Cognição, Emoção e Expertise Musical

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Psicologia: Teoria e Pesquisa

Mai-Ago 2006, Vol. 22 n. 2, pp. 169-174

Cognição, Emoção e Expertise Musical

Afonso Galvão1
Universidade Católica de Brasília

RESUMO – Este texto, sobre a relação entre cognição e música, objetiva lançar novas perspectivas para uma idéia há muito
presente na pesquisa psicológica: de que a atividade musical tem importantes conseqüências para o desenvolvimento emocional
e cognitivo da pessoa. Estas, no entanto, não são sempre positivas, já que processos de aprendizagem musical, da forma
como tradicionalmente desenvolvidos, podem também levar à frustração e ao adoecimento tanto físico como psíquico. O
texto analisa estes temas, tendo como foco a aprendizagem expert de instrumentos musicais da tradição clássica como uma
aprendizagem permanente, que envolve o desenvolvimento e refinamento constante de habilidades metacognitivas e auto-
reguladoras, bem como uma capacidade para superar obstáculos emocionais oriundos do tipo de investimento necessário
ao alcance e manutenção da expertise musical.

Palavras-chave: expertise; psicologia da música; desenvolvimento cognitivo; ansiedade; metacognição.

Cognition, Emotion and Musical Expertise

ABSTRACT – This text, about the relationship between music and cognition, aims at launching new perspectives for an idea,
which is quite old in psychological research, that musical activity has important consequences for emotional and cognitive
human development. However, these are not always positive, once music learning processes, as traditionally developed, may
also lead to frustration and illness, both physical as psychological. This text analyses these topics, focusing on expert learning
of musical instruments of classical tradition as a form of continuous learning which involves the constant development and
refining of metacognitive and self-regulatory abilities, as well as a capacity to overcome emotional obstacles derived from the
type of investment necessary to achieve and maintain musical expertise.

Key words: expertise; musical psychology; cognitive development; anxiety; metacognition.

A música é uma das expressões fundamentais da cul- uma peça qualquer, pode-se ouvir uma música a caminho
tura humana. Algumas imagens do Olodum, dos muitos do supermercado e emocionar-se pois era a que estava
grupos musicais do Recife que animam festas com estilos tocando quando da ruptura com a primeira namorada. Ao
tão distintos, dos trios elétricos, das escolas de samba, do ouvir uma peça barroca inédita na experiência pessoal,
grupo de rock que anima bailes, são suficientes para dar o argumento caótico dos sons, de alguma forma se orga-
conta dessa atividade na vida humana. Há a polêmica da niza. Devido a algum tipo de ordenação subjacente, fa-
sala de concertos lotada para a apresentação da nona de zemos sentido do que ouvimos e, dependendo do tipo de
Beethoven, de que todo mundo gosta, ou a pouca platéia exposição já experimentada em relação àquele estilo, in-
que assiste com um sorriso conflituoso à estréia da obra tuitivamente declaramos que isto que é ouvido agora deve
contemporânea que rompe com a idéia de nota musical, ser Bach. Este “fazer sentido” de um discurso musical
de que quase ninguém gosta. Música é assim: ama-se e pode ser um conjunto de convenções arbitrárias, ou uma
odeia-se com argumentos acalorados e dicotômicos. A descrição da realidade, ou uma propriedade da mente. De
reação humana ao discurso musical raramente é de in- alguma forma, face à experiência musical, tal como em
diferença. Isso traduz a experiência musical como uma muitas outras experiências cognitivas, o cérebro busca
experiência emocional socialmente compartilhada em naturalmente por regularidades. Esta posição teórica tem
festas, funerais, salas de concerto, cinemas, carros e em sido defendida por estudiosos tão diferentes como David
muitos momentos da vida cotidiana. Hilbert e os primeiros psicólogos da Gestält.
A atividade musical, que é multifacetada em termos
de estilo, também o é no que diz respeito aos modos de Perceber o discurso dos sons musicais envolve per-
vivenciá-la. Alguém pode simplesmente sentar-se con- ceber aspectos tais como simetria, repetição e imitação,
fortavelmente na sala de estar e colocar para tocar um CD algo comprovado por experimentos sobre padrões auditi-
com a versão de Carlos Kleiber da primeira de Mahler; vos temporais (Garner, 1974; Jones, 1978). Tocar um ins-
ou pode dirigir o carro enquanto toca na própria mente trumento musical é uma das mais complexas atividades
uma representação acústica da obra que ouviu pela ma- humanas pelo tipo de demanda que faz ao sistema de co-
nhã. Além disso, pode-se cantarolar a parte melodiosa de nhecimento como um todo. Envolve uma interdependên-
cia de aspectos cognitivos, kinaestheticos e emocionais
realizados por meio de uma coordenação entre os siste-
mas auditivos e visuais, que se articulam com o controle
1 Endereço: Universidade Católica de Brasília, Campus II, Pós-Graduação motor fino (Galvão & Kemp, 1999; Pederiva, 2005). Para
e Pesquisa, SGAN 916, mod. B, Brasília, DF, Brasil 70790-160. E-mail: que a performance aconteça, há a necessidade de um pla-
[email protected] no cognitivo capaz de estabelecer uma intenção de comu-

