As Esposas Tarryn Fisher
As Esposas Tarryn Fisher
As Esposas Tarryn Fisher
Sobre a obra:
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
F565e
Fisher, Tarryn, 1983-
As esposas [recurso eletrônico] / Tarryn Fisher ; tradução João Pedroso. -
1. ed. - Rio de Janeiro : Record, 2022.
recurso digital
Tradução de: The wives
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5587-545-4 (recurso eletrônico)
1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. I. Pedroso, João. II. Título.
22-77661
CDD: 813
CDU: 82-3(73)
Esta edição foi publicada mediante acordo com Harlequin Books S.A.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes são fruto
da imaginação da autora ou fictícios, e qualquer semelhança com pessoas reais,
vivas ou mortas, estabelecimentos, eventos ou localidades é mera coincidência.
ISBN 978-65-5587-545-4
UM
DOIS
TRÊS
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
OITO
NOVE
DEZ
ONZE
DOZE
TREZE
CATORZE
QUINZE
DEZESSEIS
DEZESSETE
DEZOITO
DEZENOVE
VINTE
VINTE E UM
VINTE E DOIS
VINTE E TRÊS
VINTE E QUATRO
VINTE E CINCO
VINTE E SEIS
VINTE E SETE
VINTE E OITO
VINTE E NOVE
TRINTA
TRINTA E UM
TRINTA E DOIS
TRINTA E TRÊS
TRINTA E QUATRO
TRINTA E CINCO
TRINTA E SEIS
UM
E
le vem toda semana na quinta-feira. É o meu dia, eu sou
a Quinta. É um dia cheio de esperança, perdido em meio
a dias mais importantes; não é o começo nem o fim,
mas uma parada. Um aperitivo para o fim de semana. De
vez em quando, penso nos outros dias e fico me
perguntando se elas pensam em mim. As mulheres são
assim, não é? Ficam sempre pensando em outras mulheres,
e a curiosidade e a raiva vão se embrenhando em um misto
de emoções. Só que isso não adianta nada; quem pensa
demais acaba entendendo tudo errado.
N
a sexta-feira de manhã, Seth já não está mais aqui
quando acordo. Fiquei me revirando para lá e para cá
até quatro da manhã e depois devo ter caído num sono
pesado, porque não o ouvi indo embora. Às vezes, me sinto
uma menina que acorda sozinha após uma transa casual,
depois que o cara vai embora e antes que ela possa
perguntar o nome dele. Às sextas, sempre fico até mais
tarde na cama, olhando para a marca que ele deixa no
travesseiro até a luz do sol atravessar a janela e chegar aos
meus olhos. Hoje, o sol ainda nem começou a subir no
horizonte e já estou encarando a cavidade no travesseiro ao
meu lado como se minha vida dependesse disso.
As manhãs são difíceis. Em um casamento normal, o
comum é acordar ao lado de uma pessoa, validar sua vida
vendo o corpo dela tomado pelo sono. Há rotinas e
compromissos, o que é chato, mas também é reconfortante.
Não tenho o conforto da normalidade: um marido que ronca
e me chuta sem querer durante a noite, ou a pasta de dente
grudada na pia, que, frustrada, tenho de limpar. Seth não
faz parte da base desta casa, e, na maioria dos dias, isso
me entristece muito. Ele mal chega e já vai embora, para a
cama de outra mulher, enquanto a minha esfria.
Dou uma olhada no meu celular e sinto a ansiedade
embrulhar meu estômago. Não gosto de mandar
mensagens para ele. Tenho a impressão de que seu celular
é lotado de conversas com as outras. Hoje de manhã,
porém, sinto uma urgência de pegar o telefone e mandar: Tô
com saudade. Ele sabe disso, é lógico que sabe. Quando
uma esposa passa cinco dias da semana sem ver o marido,
ele deve saber que ela fica com saudade. Mas não pego o
celular nem mando a mensagem. Sem ter mais o que fazer,
jogo as pernas para fora da cama, calço as pantufas e sinto
os dedos dos pés se acomodarem à maciez do interior do
calçado. As pantufas fazem parte da minha rotina, da minha
busca pela normalidade. Vou até a cozinha e dou uma
olhada na cidade lá embaixo. Há uma cobra vermelha de
luzes de freio preenchendo a avenida 99 formada por
trabalhadores esperando a vez no sinal. Limpadores de
para-brisa vão e vêm, secando a chuva que mais parece
uma neblina do vidro dos carros. Eu me pergunto se Seth
está lá no meio, mas não, ele pega a rodovia 5 para ir
embora. Para ir para longe de mim.
Abro a geladeira, pego uma garrafa de vidro de Coca-Cola
e a coloco na bancada. Vasculho a gaveta de talheres à
procura do abridor e solto um palavrão quando um palito de
dente entra debaixo da minha unha. Ponho o dedo na boca
e abro a garrafa com a outra mão. Deixo só uma garrafa de
Coca na geladeira e escondo o restante embaixo da pia,
atrás do regador de plantas. Toda vez que tomo uma, coloco
outra para gelar. Desse jeito, parece que é sempre a mesma
garrafa de Coca que fica na geladeira. Não há ninguém para
enganar além de mim mesma. Talvez eu não queira que
Seth saiba que tomo Coca no café da manhã. Ele tiraria uma
com a minha cara, coisa com a qual não me importaria nem
um pouco, mas é só que não é legal outras pessoas
saberem que você toma refrigerante no café da manhã.
Quando eu era pequena, era a única entre as minhas
amigas que gostava de brincar de Barbie. Aos dez anos,
elas já estavam na maquiagem, viam MTV e pediam roupas
de Natal em vez da nova Barbie Trailer dos Sonhos. Eu
morria de vergonha da minha paixão por Barbies,
principalmente depois que minhas amigas fizeram um
escândalo por causa disso e me chamaram de bebê. Em um
dos momentos mais tristes da minha infância, empacotei
todas as minhas bonecas e as guardei em uma caixa no
closet. Naquela noite, chorei até pegar no sono, porque não
queria me desfazer de algo que eu tanto amava, mas
também não queria que ficassem rindo de mim por causa
disso. Algumas semanas depois, quando minha mãe achou
a caixa enquanto procurava roupas sujas para lavar, me
perguntou o que tinha acontecido. Chorando, contei a
verdade. Eu era velha demais para brincar de Barbie, e era
hora de seguir em frente.
Você pode brincar com elas escondido. Ninguém precisa
ficar sabendo. Você não precisa abandonar algo que ama só
porque outras pessoas não aprovam, falou ela.
Segredos: sou boa em tê-los e em guardá-los.
Vejo que ele comeu uma torrada antes de sair. Há
migalhas de pão na bancada e uma faca suja de manteiga
na pia. Eu me martirizo por não ter acordado mais cedo e
preparado algo para ele. Semana que vem, prometo a mim
mesma. Semana que vem, serei melhor, vou alimentar meu
marido com um café da manhã. Serei uma daquelas
mulheres que serve sexo e refeição três vezes por dia. Sinto
a ansiedade embrulhar meu estômago de novo. Será que
Segunda e Terça se levantam e preparam o café da manhã
para ele? Será que tenho sido relaxada esse tempo todo?
Será que ele me acha negligente por ter ficado na cama?
Limpo a bancada: junto todas as migalhas na mão e, com
raiva, sacudo-as na pia. Depois, pego a Coca e vou para a
sala. Sinto a garrafa gelada na palma da mão e fico
pensando em todas as maneiras que eu poderia ser melhor.
Q
uando volto para casa no sábado de manhã depois do
meu plantão, vou direto para a cama. Foi uma noite
longa, do tipo que me deixa exausta tanto mental
quanto emocionalmente. Houve um engavetamento de dez
carros na rodovia 5 e umas doze pessoas foram parar na
emergência, e depois uma briga doméstica que levou um
marido direto para o pronto-socorro com três tiros no
abdome. A esposa aparecera dez minutos depois segurando
um bebê e usando uma camisa amarela encharcada de
sangue. Ela gritava que aquilo não passava de um engano.
Toda noite na emergência era um filme de terror: feridas
abertas, choro e dor. No fim da noite, o chão estava
grudento de sangue e escorregadio por causa dos vômitos.
Meu uniforme é preto e, assim, a nojeira não fica aparente.
Estou pegando no sono quando escuto a porta se abrir e
fechar, e depois um apito de trem. Esse som agudo faz
parte do nosso sistema de segurança e me avisa sempre
que a porta é aberta. Fico tensa na cama e arregalo os
olhos. Será que foi um sonho ou aconteceu mesmo? Seth
está em Portland; ele mandou uma mensagem ontem à
noite e não disse nada sobre vir para casa. Espero, sem
mexer nem um músculo sequer, pronta para sair correndo
da cama e…
Com o coração disparado, viro a cabeça para a direita, à
procura de algo que possa servir como arma. A pistola que
meu pai me deu de presente no meu aniversário de vinte e
um anos está escondida em algum lugar no closet. Tento
lembrar onde, mas estou tremendo de medo. Outra arma,
então… Meu quarto é um amontoado de coisas delicadas e
femininas; não há armas ao meu alcance. Jogo o cobertor
para longe e me levanto com dificuldade. Sou uma mulher
burra e indefesa que tem uma pistola, mas que não sabe
onde ela está nem como usá-la. Será que me esqueci de
trancar a porta? Eu estava meio sonolenta quando cheguei,
cambaleante, chutando os sapatos para longe… Então
escuto a voz da minha mãe me chamando da sala. O pânico
retrocede, mas meu coração continua disparado. Pouso a
mão no peito e fecho os olhos. Um tilintar — minha mãe faz
esse barulho quando se mexe. Relaxo, e meus ombros
voltam ao normal. É mesmo. Tínhamos marcado de almoçar
juntas. Como pude esquecer? Você está cansada, precisa
dormir, digo a mim mesma. Arrumo o cabelo olhando no
espelho da penteadeira e dou um jeito de tirar o sono dos
meus olhos antes de sair do quarto e adentrar o corredor.
Ponho uma expressão animada no rosto.
— Oi, mãe — digo, indo lhe dar um abraço rápido. —
Acabei de chegar. Desculpa, nem tomei banho ainda.
Minha mãe se desvencilha do abraço e dá uma olhada em
mim; seu cabelo perfeitamente penteado absorve os raios
de sol que passam pela janela e percebo que ela retocou as
mechas.
— Você está fantástica — digo. É meu dever dizer isso,
mas não deixa de ser verdade.
— Você parece cansada — diz ela, com desdém. — Por
que não toma um banho enquanto eu faço o almoço aqui?
Assim, não precisamos sair.
E, simples assim, sou dispensada na minha própria casa.
É sinistro o modo como ela ainda faz com que eu me sinta
uma adolescente.
Assinto, sentindo uma onda de gratidão, apesar do tom
com que ela falou comigo. Depois da noite que tive, o
simples ato de pensar em me arrumar para sair é
insuportável.
Tomo um banho rápido, e, quando saio do banheiro
enrolada no roupão, minha mãe já tinha servido os
sanduíches de croissant de salada de frango. Uma taça de
mimosa está posta ao lado do meu prato. Agradecida,
sento-me à mesa. Minha geladeira recém-estocada não a
desapontou. Aprendi a cozinhar com ela, e, se tem uma
coisa que minha mãe me ensinou, foi a sempre ter a
geladeira cheia para alguma refeição surpresa que você
precise preparar.
— Como está Seth? — É a primeira pergunta que faz
assim que se senta. Minha mãe é assim: sempre objetiva,
sempre pontual, sempre organizada. É a dona de casa e a
esposa perfeita.
— Ele estava cansado quando apareceu aqui na quinta-
feira. Não conseguimos conversar direito. — É verdade. Fico
receosa que minha voz tenha me entregado, mas, quando
olho para ela, minha mãe está prestando atenção em sua
comida.
— Coitadinho — diz, cortando o croissant com
determinação. As pelancas de seu braço balançam
conforme ela corta a comida e sua boca está torcida em
reprovação. — Essa coisa de ficar indo e vindo o tempo
todo. Sei que foi a decisão certa pra vocês dois, mas mesmo
assim é difícil.
Ela só está falando que foi a escolha certa para não me
deixar chateada. Ela já me disse, sem tripudiar, que meu
dever era ficar com Seth e que eu devia largar meu trabalho
para estar com ele aonde quer que ele fosse. Ela costumava
me encher o saco para eu me casar com ele, depois fez
uma transição sutil para o tópico “bebês”.
Assinto. Não estou nem um pouco a fim de ter essa
conversa com minha mãe. Ela sempre acha um jeito de
fazer eu me sentir um fracasso como esposa de Seth. Na
maioria das vezes, a questão é dar um filho a ele. Ela está
convencida de que ele vai deixar de me amar se meu útero
não fizer o trabalho dele. Eu poderia pôr um fim na conversa
e dizer que ele já tem outra mulher, duas, inclusive, as
quais preenchem os vazios que eu não consigo preencher.
Que uma delas inclusive está grávida.
— Sempre tem a possibilidade de você colocar esse lugar
pra alugar e ir ficar com ele em Oregon — sugeriu ela. —
Não é tão ruim assim. A gente morou lá por um ano quando
você tinha dois anos, na casa da sua avó. Você sempre
amou aquela casa — diz ela, como se eu já não soubesse
disso, como se nunca tivesse me contado as histórias.
— Não dá — respondo, com a boca cheia. — Ele tem de
vir ao escritório de Seattle duas vezes por semana. Teríamos
que manter um lugar aqui de qualquer jeito. E, além disso,
não quero me mudar. Minha vida é aqui, meus amigos estão
aqui e eu amo o meu trabalho. — Verdade, verdade,
mentira. Nunca gostei de Portland. Sempre a considerei a
prima pobre de Seattle: mesma paisagem, clima parecido,
só que muito mais suja. Meus avós moraram a vida toda lá,
sem nunca nem terem saído do estado. Além da casa em
que moravam, eles tinham outra, mais para o sul, perto da
Califórnia, onde passavam as férias. Só de pensar em
Portland, já fico claustrofóbica.
Minha mãe olha para mim com um olhar de
desaprovação; há um pingo de maionese em sua unha rosa
perolada. Ela é antiquada nesse nível. Na cabeça dela, a
mulher deve ir aonde o homem for; caso contrário, dá
brechas para traição. Ah, se ela soubesse…
— Esse foi nosso combinado, e é o que mais faz sentido
— digo com firmeza. E continuo: — Por enquanto. — Para
lhe agradar. E é verdade. Seth é um construtor. Ele abriu um
escritório recentemente em Portland e, enquanto Alex, seu
sócio, cuida da filial de Seattle, Seth tem de passar a maior
parte da semana em Portland supervisionando os projetos
da empresa por lá.
Segunda e Terça moram lá. Elas passam mais tempo com
ele, e morro de ciúmes disso. Ele costuma almoçar com uma
delas, um luxo que não tenho, já que Seth passa a maior
parte da quinta-feira na estrada, vindo me ver em Seattle.
Às sextas-
-feiras, ele passa o dia no escritório de Seattle e, de vez em
quando, me encontra para jantar antes de voltar para
Portland no sábado. Por enquanto, a maior parte do dia em
que ele troca de casa é gasta na estrada, mas, como duas
delas moram no Oregon, já comecei a aceitar que vai ser
sempre assim. Não é fácil fazer parte de algo tão incomum
e não ter ninguém com quem conversar a respeito.
Nenhuma das minhas amigas sabe, embora eu já tenha
quase contado tudo para Anna, minha melhor amiga.
Às vezes, queria poder entrar em contato com alguma
das outras esposas, ter um grupo de apoio. Mas Seth quer
fazer tudo diferente, da forma como era no lugar onde
cresceu. Nós, as esposas, não temos nenhum contato umas
com as outras, e sempre respeitei o desejo do meu marido
de não me meter. Nem o nome delas eu sei.
— Quando vocês vão tentar engravidar? — pergunta
minha mãe.
De novo. Ela pergunta isso sempre que estamos juntas, e
já estou de saco cheio. Ela não sabe a verdade e nunca tive
coragem de lhe contar.
— Se você tivesse um filho, ele seria obrigado a passar
mais tempo aqui — diz ela, como se estivesse formulando
uma teoria da conspiração.
Olho para ela, boquiaberta. A vida de minha mãe se
resumia a mim e a minha irmã. Nossos sucessos eram o
sucesso dela. Nossos fracassos, seus fracassos. Até acho
que seja fino e elegante viver pelos filhos quando eles são
crianças, mas e depois? O que acontece quando eles saem
de casa e vão viver a própria vida e a mãe fica sem nada?
Sem hobbies, sem carreira, sem identidade.
— Mãe, a senhora está sugerindo que eu dê o golpe da
barriga em Seth? — pergunto, apoiando o garfo na mesa e
olhando para ela, chocada.
Minha mãe é meio enxerida, conhecida por fazer
comentários sem noção sobre a vida dos outros. Agora,
sugerir que eu fique grávida para forçar meu marido a ficar
em casa é demais, até para ela.
— Bem, não é como se ninguém nunca tivesse pensado
nisso antes… — diz ela, bufando e olhando ao redor.
Ela sabe que foi longe demais. Sou tomada por um
sentimento de culpa. Nunca contei à minha mãe sobre a
histerectomia de emergência. Na época, não quis falar
sobre isso, e contar agora faria de mim um fracasso ainda
maior aos olhos dela.
— Não sou esse tipo de pessoa. E não somos esse tipo de
casal. Além disso, quem ficaria no lugar de Seth no
escritório de Portland? — pergunto, irritada. — É o nosso
dinheiro e o nosso futuro que estão em jogo.
E não só o meu. Seth tem uma família ainda maior para
sustentar. Cubro o rosto com as mãos, e minha mãe se
levanta e dá a volta na mesa para me confortar.
— Desculpa, filhinha — diz ela, usando o apelido pelo
qual me chama. — Fui longe demais. Você que sabe o que é
melhor para seu relacionamento.
Satisfeita, assinto com a cabeça e pego um pouco de
salada de frango com a mão e lambo o dedão. Nada nessa
situação é normal, e, se Seth e eu queremos que essa
relação dê certo, preciso conversar com ele sobre meus
sentimentos. Passei tanto tempo fingindo que estava tudo
bem que agora ele não faz a menor ideia de como estou
sofrendo. Não é justo nem para ele nem para mim.
Minha mãe vai embora uma hora depois e promete me
levar para almoçar fora na segunda-feira.
— Descanse — diz ela, e me dá um abraço.
Fecho a porta e respiro, aliviada.
Estou desesperadamente cansada, mas, em vez de ir
para a cama, vagueio pelo pequeno closet de Seth. Apesar
de passar a maior parte da semana longe, ele deixa uma
quantidade boa de roupas aqui. Passo as mãos nos ternos e
levo uma camisa até o nariz para cheirá-la. Eu o amo tanto
e, apesar da situação estranha em que vivemos, não
consigo me imaginar casada com mais ninguém. E o amor é
isso, não é? Saber lidar com a bagagem de seu parceiro. A
do meu, no caso, veio com duas mulheres.
Estou prestes a apagar a pequena luz no teto e sair
quando algo chama minha atenção. Há um pedaço de papel
quase caindo do bolso de uma calça social. Puxo-o, em um
primeiro momento, preocupada que vá para a máquina de
lavar e manche as outras roupas, mas, assim que o tenho
nas mãos, fico curiosa. Está dobrado em um quadrado
perfeito. Seguro o bilhete por um breve instante antes de
abri-lo para dar uma olhada. É o recibo de uma consulta
médica. Escaneio as palavras com os olhos, pensando se há
algo de errado com Seth ou se ele só foi fazer um check-up,
mas seu nome não está em lugar algum. Na verdade, o
recibo foi emitido no nome de uma tal Hannah Ovark, e o
endereço dela está no canto superior do papel: Rua Galatia
Lane, no 324 — Portland, Oregon. O médico de Seth é em
Seattle.
— Hannah — digo em voz alta. O recibo médico que
tenho em minhas mãos diz que ela foi fazer consultas de
rotina e alguns exames. Será que Hannah é… Segunda?
Sem saber o que fazer, apago a luz do closet e levo o
papel comigo até a sala. Será que eu deveria perguntar
alguma coisa a Seth ou fingir que não encontrei nada? Meu
MacBook está perto do sofá. Pego-o, apoio-o em meu colo e
abro o Facebook. Tenho uma vaga sensação de que estou
quebrando alguma regra.
Digito o nome dela na barra de pesquisa e fico
tamborilando os dedos sobre meu joelho enquanto espero
pelos resultados. Três perfis aparecem: um é de uma mulher
mais velha, talvez com uns quarenta anos, que mora em
Atlanta; outro é de uma garota com cabelo rosa que parece
ter acabado de entrar na adolescência. Clico no terceiro
perfil. Seth me disse que Segunda é loira, mas nunca deu
nenhum outro detalhe sobre a aparência dela. A visão que
eu tinha de uma moça de bem com a vida e surfista é
estilhaçada quando encaro Hannah Ovark. Ela não é surfista
e seus cabelos loiros não transmitem inocência. Fecho o
notebook com tudo, vou batendo o pé até o banheiro e pego
meu remédio para dormir. Preciso desesperadamente
dormir. Estou ficando doida, e isso está afetando o jeito
como encaro as coisas.
Uma fileira de frascos alaranjados me encara do armário
de remédios. Pequenas sentinelas cujos objetivos vão desde
me dopar até me deixar alerta. Pego o Ambien e coloco um
comprimido na língua. Bebo água direto da torneira para
ajudar a engoli-lo e me aconchego na cama, esperando que
o estado de inconsciência tome conta de mim.
QUATRO
A
cordo desorientada e meio aérea. Pela janela, vejo o sol
brilhando lá no céu, mas não tinha acabado de
anoitecer quando caí no sono? Pego meu despertador
para ver a hora e percebo que dormi por treze horas. Saio
da cama rápido demais, e o quarto gira ao meu redor.
— Merda, merda, merda.
Apoio-me em uma parede para recuperar o equilíbrio e
fico ali até sentir firmeza nos pés. Meu celular está na
penteadeira com a tela virada para baixo, quase sem
bateria. Tem sete chamadas perdidas de Seth e três
mensagens de voz. Ligo para ele sem ouvir as mensagens e
sinto um pavor se intensificar a cada toque.
— Está tudo bem? — É a primeira coisa que ele diz
quando atende. Sua voz está tensa e imediatamente me
sinto culpada por deixá-lo preocupado.
— Sim, está — respondo. — Tomei um remédio pra dormir
e devo ter apagado. Desculpa, estou me sentindo uma
idiota.
— Fiquei preocupado — diz ele, com a voz já menos tensa
que há um instante. — Quase liguei para o hospital pra
perguntar a que horas você saiu.
— Desculpa mesmo — repito. — Tudo bem por aí?
Não. Já sei só pelo tom da voz dele. Ele não tem como
saber que descobri a existência de Hannah, tem? Fico
enrolando uma mecha de cabelo no dedo enquanto espero
ele responder.
— Só uns problemas no trabalho — diz ele. —
Empreiteiros em que não posso confiar. Não posso
conversar agora. Só queria ouvir sua voz.
Fico feliz da vida por ser minha voz que ele quer ouvir.
Não a das outras. A minha.
— Queria te ver — digo.
— Você podia tirar uns dias. Vir de carro para cá e passar
um tempo comigo em Portland.
Quase deixo o celular cair de tanta emoção.
— É sério? Você… quer mesmo que eu vá?
Enquanto falo, olho para meu reflexo no espelho da
penteadeira. Meu cabelo nunca esteve tão comprido assim;
está precisando dos cuidados de um profissional. Toco uma
mecha desgrenhada e começo a pensar se consigo marcar
um horário na cabeleireira antes de viajar. Uma fugidinha
parece uma boa justificativa para eu me cuidar um pouco.
— Claro — diz ele. — Vem amanhã. Você ainda tem
muitos dias de férias para tirar.
Meus olhos varrem a mobília do quarto: os móveis
brancos de madeira e as cestas de vime. Talvez eu esteja
precisando mesmo mudar um pouco de ares. Não tenho me
sentido eu mesma ultimamente.
— Mas onde vou ficar?
— Peraí um segun… — A voz fica abafada, e escuto
alguém falando com ele do outro lado da linha, então ele
volta. — Tenho que ir. Vou reservar um quarto no Dossier. A
gente se vê amanhã?
Quero perguntar sobre Segunda e Terça, se o plano é
dispensá-las por mim, mas ele está com pressa.
— Estou tão animada — digo. — Até amanhã. Te amo.
— Também te amo, amor. — E desliga.
Ligo para o trabalho na mesma hora, consigo que três
turnos meus sejam cobertos, e depois ligo para minha
cabeleireira, que consegue um encaixe para atender em
uma hora. Duas horas depois, estou em casa com a
coloração e o corte renovados, indo até o closet fazer minha
mala. Não me lembro do papel que encontrei nem de
Hannah Ovark até procurar meu MacBook, que planejo levar
comigo. Me jogo no sofá e encaro a tela, a evidência da
minha investigação. O Facebook ainda está aberto no perfil
dela, e o rosto sorridente da mulher me encara. É diferente
fazer essa pesquisa à luz do dia, de forma mais premeditada
e sorrateira. A partir do momento que eu conseguir
informações sobre ela, não vai ter volta; tudo ficará gravado
para sempre em minha memória. Clico no perfil dela e
prendo a respiração. No entanto, quando a página carrega,
vejo que o perfil é fechado. Franzo o cenho, fecho o
navegador e desligo o notebook.
Hannah está mais para uma modelo do que para uma
surfista tranquilona. Seus lábios são grossos e perfeitos, e
ela tem aquele tipo de maçãs do rosto que só se vê em
modelos escandinavas.
Na manhã seguinte, acordo pensando em Hannah. Tento
parar de pensar nela enquanto levo minha mala até a
garagem. Mas, no último segundo, entro no elevador, pego
o papel que estava na mesa de cabeceira e o enfio no mais
profundo e escondido compartimento da carteira. Para o
caso de eu precisar do endereço dela. Mas por que eu
precisaria?, pergunto a mim mesma enquanto coloco o cinto
de segurança e saio da garagem.
Só para o caso… Só para o caso de eu querer ver como
ela é pessoalmente. Só para o caso de eu querer conversar
com ela. Só por isso. Tenho esse direito, não tenho? Saber
com quem divido meu marido? Talvez eu já tenha cansado
de ficar imaginando.
S
ó tenho tempo de voltar para o hotel e tomar um banho
antes do nosso jantar. Distraída, quase bato o carro na
traseira de um caminhão parado no sinal vermelho.
Hannah, Hannah, Hannah. O rosto dela paira diante de
meus olhos. Estou usando o vestido preto do qual ele gosta,
justo nos lugares certos, e com o cabelo solto. Por baixo do
vestido, estou com a lingerie que comprei à tarde. A renda
dá coceira, e fiquei fazendo comparações, mentalmente, de
como Hannah ficaria com a mesma peça. Vai ser uma ótima
noite, digo a mim mesma. Estou animada para passar esse
tempo roubado com ele. Parece que estamos trapaceando,
e isso me excita. Hannah pode ser tudo o que eu não sou,
mas foi comigo que ele escolheu passar esta noite. Ligo
para confirmar o horário da reserva, e, quando ele atende,
sua voz aquece meu coração.
— Quanto você gastou? — pergunta ele.
É brincadeira, é claro. Ele gosta de bancar o regrado
quando gasto dinheiro, mas sempre pede para ver as coisas
que compro e dá sua opinião. Ele é um marido interessado,
e homens assim são raros.
— Muito — respondo.
Ele dá uma risada.
— Não vejo a hora de te ver. Passei o dia inteiro distraído
pensando em hoje à noite.
— Você vem aqui ou eu te encontro? — pergunto.
— Te encontro lá. Você trouxe aquele vestido preto que eu
gosto?
— Trouxe, sim — respondo, com um sorrisinho. Na maior
parte dos dias, ainda sinto um frio na barriga quando escuto
sua voz no telefone. Às vezes, isso faz com que eu me sinta
fácil, como se tudo que ele precisasse fazer fosse usar
aquele tom grave, e pronto, ele me tem na palma da mão.
Mas hoje há uma ausência de emoção quando a escuto.
Sinto bem lá no fundo uma leve desconexão. Estamos
flertando normalmente, mas meu coração parece distante.
Talvez ter visto Hannah, a outra esposa, com meus próprios
olhos, tenha mudado as coisas para mim. Transformado
essa situação em algo real, em vez de algo do qual eu havia
me distanciado emocionalmente. O bebê deles. A viagem
deles ao México. A casa deles. Queria ter conseguido beber
alguma coisa, lamento enquanto pego meu casaco na
cadeira.
N
a manhã seguinte, sou acordada pelo som da porta se
abrindo. Na pressa de ir para a cama, havia me
esquecido de pendurar a placa de “não perturbe”. Ouço
alguém dizer “faxina…”, que estava mais para uma
pergunta, e respondo com um “depois!” abafado. Espero
até fecharem a porta antes de rolar na cama e ver que há
sete mensagens e cinco ligações perdidas de Seth. Se fosse
eu ligando tantas vezes assim quando ficasse sem notícias
dele, pareceria carente e insegura. Desligo o celular sem ler
as mensagens e me levanto da cama para guardar as
poucas coisas que trouxe. Quero ir para casa. Foi um erro vir
até aqui. Preciso da familiaridade do meu apartamento, da
Coca gelada que me espera na geladeira. Meu plano é ir
para baixo das cobertas e ficar lá até ter de voltar ao
trabalho. Quero ligar para minha mãe ou para Anna e contar
o que aconteceu, mas para isso eu teria que contar toda a
verdade, e não estou pronta. Estou descendo para o lobby
quando penso em Hannah e sinto uma súbita necessidade
de vê-la de novo. Ela é a única que entende o que estou
passando, que sabe como é a tortura de compartilhar o
marido. Mando uma mensagem para ela enquanto ando até
a garagem, as alças da mala fazendo peso em meu braço.
Eu estava tão distraída na noite passada que não me
lembro de onde estacionei o carro. Ando de um lado para o
outro, olhando as fileiras de carros e passando a mala de lá
para cá quando a sinto ficar pesada demais. Quando
finalmente o encontro e destranco a porta, vejo um buquê
de rosas cor de lavanda no banco do motorista e um cartão
apoiado no volante. Coloco-os no banco do passageiro sem
nem ler o cartão, entro no carro e dou a partida. Eu não
queria flores nem um cartão de desculpas qualquer
comprado na Hallmark. Eu o queria: sua atenção, seu
tempo, sua proteção. Estou quase pegando a estrada, tendo
momentaneamente esquecido a mensagem que mandei
para Hannah, quando meu celular apita com uma
notificação. Eu havia perguntado se ela estava livre para
tomar um café da manhã atrasado antes de eu ir embora. A
resposta faz meu coração palpitar descontroladamente.
Eu adoraria! A gente se encontra no Orson’s em dez minutos? Aí vai o endereço.
Q
uando Seth liga alguns dias depois, estou em casa,
aconchegada debaixo do cobertor no sofá. Faz dias que
o ando evitando e mandando as ligações para a caixa
postal no primeiro toque. Depois de duas taças de vinho,
fico mais relaxada e decido atender. Não consigo parar de
pensar no que Hannah disse e fico repassando suas
palavras em minha mente, então, de repente, sinto vontade
de chorar de tanta frustração. Ele diz “oi” primeiro, e sua
voz soa cansada, mas esperançosa.
— Oi — sussurro ao telefone. Seguro o aparelho na orelha
com uma das mãos enquanto fico traçando os desenhos da
almofada que está em meu colo com a outra.
— Desculpa — diz ele imediatamente. — Desculpa
mesmo.
Ele parece estar sendo sincero.
— Tudo bem… — Sinto minha raiva se dissolver e estico o
braço para pegar o controle remoto e colocar no mudo o
programa idiota que eu estava vendo. Reality shows são a
melhor distração que existe para um coração partido.
— Falei com Hannah — diz ele. — Esse é o nome da
Segunda.
Prendo a respiração, me sento rápido e jogo a almofada
no chão. Ele realmente acabou de me dizer o nome dela?
Seth confiar a mim algo que nunca havia compartilhado me
traz uma sensação de vitória. Tenho quase certeza de que
nenhuma das outras esposas sabe meu nome. É então que
me dou conta: Hannah é a mais poderosa. É a esposa
grávida. De repente, fico claustrofóbica, a calma de antes é
substituída pelo nervosismo. Se Hannah decidisse que é
importante Seth ficar com ela em vez de sair de férias
comigo, seria exatamente isso que ele faria. Legalmente,
posso até ser a esposa de Seth, mas esse bebê me levou a
ocupar a posição de filha do meio, e todo mundo sabe que o
filho do meio é o esquecido. Pigarreio, determinada a agir
com normalidade, apesar do que estou sentindo.
— O que ela disse?
Meu coração está palpitando, e minhas unhas encontram
o caminho até minha boca, onde meus dentes começam o
ataque violento.
Há uma pausa no outro lado da linha.
— Falei pra ela que essa viagem é importante para mim
— diz ele. — Você está certa. Não posso tirar esse tempo de
você. Não é justo.
Eu deveria ser legal, incorporar a boa esposa, mas as
palavras saem fervorosas da minha boca antes que eu
consiga contê-las.
— Não quero sua caridade. Quero que você queira fazer
essa viagem comigo.
— Eu quero. Estou fazendo tudo o que está ao meu
alcance, amor.
— Não me vem com essa de amor, Seth.
Há uma longa pausa do outro lado da linha, seguida por
um suspiro.
— Beleza, então. O que você quer que eu diga?
Sinto a irritação brotar em meu peito.
O que quero que ele diga? Que ele me escolheu, talvez?
Que não quer ninguém além de mim? Nunca vai acontecer.
Não foi com isso que concordei.
— Não quero discutir — diz ele. — Só liguei pra dizer que
estou tentando dar um jeito. E que te amo.
Será que ele me fez parecer a malvada da história? Será
que falou para ela que eu estava tentando arrumar
confusão? E por que eu daria a mínima para o que Hannah
acha de mim? Mas me importo, sim, com o que Hannah
pensa, mesmo que ela não saiba quem eu sou. Bom, agora
ela sabe, não sabe? Penso. Ela só não sabe que sabe, sua
fodida.
— Falei pra ela que seria importante eu ir — diz ele.
Isso realmente parece algo que Seth faria. Nunca querer
ser o vilão da história. Ele precisa agradar e necessita de
agrado. É assim que ele faz amor comigo: alternando entre
uma reverência gentil e pegadas e metidas selvagens,
fazendo com que eu soe como uma estrela pornô.
De repente, a voz dele muda, e pressiono mais ainda o
telefone na orelha.
— Não sabia se você ainda ia me querer aí… na quinta-
-feira.
Afasto a culpa por ter pegado pesado com ele e avalio
meus sentimentos. Será que eu o quero aqui? Será que
estou pronta para vê-lo? Eu poderia simplesmente contar o
que fiz e pedir uma explicação. Mas ele poderia negar tudo,
e eu nunca mais conseguiria falar com Hannah de novo. Ele
contaria para ela quem eu sou, e ela se sentiria traída com
o que fiz. Há uma grande chance de que eu esteja fazendo
tempestade em copo de água, e, nesse caso, a única pessoa
no mundo com quem tenho intimidade me acharia uma
babaca.
