Salas de Milagres, Museu e Hibridismo (José Claudio Alves)
Salas de Milagres, Museu e Hibridismo (José Claudio Alves)
Salas de Milagres, Museu e Hibridismo (José Claudio Alves)
RESUMO
O presente artigo tematiza os ex-votos. Em seu conteúdo está o processo comunicacional que
se dá em três ambientes onde se pode fruir o ex-voto: ambientes museísticos com acervos ex-
votivos, ligados à comunicação clássica; as salas de milagres, onde a fruição acontece num
processo mais livre, e dinamicizado pelo povo, assistemático, sintomático à folkcomunicação;
e os novos ambientes que vêm se configurando hibridamente, salas com interferências
museográficas normatizando os ambientes.
Em 1967, quando o jornalista Luiz Beltrão defendia sua tese de doutorado na UNB,
estava criando e fazendo nascer uma nova disciplina, a Folkcomunicação, ainda pouco
conhecida e pouco entendida pela maioria dos professores e acadêmicos, hoje mais difundida,
com grupos de pesquisadores no Brasil e no mundo, mas ainda escondida das disciplinas mais
clássicas da comunicação nas suas habilitações.
Naquela década, as teorias da Comunicação estavam mais voltadas para as formações
semióticas e semiológicas, tecendo construções nos campos do estruturalismo e sustentando
ainda mais a idéia do Jornalismo. Assim como hoje há uma avalanche de questionamentos e
teorias sobre a cibercultura, uma área que cresce a cada instante no campo das ciências da
informação e, mais precisamente, na Comunicação.
As tradições populares, até então, eram focadas por áreas como o Folclore, a
Antropologia e a História. Foi com Beltrão que a análise da comunicação popular, oriunda das
atitudes interioranas para o mundo urbano, começou a se delinear, com uma maior
interpretação do folclore, área mais difundida e conhecida no mundo inteiro.
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Trabalho apresentado no DT 08 – Estudos Interdisciplinares da Comunicação, no GP Folkcomunicação, evento componente
do XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Caxias do Sul, RGS, setembro de 2010.
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Doutor em Comunicação pela FACOM-UFBA. Professor do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da
FACOM-UFBA. Pesquisador do CNPq. [email protected]
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Em recente livro, José Marques de Melo enfatiza que Luiz Beltrão suscitava o olhar
dos pesquisadores da comunicação para um tipo de objeto que já vinha sendo
competentemente estudado pelos antropólogos, sociólogos e folcloristas, mas era
negligenciado pelos comunicólogos. (MELO, 2008, p. 19)
Beltrão se voltou para o estudo da comunicação popular, a manifestação espontânea
dos grupos sociais. Daí o termo Folk – popular, espontâneo, irreverente diante de instituições
e datas – e o termo comunicação, refletindo na transmissão, nas trocas, na difusão.
Com os seus estudos, agregado as teorias que analisam o folclore e a cultura popular,
Beltrão caminhou mostrando a Folkcomunicação como fator importante para o diálogo com
as classes inexploradas pelos mass media. Além disso, teceu comentários sobre manifestações
do povo, no campo das artes, da religião, da música e literatura, como contributos para a
identidade local e nacional, como valores que demonstram acontecimentos locais
disseminados pelos grandes centros, como a literatura de cordel, o regionalismo das palavras,
a indumentária das festas populares e muitos outros fatores que estão, é bem verdade,
integrados em sua grande maioria nos festejos produzidos e explorados pelas grandes mídias.
A Folkcomunicação passou a ser vista como disciplina que analisa as produções entre
duas culturas: uma elitizada, massiva, e outra que advém do povo, do espontâneo, seja das
vias urbanas ou rurais.
Para Beltrão (Id) o folclore compreende formas interpessoais ou grupais de
manifestação cultural protagonizadas pelas classes subalternas, a folkcomunicação caracteriza
pela utilização de mecanismos artesanais de difusão simbólica para expressar em linguagem
popular, mensagens previamente veiculadas pela indústria cultural. Ou seja, o que se torna
popular passa a ser apropriado e, mesmo modificado, usado para novas construções, com
significados que se tornam tradição entre comunidade e ganham difusão, consequentemente,
expansão.
Beltrão também classificou o que ele denominou de “fenômenos da comunicação
popular”, conceituados como gêneros folkcomunicacionais, que compreende as formas
interpessoais ou grupais de manifestação cultural difundida pelo povo, por comunidades
urbanas ou rurais. Tais gêneros são os caracterizadores dos mecanismos artesanais de difusão
simbólica que expressam, em linguagem popular, mensagens. Nesse sentido, podemos pensar,
sobretudo, na Literatura de Cordel, que nos presenteia com os folhetins, os rótulos de garrafas
de cachaça e licores e o repentismo. Assim como nas diversas manifestações populares que
trazem as riquezas e mensagens através das cores, das cantigas, dos brinquedos, das
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brincadeiras, dos folguedos, festas, religiosidade e uma infinidade de atividades e atitudes que
o homem criou e cria espontaneamente no anseio popular.
