Gestação de Substituição

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GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO:

NATUREZA DO CONTRATO, REGIME JURÍDICO E


CONSEQU ÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS

DIREITO CONSTITUCIONAL II

Profª Dra. Vera Lúcia Raposo

FEVEREIRO DE 2022

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

MESTRADO EM DIREITO

AUTORIA DE: GHYOVANA CARVALHO (2016230129)


ÍNDICE
INTRODUÇÃO………………………………………………………………………………......3

1. NATUREZA E ADMISSIBILIDADE DO CONTRATO DE GESTAÇÃO DE


SUBSTITUIÇÃO.....…...........................................................................................……..........4
2. REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO E
INSUFICIÊNCIAS……………........…….......…………………………………….......….....8
a. Questão da Legitimidade Contratual restrita e excecional ..................................................8
b. Requisitos gerais de admissibilidade e Direito ao Arrependimento ..................................12
c. Instrumentalização da gestante e coisificação da criança? ................................................18
3. CONSEQUENCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS ……………………………………..........23
a. O chamado “Turismo Reprodutivo” ……........………......................................................23
b. A comercialização da reprodução? Questão da onerosidade ou gratuitidade do contrato e
da dignidade da pessoa humana.........................................................................................25
4. CONCLUSÃO........................................................................................................................27

BIBLIOGRAFIA .........................................................................................................................29

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INTRODUÇÃO
A gestação de substituição, vulgarmente conhecida como “barriga de aluguer”, “maternidade
de substituição”, entre outras, deve ser atualmente uma das mais polémicas técnicas de Procriação
Medicamente Assistida (PMA) em Portugal e no mundo. A Lei n.º 25/2016, que procedeu à alteração
da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, veio a consagrar o que até agosto de 2016 era completamente
proibido pelo nosso direito: os contratos de gestação por substituição. As mais recentes alterações da
Lei da Procriação Medicamente Assistida (doravante LPMA) foram introduzidas em novembro e
dezembro de 2021, através da Lei n.º 72/2021 e da Lei n.º 90/2021.

Atualmente, a gestação de substituição é definida pela lei como “qualquer situação em que a
mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o
parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade.”1

Todavia, o ato de gerar filhos por e para outrem é algo que ultrapassa apenas as técnicas
atuais de PMA e que encontra raízes muito mais antigas, sendo fácil encontrar resquícios desta ao
longo da história e, até mesmo na Bíblia2. A verdade é que com o evoluir dos tempos, a questão só se
mostra cada vez mais complexa não só de um ponto de vista jurídico, mas principalmente de uma
perspetiva ética e moral, apresentando-se como um mundo completamente diferente daquele pintado
pela Bíblia. Desde os direitos de autodeterminação da gestante (e talvez mais importante – aos seus
deveres!), aos direitos do casal (ou pessoa singular) que fornecem os seus gâmetas contratualmente
em troca de uma criança, até ao próprio bebé (que pode dizer-se ser puramente objeto do contrato?),
há várias vertentes a considerar e que certamente não terão resposta fácil.

Nas palavras quase humorísticas de GUILHERME DE OLIVEIRA, “os bebés são tão
pretendidos que, quando não se podem fazer, até se encomendam”3, podemos levantar outra questão
fulcral no seio da gestação de substituição: estaremos a comercializar a reprodução? Ou antes, o
produto de transação é a criança? Na prática e do ponto de vista legal, quem serão os casais que
poderão usufruir deste negócio? E quem serão as gestantes preferidas?

Compreende-se que este tópico é extremamente relevante nos dias que correm, em que cada
vez mais nos apercebemos que vivemos num mundo plural e em que o direito de constituir família,

1
Cfr. Art.º 8.º n.º 1 da Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto.
2
No capítulo 30 do livro de Génesis encontramos a história de Jacob e Raquel, que por ser infértil não conseguia ter
filhos próprios, o que a leva a dar a sua serva ao marido para que estes gerem o seu herdeiro – uma espécie de “adultério
consentido”.
3
Cfr. OLIVEIRA, Guilherme Freire Falcão de (1992) – Mãe há só (uma) duas! O contrato de gestação, Coimbra
Editora, cit. p. 8.

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consagrado no art.º n.º 36 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), deve ser
plenamente assegurado a todas e todos4; mas a que preço? É esta a questão que guiará este trabalho e
à qual pretendemos dar uma resposta digna (ainda que breve pela natureza do próprio trabalho), não
só através da análise da legislação disponível neste âmbito, mas também com o recurso a doutrinas e
dados relevantes.

1. NATUREZA E ADMISSIBILIDADE DO CONTRATO DE


GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO
Para compreendermos a natureza, regime e admissibilidade complexa do contrato de gestação de
substituição, é importante que saibamos as diversas definições que os mais variados autores lhe
acometem.

Segundo GUILHERME DE OLIVEIRA, a gestação de substituição consubstancia-se num


“contrato pelo qual uma mulher aceita gerar um filho, fazê-lo nascer, e se compromete a entregá-lo
a outra mulher, renunciando em favor desta a todos os direitos sobre a criança, renunciando à
própria qualificação jurídica de «mãe».”5.

No seguimento da mesma linha lógica, VERA LÚCIA RAPOSO, apresenta a seguinte definição:
“acordo mediante o qual uma mulher se compromete a gerar um filho, dá-lo à luz, e posteriormente
entregá-lo a outra (s) pessoa(s), renunciando em favor desta(s) todos os direitos sobre a criança,
inclusivamente à qualificação jurídica de Mãe.”6.

Já para MARIA BERENICE DIAS, e no seio do direito brasileiro, este tipo de PMA nada mais é
que “um negócio jurídico de comportamento, compreendendo para a Mãe de aluguer obrigações de
fazer e não fazer, culminando com a obrigação de dar, consistente na entrega do filho.”7.

4
A par do dever do Estado de regular as técnicas de PMA garantido a dignidade humana, consagrado na alínea e) do n.º
2 do art.º 67.º da CRP.
5
Cfr. OLIVEIRA, Guilherme Freire Falcão de (1992) – Mãe há só (uma) duas! O contrato de gestação, Coimbra
Editora, cit. pp. 8 e 9
6
Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia (2005) – De mãe para mãe, Questões Legais e Éticas suscitadas pela Maternidade de
Substituição, Coimbra Editora, cit, pp. 10-11..
7
Cfr. DIAS, Maria Berenice (2013) – Manual de direito das famílias. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
pp. 379 apud SAMPAIO, Sara (2015) – Maternidade de Substituição (Dissertação apresentada para obtenção do Grau de
Mestre em Direito, com Especialização em Ciências Jurídico-Forenses), para Instituto Superior Bissaya Barreto, cit. p.14.
Disponível em
https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/28945/1/Maternidade%20de%20Substitui%C3%A7%C3%A3o.pdf .
Consultado a 17.01.2022.

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ADRIANA CALDAS DO REGO FREITAS DABUS MALUF, vai mais longe e introduz a
exigência de utilização de material genético da(s) parte(s) beneficiárias, afirmando que a gestação de
substituição consiste na “cessão do útero para a gestação de filho concebido pelo material genético
de terceiro – contraente – a quem a criança gerada, deverá ser entregue logo após o nascimento,
assumindo a fornecedora da condição de Mãe, possibilitando assim à Mãe de conceber um filho
biológico fora do seu ventre.”8.

Ora, nestas definições e, especialmente na última, encontramos a expressão “cessão do útero” o


que, à primeira vista, pode remeter para uma ideia de estarmos no domínio de um contrato especial
de aluguer9 ou comodato10 do útero, ou até mesmo de um contrato de compra e venda11, caso seja
oneroso, ou doação12, caso seja gratuito, em que o útero da mulher é explorado para gerar um
produto (a criança ou crianças) que deve ser entregue à parte beneficiária da prestação.

Adiantando que na LPMA portuguesa os contratos de gestação de substituição devem ser


obrigatoriamente gratuitos13 para serem considerados válidos, à partida, pode assemelhar-se a uma
doação, posição da qual nos afastamos, desde logo, pela inerente natureza unilateral da doação que é
desconforme à bilateralidade deste contrato, onde tanto a gestante como os beneficiários do contrato
de gestação de substituição têm direitos, e especialmente, deveres a cumprir14. Assim, podemos
afirmar que este contrato é um contrato bilateral, uma vez que apresenta todas as caraterísticas de
bilateralidade enumeradas por CARLOS MOTA PINTO: “nos contratos ou negócios bilaterais há
duas ou mais declarações de vontade, de conteúdo oposto, mas convergente, ajustando-se na sua
comum pretensão de produzir resultado jurídico unitário, embora com um significado para cada
parte. Há assim a oferta ou proposta e a aceitação, que se conciliam num consenso”15

8
Cfr. MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus (2010) – Curso de bioética e biodireito, São Paulo: Atlas apud
SAMPAIO, Sara (2015) – Maternidade de Substituição (Dissertação apresentada para obtenção do Grau de Mestre em
Direito, com Especialização em Ciências Jurídico-Forenses), para Instituto Superior Bissaya Barreto, cit. p.14.
Disponível em
https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/28945/1/Maternidade%20de%20Substitui%C3%A7%C3%A3o.pdf .
Consultado a 17.01.2022.
9
Cfr. Art. ºs 1022.º e ss. do Código Civil Português (doravante CC).
10
Cfr. Art. ºs 1129.º e ss. do CC.
11
Cfr. Art. ºs 874º e ss. do CC.
12
Cfr. Art.º 940º do CC.
13
Cfr. Art..º 8.º n.º 7 da LPMA. As únicas retribuições que os beneficiários devem dar são aquelas que correspondem aos
normais custos que uma gestante tem de suportar durante a gravidez, nomeadamente custos médicos, abrangendo os
gastos com transportes, como define na lei na segunda parte do n.º 7, do art.º 8º da LPMA.
14
De acordo com art.º 8.º n.º 11 da LPMA que remete para os artigos 12º, 13º (no caso dos beneficiários) e para artigos
13.º-A e 13.º-B (no caso da gestante) da mesma lei.
15
Cfr. PINTO, Carlos Alberto da Mota (2005) – Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., Coimbra Editora, cit. p. 385.

