A Arquitetura Do Silêncio - Aguinaldo J. Gonà Alves
A Arquitetura Do Silêncio - Aguinaldo J. Gonà Alves
A Arquitetura Do Silêncio - Aguinaldo J. Gonà Alves
drummond
lcio costa
srgio buarque
D
A arquitetura
do silncio
AGUINALDO JOS
GONALVES poeta e
professor de Teoria
Literria e de Literatura
Comparada da Unesp
campus de So Jos do Rio
Preto e autor de, entre
outros, Transio e
Permanncia. Mir/Joo
Cabral: da Tela ao Texto
(Iluminuras) e Vermelho
(Ateli Editorial).
do signo com malhas de algodo cru e que a textura de suas camadas se torne rota e adversa horizontalidade cristalina dos riachos
de guas rasas. Digo rastros para no ousar compor este texto com
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poesia aquela linha da verdade da qual tenho medo mas ao mesmo tempo tenho
fome: em verdade temos medo/ nascemos escuro. Leio a poesia de Drummond
ou de alguns outros poetas da modernidade como poeta que tambm sou, que rumoreja ou vasculha nas malhas da grande
poesia as fibras das palhas de si mesmo,
como forma de resduo da alma e da forma
que possa vislumbrar na imagem o delineio do silncio.
So inmeros os poemas e as crnicas
de Carlos Drummond de Andrade que trazem como tema o urbanismo, o espao arquitetnico, a cidade. Entretanto, no
dessa forma referencial de arquitetura que
gostaria de falar. Ao me voltar para essa
poesia, meus olhos procuram, automaticamente, uma direo centrpeta, um movimento para dentro, do lado de dentro da
imagem, renunciando o institudo e buscando o inusitado. A arquitetura da poesia
de Drummond est no discurso que se eleva da planta baixa de seu construto inventivo, levando-nos a vagar por entre os
intervalos entre o som e o sentido, nesse
hiato imagtico to bem elaborado por Paul
Valry. Entre esse alquimista do esprito
e o arquiteto do silncio existe uma irmandade potica que reside na tnue geometria do esprito que consegue reunir,
congregar os elementos das sensaes e do
pensamento de modo a encontrar a harmonia necessria para realizao do pensamento por imagem. Nesse sentido de concepo potica, jamais li na obra de Drummond um poema que no fosse resultado
de um procedimento arquitetnico. Jamais
li poemas casustas, espontanestas resultantes de paixes inusitadas, ao contrrio,
em suas imagens tais posturas so negadas:
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de
dor no escuro/ so indiferentes./ Nem me
reveles teus sentimentos, / O que pensas e
sentes, isso ainda no poesia. Sua obra
consiste em poesia e em lio de poesia. Os
versos citados pertencem a um de seus mais
conhecidos poemas, Procura da Poesia,
do livro Rosa do Povo, poema de cinqenta
e oito versos, em que os trs primeiros assim se expressam: No faas versos sobre
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vros na Ilha. Foi entre assustado, comovido e agradecido, que li destacado de toda a
literatura universal, a passagem:
Um trecho de la Recherche du Tempus
Perdu, sobre o sono de Albertina, por exemplo, concentra para os leitores avisados toda
a melodia proustiana, esparsa em dezesseis
desesperadores volumes, que, se levados
para a ilha hipottica, apenas deixariam
quatro lugares vagos.
Drummond acaba de me dar o maior
prmio. A passagem a que ele aludia encontrava-se no volume A Prisioneira da
obra maior de Proust, como parte de um
captulo denominado O Sono de
Albertina, em que, sem dvida, concentra
toda a melodia proustiana. Pelo seu grau de
intensidade e de poesia, respeitei os dizeres de Drummond e elegi o texto para nele
apresentar e demonstrar os sete nveis metafricos no discurso do autor francs. Isso
tudo revela a argcia crtica desse escritor
de excelncia, tanto narrador de crnicas
quanto criador de poemas.
Essa crnica ainda me impressiona, por
alguma coisa que nela se manifesta no tom
encadeado ao longo das frases. Logo no
segundo pargrafo, assim se manifesta o
narrador: No fundo da pergunta, porm,
fcil descobrir logo outra preocupao alm
dessa, declarada, de apurar as preferncias
populares em matria de gneros e autores.
