Lacan No Estadio Do Espelho Hegeliano PDF

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LACAN NO "ESTÁDIO DO ESPELHO" HEGELIANOvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQP

Acüio da Silva Estanqueiro Rocha zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGF


(Universidade do Minho)

M anuel J. Carmo Ferreira escreveu, sobre Hegel: «A constituição rela-


cional da subjectividade
da interioridade
( ... ) pode exprimir-se quer na dialéctica
e da exterioridade, quer na dialéctica da identidade e
da diferença. Radica, porém, o seu sentido último na contraposição da
transparência e da noite, linguagem simbólica onde parece ocultarem-
se os limites de expressão do pensamento hegeliano em torno do mais
íntimo da subjectividade humana»1. O extracto é significativo porque dá
o sentido e horizonte à nossa explanação sobre os reflexos especulares de
Hegel na obra de Lacan.
Na verdade, ao elaborar a teoria sobre o estádio do espelho', a partir de
1936, o célebre psicanalista francês, mais conhecido pelo pendor estrutu-
ralista da sua obra, inspira-se em Henri Wallon, Alexandre Kojeve e Ale-
xandre Koyré, quando a sua preocupação se orienta em torno do sujeito,
cuja compreensão busca em Freud e nos estudos de Hegel que entretanto
empreendia. Com efeito, em França, no final dos anos vinte e começo dos
anos trinta do século XX, ao mesmo tempo que chegava a influência da
psicanálise, verificava-se uma profunda renovação dos estudos hegelia-
nos. Pode afirmar-se que o célebre psicanalista francês, cultor da filosofia
e fervoroso estudioso da filosofia alemã", se vê no espelho de Hegel, após

1 Manuel J. Carmo Ferreira, Hegel e a justificação da filosofia, Lisboa, Imprensa


Nacional-Casa da Moeda, 1992, pp. 127-128.
2 A noção "estádio do espelho", tomada de Henri Wallon, foi decisiva para os
desenvolvimentos ulteriores, na medida em que pretende fundar uma antropogénese do
sujeito humano. «Foi no Congresso de Marienbad (31 de Julho de 1936) que teve lugar
este primeiro pivô da nossa intervenção na teoria psicanalítica» (Jacques Lacan, "De nos
antécédents",FEDCBA
É c r its , Paris, Seuil, 1966, p. 67, nota 1). A comunicação foi retomada e revista
para o XVI Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurique (17 de Julho de 1949),
intitulada "Le stade du miroir comme formateur de la fonction du [e", Écrits, pp. 93-100.
3 Note-se também o decisivo influxo kantiano na ética lacaniana, patente no
Seminário VII, L'Éthique de la Psychanalyse (Paris, Seuil, 1986), que tivemos ensejo de
analisar em "Simbólico, Linguagem e Ética: Lacan, entre psicanálise e filosofia", Revista
Portuguesa de Filosofia, 59 (2) 2003, pp. 483-512.

Razão e Liberdade. Homenagem a Manuel José do Carmo Ferreira, CFUL, Lisboa, 2009, pp. 1443-1466.
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um período liminar guiado pelos ensinamentos, entre outros, de Espin


e [aspers. É sobre esses passos que versa a análise que se segue, pontua -
com asserções de Lacan, à excepção da primeira que o próprio Lacar.:
extraiu da Ética de Espinosa.

«Uma afecção qualquer de cada indivíduo difere da afecção de um outro


tanto como a essência de um difere da essência do outro»

Já aos catorze anos, por volta de 1915, Lacan descobre a obra de Espi-
nosa: «Na parede do quarto, suspendeu um desenho que representava
plano da Ética, com flechas a cores. Esse acto de subversão, num mun
de pequenos comerciantes, teve, como efeito, arrastar o jovem Lacan par.:
uma afirmação do seu desejo, ante um pai que ele pensou sempre qu
tinha como única ambição de o ter a seu lado para desenvolver o comérri
das mostardas-é. Passado algum tempo, já possuidor de um vasto ho --
zonte cultural e bem inserido no meio médico, por volta de 1931, Lacar;
efectua, acerca da paranóia, uma síntese da clínica psiquiátrica, da teo -
freudiana e do denominado segundo surrealismo". Essa síntese assenta
num «brilhante conhecimento de filosofia - especialmente Espinosa, J
pers, Nietzsche, Husserl e Bergson" -, que lhe iria permitir elaborar a
tese de medicina acerca Da Psicose Paranóica em suas relações com a Person -FEDCBA
lid a d e ' (sobre o famoso caso Aimée), «que será também a sua grande o
da juventude», que veio a lume no Inverno de 1932 e fará do seu autor

4 Elisabeth Roudinesco, Jacques Lacan: esquisse d'une vie, histoire d'un svetéme -
pensée, Paris, Fayard. 1993,pp. 29-30.
5 Cf. ib., p. 55 ss. Com efeito, «neste momento da sua evolução, Lacan tom

conhecimento, no primeiro número do Surréalisme au service de la Révolution, publi


em Julho de 1930, dum texto de Salvador Dali que iria permitir-lhe romper ao m
tempo com a doutrina das constituições e passar para uma nova apreensão da lingua
no domínio das psicoses». Ora, «o período do primeiro surrealismo estava consumado
a publicação por André Breton do Second Manifeste anunciava a busca de um "ponto
espírito" que permitiria resolver a contradição entre o sonho e a vida material. Longe
experiência dos sonos artificiais e da escrita automática, tratava-se doravante de desc
novas terras da acção política. O sonho de mudar o homem devia tomar uma fo
concreta: inventar um mundo criativo de conhecimento da realidade» ( ib ., p. 55).
6 Ib., p. 56.

7 Jacques Lacan, De la psycose paranoiaque dans ses rapports avec la personnalité, P


Le François, 1932,reeditada em Paris, Seuil, 1975;e em edição de bolso, Paris, Seuil, 1
(Points, 115),que seguimos. Doravante, De la Psychose ...
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chefe de escolas", Nas páginas iniciais da referida obra, após as dedicató-


rias", cita, em latim, a proposição 57 do livro II da Ética de Espinosa'". Para
Lacan, nesse momento, o espinosismo seria a única doutrina susceptível
de justificar uma ciência da personalidade. Por sua vez, da Psicopatologia
Geral (1913) de Karl [aspers, traduzida em francês (1928), recolhe o con-
ceito de processus para uma teoria da causalidade mais próxima da de
Freud.
Assim, antes da incidência dos elementos lógicos da linguística e
do estruturalismo, em especial de Lévi-Strauss, e mais tarde da topolo-
gia, que lhe permitirão uma formalização original e mais estruturada da
psicanálise, ou seja, desde a tomada de contacto com a clínica, já Lacan
procurava focar as suas análises e estudos na relação que se estruturava
entre médico e paciente e que lhe indiciava sempre a dimensão do sujeito.
Na Tese de 1932, em que trabalha o Caso Aimée, perscruta-se uma
orientação já de si esclarecedora: ao mesmo tempo que Lacan se inscreve
na tradição determinista e materialista dominante no campo científico,
busca a chave da compreensão do paciente, transbordando uma visão
organicista - no caso de Aimée, o pensamento delirante. A descrição feno-
menológica exaustiva de um caso, como ocorre na Tese, levou-o à psica-
nálise, o único meio de determinar as condições subjectivas da prevalên-
cia do duplo na constituição do eu. Nesse trabalho confluem as aspirações
freudianas e anti-organicistas da nova geração psiquiátrica francesa dos
anos 1920. O trabalho foi imediatamente considerado uma obra-prima,
principalmente por René Crevel, Salvador Dali e Paul Nizan, que aprecia-
ram a utilização feita por Lacan dos textos romanescos da paciente e da
força doutrinária da sua posição quanto à loucura feminina.