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nicação de um discurso musical coerente estabelecido na indicaram ser o estudo deliberado um hábito de vida in-
interpretação, e de um plano físico, para levar a termo o teira, cuja quantidade decresce consideravelmente após o
que foi estabelecido no plano interpretativo. período de conservatório. Músicos que se tornam experts
Assim, a relação entre cognição e música pode ser ex- iniciam estudos de instrumento muito cedo. O tempo de
plorada a partir de muitas facetas. Pode-se pensar o tex- estudo, que começa com algo entre 20 minutos e uma
to musical a partir dos limites impostos à sua percepção hora por dia nos primeiros anos, aumenta para 25 horas
por fatores psicoacústicos, ou tratá-lo numa perspectiva semanais durante a adolescência e para até 35 durante o
gramatical, como análogo à linguagem, já que a música período de conservatório superior (Hallam, 1997).
é hierarquicamente organizada e faz uso seletivo de siste- Devido ao limitado número de investigações nessa
mas neurais complexos que interrelacionam o ouvido, a área, não se sabe ainda como variáveis do tipo contexto
voz e o cérebro. Um modo de caracterizar a performance educacional e tipo de instrumento influenciam a quan-
instrumental é como um tipo de atividade de resolução tidade de estudo individual. A pesquisa de Jorgensen
de problemas que envolvem dimensões tais como ob- (1997), no entanto, coloca alguma luz nesta questão. Esta
jetivos, conteúdo, meio de aprendizagem, alocação de investigou o tempo de estudo individual de estudantes
tempo, planejamento e avaliação de resultados. Isso inte- que tocam diferentes instrumentos em um conservató-
rage com características específicas de um aprendiz que, rio da Noruega. Resultados sugerem que, como grupo,
incluem personalidade e estilo cognitivo, equilíbrio emo- as cordas estudam por mais tempo e de modo mais uni-
cional, traço de ansiedade, entre outros. Tornar-se um ex- forme, já que nenhum subgrupo pratica menos do que
pert instrumentista da tradição clássica é um processo 26 horas por semana. Madeiras e metais mostraram uma
longo, que pode levar até 20 anos (Hayes, 1981; Sosniak, variação de 10 horas na comparação entre músicos que
1985, 1990). Assim, para que a expertise seja atingida, estudam mais e menos.
aprendizes têm de ser capazes de superar sérias limita- No que diz respeito ao tempo de estudo individual, a
ções de ordem física, emocional e cognitiva. literatura psicológica indica que estados de alta concen-
Este texto focaliza aspectos cognitivos e emocionais tração mental só podem ser obtidos por cerca de 30 a 45
que emergem no contexto da performance musical expert. minutos. Indivíduos podem atingir um estado de fadiga
São muitas as dimensões cognitivas relacionadas à ativi- mental após uma hora de trabalho mental intenso (Pipe-
dade musical. Aqui vamos explorar quatro delas – estudo rek, 1981). Em crianças, o limite temporal de atenção é
deliberado, auto regulação, memória e ansiedade – como ainda menor e tende a ser de um a um minuto e meio por
meio de provocar uma reflexão sobre o complexo uso do ano de idade (Fontana, 1995). Em música, há a cultura
sistema cognitivo na performance musical. de se pensar que quanto mais alguém pratica, melhor se
torna. No entanto há limites físicos e psíquicos para a
Estudo Deliberado quantidade de prática. Embora haja especulação sobre
pessoas que estudam até 70 horas por semana, não foi
O tornar-se músico implica estudo individual delibe- encontrado nem um único caso sistematicamente docu-
