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e-ISSN: 1983-9294

Dossiê Temático: Pedagogias em Diferentes Espaços Educativos

https://doi.org/10.5585/Dialogia.N34.16706

Narrativas e tessituras adolescentes: metodologia e


desafios de uma pesquisa(dora)
Narratives and adolescent tessituras: methodology and challenges
of a researcher

Rebeca Lloyd Gonçalves


Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]

Licinia Maria Corrêa


Professora associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil.
Membro do Programa Observatório da Juventude
[email protected]

Resumo: O presente artigo discute as possibilidades da entrevista narrativa como recurso teórico-
metodológico na pesquisa qualitativa em que a autora posiciona suas leituras acerca das representações
construídas por adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. Relata-se o percurso
investigativo e os exercícios contínuos que intencionaram traduzir com inteligibilidade o que as
adolescentes pesquisadas trouxeram nas suas narrativas. A utilização das entrevistas narrativas orientou-se
pela necessidade de compreender como as adolescentes (re)significavam o cumprimento da medida
socioeducativa. Focalizando as experiências singulares de cada adolescente, observou-se que as narrativas
provocam mudanças nas formas como os sujeitos compreendem a si próprios, aos outros e, por este
motivo, são importantes estratégias causadoras de reflexão numa perspectiva emancipatória e de
protagonismo juvenil. Conclui-se que essa metodologia possibilitou a aproximação entre a pesquisadora e
as adolescentes, evidenciando a dimensão subjetiva no processo narrativo.

Palavras-chave: Entrevista narrativa. Pesquisa qualitativa. Adolescentes. Medidas socioeducativas.

Abstract: This article discusses the possibilities of narrative interview as a theoretical-methodological


resource in qualitative research. The reflections raised come from the research that resulted in the master's
thesis in which the author positions her readings about the representations constructed by adolescents in
compliance with socio-educational measures. The investigative path and continuous exercises that
intended to translate with intelligibility that the adolescents surveyed brought in their narratives are
reported. The use of narrative interviews was guided by the need to understand how adolescents (re)meant
compliance with the socio-educational measure. Focusing on the unique experiences of each adolescent, it
was observed that narratives provoke changes in the ways in which the subjects understand themselves,
others and, for this reason, are important strategies that cause reflection in a emancipatory perspective and
youth protagonism. It was concluded that this methodology allowed the approximation between the
researcher and adolescents, evidencing the subjective dimension in the narrative process.

Key-words: Narrative interview. Qualitative research. Teens. Educational measures.

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GONÇALVES, Rebeca Lloyd; CORREA, Licinia Maria. Narrativas e tessituras adolescentes: metodologia e desafios
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Introdução

Inúmeras pesquisas qualitativas são desenvolvidas na área da educação mostrando a


teorização sobre esta metodologia, sendo importante citar as contribuições responsáveis pela
difusão e pela construção do referencial teórico sobre o tema: Berger e Luckmann (2004),
Haguette (2013), Ludke e André (2013), Fazenda (2010), Ferrer Ceveró (1995, upud Larrosa,
1995), Minayo (2016) e tantas outras.
Os estudos sobre as pesquisas qualitativas apontam que a escolha do(a) pesquisador(a)
por uma temática não ocorre espontaneamente, visto que é resultado de interesses e
circunstâncias socialmente experienciadas, sendo fruto de uma determinada inserção do(a)
pesquisador(a) na sociedade, onde o olhar sobre os sujeitos está condicionado historicamente
pela posição e lugar de fala que o(a) pesquisador(a) ocupa no mundo. Na realização desta
pesquisa, alguns aspectos foram considerados, dentre eles: minha disponibilidade enquanto
pesquisadora e a identificação com a temática estudada.
Inicialmente tínhamos a perspectiva de que as falas dos sujeitos constituíssem a mais
fidedigna descrição dos fatos e que esta fidedignidade garantisse consistência à pesquisa. Logo
percebemos que as apreensões que constituem as narrativas dos sujeitos são a sua representação
da realidade e, como tal, estão repletos de significados e reinterpretações. Assentimos que, antes
disto ser um problema, é a essência da pesquisa, pois, como explicitam Berger e Luckmann (2004,
p.109), as análises têm “particular importância para a sociologia do conhecimento porque revelam
as mediações existentes entre universos macroscópicos de significação, objetivados por uma
sociedade, e os modos pelos quais estes universos são subjetivamente reais para os indivíduos”.
Esta investigação ancorou-se nas indagações que permearam os significados atribuídos
por adolescentes do sexo feminino em cumprimento de medida socioeducativa de semiliberdade
e nas possíveis (re)significações das narrativas dessas adolescentes, na busca de compreender suas
percepções acerca do cumprimento da medida socioeducativa de semiliberdade.
Foi fundamental compreender a importância dada na relação dialética estabelecida entre
narrativa e experiência, diante da necessidade de tempo para se construir a ideia de que, assim
como a experiência produz o discurso, este também produz a experiência. Foucault (1999) refleti
sobre os indivíduos em processo de constituição de si mesmos enquanto sujeitos de vivências e
experiências, no curso desta pesquisa qualitativa confirmou o fato de que tanto o relato da
realidade produz a história como ele mesmo produz a realidade. As adolescentes foram contando
suas experiências, crenças e expectativas e, ao mesmo tempo, anunciaram novas possibilidades,

