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https://doi.org/10.5585/Dialogia.N34.16706
Resumo: O presente artigo discute as possibilidades da entrevista narrativa como recurso teórico-
metodológico na pesquisa qualitativa em que a autora posiciona suas leituras acerca das representações
construídas por adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. Relata-se o percurso
investigativo e os exercícios contínuos que intencionaram traduzir com inteligibilidade o que as
adolescentes pesquisadas trouxeram nas suas narrativas. A utilização das entrevistas narrativas orientou-se
pela necessidade de compreender como as adolescentes (re)significavam o cumprimento da medida
socioeducativa. Focalizando as experiências singulares de cada adolescente, observou-se que as narrativas
provocam mudanças nas formas como os sujeitos compreendem a si próprios, aos outros e, por este
motivo, são importantes estratégias causadoras de reflexão numa perspectiva emancipatória e de
protagonismo juvenil. Conclui-se que essa metodologia possibilitou a aproximação entre a pesquisadora e
as adolescentes, evidenciando a dimensão subjetiva no processo narrativo.
Introdução
Para quem escrevemos? Quem serão os sujeitos estudados? Quais contextos? Quais
teorias? Quais resultados? Será que a pesquisa tem relevância ou faz sentido? Essas são reflexões
pertinentes quanto tratamos da metodologia da pesquisa narrativa. Questões que devem ser
consideradas demandas recorrentes à pesquisa narrativa como, por exemplo, o ir e vir durante o
processo, que consiste no percurso da pesquisa, além da reflexão contínua, denominado por
Clandinin e Connelly (2011) como estado de alerta.
Com a finalidade de utilizar no trabalho a metodologia da pesquisa narrativa, refletimos
acerca dos termos citados por Clandinin e Connelly (2011), onde os aspectos pessoal e social são
utilizados para tratar as interações de tempo, a fim de desenvolver noções de continuidade e
lugares para marcar situações. Como o objeto de estudo da pesquisa narrativa são os sujeitos
narrados, esses sujeitos precisam ser compreendidos enquanto aqueles que estão em interação
num dado contexto social.
É importante entender a relação dialética entre teoria e realidade. Ao mesmo tempo que a
realidade informa a teoria, esta, por sua vez, a antecede e permite percebê-la, reformulá-la, dar
conta dela, num processo sem fim de distanciamento e aproximação (MINAYO, 2016, p.92).
Este movimento precisa estar presente na prática investigativa que utiliza as narrativas como
fonte de conhecimento. É importante não aprisioná-las, a priori, em categorias teóricas pré-
definidas, porque este procedimento seria fortemente um cerceador do relato espontâneo.
Nesse sentido, a experiência é um fator importante para o desenvolvimento da pesquisa
narrativa. Clandinin e Connelly (2011) entendem a experiência enquanto pessoal e social. A
“Experiência acontece narrativamente e a pesquisa narrativa é uma forma de experiência
narrativa” (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p.49).
Na busca por compreender o que diziam as “minas” que se encontravam em situação de
cumprimento de medida socioeducativa de semiliberdade, ficou evidenciado, por meio de suas
narrativas, que elas falavam das violações sofridas envolvendo racismo, preconceitos sobrepostos
em desigualdades sociais e de gênero, multiplicando os estigmas que permitiam “punir” as
adolescentes por meio das “leis morais” institucionalizadas pelos usos e costumes e pelo
próprio Estado que controlam os comportamentos de gênero.
4 Narrativas sobre a vida das adolescentes fora da medida, da vida na medida e da vida
sem medida
4.1 Rubi
como o pai. Foi observado que a adolescente tinha no pulso uma tatuagem com as iniciais do
nome da mãe e do padrasto e ela disse que tinha muita raiva dele e que a primeira coisa que faria
quando saísse da casa de semiliberdade seria retirar a parte que fazia referência a ele na sua
tatuagem. Também referiu-se com muita mágoa aos abusos sexuais sofridos na adolescência,
sendo que, nesta parte da entrevista, Rubi ficou muito tempo calada e lágrimas silenciosas
escorriam por sua face. Continuando sua história, falou sobre nunca ter tido coragem de contar
para a mãe e nem para ninguém. Mas que foi a partir daí que começou a ficar uma adolescente
muito revoltada, que desobedecia a mãe e só queria saber de ficar na rua. Foi então que, com a
idade de doze para treze anos, conheceu um rapaz, dizendo que ele era muito ciumento. Foi
questionado se ela parou de estudar nesta época, e Rubi respondeu que sim, por causa dos ciúmes
do namorado e de umas “tretas”4 que arrumaram para cima dela na escola. À época do
cumprimento da medida socioeducativa, a adolescente estava terminando, no período noturno, o
último ano do ensino fundamental. Rubi disse que achava a escola “mega importante”, pois só
não estava no regime fechado, por causa das aulas de ciências.
