Monografia Suelen Mafra - 2 - 2
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BACHARELADO EM DIREITO
FIC – MG
2013
2
FIC – CARATINGA
2013
3
RESUMO
O presente trabalho tem por objeto de estudo o entendimento de Luiz Flávio Gomes
acerca da presença de aspectos do Direito Penal do Inimigo, na legislação penal brasileira.
Buscando identificar uma possível influência da teoria supracitada no ordenamento jurídico
pátrio, serão analisados dispositivos legais infraconstitucionais que possam manifestar esta
tendência teórica. Mesmo que, à luz dos ideais neo liberais e do garantismo, introduzidos em
nosso ordenamento jurídico pela CR/88, tal tendência teórica vem, sorrateiramente e de
maneira velada, demonstrando uma tímida introdução em normas penais brasileiras. Por se
tratar de assunto extremamente polêmico no Direito Penal atual, será analisada a teoria do
Direito Penal do Inimigo, segundo a metodologia de seu criador, o doutrinador alemão
Gunther Jakobs, expondo sua construção filosófica e criminológica e suas principais
características, tais como, a antecipação da tutela penal, a adoção de penas desproporcionais e
a relativização de garantias constitucionais. Ademais, far-se-á uma análise crítica da teoria da
Expansão do Direito Penal exposta por Silva Sanches, que considera o Direito Penal do
Inimigo como uma espécie de Direito Penal de terceira velocidade, que é caracterizado por
mesclar a utilização da pena privativa de liberdade aliada à possibilidade de flexibilização de
Garantias Fundamentais; Penais; e Processuais Penais. Neste sentido, tal trabalho de pesquisa
propõe uma discussão a respeito das constantes mudanças dogmáticas penais presentes em
nosso país; onde é perceptível oscilações entre o garantismo e o questionável posicionamento
de legislar para o “endurecimento” das leis penais, como forma de solucionar os problemas
sociais e de criminalidade.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 06
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 73
5
6
INTRODUÇÃO
1
GOMES, 2005, p. 21.
7
CONSIDERAÇÕES CONCEITUAIS
2
MORAES, 2006, p. 27.
9
“trata-se de uma canalização das demandas sociais por mais proteção como
demandas por mais punição. (...) E neste raciocínio o Direito Penal se expande e se
arma como resposta ao medo, com a existência de um maior número de descrições
de condutas puníveis, aumento das penas, antecipação da punibilidade, e diminuição
de Garantias Penais e Processuais.”4
3
BAUMAN apud WERMUTH, 2011, p.28.
4
SANCHEZ, 1999, p. 30.
10
5
JESUS, 2013, p. 01-02.
6
JAKOBS, MELIÁ, 2005, p.31.
7
Idem, ibidem. p.32
11
A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CR/88) é eridida à condição de meta-
princípio. Por isso mesmo, esta irradia valores e vetores de interpretação para todos
os demais direitos fundamentais, exigindo que a figura humana receba sempre um
tratamento moral condizente e igualitário, sempre tratando cada pessoa como fim em
si mesmo, nunca como meio (coisas) para a satisfação de outros interesses ou de
interesses de terceiros.9
Este princípio consagrado pela Constituição apresenta-se como uma dupla concepção,
segundo Moraes, primeiramente prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao
próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece
verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário entre semelhantes10. Dentre os
Direitos Fundamentais podemos destacar, com a devida pertinência ao estudo apresentado, as
garantias para o exercício das liberdades, normalmente de índole normativa, como é o caso
das garantias processuais-constitucionais.
Importante será a elaboração de um raciocínio comparativo, no julgamento das
tendências teóricas mencionadas neste estudo, em detrimento aos princípios constitucionais.
Especificamente devemos tratar de princípios processuais penais, embora não estando no
sistema em um rol taxativo, muitos deles encontrando respaldo expresso na Constituição da
República11. Temos assim, o princípio da presunção de inocência ou da não-culpabilidade (art.
8
FERNANDES, 2013, p. 300.
9
Idem, Ibidem, p. 302
10
MORAES, 2007, p.46.
11
TÁVORA, 2013, p.54.
12
5º, LVII da CR/88); da igualdade processual (art. 5º, caput); da ampla defesa (art. 5º, LV); do
devido processo legal (art. 5º, LIV); da proporcionalidade; da inexigibilidade de
autoincriminação. E buscando no Direito Penal, podemos citar alguns princípios norteadores
da aplicação das leis penais, tais como: o princípio da intervenção mínima que juntamente
com o princípio da insignificância, orienta e limita o poder incriminador do Estado, temos
ainda o princípio da materialização do fato, que consagra o direito penal do fato, vedando,
portanto o Direito Penal do autor, o princípio da legalidade (art. 5º, II da CR/88), e da
presunção de inocência (art. 5º, LVII).
Enfim, o enfoque deste trabalho está embasado no aprofundamento do estudo destas
garantias e suas corriqueiras e manifestas relativizações ou até mesmo supressões, presentes
em alguns textos legais, que buscam com tais medidas, dar uma resposta satisfatória à
sociedade, que por sua vez encontra-se amedrontada com a crescente criminalidade.
Esta discussão está diretamente relacionada à expansão do Direito Penal na realidade
normativa brasileira, pois questiona e busca identificar, a influência da teoria do Direito Penal
do Inimigo (uma espécie de Direito Penal de terceira velocidade), em legislações
infraconstitucionais específicas; que através do “endurecimento” das leis penais, pretende
solucionar os problemas sociais e de criminalidade, evidenciando como argumentos
contrapostos os princípios e garantias constitucionais. E sobre esta constatação da realidade
expansionista, conclui-se que podemos denunciar a conseqüente necessidade de se buscar
uma resposta frente a estas questionáveis tendências teóricas que são fomentadas por anseios
populares por maior ‘segurança’. Tendências estas que distorce e sucumbe, a real finalidade
do Direito Penal.
13
a uma porção de liberdade para delegar ao Estado a tarefa de punir, nos limites da necessária
defesa social, onde a pena passa a ganhar um caráter de utilidade, com a finalidade de
prevenir delitos e não puramente castigar. Com a criação da obra Dos delitos e das penas, do
marquês de Beccaria, a propósito, considera Nucci:
13
NUCCI, 2013, p. 79.
14
Idem, Ibidem, p. 85.
15
ZAFFARONI, 2010, p. 42
15
Getúlio Vargas foi editado o atual Código Penal, havendo uma tentativa de modificação no
período de Ditadura Militar, mas em 1984 houve uma extensa reforma na parte geral do
Código atual, que nasceu de concepções causalistas, mas que se tornou híbrido após
modificações de natureza finalista16.
Importante ainda será ressaltar o conceito de infração penal, pois para o Direito Penal
brasileiro crime é sinônimo de delito, contudo infração penal é gênero, onde crimes e
contravenções são espécies, e para que a conduta se amolde a um ou outro conceito, depende
do valor conferido ao comportamento pelo legislador.
Segundo Cunha, sobre a infração penal podemos resgatar dois conceitos: sob o
enfoque formal a infração penal é aquilo que assim está rotulado em uma norma penal
16
NUCCI, 2013, p. 85.
17
Idem, Ibidem, p. 180.
18
ZAFFARONI, 2011, p. 135.
16
O homem, quando atua, seja fazendo ou deixando de fazer alguma coisa a que
estava obrigado, dirige a sua conduta sempre a uma determinada finalidade, que
pode ser ilícita (quando atua com dolo, por exemplo, querendo praticar qualquer
conduta proibida pela lei penal) ou lícita (quando não quer cometer delito algum,
mas que por negligência, imprudência ou imperícia, causa um resultado lesivo,
previsto pela lei penal).19
Entende-se como sujeito do Direito Penal ou sujeito do crime, aquela pessoa que pode
praticar ou ser vítima de uma conduta antijurídica. O sujeito ativo do crime é o imputável que
pratica a infração penal, sendo assim, qualquer pessoa física capaz e com 18 (dezoito) anos
completos; havendo ainda discussão doutrinária acerca da possibilidade da pessoa jurídica
poder figurar ou não como sujeito ativo de um fato criminoso (nos crimes ambientais).
