os wahabitas e os líderes das confrarias sufis e chefes tradicionais muçulmanos
do Norte de Moçambique conduziu a confrontos directos, tendo as autoridades
portuguesas publicamente manifestado apoio aos sufis (Macagno 2007). É neste
sentido que se assiste a propostas de abertura de novas escolas islâmicas com um
curriculum reformado surgem ainda no tempo colonial, na década de 70, mas o pedido
foi indeferido pelo governo colonial, por ter sido identificado como um projecto
Wahhabita e anti-Sufi, uma vez que o governo colonial se tinha aliado às Confrarias
exercendo a sua política de “dividir para reinar” (Bonate1999: 8).
Apesar da aliança do Governo colonial com a Igreja Católica, o Islão expandiu-
se em termos significativos até 1974, por via essencialmente das Confrarias.

A EDUCAÇÃO ISLÂMICA NO ESTADO PÓS-COLONIAL

Em 1975, Moçambique ascendeu à independência sob a liderança da


FRELIMO que adoptou o socialismo de Estado como instrumento de modernização
rápida da economia. As organizações islâmicas sofreram, como as outras confissões
religiosas, a hostilidade do regime, apesar de nunca ter sido formalmente interditado o
direito de liberdade de expressão religiosa (Carvalho 1999: 314-315). O ensino de
base religioso, como o das escolas corânicas ou, ao nível superior, dos prestigiosos
estabelecimentos em países islâmicos, foi desencorajado e desvalorizado. Nas
regiões do norte de Moçambique, fortemente islamizadas, as autoridades tradicionais
islâmicas sentiram a hostilidade e desconfiança por parte do novo governo pela sua
proximidade com o regime colonial, nos últimos anos da colonização. A situação de
marginalização da comunidade muçulmana continuou nos primeiros anos de
independência. As escolas corânicas continuaram a existir mas na clandestinidade
(Pinto 2010).
Para contrariar esta situação de hostilidade por parte dos novos dirigentes
moçambicanos, a comunidade muçulmana empenhou-se em contactos com o restante
mundo islâmico, recolhendo fundos que permitiram a muitos estudantes prosseguirem
os estudos em universidades árabes prestigiadas, denunciando a repressão do Islão
no seu país, procurando dar um novo impulso à religião do Profeta (Alpers 1997: 318-
319).
A partir dos finais da década de 80, o Governo começou a adoptar uma política
mais flexível e de abertura em relação as confissões religiosas, permitindo a criação
Maria João Baessa Pinto 8

de associações islâmicas nacionais, como a criação do Conselho Islâmico de


Moçambique e de ONG de orientação wahhabita que promovem o ensino islâmico
reformado em Moçambique e distribuem bolsas de estudo a moçambicanos no
exterior. Assistiu-se à multiplicação das organizações islâmicas que actuam em
Moçambique, com ligações a organizações internacionais islâmicas regionais
(sedeadas na África do Sul) e com os países da “linha da frente” da promoção do Islão
(Arábia Saudita, Sudão, Egipto, Paquistão, Kuwait, etc.). Estas organizações
pretendem a propagação do Islão e uma melhor educação religiosa dos crentes,
reflectindo um desejo evidente de estruturar a sociedade civil a partir de valores
muçulmanos (Coulon 1983: 170), empenhando-se na construção de bibliotecas
islâmicas, distribuição de publicações de divulgação do movimento islâmico e do
Alcorão em português, na construção de mesquitas e recrutamento de professores
árabes e sudaneses para leccionarem estudos religiosos, na criação de centros
islâmicos e associação de estudantes, na atribuição de bolsas de estudo para
universidades islâmicas, criação de centros de saúde, etc..
O crescente aumento de influência do Conselho Islâmico de Moçambique
adquire maior centralidade e visibilidade pelo facto das confrarias terem perdido a sua
importância política com o aparecimento do wahhabismo, que acusa as confrarias de
terem sido cúmplices do regime colonial, com objectivo de estabelecer relações
cordiais com o novo governo. A criação do Conselho Islâmico em Moçambique
implicou um forte acento universalista e internacionalista, em conformidade com a
vertente sunita wahhabita do Islão que se caracteriza pela centralidade do Alcorão e o
regresso às escrituras para neutralizar qualquer tentativa de deturpação ou inovação.
Em 1982, o referido fundador do Conselho Islâmico apresentou ao presidente Samora
Machel uma proposta explícita no sentido desta internacionalização ou universalização
do Islão, “colocando em xeque” as velhas lideranças das confrarias muçulmanas que,
durante o colonialismo, colaboraram com a política de cooptação iniciada por Portugal.
Nesta proposta solicitava melhores condições para desenvolver o ensino do Islão em
Moçambique, chamando a atenção para a necessidade de enviar cidadãos
muçulmanos para o estrangeiro para aprofundarem o ensino religioso, técnico e
científico, utilizando as bolsas de estudo oferecidas pelos países muçulmanos
(Macagno 2007: 42-43).
É neste contexto que surge em Moçambique a Africa Muslim Agency (AMA),
uma organização não governamental internacional fundada em 1981, com sede no
Kuwait, que tem como objectivo “promover as relações humanas e culturais entre os
estados árabes e africanos”. Presente em mais de 30 países africanos, esta
organização tem como prioridade de actuação a construção e gestão de mesquitas e
9 A Importância e o Papel das Instituições Islâmicas na educação