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intenções e anseios. Destarte, experiência e narrativa se conectaram tornando-se parte da


expressão de vida dos sujeitos.
Em sua obra “As palavras e as coisas”, Foucault (2016) nos remete à emergência das
linguagens que buscarão produzir a verdade sobre o “homem” em diferentes campos de
experiência, onde tais linguagens podem orientar a ação narrativa que conduzirá a (re)significação
da realidade. Neste estudo, estabelecemos os parâmetros da pesquisa qualitativa que se
adequaram melhor na nossa investigação e definimos que as narrativas seriam a principal fonte
deste trabalho. No decorrer do processo, descobrimos que as narrativas não eram meras
descrições da realidade, eram, especialmente, produtoras de conhecimentos e significados. As
pessoas vivem histórias e, no contar dessas histórias, elas se reafirmam, modificam-se e criam
novas histórias. As histórias vividas e contadas educam a nós mesmos e aos outros, incluindo os
jovens e os recém-pesquisadores em suas comunidades (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p.
27).
Relatamos, assim, a trajetória desta pesquisa qualitativa e dos exercícios contínuos que
objetivaram traduzir com inteligibilidade o que as adolescentes pesquisadas trouxeram nas suas
narrativas. Buscamos revelar, no decorrer do texto, os desafios da aproximação com as
adolescentes, contornados por uma reflexão acerca dos discursos estigmatizantes a respeito
desses sujeitos, a fim de se perceber como as políticas públicas lidam com o desafio de incluir
os(as) adolescentes com um longo histórico de invisibilização social. Neste contexto, Salles (2007)
nos aponta que os(as) adolescentes em situação de vulnerabilidades e de conflito com a lei estão
submetidos(as) ao processo da “visibilidade perversa”, que consiste na conversão generalizada
do(a) adolescente numa criatura cruel, indigna e desumana.

2 Compreendendo os sujeitos: metodologia da pesquisa narrativa

Para quem escrevemos? Quem serão os sujeitos estudados? Quais contextos? Quais
teorias? Quais resultados? Será que a pesquisa tem relevância ou faz sentido? Essas são reflexões
pertinentes quanto tratamos da metodologia da pesquisa narrativa. Questões que devem ser
consideradas demandas recorrentes à pesquisa narrativa como, por exemplo, o ir e vir durante o
processo, que consiste no percurso da pesquisa, além da reflexão contínua, denominado por
Clandinin e Connelly (2011) como estado de alerta.
Com a finalidade de utilizar no trabalho a metodologia da pesquisa narrativa, refletimos
acerca dos termos citados por Clandinin e Connelly (2011), onde os aspectos pessoal e social são
utilizados para tratar as interações de tempo, a fim de desenvolver noções de continuidade e

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lugares para marcar situações. Como o objeto de estudo da pesquisa narrativa são os sujeitos
narrados, esses sujeitos precisam ser compreendidos enquanto aqueles que estão em interação
num dado contexto social.
É importante entender a relação dialética entre teoria e realidade. Ao mesmo tempo que a
realidade informa a teoria, esta, por sua vez, a antecede e permite percebê-la, reformulá-la, dar
conta dela, num processo sem fim de distanciamento e aproximação (MINAYO, 2016, p.92).
Este movimento precisa estar presente na prática investigativa que utiliza as narrativas como
fonte de conhecimento. É importante não aprisioná-las, a priori, em categorias teóricas pré-
definidas, porque este procedimento seria fortemente um cerceador do relato espontâneo.
Nesse sentido, a experiência é um fator importante para o desenvolvimento da pesquisa
narrativa. Clandinin e Connelly (2011) entendem a experiência enquanto pessoal e social. A
“Experiência acontece narrativamente e a pesquisa narrativa é uma forma de experiência
narrativa” (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p.49).
Na busca por compreender o que diziam as “minas” que se encontravam em situação de
cumprimento de medida socioeducativa de semiliberdade, ficou evidenciado, por meio de suas
narrativas, que elas falavam das violações sofridas envolvendo racismo, preconceitos sobrepostos
em desigualdades sociais e de gênero, multiplicando os estigmas que permitiam “punir” as
adolescentes por meio das “leis morais” institucionalizadas pelos usos e costumes e pelo
próprio Estado que controlam os comportamentos de gênero.

3 A entrevista narrativa no contexto das adolescentes em cumprimento de medida


socioeducativa

A pesquisa foi constituída na análise de conceitos baseados nos dados e informações


obtidas através das entrevistas narrativas realizadas. O projeto e os objetivos de estudo foram
apresentados à diretora e à pedagoga da Casa de Semiliberdade Belô, além de toda a
documentação exigida pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFMG (COEP/UFMG), sendo que
foram entrevistadas quatro adolescentes em situação de cumprimento de medida socioeducativa
de semiliberdade.
Reafirmo que nessa pesquisa as entrevistas narrativas foram ferramentas indispensáveis
para uma aproximação singularizada com as adolescentes. As entrevistas fizeram a entrevistadora
chegar às informações elementares e acontecimentos únicos que “colocaram cada menina no
lugar onde estavam”, qual seja, na Casa ‘Belô”1, pois foi pelas entrevistas que emergiram histórias
de vida, entrecruzadas no contexto situacional.

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Um dos instrumentos utilizados na pesquisa foi o gênero oral de entrevista narrativa, no