Já a vítima ou sujeito passivo do fato criminoso é o titular do bem jurídico protegido
pelo tipo penal incriminador, que foi violado. O Estado será sempre o sujeito passivo formal,
19
GRECO, 2011, p. 149.
20
Idem., Ibidem, p. 168.
17
pois ele é o titular do interesse jurídico de punir, sendo o sujeito passivo material o indivíduo
diretamente lesado pela conduta do agente.
Analisada tais concepções doutrinárias, o que mais interessa a este estudo é a
interpretação crítica, principalmente ligada a considerações criminológicas, de quem seria o
sujeito ativo do Direito Penal, ou seja, o autor de um crime.
Acerca da criminologia, para Nucci, é considerada uma ciência voltada ao estudo do
crime, como fenômeno social, bem como do criminoso, como agente do ato ilícito, em visão
ampla e aberta, não se cingindo à análise da norma penal e seus efeitos, mas, sobretudo, às
causas que levam à delinqüência, possibilitando, pois, o aperfeiçoamento dogmático do
sistema penal. Molina e Gomes definem ainda a criminologia como:
quem não é o inimigo, mesmo que lesione outrem, terá as conseqüências jurídicas
mitigadas, porque há pouco ou nada a reprovar em sua personalidade; em
compensação, o inimigo deve ser reprimido mesmo que não tenha lesionado
ninguém e nem mesmo tenha pensado em fazê-lo, simplesmente porque sua vida
suspeita exibe sua inimizade.22
Ainda na lição de Zaffaroni existem no Direito Penal brasileiro, vários tipos que
poderiam ser compreendidos como tipos de autor, mas a Constituição da República os
21
MOLINA, GOMES, 2006 apud NUCCI, 2013, p. 73.
22
ZAFFARONI, 2010, p. 140.
18
denomina como tipos de ato. Estes tipos penais podem ser encontrados, por exemplo, na
legislação extravagante (art. 28 e seu §1º da lei nº 11.343/06 relativa ao tipo penal que
incrimina o usuário de entorpecentes); segundo o mestre, ademais, uma visita às elaborações
doutrinárias revelaria muitas vezes um grande esforço para travestir de direito penal de ato a
esses tipos de autor. Frisa-se que a aplicação do Direito Penal do autor pode manifestar-se no
campo da culpabilidade e da individualização judicial da pena; e sobre os tipos penais de
autor, Zaffaroni conclui o seguinte:
23
Idem., Ibidem, p.140.
24
TOLEDO, 2000 apud MORAES, 2006, p. 186.
19
25
NUCCI, 2013, p 312.
26
FERRAJOLI 2002, apud GRECO, 2011, p 470.
27
GRECO, 2011, p 470.
28
Idem., Ibidem, p. 402.
20
Fixação da pena
Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à
personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime,
bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá conforme seja necessário e
suficiente para reprovação e prevenção do crime:
I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;
II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;
IV – a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de
pena, se cabível.32
A teoria mista adotada pelo Código brasileiro, afirma Greco, expor conceitos tanto das
teorias tidas como absolutas, que são todas aquelas doutrinas que concebem a pena como um
fim em si própria, ou seja, como castigo, reação, reparação ou retribuição ao crime praticado;
bem como da teoria relativa que se fundamenta no critério da prevenção, que divide em
29
FERRAJOLI, 2002 apud NUCCI, 2013, p. 402.
30
NUCCI, 2013, p. 410.
31
Idem., Ibidem, p. 403.
32
Decreto Lei nº 2.848/1940. Código Penal brasileiro.
21
Art. 68. A pena será fixada atendendo-se ao critério do artigo 59 deste Código; em
seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as
causas de diminuição e de aumento.34
Com relação ao método trifásico de fixação da pena, Cunha afirma que “é proposto a
fim de viabilizar o exercício do direito de defesa, expondo ao réu os parâmetros que
conduziram o juiz à determinação da reprimenda35.”
As três fases deste sistema devem ser entendidas da seguinte maneira: primeira fase
consiste em fixar a pena base atentando-se para as circunstâncias judiciais (art. 59, CP), na
segunda fase deverá o juiz fixar a pena intermediária, considerando as agravantes (arts. 61 e
62 do CP) e atenuantes (arts. 65 e 66 do CP), e por fim, na terceira fase deverá fixar a pena
definitiva, aplicando as causas de aumento e diminuição de pena.
Neste sentido, interessa a este estudo o aprofundamento da primeira fase de fixação da
pena, pois neste momento o juiz deverá observar algumas circunstâncias concernentes ao
infrator, das quais se destacam as seguintes circunstâncias, por se tratarem de análise
propriamente do réu: os antecedentes criminais, devendo ser considerados somente as
condenações definitivas que não caracterizam a agravante da reincidência (arts. 61, I, e 63,
ambos do CP); a conduta social do agente tratando do comportamento do réu no seu ambiente
familiar, de trabalho e na convivência com os outros; e a personalidade do agente, referente ao
seu retrato psíquico.
33
GRECO, 2011, p. 473-474.
34
Decreto Lei nº 2.848/1940. Código Penal brasileiro.
35
CUNHA, 2013, p. 391.
22
Por fim, ainda quanto ao modo de execução da pena, pode-se destacar a Lei 7.210/84 –
Lei de Execuções Penais e a Lei 10.792/03 que introduziu o RDD – Regime Disciplinar
Diferenciado. Esta lei é foco de extensas discussões doutrinárias a respeito de sua
constitucionalidade, onde de um lado encontra-se a preservação da ordem pública e de outro o
princípio da humanidade.
Em face do princípio constitucional da humanidade, que proíbe penas cruéis, debate-se
a admissibilidade do regime disciplinar diferenciado, pois diante da característica de se
manter o preso isolado durante 22 horas diárias em até 360 dias, existem argumentos no
sentido de considerar esta pena como cruel. Porém, discordando deste apontamento, rebate
Nucci:
não se combate o crime organizado, dentro ou fora dos presídios, com o mesmo
tratamento destinado ao delinqüente comum. Se todos os dispositivos do Código
Penal e da Lei de Execução Penal fossem fielmente cumpridos, há muitos anos, pelo
Poder Executivo, encarregado de construir, sustentar e administrar os
estabelecimentos penais, certamente o crime não estaria, hoje, organizado, de modo
que não haveria a necessidade de regimes como o estabelecido pelo art. 52 da Lei de
Execução Penal. A realidade distanciou-se da lei, dando margem à estruturação do
crime, em todos os níveis. Mas, pior, organizou-se a marginalidade dentro do
cárcere, o que é situação inconcebível, mormente se pensarmos que o preso deve
estar, no regime fechado á noite, isolado em sua cela, bem como durante o dia,
trabalhando ou desenvolvendo atividades de lazer ou aprendizado. Diante da
realidade, oposta ao ideal, criou-se o RDD. Tanto quanto a pena privativa de
liberdade é o denominado mal necessário, mas não se trata de uma pena cruel.37
36
STJ, Resp 513.741/RS 2013 0051910-7.
37
NUCCI, 2013, p. 429.
23
disciplinar diferenciado como uma norma influenciada pelo punitivismo penal e assemelhada
ao funcionalismo sistêmico de Jakobs através de seu Direito Penal do Inimigo.
O ‘Direito é uma das dimensões essenciais da vida humana’38, isto posto, Miguel
Reale chegou à constatação filosófica de que onde está o homem, está o Direito, e não seria
menos certo afirmar que, onde está o Direito se põe sempre o homem com a sua inquietação
filosófica, atraído pelo propósito de perquirir o fundamento das expressões permanentes de
sua vida ou de sua convivência.
Valioso para este estudo será então, o aprofundamento de temáticas filosóficas acerca
do Direito Penal e os questionamentos que o sondavam desde os primórdios. Então, entende-
se como jusfilosofia:
todas as formas de indagação sobre o valor e a função das normas que governam a
vida social no sentido do justo, ou em acepção estrita, para indicar o estudo
metódico dos pressupostos ou condições da experiência jurídica considerada em sua
unidade sistemática.39
Para Zaffaroni e Pierangeli, é evidente que o pensamento penal de cada época estava
intimamente relacionado com a estrutura social e, portanto, com o controle social que lhe é
peculiar40, e é, portanto, desta maneira que o pensamento penal será analisado neste trabalho.