— Pode vir — digo, com gentileza. Porque, se ele não vier,
vai ficar com uma das outras. Posso até estar brava com
meu marido, mas ainda sou uma mulher competitiva.
— Tá bem. — É tudo o que ele responde.
Desligamos pouco depois de Seth dizer “eu te amo”. Sei
que ele me ama de verdade, mas não digo que o amo.
Quero fazê-lo sofrer. Ele precisa saber que não pode haver
mentiras em um casamento — não importa quantas
mulheres estejam envolvidas —, o que faz a verdade ser
ainda mais complicada. Mas mesmo assim…
Não sei o que fazer. Fico cada dia mais azeda, como leite
coalhado esquecido fora da geladeira. Quando chega
quinta-
-feira, como um ato de desafio, decido não fazer o jantar.
Não vou cozinhar para ele, nada de fazer um showzinho
para fingir que está tudo bem. Não está. Também não
arrumo o cabelo nem coloco um vestido sexy, como
normalmente faço. No último minuto, passo um pouco de
perfume nos pulsos e no decote da camiseta. Cheirosa para
mim, digo a mim mesma. Não para ele. Quando Seth passa
pela porta, estou sentada no sofá com uma calça de
moletom e o cabelo amarrado em um coque, comendo
macarrão instantâneo e vendo um reality show. Ele para no
corredor que leva à sala e analisa meu estado com um olhar
de diversão. Estou com um macarrão pendurado na boca.
— Oi — diz Seth.
Ele está usando um cardigã com as mangas arregaçadas
e uma camiseta de gola V azul-clara. Suas mãos estão
enfiadas nos bolsos do jeans como se ele não soubesse o
que fazer com elas. Acanhado. Quanto charme.
Geralmente, eu já estaria de pé a essa altura, correndo
para os braços do meu marido, aliviada por finalmente
poder tocá-
-lo. Dessa vez, permaneço sentada, e o único sinal que dou
de que reparei na chegada dele é uma leve erguida de
sobrancelhas enquanto sugo o solitário macarrão. A massa
bate com tudo na minha bochecha e sinto uma borrifada de
molho de galinha acertar meu olho.
Eu o observo entrar desconfiado na sala e se sentar na
minha frente em uma das poltronas florais que compramos
juntos. Tinha um tom verde-esmeralda mais fechado e
gardênias cor de creme estampadas no tecido. Assim que as
vira na loja, ele dissera: “Parece até que estão voando.” Foi
só por causa dessa descrição que as comprei.
— Tem macarrão instantâneo na despensa — digo,
animada. — Galinha caipira e carne. — Espero por uma
reação de choque, mas ele não demonstra espanto. Essa é a
primeira quinta-feira do nosso casamento em que não
preparei um jantar.
Ele assente, agora com as mãos entrelaçadas entre os
joelhos. Fico impressionada com a mudança. De repente, é
como se ele não pertencesse a este lugar, e eu, sim. Ele
perdeu o poder, e eu meio que gostei. Levo a tigela com o
caldo até a boca, bebendo tudo, e estalo os lábios quando
termino. Delícia. Esqueci como macarrão instantâneo pode
ser bom. Ai, meu Deus, como eu sou sozinha.
— Então — digo. Espero conseguir fazer com que Seth
desembuche o que quer que ele esteja se segurando para
dizer. Pela expressão tensa em seu rosto, ele parece estar
se engasgando com todas essas coisas não ditas. Não
acredito que cheguei a achar que esse homem poderia ser
rude com uma mulher. Examino seu rosto: o queixo sem
definição e o nariz delicado demais. É estranho como a
amargura pode mudar a forma como vemos as coisas.
Nunca percebi que o queixo dele era assim tão para dentro
e nunca considerei seu nariz delicado demais. O homem
cujo rosto sempre amei e aninhei nas mãos, de repente, me
parece fraco e patético, transformado pela minha opinião
oscilante a seu respeito.
Navego pelos canais, sem prestar atenção no que está
passando na tela. Não quero encará-lo porque tenho medo
de que ele consiga ver as coisas feias que estou sentindo.
— Pensei que eu fosse tirar isso de letra — diz Seth. Olho
para ele antes de continuar passando os canais.
— Isso o quê?
— Amar mais de uma mulher.
A risada que escapa num rompante da minha boca é
incisiva e grotesca.
Seth olha para mim, desgostoso, e sinto uma pontada de
culpa.
— E quem é que consegue tirar isso de letra? —
pergunto, meneando a cabeça. — Pelo amor de Deus, Seth.
Se casar com uma pessoa só já é difícil. Numa coisa você
tem razão — digo, soltando o controle remoto e focando
toda a minha atenção nele. — Estou decepcionada. Me sinto
traída. Estou com… ciúme. Alguém que não sou eu vai ter
um filho seu.
É o máximo que já falei sobre nossa situação.
Imediatamente, quero puxar as palavras de volta, engoli-
las. Pareço tão cansada. Não é um lado de mim que
costumo deixar Seth ver. Homens preferem a manha de
mulheres confiantes e seguras — pelo menos é o que dizem
os livros. Era isso que Seth dizia sobre mim em nossos
primeiros meses de namoro: “Gosto de você porque não se
sente ameaçada por nada. Você é você, não importa quem
esteja no mesmo ambiente…” Não sou mais assim, sou? Há
mais duas mulheres no jogo, e sinto a presença delas todos
os dias, a todo instante. Olho ao redor da minha pequena
sala e, com o olhar, toco os penduricalhos e os quadros que
Seth e eu escolhemos juntos: a pintura de uma costa
inglesa, uma tigela de madeira que encontramos em Port
Townsend em nosso primeiro ano de casados, uma pilha de
livros na mesinha de centro que, na época, jurei que
precisava, mas que nunca nem sequer folheei. São todas as
coisas que constituem nossa vida, e, mesmo assim,
nenhuma delas carrega tantas lembranças nem representa
tanto assim uma junção de vidas como um bebê. Ele
compartilha essa conexão com outra pessoa. De repente,
me sinto deprimida. Nossa existência juntos é vazia. Se não
podemos ter filhos, então o que nos resta? Sexo?
Companheirismo? Será que há algo mais importante do que
trazer uma vida ao mundo? Sem nem perceber, pouso a
mão no lugar onde ficaria meu útero. Vazio para sempre.
OITO
N
os últimos três dias, milagrosamente fez sol em
Washington, e agora o céu noturno se deleita com as
borrifadas de estrelas. Abri as cortinas antes de nos
deitarmos para parecer que estávamos dormindo sob as
estrelas, mas, agora, deitada ao lado do meu marido
roncando, elas parecem quase brilhantes demais. Dou uma
olhada no relógio e vejo que passa pouco da meia-noite
quando a tela do celular de Seth se acende. O aparelho está
em sua mesa de cabeceira, e me levanto um pouquinho
para ver quem está mandando mensagens para meu
marido. Regina. Pisco diversas vezes ao ler o nome. Será
que essa é… Terça? Um cliente não entraria em contato a
essa hora da noite, e sei o nome de todo mundo do
escritório. Só podia ser ela. Deito e encaro o teto enquanto
repito o nome mentalmente: Regina… Regina… Regina…
Terça é a primeira esposa de Seth. Não sei se fui eu ou
Seth quem deu esse apelido a ela, mas, antes de Hannah,
éramos apenas Seth e nós duas. Três dias para Terça, três
dias para mim e um dia reservado para as viagens. As
coisas pareciam mais seguras naquela época; eu tinha mais
controle sobre meu coração e o dele. Eu era a esposa nova,
brilhante e amada — minha boceta era mais uma novidade,
e não uma amiga de longa data. Claro, havia a promessa de
filhos e de uma família, e isso seria fornecido por mim —
não por ela. Aquilo alavancava minha posição, me dava
poder.
Terça e Seth se conheceram no segundo ano da faculdade
em uma comemoração de Natal organizada por um de seus
professores. Antes de Seth fazer administração, ele fez
direito. Quando Seth chegou à festa, Terça, uma aluna que
também estava no segundo ano da faculdade, estava
sozinha perto da janela tomando sua Coca Zero, as luzes de
Natal refletindo em seu rosto. Ele a avistou assim que
entrou, embora não tenha conseguido falar com ela até o
fim da noite. De acordo com a versão de Seth, ela estava
com uma saia vermelha e um salto de dez centímetros, o
que destoava do traje desleixado dos outros estudantes de
direito. Ele não se lembra do que ela usava na parte de
cima, mas duvido que fosse algo escandaloso. Os pais de
Terça faziam parte do corpo docente da faculdade e eram
mórmons praticantes. Seu look era sóbrio, exceto pelos
sapatos. Seth disse que ela estava com saltos de piriguete e
que, ao longo dos anos, o gosto dela por sapatos se
intensificou. Tento fazer uma imagem dela em minha
mente: cabelos castanhos sem graça, uma blusa abotoada
até o pescoço e sapatos de prostituta. Uma vez, perguntei a
Seth qual era a marca favorita dela, mas ele não sabia. Ela
tem um closet cheio deles. Fiquei com vontade de dizer:
“Mas olha se as solas são vermelhas.”
Mais para o fim da noite, quando as pessoas estavam
começando a voltar para os dormitórios, Seth foi até ela.
— Seus sapatos são os mais sexies que eu já vi.
Essa foi sua cantada. Depois, ele disse:
— Eu os chamaria pra sair, mas acho que me rejeitariam.
E Terça respondeu:
— Então, em vez disso, você deveria me chamar pra sair.
Eles se casaram dois meses depois da formatura. Seth
alegava que eles não brigaram nem uma vez sequer
durante os dois anos e meio de namoro. Ele dizia isso com
orgulho, muito embora eu sentisse minhas sobrancelhas
franzindo diante de uma afirmação tão ridícula. Brigar é a
lixa que tira a aspereza dos primeiros anos de
relacionamento. Claro, sempre há pontas soltas que duram
a vida inteira, mas brigar ajuda a pôr as cartas na mesa, faz
com que você saiba o que é importante para seu parceiro.
Os dois se mudaram para Seattle quando o pai de um amigo
ofereceu um emprego a Seth, só que Terça não se
acostumou com os dias nublados e a névoa de chuva de lá.
Primeiro, ela ficou desolada, depois, passou a fazer
acusações hostis sobre ele tê-la arrastado para longe da
família, dos amigos, deixando-a mofar na úmida e lúgubre
Seattle. Então, depois de um ano casados, ele a pegou
tomando anticoncepcional, e ela confessou que não queria
ter filhos. Seth ficou perturbado. Ele passou o ano seguinte
tentando convencê-la a mudar de ideia, mas Terça era o tipo
de mulher que preferia focar na carreira, e meu amado Seth
era um homem de família.
Ela foi aceita na faculdade de direito que sempre sonhou,
no Oregon. Eles se comprometeram a manter o
relacionamento à distância durante os dois anos que ela
levaria para se formar. Depois disso, iam reavaliar, e Seth
procuraria um emprego em algum lugar mais perto dela. Só
que o trabalho de Seth estava indo bem, e ele passou a se
dedicar ainda mais à carreira. Quando o dono da empresa
teve um AVC, ele concordou em vender o negócio a Seth,
em quem havia confiado a gestão nos últimos dois anos. Os
planos de Seth de se mudar para o Oregon foram
frustrados. Ele nunca largaria Terça, eles se amavam muito,
então deram um jeito de se virar com o que tinham, e
dirigiam, dirigiam e dirigiam. Às vezes, Terça ia até Seattle,
mas era quase sempre Seth quem se sacrificava. Terça
ainda não me desce por causa disso, por ter sido a primeira
esposa, a egoísta. Seth abriu uma filial em Portland, em
parte, para ficar mais perto dela e, em parte, porque era
uma boa oportunidade para os negócios. Quando nos
conhecemos, perguntei por que ele não se divorciava e
seguia em frente. Ele me lançou um olhar que parecia de
pena e perguntou se alguém já tinha me abandonado. Já, é
claro — que mulher nunca passou por essa experiência? Por
um pai ou uma mãe, por um namorado ou namorada, por
um amigo. Talvez ele estivesse tentando desviar minha
atenção da pergunta, e havia funcionado. Lágrimas
surgiram, memórias ingratas vieram à tona e acreditei que
Seth era meu salvador. Ele não me abandonaria, não
importava o que acontecesse. Foi então que o ciúme entrou
em cena, quando alguém ou alguma coisa ameaçou minha
felicidade. Eu entendi o lado de Seth, até o admirei.
Abandonar não era de seu feitio, mas a parte ruim era que
ele não abandonava ninguém. Simplesmente se adaptava.
Em vez de se divorciar, arranjou outra esposa — uma que
pudesse lhe dar filhos. Fui a segunda esposa. Terça,
decidida a continuar sem filhos, concordou em se separar
legalmente de Seth para que eu me casasse com ele. Era
para eu ser a mãe dos filhos dele. Até… Hannah aparecer.
— Seth…? — repito, mais alto dessa vez. — Seth…
A lua reluz do outro lado da janela, e seu brilho ilumina o
rosto do meu marido enquanto ele abre os olhos
lentamente. Interrompi seu sono, mas ele não parece bravo.
Mais cedo, Seth veio por trás de mim, envolveu minha
cintura com os braços e beijou meu pescoço devagar
enquanto olhávamos a cidade lá embaixo. Devo tê-lo
perdoado em algum momento entre sua tigela de macarrão
instantâneo e nossa transa, porque a única coisa que sinto
por ele agora é um amor intenso.
— Oi? — Sua voz está arrastada de sono, e estico a mão
para tocar sua bochecha.
— Você tem raiva de mim pelo que aconteceu com nosso
bebê?
Ele se ajeita e fica deitado de costas. Não consigo mais
ver todos os detalhes de seu rosto, só o contorno do nariz e
um olho azul-esverdeado.
— É meia-noite — diz ele, como se eu já não soubesse.
— Eu sei — respondo com gentileza. Para complementar,
digo: — Não consigo dormir.
Ele suspira e passa uma das mãos pelo rosto.
— Fiquei com raiva — admite. — Não de você… da vida…
do universo… de Deus.
— Foi por isso que você foi atrás da Segunda? — Preciso
reunir toda a coragem em meu corpo para transformar
essas palavras em uma frase. A sensação é de que abri meu
próprio peito e deixei meu coração à mostra.
— A Segunda não substituiu você — diz ele, depois de
algum tempo. — Quero que você acredite que estou
realmente comprometido com você. — Ele estica a mão e
faz carinho no meu rosto. O calor que vem dela é
reconfortante. — As coisas não saíram do jeito que
planejamos, mas ainda estamos aqui, e o que temos é real.
Ele não respondeu direito à minha pergunta. Passo a
língua pelos lábios e penso em um jeito de refazer a frase.
Meu lugar no nosso casamento é instável, e meu novo
propósito não está claro.
— A gente podia ter adotado — digo. Seth vira o rosto.
— Você sabe que não era isso que eu queria. — Sua
reação é abrupta. Fim de papo. Eu já havia falado sobre
adoção antes, e ele havia imediatamente rejeitado a ideia.
— E se acontecesse com Segunda… a mesma coisa que
aconteceu comigo?
Ele vira a cabeça, o que o faz olhar para mim de novo.
Mas, dessa vez, não há gentileza em seus olhos. Fico
surpresa com isso.
— Pra que falar uma coisa dessas? Que coisa horrível de
se imaginar! — Ele se levanta mais, quase se sentando.
Faço o mesmo, me apoiando nos cotovelos, e ficamos os
dois admirando as estrelas pela janela de sacada.
— Não… Não foi isso que eu quis dizer — digo
rapidamente, mas Seth parece afobado.
— Ela é minha esposa. O que você acha que eu faria?
Mordo o lábio e agarro os lençóis; que coisa mais idiota
eu fui falar, ainda mais depois de uma noite em que tudo
estava indo bem.
— É só que… você me deixou. Achou ela depois…
Ele olha para a frente, para o nada, na verdade. Vejo os
músculos de sua mandíbula tensionarem.
— Você sabia que eu queria ter filhos. E aqui estou eu.
Bem aqui com você.
— Será que está mesmo? — pergunto. — Você precisa de
mais duas mulheres…
— Chega. — Ele me corta, sai da cama e pega a calça. —
Pensei que a gente já tivesse colocado um ponto-final nessa
história.
Eu o observo se vestir, sem se importar em abotoar a
calça depois de colocar a camisa.
— Aonde você vai, Seth? Olha, me desculpa. Eu só…
Ele segue em direção à porta, e eu jogo as pernas para
fora da cama, determinada a não deixá-lo ir. Não assim.
Eu me jogo nele, agarro seu braço e tento puxá-lo de
volta. Acontece num instante: sua mão me empurra para
longe. Pega de surpresa, caio para trás. Bato a orelha na
mesa de cabeceira antes de cair de bunda no chão de
madeira. Dou um grito, mas Seth já saiu do quarto. Levo a
mão à orelha e sinto o calor do sangue na ponta dos dedos
ao mesmo tempo que ouço a porta do apartamento batendo
com força. Eu me encolho com o barulho, não por causa do
som alto, mas por conta da raiva por trás desse gesto. Eu
não devia ter feito aquilo, acordá-lo no meio da noite e fazê-
lo pensar em bebês mortos. O que aconteceu não foi difícil
só para mim; Seth também perdeu um filho. Eu me levanto
e troco o passo. Fechando os olhos com força, ponho a mão
na orelha que sangra e espero a tontura passar. Depois, vou
sem pressa até o banheiro e acendo a luz para avaliar o
estrago. Há um corte de um centímetro na minha orelha,
paralelo à cartilagem. Está ardendo. Limpo o machucado
com um lenço umedecido com álcool e ponho um pouco de
antisséptico na ferida. Já parou de sangrar, mas não de
doer. Quando volto para o quarto, encaro por um bom
tempo a cama vazia e os lençóis bagunçados. O travesseiro
de Seth ainda está com a marca da cabeça dele.
— Ele está muito estressado — digo em voz alta quando
volto para a cama. Acho que meus problemas e minhas
inseguranças são o fim do mundo, mas só tenho um homem
para fazer feliz. Seth tem três mulheres: três conjuntos de
problemas, três conjuntos de reclamações. Tenho certeza de
que todas nós o pressionamos de forma diferente: Segunda
com o bebê, Terça com a carreira… eu com meu complexo
de inferioridade. Sem conseguir pregar o olho, puxo os
joelhos até o peito. Eu me pergunto se ele foi para a casa de
Hannah. Ou talvez para a de Regina dessa vez.
***
R
egina Coele é baixinha, deve ter um metro e cinquenta
no máximo. Eu me afasto do notebook, que está na
bancada da cozinha, e abro o freezer. São só dez da
manhã, mas preciso de algo mais forte que a Coca que servi
para beber com a comida. Pego uma garrafa de vodca, que
fica escondida entre um saco de ervilhas e hambúrgueres.
Estudo a foto dela no site da Markel & Abel: uma empresa
familiar de advocacia com dois escritórios; um no centro de
Portland e outro em Eugene. Na foto, ela está com uma
armação de óculos grossa e escura, apoiada em um nariz
levemente arrebitado. Se não fosse pelo batom vermelho e
o penteado sofisticado, ela poderia muito bem ser
confundida com uma menina no fim da adolescência.
Completo a vodca com suco e adiciono alguns cubos de
gelo ao copo. A maioria das mulheres ficaria feliz de ter uma
aparência assim tão jovem. Contudo, imagino que, na área
dela, Regina precise que os clientes a respeitem, e não que
fiquem se perguntando se ela tem idade para beber. O suco
de laranja não tira quase nada do gosto forte da generosa
dose de vodca. Passo a língua nos dentes, pensando no que
fazer agora. Disse a mim mesma que eu só precisava vê-la,
dar só uma olhadinha. Eu havia feito essa promessa em
silêncio enquanto digitava o nome dela na barra de busca,
mas, agora que estou olhando para ela, simplesmente
quero saber mais. Tomo o restante do suco e da vodca
numa golada só e sirvo mais um copo antes de pegar o
notebook e ir para a sala.
Destampo a caneta e apoio meu caderno no braço do
sofá, pronta para começar o trabalho. Em letras
caprichadas, escrevo “Regina Coele” no topo de uma página
e depois o nome do escritório de advocacia em que ela
trabalha. Em seguida, escrevo seu e-mail, seu endereço e o
telefone da empresa. Tampo novamente a caneta e a coloco
de lado. Saio do site do escritório de advocacia e vou para o
lugar mais óbvio para achar alguém. O Facebook nunca
ouviu falar de Regina Coele — pelo menos não dessa que
estou procurando. Há dezenas de perfis de Reginas erradas
e nenhum deles bate com as informações que descobri com
minhas habilidades de detetive. Mas, não, penso cabisbaixa,
ela não usaria o nome de batismo nas redes sociais, não se
houvesse a mínima possibilidade de os clientes a acharem.
Digito “Gigi Coele”, “R. Coele” e “Gina Coele”, e não
encontro nada. Eu me recosto no sofá, junto as mãos e levo
os braços acima da cabeça para me alongar. Talvez ela não
esteja no Facebook; há muita gente que quer distância dos
dedos acusadores e intrusivos das redes sociais. Mas então
visualizo as sardas em minha mente, o nariz arrebitado — e
me lembro da garotinha que morava na minha rua quando
eu era criança. Georgiana Baker — ou Barker, algo assim.
Ela era bem moleca e gostava de ser chamada de Georgie,
e eu era toda menininha. Algo em minhas memórias da
infância faz com que eu ache Georgie parecida com Regina.
Talvez seja o nariz sardento.
Digito “Reggie Coele” na barra de busca do Facebook e
encontro o ouro. Uma versão diferente de Regina Coele
aparece, essa tem cabelo ondulado, delineador carregado
nos olhos e lábios com gloss. As configurações de
privacidade me impedem de ver qualquer coisa além da
foto de perfil, mas a forma casual com que ela abraça um
amigo e exibe uma blusa de alcinha me diz que esse é seu
verdadeiro eu — muito diferente de seu visual sério de
advogada. Assim que a encontro, tenho acesso a um poço
sem fundo de informações. Não consigo parar, meu dedo se
move no cursor do MacBook de um site para outro. Estou
pesquisando como uma maníaca, odiando-a em um
segundo e gostando dela no outro. Meus olhos estão
arregalados com as informações pelas quais estive sedenta
nos últimos dois anos, e a ansiedade e a animação
embrulham meu estômago. Essa é a outra esposa do meu
marido. Uma delas, na verdade. Olhei o Instagram (fechado)
e a conta no Twitter, que não é fechada, mas seu último
tuíte foi há um ano. Apostando que ela podia estar fazendo
algo que não deveria, escrevo seu nome em um site que
ligaria Regina (ou Reggie) a qualquer site de namoro
popular. Minha busca gera dois resultados: Choose, um site
que permite ao usuário arrastar para a esquerda ou para a
direita para dar match ou não com pessoas perto de você; e
GoSmart, um site de namoro mais elaborado que dá match
entre pessoas de acordo com o resultado do teste de
personalidade de Myers-Briggs.
Por que Regina estaria num site de namoro? Ela está com
Seth desde a faculdade, quando ele não tinha nenhum fio
de barba no queixo, então não há nenhum momento no
relacionamento em que ela tenha ficado solteira. Eu me
ajeito no sofá, enfio os pés com meias debaixo de mim e
olho para a tela com uma determinação implacável. Tenho
de descobrir, não tenho? Seth não poderia saber disso, e
esse é o tipo de informação que muda a vida das pessoas.
Penso na mágoa profunda que ele sentiria ao saber que sua
amada Regina está sendo infiel e quase fecho o notebook.
Talvez seja melhor deixar isso para lá. Eu finalmente
poderia dar um tempo no meu ciúme, sabendo que a outra
esposa de Seth é uma bruxa infiel. Levo o copo para a
cozinha e depois ando em círculos pela sala com a mão na
testa, pensando. É quando me dou conta: não tem como eu
não saber. Preciso desvendar os segredos da primeira
esposa do meu marido, ou vou ficar louca.
Para acessar o perfil completo de Regina, tenho de criar
uma conta. Decido ser Will Moffit, criador de um site e que
recentemente se mudou da Califórnia para Portland. Na
hora de escolher as fotos, uso imagens do meu primo
Andrew, que atualmente está preso por falsidade ideológica.
Que ironia… Eu me sinto culpada, mas não o suficiente para
parar. Não faz diferença, de qualquer maneira. Assim que
conseguir a informação de que preciso, vou excluir a conta.
E aí ninguém se machuca. Só preciso dar uma olhadinha.
Com meus dedos planando suavemente sobre o teclado do
MacBook, escrevendo linhas e mais linhas de uma mentira
perfeita. O filme favorito de Will é Gladiador. Ele corre em
maratonas e tem uma horda de sobrinhas e sobrinhos que
ama muito, mas não tem filhos. Digito cada vez mais rápido
e me perco nas informações que estou criando. E, de
repente, parece que esse homem, Will Moffit, realmente
existe. Isso é bom. É perfeito, na verdade. Regina também
vai achar que ele existe. Quero as informações que vão
condenar a primeira esposa do meu marido. Que me façam
parecer confiável e fiel. Olha o que achei, amor! Ela não te
ama como eu!
Então, a informação está ali, bem na minha frente.
Compilada num site com um banner verde esperançoso com
as seguintes palavras: “Sua alma gêmea está a apenas
alguns cliques de distância!” Clico no perfil de Regina com
uma das mãos enquanto bato com a outra em meu joelho.
Tenho sorte de não ter mais ninguém aqui para ver meu
nervosismo exposto desse jeito. Seth sempre diz que minha
linguagem corporal entrega o que estou sentindo.
Ela está cadastrada como uma mulher divorciada de
trinta e três anos que mora em Utah. Seus interesses
incluem fazer trilhas, comer sushi, ler autobiografias e
assistir a documentários. Que mulherzinha mais chata,
penso, estalando os dedos. Nunca vi Seth assistir a um
documentário nos anos em que passamos juntos. Visualizo
os dois juntos num sofá, de mãos dadas debaixo do
cobertor, e ela com a perna em cima da dele. Não parece
certo. Mas talvez eu conheça um Seth que Regina não
conhece. Nunca pensei nisso antes. Será que um homem
poderia ter uma personalidade com cada esposa? Será que
ele poderia gostar de coisas diferentes? Será que ele é
gentil quando transa com elas ou bruto? Talvez seja por isso
que Regina está num site de namoro, para começo de
conversa. Porque os dois não têm nada em comum, e ela
está procurando alguém com quem compartilhar a vida,
alguém com os mesmos interesses.
Passo pelas fotos e reconheço alguns dos lugares: o
Arlene Schnitzer Concert Hall — estive lá com Seth em um
show da banda Pixies há dois anos. Com as mãos na cintura
e um sorriso largo, Regina posa na frente de um pôster de
Tom Petty. Em outra foto, ela está num caiaque, com um
boné da Marinha fazendo sombra na maior parte de seu
rosto e segurando um remo no alto em um gesto de triunfo.
Chego à última foto e é então que a vejo. Preciso piscar
algumas vezes para enxergar direito. Há quanto tempo
estou olhando para a tela deste computador? Será que meu
cérebro está pregando peças em mim?
Eu me levanto, ponho o MacBook na mesa de centro e
vou até a cozinha para preparar uma bebida de verdade.
Nada de suco de laranja para mascarar o gosto da bebida
dessa vez. Sirvo dois dedos de bourbon e volto com o copo
para o sofá. Não tenho certeza do que vi, e talvez não tenha
sido nada, mas a única maneira de ter certeza é voltando à
foto e olhando para o que tanto me assustou. Eu me curvo e
clico na tecla de espaço. A tela se acende, e a foto de
Regina ainda está ali. Olho para ela por um instante e a
fuzilo com o olhar antes de desviar o rosto. Não tenho como
ter certeza, não tenho provas suficientes para ter certeza. A
foto é de Regina em frente a um restaurante, com o braço
casualmente ao redor dos ombros de uma amiga. Ela cortou
a foto para ficar sozinha na imagem, mas, a seu lado, dá
para ver a metade do rosto de uma mulher muito mais alta
e muito mais loira. Uma mulher que, chocantemente, se
parece com Hannah Ovark. Clico no ícone de enviar
mensagem e começo a digitar.
DEZ
Q
uando dirijo até o trabalho na tarde seguinte, estou tão
distraída pensando nas esposas que perco a entrada
para o hospital e levo vinte minutos para conseguir
fazer o retorno por conta do trânsito. Xingando, enfio o carro
numa vaga do estacionamento de funcionários e subo dois
degraus de cada vez em vez de esperar pelo elevador.
Passei a tarde inteira escrevendo uma mensagem para
mandar a Regina pela conta de Will. Fui direta: “Oi! Sou
novo por aqui. Você é advogada. Que máximo! Você
apareceu aqui pra mim, então pensei em mandar uma
mensagem. Esse sou eu mandando uma mensagem… meio
sem jeito. Não sou muito bom nesse negócio de flertar.”
Terminei a mensagem com um emoji sorrindo e cliquei em
“enviar”. Usei um charme autodepreciativo na medida certa
para atrair a atenção de uma mulher. Will exalava uma
energia “sou honesto e não me sinto ameaçado por seu
sucesso” — pelo menos eu achei. Se por acaso Regina
responder, vou ter uma forma de conhecê-la.
— Você está atrasada. — Lauren, uma das enfermeiras,
franze o cenho para mim assim que passo pelas portas. Por
que as pessoas têm mania de falar isso quando os outros
estão atrasados? Como se eles já não soubessem…
Tensiono a mandíbula. Odeio Lauren. Odeio essa
pontualidade perfeita dela e a facilidade com que lida com
pacientes difíceis como se fosse o maior prazer do mundo
tratá-los. Ela ama estar no comando: uma general
perfeitamente loira e linda.
Relaxo o rosto numa tentativa de parecer que sinto muito
e murmuro alguma coisa sobre o trânsito enquanto tento
passar por ela, que, por sua vez, empurra a cadeira para
longe do computador, bloqueia meu caminho e me olha de
cima a baixo.
— Nossa, que cara de acabada… — diz ela. — O que
houve?
A última coisa que quero é ficar dando satisfação para
essa sabe-tudo da Lauren Haller. Eu a encaro enquanto
penso no que dizer.
— Não dormi bem. Esse horário às vezes me desregula,
sabe… — Olho ansiosa para a sala dos funcionários,
desejando que Lauren me deixe passar.
Lauren me estuda por um instante como se estivesse
decidindo se acredita em mim ou não, até que, por fim,
assente.
— Você vai se acostumar. Eu era assim no meu primeiro
ano, não falava lé com cré, vivia podre de cansada.
Eu me seguro para não revirar os olhos e dou um sorriso.
Este não é meu primeiro ano. E, tecnicamente, ela só tem
um ano de casa a mais que eu, mas vive ostentando a
superexperiência por aí, como uma líder de torcida. Rá-rá,
sou melhor que você!
— Ah, é mesmo? Obrigada, Lo, tenho certeza de que vai
melhorar. — De cabeça baixa, dirijo-me à sala dos
funcionários para deixar minhas coisas no armário.
— Toma uma taça de vinho — diz ela atrás de mim. —
Antes de dormir. É o que eu faço.
Ergo a mão para mostrar que ouvi e sumo de vista. A
última coisa que quero fazer é seguir algum conselho de
Lauren. Eu preferiria ficar sóbria pelo resto da vida a imitar
seus hábitos noturnos.
A sala dos funcionários, graças a Deus, está vazia quando
entro. Respiro, aliviada, e olho para os armários, como faço
todo dia. A rotina de sempre. As pessoas decoraram as
portas de seus armários com fotos dos maridos, filhos e
netos em vários graus de felicidade. Há cartões de
aniversário, ímãs trazidos de viagens de férias e algumas
flores secas aqui e ali — tudo colado com muito orgulho.
Chuto para o lado um balão verde meio frouxo que está
pendurado na frente do meu armário, deve ter sobrado do
aniversário de alguém. Feliz quarenta anos! Está escrito em
cores primárias. Há um borrão de cobertura de bolo branca
e uma mancha de dedo engordurado. A porta do meu
armário não tem nada, exceto por um adesivo da gravadora
Sub Pop que seu último dono deixou. Quando o pessoal da
limpeza tentou removê-lo, a cola cinza não desgrudou e,
teimoso, continua ali, independentemente da quantidade de
vezes que já tentei tirá-lo. Eu realmente deveria decorar o
armário com alguma coisa, talvez uma foto minha e de
Seth.
Pensar nisso me deixa deprimida. Acho que é por esse
motivo que ainda não o fiz. Sinto como se Seth não fosse
todo meu, e saber que, em algum lugar, outras duas
mulheres podem ter uma foto dele em suas mesas ou
coladas em armários me deixa enjoada. Sem perceber, toco
o machucado na minha orelha e penso nos hematomas de
Hannah. Um acidente, dissera ela. Igual ao que aconteceu
ontem à noite. Um acidente.
Meus olhos vagueiam até o armário de Lauren, que fica a
quatro portas do meu. Na maioria dos dias, tento não olhar
e mantenho meus olhos treinados no meu espaço vazio,
numa tentativa de afirmar para mim mesma que não
importa — hoje, porém, encaro as fotos dela e sinto algo
estranho borbulhando no meu estômago. São selfies lindas,
quatro por seis, com um cartão entre elas nos quais se
veem mensagens cafonas como “você é o amor da minha
vida”, escritas em letra cor-de-rosa cursiva. Os cartões
parecem desafiar você. Qualquer um pode abri-los para ler
o que está escrito, e parte de mim acredita que é bem isso
que Lauren quer. Com um passo, chego mais perto para
estudar as fotos: Lauren e John posando em frente à Torre
Eiffel, Lauren e John se beijando na frente das pirâmides
egípcias, Lauren e John se abraçando ao lado de um
bondinho em São Francisco. Quantas vezes já a ouvi falando
que eles eram um “casal aventureiro”…
Já suspeitei de que o único motivo pelo qual Lauren e
John viajam tanto é porque não podem ter filhos, e minhas
suspeitas se confirmaram quando, depois que engravidei,
ela de repente parou de falar comigo. Perguntei para outra
enfermeira, e ela havia respondido em um sussurro que era
difícil para Lauren ficar perto de mulheres grávidas depois
de tantos abortos. Eu resolvi deixar para lá, decidi lhe dar
espaço e fiz questão de nunca mencionar minha gravidez
perto dela. Alguns meses depois, quando perdi o bebê,
Lauren imediatamente demonstrou interesse por mim de
novo, agindo como se fôssemos melhores amigas que
haviam se reencontrado. Ela chegara a ponto de me mandar
um buquê de flores enorme quando tirei uma semana de
folga para viver o luto. Isso me confortava, ter algo tão
terrível e devastador em comum com alguém. Quem sabe
se tivéssemos livros favoritos em comum, ou interesse por
maquiagem ou até um programa de TV preferido — úteros
vazios não são um bom assunto para fortalecer relações.
Ignorei os convites para que Seth e eu fôssemos jantar com
eles, até que eles finalmente cessaram. As mensagens
acabaram parando também, e hoje em dia mal fazemos
contato visual, a não ser que ela queira encher meu saco
com alguma coisa.
