Barata e Um Santo Remedio - Introducao - EW - LN - CB
Barata e Um Santo Remedio - Introducao - EW - LN - CB
Barata e Um Santo Remedio - Introducao - EW - LN - CB
Feira de Santana
1999
1
Feira de Santana
1999
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Capa: Anjo Rafael ensinando o jovem Tobias a preparar um remédio com matérias-primas
de peixe. “Disse-lhe o Anjo: „Abre o peixe, tira-lhe o fel, o coração e o fígado.
Guarda-os contigo e joga fora as entranhas. O fel, o coração e o fígado são remédios
úteis‟” (Tobias 6,4).
Pintura de Domenico Zampieri, final do século XVI.
CDU: 615.324(814.2)
SUMÁRIO
Apresentação e Agradecimentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Lista de figuras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
Apêndices. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
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APRESENTAÇÃO E AGRADECIMENTOS
crítica a cerca do tema de direitos de propriedade intelectual e uso sustentável das espécies
animais de interesse medicinal.
Ser-me-ia impossível agradecer a todos que auxiliaram durante a preparação deste
livro. No entanto, alguns nomes merecem ser lembrados: meus avós e mãe, pelo incentivo
constante. José Geraldo Wanderley Marques, eterno orientador e crítico, por seus
ensinamentos e orientações tão válidos, bem como pela revisão feita no texto. Professora
Gizélia Vieira dos Santos, pelo apoio enquanto Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-graduação da
UEFS.
Sou particularmente agradecido à Maria Vanilda Moraes Oliveira, funcionária do
Herbário da UEFS, pela lista de animais medicinais do município de Tanquinho e à Cássia
Tatiana da Silva Andrade, bióloga e funcionária do Laboratório de Etnobiologia da UEFS,
pela lista de animais medicinais utilizados na cidade de Andaraí e pela ajuda na confecção
das figuras das páginas 16 e 17.
Meus agradecimentos também se dirigem aos alunos que freqüentaram a disciplina
Etnobiologia, por seus trabalhos didáticos desenvolvidos sobre o assunto. Desejo expressar
sinceros agradecimentos à Isabel Cristina Nascimento Santana, Rejane Maria Rosa Ribeiro
e Graça Dutra Simões, funcionárias da Biblioteca Central Julieta Carteado, pela ajuda na
elaboração da ficha catalográfica e revisão no texto.
Desejo também expressar agradecimentos especiais a todos os informantes pelos
depoimentos prestados e troca de memes.
Por fim, o reconhecimento à UEFS pelo apoio logístico e financeiro, os quais me
permitiram viagens de campo para coleta de dados.
AVISO
Este livro não pretende prescrever nem receitar remédios para quaisquer
das enfermidades mencionadas. O autor não se responsabiliza pelo uso de
remédios à base de produtos animais, uma vez que tanto podem ser
perigosos quanto inócuos.
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LISTA DE FIGURAS
ZOOTERÁPICA
Fig. 1 Desova de Aruá (Pomacea sp.): utilizada na medicina popular como tratamento para
rachaduras nas solas dos pés.
(Foto do autor).
9
INTRODUÇÃO
chamadas pet therapies, ou seja, por meio de práticas terapêuticas que se utilizam de
animais domésticos, como cães, gatos e cavalos, para o tratamento e melhoramento de
diversos estados patológicos, como, por exemplo, as deficiências mentais (SILVEIRA,
1998). Medicamentos populares baseados em recursos zooterápicos são também
recomendados para tratar enfermidades animais, o que é tema de estudos da medicina
etnoveterinária (PADMAKUMAR, 1998). Ainda, a observação de uma medicina natural
praticada pelos animais (zoofarmacognosia) pode implicar a descoberta de novos remédios
para o uso humano (BONALUME NETO, 1993).