de escolas corânicas, orfanatos, centros de saúde e hospitais; garantir cuidados


médicos, o abastecimento de água e alimentação gratuita às populações e apoiar
pessoas com deficiência, a profissionalização das mulheres e a criação de emprego
(Pinto 2009).

O ENSINO ISLÂMICO NA PROVÍNCIA DE NAMPULA

Localizada a Norte de Moçambique, a Província de Nampula é a 5ª maior


província moçambicana, habitada por cerca de 3,2 milhões de habitantes em 1999, o
que corresponde a 19% da população total moçambicana e lhe confere o 2º ligar da
hierarquia provincial em termos populacionais. A população concentra-se
maioritariamente nas áreas rurais e dedica-se à agricultura de subsistência e ao
comércio. Apresenta um índice de pobreza de 68,9%, verificando-se que, não obstante
a maioria dos pobres residir nas áreas rurais, é nas zonas urbanas que a incidência da
pobreza alcança valores mais elevados. Na Província de Nampula, segundo o Censo
de 1997, concentram-se 1.139.564 dos muçulmanos, o que corresponde a 42,3% dos
moçambicanos que, no país, declararam professar essa religião, com uma clara
maioria rural (65,1%) relativamente aos que residem em centros urbanos (34,9%), o
que é conforme ao carácter maioritariamente rural da província.
À semelhança do que acontece no resto de Moçambique, Nampula tem uma
grande diversidade de agrupamentos religiosos no seio da sua população. Estes
agrupamentos religiosos estabelecem as suas próprias práticas e instituições de
aprendizagem, directamente relacionadas com os interesses e as ideologias
específicas representadas pelas respectivas religiões e incluem frequentemente outras
dimensões de aprendizagem não religiosas, tais como o sistema escolar público.
Coexistem assim na província vários sistemas de educação: escolas corânicas
tradicionais, escolas corânicas renovadas (Arabiyya Islamiyya), escolas cristãs e
escolas de cariz ocidental estatais e privadas. Estes sistemas influenciam-se
mutuamente e ao mesmo tempo os professores e alunos estão expostos a influências
diversificadas (Bonate 1999: 14).
A província de Nampula conta com uma rede escolar pública constituída por
1117 estabelecimentos de ensino (99% são escolas de ensino primário), que absorve
286.649 estudantes e que emprega 5700 professores. O nível educacional da
população é generalizadamente reduzido nos diferentes escalões etários (a taxa de
analfabetismo é de 71,7%), em especial nas áreas rurais e afectando particularmente
as mulheres (85,9% de mulheres contra 56,7% de homens). Nas últimas duas
Maria João Baessa Pinto 10