8 Ib., p. 56.
9Nas páginas iniciais da referida obra encontram-se duas dedicatórias: uma em
grego, a M.T.B, Marie- Thérese Bergerot, sua amante quando era interno do hospital Sainte-
Anne, uma viúva austera quinze anos mais velha, com quem descobriu as obras de Platão
e fez várias viagens de estudo. A dedicatória, expressa em grego, significa: «Não me teria
tornado quem sou sem a sua assistência». A outra dedicatória é a seu irmão Marc-François
Lacan, "Beneditino da Congregação de França", com quem tinha a melhor relação e a
quem a recitar as suas lições em latim. Cf. E. Roudinesco, op. cit., pp. 86-87, 29.
ajudava
«Quilibet unius cujusque individui affectus ab affectu alterius tantum discrepat,
10

quanium esseniia unius ab essentia alterius differt». «Uma afecção qualquer de cada indivíduo
difere da afecção de um outro, tanto como a essência de um difere da essência do outro».
B. Espinosa, Ética demonstrada à maneira dos geómetras [1677], Parte II ["Da Origem e da
Natureza das Afecções"] Proposição LVII, tradução de Joaquim Ferreira Gomes, Coimbra,
Atlântida, 1952, p. 159.
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Então, não é pela via de uma psiquiatria organicista, que reduz


sujeito a uma categoria de epifenómeno, explicável através da série causa;
de mero efeito, isto é, pela determinação da sua causa orgânica, mas,
caso em apreço, é a fala delirante, que manifesta o pensamento que lhe é
subjacente, que deve ser objecto de consideração, cuja relevância trans-
borde uma óptica organicista; para Lacan, a loucura é um fenómeno d
pensamento e é neste campo da representação que deve ser buscada a
determinação. Nesse intuito, vai denunciando o falso materialismo que
envolve o discurso organicista, porquanto «a personalidade manifesta-
se indiscutivelmente através de uma série de sentimentos, de represen-
tações, de acções e de discursos que as designam. Que não se possa pré-
julgar a sua significação (e portanto a sua verdade) não retira nada à sua
presença»!'.
N o caso de uma paciente paranóica, que exibia toda a exuberância
de um pensamento delirante, que a punha em relação directa com as suas
representações, buscar o seu determinismo próprio era refutar qualquer
abordagem normativa que entendesse tal manifestação como produ
de um desajustamento orgânico; neste sentido, o que já se revelava e
Lacan era o caminho de certo modo percorrido por Freud, embora diver-
samente: um caminho que vai da determinação do patológico à consti-
tuição do humano em geral. Encontramos, então, o jovem psiquiatra
francês já bastante influenciado por Freud naquilo que irá sempre mais
aproximá-los - o método psicanalítico: «É mérito dessa nova disciplina
que é a psicanálise, ter-nos ensinado a conhecer essas leis, isto é, as que
definem a relação entre o sentido subjectivo de um fenómeno de consci-
ência e o fenómeno objectivo a que responde: positivo, negativo, mediato
ou imediato, essa relação é, com efeito, sempre determinada». E continua:
«Pelo conhecimento dessas leis, pôde-se conferir assim o seu valor objec-
tivo, mesmo para esses fenómenos de consciência em relação aos quais
se havia tomado uma posição tão pouco científica de menosprezar, desde
os sonhos cuja riqueza de sentido, todavia impressionante, era conside-
rada como puramente "imaginária", aos "actos falhados" cuja eficácia,
todavia tão evidente, era considerada como "desprovida de sentido" »1::_
No entanto, se o método podia aproximar-se da psicanálise freu-
diana, o trajecto teórico lacaniano distingue-se dela pelas respostas pre-
cisas quanto ao raciocínio substancialista, que impede que se chegue a

11 Bertrand Ogilvie, Lacan: la jormation du concept de sujet (1932-1949),Paris, P. .F~


1987, p. 16.
12 J. Lacan, De la psychose ... r p. 248.
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que melhor define o ser humano Lacan observa: «(000)esforcemo-nos por


o

lançar sobre o caso que estudamos um olhar tão directo, tão nu, tão objec-
tivo quanto possível. Observamos a conduta de um organismo: e este
organismo vivo é de um ser humano Enquanto organismo vivo ele apre-
o

senta reacções vitais totais, que, o que quer que seja dos seus mecanismos
íntimos, têm um carácter dirigido para a harmonia do conjunto; enquanto
ser humano, uma proporção considerável dessas reacções tomam o seu
sentido em função do meio social que desempenha no desenvolvimento
do animal-homem uma função primordial. Essas funções vitais sociais,
que caracterizam, aos olhos da comunidade humana, directas relações de
compreensão, e que na representação do sujeito estão polarizadas entre o
ideal subjectivo do eu [moi] e o julgamento social do outro [autrui], são
essas mesmas que definimos como funções da personalidade»!". Deste
modo, os fenómenos de personalidade são especificamente humanos, isto
é, não se desenrolam na dimensão única de um automatismo instintual,
mas na dimensão plural de um comportamento desdobrado numa repre-
sentação, e, enquanto tais, adquirem sentido e funcionam num sistema
social submetido a leis específicas".
Deste modo, na óptica lacaniana, «a personalidade não é "paralela"
aos processos nevráxicos, nem mesmo somente ao conjunto dos processos
somáticos do indivíduo: ela é-o à totalidade constituída pelo indivíduo e pelo
seu meio próprio» E prossegue: «Uma tal concepção do "paralelismo" deve
o

ser reconhecida aliás como a única digna deste nome, se não se esquece
que está aí a sua forma primitiva e que ela foi expressa primeiramente
pela doutrina espinosiana. (o o o) Só esta concepção legítima de paralelismo
permite dar à intencionalidade do conhecimento este fundamento no real
que seria absurdo recusar-lhe em nome da ciência Somente ela permite o

dar conta não apenas do conhecimento verdadeiro mas também do conhe-


cimento delirante- ". Esta orientação flui do pensamento de Espinosa, na
articulação entre o campo representacional, o organismo e o meio social.
Na Tese, Lacan designa por "tendência concreta" o comportamento
de um organismo por relação com o seu meio, no qual se concretiza a
intenção ou a tendência que caracteriza a sua orientação psíquica por
relação com esse objecto; se é o ciclo comportamental que dá a chave do
desejo, é a "tendência concreta" que assegura a objectivação do sintoma
mental: «Com efeito, tende-se em demasia, no estudo dos sintomas men-

13 [. Lacan, De la psychose ... , p. 247.


14 Cf. B. Ogilvie, op. cii., P: 250
15 J. Lacan, De la psychose ... , P: 3370
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tais da psicose, a esquecer que eles são fenómenos do conhecimento, e


que, como tais, não poderão ser objectivados no mesmo plano que 05
sintomas físicos. (... ) Os sintomas mentais só têm portanto valor posiiicc
segundo o seu paralelismo com tal ou tal tendência concreta, isto é, co
tal comportamento da unidade viva por relação com um objecto dado.
Declarando esta tendência "concreta", encontramos aí um sintoma p ,
quico, isto é, um objecto comparável aos sintomas que a medicina em
geral usa, seja a uma icterícia ou a uma dor»16. Segue-se que um fa
mental pode ser apreendido no comportamento que é a sua expressão
contanto que se veja neste comportamento um ciclo completo correspon-
dente a uma significação, portador de uma intencionalidade (conscien
ou inconsciente) que excede o indivíduo; os factos psíquicos não podend
ser «concebidos como objectos em si»:", mas inscritos numa sucessão d
causas e efeitos que faz compreender ao mesmo tempo que eles são efei-
tos (os produtos indirectos de uma situação mais geral), está aí a "razã
dos efeitos", ou ainda o encadeamento das causas - objecto privilegia
da filosofia espinosísta". Tal posicionamento - facto psíquico, comporta-
mento, sociedade -, entendido como o oposto de qualquer encadeamen
causal, torna-se a categoria que será utilizada por Lacan, numa via alter-
nativa de explicação.
Lacan acentua três aspectos primordiais: a função preponderante
da actividade do sujeito e a sua dependência por relação a uma situa> -
externa, à qual ele está articulado sob a forma negativa de uma reacção=:
e tal como parece resultar da Tese, é verdade que o sujeito reage a algo.
nele mesmo, que lhe é estranho, embora não perceba que o faça, e e
coisa à qual ele reage é um Outro que não ele mesmo - o seu ser social: é
neste cruzamento que se vislumbram as fendas que a Tese desde já coloca.
e que buscarão resposta ulterior nas suas leituras de Hegel.

