4174-Texto Do Artigo-9033-2-10-20200501 PDF
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Wilson Coêlho1
https://orcid.org/0000-0003-4756-5714
RESUMO
O objetivo deste artigo é discutir o lugar ou os lugares da palavra na obra de Antonin Artaud, tanto no
teatro onde propõe novas maneiras de usá-la, desde a sonoridade até os espaços do silêncio, quanto na
literatura que, de alguma forma quebra as fronteiras entre os gêneros conto, romance, poesia, cartas e
outros, dando ênfase à poiesis, à criação como a verdadeira pulsão do espírito. Nesse sentido, trata-se
de uma abordagem de Artaud, no que diz respeito à palavra, tendo por base o poema Ci-Gît (Aqui Jaz),
que se insurge a partir de três formas de linguagem, a saber: o francês normativo, a gíria e as emissões
glossolálicas.
PALAVRAS CHAVES: Palavra; Linguagem; Teatro; Literatura; Arte.
ABSTRACT
The aim of this paper is to discuss the place or places of the word in Antonin Artaud's work, both in theater where he
proposes new ways to use it, from sound to spaces of silence, and in literature that, in some way, breaks the boundaries
between genres: tale, romance, poetry, letters and others, emphasizing poiesis, creation as the true drive of the spirit. In this
sense, it is an approach of Artaud with respect to words, based on the poem Ci-Gît (Here Lies), that rises from three
forms of language, namely: normative French, slang and glossolalist emissions.
KEY WORDS: Word; Language; Theatre; Literature; Art.
1 Wilson Coêlho é Doutor em Literatura Comparada pela UFF, além de poeta, tradutor, palestrante,
encenador, dramaturgo e escritor com 20 livros publicados, bem como licenciado e bacharel em
Filosofia, Mestre em Estudos Literários pela UFES e Auditor Real do Collège de Pataphysique de Paris.
Como professor universitário lecionou disciplinas de filosofia, ética, ciência política, artes e lógica.
Assina a direção de 24 espetáculos montados pelo Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em
festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba,
ministrando também palestras e oficinas. E-mail: [email protected] .
Afora seus poemas nos tempos em que era ainda um colegial em Marselha,
possuindo uma boa cultura poética e particular admiração por Edgar Allan Poe, em
certo sentido, e apesar do volume de suas obras editadas pela Gallimard e reconhecida
por um razoável público-leitor, a porta de entrada de Antonin Artaud no mundo da
literatura dá-se imediatamente pela censura. Tudo começou quando – em 1º de maio
de 1923 – enviou um conjunto de poemas para serem publicados na Nouvelle Revue
Française, a publicação literária periódica mais importante da França. Jacques Rivière,
então diretor da revista, agradecendo o envio dos poemas e justificando a recusa em
sua publicação, escreve a Artaud: “Senhor, sinto muito não poder publicar seus
poemas na Nouvelle Revue Française”. Na verdade, a crítica de Jacques Rivière demonstra
a mentalidade dominante da época nos meios literários, bem como uma certa
resistência ao modo de escrever dos surrealistas, embora havemos de convir que, nesta
fase, Artaud realmente tem uns poemas sofríveis, principalmente, os incluídos no Tric-
trac du ciel2.
Mas, graças ao próprio Jacques Rivière é que Artaud vai ter uma oportunidade
de expor, de maneira mais convincente, os processos que dão origem à sua escrita, na
famosa carta em que ele responde ao poeta dizendo que seus poemas “me provocaram
2 Conforme Gérard Duruzoi, em Artaud, l’aliénation et la folie (1975, p. 58), nos textos deste poeta,
publicados antes da Correspondance avec JacquesRivière, tanto no prefácio de Maeterlink (ARTAUD, OC,
I, p.244) quanto no Tric-trac du ciel (ARTAUD, OC, I, p.251), há uma certa preocupação em demonstrar
que havia lido muito e que podia “escrever bem”, assim como ser capaz de tentar certas imagens
“originais”, como acontece com o prefácio de doutor Edouard Toulouse, em Au fil des préjugés
(ARTAUD, OC, I, p.242).
