Fermi Problems
Fermi Problems
Fermi Problems
Lições de Mecânica
*
J. M. B. Lopes dos Santos
Enrico Fermi foi um físico excepcional, que, entre muito outros feitos, se
notabilizou pela capacidade de estimar grandezas com escassez quase total
de informação. Os problemas abordados com a técnica de Fermi caram
conhecidos por Problemas de Fermi.
1 Problemas de Fermi
Enrico Fermi (1901-1954) foi um físico italiano excepcional, prémio Nobel da Física em
1938, orientador de doutoramento de uma lista de físicos notáveis (que inclui três prémios
Nobel), e construtor do primeiro reactor nuclear. Fermi foi o último físico capaz de
trabalho de qualidade Nobel, quer em Física Experimental, quer em Física Teórica.
Ficou também famoso pela sua capacidade de fazer estimativas com base em quase
nenhuma informação. No primeiro teste nuclear, Trinity test em 1945, Fermi terá deixado
cair uma folha de papel, e, com base no seu deslocamento com a onda de choque da
explosão, estimou a energia da explosão em toneladas de TNT, tendo errado apenas por
um factor de 2.
Antes de ler estas notas é essencial ver o vídeo A clever way to estimate enormous
numbers de Michael Mitchell[2], que explica o modo como Femi estimou o número de
2 Notação cientíca
Em Física e Engenharia a notação cientíca é essencial para exprimir grandezas cujos
valores podem ter enormes variações. Assim, por exemplo, a Massa do Sol é
1
e a do protão
mp = 1, 67 × 10−27 kg (2)
Sem recurso à notação cientíca, como poderíamos escrever a massa do Sol em kg,
mp = 0.000000000000000000000000000167 kg (4)
sabemos que os zeros à esquerda são realmente zero (não são algarismos signicativos),
mas operar com esta notação continua a ser um pesadelo.
Na notação cientíca, a informação é dada por um número a ∈ [1, 10[, a mantissa, e
pelo expoente, n inteiro, da potência de 10.
X = a × 10n (5)
O expoente é a ordem de grandeza (base 10)2 . No exemplo que demos, entre a massa
do Sol e a do protão, temos já 57 ordens de grandeza de diferença. Note-se que uma
variação de ±1 na ordem de grandeza signica a multiplicação (divisão) por um factor
de 10. Isto dá uma ideia da enorme gama de massas com que lidamos em Física. E não
esgotámos a escala. Por exemplo o electrão tem uma massa de
e a nossa galáxia
MV L ∼ 1012 M ∼ 1042 kg, (7)
uma variação de 72 ordens de grandeza! A consideração de outras grandezas (comprimen-
tos, intervalos de tempo, resistência eléctrica, etc.) mostra que a existência de fenómenos
com escalas com variações de várias ordens de grandeza é comum.
A base do método de Fermi é a estimativa do expoente, que designámos por ordem
de grandeza. Pode parecer pouco, mas dadas as enormes gamas de variação possíveis,
conhecer o expoente é um grande avanço em relação a nada saber. Por outro lado, a
simplicidade do método permite usá-lo frequentemente como vericação de cálculos mais
detalhados.
No que segue exemplicamos uma série de estimativas em problemas de Fermi:
1
Se tivermos conança no último 9 a contar da esquerda, o dígito seguinte deveria estar entre 0 e 4.
Sobre os restantes 25 nada sabemos.
2
Numa primeira abordagem; no nal deste documento renamos esta denição
2
1. Quantos carros ligeiros novos se vendem em Portugal por ano?
5. Quantos habitantes tem um país com 100 000 nascimentos por ano?
3 Exemplos
3.1 Quantos carros ligeiros novos se vendem em Portugal por ano?
P ∼ 107 . (8)
C ∼ 3 × 106 carros.
Um carro dura mais que 1 ano e menos que 100. Por isso a vida média de um carro pode
ser estimada como
V ∼ 10 anos (10)
Isto quer dizer que em 10 anos a população de automóveis é substituída, ou seja, em 10
anos vendem-se 3 × 106 carros:
3
3.2 Quantas árvores há em Portugal Continental?
P ∼ 5 × 105 . (15)
Se cada pessoa visitar uma farmácia uma vez em cada duas semanas, o número de visitas
diárias será
P
V ∼ ∼ 3 × 104 . (16)
14
Se cada farmácia puder atender 100 pessoas por dia
3 × 104
número de farmácias ∼ ∼ 3 × 102 . (17)
100
O número listado de farmácias no Porto é de 113.
Quando este exemplo foi discutido numa aula, um estudante respondeu imediatamente.
Instado a comentar como chegara tão depressa a este número, respondeu, bem no espírito
de Fermi:
Achei que 10 era pouco e 1000 era demais. Por isso propus 100.
Este estudante revelou uma compreensão muito boa do que é uma estimativa de ordem
de grandeza. Neste caso particular, a sua vivência da cidade permitiu uma estimativa
directa da ordem de grandeza do número de farmácias, que se revelou, neste caso, bastante
precisa. De um modo geral teremos de passar pelo processo de estimação de factores
intermédios, como nos exemplos vistos até agora.