rado de longo prazo e em exposição a variadas formas mentado de músico capaz de sustentar o estudo individu-
de experiência musical (ouvir música, tocar em grupo). al por mais do que 35 horas por semana no longo prazo.
O estudo individual deliberado é tido como um dos fa- Na verdade, pesquisadores (Bastian, 1989; Ericsson &
tores individuais mais importantes no desenvolvimento cols., 1993; Hallam, 1995; Jorgensen, 1997) sugerem um
da expertise musical. Alguns autores (Ericsson, Tesch- máximo de quatro horas de estudo deliberado diário a ser
Romer & Krampe, 1993; Sloboda, Davidson, Howe & sustentado no longo prazo.
Moore, 1996) consideram-no o “mais” importante. Isto Além da fadiga física, o estudo deliberado apresenta
representa um certo exagero. O desenvolvimento da ex- um outro problema, de ordem motivacional. A literatura
pertise envolve muito estudo deliberado que interage (Ericsson & cols., 1993; Galvão, 2000; Hallam, 1997;
com outros fatores tais como características cognitivas Sloboda & cols., 1996; Sosniak, 1985, 1990) sugere ser
do aprendiz, estilo cognitivo, personalidade, condições o estudo deliberado uma atividade maçante e despraze-
ambientais, o que torna em especulação perigosamen- rosa. Tocar um instrumento implica adiamento de grati-
te reducionista singularizar um aspecto. De todo modo, ficação. Pesquisa de minha autoria (Galvão, 2002) indica
o fator estudo deliberado está em acordo com uma das que isso não é tão simples como parece. Nos primeiros
poucas leis gerais da psicologia cognitiva – a lei geral anos da aprendizagem de um instrumento para a experti-
do estudo deliberado. Esta lei transforma em equação se, aprendizes praticam sob pressão (dos pais, professo-
matemática o antigo ditado de que a prática traz a per- res). No entanto, num segundo momento, geralmente na
feição. Há evidência consistente para a idéia de que a adolescência, há uma mudança gradual neste controle,
expertise musical é alcançada somente depois de mui- com os estudantes assumindo progressivamente uma in-
tos anos de intenso estudo individual deliberado. Além dependência, em termos da responsabilidade pelo estu-
disso, depois de atingida a expertise, músicos tem de do individual. Na vida profissional, a motivação para a
continuar com estudo individual consistente se quiserem aprendizagem de uma peça vai ser fortemente influen-
prolongar a carreira. Mas, o que significa este estudo ciada pela fase de aprendizagem e pelo contexto. Por
deliberado? Que dimensões de aprendizagem envolve? exemplo, nas primeiras sessões de estudo deliberado de
Quais seus aspectos metacognitivos e auto-reguladores uma obra complexa, há uma prática mais “clínica” (estu-
mais importantes? do de pequenas sessões, para ver afinação, execução de
Pesquisas de Ericsson e cols. (1993) e Sloboda e cols. ritmo e notas separadamente, toca-se devagar um trecho,
(1996) foram conclusivas sobre a fundamental importân- aumentando progressivamente a velocidade). Esta fase
cia do estudo deliberado no desenvolvimento da experti- tende a ser consideravelmente mais maçante do que as
se. Diversos estudos (Bloom, 1985; Galvão, 2000; Kram- etapas finais, quando alguém já está fazendo estudo de
pe, 1994; Lacorte, 2006; Sosniak, 1990) sugerem pelo performance. Em músicos profissionais de orquestra sin-
menos 16 anos de estudo deliberado para que alguém fônica, o contexto parece exercer uma influência enorme
atinja a expertise instrumental. Outros trabalhos (Galvão, no processo de aprendizagem. Eles freqüentemente têm
2000; Krampe & Ericsson, 1995; Manturzewska 1990) de preparar um repertório que não escolheram em dois