O pensamento filosófico surgiu no oriente, mais precisamente na Índia, e as
“perguntas fundamentais, que logo seriam reformuladas pelos gregos, foram também antes lá
enunciadas41.”
De acordo com este posicionamento, uma manifestação idealista do pensamento
indiano, o hinduísmo, é uma demonstração do fenômeno do controle social institucionalizado,
que logo se repetirá ao longo da história do pensamento, ou seja, a justificação da estrutura de
poder de uma sociedade estratificada, e a lei penal desta estrutura social indicará um controle
social sobre a base da supremacia da casta dirigente.
38
REALE, 2002, p.286.
39
Idem, Ibidem, p. 285.
40
ZAFFARONI, 2011, p. 216.
41
Idem. p 217.
24
Neste tempo, viveu Maquiavel que trouxe à humanidade as indagações sobre o papel
42
Idem. p. 221
43
Idem . p. 222
44
JÚNIOR, 2012, p. 108 e 109.
45
REALE, 2002, p. 644 e 645.
25
do Estado e seu poder, contidas em suas obras, dentre elas sua obra prima O Príncipe.
Maquiavel, juntamente com Hobbes e Bodin, constituiu a trindade dos teóricos do
absolutismo. Neste sentido também se menciona John Locke e Montesquieu, afirmando que,
para não haver abuso de poder, seria preciso que o poder detivesse o poder, e Jean-Jacques
Rousseau em sua obra O Contrato Social, mostra que o homem, em seu estado de natureza, é
bom, mas a sociedade o corrompe46, e que o contrato social seria uma ficção, um símbolo, que
ajudava a pensar a sociedade.
Confirmando o que já foi exposto, sobre a relevância de se vincular a filosofia ao
contexto histórico da época, durante a chamada revolução industrial, que marca a passagem
da forma de produção feudal à capitalista (século XVIII), e diante de todos os problemas
sociais peculiares ao período, surgi a afirmativa de que “toda ideologia de justificação da
sociedade foi elaborada sobre a ideia do contrato: a sociedade obedecia a um contrato. E
necessariamente se produz um direito penal ideologicamente fundado no contrato.47”
E é dentro deste contexto que deve ser entendida, a tentativa de Hobbes, que concebe
o Estado como um produto do medo gerado pelo ‘estado natural’, caracterizado pela ‘guerra
de todos contra todos’. Inclusive a ideia do contrato social a que são submetidos os indivíduos
que integram a sociedade, será tratada mais à frente neste trabalho quando da análise da teoria
do Direito Penal do Inimigo e as concepções jus filosóficas que basearam estes pensamentos.
Momento culminante na história do pensamento filosófico será assinalado por Imanuel
Kant, que para Zaffaroni e Pirangenli marca a concepção mais clara e direta do conceito de
razão e seu entendimento do Direito Penal é exposto da seguinte forma:
Quando Kant faz aplicação desses princípios no direito penal, conclui que a pena
não pode ser imoral, ou seja, não pode tomar o homem como um meio, porque, se
assim for, mediatiza o apenado. Nem se quer aceita que seja um meio para melhorar
o próprio delinqüente. Daí que conceba a pena como um fim em si mesmo, derivado
da simples violação do dever jurídico. Qual será pois a medida da pena? Não pode
ser outra além do mal imerecido infligido à vítima, isto é, o talião, que Kant entende
como a devolução da mesma quantidade de dor injustamente causada. Tal é a teoria
absoluta da pena de Kant.48
Neste sentido Kant volta à lei do talião, e da mesma forma, entendia a pena Hegel.
Feuerbach por sua vez, contemporâneo à Kant, seguiu caminho diverso. O aspecto mais
importante da teoria de Feuerbache no sentido da teoria da pena: “a pena é aplicada em razão
46
CRETELLA JÚNIOR, 2012, p. 135 a 138.
47
Idem, Ibidem, p. 231.
48
ZAFFARONI, 2011, p. 235.
26
de um fato consumado e passado, e tem por objeto conter todos os cidadãos para que não
cometam delitos, isto é, almeja coagi-los psicologicamente”.49
Entre os séculos XVIII e XIX manifesta-se uma transformação na pena, que passa das
corporais às privativas de liberdade e do mero castigo à ‘correção’.
Correlacionando estes entendimentos aos grandes acontecimentos históricos que são
cruciais para o desenvolvimento da jus filosofia, deve-se destacar o autoritarismo facista, que
em geral orienta-se pelo pensamento neohegeliano; e o nazista que não se serviu do conceito
de Estado de Hegel, mas apelou para algo mais irracional, a raça ariana considerada como
raça superior, e neste pensamento a pena não continha conteúdos vindicativos muito menos
preventivos, posto ser uma simples segregação.
As reflexões contidas no Direito Penal contemporâneo possuem contribuições de
natureza bem mais humanitárias. Para Miguel Reale a História do Direito revelaria uma
constante adequação entre a ordem normativa e as múltiplas e cambiantes circunstâncias
espácio-temporais, onde ao mesmo tempo busca-se uma dinamicidade do justo e estabilidade
reclamada pela segurança.50
Após as grandes guerras mundiais nasceu para o mundo o conceito de Direitos
Humanos:
Com a criação das Nações Unidas e a adoção dos princípios da Carta da ONU, além
da Declaração Universal dos Direitos do Homem, entre outros instrumentos
internacionais, finalmente foi abandonada, ao menos teoricamente, a idéia da
exclusividade dos direitos humanos. (...) O direito à existência, à vida, à integridade
física e moral da pessoa e à não-discriminação, em particular a racial, são normas
imperativas da comunidade internacional ou da natureza do ius cogens.51
49
Idem, Ibidem, p. 238
50
REALE, 2002, p. 572.
51
ETIENNE, 1997.
52
Idem, Ibidem.
27
53
BECK, 2002 apud WERMUTH, 2011. p. 27.
54
SANCHEZ, 1999, p. 25-26.
28
Desta forma, chega-se à conclusão de que as políticas criminais são aplicadas com o
objetivo de satisfazer aos anseios populares. Porém, diante do histórico de aplicação destas
políticas, destacam-se as de ‘Lei e Ordem’ e da ‘Tolerância Zero’ que possui a alegoria das
‘janelas quebradas’ (desenvolvidas pelos norteamericanos e posteriormente exportadas), onde
os socialmente excluídos, por exigência da sociedade capitalista, são duramente reprimidos
pelo Estado, em pequenos atos delituosos como à época, a ‘vadiagem’, o uso de drogas tanto
lícitas, como o álcool, como ilícitas, além pequenos furtos, etc. E desta maneira o Estado
pretendia combater os pequenos delitos para inibir a prática de delitos mais graves.
Nestas políticas criminais, antes de se buscar a diminuição do índice de criminalidade,
o Estado pretende remediar as conseqüências das desigualdades sociais, com o policiamento e
55
CEPEDA, 2007 apud WERMUTH, 2011, p. 36-38
56
NUCCI, 2008, p. 58.
29
repressão daqueles tidos como excluídos. Tais políticas criminais defendem que:
57
WACQUANT, 2001, apud WERMUTH, 2011, p. 39.
58
MORAES, 2006, p. 27
30
59
ZAFFARONI, 2001 apud WERMUTH, 2011, p. 48
60
BATISTA, 2009, apud WERMUTH, 2011, p. 52.
31
longo das duas últimas décadas num conjunto de tipos penais que estabelecem sanções
desproporcionalmente altas. Por fim, Jakobs e Meliá, afirmam que esta evolução político-
criminal pode se resumir em dois fenômenos, quais sejam, o chamado Direito Penal
Simbólico e o que se pode denominar ‘ressugir do positivismo’61.
Através deste fenômeno de expansão, para Sanchez, surgem as velocidades do Direito
Penal, que são em sintética conceituação, graus ou intensidades de aplicação do Direito Penal
que levam em consideração além do nível de mitigação das garantias, as espécies de penas
aplicadas; ponto de extremo relevo e que por isso será analisado em tópico próprio, mais
adiante.