Recentemente, o fenômeno da zooterapia despertou o interesse de pesquisadores de
diferentes domínios da ciência, que tanto registram essa prática cultural quanto procuram
compostos que tenham ação farmacológica (BUT et al., 1991, BISSET, 1991,
FAULKNER, 1992, AMATO, 1992, LAZARUS, ATILLA, 1993, CHEN, AKRE, 1994,
BALDWIN, 1995, RODRÍGUES, WEST, 1995). Esse interesse vai mais além quando se
leva em consideração os benefícios que compostos derivados de animais oferecem em
termos de valor monetário e bem-estar humano. Por exemplo, a angiotensina, um
antihipertensivo, traz para a Companhia Squibb cerca de 1,3 bilhão de dólares por ano em
vendas, além de contribuir para o bem-estar e longevidade de milhares de pessoas
(LOVEJOY, 1997). Hoje, de 252 químicos essenciais que foram selecionados pela
Organização Mundial da Saúde, 11,1% têm origem nas plantas, enquanto que 8,7% têm
origem nos animais (MARQUES, 1997).
O caráter de pioneirismo na sistematização dos estudos sobre fauna medicinal deve-
se a José Geraldo W. Marques, que desde a década de 1980 vem registrando o uso de
animais como remédios. No Brasil, recursos zooterápicos provenientes de uma ampla
variedade de animais (cerca de 300 espécies já foram registradas!) podem ser encontrados
como produtos comercializados por erveiros e curandeiros nos mercados públicos de todo o
país (SÁ, 1995). Seu valor econômico, como expresso por aqueles que os negociam, é
considerável. Em Feira de Santana, por exemplo, pênis secos de quatis eram vendidos ao
preço de 20 reais a unidade em setembro de 1998. Infelizmente, muitos desses animais
estão incluídos na lista de espécies ameaçadas de extinção (INSTITUTO BRASILEIRO
DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS, 1989).
12
CAPÍTULO 1
Tabela 1. Animais utilizados na medicina popular do estado da Bahia, distribuídos segundo as localidades em
que foram registrados.
Localidade Fonte Número de animais registrados
Acupe Dados do autor 09
Andaraí Cássia Tatiana da Silva Andrade (com. pess.) 31
Conde COSTA NETO (1998) 55
Correntina PACHECO (1998) 06
Fazenda Matinha MELO (1999) 43
dos Pretos LIMA (2000) 13
Feira de Santana COSTA NETO (1999a) 16
MELO (1999) 15
Glória COSTA NETO (1999b) 49
Hunildes MATOS et al. (1999) 12
Ichu Kátia Luciana Gordiano Lima (com. pess.) 13
Itaberaba Favízia Freitas de Oliveira (com. pess.) 02
Lençóis COSTA NETO (1996) 22
Mirandela BANDEIRA (1972) 13
Mombaça DIAS (1999) 09
Salvador Dados do autor 05
Santa Terezinha COSTA et al. (1997) 03
Tanquinho Maria Vanilda Moraes Oliveira (com. pess.) 34
Utinga Dados do autor 03
Velha Boipeba RÊGO (1994) 06
15
Silva Andrade, para o município de Andaraí, e por Kátia Luciana Gordiano Lima, para o
município de Ichu. A análise dos trabalhos didáticos desenvolvidos pelos alunos que
cursaram a disciplina de Etnobiologia desde o primeiro semestre de 1995 foi uma terceira
fonte de dados. Tanto as listas quanto os trabalhos (relatórios de conclusão de disciplina
mais especificamente) encontram-se depositados no Laboratório de Etnobiologia da
Universidade Estadual de Feira de Santana. No entanto, boa parte das informações aqui
registradas provém de pesquisas de campo desenvolvidas pelo autor e ainda não publicadas.
O estudo de animais medicinais no estado da Bahia faz parte de uma linha de
pesquisa do Laboratório de Etnobiologia da UEFS, que atualmente registra cinco projetos
de pesquisa aprovados pelo Conselho Superior de Ensino Pesquisa e Extensão que tratam
da utilização terapêutica de animais em diferentes regiões do estado. Entre eles, citam-se o
projeto de autoria do professor Francisco José B. Souto intitulado “Utilização de Animais
na Medicina Popular na Chapada Diamantina e na Região do Recôncavo, Bahia” e o
projeto de autoria do professor José Geraldo W. Marques intitulado “Fauna Medicinal
Brasileira: Recursos do Ambiente ou Ameaças à Biodiverdidade ?”. Esses estudos são
importantes, uma vez que o registro e a valorização dos saberes tradicionais têm
implicações na medicina, ecologia e manejo dos recursos biológicos (POSEY, 1987).