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Nesta linha de raciocínio, por termos estes três polos na relação – gestante, criança e casal
(tradicionalmente, mas não necessariamente16) – e pela relação claramente sinalagmática que é
estabelecida, há quem defenda que o contrato de gestação de substituição pode assemelhar-se ao
contrato de compra e venda, noção da qual igualmente nos afastamos, não só pela exigência de
gratuitidade deste contrato no plano jurídico português (não há preço, caraterística central do
contrato de compra e venda), mas também pelo seu singular regime, infra explanado.

Posto isto, fica claro que o contrato de gestação de substituição é um contrato bilateral e
necessariamente gratuito, sendo demarcado pelos clássicos princípios do direito contratual: o
princípio da autonomia privada e liberdade contratual, o princípio da confiança ou pacta sunt
servanda, o princípio da consensualidade e o princípio transversal a todo o direito, a boa-fé.

Destaca-se neste âmbito, o princípio da autonomia privada ou liberdade contratual, que pode ser
definido como a possibilidade consagrada pelo direito civil17 e, até mesmo pelo direito
constitucional18, de um sujeito jurídico poder estabelecer uma relação contratual vinculativa com
outro sujeito que, à partida, escolhe livremente, de modo a produzirem-se efeitos na esfera jurídica
de ambos. Partindo desta noção, é importante considerar também que a liberdade contratual tem
limites, nomeadamente no que diz respeito ao seu objeto, conforme expressa o art.º 280.º CC. Deste
modo, sendo o contrato de gestação de substituição um negócio jurídico e, atendendo às limitações
legais e caraterísticas próprias do contrato, que tipo de negócio jurídico temos em mãos?

Ora, excluindo desde logo todas as opções supramencionadas (contrato de aluguer, comodato,
compra e venda e doação), para VERA LÚCIA RAPOSO só podemos estar perante um contrato de
prestação de serviços especial; a autora explica “o que se contrata é a prestação de um serviço.
Aqueles que se incomodam com a classificação da gestação como um serviço devem questionar-se
porque não os repugna que os demais serviços prestados com o corpo assim sejam qualificados,
desde o trabalho manual ao trabalho intelectual, passando pelo desporto, pela moda ou pela
pornografia.”19. Esta é a noção que adotamos, uma vez que o contrato de gestação é que a prestação

16
Cfr. Art.º 6.º n.º 1 da LPMA. Neste âmbito também se levanta o problema de a legitimidade contratual ser atualmente
restringida a casais heterossexuais, casais homossexuais compostos exclusivamente por mulheres, e por pessoas
singulares do sexo feminino, ou seja, o contrato de gestação não está ainda disponível a casais homossexuais composto
por dois homens, nem mesmo a homens singulares, o que a meu ver não faz qualquer sentido. Aplicando-se os critérios
legalmente previstos para ser beneficiário de um contrato de gestação de substituição, ao excluírem-se casais composto
por homens e homens singulares, o legislador não consegue justificar esta discriminação legalmente – podemos então
falar de uma discriminação baseada puramente no género (algo completamente inadmissível perante o art.º 13º n.º 2 da
CRP). Exploraremos à frente com mais cuidado.
17
Cfr. Art.º 405.º e ss. do CC.
18
Cfr. Art.º 26.º n.º 1 e o art.º 61.º da CRP.
19
Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia (2012) – Quando a cegonha chega por contrato, em Boletim da Ordem dos Advogados, n.º

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de um serviço da gestante de substituição às partes beneficiárias, neste caso sem retribuição, tal
como a noção de contrato de prestação de serviços20 indica.

No que concerne ao art.º 280.º do CC., a natureza deste contrato pode ser ainda algo controversa,
mas em muito se assemelha a diversos outros tipos de contrato que se estabelecem corriqueiramente,
embora com diferenças, em que o corpo humano é utilizado, nas suas mais variadas vertentes para
um fim contratualmente estabelecido e, neste âmbito, recupero os exemplos supra apresentados
como a pornografia ou, até mesmo, a prostituição. Esta ideia de que há contratos com conteúdo
controverso que ainda assim são aceites pelo direito (ou pelo menos descriminalizados) é essencial
de um ponto de vista da liberdade contratual, ou pelo menos, para assegurar a proteção legal das
partes envolvidas e impedir que se desenvolva um mercado à margem da lei autorregulado e
perigoso21. Acresce a este argumento o facto de, em matéria de gestação de substituição, não
estarmos a falar de assegurar um mercado de bebés22 nem meramente de garantir o princípio da
autonomia privada, antes referimo-nos a, de um ponto de vista social, responder a anseios profundos
e justificados de poder ter uma criança e deixar uma linhagem e, de um ponto de vista jurídico,
garantir o cumprimento do direito constitucionalmente consagrado de constituir família.

Neste sentido, VERA LÚCIA RAPOSO considera mesmo a gestação de substituição “como um
demerit good, que a sociedade não deve proibir, mas sim regular de forma a conferir adequada
proteção às partes envolvidas, particularmente à mais frágil, o feto.”23 e afirma que “a solução não
reside na sua proibição, mas na criação de um regime jurídico que garanta acompanhamento
jurídico (e até psicológico) a ambas as partes.”24 – posição que subscrevemos integralmente.

88, Lisboa, cit. p. 26. Disponível em https://portal.oa.pt/media/118051/n%C2%BA88-mar2012.pdf. Consultado a:


20.01.2022
20
Cfr. Art.º 1154.º do CC.
21
O que ainda acontece mesmo com legislação nesse sentido, todavia é consensual que quando o direito regula
expressamente as matérias, mesmo as controversas, apondo-lhe normas devidamente justificadas, em vez de puramente
proibi-las, a segurança das atividades em questão é reforçada a par da proteção das partes envolvidas.
22
Cfr. LANDES; Posner (1988) – The economics of the Baby Shortage, apud Kopytoff – Surrogate motherhood:
Questions of Law and Values, «University of San Francisco Revue», vol.22 , p. 241 apud por OLIVEIRA, Guilherme
Freire Falcão de (1992) – Mãe há só (uma) duas! O contrato de gestação, Coimbra Editora, cit. pp. 15-16.
23
Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia (2005) – De mãe para mãe, Questões Legais e Éticas suscitadas pela Maternidade de
Substituição, Coimbra Editora, cit., p. 141.
24
Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia (2012) – Quando a cegonha chega por contrato, em Boletim da Ordem dos Advogados,
n.º 88, Lisboa, cit. p.27. Disponível em https://portal.oa.pt/media/118051/n%C2%BA88-mar2012.pdf. Consultado a
20.01.2022.

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2. REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE GESTAÇÃO DE
SUBSTITUIÇÃO E INSUFICIÊNCIAS
Como já foi referido, previamente à alteração legislativa de 2016/2017 da LPMA25, o contrato de
gestação de substituição era considerado nulo26, i.e., não produziria qualquer efeito jurídico, e a
filiação da criança que viria a nascer seria estabelecida nos termos gerais do direito civil, nos quais é
considerada mãe a mulher que dá à luz à criança e considerado pai, o homem que é casado com a
mãe27, ainda que o oócito que fornece o código genético à criança pertença a uma outra mulher, neste
caso, beneficiária do contrato. Além do mais, se a celebração ou promoção destes contratos se desse
através de um pagamento, este ato era considerado uma prática criminosa28 punível com pena de
prisão de até 2 anos ou pena de multa de até 240 dias – situação que se mantém inalterada na atual
redação da lei. A questão da criminalização será desenvolvida posteriormente neste trabalho.

A verdade é que o contrato de gestação de substituição é atualmente acolhido no seio do nosso


direito e, embora exista um regime jurídico do mesmo, este regime é acometido de diversas
insuficiências que passaremos a explanar.

a. Questão da Legitimidade Contratual restrita e excecional

O art.º 8.º n.º 2 da LPMA, consagra que este tipo de contrato só estará ao dispor de certas
mulheres: aquelas que nasçam sem útero, com algum tipo de lesão, doença ou malformação uterina
que comprometam a normal capacidade de engravidar e suportar a gravidez, e ainda, no caso de
“outras situações clínicas que o justifiquem”29.

Entende-se a cautela do legislador em, primeiramente consagrar a gratuitidade obrigatória deste


contrato e, em segundo, dar legitimidade contratual apenas a um círculo restrito de sujeitos em
determinadas situações, exatamente para consolidar a ideia de que o que se procura não é a
“abertura de um mercado de úteros, mas antes uma garantia técnica adicional para situações que,
de ponto de vista social, médico e ético, mereciam da ciência uma resposta excecional”30. O que não

25
Cfr. Lei n.º 25/2016, que procedeu à alteração da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho.
26
Cfr. a redação original do art.º 8.º n.º 1 da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho.
27
Cfr. Art.º 1796.º; art.º 1826.º do CC e a redação original do art.º 8.º n.º 3 da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho.
28
Cfr. Art.º 39.º n.º 1 da Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto.
29
Formulação, desde logo, bastante ampla e genérica, que necessitaria de mais clarificação por parte do legislador, visto
tratar-se de uma matéria tão sensível.
30
Cfr. REIS, Rafael Vale e (2021) – Gestação de Substituição: Soluções Portuguesas numa Perspetiva Transnacional,
em Gestação de Substituição: Perspetivas Internacionais, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de

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se entende, é o facto destes contratos só estarem previstos para casais heterossexuais, homossexuais
femininos e mulheres singulares.

No DIÁRIO DA REPÚBLICA ELETRÓNICO podemos encontrar a definição do princípio da


igualdade31 como a imposição aos poderes públicos de proceder a “um tratamento igual de todos os
seres humanos perante a lei e uma proibição de discriminações infundadas, sem prejuízo de impor
diferenciações de tratamento entre pessoas, quando existam especificidades relevantes que careçam
de proteção.” 32. Resumidamente, a vertente negativa deste princípio proíbe discriminações
arbitrárias, seja no sentido favorável (tratamento privilegiado) ou desfavorável do termo (tratamento
inferior ou prejudicial) e, talvez mais complexa, a sua vertente positiva consagra a obrigação de
tratar de forma igual situações semelhantes e, correspondentemente, de forma desigual situações
díspares. SÓNIA CRISTINA CARVALHO RODRIGUES, reforça esta ideia de tratamento desigual
na sua tese de mestrado em direito, afirmando que as situações desiguais a que o princípio da
igualdade faz referência, devem ser “substancial e objetivamente desiguais e não criadas ou
mantidas artificialmente pelo legislador”33. Esta ideia é de extrema relevância para este assunto em
específico pois pergunta-se ao legislador, com base neste princípio, quais foram as razões de facto e
de direito que o levaram a excluir casais homossexuais masculinos e homens singulares de poderem
celebrar este tipo de contrato. Tentamos procurar respostas no diploma legal em análise e na restante
legislação.