A verdade é que tenho inveja das férias felizes e do
marido atencioso de Lauren. Ela não precisa compartilhar o
marido com mais ninguém, e isso é algo que eu queria,
muito embora tente dizer a mim mesma que não é verdade.
Tudo seria muito mais fácil se não houvesse aquelas outras
duas. Tirar férias quando quiséssemos, jantares em público
para que todo mundo visse que somos um casal lindo, um
marido que estivesse em casa toda noite, e não apenas
duas vezes por semana. Até a briga de ontem à noite teria
sido evitada, já que, no fim das contas, havia sido instigada
pela situação.
Assim que pego o estetoscópio e a tesoura de ponta
romba, recebo uma mensagem de Seth. Fico animada assim
que leio o nome dele. Fecho o armário com força e me
preparo para o que só pode ser um pedido de desculpas. Eu
aceitaria o pedido de desculpas, lógico. Na verdade, eu até
pediria desculpas por ter causado a briga. É inútil ficar
guardando rancor. Mas, quando desbloqueio o celular, não é
a mensagem que eu esperava ler. Minha boca fica seca
enquanto encaro a tela.
Pedi comida para levar. Vou inventar uma desculpa e vazar. Te amo.
***
A
porta do apartamento se abre, e Seth entra carregando
duas embalagens de comida para viagem. Ah, é quinta-
-feira. Eu tinha esquecido. Ultimamente, só tenho
pensado nas esposas do meu marido. Em algum momento,
Seth foi substituído. Dou um sorriso forçado para ele. Nós
dois sabemos que não é sincero. Um buquê de rosas
brancas descansa na dobra de seu braço. Rosas sem motivo
ou rosas compradas porque recebi uma mensagem que era
para outra? Geralmente, eu correria para aliviá-lo do peso
que estivesse carregando, mas dessa vez nem me levanto.
Ele nunca nem tentou explicar a mensagem enviada por
engano. E esperei a semana inteira por alguma coisa…
qualquer coisa. Não estou para conversa, nem um pouco a
fim de fingir estar de bom humor para lhe agradar.
Pedi comida para levar. Vou inventar uma desculpa e
vazar. Te amo.
As linhas de expressão em seu rosto estão relaxadas, e os
olhos, em alerta. Dobro uma toalha e a coloco na pilha para
ser guardada enquanto o vejo chutar a porta para fechá-la e
vir sem pressa em minha direção. Tudo nesse
comportamento dele me incomoda. Ele não está agindo de
acordo com o papel de marido arrependido.
— Pra você — diz ele, me entregando as flores.
Fico sem jeito com elas nas mãos por alguns segundos e
depois as coloco de lado, para lidar com elas mais tarde.
Estou toda desarrumada de novo, com o cabelo solto e
ondulado por ter secado sozinho. Estou usando minha calça
legging favorita, a que tem um furo na perna direita. Tiro o
cabelo da frente dos olhos enquanto ele segura as
embalagens com comida e as balança na minha frente.
— Jantar — declara.
O sorriso dele é quase contagioso, só que não estou com
a mínima vontade de sorrir. Fico imaginando se ele está se
achando o máximo por ter trazido o jantar ou se tem boas
notícias. É um risco comprar comida sem saber se cozinhei,
mas acho que ele deve suspeitar que estou em greve.
— Pra que essa felicidade toda? — Dobro a última toalha
e pego a pilha para levar até o armário. Seth dá um tapinha
na minha bunda quando passo por ele. Penso em dar uma
encarada raivosa, mas mantenho a cabeça erguida e sigo
olhando para a frente. Por que esse esforço dele está me
irritando agora? Há algumas semanas, eu me deleitaria com
toda essa atenção.
— Será que um homem não pode ficar feliz por chegar
em casa e ver sua mulher? — Será que um homem não
pode ficar feliz por chegar em uma casa e ver apenas uma
mulher?
Pressiono os lábios para segurar essas palavras e me
ocupo organizando as toalhas no armário.
Quando termino, vamos para a bancada da cozinha
comer. Embora não pareça que Seth tenha percebido, não
falei mais do que algumas palavras desde que ele chegou.
Ou talvez meu marido esteja ignorando meu silêncio como
uma forma de fingir que está tudo bem. Eu o observo abrir
as embalagens engorduradas na bancada enquanto olha
para mim o tempo todo para conferir minha reação.
O cheiro de alho e gengibre exala da comida, e sinto
minha barriga roncar. Ele se levanta para pegar os pratos,
mas faço um gesto para que não o faça.
— Não precisa — digo, me inclinando para a frente e
puxando uma embalagem de frango com alho para mim.
Ao abrir a tampa, pego um pedaço de frango com os
hashis e o observo por cima da borda da caixa enquanto
mastigo. Ele olha para minhas botas da UGG, que estão
apoiadas na bancada perto da comida, com uma expressão
divertida de confusão no rosto.
— Primeiro macarrão instantâneo, agora comida chinesa
— digo. — Daqui a pouco é pizza… — É para ser uma piada,
mas minha voz está esvaziada de emoção. Acho que
pareceu mais como uma ameaça.
Seth dá uma risada, puxa sua banqueta para mais perto
da minha e pega o lo mein.
— E sapatos dentro de casa — diz ele, falando das minhas
botas. — Gostei.
— Em minha defesa, essas botas são praticamente
pantufas. — Estou flertando e me odeio por isso.
— Não sabia que você era capaz de se permitir dar uma
respirada — diz Seth.
Encolho os dedos dos pés em protesto. Sinto uma
urgência de tirar os sapatos de onde estão e pegar pratos
decentes no armário, mas, teimosa, fico onde estou e
encaro meu marido. Talvez eu queira me dedicar a conhecê-
lo em vez de impressioná-
-lo. Provavelmente é algo que eu devia ter feito desde o
começo. Mas, em vez disso, fui uma tonta cheia de sonhos e
esperança de que tinha algo diferente nele.
Abaixo a embalagem de frango, pousando-a na bancada,
e limpo a boca com um dos guardanapos frágeis que Seth
me dá. Pela primeira vez, percebo que ele está com uma
camiseta que nunca vi por baixo de um moletom. Quando
foi a última vez que vi meu marido assim tão casual, usando
uma camiseta? Durante o último ano, o guarda-roupa de
Seth consistiu em camisas e gravatas, mocassins e ternos
— Seth profissional, Seth casado. Ele parece outra pessoa
com um par de All Star velho e uma camiseta gasta. Sinto
algo se atiçando em meu ventre… Será que é desejo? É
alguém com quem eu gostaria de sair, penso.
— Você está diferente hoje — digo.
— Você também.
— O quê? — Estou tão perdida em pensamentos que a
voz dele me assusta.
— Você está diferente também — repete Seth.
Dou de ombros; parece um gesto infantil, mas o que vou
dizer? Achei suas esposas, e agora que elas têm nomes e
rostos tudo ficou diferente? Não sei mais quem você é? Não
sei quem eu sou?
É difícil colocar em palavras tudo o que ando sentindo,
então digo a única coisa em que consegui pensar.
— As pessoas mudam…
Estou com um leve medo do jeito casual com que ele está
olhando para mim, mas então me lembro de que estou
tentando me importar menos com o que ele acha e focar no
que eu acho.
— Tem razão. — Ele pega a cerveja e a estende na minha
direção. — Um brinde às mudanças.
Hesito por um instante antes de levantar minha garrafa
de água e incliná-la em direção à cerveja dele. Seus olhos
encaram os meus enquanto brindamos e tomamos nossas
bebidas.
— Vamos dar uma volta — diz ele, antes de se levantar e
alongar os braços sobre a cabeça.
Sua camiseta se levanta e revela uma barriga bronzeada
de sol e torneada.
Não quero me distrair, então desvio o olhar na mesma
hora. Sou uma criatura sexual — ele me controla com sexo,
e eu o controlo com sexo. É um carrossel de prazer e
servidão de que sempre gostei. Contudo, essas surras de
pau e boceta são capazes de saciar as pessoas a ponto de
deixá-las cegas. Uma vez, minha mãe me disse que um
relacionamento pode superar praticamente qualquer coisa
se o sexo for bom. Na época, me pareceu um pensamento
raso e ridículo, mas agora percebo que é exatamente isso
que aconteceu com Seth e comigo. Muita coisa acontece
num relacionamento, há provavelmente vários detalhes que
merecem atenção, mas as pessoas estão ocupadas demais
fodendo para perceber.
À porta, visto um gorro e um casaco, então me viro para
sair e vejo Seth me encarando, com uma expressão
estranha no rosto.
— O que foi? — pergunto. — Está me olhando assim por
quê?
— Nada — diz ele, meio tímido depois de ter sido pego no
flagra. — Só estou apreciando a vista.
Ele se inclina e me dá um beijinho delicado na ponta do
nariz antes de abrir a porta. Com o nariz formigando, eu o
sigo até o elevador. Chegamos ao hall do prédio em silêncio,
e, quando saímos, ele pega minha mão. O que será que deu
nele? Flerte, demonstrações públicas de afeto… Parece até
outro homem. Quando botamos o pé na calçada, um
sentimento invade minha mente, algo que eu havia
esquecido. Afasto o pensamento. Aqui e agora, digo a mim
mesma. Foque no agora e pare de pensar no restante.
Geralmente, Seth e eu não nos aventuramos fora do
apartamento nos dias em que ele me visita, e parte do
motivo é porque preferimos simplesmente ficar juntos, em
casa. A outra parte, é claro, é o medo de ser visto por
alguém que o conheça como marido de Regina. No começo,
isso me incomodava; eu ficava tentando levá-lo a
restaurantes ou ao cinema, mas ele insistia em ficar em
casa. Não parecera justo na época — afinal, a esposa no
papel era eu. Com o tempo, acabei desistindo e me resignei
a aceitar nossa relação como algo que acontece entre
quatro paredes. E agora aqui estamos nós, de mãos dadas
nas ruas molhadas de Seattle. Parabéns pra mim!
Seth me olha e sorri, como se esse passeio fosse tão
prazeroso para ele quanto é para mim. Minhas botas abrem
caminho pelas poças enquanto nos dirigimos até um
estande
de sidra na feira Pike. Seth puxa as notas presas em seu
clipe de dinheiro, uma atrás da outra. Ele deixa uma gorjeta
generosa e me entrega um copo descartável com ouro
líquido. O clipe de prender dinheiro foi um presente que dei
a ele de Natal há alguns anos. Nunca o tinha visto usando
até agora; ele sempre usa uma carteira de couro surrada no
bolso detrás.
Nos aconchegamos debaixo de um toldo com nossas
bebidas e ouvimos um músico de rua tocar Lionel Richie no
violino. Enquanto bebemos, olhamos com timidez um para o
outro, e a sensação é a mesma do nosso primeiro encontro
— muitas emoções e pouca familiaridade. Há algo diferente
entre a gente hoje, uma nova química que nunca
exploramos. Fico pensando que sempre poderíamos ter tido
isso se não houvesse quatro pessoas em vez de duas no
casamento. Nosso laço teria se fortalecido, e não
esmaecido.
Seth me puxa para mais perto, e eu me apoio nele,
descanso minha cabeça em seu ombro e cantarolo a
música. Nossos corpos estão tão colados que, quando seu
celular toca, sinto-o vibrar na minha perna. Seth, que
costuma desligar o celular quando está comigo, mexe no
bolso com a mão livre. Afasto o corpo para que ele possa
pegar o aparelho e tomo um gole calculado da sidra. A
bebida me escalda o céu da boca. Pressiono a ponta da
língua no ponto quente enquanto espero para ver se ele vai
atender.
Quando puxa o celular do bolso, ele não tenta esconder a
tela de mim. O nome de Regina brilha sobre o papel de
parede — uma foto de seus sobrinhos fantasiados no Dia
das Bruxas. Mordo o lábio e desvio o olhar, como se tivesse
feito algo de errado.
— Você se importa? — pergunta ele, me mostrando o
aparelho.
O nome Regina me encara. Olho para ele e hesito,
confusa. Ele está me pedindo permissão para atender à
ligação de outra esposa?
Balanço a cabeça e volto a observar o violinista, que
agora toca uma música de Miley Cyrus com entusiasmo.
— Oi. — Ouço-o dizer. — É… Você colocou na pasta de
amendoim? Assim ela aceita… Está bem, me diz se deu
certo.
Ele está falando com Regina na minha frente. É como se
um objeto de metal afiado me acertasse em cheio. Ai, ai, ai.
Ele devolve o celular ao bolso, meio constrangido.
— Nossa cachorra — diz ele, enquanto observa o
violinista com um interesse renovado. — Ela está velhinha e
doente. Só toma o remédio com pasta de amendoim.
Seth tem uma cachorra.
— Ah — digo. Estou me sentindo uma idiota, alguém
emocionalmente atrapalhada. Será que nunca percebi pelo
de cachorro nas roupas dele? — Qual é a raça?
Ele dá um de seus sorrisos tortos.
— É uma pastora-de-shetland. Ela é uma senhorinha
agora… Está com um problema nas patas traseiras. Foi
submetida a uma cirurgia há uns dias e não quer tomar o
remédio.
Escuto, fascinada. Sua outra vida, um detalhe que a
maioria consideraria mundano, mas ao qual me agarro,
querendo mais. Uma cachorra. Chegamos a cogitar ter um
cachorro, mas morar em um apartamento pareceu injusto
com o animal — isso e meus horários de trabalho.
— Qual é o nome dela? — pergunto cautelosamente.
Tenho medo de fazer perguntas demais e Seth se fechar
ou ficar bravo por eu estar especulando. Mas nada disso
acontece.
Ele joga o copo vazio em uma lixeira entulhada e diz:
— Smidge. Foi Regina que escolheu. Eu queria algo mais
genérico, tipo Lassie.
Ele ri com a lembrança e acena para uma criancinha que
exclama um “Oi!” enquanto é empurrada em seu carrinho.
Desvio o olhar rapidamente. Não consigo olhar crianças nos
olhos.
— Você nunca tinha dito o nome dela — digo.
Seth enfia as mãos nos bolsos e me encara.
— Nunca?
— Não — digo. — E na semana passada você me mandou
uma mensagem que era pra alguma delas…
Ele joga a cabeça para trás, e consigo ver incerteza em
seus olhos.
— E o que dizia a mensagem?
Sem acreditar naquele teatrinho, estudo seu rosto.
— Você sabe o que dizia, Seth.
— Desculpa, amor. Não lembro. Se mandei mesmo, foi
erro meu e maldade com você. Me perdoa?
Aperto os lábios. Não tem outro jeito, tem? Eu poderia
muito bem cismar com isso e prolongar o assunto por mais
uns dias, mas de que adiantaria? Assinto e forço meus
lábios a sorrir.
— Vem — diz ele, estendendo a mão. — Vamos voltar.
Está congelante aqui fora.
Deixo Seth entrelaçar os dedos nos meus, e de repente
estamos correndo pela rua enquanto seguro meu gorro ao
pular o meio-fio. Escuto minha risada enquanto desviamos
de corpos em câmera lenta na calçada. Ele olha para trás e
dou um sorriso tímido, sentindo as asas da paixão
debatendo-se em minha barriga.
Nos beijamos no elevador, mesmo com outra pessoa
presente — uma mulher de meia-idade com um yorkie que
não para de tremer. Ela se afasta o mais longe possível de
nós e se encolhe no canto do elevador, como se tivéssemos
algo contagioso.
— Por onde você andou? — sussurro nos lábios de Seth.
— Aqui, o tempo todo. — Ele está tão sem fôlego quanto
eu e suas mãos tateiam o tecido do meu casaco. Ele puxa o
zíper para baixo, e o som é inusitado dentro do elevador.
Pelo espelho atrás de mim, vejo o rosto da mulher ficar
pálido. Ela aperta a bolsa ainda mais no peito e encara os
números sobre a porta, ansiosa por se afastar da gente. O
yorkie solta um ganido. Rio na boca de Seth enquanto ele
tira o casaco dos meus ombros e alcança meus seios. As
portas se abrem e ela sai correndo. As portas se fecham e
continuamos subindo. As mãos dele estão entre minhas
pernas, e seu dedão faz movimentos circulares. Quando as
portas se abrem em nosso andar, andamos juntos, não
queremos nos desgrudar.
Mais tarde, estamos deitados emaranhados na cama e
com a pele úmida de exaustão. Seth traça uma linha com a
ponta do dedo de cima a baixo em meu braço. Eu me
aconchego nele, curtindo o momento, me esquecendo de
tudo que não seja nós dois. Só por esta noite. Esta noite vou
esquecer. Amanhã é outra história. É então que me lembro
do que estava me incomodando, pairando no meu
inconsciente, longe do meu alcance: a mensagem de
Regina.
Oi, Will!
Não me importo com os elogios, não! Ralei muito para terminar a faculdade de
direito — então pode elogiar à vontade.
Estou lotada de trabalho agora, mas posso tirar uma horinha para me divertir.
Você disse que gosta de fazer trilhas. Quem sabe a gente não faz uma juntos.
Topo sair para tomar uma cerveja também, se você preferir. Seus sobrinhos são
muito fofos! Você parece levar jeito com criança.
Até mais,
Regina
P
atética. Nem brigar direito com meu marido eu consigo.
Fico repassando nossa conversa mentalmente, o papo
que tivemos depois que saí da casa de meus pais. Liguei
para Seth assim que saí da garagem. Eu queria falar que
gostei de ter passado um tempo com ele, do quanto
aproveitei a outra noite, mas minha ligação caiu direto na
caixa postal. Ele ligou de volta vinte minutos depois, quando
eu estava entrando no elevador do nosso prédio.
— Oi — dissera. — Eu estava numa ligação… — A voz
dele começara a picotar e, segurando o telefone mais perto
da orelha, ouvi a palavra: — … pais…
Sobre os pais de Seth: nunca os conheci. O estilo de vida
que seguiam significava serem discretos durante a maior
parte do tempo e raramente saíam de Utah. Quando as
portas do elevador se abriram e saí apressada, tive uma
ideia. E a sugeri para Seth.
— A gente devia ir para Utah nas nossas férias! Faz
quanto tempo que você não vê sua família? — Eu imaginei
que ele fosse amar a ideia, que aproveitaria a oportunidade
de passarmos um tempo juntos e ir para casa, mas a reação
de Seth me deixou chocada, seu tom ficou frio na mesma
hora.
— Não — dissera ele, depois de um longo suspiro, como
se eu fosse uma criança. Seth vem evitando esse encontro
presencial com os pais há dois anos, o tempo que estamos
juntos. — Minha família é uma bagunça. — É o que ele vive
dizendo. — São ocupados. — Ele diz “ocupados” como se eu
não fosse ocupada, como se eu não conseguisse entender
de jeito nenhum as demandas de suas vidas.
— Você tem meios-irmãos! — Eu argumentara. — Tenho
certeza de que eles podem tirar um tempinho. Eu queria
conhecer eles…
Seth recusara a ideia de um jeito meio agressivo, e
acabamos brigando, até que dei o braço a torcer. É isso que
faço para que ele não perca o interesse — eu cedo. Não vou
ser a megera chata. Não vou ser a esposa difícil. Serei a
favorita, a que facilita a vida dele. A que se voluntaria para
chupar seu pau depois de um dia difícil e geme como se
fosse ela recebendo o prazer.
A verdade é que nem sei ao certo se quero conhecer os
pais de Seth. Eles são poligâmicos, pelo amor de Deus. E
não são como a gente. Vivem todos juntos, usam roupas
estranhas e criam os filhos juntos, como se fossem uma
colônia de coelhos. Imagine olhar a outra esposa nos olhos
todo dia, lavar os pratos dela, trocar a fralda de um filho
que não é meu e saber que, ontem à noite mesmo, ela
estava arranhando as costas do seu marido num momento
de prazer. Parece tão errado, mas quem sou eu para julgar?
O motivo que me levou a não contar a verdade a amigos e
familiares é saber como eles achariam isso errado.
De qualquer jeito, são os pais dele, e, a priori, conhecê-
los parece a coisa certa. É algo que fiz por merecer. Um
pensamento desconfortável me ocorre: e se eles já
conheceram Hannah? Será que Seth me contaria se isso
tivesse acontecido? Depois do modo como ele reagiu e me
magoou, tenho muito medo de perguntar.
Então me sirvo de uma taça de vinho, a segunda no
espaço de uma hora, e vou vagando até a sala para assistir
a um pouco de TV. A única coisa que encontro para ver são
episódios de reality shows podres que já vi. De alguma
forma, a vida de merda dessas celebridades faz com que eu
me sinta melhor em relação à minha. Tirando a fortuna, que
elas podem ter merecido ou não, há algo de maçante e
monótono na vida dessas mulheres que parecem de
plástico. E isso dá certa esperança ao restante de nós. Está
todo mundo fodido, todo mundo, penso.
Vinte minutos depois, porém, não estou mais prestando
atenção. Desligo a TV e fico encarando a parede enquanto
sinto a raiva ainda latente. Vou até o armário no corredor e
pego os cartões que os pais dele mandaram no decorrer dos
anos, são oito no total, e estudo as assinaturas na parte de
baixo. Os cartões são genéricos, com flores e ursinhos
estampados. São todos iguais, sempre impessoais, tirando
os nomes rabiscados às pressas: Perry e Phyllis. Que
estranho… Eles podem até não me conhecer, mas poderiam
pelo menos expressar alguma vontade de me encontrar.
“Mal vejo a hora de nos conhecermos! Abraços.” Ou quem
sabe até um “Seth fala tão bem de você”. Penso em todos
os cartões que já enviei, na boa vontade expressa nas
palavras que escrevi, contando a eles sobre nosso
apartamento em Seattle e — antes do aborto — os nomes
que tínhamos escolhido para o bebê. Agora me sinto uma
idiota por compartilhar todos esses detalhes e saber que
eles nunca ligaram o suficiente para nem ao menos
responder. Queria poder perguntar a Hannah ou a Regina
sobre eles — o que acham deles e se já tiveram alguma
interação digna com eles.
Nunca cheguei a falar nem por e-mail com a mãe dele,
muito embora eu tenha pedido o endereço diversas vezes.
Acho que, se conseguíssemos estabelecer alguma conexão
pela internet, teríamos feito progresso. Seth sempre diz que
vai me mandar, mas nunca manda.
No dia anterior ao nosso casamento, o pai dele, Perry,
teve de se submeter a uma operação de vesícula de
emergência, e sua mãe não quis deixar o marido sozinho.
Não entendi o problema; afinal de contas, havia outras
quatro esposas para cuidar dele, não havia?
— Ela é a mulher dele no papel. Precisa ficar lá caso
aconteça algum imprevisto — dissera Seth.
Depois de perderem o casamento, prometeram vir passar
o Natal, mas então a mãe dele teve pneumonia. Na Páscoa,
foi faringite; no Natal seguinte, uma outra coisa. Quando
perdi o bebê, mandaram flores, que joguei direto no lixo. Eu
não queria nenhum lembrete do que havia acontecido. Eles
sempre mandam um cartão no meu aniversário, com
cinquenta dólares dentro.
Termino a taça de vinho e abro o perfil de Regina no
Facebook. Talvez ela tenha foto com eles em algum lugar. As
chances são remotas, mas vale a pena tentar. Seth não tem
nenhuma foto com os pais. Ele me disse que os dois odeiam
câmeras e celulares e que, por razões legais, nunca tiram
fotos juntos. Como já imaginava, o perfil de Regina não dá
nenhuma informação. Nem o de Hannah. Não sei se devia
me sentir aliviada ou ainda mais chateada.
Frustrada, fecho o MacBook. Se quero respostas, há
apenas uma coisa que posso fazer: continuar procurando
sem que Seth saiba. Uma notificação no e-mail me informa
que Regina respondeu a Will. Ansiosa, entro no site. Já faz
um tempinho que fico me perguntando quando será que ela
vai querer um encontro e o que vou dizer, mas, pelo menos
por enquanto, ela parece conformada com as coisas indo
devagar. A mensagem é longa. Faço um upgrade do vinho e
passo para a vodca, volto para o sofá e mordo o lábio
inferior enquanto leio.
Oi, Will.
Acabei de chegar em casa depois de um dia cheio de reuniões. Estou morta.
Acho que vou só pedir alguma coisa para comer e ver Netflix. Que bom que
você vai visitar a família nesse fim de semana! Aproveita!
Quanto ao meu casamento… Hum, é difícil responder. A gente se esforçou
muito por alguns anos, provavelmente até depois de termos percebido que já
não tinha mais jeito. Acabou que nos tornamos pessoas bem diferentes, que
queriam coisas diferentes. Ele está casado com outra pessoa agora… e feliz,
pelo que fiquei sabendo.
Às vezes, fico meio incomodada quando penso que ele conseguiu me superar
tão rápido enquanto eu precisei de certo tempo, mas acho que todo mundo lida
com as coisas de um jeito diferente. Por que seu último relacionamento acabou?
Vocês ficaram juntos por muito tempo?
Regina
P
enso em Hannah a manhã inteira. Estou ficando
obcecada, o tempo todo me pergunto onde ela está e o
que anda fazendo. Não estou dormindo bem; até quando
tomo os comprimidos que o médico me prescreveu, acordo
no meio da noite com o corpo coberto por uma camada
brilhante de suor. Esqueci o que significa ser feliz. Não me
lembro mais do que me define como pessoa. Esse fluxo de
emoções começou depois da última mensagem de Regina
para Will, quando ela perguntou o que o fazia feliz de
verdade. Como Will, eu havia respondido: minha família,
meu trabalho. Contudo, quando troquei de lugar com ele e
contemplei o que me fazia feliz, não consegui formular uma
boa resposta. Sei o que faz Seth feliz e sei que sinto
felicidade quando ele fica contente, mas isso não é uma
prova de que abdiquei da minha personalidade por
completo para me identificar com ele? Acabei me tornando
uma daquelas mulheres que ficam felizes com a felicidade
dos outros. É decepcionante pensar que perdi minha
personalidade. Quando Seth me encontrou naquela
cafeteria, eu estava, em certo nível, buscando minha
identidade. Eu era metaforicamente uma criança, não tinha
muita experiência. Às vezes, me pergunto se ele tinha
consciência disso e por isso me escolheu. Seria fácil
convencer uma jovem apaixonada de que ela poderia fazer
o impossível emocionalmente. E um casamento plural é
impossível de todas as formas, tanto para o coração como
para a mente. Mas estou determinada. Seth e eu saímos dos
trilhos; ele ter me empurrado aquele dia é a prova disso. A
gente consegue voltar a ficar bem — só preciso que Regina
saia de cena.
Decido dar uma caminhada para espairecer. Deve estar
muito frio, mas já passei tempo suficiente enfurnada neste
apartamento com meus pensamentos. Se eu tivesse algum
amigo morando por perto, as coisas seriam diferentes.
Alguém em quem confiar, que pudesse me aconselhar. Só
que esse segredo em meu casamento me impede de
desenvolver relações significativas. Há muitas perguntas e
muitas mentiras que acabam sendo inevitavelmente
necessárias. É quase cômico pensar em alguém dando
conselho sobre algo tão bizarro quanto um casamento
plural: “Apoie as mulheres! Não se esqueça de chupar o pau
dele sempre que puder para ser a favorita…”
Coloco meu casaco mais quente, calço minhas galochas e
vou ao Westlake Center. As árvores na praça tinham o
tronco pintado de azul-cobalto por causa do Seahawks.
Durante a caminhada, noto uma barraca vendendo vinho
quente e castanhas assadas. Já bebi demais hoje, mas um
copo de vinho quente não vai fazer mal. Na fila, me
convenço de que todo o álcool deve ter evaporado quando
foi ao fogo.
Peço um dos grandes e levo o copo descartável pelando
até as lojas do outro lado da rua. Estou prestes a atravessar
quando escuto alguém chamar meu nome. Surpresa, me
viro e olho os rostos ao meu redor. Não conheço muita
gente na cidade. A maioria das pessoas está com a cabeça
baixa por causa da chuva, e, quando paro na calçada, elas
passam por mim em uma horda e atravessam a pequena
interseção.
Então a vejo, aquele cabelo loiro superperfeito por baixo
de um gorro que, por sua vez, está abrigado sob o capuz
vermelho brilhante de uma capa de chuva. Ela tem uma
aparência inocente e animada, como uma versão hipster da
Chapeuzinho Vermelho.
— Oi! Achei mesmo que fosse você. — Lauren se
aproxima, com o rosto rosado por causa do esforço ou do
frio. Ela apoia a mão no meu ombro enquanto se dobra para
recuperar o fôlego. — Corri pra te alcançar. Você estava
viajando, nem me ouviu chamar.
— Desculpa — digo, olhando para trás. O sinal fechou de
novo e perdi a chance de atravessar a rua. Que ótimo… Isso
significa que vou ficar presa aqui com Lauren por mais
alguns minutos.
— Hum… e o que você está fazendo por aqui? —
pergunto.
Eu meio que esperava John, o marido dela, aparecer na
multidão com aquele sorriso bobo no rosto. John está
sempre sorrindo e implorando para que o mundo goste dele.
Sou um cara legal! Olha só pra mim sorrindo aqui! Ele
também usa gorros e sempre deixa três cachos
estrategicamente pendurados na testa. Desanimada, olho
em volta. A última coisa de que preciso agora é ver um
casal feliz.
— Ah, pensei em dar uma voltinha pelo centro — diz ela.
— Comer alguma coisa.
— Cadê o…?
— No trabalho — diz ela rapidamente. Alguém esbarra
em mim, o que faz o vinho quente transbordar do copo e
cair no meu casaco. Tropeço e perco o equilíbrio. Lauren me
segura antes que eu caia. Agradeço com um sorriso
enquanto me ajeito.
— Opa. Quantos desse você tomou? — Ela quer ser
engraçadinha, e é óbvio que não faz a menor ideia de que
passei boa parte do dia bebendo, mas algo em sua voz me
deixa com raiva.
— Você não precisa me julgar assim — digo, irritada.
Jogo o resto do vinho na calçada e marcho com o copo
vazio até uma lixeira. O lixo está transbordando, e não há
mais espaço. Deixo o copo no topo da pilha e volto para
esperar o sinal abrir. Parece que dei um tapa em Lauren; o
sorriso sumiu do rosto dela. Imediatamente, me sinto
culpada. Ela estava sendo uma querida, e olha o que fiz,
despejei minha frustração em quem não merecia.
— Desculpa — digo, levando uma das mãos à cabeça. —
Meu dia foi uma merda. Quer beber alguma coisa?
Ela assente sem dizer nada, e, de repente, tirando o foco
dos meus problemas, vejo algo a mais em seu rosto. Ela
também não está feliz; há algo errado. Dou um suspiro. A
última coisa de que preciso, hoje, é ser psicóloga de outra
pessoa.
— Então ótimo — digo, olhando em volta. — Tem um
barzinho pra lá, ou quem sabe podemos ir a um lugar mais
legal, com coisas mais fortes.
Ela contempla as possibilidades por alguns segundos e
então concorda, decidida.
— Coisas mais fortes.
— Boa escolha — digo. — Sei onde ficam os melhores
lugares. Vem comigo.
E
stou deitada no sofá ouvindo música triste: The 1975,
The Neighbourhood, Jule Vera. Meus olhos estão
fechados; a ressaca se apoderou de minha cabeça e do
meu estômago. Eu me viro de lado e mantenho os olhos
fechados. Abrir uma brecha para alguma coisa é mesmo um
caminho sem volta. Tudo o que dá para fazer agora é
aguentar firme enquanto vou cada vez mais fundo nessa
história. Regina e Hannah, Regina e Hannah — é só nisso
que consigo pensar. Foco no que sei a respeito delas, penso
no peso de nossas falhas, vagueio entre nossos erros.
Mandei uma mensagem para Hannah hoje de manhã, só
para ver se está tudo bem, mas não tive resposta. Ela é
minha aliada sem nem saber. Meu destino está atado ao
dela. Será que ela já desejou se livrar de Regina?
Regina é mais bem-sucedida do que jamais serei, mais
confiante. Hannah é mais nova, mais bonita. Estou no meio
delas, um ponto médio para equilibrar os extremos. Seth
mandou mais mensagens do que o normal esta semana. Ele
está tentando.
Por volta do meio-dia, me forço a me levantar do sofá e
vou até o banheiro. Quando saio do chuveiro, olho para meu
reflexo nu no espelho e tento imaginar o que Seth vê
quando olha para mim. Sou baixinha, mas não tanto quanto
Regina, minha cintura é larga e tenho coxas grossas e
musculosas. Meus peitos transbordam de qualquer camiseta
que eu vista; sem sutiã, ficam soltos e grandes. Nós temos
biótipos completamente diferentes e, ainda assim, somos
desejadas pelo mesmo homem. A conta não fecha. Homens
têm um tipo, não têm? Ainda mais um tão particular quanto
Seth. Seth, que gosta da Mary-Kate Olsen, mas não da
Ashley. “Ashley com certeza não”, diz ele.
Regina é quem deve fazer o tipo dele, já que foi ela com
quem Seth se casou primeiro. Mas aos vinte e poucos anos
as pessoas ainda não estão se descobrindo? Talvez ele
tenha descoberto que o tipo dele sou eu. Mas pensar assim
é ser muito positiva, principalmente quando sou uma das
três. Uma vez ele me disse que se sentiu atraído por tudo
em Regina naquela festa, tanto que foi falar com ela mesmo
sabendo que poderia acabar sendo dispensado. Ele se
sentiu atraído por mim também — pelo jeito com que flertou
comigo, seus olhos cheios do que considero ser desejo. Não
sei como ele conheceu Hannah e preciso descobrir. A foto
de Regina aparece como um flash em minha mente e me
lembro da moça loira e mais alta ao lado dela. Será que é
Hannah? Elas se conheciam? Posso esperar minha reunião
com Regina em Portland ou posso descobrir agora.
É, é uma boa ideia. Uma investigaçãozinha para me
distrair. Mando outra mensagem para Hannah e, antes que
ela responda, já estou enfiando coisas em uma malinha, só
para passar a noite. Caso esteja ocupada, posso muito bem
bisbilhotar por conta própria. Para meu alívio, ela responde,
feliz da vida com minha visita. Ela sugere um jantar e uma
ida ao cinema. Devo ter ficado louca… sério, para jantar e ir
ao cinema com a outra esposa do meu marido. Posso ser
chamada de stalker, ou até considerada fora da casinha…
Mas e daí? O amor com certeza deixa as pessoas loucas,
penso, enquanto fecho o zíper da mala. Acho que ela vai
escolher uma comédia romântica, algo leve e sexy. Mulheres
na idade dela veem a vida de um jeito tão cor-
-de-rosa. Só que, em vez disso, ela pergunta se gosto de
filme de terror. Fico meio surpresa. É óbvio que não gosto,
mas digo que sim. Quero ver o que se passa na cabeça dela,
as coisas das quais gosta. Aquela casa charmosa com
arquitetura histórica e a tábua de frios perfeitamente
arranjada não passavam a imagem de alguém fanático por
filmes de matança. Ela diz que há um thriller psicológico
que quer ver, com Jennifer Lawrence. Pergunto se seu filme
favorito é O sexto sentido, e ela diz que nunca viu. Acabei
de sair da garagem. Não estou prestando muita atenção, e
alguém buzina para mim. É O sexto sentido! Quem nunca
viu O sexto sentido? Ainda mais uma fã de filme de terror?