Quando Luiz Beltrão (1965) publicou o seu artigo sobre “O ex-voto como
veículo jornalístico” na revista Comunicação & Problemas, 40 anos atrás, começaram
as primeiras reflexões para a formulação do novo modelo de
comunicação/horizontal/comunitária voltado para o contexto histórico e cultural da
América Latina, que mais adiante, seria denominado de teoria da folkcomunicação.
(TRIGUEIRO, 2005)
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Os ex-votos pictóricos trazem as cenas em que o padroeiro aparece ao crente, geralmente enfermo. Logo no roda-pé do
quadro o texto referenciando o milagre. Este tipo teve início no período pós-renascentista.
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voto. O esquema abaixo demonstra o processo em que o ex-voto pode ser visualizado como
medium, quando a mensagem é endereçada ao padroeiro, e ao mesmo tempo serve de
testemunho ao público em uma exposição aberta demonstrando, ou publicizando o
acontecido. Tal fenômeno comunicacional pode ser notado, principalmente, em salas de
milagres. Isso porque o ex-voto pode advir de desobrigas em cemitérios, cruzeiros e cantos
esparsos de santuários e igrejas, locais que consagram os “santos”, os Santos da Igreja, os
beatos e beatas e “falecidos milagrosos”.
Exposição
Observador
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Esquema do processo comunicacional, tendo o ex-voto como medium.
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Tal pensamento, alongado quando o autor fala da “coleta museal”, demonstra tanto o
caráter científico que sistematiza o museu, quanto um dos primeiros e principais processos
que o formam: a documentação, ou o sistema de documentação museológica (SDM). Para
Stransky, um sistema de documentação, ou simplesmente a documentação museológica, é
algo que se configura como engrenagem contínua na ciência, que busca a robustez
metodológica da heurística, com a pesquisa sobre o objeto, atualizando-o e mantendo a
exposição museográfica sempre atualizada, renovada. Do contrário, o museu cairia no ócio,
ou no que popularmente – e erroneamente – se denomina de “casa das múmias” ou “casa das
naftalinas”.
A sala de milagres, ao contrário dos museus, tem em seus objetos um curto tempo,
quase efêmero, que corresponde a sua velocidade, rapidez e mutação estética do ambiente, da
quantidade dos objetos e da maior liberdade de divulgação das informações, concretizando
assim um grande processo de comunicação, onde a novidade é constante e, portanto, fazendo-
a a partir dos ex-votos, um ambiente de contínua mutação.
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O primeiro caso (quadro 01) são os museus dos ex-votos, ou aqueles que possuem um
acervo ex-votivo. Os museus: Regional de Canindé, do Santuário de Aparecida, do Bomfim,
Carmo, em Cachoeira, BA, Casa do Padre Cícero, Cidade, em Salvador, Câmara Cascudo, em
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Projeto apoiado pelo CNPq desde 2006, que vem documentando os ex-votos em santuários, cruzeiros, espaços avulsos e
museus, cujo autor deste artigo é o Coordenador.
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O Projeto Ex-votos do Brasil ainda não incursionou no santuário de Nazaré, em Belém.
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Natal, Museu do Homem, em Recife, Penha (ES) são exemplos de ambientes museísticos.
Nem todos são constituídos somente por acervo ex-votivo. Somente os museus dos Santuários
de Nossa Senhora Aparecida e do Bomfim possuem acervos efetivamente de ex-votos. Os
demais possuem a confluência de outras categorias, a exemplo da arte sacra cristã erudita, arte
popular e semi-erudita e arte popular utilitária. Porém, todos criados como museus, atendendo
a sistematização de circuito, documentação e conservação.
O segundo caso, demonstrado logo abaixo no quadro 02, estão as salas de milagres
que possuem certo hibridismo entre o espaço destinado a um processo folkcomunicacional e
algo que já demonstra a interferência formalizadora do ambiente, com ares científicos. É o
que acontece no Horto de Juazeiro, em Juazeiro do Norte e nas salas de milagres dos
santuários de Aparecida (SP), Bomfim (BA), Penha do Rio de Janeiro e Espírito Santos e nos
Conventos do Carmo, em São Cristóvão, Sergipe e Cachoeira, Bahia.
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do Rio de Janeiro, que abre somente aos domingos. Por essa razão os fiéis, durante a semana,
colocam os ex-votos nos corredores laterais da igreja.