O casamento homossexual é permitido em Portugal desde 201534, e a LPMA permite a


contratação em sede de gestação de substituição a casais homossexuais femininos, daí o problema
não ser a ilegalidade deste tipo de matrimónio.

Outra perspetiva é a de o regime jurídico da gestação de substituição consagrar a obrigatoriedade


de, pelo menos um dos beneficiários (normalmente a mulher), contribuir para a gestação com os seus
gâmetas de modo a criar ligação genética com a criança35. VERA LÚCIA RAPOSO explica que “A
formulação da norma (...) poderia levar a pensar que este procedimento apenas pode ser usado em

Coimbra, Coimbra, cit. p. 10. Disponível em: https://www.uc.pt/fduc/ij/publicacoes/pdfs/coloquios/gestacaosubstituicao .


Consultado a 22.01.2022.
31
Cfr. Art.º 13.º n.º 1 da CRP.
32
Cfr. DIÁRIO DA REPÚBLICA ELETRÓNICO – Princípio da Igualdade (Lexionário). Disponível em
https://dre.pt/dre/lexionario/termo/principio-igualdade . Consultado a 22.01.2022.
33
RODRIGUES, Sónia Cristina Carvalho (2013). – Aplicação do Princípio da Igualdade na Legislação Experimental em
Portugal (Dissertação de Mestrado em Direito – Direito Público), para Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa – cit. p. 18. Disponível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/17668/1/Rodrigues_2013.pdf . Consultado a
23.01.2022.
34
Cfr. Art.º 1577.º do CC cuja versão original consagrava que o casamento era um “contrato celebrado entre duas
pessoas de sexo diferente”; atualmente lê-se apenas “entre duas pessoas”, não havendo referência ao género.
35
Cfr. Art.º 8.º n.º 3 da LPMA.

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benefício de casal, mas parece-nos que o legislador optou por esta redação para expressar que,
existindo dois beneficiários da técnica, apenas um é obrigado a contribuir com gâmetas. Logo, não
está excluído que uma mulher singular que preencha os requisitos do n.º 2 desta norma recorra a
este procedimento, desde que contribua com os seus próprios ovócitos.”36; semelhantemente então,
não estará excluída, à partida, que um dos integrantes de um casal homossexual masculino ou até
mesmo um homem individual possa recorrer a este contrato cumprindo com o requisito de contribuir
com os seus gâmetas.

É verdade que uma mulher que tenha problemas uterinos ou outras situações clínicas
pertinentes37, muitas vezes, ainda poderá produzir ovócitos, enquanto um homem com problemas no
seu sistema reprodutivo, terá mais probabilidade de ter toda a sua capacidade reprodutiva afetada o
que, poderá colocar em causa a exigência legal dos beneficiários do contrato partilharem material
genético com a criança. Insiste-se, todavia, na ideia de que, mesmo sendo esta a motivação do
legislador para barrar um grupo de pessoas de aceder a este contrato, não se compatibiliza com os
requisitos do princípio constitucionalmente protegido da igualdade38 e, muito menos, poderá
consubstanciar-se num tratamento proporcional de situações, ainda que se queira proteger a
excecionalidade do regime.

Reconhecendo que as situações reprodutivas dos homens e das mulheres são bastante diferentes
de um ponto de vista biológico e científico, há que reconhecer também que isto não deve justificar o
impedimento legal em questão. Se a admissibilidade deste regime a mulheres e casais homossexuais
femininos já não é um problema (pelo menos para o legislador), o anseio a ter filhos com o nosso
código genético é considerado um anseio justo e, criando-se um regime que procura equilibrar a
dignidade humana com a autodeterminação pessoal e liberdade contratual, não há desculpa para que
esta possibilidade não esteja também ao dispor de homens individuais e casais homossexuais
masculinos que possuam os mesmos anseios. Como realça VERA LÚCIA RAPOSO, para este grupo
de indivíduos a gestação de substituição seria “a única forma possível de ter filhos”39 com o seu
código genético, devendo o legislador prever estas situações de forma fundamentada e proporcional.

36
Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia (2017) – Tudo aquilo que você sempre quis saber sobre contratos de gestação (mas o
legislador teve medo de responder), em Revista do Ministério Público, ed. 149, cit. p.12.
37
E que a coloquem nos casos em que a lei permite que se recorra aos contratos de gestação de substituição, segundo o
art.º 8.º n.º 2 da LMPA. Note-se que este conceito é extremamente amplo albergando diversas situações, daí a
necessidade de delimitação e esclarecimento do mesmo por parte do legislador.
38
Cfr. Art.º 13.º n.º 1 da CRP.
39
Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia (2017) – Tudo aquilo que você sempre quis saber sobre contratos de gestação (mas o
legislador teve medo de responder) – em Revista do Ministério Público, ed. 149, cit. p. 26.

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Como nota final, e ainda no âmbito da legitimidade contratual, é importante deixar ainda algumas
considerações relativas à possibilidade de o contrato de gestação de substituição ser celebrado entre
parentes, isto é, quando a gestante de substituição e os beneficiários pertencem à mesma família. E se
a mãe, avó, irmã, tia ou prima de um eventual beneficiário do contrato demonstrar interesse em
assumir o papel de gestante de substituição para o seu familiar? A resposta, apesar de implícita na
lei, parece estar em conformidade com as exigências do regime desde que o contrato seja gratuito,
seja autorizado pelas entidades competentes e a mulher que pretende ser gestante preferencialmente
já tenha sido mãe e não contribua na gestação com o seu material genético, etc.

Nada no regime em análise parece repudiar esta hipótese que, aliás, demonstra ser aquela em o
dito “altruísmo” da gestante40 fará mais sentido. Falamos aqui da existência do vínculo familiar que,
à partida, poderá ser aquele mais facilmente mobilizado para explicar os motivos pelos quais a
gestante aceita submeter-se à gravidez de uma criança que não será sua.

No sentido da validade desta solução e até mesmo do seu reforço, o Concelho Nacional de
Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) emitiu ao Parlamento, no seguimento do acórdão do
Tribunal Constitucional (doravante TC) n.º 255/2018, um documento intitulado “Breves notas sobre
a gestação de substituição – preocupações do CNPMA e propostas de alteração”41 no qual
manifestam a preferência que a lei deve ter por laços familiares ou de afinidade entre gestante e
beneficiários, de modo a diminuir ao máximo o risco de eventuais incumprimentos contratuais.

Desta forma, ainda não é claro o motivo pelo qual a lei não dispõe expressamente neste sentido.
Em relação à ética ou moralidade deste procedimento entre familiares, não poderemos focar-nos na
questão biológica, uma vez que a gestante não contribui com o seu material genético para a gravidez;
não obstante, é importante perguntar quais os possíveis efeitos que esta informação poderá ter
futuramente para a criança. Será mais impactante e possivelmente mais traumatizante para a criança
saber que foi formada no útero de uma parente sua? Ou será mais aceitável para a mesma a
informação de que uma mulher sem quaisquer laços familiares consigo, suportou a gravidez que a
fez existir?42 Estas perguntas são difíceis de responder especialmente pelo reduzido universo de

40
Altruísmo no sentido de ajudar um casal ou indivíduo a concretizar o seu sonho de ter filhos a título gratuito.
41
CNPMA, Breves notas sobre a gestação de substituição – preocupações do CNPMA e propostas de alteração.
Disponível em
https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d56304c334e706447567a4c3168
4a53556c4d5a5763765130394e4c7a6c445579394562324e31625756756447397a5357357059326c6864476c3259554e76
62576c7a633246764c7a6b354f5451795a6d526b4c545935595755744e4445344e4330344e5755304c546734595468694e6
d5a6d4d6d46694e6935775a47593d&fich=99942fdd-69ae-4184-85e4-88a8b6ff2ab6.pdf&Inline=true . Consultado a
24.01.2022.
42
Sobre a questão do direito da criança de saber a identidade da sua gestante de substituição, nomeadamente ao que
concerne à confidencialidade (art.º 15.º LPMA) no contrato de gestação de substituição, explanaremos mais à frente.

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estudo atual, todavia são questões que a nosso ver merecem uma atenção especial do campo da
sociologia.

b. Requisitos gerais de admissibilidade e Direito ao Arrependimento

De um modo geral, o contrato de gestação de substituição está dependente de diversos requisitos


obrigatórios:

i. Preferência, para assunção do papel de gestante de substituição, por mulheres que já tenham
sido mães43;
ii. Aprovação prévia do contrato pelo CNPMA, entidade supervisora destes processos, tendo em
vista os limites legais e sempre antecedida de uma audição da Ordem dos Médicos e da
Ordem dos Psicólogos44;
iii. Proibição de qualquer tipo de pagamento que não aqueles que respondam às normais
despesas da gestante com a gravidez, nomeadamente as dispostas no art.º 8.º n.º 6 da LPMA;
iv. Proibição da celebração do contrato quando pré-exista uma relação de subordinação
económica, de vínculo laboral ou semelhante45;
v. Obrigatoriedade de o contrato ser reduzido a escrito, sob pena de ser considerado nulo46, onde
devem constar necessariamente cláusulas que digam respeito aos deveres e direitos da
gestante, direitos e deveres de informação para ambas as partes, disposições que respondam a
possíveis problemas durante a gravidez e até mesmo em relação à interrupção voluntária da
gravidez e a forma de resolução de conflitos respeitante à execução ou interpretação do
contrato, entre outros47;

Realça-se que, na última alteração legislativa implementada através da Lei 90/2021, várias
insuficiências apontadas ao regime do contrato de gestação de substituição foram efetivamente
colmatas, nomeadamente, a explicitação do conteúdo obrigatório do contrato com a imposição de
cláusulas imperativas, antes não previstas, afunilando assim a liberdade contratual das partes, algo de
extrema importância num contrato que versa sobre assuntos tão sensíveis. Acresce a esta alteração, a
obrigatoriedade de acompanhamento psicológico para a gestante durante todo o processo, algo
impreterível neste âmbito.