qual pudemos observar a percepção que as adolescentes pesquisadas tinham da situação
experienciada por elas naquele momento. O gênero entrevista narrativa é definido por
Jovchelovitch e Bauer (2013, upud Bauer, 2013) como sendo uma entrevista com perguntas
abertas e uma forma de encorajar os entrevistados. Questionamos os significados atribuídos pelas
adolescentes do sexo feminino em cumprimento de medida socioeducativa de semiliberdade e as
possíveis (re)significações das narrativas dessas adolescentes, na busca de compreender suas
percepções acerca do cumprimento da medida socioeducativa de semiliberdade.
Outro aspecto importante desse tipo de entrevista é a possibilidade de interação face a
face. Goffman (2004, p. 23) salienta a importância da interação face a face, para a reciprocidade,
mostrando que “a interação face a face pode ser definida, em linhas gerais, como a influência
recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, quando em presença física imediata”.
As entrevistas narrativas deixam o sujeito livre para argumentar sobre o que julgam
importante acerca de determinados temas, surgindo expressões instigantes como: “A manga já é
azeda, aí você põe mais vinagre pra ficar mais azeda” (Rubi)2. Neste momento narrativo, a
adolescente utilizou-se de uma metáfora para explicitar toda a pressão e opressão experienciados
por ela na situação do cumprimento da medida socioeducativa. Nessa perspectiva, notamos que a
oportunidade de fala foi uma maneira exitosa, na qual as adolescentes puderam transmitir
situações vividas.
As entrevistas foram realizadas apenas pela pesquisadora principal deste estudo, à época,
mestranda em Educação, a fim de manter o mínimo de influência possível nas respostas.
Conforme Jovchelovitch e Bauer (2013, upud Bauer, 2013), o entrevistador não deve impor
formas de linguagem não empregadas pelo sujeito durante a entrevista, mantendo a interação,
como igual, consequentemente, aproximando-se dos sujeitos. As adolescentes, no momento da
entrevista, dispuseram do tempo necessário para responder às perguntas, sem a interrupção da
entrevistadora, ficando livres para expor suas histórias, ou o que julgassem necessário.
Para Lakatos e Marconi (2000), este tipo de entrevista visa encorajar e estimular o sujeito
entrevistado a contar algo sobre algum acontecimento importante de sua vida e do contexto
social. Jovchelovich e Bauer (2013) alertam para a importância de o entrevistador utilizar apenas a
linguagem que o informante emprega, sem impor qualquer outra forma, já que o método
pressupõe que a perspectiva do informante se revela melhor, ao usar uma linguagem espontânea.
Essas asserções se assentam na compreensão de que a linguagem empregada constitui uma

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cosmovisão particular e, portanto, é reveladora do que se quer investigar: o “aqui” e o “agora” da


situação em curso.
A nossa escolha pela escuta dos sujeitos não foi casuística. Na obra “Pensamento e
Linguagem”, Vygotsky (2011) propõe que se analise o aspecto intrínseco da palavra, pois é no
significado da palavra que o pensamento e a fala se unem. O significado passa a ser ato de
pensamento e linguagem que estão inter-relacionados, pois o pensamento refere-se à
comunicação, à interação social, enquanto função primordial da fala, uma vez que é com o
objetivo de se comunicar que o homem cria e utiliza os sistemas de linguagem e é a necessidade
de se comunicar que impulsiona o seu desenvolvimento. Na ausência de um sistema de signos,
linguísticos ou não, a comunicação torna-se limitada e torna o caráter mais afetivo, já que a
transmissão racional e intencional de experiências e de pensamentos requer um sistema mediador
– a fala. Ou seja, a verdadeira comunicação requer significado e generalização tanto quanto
requer signos.

4 Narrativas sobre a vida das adolescentes fora da medida, da vida na medida e da vida
sem medida

Apresentamos alguns fragmentos das narrativas das adolescentes pesquisadas e


procuramos tecer, a partir do que elas trazem, suas (re)significações acerca da medida
socioeducativa, suas percepções sobre os percursos de vida, seus sonhos, o olhar de cada uma
sobre a Casa de Semiliberdade “Belô” e sobre o sistema socioeducativo. Compuseram essa
tessitura as narrativas produzidas e os seus diálogos travados, apresentando as “minas” em suas
preciosas singularidades, a partir da tangibilidade e percepção das suas vozes e histórias.

4.1 Rubi

Rubi estava com dezessete anos no período da pesquisa, natural de Governador


Valadares, a uma distância de 323 km (trezentos e vinte e três quilômetros). Mencionou ser a
mais nova de quatro irmãos e somente ela tinha um pai diferente, fruto do segundo
relacionamento da sua mãe. Contou com tristeza sobre as falas reiteradas da mãe dizendo que, se
tudo tinha dado errado para ela, era porque ela era a única filha de um pai diferente. A
adolescente relatou que ouviu isto a vida inteira, sendo que a situação havia piorado, pois a mãe
repetia a frase sempre que se lembrava de que ela estava “pagando medida”3.
A mãe de Rubi ainda teve um terceiro relacionamento, iniciado quando Rubi ainda era
bem pequena. O padrasto a registrou e ela, inicialmente, tinha muita afeição por ele, tendo-o

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como o pai. Foi observado que a adolescente tinha no pulso uma tatuagem com as iniciais do
nome da mãe e do padrasto e ela disse que tinha muita raiva dele e que a primeira coisa que faria
quando saísse da casa de semiliberdade seria retirar a parte que fazia referência a ele na sua
tatuagem. Também referiu-se com muita mágoa aos abusos sexuais sofridos na adolescência,
sendo que, nesta parte da entrevista, Rubi ficou muito tempo calada e lágrimas silenciosas
escorriam por sua face. Continuando sua história, falou sobre nunca ter tido coragem de contar
para a mãe e nem para ninguém. Mas que foi a partir daí que começou a ficar uma adolescente
muito revoltada, que desobedecia a mãe e só queria saber de ficar na rua. Foi então que, com a
idade de doze para treze anos, conheceu um rapaz, dizendo que ele era muito ciumento. Foi
questionado se ela parou de estudar nesta época, e Rubi respondeu que sim, por causa dos ciúmes
do namorado e de umas “tretas”4 que arrumaram para cima dela na escola. À época do
cumprimento da medida socioeducativa, a adolescente estava terminando, no período noturno, o
último ano do ensino fundamental. Rubi disse que achava a escola “mega importante”, pois só
não estava no regime fechado, por causa das aulas de ciências.