3 Sur un poète mort, transcrito por Gérard Durozoi, em Artaud, l’aliénation et la folie (1975, p. 57), tradução
de Wilson Coêlho.
grande interesse em conhecer o seu autor”. (ARTAUD, OC, I, p.23). A partir desse
momento, se inaugura uma interessante e proveitosa correspondência entre o autor e
o editor. E, nesse “confronto”, na questão da linguagem como uma luta pela
autoexpressão, surge um paradoxo, ou seja, é justamente no gesto de declarar-se
incapaz de exprimir seu pensamento que Artaud desenvolve com “brilho e lucidez” o
pensamento sobre a incapacidade, ou melhor, o impoder de pensar.
A importância dessa Correspondência com Jacques Rivière, que durou mais de um ano,
é tão relevante e reveladora que o editor acaba por se convencer de que os poemas
devem ser publicados e, para tanto, faz uma proposta a Artaud. Mas, conforme
proposta de Jacques Rivière, a publicação dos poemas de Artaud deveria vir
acompanhada da correspondência entre os dois, considerando que – apesar de seus
poemas serem “vagos” e sem “forma” – suas cartas refletiam sobre o pensamento com
uma profunda e “extraordinária precisão”.
Sofro de uma terrível doença do espírito. Meu pensamento foge-me de todas as maneiras
possíveis, do simples fato do pensamento em si mesmo ao fato externo de sua
materialização em palavras. As palavras, a conformação das frases, o fio interior dos
pensamentos, as simples reações da mente – estou sempre em busca de meu ser intelectual.
Quando, por isso, ocorre apoderar-me de uma forma, embora imperfeita, anoto-a, receoso
de vir a perder toda a ideia. Estou abaixo de meu próprio nível, bem o sei, sofro com
isso, mas prefiro submeter-me a morrer de vez. (ARTAUD, OC, I, p.30)
Aqueles para quem certas palavras têm um sentido, e certas maneiras de ser, aqueles
que mantêm tão bem os modos afetados, aqueles para quem os sentimentos têm classes
e que discutem sobre um grau qualquer de suas hilariantes classificações, aqueles que
creem ainda em ‘termos’, aqueles que remoem ideologias que ganham espaço na época,
aqueles cujas mulheres falam tão bem e também e que falam das correntes da época,
aqueles que creem ainda numa orientação do espírito, aqueles que seguem caminhos, que
agitam nomes, que fazem bradar as páginas dos livros, – são os piores porcos.
(ARTAUD, 1991, p. 64)
Porque a poesia deve ser entendida também como uma espécie de cosmogonia,
levando em conta que, para Artaud, a ação poética não passa de uma repetição do ato
mítico da criação, onde o jogo de forças, utilizado nos processos mentais de escrever,
traz à tona os elementos que são presentes na origem do cosmos, onde o poeta queima
a si mesmo (crueldade), por intermédio das formas que emergem das palavras como
expressões temporárias e que – mesmo através de palavras, aceitas como tal – criam
espaços exteriores à palavra. Mas essa cosmogonia de Artaud trata-se, também, de
colocar o homem como um ‘microcosmo’, capaz de trazer em si mesmo os processos
de criação e destruição do universo. Daí é que se possibilita a instauração de uma outra
linguagem que é mais eficiente e originária. A linguagem que se estabelece para aquilo
que está na base de toda poesia que se dá como uma espécie de imponderável ruído da
criação, onde – através das imagens transportadas pelos nervos – a carne se faz verbo.
Mas nesta carne que se faz verbo, desenvolve-se a linguagem do corpo que não apenas
ocupa um vazio, mas trata-se de um não-lugar que se faz espaço, uma poética da carne
que se movimenta como numa espécie de thanatographie.
O reche modo
to edire
di za
tan dari
do padera coco
(ARTAUD, 1974, p. 84, grifo do autor).
4 Cabe observar que Artaud faz questão que deus seja escrito com letra minúscula.
polícias do pensamento. Revolto-me, logo existo, como Camus, em L’homme revolté, “je
me révolte, donc nous sommes”5.
Martin Esslin, em Artaud, ao comentar a afirmação do poeta de que “Se faz frio,
ainda sou capaz de dizer que faz frio, mas pode acontecer também que seja incapaz de
dizê-lo...”, conclui que as três palavras
6 No verso de Artaud, está escrito: “latrines de la morte osseuse”. A palavra “osseuse” poderia ser
traduzida como “ossosa”, mas preferi “ossuda”, por entender que é mais coerente com a linguagem
do poeta.