61
JAKOBS, 2007, p. 55 – 57.
32
62
SANCHEZ, 1999, P. 25.
63
SANCHEZ, 2002 apud MACHADO, 2009.
64
Constituição da República de 88.
33
delinquente, aumenta a carga simbólica do Direito Penal e gera expectativas que fatalmente
serão convertidas em frustrações, até que outro projeto de lei seja encaminhado ao Congresso
Nacional.
Segundo Moraes, são marcas dos novos paradigmas da sociedade atual:
Também neste sentido denuncia Zaffaroni, que “os políticos – presos na essência
competitiva de sua atividade – deixam de buscar o melhor para preocupar-se apenas com o
que pode ser transmitido de melhor e aumentar sua clientela eleitoral66.”
Neste raciocínio, se a busca por votos eleitorais objetiva alcançar resultados em curto
prazo; se a sociedade está ansiosa por mais segurança, influenciada pela mídia capitalista, e
acredita que estará mais segura se retirar do convívio social o infrator da lei; e por sua vez, se
a idéia é que, o crime está cada dia mais presente no cotidiano do cidadão, e que a
insegurança e o medo são partes inerentes à sociedade contemporânea, e ainda se as normas
penais ora vigentes, não estão alcançando sua finalidade, tanto de proteção de bens jurídicos
essenciais, quanto de prevenção criminal (exercida por meio da intimidação coletiva). Desta
forma a opinião e a vontade popular não conseguiriam chegar à outra conclusão, senão que ao
crime, ora normatizado, seja destinada uma aplicação penal mais severa.
Este pensamento, de que o endurecimento das leis penais, resolveria o problema
iminente de criminalidade, leva o legislador, com o intuito de dar uma resposta rápida à
sociedade, a criar um amontoado de leis penais que não possuem o condão de resolver o
problema em si, mas de ‘parecer’ perante a sociedade, uma solução viável.
No entendimento crítico de Zaffaroni e Batista,
65
Idem, Ibidem, p. 27.
66
ZAFFARONI, 2007, p. 77.
34
67
ZAFFARONI, 2010, p. 221-222.
68
CAPEZ, 2011, p. 19-21
35
pela deficiência do seu sistema de execução penal, que não atinge a finalidade que foi
proposta, qual seja a ressocialização.
Neste diapasão, sustenta Nucci que a pena de prisão no Brasil, em muitos casos chega
a ser desumana, constatando a ineficiência do sistema de execução penal no Brasil, não por
falta de leis exemplares, até mesmo referências a nível mundial, como a Lei nº 7.210/84, a Lei
de Execuções Penais, mas por incompetência do Poder Executivo em administrar tais
instituições carcerárias:
Depreende-se desta sábia reflexão sobre o sistema carcerário no Brasil, e sua precária
condição, que é absolutamente contestável este fenômeno legislativo que conduz ao Direito
Penal Simbólico, se ainda considerando se tratar de uma artimanha política a fim de angariar
votos; revela-se incabível que, diante de diversos dispositivos legais em vigor, mesmo
providos de notória excelência, o Poder Público é ineficiente. Sucumbe de finalidade o
endurecimento das leis, se a solução, ao que parece mais viável, seria o fiel cumprimento das
normas já existentes.
69
NUCCI, 2013, p. 90.
36
idéia conciliadora surge o Garantismo Penal, cujo marco histórico fundamental é a obra
Direito e Razão de Ferrajoli.
A tensão entre o Direito Penal mínimo, de ultima ratio, e o Direito Penal máximo, de
prima ratio, coloca-se como um dos iniciais conflitos a serem solucionados através do
paradigma garantista do sistema penal.
Em síntese o garantismo sustenta que a única função capaz de legitimar a intervenção
penal é exclusivamente a prevenção geral negativa, não apenas com o intuito de prevenir
futuros delitos, mas de prevenir, ou tutelar, direitos ou bens individuais diante de possíveis
agressões advindas principalmente do poder estatal.
Este pensamento teórico tem como objetivo a proteção de direitos fundamentais,
especificamente os direitos humanos de primeira geração, que se encontram elencados na
Constituição da República e estão ligados ao valor de liberdade, tais como direitos civis e
políticos. Tais direitos possuem caráter negativo ou limitador, pois diretamente, exigem uma
abstração do Estado, a fim de assegurar uma esfera de autonomia individual face ao poder
conferido ao próprio Estado.
A partir do entendimento de Prado acerca do garantismo, ressaltam-se três acepções,
conexas entre si, pois se trata de um modelo normativo de direito, segundo o qual será
‘garantista’ o sistema jurídico compatível com as exigências do Estado de Direito; como uma
teoria jurídica crítica (oposição ao positivismo dogmático), que propõe a distinção da
normatividade e da realidade, ou seja, entre dever ser e ser no Direito; e, como filosofia
política, preconizando a justificação externa do Direito e do Estado no reconhecimento e
proteção dos direitos que constituem sua finalidade.70
Diante dessas três acepções, compreende-se a teoria garantista, no campo penal, como
uma possível resposta à chamada crise de legalidade, onde um Estado de Direito deve
caracterizar-se pelo poder mínimo, com a prevalência da liberdade e restrição da função
punitiva do Estado. Portanto, verifica-se a total oposição do garantismo com o punitivismo e o
Direito Penal simbólico.
Neste entendimento e realizando uma digressão pelas discussões doutrinárias,
minimalista e maximalistas, já mencionadas neste trabalho, chega-se ao seguinte raciocínio:
os minimalistas e os abolicionistas, extremamente questionadores das funções das penas e das
instituições, entendem por falido o sistema penal. Já a teoria do Direito Penal máximo está
diretamente ligada ao funcionalismo sistêmico radical proposto por Gunther Jakobs e a
70
PRADO, 2010, p. 114.
37
71
Idem, Ibidem, p. 116.
72
GRECO, 2011. p. 13
73
JAKOBS, apud PRADO, 2010, p. 111.
38
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada76
74
Idem, p. 111
75
CARVALHO, 2013.
76
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
77
GARCIA, 2010.
39
Moraes aduz que esta “constatação de Sanchez, ainda que possa pecar por
generalizações ou pela imposição de rótulos a sistemas não exatamente similares, apresenta de
imediato, uma vantagem relevante: enxergar que uma segunda velocidade de Direito Penal
ou, mais precisamente, um modelo pautado pela flexibilização de garantias penais e
processuais (ainda que com a cominação de penas alternativas as de prisão), tenha se
infiltrado e, possivelmente contaminado o modelo clássico, sem que houvesse qualquer
questionamento a cerca de sua legitimidade. Sendo que tal constatação remete à seguinte
questão: a aceitação da flexibilização de garantias penais e processuais, ainda que sem a
imposição de pena privativa de liberdade, não teria aberto as portas à legitimação de um
Direito Penal de emergência?”79
De sorte, tal posicionamento levanta questão polêmica, porém não é possível
concordar, pois mesmo que se tenha permitido mitigar alguns aspectos garantistas, como o
devido processo legal e o contraditório e ampla defesa, em modelos de segunda velocidade,
tal permissão não se acumula com a aplicação de penas privativas de liberdade, e sim, com a
aplicação de penas alternativas, como a restritiva de direitos, muito menos danosa ao
indivíduo, e por isso são toleradas.
Estas duas modalidades de Direito (de primeira e segunda velocidade) são necessárias
à realidade da sociedade contemporânea, de forma que não haveria nenhuma dificuldade em
admitir esse modelo – o de segunda velocidade – de menor intensidade garantística, centro do
Direito Penal, sempre e quando as sanções previstas não fossem de prisão, desta forma a
admissibilidade da flexibilização dos direitos e garantias fundamentais, não significaria ataque
ao Estado Democrático de Direito80.
Uma referência de modelo de segunda velocidade em nosso ordenamento jurídico
seria, portanto, a Lei nº 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais.
