2017 EloisaDaSilvaAragao VCorr

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

ELOISA DA SILVA ARAGÃO

Sophia de Mello Breyner Andresen:


Militância antifascista a partir da crise do Estado Novo (1958-
1974), análise do conto "O jantar do bispo"
e atuação na Assembleia Constituinte (1975-1976)

VERSÃO CORRIGIDA

São Paulo
2017
1
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

ELOISA DA SILVA ARAGÃO

Sophia de Mello Breyner Andresen: Militância antifascista a partir da


crise do Estado Novo (1958-1974), análise do conto "O jantar do bispo"
e atuação na Assembleia Constituinte (1975-1976)

VERSÃO CORRIGIDA

Tese de doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História Social da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo.

Áreas de Concentração: História Social, Literatura


Portuguesa

Orientador: Prof. Dr. Francisco Carlos Palomanes


Martinho

São Paulo
2017
2
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho,
por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa,
desde que citada a fonte.

Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo

Aragão, Eloisa da Silva

A659 Sophia de Mello Breyner Andresen: Militância antifascista a partir


da crise do Estado Novo (1958- 1974), análise do conto "O jantar do
bispo" e atuação na Assembleia Constituinte (1975-1976) / Eloisa
da Silva Aragão ; orientador Francisco Carlos Palomanes Martinho.
- São Paulo, 2017.

280f.

Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências


Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de História.
Área de concentração: História Social.

1. Sophia de Mello Breyner Andresen. 2. Católicos progressistas. 3.


Luta antifascista. 4. Literatura portuguesa. 5. História
contemporânea de Portugal. I. Martinho, Francisco Carlos
Palomanes, orientador. II. Título.

3
FOLHA DE APROVAÇÃO

Nome: ARAGÃO, Eloisa da Silva


Título: Sophia de Mello Breyner Andresen: militância antifascista a partir da crise do
Estado Novo (1958-1974), análise do conto "O jantar do bispo" e atuação na
Assembleia Constituinte (1975-1976)

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social


da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
para a obtenção do título de Doutora em História Social

Aprovada em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. _______________________________ Instituição ________________


Julgamento: ____________________________ Assinatura: _______________

Prof. Dr. _______________________________ Instituição ________________


Julgamento: ____________________________ Assinatura: _______________

Prof. Dr. _______________________________ Instituição ________________


Julgamento: ____________________________ Assinatura: _______________

Prof. Dr. _______________________________ Instituição ________________


Julgamento: ____________________________ Assinatura: _______________

Prof. Dr. _______________________________ Instituição ________________


Julgamento: ____________________________ Assinatura: _______________

4
AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Francisco Carlos Palomanes Martinho, agradeço


pelo apoio, pela atenção nas horas mais difíceis da trajetória da pesquisa e pelo
carinho. Ao Prof. Dr. Joaquim Romero Magalhães, meu coorientador em Portugal,
pelas gentilezas que favoreceram minha estada nas terras lusas, assim como ao Prof.
Dr. António Costa Pinto. À CAPES pela bolsa concedida, um incentivo relevante à
pesquisa. À Fundação Calouste Gulbenkian que também me beneficiou, agradeço
especialmente à Sra. Margarida Abecasis e ao Sr. Carlos Luís.
Foi demasiado significativo o empenho de Francisco Fanhais para que eu
tivesse acesso a protagonistas entre os católicos que lutaram contra a ditadura
salazarista. Fanhais, meu agradecimento muito sincero, assim como à Joana Afonso
e à Zélia Afonso. Igualmente a: Catalina Pestana, Maria da Conceição Moita, Maria
Jesus Barroso (in memorian), Maria Luísa Sarsfield Cabral, Nuno Teotónio Pereira (in
memorian), Irene Buarque, Guilherme d’Oliveira Martins, Frei Bento Domingues, José
Manuel Mendes, Francisco Louçã, José Antunes Ribeiro, Nuno Domingos, António
Ribeiro. Aos amigos da AJA-Lisboa, em particular a Guadalupe Portelinha, Alípio de
Freitas (in memorian), José Rodrigues, Maria Bernardo e Tusha Sobral.
À Profa. Dra. Maria Andresen de Sousa Tavares pela permissão de consulta a
documentos no espólio de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Aos professores Lincoln Secco e Wilton Silva, particularmente um
agradecimento enfático ao primeiro que, na banca de qualificação, com sua fecunda
experiência didática, me sugeriu o recorte temporal mais apropriado a esta tese.
À minha mãe, Lídia, e a meu pai Aragão (in memorian), vocês são meus
primeiros mestres! À minha irmã, Eliana, e a seus filhos, Luisinho e Bia.
Às amigas muito queridas Marina Ruivo, Ângela Atanazio, Dulce Costa,
Carminha Levy, Valéria Melki Busin, Fernanda Thomaz, Wilma Antunes, que tanto me
estenderam as mãos naqueles momentos em que o percurso se tornou pesaroso,
quase irreconhecível. Ao casal querido que nos ensina a celebrar a vida, Flávio
Bacellar e Daniela Soares. Felizmente, no cotidiano pude contar com a ajuda amorosa
e sempre pronta ao diálogo, a numerosos favores e ao incentivo constante de Laura
Bacellar, a quem dedico esta tese com enorme afeição e alegria.

5
Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.
(Sophia de Mello Breyner)

6
RESUMO

Sophia de Mello Breyner Andresen: Militância antifascista a partir da crise do Estado


Novo (1958-1974), análise do conto "O jantar do bispo" e atuação na Assembleia
Constituinte (1975-1976)

No clima de coerção e censura em que vivia a sociedade portuguesa durante o


período ditatorial, Sophia de Mello Breyner Andresen assinalou a marca de sua
oposição ao regime salazarista em numerosos poemas e contos, desse modo
incorporando as contradições da vida social em sua obra. Suas iniciativas não
estancaram nesse campo, pois Sophia se envolveu na realidade dos conflitos
mediante uma atuação direta em âmbito político, que se deu antes e depois do 25 de
abril de 1974. Eis o objetivo desta tese: estudar como se desenvolveu a trajetória
militante antifascista de Sophia de Mello Breyner Andresen, inscrevendo sua
participação ao lado de outras vozes femininas que se empenharam contra o regime
– e nesse sentido pretende-se também fazer um contributo à história das mulheres. O
ano de partida é 1958, quando ela rompeu com o regime salazarista, em sintonia com
um movimento mais amplo de oposição, o dos chamados católicos progressistas.
Observando criticamente os desmandos do regime e as desigualdades sociais que
durante sua vigência só faziam aumentar, em especial mediante as mobilizações
efetivadas por Dom António Ferreira Gomes, o Bispo do Porto, e o padre Abel Varzim,
Sophia escreve “O jantar do bispo”, e neste doutorado a análise apresentada sobre
essa narrativa aborda não somente os dilemas que afetam as personagens principais,
mas igualmente as secundárias, as que no estatuto social encontram-se numa
posição de subalternidade, atentando para uma reflexão em diferentes níveis a que é
chamado o leitor do conto. Outras formas assumidas pela militância antifascista da
poeta, reunida a outros intelectuais em oposição ao salazarismo, foram os abaixo-
assinados, e relativamente a eles nos debruçamos buscando explicitar o teor de
denúncia e mobilização que encerraram, assim como apresentamos um recorte
político das cartas trocadas por Sophia e seu amigo Jorge de Sena. Na perspectiva
de abarcar um leque mais amplo do engajamento político de Sophia, valendo-nos da
metodologia da história oral, fizemos entrevistas com figuras que com ela conviveram
ou dela estiveram próximos. Isso possibilitou melhor compreender os significados de

7
seu desempenho cívico em entidades como o Centro Nacional de Cultura (CNC), a
Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP), a Associação
Portuguesa de Escritores (APE); e o percurso de sua consciência crítica que se
intensificou ao longo dos anos, tendo sido candidata pela Comissão Eleitoral de
Unidade Democrática (CEUD) nas eleições legislativas de 1969, além de ter
participado na Vigília de São Domingos e na Vigília da Capela do Rato. Após a
Revolução de Abril de 1974, integrou-se ao Partido Socialista, foi eleita deputada da
Assembleia Constituinte (1975-1976), tema de nossa investigação por meio dos
discursos que ela proferiu naquela casa. Assim, tomando o conjunto desses assuntos
mediante uma sequência cronológica, procedemos a uma análise em que buscamos
demonstrar de que maneira Sophia de Mello Breyner Andresen firmou seu ativismo
antifascista, tanto por meio da escrita literária como pelo desempenho em frentes
políticas, não se furtando ao compromisso dos problemas de seu tempo.

Palavras-chave: Sophia de Mello Breyner Andresen; História; História das Mulheres,


Católicos Progressistas; Estado Novo; Salazarismo, Literatura, História Oral

8
ABSTRACT

Sophia de Mello Breyner Andresen: Antifascist militancy during the crisis of Estado
Novo (1958-1974), analysis of the short story "O jantar do bispo" (The bishop’s dinner)
and proceedings at the Constituent Assembly (1975-1976)
Sophia de Mello Breyner Andresen made her mark against Salazar’s regime and the
coercion and censorship characteristic of the dictatorship in Portugal. In many of her
poems and short stories, she succeeded in incorporating the contradictions of social
life as she saw them. She did more, though, taking part in the political confrontations
before and after April 25th, 1974. The aim of the present work is to focus on Sophia de
Mello Breyner’s antifascist militant activities side by side with other women who fought
against the regime, thus contributing with a chapter to women’s history. Sophia made
the first step in 1958 by speaking out against the regime and adhering to the
progressive Catholics, a large spectrum opposition movement. She observed critically
the regime’s many missteps as well as the growth of social inequalities in the country.
She followed the mobilizations called by Bishop António Ferreira Gomes, the Bishop
of Porto, and Father Abel Varzim, synthesizing her perceptions in the short novel "The
bishop’s dinner", hereby analyzed through the quandaries the main characters find
themselves in and the social differences the secondary characters make explicit to the
readers. The poet, together with other intellectuals, signed important expostulations
against Salazarism, which are here explained in their criticism and call for mobilization.
She exchanged many letters with her friend Jorge de Sena, by which we can point to
her political actions. We also interviewed people who knew her well to clarify her
political positions making use of the methodology of oral history. The interviews
allowed us a better understanding of her work at CNC-Centro Nacional de Cultura
(National Center for Culture), as a member of CNSPP-Comissão Nacional de Socorro
aos Presos Políticos (National Committee for Help to Political Prisoners), at APE-
Associação Portuguesa de Escritores (Portuguese Writers Association), and the
intensification of her political involvement by becoming a candidate by the CEUD-
Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (Electoral Committee for Democratic
Union) at the 1969 local elections. After the Revolution of Abril 1974, she became a
member of the PS-Partido Socialista (Socialist Party) and was elected as
congresswoman for the Constituent Assembly (1975-1976), which we analyze by
means of her speeches at that house. The sum of the themes we study, presented in
9
chronological order, help us demonstrate how Sophia de Mello Breyner Andresen
exercised her activism, by her pen and her political engagement, facing with courage
the problems of her time.

KEY-WORDS: Sophia de Mello Breyner Andresen; History; Women’s History:


Progressive Catholics; New State; Literature; Memory, Oral History

10
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................13
Mulheres no curso do século XX: desafios e conquistas 16
A condição das mulheres em Portugal durante o Estado Novo 19
O paradigma de masculinidade no contexto lusitano 26
História, história oral e memória: entrevistas e o trabalho com as fontes 27

CAPÍTULO I
A ruptura com o regime salazarista e a oposição católica..............................38
Sophia e o início da tomada de posição antissalazarista 39
A produção do conto “O jantar do bispo” 45
As vozes de Abel Varzim e do Bispo do Porto no conto de Sophia 53

CAPÍTULO II
Análise do conto “O jantar do bispo”.................................................................56
Uma narrativa contrária à injustiça e ao autoritarismo 57
O primeiro eixo narrativo: o jogo de conveniências 60
O segundo eixo narrativo: o jogo de poder e os elementos fantásticos 73
João, o filho do Dono e da Dona da Casa 77
O terceiro eixo narrativo: quem trabalha e testemunha os acontecimentos? 80
A Dona da Casa, uma presença silenciosa 80
O primo Pedro e as indagações sobre a aristocracia 82
A prima Ana e a prima Mariana 86
A prima Conceição e o favorecimento da ordem 86
Os criados e a defesa da submissão 88
Joana, a velha sábia 91
Pontos de conclusão 93

CAPÍTULO III
Sophia na militância antifascista: mobilizações, correspondências ..............97
Debates e abaixo-assinados como estratégias de oposição 98
As publicações de Sophia e a presença da contestação social 111

11
Sophia e Jorge de Sena: correspondência política 115

CAPÍTULO IV
Desempenho em associações antifascistas e na
Assembleia Constituinte.....................................................................................127
O engajamento de Sophia no Centro Nacional de Cultura 128
A campanha eleitoral de 1969 131
A Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos 135
A Associação Portuguesa de Escritores: o ressurgir da antiga casa 138
A vigília de São Domingos e a vigília da Capela do Rato 140
O 25 de Abril, o encontro com Mário Soares e a filiação ao Partido Socialista 144
Os discursos de Sophia na Assembleia Constituinte (1975-1976) 149

CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................162
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................166
APÊNDICE - ENTREVISTAS.........................................................................................181

Francisco Fanhais 182


Nuno Teotónio Pereira 197
Catalina Pestana 213
Guilherme d’Oliveira Martins 228
Maria Luísa Sarsfield Cabral 244
José Manuel Mendes 259
Maria da Conceição Moita 274
Francisco Louçã 289

12
INTRODUÇÃO

Escrever uma tese sobre Sophia de Mello Breyner Andresen é, para mim,
seguir em um caminho estreito e isolado, num desafio constituído por dois imperativos.
O primeiro relaciona-se ao fato de eu não ser portuguesa, pois uma vivência constante
em solo lusitano teria me propiciado maior acesso a fontes, debates e exploração em
torno do assunto. O segundo é de ordem mais peculiar e diz respeito à necessidade
que, etapa por etapa, tenho de me impor para que a paixão literária que nutro por
Sophia não eclipse minhas considerações no trabalho da investigação. Assim, ao
longo desta temporada, tentei manter firme o propósito de ir transformando a relativa
embriaguez propiciada pelos encantos em matéria de análise e crítica, exatamente
como se deve fazer num estudo acadêmico.
Desde a primeira vez que soube do envolvimento de Sophia nos combates
contra o salazarismo, moveu-me a ideia de perscrutar tal engajamento na
contextualização que abarcou os agudos problemas da sociedade portuguesa,
especialmente a partir da crise do Estado Novo. E, de início, duas questões me foram
dirigidas por intelectuais que a tinham conhecido e também ao companheiro com
quem ela foi casada por anos, Francisco de Sousa Tavares. Perguntaram-me sobre a
defesa do regime monárquico feita por Sophia e por Francisco. Depois, alguns
disseram-me que entre os dois quem havia realmente manifestado efetiva oposição
política tinha sido o marido, Francisco. Este último questionamento deixou-me
verdadeiramente intrigada. Entrei num processo de inquietação, o qual me
impulsionou a tentar compreender quanto dessas opiniões poderiam ser uma forma
de generalizar, quanto revelavam de senso comum, ou se havia uma parcela
verossímil que somente o desenvolvimento da pesquisa poderia creditar.
Na condução do trabalho, à medida que fui avançando mediante a leitura de
obras referenciais, o acesso a documentos e a obtenção de entrevistas, pude notar
que com o somatório dessas fontes seria possível fazer um balanço a fim de direcionar
de modo mais preciso os procedimentos, reconhecendo o peso dessas questões que
insistiam em voltar à tona. Já quanto ao segundo ponto, não demorou muito para se
pronunciar um dos motivos que faziam alguns observadores acreditar que a
participação de Sophia na vida política era reduzida se comparada à do então marido,
Francisco, porque foi se tornando claro que a opinião se baseava numa interpretação

13
da realidade social fortemente orientada por um olhar patriarcalista ou da chamada
dominação masculina – como defende Pierre Bourdieu, a primazia é universalmente
concedida aos homens por meio de um processo de afirmação que se encontra no
funcionamento das estruturas sociais, nas atividades produtivas e reprodutivas,
“baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e reprodução biológica e
social, que confere aos homens a melhor parte”1. Uma razão, enfim, mais do que
suficiente para tentar elucidar as tensões que poderiam estar embutidas na questão
e, de uma forma simultânea, tentar encontrar a origem de tal pressuposto.
De tal modo que percebi que a abordagem desenvolvida na tese ficaria
reduzida se fosse dirigida, unicamente, ao empenho cívico de Sophia, uma vez que
esse objeto de estudo implica questões que lhe são intrínsecas, como a sua evidência
de gênero. A problematização deste estudo concentra-se, portanto, em analisar como
Sophia, enquanto militante antifascista, lutou pela construção de uma sociedade
democrática, em um enquadramento político cercado pelo autoritarismo e
patriarcalismo do Estado Novo, quando o espaço das relações sociais das mulheres
era rigidamente orientado para a esfera privada.
Isto significa dizer que diante de uma legislação que tornava as mulheres
tuteladas pela figura de um pai ou de um marido – adiante vamos nos debruçar sobre
esse tema de modo mais abrangente –, esse combate por elas travado representava,
paralelamente à militância antissalazarista, avançar na conquista de projetos efetivos
de cidadania que lhes faltava.
Na condição de sujeito político, cabe inserir os contornos do protagonismo de
Sophia na oposição: trata-se de uma mulher branca, nascida em uma família

1 Em continuação do texto, prossegue Bourdieu: “[...] bem como nos esquemas imanentes a todos os
habitus: moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como
matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como
transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõe-se a cada agente como
transcendentes. [...] E as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às relações
de poder em que se veem envolvidas esquemas de pensamento que são produto da incorporação
dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem simbólica. Por
conseguinte, seus atos de conhecimento são, exatamente por isso, atos de reconhecimento prático, de
adesão dóxica, crença que não tem que se pensar e se afirmar como tal e que “faz”, de certo modo, a
violência simbólica que elas sofrem”. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena
Kuhner. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 45. Para uma discussão acerca do termo
patriarcado nas pesquisas feministas, ver: MORGANTE, Mirela Marin; NADER, Maria Beatriz. “O
patriarcado nos estudos feministas: um debate teórico”. Anais do XVI Encontro Regional de História da
Anpuh-Rio: Saberes e práticas científicas. 28 de julho a 1de agosto/2014. Disponível em:
<http://www.encontro2014.rj.anpuh.org/resources/anais/28/1399953465_ARQUIVO_textoANPUH.pdf
> Acesso em: 8 de julho de 2016.
14
aristocrática, desde cedo alfabetizada em várias línguas e tendo contato com a alta
literatura. Ainda jovem começou a publicar poemas e, no curso de sua vida, a
dedicação à escrita ficcional revelou um talento extraordinário que foi reconhecido
entre os pares. Nesse quesito, há em tal recorte enquanto objeto de estudo o fato de
Sophia ter sido uma escritora que foi bastante prestigiada, suas obras foram
traduzidas em vários países – ela própria uma tradutora renomada de obras de Dante
e Shakespeare2 –, e além disso ficou muito conhecida do público em Portugal porque
os livros que escreveu para crianças alcançaram grande sucesso e contribuíram para
a formação de uma geração de leitores.
Assim, o intuito aqui empreendido é explorar como se desenvolveu a trajetória
de Sophia enquanto militante antifascista, nela investigando o movimento da
visibilidade ou de sua ausência, conquistas e contradições no período delimitado
(1958-1976), inscrevendo-a na participação política ao lado de outras mulheres que
lutaram contra o regime ditatorial. Quais terão sido os desafios principais de Sophia?
Quando escolheu por meio da condição de católica passar à oposição ao regime
salazarista o que isso lhe custou no plano de vida familiar e profissional? De que
maneira a sua produção literária refletiu essa perspectiva de resistência? E, afinal, a
proeminência do trabalho de oposição antifascista caberia apenas a Francisco de
Sousa Tavares, que por quarenta anos foi casado com Sophia?
Temos em mente que, sem dúvida, houve diferenças nas formas de oposição
política exercidas por homens – os quais logo à partida encontravam-se num terreno
em que aderiam de modo quase natural, dada a supremacia com que o próprio
universo masculino os julgava: fatores prevalecentes da força física, inteligência e
portadores de numerosas habilidades –, mas isso não significa que as mulheres não
tenham exercido um papel relevante na oposição. Em meu entendimento, é

2 Para o português traduziu O purgatório de Dante; Muito barulho por nada e Hamlet de Shakespeare,
Medeia de Eurípides, A anunciação a Maria de Paul Claudel. Ainda para a língua portuguesa, na área
de poesia, os escritores Pierre Emmanuel, Vasko Popa, Eré Frene, Edouard Maunick, Lief Kristianson.
Do português para o francês traduziu a antologia Quatre poètes portugais: Camões, Cesário Verde,
Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. A seleção e apresentação foram elaboradas pela própria
Sophia de Mello Breyner. Ver: LIBRICI, Ivana Xenia. Sophia de Mello Breyner Andresen e as traduções
francesas. In: CICCIA, Marie-Noelle; HEYRAUD, Ludovic; MAFFRE, Claude (org.). Traduction et
lusophonie. Montpellier: Presses Universitaires de la Méditerranée, 2007, p. 87.

15
importante que cada vez mais estudos nessa área sejam realizados e seu contributo
alcance ampla divulgação.

Mulheres no curso do século XX: desafios e conquistas

Apresentamos a seguir uma abordagem que tem por objetivo trazer alguns
apontamentos sobre as condições de vida das mulheres em Portugal no século XX,
num breve panorama que possa contribuir para o levantamento de questões relativas
à nossa pesquisa, assim como a contextualização e a análise do tema em curso.
Alguns estudos que dão conta de uma dimensão aprofundada da história das
mulheres estão devidamente referidos e constituíram um rico material de apoio para
reflexão.
No mundo ocidental, o século XX foi pródigo para as mulheres, tendo em vista
os muitos direitos por elas conquistados, ainda que isso não diga, obviamente,
respeito a um espectro universal nem cumulativo. E elas foram por longo tempo
“deixadas na sombra da história”, fazendo a historiografia “recusar a ideia de que as
mulheres seriam em si mesmas um objeto de história”, pois a condição de tal
abordagem é mais ampla, sendo “seu lugar, a sua condição, os seus papéis e os seus
poderes”3, entre outras variantes, que requerem ser estudados, conforme a precisa
menção de Georges Duby e Michelle Perrot. Assim, temos de levar em conta que um
dos engenhosos entraves no curso do século XX para conquistas mais significativas
por parte das mulheres diz respeito ao ponto de partida que mobilizou a questão. Isto
significa atentar para que esse propósito tinha por referência o modelo masculino de
igualdade, no qual não estava incluída a ideia de igualdade para as mulheres – ao
contrário, durante longo tempo, nas formações sociais foram construídas funções
femininas que se destinavam ao serviço do homem e da família. Joana Maria Pedro
em um ótimo artigo esclarece como foram sendo historicizadas algumas categorias
de análise (“mulher”, “mulheres”, “gênero” e “sexo”), e é de acordo com suas
considerações que, nesta tese, empregamos o termo mulheres, em virtude das
diferenças que as configuram em numerosos aspectos:

3DUBY, Georges & PERROT, Michelle (sob a direção de). História das mulheres no Ocidente.
Porto/São Paulo: Edições Afrontamento, Ebradil, 1997, v. 5 (O século XX), p. 7.
16
Mulheres negras, índias, mestiças, pobres, trabalhadoras, muitas delas
feministas, reivindicaram uma ‘diferença’ – dentro da diferença. Ou seja, a
categoria ‘mulher’, que constituía uma identidade diferenciada da de ‘homem’,
não era suficiente para explicá-las. Elas não consideravam que as
reivindicações as incluíam. [...] Todo este debate fez ver que não havia a
‘mulher’, mas sim as mais diversas ‘mulheres’, e que aquilo que formava a
pauta de reivindicações de umas, não necessariamente formaria a pauta de
outras. Afinal, as sociedades possuem as mais diversas formas de opressão, e
o fato de ser mulher não a torna igual a todas as demais. Assim, a identidade
de sexo não era suficiente para juntar as mulheres em torno de uma mesma
luta. Isto fez com que a categoria ‘mulher’ passasse a ser substituída, em várias
reivindicações, pela categoria ‘mulheres’, respeitando-se então o pressuposto
das múltiplas diferenças que se observavam dentro da diferença. E mais: que
a explicação para a subordinação não era a mesma para todas as mulheres, e
nem aceita por todas. Mesmo assim, era preciso não esquecer que, mesmo
prestando atenção nas diferenças entre as mulheres, não era possível
esquecer as desigualdades e as relações de poder entre os sexos4.

E, portanto, se muitas mulheres foram atraídas pelas oportunidades de estudar


e de ter uma profissão, dedicando-se de modo aplicado no processo social de
integração e expansão econômica promovido na sociedade ocidental, conforme a
leitura de Marcelle Marini elas embarcaram em tal investimento como a realização de
um sonho a que suas antepassadas não tiveram acesso5. Aparentemente, não havia
motivos para se queixarem. No final da década de 1960, contudo, despontou um
movimento feminista vigoroso, protagonizado por artistas, intelectuais, estudantes,
numa época em que, para a visão masculina corrente, os avanços das mulheres já
eram considerados altamente satisfatórios.
Eis que elas vinham denunciar um paradoxo, pois imaginavam que bastaria
provar suas capacidades para atingir o estatuto da igualdade então difundido em

4PEDRO, Joana Maria. “Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica”.
História, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 77-98, 2005 (p. 82-3). Para o entendimento sobre gênero,
destacamos: SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação &
Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul./dez. 1995, p. 71-99.
5MARINI, Marcelle. “O lugar das mulheres na produção cultural: o exemplo da França”. In: DUBY,
Georges; PERROT, Michelle (sob a direção de). História das mulheres no Ocidente. Porto/São Paulo:
Edições Afrontamento, Ebradil, 1997, v. 5 (O século XX), p. 351.
17
relação aos homens, sonhando que, por fim, lograriam ver a sociedade transformada
e nela atuar com base em novos e favoráveis parâmetros. Mas não conseguiram
provar o gosto dessa conquista, pois ao depararem a realidade perceberam o engano
no qual se enredaram, uma vez que continuavam “a ser desvalorizadas pelo fato de
serem mulheres, apesar das suas competências e de seus talentos”6. A reprodução
da dominação masculina esteve garantida até uma época recente, de acordo com
Pierre Bourdieu, notadamente pela família, pela igreja e pela escola que, atuando de
maneira orquestrada, tinham como denominador comum o fato de atingirem o nível
do inconsciente das pessoas a quem se dirigiam no processo de transmissão de
ensinamentos e valores7.
Tal debate se faz muito necessário. Nos dias atuais, se existe uma ascensão
de movimentos de mulheres que estão bastante conscientes de fazer valer seus
direitos e se empenham em atingir condições mais igualitárias em relação aos homens
– o que também equivale a dizer que se trata de combater a violência da dominação
masculina, seja no nível físico, seja psicológico ou simbólico, cujos índices em vários
países são alarmantes –, choca-nos a mentalidade que insiste num modelo de
inferioridade e dependência feminina, a exemplo daquele que exalta a mulher “bela,
recatada e do lar”, conforme um episódio8 ocorrido no Brasil em 2016.
No âmbito das relações de poder, o século XX afirmou a divisão do trabalho
entre os gêneros de modo desigual, ao mesmo tempo em que houve o predomínio de
uma visão masculina que manifestava assombro perante a crescente feminização da

6 MARINI, Marcelle. “O lugar das mulheres na produção cultural”, op. cit, p. 351.
7 Ainda Pierre Bourdieu: “É, sem dúvida, à família que cabe o papel principal na reprodução da
dominação e da visão masculinas. [...] Quanto à Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um
clero pronto a condenar todas as faltas femininas à decência, sobretudo em matéria de trajes, e a
reproduzir, do alto de sua sabedoria, uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade, ela inculca
(ou inculcava) explicitamente uma moral familiarista, completamente dominada pelos valores
patriarcais e principalmente pelo dogma da inata inferioridade das mulheres. [...] Por fim, a Escola,
mesmo quando já liberta da tutela da Igreja, continua a transmitir os pressupostos da representação
patriarcal”. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina, op. cit., p. 103-104.
8 Em 18 de abril de 2016, um dia após a Câmara dos Deputados ter votado a favor do impeachment da
então presidente do Brasil, Dilma Rousseff, em uma edição digital extra a revista Veja lançou um perfil
de Marcela Temer – intitulado “Bela, recatada e do lar” –, esposa de Michel Temer, à época vice-
presidente (assumiu a presidência em 12 de maio). A repercussão contrária ao modelo de mulher bibelô
encarnado por Marcela – cujo ideal de vida é agradar o marido – foi estrondosa, com notas dos muitos
significados nele inscritos, para além do generalizado repúdio e da ironia que denunciaram o que ele
dissimulava e pretendia ao ser divulgado àquela altura dos acontecimentos. Assim, tal evento mobilizou
diversos grupos feministas, jovens estudantes e um considerável número de homens que se
manifestaram nas redes sociais do Facebook e do Twitter, ao mesmo tempo em que foram publicadas
matérias sobre o tema em jornais e revistas no Brasil e no exterior.
18
sociedade, defendendo a ideia de que mulheres e homens rivalizavam-se numa
disputa. O que nos faz lembrar a ressalva feita por Rose-Marie Lagrave de que ambos
não combatem com as mesmas armas, uma vez que “o jogo entre homens e mulheres
permanece demasiado desigual para que a concorrência perfeita se possa
organizar”9.
Em larga e continuada prática, as posições dominantes foram sempre
ocupadas por homens, ao passo que as desvalorizadas o foram por mulheres, sendo
mantidas ou recriadas formas sutis de segregação. Realizando um apanhado para
notar uma dessas estratégias comumente utilizadas, sintetiza Lagrave que a mudança
de discurso se faz sempre vantajosa quando se trata dos homens. Dessa forma, se o
trabalho é realizado por eles é porque estão suprindo as necessidades da família, ao
passo que as mulheres quando assumem uma atividade o fazem como um
complemento salarial e, ao mesmo tempo, estão descuidando da família. Em síntese:
se os homens estão fazendo a carreira profissional, as mulheres estão abandonando
o lar10.
Num ângulo maior de consideração, estes argumentos foram revistos e
adaptados às configurações locais, mantendo-se como o “leitmotiv do século XX: uma
educação e um trabalho para as mulheres, sim, mas sob vigilância e sob condições,
com a reserva de que nenhuma consequência daí resulte para a família”11. Do que se
pode depreender, igualmente, que o lugar reservado para as mulheres, a cada época,
é aquele onde tenham limites. Podem ter algum trabalho desde que não criem
empecilhos aos homens, os quais na ordem patriarcalista têm por direito ocupar os
melhores cargos, mais bem remunerados, de maior titulação e prestígio social.

A condição das mulheres em Portugal durante o Estado Novo

Numa perspectiva de melhor compreender a condição das mulheres à época


em que se inscreve o domínio de nosso estudo, vamos nos ater a alguns aspectos

9LAGRAVE, Rose-Marie. “Uma emancipação sob tutela: Educação e trabalho das mulheres no século
XX”. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (sob a direção de). História das mulheres no Ocidente.
Porto/São Paulo: Edições Afrontamento, Ebradil, 1997, v. 5 (O século XX), p. 505.
LAGRAVE, Rose-Marie. “Uma emancipação sob tutela”, op. cit., p. 506. Ela cita que em 1919, Pierre
10

Hamp alardeava: “Pela feminização das profissões já espezinhamos os berços”.


11Idem, ibidem.
19
referentes a esse cenário delimitado ao Estado Novo, o qual foi precedido por
turbulências políticas que levaram à derrocada da República e abriram espaço à
Ditadura Militar, em 1926. Quando, então, foram rompidos o sistema político e a
legalidade da democracia liberal parlamentar, condição em que germinou a base do
salazarismo, de tal modo que em 1933 o Estado Novo foi institucionalizado e, a partir
de 1936, seu caráter foi assumindo uma feição centralizadora e autoritária, rejeitando
princípios democráticos e o pluralismo partidário12, entre outras medidas de
fechamento adotadas pelo regime ditatorial.
O regime autoritário com o fim de se consolidar estabeleceu um programa
político em suas estruturas legais e institucionais que teve por objetivo, nas palavras
de Salazar, “organizar a Nação, de alto a baixo, com as diferentes manifestações de
vida coletiva, desde a família aos corpos administrativos e às corporações morais e
econômicas, e integrar este todo no Estado, que será assim a sua expressão
viva”13.Tais medidas atingiram não somente o espaço público, mas também o espaço
privado, provocando um retrocesso de muitas conquistas sociais que, durante o
período republicano, haviam sido legalmente salvaguardadas, a exemplo da igualdade
de direitos entre mulheres e homens.
Isso incluiu ainda a anulação de melhorias que garantiam, do ponto de vista
jurídico, maior proteção e autonomia às mulheres no âmbito da educação, da família
e do trabalho. Mesmo considerando a distância que marca a representação da
inscrição legal de sua adoção na prática cotidiana – seu alcance era mais simbólico
do que efetivo diante do tradicionalismo e dos valores conservadores e patriarcais de
Portugal –, essas leis republicanas haviam inaugurado a possibilidade de
transformação da condição feminina, uma vez que traçavam um horizonte mais largo
de direitos e conquistas14. Todo esse contexto relativo à condição das mulheres e da
família, na doutrina salazarista, era diferente e girou em torno de relações que
associaram intimamente a vida privada à influência da Igreja católica 15.

12GORJÃO, Vanda. Mulheres em tempos sombrios: oposição feminina ao Estado Novo. Lisboa:
Imprensa de Ciências Sociais. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2002, p. 56.
13 Salazar, “A restauração nacional e os seus opositores – Exposição pública nos jornais de 26 de
Janeiro de 1930”. In: Antologia (Discursos, Notas, Relatórios, Teses, Artigos e Entrevistas) 1909-1953.
Lisboa, Editorial Vanguarda, 1954, p. 218, apud GORJÃO, Vanda. Mulheres em tempos sombrios, op.
cit, p. 56.
14 GORJÃO, Vanda. Mulheres em tempos sombrios, op. cit, p. 56.
15Defato, na vida cotidiana predominava esta moldura cultural: “[...] garantida pela relação estreita entre
a paróquia, a família de origem e a escola. É o caso de Adélia, cujo testemunho, tal como outros
20
A realidade era também mais complexa e autoritária para as mulheres quanto
às possibilidades de ingresso na escola, num país em que as taxas de analfabetismo
durante o Estado Novo eram altas. Em 1930, 61,8% da população com mais de sete
anos era analfabeta, e ainda que esse índice tenha se alterado nas décadas
seguintes, em 1960, o número de analfabetos alcançava a taxa de 31,1%. A
comparação, no entanto, evoca diferenças agudas, uma vez que em 1930, 69,9% das
mulheres eram analfabetas enquanto havia na mesma situação 52,8% de homens.
Em 1960, houve uma redução das percentagens, mas permanecia a diferença que
desfavorecia as mulheres, cuja taxa de analfabetismo era de 36,7%, ao passo que a
dos homens atingia 24,9%16.
Na educação das jovens, era comum se propagar o que elas deviam aprender
para se tornarem boas esposas e mães, a exemplo do que registrava uma revista
feminina: “o que uma menina deve aprender: A coser. A cozinhar. A ser amável. A ser
obediente. A ler livros úteis. A fugir da ociosidade. [...] A cuidar bem dos filhos. A
convencer pela meiguice. A não falar antes do tempo. A ser a poesia e a flor do lar.
[...] A ser o apoio e a força do seu marido. A ter uma grande bondade no coração”17.
Assim, por meio de pressupostos limitadores, sobre a mulher era projetada uma
importância para o bom funcionamento da sociedade, estando para si fechado o
acesso à esfera pública. Para a maioria delas, especialmente as que não pertenciam
às elites, de modo subalterno e dependente, se fossem solteiras viveriam sob as

presentes neste capítulo [da obra referida], integra um estudo realizado em 2005 sobre trajectórias
familiares e percursos espirituais: “Eu fui educada num triângulo: a casa dos meus pais, o colégio e a
igreja. Portanto, se não estava em casa dos meus pais, estava no colégio ou estaria na igreja. Fui
criada dentro destas três linhas... deste triângulo. Portanto, eu sou o resultado de tudo isso (Adélia,
nascida em 1945, em Coimbra. ais católicos praticantes)”. Apud MONTEIRO, Teresa Líbano. “Fés,
credos e religiões”. In: MATTOSO, José (dir.). História da vida privada em Portugal. ALMEIDA, Ana
Nunes. Os nossos dias (coord.). Lisboa: Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2011, v. 4, p. 279.
16 COVA, Anne; PINTO, António Costa. “O salazarismo e as mulheres: uma abordagem comparativa”
Penélope, n. 17, Lisboa, 1997, p. 71-94 (p. 76). Para dar uma ideia das ocupações exercidas por
mulheres, esses autores registram: “Durante toda a longa duração do Estado Novo, uma parte muito
significativa da população activa trabalhava no sector primário, o mesmo sucedendo com as mulheres.
Só a partir dos anos 60 se produziu uma verdadeira explosão do terciário e nesta década o número de
mulheres empregadas no referido sector era já de 33,9 por cento e de 26,2 por cento na indústria. No
final do Salazarismo, a maioria das mulheres que trabalhavam fora de casa não era casada: 53,7 por
cento eram celibatárias, 9 por cento divorciadas ou separadas, menos de 1 por cento viúvas, e apenas
36,3 por cento eram casadas. O número de mulheres em atividades não qualificadas era considerável
e mais de metade das celibatárias activas exerciam trabalhos não especializados ou manuais”. Idem,
ibidem, p. 75.
17Modas e bordados, ano xvii, n. 871, 17 out. 1928, apud GORJÃO, Vanda. Mulheres em tempos
sombrios, op. cit, p. 56-57.
21
ordens do pai e, se casadas, sob a regência do marido, cuidando exclusivamente dos
serviços domésticos e dos filhos, quando não tinham também que assumir outros
trabalhos, de forma precária, para aumentar um pouco a renda da família. Embora a
Constituição de 1933 registrasse a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, nela
se frisava: “Salvas, quanto à mulher, as diferenças da sua natureza e do bem da
família”18.
Tanto naquela Carta Magna (1933) como no Código Civil de 1966, definia-se
um paradigma de família assentado no casamento legítimo, em que imperavam
diferenças abismais entre o homem e a mulher, além de se prever uma distinção entre
os filhos nascidos do casamento e os filhos considerados ilegítimos. Ao mesmo tempo
em que se registravam enormes poderes do pai em relação aos filhos, não foi feita
nenhuma ressalva quanto à violência doméstica, a qual seria, portanto, tolerada como
uma ferramenta disciplinadora que o homem, enquanto chefe de família, poderia
empregar, sendo, assim, um tema de foro privado sem necessidade de nenhuma
medida interventora por parte do Estado19.

Neste ângulo de enquadramento em que o salazarismo nega a inteira igualdade


das mulheres em relação aos homens, está presente a ideia de natureza, a qual
remete à antiga dualidade natureza versus cultura, em que o público domina o privado.
E, desse modo, o salazarismo “permaneceu profundamente enraizado na ideia
tradicional de que as mulheres se situam do lado da ‘natureza’ e os homens,
implicitamente, do lado da cultura”20. Essas normas representaram o retrocesso de

18Apud WALL, Karin. “A intervenção do Estado: políticas públicas de família”. In: MATTOSO, José (dir.).
História da vida privada em Portugal. ALMEIDA, Ana Nunes. Os nossos dias (coord.). Lisboa: Círculo
de Leitores/Temas e Debates, 2011, v. 4, p. 345.
19WALL, Karin. “A intervenção do Estado: políticas públicas de família”. In: MATTOSO, José (dir.).
História da vida privada em Portugal, op. cit., p. 347. Veja-se, ainda, o que menciona Karin Wall: “No
âmbito das relações pais-filhos, o Código Civil sublinha a autoridade dos pais e também os deveres e
o estatuto subordinado dos filhos. Começando por referir a obrigação ‘de guarda e de regência’ dos
filhos legítimos menores (filhos com menos de 21 anos) assim como a obrigação de prestação de
alimentos até à maioridade, insiste depois no poder alargado do pai e no “poder de correção” do pai e
da mãe em relação aos filhos desobedientes ou indisciplinados. O poder dos pais é reforçado na
medida em que o poder paternal só pode ser retirado a pais menores ou doentes mentais, a pessoas
condenadas por crime e a pais ausentes”. Op. cit., p. 347.
20COVA, Anne; PINTO, António Costa, op. cit., p. 72. Em continuação, os autores pontualizam: “Desta
forma, o Estado Novo manteve-se fiel às mensagens inalteravelmente repetidas, com um intervalo de
quarenta anos, pela Igreja Católica, nas encíclicas Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo anno
(1931), em que a ‘natureza’ predispôs as mulheres a ficarem em casa a fim de educarem os seus filhos
e de se consagrarem às tarefas domésticas. Partindo da constatação de que o homem e a mulher não
possuem a mesma força física, Rerum Novarum enunciava: ‘Existem trabalhos menos adaptados à
mulher, que a natureza destina antes aos trabalhos domésticos’. Mensagem semelhante na
22
conquistas que favoreciam as mulheres e a sociedade em geral se comparadas ao
período da Primeira República. Fazendo uma nota sobre a presença de mulheres no
âmbito público que imprimiram ações transformadoras e vivenciaram a passagem da
República ao período ditatorial, uma grande referência é Maria Lamas (1893-1983).
Devemos lembrar que, entre outras atividades da militância antifascista que exerceu,
dedicou-se em compreender as dificuldades vividas pelas mulheres, empreendendo
uma luta contra as violências e discriminações que as atingiam21.

Assim, em relação ao salazarismo, um dos exemplos de involução por ele


causado recai sobre as leis da família: em 1910, o casamento era considerado um
contrato feito entre duas pessoas de sexo diferente, tendo por objetivo constituir uma
família legítima; e entre outras regulações nele se ditava que a mulher não poderia
ser coagida a regressar ao domicílio conjugal; e os cônjuges casados pelo contrato
civil poderiam se divorciar (a lei é de 3 de novembro de 1910), tendo a mulher as
mesmas prerrogativas que o homem relativas aos motivos do divórcio e aos direitos
sobre os filhos22.

Contudo, em 1939, o regime ditatorial interveio para dificultar essas relações,


tornando possível ao marido obrigar a esposa a voltar ao domicílio comum e, em 1940,
instituiu a Concordata, nestes termos: “Artigo XXIV – Em harmonia com as
propriedades essenciais do casamento católico, entende-se que, pelo próprio facto da
celebração do casamento canónico, os cônjuges renunciarão à faculdade civil de
requererem o divórcio, que por isso não poderá ser aplicado pelos tribunais civis aos
casamentos católicos”23.

Quadragesimo anno: ‘É em casa antes de mais, ou nas dependências da casa, e entre as ocupações
domésticas, que se encontra o trabalho das mães de família’. A mulher foi concebida para ser mãe, foi
a ‘natureza’ que assim decidiu. O Salazarismo acrescentou que deve ser uma mãe devota à pátria e
ocupar-se do ‘governo doméstico’” (p.72).
21 Sua obra As mulheres do meu país, publicada em 1948, representou um avanço muito significativo
para conhecer as condições socioeconômicas das mulheres em Portugal. Para uma abordagem mais
completa, ver: BERNARDINO, Manuela. “Maria Lamas, a FDIM e a luta pela paz”. Lisboa, O militante
– PCP, reflexão e prática, n. 341, março/abril 2016. Disponível em: <
http://www.omilitante.pcp.pt/pt/341/Mulheres/1038/Maria-Lamas-a-FDIM-e-a-luta-pela-Paz-*.htm >.
Acesso em: 5/dezembro/2016.
22COVA, Anne; PINTO, António Costa, op. cit., p. 74.

23Apud MONTEIRO, Teresa Líbano. “Fés, credos e religiões”. In: MATTOSO, José (dir.). História da
vida privada em Portugal. ALMEIDA, Ana Nunes. Os nossos dias (coord.). Lisboa: Círculo de
Leitores/Temas e Debates, 2011, v. 4, p. 287.
23
Muitos foram os conflitos vividos por casais que, tendo se casado na Igreja
católica – a maioria, portanto, em razão da predominância da religião católica entre a
população e de quase todos os casamentos se darem com esse vínculo religioso –,
ao se encontrarem insatisfeitos na relação afetiva e desejarem o divórcio, viram-se
obrigados a permanecer no casamento, fosse como fosse, ou então fazer a separação
de fato sem alcançar o desligamento por meio da lei 24. Sem dúvida, as maiores
complicações eram suportadas pela mulher, dados os parâmetros dos valores
patriarcais, da estigmatização e do preconceito que sobre ela pesavam quando
assumia a separação ou o divórcio, além de sofrer um dos piores abalos, pois na
ordem jurídica e na jurisprudência, ela era tida como incapaz de criar e educar os
filhos. Nesse contexto, houve vários casos de mulheres que perderam a guarda dos
filhos25.
Cabe, nesta altura, nos determos um pouco sobre as relações entre as
mulheres e os discursos que sustentaram a defesa de sua integração ao trabalho ou
dele as excluíram. Em vários países europeus durante as Grandes Guerras, as
mulheres participaram em numerosas frentes de trabalho – deixadas pelos homens
que haviam partido para as batalhas, não sendo possível ao discurso oficial manter a
defesa de que elas faziam-lhes concorrência26 – e assim aprenderam uma diversidade
de profissões. No balanço que se fez após as turbulências da Primeira Guerra
Mundial, o saldo para as mulheres foi muito positivo, pois os índices de escolarização
e de atividades delas foram surpreendentes.

24Até 1966, apenas aqueles que se casavam pelo civil poderiam requerer as duas formas de divórcio,
por mútuo consentimento e litigioso. Ver WALL, Karin. “A intervenção do Estado: políticas públicas de
família”. In: MATTOSO, José (dir.). História da vida privada em Portugal, op. cit., p 347.
25Idem, ibidem, p. 288.
26 Uma faceta dessa abordagem relaciona-se também às taxas de desemprego: “O desemprego dos
homens não é o das mulheres. Em todos os países da Europa, tanto em 1931 e 1932 como em 1936,
o desemprego de crise atinge numericamente mais os homens que as mulheres em virtude do
desequilíbrio dos sexos no mercado do trabalho. Em todos os países se imputa igualmente o
crescimento do desemprego masculino à progressão do trabalho feminino, sem se perceber que a
lógica econômica joga com o trabalho das mulheres como se joga com piões deslocados ao sabor das
crises. [...] A partir do momento em que o trabalho feminino é considerado como responsável pelo
desemprego masculino, é lógico que se procure limitá-lo. Ora, as crises econômicas atingem todos os
empregos, e por consequência o trabalho das mulheres não é a causa do desemprego masculino. A
prova disso é dada pela Alemanha, que em 1931 e 1932 bate todos os recordes europeus do
desemprego embora a progressão do trabalho masculino tenha aí sido muito mais acentuada que a do
trabalho feminino durante toda a década precedente.” LAGRAVE, Rose-Marie. “Uma emancipação sob
tutela”, op. cit, p. 516-17.
24
Apesar de a Revolução Francesa ter deixado o profícuo legado de uma gama
de direitos à vida, à liberdade e à propriedade, e apesar de a participação das
mulheres ter sido vigorosa nos movimentos revolucionários de 1789, elas não foram
contempladas com direitos. Por isso, suas conquistas ainda teriam de ser feitas por
meio de outras lutas, e, diante do que foi a experiência delas no período bélico nas
primeiras décadas do século XX, chega-se à conclusão de que a Primeira Guerra foi
a Revolução Francesa das mulheres.
No período que segue de uma guerra para a outra (1918-1945), as nações
envolvidas defrontam o pesadíssimo fardo da depressão econômica e do desemprego
estrutural, atravessando uma crise gigantesca. Ainda assim, na conjuntura dos países
industrializados que estavam a passar por numerosas turbulências, continuou a
crescer significativamente a escolarização e o trabalho femininos. Todavia, as novas
experiências a que as mulheres acederam a partir de certo momento começaram a
lhes ser interditadas, pois vieram a ser dirigidas por outro discurso: uma forte investida
ideológica de que elas teriam o dever de regressar ao lar27. Em Portugal não foi
diferente: o salazarismo intensificou essa defesa especialmente no período de 1945 a
195028. Conforme Vanda Gorjão, ainda que o regime alardeasse que o regresso ao
lar era fundamental a todas as camadas sociais, ele se constituía, no entanto, em uma
propaganda voltada, sobretudo, às classes urbanas da pequena e média burguesia:

Na verdade, a apologia do regresso ao lar contrastava com a vida da maioria


das mulheres. Numa sociedade predominantemente rural, como era a
portuguesa até aos anos 50, e que, em finais dos anos 60, apesar do intenso
crescimento econômico, permanecia fortemente contrastante e dualista em
termos das condições de vida da população, o trabalho feminino constituía uma
fonte indispensável de rendimentos para a maioria dos agregados familiares.
Havia um enorme desfasamento entre a propaganda oficial, que defendia que

27Ainda de acordo com a explicação de Rose-Marie Lagrave: “Depois de tantas mortes, se as próprias
mulheres não compreendem o seu dever, convém que este lhes seja lembrado. As reconstruções
nacionais são igualmente empreendimentos de repovoamento das nações. O declínio da natalidade, o
crescimento do salariato feminino, o regresso dos homens às fábricas e aos campos, desencadeiam
de novo uma ofensiva ideológica de grande envergadura para que as mulheres regressem ao lar”.
LAGRAVE, op. cit., p. 508.
28BRAGA, Paulo Drummond. Mulheres deputadas à Assembleia Nacional (1935-1974). Lisboa:
Assembleia da República – Divisão de Edições, 2015. Ver especialmente o Capítulo 1, intitulado “Ser
mulher no Portugal de Salazar e de Caetano” (p. 15-19).
25
o lugar das mulheres era o lar, e as necessidades e opções concretas com que
estas eram confrontadas na maioria dos meios sociais. Por outras palavras, a
realidade social e econômica não se coadunava com os modelos tradicionais
de família29.

Num panorama geral, tudo isso implica realçar que a predisposição do ideário
e das intervenções salazaristas em relação às mulheres foi limitadora, determinando
que sua natureza frágil deveria restringi-las a funções que servissem aos interesses
político-ideológicos centrados na campanha do “regresso ao lar, na glorificação da
maternidade e de um certo modelo de família”30, em que o homem a chefiava
enquanto à mulher cabia o papel de dona de casa, cuidadora dos filhos e destinada a
orientá-los conforme a moral e os bons costumes. Vale lembrar que foram fundadas
algumas organizações oficiais durante o regime salazarista, como a Obra das Mães
para a Educação Nacional (OMEN), em 1936, e no ano seguinte a Mocidade
Portuguesa Feminina (MPF)31. Em uma das entrevistas a António Ferro, Salazar fez
esta citação: “Deixemos, portanto, o homem a lutar com a vida no exterior, na rua... E
a mulher a defendê-la no interior da casa... Não sei, afinal, qual dos dois terá o papel
mais belo, mais alto e mais útil”32.

O paradigma de masculinidade no contexto lusitano

Foi com base nessa referência de masculinidade dominante – então associada


à ideia de força, produtividade e coragem, em contrapartida com a do feminino, ligada
à fragilidade, aos cuidados maternais, à dependência – que um conjunto de
comportamentos e de fixação de papéis foi construído na sociedade lusitana. Sua
força foi expressa mediante normas do costume que vinham de longa data do

29GORJÃO, Vanda, op. cit., p. 99.


30 COVA, Anne; PINTO, António Costa, op. cit., p. 72.
31Idem, ibidem. No mesmo artigo, Anne Cova e Costa Pinto apresentam uma abordagem de vários
movimentos de mulheres, destacando suas características principais, dinâmicas de atuação e
sobrevivência.
32FERRO, António. Salazar: o homem e a sua obra. 3 ed. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade,
1935, p. 133, apud BRAGA, Paulo Drummond. Mulheres deputadas à Assembleia Nacional (1935-
1974), op. cit., p.16.
26
patriarcado e, do ponto de vista jurídico, foram inscritas na Constituição de 1933 e no
Código Civil de 1966.
Nessa ordem familiar, a mulher submetia-se a uma espécie de tutela, pois devia
enorme obediência ao marido, o qual assumia inteira responsabilidade quanto às
decisões relativas à vida conjugal, o que incluía o direito de administrar os bens da
companheira, abrir as correspondências por ela recebidas, autorizar ou não um
contrato de trabalho por ela acordado com terceiros e, até mesmo, emancipar os filhos
sem a autorização da mãe33.
De modo geral, podemos salientar que a Primeira República comparativamente
ao salazarismo representou um período de liberdade e inovação legislativa para as
mulheres, em particular no domínio da legislação sobre a família, nomeadamente com
a lei sobre o divórcio. Todavia, no plano político, a República impediu as mulheres de
aceder ao direito de voto, enquanto o salazarismo lhes entreabriu algumas portas,
ainda que num quadro geral repressivo e limitador de direitos e, de fato, esse direito
embutia uma face dupla em sua operação estratégica: enquanto aparecia como uma
oferta generosa ao público feminino servia para angariar votos ao regime.

História, história oral e memória: entrevistas e o trabalho com as fontes

No trabalho que vamos apresentar ao longo dos capítulos, demos atenção à


metodologia resultante do debate sobre mudanças de paradigmas na história e dos
procedimentos considerados mais pertinentes para se lidar com documentos, em
especial fontes orais, às quais recorremos por tratarmos de um período da história
recente de Portugal. Isso gira em torno do tema pela busca da verdade na história, o
que não se inscreve numa questão simples, sendo o uso de documentos num trabalho
de investigação um permanente alvo de questionamentos.
Para a reconstituição da trajetória militante antifascista34 de Sophia de Mello

33WALL, Karin. “A intervenção do Estado: políticas públicas de família”. In: MATTOSO, José (dir.).
História da vida privada em Portugal, op. cit., p. 345.

34
É importante salientar que emprego o termo antifascista em virtude de ser ele consagrado no campo
das esquerdas em Portugal. A rigor, já havia acabado a era dos fascismos, apresentando o país nessa
época um regime autoritário, conservador e corporativo.
27
Breyner, ao menos quanto a informações significativas que não pudemos encontrar
em documentação, realizamos, com base na metodologia da história oral, entrevistas
com pessoas que conviveram com a poeta. Principalmente figuras que a seu lado se
associaram nas frentes de luta contra o regime salazarista, em atividades diversas –
a maioria definida pelo grupo dos chamados católicos progressistas, no qual a poeta
estava integrada. Sílvia Correia enfatiza, por exemplo, constituir uma das funções da
história oral assumir-se como “uma metodologia imprescindível para a análise da
realidade dos conflitos sociais do tempo presente e de contextos tão mutáveis quanto
os períodos revolucionários”35.
Acreditamos ter sido uma excelente oportunidade recolher as falas dessas
pessoas, evento que só foi possível a partir da enorme gentileza de Francisco Fanhais,
que, não somente foi o primeiro a me conceder entrevista, como se empenhou
entusiasticamente para convencer outras dessas figuras públicas a me dedicarem
umas poucas horas de suas agendas cheias de compromissos. Foi com base nessas
entrevistas que pude, inicialmente, esboçar um percurso da militância antifascista de
Sophia, confrontando tanto quanto possível as informações a partir da leitura e
interpretação das fontes documentais.

Para tanto, depois de muito me debruçar sobre os materiais que havia


recolhido, o que estabeleci foi uma linha temporal da atuação política da poeta. O
marco é mesmo o ano de 1958, quando ela participa da campanha de Humberto
Delgado à Presidência e vai findar em 1976, ano do desfecho de sua participação
como deputada constituinte à Assembleia da República. Ressalto, igualmente, que
nesta investigação há uma perspectiva de intersecção entre história e literatura, e é
por esse motivo que faço a análise do conto “O jantar do bispo” no Capítulo II – em
meu entendimento não seria cabível deixá-la num capítulo final, como se formasse
um apêndice do trabalho. Além de eu ter seguido uma sequência cronológica no
desenvolvimento da tese, o fato se justifica porque compreendo que tanto a história
como a literatura, cada qual com sua especificidade e metodologias, são narrativas
que constroem uma representação da realidade.

35 CORREIA, Sílvia A. B. “A Intersindical: das origens ao Congresso de Todos os Sindicatos (1970-


1977) – um projecto de História Oral”. In: Internacional Association Strikes and Social Conflict, 2012.
Lisboa. Strikes and Social Conflicts. Towards a Global Labour History. Lisboa, 2012, v. 1, p. 370-74, p.
370.
28
Regressemos, agora, à sequência em que realizei as entrevistas. Tive um
roteiro como base, perguntando-lhes o que poderiam narrar acerca das participações
de Sophia na oposição ditatorial. Em algumas ocasiões, pude mesmo confrontar
alguns fatos, uma vez que já havia conseguido obter informações mais substanciais –
sem dúvida, tendo em mente os cuidados metodológicos que mais adiante vou referir
quanto à constituição da memória, que por sua natureza, apenas para frisar dois
aspectos, é processual e mutável. Foram entrevistados por mim: Francisco Fanhais,
Frei Bento Domingues, Nuno Teotónio Pereira (que à altura, em 24 de janeiro de 2014,
tinha 92 anos e estava cego, apresentando falhas de memória, porém lúcido – ele
faleceu a 20 de janeiro de 2016), Catalina Pestana, Guilherme d’Oliveira Martins,
Maria Luisa Sarsfield Cabral, José Manuel Mendes, Maria da Conceição Moita e
Francisco Louçã. Passo a seguir a apresentar dados biográficos deles, para facilitar o
conhecimento dos leitores.

FRANCISCO FANHAIS
Cantautor com vincada ligação à tradição de intervenção cultural e política, era
seminarista quando o contato com o EP Baladas de Coimbra, de Zeca Afonso, o
despertou para intervir politicamente numa linha de cristianismo de empenho social a
partir da expressão musical. Em virtude da sua ação de resistência ao regime ditatorial
foi proibido de ensinar e de exercer o sacerdócio, vendo-se obrigado a deixar o país
e exilando-se em França. Forçado a abandonar Portugal em 1971, só regressa após
o 25 de Abril de 1974, vindo a colaborar nas campanhas de dinamização cultural.
Autor de vários discos, foi agraciado em 1995 com a Ordem da Liberdade. Atualmente,
é presidente da direção da Associação José Afonso.

FREI BENTO DOMINGUES


Frei Bento Domingues é teólogo, professor, escritor, e membro da Ordem dos
Pregadores Dominicanos, tendo lecionado, entre outras instituições, no Instituto de
São Tomás de Aquino (ISTA), no Instituto Superior de Estudos Teológicos (ISET), em
Lisboa, no Seminário Mario de Luanda, em Angola, no Centro Bartolomé de Las Casas
(CBC) em Cusco, Peru. Dirigiu a organização e instalação, na Universidade Lusófona
de Humanidades e Tecnologias, em Lisboa, do Curso de Ciência das Religiões. Na
29
década de 1960 e na de 1970, foi um dos líderes ligados à Igreja voltada ao diálogo
entre o cristianismo e o marxismo. Participou da publicação clandestina Direito à
Informação (DI), foi membro da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos
(1970-1974), do Comité Português Pró-Amnistia Geral no Brasil, mantendo vínculos
com setores da Igreja católica brasileira que estavam associados ao trabalho de Dom
Helder Câmara. Foi agraciado com várias premiações. Tem várias obras lançadas, e
desde 1992 publica, aos domingos, uma coluna no jornal Público.

NUNO TEOTÓNIO PEREIRA (entrevista em 24/jan./2014; faleceu a 20/jan/2016)


Arquiteto de mérito altamente reconhecido, cujo trabalho foi louvado com vasta
premiação, é um dos mais expressivos representantes entre os chamados católicos
progressistas. Criou (1963) o jornal clandestino Direito à Informação (DI), participou
da fundação da cooperativa Pragma (1964) e teve papel preponderante nas vigílias
pela paz, na Igreja de São Domingos, em 1969, e na Capela do Rato, em 1972.
Produziu os cadernos GEDOC (Grupo de Estudos e Intercâmbio de Documentos), em
1969, e atuou na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP) assim
como no Boletim Anti-Colonial (1972). Foi encarcerado no presídio de Caxias, em
1973, e libertado a seguir ao 25 de Abril, tendo, logo depois, fundado o Movimento da
Esquerda Socialista (MES).

CATALINA PESTANA
Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras de Lisboa e doutora em Psicologia
Educacional. Aos 24 anos, quando era professora de um colégio feminino, foi uma
das organizadoras de férias para filhos de presos políticos, passando a ser vigiada de
perto pela polícia política (PIDE). Foi diretora do Colégio de Santa Catarina, entre
1975 e 1987, e coordenadora nacional do Projecto Vida do Ministério da Educação,
de prevenção primária da toxicodependência em meio escolar, entre 1990 e 1993.
Participou em grupos de trabalho internacionais, como no Segundo Congresso
Mundial sobre a Exploração e Comércio Sexual de Crianças, em 2001, no Japão, e
foi membro do júri do Tribunal Permanente dos Povos sobre a violação dos direitos
fundamentais das crianças e adolescentes, em 1999, no Brasil. Desempenhou o cargo
de diretora do Plano para a Eliminação e Exploração do Trabalho Infantil e foi
provedora da Casa Pia de Lisboa (fins de 2002 até maio de 2007).

30
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS

Licenciado e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.


Atualmente, é administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian, desde
novembro de 2015. É presidente do Centro Nacional de Cultura. Foi presidente do
Tribunal de Contas de Portugal (2005-2015) e do Conselho de Prevenção da
Corrupção (2008-2015). Igualmente, é sócio correspondente da Academia das
Ciências de Lisboa, membro efetivo da Academia de Marinha e membro da Academia
Portuguesa da História. É professor catedrático convidado da Universidade Lusíada e
professor catedrático convidado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas
da Universidade Técnica de Lisboa (ISCSP). Desempenhou várias funções
governativas, entre as quais foi ministro da Presidência (2000-2002), ministro das
Finanças (2001-2002) e ministro da Educação (1999-2000).

MARIA LUÍSA SARSFIELD CABRAL


Licenciada em Filologia Germânica na Faculdade de Letras de Lisboa, foi professora
do Ensino Básico em várias escolas de Lisboa, tendo sido a escola Francisco de
Arruda a última em que trabalhou antes de se reformar. É mestre pela Faculdade de
Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa, na qual defendeu uma
dissertação sobre Agustina Bessa Luís. Participou ativamente contra o regime
ditatorial (por exemplo, ao lado de Nuno Teotónio Pereira e Frei Bento Domingues),
tendo participado da Cooperativa Pragma e no projeto do Boletim Anti-Colonial. Foi
presa em Caxias, em 1973, de lá saindo sob caução em março de 1974.

JOSÉ MANUEL MENDES


José Manuel Mendes é poeta, romancista, ensaísta e crítico literário, tem mais de 30
livros publicados e já recebeu numerosos prêmios. Licenciado em Direito pela
Universidade de Coimbra, participou ativamente do movimento estudantil e de outras
frentes de combate ao poder ditatorial do Estado Novo, filiando-se às matrizes do
Partido Comunista. Entre 1968 e 1980, lecionou no Ensino Secundário, e a partir
desse momento abraçou diretamente a tribuna política, exercendo por onze anos

31
mandatos enquanto deputado à Assembleia da República, pelo Partido Comunista
Português (PCP). Desde 1995, é diretor da Associação Portuguesa de Escritores
(APE).

MARIA DA CONCEIÇÃO MOITA


Maria da Conceição Moita, professora reformada, participou intensamente em
numerosas atividades contra o regime fascista. Enquanto participante do grupo do que
se veio a designar católicos progressistas, foi uma das organizadoras da vigília da
Capela do Rato, em 1972, momento em que já havia se tornado militante das Brigadas
Revolucionárias. Foi presa em Caxias nos fins de 1973, saindo do presídio na
ocorrência do 25 de Abril.

FRANCISCO LOUÇÃ
Francisco Louçã é licenciado em Economia no Instituto Superior de Economia e
Gestão (ISEG) da Universidade Técnica de Lisboa, onde fez mestrado e também
obteve o doutoramento, em 1996, numa carreira acadêmica em que já recebeu várias
premiações. Aos 16 anos, começou a participar ativamente na luta contra a ditadura
e a guerra colonial, e foi um dos presos na Vigília na Capela do Rato (1972) e libertado
de Caxias sob caução. De uma vida que tem sido dedicada a movimentos de
esquerda, foi coordenador do Bloco de Esquerda, de 2005 a 2011, e foi eleito
deputado pelo círculo de Lisboa em 1999, 2002, 2005, 2009 e 2011. Atualmente, é
professor catedrático no departamento de Economia do ISEG. Tem publicado vários
livros, e entre os mais recentes estão: Portugal agrilhoado: a economia cruel na era
do FMI. Lisboa: Bertrand, 2011; e Os donos de Portugal: cem anos de poder
econômico (1910-2010), com Jorge Costa, Cecília Honório, Luís Fazenda e Fernando
Rosas. Porto: Afrontamento, 2010.

Vamos agora nos deter um pouco acerca das relações da história com a
memória. Uma relação que tem sido intensa, de um lado havendo os estudiosos que
enxergam sérias oposições entre uma e outra, e de outro aqueles que sustentam ser
a memória componente indissociável do trabalho do historiador36. A década de 1990

36Uma parte das ideias nesta seção apresentadas integra o artigo de minha autoria que será publicado,
pelo que me informaram, ainda neste ano de 2017: ARAGÃO, Eloisa S. Reflexões sobre a Vigília da
32
marcou uma renovação do olhar dos historiadores sobre a produção dos documentos,
de acordo com Elias Saliba. A proposta da historiografia tradicional de crítica das
fontes deslocou-se para o conceito de análise documental. A pergunta norteadora de
antes – O que é a História? – deslocou-se para os “dilemas colocados pela pergunta
‘Para quem é a História?’”37. Nesse novo enfoque, a análise documental precisa levar
em conta o fato de que “a História se tornou um discurso em litígio, um campo de
batalha onde pessoas, classes e grupos elaboram autobiograficamente suas
interpretações do passado, geralmente para agradarem a si próprios”38.