décadas, a cidade de Nampula assistiu a um explosivo crescimento do ensino


universitário, contando com sete instituições de ensino superior, cerca de 20
faculdades em funcionamento, entre as quais, a Universidade Pedagógica,
Universidade Lúrio, Universidade Politécnica, Academia Militar, Universidade Católica,
Universidade Mussa Bin Bique, Universidade de S. Tomás. Três das referidas
instituições de ensino superior surgem por iniciativa e tutela da comunidade religiosa:
a Universidade Católica de Moçambique, a Universidade Islâmica Mussa Bin Bique e a
Universidade de S.Tomás.
No que se refere ao sistema de ensino religioso islâmico, as instituições de
transmissão do saber religioso das populações islamizadas do norte de Moçambique e
da província de Nampula compreendem as escolas corânicas tradicionais e desde os
finais da década de 80, em número reduzido, as escolas islâmicas renovadas
(Arabiyya Islamiyya) de orientação wahhabita. O funcionamento dos dois tipos de
escolas confessionais islâmicas remete para a existência de múltiplas identidades no
islão local, com universos de produção, organização e transmissão de saberes
religiosos e pratico-religiosos em vários aspectos diferentes e opostos, situando-se em
termos de origem e presença históricas no país em tempos diferentes, com
funcionamento, curriculum, saídas profissionais e redes de apoio exterior distintas.
Estes diferentes sistemas não procuram interagir uns com outros, evitando
interferências mútuas. O calendário e o horário das madrassas são planeados de
modo a que os seus alunos possam frequentar a escola oficial, sendo que a maioria
dos alunos das escolas corânicas de Nampula frequenta a escola do sistema oficial
(Passos et al. 1996).

A escola corânica tradicional


A maioria das populações islamizadas do norte do país frequenta as escolas
corânicas difundidas pelas confrarias kuttab designadas em Moçambique de
madrassa. À semelhança do que acontece na maioria das sociedades islâmicas, têm
desempenhado um papel histórico fundamental como o pilar do sistema educativo
mantendo-se até aos tempos modernos e resistindo à introdução do sistema de
educação escolar colonial e pós-colonial. Apesar das especificidades das
comunidades islâmicas moçambicanas, resultante das circunstâncias históricas,
geográficas, políticas e económicas, as escolas corânicas tradicionais existentes na
Província de Nampula são semelhantes, no que se refere aos objectivos e funções, às
existentes noutras regiões islâmicas.
Estas escolas são criadas por iniciativa da própria comunidade, que as
influência e por seu lado é influenciada por elas. A abertura de uma escola corânica
não depende da sua relação com uma instituição reguladora. A autoridade do
11 A Importância e o Papel das Instituições Islâmicas na educação

professor depende exclusivamente na comunidade local dos crentes. Devido a esta


próxima ligação com o seu ambiente, as escolas corânicas adquiram imunidade e
independência que as torna resistentes a todas as formas de mudança. Apesar de
dependerem directa ou indirectamente da comunidade, estas escolas não são públicas
mas também não são particulares. Não precisam de autorização para funcionar, não
existindo nenhuma entidade que controle ou oriente o ensino, imponha normas e o
sancione. O único elemento de controlo do seu ensino e do comportamento do
professor para com os alunos é a opinião da comunidade e dos familiares dos alunos
(Dias 2005: 136). São escolas de operações de baixo custo, sustentadas pelos
materiais locais disponíveis para a construção e equipamentos. Geralmente as
madrassas tradicionais estão implantadas nos espaços físicos das mesquitas, em
casos particulares, ao ar livre, à sombra de uma árvore.
As escolas corânicas tradicionais assentam na distribuição horizontal do
conhecimento básico que se espera que todos os muçulmanos possuam, não
existindo restrições relacionadas com a idade, nível intelectual ou integridade física,
nem a possibilidade de utilização desde tipo de ensino em termos de diferenciação
social entre muçulmanos. O acesso a esta educação processa-se quase como um
automatismo quando as crianças muçulmanas atingem a idade normal para entrada
na escola corânica, por volta dos cinco anos, acto que representa uma iniciativa de
integração cultural e sociabilização plena, bem como de diferenciação em relação aos
outros sistemas de ensino. Entrar na escola corânica significa entrar para a
comunidade de crentes islâmicos (Ummma), passando a ser reconhecido como digno
de confiança e consideração, visto que para estas populações o Islão é um capital
dentro da ordem social (Akkari 2004: 12). Esta instituição básica de transmissão dos
valores e rituais do Islão tem como objectivo formar os jovens macuas islâmicos e
prolongar, sem rupturas nos valores, na pedagogia e nos materiais, a aprendizagem
iniciada no seio da família e o entendimento tradicional do Islão. A formação moral é
valorizada em relação à intelectual, procurando incutir nos alunos o sentimento de
respeito pela ordem social comunitária e a ideia de submissão às autoridades, ideia
fundamental no Islão. Os seus estudantes são preparados para servir as necessidades
das suas comunidades, através de um curriculum baseado na leitura do Alcorão e na
educação religiosa, com um único professor que raramente recebe formação
pedagógica.
Em geral, este tipo de escola não tem um calendário escolar fixo. Admite
estudantes de todas as idades e lecciona ao longo do ano, podendo os estudantes
ingressarem a aprendizagem a qualquer momento. O ensino não interrompe as
actividades económicas ou sociais da comunidade, sendo ministrado num ritmo
Maria João Baessa Pinto 12