Ela é nova nesse nível.
Com café quentinho no porta-copos e música animada
tocando, saio de Seattle logo depois do meio-dia. Ai, ai…
Como as coisas mudam de uma hora para outra. Estou
animada. A rádio está tocando música dos anos 1980, e eu
canto junto. Se dirigir rápido, será o tempo certinho de
chegar ao hotel, me arrumar e sair para encontrar Hannah
para jantar. Sinto um frio na barriga de tão animada que
estou, não apenas porque talvez eu consiga algumas
informações sobre nosso marido, mas porque vou fazer algo
além de ficar enfurnada em casa esperando por Seth.
Esperar e esperar — essa é minha vida.
Felizmente, o trânsito para a cidade vizinha está
tranquilo, e faço a viagem num tempo bom. Seth teria me
chamado de pé de chumbo; ele sempre pisava num freio
imaginário no banco do carona quando eu o deixava
nervoso. Quando chego ao hotel, jogo minhas coisas na
cama e tomo um banho rápido. Só trouxe duas mudas de
roupa: uma para a viagem de volta de amanhã e outra para
hoje à noite. Agora, olhando para o cardigã marrom, a blusa
creme e a calça jeans, penso que deveria ter escolhido algo
mais colorido, que chamasse mais atenção. Vou ficar sem
graça e monótona ao lado da elegância de Hannah; meus
seios grandes fazem com que eu pareça muito mais gorda
do que sou. Passo os dedos pelo tecido e sinto nervoso.
Alguns minutos depois, percebo que acabei me atrasando e
agora não vai dar tempo de secar o cabelo. O ar o
transformou em ondas bagunçadas. Faço o possível para
tentar dar um jeitinho, mas preciso ir.
O clima em Portland está melhor do que em Seattle. Não
há névoa, apenas o cheiro de fumaça de escapamento de
carros e maconha. Hannah abre a porta na primeira batida,
com um sorriso brilhante. Brilhante até demais. Dou um
abraço rápido nela e então vejo: um hematoma escuro e
chocante no olho dela, já num tom meio verde, como sopa
de ervilha. Ela tentou esconder com maquiagem, mas,
naquela pele clarinha, a cor se destaca, alarmante,
vibrante.
— Só preciso pegar meu casaco — diz ela. — Entra
rapidinho.
Ponho os pés no hall de entrada, sem saber se devo
mencionar o hematoma ou fingir que ela fez um excelente
trabalho com a maquiagem, que é o que ela deve estar
esperando. Olho ao redor, procurando pela foto que ficava
na parede perto da porta — pelo menos foi o que ela disse.
No lugar, há um quadro com uma papoula prensada. A
imagem me deixa deprimida. Flores prensadas são uma
tentativa de se agarrar a algo que já esteve vivo. São
desesperadas e solitárias.
— Você gostou? — pergunta ela enquanto desce as
escadas. — Achei numa feira. Sempre quis fazer uma em
casa, mas nunca tive tempo.
— Gostei — minto. — Você não falou que tinha uma foto
de família aqui?
Hannah parece ficar vermelha sob meu olhar.
— Falei — responde ela e se vira abruptamente.
Penso no meu armário vazio lá no trabalho e percebo que
ela está fazendo a mesma coisa. Esconda o marido, evite
perguntas. Agora, hematomas? Eu nunca tive de esconder
hematomas. Eu me lembro da minha orelha e, sem me dar
conta, traço com o dedo o caminho da ferida. Por baixo
desse exterior calmo, meu coração bate forte no peito.
Antes daquela noite em que ele me empurrou, eu nunca
teria conseguido imaginar Seth machucando uma mulher. E,
mesmo depois do empurrão, eu arranjei desculpas, me
culpei. Mas não tem como esse hematoma de Hannah
passar despercebido. Engulo minhas perguntas até me
sentir engasgada.
— Que tal a gente ir em carros separados pra você não
precisar voltar pra cá depois do filme? — sugere ela.
Concordo, mas será que há outro motivo pra isso? Hoje é a
noite dela com Seth. Ele chegaria tarde depois de sair da
casa de Regina. Talvez ela não queira que ele descubra sua
nova amiga. Uma amiga perguntaria sobre os hematomas,
uma amiga prestaria atenção no marido da outra.
Com os dedos tão apertados no volante que chegam a
ficar brancos, sigo o SUV dela. Passamos pelo centro, pela
praça com os food trucks, pelas lojas e pelas pessoas
reunidas, tudo passa zunindo. Mal presto atenção. Estou
ocupada demais com meus pensamentos.
Assim que estacionamos no restaurante, recebo uma
mensagem de Seth.
Oi. Onde você está?
Respondo.
Legal. Que amiga?
Q
uando volto do banheiro, Hannah não está mais lá.
Olho para a mesa vazia e sinto uma onda de
desespero. Nosso garçom está recolhendo o último
copo quando ergue os olhos e me vê. Ele dá um sorriso
tímido, encolhe os ombros e se afasta.
— Achei que você tivesse ido embora — diz ele. — Ela
saiu correndo.
Quando me aproximo, vejo que ela pagou a conta em
dinheiro e escreveu alguma coisa na parte de trás do
guardanapo, que eu estava usando para apoiar a bebida.
Com as sobrancelhas franzidas, pego o papel. Por que ela
sairia tão de repente? Será que nossa conversa a assustou
tanto assim? Talvez Seth tenha ligado e exigido que ela
estivesse em casa. As palavras foram rabiscadas às pressas,
e a caneta furou o guardanapo em vários lugares. Tive que
ir, fiquei enjoada. A gente remarca o cinema.
É sério? Viro o papel, esperando que haja uma explicação
mais detalhada, mas não há nada além da marca rosa de
batom que deixei quando limpei a boca mais cedo.
— Ela parecia enjoada? — pergunto ao garçom. Ele está
esperando que eu saia para poder pegar seu dinheiro e
arrumar a mesa para os próximos clientes.
— Na verdade, não — responde e dá de ombros.
Pego meu celular e mando uma mensagem:
O que aconteceu? Por que foi embora sem se despedir?
Ela responde:
Passei mal. Precisei ir.
Penso em fazer mais perguntas, mas acho melhor não. Já
a assustei o bastante com meus questionamentos. Talvez
seja melhor deixar tudo isso para lá. Pode ter sido o bebê,
me lembro. Ela ainda está no primeiro trimestre. Eu ficava
tão enjoada nos primeiros cinco meses que o chão do
banheiro tinha se tornado meu lugar favorito. Essas
lembranças são como uma faca gelada que ameaça cortar
minha fina sanidade, então as enterro no fundo da minha
mente. Pensar demais nisso me deixa…
Considero ir ao cinema sozinha, porém, quanto mais
penso nisso, mais percebo como estou cansada. Por fim, me
dou conta de que tudo o que quero é voltar para o hotel.
Enquanto espero o manobrista no estacionamento do
hotel, tamborilando os dedos impacientemente no volante,
algo, lá no fundo, começa a despontar de meus
pensamentos. As mensagens que Seth tinha me mandado
mais cedo foram estranhas, havia algo errado em seu tom.
É possível que ele tenha me visto com Hannah? Decido dar
uma passada rápida na casa dela. Só para ver se o carro
dela está lá. Que mal há nisso? Dispenso o manobrista com
um aceno de mão e acelero, ignorando seu olhar de
desaprovação. Vinte minutos. Levaria no máximo vinte
minutos para espionar Hannah e meu marido. Sinto uma
onda de entusiasmo enquanto passo direto por um sinal
amarelo, ansiosa por chegar à casa charmosa deles.
Percebo que ela não está em casa antes mesmo de me
aproximar. As janelas estão escuras e sem vida, e o carro
não está estacionado no meio-fio, como de praxe. Também
não vejo o carro de Seth em lugar nenhum. Considero ir até
a entrada de fininho e espiar o lado de dentro, mas ainda
está cedo e algum vizinho pode me ver.
Merda. Merda.
Será que ela saiu do restaurante e foi direto para o
hospital? Não vou descobrir nada hoje à noite. Volto para o
hotel, me sentindo derrotada. Tem alguma coisa
acontecendo, e sinto que sou a única pessoa nesse
casamento que não sabe o que é.
E
le avança em minha direção. Tudo acontece em câmera
lenta enquanto meu cérebro tenta, desesperado,
acompanhar a realidade. Meu. Marido. Está. Me.
Atacando. Não estou preparada e, quando suas mãos se
fecham em meu braço, dou um grito. Um som curto e frágil
— e patético, sendo bem sincera.
Meu berro cessa quando Seth começa a me chacoalhar e
cravar os dedos em mim com agressividade. Minha cabeça
balança para a frente e para trás, para a frente e para trás,
até que ele para a centímetros do meu rosto. Sinto sua
respiração pesada em minha pele. Em seu hálito, dá para
sentir o cheiro de álcool e do enxaguante bucal que ele
usou para tentar disfarçar. Tento me soltar, mas estou presa
entre ele e o tampo de mármore da bancada. Seus dedos
apertam a pele dos meus braços a ponto de me machucar,
e solto um grunhido. Ele nunca agiu assim, é como se eu
estivesse olhando para um estranho.
— Sua puta — diz Seth em um suspiro. — Nunca está
satisfeita com nada. Eu arrisquei tudo…
Uma gota de saliva atinge meu lábio. Tento puxar meus
ombros para me soltar e empurro seu peito com os
antebraços, mas, em vez de me soltar, ele agarra meus
pulsos. Sou uma prisioneira. Não acredito no que ele está
dizendo. Fui eu que arrisquei tudo. Eu que me sacrifiquei.
Sem ousar me mover, ofego no rosto dele. Agora não dá
mais para negar nada, os hematomas dela e o empurrão
que ele me deu. Acordei pra vida, penso. Não tem mais
como voltar atrás. A sensação é de que ele vai quebrar
meus pulsos; meus ossos são pequenos, e as mãos dele,
fortes. Sempre gostei do fato de Seth ser tão maior que eu,
mas agora estou me encolhendo diante de seu tamanho e
me xingo por isso. Estou em choque, tremendo como um
animal encurralado.
Ele fala de novo e agora pronuncia as palavras mais alto
e com mais cuidado, como se eu fosse burra demais para
tê-las entendido na primeira vez.
— Com. Quem. Você. Estava?
— Hannah — digo calmamente. — Eu estava com
Hannah.
Nossos olhos fazem um movimento coreografado até sua
mão enfaixada.
Por um segundo, seu aperto em mim vacila e seus dedos
se afrouxam. Acho que ele está considerando a
possibilidade de ter me entendido errado. Percebo que
confirmei seu medo e preciso me afastar dele.
Com um puxão, consigo libertar um dos braços e empurro
o peito de Seth para que ele se afaste. Se eu conseguisse
pegar meu celular, poderia ligar para alguém vir me ajudar.
Mas quem? Quem acreditaria em mim? O que eu diria à
polícia? Meu marido está gritando comigo porque acha que
eu o traí? Seth mal se mexeu, e agora seus olhos estão
semicerrados, perfurando-me com intensidade. Nunca o vi
com esse olhar. É como se eu estivesse vendo um homem
diferente.
— Por quê? — Seus olhos vão para lá e para cá. — Como?
A gente tinha um acordo. Por que você faria uma coisa
dessas?
— A gente tinha um acordo, é? — Estou borbulhando de
ódio. — Ou você tinha um acordo? Cansei. Eu queria ver
quem ela era. Como era a cara dela. Você tem tudo o que
quer, três esposas, e a gente fica aqui, correndo atrás de
você.
— A gente tinha um acordo — diz ele. — Você aceitou
isso.
— Eu aceitei porque era o único jeito de te ter. Você está
batendo nela. Eu vi os hematomas.
Ele balança a cabeça.
— Você está louca. — Ele parece horrorizado por eu tê-lo
acusado de algo tão terrível.
Seth me solta, e toda a pressão que me mantinha
encurralada há um segundo se foi. Desabo em cima da
bancada e massageio os pulsos enquanto Seth anda pela
cozinha pequena.
Seu rosto está pálido, o que faz as olheiras se destacarem
ainda mais. Ele parece doente. Mas acho que é normal
alguém ficar com cara de doente depois de bater na esposa
grávida, beber a noite inteira e ainda ser confrontado pela
esposa estéril. Sinto minha raiva ficar mais intensa
enquanto o observo, o homem que sempre considerei tão
lindo, um deus esculpido. Ele parece meio derretido e,
sendo bem sincera, me lembra uma estátua descartada e
sem brilho. Quero olhar meu celular, ver se Hannah ligou. E
se ele a machucou feio? Eu me movo ligeiramente em
direção à porta; se eu der uma corrida, consigo pegar minha
bolsa no hall de entrada. Meu telefone está em um dos
compartimentos, com um pacote de balas pela metade e
meu porta-comprimidos.
— Escuta aqui. Você está doente. Está acontecendo de
novo…
Olho para ele, chocada.
— Doente…? Você é que está doente — disparo. — Como
você tem coragem de me dizer uma coisa dessas depois de
pedir que eu vivesse assim? Você pode ter quantas
mulheres quiser, e nós ficamos aqui, suas prisioneiras
emocionais. — No momento em que as palavras saem da
minha boca, percebo o quanto são verdadeiras. Nunca me
permiti pensar essas coisas. Fui soterrada pelo amor, que foi
esmagando, esmagando e esmagando meus sentimentos
para acomodar Seth. Não é isso o que fazemos como
mulheres?
— Você está tomando seus remédios?
— Meus remédios? — repito. — E pra que eu precisaria de
remédios? — Eu me lembro do porta-comprimidos, que
comprei em uma loja de lembrancinhas no Pike, aquele com
uma flor cor-de-rosa na tampa. O que tem lá dentro?
Aspirina… uns comprimidos velhos de Xanax de Anna. O
ping, ping, ping da torneira começa a me irritar. Não tenho
nenhum remédio para tomar. Isso ficou para trás já faz
bastante tempo.
Seth abre a boca enquanto pisca rapidamente. Cada
piscada é como um tiro. Ele olha em volta, como se
procurasse ajuda na cozinha, todos os itens brancos e
prateados que escolhemos cuidadosamente são ofuscantes
agora. Quero fechar os olhos e estar em um lugar mais
aconchegante. Quase sugiro levarmos essa festinha de
acusações para a sala, quando ele me fuzila com o olhar.
— Fui à sua casa — digo, cheia de coragem. — Por que
você não me contou que comprou uma casa e a reformou
para ela? Achou que eu sentiria ciúme e não saberia lidar
com isso, é?
— Você está me zoando, né?
Com os olhos arregalados, ele levanta as mãos com as
palmas viradas para mim. Eu me encolho mesmo que Seth
claramente não esteja me ameaçando. Seu peito se mexe
com movimentos bruscos, o que me leva a olhar para o
meu. Devo estar prendendo a respiração, porque meu peito
não se mexe nada.
— Pra mim, deu — diz ele, de olhos fechados. — Achei
que você fosse dar conta. A gente tinha um acordo… Não
acredito nisso. — Ele diz essa última parte para si mesmo.
Há raiva e dor em meu peito. Um soluço escapa da minha
boca. Estou muito confusa. Ergo as mãos e toco meu rosto,
sinto meus traços; não é um sonho, é real.
O rosto de Seth se suaviza.
— Olha só. Eu tentei de verdade. O que a gente tinha era
real, mas as coisas mudam. Depois que perdeu o bebê, você
mudou.
— Não! — grito. — Vou contar pra todo mundo quem você
é e o que você fez. Chega de manter essa sua vidinha em
segredo. Até Regina está te traindo.
Um silêncio cortante segue minhas palavras. Ele arregala
os olhos, e consigo ver as veias vermelhas no branco de seu
olho quando ele diz:
— Para.
Jogo a cabeça para trás e deixo minha garganta libertar
uma risada rouca.
— Você está de sacanagem, né? — Meu medo se
transformou em raiva. Decido que é melhor sentir raiva do
que medo. — Vou te expor e mostrar quem você é de
verdade.
— Vou ligar para o seu médico — diz. Ele saca o celular
do bolso detrás, sem tirar os olhos de mim enquanto
pressiona o dedão na tela para desbloquear o aparelho.
Uma linha profunda aparece entre as sobrancelhas dele
enquanto seus dedos se mexem rapidamente pela tela.
— Achei o recibo do médico no seu bolso. O médico de
Hannah. Fui vê-la — digo tudo isso com muita calma
enquanto estudo seu rosto em busca de algum
reconhecimento. Ele está fingindo que é tudo coisa da
minha cabeça. Por quê?
— Que recibo? — Ele balança a cabeça, então eu vejo.
Uma fagulha de reconhecimento. Ele põe o telefone na
bancada ao lado da cafeteira, esquecido. — Pelo amor de
Deus — diz ele. — Pelo amor de Deus. — Ele balança a
cabeça. — Quando fui ao médico, uma mulher pagou antes
de mim. Ela se distraiu com o celular e saiu do consultório
sem o recibo. Eu corri atrás dela, mas não a achei. Ela deve
ter ido embora de carro. Enfiei o papel no bolso. Eu devia ter
devolvido para a recepcionista, mas nem pensei na hora. Foi
isso que você encontrou.
Não acredito nele nem por um segundo. Isso é loucura.
Ele está mentindo.
— Você precisa de ajuda. Está delirando de novo.
De novo? Estou com tanta raiva que dessa vez sou eu
quem avança em direção a ele, com as mãos estendidas,
como se eu pudesse arrancar seus olhos com minhas unhas
roídas.
— Mentiroso — grito.
Eu me choco contra o peito dele, o que foi um erro. Assim
que estou ao alcance, ele usa sua força contra mim e me
segura com os braços esticados. Não consigo alcançá-lo,
mas meus braços se debatem mesmo assim enquanto tento
atingir alguma coisa. Sua garrafa de água aberta cai da
bancada e faz um barulho seco no chão de madeira. A água
forma uma poça sob nossos pés, e, ao tentar me soltar,
sinto que estou escorregando. Seth tenta me segurar, mas,
quando meus pés perdem a tração e deslizam, os dele
deslizam também. Caímos num emaranhado. Atinjo o chão.
Com o peso de Seth em cima de mim, bato os ombros com
toda a força, então não vejo mais nada além da escuridão.
DEZOITO
C
om calma, Seth entra como se estivesse saindo para
tomar um brunch no domingo, e não indo visitar sua
esposa na ala psiquiátrica. Ele está usando uma camisa
social, um cardigã e uma calça jeans cinza rasgada. Não
reconheço as roupas; deve ser algo que ele mantém na
casa de alguma delas.
Percebo que ele cortou o cabelo há pouco tempo e me
esforço para lembrar se ele já estava assim naquele dia,
quando me surpreendeu em nosso apartamento. Não seria
incrível? A esposa na ala psiquiátrica, e ele indo cortar o
cabelo? Quem estou querendo enganar? Ele tem outras
duas esposas — a vida não pode parar quando uma delas
tem uma recaída.
Com uma aparência serena e de quem dormiu bem, ele
dá um sorriso e vem até mim para beijar minha testa.
Quase viro o rosto, mas acho melhor não. Se quero sair
daqui, vou ter de bancar a boazinha. Seth é minha chance
de liberdade.
O lugar onde ele me beijou arde. É culpa dele eu estar
aqui, é culpa dele ninguém acreditar em mim. Não era para
ele ficar do meu lado e tentar me manter longe de lugares
assim? É então que me lembro da mentira que ele contou,
da forma como negou enquanto eu o encarava na cozinha.
Ele havia tentado me fazer acreditar que eu tinha inventado
Hannah. Alarmada, olho para seu rosto, pensando se devo
esperar para confrontá-
-lo quando estivermos sozinhos ou se devo falar agora. Olho
para o dr. Steinbridge, que nos observa. Todo mundo
observa o tempo todo neste lugar, com olhos de águia, só
esperando algum deslize que entregue seu estado mental.
— Talvez você possa esclarecer uma coisa pra gente —
sugere o médico, olhando para Seth. Isso!, penso, me
acomodando na cama. Finalmente. Direcione a atenção a
ele e faça-o responder. Meu marido assente, com o cenho
franzido, como se estivesse desesperado para ajudar.
— Quinta mencionou que você tem… — Parecendo estar
envergonhado com a situação, o dr. Steinbridge olha para
mim. — Outras esposas… — Ele para a frase no meio, e
Sarah congela enquanto escreve alguma coisa na lousa
branca. Por cima do ombro, ela olha para mim e depois,
constrangida por ser pega no flagra, volta ao trabalho.
— Receio que isso não seja verdade — diz Seth.
— Não? — O dr. Steinbridge olha para mim. Seu tom de
voz é suave. É como se eles estivessem conversando sobre
o tempo.
— Me divorciei da minha primeira esposa há três anos —
continua Seth, parecendo envergonhado.
— Mas eles ainda estão juntos — digo.
— Nós nos divorciamos — diz Seth, com firmeza. O
médico assente. — Eu a deixei para ficar com Quinta…
Desacreditada, balanço a cabeça. Não é possível.
— Que mentira deslavada, Seth! Você não pode inventar
o que bem entende. Conte a verdade. Você é poligâmico!
— Sou casado com uma mulher apenas, Quinta — diz
Seth. Seu rosto expressa sinceridade, é bem convincente.
Hesito, porque a performance dele é tão boa que fico
temporariamente sem palavras.
— Tá bem, então — digo. — Mas com quantas mulheres
você mantém relações sexuais?
— Quinta afirma que você tem outras duas esposas a
quem você se refere como Segunda e Terça — diz o médico.
Ele fica vermelho com o olhar do doutor. Assisto à cena
com avidez. Ele não vai conseguir sair dessa de jeito
nenhum.
— É uma brincadeira nossa.
— Uma brincadeira? — repete o dr. Steinbridge. Fico
boquiaberta. Estou tremendo.
— É. — Ele olha para mim, à procura de apoio, mas viro o
rosto. Não sei por que ele está mentindo. Ele não é
legalmente casado com as outras, então nem seria preso
por bigamia. Tudo entre nós foi consensual. Fazer parecer
que eu inventei tudo, isso é a garantia de que não vão me
deixar sair deste lugar; pelo menos não sem muita terapia e
medicação. — É uma coisa que Quinta e eu fazemos para
tentar amenizar todo o tempo que eu passo longe de casa.
Eu sempre vinha pra casa às quintas-feiras, então comecei
a chamá-la de Quinta, e a gente diz que tem a Segunda e a
Terça também. — Ele olha para mim, nervoso. — Eu não
sabia que ela tinha ido tão longe com essa história, mas
levando em conta que…
— O quê? Levando em conta o quê? — pergunto, irritada.
Sou tomada pela raiva. Não acredito que ele vai trazer isso
à tona. De repente, estou fervendo de calor, mesmo
sabendo que esses quartos estão sempre gelados. Sinto a
necessidade de jogar os lençóis para longe e me recostar na
janela para que o ar gelado possa me atingir.
— Quinta, você tem um histórico de delírios — interrompe
o médico. — Às vezes, quando um trauma… — A voz
continua, mas eu bloqueio o som. Não quero ouvir. Sei o que
aconteceu, mas não é o que está rolando dessa vez.
Os olhos de Seth estão suplicando; ele quer que eu
colabore com sua versão, qualquer que ela seja. Minha dor
de cabeça piora do nada, e sinto que preciso ficar sozinha
para pensar em tudo isso.
— Saiam — digo aos dois e, quando percebo que não foi o
suficiente, grito: — Todo mundo pra fora!
Uma nova enfermeira chega pelo corredor e olha para o
dr. Steinbridge, à espera de instruções.
Olho diretamente para ele, ignorando Seth.
— Não preciso ser sedada. Não represento perigo nem
pra mim nem pra ninguém. Preciso ficar sozinha.
O médico pensa por um instante, tentando se decidir
sobre minhas capacidades mentais. Depois, assente.
— Está bem. Volto mais tarde para ver como você está e
depois conversamos mais. — Ele olha para Seth, que parece
prestes a desmaiar. — À tarde também tem horário de
visita, você pode voltar e ver se ela quer conversar —
sugere ele. — Quero falar com você na minha sala.
Percebo a tensão se acumulando nos ombros dele; Seth
perdeu o controle da situação, e ele não gosta de perder o
controle; não está acostumado com ninguém fazendo o que
quer. Como
não percebi isso antes? Por que só estou enxergando isso
agora?
Seth olha para mim antes de assentir.
— Certo. Volto mais tarde. — Ele anuncia para o quarto,
não para mim. E não olha para mim de novo antes de sair,
bravo, pela porta.
Quando todos saem, respiro fundo, solto um suspiro
trêmulo e me deito de lado olhando para fora através das
pequenas janelas. O céu está cinza-escuro, uma chuva fina
cai como se fossem lágrimas. Daqui de onde estou, dá para
ver só a copa de algumas árvores. Penso na janela do nosso
— do meu — apartamento, a que tem vista para o parque, e
me lembro de quanto briguei por aquela unidade, já que
Seth queria a outra, que tinha vista para o Sound. Eu
precisava daquela visão da vida de estranhos, era um
escape da minha vida.
Caio no sono e acordo com Sarah trazendo meu almoço
— ou será que é o jantar? Nem sei que horas são. Assim que
sinto o cheiro da comida, meu corpo se lembra de que está
com fome. Nem ligo que o bolo de carne esteja com uma
cor estranha nem que o purê de batata seja industrializado.
Enfio tudo na boca em uma velocidade alarmante. Quando
termino, me recosto nos travesseiros com dor de estômago.
Estou de olhos fechados e quase dormindo de novo quando
ouço a voz de Seth. Penso em não abrir os olhos, fingir que
adormeci, na esperança de que ele vá embora.
— Sei que você está acordada, Quinta — diz ele. —
Preciso falar com você.
— Fala, então — digo, sem abrir os olhos. Ouço o farfalhar
de um saco de papel e o cheiro de comida chega ao meu
nariz. Quando abro os olhos, Seth dispôs cinco embalagens
entre nós. Apesar de a refeição do hospital pesar no meu
estômago, fico com água na boca.
— Sua comida favorita — diz, com um sorrisinho de canto
de boca. É seu sorriso mais charmoso, o que ele usou
comigo na cafeteria aquele dia. Ele olha para mim, com a
cabeça ainda abaixada, e, por um instante, parece um
garotinho; vulnerável e fazendo de tudo para agradar.
— Já comi o bolo de carne delicioso do hospital — digo,
olhando para o risoto de cogumelo.
Seth dá de ombros, e seu sorriso fica meio envergonhado.
Quase sinto pena, mas então me lembro de onde estou e
por que vim parar aqui.
— Seth… — Olho para ele, e ele sustenta meu olhar.
Nenhum de nós dois sabe bem o que fazer um com o outro,
mas estamos preparados para o desgaste emocional. Dá
para ver nos olhos dele. — Por que você não fala a verdade?
— pergunto, por fim. Este é o ponto, não é? Se ele contasse
a verdade, eu poderia sair daqui.
Só que, se ele falar a verdade, as coisas talvez… nunca
voltem ao normal. É então que entendo o olhar frio em seus
olhos. Tudo faz sentido. Eu não sei apenas quem Hannah é,
eu sei que ele partiu para a agressão física com ela — bateu
nela —, e nada entre nós vai continuar do mesmo jeito. Em
um primeiro momento, minha esperança era de que ele
quisesse ficar comigo, só comigo. Mas isso nunca vai
acontecer, e, a essa altura, já nem quero mais que
aconteça. Eu não sei quem meu marido é de verdade. Não
sei de nada. E o que ele diz em seguida não é o que eu
esperava.
— A verdade é que você está muito doente, Quinta. Você
precisa de ajuda. Tentei fingir que não estava acontecendo
nada, entrei na brincadeira… — Ele se levanta, e as
embalagens balançam na cama.
Estou com tanta raiva que a vontade é de jogá-las nele.
Seth vai até a janela, olha a vista e depois se vira para mim.
Sua expressão mudou de um instante para outro; há uma
determinação implacável em seu rosto, como se ele tivesse
algo terrível para me contar.
— Você mudou — diz ele devagar, com cuidado. — Depois
do bebê…
— Não — digo, rápido. — Não venha meter o bebê nessa
história.
— Você não quer falar sobre isso, e precisamos conversar.
Não dá pra simplesmente ignorar algo assim — diz ele.
Nunca vi Seth tão determinado. As mãos dele estão
fechadas em punhos ao lado do corpo, e minha mente me
transporta para a noite de ontem, na cozinha. Ele parece
tão bravo quanto naquele dia, mas triste também.
Ele está certo. Sempre me recusei a falar sobre o que
aconteceu. Era doloroso demais. Eu não queria reviver
aqueles sentimentos, falar sobre tudo de novo e de novo no
consultório de algum psiquiatra. Minha dor ainda vive, uma
doença que ainda cresce e inflama sob a superfície da
minha calma. É pessoal. Não quero mostrá-la para mais
ninguém. Eu a alimento sozinha, mantenho-a viva. Porque,
enquanto a dor ainda existir, a memória do meu filho
também existe. Elas precisam coexistir.
— Quinta! — diz ele. — Quinta, está me ouvindo?
O cheiro — e até mesmo a visão — da comida me deixa
enjoada. Começo a empurrar as embalagens de cima da
cama, uma por uma.
As pancadas molhadas dos potes caindo no chão desviam
a atenção de Seth. Ele vem correndo até a cama, que está a
apenas cinco passos de distância dele, e agarra meus
pulsos antes que eu chegue à sopa de ervilha. Ergo o joelho
sob o lençol e tento empurrá-la. Essa é a que eu mais queria
derrubar, queria ver seu conteúdo se esparramar como
lama no piso de ladrilho do hospital.
— Nosso bebê morreu, Quinta. Não foi culpa sua. Não foi
culpa de ninguém!
Eu me contorço, me jogo de costas nos travesseiros e
depois me ergo novamente. Meus pulsos doem no lugar
onde Seth os segura, e mostro os dentes para ele. O que
Seth disse não é verdade, e nós dois sabemos disso. Não é
verdade.
— Você precisa parar com isso — implora ele. — Parar
com essas mentiras que você conta para si mesma. Não vão
te deixar sair daqui até você contar a verdade…
Um alarme soa, tão alto que chega a doer os ouvidos.
Será que foi por causa do que fiz? Com sua trança voando
comicamente atrás do corpo, Sarah entra às pressas no
quarto. Há um homem e uma mulher com ela. A visão é um
flash de uniformes azuis e rostos determinados.
Percebo que o alarme está vindo daqui, neste quarto.
Seth deve tê-lo acionado. Mas não… Não é um alarme… Sou
eu. Estou berrando. Sinto minha garganta queimar
conforme o grito ecoa e sai pela minha boca.
Uma das enfermeiras escorrega e cai com tudo na
bagunça de comida derramada no chão. O enfermeiro a
ajuda a se levantar, e, em seguida, já estão em cima de
mim, tirando Seth do caminho para que consigam me
imobilizar. Ele se afasta, vai até uma das paredes e observa.
Espero ver seus olhos arregalados de medo ou seu rosto
contorcido de preocupação, mas ele parece em paz. Sinto
algo gelado percorrer minhas veias, e meus olhos se
reviram. Eu os forço a permanecer abertos, quero ver Seth.
Ele fica meio embaçado por um instante, mas ainda está lá,
observando. A medicação fecha minhas pálpebras e me
deixa fraca. Que cara foi aquela que ele fez? O que
significou aquela expressão?
VINTE
Q
uando recobro a consciência, sinto frio. Não me lembro
de onde estou, e leva alguns minutos até que os
acontecimentos dos últimos dias se rearranjem em
minha mente. São memórias amargas e desconfortáveis. O
cheiro de antisséptico preenche minhas narinas, e tenho de
me esforçar para afastar os lençóis e me sentar na cama.
Um hospital… Seth… Comida no chão.
Passo a mão na testa, que lateja de um jeito dolorido, e
dou uma olhada ao lado da cama; não há nenhum sinal da
colagem colorida que deixei para trás antes de me
doparem. Por que fiz aquilo? É burrice me perguntar isso
porque sei a resposta. Porque Seth acha que guerras de
comida são idiotas e um desperdício. Não joguei nada nele,
mas tacar tudo no chão parecera dizer muito, uma
demonstração infantil da minha raiva.
Seth seco, um tanto severo e agindo com praticidade —
não era assim que eu o descreveria há algumas semanas. O
que mudou?
Hannah! Esse nome me atinge com mais força do que as
outras lembranças. Afinal, faz quantos dias que não ouço
falar dela? Três… quatro? Eu me lembro do rosto de Seth
antes de os remédios me apagarem… Não deu para
entender aquela expressão, era uma mistura de coisas que
eu nunca tinha visto nele. Que legal, não é mesmo? Estar
casada com um homem há anos e vê-lo se expressar de um
jeito que você nunca viu antes.
Preciso entrar em contato com Hannah, me certificar de
que ela está bem. Só que, sem meu celular, não tenho
acesso ao número. E se Seth já mexeu no meu celular e
apagou todas as mensagens que trocamos? Será que ele
sabe minha senha? Não é tão difícil assim de adivinhar… a
data do parto do nosso bebê morto.
Outro enfermeiro chega, dessa vez um homem mais
velho de cabeça rapada, com sobrancelhas brancas e o
rosto parecido com o de um buldogue. Eu me encolho na
cama. Ele tem os ombros largos demais, e sei bem que não
vai engolir meu papinho. Eu estava esperando alguém mais
novo e inexperiente, como Sarah, alguém que eu pudesse
convencer a me ajudar.
— Olá — diz ele. — Meu nome é Phil.
Quando o turno dele começou? Quando vai terminar?
— Falei com o seu médico. Pelo visto, está tudo bem com
a sua cabeça… — Ele bate na própria cabeça com os nós
dos dedos enquanto folheia meu prontuário, e acho graça
do gesto. Ele é um homem das cavernas em um uniforme
de enfermeiro. — Vão transferir você para a ala psiquiátrica.
— Por quê? Se eu estou bem, por que não me dão alta?
— O médico não falou com você sobre isso? — Phil coça o
mamilo esquerdo e vira outra página.
Balanço a cabeça.
— Ele vai chegar daqui a pouco, e aí conversa direitinho
com você.
— Ótimo — digo, curta e grossa. Estou emburrada. Não
gosto de Phil. Está na cara que é um ex-militar e acha que
tudo deve ser feito de um jeito específico: com disciplina e
ordem. Quero enfermeiros jovens e fáceis de manipular,
como Sarah, que sentiriam pena de mim.
Antes que Phil saia, pergunto se posso fazer uma ligação.
— Para quem?
— Meu marido — digo, com doçura. — Ele está
trabalhando em Portland, e quero saber como ele está.
— Não tem nenhum marido aqui na sua ficha — diz Phil.
— Está me chamando de mentirosa?
Phil me ignora.
— Por que não deixamos que ele venha ver como você
está? Afinal de contas, é você que está no hospital.
Eu o encaro enquanto ele sai do quarto. Eu gostava de
caras como Phil — sempre seguravam a barra quando
pacientes insuportáveis resolviam bancar o policial ruim,
poupando as enfermeiras —, mas é horrível ter um Phil na
sua cola. Vou esperar pela próxima pessoa da enfermagem
e ver se ela me agrada mais.