Uma consideração de apoio a esse debate é dada pelo historiador Marcos


Napolitano quando sublinha que a princípio o problema da “verdade” não delimita as
distinções entre história e memória: “Nem a história é uma ponte direta para ‘aquilo
que realmente aconteceu’ como sonhavam os pais fundadores da disciplina no século
XIX, nem a memória é, necessariamente, uma ficção imaginativa sem nenhum
compromisso com o real. O distanciamento é parte da ética profissional e intelectual
de qualquer historiador”39. Para tanto, Napolitano faz a ressalva de que tal
procedimento não significa uma neutralidade ideológica ou política diante do passado,
até mesmo porque não seria possível sustentá-la em todos os domínios e períodos
da disciplina, e no que diz respeito à investigação de temas contemporâneos, em
particular os vinculados à “história do tempo presente”, “o historiador é parte de uma
memória social em disputa. Seu distanciamento é colocado à prova de maneira
constante”40.
Temos em conta, portanto, que as fontes orais devem receber um tratamento
cuidadoso, que as questione e problematize, zelo aliás semelhante ao que
tradicionalmente se estende à interpretação e análise de outras fontes, como os
documentos escritos. Em seu estudo sobre história oral, Sônia Maria de Freitas

Capela do Rato: história e memória. In: LIEBEL, Vinícius A.; GONÇALVES, Leandro P. et all. Espaços
e sociabilidades no mundo ibero-americano. Porto Alegre: EdiPUCRS (no prelo).
37SALIBA, Elias T. “Documentos, relíquias, lembranças: pequena história de aventuras e desencantos”.
In: KARNAL, Leandro & NETO, José Alves de F. A escrita da memória: Interpretações e análises
documentais. Instituto Cultural Banco Santos, 2004, p. 30.
38 Idem, ibidem.
39NAPOLITANO, Marcos. “Recordar é vencer: As dinâmicas e vicissitudes da construção da memória
sobre o regime militar brasileiro”. Antíteses, Londrina, v. 8, p. 9-44, 2015, p. 11.
40 Idem, ibidem.

33
ressalta que se podem realizar entrevistas voltadas para um tema específico com um
grupo de pessoas selecionado para este fim. Tais entrevistas caracterizam-se como
depoimentos e não devem, necessariamente, ser consideradas a totalidade das
informações que um entrevistado possa dar de suas experiências. Desse modo, “os
depoimentos podem ser mais numerosos, resultando em maiores quantidades de
informações, o que permite uma comparação entre eles, apontando divergências,
convergências e evidências de uma memória coletiva”41, realça Freitas.
Partindo do pressuposto de que a memória atua no presente para representar o
passado, esta é uma questão complexa e repleta de desdobramentos, entre os quais
o de que o papel dessa representação seria o de interpretar o passado. Ainda que tais
atributos pareçam caracterizar as fontes orais como pouco objetivas, os debates
recentes da historiografia vêm levantando questionamentos acerca de todas as fontes.
Dora Schwarzstein discute como as fontes orais na investigação histórica
estabelecem perguntas sobre a origem e sobre a parcialidade das fontes. Desse
modo, estão implicados na investigação tanto o papel do observador como o da
contextualização social e histórica, processo que, na visão da autora, destrói a
pretensão de objetividade inerente a todas as fontes históricas e impõe “la cuestión
de la subjetividad – de las fuentes y del historiador – en el centro de la historiografía”42.
Para além de um esforço de contribuição para o debate em torno da legitimidade
ou ilegitimidade das fontes orais, entendemos que o mais relevante é tomá-lo pela sua
perspectiva desafiadora, ou seja, instituir um modo de trabalho meticuloso ao
empregar as fontes orais, que atenda à necessidade de estudo contemporâneo.
Aceitar a complexidade inseparável dessa matéria exige assumir a reflexão como uma
postura permanente, buscando trabalhar com rigor e nortear-se por indagações, entre
as quais: Como e por que as fontes orais selecionam os temas? O que é omitido? O
que é interditado? O que aparece como polêmica? Qual é o tom usado para realçar

41 FREITAS, Sônia Maria de. História oral: possibilidades e procedimentos. São Paulo: Humanitas /
Imesp, 2002, p. 21-22. Para uma abordagem também consistente do assunto, ver MEIHY, José Carlos
Sebe. Manual de história oral. 4ª ed. São Paulo, Loyola, 2002, p. 145-48. E, ainda, sobre questões
relativas à memória, conferir o consagrado estudo de HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva.
Trad. Laurent Leon Schaffter. São Paulo: Vértice/Revista dos Tribunais, 1990.
42SCHWARZSTEIN, Dora. “Historia oral, memoria e historias traumáticas”. História Oral, Revista da
Associação Brasileira de História Oral, n. 4, junho 2001. São Paulo: Associação Brasileira de História
Oral, p. 75.

34
fatos e apresentar análises? O que entra em contradição entre a memória individual e
a memória de um grupo? Ou qual a interação entre eles?
O historiador Pierre Nora alerta que memória e história são antes opostas que
semelhantes. A memória está atrelada aos processos de vivência dos grupos
humanos, estes que ao produzi-la acabam por acarretar uma permanente evolução
no seu repertório, marcado pelo desenrolar da lembrança e do esquecimento, da
deformação sucessiva, “vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de
longas latências e de repentinas revitalizações”43. Dessa forma, a história é a
reconstrução sempre problemática e inconclusa daquilo que já se foi, pertence ao
passado. Por sua vez, a memória é um fenômeno sempre atual, enquanto a história é
uma representação do passado. De acordo com Nora:

A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso


crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna
sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer
dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem;
que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e
individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que
lhe dá uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no
espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades
temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e
a história só conhece o relativo44.

Em relação à memória, o passado histórico está sujeito a diversas


interpretações e a usos políticos, os quais, em consequência, representam um ponto
de alto relevo no ofício do pesquisador e, portanto, exigem redobrada atenção a fim
de que não se caia no equívoco da banalização ou da sacralização da memória.
Tzvetan Todorov, que estudou sobremaneira as relações entre memória, história e
política, adverte sobre os usos e abusos da memória, ressaltando que um
acontecimento, ao ser resgatado, pode ser lido de modo literal ou exemplar, e em

43NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. Trad. Yara Aun Khoury.
Pontifícia Universidade Católica, Projeto História, Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de
História, n. 10, dez. 1993, p. 9. (p. 7-28).
44 Idem, ibidem.

35
cada caso remete a efeitos distintos. A interpretação literal torna o acontecimento
insuperável, acabando por submeter o presente ao passado, enquanto o uso exemplar
permite empregar o passado em função do presente e, portanto, “aproveitar as lições
das injustiças sofridas para lutar contra as que são produzidas atualmente, e perceber
a si, refazer a si para ir ao encontro do outro”45.
Fernando Catroga desenvolve uma abordagem sobre memória em que
reconhece certas particularidades em sua forma de operar. Explicita, entre outros
fatores, que a memória quando tornada arquivo deixa de ser uma recordação e
adquire, portanto, o estatuto de documento, seja por meio de um registro fílmico, seja
sonoro ou escrito. A historiografia, que por seu turno herda regras e metodologias
próprias, tem em seu nascimento as memórias pessoais ou coletivas, “adquiridas por
vivência pessoal ou por transmissão oral, e ser escrita sobre um mundo silencioso de
esquecimentos”46. De tal modo que para Catroga se as memórias e os silêncios
podem trazer obstáculos epistemológicos ao mesmo tempo podem ser um
componente de estímulo ao trabalho de investigação histórica, pois atuam como uma
ferramenta supletiva capaz de atestar as negações, os branqueamentos e
deturpações do passado. Nesse sentido, “a memória do historiador é componente
forte de experiências primordiais em relação ao espaço e ao tempo, húmus que, se
pode bloquear o surgimento de interrogações, também consegue furar censuras e
fazer lembrar algo do que está esquecido ou se deseja não recordar” 47.
Naquilo que se relaciona à seleção dos testemunhos, nota-se na fala de várias
personalidades que entrevistamos uma ênfase à memória de grupo, em consequência
da rede de relações estabelecida, fosse entre os católicos progressistas ou mesmo
com outros agrupamentos políticos, cujas formas de atuação eram normalmente mais
atingidas pela perseguição e o arbítrio de agentes policiais, como os militantes que
viviam na clandestinidade. É preciso levar em conta que os entrevistados têm um
repertório de memórias afetivas, com aspectos subjetivos misturados aos objetivos, e
nas falas há fatos omitidos, distorcidos ou supervalorizados, o que caracteriza a
natureza constituinte da memória – ela é dinâmica, em constante mutação, processual
e seletiva. Ainda assim, tomando-se esse riquíssimo material com os cuidados antes

45 TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós, 2000, p. 30-1.


46 CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p. 46.
47 Idem, ibidem.
36
descritos, é possível não cair no equívoco da banalização ou da sacralização da
memória.
Igualmente, nas entrevistas realizadas para esta tese podemos observar que
os discursos revelam uma opção pela luta política e, possivelmente, num âmbito mais
íntimo, o que essa luta representou como projeto de vida: o desafio de não ficar na
superfície dos acontecimentos, de não ficar no plano superficial da vida. Na
perspectiva de nos aproximarmos dos testemunhos que colhi, observando a natureza
mais sensível do que eles podem despertar nos leitores, notamos que há falas e
silêncios eloquentes – são elementos representativos do que a memória seleciona
para contar, ou omitir ou interditar, em particular confrontando a matéria da
experiência, do vivido como a idealização de um projeto revolucionário, de
substâncias dolorosas da trajetória política que foi impregnada por traumas. Sabemos,
é importante frisar, que entre os nossos entrevistados, em particular Maria Luísa
Sarsfield Cabral, Maria da Conceição Moita e Nuno Teotónio Pereira, foram presos
políticos e passaram pelos suplícios da tortura. Mesmo aqueles, no entanto, que não
sofreram os horrores no cárcere estavam conscientes desses abusos e do clima de
desrespeito aos direitos humanos à época, e por essa e outras razões não se furtaram
a exercer uma luta cotidiana contra o regime ditatorial.
Retornemos, agora, o olhar ao percurso de Sophia de Mello Breyner Andresen
enquanto militante antifascista. Quais terão sidos seus principais desafios? Quando
escolheu por meio da condição de católica passar à oposição ao regime salazarista,
o que isso lhe custou no plano de vida familiar e profissional? De que maneira a sua
produção literária refletiu essa perspectiva de resistência? E, afinal, a proeminência
do trabalho de oposição antifascista caberia apenas aos homens? Sophia não teria
realizado o combate à ditadura se não tivesse contado, durante anos, com o apoio de
Francisco de Sousa Tavares? – em que pese a abrangência dessa indagação, pois
ela tem mesmo um caráter especulativo. Nosso intuito é buscar responder, tanto
quanto possível, a essas questões nos capítulos a seguir.

37
Capítulo I
A ruptura com o regime salazarista e a oposição católica

Portugal tão cansado de morrer


Ininterruptamente e devagar
Enquanto o vento vivo vem do mar

Quem são os vencedores desta agonia?


Quem os senhores sombrios desta noite
Onde se perde morre e se desvia
A antiga linha clara e criadora
Do nosso rosto voltado para o dia?

(Regresso, Mar novo, Sophia de


Mello Breyner Andresen)

38
Sophia e o início da tomada de posição antissalazarista

Em Portugal, 1958 foi um ano fervilhante e girou em torno das eleições


presidenciais, em que a candidatura de Humberto Delgado representou a promessa
de trazer uma viragem à nação, sobre cuja abordagem diversas publicações foram
impressas. Simultaneamente à oposição que se fazia contra o regime, uma fratura a
mais emergia e iria unir-se às dissidências. Um grupo de católicos – que viriam a ser
designados por católicos progressistas – havia começado a despertar sua consciência
política e a defender posições críticas que causaram acirrada tensão entre a Igreja
Católica e o Estado Novo, instituições que mediante uma série de negociações tinham
selado em 1940 a Concordata, a qual pressupunha uma frente de atuação conjunta
tanto ideológica quanto política em âmbito nacional.
Consolidar-se como uma vigorosa aliada do sistema autoritário e de direita
efetivado pelo Estado Novo e prosseguir a seu lado foi a decisão da Igreja a fim de se
reerguer após os ataques, no início do período republicano, às ordens religiosas – a
proibição de seu funcionamento, a expulsão dos jesuítas e o ultraje a várias igrejas 48.
Para Salazar, o discurso ideológico do Estado Novo em relação à Igreja
católica foi marcado pela premissa de que a sua liberdade estaria inteiramente
assegurada desde que não a empregasse contra o regime. Se “a Igreja acaso tomasse
posição contra o regime, essa atitude seria contranatura e antinacional”49, apresenta
em suas considerações João Miguel Almeida. Uma autonomia limitada, portanto.
Nesse arranjo de atribuições e sustentação, o regime era visto como a própria nação
institucionalizada que, por sua vez, tinha em seus elementos constitutivos a formação
cristã e a religião católica.
As circunstâncias que envolvem essa aliança entre as duas instituições têm
sua origem em 1940, quando foram consagrados a Concordata e o Acordo
Missionário. À Igreja católica foi dado o reconhecimento de personalidade jurídica

48Nuno Teotónio Pereira discorre a respeito dos setores católicos que se queixavam dos abusos de
anticlericalismo por parte dos republicanos e, assim, enxergaram na instauração da ditadura militar em
1926 e posteriormente, em 1932, com a chegada ao poder de Salazar, “a possibilidade de uma
restauração, com sabor a desforra, dos vexames, supostos ou reais, que haviam sofrido depois de
1910”. PEREIRA, Nuno Teotónio. “O arranque da dissidência católica”. In: DELGADO, Iva; PACHECO,
Carlos; FARIA, Telmo (coord). Humberto Delgado: As eleições de 58. Lisboa: Vega, 1998, p. 128-136.
49
ALMEIDA, João Miguel. A oposição católica ao Estado Novo, 1958-1974. Lisboa: Edições Nelson de
Matos, 2008, p. 31.
39
assim como de suas organizações, a exclusividade no ensino religioso nas escolas, a
indissolubilidade do casamento católico (que havia sido perdida com a instalação da
República), além de outras prerrogativas, a exemplo da criação “de uma hierarquia
paralela à hierarquia militar nas Forças Armadas para a ação dos capelães, as
imunidades pessoais e fiscais conferidas aos membros do clero e às organizações
eclesiásticas”50.
Na linha de definições estabelecida pela Concordata, a hierarquia eclesiástica
e seus membros assumiam a tarefa moral e espiritual do regime, de tal modo que os
católicos que desejassem fazer política deveriam colaborar com o Estado Novo. Ao
passo que aqueles interessados em fazer oposição teriam que deixar a política de
lado, limitando-se ao campo social e religioso integrado, por exemplo, na Ação
Católica Portuguesa. Ser católico servia, até certo ponto, como um abrigo contra a
repressão costumeira exercida pela ditadura, algo compreendido por outros
opositores, incluindo os comunistas, que por essa razão buscaram ações em conjunto
com os católicos, “nomeadamente nos sindicatos, para de algum modo beneficiarem
também desse escudo contra a polícia política ou a Censura”51, lembra-nos José
Barreto.
A designação de católicos progressistas nem sempre foi bem aceita pela
generalidade do grupo, em especial porque de início foi empregada por quem lhes
costumava detratar, com a finalidade de associar sua inclinação à influência marxista.
Entretanto, isso foi se alterando quando, tempos depois, até mesmo nos ambientes
de oposição laica da esquerda, fosse comunista, fosse socialista, a expressão foi
adotada, tendo em vista que a ideia de progressismo cristão tinha por fundamento a
ruptura com o regime, corroendo-lhe as bases ao confrontar a relação deste com a
Igreja católica – aspecto a ser evidenciado, já que os católicos progressistas não
reclamavam uma identidade definida nem representativamente homogênea. Ainda
assim, esses católicos vieram a contribuir nas lutas e campanhas eleitorais da
Oposição Democrática, ao mesmo tempo que seu empenho colaborou para

50 ROSAS, Fernando. “A memória é coisa do demo” (Prefácio). In: ALMEIDA, João Miguel. Op. cit., p.
4.
51BARRETO, José. “Oposição e resistência de católicos ao Estado Novo”. Religião e sociedade: Dois
ensaios, Lisboa: ICS, 2003, (p. 19). p. 119-175.
40
“neutralizar os receios e argumentos de natureza religiosa de que o poder se servia
para denegrir a ação oposicionista”52.
Em 1958, Sophia, ao lado de seu marido, Francisco Sousa Tavares, participou
da campanha de Humberto Delgado à Presidência da República, na mesma frente em
que participaram outros católicos que começavam a fazer oposição ao salazarismo. À
exigência do viés central a que este estudo se dedica, precisamos aqui fazer um recuo
temporal, lembrando que Sophia, tendo vivido muitos anos no período da história
portuguesa dominada pelo regime salazarista, foi até certa época senão defensora ao
menos inclinada à defesa da monarquia53. O pai de Sophia, João Henrique Andresen,
era neto de dinamarquês e foi viver no Porto, onde fez fortuna, destacando-se em
certo momento no negócio de vinhos. Casou-se com Maria Amélia de Mello Breyner54,
entre cujos antepassados contavam pessoas próximas a D. Pedro IV (título recebido
em Portugal, em 1826; por aquele que, nas terras brasileiras, era D. Pedro I). As raízes
que se espalham no terreno monárquico não se relacionam, para Sophia, apenas pela
influência de seus pais, mas ainda ao fato de, em 1946, ter se casado com o advogado
e jornalista Francisco José de Sousa Tavares, anteriormente mencionado por nós. Ele
foi oposicionista da ditadura salazarista, não tendo mesmo se livrado da perseguição
e do cárcere. O tema da monarquia ocupou-lhe até certa época da vida, sobre o qual
escreveu o livro Combate desigual, publicado em 1960, em que preconiza uma
monarquia assente na filosofia cristã, capaz de dar à democracia fundamentos sólidos
e a promoção da dignidade humana. Em tal obra, Tavares expõe o conceito de uma
democracia fundada num humanismo integral com base no conceito do homem, para
quem se deve buscar e defender sua natureza imortal, divina e livre. A liberdade,

52 BARRETO, José. Op. cit., p. 1.


53 A respeito do caminho trilhado por Sophia quanto a essa filiação monárquica, pretendo ampliar a
investigação das fontes e futuramente fazer a publicação em artigo.
54 O pai de Maria Amélia era Thomaz de Mello Breyner, o quarto conde de Mafra, o qual em 1893 se
tornou médico da Casa Real nomeado por D. Carlos I. O pai de Thomaz de Mello Breyner foi
comandante do batalhão de caçadores, administração situada no Castelo de São Jorge em Lisboa, e
naquele local o garoto nasceu, em setembro de 1866, durante o reinado de D. Miguel II de Bragança.
Tendo se especializado em medicina na França, quando Thomaz retornou a Portugal casou-se em
1894 com Sofia Burnay, também ela de uma família da aristocracia, pois era filha mais nova do primeiro
conde de Burnay.

41
nesse sentido aventado em seu texto, “não é aqui uma concessão ou um facto político.
É uma raiz filosófica que domina o homem, a sociedade e o Estado”55.
Retomando novamente o olhar à campanha de Humberto Delgado – o “general
sem medo”, como ficou conhecido, e sua intrépida frase sobre Salazar, “obviamente,
demito-o” –, a repressão aos movimentos a ele solidários foi exorbitante e avançou
sobre quaisquer atividades da oposição mediante ações da censura e da PIDE
(Polícia Internacional de Defesa do Estado), que prendeu grande número de apoiantes
ligados àquela candidatura.
O acirramento da vigilância se deu, especialmente, depois de ele ter recebido
o apoio de Arlindo Vicente, que levava a aliança do Partido Comunista. Isso
representou para o regime uma enorme ameaça, que em resposta chegou a proibir
Humberto Delgado de fazer comício em 27 de maio em Braga – a proposta de
renovação e de ares democráticos de sua campanha reunia multidões.
No dia das eleições, em 8 de junho, a oposição sofreu uma fraude estrondosa
ao ter seus milhares de boletins de voto roubado, de acordo com Ana Sofia Ferreira:

A União Nacional deu instruções para que os seus representantes nas


assembleias de voto não consentissem qualquer fiscalização e considerassem
inutilizado o maior número possível de listas da oposição; legionários à paisana
foram postos junto das mesas de voto para provocarem desordens a fim de que
fossem presos todos os elementos da oposição aí presentes e aproveitarem
estes momentos de agitação para meter nas urnas listas da União Nacional; e,
por cada eleitor que não tivesse votado, foi colocada na urna da União Nacional
um boletim de voto de Américo Tomás56.

Estratégias como as acima descritas foram empregadas com a finalidade de


fazer sair Américo Tomás vitorioso nas urnas. Eram manobras para dominar a cena
eleitoral, uma vez que a candidatura de Humberto Delgado tinha o apoio da maioria
da população. Este é um dos aspectos do contexto de privação de liberdade contra o
qual reclamava Sophia.

55TAVARES, Francisco de Sousa. Combate desigual: ensaios de sociologia portuguesa. Porto: Edição
do Autor, 1960.
56FERREIRA, Ana Sofia. “As eleições no Estado Novo. As eleições presidenciais de 1949 e 1958”.
Revista da Faculdade de Letras, História, Porto, III Série, v. 7, 2006, p. 197-212.
42
Na esfera familiar, um episódio traumático um pouco anterior veio a somar
àquele da conjuntura política e a impulsionou a tomar uma posição marcadamente
contrária ao regime. O irmão de Sophia, João Andresen (1920-1967), era arquiteto e
havia ganhado em primeiro lugar o concurso para o Monumento ao Infante D.
Henrique, em 1956. O título de sua obra era “Mar Novo”.
João Andresen elaborou esse projeto em conjunto com o pintor Júlio Resende
e o escultor Salvador Barata Feyo, e o objetivo seria a futura instalação de um
monumento em Sagres. No concurso, saíram como vencedores, mas o regime o
preteriu e não permitiu que fosse adiante. O que se soube tempos depois é que
Salazar em 6 de dezembro de 1956 comunicara por meio de um despacho que havia
sido tomada a decisão pelo Conselho dos Ministros de que não se realizaria a
construção do monumento. A notícia foi divulgada numa pequena nota da Comissão
Executiva do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, publicada nos jornais de
12 de dezembro de 195657. De acordo com o relato de Guilherme d’Oliveira Martins:

Sophia achou aquilo uma injustiça tremenda. Injustiça porque o irmão tinha
ganhado o concurso, e aquela obra era uma obra moderna. Mas ela foi
substituída pelo “Padrão dos Descobrimentos”, que está em Belém, e é apenas
a reprodução do que tinha estado na exposição do “Mundo Português” de 1940.
Sophia considerou aquilo uma tremenda injustiça, algo absolutamente
inaceitável. E seu livro Mar novo é um grito de alerta. Claro que ela não podia
dizer mais do que através da poesia, justamente a sua revolta, e, portanto, em
1958 vai acontecer essa ruptura. Ruptura que se tornou muito mais evidente

57A sequência das fases do concurso incluiu, na primeira, 22 concorrentes nacionais e 23 estrangeiros,
de nove países, abarcando 51 projetos, mas no todo apenas 45, porque os demais não cumpriram o
regulamento. Com isso: “Destes, 9 foram inicialmente seleccionados pelas 31 personalidades
constituintes do Júri, representativas de variadas instituições culturais. Na reunião de 30 de Setembro
de 1955, e por maioria, 5 passaram à segunda fase, ficando os seus autores obrigados à apresentação
dos projectos do monumento à escala 1:100. O projecto Mar Novo de João Andresen ganhou o
concurso com catorze votos a favor. O arquitecto Raul Lino (DGEMN), um dos elementos do Júri, não
votou na última reunião por considerar que nenhum dos projectos respondia ao tema proposto”. Ver:
TREVISAN, Alexandra; AZEVEDO, Inês; MATEUS, Joana (coord.). Catálogo da Exposição de
Arquitectura moderna no arquivo Teófilo Rego. Porto: CEAA, 2015, p. 74.

43
ao longo dos anos 1960, por causa do desenvolvimento do Concílio Vaticano II
e do surgimento, em 1963, da revista O Tempo e o Modo.58

A homenagem que Sophia fez ao irmão foi uma resposta poética ao intitular
Mar novo a seu livro de poesia publicado em 1958, o primeiro no qual ela expressa
uma tomada de posição firme contra o regime. Sem deixar de nele inserir já na
abertura um poema que revela o sentido da traição e do desgosto representado com
a recusa do projeto arquitetônico de seu irmão: Perfeito é não quebrar/ A imaginária
linha/ Exacta é a recusa/ E puro é o nojo59. Da mesma forma, está presente no mesmo
livro o poema “Porque”, em que ela capta o caráter impetuoso e valente de seu marido
perante as injustiças e as lutas sociais, referindo essa coragem e elevada dignidade
em oposição aos outros que se compram e se vendem. Vejamos a última estrofe:
Porque os outros vão à sombra dos abrigos/ E tu vais de mãos dadas com os
perigos/Porque os outros calculam mas tu não60.
As intervenções de católicos opositores do regime a partir de 1958, que se
reuniam a outros setores descontentes com o governo, não foram apenas nos debates
e abaixo-assinados, e até contou com a conspiração em 1959 de uma revolta armada,
da qual participaram Francisco Tavares e Jorge de Sena. O movimento de inspiração
católica, incluindo ao mesmo tempo a participação de outras correntes da oposição,
que ficou conhecido como Golpe da Sé, foi programado para eclodir em Lisboa na

58Entrevista concedida por Guilherme d´Oliveira Martins à autora, em Lisboa, em 14 de fevereiro de


2014. Numa mirada mais recente, é interessante voltarmos a atenção para as observações da escritora
Alexandra Lucas Coelho quando defende a importância de se construir ao lado do Padrão dos
Descobrimentos um memorial que represente a face do horror em que consistiu o projeto de
colonização: “Parece-me essencial que haja um tributo a ameríndios e africanos nas imediações da
Torre de Belém, do Mosteiro dos Jerónimos e desse Padrão com que o salazarismo glorificou uma
versão infantil do império. Estamos a falar de milhões de pessoas até hoje apagadas da história como
se não fossem gente. [...] Por um lado, o horror que são os impérios coloniais como foi o português –
quanto mais tivermos isso presente, mais evitaremos que a história se repita, menos os
comportamentos racistas se sentirão autorizados. Por outro lado, que uma nova geração tenha acesso
às narrativas que até hoje faltam no espaço público: saber quem eram estes milhões de pessoas, nas
suas tantas diferenças, como falavam, o que criaram, o que lutaram. Saber também que cidadãos
negros fazem parte de Portugal há muito. Gostaria que houvesse um memorial em que tudo isso esteja
presente: o horror do que aconteceu e as narrativas do ponto de vista africano e ameríndio. E que isso
se ligue ao presente, aos afrodescendentes agora, à nossa vida, todos juntos”. SANTORO, Diego.
Entrevista a Alexandra Lucas Coelho. “Portugal não é branco, nem em primeiro lugar dos brancos”.
Diário de Notícias, Lisboa, 18/ago/2017. Disponível em:
<http://www.dn.pt/portugal/interior/portugal-nao-e-branco-nem-em-primeiro-lugar-dos-
brancos-8712501.html >. Acesso: 18/ago/2017.
59 ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Mar novo, 4. ed. Alfragide: Editorial Caminho, 2005.
60 Idem, ibidem.
44
madrugada de 11 para 12 de março. Seu objetivo era o iniciar o derrube do regime
salazarista, mas falhou porque agentes da PIDE já tinham conseguido informações
sobre os preparativos antecipadamente61. Àquela altura o engenheiro civil Jorge de
Sena era um escritor ainda pouco conhecido. Em virtude de sua colaboração nessa
revolta antissalazarista, na sequência das perseguições políticas originadas com o
golpe abortado em 1959, segue a viver o exílio no Brasil.

A produção do conto “O jantar do bispo”

Associado a esse contexto de ruptura dos católicos progressistas com o Estado


Novo, depois de a campanha eleitoral de 1958 ter revelado a vertiginosa fraude que
acirrou os ânimos e intensificou as denúncias contra a dominação ditatorial, Sophia
escreveu o conto “O jantar do Bispo”, em cuja tônica se evidencia o conflito entre
membros da Igreja (críticos aos desmandos autoritários) e do regime que, na
impossibilidade de seguirem as mesmas diretrizes em relação aos problemas sociais,
quebram as alianças antes seladas.
Selecionamos, por tal motivo, realizar a análise desse conto no próximo
capítulo. Faz-se necessário, no entanto, desenvolvermos algumas considerações

61 Irene Pimentel explica que no plano militar da intentona estavam à frente o major Pastor Fernandes
e o capitão Almeida Santos, principal organizador da conspiração, um antigo dirigente da Mocidade
Portuguesa, que depois foi barbaramente assassinado. A autora prossegue registrando que outras
figuras de relevo do movimento foram: “os majores Clodomiro Sá Viana Viana d´Alvarenga e Luís
Calafate, os capitães Fernando Costa Revez Romba e Amílcar Domingues, o 1.º tenente da Armada
Vasco da Costa Santos e o oficial miliciano médico Jean Jacques Valente. Por seu lado, o capitão João
Varela Gomes, que viria a ser o dirigente militar do ‘Golpe de Beja’, em 1962, disse também que o
núcleo dinamizador desse movimentação era constituído por católicos e monárquicos, citando, além
de Manuel Serra e do capitão Almeida Santos, o advogado Francisco Sousa Tavares e o capitão Nuno
Vaz Pinto”. PIMENTEL, Irene. “O ‘Golpe da Sé’”. Caminhos da Memória, 23 março 2009. Disponível
em: <https://caminhosdamemoria.wordpress.com/2009/03/23/o-«golpe-da-se» > Acesso em:
15/fevereiro/2017. O episódio do assassinato do capitão Almeida Santos é o tema central do romance
de José Cardoso Pires, A balada da praia dos cães, de 1982. Ver GAGLIARDI, Caio. “O último exílio
de Jorge de Sena: Em Creta, com o Minotauro”. Revista do CESP, v. 34, n. 51, jan.-jun. 2014, p. 11.
24. Devemos também lembrar que Maria Eugénia Varela Gomes (1925-2016) participou diretamente
na montagem do Golpe da Sé, ela que companheira de Joâo Varela Gomes ainda esteve a seu lado
no assalto ao Quartel de Beja, em 1962, enfatiza em seu estudo Manuela Tavares. Maria Eugénia
Varela foi detida pela PIDE em 1962 e foi condenada a 18 meses de prisão. Sempre ligada ao
desempenho comunista, em 1969 será uma das mulheres que estará à frente da Comissão Nacional
de Socorro aos Presos Políticos, onde igualmente Sophia virá a ser uma das integrantes fundadoras.
Ver TAVARES, Manuela. Feminismos: percursos e desafios (1947-2007). Lisboa: Texto, 2011, p. 629.

45
preliminares, assim como nos determos um pouco sobre os elementos comuns que
constituem o corpo de relações entre o plano literário e o plano histórico. Para refletir
acerca do tema, uma excelente abordagem deriva das considerações de Antonio
Candido quando explicita que a linguagem literária tem em seu predomínio a função
poética, cuja finalidade é realçar as qualidades estéticas da palavra. Em
consequência, não é possível conceber o discurso literário como um documento. O
primeiro tem como base a criação de um universo peculiar, “diferente da realidade,
embora a tenha como matéria-prima e procure tomar o seu lugar”62.O solo da
realidade é, assim, o ponto de partida para a criação literária, mas em tal processo
existe uma relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com
ela63.
No curso da análise do conto que realizamos nas páginas seguintes, tomamos
como referencial a proposta de Sidney Chalhoub e Leonardo A. Miranda Pereira.
Ambos tecem considerações fecundas a respeito do trabalho com a literatura na
perspectiva da história social, o que implica adotar um pressuposto materialista de
interpretação. Com isso, rompe-se com qualquer ideia de “transcendência” ou
autonomia da literatura e mesmo da produção de obras de arte em geral, fazendo sair
de cena, definitivamente, os princípios de que essas produções possam ser validadas
com base em critérios estéticos absolutos, num procedimento em que se dá ênfase à
crença de que os sujeitos autorais são criadores singulares e elaboram suas
narrativas independentemente do contexto social que lhes rodeia e numa esfera
atemporal. Ao contrário, nessa perspectiva a obra literária é vista como um problema
histórico, a ser explorado e analisado por meio de interrogações pertinentes
conectadas à configuração social.

Em outras palavras, a proposta é historicizar a obra literária – seja ela conto,


crônica, poesia ou romance –, inseri-la no movimento da sociedade, investigar
as suas redes de interlocução social, destrinchar não a sua suposta autonomia
em relação à sociedade, mas sim a forma como constrói ou representa a sua
relação com a realidade social – algo que faz mesmo ao negar fazê-lo. Em

62CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul/São Paulo: Duas
Cidades, 2004, p. 41.
63CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8. ed. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000; Publifolha, 2000.
(Grandes nomes do pensamento brasileiro).
46
suma, é preciso desnudar o rei, tomar a literatura sem reverências, sem
reducionismos estéticos, dessacralizá-la, submetê-la ao interrogatório
sistemático que é uma obrigação do nosso ofício. Para historiadores a literatura
é, enfim, testemunho histórico64.

Sophia publica Contos exemplares em 1962, mas certamente sua produção


aconteceu em anos anteriores. A respeito da experiência histórica por ela vivida que
impulsionou a sua oposição e resistência ao salazarismo, entre os católicos que
personalidades terão sido seus interlocutores? Quais terão sido as circunstâncias e
os desdobramentos, ou a sobreposição deles em vários níveis, que mediante a
reflexão de Sophia tornaram-se um substrato criativo para ser transformado, em
representação, nessa narrativa literária de alto teor estético que é “O jantar do bispo”?
Para ir ao encontro dessa matéria da realidade, terreno que fomentou a visão
testemunhal de Sophia enquanto escritora e praticante da fé cristã então ao lado dos
católicos progressistas, adentramos inicialmente o cenário de conflitos enfrentados
pelo padre Abel Varzim. Acerca dessa referência, o professor José Maria da Cruz
Pontes, da Universidade de Coimbra, no marco de 40 anos de falecimento de Abel
Varzim, escreveu uma matéria e nela identificou a homenagem que Sophia prestou
ao pároco ao inseri-lo como personagem em “O jantar do bispo”: “Identificam-se
facilmente o prelado e o ‘Homem Importante’. Não é preciso perguntar quem é naquele
conto o Padre de Varzim, o Pároco de Varzim” 65. Nessa esteira de contato com a
realidade, em meu olhar também não é preciso questionar quem é, no conto, o
Homem Importante, nem mesmo o Bispo, senão aquele cujas tomadas de posição o
levaram a suportar dez anos de exílio.
Para uma compreensão mais detida do assunto, é importante explorar alguns
aspectos biográficos, inicialmente de Abel Varzim e, depois, de Dom António Ferreira
Gomes, o Bispo do Porto. A trajetória de Abel Varzim (1902-1964) foi de compromisso
com a evangelização direcionada às causas sociais, abarcando ao longo de anos um
vasto leque de atividades. Formado em Teologia em Braga, norte de Portugal, iniciou
o sacerdócio na Igreja católica em 1925. Concluiu o doutorado em Ciências Políticas

64“Introdução”. In: CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (orgs). A História
contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 7.
65 PONTES, José Maria da Cruz. “Padre Abel Varzim”. Braga, Diário do Minho, 20/
agosto/2004.Disponível em: <http://diariodominho.pt/conteudos/14495>. Acesso em: 20/março/2017.
47
e Sociais na Universidade de Lovaina (Bélgica) em 1934, tendo como objeto de estudo
a liga de agricultores católicos e o contexto da pobreza a que estavam submetidos.
Foi um impulsionador dos movimentos operários, colaborando com a fundação
da Liga Operária Católica em 1936 e fundando o quinzenário O trabalhador. Na
década de 1930, foi colaborador da Rádio Renascença, ao lado do monsenhor Manuel
Lopes da Cruz, que havia fundado esse veículo de comunicação. Deputado na
Assembleia Nacional de 1938 a 1942, a postura crítica de Varzim acerca das
condições laborais e sua reivindicação por medidas de proteção aos trabalhadores
atraíram ameaças do regime ditatorial.
Pensar na atuação corajosa de Abel Varzim é, ao mesmo tempo, trazer à
memória aquilo que normalmente chocava os costumes, como o fato de ele doar tudo,
até a roupa pessoal, de acordo com o relato de alguém “que foi responsável por
serviços domésticos numa casa comunitária onde o padre Abel Varzim residiu,
durante um período da sua vida”66. De um lado, tornava-se querido e elogiado por
muitos e, de outro, era visto como alguém perigoso sob o ponto de vista dos membros
da Igreja conservadora e odiado por agentes repressores.
Em 1948, foi afastado das funções que desempenhava na Ação Católica
Portuguesa, ao mesmo tempo em que houve o encerramento por força da censura do
jornal O trabalhador. Em 1950, foi designado pároco na Freguesia de Nossa Senhora
da Encarnação, em Lisboa, ali criando um inovador trabalho de reintegração social de
um grupo de prostitutas. Trazer à baila essa questão, talvez a mais complexa com que
Abel Varzim teve de lidar, é relembrar seu texto intitulado “Por que fugiste, Senhor?”.
Nele, em determinado momento, a pergunta que dirige ao público é: “E quem é o meu
próximo?”. A partir disso, ele narra que certo dia bateram à porta da igreja da
Encarnação e pediram-lhe que fosse benzer uma rapariga que estava prestes a
morrer numa escadaria. Ao que ele retrucou que para sacramentá-la era preciso
colocá-la em local apropriado. Foi nesse dia que Abel Varzim inteirou-se das
condições de vida e do sofrimento daquelas raparigas:

66 RODRIGUES, José Luís. “Quem foi o Padre Abel Varzim?”. Disponível em:
<http://jlrodrigues.blogspot.com.br/2010/02/quem-foi-o-padre-abel-varzim.html> Consulta em:
3/abril/2017.
48
Encontrei-me numa copa, face a face com a rapariga, sentada numa cadeira.
Rosto pálido, pele e osso, e, a cobrir aquelas peles e aqueles ossos, um
humedecido e gasto vestido todo feito de chita. Já mal falava. Respiração difícil.
[...]. No fim do acto sacramental, vi-me rodeado de raparigas novas. Na
expressão daqueles rostos não foi difícil dar conta de me encontrar numa ‘casa’
de prostituição. Então adivinhei tudo… ou quase tudo! Mas quis saber. Uma
vez cá fora, interroguei. Aquela rapariga – tinha ela 21 anos – era ‘uma’ daquela
casa. Tuberculizara! Mesmo tuberculosa continuava. Mas quando, um dia, já
ninguém a procurava por não ser mais do que um esqueleto em pé, a vomitar
escarros e sangue – e, portanto, por já não ser negócio – foi posta
violentamente na rua. Mas não tinha ninguém! Ninguém sequer sabia o seu
nome. Chamavam-lhe Amélia, ‘nome de guerra’. Também elas, como as
freiras, mudam de nome… porque os extremos tocam-se67.

No período de 1951 a 1957, Abel Varzim fundou na Paróquia da Encarnação


os projetos a Sopa dos Pobres, o Posto Médico e a Casa de Trabalho, fortalecendo o
tecido social cristão lisboeta. Passou a ser vigiado pela PIDE e nesse processo, já
enfermo e cansado, retornou à sua terra ainda em 1957, ali erguendo, ao lado de
apoiadores locais, a Sociedade Avícola do Minho68.
Se de início Abel Varzim, assim como um grande número de católicos, apostou
no programa social e político fundado no corporativismo do Estado Novo, aos poucos
foi se dando conta de seus muitos entraves e limitações, experiência que o tornou um
desafeto de Salazar e, necessariamente, um opositor a ele e seu projeto de governo.
Vejamos seu comentário:

O Estado-Salazar é quem manda na Igreja, confundem-se quase neste país e


o mal avança cada vez mais… Querem que eu saia de Ação “católica”. Porquê?
– Por ter defendido a doutrina social da Igreja. Porquê? – Por ter procurado
servir a Igreja e reagir contra a sua submissão a Salazar. Porque mais? – Por
ser incómoda a minha presença e inabalável a minha intransigência69.

67
RODRIGUES, José Luís. “Quem foi o Padre Abel Varzim?”. Disponível em:
<http://jlrodrigues.blogspot.com.br/2010/02/quem-foi-o-padre-abel-varzim.html > Consulta em:
3/abril/2017.
68 Abel Varzim faleceu a 20 de agosto de 1964, no Porto.

69RODRIGUES, Domingos. Abel Varzim: Apóstolo português da justiça social. Lisboa: Rei dos Livros,
1990, p. 199. Apud ANJOS, Anselmo Esteves dos. O Padre Abel Varzim e o Sacerdócio Ministerial no
contexto da “Procissão dos Passos – Uma vivência no Bairro Alto”. Universidade Católica Portuguesa,
49
Também António Ferreira Gomes, o Bispo do Porto, foi uma personalidade
marcante na oposição ao regime: nasceu em Milhundos, Penafiel, Portugal, a 10 de
maio de 1906 e aos dez anos entrou no Seminário. Já adulto, seguiu a disciplina
sacerdotal e dedicou-se aos estudos filosóficos na Universidade Gregoriana (1925-
1928), em Roma. Foi ordenado presbítero na Torre da Marca, no Porto, em setembro
de 1928. Foi nomeado em 1936 cônego da Sé do Porto, ao lado de Manuel Valente e
Sebastião Soares de Resende, tendo assumido pouco depois a função de prefeito do
Seminário de Vilar, onde também exercia o magistério e mandou colocar duas
máximas, que foram posteriormente muito conotadas à sua memória. São elas:
“Fostes resgatados por grande preço, não queirais tornar-vos servos dos homens (1
Cor 7,23)” e “De joelhos diante de Deus, de pé diante dos homens”. Em 15 de janeiro
de 1948 foi nomeado Bispo da Diocese de Portalegre e Castelo Branco, onde ficou
até 1952, quando foi nomeado Bispo do Porto70.
A consciência cristã que se direcionava mediante o trabalho pastoral para a
humanização e a necessidade de intervenção na realidade dos pobres foi se
construindo aos poucos e intensificada na década de 1950. Em 1955, o Bispo havia
solicitado à Conferência Episcopal publicar um texto acerca das condições dos
trabalhadores em terras lusas e sua relação com o corporativismo, segundo a
informação realçada por Arnaldo de Pinho71, sem contudo lograr sucesso. Em 1957,
escreveu os artigos “A Igreja e o corporativismo”, “A miséria imerecida do nosso
mundo rural”, “A organização corporativa e a moral católica”72. No Centro Académico
de Democracia Cristã (C.A.D.C.) em 1958, a mesma entidade em que fora militante o
estudante António de Oliveira Salazar, num ciclo de conferências Dom António

Faculdade de Teologia, Porto, 2014, p. 26. Disponível em:


<http://www.forumavarzim.org.pt/sites/default/files/publicacoes/599_TeseDeMestradoAAnjos.pdf >.
Acesso em: 3/abril/2017. Ver igualmente o documentário: OLHAR o Padre Abel Varzim em 2014: 50
anos após a sua morte. Agência Ecclesia. Portugal, Programa 70x7, RTP 2, 2014 (20 min).
70ARAÚJO, Sofia de Melo. “Nota Explicativa a ‘Economismo ou Humanismo’, de D. António Ferreira
Gomes”. E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 6, 2007, p. 1-3. Disponível em:
<http://www.letras.up.pt/upi/utopiasportuguesas/revista/index.htm > Acesso em: 3/abril/2017.

71PINHO, Arnaldo de. “Nos antecedentes da carta: Um projecto de Pastoral Colectiva que se pôs de
parte?”. D. António Ferreira Gomes. Nos 40 anos da Carta do Bispo do Porto. Lisboa: Multinova, 1998,
p. 35-44. Apud: ALMEIDA, João Miguel. A oposição católica ao Estado Novo, 1958-1974. Lisboa:
Edições Nelson de Matos, 2008, p. 60.
72BARRETO, José. “Adérito Sedas Nunes e o bispo do Porto em 1958”. In: Análise Social, vol. XLII
(182), 2007, p. 11-33.
50
Ferreira Gomes apresentou a palestra “Economismo ou Humanismo”, em cujo mote
evidenciou a atenção aos problemas sociais73.
Nada mais explícito de seu descontentamento com o regime do que o pró-
memória destinado a Salazar. A história é bem conhecida: o Bispo do Porto estava
em Barcelona e havia sido chamado por Salazar a regressar a Portugal a fim de votar
nas eleições presidenciais (ocorreram a 8 de junho de 1958). D. António Ferreira
Gomes avaliou que tal pedido, “por forma tão extraordinária e pública, não poderia
deixar de considerar-se propaganda da Situação” – são os termos com que redige um
trecho da sua carta-memorando, a qual tinha a finalidade de elencar seus argumentos
caso o presidente do Conselho marcasse uma reunião com ele. O fato é que houve o
vazamento do texto, assim se divulgando em grande número de cópias entre católicos
e não crentes, sem contar inevitavelmente o esforço dos aliados do regime ditatorial
para associar a figura do Bispo ao comunismo. Também Abel Varzim escreve ao Bispo
do Porto. Vejamos um trecho:

Cristelo, Barcelos, 25/9/58


Exmo. Senhor e Reverendíssimo D. António Ferreira Gomes, Venerando Bispo
do Porto
Mão amiga enviou-me cópia da carta de V. Excia. Rev. a Sua Exa. o Senhor
Presidente do Conselho. Depois de ler, resolvi manifestar a V. Exa. a minha
alegria por tão “Cristão Atrevimento” acrescentando, porém, que em minha
opinião, foi tempo perdido tê-la enviado. Mudei agora de pensar, depois da
leitura do panfleto que escreveu, a despropósito, o Sr. Dr. Manuel Anselmo.
Realmente valeu a pena! E valeu-a, sobretudo para trazer um pouco mais à luz
do dia até que ponto urge pregar e ensinar o Evangelho aos estômagos cheios,
uma vez que é anti-nacional e subversivo (além de ser inútil) pregá-lo a
estômagos vazios. Eu sei, Senhor Bispo, por dolorosa experiência, o que é a
dor de ver católicos com responsabilidades acusar padres e bispos de políticas
subversivas, anti-nacionais e até infiéis à Fé Cristã, só pelo fato de ensinarem,
sem reticências, o Evangelho74.

73 Cruz, Manuel Braga da. “C.A.D.C.: Um século de história”. Disponível em:


<http://www.cadc.pt/CADCUmSculodeHistria.htm>.
74CARTA do Padre Abel Varzim dirigida ao Exmo. Senhor e Reverendíssimo D. António Ferreira
Gomes, Venerando Bispo do Porto. Cristelo, Barcelos, 25/setembro/1958. Cooperativa António Sérgio
para a Economia Social.
51
Concentrando um rol de denúncias acerca das injustiças que assolavam o país,
esse documento redigido a 13 de julho de 1958 ficou conhecido com o título de Carta
do Bispo do Porto. Ao ato de transgressão, Salazar um ano depois respondeu com o
exílio do Bispo.
Nessa missiva, entre outros pontos declarados, como a defesa do direito à
greve, a importância de redução da jornada de trabalho, o alerta sobre a miséria social,
o Bispo realçou que a escandalosa manobra da campanha eleitoral implicou um efeito
conturbado aos fiéis da Igreja, pois estavam eles a dividir-se ou no polo da tradição
ou naquele que se apartava dela. Reforça que esse processo seguia adiantado e no
intuito de corroborar essa ideia apresenta dois fatos, para que se possa julgar sua
dimensão:

No Minho, coração católico de Portugal, onde se pensava que bastaria sempre


o Abade dar o «lá-mi-ré» e todos entravam imediatamente no coro, no Minho
Católico, mal os padres começavam a falar de eleições, os homens, sem se
importarem com o sentido que seria dado ao ensino, retiravam-se
afrontosamente da Igreja. Nas juventudes da Acção Católica, onde tanto se
quis dizer que os padres andavam a lançar inquietações e dúvidas, os
dirigentes mais responsáveis saltam fora dos quadros e da disciplina, para
manifestarem a sua inconformidade e desespero, fugindo ao conhecimento dos
assistentes (que, apesar de tudo, lhes aconselhariam paciência). São os dois
pólos, o da tradição e o da recristianização. Do que fica no meio, facilmente se
poderá julgar. Está-se perdendo a causa da Igreja na alma do povo, dos
operários e da juventude; se esta se perde, que podemos esperar nós da sorte
da Nação?75.

Em muito lhe pesou o conteúdo de denúncia, acarretando o seu exílio em 24


de julho de 1959, iniciado na Espanha em Vigo, depois Santiago de Compostela e
Valência, seguindo para Beuel (Alemanha) e Lourdes (França). Em dezembro de 1968
foi promovida a campanha para o regresso de D. António na reunião do Conselho
Diocesano da Acção Católica. Marcello Caetano deu a autorização para o retorno e o

75
CARTA do Bispo do Porto a Salazar. In: ALVES, José da Felicidade. Católicos e política: de Humberto
Delgado a Marcello Caetano. Lisboa: Tipografia Leandro, s/d., p. 34-5.
52
Bispo do Porto, que chegou a Fátima em 19 de maio de 1969, tendo reassumido sua
função eclesiástica em julho daquele ano76.

As vozes de Abel Varzim e do Bispo do Porto no conto de Sophia

No patamar de vários elos que entrelaçam os eventos históricos – a denúncia


dos equívocos e arbitrariedades da ditadura em Portugal pela voz de Abel Varzim e
do Bispo do Porto – à produção do conto “O jantar do Bispo” por Sophia, cabe a esta
altura levantar três possibilidades. A primeira remete à divulgação estrondosa da cópia
da Carta do Bispo do Porto entre os católicos, quiçá a outras pessoas, uma vez que
não é possível medir a abrangência desse fato. A segunda diz respeito ao fato de o
padre Abel Varzim ter emitido suas impressões e solidariedade diretamente ao Bispo
– ambos haviam adentrado o campo da subversão, considerando a perspectiva do
regime e de Salazar; e até mesmo em sua carta Abel cita, oblíqua e ironicamente, o
fato de Salazar ser católico. A terceira relaciona-se ao trabalho artístico da autora do
conto, que teve o prefácio assinado justamente por Dom António Ferreira Gomes 77,
um texto que soma 37 páginas.
A amizade entre Sophia e o Bispo do Porto encontrou uma maneira de ser
preservada mesmo quando ele estava no exílio, a exemplo de ele encontrar uma
portadora que fizesse a gentileza de chegar à poeta as correspondências. Uma das
cartas foi em agradecimento por ela ter-lhe enviado o Livro Sexto, fazendo-o passar,
pelo que se pode supor num trecho da narrativa, como se fosse uma publicação de
1955. A carta foi escrita no dia de Páscoa e o Bispo expressa que há uma coincidência
feliz de se dirigir à amiga nessa data: “Não sei se mal interpreto ou se apenas sonho,
mas vejo nos seus poemas [...] uma espécie de aspiração pascal: talvez melhor, uma

76A intervenção cívica de Dom António Ferreira Gomes permaneceu ainda por anos, incluindo o
período da Revolução de Abril e da democratização de Portugal. Faleceu a 13 de Abril de 1989, em
Ermesinde.
77 Veja-se um trecho do prefácio: “Ao bispo amavelmente forçado a abrir estes Contos só resta
agradecer a Sophia a generosidade de, tendo mostrado o pobre Jerarca ilaqueado nos jogos humanos
até vender o seu Padre ‘pelo telhado duma igreja’, da igreja da Senhora da Esperança, o mostrar depois
capaz de remorso, de resgate e redenção: que o Bispo volte a ser, mais do que construtor de igrejas,
o construtor da Esperança. Até mesmo da Esperança de que a prática e a ‘fé’ do nosso bom povo deixe
de ter, no momento da tentação, a voz sobrerrealista da cozinheira Gertrudes: ‘Nos tempos que correm,
já não há Deus nem Diabo. Há só pobres e ricos. E salve-se quem puder...’”. ANDRESEN, Sophia de
Mello B. “O jantar do bispo”. In: Contos exemplares. 21 ed. Porto: Figueirinhas, 1989, p. 47.
53
tortura trans-pascal, por querer realizar, mediante a magia poética, aquilo que só
através da morte, e da morte em Cristo, se perfaz”78.
Frei Bento Domingues foi muito amigo de Sophia e quando me concedeu
entrevista relatou o pendor acentuado da poeta pela justiça, que se transpunha a uma
poesia muito enxuta e ao contato com o real, ao “ajustamento da palavra, de dizer o
que se quer dizer”, mas ia além porque “era quase uma regra de vida, tanto em relação
à casa, à educação, à família, em relação a tudo”. Despertou-lhe muito a atenção o
conto O jantar do bispo e havia comentado com Sophia sobre isso muitas vezes:

Ela até se ria. Porque eu achava aquilo muito interessante, encontrar o Deus
dos pobres, o Deus dos humilhados. Aquilo era um problema dela, porque
muitas vezes — e não vale a pena falar em concreto das pessoas que não
estão vivas e tudo isso —, mas ela tinha empregadas, e às vezes acusavam-
na de que ela deixava-se roubar, que ela deixava que as pessoas abusassem
dela. E ela disse-me sempre, isto ela repetia: “Prefiro ser roubada pelos pobres
a apoiar os ricos”. Porque os pobres ela conhecia, tinha uma sensibilidade
enorme para a gente que não tinha o necessário para viver bem. E depois, tinha
certo pendor para todas as pessoas que eram vítimas de alguma coisa. Isso
nela era muito forte.79

Mergulhando nas camadas mais profundas a respeito do problema, ainda que


Sophia ao se afligir com os contrastes sociais que enfrentava ao dispor de auxílios de
criadas que a ajudavam na rotina da casa, intimamente não tinha como deixar de viver
uma contradição. Uma contradição que extrapolava o âmbito privado, pois envolvia a
situação de milhares de meninas que saíram do interior de Portugal para as cidades,
indo trabalhar como internas nas casas de família. Essa era a situação majoritária no
país, em razão de existirem poucos casos de empregadas domésticas, diaristas que
voltavam para casa após o expediente. Como terá sido o relacionamento de Sophia
com suas criadas? Será que sua postura humanizada as poupava também de uma
rotina extenuante de trabalho, como era comum à época?

78Carta do Bispo do Porto a Sophia de Mello Breyner, em 10 de abril de 1966. Espólio de Sophia,
Biblioteca Nacional de Portugal.
79 DOMINGUES, Frei Bento. Entrevista concedida a Eloísa Aragão. Lisboa, 30/novembro/2013.
54
Inês Brasão em seu estudo sobre as “criadas de servir”80 fez um levantamento
auferindo, com base em dados oficiais, que em 1940 havia em Portugal cerca de 188
mil empregadas de servir. Em 1950, o número aumentou para aproximadamente 199
mil. Já na década de 1960, houve um decréscimo, somando 175 mil empregadas
internas, e dessa mesma forma decaiu o número na década de 1970, chegando a 110
mil. Em uma entrevista ao Expresso, Olívia Castro (em 2015 com 66 anos) relata que
saiu de Trás-os-Montes para trabalhar como interna ainda menina, aos 12 anos, altura
em que realizava muitas tarefas para ajudar na casa de família. A partir dos 14, porém,
teve de assumir todas as atividades, como limpar, cozinhar, lavar, engomar e cuidar
das crianças. Conta, ainda, que nessa casa moravam seis pessoas, e o trabalho era
tanto que costumava deitar-se à uma da madrugada ou mais, e levantava-se no
máximo às 6h45. “O trabalho era muito e tinha de ser feito. Às vezes adormecia
encostada à tábua de engomar”, desabafa81.

80 BRASÃO, Inês. O tempo das criadas: a condição servil em Portugal (1940-1970). Lisboa: Tinta da
China, 2012. O estudo de Inês Brasão, voltado à compreensão da condição servil doméstica em
Portugal, teve como parte constitutiva a análise de dezoito biografias aprofundadas para reconstituir a
trajetória de vida de mulheres que trabalharam como “criadas de servir”.
81 COSTA, Alexandre; BARRA, Luís; CARIA, José. “Quando o trabalho obriga a viver com os patrões”.

Lisboa, Expresso, 4 dez. 2015. Disponível em: < http://expresso.sapo.pt/sociedade/2015-12-04-


Quando-o-trabalho-obriga-a-viver-com-os-patroes > . Acesso em: 20/ agosto/ 2017.
55
Capítulo II
Análise do conto “O jantar do bispo”

Se é verdade que uma das funções da ficção, misturada à


história, é libertar retrospectivamente certas possibilidades
não efetuadas do passado histórico, é graças a seu caráter
quase histórico que a própria ficção pode exercer
retrospectivamente a sua função liberadora.
(Paul Ricouer, Tempo e narrativa)

56
Uma narrativa contrária à injustiça e ao autoritarismo

“O jantar do bispo” integra o livro Contos exemplares, de Sophia82. Compõem


a coletânea outros seis contos, a qual foi publicada pela primeira vez em Portugal em
1962 pela editora Figueirinhas e recebeu o prefácio de D. António Ferreira Gomes
(1906-1989), o Bispo do Porto, informação anteriormente citada. Um primeiro conceito
que devemos salientar relaciona-se ao fato de “O jantar do bispo” tratar-se de uma
novela, como foi destacado por vários críticos. Embora seja um gênero narrativo
movediço, marcado pela singularidade de ser mais extenso do que um conto, “na
novela, a ação desenvolve-se normalmente em ritmo rápido, de forma concentrada e
tendendo para um desenlace único”83.
Por meio de uma narradora onisciente, o leitor é levado a conhecer logo na
abertura do conto a descrição da paisagem, os arredores que formam uma extensão
do prédio de produção vinícola e da casa grande. Ao mesmo tempo é possível
entrever o quanto ela está associada ao poderio exercido pelo Dono da Casa,

82 Em nossa busca de teses, dissertações ou artigos sobre Contos exemplares de Sophia, encontramos
três estudos, os quais estavam indicados em bases virtuais. O exame de meu interesse era, sobretudo,
a respeito de “O jantar do bispo”, matéria de investigação a que me dedico neste capítulo. O viés neles
exposto é bastante diferenciado da leitura que aqui proponho. Nesse sentido, podemos afirmar que
possivelmente a análise que realizamos é inovadora, em particular quanto ao fato de associar a
narrativa ao contexto sociopolítico dominado pelo salazarismo e pela presença do patriarcado, bem
como pela tentativa de compreensão dos significados das personagens secundárias. Eis as indicações
dos estudos pesquisados: RODRIGUES, Priscila Gomes. Literatura e moral nos Contos exemplares de
Sophia Andresen. Dissertação de Mestrado em Letras, Universidade Federal do Amazonas, 2014. No
trabalho, predomina sobre o conto referido a possibilidade de sua compreensão mediante teorias éticas
e filosóficas. GRECCO, Fabiana Miraz de F. “O Jantar do Bispo e a narrativa exemplar de Sophia de
Mello Breyner Andresen”. Guavira Letras, v. 17, p. 320-341, ago-dez. 2013. No artigo, a autora
concentra sua leitura nas três personagens principais, situando seu enfoque sobre a linguagem
relativamente ao simbolismo, o realismo e o fantástico presentes na narrativa. MORELATO, Adrienne
Kátia Savazoni. A transfiguração do corpo e do mito no desenho da escrita feminina através de Contos
exemplares de Sophia de Mello Breyner Andresen. Dissertação de Mestrado em Letras, Unesp,
Câmpus de Araraquara, 2007. Nessa dissertação de mestrado, predomina a dimensão simbólica e
mítica das personagens, assim como se destaca a relação particular com os espaços por meio dos
elementos da natureza.
83 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 2002, p. 303. Já
registramos a diferenciação do significado de novela. Para todos os efeitos, no entanto, vamos utilizar
livremente o termo “conto” ao longo da análise, em virtude de sua sonoridade. Alfredo Bosi afirma que
o conto cumpre uma função que é o destino da ficção contemporânea. Ele também esclarece: “Na
verdade, se comparada à novela e ao romance, a narrativa curta condensa e potencia no seu espaço
todas as possibilidades da ficção. [...] Proteiforme, o conto não só consegue abraçar a temática toda
do romance, como põe em jogo os princípios de composição que regem a escrita moderna em busca
do texto sintético e do convívio de tons, gêneros e significados”. BOSI, Alfredo (org.). O conto
contemporâneo brasileiro. 16 ed. São Paulo: Cultrix, 2015, p. 7.

57
personagem que representa o expoente central de uma sociedade dominada por um
viés autoritário e paternalista. A grandeza do local é apresentada em detalhes: o pátio,
as escadas, a fachada da casa e seu interior. Ao redor, avista-se a terra: “Era ali a
terra pobre donde nasce o bom vinho. Quanto mais pobre é a terra, mais rico é o
vinho. O vinho onde, como num poema, ficam guardados o sabor das flores e da terra,
o gelo do Inverno, a doçura da Primavera e o fogo dos Estios”84.
De um lado, evidencia-se o paralelismo sintático e o semântico, informando o
texto que uma terra árida e escassa em nutrientes é propícia ao cultivo da vinha e,
portanto, à produção de um bom vinho. De outro, a sugestão que encerra seria a de
que são os trabalhadores pobres que cultivam a vinha, a planta de onde se produz o
vinho, a ser apreciado por poucos, normalmente os ricos, que geralmente saboreiam
os mais refinados e caros.
A título de introdução na atmosfera da narrativa, temos a referência à
temporalidade e ao espaço. Quando ocorreu o jantar? No inverno, “um duro Inverno
desolado e frio”85. A narradora acrescenta: “(...) e o vento desfazia o fumo azul que
subia das pequenas casas pobres. Os caminhos estavam cobertos de lama. Um longo
soluço parecia correr pelas estradas”86. Assim, “duro inverno” relaciona-se ao
predomínio no cotidiano dos portugueses de ausência de liberdade de expressão, de
hostilidade e desconfiança, ao passo que “caminhos cobertos de lama” sugere o
impedimento de possibilidades de comunicação e de deslocamento num país tomado
por várias formas de corrupção (o significado do lodo, da lama). Trata-se de
informações que podemos distinguir no plano simbólico como elementos do contexto
social e político forjado por um regime repressor, autoritário e ditatorial instalado a
partir do Estado Novo.
Notamos, ademais, a temporalidade extensa desses obstáculos e de um
sentido de fracasso e lamento por não se conseguir promover a alteração da realidade
social. Eis, portanto, tal elaboração por meio da frase: “Um longo soluço parecia correr
pelas estradas”87. Vale, igualmente, examinar: a permanência da chuva que transcorre

84 ANDRESEN, Sophia de Mello B. “O jantar do bispo”. In: Contos exemplares. 21 ed. Porto:
Figueirinhas, 1989, p. 52.
85 ANDRESEN, op. cit, p. 52.
86 ANDRESEN, op. cit, p. 52.
87 ANDRESEN, op. cit, p. 52.
58
“toda a narrativa de acordo com o peso moral das ações das personagens”88. Após
as dez da noite, ela havia se tornado tempestade, quando trovoadas e relâmpagos
agitavam o céu, no momento em que já tinha sido feita a combinação entre o Dono da
Casa e o Bispo, fechando um acordo fraudulento.
Com a finalidade de apresentar de maneira mais esmiuçada a riqueza da
narrativa, selecionamos três eixos para analisá-la.
O primeiro eixo narrativo é intitulado o jogo de conveniências. Seu
enquadramento diz respeito ao conflito central, originado nas motivações do Dono da
Casa que está atormentado perante as atitudes do Abade de Varzim e chama para o
jantar o Bispo, com o intuito de lhe fazer um pedido.
O segundo, denominado o jogo de poder e os elementos fantásticos, concentra-
se nas características dos movimentos que quebram o jogo de conveniências,
dinamizadas mediante elementos do fantástico, gênero literário utilizado pela autora
ao trazer a presença do insólito, por meio da entrada em cena do Diabo (a
personagem do Homem Importantíssimo) e de Deus (a personagem do homem, em
minúsculas conforme se registra no conto).
O terceiro eixo narrativo é intitulado quem trabalha e testemunha os fatos? Aqui
vamos nos deter no estudo das personagens secundárias: A Dona da Casa; o primo
Pedro; a prima Ana; a prima Mariana; a prima Conceição; Gertrudes (a cozinheira);
Joana (a criada velha); os criados António, Júlia e Mariana.
Ao final da análise, apresento aspectos de fechamento sobre a leitura
interpretativa, na seção denominada pontos de conclusão, ao considerarmos que
Sophia não se furtou a abordar os problemas sociais que envolviam o Estado Novo e
a Igreja, e uma das formas encontradas para tanto foi a elaboração deste conto “O
jantar do Bispo”. Por intermédio dessa narrativa, Sophia tratou o tema sob um
enquadramento que abarcou não somente uma perspectiva simbólica mas também
outra de uma dimensão relativa ao entrecruzamento da história com a literatura, na
qual é possível entrever os laços complexos da realidade opressiva que afetavam,
direta e indiretamente, a vida dos portugueses à época do regime ditatorial.

88Ver: MORELATO, Adrienne Kátia Savazoni. A transfiguração do corpo e do mito no desenho da


escrita feminina através de Contos exemplares de Sophia de Mello Breyner Andresen. Dissertação de
Mestrado em Letras, Unesp, Câmpus de Araraquara, 2007, p. 112.

59
O primeiro eixo narrativo: o jogo de conveniências

Neste eixo narrativo vamos encontrar anunciado o aspecto temático central do


conto, que poderíamos assim denominar: a riqueza versus a pobreza (e sua exigência
de justiça), num conflito89 que envolve o Dono da Casa – então atormentado diante
das atitudes do Abade de Varzim, liderança religiosa na localidade –, que chama o
Bispo para um jantar com a intenção de lhe pedir o favor de transferir o padre para
outra freguesia.
Na passagem do conto descrita a seguir, o Dono da Casa está à espera do
Bispo a quem convidara para o jantar. Nesse cenário, temos conhecimento de seu
momento psicológico, marcado por ensimesmamento, certa tensão, e postura alheia
aos convidados que já tinham chegado, como primos, primas e alguns vizinhos.

O Dono da Casa estava de pé, encostado à lareira acesa na sala grande,


rodeado de convidados, que eram primos, primas e alguns vizinhos. Estava
calado, alheio à conversa: meditava, pesava as suas razões, defendia em
frente de si próprio a sua causa e a sua justiça. Faltava o último convidado, que
era o Bispo.
O Dono da Casa tinha um pedido a fazer ao Bispo. Fora mesmo por isso que o
convidara para jantar. E era por isso que, enquanto o esperava, ele meditava e
preparava os argumentos da sua razão.
De facto, ali, naquelas terras de sossego, naqueles domínios submissos onde
ele e seu pai e seus avós tinham exercido uma autoridade indiscutida, ali onde
antes sempre reinara a ordem, tinha surgido agora uma semente de guerra.
Esta semente de guerra era o padre novo, um jovem padre de sotaina rota e
cabelo ao vento, pároco de Varzim, pequena aldeia miserável onde moravam
os cavadores da vinha. Havia muito tempo que Varzim era pobre e sempre
cada vez mais pobre, e havia muito tempo que os párocos de Varzim aceitavam
com paciência, sempre com mais paciência, a pobreza dos seus paroquianos.