variável, que tem em conta os trabalhos agrícolas, as festas muçulmanas e as


disponibilidades dos professores e alunos. O conhecimento é adquirido através da
participação, situando-se na praxis da comunidade e não no curriculum proveniente do
exterior. Os alunos aprendem ao seu ritmo e apenas em competição consigo próprios.
A divisão pedagógica de grupos de classes baseia-se essencialmente na perícia do
aluno e não na idade. Os professores ajustam o nível de instrução para ir ao encontro
das habilidades individuais dos estudantes, sendo que as classes de estudantes
variam de acordo com o tempo e níveis de instrução (Akkari 2004: 11).
A pedagogia destas escolas privilegia a oralidade na transmissão dos saberes.
Apesar do saber se fundar na tradição escrita, pela importância primordial dada ao
Alcorão, a transmissão do conhecimento nestas escolas deve-se à tradição oral,
sendo tributária da memória e do ouvido, facto que tornou Islão professado pelas
populações locais uma religião viva. Esta aparente não conformidade resultou na
existência de escolas sem quadros pretos e material escolar impresso, formas de
transmissão do saber que privilegiam a oralidade, o aprender ouvindo e vendo fazer e
letrados quase sem papel e livros, tendo como materiais de aprendizagem mitos, a
palavra dos mais idosos, relatos valorizados do passado das etnias, etc., instrumentos
que se afastam das verdadeiras tradições da escrita (Dias 2005: 134-147). No entanto
a escrita é valorizada pelo seu valor sagrado, como reforço do poder dos talismãs, em
que a escrita árabe e textos do alcorão são utilizados para reforçar e perpetuar a
tradição macua. Estas escolas de ensino mais elementar, só de forma secundária se
servem da escrita como meio de fixação de conhecimentos na aprendizagem do
alfabeto árabe, na transcrição de alguns versículos do Alcorão e no eventual estudo da
matemática. Esta relação com a escrita, numa sociedade de ampla tradição oral é
acentuada pela extrema dificuldade de acesso aos meios impressos. A flexibilidade da
escola corânica tradicional para conviver com diferentes sistemas culturais, através de
uma combinação subtil entre a linguagem oral e escrita, ajuda a perceber a rápida
implantação das escolas corânicas nas populações macua.
A credibilidade dos professores deve-se ao papel importante que
desempenham na sociabilização religiosa das crianças sob a sua responsabilidade e
não ao pouco consolidado conhecimento corânico da maioria dos professores. A
capacidade de ensino dos professores está directamente relacionada com o seu
processo de aprendizagem, cuja maioria não fez estudos aprofundados. Apenas uma
minoria iniciou a sua aprendizagem no interior da família e na kuttab e mais tarde
aprofundou os conhecimentos religiosos no estrangeiro. Os professores fundamentam
o seu prestigio no facto de serem capazes de transmitirem oralmente aos outros a sua
interpretação adequada dos factos, assumindo o papel de “… guardiães legítimos do
13 A Importância e o Papel das Instituições Islâmicas na educação