E
stou sozinha. Percebo que sempre foi assim, minha vida
inteira, e qualquer coisa que minha mente tenha
inventado para me convencer do contrário é mentira.
Uma mentira cômoda da qual eu precisava. Meus pais
estavam ocupados com minha irmã, Torrence, que estava
sempre se metendo em confusão na escola ou com os
amigos. Fui a filha boazinha; sempre me virei sozinha
porque eles não tinham tempo. Eu sabia as regras, os
limites morais que eles tinham construído ao meu redor:
nada de beber, nada de transar antes do casamento, nada
de drogas, nada de sair escondido e só notas altas. Era fácil
seguir o que esperavam; eu não era a rebelde da família.
Minha irmã, por sua vez, fazia tudo isso. Meu pai ficou
grisalho nas têmporas, minha mãe começou a colocar Botox
e eu tentava ao máximo ser perfeita para que os dois
tivessem uma filha a menos com quem se preocupar. Então,
quando Torrence sossegou e se casou com o homem
perfeito, eles ficaram tão aliviados que haviam lhe dado
uma atenção diferenciada. Ela andou três anos na linha, e
eles se esqueceram da década que minha irmã roubava o
dinheiro deles para encher o nariz de cocaína e dava para
todos os traficantes da cidade. Talvez passar por isso tenha
me enlouquecido. Talvez a falta de atenção por parte dos
meus pais tenha me levado a Seth, meu desespero por ser
aceita pode ter me prendido em um relacionamento que
qualquer pessoa normal acharia bizarro.
Cutuco minha gelatina. O pessoal daqui ama servir
gelatina; afinal, é uma sobremesa colorida e instável como
nossa mente. A de hoje é alaranjada, e a de ontem foi
verde. É como se estivessem tentando fazer os pacientes se
lembrar de que sãos fracos e instáveis. Eu como a gelatina.
Tenho de sair desta porra de lugar. Tenho de encontrar
Hannah, preciso ter certeza de que ela está bem. Nos
momentos em que antes eu dormia, agora permaneço
acordada. Vi o dr. Steinbridge hoje. Percebi que é ele quem
me mantém aqui — não as portas elétricas com acesso via
cartão nem as enfermeiras corpulentas que brigam conosco
como se fôssemos criancinhas malcriadas. Se acalme,
querida, senão vamos trancar você na solitária.
É o dr. Steinbridge que tem o poder de dizer que estou
bem; ele é Deus nesta terra de ladrilhos estéreis e luzes
brancas. Uma canetada sua (uma Bic), e fico livre como um
passarinho.
Hannah… Hannah. Ela é tudo em que penso. Na minha
cabeça, virei sua salvadora. Se algo lhe aconteceu, a culpa
terá sido minha. Se ela precisa ser salva, tenho de sair
daqui. Eu me casei com esse homem, dei minha bênção a
uma terceira esposa. Eu devia ter falado alguma coisa
quando vi aquele hematoma pela primeira vez, devia tê-la
forçado a me contar o que ele fez. Por um instante, chego a
duvidar que ela seja real. Eles são bons nesse nível —
conseguem fazer com que a gente duvide da nossa
sanidade aqui.
Coma a gelatina!
Percebo que é meu dever convencer o bom doutor de que
estou sã de novo, de que minha mente se livrou da névoa
delirante. De que estou saudável e que meu marido é um
homem de uma mulher só! De que Hannah e Regina não
são reais, e sim um joguinho sexual que eu e meu marido
jogávamos. É isso o que eles querem ouvir, não é? Tudo o
que preciso fazer é dizer que estou mentindo sobre Seth ter
um fraco por múltiplas bocetas, e pronto! Sou uma mulher
curada!
Essa minha mudança não pode acontecer de forma muito
brusca, senão o dr. Steinbridge vai desconfiar de que estou
mentindo. Durante nossas sessões de terapia diárias, finjo
estar confusa. Seth tem só uma esposa? Essa esposa sou
eu? Aos poucos, começo a me comportar mais como eu
mesma, e a cada sessão fico menos confusa e menos
insistente.
— O que há de errado comigo? — pergunto ao médico. —
Por que não consigo distinguir o que é real do que não é?
Sou diagnosticada! O trauma de perder um filho e de
nunca ter lidado com essa perda de um jeito saudável
acabou trazendo estresse para minha relação com Seth.
Joguei a culpa em outras mulheres em vez de focar em meu
processo de cura. Quando o bom doutor perguntou qual eu
achava que havia sido o gatilho para o surto que levou ao
meu colapso mental, pensei em Debbie: a Debbie
fofoqueira, a Debbie metida, a Debbie com o cabelo
comprido que sugeriu que eu xeretasse a vida das mulheres
que me deixavam insegura. Não culpo Debbie por nenhuma
das minhas atitudes; se ela tem culpa de algo, é de ter me
feito acordar para a vida. Eu não era a única que sofria com
essa insegurança paralisante, qualquer mulher em qualquer
idade pode passar por isso. Lauren parecia ter uma vida
perfeita. Sempre achei que ela colava aqueles cartões de
aniversário no armário para aparecer, para esfregar na
nossa cara o fato de que era melhor que a gente. Mas agora
enxergo a verdade: as mulheres ficam presas num ciclo de
insegurança perpetuado pela forma como os homens as
tratam, e estamos a todo tempo lutando para provar a nós
mesmas e aos outros que estamos bem. É claro que, de vez
em quando, mulheres perdem a cabeça por causa de
homens, mas será que isso significa que somos todas
instáveis ou que os homens nos deixaram instáveis por
causa de suas atitudes não premeditadas? Não conto sobre
Debbie nem Lauren ao dr. Steinbridge; ele diria que estou
me desviando da responsabilidade. Mas isso não chega nem
aos pés do que estou fazendo: estou responsabilizando todo
mundo; afinal de contas, é preciso uma galera para mandar
alguém para uma instituição psiquiátrica.
De acordo com o dr. Steinbridge, minha inaptidão para
lidar com problemas faz parte da minha dissociação. Gosto
do jeito que isso soa: minha dissociação.
Só que não estou dissociando como eles acham que
estou; estou me dissociando da minha paixão pelo meu
marido. Interpreto o papel da esposa frágil e dolorosamente
alheia ao mundo à sua volta. Foi o estresse que me
consumiu, não sei como superar as coisas e a falta de
atenção dos meus pais fez com que eu me isolasse em um
casulo mínimo, inocente e apertado.
Embarcamos em uma viagem pelos meus traumas
relacionados aos meus pais. Minha mãe faz de tudo para me
agradar enquanto meu pai não está nem aí. Conforme fui
vendo minha mãe se esforçar mais e mais para conquistar a
atenção do meu pai… Bem, acabei aprendendo a
demonstrar amor da mesma maneira. E, quando me esforço
demais, acabo esmagada pelo peso das expectativas. Meu
útero vazio fez com que eu me sentisse uma falsa mulher,
indigna do amor do meu marido. Eles arrancaram meus
órgãos e isolaram meu sistema reprodutivo: fábrica
fechada. Cenas do aborto que sofri começam a passar em
flashes diante dos meus olhos em uma sequência dolorosa.
Sei que o certo seria aceitar e encará-las, como o médico
falou. Mas são memórias que nunca revivi, nem uma única
vez, desde o ocorrido. É mais fácil superar quando não se
sabe exatamente o que precisa ser superado.
L
auren volta dois dias depois, com cara de cansada e
usando uma jaqueta puffer em um tom de preto que
parecia um saco de lixo por cima do uniforme. Ela evita
olhar para mim enquanto gira o copo do Starbucks nas
mãos. Suas unhas não estão pintadas, e acho que nunca a
vi sem esmalte. Será que é assim que gente rica pede
socorro? Será que Lauren está sofrendo? Estou distraída
demais para perder tempo sendo educada e puxando
conversa fiada.
— Comprei um pra você, mas não me deixaram trazer.
Comprou um o quê? Ah, tá! Um café, ela está falando do
café. Dispenso o café com um aceno.
— A gente não pode tomar cafeína.
Ela assente, estufa as bochechas, arregala os olhos e
respira fundo antes de começar. Eu me preparo.
— Ela não está no Facebook, não tem nada. Procurei em
todas as redes sociais, até no Pinterest e no Shutterfly. Ela
não existe. Meu Deus, tentei até um nome parecido porque
hoje em dia tem gente que fica inventando moda no user,
sabe?
Assinto e me lembro de Regina, de que tive de ser
esperta para encontrá-la.
— Ou ela deletou o perfil ou tem uma conta superprivada
— diz Lauren. Ela mexe no anel de papelão em volta do
copo. — Procurei ela no Google também, e… nada. Tem
certeza de que é o nome dela de verdade?
— Não sei. É o nome que vi no papel que achei no bolso
de Seth. — Abaixo a cabeça, segurando-a com as mãos. — E
a foto de Regina com Hannah? Você achou?
Ela tira um pedaço de papel dobrado de dentro da bolsa.
O rosto de Lauren está pálido. Ela desliza o papel por cima
da mesa, e eu o pego. Minhas mãos tremem enquanto o
desdobro. É uma impressão da foto que eu havia
encontrado de Regina com a mulher que suspeito ser
Hannah. Só que, quando abaixo o olhar para a imagem
granulada, há algo errado. Regina está igual, com o sorriso
largo do qual me lembro bem, mas, no canto, onde outrora
vi Hannah, há uma mulher com cabelo escuro.
— Não — digo. Não, não, não…
— É ela? — pergunta Lauren. Seu dedo toca na foto, bem
onde Hannah deveria estar. — É Hannah…?
Faço que não e empurro o papel para longe. Estou toda
gelada. Devagar, começo a me inclinar para a frente e para
trás enquanto balanço a cabeça. Será que estou louca?
Se acho que estou louca, talvez Lauren também ache.
Ergo o olhar subitamente.
— Você acredita em mim?
— Acredito… — Mas há algo suspeito em sua voz. Seus
olhos vagam pelo ambiente como se ela estivesse
procurando um jeito de fugir da minha pergunta. Sinto meu
coração comprimindo, encolhendo, encolhendo,
encolhendo.
Ficamos ali em silêncio por alguns minutos, olhando pela
janela. Percebo que Lauren está sentada de um jeito
desleixado — outro sinal de que não está tudo bem. Não sei
se é minha situação que a incomoda ou se ela está com
algum problema.
— Tem mais uma coisa… — Ela guardou essa informação,
deixando-a por último. Por que ela não me olha nos olhos?
Sinto os nós figurativos se formarem em meu estômago,
e um dos joelhos começa a se agitar embaixo da mesa. Só
quero que ela desembuche de uma vez. Encolhendo,
encolhendo, nós, nós.
— Me fala…
— Não tem um jeito fácil de dizer isso. Fiz umas ligações
e… É que… o endereço que você me deu, da casa… Ai,
querida… A casa está registrada no seu nome.
Ela cobre os olhos com a palma das mãos.
De repente, me dá um branco. Não sei o que dizer.
Encaro Lauren como se não tivesse ouvido direito, até que
ela, por fim, repete.
— O quê?
Ela está me olhando de um jeito diferente. Do jeito que os
médicos e enfermeiros me olham, com uma pena cautelosa
— ai, coitadinha dela, essa coisinha frágil. Eu me levanto e
me obrigo a olhá-la nos olhos.
— Aquela casa não é minha. Não sei o que está
acontecendo, mas não é minha. E não estou nem aí se você
não acredita em mim. Não estou louca.
Ela levanta as duas mãos, como que para me afastar.
— Não falei que você está louca. Só estou te contando o
que descobri.
Passo a língua pelos lábios enquanto me afasto. Não nos
dão protetor labial aqui; tentam cuidar de nossa mente, mas
deixam nosso corpo definhar. Todo mundo aqui ou fica seco
ou oleoso, com cabelos colados à cabeça em tufos
pegajosos que parecem molhados ou enfeitados com
floquinhos de caspa, como se tivessem acabado de pegar
neve.
Estou tentando não fazer nada imprudente, como sair
correndo para meu quarto sem me despedir ou gritar —
gritar seria ruim. Mas tenho de usar todo o meu
autocontrole. A forma como os outros nos veem é o que
mais nos frustra mentalmente. Quando todo mundo se vira
contra nós, começamos a questionar quem somos, como
agora.
— Obrigada por ter vindo — digo, forçando as palavras. —
Obrigada por ter tentado.
Ouço-a chamar meu nome enquanto sigo para longe a
passos rápidos — não saio correndo nem trotando, apenas
em uma velocidade que ela não consiga perceber como
estou me sentindo.
T
enho alta dois dias depois. Eu me despeço de Susan,
que está numa sessão em grupo, deixando meu
sabonete que já está no fim, uma maçã que havia
roubado no café da manhã e os xampus do hospital na
cama dela. Vivíamos reclamando que o xampu não era
suficiente, como se estivéssemos em um hotel, e não em
uma instituição psiquiátrica. Parte dessa reclamação era só
para que a gente se sentisse normal; quem pensa muito em
xampu não tem tempo para pensar em coisas importantes.
Seth está parado na recepção, conversando com uma das
enfermeiras, enquanto o médico me acompanha, levando
toda a minha papelada.
— Ele ligou todos os dias para saber do seu progresso —
diz o dr. Steinbridge com toda a calma. Seu hálito tem
cheiro
de homem velho e bagel de cebola. — Cada um tem seu
jeito de lidar com as coisas, então vê se pega leve com ele.
Assinto enquanto cerro os dentes. Então isso é um clube
do bolinha. O dr. Steinbridge usa uma aliança no dedo
peludo, mas passa a maior parte do tempo aqui. Será que a
sra. Steinbridge fica sentada em casa, à espera do marido,
ou tem uma vida à parte? Será que ela tem alguém que fica
falando em seu ouvido “ele trabalha tanto, vê se pega leve
com ele…”? Esperar e esperar… é o que as mulheres fazem.
Esperamos que o homem volte para casa depois do
trabalho, esperamos que preste atenção em nós, esperamos
ser tratadas de forma justa — que nosso valor seja visto e
reconhecido. A vida é isso para as mulheres, um jogo no
qual elas ficam esperando.
Ainda estou bancando a moça frágil e vou continuar
assim até sair deste lugar, até estar livre. Assumo uma
expressão impassível conforme dou um passo após o outro.
Seth parece um modelo de sucesso e compostura. Ele está
usando as roupas que usa quando está com Regina: calça
cinza-escuro e um suéter verde-floresta por cima de uma
camisa social; seu cabelo está perfeitamente penteado e
cheio de gel, e no rosto não há nenhum sinal de barba. É
um estilo totalmente diferente do que ele tem quando fica
comigo. Estou percebendo que ele é diferente com cada
uma de nós, que adota estilos diferentes para cada esposa.
Para Hannah, são moletons, bonés e camisetas de banda:
roupas jovens para combinar com a esposa jovem. O rosto
liso e as roupas profissionais são para Regina. Dessa forma,
ele pode ser o empresário respeitável para a esposa
advogada. Eu fico com o Seth sexy: a barba rala, os paletós,
as camisetas justinhas e os sapatos caros. Ele é um
camaleão e consegue variar ao brincar de casinha. Quando
estamos a alguns metros de distância, Seth ergue o olhar,
deixando de lado momentaneamente a conversa que está
tendo, e dá um sorriso para mim. Um sorriso! Como se não
houvesse nada de errado e estivesse tudo bem. Largue sua
esposa em um hospital psiquiátrico e desapareça por todo
esse tempo sem dizer nada. Forço minha boca a abrir um
sorriso fraco que nem chega aos meus olhos. A enfermeira à
mesa olha para mim como quem diz: “Noooooossa, que
sortuda! O que um cara desses está fazendo com uma
doida varrida como você?” Quero fazer carinho na cabeça
dela enquanto digo que ele é o verdadeiro doido varrido do
relacionamento, mas a ignoro e presto atenção em Seth,
meu adorável marido. Vou diretamente para seus braços
como se estivesse tudo bem e fico ali enquanto ele me
abraça. Seu perfume é avassalador, forte… diferente do que
usa comigo. Tenho certeza de que estou parecendo uma
esposa assustada e aliviada, mas, aqui, pressionada contra
o peito dele e sentindo o cheiro do perfume que ele usa
para Regina, só consigo sentir raiva.
— Vou deixar vocês à vontade — diz o dr. Steinbridge. —
Não se esqueça de ligar caso tenha alguma dúvida ou
ressalva. Meu número está aí na papelada. — Ele indica um
ponto no papel que segura antes de colocá-lo no balcão em
frente a Seth. Nós dois lhe agradecemos, e nossas vozes se
misturam, como se fôssemos um casal perfeito e conectado.
Tenho certeza de que já fomos assim, principalmente por
minha causa.
Seth trouxe uma muda de roupas para mim: calça de
moletom, uma blusa de manga comprida e meus tênis Nike.
— Sua mãe passou no seu apartamento e pegou umas
coisas — diz ele, me entregando os itens.
Seu apartamento, penso. Por que ele diria seu, e não
nosso? Vou ao banheiro me trocar e percebo que, a não ser
os tênis, tudo fica grande demais. Saio morrendo de
vergonha e puxando a blusa, que parece me engolir.
— Ficou linda — diz Seth ao me ver.
Magra que nem Hannah!, penso. Na saída, Seth pega
minha mão e a aperta, e, por um instante, me perco em
meio à lembrança de como é ser amada por ele. Desperte,
Quinta!
Acordo. Aperto a mão dele em resposta e me permito ser
levada até o carro, mas estou desperta em todos os
sentidos da palavra. O mês que passei trancada em um
lugar encardido como o Queen County já me faz olhar
maravilhada para o estacionamento. Livre! Posso correr em
qualquer direção e estarei livre. Eu me ajeito no banco do
carona e ajusto o ar-
-condicionado, como sempre faço. Seth repara nisso e sorri.
Para ele, tudo voltou ao normal; sou a Quinta previsível.
Estou desperta! Quando ele contorna o carro, sinto a raiva
arder em mim e me dou conta do meu ódio por ele. Esse
carro não é dele. Que carro é este? Está tudo errado: o
cheiro é diferente, os bancos… mas não quero fazer
perguntas. Ele poderia me acusar de estar delirando de
novo. Quando ele entra, dou um sorriso e ponho as mãos
entre as coxas para mantê-las aquecidas. Está chovendo,
respingos suaves no para-brisa, bem diferente da chuva
forte da semana passada. Seth estica o braço e dá tapinhas
no meu joelho. Que gesto mais paternal…
— Olha, Quinta… — começa ele, assim que pegamos a
rodovia. — Desculpa não ter vindo te ver…
É por isso que ele vai pedir desculpa?
— Você também não ligou — destaco.
Seth olha para mim.
— Também não liguei — admite. Casualmente, como se
fosse um marido admitindo que se esqueceu de um
aniversário de casamento, e não como alguém que internou
a esposa. Eu poderia confrontá-lo agora, sobre tudo, mas há
algo suspeito nessa história; é como se o ar entre nós
estivesse diferente, com uma estática tensa. Assim que olho
pela janela, passamos por uma minivan, e uma garotinha
ruiva acena para mim do bebê conforto. Não aceno para ela
e me sinto culpada. Ergo a mão tarde demais e dou um
tchauzinho para a estrada vazia. É a primeira vez que acho
que estou louca. Não me senti louca no Queen County, mas
me sinto louca agora. Que curioso… — Eu fiquei… com raiva
— continua Seth. Ele está escolhendo as palavras com
cuidado. — Fico me culpando pelo que aconteceu com você.
Se eu tivesse feito tudo de outro jeito… agido melhor… Não
sabia o que dizer.
Ficou com raiva? Será que Seth sabe o que é raiva? A
vida dele é exatamente do jeito que ele quer, com três
mulheres para saciá-lo. Quando uma de nós faz algo que o
chateia, ele simplesmente enterra o pau e deposita a
atenção em outra até a raiva passar.
Penso em tudo o que ele poderia ter dito, no que quero
dizer. São tantas coisas… É então que me dou conta de que
ele não disse por que ficou com raiva. Será que foi porque
eu o dedurei na ala psiquiátrica? Porque o acusei de ter
batido na terceira esposa, jovem e grávida? Ficou com raiva
porque saí escondido para me encontrar com ela? Ou será
que a raiva é por causa de tudo isso? Uma palavra
acusatória minha poderia fazê-lo dar a volta com o carro e
me levar de volta ao Queen County, onde o dr. Steinbridge
estaria me esperando com um monte de tratamentos novos
que me deixariam com a boca mole e babando. Preciso
manter o controle, e isso significa fingir que não tenho
controle sobre nada.
Vou fazer o que ele quer — ele parece magoado de
verdade. Meu pobre marido, a vítima.
Sinto meu corpo ficar tenso.
— Você mentiu para os médicos, inventou histórias…
Então até fora do hospital ele insiste nessa teoria de que
estou mentindo. Não dá para acreditar. Sem querer, meus
dedos se curvam dentro dos tênis e olho diretamente para
os carros à frente. Tirando Hannah e Regina, sou a única
que sabe a verdade. Seth garantiu que minha família e
meus amigos me vissem como uma desequilibrada
delirante. Ele poderia me mandar de volta para o Queen
County, e ninguém ficaria do meu lado. Eu me lembro do
olhar no rosto de Lauren na última vez em que ela foi me
ver e mordo a parte de dentro da bochecha. Hannah está
por aí, e sei exatamente onde encontrá-
-la. Tudo o que preciso é conversar com ela. Ela me
procurou naquele dia, deixou uma mensagem pedindo
ajuda. Fique de boca fechada até ter provas, digo a mim
mesma.
— Eu entendo — respondo gentilmente.
Seth parece ficar satisfeito com minha resposta e não
sente necessidade de continuar a conversa. Ele fica
tamborilando no volante com o indicador. Sua linguagem
corporal está diferente; parece que nem o conheço.
— Está com fome? Sua mãe abasteceu a geladeira, mas,
se você quiser, a gente pode comprar alguma coisa
também.
Não estou com fome, mas assinto e forço um sorriso.
— Só quero ir pra casa. Tenho certeza de que vai ter algo
lá.
— Beleza — responde ele. — A gente faz alguma coisa
junto. Faz anos que você promete que vai me dar umas
aulas… — Sua voz está animada demais. Acho que a pior
coisa do mundo é alguém forçando empolgação goela
abaixo quando não sentimos nem um pingo sequer de
felicidade.
Ensinar Seth a cozinhar é uma daquelas coisas sobre as
quais sempre conversamos, mas nunca tivemos a mínima
intenção de transformar em realidade. É igual quando os
casais dizem que vão fazer aula de dança de salão ou pular
de paraquedas juntos. “Imagina!” e “Nossa, como seria
legal!” Seth se interessa tanto por culinária quanto eu me
interesso por construir casas.
— Claro — digo e, para soar mais convincente, mais
maleável, continuo: — Seria legal.
N
ão posso beber, não com a medicação que estou
tomando. E isso faz com que os próximos quatro dias
sejam insuportáveis, enquanto Seth e eu ficamos no
sofá, um de cada lado, assistindo a horas e horas de séries.
A distância entre nós cresce a cada dia. Fantasio o gosto
forte da vodca descendo pela minha garganta, queimando
bem gostoso. A forma como iria primeiro aquecer minha
barriga, depois, lentamente, invadir minhas veias e, por fim,
sossegar em algum lugar na minha cabeça e me deixar leve
e boba. Quando foi que comecei a beber tanto? Quando
Seth e eu nos conhecemos, eu nem chegava perto de
álcool. Talvez ter visto minha irmã bêbada e drogada com
tanta frequência tenha me afastado dessas coisas, mas em
algum momento peguei uma garrafa e nunca mais a soltei.
Seth também não bebe, para me ajudar. Também abriu
mão do álcool quando engravidei. Isso faz com que eu me
pergunte se ele gostava mesmo de beber ou se era algo
que só fazia quando estava comigo. O Seth sexy e perigoso.
Ele interpretava um papel comigo, dava vida a uma
fantasia.
Os frascos alaranjados que ditam minha vida estão bem
ali, ao lado da chaleira elétrica, como uma formação de
sentinelas. Foi Seth quem teve a ideia de deixá-los ali.
— Por que não no banheiro? — reclamei assim que os vi
ali.
— Pra você não esquecer — respondeu ele.
Na verdade, ele os colocou ali para lembrar a mim e a
todo mundo que venha me visitar de que estou doente.
Sempre que entro na cozinha para pegar água ou algo para
comer, eles chamam minha atenção com seus rótulos
brancos gritantes.
Minha mãe passa com sua sopa de legumes. Sopa, como
se eu estivesse gripada. Eu ia até gargalhar, mas só dou um
sorriso e pego minha “sopa de doente”. Quando vê os
frascos, seu rosto fica visivelmente pálido e ela se vira,
fingindo que não viu nada. As pessoas acham tranquilo ficar
doente fisicamente, consideram isso algo normal, digno de
empatia; trazem sopa, remédio e pressionam as costas da
mão na sua testa. Mas é diferente se acham que você está
doente da cabeça. É quase sempre culpa sua — digo
“quase” porque todo mundo já ouviu diversas vezes que
doenças mentais não são uma escolha, são um desequilíbrio
químico.
— Desculpa não estar aqui quando você saiu do hospital
— diz ela. — Seu pai contou que eu estava visitando a tia
Kel na Flórida?
— Meu pai? Ele não fala comigo. Tem vergonha.
Ela me olha de um jeito estranho.
— Ele está tentando. Sério, filha, às vezes você é tão
egoísta… — Eu sou a egoísta? Cadê meu pai? Se ele se
importa, onde ele está?
Os remédios me deixam inchada e relapsa. Seth some
por alguns dias, provavelmente para ver as outras em
Portland. Minha mãe fica comigo e me dá comprimidos de
manhã e de noite. Tomo algo para dormir à noite — é o
único medicamento pelo qual me sinto grata. É só durante o
sono que descanso do carretel de pensamentos
preocupantes que se desenrolam em um fluxo contínuo em
minha mente. Planejando, planejando, planejando…
Na próxima vez em que minha mãe vem, meu pai vem
com ela. É uma surpresa vê-lo. Dá para contar nos dedos
quantas vezes ele veio me visitar em todos esses anos que
morei neste apartamento. Ele não é muito de fazer visitas,
disse minha mãe certa vez. Ele é mais do tipo que recebe
visitas. Atribuí isso ao ego inflado do meu pai, que se
considera um rei, então seus súditos que fossem até ele.
Abro caminho enquanto os dois entram, pensando se foi
Seth quem organizou essa visita. Não faz nem dez minutos
que ele saiu, dizendo que precisava dar um pulo até o
escritório de Seattle. Eu mal tinha me vestido quando a
campainha tocou.
— O que vocês vieram fazer aqui? — As palavras saem
antes que eu consiga rearranjá-las para parecerem mais
simpáticas. Meu pai franze o rosto como se ele mesmo não
tivesse certeza da resposta.
— Nossa. Que mal-agradecida… — diz minha mãe. Com a
bolsa balançando como um macaquinho de grife
empoleirado em seu braço, ela marcha até a sala. Meu pai e
eu trocamos um sorriso esquisito antes de segui-la. Estou
perfeitamente consciente da presença dele enquanto nos
movemos pelo corredor e fico desconfortável com isso. Ele
não deveria ter vindo, e eu não deveria ter ficado no
hospício, ambos sabem disso. Sinto um gosto amargo na
boca quando me sento em frente a eles. Pais são guardas
emocionais, sempre a postos com olhares severos e armas
de choque.
— Seu pai está morrendo de preocupação.
Ela mexe na bolsa e puxa um lenço que, com delicadeza,
pressiona no nariz enquanto olho para meu pai, que me
encara, desconfortável.
— Dá pra ver — digo.
Mal vejo a hora de me livrar deles. Tenho coisas a fazer.
Decido ir direto ao ponto.
— Foi Seth quem mandou vocês virem?
Minha mãe parece ofendida.
— Claro que não — responde ela. — Por que acha isso?
Abro e fecho a boca. Não posso exatamente acusá-lo de
me manter como prisioneira, isso faria com que eu soasse
louca. Pensar em alguma besteira relacionada a ele estar
preocupado comigo, mas, quando estou com as palavras na
ponta da língua, meu pai fala primeiro.
— Filha… — A expressão em seu rosto é a mesma que
usava comigo e com minha irmã quando éramos crianças.
Não sei se devo me preparar para a lição de moral da minha
vida ou se fico ofendida por ele ainda achar que tenho doze
anos. — Chega desse papinho de Seth. — Com a palma da
mão virada para baixo, ele corta o ar como se estivesse
fatiando o “papinho de Seth” ao meio. — Você tem que
deixar tudo isso pra trás. Precisa seguir em frente.
— Com certeza — concordo.
— Você devia entrar na academia — sugere minha mãe.
— Eu vou. — Assinto.
— Que bom… — Meu pai se senta. Seu trabalho está
feito. Ele está livre para ir embora assistir ao jornal e comer
as refeições que minha mãe prepara.
— Estou muito cansada — digo.
Meu pai parece ficar aliviado.
— Vá pra cama, então — diz ele. — A gente te ama.
É mentira. Eu o odeio.
***
H
á novos vasos na frente da casa, coisas enormes de
cerâmica que parecem pesar centenas de quilos. Será
que Seth os carregou do carro até o jardim e os
posicionou enquanto ela ficava a uns metros de distância,
só dando ordens? Que família feliz! Ela plantou calêndulas
laranja e amarelas neles. Estão plantadas de forma
organizada no solo, são novas nas redondezas e crescem
domesticadas.
Me pergunto sobre o que mais mudou, se ela vai aparecer
quando abrir a porta, segurando a barriga enquanto fala
comigo. Eu tinha esse hábito antes mesmo de a gravidez
ficar aparente, sempre consciente da vida que crescia
dentro de mim. Passo pelos vasos e sigo pelo caminho que
leva até a porta. Dá para ouvir a televisão lá dentro, algum
programa com aquelas risadas pré-gravadas. Isso é bom,
significa que ela está em casa.
Paro por um instante antes de tocar a campainha. Saí de
casa com pressa e nem ajeitei o cabelo no carro antes de
descer correndo. Ah, agora é tarde demais. Toco a
campainha e dou um passo para trás. Um minuto depois,
ouço passos vindo e, então, o clique da tranca. A porta se
abre, e o ar da noite é preenchido pelo cheiro de canela.
Hannah está descalça e com uma aparência bem
diferente de quando a vi pela última vez. Ela está usando
calça de pijama e uma regata e o cabelo está puxado para
trás, preso em um rabo de cavalo baixo. Fico aliviada ao vê-
la, e ela parece bem. Suas sobrancelhas se levantam ao me
ver e sua cabeça se inclina um pouco para o lado. Por que
essa cara?, penso. De repente, fico constrangida com
minhas roupas e meu cabelo. Devo estar tão desajeitada
por fora quanto estou por dentro. Hannah, sempre tão
reluzente e arrumada, como uma linda peça de porcelana.
— Eu… Você deixou uma mensagem. Eu não sabia se
estava tudo bem. Você está linda! — Quando ela me encara
com um olhar estranho, acrescento: — Fiquei sem celular…
Minha voz fica presa na garganta. Há algo de errado. A
expressão de Hannah é educada, mas inflexível. O único
sinal de que me ouviu é um arregalar de olhos sutil, o
branco do olho fica aparente antes de suas pálpebras,
sonolentas, se fecharem de novo.
— Você me desculpa — diz ela. — Mas acho que não
entendi. Com quem você quer falar mesmo?
— Com você… — digo gentilmente. — Estou aqui pra te
ver. — Minha voz sai como uma nuvem de fumaça, efêmera,
e logo evapora. Mudo a expressão no rosto e tento parecer
determinada.
Ela toca com delicadeza seu peito. Está confusa e muito
surpresa.
— Eu não conheço você — diz ela. — Será que bateu na
casa errada? — Ela olha para além de mim, em direção à
rua, como se quisesse verificar se há alguém esperando por
mim ou se estou sozinha. — Qual é o número da casa que
você está procurando? Conheço quase todo mundo desta
rua — diz ela, disposta a ajudar.
Abro e fecho a boca enquanto sinto uma onda de frio
tomar conta do meu corpo, do pescoço aos pés. Dói para
respirar, e sinto minhas pálpebras ficando quentes.
— Hannah? — Tento uma última vez.
Ela faz que não.
— Desculpa… — Sua voz é mais firme dessa vez; ela quer
voltar para seu seriado com risadas pré-gravadas.
— Eu… — Olho em volta e avalio a rua de cima a baixo.
Não há ninguém na rua, apenas as casas impecáveis e as
janelas iluminadas pela luz amarela e aconchegante. Me
sinto trancafiada, isolada dentro de mim mesma. A luz
amarela e aconchegante não é para mim, e sim para outras
pessoas. Dou um passo para trás.
— Sou eu, Quinta — digo. — Nós duas… Eu sou casada
com Seth também.
As sobrancelhas dela se unem e ela olha para trás, para
dentro da casa.
— Desculpa, mas acho que você se enganou. Deixa eu
chamar meu marido, vai que ele consegue te ajudar…
Ela se vira e chama alguém lá de dentro. É quando
percebo que o cabelo dela não está num rabo de cavalo
baixo como pensei; muito pelo contrário, está bem curtinho,
em um corte pixie cut.
— Seu cabelo — digo. — Você cortou faz pouco tempo? —
Noto a barriga dela também, quão reta ela está. Quase toco
minha barriga de tão confusa que estou.
Agora ela parece assustada e varre tudo com o olhar,
como se estivesse procurando ajuda. Ela ergue a mão para
tocar a própria nuca.
— Espero que você encontre quem está procurando — diz
ela e, então, fecha a porta na minha cara. O cheiro de
canela se vai, e fico com o aroma de terra úmida e folhas
em putrefação.
Cambaleio para trás, me viro em direção à calçada e
atravesso a rua correndo até meu carro. Enquanto me
atrapalho com a chave, me viro para olhar a casa e percebo
um movimento nas cortinas do segundo andar, como se
alguém estivesse espiando. É ela… Hannah. Mas por que ela
alegou não me conhecer? O que está acontecendo? Entro
no carro e descanso a testa no volante. Minha respiração sai
sibilante de meus lábios em suspiros silenciosos. Isso é
loucura, me sinto louca. O pensamento é tão desconfortável
que rapidamente ligo o carro e dirijo para longe da casa.
Estou com medo de que ela chame a polícia. Como eu
explicaria tudo isso?
Depois de colocar um endereço no GPS do carro, sigo em
direção à rodovia. Seth checaria primeiro os hotéis grandes
— aqueles com direito a roupões e minibar. Nunca
consideraria nada além disso porque se casou com uma
mulher que prefere ter só do bom e do melhor na vida.
Minha cabeça dói, e percebo que não tenho nada para
aliviar a dor; o frasco de aspirina para viagem está na bolsa
que Seth escondeu. Pela primeira vez em dias, meus
pensamentos estão nítidos e afiados — minha dor de
cabeça deve ser resultado do meu corpo lidando com a
abstinência dos remédios que fingi tomar nos últimos dias.