43
Cfr. Art.º 8.º n.º 3 da LPMA.
44
Cfr. Art.º 8.º n.º 5 da LPMA.
45
Cfr. Art.º 8.º n.º 8 da LPMA.
46
Cfr. os termos gerais do direito civil previstos no art.º 286.º do CC.
47
Cfr. Art.º 8.º n.º 13 da LPMA.

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A questão do direito ao arrependimento da gestante de substituição é uma questão central ainda
preenchida de controvérsias. O art.º 8.º n.º 10 da LPMA, que faz remissão para art.º 14.º do mesmo
diploma, consagra que em matéria de consentimento, a gestante terá até ao registo da criança para
revogar livremente o seu consentimento e, neste caso, presume-se então que esta passou por uma
gravidez normal, sendo a filiação da criança determinada nos termos gerais do direito civil48. Ora, de
acordo com o Código de Registo Civil, o nascimento da criança tem de ser registado no prazo de até
20 dias após o nascimento49, o que quererá dizer que até 20 dias depois do nascimento da criança, a
gestante pode recusar-se a entregar a mesma aos beneficiários do contrato.

Esta disposição foi incluída na lei portuguesa após o TC ter se pronunciado, por duas vezes50,
desfavoravelmente à Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto, alegando como uma das principais razões a
não previsão do direito ao arrependimento da gestante após o início dos tratamentos de PMA, bem
como a insuficiência de explicitação dos direitos da gestante e da criança.

Já no Ac. TC. n.º 225/2018, 7/5, o TC recomendava a possibilidade de “o consentimento poder


ser revogado pela gestante de substituição em qualquer momento até ao início do parto. Neste caso,
a criança deverá ser considerada para todos os efeitos sociais e jurídicos como filha de quem a deu
à luz”51; afirma ainda no mesmo acórdão que “A gestante de substituição não deve ser
simultaneamente dadora de ovócitos na gestação em causa”52. Encontramos logo aqui um problema:
a gestante de substituição não pode fornecer material genético algum à criança, mas se fizer uso do
seu direito de arrependimento, o recém-nascido, que não partilha qualquer informação genética
consigo, é considerado, pelo direito civil, automaticamente filho desta.

Será que o mesmo direito que estabelece a filiação através da presunção do parto, não terá
nada a dizer sobre a frustração das expetativas dos beneficiários do contrato53?

A verdade é que, como menciona PEDRO VAZ PATTO “o útero é inseparável do corpo e
da pessoa, não é um alojamento temporário, ou um instrumento técnico. A mulher grávida não é
48
A contrario sensu do estabelecido no art.º 8.º n.º 9 que lê “Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a criança
que nascer através do recurso à gestação de substituição é tida como filha dos respetivos beneficiários.”; indicando que,
caso seja revogado o consentimento da gestante, a criança já não será tida como filha dos beneficiários do contrato, antes
a filiação da mesma, na falta de disposição diferente, será determinada nos termos gerais do direito civil, sendo
considerada filha da mulher que dá à luz.
49
Cfr. Art.º 96.º n.º 1 do Código de Registo Civil.
50
Em 2018 e 2019, através do Acórdão TC. n.º 225/2018, 7/5 e Acórdão TC n.º 465/2019, 18/10.
51
Cfr. Ac. TC n.º 225/2018, de 7/5/2018, https://dre.pt/dre/detalhe/acordao-tribunal-constitucional/225-2018-115226940
52
Cfr. Ac. TC n.º 225/2018, de 7/5/2018, https://dre.pt/dre/detalhe/acordao-tribunal-constitucional/225-2018-115226940
53
Note-se que neste caso não falamos de meras expetativas frustradas em sede contratual por falta de entrega da
“prestação” devida pelo “devedor”. Falamos de uma criança, um ser humano, gerado através da combinação dos gâmetas
dos beneficiários do contrato que, por força do direito de arrependimento da gestante, não poderão encontrar e criar o seu
filho, agora considerado automaticamente filho da gestante de substituição. É um assunto sensível, que coloca diversos
direitos em conflito, onde parecem ficar esquecidos os direitos da parte mais frágil, a da criança.

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uma máquina incubadora.”54. Ademais, está cientificamente provado que durante a gravidez é
inevitável que se estabeleçam laços afetivos entre feto e gestante, laços esses que na nossa espécie
são sentidos pela criança e pela mãe mesmo após o cortar do cordão umbilical. Também será verdade
que o serviço prestado pela gestante de substituição aos beneficiários do contrato de gestação de
substituição não é um serviço como qualquer outro, e reconhecemos isto no ponto 1. deste trabalho.
Todavia, e nunca dispensando estes aspetos essenciais que marcam a espécie humana e a sua
reprodução, o regime da gestação de substituição salvaguarda aspetos fulcrais na tomada de decisão
de ambas as partes, e apesar do direito de arrependimento ser central numa matéria tão sensível, a
sua extensão não poderá ser justificada pelos laços afetivos desenvolvidos durante a gravidez.

À partida, a gestante de substituição não terá a sua decisão manchada por possíveis
retribuições de cariz financeiro ao decidir contratar55. Ademais, à garantia de uma decisão livre,
informada e esclarecida, acresce a exigência legal de acompanhamento psicológico antes, durante e
após a gravidez de substituição56, a par do cumprimento de diversos deveres de informação57
trocados entre as partes, como já foi mencionado. Assim, seguindo-se na prática as diretivas da lei,
podemos afirmar que a gestante de substituição estará apta não só a nível físico, mas mais
importante, a nível mental e psicológico a tomar a decisão de contratar ou não com os beneficiários
do contrato. Idealmente, estamos a falar de uma mulher com “suficiente maturidade psicológica
para desempenhar a função de gestante (…), averiguada mediante uma prévia avaliação
psicológica”58 e que presta um verdadeiro consentimento59, sendo seguro assumir, que entende as
consequências sociais, físicas, mentais e jurídicas de levar avante um contrato desta natureza.
Efetivamente, durante a gravidez, as circunstâncias poderão alterar-se e, a par do direito ao
arrependimento, é exigível que se preveja no contrato cláusulas correspondentes a uma possível
interrupção voluntária da gravidez60, dentro dos limites legais para a mesma.

Realça-se neste ponto a ideia transmitida pelo TC de que, apesar do conflito inevitável de
direitos entre as partes61, o direito ao arrependimento da gestante é um direito que não deverá ser

54
PATTO, Pedro Vaz (2021) – Ecologia humana e “gestação de substituição”, em OBSERVADOR. Disponível em
https://observador.pt/opiniao/ecologia-humana-e-gestacao-de-substituicao/ . Consultado a 02.02.2022.
55
Cfr. Art.º 8.º n.º 7 e art.º 39.º da LPMA.
56
Cfr. Art.º 8.º n.º 13, al. c) e art.º 13.º-A n.º 1, al. d) da LPMA.
57
Cfr. Art.º 13.º, al. e), f) e art.º 12.º, 13.º, 13.º-A e 13.º-B da LPMA.
58
Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia (2017) – Tudo aquilo que você sempre quis saber sobre contratos de gestação (mas o
legislador teve medo de responder) – em Revista do Ministério Público, ed. 149, cit. p.41.
59
Assumindo mais uma vez que as exigências legais da LMPA foram cumpridas completamente, gerando-se um
consentimento livre e esclarecido, passível de ser alterado com a decorrência do contrato.
60
Cfr. Art.º 8.º n.º 13, al. h) da LPMA.
61
O TC no AC. n.º 225/2018 entende que neste conflito de direitos devem prevalecer os direitos de personalidade da
gestante de modo a garantir uma verdadeira liberdade de escolha durante toda a execução do contrato de gestação, que
inclui o nascimento da criança.

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removido nem mesmo encurtado, de modo a garantir o seu direito ao livre desenvolvimento da
personalidade62, baseado nos princípios da dignidade da pessoa humana63 e, consequentemente, no
direito a constituir família64.

Dito isto, concordamos que a gestante (e a criança, claro) são as partes mais frágeis neste
contrato, no entanto, também consideramos estarem reunidas legalmente todas as condições para
garantir os direitos supramencionados bem como para proteger a mulher que escolhe tomar o papel
de gestante de substituição e conhecer a extensão da sua decisão, não se justificando assim um
direito ao arrependimento tão amplo, que se estende até 20 dias após o nascimento da criança, sem
que venha acompanhado de algum tipo de indemnização aos beneficiários do contrato. Acreditamos
que esta disposição legal coloca também em causa direitos fundamentais dos beneficiários65, assim, a
mobilização do direito de arrependimento da gestante (especialmente) após o nascimento da criança
não deixa de consubstanciar-se num incumprimento contratual aceite pelo direito. O TC demonstra
uma visão diferente desta questão afirmando que “As obrigações contratualmente assumidas e
consentidas a priori, podem, a partir de um dado momento, deixar de corresponder à vontade da
gestante, de modo tal que o respetivo cumprimento deixe de traduzir uma afirmação da sua
liberdade de ação e autodeterminação. O consentimento inicial deixa, assim, de ser atual, por
razões atendíveis.”66.