saber e da maneira de interpretar o real que lhes foram transmitidos por outros que
também já os tinham recebido de alguém num quadro de uma cadeia de transmissão
(silsila)”. O professor é o responsável por todas as matérias espirituais e materiais.
Apesar de ser um ensino gratuito os professores beneficiam de compensações
materiais, sociais e políticas, recebendo ofertas em géneros ou em dinheiro e também
prestações gratuitas de trabalho nas suas actividades económicas, por parte dos pais
ou familiares dos alunos (Dias 2005: 135-137).
Nas imensas escolas corânicas tradicionais existentes na província de
Nampula a língua veicular é a língua materna dos professores, perpetuando os valores
tradicionais locais. As crianças aprendem, para além da língua materna, o macua, a ler
e a escrever em árabe, ao contrário do que acontece nas escolas do sistema oficial
público laicas ou cristãs, cujo ensino é realizado através da língua oficial portuguesa.
Do ponto de vista da pertença étnica geralmente o professor e os alunos pertencem ao
mesmo grupo étnico. No entanto, ao longo da História, os estudantes do Norte de
Moçambique que pretendem aprofundar o conhecimento religioso, procuram a
determinado momento do seu processo de aprendizagem, mestres reputados e
grandes conhecedores de determinadas matérias noutras regiões do país ou no
estrangeiro, independentemente da sua origem étnica (Dias 2005: 143). A itinerância é
outra característica da educação tradicional islâmica. Os seus estudantes
movimentam-se no espaço islâmico à procura de novos mestres para aperfeiçoar a
sua iniciação religiosa. O processo de aprendizagem baseia-se na relação entre
mestre e discípulo. O mestre inicia o discípulo nos conteúdos e na cadeia de
guardiães de conhecimento, existindo uma ligação próxima entre professor e aluno
(Akkari 2004: 8).
Não existe controlo pedagógico como acontece nas escolas de ensino oficial e
caracteriza-se pela ausência de um regime de exames e diplomas. Existem algumas
cerimónias de consagração pública quando os alunos atingem determinados níveis de
conhecimento, como por exemplo, o fim da primeira leitura completa do Alcorão, etc.
(Dias 2005: 137). O conhecimento obtido nas escolas corânicas tradicionais é para ser
utilizado no dia-a-dia, nas cinco orações diárias e nas outras cerimónias religiosas.
Não se trata de um conhecimento que visa a preparação para a vida profissional mas
para o quotidiano. Os pais enviam os filhos para as escolas corânicas tradicionais
porque estas constituem indicadores/referências de moralidade, honestidade e
disciplina, qualidades necessárias para o desempenho de funções de
responsabilidade na comunidade. Após vários anos de estudo islâmico, o estudante
regressa à sua comunidade de origem e é respeitado pelo facto de ser capaz de ler e
recitar o livro sagrado e poder partilhar o seu conhecimento com os mais novos, dando
Maria João Baessa Pinto 14

continuidade à transmissão da tradição corânica (Akkari 2004: 12). Por outro lado, ao
enviarem os filhos para a madrassa existe a possibilidade de promoção económica e
social, através das ligações entre as redes das escolas corânicas tradicionais das
ordens sufi e as redes comerciais da região. Os estudantes que terminaram a escola
corânica tradicional estão melhor habilitados para encontrar emprego nas actividades
económicas tradicionais e no sector informal.
Com a expansão do sistema de educação oficial ocidental, a escola corânica
perdeu a centralidade nas regiões islamizadas do Norte do país como é o caso da
província de Nampula, como consequência da perda de centralidade e declínio político
e económico das confrarias em virtude do aparecimento activo do wahhabismo na
região. No entanto, continua ainda hoje a exercer uma influência importante no
processo de sociabilização das populações e em certos contextos, permanece a única
instituição educacional. Actualmente em muitas cidades da província de Nampula, as
escolas corânicas tradicionais oferecem a educação pré-escolar antes de as crianças
iniciarem a escolarização na escola pública. Depois de entrarem na escola oficial
conciliam o ensino moderno com o ensino corânico. Esta influência islâmica diminui à
medida que se sobe na escala social. Mas nas zonas rurais, as escolas corânicas
continuam a ser a instituição de transmissão do conhecimento islâmico mais divulgada
e central na educação, por vezes o único actor em virtude da deterioração dos
serviços governamentais.

O Estado laico no seu sistema nacional de educação não reconhece as escolas


de cariz religioso que não seguem o curriculum oficial, como é o caso das escolas
corânicas tradicionais que, mantendo um carácter clássico, não conseguem
corresponder à modernidade. No entanto, não se opõe à sua existência e
funcionamento, sendo que o Governo, as ONG e os novos ulama procuram maneiras
de aproximar as escolas corânicas da modernidade. Mas esse processo encontra
resistência por parte das camadas mais tradicionais (Pinto 2010).

As escolas corânicas de ensino reformado


Para fazer face aos desafios da modernização do país surgem nas últimas
duas décadas do século XX, a partir das novas políticas educativas do governo e de
iniciativas da própria comunidade muçulmana, novos modelos de escolas islâmicas
que iniciam reformas no curriculum das escolas corânicas tradicionais através da
inclusão de disciplinas seculares (como a geografia, a história, etc.) e de
conhecimento religioso aprofundado (Ilm), para além da aprendizagem do Alcorão,
permitindo a interacção com o resto da sociedade na era moderna. Estas escolas
visam enquadrar o conhecimento islâmico de maneira harmoniosa no conhecimento
15 A Importância e o Papel das Instituições Islâmicas na educação

científico e tecnológico moderno ocidental, que permita aos estudantes possibilidade