16
CAPÍTULO 2
Até o presente momento, cerca de 158 animais (espécies populares) foram referidos
como tendo propriedades medicinais para o tratamento de diversas enfermidades
diagnosticadas popularmente. Os recursos faunísticos, representados por invertebrados e
vertebrados, enquadram-se em 12 categorias taxonômicas distintas, distribuídas
percentualmente em: anelídeos (1%), moluscos (7%), equinodermos (2%), aracnídeos
(1%), insetos (19%), diplópodos (1%), crustáceos (5%), peixes (18%), anfíbios (1%),
répteis (13%), aves (11%) e mamíferos (21%) (Figs. 3 e 4). Desses animais, extraem-se
cerca de 250 matérias-primas, que são utilizadas na elaboração dos remédios populares. O
modo como esses remédios são preparados e administrados aos pacientes, bem como as
doenças para os quais são receitados são descritos na segunda parte desta obra.
Deve-se lembrar que muitas das doenças e enfermidades relatadas pelos informantes
fazem parte de seu contexto cultural e foram encaradas segundo a perspectiva interna do
grupo, registrando-se o modo tal qual foram narradas. Sua interpretação e possíveis
paralelismos com patologias conhecidas pela ciência médica ocidental requerem estudos
mais aprofundados.
Os animais são utilizados integralmente ou em partes, como pena, perna, pêlo,
couro, dente, banha (gordura), leite, carne, esporão, chifre, espinho, escama, unha, sangue,
pênis, ossos, fígado, carne, coração, cabeça, testículo, tutano, olho e orelha, entre outros.
Produtos de seu metabolismo, como os excretas (fezes e urina), méis e materiais
construídos por eles, como ninhos e casulos, são também recursos medicinalmente
utilizáveis (Fig. 5). O mel de abelha mandassaia (Melipona sp.?) é também utilizado como
cosmético para limpeza da pele e para dar brilho aos cabelos (Melo, 1999). Ocorre ainda
manipulação comportamental, como é o caso do uso de ferroadas de abelhas (Apis mellifera
scutellata) e de formigas (Paraponera sp.) para o tratamento de reumatismo e dores em
geral e do uso de descargas elétricas provocadas pelo peixe-elétrico (inclusive
Electrophorus electricus), também indicadas para a cura de reumatismo.
17
35
30
Nº de animais utilizados
25
20
15
10
0
A B C D E F G H I J L M
Categorias taxonômicas
A= Mamíferos G= Crustáceos
B= Insetos H= Equinodermos
C= Peixes I= Aracnídeos
D= Répteis J= Anelídeos
E= Aves L= Anfíbios
F= Moluscos M=Diplópodos
Dos animais registrados, pelo menos uma espécie popular, o peixe-boi, caracteriza-
se como um recurso zooterápico exógeno à fauna baiana, uma vez que as espécies
Trichechus manatus e T. inunguis não são encontradas no estado. Por serem espécies raras
e ameaçadas de extinção, muito provavelmente compradores/usuários de produtos
medicinais à base de peixes-boi (e. g., enlatados com sua “banha”) estejam adquirindo e
utilizando banhas de outros animais, como a de galinha. Exemplos de falsificações
zooterápicas são registradas na literatura (MARQUES, 1997, 1999).
No uso integral, os animais são geralmente secos ao sol, torrados, moídos ou
pisados e, reduzidos a pó, utilizados, em sua grande maioria, sob a forma de chás para o
tratamento de doenças respiratórias. Como exemplos, tem-se a utilização de remédios feitos
18
1%
1%1% 1%
2%
5% 21%
7%
11%
19%
13%
18%
A B C D E F G H I J L M
A= Mamíferos G= Crustáceos
B= Insetos H= Equinodermos
C= Peixes I = Aracnídeos
D= Répteis J= Anelídeos
E= Aves L= Anfíbios
F= Moluscos M=Diplópodos
criado como animal de estimação para livrar os moradores da casa de adquirirem bronquite
(em Conde) e erisipela (em Tanquinho).