Esta tendência de modelo de segunda velocidade, segundo Damásio de Jesus, é um direito
moderno, que pretende atender às aspirações da complexa sociedade contemporânea, que
busca soluções rápidas à igual dinamicidade de acontecimentos delitivos, por isso justifica-se
78
JAKOBS, MELIÁ, 2005, p.68.
79
MORAES, 2006, p.201.
80
BINATO JÚNIOR, 2009, p. 141-143.
41
Desta feita, pode-se concluir corroborando com o entendimento de Sanchez, que uma
expansão até a segunda velocidade do Direito Penal é admissível, e por que não, bem vinda
nas atuais conjunturas. Pode-se dizer que é razoável.
Entretanto, seria irrazoável uma expansão de terceira velocidade, gerada pela
‘sociedade dos riscos’ ou ‘do medo’, quando na ânsia por soluções dos problemas graves de
criminalidade surge um alarmismo e uma tendência ao ‘redrudescimento’ legislativo, sem
respeito aos direitos fundamentais (garantias penais e processuais penais) e ainda com a
aplicação de forma mais severa das sanções; se destacando neste sentido o Direito Penal do
Inimigo.
81
Idem, Ibidem, p. 01-02
82
MORAES, 2006, p.201
83
GOMES, CERVINE, 2000 apud MORAES, p. 31-32.
42
Feitas estas considerações, pode-se iniciar a análise do ponto nuclear deste trabalho,
qual seja: o ‘Direito Penal do Inimigo’.
Como já mencionado – o Direito Penal do Inimigo – é uma espécie de terceira
velocidade do Direito Penal, conforme revela a teoria expansionista de Silva Sanchez.
Evidenciada pelo doutrinador alemão Gunther Jakobs, o Direito Penal do Inimigo é
caracterizado por três elementos, senão vejamos:
Essa terminologia foi apresentada por Jakobs, em meados da década de 80, de acordo
com Prado:
84
JAKOBS, MELIÁ, 2005, p.67.
85
PRADO, 2010, p. 116.
43
Diante desta análise pode-se dizer que a fundamentação filosófica desta teoria retorna
há séculos atrás, onde surge o entendimento de que o indivíduo está submetido a um ‘contrato
social’, e o inimigo seria aquele que rompe com este contrato, não de maneira incidental, mas
de forma permanente, cognitiva e comportamental. Este indivíduo na visão de Jakobs deve ter
tratamento diferente dos demais cidadãos, pois ele não deve nem mesmo ser considerado
cidadão, com seus direitos e deveres inerentes, uma vez que o próprio indivíduo-inimigo da
sociedade se negou a aceitar esta condição. Estamos aí, frente aos pensamentos medievais
hobbesianos e kantianos, e desta forma, o questionamento é válido, quanto à prudência da
adoção deste método com bases filosóficas já há tempos, superadas.
Ademais, o Direito Penal do Inimigo está situado dentro da teoria funcionalista, pós-
finalista. A teoria funcionalista veio dar uma nova roupagem ao que se entende ou se busca
entender do Direito Penal, pois na teoria pré-existente, a finalista, buscava-se compreender o
que seria o Direito Penal. Já na teoria funcionalista a nova questão é: ‘para que serve o Direito
Penal?’, qual a sua função?
Diante desta nova premissa, o funcionalismo é dividido em três importantes correntes:
o funcionalismo moderado de Claus Roxin, que entende que a função do Direito Penal é
tutelar os bens jurídicos mais importantes; o funcionalismo reducionista de Zaffaroni, que vê
a função do Direito Penal como reguladora do poder estatal, e enfim o funcionalismo radical
de Jakobs, que enxerga que o Direito Penal tem a função de garantir a vigência da própria
norma.
Há que se considerar inclusive, que o funcionalismo tratado aqui, é um funcionalismo
sistêmico, ou seja, caracterizado pela teoria dos sistemas sociais (teoria sociológico-sistêmica)
do sociólogo alemão Niklas Luhmann. E como premissa maior, tem a noção de
autorreferência, autopoiésis e circularidade, características dos sistemas sociais. Onde a
autopoiesis se revela como um mecanismo de autorreprodução de um sistema, mediante a
qual o sistema cria sua própria estrutura e os elementos que a compõem. No entendimento de
Luhmann, o Direito é um subsistema social autopoiético de comunicação, normativamente
fechado. O Direito como regulador social, delimita o âmbito das expectativas normativas de
conduta. Este é o primeiro alicerce metodológico da teoria funcionalista sistêmica radical
86
GOMES, 2005.
44
87
PRADO, 2010, p. 110.
88
JAKOBS, MELIÁ, 2005, p. 22.
89
GOMES, 2005.
45
Desta forma, quem por ‘princípio’ se conduz de modo desviado, e não garante o
mínimo de segurança cognitiva em seu comportamento, não deve ser tratado como cidadão,
mas deve ser combatido como inimigo, na visão de Jakobs.
Prado disserta sobre o inimigo, considerando-o como:
indivíduos que não são mais que entes perigosos a serem privados de direitos e
garantias individuais próprios dos cidadãos. O inimigo é aquele cujas atitudes
revelam um distanciamento em relação às regras de Direito, o que não se dá
acidentalmente, mas de forma duradoura; comportamento pessoal, profissão e vida
econômica; nada é concretizável no âmbito de relações sociais legitimadas pelo
Direito; ao contrário, desenvolve-se à margem deste último e da própria sociedade.
É dizer: são indivíduos que ‘não prestam a garantia cognitiva mínima que é
necessária para o tratamento como pessoa.91
90
JAKOBS, 2003 apud MORAES, 2006, p. 167.
91
PRADO, 2010. p. 118.
46
é encontrado na figura do terrorista, e desta forma, há algum tempo o terrorista vem sendo
combatido por diversos Estados.
Na concepção de Jakobs, o terrorista seria a figura perfeita do Inimigo, porém também
seriam assim considerados: os traficantes de drogas, armas, pessoas; integrantes de
organizações criminosas, estupradores e homicidas contumazes, criminosos políticos e
econômicos, e àquele que o Estado assim o considerar. Sobretudo, esta definição é bastante
subjetiva, e por demais, perigosa; pois a sociedade-Estado a cada contemporaneidade
identificaria um ‘inimigo’. A história já nos revela casos infelizes desta busca pelo o
‘inimigo’, tais como: todo aquele que não fosse da raça ariana na Alemanha (negros, judeus,
etc), os comunistas, também durante a segunda guerra mundial, e atualmente, entende-se que
o inimigo de alguns Estados europeus seria inclusive o imigrante clandestino92.
Este indivíduo considerado como ‘inimigo’ teria tratamento diferenciado nas normas
penais, pois seria perigoso para a própria sociedade não tratá-lo com mais rigor. Ele é
potencialmente perigoso, ou seja, o que ele fez importa, mas o que ele possa ainda fazer de
danoso à sociedade é o que interessa; a expectativa de dano futuro possui mais relevância até,
que o que ocorreu de fato. Não é, portanto, retrospectivo, e sim prospectivo. O indivíduo não
é punido diante de sua culpabilidade, conforme versa a teoria tripartite do crime, que
considera a culpabilidade elemento do crime, ou seja, sem a qual o crime não ocorreria. Senão
o indivíduo é considerado consoante sua periculosidade. Extremamente prevencionista, esta
teoria sustenta a submissão de indivíduos imputáveis, potencialmente perigos, a medidas de
segurança.
Exatamente isso, em nosso ordenamento jurídico medidas de segurança são aplicadas
a inimputáveis e a pena é destinada aos imputáveis, mas na teoria do Direito Penal do
Inimigo, nos casos em que um indivíduo se mostra como um ente perigoso lhe será aplicada
medida de segurança.
Para ilustrar melhor tal situação, imagina-se um indivíduo reincidente na prática de
crimes contra o patrimônio, especialmente furtos, a pena para o crime de furto é de 1 a 4 anos
de reclusão, por conta disso, mesmo reincidente, é provável que ele seja posto em liberdade
em muito menos que 4 anos, ele é o foco da sensação de insegurança da comunidade, por isso,
mesmo que o FATO por ele praticado não seja grave o suficiente para que ele fique recluso
por mais tempo, ELE é danoso à sociedade, e por conta disso, a ele deverá ser aplicada uma
longa medida de segurança, a fim de neutralizar os riscos que ele representa.