de seguirem uma educação regular e a entrada em universidades e outras instituições
de ensino superior. Estas escolas islâmicas reformadas são reconhecidas pelo Estado
e desenvolvem-se em paralelo com as escolas modernas integrando o sistema geral
de ensino oficial. São bem vistas e frequentadas por muçulmanos e não muçulmanos,
dando visibilidade e prestígio aos muçulmanos.
Estas escolas constituem um desafio às madrassas tradicionais porque
oferecem uma renovação religiosa geral através de um ensino religioso reformado,
mas também visam oferecer uma educação alternativa à ocidental/estatal: os
professores são os novos ulama, formados no conhecimento islâmico ‘Ilm em centros
islâmicos do Médio-Oriente com apoio de Organizações Internacionais como a AMA. A
sua autoridade baseia-se no seu conhecimento das escrituras e na identidade que
eles reclamam como essencial, a Islâmica e só depois a étnica e a nacional. A língua
árabe é valorizada como elemento unificador dos diferentes grupos étnicos e
diferentes geografias do Islão moçambicano. A língua portuguesa é utilizada na
aprendizagem das matérias seculares, permitindo maiores oportunidades de carreira e
não exclusivamente a religiosa, dando um contributo islâmico para o objectivo do
governo e das políticas internacionais (objectivos do Milénio) de escolarização de toda
a população (Bonate 1999: 11-12).
É neste contexto que surge enquadrada a actuação da Africa Muslim Agency e
do Conselho Islâmico na Província de Nampula que promovem a abertura de
estabelecimentos de ensino que oferecem, para além do ensino básico, o ensino
secundário e superior, reconhecido oficialmente pelo Estado, ao mesmo tempo que
difundem a sua interpretação wahhabita do Islão. A Africa Muslim Agency está
presente desde 1984/85 em Moçambique, com sede em Maputo e delegações nas
províncias do norte de Moçambique, Nampula, Cabo Delgado e Niassa. Apesar de
estar sedeada na capital, pelas vantagens inerentes à proximidade junto do governo
central, a delegação da AMA em Nampula marca uma forte presença no plano da
actividade religiosa provincial, constituindo a delegação com maior visibilidade em
Moçambique e onde a actividade proselitista mais se faz notar. De importância capital
para a aquisição de uma notoriedade significativa, tem sido a intensa actividade que a
Africa Muslim Agency tem desenvolvido, não apenas no quadro da intervenção
religiosa, construção de mesquitas e do apoio financeiro à realização de viagens a
Meca, mas na dimensão mais ampla da intervenção social, nomeadamente nas áreas
da educação (construção de escolas, concessão de bolsas para estudos qualificados
em países islâmicos, etc.), da saúde (reabilitação e apoio técnico ao funcionamento do
Hospital de Nacala, construção e apetrechamento de centros e postos de saúde), do
Maria João Baessa Pinto 16

apoio social (criação de orfanatos), do apoio à resolução de algumas das carências


mais essenciais das populações (perfuração de poços de água, etc.) e da ajuda
humanitária de emergência.
A educação tem constituído um eixo fundamental de intervenção da Africa
Muslim Agency. A actuação no plano da educação islâmica constitui um dos
instrumentos chave da sua acção mobilizadora e tem contribuído para a definição da
fronteira entre as perspectivas do Islão “moçambicanizado” e do Islão wahhabita. No
plano da transmissão do saber o ensino difundido por esta organização situa-se numa
lógica totalmente diferente das escolas corânicas das confrarias, privilegiando a Umma
e a ortodoxia árabe à concepção local e étnica do Islão, a autoridade do texto à do
professor, a compreensão à repetição, a escrita à oralidade. Através de protocolos
assinados com o Estado em 1991 e 1997, a organização tem em funcionamento na
cidade de Nacala (província de Nampula) três escolas primárias e uma escola
secundária, que ministram simultaneamente o programa de ensino oficial e ensino
religioso. Neste acordo, cabe ao Governo fornecer os professores para ensinar o
programa oficial e o ensino religioso é da inteira responsabilidade da Africa Muslim
Agency (Pinto 2000: 120-143).
O ensino das escolas da AMA não é gratuito. Para estudar os alunos pagam
propinas mensais, factor que à escala local promove a diferenciação entre as famílias
que podem pagar mensalidades e as mais pobres. No entanto, esta ONG islâmica
concede bolsas de estudo aos estudantes com menos recursos, para países
islâmicos, mas também para a Universidade Eduardo Mondlane e para a Universidade
Islâmica Mussa Bin Bique, permitindo a abertura ao mercado de trabalho e a
articulação com o ensino superior. A Universidade Mussa Bin Bique, é uma instituição
privada de ensino superior, com a sua sede em Nampula, e é uma instituição do
Centro de Formação Islâmica, ligada ao Conselho Islâmico de Moçambique. À
semelhança das escolas corânicas reformadas, esta universidade surge como um
contraponto à laicidade do ensino público e à confessional das instituições de ensino
superior privadas das missões cristãs, uma resposta à existência da Universidade
Católica de Nampula, visando responder às necessidades de modernização das
sociedades. Começa a tomar forma, um sistema de ensino islâmico, articulado desde
os níveis mais básicos até ao nível universitário, e contemplando também a formação
profissional, que funciona simultaneamente integrado e à margem, do sistema de
ensino oficial. Esta actividade na área da educação adquire uma importância acrescida
junto das populações, pelas deficiências das infra-estruturas educativas estatais. Na
década de 90, como a escola estatal terminava na 11ª classe, os alunos da cidade de
Nacala (mesmo os não muçulmanos) que pretendiam terminar o ensino secundário e
17 A Importância e o Papel das Instituições Islâmicas na educação