(…) Óóóó o que o meu professor explicou: que uma faca, pra atingir o coração,
tem que pegar por trás, porque aqui na frente, por causa dos ossos, não atinge,
então, aí eu levei pra minha advogada, minha advogada fez minha defesa e, no
julgamento, me ajudou e, por isso, eu peguei semi. E também porque foi em
legítima defesa, porque ele tentou me matar, me agrediu e fez um monte de
covardia, né, comigo… A escola me salvou sabe.

Quando Rubi se referiu à covardia, foi perguntado a ela sobre o quê especificamente
estava falando.
(…) Me espancou, queria me matar asfixiada, eu tirei ele de cima de mim e
peguei a faca e falei para ele não vir pra cima, a minha intenção era acertar o
braço dele, porque, aí, ele parava, porque ele tinha amolado esta faca pra me
matar. Aí, eu fui e acertei ele, só que, aí, eu levei ele na UPA5, socorri ele, só
que, aí, depois de seis horas, ele não aguentou, porque, como ele fumava muito
e as veias tava tudo entupida por causa do cigarro, e ele não aguentou e faleceu.

Quando foi questionado o que ela pensava depois de ter passado por tudo isto, Rubi
respondeu:

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(…) Pra mim foi aprendizado, né, porque primeiramente isto tudo aconteceu,
porque eu não escutei a minha mãe, infelizmente, porque, se eu tivesse
escutado ela, eu não estaria aqui. Mas eu não vejo isto aqui como uma coisa
ruim, sabe, é um aprendizado pra mim levar pra minha vida toda, porque eu,
passado isto aqui, eu vou ter consciência do que eu vou fazer daqui pra frente,
porque eu não quero voltar aqui mais, eu não vou ficar aprontando, pra voltar
não só aqui, ou pra outros lugar pior, né, porque não é só aqui que é ruim, aliás,
isto aqui não é vida, não. Então, eu tô com o pensamento de melhorar, ter as
minhas coisas, ter dinheiro, comprar minha moto, ter minha casa e trabalhar.

Sobre sonhos, foi feita escuta sem demora e hesitação: “meu sonho é casar e ter uma casa.
Mas o meu sonho mais louco mesmo é conhecer os jogadores do Cruzeiro”. Posteriormente foi
dialogado sobre o tempo em que ela passou na casa de semiliberdade, sobre o que ela achava da
medida, sobre o futuro, de como ela percebia positivamente a escola como um lugar de
possibilidades, ascensão social, mudança de vida, convivências e vivências da adolescência, mais
livremente.
(…) Porque, aí, eu percebi o tempo que eu perdi, eu perdi dois anos de escola,
perdi dois anos de aprendizado. Eu quero montar o meu salão. Então, minha
amiga está fazendo psicologia, aí, eu vou estudar, não sei qual faculdade eu
quero fazer, mas eu quero fazer faculdade. Passou rápido, né? Todo dia, então,
eu acostumei com isto. Eu não aguento ficar aqui, acostumei sair todo dia, ir na
escola de noite. Aí, nas férias, é muito difícil pagar, ficar aqui todo o dia, muito
difícil pagar, mas está acabando, não vejo a hora.

Sobre uma pintura de travesseiro realizada durante a pesquisa, num processo de


intervenção artística, Rubi relatou: “(…) Olha, aí, sabe a minha pintura, a do travesseiro, eu fiz
como uma peça de teatro. Sabe que isso aqui é um grande teatro e a gente tem que colocar a
máscara pra é dar conta de tudo”.

4.2 Esmeralda

Penúltima filha de seis irmãs e um irmão, Esmeralda estava com treze anos quando
participou da pesquisa. O pai e a mãe estavam presos. Ela e a irmã residiam em unidades de
acolhimento institucional diferentes, até a época do acautelamento de Esmeralda. A adolescente
relatou que os outros irmãos mais velhos estavam “seguindo a vida”, sendo que um irmão e uma
irmã residiam e trabalhavam em São Paulo. Sempre que falou dos pais, Esmeralda referiu-se
recorrentemente à mãe, com muito carinho.
A adolescente é natural de Juiz de Fora, quarta cidade mais populosa de Minas Gerais e
está a uma distância de 283 km (duzentos e oitenta e três quilômetros) de Belo Horizonte. Juiz de
Fora possui uma unidade de internação e duas unidades de semiliberdade, sendo que nenhuma é

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feminina. Durante a entrevista, a adolescente continuou relatando sobre as ausências da mãe e do


pai, suas idas e vindas entre unidades de acolhimento institucional e casas de parentes; emergiram
em sua fala a dificuldade de manter uma vida dita “normal”, nos “padrões”, e sobre o começo de
sua relação conflituosa com a escola e com tudo que interpõe rotinas e regras.
Vivenciando um contexto de trajetórias afetivas interrompidas, a adolescente narrou a
história e o motivo pelo qual veio cumprir medida socioeducativa na Casa de Semiliberdade
“Belô”, sobre a relação com o uso de drogas e as interrupções do seu percurso escolar.