89 No embate, há outros aspectos atinentes ao Dono da Casa e ao Abade de Varzim que sugerem “uma
luta em que se enfrentarão os valores negativos atribuídos ao Dono da Casa e os valores positivos
conotados com o Padre de Varzim. Encontramos assim: - a autoridade/ a caridade; – a riqueza/ a
pobreza; – o individualismo/ a solidariedade; – o egoísmo/ a consciência social”, nas palavras de:
BESSE, Maria Graciete. Sophia de Mello Breyner: Contos exemplares. Portugal: Publicações Europa-
América, 1990, p. 28.

60
Mas este novo padre falava numa justiça que não era a justiça do Dono da
Casa. E parecia ao Dono da Casa que, dia após dia, semana após semana,
mês após mês, a sua presença ia crescendo como uma acusação que o
acusava, como um dedo que apontava, como uma espada de fogo que o
tocava. E ali na sua casa cujos donos tinham sido de geração em geração
símbolo de honra, virtude, ordem e justiça, parecia-lhe agora que cada gesto
do Padre de Varzim o chamava a julgamento para responder pelos
tuberculosos cuspindo sangue, pelos velhos sem sustento, pelas crianças
raquíticas, pelos loucos, os cegos e os coxos pedindo esmola nas estradas90.

O Dono da Casa tinha por objetivo pedir ao Bispo que mandasse o padre de
Varzim para outra paróquia. Por isso, ensaiava sua argumentação uma vez que sabia
que não era fácil fazer o pedido. De certa maneira, nota-se o teor de uma hesitação
por parte do Dono da Casa que remete ao fato de se intrometer no campo de atuação
do Bispo, com o qual existiam alianças pactuadas por meio de um jogo de interesses.
Tratava-se de uma configuração mais ampla que se assentava nas formas de
conciliação, por meio de vínculos e apoios, entre os membros da classe patronal e da
eclesiástica, tendo em conta a vigência das regras concordatárias (Estado Novo e
Igreja católica) e à dinâmica de funcionamento social que tinha, entre seus traços
constituintes, reforçar a importância de não questionamento, de concordância perante
as autoridades, com o propósito de garantia da ordem.
Duas expressões são destacadas nesse remoer de argumentos do Dono da
Casa que são “a sua causa” e “a sua justiça”, a demonstrar a narradora que cada lado
tem sua visão de mundo, seus pesos e suas medidas. Para a causa dele há uma
medida de aplicação de justiça, cujo sentido não é uma contribuição à dignidade da
população pobre local e, logo, não será um pedido valendo-se de premissas neutras
e equilibradas tais quais as que deveriam reger, no plano ideal, a Justiça. De antemão,
já sabemos que isto será impossível, pois o Dono da Casa (tanto quanto seus
antepassados, que também gozavam de uma situação privilegiada) está instalado
numa posição de dominação senhorial.

90 ANDRESEN, op. cit, p. 52-3.


61
De um lado, está, portanto, muito acostumado a mandar e não a receber ordens
ou sugestões, conforme se enfatiza no texto. De outro, sua voz é soberana, ou seja,
em nenhuma situação é comum que suas prerrogativas e práticas sejam questionadas
– ousadia a que se atreveu o padre novo, tendo assim sido lançada no vilarejo uma
verdadeira “semente de guerra” na relação entre a voz senhorial dominante e o
apoiador dos pobres e desvalidos, o Abade de Varzim.
Qual era a natureza dessa justiça, indicada pela ação do abade que fazia o
Dono da Casa sentir-se acusado e a responder ao julgamento a que era chamado?
Era o sentido de uma justiça que diz respeito à dimensão humana em sua totalidade,
a toda uma gama de elementos que privilegiam os direitos humanos, atendendo a
todos indistintamente, no intuito de prover-lhes as necessidades básicas, como o fato
de não permitir que uns tenham tanto e outros tão pouco, a ponto de passarem fome.
Os interesses do Dono da Casa, no entanto, encontravam-se rigidamente
fixados em manter aquele estatuto de poder senhorial, o que incluía garantir de
geração a geração a propriedade da terra e sua exploração com base no trabalho
assalariado e, eventualmente, por arrendamento ou emprego de meeiros. Além disso,
a contenção dos conflitos de classes era sustentada por formas políticas arraigadas
no clientelismo e no protecionismo, dando mais “peso” e “mais medidas” ao lado da
balança daquele senhor.
A próxima informação da narradora sobre a comunidade de Varzim é a de que
era pobre e sempre cada vez mais pobre, assim como “havia muito tempo que os
párocos de Varzim aceitavam com paciência, sempre com mais paciência, a pobreza
dos seus paroquianos”91. Resultante de uma face da acumulação capitalista, a
pobreza não tem sua origem em carências individuais nem é promovida por fatores
locais de um grupo, como elementos geográficos, por exemplo – como bem cuidaram
de sublinhar os estudos marxistas, segundo reforça Luana Siqueira 92. É,
consequentemente, uma determinação estrutural do próprio modo de produção

91 ANDRESEN, op. cit, p. 53.


92Em torno do assunto, a autora registra: “A pobreza, nessa perspectiva, não é o insuficiente resultado
do desenvolvimento capitalista nem o efeito marginal de uma fase de crise. No capitalismo, a pobreza
é um produto estrutural do seu desenvolvimento, tendo em vista que nele o aumento da riqueza
socialmente produzida não gera maior distribuição e sim maior acumulação de capital. No capitalismo,
a maior riqueza produzida significa maior apropriação privada, e não maior socialização da mesma. E
a acumulação de riqueza é complementada pela pauperização (absoluta ou relativa) da população”.
SIQUEIRA, Luana Souza. “Desenvolvimento e pobreza: Uma análise crítica”. Anais do I Circuito de
Debates Acadêmicos, CODE 2011. Brasília/Code/Ipea, 2011, p. 14.
62
capitalista, cujos danos, em Portugal, se estampavam na expressão melancólica de
muitos camponeses e na aridez de sua luta pela sobrevivência.
Em dado momento, uma mudança vem a ser introduzida nesse cenário de
concordância em relação à miséria da população que ali vivia, pois “este novo padre
falava numa justiça que não era a justiça do Dono da Casa”93. O universo em que se
situa o proprietário das terras inclui também seus antepassados – que tinham sido ao
longo do tempo símbolos de honra, virtude, ordem e justiça – sob o denominador
comum de uma condição em que podiam mandar, exerciam um poder que não incluía
relações de comunicação dialógica. Significa dizer que para eles não importava a
percepção dos outros, que nessa relação eram subalternos e, por consequência,
deviam-lhes obediência.
Nessa esfera de atuação e de convívio, imperavam valores estáticos,
engessados nas práticas socialmente desiguais, onde os donos das terras
asseguravam que seus abrangentes poderes econômicos e de autoridade fossem
preservados, assim como os símbolos acima referidos – jamais abertos à contestação
ou ao questionamento. Uma ironia, se pensarmos que esses valores podem ser
inteiramente esvaziados de sentido, mantendo-se apenas enquanto discurso, para
reforçar a aparência das coisas, a exemplo do que os emprega o Dono da Casa.
De tal modo que ele sentia que cada gesto do Abade de Varzim o “chamava a
julgamento”, seleção de termo da narrativa que, à sua maneira, vai anunciando o
confronto que será deflagrado posteriormente, durante o jantar. Trata-se de um
julgamento no qual serão expostos os argumentos, pesadas as condições de ambos
os lados que entram num embate e requerem um acordo, ou novo acordo, ou uma
divisão.
A tônica do debate é nitidamente associada, se considerarmos o contexto social
que deu ensejo à transposição para a literatura, ao confronto promovido pelo grupo
dos católicos progressistas. Amparados na doutrina social da Igreja ou, mais adiante
temporalmente, nos preceitos do Concílio Vaticano II, desde a campanha para as
eleições presidenciais de 1958, eles opuseram-se ao regime do Estado Novo,
quebrando as alianças antes seladas. A campanha eleitoral de 1958 revelou de forma

93ANDRESEN, op. cit, p. 53.


63
vertiginosa que em Portugal a Igreja estava “perdendo a confiança dos seus
melhores”94, segundo os termos de Dom António Ferreira Gomes, o Bispo do Porto.
Além disso, os termos usados para as pessoas excluídas são bem semelhantes
aos que se encontram em passagens do Evangelho: “tuberculosos cuspindo sangue,
pelos velhos sem sustento, pelas crianças raquíticas, pelos loucos, os cegos e os
coxos pedindo esmola nas estradas”95. Mais do que salientar a referência a pessoas
que precisam de assistência e são citadas no Evangelho, os desvalidos, os
sofredores, os que têm fome de justiça – e um dos elementos que constituem o
universo literário andreseniano –, existe aí, possivelmente, certo apelo à maioria dos
católicos que não querem ter contato com a dolorosa face da miséria humana
expressa na pobreza96 e na marginalidade. É uma forma de lhes chamar para a
reflexão, para que enxerguem sob a ótica de um cristianismo legítimo, deixando de
lado a zona de conforto e tornando-se solidários à causa97.
O que havia acontecido? “Uma semente de guerra” se instalara porque a
autoridade do Dono da Casa havia sido confrontada pelo novo pároco de Varzim. Essa
personagem vai deflagrar o conflito, pois vem quebrar a ordem constituída de como
era esperado que as pessoas agissem na sociedade dirigida pelo regime salazarista.
Vejamos o trecho:

Finalmente surgira uma questão de contas com um caseiro e o Abade de


Varzim tomara a defesa do caseiro.
― Padre ― dissera o Dono da Casa ―, eu pensava que o seu ofício era
ocupar-se de rezas e não de contas. Os problemas morais pertencem-lhe. Os

94“Carta
do Bispo do Porto”. In: ALVES, José da Felicidade Alves (org. e edição). Católicos e política:
De Humberto Delgado a Marcelo Caetano. Lisboa: Tipografia Leandro, s/d.
95 ANDRESEN, op. cit, p. 53.
96 Um panorama dos conflitos de terra e da geração da pobreza nos campos em Portugal tem sua
origem no sistema latifundiário, conforme o estudo realizado por Estrela: “Os latifúndios se assentavam
nos métodos de cultura extensiva, com esporádica e reduzida necessidade de mão-de-obra. O
excedente de mão-de-obra, resultante do baixo nível de ocupação nos latifúndios, aliado à desigual
distribuição de terras, deu sempre origem à existência de salários baixos e longos períodos de
desemprego. Desemprego é de facto a palavra-chave quando se fala de movimentos de trabalhadores
rurais em Portugal antes de 1974. A extrema pobreza, mais os longos períodos de inactividade dos
trabalhadores, lançavam-nos na fome”. ESTRELA, A. de Vale. “A reforma agrária portuguesa e os
movimentos camponeses. Uma revisão crítica”. In: Análise Social, vol. XIV(54), 1978-2◦, p. 233.

97Aqui a abordagem diz respeito, conforme minha compreensão, especialmente ao empenho dos
católicos progressistas.
64
problemas práticos são comigo. Peço-lhe que deixe a César ocupar-se do que
é de César. Eu na sua igreja não mando: só assisto e apoio. O problema que
estamos a discutir é meu, é do mundo, é um problema material e prático.
― Da nossa própria fome ― respondeu o Padre de Varzim ― podemos dizer
que é um problema material. A fome dos outros é um problema moral98.

A referência à moral aponta um traço distintivo na fala do abade. Ela significa


um apelo à intervenção para suprir a “fome” não apenas material, mas também
simbólica, a que expressa bem mais do que o incômodo que faz o estômago doer. Do
ponto de vista senhorial, o problema é visto sob uma ótica reduzida, primeiramente a
dele (a fome dos que não têm fome), conduzido por meio das normas que ele
estabelece em seu domínio territorial.
Ademais, é possível interpretar a argumentação do padre ressaltando que
“nossa própria fome” representa a de agentes como ele e o Dono da Casa, cuja
condição de vida é provida de bens, de sorte que podem se alimentar, até escolher
de que vão se nutrir. Para eles, a questão do alimento seria, portanto, meramente
prática. Ao passo que “a fome dos outros” ultrapassaria essa dimensão, sobretudo no
caso da gente pobre de Varzim que vivia em situação de penúria.
Para o padre trata-se de uma questão moral, pois tem em mente que se
alimentar de modo adequado é um direito humano fundamental, tanto que está
previsto nas cláusulas universais de direitos humanos – se posso e devo cuidar da
minha própria fome, mas não cuido nem ajudo a outros que têm fome, estou
descuidando de uma ação humanitária. Esta apreciação moral guarda um vínculo
estreito com a ética99. Nesse sentido, ali foi posto um desafio à sua consciência, que,

98 ANDRESEN, op. cit, p. 54.


99 Note-se a distinção e a vinculação entre os significados de moral e ética, conforme PEDRO, Ana
Paula: “[...] não terá significado idêntico referenciar moral e ética sob a mesma perspectiva para
falarmos de uma única realidade valorativa, pois, enquanto a moral se refere a um conjunto de normas,
valores (ex.: bem, mal), princípios de comportamento e costumes específicos de uma determinada
sociedade ou cultura [...], a ética tem por objeto de análise e de investigação a natureza dos princípios
que subjazem a essas normas, questionando-se acerca do seu sentido, bem como da estrutura das
distintas teorias morais e da argumentação utilizada para dever manter, ou não, no seu seio
determinados traços culturais; enquanto a moral procura responder à pergunta: como havemos de
viver?, a ética (meta normativa ou meta ética) defronta-se com a questão: por que havemos de viver
segundo x ou y modo de viver?” (p. 2). “Existe uma relação necessária e complementar entre ética e
moral: “A ética é essencialmente especulativa, não se devendo dela exigir um receituário quanto a
formas de viver com sucesso, dado que se preocupa, sobretudo, com a fundamentação da moral. A
moral é eminentemente prática, voltada para a ação concreta e real, para um certo saber fazer prático-
moral e para a aplicação de normais morais consideradas válidas por todos os membros de um
determinado grupo social” (p. 2). PEDRO, Ana Paula. “Ética, moral, axiologia e valores: confusões e
65
pautada por seus próprios valores e pela responsabilidade social de sua função
eclesiástica, notou naquele ambiente ser necessária a intervenção de alguém que
agisse com base na justiça social, realizando a mediação dos interesses entre o poder
patronal e o do caseiro, que não teria ninguém que lhe fizesse a defesa.
Outro enfoque ainda requer a frase dita pelo abade: “A fome dos outros é um
problema moral”. Selecionar esse substantivo é, sem dúvida, realçar que a fome
deriva da pobreza, assim como indicar que presente nesse rol de vulnerabilidades há
outros males que afetam quem é privado de alimentos. Significa dizer que está se
submetendo as pessoas a um precário desenvolvimento físico, psicológico e social,
privações que não deveriam ser toleradas sob os critérios de bem-estar desejáveis
para uma vida saudável e digna.
Ponto de vista acerca do qual podemos estender a significação: sem as
pessoas que trabalham na vinha e são mal remuneradas – razão pela qual são
consideradas pobres, pois se tivessem melhores salários e oportunidades
naturalmente não ficariam restritas a condições de vida tão precárias –, não seria
possível o proprietário enriquecer com a venda do vinho, vangloriando-se de seu
prestígio e patrimônio enquanto tantos outros em seu entorno vivem em condição de
vulnerabilidade. De um polo a outro dessa relação entre o senhor e os criados, reside
a marca não só da autoridade e obediência, mas também laços de dependência que
os condicionam.
A percepção do Dono da Casa a respeito do Abade de Varzim vai se
intensificando tal qual sua repulsa por ele, tendo em vista que inicialmente “sentia-se
vexado pela insignificância daquele adversário”100 e não tinha o costume de lutar, ao
contrário, só estava acostumado a mandar, e seus ancestrais já haviam lutado e
vencido por ele. Contudo, não obstante o fato de preferir combater um homem forte e
poderoso, uma vez que um adversário “tão magro e desarmado fazia-lhe vergonha”101,
procede a uma investigação da vida pregressa do abade.
Isso o faz mudar de opinião e estabelecer seu conceito num patamar mais
hostil, pois antes imaginara que a forma de agir dele originava-se da revolta social de

ambiguidades em torno de um conceito comum”. Kriterion, Revista da Faculdade de Filosofia da


Universidade de Minas Gerais, vol. 55, n. 130, Belo Horizonte, dez./2014, p. 1-10.
100 ANDRESEN, op. cit, p. 55.
101 ANDRESEN, op. cit, p. 55.
66
alguém que era filho de gente pobre, mas surpreendentemente descobre que o “padre
era parente afastado duns seus parentes afastados e que a fome escrita na sua cara
não era hereditária, mas sim voluntária. Ele rejeitara o seu lugar entre os ricos e
tomara o seu lugar entre os pobres”102. A vergonha sentida pelo Dono da Casa tem,
possivelmente, origem no confronto com a ação generosa e desapegada do abade,
que ia além de dar esmolas e alimentos num gesto protocolar (tal qual fazia o Dono
da Casa, sobre quem temos essas informações mais adiante no texto), porque se
sensibilizava profundamente com o sofrimento alheio, de uma maneira que poucas
pessoas são capazes:

Ele dava, dizia-se, tudo quanto tinha e recebia em sua casa os vagabundos.
De dia para dia a sua cara esculpida pelo duro sacrifício quotidiano, o seu olhar
atravessado pela visão do sofrimento, os seus ombros estreitos, a sua roupa
desbotada por sóis e por chuvas, as suas botas rotas em todos os caminhos,
como que se iam tornando a imagem da pobreza e da miséria de Varzim103.

Dar tudo de si, renegando a sua riqueza de berço e tornando-se como os


desvalidos de Varzim, é identificar-se com eles a ponto de compreender o que
vivenciam: falta de comida, abrigo e roupas, além do fato de serem desqualificados
socialmente e sentirem-se excluídos, com frequência tendo vergonha de ser pobres.
Sentimento reforçado pelas múltiplas ocasiões em que não podem participar de
eventos, trocar presentes, estudar, desenvolver habilidades, cuidar bem de si e dos
filhos, entre outras oportunidades que lhes faltam.
A coragem, compaixão e generosidade de um espírito profundamente humano
são características dessa personagem modelar que é o pároco de Varzim,
peculiaridade que o torna um herói. O repertório de sua experiência pessoal é,
portanto, de alguém que transcende a ordem comum, vai além do que é normalmente
conhecido, firmando-se em sua liberdade de consciência para fazer escolhas por uma
luta social – e, nesse processo, logo se tornando um traidor porque rompe os pactos.
Temos aí mais um motivo para o Dono da Casa sentir-se envergonhado, tendo
em vista que nada, no conjunto de suas virtudes, ultrapassa o habitual. Já o padre de

102ANDRESEN, op. cit, p. 55.


103ANDRESEN, op. cit, p. 55.
67
Varzim, conforme se revela ao leitor, era aos olhos do senhor das terras um adversário
“tão magro e desarmado” que “fazia-lhe vergonha”, o que traz a marca de ambiguidade
no texto e, ao mesmo tempo, realça o cuidadoso manejo da linguagem da autora e de
seu refinamento ao promover a construção das personagens.
Além de opor-se aos que considerava ascetas e loucos, o Dono da Casa tinha
a crença de que “Todo o poder vem de Deus”104, o que incluía supor que o padre
deveria respeitar a extensão do poder em suas pequenas e grandes materializações.
Mais uma vez, numa espécie de tautologia sinalizada no texto quanto ao seu
pensamento, isto implicava “respeitar todo o poder estabelecido e respeitar o dinheiro
e a importância social, expressões do poder”105. Considerava, ainda, inadmissível que
um homem rejeitasse a herança e o prestígio que naturalmente poderia desfrutar,
escolhendo viver ao lado dos miseráveis. Ele pensava: “Um homem de boas famílias
se vai para padre deve ser Bispo, Núncio ou até Papa. Mas pelo menos Monsenhor.
Nunca pároco de aldeia numa serra”106. Distante do que se desejava como um dos
veículos de construção da ordem e da valorização dos papéis que o regime ditatorial
predefinira para os cidadãos, o Abade de Varzim mais uma vez quebrava a
expectativa do que seriam os paradigmas a seguir na visão do Dono da Casa.
Para ele, “as suas conveniências, as suas comodidades, as suas vantagens e
os seus interesses pareciam-lhe direitos éticos absolutos, princípios sagrados da paz
e da ordem”107, deviam ser garantidos, fosse como fosse. Por essa razão, de acordo
com os códigos sob os quais sustentava seu domínio, o padre tê-lo questionado havia
sido não apenas uma afronta, mas também uma pesada ofensa. O que mais
significava?

A atitude do padre novo chocava-o como uma traição. Acrescia a tudo isto que
o Dono da Casa, bom gourmet, sábio em vinhos e bom viveur, detestava os
ascetas, que lhe pareciam gente louca, pretensiosa e perigosa, gente pouco
humana e querendo sempre o que não é natural. Ora ele teve notícia de que
os seus frangos, as nozes, as uvas e as peras que era seu costume mandar
aos sucessivos abades de Varzim em datas regulares, agora, em vez de

104 ANDRESEN, op. cit., p. 56.


105 ANDRESEN, op. cit., p. 56.
106 ANDRESEN, op. cit., p. 56.
107 ANDRESEN, op. cit., p. 54.
68
seguirem o seu destino, que era a mesa do abade, eram distribuídos pela negra
fome de Varzim. [...] Isto desafiava o uso, o costume. Já nem era virtude: era
desordem, anormalidade, bolchevismo. Mas o pior de tudo era a missa de
domingo. Sempre o Dono da Casa ouvira distraído em Varzim os sermões de
domingo. Eram sermões que falavam de paciência, resignação e esperança
num mundo melhor. Sermões que não lhe diziam respeito. De certa forma, para
ele nenhum mundo podia ser melhor, e desejava por isso ir para o Céu o mais
tarde possível. De maneira que, enquanto os pregadores falavam, tudo o
distraía. Pensava nos seus negócios. [...] Mas agora já não se podia distrair.
Agora o padre novo falava da caridade. E a caridade de que ele falava não era
a conhecida e pacífica praxe das comedidas esmolas regulamentares. Era um
mandamento de Deus solene e rigoroso, uma palavra nua de Deus
atravessando o espírito do homem108.

Nessa sequência, o que está em causa é mais um fator no conjunto de


agressividade e repulsa que o Dono da Casa vai reunindo para formar seus
argumentos e pedir a transferência do padre. Sua aversão por ascetas “que lhe
pareciam gente louca, pretensiosa e perigosa, gente pouco humana e querendo
sempre o que não é natural”109 encontra respaldo e identificação com ideias
amplamente inculcadas nos cidadãos durante o regime ditatorial. Em seus numerosos
discursos, Salazar apelava ao que considerava serem os pontos mais fortes da cultura
portuguesa, valores relativos à ordem, à economia de recursos, à família, à fé suprema
em Deus, entre outros temas, conforme os investigou com muita pertinência Fernanda
Miranda Menéndez110.
Em um discurso proferido em 1935, Salazar pronunciou que seu projeto era o
de erguer uma nova sociedade do futuro, aproveitando os alicerces antigos. “Ela é
ordeira e pacífica; ela conhece as fronteiras da Pátria, alargadas por esse Mundo, a
golpes de audácia, por antepassados ilustres; ela respeita a hierarquia e diferenciação

108 ANDRESEN, op. cit., p. 56-7.


109 ANDRESEN, op. cit., p. 56.
110Ver MENÉNDEZ, Fernanda Miranda. “Salazar ou a conquista discursiva do poder”. Veredas, Revista
de Estudos Linguísticos, Universidade Federal de Juiz de Fora, v. 10, n. 1 e 2, p. 1-12.
69
de funções como facto natural e humano, necessário ao progresso geral” 111 – são os
seus atributos. Interessa notar, em consequência, que o conceito do que é ser natural
implica acomodar-se a um papel já destinado institucionalmente, valendo-se desses
princípios conservadores e autoritários e, assim, seguir “o curso natural” da vida.
O Dono da Casa já não encontrava, no entanto, naturalidade em algumas
circunstâncias. Antes as missas de domingo que não eram rezadas pelo abade de
Varzim representavam para ele um momento de distração, quando durante as
homilias aproveitava a oportunidade para pensar em seus lucros. De que modo se
realizava a caridade do Dono da Casa? Dava esmolas aos sábados, mantinha na
cozinha de sua mansão a mesa dos pobres (onde a cozinheira servia a sopa, o pão e
o vinho, e tinha ordem de pôr sempre uma moeda), aos domingos ia à missa e
chegava pontualmente à igreja, onde tinha um banco especial.
Os benefícios, contudo, eram dados apenas a quem não pudesse trabalhar de
modo algum. Eram estes os verdadeiros pobres da terra, segundo os critérios
senhoriais. De tal modo que se podia contar nos dedos: “eram o Lúcio, que não tinha
pernas, o Manuel, que não tinha braços, o Quintino que era cego, a Joana Surda que
era viúva e centenária e a Maria Louca”112. Havia, porém, o Pedro da Serra que tinha
nove filhos e ganhava quinze mil réis por dia cavando pedregulhos. Não era,
entretanto, um verdadeiro pobre, “pois tinha um salário e dois braços”113.
Contudo, expressões tão conhecidas tomavam no sermão da igreja de Varzim
um novo sentido. Caridade apelava, agora, à lucidez e ao enfrentamento da realidade
para além da paz social mantida sob aparências. A audição provocava inquietude
porque exprimia uma exigência pela dignidade do ser, pedia uma resposta à miséria
dos trabalhadores com ações efetivas que ultrapassassem o nível do discurso,
evocação assinalada por meio da bela imagem andreseniana de que a verdadeira
caridade anunciada pelo padre novo era, afinal, “um mandamento de Deus solene e
rigoroso, uma palavra nua de Deus atravessando o espírito do homem”114.

“Discurso de 10 de fevereiro de 1935”. In: SALAZAR, Oliveira. Discursos, vol. II, 1935-1937. Coimbra
111

Editora, 1937. Disponível em: <oliveirasalazar.org/bibliografia.asp >. Acesso em: 2/março/2017.


112 ANDRESEN, op. cit., p. 58.
113 ANDRESEN, op. cit., p. 58.
114 ANDRESEN, op. cit., p. 57.
70
A presença do Bispo no jantar carregava um propósito: solicitar ajuda financeira
para mandar fazer a reforma do teto da mais bela igreja de sua diocese, a Igreja Nossa
Senhora da Esperança, erguida no século XVII. Faltavam-lhe cem contos para
completar o que fora já oferecido por certo número de fiéis. Esta esperança – alegoria
no texto que caracteriza a expectativa tanto do bispo quanto das pessoas que
necessitam de assistência, notadamente os pobres de Varzim – se converte em
realização fácil para o Bispo? Na esfera eclesial permaneciam compromissos
assumidos em relação ao poder político. Com isso, teoricamente o Bispo não teria
empecilhos ao se dirigir a um aliado.
A narradora realça que essa igreja havia sido mandada construir por um
antepassado do Dono da Casa. Em épocas antigas, havia o costume de homens
poderosos erguerem igrejas depois de terem alcançado graças, ao realizarem
promessas para a cura de doenças ou, ainda, se tinham a consciência pesada. Mas
o lamento do Bispo era que nos tempos modernos a esperança havia se tornado inútil,
tendo em vista que a doença já não igualava os pobres e os ricos, pois estes tinham
como “comprar” a saúde utilizando-se dos avanços da medicina, então capaz de
oferecer exames, diagnósticos, terapias e remédios eficazes.
A figura do Bispo comporta a ambiguidade de uma função que lhe confere
poder e respeito da comunidade, mas não poder aquisitivo para resolver um problema
como a reforma de uma igreja, situação que o constrange: “Pedir é uma coisa difícil.
E tanto mais difícil quanto mais aquele a quem se pede é rico e poderoso. Mas a quem
havia ele de pedir senão aos ricos e poderosos?”115.
A quantia a ser pedida era alta, o que aumentava o constrangimento. A
narrativa apresenta dois pontos paralelos que convergem para a solicitação e fazem
parte do jogo de conveniências nela implicada. Assim, não é somente a voz senhorial
que pesa seus argumentos e manifesta certo mal-estar por precisar fazer o pedido,
mas também, por sua vez, o Bispo. E se o valor era alto, tanto melhor precisava ser
sua estratégia para levar adiante o intento. Deveria o prelado recorrer a uma
linguagem e desempenho que fossem capazes de ultrapassar a contradição de ser o
seu fiador um homem virtuoso, cuja natureza, em consequência da própria condição
que dava origem a tal virtude, não era confiável. Veio-lhe à mente o alerta:

115 ANDRESEN, op. cit., p. 64.


71
Os homens virtuosos são sensatos e prudentes, e a generosidade, sendo a
virtude daqueles que dão aquilo que lhes faz falta, é em si mesma uma coisa
insensata, contrária aos hábitos dos homens prudentes. Generosos são só os
loucos ou os santos116.

No entanto, ainda que isso pesasse como dificuldade para a eficácia de seu
pedido, lembrou-se de que o Dono da Casa agia como os antigos fariseus, que tinham
associada à virtude uma grande vaidade, porque cultivavam o gosto de ter sua boa
fama permanente e divulgada a muitas pessoas. Logo pensou: “E sem dúvida o Dono
da Casa, tão cioso das tradições da sua família, não seria indiferente ao facto da Igreja
da Esperança ― em ruínas ― ter sido três séculos atrás construída por um
antepassado seu. Talvez a vaidade do Dono da Casa valesse ao tecto da igreja”117.
No conjunto que reúne tanto os argumentos articulados pelo Bispo como os do
Dono da Casa, evidencia-se a marca de sujeição às contingências do quadro do
regime ditatorial da época, marcado por sutilezas e zelo a fim de superar os riscos
iniciais que poderiam quebrar os acordos implícitos entre Estado e Igreja.
Os eventos desta primeira parte do conto transcorrem na sala de jantar, e o
acordo entre o Dono da Casa e o Bispo, fomentado pela retórica do Homem
Importantíssimo, é concluído na pequena sala, de onde o Bispo sai confuso e
consternado, como alguém que foi convencido por um advogado hábil, alguém que
“compra o que não quer comprar e vende o que não quer vender”118.
A narradora demonstra pesar pelo que aconteceu a ele ao elaborar a ideia de
que “Deus no Céu teve dó daquele Bispo porque ele estava só e perdido e não sabia
lutar contra os hábeis discursos dos donos do Mundo”119. Eis aí o ponto de virada que
abre a segunda parte, quando na cozinha da casa grande chega o homem pobre, às
dez horas da noite.

116ANDRESEN, op. cit., p. 66.


117ANDRESEN, op. cit., p. 66.
118 ANDRESEN, op. cit, p. 77.
119 ANDRESEN, op. cit, p. 77.
72
O segundo eixo narrativo: o jogo de poder e os elementos fantásticos

A presença do elemento fantástico no conto é outro aspecto nuclear a ser


interrogado. Duas são as personagens nas quais se concentram essas características
e os desdobramentos com elas imbricados depois que aparecem na Casa Grande: o
Homem Importantíssimo e o “homem” (o pobre que bate à porta e da cozinha pede
insistentemente que chamem o Dono da Casa para com ele falar).
De modo que uma chave de compreensão possível a essas duas personagens
é elas atuarem mediante identidades antagônicas (o mal e o bem, conforme o
aparecimento na sequência do texto), assumindo funções decisivas no jogo de
interesses que estão em combate. O Dono da Casa queria solicitar ao Bispo que
mudasse o padre de Varzim para outra freguesia, enquanto o Bispo intencionava pedir
ajuda para a reforma do teto de uma igreja do século XVII.
O Homem Importantíssimo, de sombra imensa conforme observa João, de
nove anos (e só a criança nota essa particularidade, a respeito da qual sente medo),
tem ao entrar na história um papel de grande efeito motivador aos propósitos do Dono
da Casa por meio de sua força retórica. Sua voz o tempo todo corrobora os objetivos
secretos que o Dono da Casa guarda em seus pensamentos e facilita o
encaminhamento do pedido senhorial. No diálogo, primeiramente de modo arguto e
malicioso, diz que no tempo que corre as pessoas se preocupam demais com a esfera
material da vida, fazendo uma divisão entre material e espiritual de modo a inverter a
concepção que cada uma carrega (seu foco é a solução dos problemas materiais).
Sua forma de se vestir, seu modo de falar e seus gestos de autoconfiança são
sedutores e o seu discurso aceito amplamente entre os convidados que, desde o
momento em que ele entra na casa, inclinam-se a admirá-lo, além de sentirem-se, de
algum modo, honrados pelo fato de o acaso trazer àquele jantar um expoente do alto
poder no país. Todos na sala sabem como agir e sentem-se condizentes com o que
se espera deles, naquele círculo de convidados em que não se faz contestação. O
único que vai argumentar é o Bispo, que diz ao Homem Importantíssimo que o preceito
da caridade deve ser respeitado e cumprido, razão que alega isso constar no
Evangelho.
O tom de seu discurso é facilmente associado à defesa do autoritarismo e da
conservação da ordem imposta, tal qual predominou durante o regime salazarista.

73
Assim, ele faz a mediação dos interesses entre o Bispo e o Dono da Casa utilizando
argumentos semelhantes ao que se encontra nas falas do líder máximo do Estado
Novo. Confiante e imponente, diz:

― Este tempo só põe a sua presença na solução dos problemas materiais.


Triste esperança. Vi hoje um espectáculo que me encheu de melancolia. Um
espectáculo simbólico. Passei perto duma igreja, que se chama Igreja de Nossa
Senhora da Esperança. É uma bela obra do século XVII. Mas está em ruínas.
Os católicos de agora discutem os problemas da habitação mas deixam cair
em ruínas a casa de Deus. Isto, Senhor Bispo, vi eu hoje na sua diocese.
O Bispo corou como um culpado e respondeu:
― É verdade, é verdade. A Igreja da Esperança está em ruínas. Acredite que
é uma das minhas grandes preocupações. Preciso de arranjar um remédio.
Mas para isso terei de contar com a ajuda daqueles que realmente me podem
ajudar.
― De facto, de facto ― disse o Homem Importante. ― Devemos a todo o custo
conservar a herança do passado. A desordem reina no Mundo. Mas aqui, no
nosso país, a ordem consegue ainda vencer a desordem120.

Outra forma de leitura dessas personagens fantásticas diz respeito ao que a


presença delas deflagra. Lembremos de Tzvetan Todorov. Ele se debruçou sobre
vários estudos sobre o gênero fantástico, incluindo formas similares como o
sobrenatural e o maravilhoso, tendo desenvolvido uma cuidadosa e pormenorizada
reflexão que publicou, em 1968, em Introdução à literatura fantástica, uma obra que
se tornou uma referência teórica acerca do tema. Em sua consideração, “a função
social e a função literária do sobrenatural são uma mesma coisa: em ambos os casos
se trata da transgressão de uma lei”121. Sua aparição em um relato objetiva
demonstrar uma ruptura em um sistema de normas. E o autor realça: “Podemos, por
fim, nos perguntar pela função do fantástico em si, quer dizer, não já pela do
acontecimento sobrenatural mas sim pela da reação que suscita”122.

120 ANDRESEN, op. cit., p. 72-3.


121 TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 86.
122 TODOROV, op, cit., p. 86.
74
Respondendo a essa questão, como reagiram o Dono da Casa e o Bispo, a
partir da entrada do Homem Importantíssimo e do “homem” no conto? Ambos foram
desafiados por esses agentes a uma escolha, pautada pela ética ou por sua ausência.
O Dono da Casa não mudou sua postura e manteve-se agarrado aos seus valores de
dominação e indiferença para com as exigências sociais. Tanto é que ele se sentiu
ofendido quando o Bispo voltou à sua casa e explicou que havia ocorrido um engano.
Vejamos:

― O padre de Varzim não foi só acusado. Foi também vendido. Vendido pelo
telhado de uma igreja. Da Igreja da Senhora da Esperança.
O Dono da Casa quase não acreditou nas palavras que ouvia. Pois ele não
tinha nenhuma intenção de se confessar. Era mesmo como se ele tivesse
perdido ou rejeitado há muito tempo a possibilidade de se reconhecer a si
próprio. Por isso respondeu seco, dominando sua cólera:
― Não compreendo porque é que disse vendido. Não houve nenhuma venda.
Dei uma esmola e fiz, de acordo com a minha consciência, um pedido.
― Mas eu ― respondeu o Bispo, confessando-se amargamente ― prometi
mudar para outro lugar o padre novo. Fiz uma promessa e recebi dinheiro. Não
posso cumprir a promessa e quero entregar a quem mo deu este dinheiro.
E a mão enrugada poisou os dois cheques em cima da mesa.
O Dono da Casa olhou o gesto com um misto de furor, espanto e indignação.
O Bispo, aquele prelado tão polido, estava a trair as regras do jogo. Às regras
da boa educação respondia com problemas de consciência. Acusava-o a ele,
Dono da Casa, de fazer negócios inconfessáveis e confusos. Acusava-o em
palavras claras, inconfundíveis. Nem ao menos se exprimia indirectamente e
por meio de alusões. E, no fundo da sua alma, o Dono da Casa teve grande
vontade de receber o dinheiro e de dar ao Bispo uma resposta crua. [...] Vossa
Excelência Reverendíssima está a fazer uma confusão lamentável. Dei uma
esmola e nunca torno a receber o que dou. Mas este assunto não pode ser
resolvido só por nós os dois. É preciso sabermos qual é a opinião do meu
hóspede.
O Dono da Casa tocou pelo criado e mandou-o chamar o Homem Importante.
Mas o criado António percorreu em vão a casa. O Homem Importante, o
hóspede imprevisto da noite, tinha desaparecido. Não estava nem no quarto
nem nas salas, nem nas escadas, nem nos corredores. O seu carro e o seu

75
chauffeur tinham-se volatizado, e até o sulco das rodas do seu carro se tinham
apagado no saibro molhado do pátio123.

Demonstrando arrependimento diante do que havia acontecido, pois tinha


participado de uma situação em que um homem justo fora julgado equivocadamente,
o Bispo desfez o combinado e entregou o cheque oferecido pelo Dono da Casa. O
Bispo disse que iria embora, já era tarde, e comentou que no dia seguinte todos teriam
condição de pensar melhor, tinha mesmo a certeza de que o hóspede iria aparecer ou
dar alguma notícia. Nesse momento acrescentou: “Deixo-lhe aqui os dois cheques.
Mas quando olharam para a mesa só viram um cheque. Era o do Dono da Casa. O
outro, o cheque do Homem Importante, tinha desaparecido”124.
Para a surpresa de ambos, o cheque dado pelo Homem Importantíssimo havia
realmente sumido e, mesmo diante do misterioso desaparecimento da figura que
chegara de modo imprevisto à sua casa, o Dono da Casa não ficou intrigado a ponto
de mudar sua opinião, seus valores estabelecidos sobre o dinheiro, a ordem, o poder
de sua liderança. Fato é que mandou, por fim, os criados continuarem a buscar o
cheque enquanto ele subiu para dormir em seu quarto, já no avançar da madrugada.
A tessitura do universo ficcional encontra-se em “O jantar do Bispo” com a de
outras motivações do contexto social e político que vigorou no estado de exceção do
salazarismo. Sophia em sua criação artística possibilita aos leitores vislumbrar esses
elos, tanto pela representação de conflitos presentes à época como pelas
personagens principais – e o modo como lhes nomeia mediante as funções que
exercem – e secundárias.
Sem dúvida, é um conto em que há uma tônica de denúncia e de crítica social,
ao mesmo tempo em que está subjacente a marca de seu compromisso pessoal
contra a ordem salazarista. A seleção das personagens que são representativas do
confronto ético, pela sua força de tentação e malícia (o Homem Importante), na figura
do Diabo, e daquele que vai intervir pelos pobres e pelo Abade de Varzim, o “homem”,
Deus corporificado enquanto defensor dos desvalidos.

123 ANDRESEN, op. cit., p. 98-100.


124 ANDRESEN, op. cit., p. 101.
76
A entrada dessas personagens fantásticas no conto, o Diabo e Deus, é a
garantia da dinamização dos conflitos e do desafio moral125 que é posto a cada um na
casa, durante o jantar e nos eventos dele decorrentes, e por fim os impulsionando a
uma tomada de posição. Mas não é só isso. É também, visto de um ângulo sobre as
experiências dos sujeitos sociais à época, a presença do caráter maniqueísta em
disputa. De um lado, incorporado nos discursos que se faziam por vozes do regime e
dele apoiadores e, de outro, por aquelas que lhe faziam oposição, em particular no
tocante à narrativa em estudo, que abarcaria o segmento de católicos progressistas.
Vale lembrar que embora o ideário das esquerdas fosse construído em defesa das
mobilizações e transformações sociais, ao mesmo tempo fundava-se habitualmente
num viés autoritário, em que não havia espaço para um mundo que não fosse
dominado pelo pensamento daqueles que supostamente conheciam a realidade, em
sua dimensão teórica e prática, e com isso estariam autorizados a iluminar e
demonstrar o caminho para os outros126.

João, o filho do Dono e da Dona da Casa

João logo sente antipatia pelo Homem Importantíssimo, quando este chega à
mansão, uma vez que fica desconfiado e inseguro quando repara na sua enorme
sombra no teto. Não estando ainda condicionado pelos padrões do ambiente social
que o cerca – similar ao olhar utilitarista empregado por seu pai, o Dono da Casa, nas
relações sociais que estabelece –, parece existir em João uma abertura para uma
expressão autêntica. Tanto que ele ao responder seu nome ao Homem

125Conforme Priscila Rodrigues, a “aparição de Deus neste conto é semelhante à utilização de Jesus
Cristo por Deus para uma missão na terra segundo a Bíblia cristã. Deus aparece em forma de um
homem pobre para tentar impedir que uma injustiça aconteça com o Padre de Varzim” (p. 100).
RODRIGUES, Priscila Gomes. Literatura e moral nos Contos exemplares de Sophia Andresen.
Dissertação de Mestrado em Letras, Universidade Federal do Amazonas, Ufam, 2014. Nesta
dissertação de mestrado, Priscila fez um levantamento bibliográfico com a finalidade de compreender
a relação da literatura com a moral desde tempos remotos até a atualidade, de modo a construir um
cenário teórico para a análise dos contos “O jantar do Bispo”, “A viagem” e “Retrato de Mónica”
presentes na obra Contos exemplares de Sophia de Mello Breyner Andresen.
126À luz da compreensão de Ruy Fausto, nesse ideário existia “um lugar cego” embutido no movimento
socialista que tornaria possível a emergência de uma construção social totalitária. Ver: FAUSTO, Ruy.
“Em torno da pré-história intelectual do totalitarismo igualitarista”. Lua Nova, São Paulo, n. 75, p. 143-
198, 2008.
77
Importantíssimo em seguida o questiona: “Por que é que a sua sombra é tão
grande?”127.
Questão ignorada pelo último convidado para o jantar, que apenas dá risada
por estar na presença de uma criança e dela ouve a frase: “Não gosto de si” 128. João
não faz questão, portanto, de ser simpático nem educado, não deseja cumprir uma
formalidade. Outra iniciativa de sua parte é querer conhecer o “homem” e procurar
ajudá-lo, indo, afinal, dar o recado ao Dono da Casa. Além disso, pergunta-lhe quando
voltará a encontrá-lo.
Interessante notar que apenas o Bispo e João, o filho do Dono da Casa,
interagem tanto com o Diabo quanto com o “homem” que representa a figura benéfica,
ou o filho de Deus, vindo em defesa do Abade de Varzim, entre as personagens
principais da narrativa. O Dono da Casa, por sua vez, conhece apenas o Homem
Importantíssimo e se recusa a ir falar com o “homem”, mesmo seu filho indo até ele
fazer a solicitação.
Tomando como base algumas considerações de Anderson Luís da Mata, creio
ser relevante ampliar a exploração do tema. Em um de seus artigos, ele se dedicou a
estudar a representação da infância na literatura brasileira contemporânea, tendo
como enfoque a criação de personagens de crianças e das experiências em que estão
envolvidas. A contundente ressalva lançada pelo estudioso é: “Se a infância é
caracterizada pela impossibilidade de falar, a fala infantil é, logo, uma fala impossível
– ou, quando imaginada, uma fala falsa”129.
De acordo com esse conceito de representação da infância na literatura,
destaca-se a relação, na qual está presente a ideia de uma negociação, fundada entre
a representação e seu referente. Nesse caso, o significante e seu significado
“negociariam o modo como o primeiro se expressa em nome do segundo”130. No conto

127 ANDRESEN, op. cit., p. 70.


128 ANDRESEN, op. cit., p. 70.
129MATA, Anderson Luís Nunes da. “Infância na literatura brasileira contemporânea: tema, conceito,
poética”. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 46, p. 13-20, jul./dez. 2015. (p. 17)
130MATA, Anderson Luís Nunes da. Op. cit, p. 17. Em continuação, o autor registra: “Ao mesmo tempo,
o significado pode ser afetado pelo modo como a significação se dá. Ou seja, a infância, como aparece
na literatura, pode alterar o modo como a infância é percebida fora dela – por um público de adultos ou
de crianças. Entrementes, a infância fora da literatura pode cobrar da sua representação literária a já
tradicional verossimilhança, mas traduzida em um gesto ético”.

78
de Sophia, de que maneira ela faz a “negociação” ao criar a personagem de João e
sua participação nos eventos ao longo da narrativa? Enquanto elabora, mediante a
personagem da criança (João), a infância como espaço de sabedoria, inocência e
esperança, a seu modo a narradora deixa entrever uma preocupação com o futuro de
João, uma vez que os valores que lhe são inculcados no âmbito de suas relações
familiares fixam-se, sobretudo, em aspectos da ordem material e das aparências. Em
consequência, facilmente sua predisposição às virtudes da generosidade, bondade e
não discriminação social poderá ser corrompida.
Desde que fossem seguidas as condições habituais e pragmáticas na
educação dada a João, é muito provável que o peso de tal influência e da projeção
social sobre ele acabaria por mitigar ou eliminar essas características. Assim, a
possível trajetória pautada num horizonte mais humanizado e solidário teria seus dias
contados para alcançar alguns comportamentos afins com a própria mentalidade do
regime salazarista, tanto quanto se revela na fala do Homem Importantíssimo que diz
ao garoto: “Ainda és muito novo. Quando cresceres talvez sejas meu amigo”131. De tal
modo que a expectativa gerada em torno de sua educação aponta para a direção de
que ele, com o tempo e para sua própria comodidade, irá se adaptar ao jogo do
autoritarismo, irá gostar de desfrutar de sua condição de classe e da possibilidade de
usufruí-la sistematicamente em diversas oportunidades.
A síntese da negociação levada a cabo pela autora está marcada pelo tom de
denúncia social valendo-se da construção de uma personagem infantil numa
modalidade idealizada, sem dúvida. Trata-se de um garoto de nove anos capaz de
perceber com sensibilidade e inteligência seu entorno e fazer escolhas éticas (João
declara que não gosta do Homem Importantíssimo e decide atender o pedido do
homem pobre).
A manifestação dessa personagem é uma interferência moral que ultrapassa
as redes preestabelecidas dos costumes na casa senhorial, deixando de lado as
hierarquias sociais e assumindo, de certa maneira, uma busca de preservar um
espaço peculiar no qual exista a possibilidade de um encontro em que as relações
humanas sejam positivamente transformadas e tudo seja construído de novo 132.

131 ANDRESEN, op. cit., p. 70.


132 Na arte poética de Sophia, segundo Fátima Freitas Morna, reconhecem-se elementos estruturantes
fundamentais – a exemplo de um universo mágico – que estão presentes, com maior ou menor
intensidade, em toda a obra da autora: “E, sobre todos os outros elementos [personagens; ações
79
Numa dimensão futura, o destino de João – personagem sobre a qual se
deposita a esperança para a quebra das premissas concordatárias entre Estado Novo
e Igreja, lançando a intenção de abraçar as pautas dos católicos progressistas – será
parte integrante de uma lógica dual entre os preceitos a seguir: ou afinados com a
ideologia do regime, de sua família e da instituição eclesiástica formal que sempre
pregou cada vez mais paciência, ou com a do homem pobre que lhe sugere aproximar-
se do povo de Varzim, se tivesse interesse de novamente encontrá-lo.

O terceiro eixo narrativo: quem trabalha e testemunha os acontecimentos?

Neste eixo, vamos nos deter em certas características das personagens


secundárias. São elas, a Dona da Casa; o primo Pedro; a prima Ana; a prima Mariana
e a prima Conceição; Gertrudes (a cozinheira); os criados António, Júlia e Mariana; e
a velha Joana.

A Dona da Casa, uma presença silenciosa

Nomeada pela função social que realiza, assim como outras personagens
nucleares no conto, o significado de que investe sua vida é o de acompanhar seu
marido. É mencionada pela primeira vez por estar representada nos retratos, no
ambiente novo rico que se contrapõe à atmosfera aristocrática (do primo Pedro): “E
sobretudo ― ai!, sobretudo ― os retratos do Dono e da Dona da Casa, rosados e
estilizados, sentados num cadeirão torcido, ao lado dum jarrão da China”133. Toda sua
presença gira em torno do Dono da Casa e das atividades que exerce no papel de

desenroladas; movimentações discursivas], potenciando-os ao garantir-lhes coesão enquanto universo


específico, um espaço determinado, caracterizando-o como o lugar dos ‘lugares mágicos’, aquele que
amplia o real até que outra dimensão surja nele sem todavia deixar de ser real, um espaço quotidiano,
simultaneamente essencial e contingente porque nele ocorre o encontro, a revelação, a tradução e
registo do fio que permite o acesso, de novo, ao início de tudo”. MORNA, Fátima Freitas. “Momentos
de silêncio no fundo do jardim: A efabulação como poética na obra de Sophia de Mello Breyner
Andresen”. In: TAVARES, Maria Andresen Sousa (org.). Sophia de Mello Breyner Andresen: Actas do
Colóquio Internacional. Porto: Porto Editora/Centro Nacional de Cultura/Fundação Calouste
Gulbenkian/BPI, 2013, p. 152-164. (p. 155)
133 ANDRESEN, op. cit., p. 59.

80
uma mulher submissa, obedecendo aos princípios da ordem patriarcal em que está
inserida. É ela que ao lado do marido espera para cumprimentar o Bispo na “grande
entrada vazia”.
Umas tantas vezes no curso dos episódios que sucedem no decurso do jantar,
sua postura é a de quem deixa em destaque a presença do marido, cumprindo uma
função, socialmente legitimada, que lhe é dirigida por força da dominação
masculina134.
Quando o Bispo, arrependido, retornou à mansão para desfazer a troca que
levou à injusta acusação de um homem, ela, ao ouvir o barulho tão tarde da noite no
pátio, curiosa, “espreitou entre as cortinas através do vidro”135 e espantada foi prevenir
o marido do que estava acontecendo. Cabe ainda detectar que seu gesto de espreitar
é o reforço de uma ideia de quem não atua no primeiro plano, mas sim numa instância
secundária, atrás das cortinas e, de alguma maneira, protegida pela esfera do
ambiente privado, observando a dinâmica da vida através da janela.
No modelo familiar em que está inserida, o peso dos constrangimentos recai
frequentemente sobre a mulher, por meio de uma gama de cobranças fundamentadas
na desigualdade e em discriminações cuja origem é quase invisível para ela. A Dona
da Casa não tem, por exemplo, uma fala autônoma na narrativa. É uma personagem
silenciada, por assim dizer, como era a maioria das mulheres no Portugal da época
em que supostamente se desenvolve a trama. Sua voz aparece somente quando,
depois de terem todos ficados atônitos (o Bispo, o Dono da Casa e a Dona da Casa,
o criado António, Júlia, a criada da sala, e Mariana, a criada dos quartos, reunidos

134 Nas décadas de 1950 e 60, Pierre Bourdieu realizou um estudo a respeito da sociedade Cabila,
constituída por um povo nômade do norte da África, cujo funcionamento se baseia no princípio
androcêntrico, em que masculino e feminino são tidos por opostos e assimétricos, ao mesmo tempo
em que o masculino é considerado hierarquicamente superior em relação ao feminino. Com base em
conceitos como habitus e violência simbólica, Pierre Bourdieu levou ao conhecimento do público como
esse modelo de sociedade é semelhante ao de outras culturas e legitima a dominação masculina. Veja-
se uma de suas conclusões: “As mulheres, pelo contrário, estando situadas do lado do úmido, do baixo,
do curvo e do contínuo, veem ser-lhes atribuídos todos os trabalhos domésticos, ou seja, privados e
escondidos, ou até mesmo invisíveis e vergonhosos, como o cuidado das crianças e dos animais, bem
como todos os trabalhos exteriores que lhes são destinados pela razão mítica, isto é, os que levam a
lidar com a água, a erva, o verde (como arrancar as ervas daninhas ou fazer a jardinagem), com o leite,
com a madeira e, sobretudo, os mais sujos, os mais monótonos e mais humildes. Pelo fato de o mundo
limitado em que elas estão confinadas, o espaço do vilarejo, a casa, a linguagem, os utensílios,
guardarem os mesmos apelos à ordem silenciosa, as mulheres não podem senão tornar-se o que elas
são segundo a razão mítica, confirmando assim, e antes de mais nada, a seus próprios olhos, que elas
estão naturalmente destinadas ao baixo, ao torto, ao pequeno, ao mesquinho, ao fútil etc.”. (BORDIEU,
Pierre. A dominação masculina. 12 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 41)
135 ANDRESEN, op. cit., p. 96.
81
pelo espanto) pelo sumiço do Homem Importantíssimo e comentado quão estranho
era o evento, ela e os presentes uma vez mais transtornados reparam que havia
sumido o cheque dado pelo Diabo. Começam a fazer a busca ao cheque, e eis sua
fala ao criado: “― Vê debaixo da mesa ― disse a Dona da Casa ao criado”136.

O primo Pedro e as indagações sobre a aristocracia

Por meio dessa personagem, a narradora traz à tona a tensão do que restava
da aristocracia portuguesa, aquela que obteve suas riquezas e glórias pelas
explorações, guerras e conquistas exercidas em nome do país, cujas raízes estavam
irremediavelmente no passado. A aristocracia que, conforme a narrativa, não foi
comprada, mas, por fim, se vendeu aos burgueses donos de fortunas, e naqueles
tempos presentes quedava inerte, sem ação. Que conceitos tinha o Dono da Casa
acerca dessas figuras?

O Dono da Casa não se preocupava com estes problemas, que aliás não lhe diziam
respeito: para ele, aqueles seus parentes eram apenas falhados decorativos,
simpáticos e bem educados. Tinha muito maior consideração por si próprio e pelos
seus, gente capaz de conservar e aumentar a sua fortuna e a sua posição.
De facto o avô do Dono da Casa casara com a filha dum negreiro e o seu pai
com a filha dum agiota. Daí viera um grande acréscimo da riqueza da família, riqueza
que agora permitia ao Dono da Casa manter estreitas relações com financeiros
dominantes e fazer parte de vários conselhos de administração. Enquanto isto se
passava, o avô do primo Pedro tinha casado, escandalizando a província, com uma
actriz da época romântica e o seu pai casara com uma parente tão arruinada como
ele. Quanto ao primo Pedro, nem tinha casado. Alto e magro, caminhava sozinho entre
paisagens e penumbras.
Mas apesar de tudo isto o Dono da Casa fazia grande gosto nesse parentesco que
provava a sua boa genealogia. Ter o primo Pedro a jantar dava-lhe sempre a sensação
de ter um dos personagens da galeria dos retratos sentado à sua mesa.
Porém hoje não o convidara. Pois o primo Pedro tinha opiniões subversivas: defendia
a democracia, a liberdade de imprensa, o direito à greve e costumava citar o catecismo

136 ANDRESEN, op. cit., p. 101.

82
dizendo que não pagar o justo salário a quem trabalha é um pecado que brada aos
céus. Isto levava o Dono da Casa a suspeitar que ele fosse comunista. E também o
levava a compreender que não convinha convidá-lo para o jantar do Bispo: de facto
era evidente que o primo Pedro tomaria a defesa do Padre de Varzim137.

Sophia observa a decadência do universo burguês ao descrever a tradicional


casa do proprietário rural, constituída de linhas limpas e de beleza, mas que foi
corrompida pelos luxos ostensivos, pelo novo-riquismo dos móveis e da decoração
que não combinam com a nudez da cal e da pedra. O leitor tem notícia de que o avô
de Pedro, seu pai e até ele próprio haviam vendido, pouco a pouco, seus campos,
casas e chácaras ao avô e ao pai do Dono da Casa. Mas não apenas: “E também os
quadros ali expostos tinham mudado de proprietário juntamente com as casas e com
as quintas. Os quadros, porém, além de mudarem de proprietário, tinham mudado
também de descendência”138.
A sagacidade do Dono da Casa fazia-o valer-se da riqueza obtida, sem, no
entanto, afastar totalmente o convívio com o primo Pedro, cujo figurino e
comportamento eram logo percebidos como de integrantes da antiga aristocracia.
Pedro trazia as características de ser austero e seco, como os retratos de seus
ancestrais, pois ele “era o mais legítimo representante da nobreza na província e o
mais arruinado”139.
Ao passo que o Dono da Casa tem na obesidade, na avidez e na soberba
marcas que o configuram como ser social, além de encontrarmos no texto a origem
de sua rede de contatos com poderosos financeiros e de sua riqueza, originária da
ruína de seus antigos parentes aristocratas, numa prática afim com a de seu pai, que
se casou com a filha de um agiota, e de seu avô, que teve como esposa a filha de um
mercador de escravos.
Pedro tem sensibilidade, inteligência e espírito de justiça, mas
inexplicavelmente nada faz da vida. Ao que a autora acrescenta:

137 ANDRESEN, op. cit., p. 62-3.


138 ANDRESEN, op. cit., p. 62.
139 ANDRESEN, op. cit., p. 62.
83
Seria por culpa dele ou seria por culpa do círculo que o rodeava? Seria porque
a imagem do Dono da Casa, as imagens dos numerosos donos das casas, o
faziam recuar com náusea em frente de todas as vitórias? Ou seria ele um
espírito tecido de desilusão, descrença e ironia? Ou seria que a sua rejeição
significava uma vontade de despojamento, uma renúncia quase metafísica?140.

Sophia prefere deixar as indagações em aberto, não querendo dar a respeito


da personagem Pedro nenhuma sugestão em especial para o leitor decifrar o enigma.
De todo o modo, é pela ausência de ações no mundo, por seu distanciamento da vida,
que sua presença ganha destaque, marcando sua distinção dos demais,
particularmente do Dono da Casa, um verdadeiro contraponto à figura do primo
aristocrático.
Talvez ao incluir a personagem do primo Pedro no conto, Sophia, também ela
nascida numa família aristocrática, tenha demonstrado seu próprio apreço por
algumas figuras ligadas à aristocracia, que mantinham um estilo de vida em que
predominava uma grande valorização da cultura e do conhecimento. Em outras
palavras, que prezavam os bens mais por sua natureza simbólica do que pelo seu
valor de mercado, consideração exatamente oposta aos dos costumes burgueses141.
Em extensão a tais ideias, arriscaríamos dizer que a autora talvez tenha
intencionado deixar nas entrelinhas que, em sua visão, havia em Portugal aristocratas
(muitos permaneceram defensores do regime monárquico) que eram uma gente
sensível, inteligente e culta – alguns possivelmente como o primo Pedro que “defendia
a democracia, a liberdade de imprensa, o direito à greve e costumava citar o catecismo

140 ANDRESEN, op. cit., p. 61-2.


141 Pierre Bourdieu, ao abordar o tema cita, inicialmente, Weber: “(...) poderíamos dizer, ao preço de
uma simplificação excessiva, que as classes se diferenciam segundo sua relação com a produção e
com a aquisição de bens, e os grupos de status, ao contrário, segundo os princípios de seu consumo
de bens, consumo que se cristaliza em tipos específicos de estilo de vida”. Assim, “as diferenças
propriamente econômicas são duplicadas pelas distinções simbólicas na maneira de usufruir estes
bens, ou melhor, através do consumo, e mais, através do consumo simbólico (ou ostentatório) que
transmuta os bens em signos, as diferenças de fato em distinções significantes, ou, para falar como os
linguistas, em ‘valores’, privilegiando a maneira, a forma da ação ou do objeto em detrimento de sua
função. Em consequência, os traços distintivos mais prestigiosos são aqueles que simbolizam mais
claramente a posição diferencial dos agentes na estrutura social – por exemplo, a roupa, a linguagem
ou a pronúncia, e sobretudo ‘as maneiras’, o bom gosto e a cultura – pois aparecem como propriedades
essenciais da pessoa, como um ser irredutível ao ter, enfim como uma natureza, mas que é
paradoxalmente uma natureza cultivada, uma cultura tornada natureza, uma graça e um dom. O que
está em jogo no jogo da divulgação e da distinção é, como se percebe, a excelência humana, aquilo
que toda sociedade reconhece no homem cultivado”. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas
simbólicas. 7 ed. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 16.
84
dizendo que não pagar o justo salário a quem trabalha é um pecado que brada aos
céus”142 – que, apesar desses atributos, por algum motivo, fosse por não terem mais
a fortuna do passado, fosse por conta de ingredientes de uma crise existencial ou por
ambos, já não eram ativos nem eficazes no mundo moderno, consolidado por um ritmo
de inovações constantes que não dava lugar às tradições em que no passado essa
classe havia se sustentado. No universo autoritário do Estado Novo, Salazar por
intermédio da difusão de seu pensamento defendia que os portugueses deviam
conservar o ideal de um país pequeno (ainda que sob o imperativo de se isolar da
esfera europeia), de tradição católica e desenvolvimento agrário. Assim, conforme
sublinha Francisco Carlos P. Martinho, “a vocação portuguesa para a modernidade
deveria ser, então, construída a partir de valores predominantemente ‘endógenos’”143.
De tal forma que o “Antigo Regime, realizador desta ‘vocação’, tornava-se o horizonte
utópico do Estado Novo. Ser moderno era voltar no tempo. Parte expressiva do
pensamento autoritário português, portanto, tinha um caráter conservador e
nostálgico”144.
Balzac representou a angústia vivenciada por famílias aristocráticas em O
gabinete das antiguidades, publicado em 1838, um de seus romances que integram
A comédia humana. Ricardo Luiz de Souza fez um meticuloso estudo dessa obra, no
qual sublinha: “Os jovens herdeiros das famílias aristocráticas descritas por Balzac –
prensados entre a crescente irrelevância de seus nomes e das tradições a eles ligadas
e o domínio da burguesia – não se mostram à altura de seu passado nem conseguem
se adaptar aos novos tempos”145. É como se esses jovens, no entendimento de

142 ANDRESEN, op. cit., p. 63.


143 MARTINHO, Francisco Carlos P. “O pensamento autoritário no Estado Novo português: algumas
interpretações”. Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, 2007, p.16.
144 MARTINHO, op. cit., p. 16. O historiador, em continuidade ao que apresenta, conclui que na
constituição do Estado Novo fazia-se a defesa do coletivo e uma oposição radical “ao individualismo
liberal herdeiro do Iluminismo e da Revolução Francesa” (p.16).
145 SOUZA. Ricardo Luiz de. Balzac e o sono dos patifes. Porto Alegre: EDIPUCRS; Curitiba:
Champagnat, 2012, p. 88. Ricardo Souza refere que o jovem herdeiro que leva sua família à falência
em O gabinete das antiguidades é o representante mais característico dessa galeria de personagens.
Nessa obra, Balzac tenta explicar a derrocada da aristocracia: “a razão desse contraste entre os filhos
e os pais vem, talvez, de que os herdeiros já não se sentem grandes coisas, como seus antepassados,
e se dispensam dos encargos do poder, por se considerarem apenas a sombra daqueles. Os pais ainda
têm a polidez inerente à sua grandeza desaparecida, como esses cumes ainda dourados pelo sol,
quando tudo em torno já está mergulhado em trevas”. BALZAC, Honoré de. Modesta Mignon. Rio de
Janeiro: Globo, 1989, p. 639. (A comédia humana, v. 1)

85
Balzac, estivessem sob o efeito de intenso tédio e paralisia, a ponto de se
considerarem a sombra de seus antepassados.

A prima Ana e a prima Mariana

A passagem em que se apresentam essas personagens é brevíssima e não


inclui qualquer particularidade delas, mas a admiração que expressam ao Homem
Importantíssimo quando ele chega ao jantar. Ambas concordam ser ele um homem
muito simpático. Isso revela uma dupla faceta: elas fazem parte do consenso no salão
dos que aprovam a conduta e a retórica do homem prestigiado por um grande número
de pessoas e, ao mesmo tempo, em conformidade com o comportamento das
mulheres naquele cenário social, creditam ao agente masculino o lugar de poder e de
liderança.