continuar os estudos universitários teriam de terminar o liceu na cidade de Nampula


(12ª classe), que fica a 160km de Nacala ou na escola secundária da Africa Muslim
Agency, que era vista por todos como uma contribuição positiva para o
desenvolvimento da cidade. Esta valorização social do trabalho desenvolvido pela
ONG islâmica aparece sugestivamente expressa no discurso de um pescador de
Naharengue (Nacala):

...a gente não sabia que o islamismo tem educação, mas agora já sabe,
que o muçulmano também tem ciência, é preciso respeitar, é preciso
cumprir... Antigamente, a gente não tinha esse tipo de conhecimento na
área da educação. Eles ajudam-nos na educação, saúde, porque eles
fazem mesquitas, fazem escolas e enfermarias, têm aqui dois médicos
deles... estamos muito satisfeitos (Pinto 2002: 121).

CONCLUSÃO

Em Moçambique a educação islâmica não ocupa um lugar central. Apesar da


maioria dos muçulmanos considerar a escola corânica como fazendo parte da sua
educação, estão bem conscientes de que apenas a educação ocidental, transmitida
nas escolas de cariz ocidental, os irá preparar para os empregos disponíveis na
economia moderna em desenvolvimento. A valorização da educação islâmica
reformada, que ocorreu no final do século XX, parece não encontrar correspondência
na primeira década do século XIX. Alguns dos novos estabelecimentos de ensino
reformado foram perdendo parte da sua credibilidade por dependerem
excessivamente do apoio exterior islâmico para a sua manutenção, como é o caso da
Universidade Mussa Bin Bique.
No que se refere ao relacionamento com as autoridades governamentais,
apesar dos incentivos dos parceiros internacionais islâmicos (assistência financeira),
as autoridades governamentais continuam reticentes em termos políticos e ideológicos
em considerar as escolas corânicas como escolas no sentido pleno da palavra. As
escolas corânicas não conseguiram ainda estabilidade na relação com o Estado, em
parte devido ao facto de não se apresentarem como modelo único, sendo umas mais
modernistas (como o caso da escolas secundarias da cidade de Nacala-Porto da
responsabilidade da AMA que são reconhecidas e toleradas pelo Estado) e outras
mais conservadoras (que tem como modelo o mundo árabe e como línguas de
trabalhos o árabe e o português). São geralmente vistas com desconfiança pelas
autoridades governamentais e pela opinião pública, percepção agravada pelo facto de
Maria João Baessa Pinto 18

denunciarem os erros pedagógicos das escolas corânicas e ignorância dos seus


professores, passando a contar com a oposição dos dignitários tradicionais e
desconfiança por parte de muitos muçulmanos que estão integrados nas confrarias,
como resulta do episódio recente sobre o “tráfico de crianças menores” que acendeu a
polémica sobre a actuação dos muçulmanos na área da educação. Em sentido oposto,
os muçulmanos acusam abertamente o Governo ou o Estado de promover situações
de discriminação e de intolerância à religião islâmica ao não reconhecer a educação
islâmica e dificultar o licenciamento das suas escolas reformadas. Os debates ou
conflitos ultrapassam o quadro restrito das comunidades muçulmanas e colocam a
questão do Islão dentro do Estado, que é associado à ocidentalização, dai a vontade
de defender e colocar à frente a educação islâmica reformada. O Estado
moçambicano parece ter dificuldades em fazer face às dinâmicas islâmicas, pelo
carácter laico das suas instituições e pelo facto das evoluções islâmicas se
desenvolverem de modo desordenado e conflituoso, sendo difícil para o Estado
encontrar um interlocutor legítimo das aspirações islâmicas.