(…) Aí, eu briguei com a mulher lá no abrigo. Aí que deu esse


desembolo todo. É que eu fumo maconha, aí, eu tinha chegado drogada,
eu tomei meu banho, mas eu tinha usado muita droga, misturado
balinha6 com maconha. Aí, eu fiquei muito ruim. Tava subindo o morro,
assim, caindo aos pedaços. Aí, eu peguei, tentei sair e a mulher falou:
Não, não vai sair não. Cê tá drogada, nós vai chama o diretor, o diretor
tá vindo e vai conversar com ocê. Eu num quero conversa com ninguém,
não. Quero ninguém pra conversar comigo, não. Aí, ela falou:
―Esmeralda, fica de boa. De boa, nada. Aí, comecei a bater nela. Aí, ela
subiu pro andar de cima e chamou a polícia.
Aí eu dormi, né? Porque a maconha dá um sono, dá uma fome. Aí, eu
comi, deitei no sofá e apaguei. Aí, quando deu umas três horas, a polícia
chego. Aí, as meninas gritando e eu tava, assim, meio tonta. Quê que foi?
Quê que foi? Aí, falou assim: A polícia tá aí, Esmeralda. Cê tá presa de
novo. Aí, me colocaram naquela bundinha do carro, lá. Que é naquela
gaiola. Aí eu fiquei lá. Aí, eles me levaram pra delegacia. Aí, quando
chegou na delegacia, conversei com o delegado. Aí, o delegado falou que
eu tava muito nervosa e que eu ia ficar um dia no HPS7. Eu num vô fica
lá, não, num vó fica lá, não. Aí, ele falou: Nós vamos colocar ocê é no
lugar dos doidos, que é isso que você é.

As vivências fragmentadas por transitar em diferentes núcleos familiares e unidades de


acolhimento institucional são relatadas pela adolescente. Assis e Constantino (2001) descreveram
a inconstância do núcleo familiar com a metáfora “feito bolinhas de ping-pong”, que pode ter
implicações sérias no desenvolvimento infantil. Por consequência, os sentidos que a jovem dá a
essas mudanças, são, sobretudo, de perdas, uma vez que ela relatou o sentimento de abandono de
figuras simbólicas significativas. Não obstante, como dito anteriormente, se não houver um
substituto afetivo, as adolescentes podem apresentar sentimentos de desamparo ou a crença de
que ninguém se importa com elas.
Na Casa de Semiliberdade “Belô”, Esmeralda apresentava muitos problemas nas relações
com as outras adolescentes, com os(as) agentes e com os(as) trabalhadores da instituição. Era
referenciada com frequência de forma antipatizada e conhecida pelo seu comportamento
opositor, pelos seus rompantes e pela sua ansiedade. A adolescente participou ativamente de

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todas as atividades propostas, sendo que o comportamento opositor só ocorria quando ela era
interpelada, ou provocada. Como as pessoas já sabiam de suas respostas a esses estímulos, as
provocações aconteciam constantemente e, muitas vezes, as “comissões” 8 que levou foram em
decorrência disto.
É importante notar que, diferentemente do que, via de regra, acontece no sistema
socioeducativo, Esmeralda já não aderia às normas, quando estava em unidades de acolhimento
institucional. A adolescente colocava a medida socioeducativa como algo negativo, mesmo
podendo ter acesso à escola, cursos e outras atividades com mais facilidade, na contramão do
contexto social em que ela vivia.
A adolescente não ia à escola regularmente, enquanto estava morando em unidades de
acolhimento institucional. Na Casa de Semiliberdade “Belô”, também não frequentou a escola. À
época, diziam que estavam encontrando dificuldades para matricular a adolescente, pelo fato dela
ter chegado mais ao final do ano, especificamente em setembro. Quando questionada novamente
sobre a escola, Esmeralda ratificou seu amor pelo handebol, falou sobre matar aulas e criticou
outros processos da escola.

(…) No começo, eu gostava da escola, agora, num gosto mais, não. Estudá é o
maió ruim. Eu não gosto, não. Quando entrei para a escola, só a professora e a
minha irmã que me ajudava. Para casa, minha irmã colocava eu pra fazê. O que
eu sabia, fazia, o que eu não sabia, eu chamava ela. Aí, ela me ajudava. Aí, eu
odeio essas continhas do capeta, aquelas divisão, lá. Por isso que eu não gosto
de escola. É o maior chato escola. Aí tem vez que a professora explica. Aí fala:
Entendeu? Aí, todo mundo lá: Entendeu. E eu não entendi nada. Eu não quero
fala que eu não entendi. É, ué.
(…) Vou falar aqui que só volto a estudar, se eu fazer handebol. Meu sonho é ser
jogadora profissional de handebol. Antes, quando eu não usava droga, depois
passei a fumar até às 10 horas, pra onda passar e eu jogar na escola à tarde.
Tendeu?

Questionada sobre seus sonhos e perspectivas de futuro, a adolescente ressaltou: Se eu


tivesse uma oportunidade de jogar num clube, eu ia tentar de tudo pra dar certo. Só o handebol.

(…) Eu quero sair daqui e viver uma vida normal, como todo mundo vive.
Agora, nesse instante, eu não vou mudar, não, mas, com o tempo, eu acho que
eu mudava. A gente não muda de uma hora pra outra, né? Eu quero que minha
mãe sai, pra mim morar com ela. Ela sai daqui a cinco anos e seis meses.“Me dá
um abraço?” (Abraço! Silêncio! Lágrimas!)

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4.4 Diamante

Diamante estava com dezoito anos quando participou da pesquisa. Nasceu e passou a
infância no bairro Providência, situado na região norte da capital mineira. Segundo os dados da
Secretaria de Gestão Compartilhada da Prefeitura de Belo Horizonte, esta é a regional que possui
o menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da Capital Mineira. Posteriormente,
Diamante foi morar no bairro Concórdia, situado na região nordeste da cidade.
É a segunda filha, de uma família de quatro irmãos, e não conheceu o pai biológico,
sendo que foi o padrasto, já separado da mãe, que a registrou. Vivia no mesmo lote com a mãe,
os irmãos e os avós. Neste momento da entrevista narrativa, Diamante expôs, com tristeza, a
perda da avó e a prisão do irmão mais velho, na época com vinte anos, que cumpria pena em
regime fechado na cidade de Bicas, região metropolitana de Belo Horizonte.