(…) Óóóó o que o meu professor explicou: que uma faca, pra atingir o coração,
tem que pegar por trás, porque aqui na frente, por causa dos ossos, não atinge,
então, aí eu levei pra minha advogada, minha advogada fez minha defesa e, no
julgamento, me ajudou e, por isso, eu peguei semi. E também porque foi em
legítima defesa, porque ele tentou me matar, me agrediu e fez um monte de
covardia, né, comigo… A escola me salvou sabe.
Quando Rubi se referiu à covardia, foi perguntado a ela sobre o quê especificamente
estava falando.
(…) Me espancou, queria me matar asfixiada, eu tirei ele de cima de mim e
peguei a faca e falei para ele não vir pra cima, a minha intenção era acertar o
braço dele, porque, aí, ele parava, porque ele tinha amolado esta faca pra me
matar. Aí, eu fui e acertei ele, só que, aí, eu levei ele na UPA5, socorri ele, só
que, aí, depois de seis horas, ele não aguentou, porque, como ele fumava muito
e as veias tava tudo entupida por causa do cigarro, e ele não aguentou e faleceu.
Quando foi questionado o que ela pensava depois de ter passado por tudo isto, Rubi
respondeu:
(…) Pra mim foi aprendizado, né, porque primeiramente isto tudo aconteceu,
porque eu não escutei a minha mãe, infelizmente, porque, se eu tivesse
escutado ela, eu não estaria aqui. Mas eu não vejo isto aqui como uma coisa
ruim, sabe, é um aprendizado pra mim levar pra minha vida toda, porque eu,
passado isto aqui, eu vou ter consciência do que eu vou fazer daqui pra frente,
porque eu não quero voltar aqui mais, eu não vou ficar aprontando, pra voltar
não só aqui, ou pra outros lugar pior, né, porque não é só aqui que é ruim, aliás,
isto aqui não é vida, não. Então, eu tô com o pensamento de melhorar, ter as
minhas coisas, ter dinheiro, comprar minha moto, ter minha casa e trabalhar.
Sobre sonhos, foi feita escuta sem demora e hesitação: “meu sonho é casar e ter uma casa.
Mas o meu sonho mais louco mesmo é conhecer os jogadores do Cruzeiro”. Posteriormente foi
dialogado sobre o tempo em que ela passou na casa de semiliberdade, sobre o que ela achava da
medida, sobre o futuro, de como ela percebia positivamente a escola como um lugar de
possibilidades, ascensão social, mudança de vida, convivências e vivências da adolescência, mais
livremente.
(…) Porque, aí, eu percebi o tempo que eu perdi, eu perdi dois anos de escola,
perdi dois anos de aprendizado. Eu quero montar o meu salão. Então, minha
amiga está fazendo psicologia, aí, eu vou estudar, não sei qual faculdade eu
quero fazer, mas eu quero fazer faculdade. Passou rápido, né? Todo dia, então,
eu acostumei com isto. Eu não aguento ficar aqui, acostumei sair todo dia, ir na
escola de noite. Aí, nas férias, é muito difícil pagar, ficar aqui todo o dia, muito
difícil pagar, mas está acabando, não vejo a hora.
4.2 Esmeralda
Penúltima filha de seis irmãs e um irmão, Esmeralda estava com treze anos quando
participou da pesquisa. O pai e a mãe estavam presos. Ela e a irmã residiam em unidades de
acolhimento institucional diferentes, até a época do acautelamento de Esmeralda. A adolescente
relatou que os outros irmãos mais velhos estavam “seguindo a vida”, sendo que um irmão e uma
irmã residiam e trabalhavam em São Paulo. Sempre que falou dos pais, Esmeralda referiu-se
recorrentemente à mãe, com muito carinho.
