7 - Fernandes
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Carlos Fernandes
Introdução
Este artigo pretende discutir a emergência de um novo campo de pesquisa no
Moçambique pós-independente e, em particular, no Centro de Estudos Africanos
(CEA), da Universidade Eduardo Mondlane, a partir de um Relatório de
Investigação intitulado, Zimbabwe - A Questão Rodesiana, produzido colectivamente
pelos investigadores do CEA em Outubro de 1976.
A análise será feita dentro de um contexto histórico específico: o período em
que a Frelimo se transformou num partido marxista-leninista e tentou construir
uma sociedade socialista em Moçambique (1977-1984). Foi com a assinatura
dos Acordos de Nkomati, em 1984, que Moçambique começou o seu processo
de reformas políticas e económicas. Encontrando-se sob uma enorme crise
causada pela persistente guerra civil e por uma gestão económica deficiente, o
governo moçambicano começava gradualmente a abandonar o seu ambicioso
projecto de construção de uma sociedade socialista, adoptando (depois da sua
adesão às instituições de Bretton Woods), um programa de reformas orientadas
para a economia de mercado.
Quando se fala da grande contribuição do CEA para o desenvolvimento da
pesquisa em Ciências Sociais no Moçambique pós colonial, A Questão Rodesiana
não é muito referenciada pelos pesquisadores ligados a esta instituição. Há uma
tendência, entre estes investigadores, de privilegiarem a obra O Mineiro Moçambicano,
assim como o Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, ambos sob direcção
de Ruth First, como o ex libris do Centro.1 Embora estes dois projectos tenham
sido basilares para o fortalecimento do campo da pesquisa em Ciências Sociais
no pós-independência, este artigo defende, no entanto, que a pesquisa para A
Questão Rodesiana mudou radicalmente a forma de se fazer investigação em Ciências
Sociais em Moçambique.
O nascimento do CEA
Estávamos também no período do êxodo de professores e investigadores
portugueses, e consequente ameaça de paralisação da universidade. Segundo
Fernando Ganhão,
Não havia moçambicanos para os substituir. Fomos aos países socialistas para
buscar pessoas para preencher o vazio. Como eu próprio vinha de um país socialista,
a Polónia, onde estava a fazer o meu Doutoramento mas sabia também das limitações
que eles tinham em Ciências Sociais, e também não queria reproduzir esses modelos
aqui em Moçambique, decidi então virar-me para a Universidade de Dar Es Salaam,
onde encontrei, no Centro de Pós-Graduação em Estudos de Desenvolvimento,
alguns investigadores, dentre os quais Marc Wuyts, a quem desafiei para ir trabalhar
connosco a fim de criar uma área de ensino em ciências sociais aqui na UEM.11
A ideia inicial do Reitor Fernando Ganhão não era propriamente criar um centro
de pesquisa, mas sim de introduzir na nova universidade um curso de ciências
sociais e disciplinas como Sociologia, Antropologia, Economia, etc. Acontece
que esta ideia nunca se concretizou, e então o Reitor voltou-se para a necessidade
de se criar algo em torno da pesquisa em História e assim aproveitar os poucos
jovens estudantes moçambicanos finalistas do Bacharelato em História e que já
vinham fazendo alguma investigação histórica (tanto como estudantes como
também nos seus próprios trabalhos de fim de curso do bacharelato), e aproveitá-
los para promover algo na área da pesquisa.
Segundo Ganhão,
Falei com várias pessoas, convidei o Dr. Aquino de Bragança, que era jornalista do
Afrique-Asie e contactei os meus estudantes do Bacharelato de História. Eu era
professor de História. Então chamei alguns, dentre os quais o Luís de Brito, o
Carlos Serra, a Teresa Cruz e Silva, a Isabel Casimiro e outros que agora não me
lembro, portanto todo aquele grupo de estudantes, e foi nessa altura então que me
lembrei de fazer uma homenagem àquele CEA de 1949 que foi criado em Lisboa
por Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e outros que se
encontravam exilados […]. Não teve uma vida longa esse centro em Portugal, mas
a ideia era fazer-lhe uma homenagem aqui.12
Conclusão
Apesar de A Questão Rodesiana não poder ser considerada como a melhor
produção científica do CEA, nem preencher todos os requisitos de qualidade,
uma vez que, como já foi mencionado, nenhum dos seus investigadores na altura
ser especialista em assuntos ligados à realidade zimbabweana, tentámos mostrar
que, mesmo assim, a Questão Rodesiana teve o condão de mudar radicalmente a
dinâmica de pesquisa do Centro, e permitir a emergência de um novo campo da
pesquisa no pós-independência, ao introduzir três inovações: (1) uma abordagem
ao ‘actual’ (sem contudo deixar de levar em consideração as suas raízes históricas);
(2) uma mudança da pesquisa individual para a pesquisa colectiva; e (3) a introdução
de um sentido de urgência na pesquisa para responder a preocupações imediatas.
Este último ponto também significava que o intervalo de tempo para se fazer
pesquisa era limitado, e que os resultados da pesquisa tinham que se sujeitar a
prazos muito claros. Nascia assim, a partir da pesquisa para A Questão Rodesiana,
uma nova forma de se fazer pesquisa em Ciências Sociais no Moçambique
independente, e que iria perdurar até ao fim da fase socialista de Moçambique,
iniciada com a realização do Quarto Congresso da Frelimo em 1984.
Notas
1. Shula Marks, historiadora sul-africana, no seu tributo a Ruth First, por ocasião do
assassinato desta em Maputo, e nas instalações do CEA, deu grande ênfase ao papel de
Ruth First no Centro, deixando de lado questões, por exemplo, relacionadas com as
ligações do Centro e a Frelimo/Estado e como essas relações tiveram impacto em todo
o trabalho do CEA, tanto na selecção dos temas de pesquisa como também na escolha
de métodos colectivos de trabalho como a característica principal do CEA (Marks 1983).