(…) Minha mãe me ajudava a fazer as tarefas. Minha mãe e minha vó. Meu vô
morreu mais cedo que minha vó. Era uma família unida na mesma casa. Minha
vó morreu, era tudo pra mim, quando ela morreu, eu quase morri também.
Tenho três irmãos. Eu, o de seis e o mais velho, de vinte. Gosto muito dele. Ele
tá preso em Bicas. Vou visitar ele, vou lá pegar o cadastro. Independente de
tudo, eu amo ele. Na primeira visita da minha mãe, minha mãe falou que a
primeira coisa que ele perguntou foi de mim: E a Diamante, mãe? -Tá presa!
Diz que ele chorou demais. Falou: Falei pra ela ficar de boa, cuidar da filha. Ele
fala da nossa filha, né! Nossa menina. Ele ama ela. Ela gosta dele demais. Tinha
vez que ele ficava olhando ela. Fazia ela dormir. Ele pegou 32 anos. Tá fazendo
uns artesanatos lá dentro.

Diamante engravidou aos quatorze anos, sendo que o pai não assumiu a filha. Durante a
gravidez, conheceu outro rapaz com quem mantinha um relacionamento até a data da entrevista.
Foi esse companheiro que lhe assistiu durante o parto, e sua filha o reconhecia como pai. A mãe
de Diamante também engravidou, após ela ganhar sua bebê, e a adolescente contou que ela
mantinha com a mãe uma relação ambígua, onde havia horas em que ela pensava que fosse a mãe
e havia horas em que ela pensava que era a filha. Abaixo alguns relatos que ela fez a respeito da
sua gravidez, seu parto e a relação com a mãe.

(…) Meu namorado. Vai fazer quatro anos que tamo junto. Minha filha chama
ele de papai. Eu queria trabalhar, eu quero ter mais um. Quando minha filha
nasceu, meu namorado assistiu. Ele e minha mãe ficaram fazendo umas caras
estranhas, lá. Eu fiquei na banheira, mas não ganhei na banheira, não. Tiveram
que romper minha bolsa. Ganhei anestesia, não. Nem ponto. Pôs um remédio
lá, foi dilatando, pegou um canudo, estourou minha bolsa, aí, eu ganhei minha
filha, 2h02, da madrugada. Minha mãe ganhou eu e meus irmãos tudo normal.

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(…) Ela apanha demais. Eles ficam batendo na menina. Eu não pus filho no
mundo pra ser espancada. Eu já apanhei demais. Minha mãe me batia, porque
eu fazia coisa errada. Me batia na adolescência. A minha filha é, é boazinha, mas
ela é muito agitada. Minha mãe ficou sabendo que tava grávida com seis meses.
Eu falei pra ela: “Sua barriga tá grande. Cê tá grávida”. Ela: “Grávida, não.
Engordei”. “Então, tá”. Fez exame. Seis meses. Primeiro falaram que era
gastrite. Tava enjoando muito. Muita dor no estômago. Passaram um remédio,
lá. Remédio preto, tipo conhaque. Nossa, minha mãe passava mal demais.
Depois foi descobrir que era neném. Aí, o médico passou uns remédios pra ela,
lá. Fez ultrassom e descobriu que era menino. Já tava dando pra ver. O único
difícil que eu tô achando é que eu tô longe dela, né. Aí, eu vou, vejo ela no final
de semana. Mas, pra criar, assim, não é difícil, não. Não é difícil, porque minha
mãe me ajuda, porque, se eu fosse sozinha, tava lascada. Eu dou graças a Deus
por ter a minha mãe. Eu e o pai dela não é junto mais, não. Mas, aí, eu tenho o
meu namorado.

Quando Diamante falou sobre a escola, disse da enorme dificuldade que tinha para
aprender os conteúdos escolares, além da impaciência em ter que ficar na sala de aula, pois não
compreendia o que os professores explicavam. Na adolescência teve seu primeiro contato com o
tráfico de drogas e foi assim que aprendeu, de cabeça, as contas de matemática. Segundo ela,
precisava de dinheiro e não poderia errar. A relação com o saber e os sentidos da aprendizagem
para a adolescente estavam intrinsecamente relacionados à sobrevivência.

(…) A escola é ruim. É que eu nem gostava de estuda, não. Num dava vontade
de estuda, não. Porque antes eu só queria fica na rua, pra mim a rua era mais
legal. Antes, eu ficava, eu ia pra escola e até matava aula. Eu ficava com meus
colegas de resenha. Aí, minha mãe me batia, minha mãe me cobrava. A minha
mãe me tirava da rua. Tinha vez que eu era expulsa da escola. Eu brigava na
escola. Na escola tinha vez que eu ficava dentro, tinha vez que eu ficava fora.
Nóis ficava dormindo lá fora, conversando. Na escola eu fico olhando, assim,
vejo outras pessoas passando nas provas e eu tirano nota baixa, né? Aí, eu
falava assim “Eu não sirvo pra estuda não, né?”. Mas eu faço um esforço, né?
Eu tenho dificuldade em matemática, mais ou menos, senão eu me ferro,
porque não posso erra nas contas. Eu gosto dos professores, as coisas é que são
difícil, mermo. Antes de vir pra cá, eu estava três anos sem estudá. Escola não é
pra mim. Aí, eu fui presa de novo, por causa do tráfico de drogas. E agora eu
fiz dezoito.