A adolescente é natural de Juiz de Fora, quarta cidade mais populosa de Minas Gerais e
está a uma distância de 283 km (duzentos e oitenta e três quilômetros) de Belo Horizonte. Juiz de
Fora possui uma unidade de internação e duas unidades de semiliberdade, sendo que nenhuma é
todas as atividades propostas, sendo que o comportamento opositor só ocorria quando ela era
interpelada, ou provocada. Como as pessoas já sabiam de suas respostas a esses estímulos, as
provocações aconteciam constantemente e, muitas vezes, as “comissões” 8 que levou foram em
decorrência disto.
É importante notar que, diferentemente do que, via de regra, acontece no sistema
socioeducativo, Esmeralda já não aderia às normas, quando estava em unidades de acolhimento
institucional. A adolescente colocava a medida socioeducativa como algo negativo, mesmo
podendo ter acesso à escola, cursos e outras atividades com mais facilidade, na contramão do
contexto social em que ela vivia.
A adolescente não ia à escola regularmente, enquanto estava morando em unidades de
acolhimento institucional. Na Casa de Semiliberdade “Belô”, também não frequentou a escola. À
época, diziam que estavam encontrando dificuldades para matricular a adolescente, pelo fato dela
ter chegado mais ao final do ano, especificamente em setembro. Quando questionada novamente
sobre a escola, Esmeralda ratificou seu amor pelo handebol, falou sobre matar aulas e criticou
outros processos da escola.
(…) No começo, eu gostava da escola, agora, num gosto mais, não. Estudá é o
maió ruim. Eu não gosto, não. Quando entrei para a escola, só a professora e a
minha irmã que me ajudava. Para casa, minha irmã colocava eu pra fazê. O que
eu sabia, fazia, o que eu não sabia, eu chamava ela. Aí, ela me ajudava. Aí, eu
odeio essas continhas do capeta, aquelas divisão, lá. Por isso que eu não gosto
de escola. É o maior chato escola. Aí tem vez que a professora explica. Aí fala:
Entendeu? Aí, todo mundo lá: Entendeu. E eu não entendi nada. Eu não quero
fala que eu não entendi. É, ué.
(…) Vou falar aqui que só volto a estudar, se eu fazer handebol. Meu sonho é ser
jogadora profissional de handebol. Antes, quando eu não usava droga, depois
passei a fumar até às 10 horas, pra onda passar e eu jogar na escola à tarde.
Tendeu?
(…) Eu quero sair daqui e viver uma vida normal, como todo mundo vive.
Agora, nesse instante, eu não vou mudar, não, mas, com o tempo, eu acho que
eu mudava. A gente não muda de uma hora pra outra, né? Eu quero que minha
mãe sai, pra mim morar com ela. Ela sai daqui a cinco anos e seis meses.“Me dá
um abraço?” (Abraço! Silêncio! Lágrimas!)
4.4 Diamante
Diamante estava com dezoito anos quando participou da pesquisa. Nasceu e passou a
infância no bairro Providência, situado na região norte da capital mineira. Segundo os dados da
Secretaria de Gestão Compartilhada da Prefeitura de Belo Horizonte, esta é a regional que possui
o menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da Capital Mineira. Posteriormente,
Diamante foi morar no bairro Concórdia, situado na região nordeste da cidade.
É a segunda filha, de uma família de quatro irmãos, e não conheceu o pai biológico,
sendo que foi o padrasto, já separado da mãe, que a registrou. Vivia no mesmo lote com a mãe,
os irmãos e os avós. Neste momento da entrevista narrativa, Diamante expôs, com tristeza, a
perda da avó e a prisão do irmão mais velho, na época com vinte anos, que cumpria pena em
regime fechado na cidade de Bicas, região metropolitana de Belo Horizonte.
(…) Minha mãe me ajudava a fazer as tarefas. Minha mãe e minha vó. Meu vô
morreu mais cedo que minha vó. Era uma família unida na mesma casa. Minha
vó morreu, era tudo pra mim, quando ela morreu, eu quase morri também.