Entre todos os investigadores do CEA daquela altura por mim entrevistados, somente
Marc Wuyts enfatizou a grande contribuição da Questão Rodesiana. Os restantes
investigadores apenas referiram a obra O Mineiro Moçambicano, o Curso de
Desenvolvimento, além da Oficina de História, como os grandes contributos do CEA.
2. Se comparadas com outros cursos como Ciências Naturais, Agrárias, Medicina e
Engenharias, as Ciências Sociais eram de fraca expressão em Moçambique na altura. Por
exemplo, enquanto em 1969 o total da população estudantil das Ciências Sociais era de
267 estudantes, os das Ciências ditas “exactas” era de 1366 (Pacheleque et al. 1993).
3. Teresa Cruz e Silva, Investigadora do CEA desde a sua criação, era na altura da
independência aluna finalista do Bacharelato em História na ex-Universidade de Lourenço
Marques.
4. Entrevista com Teresa Cruz e Silva, Agosto de 2007.
5. Entrevista a João Paulo Borges Coelho, 2 de Agosto de 2007.
6. Para uma leitura sumária sobre alguns aspectos da Antropologia em Moçambique, ver
Loforte e Mate 1993.
7. Penvenne 1985: 110, tradução minha.
8. Jornal Noticias, 6 de Dezembro de 1976.
9. Entrevista de Antonio Souto a Fernando Ganhão, Jornal Noticias, 16 de Janeiro de
1975, p.2.
10. Segundo Foucault, cada sociedade tem o seu regime de verdade, a sua ‘política geral’ de
verdade: isto é, os tipos de discurso acolhidos e postos a funcionar como verdadeiros;
os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos
falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que
são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de
dizer o que funciona como verdadeiro. Foucault, 1981.
11. Entrevista com Fernando Ganhão, Julho de 2007.
12. Entrevista com Fernando Ganhão, Julho de 2007.
13. Entrevista com Marc Wuyts, Julho de 2009. Tradução minha.
14. Depoimento de Pietro Petrucci, jornalista italiano. Bragança 2009: 55.
15. Segundo Moore 1985, do final dos anos 1975 aos princípios de 1977, a luta de libertação
no Zimbabwe foi liderada por um grupo de jovens comandantes de orientação marxista,
comprometidos com a união do Zimbabwe African National Union (ZANU) e da Zimbabwe
African People´s Union (ZAPU) e dos seus exércitos, e com o desejo de conquistar a
soberania nacional e derrotar o neo-colonialismo. Para uma leitura sobre a história dos
movimentos de libertação do Zimbabwe ver Moore 1985; Henriques 1997.
16. Para uma discussão sobre as origens da RENAMO, ver Young 1990, Hall 1990.
17. Segundo esta autora, A Resistência Nacional Moçambicana ficou conhecida por vários
acrónimos, nomeadamente, além de Renamo, cunhado em 1983, MNR (especialmente
no Zimbabwe).
18. Editorial: “Estamos em guerra”. Jornal Notícias, 4 de Julho de 1976.
19. Nem todos os investigadores do CEA, participaram neste Projeto. Dos nacionais,
somente participaram nesta investigação o Grupo da África Austral, nomeadamente,
Aquino de Bragança, Maria Eulália de Brito, Luís de Brito e António Pacheco.
20. Entrevista a Marc Wuyts, Julho de 2009.
21. Não chegou a cumprir a sua missão uma vez que na altura em que o Relatório fora
finalizado já tinha decorrido a referida conferência.
22. Os investigadores do CEA não deixaram, claro, de publicar artigos e relatórios de
pesquisa individuais. Estes eram publicados, por exemplo, nas Revistas do CEA, Estudos
Moçambicanos e Não Vamos Esquecer. Foram também publicados relatórios de investigação
com assinatura individual, como é o caso, por exemplo, do estudo de Wuyts (1979).
23. Nas entrevistas por mim realizadas aos pesquisadores do CEA, estes, na sua maioria,
mencionaram esta praxis do Centro de sempre discutir colectivamente os trabalhos de
pesquisa, desde a fase da concepção até à apresentação dos resultados. Por outro lado,
em documentos por mim consultados, por exemplo, sobre o Curso de Pós-graduação
em Desenvolvimento do CEA, vários deles, em actas e outros relatórios, mencionavam
a participação colectiva, tanto dos professores e investigadores como dos alunos na
análise crítica e avaliação dos projectos de pesquisa realizados pelo CEA. Este Curso de
Desenvolvimento teve também uma importância extremamente grande para a definição
do trabalho intelectual do Centro, bem como na inauguração desta nova forma de fazer
pesquisa no Moçambique pós-independente. É um tema que tento abordar com mais
profundidade na minha Tese de Doutoramento (ainda em curso).
24. Jornal Noticias, 3 de Maio de 1976.
25. Depoimento de José Luís Cabaço, no Colóquio em Homenagem a Aquino de Bragança,
Maputo, 28-29 de Julho de 2009
Referências
Aasland, Tertit, 1984, “Research in Mozambique – A survey of the research sector in
Mozambique with an introduction on Norwegian assistance to development research
and to Mozambique”, Oslo.
Beverwijk, Jasmin, 2005, “The Genesis of a System – Coallition Formation in the
Mozambican Higher Education (1993-2003)”, PhD Thesis.
Bragança, Sílvia, 2009, Aquino de Bragança – Batalhas ganhas, sonhos a continuar, Maputo:
Ndjira.