A LPMA, em linha com o parecer do TC, não consagra expressamente nenhum tipo de
“sanção” à gestante de substituição que, no caso de se arrepender, poderá registar o filho como seu e
os beneficiários do contrato simplesmente terão de aceitar esta situação67. Defendemos que, embora
estes contratos tenham uma natureza especial, a mobilização do direito ao arrependimento por parte
da gestante numa fase tão avançada do contrato por motivos que só lhe poderão ser imputados, não

62
Cfr. Art.º 26.º CRP.
63
Cfr. Art.º 1.º e art.º 26.º/2 da CRP.
64
Cfr. Art.º 36.º CRP.
65
Como o direito a constituir família, previsto no art.º 36.º da CRP, nomeadamente o n.º 6 que prevê que os filhos não
podem ser separados dos seus pais, salvo em situações específicas em que os pais não cumpram deveres fundamentais
para com os filhos e sempre mediante decisão judicial (partindo da assunção que um feto que partilha material genético
com os beneficiários é, à partida, filho deles, posição da qual o TC se afasta no Ac. n.º 255/2018). Os beneficiários do
contrato, ao longo de toda a gestação, criam legítimas expetativas de poder ver e receber a criança em casa. Estas
expetativas só se intensificam com o nascimento da mesma. Permitir que após 20 dias do nascimento da criança esta
possa ser retirada aos beneficiários do contrato, pais da criança, é algo verdadeiramente perigoso e preocupante, uma vez
que a criança não é uma coisa fungível que poderá facilmente ser substituída por outra, ficando este direito fundamental
dos beneficiários e da criança necessariamente comprometido.
66
Cfr. Ac. TC n.º 255/2018, de 7/5/2018, https://dre.pt/dre/detalhe/acordao-tribunal-constitucional/225-2018-115226940.
67
Esta solução legal de não impor nenhum tipo de indemnização à gestante que decide usar do seu direito ao
arrependimento, é baseada nas considerações do TC no Ac. n.º 255/2018, cuja argumentação vai no sentido de garantir
que uma revogação do consentimento verdadeiramente livre, i.e., sem a “ameaça” legal de ter de indemnizar os
beneficiários se fizer uso deste direito.

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deixa de ser um incumprimento contratual admitido pela lei68, claro, mas que deverá ter como
contrapartida, no mínimo, uma compensação69 aos beneficiários que tiveram as suas legítimas
expetativas frustradas.

Deste modo, é necessário que o legislador regule expressamente os efeitos que o direito de
arrependimento produzirá em sede de contrato de gestação de substituição, de modo a que tenhamos
um regime mais equilibrado e que não forneça um tratamento privilegiado à gestante de substituição
que, como qualquer outro sujeito contratual, obriga-se livre e esclarecidamente a cumprir a sua parte
no contrato e, não cumprindo por causa que lhe é imputável70, especialmente numa fase tão tardia do
mesmo, deve ser responsabilizada através do pagamento de danos patrimoniais e não patrimoniais
causados à outra parte.

Note-se que defendemos que a indemnização só será devida nos casos em que a gestante por
livre e espontânea vontade decide não entregar a criança nascida, após ter gerado legítimas
expetativas de que o faria, sendo fulcral considerar a que estágio da gravidez em que esta decisão é
tomada e quais as suas motivações. Já quando o direito ao arrependimento é mobilizado em sede de
interrupção voluntária da gravidez dentro dos limites legais, não consideramos que a gestante deva
indemnizar os beneficiários do contrato da mesma forma que o faria em caso de recusa de entrega da
criança já nascida, antes a indemnização deve ser calculada tendo em conta os motivos que levam à
decisão de abortar71 e tendo em conta a situação financeira da gestante72.

68
Cfr. Art.º 81.º n.º 2 do CC que refere que “A limitação voluntária, quando legal, é sempre revogável, ainda que com
obrigação de indemnizar os prejuízos causados às legítimas expectativas da outra parte.”.
69
Cfr. Art.º 81.º n.º 2 do CC (no que diz respeito aos direitos de personalidade) e art.º 801.º CC (no que diz respeito ao
direito das obrigações) onde se lê: “Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este
responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação.”. De todas as disposições sobre os
incumprimentos contratuais, esta parece ser aquela que melhor se adequa ao caso em análise e, articulada com o art.º 81.º
n.º 2, a ideia de indemnização só é reforçada em todos os prismas legais em que este contrato possa ser considerado. A
verdade é que a gestante de substituição não atua com culpa, apenas mobiliza o seu direito de arrependimento, concedido
pela lei em virtude dos seus direitos de personalidade, todavia, fá-lo por livre e espontânea vontade. Embora não
saibamos o que leva, em cada caso específico, a gestante a recorrer a este direito como forma de resolver o contrato,
podemos assumir que, na maioria dos casos, fá-lo por vontade própria e não por força de razões externas à mesma que a
constrangem a tomar tal decisão, daí podermos considerar que a causa lhe é imputável. Sendo a impossibilidade de
cumprimento do contrato, ainda que não culposa, imputável à gestante, esta terá o dever de indemnizar os beneficiários
da prestação pelos eventuais danos e prejuízos que lhes possam ter causado. Além dos gastos que os beneficiários
suportaram com as normais despesas decorrentes do acompanhamento médico da gestante de substituição (exigência do
n.º 7 do art.º 8.º da LPMA), geram-se danos não patrimoniais sérios (art.º 496º do CC) que não poderão simplesmente ser
ignorados, devendo ser indemnizados pela parte incumpridora do contrato a par dos primeiros. Estes seriam os efeitos
normais e expetáveis em sede de incumprimento de obrigações, efeitos que consideramos ter uma aplicabilidade
adequada e proporcional ao contrato de gestação de substituição que não deixa de ser um contrato, ainda que com
natureza especial e com nuances específicas.
70
Ainda que no exercício de um direito essencial e completamente legítimo, o direito ao arrependimento.
71
Referimo-nos neste ponto à necessária análise das condições em que a interrupção da gravidez tomou lugar: se foi por
livre vontade da gestante que simplesmente decide unilateralmente resolver o contrato (até às 10 semanas de gravidez,
cfr. Art.º 142.º n.º 1, al. e) do Código Penal, doravante CP) ou por situações clínicas que coloquem em risco a saúde e/ou
vida da gestante e do feto (cfr. Art.º 142.º n.º 1, als. a, b e c de CP). No primeiro caso, admite-se a possibilidade de haver

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Deste modo, subscrevemos por inteiro a análise feita por CATARINA SOFIA MARTINS DE
ALMEIDA, na linha de ESTRELA CHABY73 e RITA LOBO XAVIER74, quando afirma que:
“Cremos que certos aspetos do regime jurídico da gestação de substituição não se podem
fragmentar do próprio instituto globalmente considerado sem o deturpar por completo. Diríamos,
aliás, que a determinação de um critério de atribuição do vínculo de filiação aos autores do projeto
parental a priori é algo inarredavelmente inerente ao próprio modelo, pela natureza e pela
finalidade que lhe é subjacente” e “que a própria consagração legal deste modelo apresenta como
finalidade substancial a atribuição do vínculo de filiação tal como preceituado no art. 8º, n.º7. A
consagração de um direito ao arrependimento da gestante, e consequente atribuição da
maternidade, elimina um aspeto nuclear deste instituto, esvaziando-o e descaracterizando-o.” 75.

Como nota final no que concerne ao regime jurídico dos contratos de gestação de
substituição, é importante realçar que a algum momento faz o legislador menção ao superior
interesse da criança. Como explica VERA LÚCIA RAPOSO, esta omissão pode dever-se ao facto de
“a Lei n.º 32/3006 regular os contratos de gestação de uma perspetiva puramente contratual e não
como uma questão de conflito entre diferentes pretensões de filiação, sendo que apenas neste último
cenário faz sentido reivindicar o superior interesse da criança”76. Não obstante, é consensual que
este regime não versa sobre um contrato comum e, se a finalidade do mesmo é a entrega de uma
criança, um ser humano, com direitos e interesses que carecem de proteção legal, o legislador deveria

algum tipo de indemnização, nem que se consubstancie apenas na restituição dos gastos que os beneficiários suportaram
até aquele momento com a gestação. No segundo caso, parece claro não haver lugar a indemnização de qualquer tipo,
uma vez que falamos de causas imperiosas que conduziram à interrupção da gravidez.
72
De modo a garantir o princípio da proporcionalidade cfr. Art.º 18.º n.º 2 da CRP.
73
Cfr. CHABY, Estrela (2016) – “Direito a constituir família, filiação e adoção: Notas à luz da jurisprudência do
Tribunal Constitucional e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro
Presidente Rui Moura Ramos, Vol. II, Coimbra, Almedina, pp.329-356 apud ALMEIDA, Catarina Sofia Martins de
(2020). O contrato de gestação de substituição no ordenamento jurídico português: O designado “direito ao
arrependimento” da mulher gestante (Dissertação de Mestrado em Direito), para Faculdade de Direito, Escola do Porto.
Disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/33657/1/00509_02_catarina-sofia-almeida-345018061-
dissertacao-integral.pdf . Consultado a 07.02.2022.
74
Cfr. XAVIER, Rita Lobo (2019) – “A constitucionalização do contrato de gestação de substituição e a traição das
imagens: “isto não é uma gestação de substituição”, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Joaquim de
Sousa Ribeiro, Vol. I, Coimbra, Almedina, pp.345-362. apud ALMEIDA, Catarina Sofia Martins de (2020) – O contrato
de gestação de substituição no ordenamento jurídico português: O designado “direito ao arrependimento” da mulher
gestante (Dissertação de Mestrado em Direito), para Faculdade de Direito, Escola do Porto. Disponível em
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/33657/1/00509_02_catarina-sofia-almeida-345018061-dissertacao-
integral.pdf . Acedido a 07.02.2022.
75
ALMEIDA, Catarina Sofia Martins de (2020) – O contrato de gestação de substituição no ordenamento jurídico
português: O designado “direito ao arrependimento” da mulher gestante (Dissertação de Mestrado em Direito), para
Faculdade de Direito, Escola do Porto – cit. p. 53. Disponível em
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/33657/1/00509_02_catarina-sofia-almeida-345018061-dissertacao-
integral.pdf . Consultado a 07.02.2022.
76
Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia (2017) – Tudo aquilo que você sempre quis saber sobre contratos de gestação (mas o
legislador teve medo de responder) – em Revista do Ministério Público, ed. 149, cit. p. 28.

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ter realizado uma reflexão mais profunda no que concerne a este sujeito jurídico77. Antes, a LPMA
no que respeita ao contrato de gestação de substituição apenas exige que as partes definam no
conteúdo do contrato uma cláusula que determine a forma como dirimir eventuais conflitos na
interpretação ou execução contratual78 e a garantia do bem-estar da criança durante a gestação79.

c. Instrumentalização da gestante e coisificação da criança?

Analisado o regime jurídico do contrato de gestação de substituição e os respetivos critérios de


admissibilidade, entendemos ser ainda necessário refletir sobre a posição quer da gestante de
substituição quer do nascituro80, como partes mais frágeis deste contrato.