«Seguramente, de nenhum "dado imediato" pode deduzir-se a existência


objectiva do acto voluntário e do acto de liberdade moral»

As interrogações anteriores eram já aberturas por onde penetrariam


conceitos que a leitura da Fenomenologia do Espírito, por meio de Kojeve,

16 n; p. 338.
17 u; p. 334.
18 B. Ogilvie, op. cii., p. 56.
19 B. Ogilvie, op. cii., p. 82.
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veio a inculcar. A formalização de uma negatividade parece ser, na ver-


dade, o ponto principal em torno do qual gira este processo. Aí escreve:
«Os dados objectivos conferem portanto à personalidade uma certa uni-
dade, que é a de um desenvolvimento regular e compreensível» e, nessa
sequência, Lacan interroga-se sobre o estatuto da intencionalidade: «Segu-
ramente, de nenhum" dado imediato" pode deduzir-se a existência objec-
tiva do acto voluntário e do acto de liberdade moral. Além disso, desde
que se trate de conhecimento científico, o determinismo é uma condição
a priori e torna uma tal existência contraditória com o seu estudo. Mas
resta explicar a existência fenomenológica dessas funções intencionais:
por exemplo, que o sujeito diga "eu" ["je"], creia agir, prometa e afirme-".
A partir da Tese, o projecto lacaniano procura dilucidar esse sujeito de
«delírio que permanece incompreensível a um olhar organicista», e a sua
clínica orienta-se doravante pela implicação desse «sujeito falante, não
o sujeito fictício da presença a si tão caro aos filósofos da consciência,
mas o sujeito activo da "reivindicação", aquele que diz "eu" ["je"], "me"
["moi"] »21.
Não foi apenas pelo caminho dos' sintomas clínicos' e de 'seus efeitos
de criação' que o psiquiatra Lacan chega à psicanálise". Há um outro que
percorre simultaneamente e sobre o qual silencia, pelo menos nessa passa-
gem, que é o especial interesse pela filosofia ou pelas questões filosóficas de
seu tempo. Ora, nos anos 30, verificou-se uma renovação dos estudos hege-
lianos, especialmente com os trabalhos de J ean Wahl, Alexandre Koyré, Éric
Weil e Alexandre Kojeve. «E, de facto, após o encontro com a epopeia sur-
realista, é a frequentação com Alexandre Koyré, Henry Corbin, Alexandre
Kojeve e Georges Bataille que lhe permitem iniciar-se numa modernidade
filosófica que passa pela leitura de Husserl, Nietzsche, Hegel e Heídegger".

20 Jacques Lacan, De la psychose ...FEDCBA


r p. 39.
21 Cf. Bertrand Ogilvie, op. cit., p. 14.
22 Cf. J. Lacan, "De nos antécédents", in Écriis, op. cii., pp. 65-72.
23 No decurso de um encontro com Heidegger (1955), na companhia de Beaufret,
em Friburgo, Lacan pediu ao filósofo alemão autorização para traduzir um seu artigo
intitulado "Logos", para o publicar no primeiro número da revista La Psychna/yse, periódico
que expressava as posições da Sociedade Francesa de Psicanálise. Esse número, a cargo
de Lacan, seria consagrado à fala e linguagem. Vários intervenientes prestigiosos haviam
já aceite participar, com destaque para Émile Benveniste, Jean Hyppolite e Clémence
Ramnoux. O próprio Lacan faria aí aparecer o seu famoso "Discurso de Roma" e o diálogo
travado com Hyppolite. Heidegger deu de bom grado o seu acordo e Lacan pôs-se ao
trabalho (Cf. Martin Heidegger, "Logos", La Psychana/yse, n.? 1, Paris, P.U.F., 1956). Cf. E.
Roudinesco,op. cii., p. 299.
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Sem esta inícíação", a obra de Lacan teria permanecido para sempre pri-
sioneira do saber psiquiátrico ou de uma apreensão académica dos con-
ceitos freudianos».
Além disso, quantos se davam conta nessa época da grandeza da
refundação husserliana e da orientação heideggeriana sentiam a necessi-
dade de remontar às fontes originais da «moderna ciência da experiência
da consciência», isto é, à obra de Hegel. Após a tentativa de Victor Cou-
sin de «adaptar um hegelianismo conforme à política da Restauração - e
portanto desembaraçada das suas noções fundamentais de racionalidade
absoluta e de negatividade -, o pensamento do filósofo alemão trilhou
um caminho no solo nacional de maneira clandestina ou marginal, seja
pelo ensino de universitários não conformistas como Lucien Herr, seja
pelo compromisso de autodidactas como Proudhon, seja pela voz de poe-
tas como Mallarmé ou Breton. E é bem na linha recta desta penetração
difusa que a situação francesa do hegelianismo tomou um andamento
radicalmente novo sob o impulso de [ean Wahl, Alexandre Koyré, Éric
Weil e Alexandre Kojeve, que foram os iniciadores, por trinta anos, de
uma «geração dos três H (Hegel, Husserl, Heidegger)»".
Da convivência com Kojeve", surgiu, em 1936, o projecto de escreve-
rem em conjunto um ensaio de confrontação interpretativa entre Hegel e
Freud": Lacan, na época, nada escreveu nesse sentido, mas, das 15 pági-
nas manuscritas por Kojeve, salienta-se «a passagem de uma filosofia do

24 Cf. Élisabeth Roudinesco.: op. cit., p. 126·


Koyré, aluno de Husserl, discutiu, entre outros temas, o cogito de Descartes, através
de estudos baseados nas ideias de Husserl, desenvolvidos posteriormente também por
Lacan; e Kojeve, dedicado aluno de Koyré, tornou-se mestre nos estudos sobre Hegel,
donde Lacan construirá uma teoria sobre o desejo, baseando-se na dialéctica do Senhor e
do Escravo da Fenomenologia do Espírito, e donde emergirá a sua afirmação que o desejo do
homem é o desejo do Outro.
25 E. Roudinesco, op. cit., pp. 134-135.

26 Kojêve regeu o seu famoso seminário sobre a Fenomenologia do Espírito durante seis

anos, a partir de 1933, todas as segundas feiras, a partir das 19,30 horas, prolongando-se
em discussões no café Harcourt; a partir de 1934-35,e até 1936-37,Lacan esteve inscrito
nesse seminário na lista de "ouvintes assíduos" (Cf. E. Roudinesco, op. cii., p. 142). As
lições de Kojeve foram reunidas e publicadas depois da guerra por Raymond Queneau,
in A. Kojeve, Introduction à la lecture de Hegel: leçons sur la Phénoménologie de l'Esprit
professées de 1933 à 1939 à I'École des Hautes Études, réunies et publiées par Raymond Queneau,
Paris: Gallimard, 1962 (la edição, 1947).
27 O título previsto seria Hegel et Freud: essai FEDCBA
d 'u n e confrontation interprétative, que seria
dividido em três partes: la "Cenese de la conscience de soi", 2 a "L'origine de la folie", 3 a
"L'essence de la famille". Cf. E. Roudinesco, op. cii., pp. 147-148.
Lacan no "Estádio do Espelho" Hegeliano I 1451

Eu penso zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
a uma filosofia do Eu desejo, efectuando uma cisão entre o eu [je],
lugar do pensamento ou do desejo, e o eu [moi], fonte de erro. Ora, Lacan
devia muito certamente, no decurso do trabalho em comum, ter por mis-
são completar esse texto situando a posição freudiana numa posição aná-
loga àquela pela qual Kojeve havia situado a posição de Descartes, depois
a posição de Hegel-", e que estarão presentes nos textos do psicanalista
redigidos entre 1936 e 1949, quando a teoria do estádio do espelho domina
o pensamento de Lacan.

«A assunção jubilatória da imagem especular (... ) manifesta (... ) a matriz


simbólica onde o eu se precipita numa forma primordial»

Desde 1936, como dissemos, Lacan analisa, no que denomina está-


dio do espelho, um momento genético primordial, como o primeiro esboço
do eu e insiste na importância da eficacidade simbólica", ligada ao papel
da imago; assim, do ponto de vista da estrutura do indivíduo, aquilo que
Lacan chama "estádio do espelho" assinala um momento fundamental:
primeiramente, a criança toma consciência do seu corpo, concebido como
objecto exterior; todavia, num segundo momento, ela tenta agarrar essa