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Expertise Musical

ou três dias, que é o tempo de ensaio para um concerto. (1993) de que tocar de cor aumenta a comunicabilidade
Assim a dedicação ao estudo individual, neste caso vai entre músico e audiência, influenciando positivamente a
depender de uma série de fatores tais como preferência percepção da expressão musical.
pelo repertório, identificação com o maestro e momento No que diz respeito a processos de memorização, nos
profissional no contexto do grupo. últimos 100 anos, diversas investigações, a maioria ex-
perimental, focalizaram o modo como músicos memori-
Auto-Regulação zam, com resultados mais ou menos similares. Uma série
de investigações desenvolvidas por Rubin-Rabson (1937,
A auto-regulação é um importante aspecto do proces- 1939, 1940, 1941) sobre processos de memorização de
so de aprendizagem e uma função cognitiva que opera na pianistas indicou estratégias que incluíam pré-estudo
base de sua ocorrência. Diz respeito aos mecanismos que analítico (análise da estrutura do texto musical: estrutura
as pessoas usam para controlar o seu próprio processo de harmônica, estilo, organização fraseológica, entre ou-
aprendizagem. Implica estabelecer um objetivo ou norma tros) anterior à prática física, distribuição de tempo de
de estudo e controlar o próprio progresso, utilizando es- estudo, estudo de trechos curtos com mãos separadas e
tratégias tais como monitoração, elaboração e gerencia- estudo mental. A importância do pré-estudo analítico foi
mento de esforço (Corno, 1989). Estas determinam deci- apoiada por outras investigações (Galvão, 2000; Kopiez,
sões posteriores sobre continuar ou não alocando tempo 1991; Ross, 1964), como também a adoção de codifica-
para o estudo, bem como mudanças nas estratégias de ções múltiplas (Hallam, 1997; Lim & Lipmann, 1991;
aprendizagem (Thiede & Dunlosky, 1999). Em geral, Nuki, 1984). Estudos com maior preocupação ecológica
estudantes podem ser descritos como aprendizes auto- (Miklaszewsky, 1995; Chaffin & Imreh, 1994) indicaram
regulados devido à ativa participação que têm em seu que a memorização só se torna uma preocupação para o
próprio processo de aprendizagem em termos de meta- músico nos estágios mais avançados da aprendizagem.
cognição, comportamento e motivação. A auto-regulação Enfatiza-se que um ponto comum destes estudos é a su-
tende a ser caracterizada em relação a estratégias, tais gestão do uso de múltiplas formas de codificação (visual,
como, organização, transformação de informação, se- auditiva e kinaesthetica) que, se trabalhadas eficiente-
qüenciamento, busca de informação, ensaio e estratégias mente, acabam por integrar um esquema mental extre-
mnemônicas. Estudo auto-regulado inclui ainda auto-re- mamente automatizado e que passa a demandar pouca
forçamento, busca de padrão, adiamento de gratificação, atenção por parte do performer.
estabelecimento de objetivos, percepção de auto-eficácia, Nesse contexto, a análise musical ocupa um lugar par-
auto-instrução e auto-avaliação (Zimmerman, 1989). ticularmente importante. Pesquisas de McPherson (1996)
A pesquisa sobre a auto-regulação no processo de e de minha própria autoria (Galvão, 2000) evidenciaram
aprendizagem de músicos tem focalizado três grandes que, à medida que a expertise musical se desenvolve, mú-
áreas. Uma tenta descrever o comportamento auto-regu- sicos tendem a trabalhar utilizando estratégias cognitiva-