Tenho três irmãos. Eu, o de seis e o mais velho, de vinte. Gosto muito dele. Ele
tá preso em Bicas. Vou visitar ele, vou lá pegar o cadastro. Independente de
tudo, eu amo ele. Na primeira visita da minha mãe, minha mãe falou que a
primeira coisa que ele perguntou foi de mim: E a Diamante, mãe? -Tá presa!
Diz que ele chorou demais. Falou: Falei pra ela ficar de boa, cuidar da filha. Ele
fala da nossa filha, né! Nossa menina. Ele ama ela. Ela gosta dele demais. Tinha
vez que ele ficava olhando ela. Fazia ela dormir. Ele pegou 32 anos. Tá fazendo
uns artesanatos lá dentro.
Diamante engravidou aos quatorze anos, sendo que o pai não assumiu a filha. Durante a
gravidez, conheceu outro rapaz com quem mantinha um relacionamento até a data da entrevista.
Foi esse companheiro que lhe assistiu durante o parto, e sua filha o reconhecia como pai. A mãe
de Diamante também engravidou, após ela ganhar sua bebê, e a adolescente contou que ela
mantinha com a mãe uma relação ambígua, onde havia horas em que ela pensava que fosse a mãe
e havia horas em que ela pensava que era a filha. Abaixo alguns relatos que ela fez a respeito da
sua gravidez, seu parto e a relação com a mãe.
(…) Meu namorado. Vai fazer quatro anos que tamo junto. Minha filha chama
ele de papai. Eu queria trabalhar, eu quero ter mais um. Quando minha filha
nasceu, meu namorado assistiu. Ele e minha mãe ficaram fazendo umas caras
estranhas, lá. Eu fiquei na banheira, mas não ganhei na banheira, não. Tiveram
que romper minha bolsa. Ganhei anestesia, não. Nem ponto. Pôs um remédio
lá, foi dilatando, pegou um canudo, estourou minha bolsa, aí, eu ganhei minha
filha, 2h02, da madrugada. Minha mãe ganhou eu e meus irmãos tudo normal.
(…) Ela apanha demais. Eles ficam batendo na menina. Eu não pus filho no
mundo pra ser espancada. Eu já apanhei demais. Minha mãe me batia, porque
eu fazia coisa errada. Me batia na adolescência. A minha filha é, é boazinha, mas
ela é muito agitada. Minha mãe ficou sabendo que tava grávida com seis meses.
Eu falei pra ela: “Sua barriga tá grande. Cê tá grávida”. Ela: “Grávida, não.
Engordei”. “Então, tá”. Fez exame. Seis meses. Primeiro falaram que era
gastrite. Tava enjoando muito. Muita dor no estômago. Passaram um remédio,
lá. Remédio preto, tipo conhaque. Nossa, minha mãe passava mal demais.
Depois foi descobrir que era neném. Aí, o médico passou uns remédios pra ela,
lá. Fez ultrassom e descobriu que era menino. Já tava dando pra ver. O único
difícil que eu tô achando é que eu tô longe dela, né. Aí, eu vou, vejo ela no final
de semana. Mas, pra criar, assim, não é difícil, não. Não é difícil, porque minha
mãe me ajuda, porque, se eu fosse sozinha, tava lascada. Eu dou graças a Deus
por ter a minha mãe. Eu e o pai dela não é junto mais, não. Mas, aí, eu tenho o
meu namorado.
Quando Diamante falou sobre a escola, disse da enorme dificuldade que tinha para
aprender os conteúdos escolares, além da impaciência em ter que ficar na sala de aula, pois não
compreendia o que os professores explicavam. Na adolescência teve seu primeiro contato com o
tráfico de drogas e foi assim que aprendeu, de cabeça, as contas de matemática. Segundo ela,
precisava de dinheiro e não poderia errar. A relação com o saber e os sentidos da aprendizagem
para a adolescente estavam intrinsecamente relacionados à sobrevivência.
(…) A escola é ruim. É que eu nem gostava de estuda, não. Num dava vontade
de estuda, não. Porque antes eu só queria fica na rua, pra mim a rua era mais
legal. Antes, eu ficava, eu ia pra escola e até matava aula. Eu ficava com meus
colegas de resenha. Aí, minha mãe me batia, minha mãe me cobrava. A minha
mãe me tirava da rua. Tinha vez que eu era expulsa da escola. Eu brigava na
escola. Na escola tinha vez que eu ficava dentro, tinha vez que eu ficava fora.