Podemos utilizar, nesse caso, o conceito de reconhecimento perverso (SALLES, 2007), a


adolescente, na busca por emancipação, isto é, superação das dificuldades concretas de existência,
de como suprir suas necessidades de subsistência, encontrou na infração uma possibilidade para
se construir enquanto sujeito. Ao avaliar a “vida no crime”, disse que ela era da vida “loka”, que
no crime o “papo é reto”, você não pode errar e, se errar, tem que segurar o “bonde”, cada um
andando na sua linha. Com o dinheiro ganho com a venda de entorpecentes, Diamante narrou

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que comprava coisas que a filha necessitava, ajudava nas despesas de casa, comprava roupas para
si e produtos de uso pessoal. Relatou que suas maiores diversões eram curtir baile e “dar umas
pichadas” por aí.
Muito apaixonada pelo namorado, quando questionada sobre seus sonhos e desejos,
Diamante sempre se referiu a ele, dizendo que estava pensando seriamente em sair “dessa vida
loka”, somente por ele. Pontuou que, depois de tanto tempo fora da escola, voltar a estudar,
durante o cumprimento da medida socioeducativa, foi importante, pois a ajudaria a realizar seus
objetivos.

4.5 Safira

Safira tinha quinze anos, quando participou desta pesquisa, e era a caçula de três irmãos.
Morava num lote, com a família, na regional leste de Belo Horizonte, no Alto Vera Cruz.
Segundo os últimos dados lançados pelo Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ/PBH), a região
do Alto Vera Cruz é uma das regiões da cidade mais vulneráveis, com um alto índice de letalidade
juvenil, sendo que um dos fatores importantes é a incidência pesada do tráfico de drogas. Aos
quatro anos, Safira viu o pai e a mãe serem assassinados pelo tráfico. A avó, que morava no
mesmo lote dos pais, passou a cuidar dela e dos irmãos. Safira pouco falava. Extremamente
observadora, fazia tudo o que lhe pediam, com rapidez, e quase não se envolvia em nenhuma
confusão. Realizou todos os cursos propostos pela Casa de Semiliberdade “Belô” e, à época da
pesquisa, estava fazendo um curso de confeitaria. Durante as inserções da pesquisadora na Casa,
sempre dava um jeito de se sentar ao lado desta última e, do nada, ia sussurrando o que queria
dizer em meus ouvidos. Deixava os(as) agentes “loucos(as)”, pois ninguém conseguia captar o
que ela realmente estava dizendo. Quando percebia que Esmeralda novamente havia “caído
numa jogada” e levado mais uma comissão, me dizia: “(…) É burra demais, já cansei de falar pra
ela pra calar a boca, se fazê de besta, aqui tem hora e lugar pra falá as coisas. Tem que sabê como,
quando é hora”.
Muito perspicaz e inteligente, Safira não apresentava problemas na escola e cursava o
oitavo ano do ensino fundamental. Porém, não escondia sua relação forte com o tráfico, um dos
motivos pelo qual estava cumprindo a medida socioeducativa. O outro motivo foi um acerto de
contas onde houve uma tentativa de homicídio a outra adolescente, durante um baile funk. Safira
era reincidente, já tendo passado várias vezes pelo sistema socioeducativo. Realmente, era uma
adolescente de poucas palavras e um dia chegou atrasada para uma roda de conversa, pois tinha
ido ao Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Atos Infracionais (CIA/BH),

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em decorrência de uma audiência. Na sua chegada, perguntou rapidamente o que estávamos


fazendo e se poderia participar. Dado o aceite, sentou-se e começou a conversar, nos contando
detalhes da audiência e sobre os garotos do Alto Vera Cruz que tinha encontrado lá.

(...) Ei, fessora! Vou querer participar. Advinha quem foi preso de novo?
Quem? (Pronunciou o nome do adolescente). Tava chutando os carro, tá preso
de novo. Naquela hora que eu cheguei lá, um bocado de meninos dentro do
carro. Aí, a dotora de cabelo curtinho me atendeu, uma que usa óculos. O
menino voltou tirando os cara. E você acha que os home num percebeu que os
que tava lá tava é tirano os chefes? Os meninos do tráfico, do varejão. Tavam lá
pagando o boi por causa do bagulho, tirano a chefia, de novo.

Quando questionada sobre seus sonhos, Safira disse, com tristeza, da morte da sua avó
que estava com câncer. Falou das dificuldades enfrentadas por ela e os irmãos, em razão da
ausência dela, e que, sobre sonhos, ela queria mesmo era sair dali, o mais rápido possível, e viver
um dia de cada vez.

5 Considerações Finais

Diante da possibilidade de realizar uma análise das narrativas de histórias de vida das
“minas na semi”, esta metodologia pode ter limitado a interpretação dos dados e, certamente,
nosso olhar não abarcou toda a complexidade envolta nas situações de vulnerabilidades e conflito
com a lei, acometidas pelas adolescentes. Destarte, acreditamos que trabalhar com narrativas foi
um recurso importante para que as adolescentes pudessem explicitar seus processos de
(re)significações.
Em que pese a singularidades das histórias de vida das adolescentes pesquisadas, notamos
que o perfil das adolescentes desta pesquisa não destoa do perfil identificado em outras pesquisas
que trataram da temática infração juvenil feminina (ASSIS, 2001; FACHINETTO, 2008). Das
quatro adolescentes participantes, todas apresentaram defasagem escolar, com distorção idade-
série. Todas eram oriundas de classes pobres e apenas uma se autodeclarou branca. Apenas uma
das adolescentes conhecia o pai biológico e a maioria provinha de lares cuja subsistência vinha
das mulheres (mães/avós), sendo que para todas o cumprimento de medida socioeducativa foi a
porta de entrada para acessar direitos fundamentais anteriormente violados, tais como
escolarização, saúde, lazer.
As drogas se fizeram presentes na vida das adolescentes e o contato se deu em níveis
diferenciados quanto ao uso e abuso. Reiteramos o caso de uma adolescente que estava
cumprindo medida, pelo seu ato infracional ter início com o uso de drogas, uma vez que a