latório na prática de novatos (Weidenbach, 1996), estu- mente mais elaboradas que levam em conta a natureza
dantes avançados (Nielsen, 1999) e profissionais da tra- do material a ser memorizado, preferências individuais e
dição clássica (Miklaszewski, 1989) e da música popular possível nível de ansiedade performática. Em contraste,
(Lacorte, 2006). Outra área examina a auto-regulação novatos tendem a confiar quase que exclusivamente, em
como aspecto preditivo de sucesso na música instrumen- processos diretos de automatização.
tal (Weidenbach, 1996). Em outras palavras, trata-se de Deve ser enfatizado que a pesquisa sobre memória
tentar verificar se o controle pessoal sobre o processo de musical é ainda introdutória. Como argumenta Cohen
aprendizagem é mais importante no alcance da expertise (1996), quase nada se sabe sobre como a memória mu-
do que fatores como habilidade ou tempo de dedicação. sical se desenvolve ou melhora e sobre quais processos
Finalmente, há a preocupação de pesquisa sobre se a envolvidos no ato de tocar mentalmente uma peça. Não
aprendizagem auto-regulada é treinável. Diversas inves- sabemos se estes processos são similares ao “discurso
tigações (Galvão, 2000; Kennel, 1989; Miklaszewski, interior” ou se diferentes vozes ou instrumentos variam
1989; Nielsen, 1999; Pogonowski, 1989) trouxeram evi- em memorabilidade. Não sabemos também qual a analo-
dência de boa qualidade de que comportamento de apren- gia mais coerente para a música: linguagem, matemática,
dizagem auto-regulado pode ser treinado e desenvolvido, reconhecimento de faces, memória pictórica.
estabelecendo formas sofisticadas de metacognição.
Ansiedade
Memorização
A ansiedade é um tipo de emoção que interfere na
Compreender a memória humana é uma das tarefas realização de tarefas cognitivas. A maior parte da pes-
importantes da pesquisa psicológica e dos psicólogos quisa sobre ansiedade tem considerado os seus aspectos
cognitivos. Aqui a contribuição da Psicologia para a mú- debilitadores. Poucas dão ênfase à ansiedade como faci-
sica tem sido considerável. Talvez devido ao esforço re- litadora da tarefa cognitiva. Para começar, é importante
querido, relativamente poucas performances, na tradição diferenciar entre traço e estado de ansiedade. O primeiro
clássica, são empreendidas sem o auxílio da partitura, indica uma disposição geral para ser ansioso. Trata-se
com a peça memorizada. Para que o processo de memo- de estrutura individual. Estado de ansiedade representa
rização ocorra, é necessário que haja diferentes dimen- uma situação mais transitória, a ser influenciada pelo
sões de codificação (auditiva, visual, kinaesthetica) que tipo de contexto. No trabalho de Kemp (1997), o traço
acabam por tornar a aprendizagem em super aprendiza- de ansiedade aparece como uma característica particu-
gem e a performance mais consistente. Ao menos esta larmente forte da personalidade de músicos que interage
parece ser a impressão do público. Em investigação de com aspectos tais como instabilidade emocional, tensão,
Williamon (1999), o público que ouviu suítes de Bach suspeição, baixa auto-estima e apreensão. Se a ansiedade
para violoncelo solo com e sem memorização conside- pode ou não ajudar na performance, isto depende de uma
rou execuções do primeiro tipo superiores. Isto parece combinação de fatores.
concordar com os resultados da pesquisa de Davidson De acordo com pesquisa de Hamann e Sobaje (1983),