A prima Conceição e o favorecimento da ordem

Por meio de um tom irônico, a narradora apresenta a prima Conceição, uma


mulher afortunada, presidente da obra dos tricôs que se dedica a fazer caridades.
Sendo rica e viúva, imagina-se que assumiu um pouco de autonomia para estar à
frente de atividades que a destacam na localidade onde vive, sem ter de responder à
autoridade de um marido que possivelmente, em um ambiente patriarcal como o
tecido no conto, lhe cercearia os passos.
Embora Sophia tenha criado com muita riqueza as nuanças das personagens,
fica evidente ao leitor o fato de ela renegar o perfil do que Conceição representa –
com uma porção de exagero, quase podemos ouvir ao fundo uma gargalhada de
alívio, como a significar quanto a autora a considera superficial e hipócrita. A prima
Conceição ajuda os pobres vendo-os como seres passivos e dependentes, que
precisam de compaixão e de doações para sobreviver, de tal modo que ela até se
envaidece do trabalho que efetiva.
Ao mesmo tempo, mediante esse desempenho Conceição estabelece a
distância entre ela e eles, os pobres, estimulando a diferença social ao demonstrar
que cada um deve reconhecer seu lugar. Uma situação que, em sua perspectiva de
classe, não deve ser alterada para o bom funcionamento da ordem nas instituições e

86
no país. Não é em vão no conto se enfatizar que “o seu verdadeiro Evangelho era o
Diário de Notícias”146, um jornal que, no longo curso do Estado Novo, teve sua imagem
ligada ao regime e publicou as “célebres entrevistas feitas por António Ferro ao ditador
português, Oliveira Salazar”147, conforme aponta Pedro Marques Gomes. O discurso
do Homem Importantíssimo é classista e associa-se à defesa da ordem. Ele não
somente serve perfeitamente como o suporte argumentativo de que o Dono da Casa
necessitava para fazer o pedido ao Bispo, mas atende, ainda, à expectativa de
Conceição se ver prestigiada e por isso ela fica tão admirada com a presença do
convidado sedutor e com suas maneiras.
No entanto, são outros os pressupostos em que Sophia acredita e aos quais
faz sua adesão política, como nos deixa perceber por sua simpatia à personagem do
Abade de Varzim: em sua luta e apoio aos pobres, acredita na liberdade de serem
sujeitos de sua história, apropriando-se, portanto, do papel de serem os
transformadores de suas vidas, não receptáculos passivos da condição de
subserviência e de exploração em que se veem enredados.
Cabe identificar que há outro viés que clareia o posicionamento de Conceição,
que se sente muito confortável em presidir a sociedade das mulheres que fazem tricô,
organizar festas de caridade e participar de diversas atividades promovidas por
comissões de beneficência. De modo implícito, as posições oferecidas às mulheres
no sistema patriarcal, cuja divisão de trabalho define as posições a serem ocupadas
por homens e aquelas a serem desenvolvidas por mulheres, são inculcadas pela
família e pela ordem social.
Desse modo, ressalta Pierre Bourdieu, as mulheres têm nessas funções – em
que se exige submissão e dá-se a ideia de que elas estarão seguras – o caminho
aberto, no qual podem se realizar e até mesmo se expandir e ver-se “no mesmo ato,
recompensadas, contribuindo assim para reforçar a dicotomia sexual fundamental”148.
Não é sem razão que se dissemina a lógica que direciona o que cabe às mulheres, e
mesmo o ênfase na vocação, cujo efeito, segundo Bourdieu, é “produzir tais encontros
harmoniosos entre as disposições e as posições, encontros que fazem com que as

146 ANDRESEN, op. cit., p.80


GOMES, Pedro Marques. “A Imprensa na Revolução portuguesa: o caso do Diário de Notícias (1974-
147

1975)”. Estudos em Jornalismo e Mídia, Florianópolis, v. 9, n. 2, jul./dez. 2012, p. 370.


148 BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. 12 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p.72-3.
87
vítimas da dominação simbólica possam cumprir com felicidade (no duplo sentido do
termo) as tarefas subordinadas ou subalternas que lhes são atribuídas por suas
virtudes de submissão, de gentileza, de docilidade, de devotamento e de
abnegação”149.

Os criados e a defesa da submissão

Com exceção da velha Joana, de que maneira os criados da casa grande –


Gertrudes (a cozinheira), António, Júlia e Mariana –comportam-se na presença do
homem pobre, personagem que lhes solicita numerosas vezes que chamem o Dono
da Casa?
Todos negam-se a fazê-lo. Não deixam, no entanto, nessa oportunidade de
exercer, a seu modo, o poder que está a seu alcance – instaurado num círculo da
exclusão social e em oposição ao prestígio dos convidados que participam do jantar,
mas mesmo assim uma força que está sempre presente nas relações humanas. Como
definiu Michel Foucault, trata-se das relações de poder, uma “relação em que cada
um procura dirigir a conduta do outro”150.
A cozinheira Gertrudes aponta ao mendigo o lugar onde sentar-se, manda que
não suje a cozinha com sua roupa molhada e cheia de lama e diz-lhe que a esmola
só é dada no sábado. De maneira ríspida declara: “Hoje não é sábado e além de não
ser sábado é tarde. E além de ser tarde temos visita”151. Mais adiante no correr da

149 Idem, ibidem, p. 73. “As paixões do habitus dominado (do ponto de vista do gênero, da etnia, da
cultura ou da língua), relação social somatizada, lei social convertida em lei incorporada, não são das
que se podem sustar com um simples esforço de vontade, alicerçado em uma tomada de consciência
libertadora. Se é totalmente ilusório crer que a violência simbólica pode ser vencida apenas com as
armas da consciência e da vontade, é porque os efeitos e as condições de sua eficácia estão
duradouramente inscritos no mais íntimo dos corpos sob a forma de predisposições (aptidões,
inclinações). É o que se vê, sobretudo, no caso das relações de parentesco e de todas as relações
concebidas segundo este modelo, no qual essas tendências permanentes do corpo socializado se
expressam e se vivenciam dentro da lógica do sentimento (amor filial, fraterno etc.), ou do dever;
sentimento e dever que, confundidos muitas vezes na experiência do respeito e do devotamento afetivo,
podem sobreviver durante muito tempo depois de desaparecidas suas condições sociais de produção.
(BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. 12 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 51)
150Para ele, trata-se de “relações que se podem encontrar em diferentes níveis, sobre diferentes
formas; essas relações de poder são móveis, ou seja, podem se modificar, não são dadas de uma vez
por todas”. FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Org. Manoel Barros da Motta. Trad. Elisa
Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 277. (Ditos e
escritos, V).
151 ANDRESEN, op. cit., p. 81.
88
insistência do homem, Gertrudes esbraveja: “As coisas importantes são para as
pessoas importantes. Tenha juízo, homem! Você quer que o Dono da Casa venha
aqui agora para falar consigo? Nem pense nisso!”152.
O criado António faz-lhe esta pergunta: “Homem, você já viu um senhor deixar
as visitas na sala para vir à cozinha falar com um mendigo?”153. Depois o aconselha
a ter paciência e a não esperar o que não é possível acontecer: “O mundo é como é.
Temos que ter paciência”154. João, o filho do Dono da Casa, pergunta, em dado
momento, ao criado por que motivo não chamaram o pai dele para falar com o homem
pobre. Eis a resposta dele, como um ensinamento ao garoto: “Porque tudo tem o seu
lugar e a sua ocasião”155.
Júlia, a criada de sala, faz este comentário: “Tenho ordem de nunca ir dar
recados à sala quando há visitas. Cada coisa tem o seu lugar”. A criada de quarto,
que não é nomeada, emenda: “Sou criada de quartos, não tenho ordem de ir à sala
dar recados. Isso não é comigo”156.
Na altura em que a velha Joana conforta o homem pobre dizendo-lhe que se
estivesse com saúde iria à sala chamar o Dono da Casa, Gertrudes atalha: “Se você
lá fosse ninguém fazia caso”157. E voltando-se para o homem, o desencoraja de vez:
“Escusa de pedir mais. Já viu que ninguém o atende”158.
Influenciados pelos laços de fidelidade ao trabalho que lhes garante o sustento
e, ao mesmo tempo, aos princípios de obediência que se assentam, em grande
medida, na reprodução dos mecanismos sociais que observam em seu entorno, tanto
a dependência quanto a precariedade das funções que realizam na casa grande são
elementos constituintes de sua posição social. Nesse sentido, reiteram as próprias
desigualdades de que são vítimas quando se recusam, por exemplo, a atender ao
pedido do homem pobre que deseja falar com o patrão.

152 ANDRESEN, op. cit., p. 81-2.


153 ANDRESEN, op. cit., p. 83.
154 ANDRESEN, op. cit., p. 83.
155 ANDRESEN, op. cit., p. 89.
156 ANDRESEN, op. cit., p. 85.
157 ANDRESEN, op. cit., p. 85.
158 ANDRESEN, op. cit., p. 85.
89
Com maior ênfase, é Gertrudes quem exerce esse papel, em consequência de
seu poder de influência sobre os outros criados e sobre os pobres a quem deve dar a
sopa, o vinho e a moeda. Compete a ela, unicamente, realizar tal serviço, o que
representa uma excelente oportunidade para marcar sua diferença e seu menosprezo
pelos desvalidos, em parte escamoteados pelo objetivo de manter a ordem e a limpeza
na cozinha. Entre as especialidades de Gertrudes, conforme podemos identificar nos
eventos descritos, está a de ser muito zelosa da hierarquia e, ainda, de exercitar sua
autoridade com o sabor de triunfo.
Agem dessa maneira para responder às expectativas convencionais que lhes
garantem seu lugar, ou mesmo em certa medida por temor de serem repreendidos,
não intencionando romper as normas. Outra hipótese a ser levantada é porque talvez
não conheçam um modo diferente de proceder e, sob o nosso olhar, num certo esforço
em explorar a busca de tal resposta, possamos encontrar nos seus costumes e
mentalidade os traços de crenças e de religiosidade cristã e católica, por meio da qual
se projeta uma transcendência aos pobres e humildes. Assim, se a posição social dos
criados é de subordinação, numa atividade permanente em que precisam servir aos
patrões, nessa outra dimensão transcendente, sairiam recompensados, vitoriosos.
Em relação ao serviço doméstico, as condições de vida e trabalho das mulheres
eram ainda mais precárias do que as enfrentadas por homens no mesmo contexto.
Fosse pelo conceito amplo baseado no sistema patriarcal que a tinha por um ser que
devia ser tutelado, fosse porque em Portugal a figura da criada de servir era, até
década de 1960, considerada “prolongamento da família do ponto de vista social e
econômico”159, estando ela sujeita a diversas formas de vigilância e de submissão às
ordens do patronato.

159BRASÃO, Inês. “Serviço doméstico em Portugal: lugares de origem, êxodo e itinerários urbanos
(anos quarenta e sessenta)”. In: DOMINGOS, Nuno; PEREIRA, Victor. O Estado Novo em questão.
História e sociedade. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 81-110. (p.107) O estudo de Inês Brasão, voltado à
compreensão da condição servil doméstica em Portugal (entre 1940 e 1960), teve como parte
constitutiva a análise de dezoito biografias aprofundadas para reconstituir a trajetória de vida de
mulheres que trabalharam como “criadas de servir”. Eis um trecho que julgamos importante destacar
por se aproximar das condições apresentadas no conto de Sophia: “Nascidas entre a década de trinta
e o início da década de cinquenta, recordam já a impressão de que as suas aldeias iam sendo
progressivamente voltadas ao abandono, situação que imitaram, partindo para o litoral. Nas aldeias
dominavam as situações de extrema pobreza em fundo contraste com a riqueza de um ou dois
senhores da terra”. Idem, ibidem, p. 91.
90
Joana, a velha sábia

A velha Joana é uma personagem de uma peculiaridade intrigante, que muito


se assemelha a imagens de mulheres sábias pertencentes ao universo mítico. Ela se
mantinha sentada na cozinha perto do lume, usava um xale preto nas costas e “seus
olhos eram dum azul sem cor, como se o tempo os tivesse desbotado”160, informa-nos
a narradora. Conforme as palavras de Adrienne Morelato, a figura da velha Joana
“parece a de uma bruxa, uma antiga profetiza que enxerga além, vê e ouve tudo, sabe
de tudo”161.
Qual terá sido a intenção de Sophia ao criar Joana? Em nosso entendimento,
acreditamos que seja a de exaltar a existência de algumas pessoas sem
conhecimento formal, que não leem nem escrevem, como seria o caso dessa
personagem, cuja vida se passa num local distante de um centro urbano, e mesmo
não tendo acesso ao ensino escolar são capazes de ter grande discernimento e
lucidez. São, assim, portadoras de uma sensibilidade e ampla capacidade de
compreensão, conseguindo fazer uma leitura do mundo com base no que
provavelmente lhes transmite a tradição oral. Assim é que a velha Joana pôde
enxergar o que os outros criados não viram a partir da chegada do homem à cozinha.
A ligação de Joana aos princípios cristãos é autêntica, pois, entre outros gestos,
atuou desinteressadamente e em favor do próximo. Dos tempos antigos, ela trouxe a
canção Magnífica, o Cântico de Maria (Lucas, cap. I, versículos 46-56), que cantou
com voz trêmula até a parte em que se faz o elogio da misericórdia divina a se
derramar sobre a mulher bem-aventurada, expressão de seu lugar simbólico enquanto
fiel e de seu agradecimento pelo fato de estar ao lado do “homem”, o representante
ilustre, filho de Deus. O intuito de Joana ao entoar o canto foi o de abrandar a
tempestade, porém ela se esqueceu da parte seguinte. Nesse momento, o homem
pobre continuou o canto, na parte complementar que exprime o poder divino em sua
faceta rigorosa de punição e justiça: “Ele manifestou o poder do seu braço e dissipou
os que no fundo do seu coração formavam altivos pensamentos. Depôs do trono os

160 ANDRESEN, op. cit, 80.


161MORELATO, Adrienne Kátia Savazoni. A transfiguração do corpo e do mito no desenho da escrita
feminina através de Contos exemplares de Sophia de Mello Breyner Andresen. Dissertação de
Mestrado em Letras, Unesp, Câmpus de Araraquara, 2007, p. 100.
91
poderosos e elevou os humildes. Encheu de bens os que tinham fome e despediu
vazios os que eram ricos”162.
Sabendo tirar lições do que acontece no seu entorno para orientar sua própria
conduta, a velha Joana foi a única entre os criados que não discriminou o homem. Ao
contrário, reconheceu a essência de sua natureza e a relevância de seu propósito, de
modo que lhe disse que se pudesse iria à sala intervir por ele, transmitindo o seu
pedido ao Dono da Casa: “Ai dos pobres! Há sempre uma razão para lhes dizerem
que não. Os pobres têm fome e frio, mas sobretudo estão sós. Se eu fosse nova, ia lá
acima pedir por ti. Mas estou velha e já não posso subir a escada”163.
Quando o homem pobre foi embora, a cozinheira Gertrudes exclamou não ter
ele sequer tocado nos alimentos que ela havia deixado na mesa. Ao que a velha Joana
relembrou a história do início do mundo, inscrita na Bíblia, sobre os filhos de Adão e
Eva, citando que Deus não recebeu as ofertas de Caim, que havia matado seu irmão,
Abel.
Esta é a altura em que se marca o ponto de virada para a segunda parte do
conto, construção muito bem tecida em que a narradora sintetiza pela voz de Joana o
que significam os episódios já concluídos do jogo de interesses no jantar: Caim matou
o seu irmão Abel, ou seja, o Bispo havia negociado por um teto de igreja a honra do
Abade de Varzim.
Tal manifestação é uma ruptura com a ética; nos termos da simbologia bíblica
há, nesta passagem, o paralelismo com a ideia de que Deus não aceitou as ofertas
de Caim, este que havia cometido um homicídio e, portanto, tem suas ofertas
recusadas – elas têm o peso da mácula e são uma ofensa à grandeza divina. E logo
na abertura da parte terceira do conto, o Bispo seguirá na estrada sentindo a alma
pesada e pensando no Abade de Varzim, com quem topará e terá a chance de
proceder ao arrependimento.

162 ANDRESEN, op. cit, 87-8.


163 ANDRESEN, op. cit, 85.
92
Pontos de conclusão

A dicotomia entre riqueza e pobreza é desenvolvida ao longo da narrativa. Entre


o mandatário da fazenda e o Bispo interpõe-se um jogo de poder. Na primeira
perspectiva, dá-se um jogo de conveniências, de trocas. Depois do jantar, quando o
Bispo volta pela estrada e encontra o homem, esse encontro repercute em seus
valores mais caros. Tomado por arrependimento e um sentimento de autocrítica,
decide retornar à casa grande para desfazer o erro de ter julgado um homem inocente
(um homem que foi vendido por um teto de uma igreja). Nesse momento, em que se
constitui um posicionamento ético, ocorre o rompimento do jogo de poder.
A tomada de posição do Dono da Casa torna evidente: suas virtudes são
aparentes e voltam-se à manutenção de prestígio; seu propósito é dominar os outros
e ter reconhecimento na vida pública. Tirada essa primeira camada, sua postura ética
é rasa, funciona num plano superficial. Se há da parte do leitor alguma expectativa,
ela é frustrada. Tal posicionamento firma-se, no entanto, no encontro com o âmbito
político no Portugal tomado pela ditadura, que estimula e legitima esses modos de
operação, os quais eram fundamentados pelo próprio discurso oficial no slogan “Deus,
Pátria e Família” – oportuno evocar a percepção de Cíntia Ribeiro, que menciona que
esse lema poderia ser “subsumido à palavra latina pater”164.
Nesse contexto do confronto entre o Dono da Casa e o Bispo, revelam-se as
contradições sociais representadas no tortuoso embate em que essas duas
personagens se envolvem. Elas são igualmente representativas do que significaram
experiências comuns, vividas sob a atmosfera de pesada tensão vigente no curso das
práticas do regime autoritário português. Mais especificamente, essa escolha encontra
ressonância com as análises e procedimentos de um grupo de católicos em Portugal

164Precisamente, a autora assinala que pater relaciona-se deste modo aos três elementos do slogan:
“Deus, na tradição judaico-cristã dominante na Europa ocidental é comumente designado, numa
perspectiva marcadamente sexista que não está em discussão aqui, como o Pai Supremo. Quanto à
família, o vínculo é igualmente claro, uma vez que o pai é um membro da família e, mais importante,
num modelo familiar patriarcal grandemente influenciado e determinado pela mesma tradição judaico-
cristã que representa Deus como uma figura masculina, ele é o chefe de família. A palavra portuguesa
pátria, por sua vez, apesar da obviedade de ter sua origem histórica na palavra latina pater, pode
levantar um ponto mais interessante a ser considerado”. RIBEIRO, Cíntia França. “Língua, paternalismo
e autoritarismo em Dinossauro Excelentíssimo, de José Cardoso Pires. Revele: Revista Virtual dos
Estudantes de Letras, n. 2, jan. 2011, p. 1.

93
que, no percurso de suas filiações religiosas, passaram a desaprovar o regime,
insistindo não ser possível a questão política estar dissociada da questão social e
reivindicando novas formas de manifestação e intervenção na realidade. Recusaram-
se, portanto, a ficar calados e levaram adiante diversas formas de luta e
empenhamento firmados nos princípios defendidos no Concílio Vaticano II.
Um dos casos mais acentuados que vieram a público e sobre o qual houve
intensa divulgação foi levada a cabo por Dom António Ferreira Gomes, o Bispo do
Porto. Pensamos que não tenha sido em vão que a autora, no processo de elaboração
literária, concebeu as personagens e a trama com base nas próprias circunstâncias e
nos conflitos de seu entorno próximo, matéria que lhe propiciou uma visão singular, a
exemplo de contar com a amizade que compartilhava com o Bispo do Porto.
Ao mesmo tempo, podemos alinhavar mais algumas considerações. No conto
de Sophia, dois traços peculiares se reúnem e compõem sua tessitura. Um é o da
criação estética, constituída pelo universo cristão, pela moral e pelo gênero fantástico.
Outro que está imbricado nesse anterior é uma dimensão do testemunho, por assim
dizer, porque ressalta que Sophia é uma leitora do mundo à sua volta, ela o
testemunha e está intrigada e perplexa perante o que observa, em particular diante
de injustiças e de falta de liberdade, justificadas num sistema que defende a ordem
social de modo dogmático e autoritário, seja sob o comando do governo, seja sob o
da Igreja.
Nesse quadro de contingências, Sophia, ao desenvolver na trama os conflitos
do plano principal, que envolvem os eventos do salão onde os poderosos decidem
sobre o destino de outros, mas também trazendo à cena personagens pobres,
mulheres e criados, registrou em um largo espectro problemas centrais da sociedade
portuguesa da época, fundada numa ordem patriarcal em que pesavam a vigilância
dos costumes em função do autoritarismo e da censura, bem como de rígidos padrões
da moral sexual dominante – toda uma série de fatores que, por intermédio de uma
exploração minuciosa, se externam no conto a pontuar como se dava a reprodução
das desigualdades sociais no regime ditatorial, e contra a qual as oposições lutavam
para dela se emancipar.
No prisma de uma dimensão maior, explorando uma questão ainda relativa ao
nosso tema, cabe-nos mencionar que, em relação às mulheres e a outros grupos
historicamente excluídos, conforme enfatiza Margarida Calafate Ribeiro, apesar do

94
silenciamento de suas vozes e suas formas de expressão, devemos nos lembrar que
sempre houve reação, ou seja, eles sempre falaram, mas não eram ouvidos 165.
Portanto, as mulheres nunca deixaram de falar, de reivindicar, apesar “dos muitos
silêncios que as cobriam e cobrem e de uma surdez quase ontológica que parece
mover o mundo de feição patriarcal que nos domina”166.
Refletir sobre essas peculiaridades é ainda frisar que a velha Joana e João
(filho do Dono da Casa) atuam de forma positiva e acolhem as intenções do mendigo,
se considerarmos as forças sociais que estão em conflito durante o jantar. Por meio
dessas personagens, cujos atributos são exemplares e ao mesmo tempo despojados
de ambição, Sophia apresenta ao leitor uma perspectiva redentora: a possibilidade de
esperança em um mundo que não se perca na corrupção e seja fundado no equilíbrio
e na justiça.
Outra perspectiva trazida pelo âmbito do fantástico são as marcas físicas no
cenário, ao término do desenrolar do acordo. As do Homem Importante
desapareceram por completo, volatizaram-se, incluindo o seu motorista e “até o sulco
das rodas do seu carro se tinham apagado no saibro molhado do pátio” 167. Na
conversa final entre os criados, na cozinha, a respeito do sumiço do ilustre convidado
que aparecera de última hora, a velha Joana diz que é provável mesmo que ele fosse
o Diabo, ao que atalha a cozinheira que a situação daqueles dias era da ordem de
“salve-se quem puder”168, uma vez que já não devia existir nem Deus nem Diabo para
ajudar ou enganar os homens, só havia pobres e ricos.
Nesse sentido, estariam os pobres sozinhos, tendo de contar com as ações
humanas – numa convergência ao plano político que abarca essas questões, significa
dizer que já não tinham como acreditar em apoios oriundos do Estado Novo nem na
assistência da Igreja. Note-se que o conto encerra com a fala dos criados, são eles
que apresentam sua versão conclusiva sobre os episódios. Sophia procura assim
demonstrar que seus enunciados e observações são válidos e contemplam a

165 RIBEIRO, Margarida Calafate. “Nas malhas do Império: literatura, mulheres e exclusão”. Via
Atlântica, São Paulo, n. 12, 2007, p. 18. [p. 13-32]. A menção da autora se refere inicialmente à
conferência “A África e as Américas: fluxos e refluxos” de Laura Padilha, proferida no âmbito do
Programa de Doutoramento Pós-Colonialismos e Cidadania Global, do Centro de Estudos Sociais da
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em 21 de junho de 2007.
166 RIBEIRO, idem, p. 18.
167 ANDRESEN, op. cit., p. 103.
168 ANDRESEN, op. cit., p. 103.
95
realidade vivida, autorizando-os a se pronunciar de modo legítimo a respeito de
problemas que os atingem cotidianamente. E na última frase temos a informação de
que foi Gertrudes quem pegou de um pano e “limpou no chão de tijolo as pegadas do
mendigo”169.
A percepção que aflora desse parágrafo final: o fato de as marcas do Diabo
sumirem representa a experiência ilusória, aquela que é manifestada valendo-se de
artimanhas e de aliados não confiáveis com o fim de atingir um propósito – ainda que,
de início, essa estratégia enganadora possa parecer um caminho a ser trilhado, tão
sedutora é sua força. Já os passos da personagem o homem pobre, Deus, ficaram
impressos no chão, marca de que seus propósitos eram relevantes e sólidos: uma
presença confiável porque contrária às injustiças, ao abuso do poder e firmada no
diálogo e na ética. Essas singularidades são, em nosso entendimento, também uma
espécie de recado aos católicos de maneira geral, o público a quem talvez
primeiramente Sophia tenha destinado o conto, chamando-os a uma reflexão e
mudança de postura.
Ao final da leitura de “O jantar do bispo”, notamos que se gestou a criação de
um universo que apela ao engajamento. Notadamente a presença do fantástico
mediante as figuras do Diabo e de Deus encarnam, a seu modo, este propósito: E,
agora, leitor, qual sua opinião? Que atitude tomaria se estivesse numa situação
semelhante à que narrei? Estaria ao lado do Bispo, ao lado do Dono da Casa? O que
você faria?
Há, portanto, um sentimento inspirador neste trabalho literário que atravessa a
temporalidade que o engendrou e mantém sua força no presente, vindo a habitar um
gesto que é um convite. Sophia convida, por fim, a um comprometimento com a
realidade em sua esfera política e social.

169 ANDRESEN, op. cit., p. 103.


96
Capítulo III
Sophia na militância antifascista: mobilizações, correspondências

Somente as coisas tocadas


Pelo amor das outras têm voz
(Fiama Hasse P. Brandão)

Portugal parecia-me cada vez mais uma casa esconsa, sem livros nem
música nem outra cor que a das andorinhas nos beirais, chilreando
ensurdecedoramente, boiando no vazio do céu.
(Inês Pedrosa, Nas tuas mãos)

97
Debates e abaixo-assinados como estratégias de oposição

Em Portugal, aqueles que pesquisam as relações de oposição do progressismo


católico contra o Estado Novo vão certamente, em algum momento, encontrar um livro
editado pelo Padre José da Felicidade Alves, também ele militante antifascista ao
longo de sua vida e um impulsionador – com o apoio de Nuno Teotónio Pereira e do
padre Abílio Tavares Cardoso – da publicação dos Cadernos GEDOC, tendo sido o
pároco perseguido e preso pela PIDE em 1970170. O título do livro é “Católicos e
política: De Humberto Delgado a Marcello Caetano”. Essa obra é de suma importância
em nossa pesquisa porque reúne documentos que expressam a manifestação de
católicos opositores ao regime ditatorial, do período relativo à campanha de Humberto
Delgado à Presidência até a subida de Marcello Caetano ao poder, chegando a
abordagem textual ao ano de 1969. A ela, portanto, recorremos para conferir de quais
discussões, então registradas por Felicidade Alves, Sophia participou.
Na Apresentação, registra-se que a recolha dos documentos inscritos no livro
são uma contribuição futura para se fazer a história crítica da vida política portuguesa
– ao que contará a relevância dos católicos na cena política tanto quanto a posição
dos que integravam a hierarquia da Igreja, em sua posição negativa ou positiva no
funcionamento do sistema. Esses são documentos guardados que passaram pelas
condições precárias de clandestinidade e, comenta o padre Felicidade que muitos,
irremediavelmente, foram perdidos.
A publicação teve por objetivo dar início ao levantamento de documentação
relativa aos católicos de oposição, sem, contudo, ter a preocupação de analisar
criticamente o conteúdo nem se deter nas coordenadas sociopolíticas de sua
produção. Outra finalidade sublinhada pelo padre José da Felicidade diz respeito às
lições que os sujeitos sociais envolvidos aprenderam: o estilo de participação consistiu
em os católicos aparecerem em grupo enquanto católicos, notadamente criando eixos
de discussão e tomando iniciativas por meio de abaixo-assinados e documentos;

170 José da Felicidade Alves (1925-1998) foi um dos padres que lutou contra o dogma do celibato. Ao
embrenhar-se no combate ao fascismo e afastar-se das normas da Igreja, conheceu uma companheira,
Elisete, por quem se apaixonou. Ambos assumiram por anos o compromisso do matrimônio. Depois da
morte de Felicidade, a viúva Elisete Alves doou o espólio dele à Fundação Mário Soares. O acervo
abrange extensa documentação relativa ao campo pessoal e profissional de Felicidade Alves, cobrindo
o período de sua infância aos últimos anos de vida.

98
posicionaram-se em combate ao regime sem a preocupação do rótulo de serem
católicos; em tal luta não compuseram um bloco monolítico, mas embrenharam-se em
frentes políticas diversas; tomaram posições de radicalismo socialista inspirados nas
inscrições revolucionárias presentes no Antigo e no Novo Testamento. No livro, após
a Apresentação do padre José da Felicidade, seguem-se catorze
textos/documentos171. Em função de nossa abordagem, vamos trabalhar com alguns
desses documentos, especialmente aqueles relacionados aos debates em que Sophia
participou.
O primeiro texto inserido no livro de Felicidade Alves é o um protesto contra a
parcialidade do Jornal Novidades a favor de Américo Tomás, o candidato do regime,
no curso da campanha eleitoral à Presidência da República, título é “Ao jornal
Novidades: desgosto pela sua atuação”, de 19 de maio de 1958. Nela os católicos
reclamam de o jornal ter faltado com seu compromisso que seria o de assumir uma
ação esclarecedora de princípios e de problemas a fim de orientar a consciência
política dos católicos portugueses, e não assumindo nenhuma posição partidária. O
repúdio àquela atuação é incisiva e, portanto, solicitam no abaixo-assinado a isenção
nas posições tomadas pelo periódico e a sua devida publicação. Subscrevem o
documento 28 personalidades, a exemplo de João Bénard da Costa, António Alçada
Baptista, Adérito Sedas Nunes. Quatro são mulheres: Helena Sacadura Cabral Portas,
Ana Maria Toscano, Maria Joana Bénard da Costa Veloso e Manuela Silva. Não
constam os nomes de Sophia de Mello Breyner Andresen nem de Francisco de Sousa
Tavares.
Em relação aos nomes desses que protestam não podemos, indubitavelmente,
indiciar uma aproximação estreita com o casal Sophia e Francisco, mas sabemos que
frequentam círculos comuns, como é o caso de discussões de cunho cultural e político
efetivadas no Centro Nacional de Cultura (CNC). De acordo com uma publicação
elaborada pela própria entidade, na campanha presidencial de 1958 “Francisco Lino

171São estes os documentos apresentados no livro: “Ao jornal Novidades: desgosto pela sua actuação”;
“Consideração dum católico sobre o período eleitoral”; “Carta do Bispo do Porto a Salazar”; “As relações
entre a Igreja e o Estado, e a liberdade dos católicos”; “Carta a Salazar sobre os serviços de repressão
do regime”; “Quando os direitos da pessoa humana estão em jogo”; “Cristianismo e política nacional:
manifesto ao país”; “Sobre o apoio da Igreja à política ultramarina”; “A posição de alguns católicos”;
“Desafronta: protesto de um grupo de católicos”; “Carta aos bispos da Conferência Episcopal de
Moçambique”; “Porquê o Dia Mundial da Paz?”; “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar!”; “A
propósito da ida de Paulo VI a Bombaim”.
99
Neto, Alçada Baptista, Sousa Tavares, Gonçalo Ribeiro Telles e Domingos Megre, são
apoiantes de Humberto Delgado”172.
Francisco de Sousa Tavares como sabemos era marido, nessa época, de
Sophia, que igualmente atuou no CNC. Se aderiu à campanha de Delgado por que
não foi citado o nome dela? Provavelmente, em razão de os códigos patriarcais de
época terem sido suficientemente estabelecidos e, dessa forma, essa era a prática
corrente. A peculiaridade a ser destacada, no caso, é o traço de androcentrismo que
não se divulga na publicação, de resto comum à percepção de temas e eventos
históricos vistos sob essa perspectiva, em que o desempenho na esfera pública
deveria ser exercido majoritariamente por homens.
No livro editado pelo Padre Felicidade Alves, inclui-se igualmente a carta do
Bispo do Porto a Salazar (13 de julho de 1958), a respeito da qual já tratamos no
capítulo anterior. De fato, ela se tornou o emblema dos católicos progressistas,
tornando-se o marco dos que entre esse grupo faziam oposição ao salazarismo, num
raio de atuação que só veio a crescer.
As quatro perguntas formuladas por D. António Ferreira Gomes na missiva a
Salazar são categóricas e, a seu modo, definem as preocupações centrais dos limites
que poderiam caber aos católicos. Com a primeira, ele questiona se o Estado tem
qualquer objeção de que a Igreja ensine sua doutrina social, seja pelas organizações
e serviços da ação Católica e da Imprensa. Com a segunda, formula se há obstáculo
à livre formação cívico-política dos católicos. Pela terceira pergunta deseja saber se o
Estado discorda de que os católicos definam e propaguem seus programas políticos;
e com a quarta indaga se há rejeição à organização dos católicos que tenham
interesse em participar com fins eleitorais nas eleições legislativas.

172CENTRO Nacional de Cultura: 60 anos de uma vida cheia. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 2008,
p. 28. É aliás Francisco Lino Neto quem sozinho assina “Considerações dum católico sobre o período
eleitoral”, de junho de 1958, em que registra que os católicos devem invocar esta qualidade para
expressar suas opiniões políticas refletindo as raízes cristãs que devem orientar suas vidas. Aponta
que se, de início, a maioria dos católicos deu apoio ao Estado Novo, diante das tendências autoritárias
tomadas pelo regime no percurso de anos tornou-se impossível para os católicos conscientes aceitar
o cerceamento das liberdades, conforme aconteceu com o jornal “O trabalhador”, os congressos da
Juventude Operária Católica e a Liga dos Homens Católicos, além de outras organizações. Prossegue
com diversas outras considerações que provocaram o afastamento das mentes católicas mais lúcidas
dos ditames do Estado Novo, afirma serem distorcidas as justificativas do regime sobre o perigo de
disseminação do comunismo entre os católicos e, por fim, propõe que se realize um esforço de
aprofundamento doutrinário por parte daqueles católicos que percebem o perigo grave que corre o
futuro do catolicismo em Portugal depois daquela última campanha eleitoral. Ver: CATÓLICOS e
política: De Humberto Delgado a Marcello Caetano. 2. ed. Lisboa: Tipografia Leandro, s/d., p. 17-30.
100
O cardeal-patriarca Cerejeira, desde o final da Segunda Guerra Mundial, fazia
questão de se defender publicamente das acusações que lhe eram dirigidas em
publicações católicas, divulgadas até mesmo em francês. Em sua perspectiva, “o
regime vigente cumpria os requisitos de uma autoridade legítima: mantinha a ordem
pública, respeitava as liberdades da Igreja Católica e não ofendia a moral católica”173.
Não era, certamente, a constatação de um núcleo da dissidência católica que
ia se fortalecendo, e no ano de 1959 manifestou-se ainda pela carta “As relações entre
a Igreja e o Estado e a liberdade dos católicos” (em fevereiro). Trata-se de um texto
que consistiu em uma resposta ao discurso de Salazar no qual proferiu que, caso
todos os católicos não se unissem estaria rompida a “frente nacional” (Estado e Igreja)
em apoio ao regime, haveria graves implicações no que respeitasse à Concordata.
É pertinente recordarmos que essa associação de forças havia sido criada na
década de 1930 e formalizada mediante a Concordata de 1940, a qual baseava-se
em três preceitos, a saber o pressuposto de que o Estado Novo é a institucionalização
da nação portuguesa; à Igreja católica ficou estabelecido o desempenho na esfera
espiritual e social, sem poder atuar no domínio temporal; e a identidade da nação
portuguesa constituída como cristã e católica174.
O direito de intervirem na política estava assim sintetizado naquele documento
de 1959 assinado pelos católicos:

O Cristianismo não é uma doutrina política, mas, porque engloba uma


concepção integral do homem, fixa regras de moral e de direito natural que
condicionam e, em grande parte, encaminham o comportamento político dos
cristãos. [...]. Por isso, não existe uma doutrina política católica rígida: os
católicos poderão escolher dentro de uma gama variada de posições que o
estudo pessoal dos problemas e a sua consciência lhes aconselhem, mas
nunca poderão adotar qualquer das posições extremistas que rejeite
abertamente um ou outro dos termos do dilema. Concretamente, um regime

173ALMEIDA, João Miguel. A oposição católica ao Estado Novo, 1958-1974. Lisboa: Edições Nelson
de Matos, 2008, p. 101.
174 Idem, ibidem, p. 290.
101
que, em palavras ou atos, sacrifique, em elevado grau, a justiça e a liberdade
é necessariamente anticristão175.

São duas as mulheres que a firmaram, Sophia de Mello Breyner Andresen e


Maria Manuela Brito Bio. Subscrevem a carta 41 homens, perfazendo entre padres os
nomes de Abel Varzim, Adriano Botelho, António Jorge Martins, César Teixeira da
Fonte, João Perestrelo de Vasconcelos, José da Costa Pio. Daqueles ligados ao
Centro Nacional de Cultura ou que participavam de debates nessa instituição,
destacam-se alguns leigos, como Francisco de Sousa Tavares (o marido de Sophia),
Alberto Vaz da Silva, António Alçada Baptista, Francisco Lino Neto, Gonçalo Ribeiro
Teles, João Bénard da Costa, Manuel Serra, Nuno Teotónio Pereira.
Enquanto defensores das posições assumidas pelo Bispo do Porto, da
autonomia que entendem deveria ser atribuída à Ação Católica para trabalhar no
contexto dos eventos sociais, após as considerações de caráter doutrinário na carta,
os signatários afirmam-se católicos e com diversas opções políticas, por fim
declarando dez itens a título de conclusão.
Assim, realçam que com aquelas intenções expostas se submetem à superior
autoridade da Igreja e prestam-se a acatar alguma correção ou aditamento das
autoridades eclesiásticas competentes; rejeitam que duvidem ou questionem a
autenticidade do seu catolicismo por quem não detenha mandato eclesiástico.
Sentem-se no dever, baseados no espírito cristão, de intervir na vida política por
serem católicos conscientes e livres que defendem a paz e prosperidade da pátria;
não pretendem solidarizar a Igreja nem os seus organismos oficiais com as posições
políticas que tomarem.
Na sétima premissa, reforçam se alinharem no mesmo enquadramento
ideológico da Igreja ao referirem que não se inspiram em doutrinas progressistas.
Evocar tal condenação que a instituição eclesiástica havia feito sobre o comunismo é,
portanto, não somente relembrar que na ocorrência do XX Congresso do Partido
Comunista soviético, em 1956, chegaram ao público informações acerca dos crimes
promovidos a mando de Stálin (a criação dos gulags), mas também assinalar que

175 ALVES, José da Felicidade. Católicos e política. De Humberto Delgado a Marcello Caetano.
Responsável da edição e Apresentação: Padre José da Felicidade Alves. Lisboa: Tipografia Leandro,
s/d., p. 81-83.
102
reclamavam seus direitos com base no humanismo cristão, pela defesa da liberdade
e dignidade humanas. Paralelamente, no décimo item, repisam uma ideia em que
muitos desses católicos, desde o início, insistiram: embora compusessem uma frente
de vários participantes católicos, não faziam a defesa da unidade de suas posições
políticas nem tinham interesse em constituir um partido confessional.
O primado humanitário, a busca pela liberdade e dignidade são fatores que
constituem o pensamento de Sophia e o vemos expressos em diversas de suas
poesias, discursos e contos. Por aproximação ao que se alinha a essa mesma
natureza ética, selecionamos da autora um trecho de “Praia”, uma das narrativas que
integram Contos exemplares:

Um homem revoltado, mesmo ingloriamente, nunca está completamente


vencido. Mas a resignação passiva, a resignação por endurecimento
progressivo do ser, é o falhar completo e sem remédio. Mas os revoltados,
mesmo aqueles a quem tudo – a luz do candeeiro e a luz da primavera – dói
como uma faca, aqueles que se cortam no ar e nos seus próprios gestos, são
a honra da condição humana. Eles são aqueles que não aceitaram a
imperfeição. E por isso a sua alma é como um grande deserto sem sombra e
sem frescura onde o fogo arde sem se consumir176.

Nessa perspectiva, Sophia situa o homem – note-se o termo “homem” àquela


época empregado para abarcar a generalidade de mulheres e homens – qualificando
positivamente a revolta que carrega, tendo em vista ser esta uma das formas de
escapar à alienação. O que implica, entre outras facetas, o não-compromisso com o
imobilismo, porque a resignação passiva representa o fracasso, o esgotamento das
possibilidades de percepção, coragem e transformação de si que, ao mesmo tempo,
pode estender-se à mudança no âmbito social. Mesmo padecendo por não aceitar a
imperfeição e ter a alma inquieta, é a revolta nascida em uma pessoa, sob a
observação da narradora, aquela dimensão humana capaz de promover lucidez e
movimentar uma ação articuladora de sentidos diante da existência. Os revoltados

176 ANDRESEN, Sophia de Mello B. “Praia”. In: Contos exemplares. 21 ed. Porto: Figueirinhas, 1989,
p. 136-37.

103
são, por consequência, aqueles que se alçam a um patamar de dignidade, eles são a
“honra da condição humana”.
É ainda em 1959, de primeiro de março, a “Carta a Salazar sobre os serviços
de repressão do regime”. Nela os católicos signatários após relatarem uma longa série
de violências, arbitrariedades, crimes e emprego de tortura por parte do regime, tanto
em Portugal quanto nas colônias (ou territórios anexados) – intensificados a partir da
campanha eleitoral do ano anterior –, em nome dos princípios cristãos e pelo seu
dever de consciência exigem do presidente do Conselho “um esclarecimento amplo,
total e definitivo às questões que levantaram”177.
No conjunto de argumentos e itens de protestos, mencionam revistas francesas
que denunciaram em suas matérias as formas repressivas, perseguição, dizimação e
tortura, demonstrando o alcance desses gravíssimos problemas em nível
internacional. Ao longo da narração, em diversos momentos invocam os valores
cristãos que necessariamente têm de repudiar atos dessa natureza, estendendo o
apelo igualmente como uma resposta que deveria ser dada à opinião pública em geral
e não somente àquele grupo de pertença católica.
Novamente, temos os nomes de Sophia de Mello Breyner Andresen e Maria
Manuela Brito Bio – as únicas mulheres signatárias. Entre os homens que são padres
e subscreveram a petição: Abel Varzim, Adriano Botelho, António Jorge Martins,
César Teixeira da Fonte, João Perestrelo de Vasconcelos, José da Costa Pio.
Associados ao Centro Nacional de Cultura ou que ali reuniam-se para os debates,
seguem-se as mesmas assinaturas. São elas: Francisco de Sousa Tavares (o marido
de Sophia), Alberto Vaz da Silva, António Alçada Baptista, Francisco Lino Neto,
Gonçalo Ribeiro Teles, João Bénard da Costa, Manuel Serra, Nuno Teotónio Pereira
– e uma nova, a de Victor Manuel Santana Carlos Wengorovius.

177ALVES, José da Felicidade. Católicos e política, op. cit., p. 111. Ao final da carta, assim interpelam
a Salazar: “Fazem-no [os que subscrevem a missiva] sabendo que V. Exa. como político deverá um dia
responder perante a História; e, sobretudo, como homem e cristão, terá de ser julgado por Deus. Se
outros católicos, e também V. Exa., julgarem que os signatários abusam dos seus direitos de simples
católicos, resta-lhes a esperança de terem procedido de acordo com as exigências da sua consciência,
da mesma forma que eventualmente V. Exa. o fará também. E só Deus julgará a todos. Os signatários
esperam de V. Exa. os referidos esclarecimentos e providências, para tranquilidade das suas
consciências de cidadãos cristãos e satisfação da opinião pública”. Idem, p. 111-12.

104
Na entrada da década de 1960, alguns acontecimentos colocam o regime
ditatorial em xeque, expondo sua vulnerabilidade: o assalto ao paquete Santa Maria,
conduzido por um alto militar do Exército, Henrique Galvão; a Operação Vagô, em
novembro de 1961, contando com articulação de Palma Inácio e o mesmo Galvão, em
que foram distribuídos 100 mil panfletos antifascistas lançados de um avião em
algumas cidades portuguesas; o assalto ao quartel de Beja, na passagem do ano de
1961 para 1962. Além disso, em 1961 houve os primeiros confrontos da guerra
colonial, que iria se arrastar por longo tempo – e pouco depois, Goa é invadida pela
União Indiana.
Um segmento da população que viria a manifestar vigorosamente seu
descontentamento são os universitários. Um grupo mais expressivo formou a União
Nacional dos Estudantes e dois dias antes do Dia do Estudante, em março de 1961,
organizou em Coimbra um encontro nacional. Nesse ambiente agitado explode, em
abril, o escândalo da publicação da “Carta a uma jovem portuguesa”, de autoria de
Marinha de Campos, no Via Latina, semanário da Associação Acadêmica de Coimbra,
texto que se tornou o emblema contra os rigores de comportamento que separavam
mulheres e homens no convívio e, ao mesmo tempo, argumentava contra o moralismo
ultrapassado das normas salazaristas.
Este é o motor inicial dos conflitos que depois se estendeu a Lisboa e ao Porto,
promovendo os universitários o Luto Acadêmico, uma denominação que tinha por
finalidade eufemizar a greve às aulas, movimento que enfrentou uma escalada
repressiva, somando formas de perseguição, prisão e tortura a vários estudantes. Um
número significativo sofreu o impedimento de completar a formação universitária. As
mudanças profundas no meio estudantil dão-se a partir de 1962, quando “as
reivindicações puramente académicas começaram gradualmente a ser
acompanhadas por assuntos mais propriamente políticos, os quais questionavam
mais directamente a natureza autoritária do regime”178, assinala Guya Accornero.

178ACCORNERO, Guya. “Efervescência estudantil: Estudantes, acção contenciosa e processo político


no final do Estado Novo (1956-1974)”. Tese de Doutoramento em Sociologia Histórica. Lisboa: Instituto
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2009, p. 68. A mesma autora apresenta em um artigo
um resumo acerca da crise de 1962: Ela foi “o ápice de um período muito crítico para o regime, durante
o qual os mais diferentes setores sociais – desde os mais habituais, como os operários, até os mais
novos, como os católicos e os quadros intermédios do Exército – mostraram a sua desafeição para
com Salazar. A sobrevivência da ditadura depois desta conjuntura crítica não era de todo segura. O fim
desta crise foi acompanhado por uma reestruturação parcial do sistema político, com a eliminação da
eleição direta do presidente da República, por um recrudescimento da repressão contra a oposição
política e pelo início da Guerra Colonial”. ACCORNERO, Guya. “Redes e repertório da resistência
105
Solidarizados em apoio aos estudantes, setenta escritores subscrevem uma carta
repudiando a vaga repressiva. Entre os nomes, constam o de Sophia de Mello
Breyner, Luísa Dacosta, Maria Teresa Horta, Ilse Losa, Augusto Abelaira, Aquilino
Ribeiro, Armando Baptista-Bastos, Fernando Namora, José Cardoso Pires,
Saramago, Urbano Tavares Rodrigues, Francisco de Sousa Tavares179.
O Concílio Vaticano II foi de grande impacto na vida dos portugueses católicos
e acendeu as luzes da esperança para o grupo amparado nas teses de reflexão sobre
um tempo de interação mais democrático e pluralista. Iniciada a primeira sessão em
11 de outubro de 1962, em meio a algumas resistências, convocada por João XXIII
(ele veio a falecer um ano depois) e tendo a continuidade sob a liderança de seu
sucessor, o Papa Paulo VI, o Concílio (concluído em 1965) representou o augúrio de
um tempo renovado em que se abriu a consciência dos fieis para uma série de
problemas instalados no país havia longo tempo e que recrudescera com a atmosfera
asfixiante e o sistema repressivo do regime.
Naquela época, uma das principais dificuldades que afetava a população em
em terras lusas era a guerra colonial, que fora iniciada em Angola180. Em torno dela,
as mulheres – mães, irmãs, mulheres namoradas, filhas, amigas, às vezes até

estudantil durante o Estado Novo português”. In: MARCO, Jorge; SILVEIRA, Helder Gordim; MANSAN,
Jaime Valim. Violência e sociedade em ditaduras ibero-americanas no século XX: Argentina, Brasil,
Espanha e Portugal. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015, p. 155. [p. 141-162]

179
Ver TAVARES, Manuela. Feminismos: Percursos e desafios (1947-2007). Alfragide: Texto Editores,
2010.
180 A deflagração da guerra de independência de Angola, em 1961, alterou frontalmente a unidade do
império português. Fernando T. Pimenta apresenta em seu artigo o relato: “Na noite de 3 para 4 de
fevereiro de 1961, um grupo de nacionalistas angolanos realizou uma operação suicida com vista à
libertação de alguns companheiros encarcerados nas prisões de Luanda. Ulteriormente, o MPLA
reclamou a paternidade política do evento. Poucas semanas depois, em 15 de março de 1961, teve
início o levantamento armado das populações do Norte de Angola. Esse levantamento foi preparado
por elementos da UPA (União dos Povos de Angola) provenientes do Congo-Leopoldeville e
caracterizado pelo massacre de um grande número de colonos brancos, mas também de mestiços e
trabalhadores africanos, por parte da UPA. A rebelião alastrou rapidamente por quase todo o Noroeste
de Angola e semeou o pânico entre as autoridades portuguesas que, inicialmente, se mostraram
impotentes para contê-la e proteger a vida e os bens da população. Ora, a incapacidade da
administração colonial em assegurar a ordem criou um perigoso vazio de autoridade. Em Luanda vivia-
se um ambiente de medo, exacerbado pelos contínuos assassinatos nos bairros pobres da periferia (os
muceques). Aqui eram sobretudo negros e mestiços que morriam às mãos de brancos de extrema
direita que, enquadrados por homens da PIDE - a polícia política portuguesa - , pretendiam incutir o
terror entre a população africana”. PIMENTA, Fernando Tavares. “O Estado Novo e a reforma do
Estado colonial em Angola: o comportamento político das elites brancas (1961-1962)”, História (São
Paulo), v. 33, n. 2, jul./dez. 2014, p. 252. [p. 250-272]

106
desconhecidas – viveram o conflito bélico como se estivessem presentes, ainda que
não tivessem empregado armas não deixaram de estar, sem dúvida, em “combate”,
sustentando formas de apoio emocional inestimáveis a eles. Sofia Branco realça o
papel desempenhado por essas mulheres:

Rezaram e fizeram promessas pelos homens mobilizados, escrevem-lhes


centenas de aerogramas, adiando o amor, às vezes sem volta, tornaram-se
madrinhas de guerra sem sequer os conhecerem. Foram para o território
desconhecido de África, que amaram ou odiaram, ou resignaram-se a esperar
por eles, muitas vezes já com filhos nos braços. Voaram para os resgatar do
mato, onde chegaram mesmo a morrer por eles, e organizaram-se, com maior
ou menor cunho ideológico, para lhes aliviar a saudade, enquanto apoiavam as
suas famílias no que fosse preciso. Arriscaram por eles, protegendo-lhes a
retaguarda, contestando a guerra, desertando sem saberem quando voltariam
ao seu país, mergulhando na clandestinidade e aderindo à luta armada, sujeitas
às sevícias da polícia política e a perderem a juventude nas masmorras da
prisão. Trataram deles quando voltaram, mutiliados e traumatizados, e
habituaram-se a amar homens diferentes daqueles que haviam conhecido
antes da guerra. Aguentaram verdadeiros infernos, porque o casamento era
para a vida181.

Em outubro de 1964, tendo à frente a liderança de Mário Soares e próxima da


Internacional Socialista, foi criada a Ação Socialista Portuguesa – em sua origem
esteve em 1955 a formação da Resistência Republicana –, então num quadro de
oposição “enriquecida com os contributos dos católicos e da nova geração forjada nas
contestações académicas de 1962”182, que vai incorporar em seus debates o tema da
guerra colonial.

181
BRANCO, Sofia. As mulheres e a guerra colonial: Mães, filhas, mulheres e namoradas. A retaguarda
dos homens na frente de batalha. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2015, p. 21.
182 CASTAÑO, David. Mário Soares e a Revolução. Alfragide: Dom Quixote, 2012, p. 106.

107
É justamente em torno desse assunto, principalmente ele entre outros motes,
que se promoveu a contestação de 25 de novembro de 1965 e foi redigido o
documento “Manifesto dos 101” ou “A posição de alguns católicos”. Nele os
signatários declaravam o apoio ao Manifesto da Oposição Democrática (que circulou
no mês anterior), no qual se fazia uma severa crítica ao processo eleitoral que se
desenrolaria até a conclusão das eleições de novembro para a Assembleia Nacional
naquele ano. Igualmente, no conjunto de denúncias os católicos incluíam a defesa da
autodeterminação do Ultramar. De fato, embora a ideologia oficial quisesse sustentar
que as colônias eram “províncias do ultramar”, a realidade indubitável era de uma
relação exploratória intensa dos colonizadores dirigida aos colonizados, efetivando-se
um altíssimo grau de sofrimento para aquelas populações subordinadas. Conforme
Lincoln Secco, aqueles territórios eram ocupados e mantidos sob a tutela da
metrópole predominantemente pelo uso da violência183.
No prisma da memória de Guilherme d´Oliveira Martins, em relação à luta
anticolonial na década de 1960 a posição tomada pelo Partido Comunista foi
cautelosa, ao mesmo tempo que a oposição republicana mais antiga não se
demonstrou favorável à independência das colônias. Com isso, serão os católicos que
fazem oposição ao regime que introduzirão esse tema graças à abertura inaugurada
mediante o Concílio Vaticano. Eis que os católicos tomam essa posição referente à
questão colonial, segundo ele, não apenas em virtude do Concílio Vaticano II, mas
igualmente por intermédio da:

[...] relação que se estabeleceu com os movimentos de libertação,


designadamente em Angola, em Cabo Verde e Guiné. E essa relação era muito

183
SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos e a crise do império colonial português. São Paulo:
Alameda, 2004, p. 75. Prosseguindo sua explanação, na mesma página o autor refere: “Tanto é assim
que os governadores do Império, que exerciam sua autoridade em Guiné, Cabo Verde, São Tomé e
Príncipe, Angola, Moçambique, Diu, Damão, Goa, Timor Oriental e Macau eram quase sempre
militares. Porque era militar a primordial função nas colônias. A colonização era inseparável da
vigilância das Forças Armadas. A exploração econômica não seria possível apenas pelas suas
virtualidades intrínsecas, pelos lucros que acarretava, pelos empregos que pudesse criar, pelos
rendimentos com que pudesse seduzir. Não. Acompanhava-se do trabalho compulsório, da
desarticulação de tradições culturais e hábitos de vida sem as compensações reais e ilusórias que o
capital ofereceria em circunstâncias em que sua lógica interna se pudesse fazer valer sem alimentar-
se de modos de produção e formas de trabalho pré-capitalistas. Toda a compensação restringia-se a
um só agente econômico: o colonizador branco. E os administradores desses territórios eram os
homens que, na estrutura do Estado, definem como nenhuma outra categoria a sua função básica: o
monopólio legitimado do uso da violência”.
108
importante, e parte, desde muito cedo, de um livro de Emmanuel Mounier,
L´éveil de l’Afrique Noir – um livro que teve aqui grande influência junto aos
católicos progressistas e aponta para a necessidade do reconhecimento dos
movimentos de libertação e do movimento anticolonial. E a Sophia e o Nuno
Teotónio Pereira vão ter aí um papel muito importante184.

Além de Sophia, subscreveram o “Manifesto dos 101” dirigido a Salazar: Aurora


Cunha Murteira, Deolinda Franco Coimbra, Helena Cidade Moura, Maria Natália
Duarte Silva, Maria de Fátima Ceia Gomes, Maria Ezequiel Belo Ravara, Maria da
Graça Braz Teixeira, Maria Benedicta Vassalo Pereira Bastos Monteiro, Maria Cabral
Correia Guedes, Maria Teresa Pena Monteiro, Maria Helena Lopes de Castro, Maria
de Jesus Serra Lopes, Nadir Maria Pacheco Palha, Olívia Maria, Teresa Gomes Mota.
Isso resultou, portanto, em dezesseis assinaturas de mulheres, o que demonstra o
aumento da participação feminina nas questões de intervenção social e política em
consequência, por exemplo, dos graves problemas trazidos para as famílias, quando
desde o início da guerra houve o recrutamento de muitos homens que tinham de
seguir para as frentes de combate185.
O papel preponderante revelado por meio do “Manifesto dos 101” tem como
base o humanismo e o progressismo, conforme adverte Jorge Revez, pois ali
demonstra-se a força da consciência cristã que se volta para um problema da maior
urgência, ao mesmo tempo que representa a “ocupação gradual de um campo de
ação dos católicos face à sociedade e à política perante às quais se sentem obrigados

184Entrevista concedida por Guilherme d´Oliveira Martins a Eloisa Aragão, em Lisboa, em 14 de


fevereiro de 2014.
185O montante de jovens portugueses que partiu para a guerra colonial chegou a 100.000, entre 1961
e 1974. Os que saíram do país fugindo à mesma guerra também alcança esse dado numérico, segundo
o balanço apresentado por Irene Pimentel, que registra: “Para a maioria dos elementos da oposição ao
regime, a questão da guerra colonial era, desde o início dos anos 60, um tema incómodo, dado que,
enquanto os socialistas e republicanos tinham alguma reserva em aceitar a independência das
colónias, o PCP, que foi o único partido a reconhecê-la, oscilara inicialmente entre uma retórica
nacionalista sobre os custos da guerra e um ‘modo proletário’ de encarar o assunto, que vincava a
solidariedade internacionalista com os povos das colónias. [...] Os jovens portugueses eram obrigados
a cumprir o serviço militar, que durava entre dois a quatro anos, incluindo a recruta e uma comissão de
serviço numa colónia africana em guerra. Alguns deles, por razões económicas ou políticas, tornaram-
se refractários ou desertores, saindo clandestinamente do país, a caminho do exílio, atravessando a
fronteira ‘a salto’”. PIMENTEL, Irene Flunser. História da oposição à ditadura (1926-1974). Porto:
Figueirinhas, 2014, p. 415-17.
109
a intervir”186. Com efeito, logo a PIDE reagiu e chamou a interrogar àqueles que
assinaram esse documento. Alberto Vaz da Silva relata em seu livro em homenagem
à Sophia:

Existiu também uma casa sinistra onde Sophia nunca viveu, mas onde as áleas
da vida nos juntaram, o casarão da rua António Maria Cardoso, onde nos
encontrámos em dia de interrogatório da PIDE a propósito do Documento dos
101 que ambos subscrevêramos denunciando a Salazar as torturas da polícia
política. Valeu-nos como resposta, e a todos os demais signatários, um
processo-crime com emissão de mandados de captura que só evitámos
prestando pesadas cauções187.

Com o início da guerra em Angola, em 1961, a questão repercute em âmbito


nacional e vem à tona no discurso político. É interessante notar que relativamente ao
assunto a postura dos socialistas foi, de início, superficial, como atestam os
documentos publicados pela Resistência Republicana (RR), em que se faz a crítica
da política colonial do Estado Novo, e reivindica-se a melhoria das condições de vida
dos povos, sem, contudo, naquele momento, questionar a legitimidade do
colonialismo. Foi somente numa fase posterior que os membros da Acção Socialista
Portuguesa, grupo que futuramente viria a constituir o Partido Socialista Português
(PSP), articularam esse debate em 1964, explicitando uma solução que advogava:
“Abertura imediata de negociações políticas com as forças nacionalistas que lutam,
nas diversas colônias, pela independência. Respeito leal pelo princípio de
autodeterminação e de todas as suas consequências (incluindo a independência),
sem prejuízo da defesa dos interesses legítimos das populações portuguesas
estabelecidas nas colônias”188.

REVEZ, Jorge Manuel Rias. Os “vencidos do catolicismo”: militância e atitudes críticas (1958-1974).
186

Universidade de Lisboa, Departamento de História, Mestrado em História Contemporânea, 2008, p. 70.


187 SILVA, Alberto Vaz da. Evocação de Sophia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 47.
188 MARTINS, Susana. Socialistas na oposição ao Estado Novo. Cruz Quebrada: Casa das
Letras/Editorial Notícias, 2005, p. 177-79.
110
As publicações de Sophia e a presença da contestação social

Sophia começou a publicar seus poemas nos Cadernos de Poesia, em 1940.


Desde essa época ela contou com um círculo de amigos poetas – Eugénio de
Andrade, José Blanc de Portugal, Tomaz Kim, Ruy Cinatti e Jorge de Sena (com quem
Sophia trocou correspondências ao longo da vida e manteve forte amizade) – que vão
integrar a mesma revista, cujo projeto trazia ao público a evidência de uma polêmica.
Tal polêmica então corrente que dividia presencistas e neo-realistas, porque
mantinham severa oposição quanto aos objetivos da produção artística e ao ato
criativo, “a partir da oposição irredutível entre as chamadas ‘poesia pura’ e ‘poesia
social’”189. E, passado certo tempo, Sophia aos 24 anos, com o apoio financeiro do
pai, lança por sua iniciativa, por meio de uma casa em Coimbra, o seu primeiro livro.
O título dado foi Poesia I, quando corria o ano de 1944.
Cadernos de Poesia foi uma publicação, sediada em Lisboa, criada à época em
que se extinguiu a revista Presença, conduzida por José Régio, João Gaspar Simões
e Adolfo Casais Monteiro e a qual, desde 1927, havia marcado a cena da literatura
em Portugal. É interessante identificar uma fala de Jorge de Sena, em 1974, em que
pontua como enxergava o grupo que publicava em Cadernos de Poesia: “O nosso
tempo não era um jogo de aristocratizantes desdenhando a vulgaridade da República,
ou da democracia que ela representara, como tinha sido o caso destes poetas
[reunidos em torna da revista Orpheu e da Presença]. Nós éramos, apesar de tudo,
as vozes da liberdade perdida”190. E, assim, ainda que ligados aos pressupostos
modernistas, na busca de independência na criação literária quanto aos parâmetros
formais e a determinações de esfera sociológica ou psicológica, os poetas dessa
geração “vinham associar-se a uma atitude de responsabilização ética e existencial
da poesia pelo destino da condição humana”191.
Na geração de Cadernos de Poesia, segundo a leitura de Luís Ricardo Pereira,
há fortes nuanças do imagismo (particularmente na elaboração feita por Eugénio de

189CARLOS, Luis Adriano. A poesia de Sophia. In: Línguas e Literaturas. Revista da Faculdade de
Letras, Porto, n. XVII, 2000, p. 234.
190Poésie Portugaise hier et aujourd’hui (1974). In: Estudos de Literatura Portuguesa – III. Lisboa:
Edições 70, 1988, p. 148 apud CARLOS, Luis Adriano. A poesia de Sophia. In: Línguas e Literaturas.
Revista da Faculdade de Letras, Porto, n. XVII, 2000, (p. 233-250), p. 234.
191CARLOS, Luis Adriano. A poesia de Sophia. In: Línguas e Literaturas. Revista da Faculdade de
Letras, Porto, n. XVII, 2000, (p. 233-250), p. 238.
111
Andrade, Tomaz Kim e Ruy Cinatti), em que o trabalho com a linguagem está
impregnado de recriação metafórica, imagística e simbólica, à semelhança do que se
encontra fartamente no modo de escrever poesia de Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé,
Camilo Pessanha, tanto quanto as influências derivam do “próprio movimento imagista
anglo-americano dos primeiros decénios do século XX, sobretudo em Thomas Ernest
Hulme e em Ezra Pound”192. É nessa esteira de influências que Sophia vai
desenvolvendo sua poética, resguardando-se de linhas de dependências literárias ou
de escolas, autonomia que não somente alcança por intermédio de uma exigência de
pureza e essencialidade das coisas, mas a faz preservar-se “dentro do panorama
literário português, com uma autonomia criadora sensível e originalíssima”193.
A postura política de Sophia esteve inserida em sua atuação de modo mais
incisivo desde 1958, quando trouxe a lume o Mar novo. Em 1964, no mês de julho,
quando a Sociedade Portuguesa de Escritores concedeu-lhe o prêmio por seu Livro
Sexto (publicado em 1962), Sophia de Mello já era conhecida por sua oposição ao
salazarismo e explicitou em seu discurso a conexão que estabelecia entre a poesia e
a realidade:

Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre
um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica
preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu,
evoluiu sempre dessa busca atenta. Quem procura uma relação com a pedra,
com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade
que o anima, a procurar uma relação justa com o homem [...]. E é por isso que
a poesia é uma moral194.

Em Livro Sexto inclui-se na última seção um conjunto de poemas cujo título é


“As grades”. Em 1970, será publicada a antologia Grades pela Dom Quixote, a qual
reuniu trinta poemas de obras de Sophia antes já conhecidas dos leitores, entre os

192PEREIRA, Luís Ricardo. Sophia de Mello Breyner Andresen: inscrição da terra. Lisboa: Instituto
Piaget, 2003, p. 29.
193 Idem, ibidem, p. 30.
194 ANDRESEN, Sophia de Mello B. Livro sexto. Obra poética. 8 ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2006,
p. 76.
112
quais doze integrantes inicialmente do Livro Sexto. Nathalia Macri Nahas, que se
dedicou a estudar essa produção poética adreseniana, sublinha que há bibliografias
que acrescentam ao título de Grades o subtítulo antologia de poemas de resistência,
embora isso não conste da publicação.
O crivo de resistência, no entanto, atribuído os poemas andresenianos de
Grades revela “o diálogo entre o fazer poético e a consciência política, compondo a
mora que define, para a autora, a noção de poesia”195.
Chama-nos a atenção especialmente este poema que expressa de maneira
transparente a ausência na pátria de um tempo em que vigorassem os ideais clássicos
inspirados em Platão e em outros filósofos gregos, tão caros à poeta: a bondade, a
beleza e a justiça.

195NAHAS, Nathália Macri. Grades: uma leitura do projeto poético de Sophia de Mello Breyner
Andresen. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
Dissertação de Mestrado em Letras, 2015, p. 47.

113
Data
(à maneira d’Eustache Deschamps)

Tempo de solidão e de incerteza


Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira


Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro


Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rastro
Tempo de ameaça

Uma revista de artes e de pensamento crítico que deu especial impulso a


publicações de Sophia, Agustina Bessa Luís, Jorge de Sena, Vergílio Ferreira, António
Ramos Rosa, Ruy Belo, além de outros escritores que não encontravam muito espaço
de divulgação por não estarem conotados à herança dos neo-realistas, foi O Tempo
e o Modo, fundada em Lisboa em janeiro de 1963. A direção ficou a cargo de António
Alçada Baptista, a edição nas mãos de Pedro Tamen, e João Bénard da Costa
exerceu o posto de chefe da redação. Ao menos nos primeiros anos de sua existência,
a revista criou um verdadeiro espaço cultural, acolhendo uma colaboração
diversificada.
Nossa autora escreveu vários livros de poesia, contos, incluindo aqueles para
crianças que alcançaram grande público, além de artigos, peça teatral e ensaios. As
traduções a que se dedicou – obras de Shakespeare, Eurípedes, Dante, Claudel para
o português; Camões, Mário Sá-Carneiro, Cesário Verde, Fernando Pessoa e outros
– eram uma entrada de renda significativa para cobrir as despesas cotidianas numa
família com cinco filhos, notadamente em períodos que tornavam-se restritas as

114
possibilidades de trabalho de seu marido em consequência das atividades de
oposição política.
Certa vez escreveu a Jorge de Sena: “Estou há meses para lhe escrever. Mas
tenho estado derrubada de trabalho, pois estou a traduzir o Hamlet e o Much Ado
About Nothing, e também derrubada de preocupações materiais num cerco cada vez
mais apertado”196. Para Sena, aliás, fez tradução de vários de seus poemas para o
francês, em nome da amizade que os vinculava, como se pode deduzir da leitura das
cartas trocadas por ambos (trataremos mais adiante dessa abordagem), difundindo
em várias oportunidades em Portugal e no exterior a obra de Sena.
Em uma tradução na revista O Tempo e o Modo, António Alçada Baptista
decidiu publicar umas páginas da tradução da peça teatral Hamlet feita por Sophia.
Era a parte completa da “Fala de Horácio”, em que a certa altura lê-se: “O fantasma
avança. – Pára-o! Fá-lo parar, Marcelo!”. Numa atitude grotesca, porém, a censura
vetou a publicação. Alçada Baptista não compreendeu o motivo e foi pedir
explicações. Qual não foi sua surpresa quando a censura “disse que não podia aceitar,
uma vez que na transcrição da tradução do Hamlet havia uma personagem chamada
Marcelo. A censura achava que aquilo era uma forma de sutilmente referir-se ao
Marcelo Caetano”197.