O princípio da dignidade humana81, já referido por diversas vezes, é a linha condutora que
devemos seguir nesta análise uma vez que é ele que nos dirá na prática se, de acordo com as atuais
disposições legais, a gestante é ou não instrumentalizada durante o contrato e se a criança, nascida ou
em formação, é efetivamente tratada como res, objeto ou parte contratual.

É consensual entre diversos autores que o serviço prestado no contrato em causa não é um
serviço como qualquer outro e que o útero da gestante utilizado para gerar a criança é indissociável
da mesma. Dito isto, averiguamos no ponto anterior que a lei prevê diversos instrumentos, tal como o
direito ao arrependimento até ao registo da criança, como forma de salvaguardar a dignidade da
mulher que, não sendo uma fábrica de bebés, é um ser humano passível de criar uma relação afetiva
e emocional com o nascituro e decidir não seguir com a execução do contrato82.

Todavia, não é por acaso que a CRP no seu primeiro artigo afirma que a Républica e o Estado de
Direito Democrático (no seu segundo artigo) são baseados na dignidade da pessoa humana. Na

77
Nomeadamente no que respeita à previsão do direito da criança de poder saber que foi concebida com recurso à
gestação de substituição e, eventualmente, o direito de saber a identidade da gestante de substituição. Esta ideia é
reforçada pelo TC no Ac. n.º 255/2018 onde invoca o direito à historicidade, direito à identidade, dignidade da pessoa
humana e proteção da infância como direitos que fundamentam a inconstitucionalidade do art.º 15.º da LPMA no qual se
exclui por absoluto a possibilidade da criança, parte de um contrato de gestação de substituição, saber da existência do
mesmo e da identidade da gestante.
78
Cfr. Art.º 8.º n.º 13, al. m) da LPMA; assumindo que estes “eventuais conflitos” entre gestante e beneficiários, possam
tocar diretamente nos direitos e interesses da criança.
79
Cfr. Art.º 8 n.º 13, al. a) da LPMA que lê: “(...) tendo em vista assegurar a evolução normal da gravidez e o bem-estar
da criança ”.
80
Cfr. Art.º 66.º n.º 2 do CC
81
Cfr. Art.º 1.º e 26.º n.º 2 da CRP.
82
Reitera-se que ainda que discordemos com a atual extensão do direito ao arrependimento e a falta de disposições que
prevejam indemnizações no caso de incumprimento contratual por causa imputável à gestante; não podemos deixar de
aceitar que o reconhecimento deste direito “humaniza” a gestante. A lei, ao dar prevalência à relação intensa entre
grávida e nascituro desenvolvida durante a gravidez, reconhece a dignidade da mulher que formou por diversos meses
um ser humano no seu útero e concede-lhe o direito de ser mãe do mesmo.

Ghyovana Carvalho | FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA | 2022 18


esteira do pensamento de Kant83, consideramos as pessoas como verdadeiros sujeitos, o foco central
da construção de uma sociedade livre e saudável, onde estes não devem ser usados como meros
meios para atingir fins alheios, sendo antes fins em si mesmos. Desta perspetiva torna-se difícil
argumentar que o contrato de gestação de substituição não se concretiza exatamente na utilização de
um ser humano para atingir fins alheios ao mesmo, se não com a mobilização daquela que poderá ser
a única razão aceitável para o fazer: o simples (e legítimo!) altruísmo da gestante de substituição.

Em relação à criança é inconcebível, por razões óbvias, classificá-la de um ponto de vista legal
como uma coisa passível de ser objeto contratual. A partir do momento do nascimento completo e
com vida, a criança adquire personalidade jurídica sendo necessariamente um sujeito com direitos84,
o que não afasta a justa proteção legal conferida aos nascituros85, ainda que não lhes seja conferida
personalidade jurídica86. Na mesma linha, é estranho considerar a criança como parte contratual uma
vez que, ao momento da celebração do contrato, esta nem existe e não possui personalidade jurídica,
não podendo concordar ou ser chamada a intervir no mesmo de forma direta. A única solução
possível é a de assumir a criança como um terceiro no contrato, semelhante ao terceiro num processo
civil87, mais concretamente uma parte acessória, uma vez que se vê diretamente afetada pela
execução do negócio ainda que não tenha tido um papel interventivo no mesmo. Ademais, o papel da
criança não se restringe a ser um mero interveniente no contrato, antes será um interveniente
compulsório, pois não existia aquando da celebração do negócio e, após o seu nascimento, é
necessariamente tida como participante deste88.

Atualmente sabemos que a dignidade da pessoa humana, tanto no caso da gestante como no caso
do nascituro, é exatamente o que divide a doutrina no que toca à admissibilidade destes contratos. Há
quem defenda que a própria natureza do contrato é inerente à instrumentalização da capacidade
reprodutiva das mulheres, especificamente porque culmina na separação entre mãe e recém-nascido
por força de um mútuo acordo entre partes. Neste âmbito são mobilizados diversos argumentos:

83
Cfr. KANT, Immanuel (2014) – Fundamentação da metafísica dos costumes – Edições 70, Lisboa, 2014; apud
MACHADO, Maria João Salazar (2020) – O contrato de gestação de substituição: Implicações da revogação do
consentimento e salvaguarda do superior interesse da criança (Dissertação de Mestrado – Mestrado em Ciências
Jurídico-Forenses), para Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Disponível em
https://eg.uc.pt/bitstream/10316/92805/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O_MJ_final%5B14616%5D.pdf . Consultado a
08.02.2022.
84
Cfr. Art.º 66.º n.º 1 do CC.
85
Cfr. Arts.º 140.º e 141.º CP.
86
Cfr. Art.º 66.º n.º 2 do CC.
87
Cfr. Art.º 631.º n.º 2 do Código do Processo Civil.
88
Cfr. SALES, Ana Amélia Ribeiro (2011) – O incumprimento dos contratos de doação de gameta, em Estudos sobre
o incumprimento, Coimbra Editora, NR 37, p. 91 apud SILVA, Joana Isabel Santos da (2018) - O Contrato de Gestação
de Substituição (Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico Forenses), para Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, pp. 24 -25. Disponível em https://eg.uc.pt/bitstream/10316/85786/1/O-contrato-de-gesta%C3%A7%C3%A3o-
de-substitui%C3%A7%C3%A3o-COMPLETO.pdf . Consultado a 08.02.2022.

Ghyovana Carvalho | FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA | 2022 19


Para DOMINGOS FREIRE DE ANDRADE “Desde 1761, ano em que se aboliu a escravatura
em Portugal, que não se compram pessoas no nosso país, no entanto, e ainda que a lei o proíba, com
a legalização das barrigas de aluguer corremos o intolerável risco de a pessoa humana voltar a ser
um bem transacionável. Num estado de direito democrático, os filhos nunca poderão ser um bem
suscetível de apropriação e as mulheres nunca poderão ser meros meios de produção..”89

De acordo com RITA FONTOURA “Quando se considera que uma mulher pode receber,
alimentar, dar vida durante nove meses a um bebé e depois desligar-se dele num estalar de dedos,
sem que os seus mais íntimos sentimentos sejam abalados, está-se a desumanizar as mães. Quando
se esquece que há um bebé a quem é retirada a sua mãe, aquela que ele ouviu durante nove meses,
aquela que cuidou dele, está-se a menosprezar o direito da criança.”90

Para PEDRO VAZ PATTO “Entre a mãe gestante e a criança nascem laços de vinculação
estreitíssimos que, por imposição de um contrato, são quebrados violenta e abruptamente à
nascença, tornando obrigatório para a mulher gestante (a mãe) o abandono do seu filho e a
renúncia à mais espontânea, instintiva e natural tendência que é a de continuar a cuidar da vida de
que cuidou durante nove meses.”91

Para RICARDO BATISTA LEITE “Ignora-se, pura e simplesmente, a instrumentalização do


corpo da mulher, atribui-se sem discussão superioridade ao laço genético sobre o laço afetivo de 9
meses de gestação e, ainda mais controverso, a criança é tratada como uma “coisa”, mero
prolongamento do progenitor, argumento que não se ouve desde a escravatura.”92

Em primeiro lugar, não podemos deixar de aludir o cariz absolutista das afirmações
suprarreferidas. Os autores mencionados assumem absoluta e indiscriminadamente que as mulheres
grávidas criam laços afetivos intensos e, aparentemente, indomáveis que as impedem (ou deveriam
impedir) biologicamente de se separar quer do nascituro quer da criança nascida e, que estes laços
deveriam ter prevalência na nossa legislação. Como já reconhecemos, esta relação entre gestante e
feto tem uma grande relevância não só a nível pessoal como biológico e jurídico, no entanto, é
perigoso afirmá-la como absoluta e preponderante sobre qualquer outra coisa, até mesmo sobre a
vontade da própria mulher. Quando mobilizamos argumentos desta espécie para justificar a

89
Cfr. ANDRADE, Domingos Freire de (2017) – Por quanto se vende um filho?, em OBSERVADOR. Disponível em
https://observador.pt/opiniao/por-quanto-se-vende-um-filho/ . Consultado a 09.02.2022.
90
Cfr. FOUTURA, Rita (2017) – Eu alugo e tu queres alugar, então está tudo certo!, em OBSERVADOR. Disponível
em https://observador.pt/opiniao/eu-alugo-e-tu-queres-alugar-entao-esta-tudo-certo/ . Consultado a 09.02.2022.
91
Cfr. PATTO, Pedro Vaz (2021) – Ecologia humana e “gestação de substituição”, em OBSERVADOR. Disponível em
https://observador.pt/opiniao/ecologia-humana-e-gestacao-de-substituicao/ . Consultado a 09.02.2022.
92
Cfr. LEITE, Ricardo Batista (2016) – Não às barrigas de aluguer, em PÚBLICO. Disponível em
https://www.publico.pt/2016/05/12/sociedade/opiniao/nao-as-barrigas-de-aluguer-1731658 . Consultado a 09.02.2022.

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inadmissibilidade de um regime como o do contrato de gestação de substituição, aceitando-os como
fundamento central, colocamos em causa a validade de tantos outros institutos que envolvem
gestações e que nem sempre culminam naquilo que seria considerado o ideal: o nascimento da
criança que é recebida e criada pela mulher que deu à luz juntamente com a restante família.
Assinalamos especificamente os regimes da interrupção voluntária da gravidez93, vulgo aborto, e da
adoção94.