Procedimentos de passar peixes vivos sobre partes do corpo de uma pessoa doente
ou de cuspir em sua boca e soltá-los são também registrados na literatura. BRANCH,
SILVA (1983) descreveram, para a região do Pará, o ato de cuspir na boca de um
eritrinídeo para o mesmo fim que o encontrado em Conde. BEGOSSI, BRAGA (1992)
registraram que no Rio Tocantins, moradores cospem na boca de um ciclídeo visando obter
a cura da tuberculose. MARQUES (1995) cita, para o baixo São Francisco alagoano, o uso
do caboge para o tratamento de hérnia umbilical (“umbigo grande”). Colocar peixes vivos
sob as solas dos pés de pacientes sofrendo de icterícia ou doença semelhante já era utilizado
na cidade de Veneza em 1743 (ROSNER, 1992).
As matérias-primas são primariamente obtidas através de atividades de caça, pesca e
coleta manual. Dos 158 animais listados, 111 fornecem apenas uma matéria-prima, que é
usada na elaboração de remédios prescritos para o tratamento de doenças específicas (e. g.,
fezes secas de cães usadas para tratar sarampo, asma e catapora). A aplicação dos remédios
varia de acordo com a natureza da enfermidade, do objetivo de uso e dos ingredientes
utilizados. A maior parte dos remédios populares são administrados na forma de chás,
seguindo-se os defumadores e o uso tópico. Beber a água na qual animais inteiros ou suas
partes (e. g., lagartixa e o pênis do boi) foram cozidos é procedimento recomendado para a
cura de determinadas doenças. Poucas são as receitas que prescrevem o consumo do animal
(e. g., a carne cozida do urubu, que é indicada para o tratamento da tuberculose).
A banha (gordura) animal sobressai-se como um dos recursos zooterápicos de maior
uso. Dos peixes, tem-se o registro do efeito medicinal da banha do peixe-elétrico
(Electrophorus electricus), que é usada para pancadas, torções e picadas de insetos, do
baiacu (Sphoeroides testudineus), utilizada para reumatismo e da traíra (Hoplias
malabaricus), recomendada para problemas oftalmológicos (catarata). Dos répteis, citam-se
o uso da cascavel (Crotalus cf. durissus) e da jibóia (Boa constrictor), que são usadas para
tratar reumatismo. Das aves, citam-se o uso da banha de ema (Rhea americana), que é
usada em dores em geral e da galinha (Gallus domesticus), a qual é colocada morna em
furúnculos e recomendada também para tratar catarro. Dos mamíferos, citam-se o uso
medicinal do sebo de carneiros capados (Ovis aries), para tratar torções e a banha da
21
em simpatias, a exemplo dos dentes do jacaré e do “osso da pá” do cágado, os quais são
recursos utilizados para a prevenção de “mazelas” durante o surgimento da primeira
dentição. As enfermidades mais citadas pelos informantes durante as entrevistas foram
“mal do tempo” (derrame?), reumatismo e doenças do aparelho respiratório.
Provavelmente, estas sejam as doenças mais comuns entre a população local.
Na aldeia, tanto os homens quanto as mulheres reconhecem as finalidades
terapêuticas dos animais. Entretanto, o domínio do conhecimento e da prática cabe ao
“caecó” (curador), que aprendeu com os “encantados” a manipular e a prescrever
corretamente os produtos de uso medicinal. Na cosmologia dos Pankararé, os encantados
são percebidos como entidades sobrenaturais protetoras dos recursos naturais locais. A
aprendizagem acontece durante reuniões realizadas no “Poró”, a Casa da Ciência, ou
mesmo dentro das residências indígenas quando, na ocasião, os “encantados” são
invocados e se manifestam, dando conselhos, realizando consultas, ensinando os remédios
e “rezando os presentes”. Os casos diagnosticados como de difícil tratamento são enviados
ao "camisa branca" (médico ocidental) de cidades próximas. Desta maneira, a real
compreensão das interações etnobiológicas e etnoecológicas que os Pankararé mantêm
com o mundo natural e, em conseqüência, o entendimento de sua adaptação ao ambiente
semi-árido nordestino, necessitam de estudos que enfatizem as interações
Pankararé/mundo sobrenatural, uma vez que muito do saber ecológico indígena encontra-
se codificado sob a forma de mitos e rituais (POSEY, 1987).