Nóis ficava dormindo lá fora, conversando. Na escola eu fico olhando, assim,
vejo outras pessoas passando nas provas e eu tirano nota baixa, né? Aí, eu
falava assim “Eu não sirvo pra estuda não, né?”. Mas eu faço um esforço, né?
Eu tenho dificuldade em matemática, mais ou menos, senão eu me ferro,
porque não posso erra nas contas. Eu gosto dos professores, as coisas é que são
difícil, mermo. Antes de vir pra cá, eu estava três anos sem estudá. Escola não é
pra mim. Aí, eu fui presa de novo, por causa do tráfico de drogas. E agora eu
fiz dezoito.
que comprava coisas que a filha necessitava, ajudava nas despesas de casa, comprava roupas para
si e produtos de uso pessoal. Relatou que suas maiores diversões eram curtir baile e “dar umas
pichadas” por aí.
Muito apaixonada pelo namorado, quando questionada sobre seus sonhos e desejos,
Diamante sempre se referiu a ele, dizendo que estava pensando seriamente em sair “dessa vida
loka”, somente por ele. Pontuou que, depois de tanto tempo fora da escola, voltar a estudar,
durante o cumprimento da medida socioeducativa, foi importante, pois a ajudaria a realizar seus
objetivos.
4.5 Safira
Safira tinha quinze anos, quando participou desta pesquisa, e era a caçula de três irmãos.
Morava num lote, com a família, na regional leste de Belo Horizonte, no Alto Vera Cruz.
Segundo os últimos dados lançados pelo Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ/PBH), a região
do Alto Vera Cruz é uma das regiões da cidade mais vulneráveis, com um alto índice de letalidade
juvenil, sendo que um dos fatores importantes é a incidência pesada do tráfico de drogas. Aos
quatro anos, Safira viu o pai e a mãe serem assassinados pelo tráfico. A avó, que morava no
mesmo lote dos pais, passou a cuidar dela e dos irmãos. Safira pouco falava. Extremamente
observadora, fazia tudo o que lhe pediam, com rapidez, e quase não se envolvia em nenhuma
confusão. Realizou todos os cursos propostos pela Casa de Semiliberdade “Belô” e, à época da
pesquisa, estava fazendo um curso de confeitaria. Durante as inserções da pesquisadora na Casa,
sempre dava um jeito de se sentar ao lado desta última e, do nada, ia sussurrando o que queria
dizer em meus ouvidos. Deixava os(as) agentes “loucos(as)”, pois ninguém conseguia captar o
que ela realmente estava dizendo. Quando percebia que Esmeralda novamente havia “caído
numa jogada” e levado mais uma comissão, me dizia: “(…) É burra demais, já cansei de falar pra
ela pra calar a boca, se fazê de besta, aqui tem hora e lugar pra falá as coisas. Tem que sabê como,
quando é hora”.
Muito perspicaz e inteligente, Safira não apresentava problemas na escola e cursava o
oitavo ano do ensino fundamental. Porém, não escondia sua relação forte com o tráfico, um dos
motivos pelo qual estava cumprindo a medida socioeducativa. O outro motivo foi um acerto de
contas onde houve uma tentativa de homicídio a outra adolescente, durante um baile funk. Safira
era reincidente, já tendo passado várias vezes pelo sistema socioeducativo. Realmente, era uma
adolescente de poucas palavras e um dia chegou atrasada para uma roda de conversa, pois tinha
ido ao Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Atos Infracionais (CIA/BH),
(...) Ei, fessora! Vou querer participar. Advinha quem foi preso de novo?
Quem? (Pronunciou o nome do adolescente). Tava chutando os carro, tá preso
de novo. Naquela hora que eu cheguei lá, um bocado de meninos dentro do
carro. Aí, a dotora de cabelo curtinho me atendeu, uma que usa óculos. O
menino voltou tirando os cara. E você acha que os home num percebeu que os
que tava lá tava é tirano os chefes? Os meninos do tráfico, do varejão. Tavam lá
pagando o boi por causa do bagulho, tirano a chefia, de novo.
Quando questionada sobre seus sonhos, Safira disse, com tristeza, da morte da sua avó
que estava com câncer. Falou das dificuldades enfrentadas por ela e os irmãos, em razão da
ausência dela, e que, sobre sonhos, ela queria mesmo era sair dali, o mais rápido possível, e viver
um dia de cada vez.