Ora, se a relação entre mãe e feto deve ser causa de invalidade do regime de gestação de
substituição, semelhantemente, deveria ser causa de proibição do aborto e da adoção. Nesta
sequência e no caso do aborto (felizmente regulado e permitido95), seria impensável aceitar que uma
mulher grávida pudesse simplesmente “descartar-se” do feto, uma vez que a relação entre ambos
constituiria um facto imperioso para o direito. Paralelamente no caso da adoção, ao invocar
justificações daquela natureza, seria inconcebível permitir que a mulher que gerou o seu filho e,
necessariamente criou a tal relação vital com o mesmo, pudesse simplesmente abrir mão deste
colocando-o à adoção. Assim sendo, impõe-se uma pergunta muito importante: não será pior, do
ponto de vista biológico e moral, a mulher gestante que decide separar-se por livre e espontânea
vontade da criança gerada em condições normais e que carrega o seu material genético, do que
aquela que altruisticamente carrega um bebé gerado com o projeto genético de outrem, entregando-o
após o parto aos autores deste projeto?

O que se desconsidera aqui por inteiro é a vontade da mulher gestante. Não poderemos só
assumir incondicionalmente que esta mulher não está em condições de decidir livremente sobre o seu
corpo e sobre o futuro da criança que gera porque engravida. Para isto, temos leis que impõem o seu
devido esclarecimento e acompanhamento psicológico, culminando assim, na liberdade de escolha.
A gravidez não é uma doença que incapacita a mulher de decidir conforme os seus interesses. É um
processo complexo, acompanhado com alterações hormonais, claro, mas que não poderá servir como
desculpa para impedir que dentro dos limites legais, respeitando a boa-fé, as boas práticas e a
dignidade humana, seja retirado à mulher tenha o poder de autodeterminação. Só a própria mulher
poderá dizer se esta relação é imperiosa para si ao ponto de manter a criança gerada, sendo
despropositado criminalizar estas práticas com base em argumentos cegos e generalizados e (atrevo-
me até a dizer) paternalistas.

93
Cfr. Art.º 142.º do CP.
94
Cfr. Arts.º 1882.º, 1973.º e ss. do CC.
95
Permitido dentro de situações muito específicas e com respeito pela dignidade do nascituro, cfr. Art.º 142.º n.º 1 do CP.

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Comparativamente, a posição do bebé como exposta acima é redutora e, embora a lei necessite
de mais clarificação e reflexão no tocante a este sujeito, é incorreto afirmar que a criança é tratada
como coisa por ser planeada em sede de contrato e entregue aos beneficiários deste após o parto e
não à gestante de substituição. Neste quadro poderíamos questionar novamente se o mesmo não se
passará, provavelmente até de forma mais gravosa, nos casos de interrupção voluntária da gravidez e
adoção. A resposta é clara: não se trata de coisificar a criança, antes de fazer prevalecer o direito de
autodeterminação, direito ao livre desenvolvimento da personalidade e direito a constituir família (ou
não) da mulher. A mesma lógica aplicar-se-á à prática de doação de gâmetas, onde os indivíduos
decidem ceder o seu material reprodutivo e genético de modo que outrem possa utilizá-los e, através
de técnicas de PMA, conceber uma criança.

Como nota final, consideramos ser relevante no seio da questão da instrumentalização da


gestante, a controvérsia que se gera à volta dos deveres da mesma e qual a extensão das eventuais
cláusulas contratuais que respeitem a comportamentos da gestante durante a gravidez. Onde se traça
a linha entre o aceitável e inaceitável no que toca à previsão de obrigações da gestante? O art.º 8.º n.º
11 que remete para o art.º 13.º-B al. d) da LPMA esclarece que a gestante deve “Observar os
cuidados considerados normais, de acordo com as boas práticas médicas, da sua condição de
grávida, incluindo no que respeita à realização de viagens em determinados meios de transporte no
terceiro trimestre da gestação e ao estilo de vida a manter durante a gestação;”. Ou seja, a alteração
introduzida pela Lei n.º 90/2021 à LPMA, veio concretizar mais o âmbito e conteúdo das cláusulas
que poderão constar no contrato como deveres, obrigações ou imposições à gestante, o que não fazia
de forma tão clara antes. Tudo isto contribui para a garantia do respeito da dignidade humana da
gestante, que não é um produto, e que deve ter os seus direitos e deveres delimitados de forma
proporcional e justificada pelo legislador.

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3. CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS
É facto adquirido que ainda que a lei descriminalize certos comportamentos e os regule num
regime cuidado, a realidade das práticas nem sempre é prevista pelo legislador e inevitavelmente as
consequências jurídicas e sociais das mesmas serão diferentes das esperadas.

Neste ponto do trabalho abordaremos alguns fenómenos que têm marcado os contratos de
gestação de substituição não só em Portugal como no mundo, e que consideramos dignos de
referência num caminho complicado de construção e implementação destes contratos.

a. O chamado “Turismo Reprodutivo”

Segundo MARIA JOÃO SALAZAR MACHADO “A Grécia é, atualmente, o Estado-Membro


da União Europeia com legislação mais permissiva relativamente à prática da gestação de
substituição. (...) Neste país, casais homossexuais não podem recorrer à gestação de substituição e
a/os beneficiária/os e a gestante devem ser cidadãos gregos ou residentes na Grécia, requisito
essencial para se afastar a existência de casos de turismo reprodutivo naquele país. Os contratos de
gestação de substituição onerosos são proibidos.”96.

O turismo reprodutivo, como vulgarmente é conhecido, pode ser definido como o fenómeno em
que indivíduos que pretendem ter filhos através de técnicas de PMA não permitidas no seu país,
nomeadamente contratos de gestação de substituição, escolhem outros ordenamentos jurídicos mais
permissivos ou atrativos em termos legais para prosseguir o seu objetivo. SUSANA COSTA NETO
delimita este conceito como “o movimento de pessoas para outro estado ou jurisdição, de modo a
obter determinado tipo de assistência médica reprodutiva, à qual não podem aceder no seu País de
origem.”97.

96
Cfr. MACHADO, Maria João Salazar (2020) – O contrato de gestação de substituição: Implicações da revogação do
consentimento e salvaguarda do superior interesse da criança (Dissertação de Mestrado – Mestrado em Ciências
Jurídico-Forenses), para Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, cit. p. 21. Disponível em
https://eg.uc.pt/bitstream/10316/92805/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O_MJ_final%5B14616%5D.pdf . Consultado a
10.02.2022.
97
Cfr. NETO, SUSANA COSTA (2012) – Um exemplo de turismo médico: a maternidade de substituição além
fronteiras (Mestrado em Direito com Especialização em Ciências Jurídico-Forenses), para Instituto Superior Bissaya
Barreto, cit. p. 19. Disponível em
https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/29034/1/Um%20Exemplo%20de%20Turismo%20M%C3%A9dico_A%20M
aternidade%20de%20Substitui%C3%A7%C3%A3o%20Al%C3%A9m%20Fronteiras.pdf . Consultado a 10.02.2022.

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Se antes de ser regulada e permitida a gestação de substituição em Portugal poderíamos assumir
que portugueses praticavam este tipo de turismo98, nos moldes legais atuais, ficamos com dúvidas se
o nosso ordenamento jurídico pode agora ser alvo deste tipo de comportamentos. Esta questão tem
extrema relevância, uma vez que o legislador português, ao contrário do grego por exemplo, não fixa
critérios de nacionalidade e/ou residência para as eventuais partes envolvidas num contrato de
gestação de substituição celebrado em território português. Esta incerteza abre espaço não só a
dúvidas como também ao desenvolvimento de um possível turismo reprodutivo a ter lugar no nosso
país.

Acreditamos que seria sensato por parte do legislador esclarecer este ponto, visando dar
legitimidade contratual a partes que tenham nacionalidade portuguesa ou, pelo menos, um título de
residência português, residindo habitualmente em Portugal, como forma de combater este fenómeno
tão prejudicial. Todavia, nada impede que o CNPMA, no momento em que procede à avaliação dos
pedidos para contratar, possa vetar o acesso a esta técnica de PMA a não-nacionais se houver
indícios desta prática, isto com base na lei geral. Falamos especificamente da possível mobilização
do art.º 334.º do CC onde se lê “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda
manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou
económico desse direito.”. Ademais, como alerta VERA LÚCIA RAPOSO “Este silêncio do
legislador deve ser entendido como uma não-proibição de uso destes contratos por parte de
estrangeiros, mesmo que não residam habitualmente em Portugal. Claro que esta possibilidade vai
levantar problemas em sede de direito internacional privado, nomeadamente no que respeita ao
reconhecimento do contrato de gestação nos demais países e ao concomitante reconhecimento das
regras de estabelecimento da filiação que resultam da lei;”99.

Portanto reiteramos a necessidade de uma previsão expressa nesse sentido de modo a combater o
turismo reprodutivo conjuntamente com o fenómeno crescente da comercialização da reprodução,
consequência do primeiro.

98
NEVES, Céu (2019) – Portugueses procuram no estrangeiro maternidade de substituição. E quem os pode punir?, em
DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Disponível em https://www.dn.pt/vida-e-futuro/portugueses-procuram-no-estrangeiro-
maternidade-de-substituicao-e-quem-os-pode-punir-11132153.html . Consultado a 11.02.2022.
99
Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia (2017) – Tudo aquilo que você sempre quis saber sobre contratos de gestação (mas o
legislador teve medo de responder) – em Revista do Ministério Público, ed. 149, cit. p. 47.

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b. Comercialização da reprodução? Questão da onerosidade ou gratuitidade
do contrato e da dignidade da pessoa humana

Quando falamos de comercialização, na esmagadora maioria dos casos, é natural assumir que há
um preço a ser pago por algo (o que se compra) e por alguém (normalmente quem compra). Em
Portugal, como já vimos, o legislador quis evitar este fenómeno no âmbito da gestação de
substituição prevendo diversas medidas, entre elas, a obrigatória gratuitidade do contrato e a
criminalização da promoção e celebração de contratos onerosos ou que não respeitem os requisitos
da LPMA.