A zooterapia também é um recurso empregado na medicina etnoveterinária.
Registram-se 14 animais representados por equinodermos, insetos, peixes, anfíbios, répteis
e mamíferos (Apêndice 1). Alguns exemplos são: o sapo, cujo couro e banha são utilizados
para extrair farpas (“estrepe” ou “esporão”) e para tratar reumatismo, respectivamente; a
cascavel e a jibóia, cujas banhas são também utilizadas no tratamento de reumatismo
animal; o cangurupim, de cuja escama se prepara um defumador para tratar “doença do
vento”; o michila (Tamandua tetradactyla), cujo couro é passado em verrugas; baratas,
cujo chá é indicado para tratar diarréias.
A prática do uso de recursos animais na medicina etnoveterinária tem sido
registrada em outras realidades nacionais, como, por exemplo, na Paraíba (SOUTO, 1997)
e em Alagoas (COSTA NETO, 1994).
23
CAPÍTULO 3
proteína C do sistema anticoagulante de mamíferos, cujo valor médico poderá ser de grande
utilidade no futuro (SALTE et al., 1996).
Cavalos-marinhos são recursos bastante utilizados e facilmente encontrados em
bancas e barracas de erveiros de todo o país (Fig. 6). De acordo com BOTSARIS (1995), a
prática do uso terapêutico desses peixes foi introduzida no país pelos escravos africanos.
Esses peixes têm sido recomendados na medicina tradicional brasileira como tônico para
tratar debilidade física, impotência e asma, bem como reumatismo, bronquite e gastrite
(LAGES-FILHO, 1934, MARQUES, 1995). O mapeamento do uso terapêutico de cavalos-
marinhos permite, até agora, situá-lo em oito estados brasileiros, nomeadamente Alagoas,
Bahia, Espírito Santo, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo (Marques
CAPÍTULO 4
POSEY, 1997). Esta perspectiva social inclui o modo como os povos percebem, utilizam,
alocam, transferem e manejam seus recursos naturais (JOHANNES, 1993). Desse modo,
discutir a zooterapia dentro da multidimensionalidade do desenvolvimento sustentável
traduz-se como um dos elementos fundamentais para se chegar à sustentabilidade dos
recursos faunísticos, uma vez que o uso de animais devido ao seu valor medicinal é uma
das formas de utilização da diversidade biológica (CELSO, 1992).
Sob o ponto de vista ambiental, o uso de medicamentos tradicionais pode ameaçar a
biodiversidade, especialmente levando à extinção alguns animais superexplorados para fins
medicinais (CITES: http://foltecs.lab.rl.fws.gov/lab/am/GLOSS.HTM). Deve-se considerar,
contudo, que o valor dos recursos medicinais derivados de animais é significativo; eles,
juntamente com as plantas, geralmente são quase os únicos recursos disponíveis para a
maioria da população humana, que tem acesso limitado aos remédios da medicina oficial e
a cuidados médicos apropriados. COSTA NETO (1999) já afirmou que ao invés de mandar
os praticantes da zooterapia para a prisão ou forçá-los a abandonar tal prática, essa
interação homem/natureza deveria ser vista dentro de sua dimensão cultural. Desde que
povos vêm utilizando animais por um longo tempo, não é a supressão do uso que salvará as
espécies da extinção.
O princípio básico que governa o uso de recursos naturais diz que a taxa de extração
de um recurso renovável não deve exceder a taxa de renovação desse recurso. Uma
alternativa para diminuir a demanda por produtos naturais de uso medicinal deveria ser o de
buscar nos laboratórios a forma sintética de determinado composto ao invés de coletar
populações inteiras de espécies na natureza, levando-as à exaustão. Segundo KUNIN,
LAWTON (1996), as espécies envolvidas em remédios populares deveriam estar entre as
mais altas prioridades para a conservação.
31
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
ANELÍDEOS
Sanguessuga Hirudinea
Espécime não coletado
Torrar uma sanguessuga, triturá-la e colocar o pó resultante em feridas brabas
(abscessos).