Penso nos frascos alaranjados perto da chaleira e me
lembro do gosto amargo que deixam quando derretem em
minha língua. Eram para ajudar, mas fazem com que eu me
sinta louca, que eu duvide de mim mesma, e sufocam meus
pensamentos. Será que era isso que Seth queria? Que eu
duvidasse de mim mesma e confiasse nele?
Dez minutos depois, o GPS do carro me leva a uma longa
estrada de terra. Está escuro, mas sei que, à minha
esquerda e depois de um denso bosque, há um lago.
Durante o dia, ele fica cheio de jet skis e de pessoas
fazendo stand up paddle, um grande programa de fim de
semana para universitários e famílias. A rua termina, e
então estaciono o carro. A casa à minha frente é escura e
tem janelas grandes e escuras, intimidadoras, como olhos
ocos. Pego minha bolsa no banco do carona e saio do carro.
Por favor, meu Deus, faça isso dar certo, penso enquanto
caminho até a casa. Ela tem dois andares, é cercada por um
bosque e tem uma entrada longa e sinuosa. Possui um
design mais quadrado, popularizado nos anos 1960. Ainda
há equipamento de construção aqui e ali, e preciso me
esquivar de um grande cano de metal quando saio do carro.
Ando pelo caminho curvo, e meus sapatos vão esmagando o
cascalho. Há um cadeado porta-chaves pendurado na porta,
e eu me ajoelho na frente dele, desejando ter trazido uma
lanterna. O código é o mesmo para todas as casas de Seth:
ele havia contado uma vez quando estávamos namorando e
me levara para ver uma casa que estava construindo em
Seattle. Vagamos pela mansão de mais de três mil metros
quadrados — enquanto eu dizia “ooooh” e “ahhhh” para
tudo que via — e depois transamos na ilha da cozinha.
Digito os números no cadeado rezando para que Seth não
tenha mudado o código. Ele abre com um clique satisfatório,
e sacudo a chave em minha mão. Enfio-a na fechadura, a
porta se abre, e eu entro. Olho em volta e sinto uma
profunda sensação de missão cumprida. Estou me
escondendo em plena luz do dia. O ar cheira a cigarro e
toalha molhada, então respiro pela boca conforme vou
adentrando lentamente a casa e olhando tudo. A casa Boca
de Algodão: fonte de inúmeras dores de cabeça. Fica na
rodovia Boca de Algodão, número 66, e é por isso que Seth
a apelidou de casa-cobra. Há quatro meses, o proprietário
teve um infarto e foi hospitalizado. O filho dele, sem saber
qual seria o destino do pai e incapaz de bancar a obra
sozinho, congelou o projeto por tempo indeterminado. Seth
ficou frustrado com toda aquela bagunça e sempre
reclamava, e é por isso que sei de todos os detalhes. Abro
as cortinas e deixo a luz da lua, opaca e amarelada, entrar
pelo pequeno espaço entre elas. O carpete está bem velho,
e o que já fora um azul-royal agora tem uma cor desbotada
que lembra jeans. Está enrolado em lugares onde os
empreiteiros haviam começado a reformar o chão. Olho pela
janela e avisto o céu noturno. Se fosse dia, o céu estaria
cinza, as nuvens opressivas de tão pesadas. Tempo… Esse
lugar teve tanto tempo para rachar, ceder e esmaecer.
Caminho até o minúsculo lavabo e tento acender a luz. Me
agacho para fazer xixi e torço o nariz ao sentir o cheiro
rançoso que emana do ralo. Há manchas de ferrugem na
pia, e, ao fechar a torneira, ela emite um ruído áspero.
Quando me olho no espelho, vejo uma pele pálida e
desbotada e luas escuras sob meus olhos. Não me
surpreende que Hannah tenha ficado tão assustada ao abrir
a porta.
Vagueio até o andar de cima e encontro um quarto. Há
um papel de parede floral que está descolando nos cantos e
uma cama velha encostada na parede. Me sento na beirada
da cama e sinto o colchão ceder sob mim. O que estou
fazendo aqui? Será que foi um erro vir? A forma como
Hannah me olhou, como se não soubesse quem eu era. Será
que Seth a avisou…? Ameaçou…? Ou… Ai, meu Deus. Passo
as mãos pelo cabelo, sinto os nós e me encolho por causa
da dor que isso causa atrás dos meus olhos. Ou… será que
ela nunca me viu? Será que alguém consegue inventar todo
um relacionamento? Se a situação fosse outra, eu ligaria
para meu médico e perguntaria o que ele acha, mas não
confio em meu médico, nem no meu marido nem em mim.
Seth entrou na mente de todos nós.
Minha cabeça ainda dói. Me deito de costas, rolo para o
lado e abraço os joelhos. Só uma sonequinha. Até a dor de
cabeça passar e eu conseguir pensar com mais clareza.
Quando acordo, é de manhã. Não sei que horas são. O
sono se tornou algo confuso nos últimos meses — um misto,
sem dúvida, da constante mudança de paisagem e
medicação. Me sento e olho em volta do quarto à procura
de um relógio, mas, tirando o papel de parede floral
empenado, as paredes estão vazias. Será que Seth já
acordou? Será que já começou a fazer ligações para me
encontrar? Não cogitei um rastreador no meu carro, mas
isso seria extremo demais. Seth não faria isso… Faria?
Tomo uma ducha no banheiro principal enquanto ouço o
som dos canos se acomodando à água morna que jorra do
chuveiro. A toalha que encontro é áspera e nada macia,
então nem me seco muito e me visto rápido, com a pele
ainda úmida. Na pressa, trouxe só uma calça jeans e um
suéter, que antigamente ficava justinho no corpo, mas
agora está largo em mim. Paciência… É o que tenho para
hoje. Mando a insegurança para longe, calço o Converse e
pego as chaves antes de ir em direção à porta.
Chegou a hora de falar com Regina.
VINTE E SEIS
A
dele toca no rádio enquanto dirijo pelo tráfego matinal.
Estou melhor hoje, me sentindo mais eu mesma.
Aumento o volume e ao mesmo tempo freio com tudo.
O caminhão no qual quase bati acelera um pouco para ficar
a alguns metros de distância, e depois disso sigo com mais
cuidado. A voz de Adele é tão melancólica que, de repente,
percebo como minha situação é solitária. O que estou
fazendo aqui? Talvez eu seja mesmo louca. Entro num
estacionamento abruptamente e interrompo Adele quando
desligo a ignição. Não, Seth é o mentiroso, e preciso achar
um jeito de provar. Passo a manhã inteira pensando no que
aconteceu com Hannah. Meu estômago embrulha quando
me lembro do vazio em seus olhos ao me ver. Há algo
errado, e preciso tirar essa história a limpo. Ir atrás de
Regina é a única coisa em que consigo pensar. Me lembro
do perfil no site de namoro que criei para Will Moffit. Séculos
se passaram desde a última vez que entrei lá. Será que
Regina acha que ele a dispensou?
Os escritórios da Markel & Abel ficam de frente para um
laguinho, em um prédio de três andares construído com
tijolo branco. O edifício é compartilhado com uma
imobiliária e um consultório de pediatria. Espio as janelas
dos carros que passam por mim a caminho da garagem
subterrânea do prédio. Regina pode estar em um deles.
Considero encurralá-
-la no estacionamento, mas isso só faria com que eu
parecesse desequilibrada. Não, tem de ser do jeito certo, do
jeito que planejei. É o que digo a mim mesma, mas, assim
que saio do carro, começo a chorar. São, em grande parte,
lágrimas designadas a nenhum motivo específico; não sei
dizer se estou com medo, triste ou com raiva, mas elas não
param de escorrer. Eu as intercepto com as costas da mão e
as seco na calça jeans.
Algo parece errado, mas não sei o que é. Seco os olhos
pela última vez e passo um gloss nos lábios, em uma
tentativa falha de tirar minha cara de acabada. Quando
empurro as portas do prédio, ouço o gritinho de uma criança
e o som de pezinhos andando. Um segundo depois, uma
mulher baixa, loira e com aparência exausta aparece
correndo atrás da criança.
— Desculpa — diz ela, pegando o menino quando ele se
choca contra mim.
Ele se abriga nos braços dela, com cara de quem está
satisfeito consigo mesmo, e descansa a cabeça no ombro da
mãe. Sinto uma pontada de algum sentimento em meu
peito, mas a afasto e sorrio quando ela o ajeita acima do
quadril e o leva em direção ao consultório.
Quase os sigo só para ver o que vai acontecer, mas então
me lembro do porquê de estar aqui. Subo as escadas até o
segundo andar e desacelero quando avisto a porta de vidro.
Na minha frente há uma sala de espera grande, com sofás
de couro marrom, elegantes e masculinos. Nos fundos da
sala, e bem na minha direção, fica a mesa da recepcionista.
Uma mulher de coque e óculos está com um telefone
pressionado na orelha enquanto digita alguma coisa no
computador. Sinto vergonha do meu suéter largo e da calça
jeans surrada. Queria ter trazido algo mais apropriado.
Empurro as portas, caminho diretamente até a recepção
e a cumprimento com um sorriso assim que a ligação
termina.
— Seja bem-vinda — diz ela, de um jeito profissional e
treinado. — Como posso ajudar?
— Tenho um horário marcado — digo. — Com Regina
Coele. — Faço uma pausa, tentando me lembrar do nome
que usei quando marquei a reunião. Parece que foi há
séculos, e não semanas. — Meu nome é Lauren Brian. —
Ponho as mãos na cintura e tento fingir que estou
entediada. Ela olha rápido na minha direção antes de digitar
algo no computador.
— Vi aqui que você perdeu seu horário na semana
passada, sra. Brian. — Ela franze o cenho. — Não temos
nada marcado para hoje. — Ela me olha à espera de uma
reação.
Levo uma das mãos à testa e faço uma cara que espero
que pareça uma expressão perplexa.
— Eu… Eu… — gaguejo. Lágrimas enchem meus olhos
enquanto a encaro. Eu estava trancafiada no Queen County,
comendo gelatina e olhando para a falta de cílios de Susan
no dia da minha reunião. Não preciso fingir que estou
perplexa, porque estou mesmo. Levo a mão ao rosto e a
deixo cair abruptamente. — É que está tudo tão… Eu estou
me divorciando — digo. — Devo ter me confundido…
Percebo que ela amolece.
— Me dá só um minuto. — Ela se levanta e desaparece
em um corredor que, provavelmente, leva aos escritórios
dos advogados. Dou uma olhada na sala de espera, ainda
relativamente vazia, já que é muito cedo. Há uma senhora
mais velha sentada num canto distante, com um copo do
Starbucks em uma das mãos e uma revista sobre vida
doméstica na outra. Me recosto na cadeira mais próxima à
mesa da recepção, cruzo os dedos e fico balançando a
perna em sincronia com os meus nervos.
Ela volta uns minutos depois e se senta. Não consigo ler
sua expressão.
— Sra. Brian, a srta. Coele se prontificou a pular o almoço
caso você esteja disposta a voltar ao meio-dia.
Uma pessoa boa, uma pessoa querida! Sinto o coração na
boca enquanto me levanto e vou até sua mesa.
— Sim — respondo, sem demorar. — Obrigada por me
ajudar — digo, do fundo do coração, com a voz embargada
de gratidão.
Ela assente como se não fosse nada. O telefone toca de
novo; estou atrapalhando. Me afasto da mesa e dou uma
olhada no relógio pendurado na parede. Quatro horas para
gastar.
E
stou tonta. Três vodcas-soda, e não comi nada a manhã
inteira. Minha visão está turva e os braços e as pernas
parecem moles e desobedientes. Me repreendo
enquanto escovo o cabelo com os dedos no banheiro
minúsculo do bar e faço uma careta para o meu reflexo.
Pareço uma bêbada: cara inchada, olhos vermelhos e pele
manchada. Pelo menos me livrei do suéter laranja. Antes de
sair, jogo uma água da pequena pia no rosto.
Tenho exatamente trinta minutos para me recompor
antes de ver a primeira esposa do meu marido. Eu ligo para
o que ela acha de mim, e é por isso que beber não foi uma
boa ideia. Tecnicamente, sou — era — sua substituta.
Apesar de sentir muita inveja dela, também sinto certa
afinidade. Quero que ela goste de mim. Ela poderia me
ajudar. Sou como um filhote de cachorro ansioso que,
mesmo maltratado, continua balançando o rabo em busca
de amor. Paro num posto de gasolina e compro colírio,
chiclete e desodorante. No último instante, peço um celular
descartável ao cara atrás do balcão. O desodorante
provavelmente não é uma boa ideia — tem cheiro de
baunilha —, mas o bar era quente e sinto a umidade
embaixo dos braços e nas costas. Estou cheirando a um
cupcake doce e suado. Estou cinco minutos atrasada
quando entro correndo no escritório. A secretária me lança
um olhar de irritação quando me vê. Você só precisava fazer
o mínimo, senhora…
— Por aqui — diz ela, levantando-se. Eu a sigo por um
corredor cheio de portas. Que erro, o jeito como
organizaram isto aqui. Me faz lembrar do ensino médio, da
longa caminhada até a sala do diretor. Dá para sentir o
cheiro de baunilha e suor saindo de mim como uma névoa.
Regina está sentada a uma mesa quando a secretária
bate gentilmente à porta e a abre. Ela dá um passo para
trás sem me olhar nos olhos e abre passagem para mim.
Regina se levanta assim que me vê. Ela é pequena, como
Seth disse, mas muito mais bonita do que nas fotos. Estou
encarando; percebo isso quando ficamos a sós na sala
depois de a secretária entender a deixa e sair. Que surreal…
Ela gesticula para que eu me sente em uma das duas
cadeiras de couro de frente para a dela. Mas, em vez de
voltar para sua cadeira, ela se senta a meu lado e cruza as
pernas. Sinto o cheiro do seu perfume na hora, um aroma
suave de lavanda. Sentada, me encolho, como se assim
pudesse disfarçar o cheiro de baunilha/suor.
— Você aceita uma água ou um café? — oferece ela. —
Um chá, talvez?
— Não precisa. Obrigada. — Ponho o cabelo para trás das
orelhas e me ajeito na cadeira. A diretora não deve perceber
que estou com medo.
— Pelo que entendi, você está pensando em se divorciar.
— A cadência da voz dela é hipnotizante: profunda e,
mesmo assim, feminina, como uma daquelas estrelas dos
filmes em preto e branco. Como o ronronar de um gato.
— Não estou só pensando — digo. — E, inclusive,
obrigada por ter aberto mão do almoço para me receber.
Percebi que perdi nossa reunião. Foi muita gentileza sua. —
Minha mãe sempre diz que gente confiante não agradece
muito nem fica pensando demais nas coisas.
— É trabalho — responde Regina. — Trabalho primeiro,
comida depois, né? — Ela dá um sorriso. — Vamos lá, me
conta da sua situação.
Pigarreio. No punho da manga, dá para perceber a
etiqueta com o preço que esqueci de arrancar. Toco no
pedaço de papel e o empurro mais para dentro da roupa.
— Meu marido é poligâmico. — É uma afirmação que
deveria chocar uma pessoa normal. Já cogitei diversas
vezes dizer isso a estranhos ou colegas só para ver a reação
deles.
O rosto de Regina, contudo, não muda. É quase como se
ela não tivesse me escutado. Ela não pede que eu esclareça
ou explique, e é só quando me manda continuar que
continuo:
— Sou a esposa dele no papel. Ele tem outras duas.
Ela me encara, impassível.
— Há crianças envolvidas?
Faço uma pausa e penso em Hannah, na forma como ela
me olhou, como se nunca tivesse me visto, quando toquei
sua campainha ontem à noite. A confusão e a mágoa nos
olhos de Seth quando contei ao médico o que ele era. Sinto
uma pequena dúvida adentrar minha mente. Você está
louca, você está louca, você está louca.
— A terceira esposa está grávida, mas não faz muito
tempo.
— E as outras esposas, todas compartilham a casa com
seu… marido?
Balanço a cabeça.
— Duas moram aqui, em Portland. Eu moro em Seattle.
Estudo seu rosto em busca de algum sinal de
reconhecimento. Será que ela sabia tão pouco sobre mim
quanto eu sabia sobre ela?
— E elas sabem de você? — pergunta ela.
Por um longo instante, me concentro em seu rosto. Nos
lábios grossos contornados e pintados de vermelho, nas
sardas espalhadas pelo nariz que sobressaem na
maquiagem. É agora ou nunca, foi para isso que vim.
— Você sabe, Regina? Quanto de mim ele falou para
você?
A expressão dela não muda. Ela cruza as pernas
enquanto se reclina na cadeira e me encara com olhos
inexpressivos que perfuram os meus. Por um longo período,
ficamos assim: ela me observando e eu a observando. A
sensação é de que estou prestes a cair da beira de um
precipício.
— Quinta — diz ela.
Sinto vontade de pular da cadeira e dar um grito. Essa
única palavra valida todos os motivos que me trouxeram até
aqui. Regina sabe meu nome, ela sabe quem eu sou.
Duvidar de mim mesma era um sentimento escorregadio e
grudento, mas ouvir Regina dizer meu nome me lavou e
limpou.
— Pois é — digo, sem fôlego… patética.
O rosto dela está marcado por uma repulsa indisfarçável.
Ela suspira, descruza as pernas e se inclina para a frente,
com os antebraços apoiados nas coxas. Agora já não parece
mais tão arrumada, apenas cansada. É incrível como a
expressão facial pode mudar a aparência de alguém.
— Seth entrou em contato comigo. Ele avisou que você
poderia aparecer. — Ela encara o chão por entre os saltos
antes de ajeitar a postura.
Então Seth já sabe onde estou. Ele me conhece mais do
que imaginei. Sinto um embrulho no estômago ao encará-la.
Enquanto fiquei imaginando que ele ligaria todo atrapalhado
para minha mãe e para Anna, ele foi direto a Regina. Pisco
com força, tentando disfarçar o choque que deve estar
estampado em meu rosto. Pensei que tivesse sido
inteligente, mas, pelo visto, meu marido é mais inteligente
que eu. Como fui burra… Mas essa tem sido a minha vida
nos últimos anos: ser burra. Seth tinha previsto minha fuga
de seu plano. Ele tinha pensado em tudo, previu minhas
ações. Talvez só na última semana, ou talvez desde sempre.
— Beleza, Quinta, você veio até aqui, então me diz por
que queria me ver. Já deduzi que não tem nada a ver com
divórcio. — Seus lábios estão afundados nos cantos, firmes
e enojados. Ela está erradíssima a respeito do divórcio, mas
não digo nada. Ela que pense o que quiser. Só quero
respostas sobre o homem com quem nós duas nos casamos.
Olho ao redor, à procura de algum toque pessoal da
mulher com quem estou falando: quadros, tapetes, qualquer
coisa que possa me dizer mais sobre ela. A decoração é
mais masculina, o que pode não ter muito a ver com ela;
mulheres não são de escolher tanta madeira de cerejeira
assim. Ela parece gostar
de samambaias, já que há três: uma no topo da estante,
com as folhas pendendo para os lados, outra menor em sua
mesa e a terceira — a mais saudável — no parapeito da
janela. Elas estão bem-cuidadas e exuberantes.
— Vim aqui porque não conheço meu marido. Eu estava
na expectativa de que você pudesse me dar uma luz. —
Essa é uma maneira leve de dizer. Meu marido bate em
mulheres e me internou por fazer muitas perguntas. Pelo
visto, sou muito burra e preciso que Regina me diga que foi
igualmente burra por confiar nele. Depois, posso contar a
ela sobre Hannah.
— Seu marido? — Há divertimento em seu rosto, e as
sobrancelhas estão arqueadas.
Quero dizer a ela que agora não é a hora de entrarmos
numa discussão idiota para ver a quem Seth pertence, mas
fico quieta.
— Não sei se consigo te ajudar. Na verdade, nem sei se
quero. — Ela alisa a saia e dá uma olhada no relógio. São
gestos sutis, mas feitos para que eu percebesse. Estou
desperdiçando seu tempo. De repente, não me sinto tão
confiante como me sentia há um instante. O clima mudou.
— Você está com Seth há oito anos… — começo.
— Cinco — interrompe ela. — Seth e eu ficamos juntos
por cinco anos antes do divórcio, mas é óbvio que disso
você já sabe, afinal você foi o motivo da nossa separação.
Sem reação, eu a encaro. É claro que fui, mas ela
concordara. Isso não está saindo como o esperado. Por que
ela está sendo tão amarga a respeito de algo que aceitou?
Seth conheceu e se casou com Regina cinco anos antes de
mim. Me lembro do ciúme que eu sentia por todo o tempo a
mais que os dois haviam passado juntos, de saber que eu
nunca os alcançaria.
— E esses últimos três…?
— Esses últimos três o quê? — Ela vocifera essa parte.
Sua compostura se desfaz por um segundo enquanto algo
surge em seus olhos.
— Que… Que vocês passaram juntos. O casamento
plural…
Pela expressão de Regina, parece que lhe dei um tapa.
Ela joga o pescoço esguio para trás. Dá para ver as marcas
rosadas em formato de raios acima do decote. Eu a deixei
nervosa. Não sei se isso é bom ou ruim, mas tê-la deixado
nervosa significa alguma coisa.
— Desculpa — diz ela. — Não sei do que você está
falando.
Sei que vão chamar a polícia se eu pular no pescoço dela
e gritar: “Fala a verdade, sua vagabunda!” No mínimo, eu
seria carregada para fora do prédio e mais uma pessoa
acharia que estou louca.
— Tirando a conversa rápida em que ele me contou que
você podia vir aqui me encontrar, faz anos que não vejo
nem falo com meu ex-marido — diz ela.
Suas palavras aniquilam minha próxima pergunta. Minha
boca fica aberta até que a fecho, franzindo o rosto.
Olho para Regina e depois para minhas mãos. Meus
pensamentos estão incoerentes e intensos. Minhas falas não
estão fazendo sentido para ela, e vice-versa. Ouço ruídos ao
fundo e meu coração batendo.
— Como assim? — consigo perguntar, por fim.
— Acho que você devia ir embora. — Seu rosto está
pálido enquanto ela se levanta e vai até a porta.
Sem saber mais o que fazer, eu a sigo. Meus
pensamentos estão emaranhados entre Regina e Hannah.
— Você precisa de ajuda, Quinta — diz ela, olhando para
mim. — Você está delirando. Seth contou que você estava
doente, mas…
— Não estou doente — digo com tanta veemência que
nós duas ficamos em silêncio por alguns segundos. Repito
em um tom mais calmo: — Apesar do que Seth te contou,
não estou doente.
— Vá embora. — Ela segura a porta aberta, e eu olho
para além dela enquanto sinto meus pensamentos a mil por
hora.
— Só me diga uma coisa — peço. — Por favor…
Seus lábios formam uma linha fina, mas ela não recusa.
— Os pais de Seth. Você já os conheceu?
Ela parece confusa.
— Os pais de Seth morreram — diz ela, balançando a
cabeça. — Há muito tempo.
— Obrigada. — Suspiro antes de sair.
VINTE E OITO
N
ão estou louca.
Seth está se fazendo de burro, e Hannah
convenientemente sumiu, o que me deixa com apenas
uma opção: Regina Coele. Ela sabe de alguma coisa. Tenho
certeza de que sabe. Ela não ficaria tão afobada para se
livrar de mim no escritório caso não soubesse, afirmando
que não via ou falava com Seth havia anos. Mas eu estava
lá quando ela mandou mensagem para ele enquanto
estávamos no Pike. Eu vi o nome dela aparecer no celular
dele. Ela diria que havia sido uma ligação cortês sobre a
cachorra deles.
Tinha algo suspeito no modo cuidadoso com que ela falou
tudo. Era ensaiado, planejado — os dois tinham inventado
aquela história juntos para me fazer parecer doida. Mas por
quê? E qual é o envolvimento de Hannah nisso tudo? Meu
estômago embrulha de novo quando penso em Hannah. Sei
que a enganei quando não contei quem eu era de verdade.
Se Seth contou quando descobriu o que fiz, eu não a
culparia de ficar com medo de mim. Mas será que ela
chegaria a ponto de colocar a casa para alugar porque a
outra esposa de Seth a encontrou?
Talvez Seth a tenha obrigado a fazer as malas e alugar a
casa quando achou que eu continuaria falando de sua
poligamia. Mas por quê? Ele não é legalmente casado com
nenhuma delas e não corre risco na justiça. Muitos homens
têm casos extraconjugais — não há punição por foder
outras mulheres fora do casamento. Será que foi para
proteger sua reputação? A empresa? Seth nunca foi o tipo
de homem que liga para o que os outros pensam dele. No
entanto, casamentos plurais trazem à mente imagens de
Warren Jeffs e dos complexos sujos e fundamentalistas em
Utah — e nenhum empresário com a cabeça no lugar
gostaria de ser associado a isso. Será que ele iria tão longe
só para proteger sua reputação? É isso que preciso saber.
Antes de bolar planos, preciso saber quais são os dele.
Me sinto estranhamente otimista enquanto me guio no
trânsito do fim do dia em direção ao prédio branco em que
Regina está encerrando seu expediente. Não vou sair de lá
sem respostas. Imagino que deva estar atendendo o último
cliente, ou o penúltimo, já que ela trabalha tanto.
— Ela fica até mais tarde, trabalha muito — contou Seth
certa vez.
O orgulho na voz dele havia me deixado confusa. Ele não
deveria reclamar em vez de fazer soar como se fosse uma
qualidade admirável? Tento imaginar o que ela fará quando
sair do escritório. Será que é do tipo que sai para beber com
os amigos depois do expediente? Ou vai para casa
esquentar comida pronta para comer em frente à TV? Penso
no escritório, na falta de itens pessoais que demonstrem
quem ela é. Não, ela não é do tipo que passa horas bebendo
num bar. Ela é do tipo que leva trabalho para casa. Toda
noite ela enfia pastas cor de creme debaixo do braço e as
coloca no banco do carona na volta para casa. Ela janta na
ponta de uma longa mesa, com arquivos abertos em redor e
uns óculos empoleirados no nariz. Era essa a imagem que
Seth transmitia, foi isso que me fez não gostar dela.
Ocupada demais para atender às necessidades do nosso
marido. Talvez ele tenha me contado essa história para que
eu entrasse em ação e me esforçasse para compensar o
que Regina não fez. E funcionou, não funcionou? Sempre
quis ser mais do que o necessário. Assim que Seth se casou
com Hannah, fiquei morrendo de ciúme. E me sentia
culpada por isso também; era culpa minha não sermos
capazes de ter um bebê, fora meu corpo defeituoso que
havia acabado com meu casamento. Tentando entender
meu papel, eu havia perguntado o que ele recebia de cada
uma de nós, qual era a diferença entre nossos papéis. Ele
me mandara pensar no Sol.
— O Sol oferece luz, calor e energia.
— Então você é… o quê? A Terra? — respondera eu,
entrando na brincadeira. — Parece que somos nós que
orbitamos ao seu redor, e não o contrário.
Ele ficara tenso com meu comentário, mesmo enquanto
formava um sorriso nos lábios.
— Ai, Quinta, pra que levar as coisas tão a sério assim?
Você que me pediu que explicasse.
Eu me encolhera, com medo de que minha brincadeirinha
o fizesse me amar menos.
— Então o que eu sou? — perguntara eu, com uma voz
melosa. A analogia havia me irritado. Tentei esconder a
raiva balançando a perna embaixo da mesa. Era isso que eu
fazia: escondia as coisas em um lugar onde ele não
conseguisse ver. Nós três servíamos para, acima de tudo,
atender às suas necessidades, e o que exatamente o Sol
conseguia da Terra? O casamento dos meus pais estava
longe de ser perfeito, mas os dois precisavam um do outro
mutuamente.
— Você é minha energia — respondera ele.
Na época, eu havia gostado disso, de ser a energia de
Seth. Fiquei temporariamente saciada, envolta num
orgasmo verbal. Era eu que o preenchia com motivação e
força de vontade, que o fazia continuar seguindo em frente.
Na minha cabeça, fiz com que soasse mais importante do
que as outras duas. Regina seria a luz e Hannah, o calor.
Convenhamos, como alguém aproveitaria o calor e a luz se
não tivesse energia?
Agora, enquanto espero por Regina no estacionamento,
faço uma careta ao pensar em todas as formas com que
justifiquei o que acontecia. Hannah era o calor de Seth, a
boceta nova. Regina era seu primeiro amor. Uma mulher
apaixonada, primeiro, perde a noção; depois, a coragem.
Marco um ritmo no volante com o dedo. Não estou louca…
ou talvez eu esteja… Mas só tem um jeito de descobrir.
Regina deixa o prédio uma hora e quarenta minutos
depois. É exatamente como Seth a descreveu. Ela saiu
depois da secretária, que foi embora já faz mais de uma
hora, acelerando seu Ford como se tivesse um milhão de
lugares melhores para estar. Observo enquanto ela caminha
rapidamente até uma Mercedes antiga com a pasta
firmemente segura em sua mão. O carro já teve dias
melhores; noto a pintura envelhecida e os amassados no
para-lama conforme ela entra no veículo. É o tipo de carro
que não é velho o suficiente para ser vintage, mas é velho
demais para ser considerado “maneiro” pela maioria das
pessoas. Como Regina é uma advogada particular, eu
esperava que ela tivesse um carro do ano. Dou a partida
enquanto ela sai do estacionamento e a sigo de perto.
Sinto um frio na barriga quando ela entra na rodovia.
Aperto o volante com mais firmeza e foco no para-choque
dela. Vai ser difícil acompanhá-la nesse trânsito. Dou um
jeito de ficar alguns carros mais para trás. Quando ela sai da
rodovia, estou logo atrás com o coração a mil e ouço várias
pessoas buzinando para mim. Dez minutos depois de segui-
la por uma vizinhança sem graça afastada do centro, ela
estaciona num conjunto habitacional encardido chamado
Marina Point. Não há marina nenhuma por aqui, apenas
prédios baixos e quadrados pintados com um cinza que
lembra a prisão. A pouca grama em volta do local está
amarelada. Tudo parece anêmico, e as poucas pessoas que
estão do lado de fora estão reunidas na escada, fumando.
Se eu abrisse a janela, saberia se é cigarro ou maconha,
mas não tenho tempo. Regina passa pelos quebra-molas
como se eles não estivessem ali. Espero que ela passe pelos
prédios, como se estivesse apenas pegando um atalho, mas
ela estaciona numa vaga numerada. Regina mora aqui.
Com o carro parado, olho em volta para a pobre
desordem. Há algo errado. Uma mulher que coleciona
Louboutin não dirige um carro desses nem mora aqui.
Decido que ela está visitando alguém, fazendo uma breve
parada antes de ir para casa. Talvez tenha vindo deixar
alguns papéis para um cliente. Só que, quando sai do carro,
ela leva a maleta e as pastas, com dificuldade para segurar
tudo enquanto fecha manualmente o automóvel. Preciso ver
em qual apartamento ela vai entrar. Estaciono rápido do
outro lado da rua e a espero chegar ao topo da escada
antes de descer do carro. Correndo, chego ao terceiro andar
bem na hora que ela fecha a porta. O som do ferrolho ecoa
pelo corredor de concreto quando Regina se tranca no lado
de dentro. Olho ao redor. Não há tapetes de boas-vindas
nem plantas decorando os degraus, apenas quatro portas
sem nada e números baratos de plástico ao lado de cada
uma. Um lugar para quem não tem mais para onde fugir.
Com firmeza, encaro a porta por vários minutos. 4L. E bato.
H
á coisas caras neste apartamento barato. Um sofá de
couro em “L” que outrora ocupava uma sala maior e
calhamaços, que geralmente ficam em mesas de
centro, em cima de uma mesinha de mármore. Tudo é
grande demais, o que deixa a sala pequena e
claustrofóbica. Procurando por alívio, olho pela janela por
cima do pequeno conjunto de mesa de jantar de ferro
forjado, mas não vejo nada além de fileiras de insípidos
prédios cinza. Está bem quente; o aquecedor está no
máximo para parecer que é verão. Ela não quer aceitar de
jeito nenhum, penso. Regina se senta o mais longe possível
de mim no sofá, enquanto eu continuo em pé sem ser
convidada para fazer o mesmo. Ela se enrosca no canto,
uma minúscula bola de mulher. Eu me sento mesmo assim,
de frente para ela e tão na beirada que o couro quase me
faz escorregar. Tento não encará-la, mas não é fácil, depois
de ter passado tanto tempo pensando nela.
— E aí? — pergunta Regina. — O que você quer saber?
Bem diferente do “Você aceita uma água ou um café?” de
mais cedo, quando ela estava cercada por suas
samambaias, madeira e diplomas. Aqui, em sua sala, suas
coisas me cercam.
— A verdade — respondo.
— A verdade? — diz ela, incrédula. — Acho que você
nunca quis a verdade, Quinta. Você queria Seth. Já estou
sabendo de tudo…
— Do que você está falando? E por que você disse que só
ficou com Seth por cinco anos?
— Porque foi isso mesmo — diz, exasperada. Em seguida,
acrescenta: — Antes de você aparecer.
— Quer dizer quando eram só vocês dois?
— Não! Pelo amor de Deus, você é doida mesmo… — Ela
balança a cabeça, sem acreditar. — Quinta, você teve um
caso com Seth. Foi por sua causa que a gente se divorciou.
O silêncio é ensurdecedor. Sinto uma pontada de dor
lancinante na cabeça que me percorre de uma têmpora à
outra.
— Mentira — digo. — Pra que mentir assim?
Ela me encara com a expressão vazia.
— Porque é verdade.
Faço que não. Minha boca está seca. Quero algo para
beber, mas sou orgulhosa demais para pedir água.
— Não. Ele disse que…
— Para — diz ela, me interrompendo. Seus olhos estão
furiosos. Ela os fecha, se recusando a ouvir. — Só para.
Normalmente eu recuaria, mas não dessa vez. Já passei
tempo demais no escuro, preciso de respostas.
— Qual foi a última vez que você viu Seth? — Ela
comprime os lábios na mesma hora e faz uma cara de quem
comeu e não gostou.
— Já te falei que…
Ela olha para baixo — para o colo, ou para as mãos, ou
para o desenho da calça do pijama, mas não para mim. Vejo
seus ombros se erguerem e se abaixarem ao suspirar.
— Vi Seth semana passada — responde Regina. — Aqui
no apartamento. — Quando percebe a expressão em meu
rosto, ela adiciona: — Ele me deve dinheiro.
— Por quê?
— Por ter perdido tudo — retruca ela. — Você acha
mesmo que eu pertenço a um lugar como este?
Regina com Louboutins? Quero rir: é, acho que não. Eu
tenho dinheiro para comprar sapatos de sola vermelha, mas
eles não são meu estilo. Regina, no entanto, está
acostumada a esbanjar luxo. Ela veste roupas de grife e
provavelmente sempre dirigiu uma Mercedes do ano em vez
daquela lata-
-velha estacionada lá embaixo.
— Você vai ter que me atualizar nessa história, Regina.
Não faço a mínima ideia do que você está falando. — Tento
soar paciente, mas parece mais é que estou falando entre
os dentes.