A verdade é que isto não é suficiente. Neste domínio nunca é demais relembrar a especial
natureza do contrato de gestação de substituição que, inevitavelmente, toca em assuntos tão pessoais
e sensíveis. O contrato de gestação de substituição confronta os princípios mais basilares da nossa
sociedade como o direito à autodeterminação, a constituir família, a dignidade humana e, mais
intensamente, faz-nos questionar a extensão e os limites destes direitos. É por isso um campo
jurídico que merece a maior atenção e clarificação e onde, certamente, não queremos deixar a ótica
da oferta, da procura e do lucro (típicas da comercialização) reinar.

Por um lado, felicitamos o legislador pela opção de proibir a onerosidade dos contratos de
gestação de substituição. Esta imposição colmata uma das maiores preocupações sociais levantadas
no âmbito deste contrato: a questão de o incentivo monetário ser especialmente aliciante a mulheres
mais carenciadas que, veriam nele uma oportunidade de ganhar sustento através da venda da sua
capacidade reprodutiva. E não nos enganemos em pensar que esta matéria não tem a mais alta
relevância social, pois abriria portas a uma maior precarização destas mulheres já bastante
fragilizadas pelas suas condições financeiras, conduzindo mesmo à sua desumanização. Verificamos
estas ocorrências nomeadamente em casos de prostituição onde, ainda que profundamente diferente
da gestação de substituição100, a utilização do corpo de um individuo101 para atingir um fim alheio
aos seus próprios interesses com a contrapartida de remuneração, conduz quase que inevitavelmente
à sua desumanização. Esta desumanização provém de uma ideia de que a pessoa é um produto ao
serviço de outrem e que o seu bem-estar, os seus direitos, liberdades e garantias estão num patamar
abaixo dos restantes. O mais grave aqui é que as vítimas deste fenómeno são sempre as mesmas102:
as pessoas, especialmente mulheres, com maiores carências financeiras. Daqui decorre a importância

100
No que concerne à sua finalidade, interesses e direitos em conflito.
101
Maioritariamente mulheres, note-se.
102
Com raríssimas exceções, claro.

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de um combate ativo a estas ideias e comportamentos; combate este que deve em primeira instância
ser realizado pelo ordenamento jurídico de cada país através do direito.

Por outro lado, é fácil compreender a dificuldade em encontrar uma gestante de substituição que,
por puro altruísmo, aceitará celebrar um contrato deste nível de forma gratuita. Forçosamente
qualquer gestante terá sempre um preço a pagar quando suporta uma gravidez, preço esse que se
torna mais caro se o fruto da mesma pertencer a outra pessoa. Nesse quadro, LAURINDA ALVES
atesta que “(...) há custos tão ou mais elevados que os financeiros. O preço físico, moral e emocional
a pagar por todo este processo pode ser brutal.”103.

Todavia, na linha de diversos autores, nomeadamente GUILHERME DE OLIVEIRA


FALCÃO104, a onerosidade do contrato de gestação de substituição atenta necessariamente contra a
dignidade da pessoa humana ao implicar que a capacidade produtiva da mulher tem um preço, e que
os bebés podem ser comprados. Deste modo, consideramos que a única forma de impedir a
comercialização da reprodução e o “mercado de bebés”, ainda que regulado e fiscalizado, é manter
este traço de gratuitidade obrigatória dos contratos de gestação de substituição105. Este mesmo fator
ajuda a garantir ainda a excecionalidade destes contratos que, a nosso ver, devem realizar-se o mais
esporadicamente possível106. Agregado a isto, a lei penaliza criminalmente não só a celebração ou
promoção de contratos de gestação que não respeitam os critérios da mesma bem como a tentativa,
no art.º 39.º da LPMA. Mas, aqui levantamos outra questão com a mais elevada relevância: e se,
durante a execução do contrato quando a criança já está a ser formada, descobre-se que os
beneficiários estão a fazer pagamentos ilícitos à gestante? O contrato é anulado? A gestante pode
abortar dentro dos limites da lei? A gestante é obrigada a dar à luz à criança se não puder abortar e
não quiser ficar com ela? Os beneficiários ocorrem numa conduta criminosa e ainda poderão ficar
com a criança? Ficará verdadeiramente salvaguardada então a finalidade da norma no que respeita à
proibição da onerosidade destes contratos?

Nesta linha, reitera-se a importância do combate à comercialização da reprodução, não


esquecendo que, apesar do regime da gestação de substituição ter tido muitos avanços recentes,
existem ainda diversos aspetos que carecem de esclarecimento, fiscalização e resposta. Temos um

103
Cfr. ALVES, Laurinda (2017) – Cheira a negócio, em OBSERVADOR. Disponível em
https://observador.pt/opiniao/cheira-a-negocio/ . Consultado a 11.02.2022.
104
Cfr. OLIVEIRA, Guilherme Freire Falcão de (1992) – Mãe há só (uma) duas! O contrato de gestação, Coimbra
Editora ,cit. p. 45.
105
Note-se que falamos de uma gratuitidade flexível no sentido de acreditarmos poder haver espaço a compensações
proporcionais e fundamentadas de forma a ressarcir a gestante de substituição nem que seja pelos incómodos que
suportou durante a gravidez (como ocorre em muitos outros campos do direito).
106
Tal como a LPMA também incentiva no art.º 12.º, al. e), é importantíssimo dar-se relevo a outros institutos que
permitam aos beneficiários constituir família, nomeadamente com a promoção de uma adoção responsável.

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longo caminho de reflexão e ponderação a realizar nesta matéria, contudo, é um caminho que tem de
ser traçado de forma a garantir as legítimas aspirações dos beneficiários em ter filhos biológicos, sem
comprometer a dignidade humana da gestante e da criança.

4. Conclusão

Após todo o nosso estudo, é interessante voltarmos à questão realizada na Introdução deste
trabalho: qual o atual preço da gestação de substituição? Nos moldes legais atuais, o preço da
gestação de substituição prende-se com um regime pouco desenvolvido e mal justificado em diversas
vertentes, desde a legitimidade contratual das partes, aos direitos e deveres da gestante e questões de
incumprimento contratual até à desconsideração do superior interesse da criança. É um contrato,
portanto, que por agora custa caro a quem consegue aceder e participar no mesmo (ainda que seja
obrigatoriamente gratuito) por existirem diversos conflitos de direitos que, a nosso ver, a lei não
consegue ainda dar uma resposta satisfatória.

Há, no entanto, que reconhecer que o atual regime alterado pela Lei 90/2021 trouxe melhorias
consideráveis ao mesmo e acreditamos que a reflexão sobre esta técnica de PMA tão complexa e
sensível deve continuar e aprofundar-se, de modo a alcançarmos um regime mais equilibrado e
sensato.

A única certeza que temos em matéria de gestação de substituição é que esta prática não deve ser
simplesmente criminalizada, até porque já vimos que é possível a elaboração de um regime que
proporcione um equilíbrio seguro entre os interesses e direitos das partes, e assim sendo, é mais do
que exequível (e necessário!) uma regulamentação da gestação de substituição que proporcione o
direito a constituir a família a quem não o possa fazer pela via comum agregado a uma proteção
efetiva da gestante e da criança. Como expõe com muita sensatez VERA LÚCIA RAPOSO “(...) a
solução não reside na sua proibição, mas na criação de um regime jurídico que garanta
acompanhamento jurídico (e até psicológico) a ambas as partes, um estrito controlo das prestações
devidas e um adequado período de reflexão para a mãe de substituição” e “tenha-se sobretudo em
conta que este contrato não se destina a satisfazer um capricho fútil, mas pelo contrário, a
concretizar direitos fundamentais que a todos nos cabem, o direito à saúde, o direito à reprodução e
o direito a constituir família (...) a sua limitação exige uma justificação acrescida, que não se basta

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com meras alusões às conceções morais de cada um.”107. Aqui reside o cerne da fundamentação
contra a criminalização do contrato de gestação de substituição: não existem motivos que não sejam
morais ou religiosos108 que justifiquem considerar esta prática um crime. A questão de envolver um
terceiro em processos reprodutivos já foi ultrapassada pelo nosso direito com a previsão de diversas
outras técnicas de PMA que não se fecham na pessoa ou casal que pretende ter filhos; porque deve
então a gestação de substituição ainda ser vista com maus olhos de uma perspetiva legal? Só porque
um assunto confronta as práticas até ao momento consideradas comuns, não quer dizer que deve ser
abandonado por termos receio de aprofundar a nossa reflexão enquanto sociedade sobre ele. A
gestação de substituição é um instrumento de concretização de direitos fundamentais, um
instrumento complexo claro, mas que não deixa de ter a sua importância capital no respeitante ao
desenvolvimento da reprodução e da humanidade como um todo, devendo o legislador prestar a
devida atenção ao mesmo.

Terminamos com a exposição do pensamento de RAFAEL VALE E REIS que acreditamos


resumir a relevância deste instituto não só para o direito como para a civilização humana:

“Em todo o caso, não duvido que está aberto um novo e importante (embora difícil) caminho
para a gestação de substituição em Portugal. Apesar das imperfeições técnicas, a aplicação das
regras pode ser melhor do que, neste momento, se antecipa. É o que desejam aqueles que, como eu,
vêm na gestação de substituição, mais do que uma perigosa cedência ao argumento da ladeira
escorregadia, a concretização de um avanço civilizacional que pode trazer felicidade a alguns, sem
prejuízo dos outros.”109.

107
Cfr. RAPOSO, Vera Lúcia (2012) – Quando a cegonha chega por contrato, em Boletim da Ordem dos Advogados,
n.º 88, Lisboa, cit. pp. 26-27. Disponível em https://portal.oa.pt/media/118051/n%C2%BA88-mar2012.pdf . Consultado
a: 13.02.2022.
108
Motivos esses assentes em bases subjetivas de avaliação.
109
VALE E REIS, Rafael (2017) – O difícil caminho da gestação de substituição em Portugal, em OBSERVADOR.
Disponível em https://observador.pt/opiniao/o-dificil-caminho-da-gestacao-de-substituicao-em-portugal/ . Consultado a
13.02.2022.

Ghyovana Carvalho | FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA | 2022 28


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LEGISLAÇÃO
Código Civil (CC).
Código Penal (CP).
Código do Processo Civil (CPC).
Constituição da República Portuguesa (CRP).
Código de Registo Civil (CRC).
Lei n.º 25/2016, que procedeu à alteração da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho (LPMA).

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