ARACNÍDEOS
INSETOS
Barata-preta/Carocha Blattodea ?
Blaberus sp.
37
Cupim-preto Isoptera
Espécime não coletado
Um lambedor preparado com a raspa do pau-ferro-miúdo e um pedaço do
cupinzeiro é indicado para curar pneumonia;
Fazer o defumador da casa e respirar a fumaça para curar mal do tempo (derrame?);
Crianças com prisão de ventre são sentadas no cupinzeiro três vezes seguidas.
Cupim
Espécime não coletado Isoptera
Pegar um pedaço de pano, esfregá-lo no umbigo da criança e colocá-lo dentro de um
cupinzeiro. Quando o cupinzeiro fechar, o umbigo murcha. Deve ser feito onde a
criança nunca passará. Acredita-se que isso trate verrugas e umbigo grande.
Tirar um pedaço do cupinzeiro do lado que o sol se põe, colocar para ferver e depois
coar e dar ao paciente no momento em que estiver sofrendo de asma.
Fazer o lambedor do cupim apenas com água e açúcar e dar a alguém que sofre de
tosse e gripe.
Quando a criança tem convulsão, deve-se tirar a sua roupa pela cabeça e colocar no
cupinzeiro. Só serve se a roupa for tirada pela cabeça.
Cupim-branco Isoptera
Fazer um chá da casa desse cupim para o tratamento da asma. O doente não pode
saber o que está tomando.
Achaeta domestica
Torrar ou secar ao sol um grilo inteiro, moê-lo e colocar o pó na água fervente.
Depois, coar e beber essa água para a cura da asma ou para “soltar a urina”
(diurético). O mesmo chá pode ser tomado para “dilatação da uretra”;
Torrar um grilo, pisá-lo e colocar o pó resultante na comida e/ou na bebida de
indivíduos que sofrem de asma;
Extrair a perna traseira, torrá-la, moê-la e fazer um chá com o pó, o qual é bebido
como diurético;
Extrair a perna traseira e espremê-la para pingar um líquido no olho para o
tratamento de “óio verméio” (carne crescida?);
Cozinhar um grilo inteiro e beber a água para curar “doenças de mulher”.
Colocar cerca de 100 tanajuras em 100 ml de álcool e depois usar essa tintura para
massagear tendinite três vezes ao dia durante sete dias.
Traça Thysanura
Espécime não coletado
Colocar a traça na água e ferver um pouco. Depois, coar e tomar três vezes ao dia
para o tratamento da asma.
DIPLÓPODOS
CRUSTÁCEOS
Barata-do-mar Stomatopoda
Claridopsis dubia
Torrar uma barata-do-mar inteira, moê-la e fazer um chá com o pó para curar asma.
A pessoa não deve saber o que está tomando.
Caranguejo-da água-viva ?
Espécime não coletado
Torrar o animal inteiro, triturá-lo e fazer um chá para tratar asma.
Tatuzinho Isopoda
Armadillidium cf. vulgare
Machucar um punhado de tatuzinhos, adicionar água e cozinhar até ferver. Depois,
coar e beber para curar asma;
Pisar um punhado de tatuzinho, pôr a massa em um chumaço de algodão e colocá-lo
no ouvido para tratar dores de ouvido.
MOLUSCOS
Carongondé Gastropoda
Espécime não coletado
Torrar um corongondé, triturá-lo e colocar o pó em água morna. Esse remédio é
para ser tomado durante os acessos de asma.
46
Lambreta
Lucina pectinata Bivalvia, Lucinidae
Tanto a moqueca quanto o caldo são consumidos como afrodisíaco.
Taioba Bivalvia
Espécime não coletado
Tanto a moqueca quanto o caldo são consumidos como afrodisíaco.
EQUINODERMOS
Echinometra lucunter
Torrar uma pinaúna, moê-la e fazer um chá para tratar asma.
PEIXES
Sphoeroides testudineus
Extrair a banha e passá-la em reumatismo.
Tarpon atlanticus
Fazer o defumador da escama e respirar a fumaça para tratar doença do vento, falta
de ar e dor de cabeça;
Torrar a escama e fazer um chá para tratar asma (puxado).