O prprio cronista explicita as intenes mais
verdadeiras do texto: refletir sobre literatura
considerando os gneros e autores de sua
preferncia. Nesse sentido, Vinte Livros
na Ilha se torna um texto anfbio entre
crtica e inveno. se vale do gnero crnica
para visitar o campo da crtica literria. Na
verdade, no se trata de uma visitao crtica, mas sim a prpria realizao da verdadeira crtica no espao interno da moldura
do discurso literrio. Comunhando com o
pensamento de Barthes, o papel da crtica
no revelar verdades mas sim apontar
validades. Mas ainda isso se acentua quando se trata da crtica gerada no interior das
obras, das clssicas claro, para dizer com
Valry. Ao compreendermos assim a gran-
de literatura, sobretudo aquela que se iniciou no incio do sculo XIX com criadores-crticos como Edgar A. Poe e Samuel T.
Coleredgee, assumiu seus ares semiticos e
intersemiticos com Charles Baudelaire nos
meados do referido sculo, eclodindo nas
prismticas constelaes do signo estilhaado em semi-smbolos, em que os versos se
apontam ou corporificam como gesto de
saber e de rebeldia (Rimbaud e Mallarm),
ao compreendermos por dentro essa literatura, vivenci-la no mais com um sentimento de contemplao mas de decifrao
do indecifrvel, ento, estamos nos aproximando da poesia de Carlos Drummond de
Andrade. Das vozes que ecoaram em seus
ouvidos raras foram aquelas que se insurgiram como eco ou como rudo nas finas linhas de seus versos: No cantarei amores
que no tenho,/ e, quando tive, nunca celebrei./ No cantarei o riso que no rira/ e que,
se risse, ofertaria a pobres./ Minha matria
o nada. Quase sempre, como expressam
estes versos de Nudez, da espacialidade
vazia do mito que emana a realidade da linguagem potica. Leitor dos clssicos, dos
neoclssicos, dos romnticos e dos realistas, leu literatura, no declarando sua preferncia por um ou por outro gnero. Alis, se
tomarmos de um bisturi e perscrutarmos as
artrias das leituras de Drummond teremos
algumas surpresas. Dentre elas, algumas
ausncias para ns significativas e algumas
constataes tais como os prosadores aparecem em nmero superior ao dos poetas.
Dentre os estrangeiros modernos destacados, por exemplo, esto James Joyce, Franz
Kafka, William Faulkner, Paul Valry e,
como diz o poeta, o prprio Andr Gide.
Valry foi o nico poeta includo. Mais ainda nos chama a ateno o fato de Machado
de Assis (destacado pela sua narratividade)
ter sido o nico escritor brasileiro includo
no cnone particular de Drummond.
Considerando esse fenmeno seletivo
do poeta, deve-se observar que os escritores nomeados em sua crnica possuem, cada
um a seu modo, um estilo singular. Cada
um representa pea fundamental no quadro paradigmtico da literatura moderna
ocidental. O leitor mais avisado de poesia
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PORO
Um inseto cava
Cava sem alarme
Perfurando a terra
Sem achar escape.
Que fazer, exausto,
Em pas bloqueado,
Enlace de noite
Raiz e minrio?
Eis que o labirinto
(oh razo, mistrio)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orqudea forma-se.
As inmeras leituras j realizadas sobre
este poema, nele revelando verdadeiros esconderijos anagramticos e corredores de sentidos resguardados como nichos em catedrais
gticas com reentrncias que se nos apresentam repentinas; essas significncias geradas
nas relaes suscitadas pelos componentes de
linguagem do poema, esta realidade denominada poesia, que Martin Heidegger compreende como fonte da verdade, tudo isso e mais
construdo tendo como ponto de partida a
conscincia semitica da palavra. Somente por
esta conscincia possvel fazer emergir o prprio espao da arte. Diz Heidegger em Arte e
Poesia: A prpria linguagem poesia em sentido essencial. Diramos ns que falta extrair
dela aquilo que no poesia. E nesse caminho,
o poema poro parece realizar, no seu prprio corpo, um exerccio de profundo
descarnamento da linguagem em busca do
essencial. Esse soneto composto com versos
em redondilha menor, parecendo trazer no
seu corpo o universo inteiro e um pouco mais
escondido nas malhas do mistrio, consegue
se conter na forma de uma orqudea. A arquitetura do poema implosiva, desrealizadora,
desconstrutiva. Realiza-se por meio dos cacos da experincia combinados aos ajustes
do experimento. E nesse sentido, como tentamos discutir, se apresenta incontestvel a
obra de Carlos Drummond de Andrade.