28 lb., p. 149.
29 A partir do encontro com Lévi-Strauss, Lacan elaborou, na tematização do
inconsciente freudiano, a tríade Simbólico, Imaginário e Real. Tal como em Lévi-Strauss,
é pela instauração da ordem simbólica que se opera a passagem da existência meramente
natural à cultural; esta ordem é formalmente análoga à ordem da linguagem. A primazia
do significante, que Lacan sustém, resulta da passagem da natureza à cultura: a ordem
simbólica - a ordem da linguagem - não permite um acesso directo do sujeito a si
mesmo, mas sempre por uma relação mediada. O acesso ao simbólico depende sobretudo
da resolução do Édipo; aí, Lacan distingue dois momentos: a fase pré-edípica, que
corresponde à linguagem imaginária, e a fase edípica na sua resolução, que concerne já a
linguagem simbólica.
De facto, Lacan conheceu Lévi-Strauss num jantar oferecido por Koyré, donde
brotou uma profunda amizade. Após o estudo d' As estruturas elementares do parentesco
de Lévi-Strauss, Lacan repensa o complexo de Édipo, a proibição do incesto, como uma
função simbólica -: lei inconsciente da organização da cultura. Todo o sujeito se determina
na sua pertença a uma ordem simbólica; e, nesta categorização, o inconsciente freudiano
é repensado como cadeia de significantes. O "Nome do Pai" é o conceito onde a função
simbólica se torna lei, que é a proibição do incesto, processo descrito por Lacan através
dessa metáfora paterna. A criança inverte a situação: ela não é mais o único e exclusivo
objecto do desejo da mãe, o objecto que preenche a falta do Outro, o falo, mobilizando,
então, o seu desejo, como desejo de sujeito, orientando-se para objectos substitutos do
objecto perdido.
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imagem, mas descobre que nada há por detrás do espelho: este eu "reflec-
tindo-reflectido" não remete para qualquer objecto exterior; por fim, com-
preende que não somente o outro do espelho é uma imagem, mas que
essa imagem é a sua. A análise lacaniana torna compreensível a angústia
que surge na relação com a mãe, simples reflexo do seu próprio corpo, o
"outro" do espelho que nunca pode ser possuído.
Assim, o infans (o que ainda não fala), através dum semelhante (a
sua imagem, ou a da mãe, ou a de outro menino), estabelece uma relação
dual e imediata; é a fase do narcisismo primitivo; por outras palavras, a
criança confunde-se com a sua própria imagem-objecto, indistinção entre
sujeito e objecto, entre eu e tu; com efeito, a subjectividade implica sepa-
ração de termos e não identificação: «A assunção jubilatória - diz Lacan
- da imagem especular pelo ser ainda submergido na impotência motriz
e a dependência da amamentação que é o pequeno homem nesse estádio
infans, parecer-nos-á manifestar, desde então, numa situação exemplar, a
matriz simbólica onde o eu se precipita numa forma primordial, antes de
objectivar-se na dialéctica da identificação com o outro e de a linguagem
lhe restituir no universal a sua função de sujeitov". A criança percep-
ciona na imagem especular uma forma (Gestalt) em que antecipa - daí
o seu júbilo - uma unidade corporal que lhe falta: identifica-se com essa
imagem.
A relação dual e imaginária, como se manifesta no "estádio do espe-
lho" (entre os seis e os dezoito meses), identifica os dois elementos do
algo ritmo saussuriano; mas, na ordem imaginária não se dá uma distin-
ção entre significante e significado. «O que eu denominei o estádio do espe-
lho tem o interesse de manifestar o dinamismo afectivo por onde o sujeito
se identifica primordialmente com a Gestalt visual do seu próprio corpo:
ela é, por relação com a incoordenação ainda muito profunda da sua pró-

30 J. Lacan, "Le stade du miroir comme formateur de la function du [e", Écrits,

Paris, Seuil, 1966, p. 94. O texto foi apresentado inicialmente no XIV Congresso da FEDCB IP A
[International Psychoanalytical Association] em Marienbad, em 1936, em que Lacan
confrontou pela primeira vez a história do freudismo internacional; nesse congresso, Ernest
Jones cortou-lhe a palavra apenas com dez minutos de exposição; aborrecido, Lacan não
entrega o texto e parte para Berlim onde assiste aos Jogos Olímpicos, mas onde o triunfo
do nazismo provocou nele um sentimento de repugnância. O texto foi reescrito para o 1.0
Congresso Internacional de Psicanálise (Zurique, 1949)do pós-guerra, publicado na Révue
Française de Psychanalyse, n.? 4, 1949 (pp. 449-455)e será recolhido em Écrits (pp. 93-100).
Sobre o "estádio do espelho" segundo Lacan, cf, Acílio da Silva Estanqueiro Rocha,
Problemática do Estruturalismo: linguagem, estrutura, conhecimento, Lisboa, Instituto Nacional
de Investigação Científica, 1988,pp. 106-117.
Lacan no "Estádio do Espelho" Hegeliano I 1453zyxwvutsrqpo

pria motricidade, unidade ideal, imago salutar»:". O espelho faculta-lhe,


pois, uma imagem adequada do seu eu que, através dela, se descobre.
Lacan analisa, pode dizer-se, os dois momentos fundamentais de
manifestação da pessoa: a vivência do espelho (stade du miroir) e a situa-
ção de Édipo; contudo, na fase edípica, a ordem simbólica manifesta-se
já enquanto discurso, como linguagem de terminante e criadora de signi-
ficados. Na verdade, a relação dual é profundamente transformada com
a aparição dum terceiro elemento - que se revela como símbolo da inter-
dição; o pai priva a criança do objecto do seu desejo e proíbe-lhe a posse
da mãe: afinal, impõe-lhe a Lei, que é Palavra também reconhecida pela
mãe: passa-se da relação diádica mãe-filho, a uma relação triádica pai-
mãe-filho, efectuando-se assim a descoberta da sociedade e, por oposição,
a do próprio eu. «É no nome do pai que é necessário reconhecer o suporte
da função simbólica que, desde a orla dos tempos históricos, identifica a
sua pessoa à figura da lei»32. O nome do pai, segundo Lacan, aparece como
termo mediador, o "portador da Lei": inscrevendo-se no discurso do pai,
a criança conquista a sua identidade; é o momento da privação e da rup-
tura da dualidade imaginária: o filho é privado do objecto do seu desejo -
que é a mãe - e, ao mesmo tempo, a mãe é privada do seu próprio objecto
desejado - o falo sob a imagem do menino; se a figura do pai não intervier
na vida psíquica do filho, torna-se problemática a superação da fase do
imaginário e de enleio dos fantasmas.
O "espelho" - esse momento da primeira relação a si, que é também
uma relação com um outro -, detém um valor exemplar no que diz res-
peito ao desenvolvimento, onde, afinal, haverá bem pouco de "espelho"
e de "estádio": lugar de nascimento e de estrutura definitiva, representa

31 Ib., 113. Esta experiência organiza-se em torno de três tempos fundamentais:


inicialmente tudo se passa como se a criança percebesse a imagem do seu corpo como
a dum ser real que ela se esforça por apreender; isto é, há «uma confusão primeira entre
si e o outro», confusão largamente confirmada pela relação estereotipada que a criança
mantém com os seus semelhantes. O segundo momento constitui uma etapa decisiva no
_ rocesso de identificação: a criança descobre que o outro do espelho não é um ser real mas
uma imagem; o seu comportamento mostra que ela sabe doravante distinguir a imagem
o outro, da realidade do outro. O terceiro momento põe em relação dialéctica os dois
omentos anteriores, não somente porque a criança se assegura que o reflexo do espelho
2 uma linguagem, mas sobretudo porque «adquire a convicção que apenas é uma imagem
e é a sua»; «a imagem do corpo é, pois, estruturante para a identidade do sujeito que
3Í realiza a sua identificação primordial» (Cf. [oêl Dor, Introduction à la lecture de Lacan: 1.
_'inconscient structuré comme un langage, Paris, Denõel, 1985, pp. 100-101).
32 n; p. 278.
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História da Filosofia e Filosofia Contemporânea zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSR

uma das características peculiares do ser humano - a "separação" -, que


voltará a surgir, com novas formas, na obra lacaníana".
Para Lacan, é incontestável que a verdade da análise se encontra no
discurso intersubjectivo; ela não está dada duma vez por todas, mas vive
da repetição, revive-se em cada nova situação de Édipo e repete-se em cada
nova fase do processo da génese humana: «É em todas as fases genéticas
do indivíduo, em todos os degraus da realização humana na pessoa, que
se encontra esse momento narcísico no sujeito, num antes em que deve
assumir uma frustração libidinal e num depois onde se transcende numa
sublimação normativa»".

«É impossível à nossa técnica desconhecer os momentos estruturantes da


jenomenologia hegeliana»

A esse 'pivô' da teoria lacaniana - o estádio do espelho - faltavam


ainda outros conceitos provenientes da área da linguística e do influxo
lévi-straussiano, que entrarão em jogo em lugares estratégicos, como é o
caso, entre muitos outros, do célebre Discurso de Roma, Função e Campo da
Palavra e da Linguagem em Psicanálise (1953)35 e da conferência pronunciada

33 Cf. B. Ogilvie, Lacan: la jormation du concept de sujet (1932-1949), Paris, P. U. F.,


1987,p. 107.
34 J. Lacan, "L'agressivité en psychanalyse" (1948), Écrits, op. cii., p. 119.

35 J. Lacan, "Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse" (1953),

in Écrits, op. cit., pp. 237-322.