BIBLIOGRAFIA

Akkari, Abdel- Jallil 2004: “Socilaization, Learning and Basic Education in Koranic Schools”, in
Mediterranean Journal of Educational Studies, Vol.9(2), pp.1-22
Alpers, Edward 1999: “Islam in the Service of Colonialism? Portuguese Strategy during the
Armed Liberation Struggle in Mozambique”, in Lusotopie: Dynamiques religieuses en
Lusophonie Contenporaine, Éditions Karthala, Paris
Bonate, Liazzat 2007: “Islam and Chiefship in Northern Mozambique” in ISIM review 19, Spring
2007, pp.56-57
______,1999: “Ensino Islâmico e Políticas Educativas Nacionais em Moçambique” Artigo
apresentado nos Cursos de Verão da Arrábida “Transmissão de saberes: sistemas de
Educação em África”, Agosto 1999, Portugal
Coulon, Christian 1988: “Carisma and Brotherwood” in Africa Islam, D.C. O’Brien and C.
Coulon, Clarendon Press, Oxford
______,1983: “Les Musulmans et le Pouvoir en Afrique Noire: religions e contre-culture”, Edition
Karthala, Paris
Dias, Eduardo Costa 2005: Da Escola Corânica Tradicional à Escola Arabi: um simples
aumento de qualificação do ensino muçulmano na Senegâmbia? in Cadernos de
Estudos Africanos nº 7/8: 127-155, Centro de estudos Africanos/Instituto Superior de
Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Macagno, Lorenzo 2007: Les Nouveaux Oulémas: recomposition dês autorités musulmanes au
nord du Mozambique, Lusotopie XIV (1), 151-77, Leiden
_______, 2006: “Outros muçulmanos: Islão e narrativas coloniais”, Imprensa de Ciências
Sociais, Lisboa
_______, 2004: “Uma Domesticação imaginária? Representações coloniais e comunidades
muçulmanas no Norte de Moçambique”, in Travessias nº4/5, Lisboa
Medeiros, Eduardo 1999: “Irmandades Muçulmanas do norte de Moçambique”, in Angius, M.;
Zamponi, M. Ilha de Moçambique – Convergência de Povos e Culturas, AIEP Editore,
San Marino.
Monteiro, Fernando Amaro 1993: “Sobre a actuação da corrente ‘Wahhabita’ no seio do Islão
Moçambicano: algumas notas relativas ao período 1966-77”, In Africana, nº12 (Março)
19 A Importância e o Papel das Instituições Islâmicas na educação

Passos, A., Machado, G., Tembe, H. and Mabuza, D. 1996ª e b: “Análise da situação
educacional na província de Nampula: Ensino geral, técnico profissional, superior,
educação não-formal e informal, ONGs, e orgãos de informação”. Maputo,
Mozambique: Netherlands Embassy
Pinto, Maria João 2010: “O Papel das Instituições Islâmicas no Ensino Superior em
Moçambique: estudo de caso da Província de Nampula” in Congresso Portugal e os
PALOP: Cooperação na Área da Educação, ISCTE/UL, Lisboa
______, 2009: “A importância do papel da Africa Muslim Agency no crescimento do Islamismo
em Nampula (Moçambique), na última década do século XX, in Revista Angolana, nº4,
Dezembro (pp. 139-175), Edições Padago
______, 2002: O islamismo em Moçambique no contexto da liberalização política e económica
(anos 90): a província de Nampula como estudo de caso, Dissertação de Mestrado,
Lisboa, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
Westerlund, David 1997: “Reaction and Action: Accounting for the Rise of Islamism”, in
African Islam and Islam in Africa – encounters between Sufis and Islamists, Hurst &
Company, London.
CRIASnotícias: http://criasnoticias.wordpress.com/2009/05/26/mocambique-escolas-islamicas
Expresso: http://aeiou.expresso.pt (25-06-2010)

Você também pode gostar