4
4 Mais exemplos
Chegado aqui sugere-se ao leitor que interrompa a leitura e tente fazer as estimativas
relativas às questões 4 a 6 da secção 1. Depois pode confrontar com as soluções aqui
apresentadas.
Um paralelo de estrada tem uma massa de cerca de 5 kg. Se a sua dimensão linear for
10 cm a sua densidade é
M 5 −3
ρ= ∼ 3
3 = 5 × 10 kg m (19)
V (0.1)
Tomemos para dimensão linear de 1 grão cerca de 0,5 mm, o que dá um volume
e uma massa
mg ∼ ρVg ∼ 6 × 10−10 × 5 × 103 ∼ 3 × 10−6 kg. (21)
Obtemos uma estimativa de mg ∼ 3 mg.
4.2 Quantos habitantes tem um país com 100 000 nascimentos por ano?
Portugal tem uma expectativa média de vida de 80 anos, cerca de 100 000 nascimentos
por ano e uma população de 10 milhões.
Um médico trabalha cerca de 40 horas por dia. Um ano tem 52 semanas, menos 4
semanas férias e duas de feriados; ou seja, o médico trabalha cerca de 46 semanas. O
número de horas de consulta por ano é
Se cada habitante zer n consultas em média por ano, o número de consultas do concelho
será
Cc ∼ n × 5 × 104 (25)
5
O número de médicos será
n × 5 × 104
número de médicos ∼ ∼ 10 × n. (26)
4 × 103
Segundo os dados do SNS existem 1416 médicos de família para os 10 milhões de habi-
tantes. Por cada 50 mil habitantes
1416
médicos SNS ∼ × 5 × 104 ∼ 7 × n (27)
107
Isto sugere que n ∼ 1,
X1 ∼ 3 × 102 , (29)
X2 ∼ 5 × 10 . 3
(30)
Uma vez que temos igual conança nas duas estimativas, somos tentados a fazer uma
média entre as duas. A questão é: que média? A aritmética
X1 + X2
X∼ , (31)
2
ou a geométrica p
X∼ X1 X2 ? (32)
6
0
9x10
n −6 −5 −4 −3 −2 −1 0 1 2 3 4 5 6
−6 −5 −4 −3 −2 −1 0 1 2 3 4 5 6
x 10 10 10 10 10 10 10 10 10 10 10 10 10
n 3,16
n+1
0 1
y = log (x)
10
x
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
X = a × 10n (33)
em que a ∈ [1, 10[ é a mantissa e n o expoente. Queremos construir uma régua em que as
divisões, igualmente espaçadas correspondem aos valores de n. A régua tem uma divisão
central, n = 0, X = 1, à direita, n = 1, 2, . . . correspondentes aos valores X = 10, 100, . . .
e à esquerda n = −1, −2, . . . ,ou X = 10−1 , 10−2 , . . . . Ao contrário de uma escala linear,
em que variações ∆X = X2 − X1 iguais são comprimentos iguais, aqui, razões X2 /X1
iguais são comprimentos iguais. Chama-se a esta escala uma escala logarítmica, pois se
Y1 = log10 (X1 ) e Y2 = log10 (X2 )
X2
Y2 − Y1 = log10 (34)
X1
Ora
log10 (X) = n + log10 (a) (35)
e como a ∈ [1, 10[, log(a) ∈ [0, 1[. Entre duas marcações inteiras na régua variamos a
mantissa.
Parece então razoável denir a ordem de grandeza como sendo n para usar sempre
um inteiro, quando os valores de log10 (X) estão mais próximos de n do que de outro
7
valor inteiro. Isso acontece para
1 1
n− ≤ log10 (X) < n + (36)
2 2
o que dá,
1
10n− 2 ≤ X < 10n+1/2 (37)
1 √
√ × 10n ≤ X < 10 × 10n (38)
10
ou
1 √
√ ≤ a < 10 (39)
10
√
Uma vez que 10 ≈ 3, 2
0, 32 . a > 3, 2 (40)
A ordem de grandeza será n na gama de valores de X
Referências
[1] T. W. Crowther, H. B. Glick, K. R. Covey, C. Bettigole, D. S. Maynard, S. M.
Thomas, J. R. Smith, G. Hintler, M. C. Duguid, G. Amatulli, M.-N. Tuanmu, W. Jetz,
C. Salas, C. Stam, D. Piotto, R. Tavani, S. Green, G. Bruce, S. J. Williams, S. K.
Wiser, M. O. Huber, G. M. Hengeveld, G.-J. Nabuurs, E. Tikhonova, P. Borchardt,
C.-F. Li, L. W. Powrie, M. Fischer, A. Hemp, J. Homeier, P. Cho, A. C. Vibrans, P. M.
Umunay, S. L. Piao, C. W. Rowe, M. S. Ashton, P. R. Crane, and M. A. Bradford.
Mapping tree density at a global scale. Nature, 525(7568):201205, September 2015.