De facto, esse Discurso significou também a ruptura com a FEDCBA s p p [Société Psychana-
lytique de Paris, criada em 1926], reconhecida pela IP A [Association Psychanalytique
Internationale, criada em 1910]; ao grupo (liderado por S. Nacht) que pretendia que o
reconhecimento da análise se baseasse na investigação neurobiológica, opunha-se Lacan,
para quem as dimensões da fala e da linguagem deveriam ser primordiais na análise,
conjugada com o concurso de outras áreas do conhecimento humano. Um novo grupo
(entre outros, Françoise Dolto, Daniel Lagache), com Lacan, funda a S F P [SociétéFrançaise
de Psychanalyse, 1953-1963],que pede, em 1959,a adesão à IP A ; entretanto, uma comissão
de inquérito conclui, em 1961,pela perigosidade de Lacan para a psicanálise.
Aquando da sua intervenção, em Novembro de 1953, anuncia a sua suspensão (que
virá depois a consumar-se), pois soube nas vésperas que a comissão da S F P aceitou a sua
marginalização juntamente com a de Dolto. Nessa época, inicia os célebres "Seminários",
onde o escopo era o "retorno a Freud": em 1953, dedicou o primeiro seminário aos
Escritos Técnicos de Freud, prosseguindo um trabalho ininterrupto, apesar das crises
institucionais que se seguiriam até 1981,que também o visavam na tentativa de imposição
da ortodoxia da orientação predominante. Em Julho de 1964, talvez por fidelidade ao
que o seguiam, anunciou paradoxalmente, que, «sozinho como sempre esteve», fundava
Lacan no "Estádio do Espelho" Hegeliano I 1455zyxwvutsrqpon

no anfiteatro Descartes da Sorbonne, a convite dos estudantes de Letras,


intitulada A Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão desde Freud FEDCBA
(1 9 5 7 )3 6 .
Na verdade, para Lacan, o analista, sendo um pesquisador da verdade,
deve manter por relação ao discurso do paciente uma atenção" flutuante":
«comentar um texto é como fazer uma análisev": desse modo, Lacan pre-
feria a não interferência no discurso do paciente, isto é, deixava fluir a
conversa para que o próprio analisando descobrisse as suas questões; há o
risco de o analista, ao intervir, passar os seus significantes para o paciente.
Segundo Lacan, na teoria e na prática psicanalítica perscruta-se a dia-
léctica e a realidade do sujeito, convicção que o levou a essa aproximação
com o pensamento de Hegel, evitando o caminho predominante de uma
espécie de "degradação da psicanálise" a que conduzia a prática psica-
nalítica, que se reduzia a uma modalidade da neurobiologia ou a uma
variante da psicologia. Para passar da certeza à verdade do sujeito, apro-
xima-se do autor da Fenomenologia, que, no seu "Prefácio", tinha escrito
que «tudo depende deste ponto essencial: apreender e exprimir o Ver-
dadeiro, não como substância, mas precisamente também como euieitow".
Tratava-se, portanto, de articular a subjectividade com a verdade.

a EFP [É cole Freudienne de Paris], que, mediante um questionamento contínuo, buscaria


a genuinidade da obra freudiana, desfigurada por posições corporativas; a EFP virá
também a ser dissolvida, criando, em 1980, a ECF [É cole de la Cause Freudíenne], a fim de
recomeçar coerentemente com os seus princípios e a sua ética.
A segunda cisão ("excomunhão", como diz Lacan) do movimento psicanalítico
ocorreu no Outono de 1963. Obrigado a deslocar seu seminário, Lacan foi acolhido, graças
à intervenção de Louis Althusser, numa sala da École Normale Supérieure (ENS), na rue
d'Ulm, onde pôde prosseguir seu ensino.
Tal como no seu Seminário sobre A ética da psicanálise, onde se refere demoradamente
a Antígona, que representa o não ceder de seu desejo, também Lacan, na sua vida e obra,
lutou pelo desejo de uma psicanálise que recuperasse o sentido de Freud, ao mesmo
tempo que inovou na teoria e na prática, instaurando novos conceitos decisivos na clínica
psicanalítica e no pensamento sobre o sofrimento humano.
Lacan virá a comparar a sua "excomunhão" da IP A , em 1963, com a "Kerem" de
Espinosa (exclusão da comunidade judaica sem possibilidade de retorno), alegando que
encontrou na obra deste as bases éticas de conjunção da liberdade com o desejo.
36 J. Lacan, "L'instance de la lettre dans l'inconscient ou la raison depuis Freud",
Écrits, op. cii., pp. 493-528.
37 J. Lacan, Le Séminaire, l: Les écrits techniques de Freud (1953-1954), Paris, Seuil, 1975,
p.87.
38 G. W. F. Hegel, La Phénoménologie de l'Esprii, trad. [ean Hyppolite, tomo I, Paris.
Aubier, p. 17. Evidentemente, dada a influência e convivência de Lacan com Jean Hyppolite,
é à tradução deste que remetemos.
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História da Filosofia e Filosofia Contemporânea zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPO

Lacan continua, pois, a falar sobre o desejo do homem como' desejo


do outro", 'desejo de reconhecimento', 'luta de prestígio'v', mas delineia-
se também já alguma distância a Hegel: «Mas a descoberta freudiana foi
demonstrar que este processo verificante [a dialéctica da consciência de si]
não atinge autenticamente o sujeito senão ao descentrá-Io da consciência
de si, em cujo eixo a mantinha a reconstrução hegeliana da fenomenologia
do espírito: é dizer que ela torna ainda mais caduca toda a investigação
de "tomada de consciência", que, para além de seu fenómeno psicológico,
não se inscreveria na conjuntura do momento particular que sozinho dá
corpo ao universal e na falta do qual ele se dissipa em generalidades".
Por isso acrescenta: «Essas observações definem os limites nos quais
é impossível à nossa técnica desconhecer os momentos estruturantes da
fenomenologia hegeliana: em primeiro lugar, a dialéctica do Senhor e do
Escravo, ou a da bela alma e da lei do coração, e geralmente tudo o que
nos permite compreender como a constituição do objecto se subordina à
realização do sujeito-v.

«Trata-se de substituir a negatividade verdadeira a esse apetite de des-


truição que se apodera do desejo»

Estas aproximações com Hegel foram questionadas quer por psica-


nalistas que não viam com bons olhos esta invasão da filosofia no reduto
psicanalítico, quer por filósofos hegelianos que denunciavam a parciali-
dade de sua interpretação; a estas alude [ean Hyppolite, na conferência
que pronunciou em Bruxelas, em 1957, onde aproveita a oportunidade
para estabelecer as diferenças entre a sua leitura de Hegel e a de Kojeve".
Como recorda Roudinesco, «até 1939, a obra de Hegel só era conhecida,
por quem não soubesse alemão, pelos comentários de Kojeve, Koyré ou
Wahl; porém, em 1941, foi publicada, em dois volumes, a primeira tradu-
ção da Fenomenologia do Espírito, realizada por [ean Hyppolite, que abria
assim uma era nova da história do hegelianismo em França. E havia nesse
acontecimento uma estranha astúcia da razão. Com efeito, Hegel havia

39 J. Lacan, "Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse", op. cit.,


p.268.
40 u; p. 279.FEDCBA
41 u; p. 292.
42 lb..
43 Cf. Jean Hyppolite, "La 'phénoménologie' de Hegel et la pensée française
contemporaine", in Figures de la Pensée Philosophique, tomo 1, Paris, P.U.F., 1971, p. 235 ss.
Lacan no "Estádio do Espelho" Hegeliano I 1457zyxwvutsrqpon

terminado essa sua obra no momento em que as tropas francesas traziam


a rena um grande alento de liberdade, enquanto Hyppolite havia termi-
nado a tradução dessa mesma Fenomenologia enquanto os nazis inva-
diam a França para aí impor a ditadura e a servidãov". Ora, Hyppolite
chama a atenção para a questão da constituição do sujeito na Fenomeno-
logia do Espírito, contrapondo-a às condições em que o sujeito se constitui
no discurso freudiano: no texto de Hegel enfatiza a passagem dramática
da consciência natural à consciência de si, o que é nevrálgico para a elu-
cidação do pensamento hegeliano; na interpretação de Hyppolite, é esse
dramatismo que esclarece a constituição do sujeito, diferenciando-se, aí,
das leituras dos outros intérpretes, mais propensos a compreender a cons-
trução do sistema filosófico hegeliano.
Um "retorno a Freud" - como era o escopo lacaniano - implica o
esforço de fundamentação da psicanálise, facultando algumas condições
para o desenvolvimento de um diálogo fecundo entre a filosofia e a psica-
nálise. A filosofia de Hegel pôde funcionar como mediação fundamental
desse diálogo, que o encontro de Hyppolite com a psicanálise, através do
discurso lacaniano, propiciou; na verdade, os comentários de Hyppolite
sobre alguns conceitos freudianos influenciaram o pensamento de Lacan;
através de Hyppolite, percebemos a presença da "Fenomenologia" de
Hegel, articulando-se com algumas concepções freudianas, elucidando
assim determinados "nós" detectados por Lacan na obra de Freud, bem
como a questão da tradução de determinados termos alemães".
Assim, por volta de 1954, Lacan convida O filósofo [ean Hyppolite
ao seu seminário sobre os "escritos técnicos de Preud?", para saber o que
um hegeliano teria a dizer sobre Freud, mormente sobre Die Verneinung.
No seu comentário, Hyppolite concorda que denegação não seria a única
tradução possível do termo alemão e que, por isso, certamente tal inter-