Sophia e Jorge de Sena: correspondência política

A marca de constrangimentos do cenário político conflituoso do Estado Novo


transferia-se à luta cotidiana de Sophia e Francisco, com quem ela se casou em 1946
e, em virtude da nova configuração de vida, mudou-se do Porto, sua cidade natal, para
Lisboa. O ativismo do marido assumia um caráter de risco, de sorte que mesmo o
casal compartilhando uma cumplicidade ideológica e possivelmente sentindo-se
ambos fortalecidos por firmarem um projeto comum em prol dos ideais antifascistas,
a rotina familiar foi marcada por turbulências. O filho Miguel Sousa Tavares afirma em
entrevista que Sophia “tinha imensa admiração pela coragem do meu pai e, por outro

196 BREYNER, Sophia de Mello; SENA, Jorge de. Op. cit., p. 79. (Carta de abril/maio de 1964.
197Entrevista concedida por Guilherme d´Oliveira Martins a Eloisa Aragão, em Lisboa, em 14 de
fevereiro de 2014.
115
lado, naturalmente tinha medo pelas consequências disso”198 e havia circunstâncias,
como no eclodir da Revolta da Sé (assunto já citado no Capítulo 1), em que Sophia
tinha de se isolar com os filhos:

Na noite de 11 de Março de 1959, Sophia, os cinco filhos e a empregada Luísa


foram dormir para a cave de uma familiar, na Rua Alexandre Herculano, onde
Miguel passou toda a noite a andar de bicicleta, enquanto devia decorrer uma
operação contra o regime conhecida como Revolta da Sé. Francisco Sousa
Tavares e Fernando Amaro Monteiro, jovem alferes monárquico, comandavam
80 militares que às 3h30 deviam avançar para o Batalhão de Caçadores 5, na
Avenida Marquês da Fronteira. Uma das principais missões de Sousa Tavares
era fazer um apelo patriótico às tropas antes de entrarem em acção, mas foram
denunciados e tiveram de abortar o golpe199.

Conhecemos um largo espectro do pensamento, de emoções, conflitos e visões


pessoais de Sophia, em determinado período, por meio das cartas que trocou com
Jorge de Sena, nos anos de 1959 a 1978. A terceira edição da obra, pela Editora
Guerra & Paz, contém mais algumas cartas e bilhetes inéditos, que foram encontrados
no espólio de Sophia, em 2010. Além do prazer em que consiste a leitura das cartas
e bilhetes, ambos nos dão pistas para compreender ou tentar elucidar aspectos sobre
a vivência e tomadas de posição de Sophia e de Jorge de Sena, então exilado
inicialmente no Brasil. Tudo isso atentando para a natureza que individualiza e está
presente no gênero epistolar – o da exposição do particular, do cotidiano, da
intimidade, por exemplo – que, assim como outros veículos de comunição, durante o
Estado Novo era constantemente alvo de vigilância e censura.
O recorte que fizemos para a abordagem das cartas, apresentado a seguir,
centra-se num ângulo político, nas passagens dos textos em que explicitamente os
amigos confidenciam seus interesses e empenhos destinados à atividade enquanto

198CASTRO, Pedro Jorge. “Um casal apaixonado contra Salazar”. Lisboa, Sábado, 25 abril 2016.
Vídeo: “Miguel Sousa Tavares falou com a Sábado sobre a luta dos pais contra a ditadura e sobre o
seu casamento”. Disponível em: <http://www.sabado.pt/video/detalhe/Um-casal-apaixonado-
contra-Salazar-(videos)>. Acesso em: 20/abril/2017.

199 Idem, ibidem.


116
opositores à ditadura, tanto quanto muitos dos fracassos decorrentes dessa luta. Há
também nas cartas um tom geral de inconformismo perante os embates promovidos,
em certas ocasiões, nos grupos literários a que se filiam ou, por reputarem
indesejáveis e assumirem posturas antiéticas, deles se afastam.
Em uma correspondência escrita a Jorge de Sena200 e sua esposa Mécia de
Sena, Sophia demonstra preocupação com o trabalho do marido, assim como a de
ordem material que, num tempo anterior bem complicada, ia deixando de ser terrível.
Isso era em janeiro de 1960 e o casal vivia uma batalha frequente quanto à esfera
social encerrada num clima opressivo: “O pior é a luta contra este ambiente exterior,
uma luta em que se perde força e tempo”201, e ao mesmo tempo ela informa que o
Francisco apesar de estar cheio de trabalhos, possivelmente na defesa de presos
políticos, tais atividades reúnem “imensos problemas de que agora não falo”202,
fazendo a omissão dar a ideia de que são limites por conta da vigilância a que estão
sujeitas as correspondências, ou outra forma de perseguição e censura.
O engajamento impunha várias exigências e sob o olhar de Sophia as
dificuldades dele resultantes restringia sobremodo o cotidiano de seu marido, pois
assim ela registra na carta de 22 de dezembro de 1960 a Jorge de Sena: “O Francisco
tem tido muito trabalho e tudo correria perfeitamente se não fosse o clima político. Eu
e você podemos escrever poemas, ensaios, histórias. Ele não pode escrever o que
quer, nem dizer o que quer, nem realizar-se como quer”203. Há, por toda a parte, um
aparelho repressor e censor que se arremessa sobre o tempo vivido e está

200 Em 1959, também Jorge de Sena se envolvera na Revolta da Sé, informação que já apresentamos
no Capítulo 1. Depois de frustrado o golpe, veio para uma atividade acadêmica na Bahia e fugindo aos
tentáculos da ditadura salazarista, decidiu mudar-se para o Brasil trazendo a esposa, Mécia, e os sete
filhos – ao longo de uns anos, o casal teve mais dois filhos. Certamente, por sua atividade antifascista,
o mundo luso não era seguro para Sena que, em 1955, já tivera seu livro de poemas “As evidências”
apreendido pela PIDE. No Brasil, ele tornou-se catedrático de Teoria da Literatura e de Literatura
Portuguesa, tendo depois obtido o doutorado em Letras, pois sua graduação tinha sido em Engenharia.
Lecionou em Assis e em Araraquara. Em 1964, diante do golpe militar, precisa novamente escapar a
um regime autoritário, situação que o fez seguir com a família, agora com nove filhos, para os Estados
Unidos, onde a partir de 1965 passa a assumir a cadeira de Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira
e Literatura Comparada, na Universidade de Wisconsin e mais tarde na Universidade da Califórnia.
201
BREYNER, Sophia de Mello; SENA, Jorge de. Correspondência 1959-1978. 3 ed. Lisboa: Guerra e
Paz, 2010, p. 33. A carta é de janeiro de 1960.
202 Idem, p. 34.
203 BREYNER, Sophia de Mello; SENA, Jorge de. Op. cit., p. 35.
117
penosamente ligado a uma figura central que Sophia destacou no poema “O velho
abutre”204:

O velho abutre é sábio e alisa as suas penas


A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o poder de tornar as almas mais pequenas

Já na correspondência de 20 de março de 1961, Sophia reitera a Jorge de Sena


uma proposta que lhe havia feito em carta anterior: a de produzir um artigo de crítica
enquanto colaborador mensal da revista que ela começaria a dirigir, chamada Litoral,
em que o espírito animador estaria centrado em reunir o que restasse de consciência,
criação e lucidez num momento em que o país estava tomado por cegueira e
propaganda. Neste caso, solicitar o apoio do amigo significava também dar conta de
outros procedimentos, como aguardar as licenças da PIDE para cuidar do primeiro
número da publicação.
De tal sorte que enfatiza ter a seu lado como responsável pelo projeto o Mário
Silva valendo-se dos direitos já anteriormente assegurados por ele: “Assim é mais fácil
conseguir as licenças necessárias. As licenças têm demorado mas penso que agora
não devem tardar”205. Seria uma nova publicação da revista, depois de bons anos
corridos, quando houve seis números editados por Mário Silva e dirigidos por Carlos
Queirós, entre junho de 1944 e fevereiro de 1945.
O poder libertador das palavras e do pensamento não podia ser exercido sem
vigilância e, neste caso, o que soubemos por meio de nossa pesquisa no acervo da
PIDE, o projeto da revista foi abortado. O motivo: o impedimento por força da
censura206.
Naquelas condições da sociedade portuguesa da época, os opositores do
regime costumeiramente sofriam vários ataques por demarcarem as posições que
defendiam. Por essa razão, Jorge de Sena ressentia-se do grande esforço que o exílio
lhe exigia e também pelo fato de não considerarem tão bem quanto esperava suas

204 ANDRESEN, Sophia de Mello B. Livro sexto. Obra poética. 8 ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2006,
p. 68.
205 Idem, p. 41.
206Processo Provisório n. 919, no arquivo da PIDE relativos a Sophia de Mello Breyner Andresen, na
Torre do Tombo. Consta a lápis, no pedido, uma menção de que os solicitantes não são pessoas gratas
ao regime.
118
produções literárias. Ao seu estilo em que se evidenciava uma mescla de queixa,
agressividade e ironia, costumava manifestar esse sentimento de frustação à amiga.
Ao responder a uma carta em que Jorge expressara-se desse modo, Sophia escreve-
lhe de Lagos em 22 de setembro de 1961 (cidade na região do Algarve) e o aconselha:

Se você pode escrever e trabalhar deixe falar. Aqui nós temos agora bem pior,
num campo onde as tricas são mais perigosas e muitos pacíficos cidadãos nos
olham com ódio nas grossas mãos fascistas (os fascistas têm mãos
horrorosas). Nem você pode imaginar o que é esta presença do ódio. Há
tempos num jantar perguntaram-me o que é que eu achava duma senhora
fascista (e desavergonhadíssima) que me odeia a mim e ao Francisco e que
nos persegue com malcriações incríveis e calúnias. Eu respondi que a achava
boa, inteligente, séria, culta e bem educada. Até os amigos da dita senhora
tiveram de dar uma gargalhada. É o único sistema: rir de quem nos quer
matar207.

Estando em Paris, em março de 1962, então no retorno de uma estada na Itália,


onde estivera participando no Congresso da Comunidade Europeia de Escritores
(Comes), Sophia narra ao amigo Jorge que estava lhe escrevendo às duas da manhã
e sentia-se exausta. A partir desse ponto, começa a explicar-lhe os desgostos que
arrostara naquele evento.
A expressão sintetizada nesse impasse por Sophia já vinha de algum tempo e
revelava a dissidência no movimento literário entre escritores que se dividiam e, neste
momento, opunham-se claramente. A origem da polêmica esteve inicialmente, na
década de 1930 e 1940, entre os neo-realistas – então ligados ao ideário do Partido
Comunista Português – e os modernistas. Na década de 1950, os conflitos se
agudizam: os que se filiam ao primeiro grupo e também os herdeiros dele versus os
escritores que não se incluem nesta primeira corrente – mesmo incorporando em suas
produções literárias uma reflexão e uma posição estética contra o regime autoritário e

207
Carta enviada de Lagos, Praia da Dona Ana, 22 de setembro de 1961. BREYNER, Sophia de Mello;
SENA, Jorge de. Op. cit., p. 35.
119
a degradação que na vida social ele provocava, a exemplo de Sophia (desde 1958
com o livro Mar Novo) – entram num processo de oposição declarada208.
Assim, retomando o fio do discurso de Sophia em sua carta, ela conta que tinha
seguido para Florença em companhia de Agustina Bessa-Luís, designada para ser a
delegada portuguesa no Congresso. E poucos dias antes, Alexandre O’Neill havia ido
à casa de Sophia em Lisboa com uma senhora italiana chamada Madame Lusso, cuja
função era, conforme lhe contou posteriormente a Agustina Bessa-Luís, “manipular a
posição dos escritores portugueses na Comes”209. A senhora Lusso pediu para Sophia
seus versos e ela deu-lhe o livro Mar Novo. Tão logo o abriu em duas páginas,
“declarou que eu não devia escrever poesia tão alheia aos problemas sociais
portugueses”210.
A escritora expressa com surpresa que não houve uma perspectiva de
abordagem literária no congresso que foi quase exclusivamente político e antifascista,
mas o que a chocou de certo modo foi a ausência por parte da Madame Lusso, do
Alexandre O’Neill e José Cardoso Pires que estiveram na casa da poeta não lhe terem
informado do que se tratava o encontro. Portanto, sendo ela “anti-fascista, anti-
salazarista, anti-ditaduras”211, conforme seus termos na carta, podemos deduzir a
conjunção de fatores como patrulhamento ideológico e desconforto a pesar entre os
participantes naquela atmosfera. Sophia assim resumiu sua percepção ao amigo num
desabafo:

O Congresso era anti-fascista – coisa com que concordo mas os métodos


usados foram fascistas, mal-educados e policiais. Que haverá por trás disto
tudo? Todo o ambiente do Congresso foi de nervosismo e de desconfiança e
eu sem o Francisco ao meu lado e sem mesmo ter combinado com ele qual a
linha a seguir senti-me verdadeiramente só num mundo de intrigas que não é
o meu. Muita falta me fez ali a sua presença212.

208Com a queda da ditadura em Portugal em 1974, o processo revolucionário então decorrente viria a
incendiar esses conflitos. Ver: MADEIRA, João. “Os escritores comunistas e a Revolução do 25 de
Abril”. Miscelânea, Assis, v. 15, p. 25-43, jan-jun. 2014.
209 BREYNER, Sophia de Mello; SENA, Jorge de. Op. cit., p. 52.
210 Idem, ibidem.
211 Idem, p. 53.
212 Idem, ibidem.
120
Com base nesse texto de Sophia, temos um dado de que ela combinava com
o marido algumas linhas de tomadas de posição diante de questões políticas
discutidas em certos círculos. Neste encontro de escritores, por alguma razão, ambos
não haviam fechado um acordo. Não encontramos em outras fontes elementos que
possam demonstrar que essa era uma tática frequente do casal. E, diante desse
ponto, o que podemos explorar são apenas caminhos indicativos, suposições. A
desigualdade do estatuto social entre mulheres e homens sempre possibilitava aos
homens uma força de expressão mais evidente nos espaços públicos. Isso,
entretanto, no caso de Sophia não limitou seu comprometimento político, uma vez que
foi ao congresso sem a companhia do marido, assumindo a responsabilidade de estar
num ambiente tenso e cheio de armadilhas, sentindo-se vigiada por uma atmosfera
de patrulha ideológica desde dias anteriores à viagem, conforme seu relato.
Considerando a carta destinada ao amigo, se nela podemos perceber que havia
certo mimetismo social entre a figura política do marido e a de Sophia, ao menos em
determinados espaços sociais e circunstâncias, não foi menor seu grau de
envolvimento nos grupos de oposição e neste que se relacionou aos escritores, em
que sua postura não se deixou caracterizar por falta de autonomia. Ou, na ocasião em
que lhe sugeriram para se separar da companhia de Agustina, Sophia não se mostrou
submissa ao que lhe disseram ser conveniente de um ponto de vista político. Ela tinha
para si que a posição política de Agustina –“ela não é salazarista nem fascista”213 e
apesar de considerar o regime salazarista criminoso pensava não ser oportuno afirmá-
lo a outros países, bem como fazia a defesa da liberdade do escritor conquanto não
estivesse associada a um espírito partidário – era diferente214 da sua e devia ser
acatada porque era uma medida de respeito à liberdade. Por isso, na circunstância
que mencionamos, quando lhe advertiram no Congresso para não ficar ao lado de
Agustina, Sophia não tomou essa atitude, a respeito da qual assim formulou ao amigo

213 BREYNER, Sophia de Mello; SENA, Jorge de. Op. cit., p. 54.
214 A posição política de Agustina B. L. sempre foi conservadora. Em 2004, Maria Leonor Nunes
entrevistou Agustina Bessa-Luís e perguntou-lhe: “É curioso que, sendo uma mulher conservadora, de
direita, é muito considerada, mesmo amada pela esquerda”. A que Agustina afirma: “É que a esquerda,
de modo geral, gosta de pessoas exemplares”. Na sequência da questão que lhe faz a entrevistada se,
afinal, se considera alguém exemplar, Agustina declara: “Tenho trabalhado muito para isso e construído
o meu monumento, também com alguns sacrifícios”. NUNES, Maria Leonor. “Agustina Bessa Luís: A
culpa prodigiosa”. Lisboa, Jornal de Letras, 9-22 jun. 2004. Disponível em:
<http://visao.sapo.pt/jornaldeletras/letras/agustina-bessa-luis-a-culpa-prodigiosa=f796969 >
Acesso em: 22/abril/2017.
121
Jorge: “Acho que não se pode criar em nome do anti-fascismo um novo fascismo. E
também acho que problemas tão graves não podem ser tratados senão com a mais
grave consciência e o mais profundo respeito pela personalidade de cada escritor”215.
Ao mesmo tempo Sophia relata assumir progressivamente a vida do casal
maior engajamento na luta antifascista, e deixando uma nota de que vinha se
inquietando pelo fato de a oposição estar cheia de aventureiros que fazem grande
confusão e igualmente estar “cheia de tontos”. Ao final da carta, a amiga avisa que
tem a impressão de que ela e Agustina, e talvez mesmo os demais escritores, estão
sendo seguidos em Paris por agentes policiais espanhóis aliados a Salazar.
Com isso, ela pede a Jorge de Sena prudência quando viesse a enviar
correspondências e registra que estava preocupada, pois talvez nem conseguisse
entrar em Portugal. Salienta ainda que, de certa forma, os problemas que a estavam
incomodando poderiam ter sido ampliados pela própria insegurança e nervosismo que
havia marcado sua viagem desde o início, indício a partir do qual podemos supor que
havia grande possibilidade de não somente sua casa estar sendo vigiada em Lisboa,
como também os passos de seu marido. Lembremos que, por algum motivo não citado
na carta, Francisco Tavares não estivera presente nesse congresso da Comunidade
Europeia de Escritores, mas para ela ter ido certamente dele recebeu autorização,
pois as mulheres não podiam sair do país sem autorização do marido – e ainda era
março de 1962 quando Sophia escreveu a carta a Jorge de Sena. Quando Marcelo
Caetano tomou posse como Presidente do Conselho, cuidou de aprovar em 25 de
outubro de 1969 o decreto-lei n. 49317, que permitia às mulheres transpor a fronteira
de Portugal sem necessitar da anuência do marido216. Todas as outras limitações, no

215 Idem, ibidem.


216Manuela Tavares refere um relato de Elina Guimarães sobre uma situação ocorrida com a feminista
Adelaide Cabete, na década de 1930. Em uma viagem em que Adelaide seguia para o Congresso
Internacional Feminista de Washington teve como companheira de viagem uma senhora portuguesa.
Esta demonstrou-se inconformada com o fato de Adelaide Cabete ser feminista, julgou mesmo que era
uma postura imprópria para uma mulher. Essa senhora teve de sair com urgência para encontrar o
marido nos Estados Unidos, e diante da pressa não conseguiu aguardar a sua autorização legal. Ela
não tinha a licença quando chegou ao território americano e ali não somente a impediram de entrar
como também a instalaram num lazareto. Ela seria devolvida a Portugal como uma transgressora ou
um fardo, mas por fim o marido conseguiu tirá-la daquela situação. Assim Elina Guimarães conclui:
“Escusado será dizer que a aludida senhora ficou convencida que o feminismo, longe de ser uma
aberração, não representa mais do que uma legítima revolta contra certas e injustificáveis
desigualdades de que a mulher é vítima”. GUIMARÃES, Elina, Movimento feminista, 1930. Apud:
TAVARES, Manuela. “Mulheres já podem sair do País sem autorização do marido”. In: PAÇO, António
Simões do. Os anos de Salazar: 1969 – Evolução na continuidade. Lisboa: Planeta DeAgostini, 2008,
p. 133, p. 133-35.
122
entanto, continuaram a valer: o marido podia fixar a residência da mulher, impedi-la
de sair de casa ou do país, assim como podia obrigá-la a regressar a casa pela força,
abrir suas correspondências, entre outros itens que na vida cotidiana constituíam um
verdadeiro abuso de poder e causava-lhe imensos prejuízos, mas eram, enfim,
discriminações que tinham a força legal.
Retomando a narrativa voltada aos fatos que Sophia contara ao amigo na
missiva, a impressão de que estava sendo seguida tinha muito fundamento, tendo em
vista que ela não recebeu a carta que Jorge de Sena lhe enviou de Araraquara em 4
de junho de 1962. Nesta carta que fora apreendida pela polícia política, Sena desabafa
que o poder na agremiação literária foi tomado por uma gente canalha e considera ter
chegado Portugal a um estado de degradação generalizado, em que já não existia
dignidade nem decência. Relata, ainda, um fato de peso:

Neste momento – pegue lá esta bomba – chegou ao Brasil, com autorização


do governo brasileiro, o A. Cunhal, ou seja, o famigerado secretário-geral...
Sabe ao que ele vem? Procurar uma reunião “deles”, com o Manuel Sertório,
com o [Henrique] Galvão (!!!), e com o [Humberto] Delgado, da qual seja
excluído este seu amigo, o Casais e o Paulo de Castro, isto é, o triunvirato da
esquerda não comunista. Já ninguém está pensando na queda do Salazar, mas
na sucessão dele. É provável que, a estas horas, um emissário do Marcelo
[Caetano] já se tenha avistado, em Paris, com o dito cujo secretário-geral...
Está vendo o golpe? É preciso, quanto antes (e nisso estão todos de acordo),
eliminar a esquerda que faça balanço entre a direita foragida do Estado Novo
e o extremismo partidário, que mutuamente se servem. Eu continuo a pensar
que não se deve entrar em combines com os reformistas caetânicos: eles que
‘sucedam’, se quiserem e puderem, que nós assistiremos de palanque ao
festival (e deve ser essa a nossa posição).

A situação revela a posição de quebra da possível aliança dos católicos


progressistas, ou ao menos uma parte componente desse grupo, com os comunistas.
Outro fator preponderante para Jorge de Sena está na possibilidade da combinação
que se desenhava: membros do PCP aliados a outros que apoiavam Marcelo Caetano
com a finalidade de empreenderem uma reforma do regime por dentro. A despeito

123
desse contexto, foi sempre rejeitada pelos católicos a ideia de formarem um partido
político, como veremos citado em outros momentos nas cartas enviadas por Sena.
De fato, as dificuldades se tornam mais complexas e em junho desse ano de
1962, a cumplicidade dos amigos faz valer uma confissão, quando Sophia comenta
que ela e o marido estão bem, mas “sempre com os combates que você sabe. A minha
família – pelas sabidas razões políticas – quase não me fala. Os meus amigos de
juventude quase me detestam”217. E houve severa vigilância, nesse ano, na
comunicação estabelecida entre os amigos de que é prova a missiva que em outubro
ela destina a Sena, na qual relata que estava dirigindo a revista Távola218 e pede a
colaboração dele. Isso às voltas com uma circunstância que nos faz pensar não ter
sido possível ela enviar a carta pelos correios (mesmo tendo incluído o nome de Mécia
de Sena como destinatária) ou ter conseguido que alguém de sua confiança a
entregasse em maõs, pois registra na mesma correspondência: “A P.[I.D.E.] esteve
em nossa casa revistando e levou todas as suas cartas”219. Faz também esta menção:
“Começou hoje o Concílio Ecuménico. Deus nos ajude”220.
O zelo a instruiu a refletir bastante como enviar a próxima carta, em 7 de
novembro de 1962, pois havia o medo de o correio estar novamente muito vigiado.
Não sabemos se o amigo recebeu a correspondência. Do conjunto das cartas
transcritas por Mécia de Sena não é possível identificar o que estava no acervo que
ela guardou do marido e a parte que foi descoberta posteriormente, depois da
Revolução de Abril de 1974, na documentação da censura da época ditatorial. Mas
nesta última, de extensão menor, ela cita no post scriptum que o Nikias Skapinakis
havia sido preso fazia um mês221.
Ao leitor é revelado, igualmente, que para ela a vida continua complicada e o
marido tem advogado especialmente em “julgamentos políticos que nos têm criado
grandes dificuldades, mas que nos têm trazido as maiores alegrias”, na carta de maio
de 1966. A par de todas as notícias em que há a força do desgaste social de que foi

217 BREYNER, Sophia de Mello; SENA, Jorge de. Op. cit., p. 62.
218Sophia e o marido, Francisco, integraram a redação da revista Távola de novembro de 1962 a
fevereiro de 1963. Nesse período publicaram os números 19, 20, 21 e 22.
219 BREYNER, Sophia de Mello; SENA, Jorge de. Op. cit., p. 65.
220 Idem, ibidem.
221Artista plástico que desde a década de 1950 manteve atividade política na oposição. Era do círculo
de amigos de Sophia e Francisco.
124
testemunha o cotidiano do casal, contam-se dias mais leves que são os períodos em
que Sophia viajou para a Itália, a França, a Espanha e, sem dúvida, a Grécia, onde
ela retornaria algumas vezes e cujas paisagens e ruínas a deixaram fascinadas. Para
o leitor é dada uma espécie de convite, um chamado sobre as viagens de Sophia,
ocasiões em que ela se inspirava mediante a longa observação dos lugares e
costumes. Aqui podemos evocar a impressão dessas paisagens tomando de
empréstimo a narrativa de Sandra Ferreira quando revela que o olhar do viajante pode
“comover-se com a beleza, lastimar a ausência dela, celebrar o cuidado, condenar o
descuido, dar a conhecer bons e maus hábitos”222.
Em 1964, ficamos a saber que Sophia esteve presente como testemunha de
defesa do jovem Salgado Matos, dirigente da Juventude Universitária Católica (JUC),
que havia participado no assalto ao Quartel de Beja, em 1962. O advogado de Matos
foi o doutor Joaquim Pires de Lima223, que relatou em uma entrevista que o jovem
estudante a quem estava defendendo era um católico progressista e, dada essa
condição, teve o privilégio de contar entre suas testemunhas membros do clero,
Sophia de Mello Breyner, Alçada Baptista e João Bénard da Costa.
Um ano de muito pesar para Sophia foi 1966, em que deve ter sido difícil não
se curvar ao abatimento emocional, pois seu marido foi preso a sete de novembro (a
data de saída, conforme os registros da polícia política, é 3 de janeiro de 1968224) e,

222As observações de Sandra Ferreira referem-se a um livro de José Saramago, Viagem a Portugal.
Ver: FERREIRA, Sandra Aparecida. “As cidades visíveis de José Saramago”. In: Simpósrio Mundial de
Estudos de Língua Portuguesa, 2010, Évora. Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas.
Évora: Universidade de Évora, 2010, p. 146-166. Elas, no entanto, bem podem ser aplicadas ao olhar
aprofundado de Sophia, que conforme declarou seu filho Miguel Tavares: “A minha mãe adorava viajar.
Ela transmudava-se. Eu entendia-me muito melhor em viagem com ela do que no quotidiano".
COELHO, Alexandra Lucas. “No mundo de Sophia”, Lisboa, Público, 21 jun. 2009. Disponível em:
<https://www.publico.pt/temas/jornal/no-mundo-de-sophia-310973 > . Acesso em:
10/março/2017.
223Joaquim Pires de Lima (1938-2017) relatou que o julgamento no Tribunal Plenário decorreu entre
28 de janeiro e 29 de julho de 1964 e foi extenuante e muito tenso, porque era grande o número de
detidos que estava no cárcere fazia quase dois anos. No total do processo, foram mais de 80 arguidos
e mais de 50 advogados. Entre outros jovens desse processo, estavam Fernando Rosas, Antonieta
Alves e Alfredo Caldeira. RIBEIRO, Anabela Mota. Entrevista a Joaquim Pires de Lima. Disponível em:
<http://anabelamotaribeiro.pt/joaquim-pires-de-lima-146750 >. Acesso em: 10/março/2017.
224 Conforme nossa pesquisa nos acervos da PIDE: registro número 27649 no Registo Geral de Presos,
livro 139. Mas talvez o Francisco tenha conseguido ficar um período em casa, ou conseguido a
diminuição da pena, ou mesmo Sophia não ter querido comentar, por zelo ou discrição, que ele estava
preso em Caxias. Nessa carta única, de 31 de dezembro de 1967, diz que o marido e os filhos estão
bem. Salvo algum equívoco por desconhecimento de minha parte, ainda está por ser feita uma
investigação a respeito da militância antifascista de Francisco de Sousa Tavares, que, depois de ter
participado no Golpe da Sé, foi preso pela PIDE, conforme encontramos na referência indicada. A
prisão em 1967 possivelmente tenha ocorrido porque ele e Mário Soares haviam denunciado à
125
em junho de 1967, ela perdeu subitamente o irmão João Andresen, aos 46 anos, e
em novembro sua mãe, Maria Amélia de Mello Breyner. Por essas razões, em 1967
Sophia escreveu apenas uma carta para Sena.
Refletir a respeito das atividades desenvolvidas por Sophia no papel de
escritora, esposa e mãe de cinco filhos, não nos esquecendo das práticas de militância
antifascista significa ponderar, em boa medida, nos custos que lhe foram impostos em
vários níveis de sua trajetória pessoal. Certamente, é indissociável dessa relação o
impulso pela busca de liberdade, de autonomia de pensamento e de justiça social
perante a realidade cinzenta e opressora do Estado Novo. É, assim, na poesia “que
ela [Sophia] verdadeiramente pôde encontrar o seu reino, a sua verdadeira pátria”225,
como bem assinala Fabiana Miraz Grecco. Cansada de uma rotina que lhe era muito
exigente, a nossa autora chegou a desabafar ao amigo Jorge de Sena que ela e o
marido estavam exaustos da vida dura e acrescentou: “Eu começo a sentir-me
incapaz de fazer tudo o que quero fazer. Ser ao mesmo tempo poeta, mulher do D.
Quixote e mãe de cinco filhos é uma tripla tarefa bastante esgotante”226. Muitos foram
os obstáculos materiais na educação de cinco filhos, assevera em entrevista o filho
de Sophia227.

imprensa inglesa o caso de escândalo sexual, que envolveu grande número de autoridades
portuguesas ligadas ao governo suspeitas de abusar de menores havia anos, que ficou conhecido pelo
título “Ballets Rose”. Tavares recebeu dos amigos próximos o apelido de Tareco, e além de ter
participado diretamente em frentes antifascistas, sua imagem foi muito divulgada durante a Revolução
de Abril de 1974, tornou-se mesmo um ícone quando no Largo do Carmo, em Lisboa, no dia 25 de abril
a pedido dos capitães usou um megafone, expressando-se com aquela voz fortíssima, para esclarecer
à população o que estava acontecendo e solicitou-lhe com um pouco de calma. Ver: LEMOS, Mário
Matos; TORGAL, Luis Reis (coord.). Candidatos da oposição à Assembleia Nacional do Estado Novo
(1945-1973): Um dicionário. Alfragide: Texto, 2009, p. 278. Sobre Tavares, o filho Miguel Sousa
recolheu uma seleção de textos jornalísticos do pai. Ver: TAVARES, Francisco de Sousa. Uma voz na
revolução: testemunhos e causas. Lisboa: Clube do Autor, 2014.
225GRECCO, Fabiana Miraz de F. “Correspondências 1959 – 1978”: as cartas de Sophia de Mello
Breyner Andresen a Jorge de Sena. Vértice, Lisboa, v. 170, p. 105-120, 2014.
226 BREYNER, Sophia de Mello; SENA, Jorge de. Op. cit., p. 76. (Carta de junho de 1963).
227CASTRO, Pedro Jorge. “Um casal apaixonado contra Salazar”. Lisboa, Sábado, 25 abril 2016.
Vídeo: “Miguel Sousa Tavares falou com a Sábado sobre a luta dos pais contra a ditadura e sobre o
seu casamento”. Disponível em: <http://www.sabado.pt/video/detalhe/Um-casal-apaixonado-
contra-Salazar-(videos)>. Acesso em: 20/abril/2017.

126
Capítulo IV
Desempenho em associações antifascistas e na Assembleia Constituinte

Che Guevara
Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra

De pôster em pôster a tua imagem paira na sociedade de consumo


Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas

Porém em frente do teu rosto


Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece
(Sophia de Mello Breyner)

Vou lembrando a revolução,


mas há fronteiras nos jardins da razão
(Chico Science)

O inimigo derrotado raramente se parece com aquele que tínhamos de


derrotar. Ele nos faz lembrar das desgraças que nós mesmos
sofremos.
(Manés Sperber)

127
O engajamento de Sophia no Centro Nacional de Cultura

O Centro Nacional de Cultura (CNC) teve sua criação em 1945 por meio da
disposição de um grupo de jovens católicos, uma associação sempre sediada no
bairro do Chiado, em Lisboa. Contudo, sua organização efetiva concentrou, no correr
dos anos, grupos diferentes que atuaram na entidade, compondo famílias ideológicas
distintas, a exemplo dos monárquicos, católicos conservadores e progressistas,
integrantes da Mocidade (Organização Nacional da Mocidade Portuguesa), além de
um número menor de associados independentes desses segmentos, conforme se
apresenta de forma detalhada, esta e outras abordagens, na obra a respeito do Centro
Nacional de Cultura228. Necessariamente, é preciso realçar que essa obra resulta de
um perfil institucional do CNC, tendo como base a memória de sujeitos que o
fundaram, trazendo por isso mesmo parte de suas impressões, marcas e discursos.
Não se trata, portanto, de um documento que tem como finalidade peculiar uma
análise crítica – e isto é dever da minha atividade enquanto historiadora mencionar.
As informações que nela constam não esclarecem sobre a presença de Sophia
desde os primórdios da fundação, mas citam que Francisco de Sousa Tavares esteve
no ano inicial do centro como um sócio ligado à vertente monárquica, ali
permanecendo de maneira ativa. Em 1957, foi a primeira vez que Francisco Sousa
Tavares assumiu a presidência do Centro Nacional de Cultura, tendo a seu lado no
comprometimento com a atuação política e cultural Sophia, sua esposa, e a partir
dessa época mediante as atividades que propalavam houve “um marco de viragem
fundamental na vida do Centro”229. O amplo repertório cultural de Sophia e de
Francisco aliado a uma grande dedicação aos trabalhos naquela casa promoveu
resultados fecundos na parceria da direção. Ambos acabaram propiciando àquela
instituição um rumo bem direcionado que permitiu abrigar vertentes diferenciadas de

228 CENTRO Nacional de Cultura: 60 anos de uma vida cheia. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 2008.
A fundação se deu em 1945, mas por desconfiança o regime fascista permitiu a oficialização somente
em 1952.
229 Não porque a sua eleição representasse uma ruptura com os fundadores. Francisco Sousa Tavares

contava-se entre o grupo dos monárquicos que fundaram o CNC e que venceram a crise de 1946/47
com a Mocidade Portuguesa. Ele aliás fora porta voz da "malta de São Roque" na manifestação de
desagravo à fundação do MUD juvenil no Teatro Nacional em 1946, tendo a sua intervenção sido
proibida. Sousa Tavares sempre continuou a participar activamente das iniciativas do CNC juntamente
com sua Mulher Sophia de Mello Breyner Andresen. A sua presidência era uma opção pacífica de
continuidade para quem o elegeu. O seu fôlego, a sua capacidade de conduzir debates, de apresentar
ideias novas, de congregar gente de valor era a aposta do Centro para esse ano.
128
sócios, sem contudo deixar de promover a ampliação de debates e projetos
antifascistas.

Alternando com algumas Direcções presididas por monárquicos ou por


progressistas, o casal sucede-se na presidência da Direcção até ao fim
dos anos 60. Atraem desde cedo para o Centro gente de origens
culturais e interesses bem diferentes. [...] A política passa a ser tema
constante nas comunicações apresentadas na sala do CNC,
aproximando um outro público. Por um lado, a oposição democrática
cada vez mais vê no Centro um reduto tolerado onde se debatem ideias
com grande liberdade. Por outro lado, os inoportunos vizinhos da PIDE,
quase sempre identificáveis na assistência, pela sisudez, recato,
sobretudo e bloco de notas, fazem-se presentes nas sessões públicas
mais polémicas230.

Naquele centro se desenvolveu uma espécie de mola propulsora do campo


cultural lusitano, promovendo a divulgação do pensamento e do fazer artístico e
intelectual. De modo que sua contribuição somou ao conjunto de outras
representações materiais, culturais e simbólicas, fazendo história no combate do
poder hegemônico que dominava a paisagem do país pela ordem e estética
autoritárias do salazarismo.
Considerando diversos pontos de vista, se forem elencados muitos dos
colóquios, seminários, debates e outras atividades afins, ele contribuiu para um papel
transformador, resgatando uma dimensão do pensamento crítico e das artes, numa
zona central da cidade de Lisboa. Ali foi possível, por intermédio da construção da
identidade social nele impressa, garantir a sobrevivência de um espaço estratégico
que, no trabalho de resistência ao Estado Novo, serviu para dar continuidade a vários
projetos de um segmento social que se propunha a construir um Portugal novo.
Nos anos iniciais da década de 1960, a guerra colonial implicava uma série de
problemas graves ao país, mas era proibido tratar abertamente do assunto e fazer-lhe
oposição. Sendo um tabu, por tratar-se de um ponto nevrálgico da defesa do regime,

230 CENTRO Nacional de Cultura, op. cit., p. 27.


129
havia enorme cuidado ao se lidar com o assunto, e nas reuniões dos católicos
progressistas em que Sophia participava zelava-se pelo assunto sob enorme risco,
como se pode notar no discurso impresso em boletins do jornal clandestino Direito à
Informação (DI) desse grupo. Ao mesmo tempo, os segmentos de oposição sabiam
que era de grande importância buscar as informações acerca do conflito e divulgá-las
aos portugueses. Um evento que se relaciona à denúncia da guerra colonial trouxe
pesadas consequências a uma entidade em que havia anos os escritores podiam se
reunir e fortalecer-se na divulgação das artes e da cultura, apenas para incluir as
dimensões mais visíveis da Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE).
Em maio de 1965, essa entidade (fundada em 1956) foi invadida e destruída
por forças da PIDE, cuja justificativa vinda das medidas ditatoriais se devia em razão
de afirmar que os escritores haviam cometido um crime contra a segurança do Estado,
ao terem atribuído o Grande Prêmio de Novelística ao livro de contos Luuanda, de
Luandino Vieira, quando o escritor estava a cumprir pena de prisão no Campo do
Tarrafal, em Cabo Verde.
O estudo de João Pedro A. George sustenta, no entanto, que a PIDE já
mantinha anteriormente o propósito de apertar o cerco à SPE em razão de na entidade
se constituir um ponto de convergência de vários escritores incômodos ao regime. Em
seu artigo, menciona que em um dos relatórios semanais dessa polícia houve o
registro que em 1963 foram realizados colóquios culturais promovidos pela
Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto e neles compareceram
vários sócios da SPE, a exemplo de José Cardoso Pires, Sophia de Mello Breyner
Andresen, António Ramos Rosa, Orlando da Costa, Augusto Abelaira e Óscar
Lopes231. Foi para o Centro Nacional de Cultura, onde por conta da repressão e da
censura os eventos tinham de ser realizados em parte clandestinamente ou de
maneira cifrada, que Sophia de Mello Breyner abrigou a partir de 1960 muitos
expoentes da cultura, como escritores, jornalistas, professores que tinham sido

231 GEORGE, João Pedro de Avellar. Campo literário português? O caso da extinção da Sociedade
Portuguesa de Escritores em 1965. Coimbra, Revista de História das Ideias, v. 21, 2000, p. 475, p. 461-
499. O autor cita um trecho do relatório, para que se tenha uma noção do tom nele empregado: "O grau
de interesse por essas pretensas sessões culturais não era suscitado pela projecção ou talento do
conferencista, mas sim pelo seu maior ou menor prestígio, adquirido na defesa de princípios políticos
opostos aos que actualmente vigoram no país”. "Relatório Semanal n° 6/63 - S. R. da Polícia
Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), Delegação do Porto", ANTT, Arquivo PIDE/DGS,
Sociedade Portuguesa de Escritores.

130
banidos de seu ofício e, após a derrocada da Sociedade Portuguesa de Escritores,
deu acolhida no CNC a colegas da literatura que não tinham mais local para suas
reuniões. Podemos supor que não é certo afirmar que a maioria das reuniões foram
lá realizadas depois de a SPE ter sido destruída, uma vez que era necessário um
propósito conciliador vigoroso para unir vertentes que já estavam divididas por
questões político-ideológicas, como apresentou em suas considerações José Manuel
Mendes:

Algumas, outras não, porque algumas reuniões tiveram que ser feitas em casa
deste, daquele, ou daquele outro escritor. Os espaços foram muito variados.
Foi necessário em muitas circunstâncias partir até de actos de resistência,
quase que conspirativa, e não raro de natureza clandestina, para forjar modos
de intervenção que pudessem exprimir com clareza que os intelectuais
portugueses, os escritores nesse caso concreto de que estamos a falar, tinham
um campo, que era o campo da liberdade, da democracia. Foram múltiplas as
formas, não podemos pensar que eram apenas aquelas que nasciam da
organização concreta do Partido Comunista Português, dominante no que toca
à resistência, e particularmente forte. Ou aquelas que eram feitas por uma mão
cada vez mais inteligente e activa dos católicos progressistas. Eram também
muitas outras e que passavam por tertúlias e por acções desenvolvidas por
personalidades com imenso destaque na vida pública, sem alinhamento
partidário ou com alinhamento partidário, com opções ideológicas inteiramente
definidas232.

A campanha eleitoral de 1969

Nos últimos anos do regime, houve a fusão de dois processos que tinham
despontado nos finais dos anos cinquenta – a formação de uma esquerda à esquerda
do PCP e a politização do meio estudantil – e dessa maneira decorreu uma influência
crescente dos grupos radicais nas associações estudantis, conforme assinala Guya
Accornero, a qual frisa que ocorreu uma competição à esquerda pulverizando a

232Entrevista concedida a mim por José Manuel Mendes, na Associação Portuguesa de Escritores, em
Lisboa, a 24/fevereiro/2014.
131
oposição ao Estado Novo233. Assim, se foi comum até aquele momento a existência
de listas eleitorais unitárias que reuniam a oposição, nas eleições de 1969 para a
Assembleia Nacional comunistas e socialistas dividiram-se. Formaram-se em Lisboa,
Porto e Braga, mediante essa polarização político-ideológica, a Comissão Eleitoral de
Unidade Democrática (CEUD) e a Comissão Democrática Eleitoral (CDE).
A CEUD foi composta por comissões eleitorais ligadas à Acção Socialista e
nela se integraram também católicos do segmento progressista amigos de Mário
Soares, a exemplo de Sophia de Mello Breyner, pelo círculo do Porto, e Francisco
Tavares (em Lisboa) e, igualmente, monárquicos234. Seu lema de campanha: Por um
Portugal livre e melhor. A Comissão Democrática Eleitoral, por seu turno, tinha uma
influência direta do Partido Comunista Português (PCP) e adotou o lema Na tua voz,
a força do povo. Seu papel foi marcante nas discussões ocorridas, naquele mesmo
ano, no Segundo Congresso Republicano de Aveiro. Entre os militantes de Lisboa
mais conhecidos, destacavam-se Francisco Pereira de Moura, José Manuel
Tengarrinha e Urbano Tavares Rodrigues, além de católicos progressistas, como
Nuno Teotónio Pereira.
Em um período no qual as divergências nos grupos antifascistas acirravam-se,
Sophia deve ter sentido o desejo de clarear suas opiniões a respeito da opção que
fizera em integrar a CEUD – um olhar que se volta, em parte, favoravelmente às
promessas que o governo acenava, de modo que demonstra ter mesmo mantido
certas esperanças no período da chamada primavera marcelista. Encontramos um
texto em que Sophia anotou que havia entrado na campanha eleitoral com o intuito de
ajudar a transformar um sistema social e um regime político que considerava injusto,
além de ser cruel e contrário à defesa da nação. Elenca diversos fatores que menciona

233Nesse momento, segundo Guya Accornero ocorre uma competição à esquerda, em que se dá a
cisão maoísta e o abandono, por parte do PCP, de uma opção unitária. Com isso, o PCP perde
hegemonia nas formas de oposição ao Estado Novo. ACCORNERO, Guya. “Efervescência estudantil:
Estudantes, acção contenciosa e processo político no final do Estado Novo (1956-1974)”. Tese de
Doutorado em Ciências Sociais. Universidade de Lisboa, 2009, p. 182-83.
234Houve, contudo, listas unitárias em outras cidades do país. Em Santarém, saiu candidata Maria
Barroso, a esposa de Mário Soares. Lembra ao leitor Adelino Maltez que “o monárquico Gonçalo
Ribeiro Teles e o ex-Opus Dei, Ruy Belo, são também candidatos pela CEUD, enquanto o futuro
socialista Mário Sottomayor Cardia aparece em Lisboa, como candidato pela CDE”. MALTEZ, José
Adelino. Portugal político. Anuário: 1969. Disponível em:
<http://maltez.info/respublica/portugalpolitico/anuario/1969.pdf > .

132
terem sido alterados em 1968, como o abrandamento da censura; a cooperativa
Pragma ter conseguido voltar a existir; haver menos presos em Caxias; alguns
exilados terem conseguido retornar ao país; itens que sintetizavam que havia menos
medo, de tal modo que quem entrasse na luta contra o regime teria a sensação de
que não correria tantos riscos.
Alega, contudo, que nada disso era suficiente para realizar a modificação de
que o país necessitava porque, em primeiro lugar, as mudanças que foram efetuadas
melhoraram somente a condição de vida de algumas pessoas. Nesse sentido, se a
situação havia melhorado um pouco para o escritor português, continuava asfixiante
para os operários, os camponeses, os pescadores e os estudantes. Em segundo
lugar, permaneciam as mesmas as leis e toda a organização do poder. Em
consequência, ainda havia censura; leis a permitir que pessoas fossem presas sem
culpa formada; outras leis que possibilitavam exilar e perseguir arbitrariamente os
cidadãos. Vejamos como Sophia conclui suas teses e apresenta as finalidades da
campanha:

A nossa esperança de liberdade é uma esperança sem garantias. A nossa


segurança e liberdade pessoais dependem da disposição e da vontade de
alguns homens. O poder tem abusado menos de poder mas continua a poder
abusar do poder. É absolutamente necessário tornar impossível o abuso do
poder e isto para mim é a primeira finalidade desta campanha eleitoral: legalizar
a liberdade. Exigir leis que garantam a liberdade de informação através de
todos os meios de comunicação. Exigir leis que garantam liberdade política a
todos os partidos, para que exista uma pátria real. Assim, por exemplo, é
preciso que o Partido Comunista possa ter em Portugal existência legal à luz
do sol. Obrigar o Partido Comunista a viver na clandestinidade não é só uma
injustiça: é também criar para a vida política uma situação de falsidade. Alguém
disse que Portugal precisa tanto de verdade como de pão. Um país privado de
informação deixa de ser uma pátria. Pois uma pátria não é só um determinado
número de pessoas e o chão que essas pessoas habitam. Uma pátria é uma
consciência e quando não existe nem informação nem conhecimento nem
comunicação essa pátria é mutilada e alienada no seu cerne. Portugal é um

133
país que não se conhece, que não se vê a si mesmo porque tem sido impedido
de se ver. Portugal é um país que precisa de se reconhecer235.

A campanha eleitoral decorreu em setembro e outubro, enfrentando os


métodos costumeiros de recenseamento antes seguidos, a recusa de que alguns
candidatos pudessem participar, além de limites ao direito de reunião e à volta com a
censura à propaganda e à imprensa236. Muitas reuniões da oposição eram realizadas
no Centro Nacional de Cultura onde também começaram a funcionar a Comissão
Nacional de Socorro aos Presos Políticos (tema que tratamos a seguir), cujo prédio
situava-se defronte ao da PIDE.
O CNC havia planejado um evento em março de 1969, “Lusitania, Quo Vadis?”,
em que participavam figuras da oposição, como Jorge Sampaio, Francisco de Sousa
Tavares, José Lopes de Almeida, Mário Brochado Coelho, Mário Soares e Mário
Sottomayor Cardia, mas apenas as duas primeiras sessões aconteceram, porque a
repressão impediu, a polícia entrou em ação com bastonadas e conforme o relato de
Marcos Soromenho, o Galvão Telles [ligado à CDE] ‘foi preso por atividades que
realizou enquanto presidente do Centro Nacional de Cultura”237.

235 Intervenções políticas, 1969, Espólio de Sophia de Mello Breyner, Biblioteca Nacional de Portugal.
236MARTINS, Susana. “CDE e CEUD: A oposição dividida nas eleições”.In: PAÇO, António Simões do
(coord.). Os anos de Salazar. Lisboa, Planeta de Agostini, 2008, v. 25, p. 94.
237 SOARES, Manuela Goucha. “A PIDE vasculhou todos os cantos da casa. Menos o frigorífico onde
estavam os papéis”. Lisboa, Expresso, 4 jun. 2015. Relembra-nos um caso até pitoresco que talvez
tenha se passado no fim de 1969, ou já em 1970, quando no CNC havia terminado uma reunião do
pessoal à volta do Nuno Teotónio Pereira, que produzia informações sobre a guerra colonial, o BAC –
boletim Anti-Colonial. Francisco Sousa Tavares estava fechando a porta do CNC quando chegaram
agentes da PIDE e disseram que ali estavam porque iriam apreender os papéis sobre a luta anticolonial
– era comum os participantes dos debates saírem por uma passagem secreta – existe até hoje naquele
espaço – que permitia escapar da vigilância de pides, pois como já mencionamos o prédio da segurança
e força repressiva situava-se na mesma rua da instituição cultural. Descreve Guilherme Martins o que
se passou: “O Dr. Sousa Tavares disse: ‘Mas eu não tenho papéis, e o que há aqui é uma pequena
conversa’. Mas os agentes da PIDE forçaram e o Dr. Sousa Tavares abriu-lhes a porta. Eles entraram,
andaram por aqui, por toda a parte e não descobriram nada dos tais papéis. Nada! [...] E sabe por que
não foi descoberto? Porque o Dr. Sousa Tavares, antes de sair, tinha posto tudo no congelador do
frigorífico. Depois eles viram o frigorífico, abriram o frigorífico, mas não se lembraram de ir ao
congelador, a parte onde se faz o gelo. E, portanto, enfim, essa é uma história engraçada, porque de
facto os agentes não encontraram os papéis, que tinham sido escondidos no congelador”. Entrevista a
mim concedida por Guilherme d’Oliveira Martins, no Centro Nacional de Cultura, Lisboa, a 14/fev./2014.

134
Esses são exemplos das sucessivas violações à proclamada igualdade de
condições das candidaturas da CDE e da CEUD diante daquelas filiadas à União
Nacional – cujo slogan empregado Tenha confiança no futuro soava mesmo com uma
tonalidade irônica e provocativa. Ocorridas a 26 de outubro, a União Nacional elegeu
todos os candidatos de suas listas, nas mesmas circunstâncias em que se davam
comumente as fraudes do sistema eleitoral. Reunida em bloco, a oposição denunciou
o próprio ato eleitoral e contestou os resultados oficialmente apurados.

A Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos

A Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP) foi instituída


em dezembro de 1969, ao abrigo do art. n. 199 do Código Civil Português – era mesmo
uma brecha que os opositores do regime encontraram na legislação – a qual teve
permissão, portanto, para funcionar legalmente. Relatou-nos Guilherme d’Oliveira
Martins que se tratava de “uma associação clandestina, naturalmente”, e “tinha como
sede informal – porque não podia ter sede formal, era uma organização clandestina –
o Centro Nacional de Cultura, aqui na Rua António Maria Cardoso, número 68”. Sem
dúvida, era muitos os limites da censura em relação aos documentos que a entidade
elaborava sobre a denúncia da tortura e da condição de vida dos presos políticos, e a
constante vigilância da Direção Geral de Segurança (DGS).
Sophia foi uma das fundadoras da CNSPP, incluindo o esforço de outras 47
personalidades que se congregaram para auxiliar os presos. Mais próximos a Sophia
nesse trabalho estavam Frei Bento Domingues, Fernando Lopes Graça, Luís Filipe
Lindley Cintra. Por ordem alfabética, citamos os nomes de mulheres, além de Sophia,
que foram fundadoras dessa entidade: Cecília Areosa Feio, Ilse Losa, Manuela
Bernardino, Maria do Carmo Tavares d’Orey, Maria Eugénia Varela Gomes, Maria
Gabriela Figueiredo Ferreira, Maria Keil, Maria Lúcia Pulido Valente Monjardino, Maria
Lucília Miranda dos Santos, Maria Manuela Antunes, Marta Cristina de Araújo.
Sophia “conferia enorme prestígio à Comissão, a qual dava expressão orgânica
à intervenção dela”, de acordo com a entrevista a nós concedida por Frei Bento
Domingues. A Sophia estava na função de presidir os trabalhos da CNSPP com base
nas reuniões no Centro Nacional de Cultura e a escolha de seu nome foi estratégica,

135
porque “não podia ser um comunista. Tinha que ser alguém, portanto, que não
estivesse ligado ao Partido Comunista. Mas que fosse tal qual a Sophia, uma pessoa
muito empenhada na oposição”238, conta-nos Guilherme d’Oliveira Martins. Muitas
vezes, a escritora acompanhada do músico Fernando Lopes Graça (ligado ao Partido
Comunista) e do Frei Bento Domingues foram à Assembleia da República levar
documentos relativos aos presos políticos e, com isso, apelar, entre outras exigências,
que lhes fosse garantido um tratamento pautado no respeito aos direitos humanos,
pois era frequente terem de lutar em relação aos casos mais graves: eram aqueles
relativos a pessoas que tinham sido submetidas a longo período de tortura e/ou
encontravam-se no cárcere havia muito tempo. Frei Bento relatou-me ainda em
entrevista que Sophia dedicou-se bastante a dar suporte à Comissão Nacional de
Socorro aos Presos Políticos:

Repare, porque o contacto com a Sophia eu tinha mais por amigos comuns até
determinada altura. Até conhecia mais o marido [Francisco de Sousa Tavares],
por vários encontros, vários debates, várias coisas. Mas com ela foi num tempo
em que ela já estava mais engajada, quando ela pertenceu à Comissão
[Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos], logo instauradora, no
Socorro aos Presos Políticos. Só que havia muita gente que deu o nome, mas
que não teve depois trabalho activo. Houve um secretariado ao qual eu
pertencia que era mais activo. Mas ela foi sempre muito activa, muito
interveniente. Porque ela era declaradamente uma opositora do regime239.

Houve um pouco mais de quatro anos de atividade da CNSPP e nesse período


sua equipe de trabalho publicou 23 boletins de informação a respeito de práticas de
tortura aos presos, as prisões que iam sendo feitas, os julgamentos e as penas
aplicadas, as queixas que eram levadas até as autoridades, apenas para citar alguns
exemplos. Uma de suas atividades era recolher apoio financeiro para ajudar as
famílias de presos políticos, designar-lhes advogados de defesa e dar conta de outras
iniciativas. Por meio do contato com sócios do CNC e participantes de discussões que

238Entrevista a mim concedida por Guilherme d’Oliveira Martins, no Centro Nacional de Cultura, Lisboa,
a 14/fev./2014.
239 DOMINGUES, Frei Bento. Entrevista concedida a Eloísa Aragão. Lisboa, 30/novembro/2013.
136
lá ocorriam, e onde funcionava grande parte das reuniões da Comissão Nacional de
Socorro aos Presos Políticos, com o intuito de auxiliar nas despesas das famílias de
presos, Sophia promoveu leilões de quadros e de poemas autografados pelos próprios
autores240.
Um dos projetos dessa Comissão foi especialmente favorável para que as
crianças filhas de presos políticos estivessem mais próximas a eles: as colônias de
férias, instaladas em 1972 e 1973. Catalina Pestana, filha de militantes antifascistas,
era ainda adolescente quando foi trabalhar nessas colônias de férias e costumava dar
ajuda nas atividades da CNSPP. Relatou-nos em entrevista que no nome da entidade
foi empregada a palavra “socorro” porque era proibido usar “solidariedade”. Vejamos
um trecho de seu relato:

Naquela altura, tinha saído uma lei qualquer em que era permitido usar o termo
“socorro”. Então, o que fazíamos? Além de várias atividades, trabalhávamos
com a Amnistia Internacional. A Amnistia Internacional queria ter, e tem, uma
grande bateria de documentos, de informação. E pedia-nos, comprava-nos os
documentos que a gente tinha, por troca de dinheiro. Fazia de conta que
comprava. E a gente dava esse dinheiro às mães que tinham os maridos presos
e não tinham dinheiro para pôr os filhos na escola, ajudava as que queriam ver
os maridos, mas não podiam porque era muito longe e tinham que deixar o
trabalho. Conseguíamos, por exemplo, transferir os prisioneiros de Peniche e
de Caxias241.

As pessoas reuniam-se em um grupo informal, constituído por vários médicos


e advogados que davam assistência aos presos políticos, narra Catalina Pestana.
Assim, quando era preciso a colaboração de um médico, ele ia ver os doentes e
constatava que haviam sido maltratados, e a partir daquele momento a equipe da
CNSPP fazia de tudo para eles ficarem no hospital, “porque a vida no hospital prisional

240 CASTRO, Pedro Jorge. “Um casal apaixonado contra Salazar”. Lisboa, Sábado, 25 abril 2016.

241 Entrevista a mim concedida por Catalina Pestana, em Cruz Quebrada, a 31 de janeiro de 2014.
137
político aqui de Caxias era francamente menos má”242. Ela dava suporte diretamente
à entidade trabalhando nesse grupo e conta que foi a esse hospital “duas vezes
seguidas quando fui visitar um prisioneiro comunista, que depois do 25 de Abril vim a
saber que era do Comitê Central”243.

A Associação Portuguesa de Escritores: o ressurgir da antiga casa

O ano de 1965 havia sido trágico para os escritores, quando tiveram


assaltada e destruída a Sociedade Portuguesa de Escritores, tema por nós já
apresentado anteriormente. Ao passar de oito anos, nenhuma providência em
relação ao caso foi tomada por parte do Estado, nenhuma iniciativa que “de
alguma maneira reparasse os danos patrimoniais e morais causados através
da milícia fascista”244, nas palavras de José Manuel Mendes. É preciso reiterar
que houve todo um movimento de buscar a promoção da continuidade dos
debates por parte dos escritores, que encontraram refúgio no Centro Nacional
de Cultura e em casa de um ou outro, mas em 1970 foi iniciado um processo
de criação da nova entidade, um processo que percorreu certo tempo até que
a 13 de abril de 1973, fundaram a Associação Portuguesa de Escritores (APE).
A intervenção de um grupo de escritores em que Sophia participava,
segundo José Manuel Mendes, foi muito concreta porque não se rendia à ideia
de que já não existisse um organismo capaz de fazer a defesa de seus direitos
e interesses, “no estrito plano daquilo que é a atividade que cada um tem na
realização dos seus livros, do seu projeto estético”245. E, por intermédio de
numerosas reuniões, em uma configuração social um pouco mais favorável dos
primeiros ventos da primavera marcelista, “foram sendo estabelecidas ligações
com o poder político. E, então, convém que diga o seguinte: nem todo o poder
político era, a partir de determinado momento, estrita e violentamente
salazarista”246. Não puderam os escritores, contudo, empregar o nome de

242 Idem, ibidem..


243 Idem, ibidem.
244Entrevista concedida a mim por José Manuel Mendes, na Associação Portuguesa de Escritores, em
Lisboa, a 24/fevereiro/2014.
245 Idem, ibidem.
246 Idem, ibidem.
138
sociedade – no plano histórico isto seria “vencer” por meio da memória a situação
anterior de destruição da SPE deixando claro que a nova entidade era mesmo uma
continuação daquela do passado, como sempre reivindicou a classe dos literatos –,
exatamente porque o regime ditatorial queria:

(...) um nome diferente para que se não dissesse que se estava a contrariar o
que tinha sido a extinção da Sociedade Portuguesa de Escritores. Então,
encontrou-se o nome associação. E formou-se a associação, que tinha o
mesmo espírito, já com outras pessoas, algumas ainda eram as mesmas,
daquela que tinha sido a Sociedade Portuguesa de Escritores. Nesse percurso,
e nessa fase, sobretudo, bastante mais aguda, a Sophia de Mello Breyner está
presente, sempre. Não é por acaso que depois ela acaba sendo um nome
importantíssimo, à frente dos órgãos diretivos iniciais dessa casa247.

Na Associação Portuguesa de Escritores, Sophia de Mello Breyner Andresen


ocupou o ofício de presidente da Assembleia-Geral, José Gomes Ferreira assumiu a
função de diretor e Faure da Rosa, presidente do conselho fiscal. A associação
também abriu delegações no Porto e em Coimbra. No discurso da tomada de posse,
a 14 de junho de 1973, Sophia de Mello Breyner Andresen realçou a razão de ser da
Associação Portuguesa de Escritores: a defesa da liberdade de consciência e a
responsabilidade de escrever. Fez um discurso belíssimo que foi muito divulgado. Eis
um trecho: “É a poesia que torna inteiro o meu estar na terra. E porque é a mais funda
implicação do homem no real, a poesia é necessariamente política e fundamento da
política. Pois a poesia busca o verdadeiro estar do homem na terra e não pode por
isso alhear-se dessa forma de estar na terra que a política é. Assim como busca a
relação verdadeira com os outros homens. Isto o obriga a buscar o que é justo, isto o
implica naquela busca de justiça que a política é”248.

247 Idem, ibidem.


248ANDRESEN, Sophia de Mello B. “Poesia e Revolução”. In: O Nome das Coisas. 2 ed. Lisboa:
Edições Salamandra, 1986, p. 75. Conferir, igualmente, o excelente artigo: MENDES, José Manuel.
“Sophia e o associativismo de escritores”. In: TAVARES, Maria Andresen Sousa; CNC (orgs.). Sophia
de Mello Breyner Andresen: Actas do Colóquio Internacional. Porto: Porto Editora, 2013, p. 219-224.
139
A vigília de São Domingos e a vigília da Capela do Rato

Sophia teve uma atuação de grande vulto na Vigília de São Domingos, em 1 de


janeiro de 1969. Para essa vigília ela elaborou o poema “Vemos, ouvimos e lemos”,
com base numa música de um espiritual negro norte-americano. O poema de Sophia
foi feito expressamente para essa vigília – acabou tornando-se um hino da resistêcia
em Portugal e até hoje em diversas reuniões de protestos ele é cantado – e foi
musicado por Rui Paz, e na vigília foi tocado ao violão por Francisco Fanhais.
Eis o poema, na íntegra, conforme foi cantado na ocasião da vigília:

Vemos, ouvimos e lemos


Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos


Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar


O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado

140
Depois da Missa pela Paz, celebrada pelo Cardeal Cerejeira naquela Igreja de
São Domingos, em Lisboa, Nuno Teotónio Pereira, Catalina Pestana, Pedro Onofre e
Francisco Solano de Almeida foram comunicar ao prior e ao patriarca que um grupo
de pessoas ficaria em vigília. O número de fiéis que permaneceu na igreja era mais
de cem, incluindo alguns sacerdotes – ficaram rezando e manifestando-se em
oposição à guerra nas terras de África, e, desse modo, sob a posição de cristãos
assumiam um compromisso de busca efetiva pela paz naquelas nações subjugadas.
A ocasião foi o marco inicial de um evento público ocorrido em uma igreja, um marco
de contestação em que católicos descontentes com o regime protestaram contra um
tema que era tabu e, ao mesmo tempo, ali podia se compreender que, se esse grupo
havia acreditado nas promessas de alguma abertura no projeto marcelista, essa era
uma esperança enterrada.
O evento se deu numa atmosfera de tensão, mas os participantes ficaram no
local em vigília até às cinco e meia da manhã. Na ocasião, houve diversos
testemunhos orais e escritos acerca dos problemas da guerra na Guiné, em Angola e
Moçambique, leram-se depoimentos de soldados e trechos de cartas pastorais dos
bispos de Angola e Moçambique249. Francisco Fanhais, ao rememorar vários
episódios dessa vigília, contou-me também que esse poema recebeu o título de
“Cantata da Paz” e tanto ele como o poema “Porque” de Sophia foram incluídos no
repertório de um LP que ele produziu em 1970:

[...] eu fui convidado para fazer um LP em 1970. E tinha que arranjar repertório
para esse LP, e falei com um amigo meu, o Francisco Fernandes, dizendo que
tinha esse convite, tinha algumas músicas que queria gravar, e perguntei se ele
tinha outras músicas que eventualmente ele pudesse sugerir para a gravação.
E ele disse-me que tinha um poema da Sophia de Mello Breyner que se
chamava “Porque”. Tinha feito uma música para esse poema. Fui à casa dele,
ouvi a música e gostei. E disse: “Posso gravar isso?”. Ele disse: “Podes, claro
que podes”. Depois falei com a Sophia também, dizendo: “Posso gravar?”.
Tinha a intenção de gravar, acho que teoricamente ou legalmente não é preciso

249ALVES, José da Felicidade. Católicos e política. De Humberto Delgado a Marcello Caetano. Lisboa:
1969, p. 274. Catalina Pestana em entrevista a mim concedida (ver Apêndice) ressaltou que houve
prisões a alguns participantes dessa vigília e ela própria foi chamada a responder interrogatório por ter
participado no protesto.

141
autorização escrita da pessoa. Quer dizer, comunica-se. É uma questão de
ética, de cortesia, mas acho que não é necessário. Mas pronto, eu comuniquei
à Sophia que ia gravar o “Porque”. E... pronto, o “Porque” e a “Cantata da Paz”
passaram a integrar o disco que chama “Canções da Cidade Nova”250.