Em Aparecida (SP), Bomfim (BA) e no Convento do Carmo, em São Cristóvão (SE) a
similitude está na organização e classificação por lotes de ex-votos. Os espaços para a
parafina, outros para retratos, outros para madeiras. Em Aparecida e São Cristóvão, vitrines, o
que não acontece no Bomfim, a sala possui uma caixa destinada às “promessas que serão
fixadas” por funcionários da igreja. No Carmo, em Cachoeira, uma pequena sala só dos ex-
votos no rico museu de arte sacra católica. Nela uma pequena vitrine com “milagritos” (6).
Tomemos como case o santuário da Penha no Espírito Santo. À entrada da sua sala de
milagres está a placa que regulamenta dois pormenores: O primeiro mostra a subdivisão do
painel da sala. A área central, com o oratório onde está entronizada a imagem de Nossa
Senhora da Penha – imagem peregrina executada por iniciativa do Guardião do Convento da
Penha em 1958 – encimada por dois anjos recortados em madeira dourada, à semelhança
daquele existente altar da Capela Mor da Igreja do Convento, e emoldurada por retratos de
criança. O oratório tem sua parte externa trabalhada em forma de palmas estilizadas, muito
utilizadas na decoração dos antigos altares barrocos. No fundo do oratório, uma pintura
reproduz a imagem de Nossa Senhora da Penha e ficará visível quando a imagem principal se
ausentar nas procissões. A área esquerda é ocupada por ex-votos que demonstram o
agradecimento dos fiéis pela solução de problemas relacionados ao amor e à felicidade,
representados no casamento e na família. A área direita é ocupada por retratos de fiéis adultos
e por sinais de graças alcançadas na cura de dores física, apontando a fé da Virgem como
elemento de cura desses males. Esta parte apresenta pintura representando o Convento da
Penha e aspecto da romaria anual dos homens. A base do painel receberá os novos ex-votos,
que serão periodicamente remanejados para registro e guarda.
Há também na sala “um aviso importante” que normatiza o tipo de fotografia que
poderá ser colocada na sala. (Fig. 1)
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O termo é mexicano e designa os pequenos ex-votos feitos em madeira ou em metal.
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Por outro lado, o museu tradicionalmente visto pelo público em geral como espaço
imponente, de “deslumbre”, do “silêncio” e ares monumentais, atende aos rigores da
funcionalidade. Tem o seu horário de abrir e fechar, e possui taxas e funcionários que
monitoram os observadores (peregrinos, turistas etc.).
Ainda falando do santuário da Penha do Espírito Santo, no seu museu, logo à entrada
está uma pequena placa destacando os painéis de ex-votos, a única tipologia do gênero no
ambiente. São pinturas sobre papel, madeira, tela, todas dos séculos XIX e XX, trazendo no
texto, da placa, a apresentação do “raro conjunto de ex-votos narrativos, obra de artistas
populares, pagamento de promessa a N. S. da Penha. De influência portuguesa, foram
introduzidos no Brasil durante o período Colonial. Registram ambientes, hábitos e objetos de
época” (sic.) (Fig. 2)
Embora pequena, a sala de milagres do Santuário de Penha, em Vila Velha, reserva
uma variada tipologia ex-votiva, que parece infinita. A variedade percebida mostra bilhetes,
cartas e cartões, estatuetas, fitas, cabelos, fotografias, diplomas, esculturas de madeira,
insígnias, sapato, requisição (acompanhada do resultado do exame), carteira de cédulas, caixa
de remédio, vestimenta (variadas), cédulas e moedas, terços, mobiliário, órgão musical,
prataria, figas, chaves, espadas em miniatura, tesoura, argolas, pedras, instrumentos musicais,
murais de fotografias e reportagens, taças, cálices, lápides, livros, discos, olhos de vidro,
marca-passo, vasos de louça e porcelana, dissertação de tese, convites de formandos, castiçais,
becas etc.
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O museu do santuário da Penha de Vila Velha tem a sua diferenciação dos museus dos
santuários da Penha do Rio de Janeiro, do Bomfim e de Aparecida. Esses possuem acervos
puramente ex-votivos, ao passo que em Vila Velha a sua exposição traz alfaias, imaginária
sacra erudita e mobiliário sacro. Portanto, mais erudito do que popular, onde todos os objetos,
resguardados por redomas de vidros, possuem etiquetas e tombamento.
Observando acima o “comportamento” em cada sala, pode-se perceber que há uma
grande diferença delas com outras que nem ao menos possuem “sinalizações”, quiçá
etiquetas, a exemplo das salas dos santuários de Bom Jesus da Lapa, Matosinhos, São Judas
Tadeu (RJ e MG), Canindé e outras (v. quadro 03). Nessas a liberdade da desobriga é
consagrada. A única restrição é a do horário de funcionamento, por sinal, de domingo a
domingo.
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