7 Aqui há um jogo de palavras que a tradução prejudica, ou seja, Artaud usa no verso anterior a expressão
vie mère (vida mãe) e, em contraposição, nesse verso ele escreve vipère (víbora) que, apesar da escrita
diferente, tem o mesmo som de vie père (vida pai).
É escusado ratificar que o grito, para Artaud, provém da “finura das medulas”,
o cerne da carne que se faz verbo, a carne geradora de pensamento. Os caminhos do
pensamento refeitos a partir das vibrações de sua língua como uma apropriação secreta
e profunda da dor de existir. Não se trata de um intelecto centralizado no cérebro, mas
de uma mente que habita o que é a própria carne. Uma espécie de aproximação de
Schopenhauer em “As dores do mundo” e, também, em “O mundo como vontade e
representação”, quando afirma que o mundo é vontade, e que o intelecto, entendido
como a consciência, serve apenas para reprimir ou justificar essa vontade que está na
carne.
criador que faz com que o ser se revele a partir do homem, nas passagens do ser ao
não-ser e, enfim, ao devir, como uma possibilidade do homem recriado do osso, da
sua própria estrutura. Assim se revela o verdadeiro espírito Artaudiano, onde a poesia
se dá na peleja entre a linguagem e seus formatos, nas vibrações sonoras, um abismo
aberto entre o homem e seus duplos.
Mas, pelo outro lado, também vale observar que o poeta não pode ser visto
como um partidário do descritivismo, considerando que a poética artaudiana, por mais
que se queira afirmar pelo despedaçamento, não renuncia a um certo rigor. Porque
para se chegar ao “corpo sem órgãos”, é necessário o rigor do ritual. Mas pode-se
compreender que, em Artaud, a ideia de ritual significa não apenas colocar este
descritivismo-categoria em xeque, considerando que a mesma também se trata de uma
representação, mas ainda conforme o poeta, a vida é a origem da impossibilidade de
representar o não-representável.
Por mais que o ritual proposto por Artaud se pareça solto e descomprometido
com um determinado fim aparente, ele (o rito) tem sua ordem interna e, mesmo no
transe, trata-se de um conjunto de atos e práticas. Ao preço de “perder” a literatura,
Artaud assume a vida como possibilidade criadora. Mas Artaud sabe, enfim, que
pretende também a literatura como um “corpo sem órgãos”, postura da qual muitos
se referem quase como uma obsessão recorrente em toda sua obra. Os órgãos são o
que estraga, o que perverte a noção de homem, porque eles vão na direção da ideia de
unidade, mas essa unidade está impregnada do pensamento europeu cristianizado e
Onde outros propõem obras eu não pretendo senão mostrar o meu espírito. A vida é
queimar perguntas. Não concebo uma obra isolada da vida. Não amo a criação isolada.
Também não concebo o espírito isolado de si mesmo. Cada uma das minhas obras, cada
um dos planos de mim próprio, cada uma das florações glaciares da minha alma interior
goteja sobre mim.
(...)
É preciso acabar com o Espírito, tal como com a literatura. Afirmo que o Espírito e a
vida comunicam em todos os níveis. Gostaria de fazer um Livro que perturbasse os
homens, que fosse como uma porta aberta e os conduzisse onde nunca teriam consentido
ir, uma porta simplesmente conectada com a realidade. (ARTAUD, 1991, p.13-14)
Eu deveria ter especificado o uso muito particular que faço dessa palavra e dizer que a
utilizo não num sentido episódico, acessório, por gosto sádico e perversão do espírito, por
amor dos sentimentos estranhos e das atitudes malsãs, portanto não num sentido
circunstancial, não se trata de modo algum da crueldade-vício, da crueldade efervescência
de apetites perversos e que se expressam através de gestos sangrentos, como excrescências
doentias numa carne já contaminada; mas, pelo contrário, de um sentimento distanciado
e puro, um verdadeiro movimento do espírito, calcado sobre o gesto da própria vida e na
ideia de que a vida, metafisicamente falando e pelo fato de admitir a extensão, a
espessura, a condensação e a matéria, admite, por consequência, o mal e tudo que é
inerente ao mal, ao espaço, à extensão e à matéria. (ARTAUD, OC, IV, p. 110)
pirâmide hierárquica quanto a parede que separa o lado de dentro do lado de fora,
derrubar a fronteira que quer apartar a arte do espírito. Assim, o poeta utiliza diversos
recursos, desde o despedaçar do silêncio até o rompimento com os padrões
estabelecidos, passando pela glossolalia, os recursos onomatopaicos, a espacialização
do texto na página, a instituição de tipografias, os brancos e espaçamentos
inadvertidos, as rasuras no léxico francês e, é claro, as explosões.