Outro evento significativo que teve como mote a luta contra a guerra colonial
foi a vigília na Capela do Rato. Para lá foi para onde convergiram, nos dias finais de
1972, católicos e estudantes para uma vigília que expressava o mal-estar diante da
continuação da guerra colonial, vista como brutal e penosa, e que já chegava a 12
anos de duração. Foram católicos ligados ao Boletim Anti-Colonial – dos quais
estavam à frente Luís Moita, Isabel Pimentel, Conceição Moita – e estudantes, entre
eles João Cordovil, Galamba de Oliveira e António Matos Ferreira, que preparam o
evento.
A ligação entre os dois grupos foi estabelecida por Francisco Cordovil. Sábado,
30 de dezembro de 1972, na missa das 19h30 da capela da Juventude Estudantil
Católica (JEC), na Calçada da Rocha Cabral, um grupo de cristãos foi ao Rato declarar
ao Padre João Seabra Dinis, que celebrava o rito católico, a intenção de “realizar na
capela uma jornada de 48 horas de ‘greve da fome’ e de reflexão acerca da guerra
colonial”251, e para a adesão à causa faz um apelo a cristãos e não-cristãos,
divulgando, com o devido cuidado necessário no contexto ditatorial, a importância de
tal protesto e de reunirem um número significativo de pessoas para aquela iniciativa.
Assim, as portas da capela foram abertas a todos que desejassem debater o
problema da guerra, fossem crentes na fé cristã ou não. A coordenação de toda a
ação foi assegurada por Luís Moita, que pediu a colaboração das Brigadas
Revolucionárias, organização clandestina chefiada por Carlos Antunes e Isabel do
Carmo, com a missão de divulgar o acontecimento na região de Lisboa, o que foi feito
através de panfletos. A escolha da Capela do Rato para esta iniciativa relacionou-se
com o fato de se tratar de um local de culto dirigido pelo padre Alberto Neto, que não
se opusera à iniciativa, mas nela não esteve presente porque se encontrava enfermo.

250Entrevista a mim concedida por Francisco Fanhais, em Lisboa, 25/novembro/2013.


251
ALMEIDA, João Miguel. A oposição católica ao Estado Novo, 1958-1974. Lisboa: Edições Nelson
de Matos, 2008, p. 268-9.

142
No domingo de manhã, dia 31, as missas das 11 horas e das 12h30 são
celebradas, e os participantes são informados sobre a vigília. No período da tarde,
continuam os debates, e aproximadamente 300 pessoas aprovam um documento em
que destacam ser a guerra contra os povos de Angola, Moçambique e Guiné injusta
e também uma situação que vitimiza o povo português. Uma síntese a respeito do
documento comprova que Sophia e Francisco foram apoiadores da vigília – ou nela
estiveram presentes por algum tempo – e responsáveis por solicitar uma ressalva
com o objetivo de evitar a propagação de concepções totalitárias (uma “denúncia dos
imperialismos”). Vejamos:

Por esta razão, [os participantes da vigília] repudiam vigorosamente a


política do Governo português; denunciam a atitude de cumplicidade
da Hierarquia da Igreja Católica; condenam a repressão sobre os
trabalhadores e jovens que se manifestam contra a guerra;
solidarizam-se com os povos das colónias em luta e com os
portugueses empenhados na construção de uma sociedade justa;
apelam a todas as pessoas conscientes que se unam na luta contra a
exploração e opressão do povo trabalhador. O debate da moção
revelara a existência de diferentes pressupostos ideológicos e
estratégicos. Francisco Sousa Tavares e Sophia de Mello Breyner
defenderam, sem sucesso, a inclusão no texto final de uma “denúncia
dos imperialismos”, plural que significaria uma crítica à política geo-
estratégica da União Soviética252.

Um grupo de católicos do Porto solidariza-se com os propósitos da vigília em


curso e envia uma mensagem aos presentes na capela do Rato. Por volta das 7 da
noite daquele domingo as forças policiais começam a cercar a capela, e às 8 e meia
há dez viaturas policiais com tropas de choque e cães, além de carros de outras
polícias controlando o trânsito e isolando toda aquela área. Por volta das 9 da noite,
um comissário da Polícia de Segurança Pública entra na capela e dá aos presentes
ordem de evacuação no prazo de dez minutos. A seguir o movimento é reprimido a

252
ALMEIDA, João Miguel. A oposição católica ao Estado Novo, 1958-1974. Lisboa: Edições Nelson
de Matos, 2008, p. 270-71.

143
força e aproximadamente 60 pessoas são levadas para a delegacia da Polícia de
Segurança Pública do Rato. Os suspeitos de serem líderes são conduzidos para os
calabouços do Governo Civil e mais tarde para o forte de Caxias, onde ficam
incomunicáveis. Deste grupo fazem parte Nuno Teotónio Pereira, José Luís Galamba
de Oliveira, Maria Benedita Galamba de Oliveira, Homero Cardoso, Manuel Coelho
Carvalho, João Cruz Morais Camacho, João da Fonseca Quá, Hermenegildo José
Carmo Lavrador, Jorge Wemans, João Pimentel e Miguel Teotónio Pereira. Também
Francisco Louçã – na altura tinha 16 anos – foi preso na ocasião, e em entrevista nos
relatou: “Estive preso com alguns que eram homens muito mais velhos, o Francisco
de Sousa Tavares, o Luís Moita, o Francisco Pereira de Moura, outras pessoas que
na altura eram homens maduros e, portanto, conheciam perfeitamente, tinham feito
parte, tinham apoiado essa iniciativa”253.

O 25 de Abril, o encontro com Mário Soares e a filiação ao Partido Socialista

Nos longos anos em que pesaram o autoritarismo, a censura, a violência e a


perseguição aos opositores, procedimentos estruturais da repressão no Estado Novo
em Portugal, muitos mantiveram durante os múltiplos combates travados o sonho de
que seria possível construir um país novo – em tão longo tempo de espera. Esse dia
chegou com o 25 de Abril de 1974. Este é indubitavelmente um dos pontos altos de
significado na trajetória de militância antifascista de Sophia, é mesmo um momento
de redenção e epifania, a respeito do qual ela pronunciou: “O 25 de Abril foi dos
momentos de máxima alegria da minha vida. Foram dias que vivi em estado de
levitação. Isso aliás aconteceu a muita gente”254. Não foi por acaso que escreveu
sobre um tempo inicial e inteiro em “25 de Abril”, seu poema amplamente difundido
que fez até mesmo Sophia ficar conhecida como uma espécie de “musa do 25 de
Abril”: “Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Em que
emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”. Acerca
desse dia relatou:

253Entrevista a mim concedida por Francisco Louçã, em Lisboa, 26/fevereiro/2014.


254Sophia de Mello Breyner, entrevista concedida a José Carlos de Vasconcelos. Lisboa, Jornal de
Letras, 25 de junho de 1991.
144
No 25 de Abril há um momento poético extraordinário. Hoje em dia nós olhamos
para trás e perguntamos a nós próprios se foi a nossa sede de uma ilusão que
criou uma espécie de fantasmagoria. Mas não há dúvida de que eu me lembro
uma cidade de Lisboa sem nenhuma polícia, sem nenhuma violência. Lembro-
me da cidade de Lisboa onde todas as pessoas que encontrávamos sorriam,
lembro-me de ver passar pequenos grupos de gente nova no Rossio que
pareciam pequenos bandos de bailarinos ou gaivotas, e atravessavam de um
lado ao outro da praça. Lembro-me de bandeiras que dançavam em cima da
cabeça das pessoas e das expressões e dos gestos e das vozes. E tudo isso
era um tão bonito e extraordinário momento poético e como que uma ilha noutro
planeta...255

O ideal de transformação social de Mário Soares, em um percurso que em seu


início incluiu a militância no Partido Comunista Português, o mobilizou a aproximar-se
dos católicos que faziam oposição ao regime ditatorial. Isso foi no princípio da década
de 1960, quando transcorreram os trabalhos preparatórios do Concílio Vaticano II, sob
o signo de ares renovadores na Igreja na vigência do papado de João XXIII. Soares
narra que nesses eventos haviam se destacado alguns católicos, de que a figura
emblemática era Francisco Lino Neto. Assim, ele se tornou amigo e companheiro de
luta de Lino Neto e, mesmo naquela época, conheceu Francisco Sousa Tavares e
“depois a sua mulher, Sophia de Mello Breyner, na Sociedade Portuguesa de
Escritores. Procurei estimular e apoiar esse grupo um pouco heterogêneo. Cedo
compreendi a sua importância”256. Era a tal importância estratégica, que Mário Soares
ao construir uma experiência política arguta não a deixou escapar. Para ele, setores
de peso da Igreja terem rompido com o regime salazarista foi uma oportunidade de
encontrar excelentes aliados, “porque retirava ao regime o seu principal argumento:

255 Sophia de Mello Breyner, entrevista concedida a José Carlos de Vasconcelos. Lisboa, Jornal de
Letras, 25 de junho de 1991. Nessa entrevista Sophia também relata sobre o 25 de Abril: “De facto
fiquei em êxtase e foi como eu vivi. Mas ao mesmo tempo foi uma ocasião perdida, de uma maneira
terrível, talvez porque não está na natureza das coisas cumprir aquilo que o 25 de Abril prometia. É um
pouco como a adolescência que tem em si imensas possibilidades que depois se vão malogrando. Há,
no entanto, uma conquista positiva: estamos num estado democrático – não há prisões políticas, não
temos colónias, não somos um povo colonizador, somos um povo que ajudou a criar liberdades e
independências. Apesar de tudo, há um serviço de saúde melhor. Há outra atitude. Mas houve uma
possibilidade de criar um tipo de sociedade diferente que não foi possível, mas também porque ninguém
quis, ou muito pouca gente quis”. Idem, ibidem.
256 AVILLEZ, Maria João. Soares: ditadura e revolução. Lisboa: Público, 1996, p. 169.
145
dizer que a Oposição Democrática era constituída tão-só por comunistas e por velhos
republicanos ultrapassados que, por despeito, faziam o jogo dos comunistas”257.
Em junho de 1974, portanto já no período revolucionário, a direção da
Associação Portuguesa de Escritores havia lançado uma proposta saudando os
“Movimentos de Libertação que têm lutado realmente pela independência das
colônias”. Na Assembleia Geral Extraordinária então promovida nesse dia, 20 de
junho, a proposta foi aprovada por aclamação. A presidente do evento, Sophia de
Mello Breyner, leu um texto de sua autoria intitulado “A nossa coragem não foi
póstuma”, abrindo os trabalhos, do qual destacamos um trecho:

Como todos sabem em 1965 o Estado Novo, num acto que foi um abuso do
poder, destruiu a Sociedade Portuguesa de Escritores. E através da Pide,
através dos órgãos de Informação, através de todas as formas de perseguição
o governo procurou criar em roda dos escritores um clima de terror. A esse
terrorismo os escritores portugueses não cederam. E desde o primeiro instante
protestaram. Mas não se limitaram ao protesto e ao longo dos anos, com
obstinação, inteligência e dedicação lutaram para, a partir da ruína, construir
de novo. A reconstrução de uma sociedade de escritores em pleno Estado
Novo foi uma vitória contra o fascismo. Porque sabíamos que só unidos nos
poderíamos defender de um poder que, com Pides, calúnia e censura, e
apoiado em todas as máfias oportunistas, nos cercava. [...] Em 25 de Abril, o
Movimento das Forças Armadas liquidou o reino do tirano. Agora entramos num
tempo de criação. O poeta é um criador de liberdade e sabe que a criação da
liberdade é uma criação contínua. [...] E nesta defesa da palavra o poeta sabe
que o povo é o seu aliado e companheiro, pois é graças aqueles que trabalham
com as suas mãos que a palavra permanece consubstancial à vida. E é através
dessa consubstanciação com a vida que poderemos ultrapassar a alienação
da cultura ocidental258.

A grande propriedade de seu fazer artístico e literário associou-se de modo


mais dinâmico e intenso à reflexão de uma perspectiva socialista, ainda mais, naquele

257 AVILLEZ, Maria João. Soares: ditadura e revolução. Lisboa: Público, 1996, p. 131.
258 ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. “A nossa coragem não foi póstuma”. República,
21/junho/1974, p. 18.
146
momento revolucionário em que estava a se buscar construir uma nova sociedade, e
assim Sophia expôs suas opiniões em vários meios, como em jornais, em rádio e em
canais de televisão (não foi possível investigar de modo pormenorizado esses
acervos, em razão dos limites que este trabalho nos impunha, mas parece que, de
fato, eles existem). Mário Soares explica que esse nível de comprometimento social e
político que vinha desde muitos anos anteriores à Revolução de Abril o fez se
aproximar do casal Sophia e Francisco (era conhecido entre os amigos pela alcunha
de Tareco) com quem ele e a esposa Maria de Jesus Barroso criaram uma amizade
fraterna. Mais tarde, em 1975, quando os partidos estavam a compor os quadros de
deputados para concorrer às eleições para a Assembleia Constituinte (ocorridas a 25
de abril desse ano), Francisco Sousa Tavares não foi convidado pelo Partido
Socialista para ser deputado, e isso “provocou as primeiras fricções entre o casal”259.
Relata Mário Soares:

Não o escolheu a ele, o PS escolheu-a a ela [Sophia]. Mas isso foi uma
distinção que o partido quis fazer. O Sousa Tavares era um homem que tinha
um temperamento complicado apesar de ser simpatiquíssimo e um homem
também de extraordinária inteligência, um jornalista de primeiríssima ordem,
que escrevia aqueles artigos de jacto e sem emendas, impressionantes e que
um deles até deitou um dos meus governos abaixo260.

A amizade que havia com o casal, depois desse convite feito exclusivamente a
Sophia, talvez não tenha sobrevivido com a mesma intensidade. A têmpera de
Francisco Tavares, referida por Mário Soares e várias outras personalidades, talvez
não tenha alcançado as notas de tolerância para que ele mantivesse um
distanciamento crítico entre a leitura política e a de cunho pessoal, de modo que
possivelmente esse tenha sido um momento de afastamento entre ele e Mário Soares.
Naquilo que se relaciona a uma leitura mais peculiar ao nosso recorte de estudo, a
questão de ter sido a mulher, Sophia, a ser chamada a integrar uma lista do partido e

259 “Intervenção: Sophia de Mello Breyner Andresen”, Lisboa, Diário de Notícias, 26 jan. 2011.
260 “Intervenção: Sophia de Mello Breyner Andresen”, Lisboa, Diário de Notícias, 26 jan. 2011.
147
concorrer às eleições foi um fator desgastante para o casal, se pudermos atribuir um
grau de fidelidade à informação divulgada pelo jornal.
Em uma dimensão mais especulativa, esse mal-estar gerado entre eles pode
ter assumido uma dimensão contraditória e complexa, pois tanto Sophia quanto
Francisco haviam se dedicado à militância antifascista. E nessa ocasião, do ponto de
vista político, o ideal teria sido ele também ser chamado, contudo não saiu candidato
nessas eleições por nenhum partido. Com isso, Francisco deve ter sofrido uma dupla
dificuldade que possivelmente afetou o seu convívio com a esposa: ter um passado
de militância antifascista e não conseguir estar na tribuna – um sentimento de
exclusão por não ser incluído no momento imediato de construção de um governo de
regime democrático – quando sua mulher havia sido contemplada por seu
empenhamento político, e a partir desses eventos estabelecia-se a necessidade de
equacionar o desequilíbrio de reconhecimento resultante dessa situação (conta, para
tanto, a importância de buscar a superação de uma postura machista, uma questão a
ser levantada).
Contudo, Sophia sentiu-se honrada com o convite e veio a integrar na
campanha uma lista do Partido Socialista, pelo círculo do Porto. Foi eleita e assumiu
a função de deputada na Assembleia Constituinte, que funcionou de 2 de junho de
1975 a 2 de abril de 1976, data esta em que os deputados proclamaram a Constituição
da República Portuguesa. A poeta, segundo a visão de Frei Bento Domingues, quando
entrou no Partido Socialista o fez motivada pelo “socialismo democrático, não era
tanto pelo sistema, pela utopia interna que havia naquilo. A utopia dela poderia ser
expressa assim: é preciso existir um mundo que é de todos. Por isso, o social e o
político, essas duas dimensões andavam nela muito casadas, muito associadas. E o
ético, claro! Quer dizer: o político, o ético, o social e a cultura”261.
Sophia chegou a escrever um poema – e sua frase comemorativa à Revolução
tornou-se célebre: A poesia está na rua – aos militantes do Partido Socialista, em
homenagem ao Dia do Trabalhador, em 1 de maio de 1974, da qual destacamos um
trecho: Porque não estás só mas continuas/E os outros unem suas mãos às tuas/P’ra
que um mundo justo e livre nasça/Por isso avanças sempre e não recuas/Connosco
a poesia está nas ruas.

261Entrevista a mim concedida por Frei Bento Domingues, no Convento dos Dominicanos, em Lisboa,
30/novembro/2013.
148
Os discursos de Sophia na Assembleia Constituinte (1975-1976)

A nossa perspectiva de estudo é a respeito dos discursos proferidos por Sophia


durante sua atuação na Assembleia Constituinte. Na realidade, foram poucas suas
intervenções, e assim nos atestou o professor Joaquim Romero Magalhães262,
também ele um deputado pelo Partido Socialista naquela mesma casa em que se
trabalhou por firmar uma carta magna para a nação num estamento democrático.
Sophia teve ainda um papel de destaque nessa configuração política, porque foi
presidente da Comissão para a Redação do Preâmbulo da Constituição.
Em 2 de agosto de 1975, tem lugar a primeira fala de Sophia, no período de
antes da ordem do dia. O presidente da mesa concedeu-lhe sete minutos para concluir
sua apresentação. Notamos ter ela preparado um texto muito elaborado em que
ressalta um olhar abrangente sobre o processo revolucionário e denúncias que, do
seu ponto de vista, eram necessárias e urgentes levar ao público. Inicia o discurso
com o mote da alegria que tomou Portugal inteiro ao acolher o 25 de Abril. Foi aquele
um momento de manifestação de um sentimento tão forte que o povo não poderia
esquecer, quando a revolução iniciada parecia uma revolução exemplar. A desgraça,
porém, havia dia após dia tomado o terreno sobre a revolução, e com isso estava,
irremediavelmente, por a desvirtuar mediante o abuso e a avidez de falsas vanguardas
ideológicas.
Em consequência, no entender da poeta um dos problemas resultantes era que
assim fazia-se a política da capital e não a política de Portugal. O povo português de
maneira justa estava a manifestar seu descontentamento. O que ela estranhava,
porém, e naquela oportunidade vinha denunciar, era que tal processo estava sendo

262Joaquim Antero Romero Magalhães nasceu em Loulé, a 18 de abril de 1942. Construiu uma longa
e prestigiada carreira acadêmica: licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, em 1967; diplomado com o Exame de Estado de professor do ensino liceal, 1971; tornou-se
doutor em 1984; e em 2012 recebeu o título de Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra. Foi também professor convidado da École des Hautes Études
en Sciences Sociales de Paris, em 1989 e em 1999; da Universidade de São Paulo em 1991 e em
1997; e da Yale University em 2003. Foi também sócio correspondente estrangeiro do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, em 2001. Tem vários livros na área de história publicados, e coordenou o
terceiro volume da História de Portugal dirigida por José Mattoso, apenas para citar uma das obras. Foi
deputado à Assembleia Constituinte da República Portuguesa (1975-1976) pelo Partido Socialista; e
também Secretário de Estado da Orientação Pedagógica dos governos presididos por Mário Soares
(1976-1978), entre outras funções de relevo que desenvolve até os dias presentes.

149
liderado por falsos intelectuais de Lisboa, e ao mesmo tempo conduzido pelo
“facciosismo dos inconscientes e dos loucos e pelas estratégias dos oportunistas do
marxismo pronto a vestir”263. Houve agitação na sala e uma sequência de aplausos e
apupos, como ficou registrado na ata relativa à transcrição dos discursos do dia. Em
continuidade, Sophia diz que naquele momento era preciso que aqueles que detinham
o poder ouvissem com atenção a voz e a vontade popular, em virtude de ter sido feita
a revolução para mudar as condições de vida política, econômica e social de Portugal
mas não para que se mudasse de povo. O que estava em curso após o 25 de Abril,
na perspectiva de Sophia, era um rol de eventos forjados por procedimentos primários,
falseadores e demagógicos, ao que desabafa ser a demagogia a pornografia da
política e por esta força todo o país estava a ser transformado em comércio, num
supermercado de slogans.
Frei Bento relembrou em entrevista a mim concedida que a poeta era conhecida
por sua marca antirregime muito clara, mas que não tinha tendência nenhuma
panfletária, aliás “ela detestava — não podia! — com o que era panfletário, com o que
era... dessa natureza”264. E, segundo as palavras dele, Sophia teve uma intervenção
como deputada constituinte muito importante. Contudo, “ela não gostava nada da
linguagem estafada, da linguagem que diz sempre as mesmas coisas, do slogan, ela
era muito contrária a tudo isso. Aliás, ela escreveu desse modo... para que tudo
fosse... muito limpo no pensamento, na linguagem, na ação. Isso era uma regra ética
nela”265.
A demagogia, portanto, cita Sophia em seu discurso, funcionava como um
motor que invertia as intenções da revolução, era uma traição cultural ao seu
significado pleno, e a traição se fazia mais evidente nos órgãos de comunicação
social. De tal modo que a seus olhos a maior preocupação era ouvir falar naquele
momento de um projeto que integraria o Secretariado de Estado da Cultura no
Ministério da Comunicação Social. Instituir essa medida representaria um grande risco

263 Diário da Assembleia Constituinte, 2 ago 1975.


264Entrevista concedida a mim por Frei Bento Domingues, no Convento de São Domingos, em Lisboa,
a 30 de novembro de 2013.
265Entrevista concedida a mim por Frei Bento Domingues, no Convento de São Domingos, em Lisboa,
a 30 de novembro de 2013.
150
para a cultura, porque significava “repetir aquilo que foi feito no salazarismo do SNI,
no nazismo de Goebels e no fascismo italiano”266.
Prossegue, em seu discurso, afirmando que qualquer pessoa que tenha
conhecimento sobre a capacidade transformadora da cultura sabe valorizá-la porque
compreende que a cultura é uma das formas de libertação da humanidade. Nessa
condição que lhe é intrínseca, a cultura diante do poder deve funcionar com
liberdade267, porque deve-lhe ser dada a possibilidade de funcionar como antipoder.
No plano que ela julga correto, a dinâmica acertada reside em o Estado promover
apoio à cultura tanto quanto à identidade de um povo, equacionando tal auxílio para
que a autonomia e a liberdade da cultura pudessem ser preservadas. Desse modo,
as ações do Estado não correriam o perigo de se transformarem em dirigismo.
De fato, é interessante realçar o significado de liberdade e de apropriações que
lhe foram atribuídas naquele cenário de conflitos. Concordamos com Lincoln Secco
ao referir que a ideia de liberdade, nessa altura do início do “verão quente”, quando o
PS já havia abandonado o governo e organizado duas grandes manifestações
populares no Porto e em Lisboa, em 18 e 19 de julho de 1975, “tornava-se monopólio
dos socialistas e liberais”268, em contraposição àqueles que pretendiam a continuação
do governo das Forças Armadas.
O alerta de Sophia, nesse seu discurso, é enfatizado como um dado histórico,
porque em sua visão a História fez muitas demonstrações da existência de uma
profunda solidariedade entre a liberdade de um povo e a liberdade da sua cultura. E,
no ambiente que se viveu no último ano (1974), segundo ela o que se presenciou foi
uma ausência de liberdade que acabou por impedir a cultura de criticar a política,

266 Diário da Assembleia Constituinte, 2 ago 1975.


267 Os representantes de outros partidos, nas propostas e debates pronunciados na Assembleia
Constituinte, precisavam adjetivá-la, tal como o fizeram deputados do Partido Comunista (PCP) –a
liberdade “era substituída ou negada pelos comunistas porque eles não podiam imaginar a liberdade
de se atentar contra um ‘governo revolucionário’” – e do Movimento Democrático Português/Comissão
Democrática Eleitoral (MDP/CDE), a exemplo do deputado Sousa Pereira, para quem a liberdade
estava associada à construção de uma sociedade justa. SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos e a
crise do império colonial português. São Paulo: Alameda, 2004, p. 140.
268 Lincoln Secco salienta que os representantes de outros partidos, nas propostas e debates
pronunciados na Assembleia Constituinte, precisavam quanto à liberdade adjetivá-la, tal como o
fizeram deputados do Partido Comunista (PCP) – a liberdade “era substituída ou negada pelos
comunistas porque eles não podiam imaginar a liberdade de se atentar contra um ‘governo
revolucionário’” – e do Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral
(MDP/CDE), a exemplo do deputado Sousa Pereira, para quem a liberdade estava associada à
construção de uma sociedade justa. SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos e a crise do império
colonial português. São Paulo: Alameda, 2004, p. 140.
151
tendo sido criado, pesarosamente, uma atmosfera de inquisição, no qual as pessoas
sentiam-se intimidadas, receosas também porque aquelas que se levantassem para
fazer alguma crítica, encontrando-se no seu direito, logo eram acusadas de ser
contrarrevolucionárias, ou reacionárias e muitas vezes eram até mesmo chamadas de
fascistas.
Em seu entendimento, o que se passava era, portanto, a ação de falsas
vanguardas ideológicas a assaltar os órgãos de informação269. Esse assalto extinguia
não somente a liberdade no país inteiro, mas significava ainda tripudiar a verdade, a
liberdade e a consciência crítica da revolução. Era todo esse conteúdo expresso com
intensidade e firmeza uma maneira de a poeta e deputada constituinte protestar contra
qualquer forma de integração da Secretaria de Estado da Cultura no Ministério da
Comunicação Social, rejeitando com veemência o fato de à cultura em Portugal ser
imposta uma forma de operação advinda do totalitarismo. Sua defesa era clara: a
Secretária de Estado da Cultura deveria continuar integrada ao Ministério da
Educação ou, então, passar a constituir um ministério autônomo. Ao finalizar seu
discurso, numa voz plural possivelmente representativa de outros deputados do
Partido Socialista proclama a importância de defender estruturas culturais para o
socialismo e não estruturas culturais para o totalitarismo. E ainda: “Queremos
estruturas culturais para a revolução cultural, e não queremos estruturas culturais para
o dirigismo”270. José Manuel Mendes em entrevista nos asseverou que, de fato,
Sophia não tolerava a imposição de conceitos, ideias ou dogmas e expressava-se
duramente contra qualquer forma de dirigismo:

Dirigismo nunca, a Sophia não aceitaria nenhuma espécie de dirigismo. Creio


que essa era uma das razões pelas quais ela não estava com o Partido
Comunista, compreendendo a sua luta, e sendo solidária, por exemplo, com os
presos políticos. Dirigismo nunca, mesmo que porventura partisse daqueles a
quem estava ligada. Fossem eles o Partido Socialista ou qualquer outra
organização. Dirigismo no sentido da impositividade de critérios estéticos ou de
negação da liberdade criadora, isso nos quadros mentais da Sophia era

269Sophia generalizou a abordagem, mas provavelmente nesse contexto está implicitamente a citar o
caso do jornal República, que teve em maio de 1975 suas instalações ocupadas por trabalhadores da
comunicação (tipógrafos, gráficos etc.) e expulso seu diretor então ligado ao PS. O jornal foi encerrado
em dezembro daquele ano.
270 Diário da Assembleia Constituinte, 2 ago 1975.
152
incolocável. Não fazia qualquer sentido e não havia a mínima possibilidade de
ela transigir diante de coisas assim. Por isso é que no Congresso, naquele
quadro histórico português em que o Congresso se realiza e onde pairava,
segundo autores como ela, o espectro de um qualquer dirigismo cultural, ela
assumiu uma palavra que foi muito frontal e clara contra ele, em defesa do
criador, do escritor. Mas fê-lo não como uma forma de se opor à intervenção
política, mas, pelo contrário, pressupondo a intervenção política271.

A 3 de setembro de 1975, girando em torno do mesmo tema sobre a cultura,


Sophia proferiu um discurso a favor dos artigos 28.º e 29.º cuja redação fora lida e
apresentada à apreciação dos deputados. Na mesa não foram feitas propostas em
relação àqueles artigos, tendo assim o presidente aberto aos deputados que
quisessem usar da palavra. Sophia pede a palavra e diz que dá seu apoio àqueles
artigos. Em muito pesava para ela essa questão cultural como já tivemos
conhecimento por meio de sua intervenção anterior, em agosto, e nesse momento o
discurso dela tem as tonalidades de uma vitória, ao que ela aproveita para frisar as
múltiplas possibilidades que a liberdade da cultura promove a uma população.
Assim, declara que pode a liberdade da criação artística e intelectual parecer
secundária num país onde faltam moradias e hospitais capazes de atender as
pessoas e, de fato, alguns provavelmente estranham a relevância dada a essa
questão. Entretanto, isso não pode, no entendimento de Sophia, deixar de ser tratado
porque aqueles que ali estavam discutindo os rumos do país tinham clareza de que a
cultura influi radicalmente a estrutura social e a estrutura política.
De tal forma que o tema da liberdade da cultura é primordial, pois nele
se inclui a premissa de que toda a cultura, tomada em seu sentido autêntico, real,
trabalha para que exista a libertação das pessoas. Ela é, sem dúvida, em sua raiz uma
força revolucionária. Em corroboração a esse entendimento, Sophia realça que a
construção de fato do socialismo requer que se ultrapasse o uso burguês da cultura.
Qual o motivo emprega para justificar tal defesa? Sophia declara que a cultura não é
um luxo destinado a seres privilegiados, mas é antes bem o contrário: é uma
necessidade fundamental de todas as pessoas.

271Entrevista concedida a mim por José Manuel Mendes, na Associação Portuguesa de Escritores, em
Lisboa, a 24/fevereiro/2014.
153
A função da cultura não é, portanto, um elemento de enfeite da vida, mas ela
existe com a finalidade de fazer sua transformação. Ela existe, sem dúvida, para que
as pessoas possam criar e ao mesmo tempo realizar a sua própria construção de
modo consciente, firmando-se na verdade, na liberdade e na justiça. Acrescenta que
se o homem é capaz de criar a revolução é porque é possível aferir: ele apenas
engendra a revolução porque é capaz de criar a cultura. Emprega a frase de Amílcar
Cabral que havia sido citada uns dias atrás por Manuel Alegre: “A revolução é um ato
de cultura”. Por isso enfatiza que existe uma profunda unidade entre a liberdade de
um povo e a liberdade do intelectual e do artista – e alega que exatamente por tal
razão àquela altura o Chile era o país do mundo onde havia mais intelectuais presos.
Para demonstrar o alcance da liberdade da cultura expressa igualmente que, no
princípio da guerra de Espanha, o general Milan Astray na Universidade de
Salamanca gritou: “Morra a inteligência!”. Associa esse pronunciamento do militar, por
sua carga de autoritarismo e saudação à ignorância e manipulação, à essência do
fascismo.
Relaciona esses fatos ao universo salazarista quando cita que a maioria dos
escritores, artistas e intelectuais portugueses que por 48 anos lutaram contra o
fascismo o fizeram não como um modo de lutar apenas pela sua liberdade, mas lutam
por uma finalidade específica. Qual seria ela? Uma luta pela libertação do povo a que
pertencem, pela justiça e pela verdade da vida. Assim, a liberdade de expressão e de
cultura, notadamente a liberdade de crítica, é primordial à busca da justiça e de sua
construção. Reforça um dos sentidos caros à justiça: ela não é construída com
dogmatismo nem maximalismos irreais. Ao mesmo tempo não é nem poderia vir a ser
construída com demagogia ou cabotinismo cultural. Salienta ao mesmo tempo que é
necessária uma revolução capacitada a fazer seu exame de consciência, tendo em
vista que a vigilância revolucionária, se verdadeira, é fornecida pela lucidez
revolucionária. Preconiza que é preciso existir liberdade para se fazer a crítica e
promover uma cultura de fato participativa. Vejamos o que ela ainda expõe:

Somos um país que tem às costas séculos de inquisição e meio século de


fascismo, com censura, prisões, escritores e pintores e intelectuais exilados,
livros proibidos, exposições proibidas, projectos que nunca se ergueram. E
vivemos num tempo em que nos países totalitários do Leste e do Ocidente
aqueles intelectuais que têm a coragem de falar têm expiado e expiam essa
154
coragem nos campos de concentração, nas prisões, nos asilos psiquiátricos.
De tudo isto queremos emergir. Queremos uma relação limpa e saudável entre
a cultura e a política. Não queremos opressão cultural. Também não queremos
dirigismo cultural. A política, sempre que quer dirigir a cultura, engana-se, pois
o dirigismo é uma forma de anticultura e toda a anticultura é reaccionária272.

Nesse âmbito de explicitação, ela salienta que o poder totalitário persegue o


intelectual e procura manipular a cultura, ao passo que numa sociedade burguesa
ocorre a marginalização da cultura, a qual é transformada em artigo de luxo. É um
erro grave, em sua avaliação, aceitar tais condições, porque a cultura não é um luxo
de privilegiados nem deve ser concebida como um patamar superior de eleitos. É na
comunidade o lugar da cultura e é imperativo, em seu conceito, que numa sociedade
socialista se vá além desse uso burguês da cultura.
Passa a relatar que essa tarefa tem uma natureza de invenção, que só pode
ser exercida com liberdade: por isso afirma que a população tem direito à
inviolabilidade e à livre expressão das formas de cultura que lhe são próprias. O
cuidado a que ela chama a atenção reside nos efeitos do paternalismo cultural, o qual
poderia permitir, se inscrito enquanto conceito na forma de lei, que uma cultura
pudesse vir a destruir ou a subestimar outras formas de cultura. Exemplifica que a
cultura dos trabalhadores rurais, dos pescadores e de gentes de outras aldeias em
algumas regiões longínquas da capital tem sua riqueza e peculiaridades, não se
tratando de uma cultura menor.
Protesta, no entanto, pelo fato de essa cultura estar paralisada, traumatizada e
praticamente destruída em consequência da pobreza em que vivem aquelas
populações. Mesmo assim reforça que permanece na raiz dessa cultura uma semente
de revolução, “pois é uma cultura não burguesa, uma cultura integrada no trabalho e
na vida, uma cultura do comportamento humano”273. Observar e interagir com essa
cultura é uma forma de apoio para que se ultrapasse o emprego burguês da cultura.
Depois, prossegue dando apoio ao artigo 29.º ressaltando que esse é um corolário do
artigo anterior. Lança a ideia sobre o vínculo existente entre a liberdade de ensinar e

272 Diário da Assembleia Constituinte, 3 set. 1975.


273 Diário da Assembleia Constituinte, 3 set. 1975.
155
de aprender, a qual é fruto da liberdade de inventar, criar e divulgar, sublinhando que
as ações de aprender e ensinar não são apenas direitos, mas também deveres. E na
sequência aponta os modos em que essas tarefas deveriam ser realizadas a partir
daquele momento revolucionário: se ensinar é difundir a cultura que é comum a todos,
que não se fizesse apenas sobre a cultura já ordenada e catalogada do passado, mas
que se firmasse um projeto para desenvolver a cultura em estado de criação e de
busca.
Justifica que numa época em que o ensino oficial tem sido muito questionado,
era esse mesmo o momento de instituir formas novas de ensino em que o ensaio, a
busca e a invenção fossem elementos primordiais. Sinalizando o local da cultura como
o centro da comunidade, entendia ser necessário defender um ensino livre: “Não
devemos temer os perigos da liberdade. O temor dos inimigos da liberdade e do uso
que da liberdade possam fazer não pode levar-nos a destruir à partida a nossa pobre
liberdade de inventar, imaginar, participar”274. Por fim, encerra concluindo com a ideia
de que o socialismo deve ser construído mediante a união entre intelectuais com todos
os trabalhadores, envolvidos numa revolução cultural que solicita a todos a
imaginação, a qual tem sua origem em modos livres e críticas de criação, ao mesmo
tempo devem ser livres em suas formas de participação.
Em defesa das pessoas portadoras de deficiências físicas e mentais
manifestou-se Sophia na Assembleia Constituinte a 4 de outubro de 1975. Sustenta
em seu discurso que em Portugal havia um número muito elevado de pessoas a
sofrerem nessas condições, entre as quais as que são ligadas às forças armadas.
Nesse caso, tornaram-se deficientes por conta da força do capitalismo que lhes
roubou produto de seu trabalho e ainda a integridade e saúde do corpo. Assim, este
assunto do que estava a tratar refere-se a um problema urgente e prioritário que é a
justiça devida a todos que se encontram vitimadas pela deficiência. Em favor dessa
causa, Sophia salienta que havia apresentado naquela casa a 28 de agosto um
requerimento em que pedia ao V Governo elementos que ajudassem a consignar
claramente na carta magna os direitos de todos os deficientes, mas infelizmente ela
não tinha recebido resposta.
Enfatiza a essa abordagem que Portugal é um país pobre e demagogo seria
exigir que tudo relativo a esse campo se fizesse imediatamente, mas chama a atenção

274 Diário da Assembleia Constituinte, 3 set. 1975.


156
para tanto porque considera este um problema prioritário. Em torno de tal situação
existe um verdadeiro escândalo que representa o fato de muitos deficientes viverem
em condições terríveis, sem recursos materiais nem contarem com tratamento
adequado e de reabilitação. Esta condição é inaceitável, reforça Sophia no discurso,
e justifica que dado tal contexto as famílias dos deficientes estavam constantemente
a enviar mensagens à Assembleia solicitando a formulação de direitos e condições
que as atendessem.
Havia, igualmente, o cuidado de zelar pelo tema para que ninguém com ele
pudesse especular. Sendo um problema da maior gravidade é também complexo e
exige que aos deficientes seja dada uma resposta em vários planos: direito a
tratamento e a reabilitação; dignidade económica; direito à integração na vida da
comunidade, ao acesso ao trabalho e à participação na vida social e cultural. Embora
considere o tratamento e a reabilitação dos deficientes uma tarefa da incumbência do
Estado e da família, refere que faz parte da ação de toda a sociedade promover essa
integração.
De tal modo que não se confinem os deficientes em hospitais, centros de
recuperação nem no meio familiar, porque eles têm pleno direito à convivência
humana, com os diferentes grupos de uma comunidade. Para tanto, alertava que era
preciso que todos os membros da sociedade assumissem seus deveres em relação
aos deficientes e sobre isso tivessem uma consciência informada, esclarecida e
solidária a essa população, porque os pais que haviam se dirigido à Assembleia
fazendo as petições reclamavam um texto que contemplasse o conjunto dessa
situação descrita, uma vez que os deficientes eram costumeiramente marginalizados,
muitas vezes explorados de modos inconcebíveis, alvo de zombaria e até sofriam, não
raras vezes, agressão física e psicológica. Sophia prossegue:

A falta de respeito pelos deficientes, a exploração e a agressão física ou


psicológica em relação a deficientes são crimes que não podem continuar. A
sociedade socialista exige de todos a consciência e a prática dos seus deveres
de solidariedade. Por isso, é necessário que o Estado promova uma pedagogia
que esclareça todos os cidadãos sobre a sua responsabilidade. Esta pedagogia
deve ser feita por todos os meios adequados, nomeadamente através dos
meios de comunicação e através do ensino oficial. Aliás, esta pedagogia insere-
se naquela revolução cultural que é necessária à construção do socialismo. É

157
evidente que a revolução cultural começa numa nova atitude do homem em
frente do homem, numa nova cultura do comportamento humano275.

A 11 de dezembro de 1975, houve outro discurso de Sophia, cujo assunto


residiu sobre a natureza do exército a ser estabelecido no país. Ela mencionou no
discurso a existência de violência no mundo, o que impõe a necessidade de existir um
exército para defender as fronteiras e defender as leis dos povos. Essa força militar
existe, igualmente, para que as fronteiras definidas não sejam destruídas, assim como
as leis que livremente foram escolhidas por um povo não sejam também destruídas.
Explicita que, segundo seu modo de compreensão, um verdadeiro exército é
sempre um exército para a liberdade. E sua tarefa é específica tanto quanto é
específica sua competência: defender a liberdade da vida política, mas não fazer a
política. Isso porque caso um exército venha criar para si uma tarefa como se
transformar num órgão de soberania, acabará por seu autodestruir. Ao assumir uma
forma de governo ele se transforma numa aristocracia ou até mesmo em ditadura
militar, ou ainda acaba por causar sua própria destruição. Rememora que nos meses
que a nação havia pouco vivenciado foi possível constatar como a intervenção política
dos militares havia levado o exército a um processo de desagregação. Recorda que
nos dias passados: “Vimos assembleias de regimentos onde militares votaram o
fuzilamento de outros militares”276. E destaca que naquela ocasião também se pode
ver como a disciplina, elemento que ausente faz um exército se transformar em bando
armado, é desagregada se o poder político se confundir com o poder militar. Com o
uso do plural majestático, nós, afirma que os cidadãos do país não querem regredir

275 Diário da Assembleia Constituinte, 3 set. 1975. Sophia conhecia de perto a realidade de pessoas
que padeciam com algum tipo de deficiência, especialmente porque teve que lidar com essa situação:
seu filho caçula tinha sofrido um acidente cerebral ao jogar futebol e disso resultaram sequelas graves,
como o fato de ele ter ficado a falar com dificuldades de linguagem. Com o passar do tempo, voltou a
trabalhar no campo de artes plásticas. Tudo isto contou-nos em entrevista Frei Bento Domingues e
acrescentou: “E ela [Sophia] na casa mesmo em que vivia, e fez com que os azulejos que ele [Xavier]
fazia, e as coisas que ele fazia, Sophia mostrava toda a produção dele, valorizava tudo do filho mais
novo. E ela tinha um cuidado especial para com ele. A única preocupação é que esse filho mais novo
ficasse... porque era o que tinha menos possibilidades, ficasse melhor sobre o ponto de vista
económico. Era em Sophia o sentido da justiça, mas era o sentido também da vítima. Quer dizer, era
algo que nela era muito presente. Fazia corpo com ela”. Ver em Apêndice a entrevista a mim concedida
por Frei Bento Domingues, no Convento de São Domingos, Lisboa, a 30 de novembro de 2013.

276 Diário da Assembleia Constituinte, 11 dez. 1975.


158
no plano histórico, o que significa que não desejam ter um “exército dividido em
facções e assediado por todos aqueles que o procuram conquistar para a intriga do
poder. E não queremos um exército que sobrepondo-se às facções se transforme
numa nova ditadura”277. Nesse sentido, alega que o povo precisa ser regido por leis e
não regido por regimentos. Nessa linha de defesa, realça ser a função de um exército
garantir a construção da democracia.
Há um ponto em que é preciso se deter com muita atenção, segundo Sophia,
que diz respeito ao fato de numa sociedade moderna o poder militar e o poder político
não serem da mesma natureza. Essa diferença gera confusão entre um e outro poder
e ela é ambígua, assinalando que foi disso que resultou em grande medida a
instabilidade exaustiva e destrutiva que havia se apoderado da revolução. Em
consequência, a ela parecia evidente que era preciso meditar sobre os
acontecimentos daqueles últimos meses, ficando o chamado para que todos
pudessem aprender a lição do erro, sobretudo porque não foi fácil sair do fascismo e
sob a falaciosa “carapaça de teorias temos vivido às apalpadelas à procura do exacto
contorno do real”278.
Encerra seu discurso salientando que há perigos evidentes no pacto e acredita
que ele deveria ser reequacionado e reformulado, uma vez que haviam ocorrido crises
muito graves entre a data em que ele foi assinado e o momento que estavam a viver
os portugueses, e fazia-se necessário, portanto, aprender a lição279.
O esforço de esclarecimento de Sophia a respeito de um novo passo
fundamental a ser dado no processo revolucionário estava alinhado com as
orientações vindas do Partido Socialista, ao qual supomos que, nesse momento, ela
aderia de maneira a corroborar e incorporar muitas de suas formulações 280. Nesse

277 Diário da Assembleia Constituinte, 11 dez. 1975.


278 Diário da Assembleia Constituinte, 11 dez. 1975.
279A temporalidade diz respeito ao máximo de tensões em conflito no processo revolucionário que
culminaram no 25 de novembro de 1975. O conjunto de eventos históricos e seus desdobramentos a
essa data relacionada é complexo assim como as perspectivas de sua análise, em geral divergentes,
nas quais para uns se deu a partir daquele momento a instauração de um processo democrático e para
outros tal momento é considerado o início do processo de contrarrevolução, em que se passou de uma
democracia direta para o regime de uma democracia representativa. Ver: REZOLA, Maria Inácia. 25 de
Abril: mitos de uma revolução. Lisboa: Esfera dos Livros, 2006. E ainda: VARELA, Raquel. A história
do PCP na Revolução dos Cravos. Lisboa: Bertrand, 2011.
280Em um período posterior, em 1977, Sophia começou a se afastar do partido, tendo discordado de
vários rumos (calcados no que ela chamou “erros de mentalidade”) que suas ações foram tomando e,
com base nessas contradições, registrou em alguns escritos pessoais sua decepção. De fato, ela irá
159
discurso, ela advertiu sobre os riscos que, em seu entendimento, o país correria se
deixasse as forças militares se sobreporem, na condução do processo revolucionário,
às forças civis, indicando como medida também para definição do papel do Exército a
necessária reformulação do Pacto de 11 de Abril, o qual impunha à autonomia dos
órgãos de soberania civis sérias limitações. Sabemos que Melo Antunes deixa
evidente nas declarações de 26 de novembro que o Movimento das Forças Armadas
requer seu estatuto acordado, em que seria ele a força da direção política da transição
pacífica para o socialismo, contando com a colaboração de todos os partidos. A esse
respeito, analisou António Reis:

[...] os socialistas reconheciam a necessidade de manter algumas válvulas de


segurança no sistema político-militar, numa conjuntura ainda marcada por
alguns focos de instabilidade, de que os atentados bombistas da direta do
MDLP [Movimento Democrático de Libertação de Portugal] no continente e dos
separatistas das ilhas atlânticas eram sintomas preocupantes. Havia, pois, que
repensar o modelo de intervenção do MFA no período de transição. Por
coincidência, a Assembleia Constituinte aprestava-se nesse exato momento
para discutir as bases de organização do poder político, cujas linhas principais
constituíam o cerne da Plataforma de Acordo Constitucional.281

O Conselho da Revolução chamou, a 16 de dezembro de 1975, os partidos


signatários da Plataforma de Acordo Constitucional a discutirem novos programas que
deveriam ser adotados. Na dinâmica tumultuada das negociações, que configurou
mesmo uma fase complexa do chamado Verão quente, os militares ambicionavam
não sair perdendo e, para tanto, buscaram uma solução que significava manter
amplos poderes políticos, como se viu na proposta por eles apresentada a 14 de
janeiro de 1976, relembra António Reis. Segundo ele, a reação do PS foi vigorosa
porque considerava “que se estava a passar de uma concepção do MFA [Movimento

se desligar do PS e chegou a elaborar várias críticas a ele, mas manteve a amizade com Mário Soares
e com Maria Barroso.
281REIS, António. “O Partido Socialista na revolução: Da via portuguesa para o socialismo em liberdade
à defesa da democracia pluralista”. In: CANAS, Vitalino. O Partido Socialista e a democracia. Oeiras:
Celta, 2005, p. 84.
160
das Forças Armadas] como ‘motor da Revolução’ (primeiro pacto) para uma sua
concepção como ‘tutor da Revolução’, em vez de simples ‘garante’ da mesma”282.
O prolongamento dos debates constituiu um verdadeiro braço de ferro que
durou mais de um mês, uma experiência coberta pela imprensa, à exaustão, que
difundiu os muitos argumentos de vozes defensoras favoráveis aos militares, outras
numerosas que não queriam da parte deles uma intervenção de grande peso e ainda
outras que representavam posições de intelectuais independentes. Por fim, houve um
acordo de revisão, obtendo-se “uma espécie de ‘empate técnico’ entre as duas vias
que se confrontavam, embora com aparente vantagem imediata para os militares”283.
Firmado em 26 de fevereiro de 1976 pelo Partido Socialista (PS), Partido Popular
Democrático (PPD), Partido Comunista Português (PCP), Centro Democrático Social
(CDS) e Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral
(MDP/CDE), o estabelecimento do novo pacto concorria, na ordem imediata dos
acontecimentos, para arrefecer um pouco os ânimos dos setores que haviam entrado
em disputa, e sua vigência valeria para um período de pelo menos quatro anos
enquanto durasse o processo de transição.

282 Entrevista de António Reis ao Diário de Notícias, 16 jan. 1976, apud REIS, António. “O Partido
Socialista na revolução: Da via portuguesa para o socialismo em liberdade à defesa da democracia
pluralista”. In: CANAS, Vitalino. O Partido Socialista e a democracia. Oeiras: Celta, 2005, p. 87.
283REIS, António. “O Partido Socialista na revolução: Da via portuguesa para o socialismo em liberdade
à defesa da democracia pluralista”. In: CANAS, Vitalino. O Partido Socialista e a democracia. Oeiras:
Celta, 2005, p. 87.
161
Considerações finais

Neste presente trabalho, procuramos compreender como se desenvolveu a


trajetória militante antifascista de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004).
Dessa forma, inicialmente nos ocupamos de explorar as condições de atuação política
da poeta, que viveu grande parte de sua vida sob o regime ditatorial do Estado Novo,
e para tanto identificamos desde o início um fator de alta implicação no tema, o viés de
gênero e de construção do papel social em que Sophia estava inserida. Assim,
enfatizamos que nosso objeto de estudo trata de uma mulher branca, nascida em uma
família aristocrática, a quem uma educação primorosa desde cedo foi oferecida,
propiciando-lhe uma alfabetização em várias línguas, o contato com a alta literatura e
a liberdade para deixar expandir suas habilidades artísticas.

Nesse enquadramento como um fator que abarcava toda a sociedade lusitana


impunham-se o autoritarismo e o patriarcalismo que, especialmente sobre as
mulheres, acarretavam diversas e pesadas limitações. Considere-se a existência, por
exemplo, de violentos dispositivos legais que as tornavam tuteladas pela figura de um
pai ou de um marido. De tal forma que, indubitavelmente, o combate antissalazarista
por elas travado também representava, ainda que isso não tenha sido evidente para
muitas no processo vivido, a tentativa de conquistar projetos efetivos de cidadania que
lhes pudessem beneficiar.
Nesse sentido, o problema desta investigação derivou de um dado
compartilhado por certo número de figuras masculinas que, nos primeiros relatos que
colhi, informalmente insistiam em dizer que fora Francisco de Sousa Tavares, com
quem Sophia ficou casada por longos anos, quem de fato lutara pela construção de
uma sociedade democrática. Isto significava sugerir que eu estava a perder tempo
com o propósito do meu trabalho e, talvez, o melhor fosse dedicar-me a compreender
como foi o percurso político por ele efetivado.
A presença reduzida de mulheres nas frentes de oposição à ditadura é um fato
incontestável, mas justamente para isso contribuiu o estatuto da diferenciação entre
os sexos, quando as relações sociais de época eram rigidamente orientadas para que
as mulheres permanecessem na esfera privada e sob a dominação masculina, inscrita
nos moldes da lei tanto na Constituição de 1933 como no Código Civil de 1966.
162
A postura política de Sophia e seu engajamento antifascista esteve presente
em sua produção poética, manifestações públicas e diversas formas de oposição ao
regime ditatorial, em especial a partir de 1958, conforme o episódio ocorrido com seu
irmão arquiteto, João Andresen, quando sua obra arquitetônica que havia sido
premiada em concurso oficial foi preterida por uma instalação de cunho grandioso,
estabelecida para garantir as normas monumentais do projeto do Estado Novo.
Sophia igualmente participou, ao lado de Francisco Tavares, na campanha eleitoral
de Humberto Delgado naquele ano de 1958, cujo resultado acabou por revelar uma
vertiginosa fraude na apuração, a qual só fez ampliar a revolta dos setores
oposicionistas.
Buscar compreender o investimento de Sophia na prosa, enquanto uma
representante entre os escritores antifascistas, levou-nos a selecionar por sua
constituição intrínseca com base na visão católica e de proximidade com Abel Varzim
e D. António Ferreira Gomes, o bispo do Porto, o conto “O jantar do bispo”. Nessa
narrativa, por meio do plano ficcional, evidencia-se o conflito entre membros da Igreja
(críticos aos desmandos autoritários) e os do regime que, na impossibilidade de
seguirem as mesmas diretrizes em relação aos problemas sociais, quebram as
alianças antes seladas, as quais no plano histórico tinham como referência os acordos
da Concordata de 1940.
Na análise desse conto, examinamos não apenas os dilemas relativos às
personagens principais, mas igualmente as secundárias, entre as quais incluem-se
mulheres e criados, representativas de um estatuto social em posição de
subalternidade. Em uma dimensão de conjunto, pudemos também perceber no conto
os elos que o prendem à realidade de contestação social formulada em particular
pelos católicos progressistas, mas não unicamente por eles.
Situada num lugar privilegiado de observadora dos processos desenrolados
àquela altura no interior da Igreja e de seu olhar enquanto agente cultural no país,
Sophia fez dessas experiências sociais um verdadeiro laboratório de reflexão crítica,
transpondo-o ao plano literário e levando ao público uma narrativa singular,
impactante, eivada de efeitos do fantástico, para tratar de problemas que tiravam o
sono de numerosos cidadãos naqueles tempos sombrios de Portugal.
Ampliando o enfoque por meio da leitura de alguns críticos, foi possível ainda
atestar como o labor e a originalidade artísticos de Sophia se fizeram validar mediante

163
uma percepção altamente refinada, ao mesmo tempo que do ponto de vista formal se
pautaram numa matriz associada a muitas premissas defendidas pelos neo-realistas:
a preocupação com problemas da ordem do regime de exceção, a presença dos tons
de denúncia e a rejeição à perspectiva de cunho individualizante e confessional.
Num prisma que abrange uma dimensão maior, é importante lançar o olhar
ainda para uma questão referente ao nosso tema: em relação às mulheres e a outros
grupos excluídos socialmente, que com frequência têm suas vozes e manifestações
silenciadas, tal processo não se dá somente no plano histórico do presente. Trazer à
baila esse problema é lembrar que, do ponto de vista da memória social, esses
mesmos sujeitos têm normalmente suas histórias silenciadas, banalizadas ou
diminuídas.
Por isso, o esforço de não deixar que se instaurem mecanismos de
silenciamento acerca de suas ações e do apagamento de seus nomes na história –
conta Zita Seabra, que foi militante do PCP e viveu anos na clandestinidade, que em
1981 quando o partido realizou uma importante exposição acerca dos 60 anos de sua
existência, tinham simplesmente “esquecido” de citar as mulheres 284. Assim, as
comunistas participantes da luta antifascista tiveram que se reunir e reivindicar que os
homens responsáveis pelo evento inscrevessem a participação delas naquele
passado comum, para que fossem devidamente prestigiadas, tanto para honrar o
trabalho das que já tinham falecido como as que estavam ainda bem vivas para
acompanhar o que se desejava deixar cair no ocultamento.
Em relação aos desafios encarados por Sophia no combate ao regime ditatorial,
de acordo com a pesquisa pudemos notar que foram constantes as queixas a respeito
da esfera social, então cercada por fraudes, abusos e mentiras, conflitos presentes no
convívio não apenas aos que estavam ligados ao regime. Mas igualmente por
representantes de grupos literários que por afinidade política eram seus pares e
estavam alinhados na mesma frente opositora, apenas para mencionar dados
sublinhados nas cartas que escreveu ao amigo Jorge de Sena. Em uma dessas
missivas, também reclama de que o clima de tensão e revolta apresentava outra face,
a da tristeza por ter perdido, em virtude do empenhamento político, a amizade e o

284SEABRA, Zita. “As mulheres na clandestinidade: a minha experiência”, Camões, Revista de Letras
e Culturas Lusófonas, n. 5, abril-jun. 1999, p. 26-30.

164
respeito por parte de parentes e colegas de juventude. É possível inferir, ao mesmo
tempo, que talvez a militância antifascista de Sophia tenha representado, em alguma
medida, uma postura de insubordinação e rebeldia contra a moral e os valores de sua
classe social de origem, a aristocracia.
De certo ângulo de visão, por muitos anos ela refugiou-se numa espécie de
exílio mesmo tendo permanecido em Portugal – não foi apenas o amigo e
correspondente, Jorge de Sena, que viveu essa experiência dolorosa. Eram poucas
as portas abertas à redenção e ao ânimo que permitiam recarregar a vida de uma
parcela de encantamento do mundo. Embora Sophia tenha conseguido, ainda que
com os entraves da luta de resistência antifascista, publicar seus livros e manter-se
atuante nos círculos culturais, literários, e mais especificamente político como na
ocasião em que foi deputada constituinte, certamente isso se deu na condição
intrínseca das relações sociais de época.
Eram relações que predominaram no país e foram naturalizadas até nossos
dias e nas quais não existe a valorização das mulheres – quando trabalham ou
exercem uma atividade autônoma, responsabilizam-se por esse espaço de atuação
no âmbito público, mas deixando reforçado o destaque e o prestígio financeiro aos
homens, ao mesmo tempo em que, na esfera privada, delas se exige um
comportamento exemplar enquanto cuidadora dos filhos e das atividades domésticas.
Refletir sobre tudo isso é ao mesmo tempo afirmar que a proeminência do
empenhamento contrário ao regime ditatorial não foi somente de Francisco de Sousa
Tavares – logo não fazendo sentido o que quiseram nos advertir alguns protagonistas
também combatentes do fascismo. Bem ao contrário, nesta tese procuramos
demonstrar que o olhar lúcido, crítico e atento de Sophia combinou uma luta
antifascista que, no período estudado (1958-1976), marcou suas mobilizações, seja
na produção literária, seja cartas trocadas com amigos, no Centro Nacional de Cultura,
na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, na campanha em que saiu
candidata à deputada pela Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), na
Sociedade Portuguesa de Escritores, na Associação Portuguesa de Escritores, na
Vigília de São Domingos, na Vigília da Capela do Rato, e no exercício político ao ser
deputada pelo Partido Socialista na Assembleia Constituinte.

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ENTREVISTAS REALIZADAS

Francisco Fanhais, a 25 nov. 2013

Frei Bento Domingues, a 30 nov. 2013

Nuno Teotónio Pereira, a 24 jan. 2014

Catalina Pestana, a 31 jan. 2014

Guilherme d’Oliveira Martins, a 14 fev. 2014

Maria Luísa Sarsfield Cabral, a 17 fev. 2014

José Manuel Mendes, a 24 fev. 2014

Maria da Conceição Moita, a 12 fev. 2014

Francisco Louçã, a 26 fev. 2014

ACERVOS CONSULTADOS

Arquivo PIDE/DGS, Torre do Tombo: 1) PIDE/DGS. "Relatório Semanal n° 6/63 - S.


R. da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), Delegação do Porto", ANTT,
Sociedade Portuguesa de Escritores. 2) Processo Provisório n. 919, relativo a Sophia
de Mello Breyner Andresen. 3) Pasta Registo Geral de Presos (acervo eletrônico), livro
139.

Espólio de Sophia de Mello Breyner Andresen, Biblioteca Nacional de Portugal.

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DOCUMENTÁRIOS e VÍDEOS

CASTRO, Pedro Jorge. “Um casal apaixonado contra Salazar”. Lisboa, Sábado, 25
abril 2016. Vídeo: “Miguel Sousa Tavares falou com a Sábado sobre a luta dos pais
contra a ditadura e sobre o seu casamento”. Disponível em:
<http://www.sabado.pt/video/detalhe/Um-casal-apaixonado-contra-Salazar-(videos)>.
Acesso em: 20/abril/2017.

OLHAR o Padre Abel Varzim em 2014: 50 anos após a sua morte. Agência Ecclesia.
Portugal, Programa 70x7, RTP 2, 2014 (20 min).
SOPHIA de Mello Breyner Andresen. Direção: João César Monteiro. Cultura Filmes,
1969 (19 min.).

SOPHIA de Mello Breyner Andresen: O nome das coisas. Panavideo, RTP 2, 2013 (58 min.).

SOPHIA de Mello Breyner Andresen. “O nome das coisas”: entrevista a Àlvaro Manuel
Machado. Programa A ideia e a imagem. RTP Arquivos, 8 jul. 1977 (10 min.).

180
APÊNDICE
(Entrevistas)

181
ENTREVISTA COM FRANCISCO FANHAIS (POR ELOÍSA ARAGÃO)
LISBOA, 25 nov. 2013

ESA: Eloísa S. Aragão - Investigadora


FF: Sr. Francisco Fanhais - Entrevistado

ESA: Então, voltando a esse ponto da sua geração, no momento em que você começou a ter
uma atuação mais crítica e se integrar aos católicos que realmente faziam oposição, isso foi
em que momento? Que idade você tinha?

FF: Devia ter 27, 28 anos, por aí assim. Porque eu sempre — até aí assim — tinha vivido
digamos em meios estritamente... de um catolicismo um pouquinho mais tradicional, digamos
assim. E muito circunscrito numa espécie de torre de marfim, ligado muito à Igreja. Apesar de
já ter algumas preocupações de ordem social que me foram despertadas... Uma das pessoas
que teve importância nisso foi justamente o Zeca Afonso, quando eu comecei a ouvir as
músicas dele. No princípio dos anos 1963, ele publicou um disco [Baladas de Coimbra] em
que havia duas canções que me marcaram muito: “Os Vampiros” e o “Menino do Bairro
Negro”.
Eu era estudante nessa altura, ainda estava no seminário, e lembro-me de como aquilo foi um
murro no estômago, e foi assim um flash enorme. E eu pensei assim: como eu gostava de
conhecer esse homem, ponto um. Segundo lugar, como eu gostava de cantar as coisas que
ele canta. Porque eu gostava de cantar coisas como ele canta, com preocupações de ordem
social, com músicas belíssimas, com poemas espantosos, uma voz afinada como ele tinha.
Pronto.
Como eu gostava de continuar uma coisa dentro de uma linha do cristianismo empenhado,
como eu gostava de poder fazer alguma coisa nesta linha, na sequência do que faz o Zeca.
E este disco abriu-me para um certo número de preocupações, foi assim um flash muito
grande. Depois disso, eu estive três anos... os três primeiros anos da vida de padre, estive
ligado a instituições religiosas da Igreja, colégios religiosos. E foi só ao fim desses 3 anos que
fui para uma paróquia no Barreiro.
O Barreiro fica do outro lado do Tejo, e era... — agora é uma cidade —, mas nessa altura era
uma vila operária, onde havia cerca de 15 mil operários. Onde, portanto, as preocupações e
os contrastes sociais eram muito fortes. E eu como cristão, entendia e comecei a perceber
um certo número de realidades e de preocupações, das quais não tinha me apercebido muito,
até aí... assim, percebe? Contraste entre a pessoa que se diz cristã, depois tem que ser lógico,
tem que ser coerente com aquilo que diz, no seu dia a dia.

182
Depois, eu via os exemplos e os casos de gente que vinha até a igreja, engenheiros
sobretudo, e depois no dia a dia e na prática não tinham preocupações de ordem social. Não
faziam estender o seu cristianismo ao dia-a-dia. Isso pra mim, esse contraste, esse paradoxo
foi uma coisa que me chamou muito a atenção. E aí no Barreiro foram esses três anos, que
foram três anos fundamentais na minha vida, que de facto abri os olhos para uma realidade
diferente daquela que eu tinha vivido até esse momento. Isso foram ao ponto... Entretanto, eu
que conhecia o Zeca através dos discos, passei a conhecê-lo pessoalmente.
Foi na época em que eu estava no Barreiro: um dia fui à casa dele com mais dois amigos.
Fomos à casa dele, que ficava em Setúbal, cerca de 30 km de distância do Barreiro. E foi aí
que nos encontramos pela primeira vez, e conversamos pela primeira vez. E foi muito
interessante porque, pronto, foi um diálogo, uma conversa muito franca, aberta, e muito
simples ao mesmo tempo. Mas que foi um primeiro encontro decisivo pra mim, não é?
Ao ponto de que mais tarde, quando apareceu aquele programa na Televisão, não sei se tu
ouvistes falar... na Televisão, o tal programa “Zip-Zip”. O Zeca havia me dito que não podia ir
ao programa, que sua presença tinha sido vetada nesse programa. Então, lembro-me do Zeca
ter me dito um dia: “Era giro, era interessante que tu fosses ao programa”. E assim convenceu-
me a ir ao programa.
A partir dessa minha participação nesse programa, foi aí que eu comecei a minha atividade
de cantor, não é? Em que fatalmente, antes de cantar, toda a gente sabia que eu era padre.
Nunca escondia, obviamente, mas ao mesmo tempo também tomei consciência de que não
devia calar em relação aos problemas que nós vivíamos entre nós, no nosso país. O problema
mais grave era o problema da Guerra Colonial. E a partir do momento que comecei a cantar
um pouco por todo o país, comecei a denunciar a injustiça da Guerra Colonial. Não era o
único, obviamente, tantos outros meus amigos cantores e sem serem cantores tinham
denunciado.
Passei, portanto, a integrar mais uma voz a contestar a Guerra Colonial. A contestar o
fascismo, a contestar a repressão policial, a contestar a PIDE, entre outros combates. Não só
em nome de uma situação política insustentável para nós, mas como imperativo de ordem
burguesa, como imperativo da ordem cristã. Se quero ser cristão a sério, não posso me calar
frente a essas injustiças todas.
Sim, foi portanto durante esses três anos que eu estive no Barreiro que de facto houve maior
abertura de minha parte, e um empenhamento, um compromisso muito grande com a
expressão política que vivíamos nessa altura. Passei a integrar o grupo dos cristãos que
entendiam que deviam levar mais longe o seu compromisso com o Evangelho. Além do mais
eu era padre, mais uma razão para não me calar, e não me acobardar, digamos assim. Para
não fugir às responsabilidades.

183
ESA: E nesse trabalho de resistência, de atuação cristã por meio da política, você chegou a
participar da campanha de Humberto Delgado? Esteve próximo a pessoas como a Sophia de
Mello Breyner e o marido, que estiveram a favor, se envolveram com a campanha de
Humberto Delgado?

FF: É... a campanha de Humberto Delgado, recordo-me, é capaz de eles terem sido mais
presentes do que eu, e que foi assim...

ESA: Em 1958.

FF: Em 1958, 1959, não, eu estava ainda no seminário, ainda era estudante, portanto não tive
participação.

ESA: Desculpe fazer-lhe essas questões.

FF: Não, não hesite. Eu queria ter mesmo a certeza exata de quando é que tinha sido, eu
sabia que era final dos anos 1950. Eu estava ainda no seminário, portanto a minha
participação não...

ESA: Sim, você era ainda muito jovem à época, eu já me dei conta. E eu falo das pessoas
como se você tivesse convivido com elas, desculpe-me.