— A empresa dele. As coisas começaram a ir de mal a
pior há alguns anos. Logo antes de ele se casar com você —
diz ela, sem rodeios. — Seth fez uma segunda hipoteca da
casa que compramos juntos para tentar evitar que o
negócio afundasse, mas, mesmo assim, não conseguiu
pagar. Tinha muita dívida. Nossa casa foi penhorada. Ele
prometeu dar a volta por cima, dar um jeito, mas, pelo que
você pode ver… — Ela ergue os olhos para o teto. — Aqui
estou eu.
Por que eu não sabia de nada disso? Por que ele não
havia dito nada? Eu tinha dinheiro suficiente para ajudar…
Balanço a cabeça. Não acredito que estou pensando assim.
Mesmo agora, sentada de frente para a outra esposa dele,
depois de ser internada, continuo pensando em como eu
poderia tê-lo ajudado.
— E ele te deu dinheiro? — pergunto.
Estou tentando conceber tudo. Seth nunca falava sobre
sua situação financeira, especialmente com as outras.
Tínhamos contas separadas, embora eu tenha dado um
cartão adicional a ele quando nos casamos. Sempre achei
que fosse assim com elas também.
Ela expira e esvazia as bochechas. Parece até uma
criança. Como alguém a leva a sério?
— Deu um pouco. Não o suficiente. Tem gente batendo na
minha porta para cobrar dinheiro. É de dar nos nervos.
— Se vocês não estão em um relacionamento, por que
ele simplesmente não mandou o dinheiro? Pra que vir até
aqui?
A boca de Regina se comprime e o rosto dela fica
vermelho. É então que percebo que ela é uma mulher
solitária e amargurada, não a personificação de poder e
carisma que eu tinha imaginado. Ah, seus ídolos sendo
desmascarados, penso comigo mesma. Prefiro a versão dela
que criei na minha cabeça, aquela que me deixava
insegura.
— Nossa cachorra morreu — diz ela. — E ele queria me
contar pessoalmente que teria mais dinheiro para me dar
em breve. O pagamento de uma negociação que cairia em
algumas semanas.
Então ele não estava mentindo sobre a cachorra. Será
que ele está mentindo sobre o dinheiro? Seth faz transações
bancárias o tempo inteiro. Seus clientes o definem como
eficiente e trabalhador. Ele tem só uma avaliação ruim na
internet, que o deixa estressado toda semana. Ele tira um
dinheiro bom com a empresa, mas não é o suficiente para
arcar com grandes dívidas — ou recuperar casas enormes.
Testo o nome da cachorra.
— Smidge?
Horrorizada, Regina olha para mim.
— Como você sabe?
— Seth me contou — digo, dando de ombros. Ele também
me contava algumas coisas, penso. Só nunca sei o que é
verdade e o que é mentira.
Ela hesita e desvia o olhar, como se não acreditasse.
— Ainda não consegui jogar as coisas dela fora. — Ela
aponta com a cabeça para um espaço entre o rack da TV e
a cozinha, onde ainda há uma cesta de brinquedos de cães.
O recipiente transborda com bolas brilhantes e ursinhos de
pelúcia; era uma cachorra mimada.
— Vocês transaram quando ele veio aqui?
Regina vira a cabeça em minha direção. Seu rosto é uma
máscara de ódio.
— Como é que você tem coragem… — diz ela. Mas há
alguma coisa ali, escondida por trás da raiva… confissão.
— Transaram. — Ponho o cabelo atrás das orelhas. Não
sinto nada; óbvio que não. Sempre soube que Seth fazia
sexo com as outras duas esposas. Eu só garantia que o sexo
comigo fosse melhor do que qualquer coisa que elas
pudessem oferecer. Eu era a mais depilada, a mais flexível,
a que mais respondia a seu toque.
Regina fica em silêncio.
— Por que você está fazendo de conta que não sabe de
nada? Seth está agindo como se eu fosse louca, como se eu
estivesse inventando essa história sobre o relacionamento
dele com você e com Hannah. Só quero a verdade.
— Não conheço Hannah — diz Regina. — E já te disse que
terminamos há muito tempo. — Ela está sentada em cima
das pernas, e não consigo evitar pensar que é para
aparentar ser mais alta, igual aos saltos que usa.
Faço que não. Não estou louca. Não estou.
As narinas inflam, e consigo ver o peito dela subindo e
descendo por causa da respiração curta. Ela está tentando
se controlar. Mas por quê? Ela se levanta e vai até a porta, e
sei que está prestes a me mandar embora. Preciso fazer
alguma coisa, convencê-la a falar comigo.
— Perdi um bebê… — As palavras saem da minha boca e
chegam ao meu peito com uma dor aguda.
De costas para mim, Regina congela.
Tudo começou quando perdi o bebê. Minha vida começou
a se desfazer, fio a fio. Talvez eu estivesse muito envolvida
no luto para perceber os sinais na época, mas agora
percebo. O distanciamento de Seth, seu desejo por outra
mulher, o modo como se preocupava com sexo quando
estávamos juntos. Eu não era mais a mulher com quem ele
queria conversar, eu era a mulher que ele queria comer. No
fim, foi a isso que acabei sendo reduzida.
— Eu estava de cinco meses. Tive que… — Engulo a
torrente de emoções. Preciso tirar isso do peito. — Tive que
dar à luz.
Pelo canto do olho, vejo-a se virando para me encarar.
Olho para ela: o rosto está horrorizado, a boca, aberta, e os
olhos, arregalados. Ele nunca contou a ela. Mordo o interior
da bochecha e me obrigo a continuar falando.
— Ele tinha cabelo ruivo… Tinha pouco cabelo… mas era
ruivo. Nem sei de onde veio. Ninguém tem cabelo ruivo na
minha família…
Falar do meu bebê valida sua existência neste mundo,
mesmo que tenha sido breve. Ele era tão pequeno, e o
cabelo ruivo era mais como uma penugem alaranjada. As
enfermeiras haviam ficado maravilhadas, o que só me
deixou mais triste. Na hora, eu havia me apegado a esse
pequeno detalhe. Seu corpo era tão pequeno que se perdia
em meio ao cobertor em que o haviam enrolado. Pude
segurá-lo por apenas alguns minutos, e minha mente se
dividia entre admiração e luto. Eu que fiz. Ele morreu. Eu
que fiz. Ele morreu. Não cheguei a lhe dar um nome, muito
embora Seth quisesse. Nomeá-lo transformaria sua morte
em realidade, e meu desejo era esquecer.
Tudo o que eu guardei com tanto cuidado está
transbordando dentro de mim, meus canais lacrimais
queimam.
— A mãe de Seth — diz Regina com delicadeza.
Engulo em seco. Nunca vi nem uma foto dos pais dele.
Seth me disse que eles não ligavam para essa coisa de foto.
— Ela era ruiva? — Quero que ela diga mais. Preciso que
ela diga mais.
— Era. Tinha um cabelão enorme e lindo.
Engulo o nó na garganta.
— O que houve com eles? Como eles morreram?
Regina pousa as mãos no colo e, com tristeza, balança a
cabeça.
— O pai dele atirou na mãe e, depois, atirou em si
mesmo. Foi trágico, a família toda ficou em choque.
Fico boquiaberta.
— Não estou entendendo. Quando foi que eles morreram?
E as outras esposas? E os outros filhos?
Ela dá de ombros.
— Já éramos casados quando aconteceu. O pai dele não
estava bem. Tinha sido diagnosticado com esquizofrenia
quando era criança e dizia que Deus o mandava fazer
coisas. Eles eram bem… religiosos.
— Você chegou a conhecê-los? — Penso nos cartões que
supostamente eram enviados por eles, escritos com a
caligrafia da mãe. Não, não tem como Regina estar certa.
Os pais de Seth nos mandaram um presente de casamento.
Não mandaram? Não, era tudo parte da mentira
perfeitamente construída de Seth.
— Conheci. Eles eram esquisitos. Fiquei feliz de me mudar
de lá. Eles nem compareceram no nosso casamento.
Quero contar que os dois também não foram no nosso,
mas ela embala na história e não quero interrompê-la.
— Seth era meio obcecado pelo pai.
— Em que sentido?
Ela parece aliviada por falar de outra coisa além de seu
relacionamento com Seth.
— Sei lá. Acho que daquele jeito que meninos são
obcecados pelo pai. Os dois eram próximos. O pai dele não
gostou nada quando nos mudamos. Falou que Seth estava
abandonando a família.
— Vocês tentaram engravidar? — questiono. Uma
mudança súbita de assunto.
Regina não gosta da pergunta.
— Você sabe que eu não queria ter filho.
— Por quê?
— Uma mulher ainda tem que se justificar por não querer
ter filhos? — pergunta ela, brava.
— Não… Quer dizer… você se casou com o filho de um
poligâmico. Ele deve ter te contado que queria uma família.
Ela afasta o olhar.
— Ele deduziu que eu mudaria de ideia, e eu deduzi que
ele me amava o suficiente para deixar isso pra lá.
Há um pensamento familiar em minha mente que se
recusa a ir embora — uma canção que quase consigo
identificar, mas não sei o nome.
O tom defensivo voltou à voz dela, a guarda levantada.
— Respondi a todas as suas perguntas, Quinta. Por favor.
— Ela olha para a porta. — Quero ficar sozinha agora.
Pego seu celular no meu bolso e o coloco gentilmente na
mesa. Antes de sair, me viro na direção dela e a vejo de pé,
olhando pela janela, mas para nada em específico, e deixo
um pedaço de papel em cima das revistas com o número do
celular descartável que comprei.
— Seth bateu em Hannah. Você precisa saber. Quando
descobri e o confrontei, ele ficou violento comigo também.
Um músculo treme em sua têmpora, um leve pulsar.
— Tchau, Regina.
TRINTA E UM
S
aio do apartamento de Regina com a cabeça girando.
Com a mão no corrimão, paro no topo da escada.
Alguém riscou a palavra “puta” com uma chave no
metal. Regina podia estar mentindo sobre tudo. Não dá
exatamente para confiar na outra esposa do meu marido,
dá? Será que Seth mentiu para ela também? Sobre mim e
nosso relacionamento? Eu achava que, talvez, ele
escondesse as coisas de Hannah, a esposa novinha em
folha, mas ele pode ter deixado Regina no escuro também.
Será que ele mentiu para todas nós? Quem era esse
homem? Será que eu o havia amado tão incondicionalmente
que fiz vista grossa às suas atitudes? Seth, que me disse
que Regina não queria filhos e, por isso, foi atrás de uma
segunda esposa. Seth, que nunca contou a Regina que eu
havia perdido nosso bebê. Há tantos segredos, e fiquei cega
por muito tempo. Fico enjoada só de pensar que permiti isso
acontecer. Preciso falar com Hannah, fazê-la me contar o
que está acontecendo. Onde foi que ele escondeu Hannah?
Dirijo de volta até a casa Boca de Algodão, e, a cada
minuto que passa, me sinto pior. Meu estômago faz um
apelo alto por comida. Quando foi a última vez que comi?
Entro num drive-
-through e peço um sanduíche com refrigerante, mas,
quando desembrulho o papel laminado, a visão do lanche
me deixa enjoada. Jogo a comida fora e bebo a Coca
devagar. Estou febril, meu rosto está úmido e quente. Entro
na casa aos tropeços e com a cabeça girando. As paredes
vazias pairam ao meu redor e o cheiro de tinta e podridão
me faz engasgar. De repente, não quero mais ficar aqui. Vou
só dormir por alguns minutos, o suficiente para me sentir
melhor. Entro no quarto e tranco a porta. São só oito da
noite, mas meu corpo está tão exausto que dói. Com os
olhos pesados, rastejo até a cama com cheiro de mofo e
durmo.
— Quinta?
Atordoada, me sento na cama e busco o celular. Não está
aqui. Não consigo ver a hora. Estou segurando um telefone
junto à orelha, e há alguém dizendo meu nome. Ah, sim.
Estou em Portland. Me desfiz do meu celular no elevador.
Este é um descartável.
— Oi… — digo, toda atrapalhada, tentando me livrar dos
lençóis e me sentar. — Quem é?
Uma mulher repete meu nome:
— Quinta… — E então: — É Regina.
De repente, estou bem acordada e com os sentidos em
alerta total. Jogo as pernas para fora da cama e me levanto.
— O que houve? Aconteceu alguma coisa?
— Não… — Há incerteza na voz dela.
Ando pelo pequeno espaço até a janela e de volta para a
cama. O celular estranho parece desajeitado na minha mão.
— Seth sabe que você esteve aqui. Contei que você foi lá
no escritório. Ele está te procurando.
Me sento abruptamente. Não estou surpresa. Mas quanto
tempo será que ele vai levar até me encontrar?
— Por que você está me contando isso?
Há uma longa pausa no outro lado da linha. Dá para ouvi-
la respirando pelo telefone; sua respiração está obstruída,
como se ela tivesse chorado.
— A gente pode se encontrar em algum lugar pra
conversar?
— Quando?
— Agora — diz ela. — Tem uma lanchonete que fica
aberta vinte e quatro horas a duas quadras do meu
apartamento. O nome é Larry’s. Consigo chegar lá em meia
hora.
— Tá bem — digo, cautelosa. — E como vou saber que
posso confiar em você?
— Acho que você não tem escolha. — Ela desliga. Ela é
advogada, está acostumada a ter a última palavra.
Encerro a chamada e começo a procurar minhas roupas.
A única relativamente limpa é o suéter alaranjado. Eu o
visto e ponho o jeans. Meu cabelo está uma bagunça.
Escovo e faço um rabo de cavalo rápido, jogo uma água no
rosto e, cinco minutos depois de falar com Regina, já estou
saindo. É só quando ligo o carro e o painel se acende que
vejo que são 4h30 da manhã. O que a faria me ligar no meio
da madrugada?
S
aio da lanchonete uma hora depois sem ter para onde ir.
Não quero voltar para a casa Boca de Algodão com seu
papel de parede descascado e cheiro de mofo. Depois
que Regina contou para Seth que eu estava em Portland, ele
não pensaria duas vezes antes de vir até aqui. Para quê?
Para discutir comigo? Me arrastar de volta para Seattle? Não
estou pronta para vê-lo. Eu poderia ir embora, dirigir por
duas horas e chegar em casa antes dele. Daria tempo de
pegar umas coisas e ficar com meus pais. Só que minha
mãe não tinha acreditado em mim quando eu estava no
hospital e tentei contar a verdade. Não faço ideia se os dois
andaram conversando nesses últimos dias. O mais provável
é que Seth tenha contado parte da verdade: que desapareci
no meio da noite e eles precisam me encontrar antes que
eu me machuque. Estou sozinha nessa. O confronto com
Seth é inevitável, vou ter de enfrentá-lo mais cedo ou mais
tarde, mas Regina pediu mais tempo e vou dar mais tempo
a ela. O que me contou enquanto estávamos sentadas sob
as luzes fluorescentes do Larry’s me deixou arrepiada,
enjoada e fez com que eu duvidasse de mim mesma. Meu
café tinha esfriado e uma fina película se formou em cima
da bebida enquanto eu me acomodava no assento para
ouvir o relato seco de sua experiência.
Dirijo até avistar um shopping que conta com uma
grande rede de supermercados. Só abrirá daqui a algumas
horas. Estaciono nos fundos do prédio, fora do campo de
visão da estrada, onde não me sinto exposta, e reclino o
banco o máximo possível para poder dormir. Só algumas
horas.
Acordo com o som de alguém batendo na janela do carro.
Me sento na mesma hora, grogue e desorientada.
— Não pode estacionar aqui — vocifera um homem que
me olha pelo vidro.
O sujeito está usando um colete laranja e amarelo e,
enquanto bate de novo, ele olha para trás, distraído. Me
encolho conforme o punho dele vai batendo perto do meu
rosto. A mão é grande e bronzeada de sol, o que combina
com os ombros, que são largos.
Quando volta a me olhar, ele diz:
— Você está bloqueando a passagem.
Olho para trás e vejo um caminhão de lixo parado no
beco, esperando para recolher a lixeira que meu carro está
bloqueando. Sem levantar meu banco, ligo a ignição,
acelero e dou a volta pela frente da loja. Estaciono em outra
vaga, desorientada pelo despertar inesperado e pelo
brutamontes que me acordou. Bocejo e esfrego os olhos
para me livrar do sono. Preciso ir a algum lugar privado,
onde dê para pensar sem um lixeiro gritando comigo.
Decido ir à biblioteca pública; lá haverá computadores que
posso usar. Passei por ela na última vez em que estive na
cidade para jantar com Seth; a elegante estrutura de tijolo e
pedra chamou minha atenção pela beleza antiga.
Não me lembro do nome da rua em que ela fica nem qual
é o nome da biblioteca, então tenho de contar com a
memória para encontrá-la. Preciso confiar em meus
instintos. Passo quarenta minutos indo para cima e para
baixo pelas ruas movimentadas de Portland enquanto tento
me lembrar de onde exatamente a vi. Quando finalmente
avisto o edifício de relance, um grupo de moradores de rua
está recolhendo seus pertences e se preparando para
passar o dia circulando pela cidade. Como ainda é cedo, o
estacionamento está relativamente vazio e encontro uma
vaga perto do prédio. Sou tomada pelo cheiro de urina
assim que saio do carro. Além disso, estou sem casaco, e
está muito frio. Corro até a entrada e descubro que as
portas não estão trancadas. Suspirando de alívio e
tremendo de frio, entro e cubro as mãos com a barra do
suéter como se fosse uma luva. O interior é um espaço todo
aberto sob uma claraboia que permite a entrada da luz do
sol. Caminho com pressa pelo saguão e em direção ao
computador.
— Duas horas — diz a bibliotecária. — Não pode comer
nem beber nada. — Sua voz é seca, irritadiça e antipática.
Ela parece mais uma gravação do que uma pessoa. Quando
assinto complacentemente, ela me olha, desconfiada, como
se eu estivesse escondendo o café da manhã por baixo do
suéter, mas me deixa entrar.
Há um homem mais velho sentado em um dos
computadores usando um chapéu fedora e batendo com
tudo no teclado com a ponta de dois dedos. Ele não olha
para mim quando passo, então consigo olhar para a tela de
seu computador. Um site de namoro. Ele está escrevendo
mensagens para uma parceira em potencial. Que legal!,
penso. Seth teria me chamado de enxerida e feito piada
com meu “olho que tudo vê”, como ele costumava dizer.
Tenho de lembrar a mim mesma de que a opinião de Seth já
não importa mais e que, se não fosse meu jeito enxerido, eu
ainda estaria no escuro, casada com um homem que eu
apenas achava que conhecia.
Encontro um computador perto dos fundos e me sento na
cadeira de plástico. Minha boca está seca por causa do café
da lanchonete e da soneca que tirei no carro, e meu cabelo
está oleoso e bagunçado. A bibliotecária deste andar fica
olhando para mim como se eu fosse sair correndo a
qualquer instante com um desses computadores velhos
enfiado debaixo do braço. Impaciente, tamborilo na mesa
enquanto espero a página carregar e olho em volta de
minuto em minuto, como se Seth pudesse chegar e me
pegar aqui. O site finalmente carrega e, com o queixo
apoiado na palma da mão, digito minha primeira pesquisa.
Vim aqui para descobrir três coisas, e os pais de Seth são a
primeira: Mamãe e Papai Poligamia! Digito seus nomes na
barra de pesquisa, os nomes que Regina me deu: Perry e
Phyllis Ellington, junto de assassinato/suicídio. Não há
reportagens e tampouco notícias jornalísticas. A única coisa
que encontro é um obituário com as datas de nascimento e
óbito e Seth Arnold Ellington listado como filho
sobrevivente. De acordo com Seth, havia outros irmãos de
suas outras mães, irmãos muito mais novos que ele, já que
o pai se casou com as outras esposas quando Seth era
adolescente. Acontece que, como Perry e Phyllis viveram
fora dos padrões da sociedade, há poucas informações
sobre como encontrar os meios-irmãos de Seth, que agora
devem estar no início da adolescência. O casamento legal
de Perry era com a mãe de Seth, com quem ele compartilha
o túmulo. As únicas pessoas que sabiam o que aconteceu
de verdade com Perry e Phyllis eram as outras esposas… e
meu marido.
Abandono essa pesquisa e penso no remédio que Regina
mencionou na lanchonete: misoprostol. Um medicamento
usado para dar início ao parto que, uma vez em contato
com mifepristona, é conhecido por ser efetivo em causar
abortos no segundo trimestre da gravidez. Tomado por via
oral, é de uso seguro até o quadragésimo nono dia de
gestação, depois disso, já foi comprovado que traz sérios
riscos para a mãe. Minhas mãos tremem enquanto penso no
dia em que meu bebê morreu. Levo o mouse de um link a
outro. Estou gelada por dentro, como se o calor do meu
corpo tivesse sido extinguido pelas informações na minha
frente. Quando usado mais para a frente na gravidez, é
mais perigoso para a mãe, causando pressão baixa, perda
de consciência e infecções depois da ocorrência do aborto.
Solto o mouse, me reclino na cadeira e cubro os olhos com a
palma das mãos. No dia do meu aborto, Seth parou num
posto de gasolina para comprar comida. Me lembro dos
copos descartáveis com chá que ele trouxe até o carro, de
como fiquei grata por ter um marido tão atencioso. O chá, o
chá que ele disse que a mãe morta havia enviado. Ai, meu
Deus. Se Regina estiver certa, foi Seth quem causou meu
aborto.
A dor que sinto é praticamente insuportável. Na época do
aborto, eu não tinha visto o laudo médico; não quis. Seth
havia sido meu protetor durante aqueles dias; de luto
comigo e me protegendo de coisas que eu não queria ouvir.
Eu não teria conseguido passar por aquilo sozinha. Ele me
dissera que sua decisão de ter uma segunda esposa surgiu
depois que Regina decidiu que não queria ter filhos. Por
que, então, ele daria um fim na vida de seu filho que nem
havia nascido e me colocaria em risco? Nada faz sentido.
Quero puxar meu cabelo e gritar de tanta frustração. Não
haverá respostas até que Seth as dê para mim. Quero ver
meus laudos médicos. Quero ouvir tudo.
Minha última pesquisa é a que mais machuca, motivada
pelas últimas palavras de Regina antes de nos separarmos
do lado de fora da lanchonete:
— Acho que tem alguma coisa errada com ele.
TRINTA E TRÊS
N
ão importa quanto eu tente, não consigo parar de
pensar no que Regina me contou. O cair da ficha é um
processo lento, em banho-maria, mas, uma vez que
acontece, a raiva é fervente e transbordante. Meu marido é
doente — não apenas controlador, mas doente de um jeito
que chega a dar nojo. Por que nunca o pressionei para falar
sobre sua vida em casa? Ele escondia o trauma, se
esquivava das minhas perguntas sobre a infância dele e
redirecionava a conversa para mim. E agora estou morrendo
de medo por Hannah, por seu bebê que ainda não nasceu.
Nem sempre confiei com tanta facilidade nas pessoas,
certo? Houve uma época em que eu não aceitava gente
nova na minha vida, para que ninguém me distraísse de
meus objetivos. O que me atraiu tanto em Seth? Óbvio, ele
era bonito, mas muitos homens são bonitos. E ele flertou
comigo, mas isso também não foi algo inédito. Havia
homens ao meu redor que falavam, ofereciam e suplicavam
por minha atenção. Eu havia recebido essas investidas de
forma educada, mas desinteressada. De vez em quando,
saía para jantar ou beber uma cerveja com eles, ou fazia as
coisas que as garotas da minha idade deviam fazer, mas
nada era bom — não do jeito que eu imaginava que devia
ser. Não até eu conhecer Seth.
Quando tento identificar por que me senti tão atraída por
ele e por suas investidas, sempre chego à seguinte
conclusão: ele demonstrara muito interesse por tudo o que
eu era. Fazia perguntas e parecia fascinado com minhas
respostas. Me lembro do jeito como as sobrancelhas dele se
arqueavam quando eu dizia algo inteligente, do modo suave
e divertido que seus lábios se curvavam enquanto ele me
ouvia falar. Na época, parecera que ele não tinha nenhum
outro motivo, estava apenas atraído por mim como eu
estava por ele: era pura química. Ele havia feito um
questionário da matéria que eu estava estudando naquela
primeira noite na cafeteria e feito perguntas detalhadas do
porquê de eu querer ser enfermeira. Ninguém nunca tinha
me perguntado aquele tipo de coisa, nem meus pais. Mas aí
é que está, não é? Ele tinha bolado um plano com cuidado,
uma estratégia. Uma mulher como eu, distante da família e
comprometida com os estudos, lá no fundo ansiava por uma
conexão. Não acho que eu me importava com quem fosse:
homem, mulher, amigo ou uma tia sumida há muito tempo.
Eu esperava que alguém me notasse. Não sei se estou mais
irritada comigo mesma por ter caído nessa ou por não ter
percebido antes. Mas sei que nós, humanos, desejamos ser
ouvidos; então, quando alguém nos escuta, sentimos uma
conexão. Eu não era diferente de qualquer outra mulher que
se sentiu especial e, com o tempo, foi abandonada pelo
homem por quem abriu mão de tudo. Seth era um
charlatão, um sedutor. Ele usava sua personalidade para
manipular as emoções das mulheres. Quando me contou
sobre Regina, eu já estava apaixonada por ele. Estava
disposta a aceitar qualquer coisa que ele pudesse oferecer
apenas para ser amada por ele. Que vergonha pensar nisso.
Neste momento, Hannah está em algum lugar, comendo
na mão dele, confiando cegamente e sonhando acordada
com a vida que terão quando o filho deles nascer. Se o que
Regina havia sugerido for verdade, Seth está planejando
fazer com ela o que fez conosco.
Me sento num banco aleatório da cidade; há uma fila de
food trucks na minha frente. Um homem com um boné dos
Dodgers está em pé perto de mim, olhando ansioso para o
carrinho de taco do outro lado da rua. Me pergunto por que
ele simplesmente não compra um taco e vai ser feliz.
Começa a garoar, mas não me mexo. Há alguma coisa me
incomodando nessa história, algo que não faz sentido.
Fecho os olhos e tento juntar todas as peças. Regina,
Quinta, Hannah e Seth: o que todas nós temos em comum?
Que papel estamos desempenhando no jogo de Seth?
Algumas pessoas têm momentos de clareza absoluta; meu
momento de lucidez chega como um observador
desleixado. Eu o entretenho apenas por alguns instantes
antes de decidir o que fazer. Me levanto ao mesmo tempo
que o homem com o boné dos Dodgers atravessa a rua
trotando. Em vez de entrar na fila do taco, ele vai em
direção ao food truck de salada. Sorrio para mim mesma;
nós dois tomamos uma decisão.
Faz uma semana que estou em casa. Lar doce lar, que
levei três belas horas para arrumar depois da bagunça que
Seth deixou. Na noite em que voltei, o apartamento estava
um caos, como se Seth tivesse pensado que jogar todos os
travesseiros e as coisas das gavetas no chão lhe traria
respostas sobre meu paradeiro. O lugar estava cheirando a
podre e, quando inspecionei com mais atenção, vi que o lixo
da cozinha estava transbordando e a tampa da lixeira se
encontrava no topo de uma pilha de caixinhas de delivery e
frutas comidas pela metade. Minha casa parecia estranha…
diferente. A primeira coisa que fiz foi procurar no closet pela
9mm que meu pai me deu. Depois, abri todas as janelas e
acendi uma vela por horas até o cheiro sair. Seth havia
encontrado meu celular no elevador; ele estava na bancada
da cozinha com a tela trincada ao lado dos frascos de
remédio que eu havia deixado para trás. Peguei o celular e
o girei nas mãos. Parecia um aviso, do tipo que eu deveria
prestar muita atenção. Eu o deixei lá mesmo e levei os
frascos de comprimido para o banheiro, tirei as tampas,
uma por uma, e despejei todo o conteúdo no vaso. A
torrente de água e o som da bomba se enchendo me
trouxeram satisfação enquanto eu observava minha prisão
desaparecer. Embora ele tenha graciosamente deixado
minha carteira e minhas chaves, meu notebook sumiu.
Chamei um chaveiro e ofereci um dinheiro a mais caso o
serviço fosse feito naquela tarde mesmo e, enquanto
esperava, troquei o código do alarme.
Com as duas trancas da porta da frente trocadas,
caminhei até o centro com minhas chaves novinhas em
folha no bolso para substituir meu celular e meu notebook.
Como eu havia sumido por cinco dias, a semana seguinte
seria cheia de compromissos e ligações. Eu precisava ser
capaz de checar meus e-mails e meu correio de voz. O
aparelhinho descartável que comprei era inútil para
qualquer coisa além de fazer ligações e mandar mensagens
de texto. Enquanto esperava para atravessar a mesma rua
em que havia encontrado Lauren no que parecia uma vida
atrás, observei o rosto das pessoas à minha volta. Quando
saímos da nossa bolha de pensamentos e paramos para
olhar as pessoas, olhar mesmo, o que vemos é
surpreendente. Cada uma delas — dos empresários, com
telefones pressionados na orelha e desviando de poças com
seus mocassins, aos turistas, que paravam nas esquinas
pensando aonde deveriam ir — tem certa vulnerabilidade.
Será que seus pais as amavam? Será que eram amadas por
um homem ou uma mulher? E, caso a pessoa que os
amasse fosse embora, quão intensa seria a dor delas?
Passamos tanto tempo nos ocupando e tentando não ser
solitários, tentando encontrar propósito em carreiras,
amores e filhos, e, a qualquer momento, essas coisas pelas
quais nos esforçamos tanto podem ser tiradas de nós. Me
sinto melhor sabendo que não estou sozinha, que o mundo
inteiro é tão frágil e solitário quanto eu.
Com o miolo da fechadura e o código do alarme alterados
e a arma na mesinha de cabeceira, consigo dormir na
primeira noite. Mas não sem ter pesadelos.
R
egina me envia um endereço que fica em Pearl District,
e coloco as informações no celular enquanto aguardo
um semáforo abrir para poder pegar a rodovia 5.
Consigo sentir o coração batendo, parece que está preso na
garganta. Tento reprimir o pânico que cresce em meu peito.
Preciso correr. Tenho de ajudar Hannah. Só estive em Pearl
District de passagem, quando dirigi pelo que, certa vez, fora
um distrito repleto de armazéns, mas que hoje é conhecido
por suas galerias de arte e casas chiques. Seth e eu já
almoçamos lá em um restaurante perto do rio Willamette;
sugamos ostras de suas conchas e andamos de mãos dadas
de volta para o carro. Foi um dia perfeito. Não muito tempo
depois, eu havia descoberto que estava grávida e cheguei a
pensar se o bebê tinha sido concebido naquela noite
debaixo dos lençóis limpos do hotel.
Com a voz calma, apesar da loucura que sinto por dentro,
faço algumas ligações necessárias enquanto dirijo. Eu havia
tentado ligar para Regina depois de receber sua mensagem,
mas a ligação fora direto para a caixa postal. Ela vai estar
lá, digo a mim mesma. Estamos trabalhando como um time.
Há um pensamento à espreita no fundo da minha mente,
mas o afasto. Ela é tudo o que tenho, e preciso confiar nela.
Estou ansiosa durante o trajeto e fico me inclinando para a
frente e falando com os carros que entram no meu caminho.
Será que Hannah está bem ou Seth a está mantendo em
cativeiro? Será que ela vai ficar aliviada ao me ver ou vai
fingir que não sabe quem eu sou?
É tudo tão inquietante, o tipo de pensamento que faz com
que eu questione minha sanidade. Certamente já fiz muito
disso nas últimas semanas. Quase bato em um caminhão
quando piso no acelerador e o carro se lança para a frente.
Fico na cola dele até o motorista sair da faixa rápida. Ele me
mostra o dedo do meio e grita alguma coisa quando o
ultrapasso. Eu o ignoro, sigo até o próximo carro e quase
bato de novo. Continuo assim por vários quilômetros até ver
luzes vermelhas e azuis no retrovisor. Ouço o breve som
estridente da sirene atrás de mim e sou forçada a
atravessar duas pistas para chegar ao acostamento. Com o
estômago embrulhado, espero o policial caminhar até a
minha janela.
— Senhora, carteira de motorista e documento do
veículo, por favor.
Sem problema. Passo tudo pela janela e desejo que ele
me olhe nos olhos. Ele o faz, mas não consigo enxergar seus
olhos, que estão escondidos atrás de óculos espelhados —
do tipo que policiais usam em filmes. Ele desaparece de
volta à viatura com meus documentos nas mãos. Depois de
alguns minutos, volta.
— Você sabe por que parei a senhora?
— Eu estava correndo — digo, sem hesitar.
Seu rosto não entrega nada; frígido e parecendo esperar
por alguma coisa, ele me encara por trás dos óculos.
— Estou atrasada. A culpa é minha, e tenho certeza de
que mereço uma multa.
Nada ainda. Tamborilo sobre o volante e desejo que ele se
apresse e resolva tudo de uma vez. Ele me entrega os
documentos.
— Vê se toma mais cuidado na próxima.
Só isso? Olho para seu distintivo: policial Morales.
— Hum… obrigada — digo.
— Está tudo certo — diz ele. — Tenha um bom dia.
Com o coração ainda a mil por hora, levo dez minutos
para voltar à rodovia. Quando pego o embalo, quase me
sinto bem — melhor que antes. Dou uma aliviada no
acelerador e sigo atrás da carroceria de um caminhão sem
carga, prestando atenção ao limite de velocidade dessa vez.
S
eth marcha até onde estou e agarra meu braço antes
que eu consiga me mover. A surpresa que estava
estampada em seu rosto há um instante sumiu e foi
substituída por outra coisa. Tenho medo de parecer muito
nervosa, então mantenho os olhos em Hannah conforme ele
me guia até o sofá. Ele me empurra para baixo, e meus
joelhos cedem quando caio na namoradeira. É macia, as
almofadas são largas e fofas, e me afundo nelas. Quando
me dou conta, estou tendo dificuldade para me sentar
direito e me sentindo atrapalhada e idiota. Desajeitada, luto
contra meu corpo até ficar na borda e com os joelhos juntos,
pronta para me levantar novamente em um segundo.
Hannah não olha para mim. Em pé ao lado de Seth, ela só
olha para baixo. O que será que ele contou a ela? Quem
será que ela acha que eu sou?
— Como você achou a gente? — pergunta ele.
Mantenho a boca fechadíssima. Não vou contar que
Regina me ajudou.
— Quinta — diz Seth, dando um passo em minha direção.
Me encolho e sinto vergonha na mesma hora. É claro que
ele não faria nada comigo na frente de Hannah.
— Vou chamar a polícia — diz ele, e saca o celular do
bolso. — Você está stalkeando a gente. É um perigo para si
mesma e para Hannah.
Minha boca abre e fecha em protesto, mas estou chocada
demais para dizer qualquer coisa. Stalkeando? Como ele
consegue fingir que eu sou um perigo para Hannah quando
é ele que está batendo nela?
— Você foi longe demais — continua ele. — Acabou. Essa
história já deu faz tempo. — Seth põe o braço no ombro de
Hannah. É impressão minha ou ela está tensa? — Já contei
tudo para Hannah. Ela sabe da gente.
Sabe da gente? Sabe o quê? Sinto uma onda de dor na
testa, estreito os olhos e pisco para mandá-la embora.
Não olho para Seth, finjo que ele nem está aqui; olho para
Hannah, apenas para ela, a jovem cuja vida ele vai arruinar.