O corpo é uma multidão excitada, uma espécie de caixa de fundo falso que nunca mais
acaba de revelar o que tem dentro. E tem dentro toda a realidade. Querendo isto dizer
que cada indivíduo existente é tão grande como a imensidão inteira, e pode ver-se na
imensidão inteira9.
9 Última aparição de Artaud numa conferência, intitulada “Tête-à-Tête” (apud QUILICI, 2004, p. 195).
sintaxe até o limite onde ela não possa mais ser um divisor de águas entre o pensamento
e o não-pensamento, entre a linguagem e o silêncio, entre a escrita e o desenho, e entre
a música e o grito. Significa afirmar que, na escrita, para Artaud, há que se estabelecer
uma espécie de suspensão, próxima à da fenomenologia, no que diz respeito à
formação da consciência. Mas aqui trata-se de suspender a forma gramatical que é
quase sempre colocada anterior e como uma espécie de fôrma para o pensamento
congelado. Equivale à ideia de que, conforme o discurso Artaudiano, a sintaxe não
dever ser considerada como um a priori para aquilo que se quer dizer. Há uma recusa
em se sujeitar o pensamento à sintaxe, considerando a escrita como o sopro do espírito
ou, como ele mesmo diz em “O Pesa-nervos”, “esses estados que nunca são nomeados, essas
situações iminentes da alma, ah, esses intervalos do espírito” (ARTAUD, 1995, p. 60).
fazem transcender ao seu mero nascimento, não se pode negar que o emprego da
glossolalia não tenha, em Artaud, algumas chispas de sua vida pregressa: uma infância
onde transitava entre as intensas mestiçagens de povos gregos, turcos, italianos e
franceses, destacadamente, o grego falado cotidianamente pela avó Mariette Nalpas11,
bem como resquícios de sua estada, numa grande e considerável parte de sua vida, em
diversos manicômios, tratado como uma pessoa supostamente com problemas
mentais, com outras pessoas também portadoras de problemas mentais. A partir daí, a
glossolalia Artaudiana é compreendida por muitos de seus críticos quase como um
esperanto, ou seja, a possibilidade de uma língua, como fusão de diversas línguas, ser
entendida em qualquer lugar.
Mas reduzir a esses termos a glossolalia Artaudiana é cair numa armadilha muito
frágil e se tornar presa de psicologismos e sociologismos baratos. Nessa direção, para
justificar os delírios” e movimentos da glossolalia, seria até mesmo possível que algum
crítico ou biógrafo aventureiro lhe atribuísse, devido ao contato com o turco, uma
herança sufista dos Dervixes, cuja dança, de rodopios embriagantes, procurava colocar
os iniciados em harmonia com o movimento dos astros, induzindo-os, dessa forma, a
um estado de êxtase místico. Pelo lado grego, ainda poderia ser-lhe agregado à
influência de Dioniso, conhecido como o deus do vinho e da embriaguez, o deus
estrangeiro esquartejado (despedaçado) pelos Titãs. Mas tudo isso pode não passar de
conjecturas que procuram o significado de uma coisa fora dela, pois, em Artaud, a
glossolalia12 não se resume a um mero fenômeno histórico e/ou sobrenatural em que
o poeta é capaz de falar diversas línguas ou línguas desconhecidas e, tampouco, trata-
se da produção de uma linguagem inventada com vocabulários e sintaxes fixos. Na
glossolalia artaudiana, os significados das palavras são flutuantes e significam no
momento mesmo e em cada vez que se realizam com eficácia, quando o texto se realiza
materialmente na relação entre o corpo de seu intérprete com a carne do auditor.
Novamente, aqui a ideia de que a pá lavra e que, muitas das vezes, ao ato de lavrar, se
torna uma pá lava, a língua do vulcão, a língua de fogo, como o Espírito Santo dos
cristãos (pentencostes), a fala-língua de várias línguas. Da glossolalia às
‘glossolalínguas’.