5 Considerações Finais
Diante da possibilidade de realizar uma análise das narrativas de histórias de vida das
“minas na semi”, esta metodologia pode ter limitado a interpretação dos dados e, certamente,
nosso olhar não abarcou toda a complexidade envolta nas situações de vulnerabilidades e conflito
com a lei, acometidas pelas adolescentes. Destarte, acreditamos que trabalhar com narrativas foi
um recurso importante para que as adolescentes pudessem explicitar seus processos de
(re)significações.
Em que pese a singularidades das histórias de vida das adolescentes pesquisadas, notamos
que o perfil das adolescentes desta pesquisa não destoa do perfil identificado em outras pesquisas
que trataram da temática infração juvenil feminina (ASSIS, 2001; FACHINETTO, 2008). Das
quatro adolescentes participantes, todas apresentaram defasagem escolar, com distorção idade-
série. Todas eram oriundas de classes pobres e apenas uma se autodeclarou branca. Apenas uma
das adolescentes conhecia o pai biológico e a maioria provinha de lares cuja subsistência vinha
das mulheres (mães/avós), sendo que para todas o cumprimento de medida socioeducativa foi a
porta de entrada para acessar direitos fundamentais anteriormente violados, tais como
escolarização, saúde, lazer.
As drogas se fizeram presentes na vida das adolescentes e o contato se deu em níveis
diferenciados quanto ao uso e abuso. Reiteramos o caso de uma adolescente que estava
cumprindo medida, pelo seu ato infracional ter início com o uso de drogas, uma vez que a
pública para esta medida seria importante, visto a necessidade de implementar, no sistema
socioeducativo de semiliberdade, Casas de Semiliberdade para o atendimento do público
feminino nas comarcas do interior do Estado.
Diante da narrativa das adolescentes, a escola ocupa lugar fundamental na execução da
medida socioeducativa, visto que todas as “minas” estavam com suas trajetórias escolares
interrompidas e que a reinserção no contexto escolar possibilitou novas oportunidades de
socialização com os pares, com a comunidade escolar e com as (re)significações acerca de suas
histórias e seus sonhos. Apesar das narrativas carregarem histórias de dificuldades de
aprendizagem e exclusão escolar, todas as adolescentes percebiam a escola enquanto um lugar de
estabilidade, conhecimento, possibilidade de acessão social, acolhimento e socialização.
Por fim, acreditamos que a pesquisa qualitativa com entrevistas narrativa pôde provocar
mudanças na forma como as adolescentes compreendiam a si próprias e aos outros, sendo
possível fazer uma nova leitura de si. Foi um estudo da experiência como história, principalmente
uma forma de pensar sobre a experiência, que pode ser desenvolvida apenas pelo contar histórias,
e pelo vivenciar histórias. Nesse sentido, a narrativa foi o método de pesquisa e ao mesmo tempo
o fenômeno pesquisado.
1 Casa Belô: durante o percurso da pesquisa, esse foi o nome fictício que as adolescentes escolheram para denominar
a Casa de Semiliberdade em que estavam.
2 Na investigação realizada, a qual aqui narramos, “as adolescentes pesquisadas escolheram num processo circular
serem denominadas coletivamente como “minas” e individualmente pelo nome de uma pedra preciosa.
3 Durante o campo da pesquisa, foi possível perceber que as adolescentes se referiam ao cumprimento da sanção
como pagamento de comissão, seguindo a mesma lógica quando repetiam que estavam “pagando” medida
socioeducativa. Todas as adolescentes referiam se ao cumprimento da medida sob a forma de “pagar a medida”.
Percebeu-se que estavam em situação de extrema vulnerabilidade social, devido à negativa de acessos aos serviços
do Estado, tendo muitos de seus direitos constitucionais negados. No entanto, colocavam-se simbolicamente
enquanto devedoras deste mesmo Estado que as invisibilizava e negava direitos a elas.
4 A expressão “tretas” é uma gíria utilizada pela adolescente referindo-se a problemas.
5 UPA: Unidade de Pronto Atendimento.
6 Metanfetamina, popularmente conhecida como “balinha”, é uma droga sintética estimulante cujos efeitos se
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