44 Cf. E. Roudinesco, op. cii., p. 222. Ao referir-se, em 1946, à Fenomenologia do Espírito,

Lacan enfatiza logo «a Phénoménologie de l'Esprii, obra acerca da qual voltaremos mais
adiante, de que [ean Hyppolite fez em 1939 uma excelente tradução em 2 volumes» (Cf. J.
Lacan, "Propos sur la Causalité Psychique", Écrits, p. 172, nota 1). E continua: «os leitores
franceses não poderão mais ignorar esta obra desde que [ean Hyppolite a pôs ao seu
alcance, e de maneira a satisfazer os mais exigentes, na sua tese que acaba de aparecer (... ),
e quando são publica das as notas do Curso que Alexandre Kojeve lhe [Hegel] consagrou
durante cinco anos nos Altos Estudos» (Ib., nota 2).
45 O próprio Lacan recolhe nos Écrits o texto intitulado "Commentaire sur la
Verneinung de Freud par [ean Hyppolite" (Apêndice I, pp. 879-887).
46 Cf. J. Lacan, "Introduction au commentaire de [ean Hyppolite sur la 'Verneinung'

de Freud", Écrits, pp. 369-380.


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História da Filosofia e Filosofia Contemporânea zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSR

pretação mereceria ser discutida; afinal, «trata-se de substituir a negativi-


dade verdadeira a esse apetite de destruição que se apodera do desejo e
que é concebido aqui num modo profundamente mítico bem mais do que
psicológico, substituir, dizia, a esse apetite de destruição que se apodera
do sujeito e que é tal que na extrema saída da luta primordial em que os
dois combatentes se afrontam, não haverá mais ninguém para constatar a
vitória ou a derrota de um ou de outro, uma negação ideal»:". É à dialéc-
tica do Senhor e do Escravo que Hyppolite se refere, utilizando-a como
recurso para demonstrar a presença não anunciada por Freud da negação
da negação, como afirmação puramente intelectual.
Esta é a conclusão a que chega Hyppolite, no difícil desenvolvimento
desse comentário: «Eis o resumo: não se encontra na análise nenhum
"não" a partir do inconsciente, mas o reconhecimento do inconsciente do
lado do eu mostra que o eu é sempre desconhecimento; mesmo no conhe-
cimento, encontramos sempre do lado do eu, numa fórmula negativa, a
marca da possibilidade de deter o inconsciente mesmo recusando-o»:".
É interessante notar que Lacan, até teorizar o inconsciente em termos
de estrutura - com Lévi-Strauss a partir de 1953, e com Jakobson em 1957
- utilizava o discurso filosófico para valorizar o freudismo. Vai tornar-
se progressivamente notória a inflexão pelo estruturalismo, já de algum
modo presente no texto sobre o "estádio do espelho".

Hegel «tem o interesse de apresentar-nos uma mediação propícia para


situar o sujeito - a de uma relação com o saber»

Não é nossa intenção dar aqui conta das várias questões que levanta
uma confrontação da psicanálise lacaniana com a filosofia hegeliana, mas
o posicionamento de Lacan perante o Hegel da Fenomenologia do Espí-
rito, patentes na comunicação intitulada Subversão do Sujeito e Dtaléctica
do Desejo no Inconsciente Freudiano", proferida num Colóquio de Filoso-

47 "Commentaire parlé sur la Verneinung de Freud par [ean Hyppolite", in Écrits,


op. cit., p. 881.
48 lb., p. 887.

49 Cf. o texto "Subversion du sujet et dialectique du désir dans l'inconscient freudien"

[1960], in J. Lacan, Écrits, Paris, Seuil, 1966, pp. 793-827.Doravante, Subversion du sujet ...
Trata-se da comunicação que Lacan apresentou no Colóquio Filosófico Internacional
que se realizou em Royaumont (19 a 23 de Setembro de 1960), a convite de Jean Wahl,
o promotor do encontro. O tema central do Colóquio foi a Dialéctica. No Verão desse
ano, precisamente em Royaumont (10 a 13 de Julho), nas Jornadas Internacionais da FEDCBA SFP
Lacan no "Estádio do Espelho" Hegeliano I 1459zyxwvutsrqpo

fia, promovido por [ean Wahl". É o próprio Lacan, que, seis anos depois,
aquando da publicação dos Escritos, observa que a inserção da comuni-
cação de Royaumont, seguida da comunicação em Bonneval, se faz «a
fim de dar ao leitor a ideia do avanço em que sempre se manteve o nosso
ensino em relação ao que podíamos dele dar a conhecera". Com tal asser-
ção quer enfatizar que constitui, na época, o que de mais avançado havia
sobre o tema, assim como pôr em relevo um ensino que é simultanea-
mente progressivo e dinâmico.
Não estamos ante uma análise crítica da Fenomenologia do Espírito.
A asseverá-lo, aí estão as referências ao texto de Hegel, como tendo «o
interesse de apresentar-nos uma mediação propícia para situar o sujeito:
de uma relação com o saber»52;pretende-se esclarecer até que ponto a
questão do sujeito se compatibiliza com a subversão operada pela psi-
canálise. De facto, desenvolve-se no texto um diálogo tenso com Hegel,
a partir do que «o próprio Freud articula na sua doutrina, por constituir
um passo" copernicano" »53,a presentando diante dos seus ouvintes qua-
tro gráficos que parecem constituir literalmente as novas figuras do advir
do sujeito, substituindo as clássicas figuras do espírito da fenomenologia
hegeliana, em torno do desejo, da linguagem e do inconsciente".

[Sociedade Francesa de Psicanálise], Lacan «opusera a sua noção de estrutura do sujeito,


resolutamente estruturalista, à ideologia personalista desenvolvida por Lagache na sua
exposição acerca da estrutura da personalidade. Aqui, Lacan travava batalha contra a forma
francesa desta psicanálise psicologizada de que o Ego psicológico era a forma americana»
(Cf. E. Roudinesco, op. cii., p. 353). As comunicações ao colóquio de Royaumont foram
publicadas em Psychanalyse, 6, Paris, 1961. A intervenção de Lacan, redigi da na Páscoa de
1960, será retomada em Écrits (p. 647 ss.).
A essas Jornadas Internacionais seguiu-se um outro Encontro, agora em Bonneval
(29 de Outubro a 3 de Novembro desse mesmo ano), em torno do tema do Inconsciente, a
convite de Henri Ey O. Lacan, "Position de l'Inconsciente", Êcrits, p. 829 ss.),
50 A [ean Wahl cabe o mérito de ter sido um dos primeiros que introduziu em França
uma nova leitura de Hegel, com a obra La malheur de la conscience dans la philosophie de
Hegel (Rieder, 1929). A publicação causou, ao tempo, grande impacto, porque mostrava
um Hegel romântico da consciência infeliz, bem diferente do Hegel do sistema ao qual se
estava habituado. Cf. J. Hyppolite, "La "phénornenologie" de Hegel et la pensée française
conternporaine", in Figures de la pensée philosophique, t. I, Paris, P.u.F., 1971, p. 233.
51 Subversion du sujet ... , p. 793.
52 Ib., p.793.
53 Ib., p. 796.
54 Com efeito, são numerosas as referências ao autor da Fenomenologia do Espírito.
O nome de Hegel surge constantemente (pp. 793, 794, 797, 798, 799, 802 (bis), 804, 807, 810
(bis), 811, 818 e, para a sua forma adjectivada, pp.795, 802, 804, 810, somente ultrapassado
com a referência a Freud (mais de 30 vezes, sem contar as mais de dez formas adjectivadas).
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História da Filosofia e Filosofia Contemporânea zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUT

Trata-se de um texto denso, seguindo na peugada de Sócrates, mas


do ponto de vista psicanalítico", onde Lacan se esforça por repensar
a dialéctica, e não propriamente o amor; mas é do desejo que se trata
e das suas implicações com o saber, a verdade e o sujeito. Na verdade,
como dissemos, não é uma análise crítica da Fenomenologia do Espírito que
Lacan pretende; a atestá-lo estão as referências ao texto de Hegel, apenas
como «mediação cómoda para situar o sujeito numa relação com o saber»
ou como «referência totalmente didáctica» para dilucidar a questão do
sujeito e a subversão operada pela psicanálise, ou, enfim, como "serviço"
para apresentar a solução ideal da relação verdade-saber".
Todavia, numerosas são as referências ao Hegel da Fenomenologia
para que possam passar desapercebidas", No entanto, Lacan distancia-se
de Hegel, considerando que, na interpretação dele, a balança da verdade
sobre o sujeito pende agora para o lado da psicanálise. Com tal fim, Lacan
percorre várias posições sobre o desejo na sua articulação com o tema
da dialéctica e da subjectividade, mas visto numa perspectiva linguística.
Assim, alude ao «depósito das conclusões que tivemos de tomar contra os
desvios notórios em Inglaterra e na América da praxis que se autoriza o
nome de psícanalíse-=, a visão equivocada do desejo por parte de mora-
listas e teólogos, sejam «os paradoxos de sempre para o moralista, essa
marca de infinito que aí mostram os teólogos, mesmo da precariedade

Por duas vezes é citada a própria Fenomenologia do Espírito (pp. 793, 810), além de alguns
de seus termos chaves, Aufhebung (p. 795), Selbstbewusstsein (p. 798), Begierde (p. 802), saber
absoluto (pp. 798, 802), sujeito absoluto (p. 798), astúcia da razão (pp. 802, 810, 811 (bisl),
Mestre absoluto (p. 807,810 (bisl), consciência de si (p. 811), bem como a famosa passagem da
luta do Senhor e do Escravo (pp. 810-811).
55 Nas últimas páginas do texto da sua comunicação, Lacan mostra-nos o Sócrates
do Banquete na função de psicanalista que interpreta a transferência, no caso específico,
o desejo de Alcibíades, não à sua pessoa, mas ao seu verdadeiro destinatário, Ágaton.
Cf. J. Lacan, Suboersion du sujet, pp. 825-826. "É assim que ao mostrar o seu objecto como
castrado, Alcibíades se exibe como desejante, - a coisa não escapa a Sócrates =, para
um outro presente entre os assistentes, Ágaton, que Sócrates precursor da análise, e
também, seguro da sua tarefa neste belo mundo, não hesita em nomear como objecto da
transferência, propondo como interpretação o facto que muitos analistas ignoram ainda:
que o efeito amor-ódio na situação psicanalítica se encontra fora" (p. 825).
56 J. Lacan, Subversion du sujet ... FEDCBA
r pp. 793-794.
57 Como já foi acima dito, o nome de Hegel aparece inúmeras vezes, especialmente
na primeira parte da exposição, sendo apenas ultrapassado pelo de Freud. Por duas vezes
é citada a própria Fenomenologia do Espírito, bem como vários dos seus termos nucleares,
Aufhebung, Selbstbeiousstsein, Begierde, saber absoluto, sujeito absoluto, astúcia da razão, Mestre
absoluto, consciência de si, bem como a famosa passagem da luta do Senhor e do Escravo.
58 lb., p. 794.
Lacan no "Estádio do Espelho" Hegeliano I 1461zyxwvutsr

de seu estatuto, tal como ela se anuncia no último grito de sua fórmula,
lançada por Sartre: o desejo, paixão inútil»?',

Na Fenomenologia de Hegel (... ) «a verdade está em reabsorção cons-


tante no que ela tem de perturbante, não sendo nela mesma senão o que
falta à realização do saber»

Trata-se ainda, com esta comunicação e nesse Colóquio de Royau-


mont, de aproveitar a oportunidade para se explicar acerca da sua apro-
ximação a Hegel, em especial contestando a posição de psicanalistas que
se lhe referiam (a Lacan) e que se teriam equivocado ao pretenderem que
reduzia o pensamento de Hegel a um «exaustão puramente dialéctica
do ser-'". Antes, nas palavras de Lacan, visa-se «aí marcar uma solução
ideal, aquela, se o podemos dizer, de um revisionismo permanente, em
que a verdade está em reabsorção constante no que ela tem de pertur-
bante, não sendo nela mesma senão o que falta à realização do saber»?'.
Relevam, sem dúvida, as diferenças que apartam as metapsicologias
da subjectividade em apreço: a natureza da relação "certeza-verdade",
convergente em Hegel, não coincidente em Freud; a natureza e função
do desejo como um saber que garante o mínimo de continuidade entre
figuras de saber, no primeiro, mas como algo de irredutível à necessi-
dade, relacionado com o fantasma e não com objectos reais, no segundo;
a consciência infeliz como mera suspensão do saber, no autor da Fenomeno-
logia, mas como sintoma de um conflito cultural intransponível no autor
d' O mal-estar na civilização; a dialéctica do reconhecimento, situada por
Hegel no registo do imaginário e por Lacan no registo do simbólico; a
relação gozo-trabalho, isto é, a renúncia ao gozo pelo medo da morte e recu-
peração da liberdade pelo trabalho, assim como é descrita por Hegel e
como é explicada pela psicanálise, etc.
Lacan argumenta que, se para Hegel nada é exterior ao lógico e o
saber absoluto pode advir, para a psicanálise este não somente não existe,

S9 lb., p. 812.
60 Assim, afasta como improcedente a crítica que lhe foi dirigida por Jean Wahl:
«Importa dizer agora que se concebemos qual tipo de apoio buscámos em Hegel para
criticar uma degradação da psicanálise tão inepta que ela não encontra outro título
para o interesse senão a de ser hoje, é inadmissível que se nos impute ser logrado por
uma exaustão puramente dialéctica do ser, e que não poderíamos ter tal filósofo por
irresponsável quando ele autoriza esse mal entendido» FEDCBA
( ib ., p. 804).
61 n., p. 797.
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História da Filosofia e Filosofia Contemporânea zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSR

mas não pode existir como um saber que se saberia a si mesmo, pelo sim-
ples facto de que o homem é ser de desejo, mas num sentido diferente
do de Hegel: o desejo psicanalítico é algo da ordem do "ser", mas que se
encontra fora do lógico, que Lacan denomina objeto a 62• Por relação com o
sujeito, ele não deve ser mais procurado dentro de si mesmo: «um signifi-
cante é o que representa o sujeito para um outro significantev",
O aspecto dramático desta concepção é que a consciência nunca
conseguirá ultrapassar a consciência infeliz, prisioneira eterna de sua
cisão e de sua perda na alienação do Outro. Mais precisamente, a diver-
gência radical que Lacan apresenta entre a concepção hegeliana e a freu-
diana do sujeito, radica no Selbstbewusstein hegeliano: «Essa dialéctica é
convergente e vai à conjuntura definida como saber absoluto. Tal como
ela é deduzida, ela só pode ser a conjunção do simbólico com um real
do qual nada mais há a esperar. Que é isto senão um sujeito acabado
na sua identidade consigo mesmo? Ao que se lê, que esse sujeito está
já aí perfeito e que ele é a hipótese fundamental de todo esse processo.
Com efeito, ele é nomeado como sendo o seu substrato, ele se chama o
Selbstbewusstein, o ser de si consciente, todo-consciente-'". E continua:
«Oxalá fosse assim, mas a história da própria ciência, entenda-se a nossa
e desde que surgiu, se situarmos o seu primeiro nascimento nas mate-
máticas gregas, apresenta-se mais com desvios que satisfazem muito
pouco a esse imanentismo, e as teorias, que não nos deixemos enganar
sobre a questão pela reabsorção da teoria restrita na teoria generalizada,
não se ajustam de facto de modo nenhum segundo a dialéctica: tese,
antítese e síntese-'".
A esse sujeito é contraposto o que Lacan designa de «sujeito defi-
nido na sua articulação pelo sígníficantev=, «submissão do sujeito ao
signífícante-", «sujeito da enunciação-'", «sujeito do inconscientex'",
«puro sujeito do significante»?", «sujeito barrado»?', «desvanecimento