92
SALIM, 2010.
47
Fica evidente a relação desta teoria com o ‘Direito Penal do Autor’. De acordo com as
críticas de Meliá, o que Jakobs denomina de Direito penal do inimigo, nada mais é que um
conjunto normativo que remonta uma nova modalidade de Direito penal de autor, que pune o
sujeito pelo que ele “é” (criminoso habitual, profissional, organizado, que se nega o Direito de
modo permanente), cuida-se de um direito que faz oposição ao Direito penal do fato, que pune o
agente pelo que ele “fez” (não pelo que ele “é”, ou pelo que ele pensa). Desta forma, no Direito
Penal do Inimigo “a punibilidade avança para o âmbito interno do agente e da preparação, e a
pena se dirige à segurança frente a atos futuros, perfazendo-se, um direito do autor e não
fato93.”
Desta maneira é possível ainda, identificar a aplicação contrária ao princípio da
materialização do fato, qual seja:
93
JAKOBS, MELIÁ, 2005, p 80.
94
CUNHA, 2013, p. 76.
95
PRADO, 2010, p. 118.
48
96
JAKOBS, MELIÁ, 2005, p 40-41.
97
PRADO, 2010, p. 119.
49
pela clientela do sistema penal brasileiro ser composta quase que exclusivamente
por pessoas pertencentes aos estratos sociais economicamente hipossuficientes,
demonstra que não existe um processo de seleção de condutas criminosas, mas sim
de pessoas que receberão o rótulo de ‘delinquentes’. E tal seletividade se deve ao
fato de que em sociedades desiguais, os grupos detentores da maior parcela do poder
possuem a capacidade de impor ao sistema uma impunidade praticamente absoluta
das suas próprias condutas criminosas99.
A classe perigosa, conforme exposto, ainda retirada das camadas pobres da sociedade,
continua a ser controlada por meio do Direito Penal, reformulado pelo processo de ‘expansão’
presente por este ramo do Direito. Os membros dessa classe perigosa vivem em áreas urbanas
marginais, muitas vezes denominadas áreas de risco, responsáveis por gerar um crescente e
difuso sentimento de medo. Tais medos vivenciados pela sociedade contemporânea,
influenciados, por sua vez, pelas manifestações da sociedade de risco.
Fica evidente após estas contestações, que a identificação de uma classe perigosa e o
conseqüente medo incorporado à sociedade são causas da má administração púbica, incapaz
de ofertar à população instrumentos que impulsionem a ascensão social dos menos
favorecidos, eximindo-se de seu papel de agente social do bem-estar.
Diante desta ineficiência, o caminho mais rápido é a repressão, respondendo às
demandas por mais segurança. Portanto, o ‘indivíduo-inimigo’, diferentemente das ‘pessoas-
cidadãos’, relacionam-se aos discursos de ‘risco’, da ‘insegurança’ e do ‘aumento da
criminalidade’, termos preferidos pelos defensores da ‘lei e da ordem’.
99
FLAUZINA, 2008, apud WERMUTH, 2011, p. 117
51
Nesta ótica, exemplos claros de inimigos da sociedade brasileira, são aqueles, tratados
de tal forma na lei penal infraconstitucional, tais como: os componentes do ‘crime organizado’
e os traficantes de drogas ilícitas (a macrocriminalidade), que recebem tratamento
diferenciado, com as devidas ‘particularidades’ entre o traficante-pobre, tratado com rigor, e o
jovem de classe média que consegue provar na justiça haver possuído tal quantidade de
drogas para seu mero consumo.
Desta forma que se consagra a dimensão do processo de expansão do Direito Penal no
Brasil, que visa combater a criminalidade organizada e o narcotráfico, se rearmando na luta
contra seu alvo histórico preferencial.
Foi assim que Wermuth chegou ao questionamento e consequentemente a uma
definição nítida e, por que não, cultural e historicamente perversa do inimigo da sociedade
brasileira:
É em virtude disso que, à pergunta sobre qual é o “inimigo” atual do Direito Penal
brasileiro, sobre qual é a fonte maior do ‘medo’ e da ‘insegurança’ que legitimam as
reformas legislativas rumo a um recrudescimento putinitivo cada vez maior, ter-se-á
como resposta, com pequenas variações, uma descrição desse ‘inimigo’ nos
seguintes termos: ‘um jovem negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico
de drogas, vestido com tênis, boné, de favela, próximo do tráfico de drogas, vestido
com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho ou de poder e de
nenhum sinal de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que o circunda.
A mídia e a opinião pública destacam seu cinismo e sua afronta, e, com isso
legitima-se o discurso segundo o qual ditos ‘inimigos’ não merecem respeito ou
trégua100.
100
WERMUTH, 2011, p. 95-100.
52
abrandada dos retribucionistas que utilizam o Direito Penal como instrumento de dominação.
Para Gomes, os inimigos do punitivismo podem ser considerados da seguinte forma:
101
GOMES, 2005.
102
GRECO, 2011.
53
Cumpre ressaltar que o objetivo principal deste trabalho é identificar as normas penais
brasileiras que atualmente sofrem influência da polêmica tendência teórica do Direito Penal
do Inimigo. Em que pese se tratar de teoria amplamente criticada pela doutrina majoritária,
que a considera como incompatível com Estados Democráticos de Direito, ela está presente
em nosso ordenamento jurídico, fruto do fenômeno expansionista, da sociedade de riscos e do
Direito Penal simbólico.
As justificativas para estas transformações, que serão demonstradas mais adiante,
estão fundamentadas no aumento da criminalidade, sobretudo a organizada, e como solução
para este problema, está o endurecimento de normas penais existentes com penas mais severas
e restrição de garantias.
Ademais, atualmente há uma excessiva criminalização de condutas, como se observa
com atual hipertrofia legislativa brasileira, através da seguinte legislação extravagante: Lei nº
7.492/86 – Crimes contra o sistema financeiro nacional; Lei nº 7.565/86 – Lei do Abate; Lei
nº 7.716/89 – Preconceito Racial; Lei nº 8.072/90 – Crimes Hediondos; Lei nº 8.078/90 –
Código de Defesa do Consumidor; Lei nº 8.137/90 – Contra a ordem tributária, econômica e
contra as relações de consumo; Lei nº 8.176/91 – Contra a ordem econômica e cria o Sistema
de estoques de combustíveis; Lei nº 9.034/95 – Crime Organizado; Lei nº 9.099/95 – Juizados
Especiais Cíveis e Criminais; Lei nº 9.296/96 – Interceptação telefônica; Lei nº 9.455/97 –
Crimes de tortura; Lei nº 9.605/98 – Sanções penais e administrativas de condutas lesivas ao
meio ambiente; Lei nº 9.613/98 – Crimes de Lavagem de Dinheiro; Lei nº 10.217/01 –
Infiltração de agentes policiais para fins de se obter provas em investigação criminal; Lei nº
10.471/03 – Estatuto do idoso; Lei nº 10.792/03 – Regime Disciplinar Diferenciado; Lei nº
10.826/03 – Estatuto do desarmamento; Lei nº 11.340/06 – Lei Maria da Penha; Lei nº
11.343/06- Contra o tráfico de entorpecentes.
E conforme leciona Rogério Greco:
54
o número excessivo de leis penais, que apregoam a promessa de maior punição para
os delinqüentes infratores, somente culmina por enfraquecer o próprio Direito Penal,
que perde seu prestígio e valor, em razão da certeza, quase absoluta, da
impunidade103.
Por certo que este grande número de leis penais infraconstitucionais é reflexo do
fenômeno expansionista da ciência penal, que ocorre, conforme Sanchez, devido ao
enfraquecimento de outros ramos do Direito (como o Direito Administrativo). Então o Direito
Penal que deveria ser aplicado como ultima ratio, é utilizado como instrumento para
solucionar diversos problemas.