FF: Eu acompanhei a campanha do Humberto Delgado, já não me lembro se foi na votação,


em 1958 eu tinha... se calhar eu não podia votar, eu tinha 17 anos nessa altura, não sei como
é que era a votação, a partir de que idade era a votação. Eu tinha 17 anos, e então
provavelmente não votei, não me recordo. Mas se tivesse votado, se calhar tinha votado no
Humberto Delgado. Pronto, mas é um facto que eu não tenho presente agora. Mas
acompanhei, já era um zum-zum-zum também, já era a percepção de que... que era possível
haver uma oposição a esse sistema que nós vivíamos, não é?
Apesar de não estar muito empenhado, não poder, porque eu estava no seminário. Seminário
é um ambiente muito fechado, não é? E onde a participação política e a consciência e
informação política era muito pouca, toda a informação política que nos chegava era através
dos órgãos oficiais da Igreja. Havia um jornal que nós líamos diariamente, que era o jornal
“Novidades”, que era do órgão oficial da Igreja. Portanto era o único veículo de informação
que nós tínhamos, que era acessível a todos do seminário, era essa imprensa.

184
Embora às vezes nós já lêssemos... Talvez mais tarde, agora não sou capaz de focar bem.
Mas já tínhamos acesso à imprensa estrangeira, sobretudo a Formacão Católica Internacional
Francesa, que dava um resumo das coisas que aconteciam aqui em Portugal. Tinhamos
acesso a um tipo de informação diferente, mais livre. Mas não era uma coisa oficial, era
através de..., digamos, uma via quase clandestina que tínhamos acesso a essas informações.
Mas, portanto, a campanha de Humberto Delgado, não participei dela. Estava no seminário.
Mas lembro-me do entusiasmo e da dinâmica que ela criou no país.

ESA: E também aquela frase clássica de ataque a Salazar...

FF: Obviamente. Claro, claro.

ESA: Foi tão frontal, foi de muito impacto. Mas adiantando um pouco, vamos saltar para a
década de 1970, que foi o tempo da atuação na Comissão de Socorro aos Presos Políticos,
o tempo em que pessoas como você se entregaram a esse trabalho. A própria Sophia de
Mello Breyner... E você também participou de alguns eventos, pode falar a respeito?

FF: Muito simples: eu a partir de 1970 tinha três proibições na minha vida... Uma era, durante
esses 3 anos que estive no Barreiro, era professor de uma disciplina que existe em Portugal,
não sei se ainda existe, que era “Moral”, educação moral. Pronto, eu fui professor no Barreiro
durante três anos, professor de moral. Nas aulas eu falava de tudo e até de religião. Numa
terra com tantos problemas sociais, com filhos de operários, filhos de engenheiros, etc., era
natural que viesse à baila. Éramos um país em guerra. Falávamos dessas coisas todas. Ao
fim de três anos, fui proibido de continuar a dar aulas de religião e moral, porque para alguém
ser professor de moral tem que se ter o aval do Bispo. O ministério autoriza que nós sejamos
professores desde que o Bispo antes assine, dizendo que podemos ser professores de moral.
Era assim que funcionava.

ESA: E que idade tinham esses alunos que formavam as turmas?

FF: Alunos de 10, 12, 13, 14, 15 anos. Entre os 10 e os 15 anos, mais coisa, menos coisa.
Nós falávamos de tudo nas aulas, e os miúdos iam pra casa e falavam para os pais o que
tinham aprendido, o que havíamos conversado, o que o professor havia dito. E eu que levava
viola pra aula, para eles era um bocado novidade. Devem ter dito, se calhar, que tinham um
professor de Moral que era padre e que levava a viola para as aulas, e que cantávamos e
tocávamos e ouvíamos discos, e pronto. E fazíamos trabalhos de grupo. E aí começaram

185
alguns pais a ficar alerta. O que é certo é que ao fim desses três anos – em que eu denunciava
a Guerra Colonial, entre outros temas que abordava – não foi autorizada pelo Bispo a
continuação, foi-me negado continuar a dar aulas de Religião e Moral. A primeira proibição.
Segunda proibição: no caso do padre Felicidade Alves, de que já falamos longamente, o
processo dele as tantas separou... Quer dizer, ficou excomungado até... E ainda depois esse
padre resolveu casar. Fizemos uma cerimônia religiosa paralela, não era clandestina, mas
enfim, marginal. E eu estive presente nessa cerimônia. E estive presente em um tribunal
eclesiástico, e na sequência disso, como eu não renunciei e nem neguei nada do que tinha lá
feito, como assumi totalmente tudo o que lá tinha feito, de resto... Isso foi em 1970. De resto,
fui chamado ao Tribunal Eclesiástico, fizeram uma série de perguntas, e minha resposta foram
duas linhas. Sei que era uma folha inteira, A4, com muitas perguntas... Sei que o Tribunal é
assim: tudo muito minucioso, não é? E eu, quando me puseram o papel à frente, disse: “Não,
eu não vou responder a isso porque não tenho paciência, não me apetece responder com
essa minúcia toda. A minha resposta são duas frases muito simples, ou melhor, três frases
que resumem tudo aquilo. Primeira frase: estive presente. Se não estivesse estado presente,
nada do questionário a seguir tinha razão de ser. Primeira coisa: tive presente, sim senhor.
Ponto dois: estou solidário com todas as pessoas que lá estavam. Ponto três: concordo com
tudo o que se lá passou”. E assinei, Francisco Fanhais, e pronto, a minha resposta foi essa.
Na sequência disso, fui suspenso das minhas funções de padre. Portanto, segunda proibição.
Terceira proibição: depois de eu ter ido ao “Zip-Zip” passei a integrar o grupo dos cantores.
Além do Zeca Afonso, do Adriano, tantos outros, Manuel Freire, José Barata Moura, Jorge
Letria... enfim, tantos outros — é injusto agora esquecer-me deles. Ficamos todos proibidos
de cantar. Portanto, no verão de 1970, tinha essas três proibições à minha frente. Proibido de
dar aulas, proibido de exercer as minhas funções de padre e proibido de cantar.
Eu não sabia muito bem o que havia de fazer. E para encontrar alguma ocupação fui me
oferecer à Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Para ajudar nos trabalhos que
eles faziam. Um dos trabalhos era visitar famílias de presos políticos. Lá está, mais uma vez
a guiar. E foi um trabalho que eu gostei muito de ter feito. Estive em vários pontos do país, de
Bragança até o Alentejo, e foi um trabalho que eu gostei muito de ter feito. Porque dei-me
conta da injustiça... A polícia política sempre é injusta, mas a injustiça que havia da polícia
tratar muito pior as pessoas que eram de condições sociais mais humildes...
As famílias que eu visitava, com outras pessoas amigas e por ser uma equipa de duas ou três
pessoas, eram gente muito pobre, eram gente que tinham dificuldades extremas, e eram gente
que tinham sofrimentos enormes pra poderem sustentar-se. O marido estava preso e a mulher
tinha que ganhar por si e para os filhos. E essa situação foi uma situação que me marcou
muito. E foi um trabalho que eu fiz com muito gosto – ainda hoje estão vivas algumas das

186
pessoas com quem fui fazer essas visitas. E foi mais um argumento, ou mais uma razão, ou
mais um impulso, para eu me empenhar mais em uma solução, enfim, dar o meu contributo
na solução dos problemas do país. E esse trabalho foi um trabalho que eu gostei muito de ter
feito. Uma participação que durou pouco tempo, porque, entretanto, eu precisava de ganhar
a vida, não sei o que havia de fazer. Então, em abril de 1971 fui para França. E foi o trabalho
que eu fiz até ir para França em abril de 1971.

ESA: O fato de ter ido para a França tem relação com a influência mesmo das teorias de
transformação em França, da atuação católica na oposição? Você tinha conhecidos na
França?

FF: Não teve a ver diretamente com isso. A França para nós... vivíamos em situação de
ditadura em Portugal, o primeiro país sem fronteiras, onde nós encontrávamos liberdade era
em França. Porque entre França e Portugal há a Espanha, que era uma ditadura igual a nossa,
eventualmente pior até. Mas era uma razão simples, era o primeiro país onde nós podíamos
respirar livremente, onde nós sentíamos que não éramos perseguidos.

ESA: Na França, havia até propostas das teorias de aproximação entre os comunistas e os
próprios católicos, foi o que encontrei em algumas leituras. Enfim, havia alguma perspectiva
de aproximação do catolicismo com a ideologia marxista, os chamados cristãos marxistas.

FF: A minha perspectiva quando fui para França não era ir a um encontro de maneira
intelectual, digamos assim, dos locais onde havia discussão filosófica, discussão aprofundada
sobre estes temas. Eu fui para lá porque fui para casa de uns amigos, em primeiro lugar.
Quando lá cheguei, contactei as primeiras pessoas... Contactei os meus amigos músicos que
estavam lá em França, por exemplo, o José Mário Branco, o Sérgio Godinho, o Luís Cília, o
Tinho Flores, entre outros. Porque quando eu lá cheguei disse-lhes: “Eu estou aqui assim:
não posso cantar em Portugal, e o que eu gostava de fazer aqui é o que não podia fazer lá”.
Portanto, quando vocês forem convidados para cantar..., pelos imigrantes, porque há sempre
muitas festas para os imigrantes, pelo menos em França. Há muitas associações culturais.
Muitas delas não têm preocupação social rigorosamente nenhuma. Limitam-se a atividades
tradicionais ligadas ao folclore português, ligadas ao futebol, ligadas... enfim... Mas há outras
que não, que têm a sua frente na direção dessa associação gente interessada, gente
empenhada em dar aos imigrantes mais alguma coisa do que o simples e tradicional fado,
futebol e Fátima. E por isso eu disse: “Se vocês forem convidados e acharem que minha
presença pode ser útil para alguma coisa, eu estou cá para isso. Não vim aqui para apreciar

187
o Quartier Latin, para andar a divertir-me, estou aqui porque eu quero continuar a fazer cá o
que não podia fazer lá”. E assim aconteceu.
Muitas vezes, o José Mario Branco me disse: “Hoje o dia está livre”, ou “...vamos cantar aqui,
vamos cantar acolá”. Em França, Paris neste caso, foi um bocado... não foi tanta a minha
atuação. Porque fui a outros países também, não me limitei a estar lá. Fui à Alemanha, à
Bélgica também, fui à Inglaterra, pronto. As pessoas sabiam que eu estava lá assim. Como
havia portugueses que queriam... fui a Luxemburgo. E este foi o meu trabalho.
É claro que no meio de tudo isso também contactava com gente ligada à Igreja. Portanto...
mas a reflexão teológica não me interessava mais diretamente, né? Estava muito mais
preocupado em conviver e em participar, e em fazer aquilo que eu gostava mesmo de fazer:
que era cantar e conviver com os amigos. Isso foi mesmo assim uma preocupação, digamos,
de participar em seminários de teologia e reflexão teológica, teologia e política, tinham muitos
títulos assim. Não tinha assim interesse... não foi a isso que eu me dediquei.

ESA: Mas a esta altura, as pessoas, por exemplo, as quais você estava ligado no exílio,
imaginavam que tipo de resistência? Que tipo de acção poderia ser mais eficiente, vamos
dizer, para acabar com o fascismo?

FF: Havia pessoas que diziam: “Nada como nós fazermos uma campanha em França de
denúncia da situação política que se está a viver em Portugal”. E as pessoas que eram mais
dadas a escrever, por exemplo, escreviam sobre a situação política. Mas haviam outras que
diziam: “Não, isso não vai só com a denúncia escrita, ou a denúncia falada, ou a denúncia
nos jornais, etc.”. Tentavam transformar as opiniões e dar a conhecer o que se passava em
Portugal. E também assim: “A solução pra Portugal vem através de qualquer coisa muito mais
forte, muito mais dura, muito mais violenta do que simples resignação e denúncia e de
lamentação permanente. Que nós poderíamos fazer aqui sim, fora do país, mas resolve muito
pouco”.
É certo que muita gente se empenhou a denunciar em nível internacional, a distâncias
internacionais, o que acontecia em Portugal, a tentar encontrar uma solução. De resto era a
história conhecida, né? Como potência colonizadora, era conhecido o que se passava em
África... Eram conhecidos os massacres feitos pela tropa portuguesa. Denunciado de resto,
por padres espanhóis que vieram para fora e denunciaram isso.
Marcelo Caetano foi uma vez... e foi recebido com manifestações de gente que estava a par
do que se passava em África, dos massacres e etc. Foi confrontado com todas essas
denúncias, com todas essas manifestações. Mas então também havia gente que dizia: “Não,
mas então temos que mudar isso, mas se calhar só vai com a força de uma luta armada, de

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uma luta mais violenta”. E foi a partir daí sim, que em contacto com outros amigos do seminário
que pertenciam a essas organizações de esquerda, foi a partir daí que eu me integrei na luta
armada. Não foi a partir de uma reflexão, não estava muito para aí virado.

ESA: Então, seu engajamento resultou de se envolver com a situação do país no contexto
real... É isso?

FF: Sim, sim. Acho que já tinha razões suficientes, não precisava justificar razões para ser
opositor ao regime. Já tinha razões suficientes tanto do ponto de vista de cidadão como do
ponto de vista de cristão, para denunciar as situações e para não ficar de braços cruzados.
Cantava sim, mas também não chegava. Cantar é fácil, não é? Mas não é suficiente, como
diz o poema de Manuel Alegre. Cantar não é talvez o suficiente, começa assim esse poema.
E, portanto, foi assim o meu trabalho.

ESA: Um dos pontos mais importantes em relação ao regime, em que os católicos


oposicionistas e também os da Comissão de Socorro aos Presos Políticos faziam era
denunciar a tortura, não é? Você se recorda dos momentos em que começaram esses
discursos em que se pedia algum tipo de explicação ao regime sobre essa questão da tortura?

FF: Não, não me lembro quando. Lembro-me de que uma das denúncias públicas era
justamente que nós sabíamos que uma pessoa poderia estar presa anos a fio. Quando uma
pessoa é condenada, vamos imaginar, cinco anos... Depois, portanto, um período de medidas
de segurança, mas as medidas de segurança podiam ser renovadas, mas a um ponto... de
um infinito quase. E a pessoa podia passar anos presa, na situação de medidas de segurança,
e não propriamente pela pena inicial de que tinha sido condenada. Fazia com que muita gente
tivesse muito, muito tempo de medidas de segurança. Presa por medidas de segurança
renovadas, não é? Mas isso logo desde o princípio. Desde o princípio da atuação da polícia
política, a tortura foi denunciada. Não tenho presente a data ou a época exata, mas a partir
do momento que foi feita a denúncia da situação dos presos políticos, e da injustiça da prisão
política e tudo isso. Paralelamente, as prisões políticas não eram nenhum lugar de inocência.
Tratavam as pessoas barbaramente, a prisão política vinha acompanhada com a tortura. Os
interrogatórios eram com a base da tortura...
E durante certo tempo os católicos, por exemplo, foram poupados dessa tortura. Talvez ainda
com os restos de respeito que possa haver com o estatuto social de ser católico ou ser padre,
ou algo assim. Em certa altura, quando começou a haver um empenho ainda maior por parte
dos católicos, padres, em defesa das injustiças da Guerra Colonial, aí sim as medidas de

189
retenção... a tortura foi extensiva. Não havia distinção de classes, nem de categorias
profissionais, nem de credos, nem profissões religiosas, nada. Apanhavam todos pela mesma
tabela. Eu tenho amigos meus que foram torturados, amigos padres.

ESA: Por favor, você pode contar como foi o processo da feitura da letra “Vemos, ouvimos e
lemos, não podemos ignorar”, e como vocês prepararam isso antes da vigília? E também,
enfim, como a Sophia de Mello Breyner esteve presente em todo esse acto, nesse sentido,
da música, da letra?

FF: Este tema que foi cantado lá, portanto, a Cantata da Paz, foi feito pela Sophia. Esse
poema foi feito expressamente para essa vigília. E foi preparado juntamente com um amigo
meu, que era o Rui Paz, que morreu ano passado. A partir de um... suponho eu, duma música
de um espiritual negro americano. Imagino eu, calculo eu que sim porque tenho cá no ouvido
qualquer coisa assim, daquele refrão “Vemos, ouvimos e lemos”. Mas então, foi feito
expressamente para essa vigília. O Rui Paz, disse-me ele, encontrou-se várias vezes com
Sophia em casa de Sophia, e juntos eles prepararam a métrica do poema, que se adaptasse
ao ritmo da música. Portanto, foi um trabalho conjunto, do qual resultou isso que vem aqui a
ser um poema grande, que eu aprendi do Rui Paz. Devo ter comunicado... não me recordo
muito de todos os pormenores, mas imagino que deva ter preparado aquilo com três ou quatro
amigos, aquém disso, que vamos preparar isso, vamos cantar isso. Mas que era impossível
estar a dar conhecimento, nem sabíamos quem eram as pessoas que iam estar presentes [na
vigília]. O que eu sei é que nós quando chegamos, e quando chegou a altura de cantarmos
eu disse: “Vamos cantar ‘Vemos, ouvimos e lemos’ e o refrão é muito simples. E devo ter
cantado uma ou duas vezes juntamente com aqueles amigos que já conheciam. E aí, fez-se
um ensaio rápido de alguma coisa que caía facilmente no ouvido, portanto não oferecia
dificuldade nenhuma. Como as quadras do original eram bastantes, na versão original são
muito mais do que aquelas [do disco, em que consta a versão resumida]...

ESA: Vocês cantaram originalmente aqueles versos compridos, longos?

FF: Sim, sim, cantamos tudo. E portanto, as quadras são bastantes, como o refrão se repetia
muitas vezes, ao fim já toda a gente cantava sem problema nenhum. Já estava perfeitamente
no ouvido. E foi assim que as coisas passaram. Claro que a Sophia estava lá, foi uma das
pessoas, imagino que com muito gosto ficou com muita alegria a estar ouvindo todos a
cantarmos o “Vemos, ouvimos e lemos”, um poema que ela tinha feito expressamente para
essa altura.

190
ESA: Ela cantava bem?

FF: Hum... não sei, não sei, não sou capaz de dizer. Imagino que ela era uma pessoa que
absorvia muito interiormente as coisas. Imagino que ela possa ter ouvido isso em silêncio.
Não sei se cantou ou se não cantou, mas há de ter cantado muito mais o silêncio da música
do que propriamente as notas da música. Porque ela era uma pessoa... digamos... muito
sensível ao silêncio. Eu recordo-me que uma vez, isto é um à parte, estávamos em Espanha
e estávamos a ouvir uma reunião que tivemos, um grupo de cristãos em Espanha. Fomos lá
perto de Madrid, e então fomos uma noite ao “Viva Alma”, onde se tocava flamenco, e se
cantava flamenco. E recordo-me de quando acabou uma das partes musicais ela parou e
estava assim encostada a uma parede a ouvir as coisas com muita atenção, e depois fez este
comentário: “Do que eu gosto desta música é do silêncio” [faz o som e o gesto das palmas e
de quando as palmas se encerram no ritmo do flamenco e fica o silêncio]. Isso é uma coisa
que eu nunca mais esqueci. Porque isso denunciava uma coisa de facto, uma maneira de
ouvir e de estar em que absorvia-se. De resto, a poesia dela é uma poesia cheia de contenção,
cheia de silêncio, não é nada explosiva, não é nada perifrástica, não é nada gongórica, é tudo
reduzido ao mínimo dos mínimos, mas tudo que lá está é essencial. Então imagino, não tenho
presente de facto, tantos anos depois passados, não me lembro de ver a Sophia... [na vigília].
Mas imagino que ela deve ter ouvido isso contemplando, e ouvindo e escutando o silêncio
que a música pudesse ter lá dentro também.

ESA: E das pessoas que tocavam, quem eram além de você?

FF: Tem eu.

E: Você unicamente, só?

FF: Sim.

ESA: O Rui Paz não estava lá para tocar?

FF: Não, acho que não. Mas ele não tocava viola, o instrumento dele era... não sei se ele não
estaria em França, porque lá ele foi estudar música para o conservatório de Paris. É capaz de
lá estar, já não o posso perguntar porque ele morreu.

ESA: A verdade é que já não se recorda dele estar ali ao lado de vocês tocando ou cantando?

191
FF: Não, não tenho muito essa memória, não. Nem sei se seria só eu a tocar viola ou se teria
mais alguém. Talvez pudesse perguntar a outros que lá estavam, mas agora, neste momento
não sou capaz de responder.

ESA: Uma das coisas que me chama a atenção nesse evento é o seguinte, como havia a
censura tão grande, não é? Mas o evento teve uma repercussão. Mesmo o jornal que estava
ligado à situação teve que noticiar o facto, não foi assim?

FF: Sim.

ESA: Mesmo que resumidamente?

FF: Sim, sim. Houve um comunicado feito pelo patriarcado alguns dias depois a contar o que
se lá passou. O qual nós, as pessoas que tinham lá estado, um grupinho mais pequeno que
fazia parte mais da comissão organizadora, respondeu colocando... respondeu ponto por
ponto, emendando, retificando as coisas que estavam mal explicadas ou desvirtuadas no
comunicado que foi escrito pelo patriarcado. Estes documentos acho que estão aí para
qualquer lado, eu tinha isso. Portanto, houve um documento, um comunicado do patriarcado
dizendo o que se tinha passado, mas depois nós achamos que aquilo estava cheio de
incorreções, de interpretações falsas. E nós respondemos ponto por ponto, e emitimos outro
comunicado dizendo que... acompanhava o outro, mas pondo em contraponto... ah... pondo
as coisas no lugar certo. Pondo as coisas no lugar certo, ponto os “pontos nos is”, como se
costuma dizer. As reações, as reações mais fortes foram por parte da imprensa ligada ao
regime. Há um editorial do Correio da Manhã, três dias ou quatro dias depois, nos chamando
de traidores, dizendo que aquilo que se passou lá foi uma traição, e uma traição... Por quê?
Porque em vez de defendermos o esforço de guerra que Portugal está a fazer, enfim, para
defender as colónias, etc., entramos por um caminho que não tem nada a ver com a defesa
do ataque, enfim. E não foi o único. Houve outro jornal, não sei se... ou o Jornal das
Novidades, agora é só ir à procura dos jornais da época... Mas onde, provavelmente, também
denunciaram a nossa atitude, dizendo que atentava contra a unidade da pátria, que é una e
indivisível, o velho slogan da pátria una e indivisível. Portanto, foram várias as reações por
parte da imprensa pública autorizada na época.

ESA: Em relação à saída da igreja, depois da vigília. Vocês saíram em paz? Tinham forças
de segurança lá? Tinha gente da PIDE a vigiar, ou não?

192
FF: Não, porque as coisas foram feitas com certo secretismo. Não foi difundida, né? Não foi
divulgada a iniciativa. Portanto, não notamos que a saída, sei lá, 5h30 da manhã, como foi
para aí escrito, mas não notamos que houvesse gente lá a ver como nós íamos, ou ver quem
saía ou quem lá estava e etc. Não reparamos e nem demos conta que houvesse presença de
pides à saída dessa vigília. Como dávamos conta em outras situações, não ligadas a,
digamos, manifestações de católicos progressistas ou cristãos progressistas, como se queira
chamar. Mas onde havia, por exemplo, sessões públicas de músicas, como houve no Coliseu,
onde nós sabíamos que depois dessas sessões vinha a polícia atrás de nós, a seguir-nos os
passos, irem atrás de nós a sabermos onde nós íamos, etc. A nos acompanhar e a tomar
atitudes intimidatórias... Eu lembro de uma vez ou duas ocasiões, que sabíamos...

ESA: E entre essas atitudes intimidatórias que possam ter havido, alguém foi chamado para
interrogatório, alguma coisa do gênero?

FF: Na sequência dessa vigília? Não sei, não sei.

ESA: Mas do grupo mais próximo a vocês, não?

FF: Sobre essa vigília... não, não sei, não sou capaz de dizer. Eu fui uma vez à polícia para
interrogatório, mas foi na altura... nem sei se me perguntaram sobre a Vigília da Paz, mas
acho que não. Foi na altura em que o padre Felicidade estava preso, nós lemos na missa um
papel a exigir a libertação dele e tudo o mais, e a denunciar a injustiçada prisão dele. Depois
assim... foi uma vez que fui interrogado pela polícia. Foi só uma vez, de resto...

ESA: Em que ano foi? E foi aqui mesmo em Lisboa ou em algum outro lugar?

FF: Não, foi no Barreiro. Portanto, estava eu no Barreiro, foi em 1969 ou 1970.

ESA: Antes dessa vigília?

FF: Ah...precisava eu agora comparar as datas. Só quando eu chegar a Óbidos é que posso
tirar essa dúvida. Tenho fotocópia de todo o questionário, tirei do meu dossiê da PIDE, pedi
fotocópia disso, está lá o original. E eu tenho uma fotocópia dizendo... com esse interrogatório
de respostas. E, portanto, aquilo foi uma notícia de 1970. Suponho que tenha sido depois
disso, porque eu já estava no Barreiro, estava numa outra casa. Sim, acho que foi depois

193
disso é que foi o interrogatório. Tenho que ver se há alguma pergunta em que eles se
referiram...

ESA: Isso é depois da vigília [porque ele está a me mostrar uns documentos]?

FF: Que se refiram expressamente a vigília... suponho que não. Mas as atitudes que nós
tomávamos, sobretudo depois do caso do Padre Felicidade Alves [a celebração do casamento
e as denúncias feitas por Felicidade] teve uma repercussão enorme, e continuou, e continuou,
e continuou, e nós nas missas, nas homílias, denunciávamos as situações, e às vezes no fim
das missas, para não poder nos acusar de estarmos a aproveitar, digamos, o púlpito para
difundir coisas políticas. Nós aproveitávamos as vezes o fim da missa para ler qualquer
comunicado referente a cristãos presos ou a acontecimentos que tivessem se passado sobre
a Guerra Colonial e etc. Mas... não sou capaz de dizer agora. Depois eu vou procurar nesse
meu dossiê, ver se eles me fizeram alguma pergunta a respeito da Vigília de São Domingos.

ESA: E em relação à Cantata da Paz, você gravou em disco quando?

FF: Depois da vigília, depois disso, então gravei em 1970. Tinha gravado em 1969 um
pequeno disco... de cinco rotações. Depois, em 1970 gravei um LP que chama Canções da
Cidade Nova, onde eu incluí a Cantata da Paz. Mas não incluí o poema completo como nós
cantamos na Vigília de São Domingos. Porque... para já porque era muito longo e eu ia ter
que cortar algumas referências, algumas quadras, então eu cortei aquelas que eventualmente
pudessem ter alguma conotação mais religiosa, digamos assim. Uma vez que o disco se
destina a um grande público, um leque variado de ouvintes e de um público variado. E, por
isso, eliminei algumas das quadras, por uma questão de público alvo, e por uma questão de
não prolongar demasiado a música. Porque um LP tinha doze músicas, e não interessava que
uma só ocupasse uma parte substancial da gravação.

ESA: E como foi a combinação com a Sophia para que isso fosse gravado?

FF: Não, não entrei em contacto com a Sophia. Limitei-me a, portanto, fazer uma escolha de
algumas quadras só. Não sei se já não o teria dito ou não, francamente não me recordo. E
eventualmente hei de ter dito. Imagine agora, a posterior ter-lhe dito: “Sophia, cantamos isso
na Vigília de São Domingos e eu queria gravar, será que autorizas?”. Provavelmente hei de
ter falado isso. Provavelmente. O mais natural é que o tivesse dito, obviamente. E tivesse
comunicado que ia gravar.

194
ESA: E quando saiu em disco, como foi a difusão para o público? Teve algum tipo de resposta
do público em geral? De associarem isso com a guerra colonial...?

FF: Hoje a música que mais vezes — quando eu vou cantar aqui ou acolá — que mais pessoas
identificam como minha, como o meu ex-libris é essa: a Cantata da Paz e também a Cantilena
[baseada no poema de Sebastião da Gama], que fala de um rouxinol, um pássaro que
cortaram as asas e o bico e que não pode voar nem cantar. É, são estas duas: a Cantilena e
Cantata da Paz. E muitas vezes me pedem para cantar a Cantata da Paz. Ah... a repercussão
que teve o disco... A censura exercia sobre os discos depois de saírem. Embora houvesse
mentalmente uma certa censura, a pessoa quando ia gravar alguma coisa não ia gravar coisas
que sabiam que implicavam a apreensão imediata dos discos. Portanto, havia já uma pré-
censura, uma pré-selecção, antes de pensarmos o que é que iríamos gravar. Mas o que é
facto é que, tantos os discos do Zeca Afonso como de outros, como este meu também,
aconteceu que depois muitos exemplares foram apreendidos. Foram apreendidos por quê?
Porque ali estavam a Cantata da Paz e o Porque [também poema da Sophia].
Todos aqueles que continham para o poder e para a censura matéria mais do que suficiente
para não difundirem, e para impedirem que houvesse a difusão de músicas subversivas, entre
aspas. Portanto, foram muitos e muitos discos apreendidos, que quando chegavam às lojas
dos discos e... “Disco do Padre Fanhais, está aí?”... e os donos das casas eram obrigados a
entregar os discos que tivessem. Meus, do Zeca, de quem fosse. Eram assim que as coisas
se passavam. Agora, as coisas tiveram repercussão sim porque tudo aquilo que nós
cantávamos, tentávamos que viessem ao encontro das aspirações mais profundas das
pessoas. E portanto era... e sabíamos muitas vezes, quando cantávamos em público, nas
poucas vezes que conseguíamos furar a censura e furar a vigilância da PIDE. Porque música
era um factor de agregação, era um factor de... estabelecia uma fraternidade grande entre
todos. E um espírito de grande rebeldia e de consciência que as coisas tinham que mudar. E
um espírito muito grande. Chamaria hoje, se fosse em outro contexto, de um espírito santo.
Havia como que uma coisa superior a soma de todos que estávamos ali. Ainda hoje, nas
tantas vezes que estamos a cantar, e no fim as pessoas gostam e batem palmas. Há qualquer
coisa que a canção, que o poema, que a música, que todos criamos de novo, que é superior
a soma de todas as pessoas que estão ali presentes.

ESA: Sim, tem um efeito transcendente.

FF: Um efeito transcendente, um espírito. Noutra altura, eu se tivesse lá chamava de Espírito


Santo.

195
ESA: Agora, por favor, você pode me contar sobre a gravação do poema “Porque” da Sophia
de Mello Breyner?

FF: Sim, portanto, eu fui convidado para fazer um LP em 1970. E tinha que arranjar repertório
para esse LP, e falei com um amigo meu, o Francisco Fernandes, dizendo que tinha esse
convite, tinha algumas músicas que queria gravar, e perguntei se ele tinha outras músicas que
eventualmente ele pudesse sugerir para a gravação. E ele disse-me que tinha um poema da
Sophia de Mello Breyner que se chamava “Porque”. Tinha feito uma música para esse poema.
Fui à casa dele, ouvi a música e gostei. E disse: “Posso gravar isso?”. Ele disse: “Podes, claro
que podes”. Depois falei com a Sophia também, dizendo: “Posso gravar?”. Tinha a intenção
de gravar, acho que teoricamente ou legalmente não é preciso autorização escrita da pessoa.
Quer dizer, comunica-se. É uma questão de ética, de cortesia, mas acho que não é
necessário. Mas pronto, eu comuniquei à Sophia que ia gravar o “Porque”. E... pronto, o
“Porque” e a “Cantata da Paz” passou a integrar o disco que chama “Canções da Cidade
Nova”. E foi esse contexto muito simples, que eu tinha que arranjar repertório para o LP, que
me levou a falar com o Francisco Fernandes. De resto, neste LP há outras músicas com outros
poemas que não são da Sophia, mas que tem também música do Francisco Fernandes. Pelo
menos mais duas ou três. Portanto, assim, computei esse repertório para gravar esse LP.

ESA: E a Sophia foi aos seus shows, tem essa lembrança?

FF: Não, não, nunca foi. Suponho que não.

ESA: Ela não estava curiosa, ou só comprava o disco?

FF: Nem sei se comprou ou se não. Imagino que devo ter-lhe dado um disco, que era o mínimo
que se podia fazer, obviamente. Imagino que sim. Mas não creio que ela... não era uma
pessoa, suponho eu, enfim... não me parece que... não me dei por conta que alguma vez ela
tenha estado nos espetáculos e nem que tivesse participado... Não sei, acho que não.

ESA: Muito agradecida pela entrevista.

196
ENTREVISTA COM NUNO TEOTÓNIO PEREIRA (POR ELOÍSA ARAGÃO)
LISBOA, 24 jan. 2014

ESA: Eloísa S. Aragão - Investigadora


NTPereira: Sr. Nuno Teotónio Pereira - Entrevistado
E2: Irene Buarque (esposa de Nuno Teotónio)

ESA: O senhor poder comentar se recorda quando conheceu a Sophia de Mello Breyner?

NTPereira: Bom, foi na altura… no tempo do ditador Salazar, nós começamos a fazer umas
reuniões de católicos que eram contra essas medidas... E... então foi quando começamos a
nos conhecer melhor. E é muito activo nesse processo... foi o Tareco, o Francisco. Foi muito
activo, falava com muitas pessoas, conhecia muita gente. Foi promover reuniões etc.
Politicamente foi muito activo. E era mais do que ela claro, ela até não gostava muito, não era
habitual dela escrever manifestos políticos, ela não fazia isso. E as suas opiniões sobre a
ditadura do Salazar não me lembro de ter visto manifestos escritos por ela. Mas havia reuniões
em sua casa, então ela participava activamente.
E havia uma... especialmente estou a lembrar agora sobre uma comissão que houve
nessa altura, Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, onde havia uma polícia do
ditador Salazar que era muito feroz e torturava pessoas em interrogatórios. Eu também fui
preso uma vez, mais, fui três vezes... e então... lembro-me perfeitamente de quando foi o
movimento do 25 de Abril, que naquela altura em Portugal houve uma carrada de presos
políticos que o regime da ditadura tinha feito, e foram libertados. Foram libertados, e a certa
hora foram divulgados os nomes para que as pessoas pudessem ir lá no presídio abraçar os
amigos que estavam presos e estavam sendo liberados, e lembro-me de tudo isso.
Então, ela [a Sophia] também foi lá nessa festa de libertação. Foi a noite em que se
abriram as portas da prisão e os presos políticos que estavam lá, incluindo eu, saímos para
abraçarmos os amigos, a família e tudo isso. Esteve lá presente muito activa, muito afectiva
e a abraçar todos aqueles que tinham sido torturados e que tinham estado presos, alguns
muitos anos já.

ESA: O senhor se recorda da sua participação na “Velada de São Domingos” em 1 de Janeiro


de 1969? Quando o senhor, ao lado da Catarina Pestana, Pedro Onofre e Francisco Solano
de Almeida, foram falar com o Cardeal Cerejeira para ficar em vigília, protestando contra a
guerra colonial? O senhor se recorda, pode falar a respeito?

197
NTPereira: Aconteceu uma coisa nesse ano, é que o Papa, já não lembro quem era.

ESA: João XXIII.

NTPereira: João XXIII declarou que, a partir dessa data, o primeiro dia do ano seria a
comemoração da Paz. Bom, e portanto havia celebrações católicas em todo o mundo, a favor
da Paz nesse dia 1 de Janeiro. E foi no ano em que ele fez essa declaração que um grupo de
católicos aqui de Lisboa e de Portugal resolveu ir a uma celebração que houve na noite de 31
de Dezembro, na véspera do Ano Novo.
E então houve lá intervenções e o Cardeal Cerejeira, que era o bispo principal de
Lisboa, fez o seu discurso, houve uma celebração religiosa, e quando acabou alguns de nós...
Nós tinhamos combinado de continuar na igreja a fazer essa vigília. Porque achàvamos que
Portugal estava em guerra, estava em guerra justamente porque havia torturas, prisões,
muitos presos políticos e tudo isso.

ESA: E havia a guerra também em África.

NTPereira: Sim, e aqui em Portugal também uma situação de guerra, também aqui em
Portugal. E então à saída foi um pequeno grupo. Quando o Cardeal Cerejeira ia a sair das
portas da igreja de São Domingos, um pequeno grupo foi ter com ele e disse-lhe: “Olhe, nós
vamos continuar aqui nessa vigília pela Paz porque o país está em guerra. E, portanto,
precisamos... vamos discutir, vamos conversar, vamos prestar informações sobre essa
guerra, porque essa guerra vai ter que acabar, não podemos continuar assim nessa situação”.
E o Cardeal Cerejeira ficou muito surpreendido e disse: “Bem, tá bem, se querem
continuar aqui então podem continuar. Mas aquele prior da igreja vai controlar as vossas
discussões, vai controlar as vossas intervenções. Vai controlar, continua aqui para controlar”.
Então, passamos toda a noite ali até de manhã cedo, e cada um dando o seu
testemunho, falando daquilo que já tinha presenciado. De torturas nas prisões, a Guerra
Colonial, a proeminência das colônias que Portugal era contra... E sobre a situação em África,
então também falaram, que era preciso haver paz também nessas colônias em África, tinha
que haver a independência das colônias, para se tornarem países próprios e independentes,
e passamos a noite nessa discussão. Prestamos informações e falamos uns com os outros
em voz alta e, de vez em quando, o prior da igreja, que estava lá de vigilância, fazia uma
intervenção a dizer: “Não, nesse assunto não se pode tocar, nesse assunto não se pode falar”.

198
Mas continuávamos a falar, e ele teve que se render. A certa altura o prior calou-se, e nós
falamos à vontade.
E eu creio que também estava lá nessa altura a Sophia. A Sophia também estava lá,
também participou dessa vigília da Paz na igreja de São Domingos, em Lisboa.

ESA: E ela havia preparado o poema “Vemos, ouvimos e lemos”, não é? Poema que na
versão original tem uma construção que faz uma espécie de ladainha, no rito católico...

NTPereira: É verdade, exatamente.

ESA: E vocês cantaram, enfim, pronunciaram e depois veio a se tornar a música “Cantata da
Paz”, que o Francisco Fanhais gravou num disco em 1970.

NTPereira: Sim, sim. Exatamente, nessa altura nós tinhamos preparado a reunião e tínhamos
falado com a Sophia e ela fez esse poema pela paz, que foi muito cantado lá, e depois
continuou sendo muito cantado aqui em Portugal enquanto houve a ditadura: “Vemos,
ouvimos e lemos”. E foi muito importante isso, muito importante.

ESA: À saída, o grupo saiu umas 5h, 5h30 da igreja... O senhor lembra se houve presença
de policiais (pides) na saída, ou se houve algum tipo de perseguição/ameaça?

NTPereira: Houve a presença de pides, mas não fizeram nenhuma ameaça. Não prenderam
ninguém, não fizeram ameaças, estavam calados, estavam ali a observar. Eles não tiveram
coragem para fazer isso nesse dia, que era o dia dedicado à Paz, não tiveram coragem para
fazer prisões políticas. Porque podia dar origem a muitos protestos, e depois a notícia ia para
o estrangeiro e tudo isso, e a PIDE não quis fazer isso possivelmente até por ter recebido
instruções do Cardeal Cerejeira.

ESA: Outro evento muito importante que o senhor também participou foi a vigília da Capela
do Rato em 1972, não é?

NTPereira: Sim.

ESA: O senhor pode contar um pouco como é que foi? Parece que o senhor organizou a
própria vigília da Capela do Rato?

199
NTPereira: Bom, vamos ver se eu me lembro. Eu me lembro da vigília, o motivo, a data...
[tentando chamar o tema à memória]. Havia alguma data especial? Não me lembro...

ESA: Nessa vigília na Capela do Rato também houve o protesto pela independência dos
países sob o domínio colonial português. Pelo que eu li, a repressão foi bem maior nessa
vigília do que na de São Domingos.

NTPereira: Sim, sim, foi. Na primeira houve repressão, e passados uns anos então foi
organizado... Como era o dia Primeiro de Janeiro, o dia da oração pela paz, então foi uma
coisa organizada, em que a Sophia de Mello Breyner foi a principal organizadora.

ESA: Não, acho que na Capela do Rato foi a Conceição Moita, porque teve vários grupos,
várias tendências, grupos clandestinos. Mas eram todos na maior parte católicos. Será que
na Vigília da Capela do Rato a Sophia esteve presente? O senhor se lembra desse fato?

NTPereira: Olha, eu nunca ouvi falar muito da Sophia nessa vigília. Não me lembro, tenho
que confessar que não me lembro.

ESA: E na Vigília na Capela do Rato, houve funcionários da repressão em algum momento?


Recorda-se disso?

NTPereira: Ah, sim, à saída, quando já estávamos a sair.

ESA: E houve prisões à saída, repressão mesmo, ostensivamente?

NTPereira: Nessa vigília, a certa altura houve várias pessoas que falaram que era preciso
acabar a guerra nas colônias, era preciso dar a independência. E houve várias pessoas que
falaram ou iam falando sobre isso. E a certa altura estavamos lá dentro e começamos a ouvir
uns cães cá fora na rua a ladrar, uns cães a ladrar na rua. Ora bem, o que eram esses cães?
Eram cães da polícia que iam entrar na capela, para acabar com a vigília e fechar as portas.
E realmente dali a poucos minutos a PIDE entrou, vários elementos da PIDE entraram e
começaram a arrastar as pessoas, começaram a arrastar as pessoas para a porta. E eu fui o
primeiro ali na primeira fila atrás, fui o primeiro. Agarraram em mim, e eu não fui pelo meu pé,
fui arrastado pelo chão. Arrastaram-me para a rua, e depois foram todos saindo. E acabou
assim a missa na Capela do Rato.

200
E2: Mas eles prenderam você, e o teu filho, o Miguel. Tinham também estudantes nessa
vigília. O Francisco Louçã e o Miguel.

ESA: Jovens, não é? Vários jovens...

E2: Iam prendendo. Tiravam da Capela e iam prendendo os mais activos. Prenderam todos
os mais activos, a Conceição Moita, o Luís Moita.

ESA: E em relação à repercussão, o senhor se recorda se algum jornal fez publicações?


Porque eu ainda não vi. Porque quando eram eventos muito importantes assim, por mais que
houvesse censura, eu acredito que acabavam dando alguma nota, por conta de... ser um
evento que teve repercussão. Mesmo que fosse da parte da repressão do regime para
repudiar o facto. Em termos de repressão o senhor se recorda... de como foi a repercussão?

NTPereira: Veio uma notícia muito pequena nos jornais. Uma notícia muito pequena disso,
desse acontecimento. A polícia censurava o noticiário, a informação. E a notícia era muito
pequena e não falava bem do que se tratava. Teve uma grande repercussão entre a
população, esse acontecimento, as pessoas foram contando umas às outras.

E2: E vocês [organizadores da vigília] também imprimiram uns folhetos?

NTPereira: Sim, imprimimos sim, distribuímos a dizer o que tinha acontecido, e tudo isso.

ESA: Então, a publicação foi antes da vigília para avisar que haveria a vigília... E depois
também como acto de manifestação contra o que havia acontecido, de a PIDE ter feito prisões,
de ter perseguido as pessoas?

NTPereira: Exatamente.

ESA: Foi assim? O senhor lembra-se de pormenores desse fato?

NTPereira: Foi assim, foi. Exatamente.

ESA: Há uma actuação importante da sua parte, que o senhor realizou, que foi a publicação
do jornal que corria clandestinamente: o Boletim Direito à Informação. O senhor pode falar um
pouquinho disso? E se recorda se a Sophia participou de reuniões em que vocês faziam?

201
NTPereira: Não, a Sophia ia pouco a reuniões. Participou muito activamente nas nossas
ideias, e tudo isso, e conversas com ela, mas ela não ia muito a reuniões. E estávamos a falar
do quê?

ESA: Boletim Direito à Informação (DI), que começou em 1963 e funcionou até, parece, até
1968 ou 1969. Perguntei se o senhor poderia comentar um pouco sobre ele.

NTPereira: Bom, esse era um boletim que dizia as notícias que a censura não deixava que
viessem nos jornais, que nós considerássemos importantes sobre a guerra nas colônias,
sobre a situação em Portugal. Notícias que não eram publicadas pela censura e nós
publicávamos então nesse jornal chamado Direito à Informação. As pessoas que faziam esse
jornal não foram presas, porque não foi na época da ditadura do Salazar, foi depois.

ESA: Foi na época do Marcelo Caetano?

NTPereira: Marcelo Caetano, foi. No tempo do Marcelo Caetano a repressão abrandou um


pouco.

ESA: Eu li que vocês faziam toda uma estratégia para conseguir que a publicação chegasse
às mãos das pessoas, porque precisavam burlar muitas normas para conseguir fazer essa
divulgação. O senhor tem algum ponto, algum caso específico, que queira falar a respeito?

NTPereira: Bom, nós tínhamos um conjunto de militantes que se encarregavam de percorrer


o país e ir às cidades e províncias, para levar essa publicação, para levar esses boletins. E
tínhamos isso organizado. Creio que saía uma vez por mês, e depois era distribuído por todo
o país por um conjunto de amigos que se encarregavam de levar a outras cidades.

E2: Tem o episódio que agora me lembrei, a Margarida Leão, que contei aqui em casa. Que
recordou isso há pouco tempo, que ela foi distribuir isso em Fátima e foi lá presa. E ela era
casada com um militar, tinha cinco filhas. Isso foi um episódio.

NTPereira: Isso foi uma visita que o Papa fez a Portugal. A visita que o Papa fez a Portugal
e foi à Fátima. E então houve uma grande... Como há lá todos os anos, em Outubro, não sei
bem quando é. Uma multidão muito grande que vai à Fátima, é essa da padrinhização, e
então, como ia o Papa dessa vez, ainda iam mais pessoas... Então nós fizemos uma tiragem
especial, com um número muito maior de exemplares para distribuir e, nos arredores de

202
Fátima, quando as pessoas estavam acampadas, e andavam por ali à noite, nós distribuíamos
os boletins. E algumas pessoas foram presas por causa disso.

ESA: Incluindo essa senhora, Margarida Leão? Então eu vou citar: Margarida Leão também
participou da divulgação nesse evento.

E2: Na distribuição. Acho que a Vitória Vaz Pato também, e também mandavam para o
exterior. Também saía em jornais do exterior, vocês também conseguiam mandar informação
para fora de Portugal. Para a Espanha, para a França...

NTPereira: Sim.

ESA: Os países quais eram?

NTPereira: Espanha, França. Você já foi ao Centro de Informação de Coimbra?

ESA: Não, eu ainda vou, talvez no começo de fevereiro.

NTPereira: Há aí todas essas publicações que eu tinha, e que outros camaradas tinham,
foram todas depositadas nesse Centro de Informação 25 de Abril. Conheces a directora? Já
falou com ela?

ESA: Eu escrevi uma carta pedindo para ir lá investigar e ela deu a autorização, disse que
sim.

NTPereira: Natércia Coimbra, chama-se Natércia Coimbra.

ESA: Eu agradeço.

NTPereira: E então ela tem reunido esses documentos todos.

ESA: Por acaso o senhor participava também de reuniões no Centro Nacional de Cultura? Ou
teve algum trabalho específico no Centro Nacional de Cultura?

NTPereira: Sim, eu era sócio. Eu era sócio do Centro Nacional de Cultura, e ia muitas vezes
a reuniões lá. Muitas vezes tinha o carácter cultural só, mas quase sempre falava-se também

203
de política. Não podia-se falar muito abertamente de política porque se não depois a polícia
mandava fechar o Centro.

ESA: E a PIDE, a polícia política ficava lá na mesma rua [do Centro Nacional de Cultura]?

E: Sim, ao lado mesmo.

ESA: E em 1965 a Sociedade dos Escritores foi fechada, foi invadida pela PIDE, pelas
informações que eu li... Porque haviam, lá nessa sociedade, destinado o prémio ao Luandino
Vieira, que estava até a cumprir prisão em Angola pelo livro “Luuanda”. Então, invadiram e
fecharam a sociedade. E nesse sentido parece que a Sophaia levou então esses intelectuais,
também professores que tinham sido banidos do seu ofício, e gente que trabalhava com
literatura, e os abrigou no Centro Nacional de Cultura, para continuar a ter um espaço... a
fazer debates... O senhor se recorda dessa época, desse episódio? Se recordar, o senhor
poderia falar um pouco a respeito?

NTPereira: Não estou a lembrar, não.

ESA: Isso foi em 1965.

NTPereira: Não estou a lembrar, não.

ESA: Está bem.

E2: Olha Nuno, o Ribeiro Teles aqui no Centro Nacional de Cultura, acho que nessa altura o
marido da Sophia era director ou presidente da direcção, não era? Eles foram da direcção. E
também o paisagista Ribeiro Teles, que era um monárquico, mas também era um católico, e
também foi preso por um dia, não sei. Ele também participava no Centro Nacional de Cultura.

ESA: Está muito cansado?

NTPereira: Sim, um bocadinho.

ESA: Então vou fazer só mais duas perguntas curtas. O senhor se recorda se a Sophia de
Mello Breyner, em algum momento se assumiu no passado enquando monarquista, ou só o
marido dela foi monarquista? Ela fez a defesa da monarquia?

204
NTPereira: Ele era mais activo, ele falava mais, era muito mais activo do que ela. Ela era
mais discreta, falava menos, não fazia discursos. E, portanto, ele que era conhecido como
elemento monárquico. Mas depois esse problema perante a repressão da ditadura do Salazar,
esse movimento também abrandou. Também deixou de haver manifestações nesse sentido.

ESA: Outra questão é sobre a carta do Bispo do Porto, não é? Que causou um alvoroço
mesmo...

NTPereira: Do Antônio Ferreira Gomes.

ESA: Sim. O senhor pode falar um pouquinho sobre a carta? E também aquela carta que
vocês católicos progressistas escreveram ajudando, auxiliando, enfim, auxiliando o bispo?
Porque o bispo foi, acho que banido, obrigado a se exilar...

NTPereira: Sim, sair de Portugal. Foi obrigado a sair de Portugal, porque o bispo escreveu
essa carta ao Salazar mas mandou cópias a pessoas amigas, a pessoas que pensavam como
ele. E mandou uma cópia a mim, por exemplo. Eu recebi uma cópia dessa carta. E isso foi um
incentivo muito grande para que os católicos que, até certa altura, não se importavam com as
violências da ditadura do Salazar, começassem a tomar consciência dessa violência. E
começaram a mobilizar-se para combater o regime do Salazar. Essa carta do António, Bispo
do Porto, ao Salazar foi muito importante nesse aspecto. Porque muitos católicos não estavam
metidos na política, não falavam de política, não se interessavam, passaram a interessar-se
e muitos foram ficando militantes desse movimento contra a ditadura. Foi muito importante
isso.
Depois ele foi expulso de Portugal, e ficou em Espanha. Ficou em Espanha primeiro e depois
ficou um tempo em França. Exilado, não podia entrar em Portugal. A polícia, a PIDE, não teve
coragem para o prender porque era um bispo. Então, em vez de o prenderem mandaram para
fora do país. E nessa altura... isso ainda demorou uns dois anos ou três em que ele esteve
fora, e foi até a morte de Salazar. E nessa altura, eu e minha primeira mulher, que entretanto
faleceu já há bastante tempo...

ESA: Era Natália, não era?

NTPereira: Natália. Nós dois, com duas pessoas amigas que eu não me lembro quem eram,
fomos visitá-lo. Primeiro à Espanha e depois no ano seguinte fomos ao sul de França falar
com ele, dar informações e conversar sobre esses aspectos.

205
ESA: E ele chegou a viver em Portugal?

NTPereira: Ah, ele depois viveu. Quando o Salazar morreu o sucessor foi o Marcelo Caetano,
e o Marcelo Caetano abrandou alguns aspectos da repressão do regime. Alguns aspectos
foram abrandados. E alguns, logo de princípio, foi a autorização ao bispo do Porto para que
voltasse ao Porto como bispo.

ESA: Que bom, ao menos teve esse aspecto positivo de poder voltar.

NTPereira: E o Papa também não quis nomear um sucessor para ele. Ele era também
ministro do Porto, tinha direito a estar lá, era lá que deveria estar. E foi expulso pelas
autoridades portuguesas para fora do país, mas continuou ministro do Porto, embora não
morasse lá. Isso era uma coisa muito discutida aqui entre nós.

ESA: E em relação àquele documento que tem o título de: “A posição de alguns católicos” ou,
mais comum, “O Manifesto dos 101”. O senhor pode falar um pouquinho a respeito? O senhor
se recorda?

NTPereira: Ah, isso não me lembro.

ESA: Esse foi em 25 de Outubro de 1965. Pelo que eu li é uma declaração que já começa...
Vocês enquanto católicos começam a falar de que não toleram mesmo a... enfim, a repressão
no Estado Novo e também marcam uma posição forte contra a Guerra Colonial.

NTPereira: Exatamente. A designação é porque nós fizemos aquele documento a pensar que
era preciso pelo menos, para dar força ao documento, era preciso pelo menos 100 pessoas
assinarem. E pessoas que fossem conhecidas no meio intelectual, no meio científico, etc. E
depois, quando lá tínhamos as 100 assinaturas, apareceu lá mais uma pessoa a dizer que
também queria assinar. E por isso que ficou o dos 101.

E2: Você não lembra quem era essa pessoa?

NTPereira: Não lembro não.

206
ESA: Ah, sim... [mais uma questão importante]. Na Comissão Nacional de Socorro aos Presos
Políticos o senhor chegou a atuar? Chegou a trabalhar na Comissão Nacional de Socorro aos
Presos Políticos?

NTPereira: A Comissão foi fundada aqui em minha casa.

ESA: Então, por favor, conte-me.

NTPereira: A primeira pessoa a pensar nisso foi a minha mulher, a Natália.

E2: Natália Duarte Silva.

NTPereira: Chegou a escrever uma carta sobre isso, e depois eu fiz um documento mais
amplo dirigido a todos os partidos da oposição, para que se juntassem nessa Comissão.
Porque havia um problema muito grave nessa altura: é que a luta contra a ditadura do Salazar
estava dividida. Havia vários partidos que não... que eram uns contra os outros. Como
aconteceu agora também. Havia o Partido Comunista, havia outros partidos, alguns até não
tinham nome, não estavam organizados, eram grupos de pessoas que não queriam nada com
o Partido Comunista, e não se juntavam, não se reuniam, e faziam acções separadas contra
a ditadura de Salazar. E então, tivemos a ideia de formar uma comissão, por isso chama-se
Comissão Nacional, uma comissão que não fosse dependente dos políticos. Que fosse uma
comissão de pessoas. E essa comissão tinha pessoas de todos os partidos. Desde o Partido
Comunista até o Partido Nacionalista e tudo, católicos, e progressistas, e tinha pessoas de
todos os partidos, contra a ditadura do Salazar. E então havia muitos presos políticos, claro.
E eram ajudados pelas famílias, e tinham família e não tinham, outros não tinham amigos e
estavam muito abandonados, e eram miseráveis alguns. Não tinham itens, não tinham meios
de comunicação. Então resolvemos fazer uma comissão nacional de todos os partidos que
eram contra a ditadura do Salazar: católicos, socialistas, comunistas, pessoas de todos os
partidos... E essa Comissão Nacional foi muito importante. Há dois livros publicados sobre
isso.

ESA: Conheço aqueles de capinha castanha, volumes I e II: “Comissão Nacional de Socorro
aos Presos Políticos, 1970- 1971” e “Presos Políticos 1972-1974”.

NTPereira: Pois foi.

207
ESA: Esses eu tenho, eu consegui. E também vi o trabalho tão importante que vocês faziam,
de pesquisa, de investigação... Quem já tinha, por exemplo, cumprido a pena, mas continuava
preso, por conta da burocracia, e enfim, do sistema tão kafkaniano. Agora, pensando um
pouco na Sophia de Mello Breyner, que levou os casos mais urgentes à Assembleia da
República para dizer: é preciso olhar para essas pessoas, é preciso que elas sejam atendidas,
que haja respeito aos direitos humanos. Sobretudo o caso daquelas que tinham sido
barbaramente torturadas, ou já estavam no cárcere havia muito tempo...

NTPereira: Sim, sim.

ESA: O senhor se recorda disso? Pois, conforme me falou o Frei Bento Domingues, era
comum ir ele, o Frei Bento Domingues, a Sophia de Mello, e um jovem que era do Partido
Comunista, o Fernando Lopes Graça. Geralmente já com os documentos prontos da
Comissão de Presos Políticos, iam à Assembleia reclamar sobre esses casos.

NTPereira: Exatamente.

E2: Acho que também foi essa Comissão que criou as colónias de férias para os filhos dos
que estavam presos.

ESA: Ah, que bonita iniciativa. O senhor se recorda de como foi esse trabalho?

E2: Foi a Catalina Pestana que foi responsável...

NTPereira: Foi uma delas.

E2:... que ficou responsável.

NTPereira: Você falou com a Catalina?

ESA: Sim, eu falei com ela faz uns dois dias. Ela está um pouquinho doente, mas vai me
atender na próxima semana. E faz um trabalho muito importante e corajoso até hoje aqui. Que
eu tenho sabido pelas pessoas da Igreja, não é? Então, outra pergunta, sobre a atuação da
Cooperativa Pragma. O senhor pode falar o que foi a Cooperativa Pragma? O senhor esteve
à frente desse trabalho?

208
NTPereira: Bom, a cooperativa foi uma publicação em cada mês, um boletim em cada mês,
e era para divulgar casos em Portugal e no estrangeiro que pudessem influenciar aqui a
política portuguesa. E a certa altura publicaram os textos, que eram proibidos pela censura,
de saírem nos jornais. Nós tínhamos contacto com alguns jornais, e os jornais mostravam
artigos e informações que a censura tinha proibido de publicar. E então o boletim da
Cooperativa Pragma publicava esses artigos. Não fazia censura [Cooperativa Pragma],
publicava os artigos à vontade, e a certa altura o diretor foi preso, e depois houve mais prisões,
e o Boletim de Pragma continuou a publicar durante certo tempo e tinha muito interesse por
isso. Porque eram notícias que tinham sido proibidas pela censura. Eu também fui objecto da
censura duas vezes em que fui eleito para a direção do Sindicato dos Arquitectos. E, então,
sabe que todas as direções dos sindicatos, associações, tinham que ser aprovadas pelo
Governo... E quando o Governo não concordava com alguém que tivesse lá, essa pessoa não
podia tomar posse. E isso aconteceu duas vezes comigo pelo Sindicato dos Arquitectos. Fui
eleito, mas não cheguei a exercer porque... depois a polícia impediu. A polícia cortou meu
nome.

ESA: O senhor saberia comentar, ou se recorda, de como foi a aproximação de alguns


católicos do Partido Socialista? Porque no caso da Sophia ela foi chamada para compor a
lista do Partido Socialista nas eleições, e foi eleita deputada constituinte, e de facto participou
nos trabalhos como deputada constituinte. O que me chama a atenção... Eu já consegui ler
um pouquinho da bibliografia a respeito, mas é especialmente aqui em Portugal, estou a
precisar saber como aconteceu essa aproximação dos católicos, dos ideais socialistas, e
mesmo do Partido Socialista. E também a volta [do exílio], enfim, do Dr. Mário Soares.

NTPereira: Bem, havia poucos partidos organizados em Portugal. Como havia essas
dificuldades e esse perigo de serem presos e não poderem publicar as suas revistas, haviam
poucos partidos organizados. E os dois principais que haviam, da oposição ao regime, eram
precisamente o Partido Comunista Português e o Partido Socialista. E por isso eles
entendiam-se um com o outro. E havia muitos católicos no Partido Socialista. Haviam muitos
desde o princípio, porque era um partido que não era extremista, não era contra a religião
como era o Partido Comunista.

ESA: Além da Sophia, o senhor se recorda de outros católicos que integraram, vieram a
integrar os trabalhos do Partido Socialista?

NTPereira: Isso agora eu não lembro, havia muitos. Só digo que havia muitos.

209
ESA: E só para finalizar... Sei que o senhor deve estar cansado, mas agradeço muito a sua
disposição em poder falar. E está sendo muito boa essa entrevista porque já está a me
elucidar muitos pontos que eu precisava, vamos dizer assim, amarrar, para entender o
contexto de atuação dos católicos progressistas. A pergunta é: no momento do 25 de Abril,
no dia, o senhor ainda estava preso. Gostaria que o senhor comentasse como foi essa última
prisão, onde o senhor estava, e como foram as condições da soltura dos presos políticos.

NTPereira: Ora bem, da parte militar, quem era o comandante da revolução era o general
Spínola, já ouviu falar?

ESA: Sim, sim.

NTPereira: É um nome italiano, Spínola. E ele que era o principal chefe, mas ele não era
muito...era de esquerda ele. E então, houve a revolução e todos nós que estávamos presos
no Forte de Caxias, pensávamos que íamos ser libertados logo a seguir. Mas ainda demorou
um dia, um dia e uma noite, antes que fossemos libertados. Por quê? Porque o general
Spínola dizia que havia alguns presos políticos que haviam cometido crimes, ou atentados.
Tinham atirado tiros sobre as pessoas, ou bombas, coisas desse tipo. E então ele achava que
esses não deveriam ser libertados. Então, nós os presos que estávamos lá dentro, dissemos:
“Se não forem todos libertados nós também não saímos. Nós continuamos aqui presos.” E
essa discussão demorou um dia ou dois, e perante isso o general Spínola deu ordem para
libertarem todos. Isso foi interessante.

E2: Isso foi quase a meia-noite, por isso que foi juntando muita gente na porta da prisão.

ESA: E saíram então bem tarde, por isso... quase a meia-noite, é isso? Agora, voltando um
pouquinho... tem alguma coisa em particular que o senhor possa falar, ou queira falar, sobre
a Sophia de Mello Breyner? Porque ela é objecto do meu estudo. Se o senhor tem alguma
coisa a falar... sobre ela...

NTPereira: Bom, nós éramos muito amigos, eu e minha mulher Natália, éramos muito amigos
dela. Às vezes, íamos à casa dela para conversar sobre política, poesia, literatura e outras
coisas, mas ela era pouco activa. Não era ela que organizava as revoltas e os protestos, não
era ela que organizava essas coisas... Ela inspirava, dizia que era preciso fazer essas coisas,
que a ditadura tinha que ser derrubada. Mas a principal pessoa que fazia isso, da família, era
o Tareco, o marido. Era o principal agitador.

210
ESA: Nos últimos anos... depois da Revolução e da atuação nos trabalhos na Constituinte ela
parou mesmo um pouco de assinar documentos, ela ficou afastada da vida política. E ela
dizia... porque de fato para ela houve aquele lado da frustração... de ver quantas pessoas,
depois do regime democrático, estavam lutando só por poder. E isso a desgastou bastante, é
como se fosse um pouco de desencanto com a vida política, ela fala isso em entrevistas. Mas
teve uma atuação dela depois, mais marcante, na questão do Timor Leste e também na
aproximação dos líderes e do poeta, que foi líder também em Timor... o Xanana Gusmão. O
senhor se recorda alguma coisa a respeito dessa época, do envolvimento dela?

NTPereira: Não, não me recordo.

ESA: Está bem. Isso está um pouco documentado, ainda está um pouco vago pelo que eu
comecei a buscar, mas creio que eu vou encontrar mais adiante elementos.

NTPereira: Quem talvez saiba qualquer coisa sobre isso é minha filha Luiza.

E2: Luiza está muito activa nessa luta de libertação por Timor.

ESA: Ah, bom saber, isso importa bastante ao meu tema.

NTPereira: Não conheces, pois não?

ESA: Não.

E2: Deve estar no centro de documentação do CIDAC.

ESA: Agradeço muito, foi com muito gosto que conheci vocês, que conheci o senhor. Fiquei
realmente contente, muito satisfeita do senhor poder me dar a entrevista, muito obrigada.

NTPereira: Apesar de já me faltar muita memória.

ESA: Mesmo assim, isso já me ajudou demais. Muito obrigada pela gentileza.

E2: As outras entrevistas completam o que estiver faltando.

211
ESA: Sim, muito agradecida, Irene.

212
ENTREVISTA COM CATALINA PESTANA (POR ELOÍSA ARAGÃO)
CRUZ QUEBRADA, 31 jan. 2014

ESA: Eloísa S. Aragão - Investigadora


CP: Sra. Catalina Pestana - Entrevistada

[Iniciamos a gravação depois de alguns minutos de conversa e introdução sobre o meu objeto
de estudo, a trajetória política de Sophia de Mello Breyner Andresen.]

ESA: A senhora havia comentado sobre o fato de a Sophia de Mello Breyner ter sido bastante
amiga do padre Felicidade Alves. O que mais pode dizer a respeito?

CP: Naquela época, no final dos anos 1960 e princípio dos anos 1970, o padre Felicidade
Alves foi excomungado da Igreja por se ter manifestado contra a guerra colonial – não que
ele tivesse algum problema de nível eclesiástico, ninguém tinha nada a apontar, de forma
nenhuma – mas pensava, e pensar nessa época, em Portugal, era crime. Você não tinha
nascido ainda, mas ele era o prior dos Jerônimos. Conhece o Mosteiro dos Jerônimos?
Portanto, ele era por natureza o capelão do Presidente da República.

Pessoas da polícia política, da PIDE, iam à missa do meio-dia gravar as homilias que ele fazia.
Portanto, criou-se um sistema de vigilância, porque não era costume os padres meterem-se
na política. Lá nos Jerônimos havia outro bispo do Porto, como é que ele se chama... Bem,
daqui a um bocadinho eu já me lembro do nome. Mas havia outro que arriscava seu prestígio
junto do patriarca, que era altamente próximo do poder político em Portugal naquela época.
Mas regra geral os clérigos estavam sempre de acordo com o bispo, e o bispo estava sempre
de acordo com o Salazar. Então, havia pessoas que começaram a sair de outras paróquias,
perto de onde moravam, para irem à missa a Belém, para ouvir o que o padre Felicidade dizia.
E não sei se tem acompanhado o discurso do actual papa... Pois, o José Felicidade falava do
altar abaixo há quarenta anos, como fala agora o papa Francisco. Uns gostavam e outros não
gostavam. E isso criou uma dinâmica entre católicos, a Sophia era católica, e que levou a que
sentissemos, nós os católicos, que era nossa missão num país como o nosso, que estava em
guerra colonial, que estava em situação de grande repressão ideológica, que tinha presos
políticos e torturas – vocês no Brasil também tiveram ditadura, mas do que estou a falar, isso
foi cá um bocadinho antes.

213
E então, um grupo de católicos, alguns dos mais significativos em termos intelectuais,
começaram a juntar-se informalmente para fazer discussões e produzir textos, que nós
distribuíamos de noite, clandestinamente. Namorei muito nesse tempo. Porque eu e meu
namorado, ao tempo, íamos a uma zona de Portugal e, assim que os papéis, resultantes
dessas discussões, ficavam agrafados, a gente partia num carro. Porque se a polícia
apanhasse, quanto menos exemplares tivesse no carro, menos apanhavam.

E então íamos a noite toda por aí acima, direito e norte, começávamos a distribuir junto a
amigos que recebiam aquilo e que davam aos outros, debaixo da gaveta.