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situação de drogadição a levou a cometer ameaças e lesão corporal, em desfavor da trabalhadora


da unidade de acolhimento institucional em que estava. Esta adolescente encontrava-se, desde a
primeira infância, em uma espiral crescente de vulnerabilidade.
A ação proposta de escutar as adolescentes nos levou a repensar no totalitarismo que
ronda nossas condutas e a refletir que, se o poder fosse potencializado produtivamente, no
sentido de produzir comportamentos, atitudes, ideias e criação de canais de comunicação, o
sistema socioeducativo teria a perspectiva de ser esculpido com a participação e o protagonismo
dos(as) adolescentes, sendo permeado pelo cuidado de si, enquanto experiência de
(re)significações.
As adolescentes apontaram, em suas narrativas, que a execução das medidas
socioeducativas na Casa de Semiliberdade “Belô” se direcionava para a natureza punitiva e
retributiva, com vieses de proteção temporária. Essa natureza nos remete ao reducionismo
característico da doutrina de situação irregular, proposto pelo Código de Menores, a despeito das
normativas nacionais e internacionais que tratam a execução da medida, potencializando seus
aspectos sociais e pedagógicos, como diretrizes dos processos socioeducativos.
Reconhecer a existência de rastros da doutrina da situação irregular na ação
socioeducativa é um enfrentamento que precisa ser feito. Mais do que isso, é algo que se coloca
impositivamente quando há o reconhecimento das medidas socioeducativas como não
meramente punitivas. Provavelmente seja essa a mais difícil das tarefas: superá-la e resolvê-la, um
desafio que precisamos transpor para atendermos aos preceitos da doutrina da proteção integral.
Os processos envolvendo a sanção/comissão revelaram a atenção com a disciplina,
negociadas com dispositivos que tinham pouco a ver com as propostas socioeducativas
apontadas no SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo). Esses jogos
simbólicos estabelecidos discricionariamente para a promoção da disciplina, ordem e sensação de
segurança, compelem às adolescentes demarcações hierarquizadas, relacionadas ao gênero.
Assim, sinalizamos a necessidade de produzir diálogos e pesquisas que atentem para a
execução das medidas socioeducativas contemplando a categoria gênero em seus pressupostos
teóricos e práticos, reconhecendo as adolescentes como sujeitos, apesar da sua reduzida
representatividade na privação de liberdade. Elas existem e estão nos programas de atendimento
socioeducativo indicando que a categoria gênero circunda o sistema socioeducativo.
Sem a intenção de abranger todo o contexto da medida de semiliberdade, é relevante e
urgente qualificar esta medida como alternativa de potencialidade, essencialmente socioeducativa
e comunitária, como um contraponto à internação. E, assim, canalizar os recursos da política

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pública para esta medida seria importante, visto a necessidade de implementar, no sistema
socioeducativo de semiliberdade, Casas de Semiliberdade para o atendimento do público
feminino nas comarcas do interior do Estado.
Diante da narrativa das adolescentes, a escola ocupa lugar fundamental na execução da
medida socioeducativa, visto que todas as “minas” estavam com suas trajetórias escolares
interrompidas e que a reinserção no contexto escolar possibilitou novas oportunidades de
socialização com os pares, com a comunidade escolar e com as (re)significações acerca de suas
histórias e seus sonhos. Apesar das narrativas carregarem histórias de dificuldades de
aprendizagem e exclusão escolar, todas as adolescentes percebiam a escola enquanto um lugar de
estabilidade, conhecimento, possibilidade de acessão social, acolhimento e socialização.
Por fim, acreditamos que a pesquisa qualitativa com entrevistas narrativa pôde provocar
mudanças na forma como as adolescentes compreendiam a si próprias e aos outros, sendo
possível fazer uma nova leitura de si. Foi um estudo da experiência como história, principalmente
uma forma de pensar sobre a experiência, que pode ser desenvolvida apenas pelo contar histórias,
e pelo vivenciar histórias. Nesse sentido, a narrativa foi o método de pesquisa e ao mesmo tempo
o fenômeno pesquisado.

1 Casa Belô: durante o percurso da pesquisa, esse foi o nome fictício que as adolescentes escolheram para denominar
a Casa de Semiliberdade em que estavam.
2 Na investigação realizada, a qual aqui narramos, “as adolescentes pesquisadas escolheram num processo circular

serem denominadas coletivamente como “minas” e individualmente pelo nome de uma pedra preciosa.
3 Durante o campo da pesquisa, foi possível perceber que as adolescentes se referiam ao cumprimento da sanção

como pagamento de comissão, seguindo a mesma lógica quando repetiam que estavam “pagando” medida
socioeducativa. Todas as adolescentes referiam se ao cumprimento da medida sob a forma de “pagar a medida”.
Percebeu-se que estavam em situação de extrema vulnerabilidade social, devido à negativa de acessos aos serviços
do Estado, tendo muitos de seus direitos constitucionais negados. No entanto, colocavam-se simbolicamente
enquanto devedoras deste mesmo Estado que as invisibilizava e negava direitos a elas.
4 A expressão “tretas” é uma gíria utilizada pela adolescente referindo-se a problemas.
5 UPA: Unidade de Pronto Atendimento.
6 Metanfetamina, popularmente conhecida como “balinha”, é uma droga sintética estimulante cujos efeitos se

manifestam no sistema nervoso central e periférico.


7 HPS – Hospital de Pronto Socorro, onde são atendidas emergências médicas.
8 Comissão: as adolescentes se referiam às sansões recebidas por alguma falta disciplinar ou ao regimento com a

expressão “pagar comissão”

Referências

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Recebido em: 28 fev. 2020 / Aprovado em: 15 abr. 2020

Cite como (ABNT 6023:2018)


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2020. Disponível em: https://doi.org/10.5585/Dialogia.N34.16706.

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