Sob a análise das diversas normas penais brasileiras que estão contaminadas por
características do Direito Penal do Inimigo, a princípio observa-se, a edição da Lei de Crimes
Hediondos, um dos grandes exemplos da existência do Direito Penal do Inimigo em nossa
legislação, pois apesar de não fazer previsão de novas figuras típicas, ela trouxe um aumento
das penas e restrição de garantias processuais para os indivíduos que praticam tais crimes, se
aproximando segundo Callegaria e Motta104 do Direito Penal do autor. E de acordo com
Mesquita Junior:
Os efeitos desta lei vão de encontro aos princípios taxados na Carta Magna, por
exemplo, ao inviabilizarem aos condenados pelos crimes nela previstos em seu
artigo 1º, o direito ao indulto (art. 2º, I), a liberdade provisória (art. 2º, II), e a
progressão de regime (art. 2º, §2º), ainda, ampliando os prazos da prisão temporária
(art. 2º, § 3º) e os de livramento condicional (art. 5º)105.
Estes efeitos podem constatar uma precipitação do legislador, a conceder, por pressão
midiática, um tratamento mais rigoroso a estes determinados crimes:
a vedação de fiança e liberdade provisória significou que não seria permitido que
esses “novos criminosos” respondessem ao processo em liberdade, o que afrontava o
princípio da presunção de inocência, bem como aos requisitos necessários para a
decretação e manutenção da prisão preventiva previstos no Código de Processo
Penal, uma vez que neste caso o que é levado em consideração é o tipo de delito
praticado que, por si só, transforma o criminoso em perigoso, ou podemos chamar
de inimigo106.
103
GRECO, 2011.
104
JUNIOR, 2009, p. 06.
105
MESQUITA JUNIOR, 2008 apud BINATO JUNIOR, 2009, p. 05.
106
CALLEGARI e MOTTA, 2007 apud BINATO JUNIOR, 2009, p. 09.
55
Essa tendência pode ser vista em algumas recentes leis brasileiras, como a Lei dos
Crimes Hediondos, Lei n. 8.072, de 1990, que, por exemplo, aumentou
consideravelmente a pena de vários delitos, estabeleceu o cumprimento da pena em
regime integralmente fechado e suprimiu, ou tentou suprimir, algumas prerrogativas
processuais (exemplo: a liberdade provisória), e a Lei do Crime Organizado (Lei n.
9.034, de 1995), entre outras.108
107
Idem, Ibidem, p. 12.
108
JESUS, 2005, p. 02.
109
GOMES, 2005, p. 06.
56
penais em branco e tipos penais imprecisos. E desta forma, deixa lacunas, que contrariam o
princípio da taxatividade, pois serão preenchidas pelo entendimento subjetivo do julgador. Por
certo, que esta lei nem mesmo identificou de forma clara o que seria ‘organização criminosa’,
esta expressão se tornou um grande problema, e desta forma se passou a equipar os conceitos
de quadrilha ou bando com o de organização criminosa de qualquer tipo, demonstrando outro
exemplo de “contaminação” da lei ordinária pelo Direito Penal do Inimigo.
Este tratamento diferenciado conferido aos envolvidos em organização criminosa
retrata a influência que objetiva-se identificar neste trabalho, uma vez que viola em vários
dispositivos os direitos e garantias assegurados pela Constituição, no seguinte entendimento:
110
BINATO JÚNIOR, 2009, p.08.
111
Idem, Ibidem, p. 11.
57
112
Lei nº 10.792/03 – Altera a Lei de Execuções Penais instituindo o Regime Disciplinar Diferenciado.
113
JESUS, 2005, p. 02.
58
lhe à pena.
Ainda é possível constatar esta tendência teórica, também, em diversos outros
dispositivos legais: na Lei referente aos Crimes de Lavagem de Dinheiro e Leis Contra a
Ordem Econômica e Tributária, que surgiram diante do grande índice de corrupção no
Brasil, objetivando combater os ‘poderosos’. Todavia, mesmo que possuem reflexos da
expansão do Direito Penal e da sociedade de risco, além da taxar os ‘poderosos’ como
inimigos, na verdade, não possuem a efetividade necessária para solucionar a questão, haja
vista a impunidade dos indiciados e processados, mesmo depois do advento destas normas, de
caráter meramente simbólico.
Outra norma que surge após manifestações da mídia, que cobrava do Estado maior
rigor quanto ao porte e posse de armas de fogo, devido ao número excessivo da prática de
crimes com a utilização destes artifícios, é o Estatuto do Desarmamento, ampliando as
figuras típicas, de forma a penalizar mais severamente tais condutas de perigo, declarando-as
inafiançáveis e prevendo penas mais severas que um homicídio simples por exemplo. Desta
forma, os crimes de perigo possuem características de se anteciparem à efetiva lesão, assim,
punem a simples ação que gera perigo de lesão ao bem jurídico, o que os aproxima ao Direito
Penal do Inimigo, pois antecipa a punibilidade, considerando os atos preparatórios.
Ainda, com a intenção de solucionar as questões de violência e desrespeito aos
direitos do idoso, o legislador publica a Lei nº 10.471/03, o Estatuto do Idoso, criando novas
condutas criminosas. Revoluções midiáticas também trouxeram ao público a história de
Maria da Penha, e o Legislativo edita a Lei nº 11.340/06 com a finalidade de combater a
violência doméstica e familiar contra a mulher.
Ainda nas leis extravagantes é necessário fazer referência à polêmica Lei do Abate,
que ao identificar o traficante como inimigo, autoriza o piloto de aviões das Forças Armadas
abaterem aviões ou embarcações suspeitas. Neste sentido Maierovitch defendeu a
inconstitucionalidade da medida, salientando que:
114
MAIEROVITCH, 2005 apud MORAES, 2006, p. 210.
59
116
CALLEGARI e MOTTA apud JUNIOR, 2009.
117
GOMES, 2012, p. 212
61
gama de leis penais simbólicas, que não resolvem tais problemas, pois suas causas, que
derivam da desigualdade social, dependem de outros tipos remédios, tais como políticas
públicas eficientes.
desempenho da atividade jurisdicional. (...) Nesse ponto [da Nova Lei de Tóxicos],
entendo que a regra conflita materialmente com o texto da Constituição.118
Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33 caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são
inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória,
vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos119.
Desta maneira, deve-se concluir que simplesmente por se tratar de um crime de tráfico
de drogas, não justifica a privação cautelar (vedação de liberdade provisória); ou estaria desta
forma julgando o indivíduo pelo o que é ‘traficante’ e não pelo ‘o que ele fez’, com lesão
expressiva a bens jurídicos fundamentais. Ademais, este artigo limita a atuação judicial, pois
veda a substituição de penas e concessão de liberdade provisória, que deveriam ser fruto de
decisões discricionárias do magistrado.
118
Supremo Tribunal Federal, 2010.
119
Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006. Lei de Drogas.
120
Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006. Lei de Drogas.
63
Portanto, o Congresso Nacional pode impor sanções penais que julgar necessárias para
enfrentar problemas que afetam o país, levando em consideração os interesses da sociedade,
contanto que tais sanções preservem os limites legais e constitucionais, pois o juiz deve
interpretar a lei a partir de um sistema de princípios constitucionais e garantias fundamentais.
Contudo, esta decisão possui efeitos ex nunc, e somente o Senado Federal possui
competência para suspensão da eficácia de leis. E atendendo a esta determinação
constitucional, disposta no art. 52, inciso X da Carta Magna, o senador Demóstenes Torres121,
em projeto de resolução, entendeu pela suspensão apenas do art. 33, §4º da Lei nº 11.343/06,
sob a alegação que o art. 44, poderia se considerar àqueles que são considerados de maior
periculosidade.
Assim, a periculosidade do indivíduo que comete o crime de tráfico de drogas, de
acordo com este posicionamento do Senado, deve ser considerada de forma objetiva, pois ao
invés de condicionar à avaliação do caso concreto ao juiz, atribui a todo e qualquer indivíduo
que pratique este delito características de indivíduo perigoso. Sendo inegável que este
posicionamento no remete às características do inimigo de Jakobs.