62 Para estas noções, cf. Acílio Silva Estanqueiro Rocha, Problemática do Estruturalismo,
op. cii., pp. 309-319.FEDCBA
63 Subversion du Sujet ... , p. 819.
64 Ib., p. 798.
65 Ib.
66 Ib., p. 805.
67 lb., p. 806.
68 lb., p. 800
69 lb., p. 816.
70 lb., p. 807.
71 lb., p. 821.
Lacan no "Estádio do Espelho" Hegeliano I 1463zyxwvutsrq

do sujeitov", «divisão do sujeitos". Então, «a promoção da consciência


como essencial ao sujeito na sequela histórica do cogito cartesiano, é para
nós - afirma Lacan - a acentuação enganadora da transparência do Eu
em acto às custas da opacidade do significante que o determina, e o des-
lizamento pelo qual o Bewusstsein serve para cobrir a confusão do Selbst,
vem justamente na Fenomenologia do Espírito, a demonstrar, do rigor de
Hegel, a razão do seu erro»?', É o olhar retrospectivo do filósofo que,
como o Coro na tragédia grega, pode perceber com clareza a trama da
história. Esta clareza, porém, não se encontra na consciência dos actores
envolvidos".
A reiterada insistência hegeliana sobre a "unidade" da consciência
de si, parece legitimar a leitura lacaniana. Que, em Hegel, a dialéctica
certeza-verdade seja de natureza convergente e que esta seja a hipótese
fundamental que anima a Fenomenologia do Espírito, parece-nos inques-
tionável. «Sem prejudicar à dialéctica hegeliana uma constatação de
carência, desde há muito levantada sobre a questão do elo da socie-
dade dos senhores, só queremos sublinhar aqui - diz Lacan - o que, a
partir da nossa experiência, salta aos olhos como sintomático, isto é,
como instalação no recalcamento. É propriamente o tema da Astúcia
da razão cujo erro acima designado não diminui o alcance da sedução.
O trabalho, diz-nos ele, a que se submeteu o escravo ao renunciar ao
gozo por temor da morte, será justamente a via por onde ele realizará
a liberdade. Não há logro mais manifesto politicamente, e ao mesmo
tempo psicologicamente. O gozo é fácil ao escravo e ele deixará o tra-
balho servo>".
Por outro lado, estamos então ante duas análises do desejo humano
que obedecem a propósitos muito diferentes. Na Fenomenologia do Espí-
rito, o que está em jogo é a educação ou formação do indivíduo para a
ciência". Nos seus primeiros passos nessa via, a consciência do mundo

72 Ib ., p. 824.
FEDCBA
73 p. 825.
Ib .,
74 pp. 809-810.
!b.,
75 O "para nós filósofos" que recorre ao longo da dramaturgia do texto, cujo actor
principal é a consciência, tem uma função análoga àquela exercida pelo Coro na tragédia
antiga. Ele é mais intérprete dos acontecimentos do que actor. Cf. G. Jarczyk e P.-J.
Labarriere, "Présentation", in G.W.F. Hegel, Phénoménologie de i'Esprit, Paris, Callimard,
1993,p. 2I.
76 J. Lacan, Subversion du sujet ... , pp. 810-811.
77 Não é por acaso que, na Fenomenologia do Espírito, Hegel prefere retomar o tema

do desejo não a partir do amor humano, como se dá nas obras de juventude, mas pela via
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exterior torna-se consciência de si. Um novo ciclo de figuras surgem e


descrevem a experiência que a consciência faz da certeza de sua verdade.
A primeira é a do desejo e de sua satisfação que permitem à consciência
de si experimentar tanto a incorporação e a supressão do objecto indepen-
dente, quanto o seu desaparecimento na satisfação ou no fluxo da vida;
depois, e consequentemente, a sua impossibilidade de permanecer frente
ao sujeito como mediação permanente que faz passar o sujeito da iden-
tidade abstracta do Eu puro para a identidade concreta do eu que se põe
a si mesmo na diferença do seu objecto. O sujeito humano constitui-se
somente no horizonte do mundo humano e a dialéctica do desejo deve
encontrar a sua verdade na dialéctica do reconhecimento.

De HegelFEDCBA
« fiz e m o s a mola dinâmica da captura especular»

A crítica lacaniana à concepção hegeliana da subjectividade, por sua


vez, pode e deve ser entendida dentro de um movimento mais amplo de
reacção ao idealismo alemão, cujos desdobramentos chegam até nossos
dias. Na verdade, a reacção a esta concepção de um sujeito que é substân-
cia, racionalidade plena e liberdade tomou várias direcções; as mais repre-
sentativas e expressivas dessa reacção são as dos denominados "mestres
da suspeita" - Marx, Nietzsche e Freud. O sujeito substancial, concebido
na sua unidade racional e livre vai-se esvaindo e com ele também a meta-
física da subjectividade; por outro lado, emerge um sujeito não substan-
cial, dividido, fragmentado: os liames que o ligam à verdade não foram
cortados, mas extremamente enfraquecidos a ponto de o sujeito não mais
a poder garantir. Tal como a escuta psicanalítica pode captar um sentido
oculto na linguagem dos sintomas neuróticos e dos sonhos, tanto para o
neurótico como para o sonhador o sentido do seu sofrimento e de seus
sonhos escapa-lhes num primeiro momento.
Quando Freud nos fala dos três golpes ao narcisismo humano, nada
mais está dizendo senão que o homem não é um ser de excepção dentro
do universo. O narcisismo, no fundo, sempre é uma demanda de excep-
ção para si mesmo. A hipótese do inconsciente é uma maneira de negar
essa excepção e de inscrever o humano no universo da ciência: o sujeito
não tem a 'consciência de si' como propriedade constitutiva. Esta é a con-
clusão que parece impor-se a partir de três afirmações do freudismo: o

do confronto viril de duas consciências de si. Cf. Jean Hyppolite, Genese et structure de la
Phénoménologie de l'Esprit de Hegel, Paris, Aubier, 1946, p.lS8.
Lacan no "Estádio do Espelho" Hegeliano I 1465zyxwvutsrqpon

inconsciente existe; o pensamento não lhe é estranho; o inconsciente não


é estranho ao sujeito que pensa". A esse sujeito, Lacan chama sujeito da
ciência, sujeito cartesiano, sujeito freudiano e deixa para a consciência o
nome de Eu.
É nesta perspectiva que emerge a concepção lacaniana da subjectivi-
dade, com vista a superar certas aporias a que conduziram as filosofias da
consciência e do sujeito, cuja génese remonta ao cogito cartesiano. Neste
sentido, foi mediante a linguística que de algum modo se operou de novo
a revolução copernicana do conhecimento, ao atribuir à linguagem aquela
primazia que Kant reivindicava para o sujeito. Tal inversão já é percep-
tível em Freud: o ego surge de sucessivas identificações e o sujeito pro-
priamente estrutura-se nesse jogo permanente, o que implica a renúncia
à hipótese de uma identidade originária e a busca da subjectividade para
além do indivíduo empírico, mas visto enquanto inserido no horizonte do
outro e da cultura.
Poderíamos dizer que Lacan radicaliza Freud ao pensar o tema psi-
canalítico da subjectividade inspirando-se quer na linguística de Saussure
e de Jakobson quer na antropologia de Lévi-Strauss. É verdade q\le, para-
doxalmente, não se considera um linguista; o seu aforismo FEDCBA
o inconsciente fi

está estruturado como linguagem" mostra não só que é possível estabelecer


uma articulação entre a psicanálise lacaniana e a linguística, mas também,
que, despois de Freud e de Saussure, um discurso sobre o sujeito não deve
mais ser pensado a partir de uma subjectividade transcendental, mas de
uma compreensão estrutural da linguagem, como o novo tipo de trans-
cendental e como a condição intransponível para o sujeito poder articu-
lar um discurso verdadeiro sobre si mesmo. A figura do sujeito absoluto
autónomo, como princípio e 'causa sui', cede lugar, com Lacan, à figura
do sujeito como heterónomo e efeito de linguagem.
Mais do que um discurso sobre a sexualidade e dos caminhos do
desejo em busca de objectos perdidos, a sua indagação é fundamental-
mente antropológica, como observa Lacan referindo-se ao tema hegeliano
da dialéctica do Senhor e do Escravo «dessa servidão inaugural dos cami-
nhos da liberdade, sem dúvida mais mito que génese efectiva, podemos
aqui mostrar o que ela esconde precisamente por a ter revelado como
nunca antes»?". Por outro lado, a dialéctica caracteriza a estrutura lógica
do diálogo peculiar que pode levar ao reconhecimento do desejo. Na ver-

78 Sobre a concepção lacaniana de "inconsciente", cf. o nosso trabalho Problemática


do Estruturalismo, op. cii., pp. 304-319.
79 J. Lacan, Subversion d u sujet ... , p. 810.
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dade, se quiséssemos condensar em duas palavras o que marca a vida e a


obra de Lacan, poderiam muito bem ser Begierde e Negatioitãt; afinal, duas
ideias-chave de Hegel, «do qual - como afirma Lacan - fizemos a mola
dinâmica da captura especular--".

80 Ib.

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