ANFÍBIOS
RÉPTEIS
Torrar o casco, raspá-lo e deixá-lo desmanchar em água fria juntamente com tapioca
e tauá-branco. Beber o líquido sem açúcar em casos de disenteria com hemorragia.
Cobra
Após a picada, matar a cobra, tirar o fígado e comê-lo.
Fazer um chá com a raspa dos dentes e bebê-lo contra picadas de cobra;
Esquentar a sua banha e passar no local afetado de reumatismo;
Confeccionar um colar com os dentes de jacaré e usá-lo em volta do pescoço de
uma criança previne que ela apresente mazelas durante o aparecimento da primeira
dentição.
Beber a água na qual uma lagartixa foi cozida para tratar doenças do coração. Ela
pode ser comida;
Fazer gargarejo com a água na qual uma lagartixa ainda viva foi cozida para tratar
sarampo;
Retirar a cabeça e o rabo, torrar o corpo e moer. Depois, colocar o pó no café ou
mistura à comida. Isso trata asma e sarampo;
Fazer um xarope da lagartixa, misturado com certas plantas medicinais, para tratar
asma;
Cozinhar uma lagartixa sem o couro apenas em água. Depois de cozida, beber a
água para o tratamento de problemas hepáticos;
Torrar o couro de uma lagartixa, moer e fazer um chá para o tratamento da asma e
dor de cabeça;
Torrar uma lagartixa e colocar o pó na cachaça e dar ao indivíduo que bebe para que
deixe o vício da bebida;
Torrar o rabo da lagartixa, triturá-lo e depois fazer um chá com o pó para tratar
derrame e sarampo.
Eunectes murinus
Usar a banha para curar problemas de pele;
Misturar três pingos de sua banha ao café e tomar contra reumatismo.
Idem
AVES
Bem-te-vi
Pitangus sulfuratus
Colocar a banha em um chumaço de algodão e pô-lo sobre o dente dolorido.
Galinha-d‟angola (saqüé)
Numida mellagus
Comer o fígado e/ou a carne assada sem sal para tratar doença de pele (?).
Pato Anatidae
Misturar no liquidificador dois ovos e uma lata de leite condensado. Depois,
oferecer ao indivíduo com asma.
Peru
Mellaguis gallopavo
Torrar a escova (pena do peito) de um peru preto, colocar o pó na água e fazer um
chá para tratar asma.
MAMÍFEROS
Baleia Cetacea
Espécime não coletado
O óleo extraído da banha é usado topicamente em reumatismo;
Colocar o óleo em uma colher de chá, esquentá-lo e bebê-lo para curar asma;
Sentar no pilão (vértebra) para se livrar de dores de coluna.
Torrar o chifre (se for homem, de vaca; se for mulher, de boi) e triturá-lo. Depois,
misturar o pó à tapioca de mandioca e usar durante três dias ou mais se necessário
para curar “andaço” e “provocação” (disenteria e vômitos);
Torrar o chifre para prevenir olho grande (mau olhado).
Morcego Chiroptera
Espécime não identificado
Colocar o sangue de um morcego dentro de uma garrafa de cachaça e enterrá-la por
três dias. Depois, desenterrá-la e oferecer a cachaça a um indivíduo que bebe para
que ele deixe o vício da bebida;
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Cozinhar um morcego em um litro de água, coar e dar para criança que sofre de
asma.
Paca Rodentia,
Agoutidae
Agouti paca
Torrar a língua, moê-la e colocar o pó na água, no café ou no suco para tratar
problemas do estômago.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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77
APÊNDICE 1
EQUINODERMO
Estrela-do-mar Luidia Integral Cachorro Falta de ar
senegalensis
PEIXE
Arraia Myliobates sp. Espinho Várias Ferimentos
espécies
Cangurupim Tarpon Escama Idem Doença do vento
atlanticus
ANFÍBIO
Sapo Bufo sp. Couro Idem Extrair estrepe
RÉPTIL
Cágado Phrynops sp. Casco Cachorro Evitar hidrofobia
Tartaruga marinha Caretta caretta Banha Idem Nariz entupido
75
Cont.
APÊNDICE 2