Ela parece tão pequena, tão mais nova que Seth; seu braço
em volta dela parece quase paternal.
— Hannah — digo gentilmente. — O que Seth te contou
sobre mim?
Ela vira a cabeça, me olha nos olhos e Seth enrijece. Ela
olha para Seth, que me observa com cara de ódio.
— Contei a verdade a ela — diz ele. — Acabou, Quinta.
— Não perguntei para você, perguntei para Hannah. —
Olho para ela. — Quando fui à sua casa, você fingiu que não
me conhecia…
Ela morde o lábio inferior e hesita por um instante.
— Você sabia quem eu era — diz ela. — Você foi até
nossa casa e fingiu ser outra pessoa. Estava stalkeando a
gente… — Sua voz vai ficando mais alta.
Preciso que ela fique calma e seja racional. Que me
escute de verdade. Assinto.
— Você está certa. Fui mesmo até sua casa. Eu estava
curiosa para saber quem você era. Eu sabia que Seth tinha
relacionamentos com mais duas mulheres fora do nosso
casamento e quis… te ver.
Ela move a cabeça como se eu tivesse lhe dado um tapa.
— Do que você está falando? — Ela olha para Seth e
depois para mim de novo.
— Seth e eu ainda somos casados — digo.
— Você está louca. — A voz dela treme.
Encaro Seth com olhos tão arregalados que parece que
eles vão saltar para fora.
— Foi isso que você contou pra ela? — pergunto. — Ela
nunca soube de nada do casamento plural. Então essa
história era só pra mim?
A mandíbula de Seth tensiona. Pelo olhar que ele dirige a
mim, consigo perceber que estou certa.
— A gente estava morando juntos como marido e mulher,
em todos os sentidos — digo e me viro para Hannah.
Hannah começa a chorar. Seth tenta tocá-la, mas ela o
afasta, e seus soluços ecoam pelo apartamento.
— Olha só o que você fez — diz ela a ele. — Olha o que
você trouxe pra nossa vida.
Olho para ele pela primeira vez. Sua boca se abre e
fecha. Trouxe pra nossa vida? Foi eu que tive minha vida
invadida por Hannah. Eu cheguei primeiro.
Fico em choque por um minuto. Imagino-o como meu
marido, e não como esse monstro. O homem que amei, que
me beijava com ternura e fazia massagem no meu pescoço
depois de um longo dia de trabalho. Eu fazia comida, e ele
me parabenizava pelas habilidades na cozinha; quando algo
quebrava no apartamento, ele pegava a caixa de
ferramentas e consertava enquanto eu ficava do seu lado,
orgulhosa com o quanto ele era bom em tudo. A mágoa me
invade, então desaparece e é substituída por raiva. Como
ele ousa? Como ele ousa me amar uma hora e, na outra, me
descartar?
Seth não está prestando atenção em mim. Está focado
em Hannah.
— Ela não está bem — diz ele. — Acabou de sair do
hospício. Desculpa, Hannah. Eu amo você, só você.
— Não estou bem? — respondo. — Fui internada porque
você me colocou lá, porque ficou com medo do que eu
poderia dizer a seu respeito. — Volto a direcionar meu foco
para sua namorada, que está tremendo. — Ele era bom pra
mim, pelo menos era o que eu pensava. E eu acreditava em
tudo o que ele me dizia. Quando perdi o bebê, me tornei
uma inútil pra ele. É esse o tipo de homem com quem você
quer ficar, Hannah? Um cara que mente, que te bate, que
vai atrás de outras mulheres pra satisfazer suas
necessidades doentes e insaciáveis? Não era só eu — digo.
— Ele está com Regina também.
— Foi pra isso que você veio? — sibila Seth. — Para me
acusar de bater na mulher que eu amo? Ficou louca, foi?
Você que é violenta. Me atacou quando tentei terminar. A
gente teve que se mudar pra se livrar de você.
— Tinha hematomas nos braços dela — grito. — Eu vi!
— Eu te contei como eu tinha me machucado —
interrompe Hannah. — Eu fico roxa fácil.
Balanço a cabeça.
— Seu olho… Você estava com o olho roxo naquele dia…
Confusa, ela olha para Seth, e, por um instante, penso
que consegui, que ela vai admitir o que aconteceu. Mas
então diz algo que me deixa em choque.
— A gente estava transando quando aconteceu. Não quis
te contar na época. A gente tinha acabado de se conhecer e
fiquei com vergonha. Seth me deu uma cotovelada no olho
sem querer.
Olho para ela sem conseguir acreditar. Para que
continuar?
— Ele me empurrou uma vez, durante uma briga. Bati a
orelha. Talvez ele não tenha te batido diretamente, mas…
— Quinta, foi você que me atacou e começou a bater no
meu peito. Eu tentei te segurar… você caiu…
A voz de Seth está exasperada, e há um vinco profundo
entre suas sobrancelhas. Que ator! Hannah alterna o olhar
entre mim e ele como se não soubesse em quem acreditar.
Me agarro a isso, sabendo que fazê-la acreditar em mim é a
única forma de conseguir afastá-la dele.
— Não, não é disso que eu me lembro.
Ele dá uma risada sarcástica.
— Pelo visto tem muita coisa de que você não se lembra
— diz ele, entre os dentes.
— Por que sua casa está no meu nome? — pergunto. Me
viro para Hannah. — A casa que você mora pertence a mim.
Hannah vira o rosto, mas Seth arregala os olhos.
— Porque a casa é sua, Quinta. Sua avó deixou pra você.
— Não! — grito. Mas, em algum lugar, lá no fundo da
minha mente, sei que é verdade. Eu já tinha comprado o
apartamento quando minha avó faleceu e havia oferecido a
casa para Seth ficar durante suas viagens de Portland a
Seattle. Ele disse que faria as reformas que eu queria de
graça, em troca de ficar lá quando estivesse em Portland.
Um choro escapa da minha garganta. Levo a mão até o
pescoço. Minha respiração fica entrecortada. Como pude
não saber que a casa era minha — da minha avó? Hannah
me dera um tour, e eu a seguira pela propriedade como se
fosse uma estranha.
— Seu gerente de propriedades colocou a casa para
alugar — diz ele.
Odeio o jeito como ele olha para mim: com pena e nojo.
— Você está louca — diz ele. Há desdém em seu aceno de
cabeça. Ele está feliz por ter dado um fim a mim; me vê
como algo para se jogar fora, sempre foi assim.
— Não estou, não. — Estou tremendo tanto que consigo
ouvir meus dentes baterem.
Ele ri enquanto olho para ele.
— É claro que está. Você sempre foi louca. Era obcecada
pela minha ex-mulher do mesmo jeito que é obcecada por
Hannah. A gente foi um erro, Quinta, e ponto final. Eu
gostava de te comer, ouviu bem? Você era só isso pra mim.
Ele se vira para Hannah justo quando me agarro ao sofá
com uma das mãos. A dor é assustadora; consigo senti-la
nos dedos dos pés… no peito… nos olhos.
— Amor — diz ele a ela. — Eu errei. Por favor…
— Por que você nunca me contou que a casa era dela? —
Hannah está andando para trás lentamente e meneando a
cabeça.
— Eu ia contar… depois que eu terminasse com Quinta.
Eu não queria te chatear. O bebê… Por favor, Hannah, foi
tudo
um erro. Me desculpa. — Ele foi pego em outra mentira. Dou
um passo cheio de esperança em direção a Hannah, e Seth
grita comigo. — E você não chegue perto dela!
— Como assim, um erro? — grito. — A sua esposa sou eu!
O ambiente fica em silêncio enquanto tanto Seth quanto
Hannah olham para mim, horrorizados.
— Não, Quinta — ouço alguém dizer atrás de mim. —
Você é a amante dele.
Congelo e fico apreensiva. Me viro e vejo Regina parada à
porta do apartamento, olhando em volta, meio desconfiada,
com uma bolsa pendurada no ombro. Nossos olhares se
encontram por um instante antes de ela localizar Hannah
chorando perto da cozinha. Ela entra.
— Você era a amante e ofereceu sua casa para ele morar
com a nova esposa.
— É mentira. — Mas é verdade. Agora me lembro.
Quando Seth se casou com Hannah, meus locatários tinham
acabado de deixar o imóvel; a casa estava disponível. Eu a
ofereci para eles. Pensei que isso me traria a aprovação de
Seth; eu seria a esposa generosa e desapegada. Com os
olhos cheios de lágrimas, encaro Regina.
— Foi por sua causa que nosso casamento acabou — diz
ela. — Você tinha um caso com Seth.
Ouço um apito. Sinto a ponta dos dedos formigar.
— Regina me contou tudo, Quinta — diz Seth. — Que
você foi até o escritório dela fingindo ser outra pessoa, além
de invadir a casa dela. Suas teorias doidas de que fui eu
que causei seu aborto e sua insistência em falar que meus
pais estão vivos…
— Foi você que me contou que eles estavam vivos! Eles
não foram ao nosso casamento, você disse que era porque
seu pai estava no hospital…
— Não — diz ele, balançando a cabeça lentamente. —
Esse foi o motivo para eles não terem ido ao meu
casamento com Regina. Te contei essa história.
— Não.
— Foi, sim, Quinta. Pelo amor de Deus, pelo amor de
Deus… — diz ele.
Quando Regina olha para mim, não há nada no rosto
dela; está isento de qualquer expressão. Eu a olho, e ela me
olha de volta.
— Por que você está fazendo isso? — pergunto.
— Está todo mundo bem? — pergunta ela, olhando para
Seth e Hannah.
— Regina… — começo.
Ela me interrompe.
— Ela deixou uma mensagem no meu celular. Falou que
estava vindo para cá. Sei lá… Fiquei preocupada.
Sinto um calafrio percorrer meu corpo; o arrepio começa
na nuca e passa pelo meu corpo como uma mão invisível.
Tento chamar a atenção dela. O que ela está fazendo? Ela,
com certeza, veio aqui me apoiar. Quero perguntar o que
está acontecendo, o porquê de ela não olhar para mim, mas
minha língua está colada no céu da boca e meu coração
palpita.
— Chamei a polícia — diz ela a mim. — Falei que você
estava vindo aqui com a intenção de machucar Seth ou
Hannah, que você tinha ameaçado fazer isso.
Meu corpo inteiro treme agora. É uma armadilha, foi tudo
uma armadilha. Quando ela me contou que havia
descoberto onde Hannah estava, eu estava preocupada
demais com outras coisas para perguntar como ela tinha
feito isso. Ela sempre soube onde eles estavam, e eu caí na
lábia dela.
Olho para Hannah, que chora copiosamente. Penso no
apartamento encardido de Regina, em suas mágoas, nas
coisas que ela me contou sobre Seth. Ela quer que eu fique
parecendo uma louca.
— Sua vagabunda do caralho — digo e vou em sua
direção. Não sei o que pretendo fazer, mas, quando dou por
mim, ela está na minha frente e minhas mãos estão em
volta de seu pescoço. Foi um erro; Seth chega em um
instante, agarra meus pulsos e me afasta. Luto com ele,
chuto e sinto meu pé atingir seu joelho. Ele geme de dor, cai
em minha direção e me empurra para o chão. Tento pegar a
arma, que enfiei no cós da calça por via das dúvidas.
Consigo tocar o metal gelado com os dedos, mas minha
mão está presa; o peso de Seth aprisiona meu tronco. Ouço
Hannah berrar e Regina gritar meu nome. Não posso deixá-
lo machucar o bebê de Hannah. Consigo pegar a arma e a
puxo de dentro da calça jeans. Meu dedo encontra o gatilho.
Quando o joelho de Seth me atinge em cheio na barriga, eu
atiro. Ouço um grande estrondo, e então o grito de Regina,
mandando Hannah ligar para a emergência. O ar escapa de
mim na mesma hora em que sinto o sangue nas mãos. Seth
desaba em cima de mim, e a arma fica presa entre nós. Seu
sangue forma uma poça quente na minha barriga. Mal
consigo respirar. E é durante essa perda de fôlego que me
lembro. Seth se aproximando de mim na cafeteria, me
contando que era casado, como fiquei com raiva
primeiramente, depois nosso caso, minha gravidez… e a
esposa, Regina, pedindo o divórcio. Me lembro de achar que
ele se casaria comigo agora que Regina tinha saído de cena,
que seríamos uma família. Mas aí eu perdi o bebê… Ai, meu
Deus, ai, meu Deus. Me lembro de acordar no hospital e
ouvir do médico que eu nunca mais seria capaz de ter um
filho. Da expressão no rosto de Seth…
Ele então havia me largado. Pela Hannah. Uma puta que
ele conheceu, jovem e fértil para poder ter seus filhos. Os
dois eram de Utah; ela era dez anos mais nova que ele. Mas
eu havia implorado a ele que voltasse para mim; tinha dito
que não ligaria se ele se casasse com Hannah, que ainda o
queria. E assim começou nosso segundo caso.
TRINTA E SEIS
D
essa vez é diferente; estou mais tranquila, menos
ansiosa. A equipe me conhece pelo nome, e não me
sinto mais como uma vítima anônima. O dr. Steinbridge
me vê três vezes por semana. Ele diz que estamos
progredindo.
Fico vagando pelos corredores longos e com cheiro de
mofo, pensando nas escolhas que fiz e divagando acerca de
minhas fraquezas. Há tantos momentos em minha vida que
eu deveria ter vivido de forma lúcida, mas, em vez disso,
estava em um transe emocional e sonolento. Deixei certas
coisas acontecerem comigo.
Vou a todas as aulas e frequento todos os grupos: minha
favorita é a de ioga holística, quando todos nos reunimos
em uma sala sem janelas e nos sentamos em tapetes roxos
para respirar fundo e esvaziar nossa mente de problemas. E
são tantos problemas que temos, tantos transtornos. Lauren
traz minha janta dos meus restaurantes favoritos duas
vezes por semana, e minha mãe vem me visitar, com uma
expressão de culpa no rosto e trazendo um pote de plástico
enorme cheio
de biscoitos caseiros.
— Tem pra todo mundo — diz ela.
Nunca perguntei o que ela acha da situação com Seth, ou
se tem falado com ele. Acho que não quero saber. Certa
vez, quando mencionei o nome dele, uma expressão
amarga apareceu no rosto dela antes de ser rapidamente
substituída por um de seus sorrisos que eu chamo de “Está
tudo certo!”
Anna viajou de avião duas vezes para me ver. A primeira
vez que veio, ela marchou hospital adentro com a língua
afiada para falar poucas e boas sobre Seth em alto e bom
som para quem quisesse ouvir. É uma querida. Meu pai não
veio. Nem espero que venha. Sou sua filha que deu errado,
uma vergonha. Menti para meus pais sobre Seth, e agora
eles sabem a verdade: sou a amante, indigna de ir para o
altar.
Durante minha última semana no Queen County, me
sento sozinha durante o jantar perto da janela enquanto o
escondidinho de carne moída congela na minha frente. Tem
gelatina também, claro — sempre tem gelatina. A água aqui
tem um gosto sujo e metálico, mas bebo devagar e observo
o pátio de grama lá embaixo. Minha respiração embaça o
vidro da janela, e passo a exalar com mais intensidade só
para observar o padrão de condensação se expandir e se
retrair, expandir e retrair.
A terapia tem sido um alívio, de verdade. Tem até me
ajudado. Depois que a polícia chegou à casa temporária de
Hannah e Seth e o encontrou sangrando em cima de mim,
fui levada ao hospital. Passei três dias lá me recuperando de
ferimentos leves antes de ser transferida para a prisão,
onde esperaria minha acusação.
Regina tinha armado para mim, é óbvio. Me fez acreditar
naquela história e acusar Seth de causar nossos abortos.
Mas isso acabou ajudando no meu caso. Meu advogado me
tirou de lá alegando insanidade e fui mandada de volta ao
Queen County, dessa vez para uma estada bem mais longa.
Sendo bem sincera, fiquei aliviada. Tive medo de que
fossem me mandar para um lugar desconhecido.
Durante meu primeiro encontro com o dr. Steinbridge, um
dia depois da minha chegada, ele me contou que eu havia
passado um tempo considerável perseguindo Seth e sua
nova esposa. Ele também disse que a ex-mulher de Seth,
Regina, tinha corroborado a história e dito que eu havia ido
ao escritório e à casa dela, entrado à força e exigido
informações a respeito dos dois. Regina divulgou a
mensagem de voz que deixei antes de entrar correndo no
apartamento de Seth e Hannah. Eu estava sentada em uma
poltrona de couro na frente dele quando o médico
reproduziu o áudio para mim. Com o corpo tenso de
ansiedade, não mexi um músculo sequer enquanto ouvia.
Eu soava louca até mesmo para mim. Foi então que o dr.
Steinbridge pausou a mensagem e esperou que eu negasse
ou assumisse as acusações. Não fiz nenhuma das duas
coisas. Não tinha por que negar a perseguição — era
verdade, independentemente de Regina ter me manipulado.
Fiquei sentada em silêncio, ouvindo o médico e sentindo as
desculpas morrerem em minha língua.
— Você não é a única culpada pelo que aconteceu —
disse o dr. Steinbridge para mim. — Seth é um indivíduo
problemático. A forma como foi criado, os maus-tratos que
afirma ter sofrido. Ele traiu as duas esposas e te manipulou
emocionalmente. Ele te usou e abusou do seu estado de
negação. Mas não estamos aqui para lidar com os
problemas de Seth, e sim para lidar com os seus. Quando
você percebeu o que estava acontecendo no seu
relacionamento, sua mente criou uma realidade alternativa
para digerir tanto seu filho natimorto quanto o fato de Seth
estar seguindo em frente com outra pessoa.
— Mas ele nunca tentou terminar comigo — falei.
Foi então que o bom doutor exibiu meia dúzia de e-mails
entre mim e Seth, todos tirados diretamente da minha
conta. Ele me permitiu lê-los. Seth, sempre agindo de
acordo com a lógica, implorava para que eu aceitasse o fato
de que havíamos terminado e dizia que se sentia mal por
ter traído Hannah. Eu não tinha a menor recordação de ler
aqueles e-mails nem de respondê-los. O dr. Steinbridge
disse que, desesperada para fingir que nada daquilo estava
acontecendo, eu os apaguei da memória.
— A polícia também encontrou a conta que você criou
com o nome Will Moffit, aquela que você usou para entrar
em contato com Regina…
— Sim, mas só fiz isso porque pensei que ela estava
traindo ele…
Ele me olhara com empatia.
— E os pais de Seth? Eles me mandavam cartões… Ainda
os tenho.
— Esses cartões estavam no dia do seu julgamento. Seu
advogado os apresentou ao juiz como prova quando você se
declarou culpada por insanidade. Foi você que os escreveu.
Convocaram um grafologista para provar.
Me veio à mente uma imagem de mim mesma na fila do
mercado, colocando uma pilha de cartões na esteira do
caixa. Eu chorara e secara as lágrimas com as mãos.
— Estão aqui, Quinta, bem na sua frente — dissera ele,
batucando com um dedo nos papéis. Seus dedos eram bem
encurvados, como galhos de árvores nodosos. Eu os
observei cutucar as folhas impressas com fascinação. —
Você e Seth nunca se casaram. Ele teve um caso com você
enquanto era casado com a primeira esposa, Regina. E
Regina o deixou quando descobriu que ele te engravidou. —
O médico fizera uma pausa para que eu absorvesse a
informação. — Mas você perdeu o bebê, e isso fez com que
entrasse em um episódio psicótico.
Seth não havia causado nossos abortos, mas Regina me
fez acreditar que sim. Por quê? Regina perdera um bebê —
tudo isso veio à tona no julgamento —, mas em um período
bem anterior ao meu, com oito semanas. Ela testemunhara
que pegou Seth adulterando seus anticoncepcionais.
Naquele instante, em que Regina se sentava de frente para
mim no tribunal, eu me lembrava de sua confissão naquele
dia, na lanchonete. Do momento em que eu vira seu rosto
empalidecer.
Depois que defini Seth como o inimigo na minha cabeça,
foi muito fácil acreditar na mentira que Regina me contou.
Em um dia, meu bebê estava saudável, se mexendo e
chutando, e então simplesmente parou. Não foi encontrada
nenhuma razão médica. Às vezes, essas coisas
simplesmente acontecem, bebês param de viver.
— Dr. Steinbridge — falei, durante uma sessão. — Não é
engraçado que Seth não tenha mencionado nada disso
quando estive aqui da última vez?
— Ele nunca afirmou ser seu marido, Quinta. Você veio
para cá na última vez porque Seth tentou terminar com
você. Ele admitiu isso quando conversamos em particular,
que era casado com outra pessoa e você era a amante dele.
A esposa de Seth, Hannah, descobriu quem você era na
última noite em que você a viu. Lembra?
Me lembro de estar jantando com ela, de ir ao banheiro e
não a encontrar mais quando voltei. Conto isso ao médico.
— Seth descobriu onde você estava e mandou uma
mensagem para ela. Ele a mandou sair de lá
imediatamente.
— Mas, quando voltei para meu apartamento, ele estava
lá. Com a mão machucada…
— Pois é! Ele alega que deu um soco na parede quando
descobriu que você estava perseguindo a esposa dele. Você
o atacou quando ele disse que estava tudo acabado entre
vocês. Acredito que ele tenha se sentido obrigado a vir te
visitar aqui depois daquilo.
— Mas ele veio me buscar e me levou embora.
— Não — diz o médico. — Foi seu pai que te buscou e te
levou pra casa.
Dou uma risada.
— Você está de brincadeira, né? Meu pai me visitou uma
vez só, e foi depois que saí daqui. Ele não liga pra mim.
— Quinta — diz o dr. Steinbridge. — Eu estava lá. Seu pai
veio, trouxe algumas roupas e ficou com você por uma
semana até você colocar um remédio para dormir na
comida dele e fugir para Portland.
— Não — digo. Meus braços e pernas parecem estranhos,
como se não fizessem parte de mim. O médico entendeu
tudo errado, ou então está mentindo. Talvez Seth o tenha
convencido, pagado para que ficasse quieto…
— Você estava dopada de medicação e ainda delirando.
Quero rir. Eles acham que sou louca a ponto de confundir
meu pai com Seth?
Me levanto de repente, com um movimento tão brusco
que a poltrona cai para trás e bate no chão. Fazendo um
som metálico. Com as mãos calmamente dobradas na
mesa, o dr. Steinbridge olha para mim de onde está
sentado. Seus olhos, na sombra das sobrancelhas que
parecem lagartas, parecem tristes. A sensação é de que
estou evaporando, sendo lentamente sugada em direção ao
esquecimento.
— Fecha os olhos, Quinta. Veja as coisas como elas
realmente aconteceram.
Não preciso, não tenho de fechar meus olhos — porque
tudo se desenrola como um carretel em minha mente.
Visualizo aqueles dias no apartamento, só que, dessa vez,
vejo do jeito certo: meu pai pairando por lá e me dando
comprimidos, lendo thrillers da minha estante, assistindo a
Friends comigo no sofá.
— Não — repito, com os olhos cheios de lágrimas.
Seth não havia vindo me buscar porque tinha dado um
fim ao nosso caso e voltado para a esposa. Seth me
abandonara pela segunda vez. Não fui suficiente, não fui
suficiente. Eu merecia ficar sozinha. Meu pranto é como
uma sirene, alto e estridente. Enterro as unhas em meu
rosto, em meus braços, em tudo o que consigo alcançar.
Quero arrancar toda a minha pele, esfolá-la até que não
haja nada além de músculo e sangue, até que eu me torne
apenas uma coisa, e não um ser humano. Sinto um calor na
ponta dos dedos quando eles entram e me agarram; meu
sangue deixa manchas em seus uniformes.
No meu primeiro ano como enfermeira, um homem deu
entrada na emergência duas semanas antes do Natal com
traumatismo craniano. Ele se chamava Robbie Clemmins, e
eu jurei que nunca esqueceria seu nome de tão trágico que
o acidente fora. Um carpinteiro que, nas horas vagas,
trabalhava voluntariamente em um asilo. Ele estava
pendurando luzes de Natal na parte externa do edifício
quando caíra de costas do segundo andar e batera com a
cabeça na calçada. Quando alguém o encontrou, ele estava
consciente, deitado de barriga para cima e falando com a
voz normal e calma. Estava recitando uma lição que
apresentara na quinta série sobre o jeito certo de escalpar
um esquilo. Quando foi trazido para a emergência, ele
chorava e murmurava algo a respeito da esposa, mas o
sujeito não era casado. Eu me lembro de ver a cavidade em
sua cabeça e sentir ânsia de vômito, e, depois, vendo o
exame de raios x, o crânio parecia um ovo quebrado. O
impacto havia atingido o cérebro; pedaços do crânio
entraram no tecido cerebral e tiveram de ser removidos
durante uma cirurgia que durou oito horas. Apesar de
termos salvado sua vida, não fomos capazes de salvar
quem ele era antes do acidente. Me lembro de ter pensado
em como nós, humanos, éramos seres frágeis, almas
cobertas de carne macia e ossos delicados; um passo
errado, e nos tornávamos alguém completamente diferente.
Tradicionalmente falando, meu cérebro está intacto. Não
caí de um telhado, embora pareça que caí de certa altura da
realidade. O dr. Steinbridge me diagnosticou com uma lista
de coisas que tenho vergonha de repetir. Em resumo, meu
cérebro não é saudável. Costumo me sentar no quarto e
imaginar meu cérebro inflamado e derretendo com os
inúmeros diagnósticos. Há dias em que a vontade é de abrir
minha cabeça e remover meu cérebro, e, quando me dou
conta, estou fantasiando com diferentes maneiras de fazer
isso. Quero melhorar, mas tem vezes que nem consigo
lembrar o que há de errado comigo. Certa tarde, estou em
meu quarto e, quando ergo os olhos, vejo o dr. Steinbridge
parado na soleira da porta. A expressão séria em seu rosto
indica que ele tem notícias.
— Regina Coele solicitou uma visita com você — conta. —
Você não precisa vê-la se não quiser.
Fico tocada; seu envolvimento no meu caso se tornou
muito mais sensível do que quando vim para cá da última
vez.
— Quero falar com ela — digo. E é verdade. Espero por
isso já faz um ano, fiquei perambulando pelos dias até ter a
chance de poder ficar cara a cara com as respostas que a
primeira esposa de Seth tem.
— Vou mandar o formulário de aprovação. Acho que isso
pode te ajudar de verdade, Quinta. A esclarecer as coisas e
seguir em frente.
Duas semanas se passam até a enfermeira anunciar que
Regina veio me ver. Meu coração acelera enquanto, de calça
de moletom, regata e com o cabelo em um coque
bagunçado no topo da cabeça, caminho até a sala de
recreação. Quando me olhei no espelho antes de sair do
quarto, eu parecia relaxada… Bonita até, eu diria.
Regina está elegante, com camisa e calça sociais e o
cabelo preso em um coque chignon que deixa seu rosto
livre. Vou até onde ela se sentou e sorrio para algumas
enfermeiras quando passam por mim.
— Oi, Quinta.
Ela me olha de cima a baixo e se surpreende. Esperava
que eu estivesse um caco. Mas não estou. Faço ioga todo
dia e como frutas e legumes, ando até dormindo bem. Meu
corpo está saudável, por mais que minha mente não esteja.
Eu me sento na cadeira em frente a ela e ofereço um
sorriso. Imagino que seja um sorriso pacífico porque não
estou mais me remexendo para um lado e para o outro por
causa da apreensão.
— Oi — digo.
Tenho pensado em Regina praticamente todo dia desde
que voltei ao Queen County. Não são pensamentos raivosos
ou cruéis; estão mais para uma curiosidade distante. A essa
altura, estou medicada demais para sentir raiva.
Ela me observa, e suas narinas inflam. Uma esperando
cautelosamente que a outra fale primeiro.
— Como você está? — Palavras para quebrar o gelo!
Desvio.
— Por que você veio aqui?
— Não sei, na verdade — diz ela. — Acho que queria ver
como você estava.
— Para que você se sentisse melhor ou pior?
Sua pele pálida arde, e manchas vermelhas como
morango aparecem em suas bochechas e em seu queixo. O
joguinho de Regina custou caro; o objetivo talvez tenha sido
me punir, mas Seth e Hannah vão pagar por isso até o fim
de suas vidas.
— Acho que os dois. Nunca quis que as coisas acabassem
assim…
— Então por que você fez o que fez?
— Você acabou com a minha vida. Queria que pagasse
por isso.
Fico sem reação enquanto minha cabeça está a mil. Meus
pensamentos se desfazem em um lamaçal de remorso e
culpa. Eu não sabia que estava acabando com a vida dela,
sabia? A realidade que inventei pode até ter acabado com a
vida de todo mundo, mas Regina não era tão inocente
quanto Hannah. Ela usou minha fraqueza contra mim;
armou para mim.
— Bem, você conseguiu o que queria, não conseguiu?
— Consegui — responde ela, por fim. — Acho que
consegui.
Eu estava tão sedenta para culpar alguém pela morte do
meu bebê que nem questionei a história de Regina, e ela,
por sua vez, estava tão sedenta para me punir que nunca
imaginou as consequências que suas ações trariam.
— Eu sabia que você tinha problemas psicológicos, mas
não fazia ideia das histórias que você inventou sobre a
poligamia.
Envergonhada, desvio o olhar. A vergonha é uma
ferramenta poderosa para te levar a cair na realidade. O dr.
Steinbridge disse que foi a vergonha que me fez criar uma
realidade alternativa. Eu era boa o suficiente para transar
com Seth e ser sua amante nos dois casamentos, mas não
era boa o suficiente para ser amada.
O médico está me ensinando a lidar com minha
vergonha.
— Tome decisões com as quais consiga conviver… — diz
ele a mim.
— Queria que você parecesse louca. Não sabia que você
era louca de verdade.
Fico irritada.
— E você acha que não é louca? — pergunto, revidando.
— Você acha normal o que fez? Posso até ser eu quem está
aqui, mas pelo menos consigo admitir o que fiz. Você me
disse que sentia medo dele para que eu acreditasse mais
ainda que ele batia em Hannah. Você me fez acreditar que
ele tinha causado seu aborto e o meu. Tudo para me fazer ir
até lá naquela noite.
Afinando os lábios em negação, ela me encara. É óbvio
que não quer pensar que o que ela fez foi tão ruim quanto o
que eu fiz. Eu não queria me enxergar como a outra mulher;
a negação é perversa, subversiva e acaba com a nossa
alma.
— Foi você que levou a arma. Você que atirou em Seth —
sibila ela. — Eu queria te punir por ter acabado com a minha
vida, não queria que Seth se machucasse.
Sinto raiva do nojo que ouço no tom de Regina. Fecho os
olhos e tento não me irritar. Ouço as palavras do dr.
Steinbridge: “Somos responsáveis apenas por nós mesmos.”
— Levei. Mas você podia ter me ajudado e, em vez disso,
escolheu me usar. Você me deu o delírio de bandeja.
O rosto de Regina é uma máscara de hipocrisia. Estou
fervendo de raiva por dentro e sinto a ponta dos dedos
formigar. Seth e Hannah não mereciam o que aconteceu.
Seth era um adúltero; tivera um caso comigo quando estava
casado com Regina e, depois, quando não consegui lhe dar
um filho, ele procurou e encontrou outra pessoa: Hannah.
Mas ele continuou o caso comigo mesmo depois de ter se
casado com Hannah. A rejeição me fizera perder o senso de
realidade. Seth nunca mais vai andar; a bala atravessou sua
coluna. Ele nunca vai correr atrás da filha no parque, nunca
subirá no altar com ela… e a culpa é minha. A dor de cair na
realidade me embrulha o estômago.
— Você mentiu quando disse que Seth era violento? Você
me contou que ele te jogou na parede…
— Não, isso não era mentira — diz ela. — Seth é
estressado.
Sinto a orelha arder; sempre arde quando penso em Seth.
Penso em Hannah e em seus hematomas e, mais uma vez,
me pergunto se ela estava mentindo para protegê-lo. Acho
que nunca vou saber a verdade. É um tanto reconfortante
saber que ele está em uma cadeira de rodas. Nunca mais
vai conseguir bater em uma mulher, e seus dias de traição
acabaram.
— Fico feliz que nós duas tenhamos nos livrado dele —
digo.
— Não, nada disso — diz Regina. — Isso não é um
clubinho. Não sou igual a você. — Ela dá uma risada. —
Você é louca.
E é nesse momento que penso em Robbie Clemmins, com
o cérebro estragado, o crânio despedaçado e a vida para
sempre alterada. Ele e eu éramos estragados de jeitos
diferentes, assim como Regina. Só que estou pagando por
isso aqui, e ela continua mentindo. Sua risada machuca
meus ouvidos. Eu os cubro com as mãos e pressiono com
força para tentar bloquear o som. É igual àquele dia na
minha cozinha, quando Seth me chamou de louca e me
encarou com nojo nos olhos. Tremendo, me afasto e dou
uma cabeçada com vontade no nariz de Regina. O impacto
faz com que meus dentes se choquem com força. Mordo o
lábio inferior e sinto cacos de um dente quebrado. Ela grita
e leva a mão ao nariz, que jorra sangue. Pulo por cima da
mesa e a derrubo de costas. Ela bate com a cabeça no
chão, e vejo o choque e o pânico em seus olhos, que estão
arregalados de medo. Robbie não sabia o que estava
acontecendo quando se deitou de costas e seu cérebro
começou a morrer, mas Regina vai saber. Seguro sua
cabeça e a bato com tudo no chão. Consigo ouvir gritos,
muitos gritos.
— Ajuda! — Alguém berra. — Ela vai matar a moça.
Eu estou ajudando. Ajudando a mim mesma.
AGRADECIMENTOS
A
gradeço à minha editora, Brittany Lavery, e a todos os
seus colegas de trabalho na HarperCollins. Jane, minha
agente, você é uma salvadora de almas. Eu me sentia
muito desesperançosa antes de conhecer você. Miriam,
suas dicas para me ajudar a aprimorar este livro não têm
preço.
Rhonda Reynolds, você me chamou de muitas coisas no
decorrer dos anos: criança selvagem e gênio da
criatividade. Mas a de que mais gostei foi quando você me
chamou de enteada. Obrigada por responder a todas as
minhas perguntas sobre enfermagem, hospitais e alas
psiquiátricas. Eu te amo.
Traci Finlay, esta jornada começou com você. Obrigada
pela sua enorme disposição para ler, ajudar e consertar um
furo no enredo. Foram suas dicas e considerações sobre
esta história que me impulsionaram a terminá-la. Você é
mais descolada que eu, mas nunca esfregou isso na minha
cara.
Cait Norman, a outra enfermeira da minha vida. Sei que
algumas das minhas perguntas te assustaram. Você é uma
boa irmã.
PLNs! O melhor grupo de amigas.
Colleen Hoover, Lori Sabin, Serena Knautz, Erica Rusikoff,
Amy Holloway, Alessandra Torre, Christine Estevez e Jaime
Iwatsuru. Cindy e Jeff Capshaw. Scarlet, Ryder Atticus e
Avett Rowling King — a mamãe ama vocês. Joshua, por me
ajudar nos momentos mais difíceis sem nunca reclamar.
Você é o melhor ser humano que já conheci.
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub
pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.
As esposas
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