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performances submetidas a altos níveis de estado de an- aprendizagem musical parecem maiores do que as ex-
siedade foram consideradas superiores a performances plicações da teoria ACT*, por exemplo. Pesquisas sobre
em condições tranqüilas, com estudantes mais experien- estudo deliberado e aprendizagem musical aqui mencio-
tes exibindo uma performance ainda melhor. Depois foi nadas indicam que, na vida real, os modos de lidar com
demonstrado que o nível de proficiência também tinha problemas musicais interagem com uma miríade de ou-
um papel nisso, pois a alta ansiedade de traço foi consi- tros aspectos que não têm sido considerados de modo
derada um fator facilitador na performance de estudantes adequado por teorias cognitivas. Por exemplo, processos
com alto nível de domínio de tarefa e debilitador em caso de aprendizagem de músicos parecem ser influenciados
de estudantes com baixa proficiência performática. Foi por respostas afetivas, isto é, por um tipo de relação afe-
demonstrada, também, que uma correspondência entre o tiva com a peça, e com pessoas contextualmente impor-
traço de ansiedade e um aumento no estado de ansiedade. tantes (maestro, professor) que podem exercer conside-
Assim, pode ser concluído que o sucesso da performance rável influência no modo como uma peça é aprendida.
num contexto estressante parece depender de um alto ní- Isto talvez exemplifique uma situação de aprendizagem
vel de domínio da tarefa que atua em combinação com o resultante de uma interação entre emoção e cognição.
estado e traço de ansiedade. Lehrer (1987) considera ser Em música, como em qualquer área de expertise, o
possível transformar a ansiedade de debilitadora em faci- estudo deliberado tem por objetivo atingir respostas
litadora, mas para que isso ocorra é necessário o engaja- automáticas, proficientes. Entretanto a pesquisa sobre
mento constante em atividade de prática de performance. aprendizagem musical (Galvão 2000; Hallam, 1997;
Isto foi confirmado por músicos profissionais participan- Weidenbach, 1996) indica que o modo como músicos
tes da pesquisa de Galvão (2003). abordam problemas parece também automático. Isto é,
músicos parecem possuir um repertório de resolução de
Conclusão problemas adaptável a diferentes problemas e uma capa-
cidade para monitorar a adequação de respostas, modifi-
Com base em toda a argumentação exposta neste texto, cando estratégias para atingir objetivos freqüentemente
podemos então perguntar: que tipo de desenvolvimento reavaliados enquanto a aprendizagem progride. Isto, no
a exposição à aprendizagem de um instrumento musical entanto, está longe de significar que músicos, mesmo
proporciona? Como mencionado, o estudo de um instru- profissionais, solucionam problemas de modo eficien-
mento musical parece envolver, entre outras dimensões, te. Pelo contrário, de acordo com as pesquisas citadas,
um plano cognitivo e uma prática física para sustentá-lo freqüentemente objetivos são apenas parcialmente atin-
e promovê-lo. Um processo de aprendizagem deste tipo gidos. Uma razão para isto talvez sejam as limitações do
é um típico exemplo da resolução de problemas em ní- repertório de resolução de problemas.
vel expert. Músicos aplicam diferentes estratégias para Por outro lado, deve-se considerar que, apesar das
resolver problemas, criam representações elaboradas e usualmente citadas similaridades, problemas musicais
desenvolvem suas habilidades por meio de estudo inten- não são como problemas matemáticos. Em música, pro-
so e prolongado. Seus processos de memorização estão blemas são mais bem caracterizados como mal-definidos,
em acordo com a teoria dos níveis de processamento o que permite, em certas situações, que muitas respostas
(Lockhart, 1972). Procedimentos de agrupamento estão possam ser consideradas corretas, a depender de pers-
na base da aprendizagem e são subjacentes a resultados pectivas específicas. Assim, a escolha de estratégias de
de estudo, idéia desenvolvida por Rosenbloom e Newell estudo parece influenciada por significados particulares
(1986). Em outras palavras, no estudo deliberado de um que peças têm para músicos. Estes são até certo ponto
instrumento musical, há a preocupação com a criação de cognitivos, mas parecem interagir com repostas intuiti-
uma regra procedimental capaz de permitir a execução de vas sobre que sabemos muito pouco. Isto implica inves-
uma passagem do começo ao fim como uma unidade. Isto tigar o conhecimento em um outro nível cuja natureza
é atingido gradualmente a partir da resolução de proble- pode ser mais afetiva do que cognitiva.
mas específicos que intermediam a unificação da passa- Devido às suas demandas físicas, afetivas e cogniti-
gem. O modelo ACT* (Anderson, 1987) parece plausível vas, a aprendizagem da música instrumental talvez seja
para explicar certos eventos típicos da aprendizagem de uma das mais complexas aventuras humanas, o que cer-
um instrumento. O ACT* (pronuncia-se “act star”, que tamente tem implicações para o desenvolvimento cogni-
significa adaptive control of thought) é um modelo com- tivo, cujos limites ainda não somos capazes de apontar.
putacional do sistema cognitivo humano, que opera de Vimos ao longo deste texto que estudar um instrumento
forma serial (para uma análise detalhada deste modelo, envolve uma experiência humana multifacetada e mul-
ver Galvão, 2005). Propõe a existência de uma memória tidimensional. Compreender as diversas dimensões que
de produção que seria responsável pela automatização de compõem tal processo de aprendizagem pode fazer avan-
movimentos. Conhecimento, que é inicialmente declara- çar não somente o nosso conhecimento sobre música,
tivo, torna-se procedimental por meio de um processo de mas sobre a mente humana como um todo.
procedimentalização que envolve uma redução em ver-
balização na medida em que a automatização aumenta.
A memória procedimental açambarca estruturas de ob- Referências
jetivos hierarquicamente organizados que por sua vez
codificam planos de ação. Assim, o objetivo particular Anderson, J. (1987). Skill acquisition. Psychological Review, 94,
de tocar uma seqüência musical a torna uma fonte forte 192-210.
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Na vida real, processos intuitivos relacionados à ryland, Washington.

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