... cria o efeito de um mantra, essa sílaba, palavra ou verso que se repete indefinidamente,
gerando um canto, um rito sonoro que alcança uma música mágica e encantatória que
está fora da impostura do signo. Mais uma vez, o poeta enlaça, num único evento, voz
e escrita, corpo e letra (FLORENTINO, 2005, s/p)
Faz-se importante frisar que, além de sua contribuição para uma epistème menos
ligada aos cânones no combate aos princípios racionalistas das chamadas obras-primas,
Artaud, a partir de seus escritos em forma de cartas, desenvolve um modo mais
ensaístico para a criação poética, a discussão científica e a elaboração literária, como
uma espécie de nova lógica que não tem necessariamente que obedecer às leis da
racionalidade moral, mas que se funda e se apresenta justamente como a possibilidade
do olho em estado selvagem, o olhar desnudo dos conceitos...
Admitindo que, em Artaud, a carne se faz verbo e, ainda, que ele escreve com
todo o corpo, faz-se necessário compreender sua luta pela descolonização desse corpo.
E essa descolonização se dá como vontade de despedaçar os organismos que têm
servido de enquadramento para o corpo. Trata-se de um movimento para que o poeta
possa criar espaços para a vida, considerando que, para Artaud, o organismo aqui não
representa a estrutura biológica, mas implica numa operação social sobre o corpo que,
até então, o tem tornado funcional e dócil e, até mesmo, conforme o pintor e poeta
francês Gilbert Chaudanne, um “corpo-curtição”, contra os fenômenos profundos do
corpo.
No ambiente do culto ao corpo são e belo que estamos vivendo atualmente, a proposta
de Artaud de passar de novo na mesa de cirurgia para reconstruir seu corpo que saiu
errado das mãos do Criador, opõe-se radicalmente ao narcisismo da saúde corporal;
porque, para Artaud, este corpo tão falado não é o corpo curtição, não é o cadinho de
chispas dionisíacas, não é o lugar geométrico do prazer sempre recriado.
(...) Artaud gesticula na fogueira de seus ossos flamejantes e cria um espaço ossificado
onde o Gólgotha e a hierarquia celeste desmoronam na singularidade de Artaud-le-
Momo (Artaud-o-pirado), do homem que não foi filho do homem, do homem que não
foi filho de Deus, de um dos poucos homens que foi filho de si mesmo, e filho da
cristalização tão procurada no meio da carne relaxada. (CHAUDANNE, 1989)
Ainda no que diz respeito à relação de Artaud com o corpo, neste estágio, depois
de ter passado pela definição do que para ele significa a palavra, bem como “Entre a
escrita e a fala (corpo sem órgãos), “Não à sintaxe como um a priori (corpo sem carne
ou retorno ao osso)” e, finalmente, “Negação de estilo e gênero (a carne nasce do
osso)”. Neste percurso se completa a dicotomia destruição/construção. É dizer que,
para compreender Artaud nesta trilogia, convém uma análise mais atenta ao que afirma
Paule Thévenin sobre Le retour d’Artaud le Momo. Para essa atriz e grande amiga do
poeta, tendo inclusive participado das gravações de Pour en finir avec le jugement de dieu,
juntamente com Antonin Artaud, Maria Casarés e Roger Blin, Le retour d’Artaud le
Momo é como um poema concreto que possui órgãos e que deve ser compreendido,
ao mesmo tempo, tanto numa leitura horizontal quanto vertical. De acordo com
Gérard Durozoi (1975, p. 219), este poema
[...] tem uma língua e gengivas, um nariz e orelhas, um ventre e um ânus, um pênis e
testículos, uma vagina e um útero; enfim, ossos, joelhos e uma forte mão, indicando
assim até que ponto o poema é (re) constituição voluntária do próprio corpo, é dizer, um
corpo no qual os órgãos já não são alienantes, mas que estão, pelo contrário, reinscritos
como convém, ‘um corpo apertado e sem encetadura’. Daí o recurso de Artaud, sobretudo
nos textos escritos depois de Rodez, não as palavras compostas ou levadas ao seu sentido
etimológico, senão construídas agora por fonemas (no sentido linguístico estrito: unidades
de articulação sem significação).
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