Em decisões anteriores o ministro Celso de Mello defendeu as garantias
constitucionais restringidas pela Lei de Tóxicos, conforme se pode observar em Habeas
Corpus (HC 85.531) que ataca a exacerbação punitivista, presentes em normas penais eivadas
de pura generalidade que se consagra a corrente legislativa simbólica:
121
Senado Federal. 2010. Parecer do Senado Demóstenes Torres.
64
Tal constatação do ministro revela o quão influenciado pela expansão punitiva estão os
legisladores, que preferem a criação de um Direito Penal simbólico para ludibriar a sociedade,
com a vigência de normas mais rigorosas. Nesta decisão, o ministro aponta inclusive este
discurso judicial que se apóia no reconhecimento da gravidade subjetiva do crime revelam um
‘Direito Penal do Inimigo’ em nossas decisões judiciais, infringindo os princípios liberais
consagrados em nossa Constituição.
Até o presente momento, foi possível realizar a constatação de que existe forte
influência, nas leis penais brasileiras, do fenômeno da expansão do Direito Penal e de
características deste denominado “Direito Penal do Inimigo”. Que, conforme foi visto, não é
considerado propriamente um sistema penal ordenado e lógico, mas, um conjunto de todas as
normas espalhadas pelo ordenamento jurídico-penal que se caracterizam por violar os direitos
e garantias fundamentais da pessoa.
Esta constatação está clara. Sobretudo ainda resta refletir se à medida que a sociedade
contemporânea, em toda sua complexidade, exige do Estado respostas à criminalidade
violenta e organizada, pode-se considerar legítimo e necessário que a aplicação de um direito
penal desta natureza ronde nossas normas penais?
A princípio como possível resposta cita-se Meliá, afirmando que “o fato de haver leis
penais que adotam princípios do Direito Penal do Inimigo não significa que ele possa existir
conceitualmente, como uma categoria válida dentro de um sistema jurídico123”.
Sob esta ótica Sanchez também afirma que, uma possível legitimidade poderia se
basear em “considerações de absoluta necessidade, subsidiariedade e eficácia, em um contesto
de emergência124.”
122
STF. 2006. HC 85.531/SP.
123
JAKOBS, MELIÁ, 2007, p. 45.
124
SANCHEZ, 2012, p. 151.
65
125
JAKOBS, MELIÁ, 2007, p. 42-43.
126
MOLINA, GOMES, 2012, p 212.
127
WERMUTH, 2011, p. 62.
66
Jesus, para o qual, “o modelo decorrente do Direito Penal do Inimigo não cumpre sua
promessa de eficácia, uma vez que as leis que incorporam suas características não têm
reduzido a criminalidade128.”
A este respeito chega-se a dois questionamentos antagônicos: se com a vigência destas
normas, nitidamente influenciadas pelo direito penal do inimigo, os índices criminais
permanecem altos, o que seria da sociedade se estas normas não estivessem em vigor? Ou ao
contrário, se mesmo com um tratamento mais severo, os índices continuam altos, a eficácia de
tais normas seria questionável, pois não surti o efeito esperado?
Extremamente complicado chegar a uma conclusão pacífica, pois o tema é por demais,
polêmico. De um lado rigoristas, punitivistas, maximalistas e de outro os minimalistas,
defensores absolutos dos direitos humanos. Além do mais, esta é uma questão, que apesar de
justa, é praticamente impossível de se alcançar uma resposta coerente, pois é formulada em
suposições. Mesmo assim, buscar-se-á uma resposta, através de uma análise crítica da
legitimidade de um direito penal desta natureza, pois se for considerado indubitavelmente
ilegítimo, não poderá ser opção de solução para o problema de criminalidade.
Nesta vertente faz-se outro questionamento, diante do pensamento de que alguns
direitos não são absolutos, como é o caso da liberdade; haverá possibilidade para a
flexibilização de direitos fundamentais de criminosos que ofereçam grande perigo à
sociedade, numa tentativa do legislador-Estado enfrentar o crime organizado de forma mais
eficiente, pois infelizmente alguns criminosos, não se apresentam capazes de conviver
pacificamente em sociedade.
Porém, sobre o Direito Penal do Inimigo como exemplo de Direito Penal do autor,
pois considera o indivíduo pelo o que ele é, e não pelo o que ele fez, Cancio Meliá apud Luís
Flávio Gomes afirma:
128
JESUS, 2005, p. 05.
67
Interessante está constatação apresentada por Meliá, qual seja, a afirmação, a efetiva
aplicação de um Direito Penal tal como constitucionalmente é concebido, seria uma resposta
idônea, e sem dúvidas, a mais coerente.
Mas se ainda considerarmos a proporção e o avanço da criminalidade organizada, estas
estruturas delinqüentes necessitam de uma legislação que acompanhe tal evolução? Valendo-
se de uma construção metafórica Gomes e Bianchini trazem uma reflexão interessante ao
tema:
Nesta metáfora que considera o Direito Penal como um elefante, pesado e lento,
devido à burocracia judicial, que tem a difícil finalidade de perseguir o ágil ratinho,
identificado como a criminalidade na sociedade globalizada, e que tem se desenvolvido de
129
JAKOBS, MELIÁ, 2007, p. 76-78
130
GOMES, 2002.
68
Ademais, outra crítica que se deve fazer ao Direito Penal do Inimigo é o fato de adotar
a teoria do direito penal do autor. E desta maneira, revela-se um direito penal discriminatório.
Um grande perigo, após grandes avanços históricos. Assim, possui um caráter
demasiadamente repressivo, pois acaba punindo o agente pela simples cogitação do crime, ou
seja, o mero pensamento, o que fere vários princípios penais, como o da lesividade, da
131
JAKOBS, MELIÁ, 2007, p.49.
132
PRADO, 2010, p. 121-122.
133
Idem. Ibidem, 2010, p. 120-121.
69
134
GOMES, 2005.
70
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho teve como objetivo propor uma discussão acerca da influência da
expansão do Direito Penal na realidade normativa brasileira, e principalmente, identificar
aspectos da teoria do Direito Penal do Inimigo e suas causas em nosso ordenamento jurídico,
buscando posicionamentos doutrinários, jurisprudenciais e/ou legais aptos a revelar tal
realidade, considerada incompatível com Estados Democráticos de Direito.
É certo que, historicamente no Brasil, existem oscilações entre o ‘garantismo penal’,
consagrado pela Constituição da República de 88, basicamente uma maneira de defender o
cidadão da força do poder estatal e, o ‘punitivismo’, responsável pelo ‘endurecimento’ das leis
penais, como forma de solucionar os problemas de criminalidade.
E atualmente a sociedade brasileira enfrenta o fenômeno da expansão do Direito
Penal, criado pelos riscos vivenciados diante da globalização. A denominada sociedade de
riscos ou do medo se destaca pela complexidade tecnológica e pela prática de crimes que não
obedece o limite das fronteiras, o que dificulta sua repressão pelo Estado. Ademais, o medo
do crime é preponderantemente subjetivo, devido à exploração midiática cotidiana da
violência.
Diante destes fatores se dá a expansão do Direito Penal, através da criminalização de
novas condutas, aliada à flexibilização de garantias constitucionais e aumento significativo
das sanções impostas. Ou seja, a ciência penal vai se expandindo alcançando a penalização de
condutas que antes eram fiscalizadas por outros ramos do Direito na mesma proporção que
vai restringindo direitos conquistados no decorrer da história pela humanidade.
Desse fenômeno surgem as velocidades do Direito Penal. Na primeira velocidade está
a consagração do Direito Penal tradicional, com a aplicação de penas privativas de liberdade
juntamente com a preservação de todas as garantias processuais e penais. Na segunda
velocidade, há uma aplicação de penas alternativas à prisão, porém as garantias são mitigadas.
Já na terceira velocidade existe a fusão do que há de mais severo nas duas primeiras, qual
seja, a aplicação das penas privativas de liberdade aliadas à flexibilização de garantias
constitucionais.
E como uma espécie de Direito Penal de terceira velocidade verifica-se o Direito Penal
do Inimigo. Corrente doutrinária extremamente polêmica, que mesmo sendo considerada
majoritariamente pela doutrina como incompatível com Estados de Direito, é possível
identificá-la em normas penais em todo o mundo, inclusive no Brasil.
71
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