ESA: Normalmente esses documentos eram das paróquias?

CP: Não, não.

ESA: Eram boletins dos Direito à Informação?

CP: Isso era outra coisa.

ESA: Se a senhora puder especificar um pouco...

CP: Era assim, o grupo era o mesmo. Mas o Direito à Informação era um documento mais
político do que católico, porque contestava claramente a guerra colonial. Denunciava as
situações de maior escândalo que o resto da Europa sabia, que as Nações Unidas sabiam,
mas que em Portugal ninguém sabia porque havia censura. E, portanto, ninguém sabia. Nós
fazíamos em policopiador manual, também não havia a facilidade de trabalhar com
computador. Não havia cá isso. Computadores manuais, mesa redonda, dávamos a volta a
agrafar, e assim que tivéssemos aquele número, partia o primeiro grupo, partia o segundo
grupo. Em um dia, nós conseguíamos distribuir, púnhamos tudo na rua.

ESA: Costumavam se reunir onde?

CP: Em casa do padre Felicidade Alves e, depois, mais tarde aqui em Cruz Quebrada, depois
de ele casar.

214
ESA: E pessoas que participavam dessas reuniões, a senhora pode falar? O Frei Bento
Domingues também participava nos grupos?

CP: Também.

ESA: A Sophia chegava a participar?

CP: Sim, com certeza. Mas não ia levar os papéis porque ela era uma senhora. Sim, a Sophia.
Também o actual presidente do Tribunal de Contas, e o Nuno Teotónio Pereira – era mesmo
um dos grandes líderes, faz hoje 92 anos.

ESA: O senhor Pedro Onofre também participava?

CP: Também, ele já morreu.

ESA: Francisco Solano de Almeida, igualmente?

CP: Também.

ESA: Se a senhora se lembrar de outros nomes... O Francisco Fanhais também participava?

CP: Sim, completamente, animava as coisas fora de Lisboa. Porque depois de ter deixado de
ser padre, trabalhava em escolas fora de Lisboa, no Barreiro e no Alentejo. Portanto, ele lá
criava o seu grupinho e punha esse grupo a funcionar.

ESA: Esse trabalho foi em que ano, a senhora se lembra? Foi em 1960, 1961?

CP: Eu casei em 1970, mas já estava metida nisso em 1968. E havia gente que já trabalhava,
havia católicos que já trabalhavam na contestação do sistema político, para aí cinco ou seis
anos antes. Muito ligados ao Bispo do Porto, que havia sido expulso de Lisboa, estava em
Espanha.

215
ESA: No momento em que o Bispo do Porto escreveu aquela carta a Salazar a senhora ainda
era muito moça.

CP: Era pequena, eu era pequena.

ESA: Então, vou aproveitar para perguntar sobre a Vigília de São Domingos.

CP: A minha querida vigília! Pois bem, você tinha me perguntado antes quando conversamos
por telefone... Foi assim, havia todo aquele contexto da Guerra Colonial. E o papa Paulo VI
declara que o dia 31 de dezembro será, no mundo cristão, um dia dedicado à paz. Então,
como nós estávamos em guerra e como não podíamos falar da Guerra Colonial sem ser
chamados de traidores e outras coisas, aproveitamos o papa Paulo VI ter determinado que
aquele era o ano da paz, aquele dia. O cardeal Cerejeira ia rezar a missa da meia-noite à
Igreja de São Domingos, e esse grupo se reunia na casa do Nuno Teotónio Pereira, que
estava à frente disso. Todo o movimento era muito informal, era o único modo de não sermos
todos presos. Mesmo assim ainda éramos, de vez em quando.

Fomos à missa, somos católicos e fomos à missa. Mas já havíamos combinado de dizer ao
patriarca que havia um grupo de cristãos que queria ficar toda a noite em vigília a rezar pela
paz. Qual é o bispo que diz que não? E então foi genial, foi genial. Eu era muito novinha ainda,
eu tinha dezoito ou dezenove anos.

ESA: E então a Sophia escreveu o poema: “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”,
que é em Portugal, hoje, o que alguns poemas do Manuel Bandeira ou de outros poetas
brasileiros são de simbólico de uma época...

CP: Sim. E eu por exemplo trabalhei em um projecto há dez anos contra o trabalho infantil,
cuja palavra de ordem era “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. Ainda a Sophia
era viva, e ela gostou muito. Estava tão velhinha já. E depois ela telefonou-me: “Ó menina, e
se os meus netos cá vierem jantar, posso lhes pedir uma ajuda?”. E eu disse: “É para eles
porem a loiça na máquina”. E ela: “Estou a fazer exploração do trabalho infantil?”. E eu: “Ah,
Sophia, não está nada! Explorar é uma coisa, o trabalho é outra coisa, exploração é que é um
crime”. “Ai, filha, nem dormi bem esta noite. Está bem que eu confio em ti, mas...”. Assim nós
conversávamos, isso me veio à lembrança... Bem, mas ainda em relação à Vigília de São
Domingos, cada um fazia uma parte, dava sua contribuição. A Sophia fez o dito poema que o
216
Francisco Fanhais cantava e canta. É quase um hino. Estive agora com ele, há um mês, a
celebrar os cem anos de um padre nosso amigo, que também dava guarida aos fugidos, dava
comida, fazia um grande tacho de comida para as pessoas. Era um homem excepcional.

ESA: Quem era esse padre?

CP: Eu já lhe mostro. Era o padre Muniz, que esteve 35 anos na mesma paróquia em Vila
Franca de Xira. E que fazia agora cem anos de vida. E ainda fazia parte desta malta: o
Fanhais, o Carlos Cruz, essa gente toda, que organizou lá durante um mês inteiro uma
homenagem. Porque a primeira vez em que eu vi o padre Muniz foi à porta da PIDE, era de
madrugada, tinham prendido o diácono, que era o Carlos Cruz. Ele com aquela capa muito
grande, muito alto. Eu ia à procura da minha mãe, que tinha sido presa. Ele bateu à porta e
disse para os policias: “Ó, rapazinho, abra a porta que eu tenho frio”. “Ó, padre Muniz, mas o
que o senhor veio aqui fazer?”. E ele: “Perder tempo com vocês. Onde está o Carlos Cruz? E
não estou para perder muito tempo. O que ele faz e não faz eu sei. E se eu quiser eu coloco
isso no mundo num instante”. Porque ele era juiz. Ele seria bispo se não fosse de esquerda.
Portanto, fomos à missa e depois fomos ao senhor patriarca.

ESA: Ao cardeal Cerejeira?

CP: Ao cardeal Cerejeira, pedir licença para ficar. Éramos quatro: o Nuno Teotónio Pereira, o
Solano de Almeida, o Pedro Onofre e eu. Mas eu era uma gaiata, percebes? Mas era mesmo
para disfarçar. Meu namorado estava na guerra.

ESA: Não conseguiu escapar?

CP: Penso que não decidiu.

ESA: Porque alguns iam para a França, iam para outros lugares a fim de escapar da guerra...

CP: Pois, mas também não eram tantos. Mas o meu namorado não, foi à guerra, e foi à guerra
dura. Isso era dezembro, ele tinha ido em setembro, fazia muito pouco tempo. E o patriarca,
o Cerejeira, pôs a mão em meu braço e disse-me assim: “Ó, minha filha, podeis ficar, podeis
ficar. Mas por favor deixa a outros o direito de pensar diferente”. Ao que eu respondi: “Oh, pá,

217
não temos nada contra, senhor patriarca, não temos nada contra, nadíssima mesmo”. Quando
ele foi para casa, outros bispos perguntaram: “Mas o que o senhor fez, não viu quem eles
eram?”. A única pessoa muito conhecida daquele grupo de quatro era o Nuno Teotónio
Pereira. Os outros não éramos. A mim ninguém sabia naquela altura quem eu era. E os outros
eram quase tão jovens como eu, jovens arquitectos, gente que não tinha vida que levasse a
ser conhecida pelo patriarca. Quando os outros velhos disseram: “Isso vai dar um grande
escândalo”. E à noite, o patriarca manda fazer um comunicado que publica num jornal... não
me lembro o nome...

ESA: Tenho somente a referência do Diário Popular, de 10 de janeiro de 1969, onde saiu uma
notinha sobre a vigília.

CP: Pois, é diziam que um grupo de energúmenos foi procurar o senhor patriarca...
Energúmenos, de modo que o meu nome de guerra é Energúmena. Vou contar-lhe...
Trabalhou aqui nessa paróquia (uma paróquia em Cruz Quebrada) um homem notável, o
padre José da Felicidade Alves, um santo, doutorado em física quântica, ainda dava-se muito
bem aqui em casa conosco. E, quando batia à porta, eu perguntava: “Quem é?”. E ele dizia:
“É aí que mora uma senhora provedora, energúmena?” (risos). Mas ele era padre, e desde
que suspenderam suas funções de padre, ele nunca mais foi à missa. Depois, celebrávamos
a Eucaristia em casa, vinha aqui um grupo de amigos, e pronto.

ESA: E na vigília, quando vocês saíram de manhãzinha, às cinco, havia a presença de pides
lá fora?

CP: Acho que sim, porque estiveram lá toda a noite. Mas eu cá não era conhecida deles e,
portanto, não sei bem... Deixe-me tentar lembrar... Havia muita gente que não sabia, mas
quando ouviu o que ele disse decidiu ficar. Eu admito que havia pides lá dentro. De tal maneira
que em poucas horas a malta começou a ser presa.

ESA: Houve prisão na Vigília de São Domingos?

CP: Claro.

ESA: Porque alguns dizem que não se lembram disso. Comentam que somente houve na
outra vigília, tempos depois, a Vigília da Capela do Rato.
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CP: Está bem, mas eu sei porque alguns foram presos imediatamente a seguir, a sair da casa
de minha mãe. Porque nós fomos tomar o pequeno almoço em casa de minha mãe. E, depois,
não tínhamos dormido e cada um foi dormir na sua casa. Portanto, eu nunca mais o tinha
visto, era um padre holandês, que vive hoje cá em Portugal. Bem, era o padre Bartolomeu
Reker... Ele saiu de casa de minha mãe e a PIDE esperava por ele, puseram-no na fronteira
logo, na passagem da Espanha para a França, para que seguisse à Holanda. Ele era holandês
e o governo português não queria complicações, já tinha muitas com o governo holandês. A
polícia agarrou nele... Sim, sim, era assim que faziam.

Fomos chamados à polícia, à PIDE, uma semana depois. E eu também fui, claro. E eles, o
que queriam era saber quem tinha ido falar com o cardeal Cerejeira. Mas eu sou muito
melindrosa e percebi cedo na vida que eles, do poder, não querem pessoas que não tenham
medo. Portanto, eu cheguei lá e disseram-me:

– Então, diz-se que a senhora esteve lá na missa de São Domingos, onde o patriarca foi
maltratado por não sei o quê.

– Olha, primeiro estive na missa, sim, e, segundo, ninguém foi maltratado. O senhor patriarca,
antes pelo contrário, foi-lhe perguntado se ele autorizava que a gente lá ficasse.

– Ah, então a senhora sabe quem foi!

– Fui eu, eu e mais três senhores. Eu não os conheço, estávamos a combinar ir ao senhor
patriarca e uma senhora que já lá estava, mas já assim crescida, disse que da igreja as
mulheres é que faziam metade das coisas e, quando era preciso falar com o bispo, iam os
homens. E que então onde estava uma mulher que fosse também? Eu não me importava
nada e fui também – assim respondi, e àquela altura eu era uma miúda.

– Você pensa que está a gozar com quem? – entonou rispidamente o pide.

– Com o senhor não é, porque não gosto nada de si, como deve imaginar, e o senhor não
gosta nada de mim, e portanto não estou a gozar, disse que foi assim. Fomos lá à missa e só
fomos fazer o bem – disse com firmeza e ainda repeti as palavras que o patriarca tinha dito.

219
– Então, o que me diz desse jornal que no dia seguinte publicou que nessa missa havia
energúmenos...?

– Foi escrito por um mentiroso. E isso de certeza que não foi o senhor patriarca que escreveu,
foi um aldrabão daqueles que lá anda, porque não foi nada assim, eu estava lá. Fui eu, escusa
de procurar mais porque fui eu mais três senhores. Se os outros senhores quiserem dizer
quem foram eles, que digam. Agora, eu lá fui a rezar, sim – ah, hoje gozamos tanto quando
nos lembramos dessa situação.

ESA: Houve outros momentos em que a senhora teve que responder a interrogatórios, ou foi
ameaçada em relação ao trabalho que fazia como opositora? Se a senhora quiser falar...

CP: Sim, houve, por exemplo como quando nós fizemos as colônias de férias. Os presos
políticos eram basicamente do Alentejo, eram trabalhadores lavorais e do Partido Comunista
Português – e nós que organizávamos as colônias de férias não éramos. O meu filho mais
velho tinha seis meses, e fomos para o pé de Peniche... Lá havia os pais que estavam presos
e os miúdos podiam vê-los todos os dias.

Porque a gente, a equipa, ia com os miúdos... Pedíamos as autorizações, e depois, para irritar
os polícias, durante o dia fazíamos com as crianças trabalhos artísticos, peças muito bonitas
com pedrinhas. Para os pais era fundamental ter as peças feitas pelos filhos. E os polícias
assim diziam: “Mas não tem mais nada o que fazer do que juntar pedrinhas?”. Respondíamos:
“É o que eles querem, e é o que eles podem”. Retrucavam os polícias: “Ó, pá, vão nadar!”.
Atalhávamos: “Também vamos, não se preocupem que também vamos”.

A polícia andou sempre lá, e então procurava pela Catalina da trança. Eu tinha uma trança
muito grande, agora tenho muito pouco cabelo porque tive cancro e ainda não tenho força
suficiente. Mas naquela altura em que eu era rapariga tinha uma trança muito grande. Em
relação à Vigília em São Domingos, depois, gerou-se um diálogo permanente com o Luís
Moita, que era um padre recém-saído do seminário onde era reitor. Era o Francisco Fanhais
com a sua viola, e nós lá reunidos tínhamos o texto da canção “Vemos, ouvimos e lemos, não
podemos ignorar”. E, portanto, nos pusemos em cima dos bancos a cantar. E a dada altura
toda a gente percebeu que estava tudo montado, claro. E o prior...

ESA: A senhora lembra-se o nome do prior?


220
CP: Sim, ele é primo de uns sobrinhos meus de Bragança. Era o visconde Correia de Sá
Asseca. Era um tipo também muito alto e embora o patriarca tivesse autorizado, disse ele: “E
pá, deita aqui olho nisto”. E ele então ficou lá toda a noite para vigiar e atrapalhar. E assim o
prior dizia ao Fanhais: “Ó, miúdo, cala aí a viola, cala aí a viola”. E então o marido da Sophia,
o Tareco, discutiu com o prior. Aquilo foi uma cena! Mas por exemplo, estava lá a Sophia e o
marido da Sophia. Eles estavam sempre com o grupo chamado de cristãos progressistas. Ela,
por acaso, saiu artista.

ESA: A senhora supõe que as pessoas que não conheciam a realidade da guerra colonial,
com base nesses depoimentos, nas cartas, começaram a ter um pouco de consciência crítica?
Quero dizer: as pessoas que permaneceram na vigília mas não eram os principais expoentes,
não tão mergulhados nessa realidade crítica.

CP: Se isso teve algum efeito na população cristã mesmo?

ESA: Sim, sim.

CP: Nunca tinha pensado... Mas algumas pessoas que eu conheço tiveram. Porque, quando
o jornal do outro dia disse que a gente tinha ido incomodar o senhor patriarca, um grupo de
energúmenos, ficamos muito escandalizados. Porque toda a gente tinha visto que era mentira.
E o Nuno Teotónio Pereira era uma pessoa muito respeitada e respeitável. Tem agora 92
anos.

ESA: Eu o conheci esses dias. A senhora chegou a participar da Vigília no Rato em 1972?

CP: Eu também! Vigílias são comigo.

ESA: Se puder me contar, por favor.

CP: Sim, lembro bastante, infelizmente. Com quem é que já falou?

ESA: O Nuno Teotónio Pereira, pelo que eu li na documentação e ele confirmou, foi uma das
pessoas principais da organização. Estavam lá também o Luís Moita e a Conceição Moita. E
a proposta era começar antes, no dia 29, 30, 31 e 1. E não só assim como 31 e 1, como foi a

221
Vigília de São Domingos. Parece que o procedimento era para ser um pouco maior, até porque
já era 1972.

CP: O meu filho já era vivo, a minha irmã morava ali ao pé, eu não fui ao jantar de fim de ano.
Na hora do jantar, porque aquilo é mesmo ali ao pé, a minha irmã disse: “Então traz o bolo-
rei”. E na altura em que eu saí entra a polícia. Mas eu ainda li um dos documentos sobre
denúncia da guerra colonial, a pedido do Nuno Teotónio Pereira.

ESA: A repressão foi muito grande a essa vigília?

CP: Foi. Por exemplo, o pai do Francisco, que é um jovem como se fosse meu sobrinho, o pai
dele era o filho do... como ele se chama? Do Supremo Tribunal de Justiça. Porque eles
pertenciam todos a famílias feitas com o regime, mas em todas as gerações é assim, eles têm
que contestar a família.

E por exemplo, a dona Maria Benedita, que era cunhada de dois cônegos muito importantes
de Leiria, e que o marido era todo feito com o poder, esteve sempre lá com os filhos. E quando
a polícia entrou com os cães, ela dizia assim: “Ó, senhor, vamos lá conversar, vamos lá
conversar. Mas chega para lá com o cãozinho que eu não gosto de cãezinhos tão grandes”.

Mas eu, essa parte das prisões, porque houve prisões a sério, essa parte...a dona Benedita
foi presa. Esse era um tal escândalo em Portugal, a dona Benedita ser presa, que já não
sabiam para que lado é que haviam de virar. Depois, eles foram presos nessa noite.

ESA: O Nuno Teotónio Pereira também foi preso nessa noite?

CP: Foi, esse foi muitas vezes. A mulher dele, a outra mulher dele que morreu, a Natália,
sentava-se num sofá que eu tinha ali. Porque Caxias é aqui em cima, e a gravidez dela ia
avançada... e ela sempre passava por aqui e bebia um refresco ou um café, descansava um
pouquinho, depois seguia para Lisboa. Porque aquilo não tem transportes, é francamente
muito mal. A Natália morreu no trabalho de parto. Mas quanto à Sophia, ela nunca foi presa.

ESA: Mas será que ela já foi chamada a responder algum interrogatório?

222
CP: Ah sim, é normal, é normal. Eles chamavam, sem prender, muita gente. Eu fui chamada
por aí um bocado de vezes, eu fui chamada por aí umas quatro vezes.

ESA: E como eram os trabalhos na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos?
Como era a frente de atuação que integrava católicos progressistas, pessoas do Partido
Comunista, eu acho que até de outros movimentos... Porque o interesse era realmente isso,
dar socorro às famílias dos presos políticos, aos casos que se podia intervir...

CP: Tinha que se colocar a palavra socorro porque era proibido usar “solidariedade”. Tinha
que ser uma coisa que parecesse inócua. Naquela altura, tinha saído uma lei qualquer em
que era permitido usar o termo “socorro”. Então, o que fazíamos? Além de várias atividades,
trabalhávamos com a Amnistia Internacional. A Amnistia Internacional queria ter, e tem, uma
grande bateria de documentos, de informação. E pedia-nos, comprava-nos os documentos
que a gente tinha, por troca de dinheiro. Fazia de conta que comprava.

E a gente dava esse dinheiro às mães que tinham os maridos presos e não tinham dinheiro
para pôr os filhos na escola, ajudava as que queriam ver os maridos, mas não podiam porque
era muito longe e tinham que deixar o trabalho. Conseguíamos, por exemplo, transferir os
prisioneiros de Peniche e de Caxias. Nós tínhamos um grupo informal, quer dizer, eram vários
médicos e advogados. Quando nós precisávamos da colaboração de um médico para ir lá ver
um doente, a gente pedia e ele ia. Chegava à conclusão de que aquela pessoa tinha sido
maltratada, nós fazíamos tudo para eles ficarem no hospital porque a vida no hospital prisional
político aqui de Caxias era francamente menos má. Por exemplo, eu fui lá duas vezes
seguidas visitar um prisioneiro comunista, que depois do 25 de Abril vim a saber que era do
Comitê Central. Foi o homem que esteve preso por mais tempo em Portugal, 23 anos, por
motivos políticos. Vou tentar me lembrar do seu nome... Ia visitá-lo uma vez por semana.
Enquanto eu fui ver a minha mãe, que tinha sido presa, mas como estava muito bem treinada
gozava com eles, completamente. E tem noventa anos agora, faz amanhã. E a gente passava
a vida a tentar mudá-los para Caxias. Porque era mais perto para toda a gente, e depois
porque o médico, diretor de Caxias – era um tal de doutor Meira –, não deixava a polícia
política entrar no hospital de Caxias. A polícia mandava na prisão. Quando se conseguia que
os presos políticos fossem para o hospital, imediatamente o diretor dizia: “Aqui quem manda
sou eu”. Tanto que, quando aconteceu o 25 de Abril, os presos impediram que o doutor Meira
fosse saneado, não deixaram que pensassem que ele era polícia.

223
Eu aprendi a fazer Nescafé na prisão. Porque, como o que eles mais tinham era tempo,
aprenderam a fazer Nescafé muito, muito devagarzinho, ficava delicioso. Então traziam assim
umas coisinhas de iogurte, uma colherzinha, um boião de Nescafé, e ficávamos ali a
conversar, a beber Nescafé. Eu tinha duas horas de visita, no final dessas duas horas o polícia
que tomava conta de nós estava sentado à porta. Eu podia dizer tudo ao meu amigo e ele a
mim, dar-me os recados que quisesse, que o polícia estava lá tão longe. E depois, no fim da
visita, os outros que estavam presos tinham autorização para ir lá à sala cumprimentar-me.
Porque eu era sobrinha de todos. Era mentira, mas...

ESA: Mas funcionava bem.

CP: Funcionava porque eles deixavam, funcionava porque eles deixavam. De maneira que
depois do 25 de Abril eu fiquei a conhecer todos do PC. Por um lado, porque tinha feito as
colônias de férias para os filhos deles.

ESA: Essas colônias ficavam em que região?

CP: Ficavam ao pé de Peniche. Para as crianças poderem ir ver os pais. E andou lá sempre
a PIDE à procura da Catalina da trança. Nunca me aconteceu nenhum mal por causa disso.
Eles faziam assim provocações: “Se ela ficasse em casa a tomar conta do filho é que fazia
bem”. Coisas que não me incomodavam nada, nada.

ESA: Essas colônias já existiam ou foram mandadas construir?

CP: Não foram mandadas construir, emprestavam-nos casas de pessoas.

ESA: A senhora pode explicar como funcionavam?

CP: Por exemplo, uma era uma casa de férias de uma paróquia que havia e há em Olhalvo.
Levava os miúdos da paróquia para aquela casa. Mas quando se fazia a divisão, eles já
contavam com vinte e tal, trinta filhos dos presos políticos. E nos emprestavam a casa durante
determinado tempo, porque ficava em frente da prisão, e os pais estavam na prisão a ver a
gente toda a noite com os miúdos a fazer brincadeiras, como acender tochas vestidos de
índios... Isso era um tipo de casa.

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Outro tipo de casa era uma casa privada, que não estava habitada, em plena cidade de Caldas
da Rainha. Havia lá várias famílias de democratas. Essas famílias, sim, ofereciam o espaço.
Não era fabuloso, mas era confortável. Depois outros de nós emprestavam um divã, uma
cama. Porque se a gente punha lá 23 miúdos, ninguém tem 23 camas em casa. Mas punha-
se a correr que era preciso isso, isso, aquilo. No outro dia de manhã, estava tudo à porta para
a gente ir buscar.

ESA: Essa rede de solidariedade que vocês faziam teve efeito também para as famílias? A
senhora lembra-se como isso aconteceu?

CP: As famílias já estavam altamente politizadas. Até os miúdos estavam politizados, mais do
que eu ou outros católicos que lá estavam. Eles ensinavam-nos coisas a nós. Porque tinham
sido criados na clandestinidade, e os pais, para eles sobreviverem, desde muito cedo os
ensinavam: se fossem buscar os pais à noite e não tivesse ninguém para ficar com eles, que
fossem o todo tempo a gritar o nome deles, que estavam a ser levados pela PIDE. Mas sempre
o nome deles. E aconteceu isso com miúdos daqueles. Sendo que hoje são homens e
mulheres, alguns licenciados, outros trabalham na televisão... Estão bem na vida. Mas tem
outros que não estão, não querem ouvir falar disso, não perdoam aos pais pela vida que não
tiveram. Também agora os pais já morreram quase todos.

Agora Portugal tem liberdade política e se faz o que quer, mas eles não podiam cantar o
“Avante camarada”, as cantigas tradicionais do Partido Comunista. Dava trabalho, a gente
tinha que fazer a comida, cuidar da roupa, cuidar deles, não os deixar provocar as pides. Eles
pergutavam à São e a mim, que a São era outra amiga que ia comigo... Os miúdos metiam-
se no autocarro e chegavam ao pé de mim e falavam: “Catalina, aqui já se pode cantar o
Avante?”. “Não! Aqui não, pelo amor de Deus!”. Ah, sim, a São é a Conceição, foi assistente
social, agora é professora na Universidade de Aveiro. Mas era nesse tempo educadora de
infância. Ela dava-se muito bem comigo e eu com ela, e nós trabalhávamos loucamente,
loucamente.

ESA: Essa atuação nas colônias de férias durou uns quatro anos?

CP: Três. E o resto do tempo levávamos a preparar as coisas. Cada pessoa dava aquilo que
tinha em casa, e acabamos por nomear lá a casa das Caldas da Rainha. Existe até hoje, e o
Expresso fez uma reportagem que ganhou um prêmio internacional sobre isto. É ir à biblioteca

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do Expresso. Ora como se chama a autora... não há problema, chega-se lá. A história sobre
as colônias de férias do 25 de Abril, que ganhou um prêmio.

ESA: A senhora participou no MES (Movimento de Esquerda Socialista) e saiu a candidata


para deputada...

CP: Eu perdi, não ganhei. Mas concorri, concorri por Setúbal, era professora no liceu de
Setúbal, tinha morada em Setúbal, e portanto... Mas outros católicos também. Nos
candidatamos à Constituição da República, e foi muito gente também fazer debates à
televisão.

ESA: E isso talvez encontre em arquivos...

CP: Isso está tudo na Rádio Televisão Portuguesa Antena 1, tem um longo, profundo e
valiosíssimo arquivo. Como a Biblioteca Nacional para o discurso escrito são eles para o
discurso audiovisual.

ESA: Quais eram as pautas que tinham no MES? Quais eram suas principais reivindicações?

CP: O pão, a paz, educação, saúde, só liberdade enquanto houver. Há uma cantiga, de
quando havia perigo... mas isso o Francisco Fanhais diz-te melhor porque ele sabe todas as
canções da época. Quando havia perigo de reação militar, a gente começava a ouvir na rádio:
“Alerta, alerta pelo pão e pela paz”. E toda a gente sabia que era a palavra de ordem para
perigo. E então as pessoas organizavam-se segundo estavam organizadas, e faziam frente.

ESA: Muitas pessoas, por exemplo, a Sophia, dizem que se afastaram do plano político
porque ficaram decepcionadas com o que aconteceu depois do processo revolucionário.
Afirmam que houve desgaste por conta dos que estavam querendo disputar poder, mas não
efetivamente fazer as melhorias necessárias para a transformação do país.

CP: Não, isso foi problema dos partidos. Em meu caso, eu nunca pertenci a partido nenhum,
e trabalhei com todos os partidos, assim como fizeram o Nuno Teotónio Pereira e o Luís Moita.
Até hoje as pessoas vêm aqui pedir opiniões, perguntar como é que foi – as pessoas mais
novas, as que estão a fazer doutoramentos. Mas eu, de facto, nunca pertenci a nenhum

226
partido. A única coisa que fiz foi ser candidata, mas perdi. Olha, mas pode cá vir quando
quiser.

ESA: Muito obrigada.

CP: Se houver alguma coisa que eu possa ser útil eu terei todo o gosto em fazê-lo. Eu já não
tenho a memória que tinha porque tive um AVC, mas com mais calma consigo alguns
documentos que estão lá para baixo e que talvez lhe sejam úteis.

ESA: Está bem, novamente muito obrigada.

227
ENTREVISTA COM GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS (POR ELOÍSA ARAGÃO)
LISBOA, CENTRO NACIONAL DE CULTURA, 14 fev. 2014

ESA: Eloísa S. Aragão – Investigadora


GDM: Dr. Guilherme d’Oliveira Martins

[Depois de uma conversa inicial, solicitei a permissão para fazer a gravação. Por tal motivo, a
entrevista já começa na altura em que falávamos sobre a Comissão Nacional de Socorro aos
Presos Políticos. ]

ESA: Há pouco, o senhor havia comentado sobrea Sophia fazer oposição à ditadura
salazarista, ao lado de outras personalidades. Ela foi uma das fundadoras da Comissão
Nacional de Socorro aos Presos Políticos.

GDM: Era uma associação clandestina, naturalmente, constituída ao abrigo do artigo do


Código Civil que prevê a existência de instituições não reconhecidas para prosseguir
determinadas finalidades. Essa associação tinha como sede informal – porque não podia ter
sede formal, era uma organização clandestina – o Centro Nacional de Cultura, aqui na Rua
António Maria Cardoso, número68, onde nós estamos neste momento a falar.

E havia esta circunstância singular: estar exatamente paredes-meias com o prédio da polícia
política, que era no fundo desta rua. Ninguém desconfiava, e era por isso que a Sophia
presidia essa comissão. Ninguém desconfiava dela porque estava a trabalhar em uma
associação que era uma associação legal, privilegiada, e ela trabalhou no Centro Nacional de
Cultura com pessoas de vários horizontes políticos. De modo que o Centro Nacional teve o
papel muito importante desempenhado pelo casal Francisco Sousa Tavares, que era o marido
da Sophia, e a Sophia.

Em 1965, foi fechada a Sociedade Portuguesa de Escritores, em virtude de ter dado o prêmio
ao Luandino Vieira, por causa do seu romance Luuanda. Em resultado disso, a Sophia, por
iniciativa do seu marido Francisco Sousa Tavares, candidatou-se e foi eleita presidente do
Centro Nacional de Cultura. Isso permitiu que não só escritores consagrados, mas, sobretudo,
escritores mais jovens viessem para o Centro Nacional de Cultura. Sobretudo no domínio da
228
poesia, estamos a falar do Gastão Cruz, da Fiama Hasse Pais Brandão, e estamos a falar
também de ensaístas como Eduardo Prado Coelho, ou António Reis. Estes são jovens que,
nessa altura, estão na casa dos 20 anos, têm uma grande admiração por Sophia e vêm
reunirem-se no Centro. Isso vai permitir maior dinamismo a esta instituição, o Centro Nacional
de Cultura, que tinha sido criado em 1945, maio de 1945, por um grupo de pessoas, sobretudo
monárquicas e conservadoras, mas que, com o tempo, vieram a tomar uma posição
claramente contrária ao regime salazarista.

É muito curioso e há aqui uma nota que eu não posso deixar de referir: a relação que se
estabeleceu com a oposição espanhola. Designadamente com a oposição dos católicos e dos
descontentes com o regime franquista. Esta é uma pequena nota, mas importante reter: a
partir dos anos 1960, a oposição moderada espanhola passa a ter uma relação muito forte
aqui com Portugal, e ainda há pouco tempo nós tivemos acesso a uma informação da polícia
política espanhola dizendo que tinha se realizado aqui no Centro Nacional de Cultura –
segundo a polícia política espanhola era uma organização muito perigosa –uma conferência
dum antigo padre, Jesús Aguirre. Ele foi muito célebre porque depois se casou com a duquesa
de Alba. Era padre, depois teve redução ao estado leical. Mas, enquanto era padre, ele era
capelão da Universidad Complutense de Madrid. Era uma pessoa da oposição e fez aqui uma
palestra nos mesmos termos que outros membros da oposição espanhola, designadamente
Joaquín Ruiz-Giménez, e também Dionisio Ridruejo, que tinha sido braço direito de Franco,
que tinha rompido com Franco e estava na oposição.

Ruiz-Giménez tinha sido Ministro da Educação de Franco, e também tinha rompido com
Franco. Portanto, esta nota é importante porque muitas vezes ela não é salientada e hoje já
está confirmada, pelas informações da polícia política espanhola, que assim havia registado
que, em Lisboa, havia um lugar muito perigoso – o Centro Nacional de Cultura –, uma vez
que aí a oposição espanhola tinha acolhimento, e realizavam-se conferências de pessoas que
estavam em oposição ao regime espanhol.

Portanto esses três exemplos: Dionisio Ridruejo, que tinha sido braço direito de Franco,
JoaquínRuiz-Giménez, que tinha sido Ministro da Educação e rompeu com Franco e criou os
Cuadernos para el Diálogo, uma revista extremamente importante da oposição mas dentro da
doutrina social da Igreja, do espírito conciliário, portanto de oposição ao regime espanhol, e a
conferência que se realizou aqui, de Jesús Ayerra – o padre Jesús Ayerra, que na altura ainda
era padre e, mais tarde, veio a ser justamente bastante conhecido por se ter casado com a
duquesa de Alba. Fechado esse parênteses, voltemos à nossa Sophia.
229
ESA: Só um minutinho, porque me chamou bastante a atenção. Então esse tema da
conferência discutido no Centro Nacional de Cultura estava relacionado à oposição ao
franquismo na Espanha, mas de alguma maneira incentivava a luta contra o fascismo em
Portugal levada a cabo por católicos progressistas?

GDM: Exatamente. Há um aspecto muito importante relativamente a este tema: uma ligação
muito forte à revista O Tempo e o Modo, dirigida por António Alçada Baptista. O chefe de
redação era João Bérnard da Costa, que veio a ser secretário-geral do Centro Nacional de
Cultura. Portanto, a livraria do Dr. António Alçada Baptista era no Largo do Picadeiro,
exatamente aqui atrás onde agora é o nosso restaurante, aqui mesmo colado. E era muito
importante uma vez que era aqui uma das livrarias onde se vendiam livros clandestinos,
debaixo da mesa, como é evidente, mas para alguns clientes.

Qual era o procedimento? Era simples. Alguém dizia assim: “Ai, fui à Livraria Moraes ali no
Largo do Picadeiro, o funcionário da livraria era o Sr. Edmundo, e eu perguntei por um livro
que estava proibido. E ele disse: ‘Não! Não tenho esse livro’”. Passados uns dias, ele veio
com um amigo que era conhecido do Sr. Edmundo. E esse amigo disse ao Sr. Edmundo: “Eu
quero este livro”, o tal livro proibido. “Dá aqui para o meu amigo”. E o Sr. Edmundo disse:
“Muito bem, o livro eu só não vendo a pessoas que eu não conheço porque eu não sei se
podem ser agentes da polícia política que vêm aqui. Eu só vendo a pessoas de confiança.
Portanto, como vem acompanhado de uma pessoa de confiança, eu vendo-lhe o livro”.

É muito curiosa essa história para ver como as coisas se faziam. Porque senão... Mas, enfim,
o Sr. Edmundo nunca foi preso, não teve nenhum problema, porque ele só vendia os livros
proibidos às pessoas de confiança. O mesmo aqui se passava no Centro. Havia a
preocupação de fazer reuniões com certa discrição, para obviamente não haver problemas.
Mesmo assim, havia problemas. Houve prisões, várias prisões. E há, sobretudo, um caso
importante, porque poucos dias depois do 25 de Abril, talvez 26 ou 27, quando saíramos
presos políticos da cadeia de Caxias... Então, como está registado na imagem [há um vídeo
sobre o momento da saída dos presos políticos de Caxias], nós vemos a Sophia, o Francisco
Sousa Tavares, e o filho que é o jornalista Miguel Sousa Tavares, que é hoje, enfim, uma
pessoa bastante conhecida. Ora bem, quem sai nessa altura da cadeia é o Nuno Teotónio
Pereira, é o Palma Inácio, é o diácono Joaquim Brandão Osório de Castro... E, portanto,
notam-se exatamente naquela imagem algumas pessoas que trabalhavam aqui no Centro
Nacional de Cultura, no apoio aos presos políticos.

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Por que razão é que era a Sophia a presidir? Porque não podia ser um comunista. Tinha que
ser alguém, portanto, que não estivesse ligado ao Partido Comunista. Mas que fosse tal qual
a Sophia, uma pessoa muito empenhada na oposição. E há uma pequena história, engraçada:
uma vez, havendo uma sessão aqui mesmo neste edifício [no CNC], promovida pelo Nuno
Teotónio Pereira, foram distribuídos papéis designadamente da luta anticolonial, contra a
guerra colonial. Os papéis foram distribuídos e a polícia política veio cá. Veio cá...

ESA: Isso foi em que ano? O senhor se recorda?

GDM: Sim, é à volta de 1970...Bem, os papéis foram distribuídos e quando o Dr. Francisco
Sousa Tavares está a fechar a porta, apareceram os agentes da PIDE a dizer: “Nós queremos
entrar para ver porque foram distribuídos papéis da luta anticolonial. Isso é proibido! Portanto,
nós queremos apreender esses papéis!”.

O Dr. Sousa Tavares disse: “Mas eu não tenho papéis, e o que há aqui é uma pequena
conversa”. Mas os agentes da PIDE forçaram e o Dr. Sousa Tavares abriu-lhes a porta. Eles
entraram, andaram por aqui, por toda a parte e não descobriram nada dos tais papéis. Nada!
Não encontraram o boletim [BAC – Boletim Anti-Colonial] que era feito pelo arquiteto Nuno
Teotónio Pereira. Ora bem, foram-se embora. Mas antes, os agentes da PIDE haviam
insistido: “Mas nós sabemos que foi distribuído, nós temos informação que foi distribuído!”. E
sabe por que não foi descoberto? Porque o Dr. Sousa Tavares, antes de sair, tinha posto tudo
no congelador do frigorífico. Depois eles viram o frigorífico, abriram o frigorífico, mas não se
lembraram de ir ao congelador, a parte onde se faz o gelo. E, portanto, enfim, essa é uma
história engraçada, porque de facto os agentes não encontraram os papéis, que tinham sido
escondidos no congelador. Depois, quando acabarmos a nossa conversa, vou mostrar a
passagem secreta que havia para as pessoas poderem sair sem serem notadas.

ESA: Como eram essas reuniões? Essas reuniões eram separadas ou aconteciam junto com
as dos escritores? Quem vinha aos debates, vinha também para discutir temas relacionados
à política, ou seja, o campo da literatura já estava de facto bastante engajado na luta política?

GDM: Claramente. E, portanto, havia dois tipos de reuniões. Havia aquelas reuniões que eram
para todos. E isso foi feito, por exemplo, houve um curso sobre marxismo e com frequência
havia vários cursos. Também havia reuniões, naturalmente, em que se fazia leitura de poesia.
A natureza dessas reuniões era diversa: havia as que eram públicas e outras, naturalmente,

231
que eram mais reservadas. Mas tudo se passava na maior normalidade: era o Centro Nacional
de Cultura. E, portanto, o apoio aos presos políticos fazia-se de uma forma muito discreta. É
preciso explicar sobre um facto... Nos anos 1960, primeiro o Partido Comunista, relativamente
à luta anticolonial, tomou uma posição muito cautelosa. Porque a oposição tradicional, os
republicanos, a oposição mais antiga, não era muito favorável à independência das colônias.
Porque era a posição republicana, a tradição antiga...

E são os católicos que introduzem essa questão, em virtude da abertura que o Concílio
Vaticano II vai permitir, e depois o contacto com o Brasil. O contacto com o Brasil é muito,
muito importante. É o contacto primeiro com o bispo auxiliar do Rio de Janeiro, depois o
arcebispo de Olinda, Recife, dom Helder Câmara. A livraria que funcionava aqui tinha essa
indicação: “Livraria Moraes – Lisboa – Recife”. Sabe por quê? Por uma razão, porque como
publicava documentos da Igreja e os documentos precisavam de ter autorização, portanto o
imprimatur, então para a “Livraria Moraes – Lisboa – Recife”, as autorizações eram feitas pelo
episcopado brasileiro. E foi, sobretudo, o futuro cardeal dom Aloísio Lorscheider que dava
autorização. Nesse contexto, dom Helder nos advertiu: “A minha autorização é perigosa.
Porque se calhar vão proibir depois os livros de circular porque eu sou muito conhecido”. E
então as autorizações, o imprimatur dos livros sobre o concílio, memórias do João XXIII, toda
a documentação tinha autorização eclesiástica dada pelos bispos do Brasil.

ESA: Era uma autorização por carta ou ia impressa nos livros?

GDM: Vinha por carta, exatamente. E, portanto, a autorização era obtida através da
comunicação, era pedida a autorização a um bispo no Brasil, e a autorização vinha. E claro
que isso funcionou até certa altura, a partir de determinada altura a polícia política e a censura
passaram a não respeitar. E, portanto, a censurar até mesmo os livros com autorização
eclesiástica dos bispos do Brasil. Mas é interessante porque esta relação com o Brasil era de
facto uma relação muito importante. Uma das referências muito próximas e que esteve sempre
presente aqui foi Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde),que era um grande amigo de
Sophia, Francisco Sousa Tavares, António Alçada Baptista. Alguém cujos livros também
estavam proibidos a partir de certa altura. É importante dizer que a relação com o Brasil foi
uma relação muito, muito importante.

ESA: E a Sophia também foi bastante amiga do Murilo Mendes, poeta, católico...

232
GDM: Com certeza. Do Murilo, e porque o Murilo era casado com a Maria da Saudade
Cortesão. O Murilo era genro do Jaime Cortesão, o historiador português. Murilo, quando vivia
aqui em Lisboa, morava ali junto à Basílica da Estrela. E já lhe vou mostrar que muitos
brasileiros e grandes escritores brasileiros tinham uma relação aqui muito, muito boa. O Murilo
era uma relação mais familiar, era também cunhado de Agostinho da Silva. Porque Agostinho
da Silva foi casado também com uma das filhas de Jaime Cortesão. Pronto, isso é o capítulo
do Brasil. Mas depois quaisquer referências nacionais eu posso lhe fazer chegar.

ESA: Pois bem, para não perder o fio da meada... Falamos das reuniões que eram um pouco
segmentadas, mas que de fato já havia esse entrecruzamento da vida política e da vida
literária. E existia então a passagem secreta? Imagino a cautela, pois era necessário ter todo
o cuidado, até porque o prédio da PIDE estava aqui ao lado.

GDM: Exatamente. Era o prédio da PIDE. E a Embaixada do Brasil, exatamente onde vários
oposicionistas solicitaram asilo político, amigos daqui. E, portanto, que estiveram na
Embaixada do Brasil durante um tempo. Mas isso foi logo no início dos anos 1960.

ESA: O caso que eu conheço aqui é do Sr. Alípio de Freitas, português que teve intervenção
muito efetiva na luta armada no Brasil.

GDM: Sim, nos conhecemos muito bem.

ESA: Nas reuniões que aconteciam neste prédio, vocês desconfiavam ou supunham que
havia presença de pides? De alguém da vigilância?

GDM: Havia, havia. Há um texto da Sophia em que ela descreve exatamente esse cenário.

ESA: Ah, é verdade. Penso que é uma referência que está no livro Evocação a Sophia, um
livreto que saiu em homenagem a ela, recentemente.

GDM: Exatamente.

ESA: E também há um documento, um texto por ela escrito e lido talvez em 1974, na
aberturada Associação dos Escritores... Um texto em que ela fala da poesia como uma

233
intervenção necessariamente política. É muito consistente, e nele a Sophia comenta sobre a
questão da vigilância.

GDM: Bem, ainda sobre a guerra colonial, tenho algo a dizer... Há um dado importante: os
católicos tomam uma posição muito mais avançada relativamente à questão colonial. Por
causa do Concílio Vaticano II e pela relação que se estabeleceu com os movimentos de
libertação, designadamente em Angola, em Cabo Verde e Guiné. E essa relação era muito
importante, e parte, desde muito cedo, de um livro de Emmanuel Mounier, L´éveil de l’Afrique
Noir – um livro que teve aqui grande influência junto aos católicos progressistas e aponta para
a necessidade do reconhecimento dos movimentos de libertação e do movimento anticolonial.
E a Sophia e o Nuno Teotónio Pereira vão ter aí um papel muito importante.

ESA: E também, pelo que pude investigar, houve o clamor a partir dos relatos que os
missionários católicos fizeram da barbárie que se praticava em África. Penso que essa
experiência, de quem podia contar o que se passava, num momento em que não havia
recursos tecnológicos da comunicação, como hoje, creio que isso possa ter feito muita
diferença. Bem, falo isso tendo em conta algumas leituras... E porque a maioria dos homens
tinha que servir na guerra colonial, porque não era uma população masculina tão grande
assim que uma parcela pudesse ficar de fora. E muitos para escapar, saíam do país. Por fim,
a certa altura, a guerra passou a ser algo que estava ocupando o tema do dia.

GDM: Exatamente. Não tenho nada a acrescentar, é isto mesmo.

ESA: E agora, voltando só um pouquinho para o tema da Comissão Nacional de Socorro aos
Presos Políticos. As entidades ao serem formadas tinham de pedir licença para o regime para
atuarem, por isso parece que esse termo “socorro” teve que ser colocado para escapar de
alguma implicação. Isso porque não se poderia usar uma palavra como solidariedade, nada
que pudesse supor algum tipo de reação opositora?

GDM: É isso mesmo. Confirmo que houve muito cuidado e, como eu dizia antes, a invocação
de que era ao abrigo de uma disposição excepcional do Código Civil. Evidentemente que a
comissão não pediu qualquer autorização – nem isso fazia sentido –, mas era apenas para
que não houvesse o argumento formal. E Sophia nunca foi presa.

234
ESA: Ela foi chamada para responder a interrogatório? O senhor tem notícia de algum
episódio dessa natureza que tenha acontecido a ela?

GDM: Foi chamada muitas vezes para esclarecer algumas coisas. Mas havia um grande
cuidado... O próprio Salazar deu orientações expressas para não haver grande publicidade
em torno da figura de Sophia. Porque Sophia era de uma família muito conhecida, era uma
pessoa que, de facto, era muito bem relacionada, era da aristocracia. E, portanto, o regime
tinha uma grande preocupação de tratá-la discretamente. Porque isso seria um escândalo.
Não interessava ao regime: uma pessoa tão conhecida e de uma família tão importante. E,
portanto, havia uma grande discrição. O que lhe permitiu que ela pudesse ir justamente – e ia
muitas vezes – ali à polícia política para pedir esclarecimentos. Mas eles, os agentes da
polícia, tinham sempre um grande, grande cuidado em relação à Sophia. Um grande cuidado
para não dar escândalo. Porque ela era não só uma pessoa muito conhecida como era uma
das grandes poetas de Portugal.

É preciso explicar porque razão ela tomou a partir de 1958 uma posição tão marcada contra
o regime. A razão foi esta: o irmão de Sophia era arquitecto, o arquitecto João Andresen, que
ganhou um concurso relativamente a um projecto de comemoração do infante Dom Henrique.
Esse projecto tinha como título “Mar Novo”. Como o nome do livro dela, sim, “Mar Novo”,
exatamente em homenagem ao trabalho feito pelo irmão. E “Mar Novo” é o primeiro livro onde
há claramente uma ruptura, uma posição muito firme contra o regime. O projecto “Mar Novo”
que envolve João Andresen, irmão de Sophia, e o grande pintor português Júlio Resende, era
para Sagres. E esse projecto ganhou no concurso mas foi preterido, e não foi para a frente.

Sophia achou aquilo uma injustiça tremenda. Injustiça porque o irmão tinha ganhado o
concurso, e aquela obra era uma obra moderna. Mas ela foi substituída pelo “Padrão dos
Descobrimentos”, que está em Belém, e é apenas a reprodução do que tinha estado na
exposição do “Mundo Português” de 1940. Sophia considerou aquilo uma tremenda injustiça,
algo absolutamente inaceitável. E seu livro “Mar Novo” é um grito de alerta. Claro que ela não
podia dizer mais do que através da poesia, justamente a sua revolta, e, portanto, em 1958 vai
acontecer essa ruptura. Ruptura que se tornou muito mais evidente ao longo dos anos 1960,
por causa do desenvolvimento do Concílio Vaticano II e do surgimento, em 1963, da revista
O Tempo e o Modo.

235
Se Sophia não foi presa, no entanto as suas obras foram vítimas de censura, sobretudo os
seus trabalhos de tradução na revista O Tempo e o Modo. Há um caso que foi a censura da
tradução do Hamlet, um episódio quase caricato, porque António Alçada Baptista publica
umas páginas da tradução de Hamlet, de Sophia, e a censura cortou integralmente.

António Alçada Baptista não compreendeu, pediu explicações à censura, e a censura disse
que não podia aceitar, uma vez que na transcrição da tradução do Hamlet havia uma
personagem chamada Marcelo. A censura achava que aquilo era uma forma de sutilmente
referir-se ao Marcelo Caetano. Bem, a censura não justificou, e depois de uma anunciação foi
possível publicar na revista O Tempo e o Modo. Estamos a falar ainda em 1968, princípio de
1968, antes ainda da queda do Salazar, portanto antes ainda da saída do Salazar. E por isso
é que a censura cortou, porque falava lá no Marcelo e parecia que era uma coisa que estava
a anunciar o Marcelo. E a censura autorizou parcialmente, cortando a fala do Marcelo na
tradução do Hamlet. Aliás, essa tradução do Hamlet foi ali referida nesse texto, numa das
participações que é da Teresa Almada, da professora Teresa Almada, onde fala dessa
tradução. Não do episódio...

Pronto, está a ver que há muitas histórias. Porque, de facto, Sophia era uma pessoa muito
corajosa, como seu marido Francisco Sousa Tavares, era de facto uma pessoa de uma grande
coragem na defesa de suas ideias. Aliás, está muito claro, já depois do 25 de Abril, quando
Sophia é deputada constituinte, é deputada na Assembleia Constituinte, e as intervenções de
Sophia são muito importantes em matéria dos direitos culturais e também relativamente à
proteção dos deficientes e da educação, do ensino especial. Ela era muito humana.

E, portanto, ela é pioneira na parte da guerra colonial. E na parte do combate, com seu amigo
Nuno Teotónio Pereira, e isso de facto envolvia uma grande coragem. E sabemos que quer a
censura, quer a polícia política, enfim, consideravam-na uma pessoa muito, muito difícil.
Porque não podiam tratar com ela como uma outra pessoa qualquer, tinham que ter muito
cuidado, não podia haver publicidade porque isso seria motivo de escândalo. E essa é
também a razão pela qual a Sophia está à frente da Comissão de Socorro aos Presos
Políticos: porque tem uma autoridade cultural e simultaneamente uma autoridade moral que,
de facto, lhe permitiram ter esse papel tão importante.

ESA: Algo que me chamou a atenção: soube que havia, em 1973/1974 possivelmente, vários
programas na televisão a que a Sophia foi se apresentar. E, ao lado de outros convidados

236
nesses programas, ela apresentava as suas propostas, as suas ideias, realmente participando
de um debate mais acalorado existente àquela altura. O senhor tem notícias de que
programas de televisão são esses?

GDM: Já falou com o Avelino Rodrigues? É a melhor pessoa com que pode falar relativamente
a isso e a televisão, porque ele é um jornalista bom.

ESA: Ainda não.

GDM: Avelino Rodrigues. E que é, aliás, um jornalista que tem feito investigação sobre
justamente o 25 de Abril, quer imediatamente antes, quer imediatamente depois. E, portanto,
ele é fácil de encontrar – era professor, penso que no ISCTE talvez. Mas se tiver alguma
dificuldade, nós damos-lhe o contacto. É o professor Avelino Rodrigues. Ele foi padre,
conhece muito bem isso, todas essas histórias. E eu aconselho vivamente a falar com ele.

ESA: Outro aspecto também que eu já encontrei na documentação e até referi no texto foi a
importância da Sophia de Mello Breyner no aspecto cultural, mas também de ela ficar um
pouco protegida dessa interferência mais direta, agressiva, da repressão, da polícia política.

GDM: Exatamente, porque ela é muito exposta. Não lhe podiam fazer nada...

ESA: Há também a produção extraordinária da Sophia que são os contos para crianças. Há
neles uma qualidade, é incrível a forma por ela empregada para contar aquelas histórias. E o
frei Bento Domingues me disse que ele chamaria assim: “a vingança pela qualidade”.
Lindíssima essa expressão, eu pensei, porque uma das formas de se transmitir valores e
modificar uma sociedade é por meio da publicação de bons livros. Parece que nessa altura a
sociedade portuguesa carecia de uma boa literatura para crianças, conforme a interpretação
de Sophia. Em entrevistas, ela conta que pegava os livros para ler para os filhos pequenos e
achava muito piegas, e assim chegou à conclusão de que ela mesma deveria criar as histórias.

GDM: E é muito importante o facto de ela nunca ter deixado de publicar. Este ponto deve ser
sublinhado. Ela foi sempre publicando, a tal da “vingança pela qualidade”, e designadamente
quando ela escreve os Contos Exemplares, contos que vão ser publicados com o prefácio do
Bispo do Porto, que era seu amigo.

237
Nos Contos Exemplares, há uma crítica muito forte que é, ao mesmo tempo, uma crítica muito
sutil, só as pessoas mais experimentadas é que notam... Ela de facto tinha a grande qualidade
de fazer textos que são muito fortes em termos da defesa das liberdades, da dignidade – da
dignidade do ser, que é uma grande referência poética de Sophia. Devo dizer que os censores
não davam muita atenção aos livros de poesia e aos livros infantis. Deve ser porque não havia
nada, não havia nenhum argumento, como lhe digo. Este caso da tradução do Hamlet é um
caso extremo porque o censor apenas viu lá a personagem, não viu mais nada, não percebeu
nada. Só viu no Hamlet que havia uma personagem chamada Marcelo e achou que aquilo era
uma referência ao Marcelo Caetano.

Agora, a Sophia publicou sempre, sempre. E os livros de poesia de Sophia não foram muito
vítimas da censura, até porque a censura fazia-se nas revistas e nos jornais, não era nos
livros. Nos livros, só se houvesse qualquer denúncia, como aconteceu no caso de um amigo
da Sophia que trabalhou conosco, José Cardoso Pires. Quando ele escreveu o Dinossauro
Excelentíssimo, que foi proibido. Mas não chegou a ser proibido! Isso porque o sucesso foi tal
que, quando a polícia quis apreender o livro, já estava esgotado.

E o que aconteceu? Aconteceu que na Assembleia Nacional o deputado Miller Guerra disse
que não havia liberdades... E Casal Ribeiro, um dos deputados mais conservadores, mais à
direita, defensor do regime, disse: “Estas liberdades são tais” – essa era uma crítica ao
Marcelo Caetano – “que até se permite publicar um livro como o Dinossauro Excelentíssimo”.
Evidentemente que, quando o deputado fez essa referência, os jornais todos publicaram que
aquele era um livro horrível, as pessoas foram todas a correr para comprar e esgotaram o
livro. Foi um sucesso!

ESA: Foi uma ótima propaganda!

GDM: Melhor propaganda não houve, exatamente. Foi uma ótima propaganda.

ESA: Há um ponto também importante da trajetória da Sophia, que possivelmente aconteceu


com outros católicos: a gradativa consciência política que se transformou em uma opção até
partidária. No caso de Sophia, a opção pelo socialismo. Parece que era da natureza de Sophia
ser um pouco reservada, e assim me disseram também que, quando ela escolheu integrar a
lista do Partido Socialista, e foi eleita, aquilo para ela representou, de certa maneira, um

238
sacrifício, porque ela não era dada à tribuna exatamente. Ela participou, vamos dizer, tendo
de realizar um empenhamento máximo. O senhor pode me falar a respeito disso?

GDM: Sim, porque tudo isso se passou aqui mesmo. Quando em 1969 chega Marcelo
Caetano, houve duas listas da oposição. Uma lista que era a CDE (Comissão Democrática
Eleitoral), que tinha o Partido Comunista, e também tinha jovens, estudantes como Jorge
Sampaio, e José Manuel Galvão Teles, que era sócio daqui do Centro Nacional de Cultura, e
era mais à esquerda. E depois havia os amigos de Mário Soares. Francisco Sousa Tavares
era amigo de Mário Soares, e logo a seguir ao 25 de Abril – Francisco Sousa Tavares, que
depois viria a estar no PSD –, justamente aderiu ao Partido Socialista. E é em virtude dessa
relação, deste conhecimento.

Francisco Sousa Tavares era advogado, conhecia Mário Soares, e Mário Soares e Maria
Barroso eram muito amigos de Francisco Sousa Tavares e de Sophia, sobretudo de Sophia.
Maria Barroso muitas vezes declamava poemas de Sophia em sessões culturais antes do 25
de Abril. E é Mário Soares que pede justamente à Sophia para que ela seja candidata do
Partido Socialista na Assembleia Constituinte. Portanto, a ligação da Sophia com o Partido
Socialista deve-se um bocadinho a essa relação de amizade. Portanto a razão é essa: uma
razão de amizade pessoal. E de Sophia ter considerado – e julgo que bem – que não devia
deixar de dar o seu contributo naquele momento importante de criação da democracia.

E devo dizer que quando foi a exposição sobre a Assembleia Constituinte no Parlamento,
pediram que eu fizesse justamente a parte relativa à Sophia. Ela não fez, como dissemos há
pouco, muitas intervenções, mas as intervenções que fez na Assembleia Constituinte foram
muitíssimo importantes. E são intervenções que hoje chegam a impressionar pela sua
atualidade. É muito fácil um discurso perder atualidade. Mas aquilo que Sophia disse em 1975,
na Assembleia Constituinte, mantém-se hoje integralmente. Nós podemos citar tudo e tudo
está numa grande atualidade: sobre a importância da criação cultural, da criação artística, da
ligação entre a educação e a cultura, entre outros aspectos. É uma intervenção absolutamente
impressionante. Por um lado pelo rigor, pela qualidade –ela era uma pessoa que escolhia as
palavras com enorme rigor, como sabe. E é de facto de uma atualidade, de uma humanidade,
absolutamente extraordinária.

ESA: O senhor sabe se ela participou de comissões na Assembleia Constituinte?

239
GDM: A intervenção de Sophia foi, sobretudo, nos seus discursos. E simultaneamente num
trabalho muito importante que foi nas políticas sociais, e particularmente para o
reconhecimento que a Constituição consagrou ao ensino especial. Isso deve-se à
circunstância de um dos filhos de Sophia ter sofrido um problema de saúde grave, enfim, é
uma pessoa que felizmente está bem, mas teve um problema grave. E, portanto, Sophia
conhecia muito bem as dificuldades de uma criança que precisava de apoios especiais, como
foi o caso de seu filho, Xavier. E por isso mais até do que a cultura, na perspectiva do cotidiano
a Sophia teve a preocupação de introduzir nas políticas sociais, na Constituição, esse
princípio da igualdade de todos e designadamente das pessoas com dificuldades, com
carências. Essa foi uma preocupação muito significativa à qual ela se dedicou.

ESA: Sim, uma preocupação bonita, humanitária. Agora, há uma vertente do trabalho dela
enquanto deputada constituinte: ela confronta, em um ou mais discursos, uma posição do
Partido Comunista de querer determinar o que seria, vamos dizer, o curso da história, e nesse
sentido Sophia não queria que a cultura fosse tomada por um dirigismo. Além disso, se o
senhor puder comentar a respeito... Parece que, nesses debates durante a Assembleia
Constituinte, ela tinha um grande cuidado para que não se repetissem jargões políticos e,
também, um enorme receio de que a política ficasse encerrada em estruturas autoritárias, que
caísse, enfim, no mesmo esquema de autoritarismo que se pretendia combater.

GDM: É muito importante o que está a dizer, eu concordo inteiramente. E ressalto que nos
seus discursos Sophia foi muito clara relativamente a novas formas de dirigismo, novas formas
de autoritarismo. Mas a sua posição cívica foi de tal modo forte que, apesar de suas ideias se
demarcarem, por exemplo, contra as ideias do Partido Comunista, ela era ao mesmo tempo
respeitada por todos. Ninguém a pôs em causa. Por quê? Porque no fundo, mesmo
relativamente aos próprios comunistas que ela criticava, eles sabiam que ela estava a usar
argumentos inatacáveis, argumentos defendendo a autonomia das pessoas. E, portanto,
havia mesmo muitos comunistas críticos que concordavam com ela. Mas o facto de ela ter
estado, de forma impecável, à frente da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos,
de ter um diálogo com todos e uma atitude muito positiva, levou a que ela fosse respeitada
por todos. E o seu discurso era um discurso de princípios, ético, era um discurso
absolutamente claro e que não sofria com distorções.

ESA: E a frase dela: “A poesia está na rua”? O senhor participou desse dia também tão
importante, um golpe que se transformou em revolução? A frase de Sophia se tornou algo
como um emblema?
240
GDM: Tornou-se um emblema graças à amizade entre Sophia e Maria Helena Vieira da Silva.
E porque é um cartaz que foi feito nessa altura, e eu direi que não podemos falar de 25 de
Abril sem os poemas de Sophia. Porque Sophia é, e todos citam, absolutamente clara
relativamente a esse dia inteiro, claro e limpo. Esse dia... são as características da poesia de
Sophia. Uma poesia muito clara, muito límpida, de um céu azul. E“A poesia está na rua ”deve-
se justamente a essa ligação entre a Sophia e Maria Helena Vieira da Silva, que como sabe
teve que se exilar por seu marido, Árpád Szenes, ser judeu. E, portanto, não lhe foi concedida
a nacionalidade portuguesa, e Maria Helena tinha nacionalidade francesa.

Há também outro aspecto marcante: o primeiro discurso de um civil no 25 de Abril foi o


discurso de Francisco Sousa Tavares no Largo do Carmo. Ele estava com o megafone,
exatamente, e estava numa guarita da guarda. As pessoas muitas vezes não sabem qual era
o discurso, mas eu sei. Foram muito poucas palavras e foi assim: “Hoje é o dia mais importante
depois de 1 de dezembro de 1640”. O que isso quer dizer? Significa dizer que o 1 de dezembro
de 1640 foi o dia em que se restaurou a independência e acabou o reinado dos espanhóis.
Sabe-se isso muito bem no Brasil porque Salvador Correia de Sá teve um papel de grande
destaque na Guerra da Restauração, a ponto de, justamente, ter partido do Brasil para a
reconquista de Angola. Angola foi reconquistada pelos brasileiros, como bem nos lembramos.
Mas justamente esse discurso “A poesia está na rua” não era uma abstração. Porque
verdadeiramente Francisco Sousa Tavares não só estava com ela dois dias depois, na saída
dos presos políticos de Caxias, como esteve no Largo do Carmo, com seu megafone. O
primeiro civil a dirigir-se às pessoas foi Francisco Sousa Tavares, num discurso muito simples
que é apenas dizer: “Recuperamos a liberdade!”. Não diz mais nada.

E, portanto, “A poesia está na rua” deve-se não apenas a esse encontro extraordinário entre
Sophia e sua amiga Maria Helena Vieira da Silva, a pintora portuguesa mais célebre no
mundo, como simultaneamente ao empenhamento civil. Eu já referi dois aspectos que são
inovadores. Por um lado, Sophia achou muito importante o papel dos militares, mas sempre
ressaltou que os civis tinham de tomar a dianteira, que a democracia civil deveria rapidamente
ser instaurada. Esse aspecto é muito importante, e por isso apoiou sempre Mário Soares.
Nessa perspectiva, numa democracia civil.

Outro ponto a destacar é a relação com os povos de língua portuguesa e sua independência.
Sophia defendeu essa independência de uma forma pioneira, antes de muitos outros o
fazerem. Porque, repito, em virtude do Concílio Vaticano II e dessa influência, Sophia
entendeu que era indispensável perceber que o catolicismo do futuro e o cristianismo do futuro
241
era o cristianismo do Hemisfério Sul. E daí a sua relação com os intelectuais brasileiros,
falamos de Murilo Mendes, mas poderíamos falar de outros.

ESA: Aqui em Portugal também me falaram que havia leitores das obras de Leonardo Boff.

GDM: Sim, sim. Há duas figuras de facto muito importantes, uma é naturalmente dom Hélder
Câmara, com quem Sophia tinha uma relação muito boa. E depois, como disse, ela era jovem
na altura, mas dom Aloísio Lorscheider também teve um papel muito relevante. Porque foi
ele, a pedido de dom Hélder Câmara, que fez as autorizações eclesiásticas para que os livros
da matéria religiosa pudessem aqui ser impressos, diante do obstáculo que havia, pois em
Portugal essas publicações seriam proibidas.

ESA: A Sophia, depois do 25 de Abril e depois do trabalho na Assembleia Constituinte, diz


em entrevistas que sofreu uma decepção com o mundo da política, e queixava-se de que
muitas pessoas que estavam a lutar estritamente pelo poder. Ela registra essa desilusão em
alguns poemas. O senhor sabe dizer se ela deixou mesmo em segundo plano a vida política?

GDM: Ela vai afastar-se de facto da vida política, sem, no entanto, nunca esquecer que a
democracia e a liberdade, para serem preservadas, precisavam que as pessoas tomassem
uma atitude que era de normalidade da vida democrática. Portanto, havia tempos de maior
intervenção, tempos de menor intervenção. Ela era uma criadora cultural, era uma poeta, e
não precisava estar a intervir diariamente, mas manifestou uma grande preocupação por certa
mediocridade, por certa falta de qualidade, e isso a preocupava muito.

Ela, no entanto, quando foi chamada em determinados momentos, designadamente na


candidatura à presidência da república de Mário Soares, teve um papel muito ativo. Portanto,
ela nessa altura regressou à vida política mais para dar um apoio. Veio a ser depois convidada
pelo Mário Soares para estar na atribuição das condecorações. Portanto, fazia parte das
ordens civis e militares na atribuição das condecorações. Uma pessoa de prestígio que Mário
Soares convidou, foi a única função, digamos, pública que ela desempenhou.

ESA: O que eu encontrei dessa atuação dela mais recente foi na década de 1990,
relativamente à questão do Timor Leste. Tanto que ela depois se aproximou do Xanana
Gusmão e de outros poetas. Parece que ela assinou ou fez abaixo-assinados em relação a
essa causa. O senhor tem notícias desse momento?
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GDM: Sobretudo um grande contributo é um conto de natal.

ESA: “O Anjo de Timor”.

GDM: “O Anjo de Timor”, exatamente, ilustrado por Graça Morais. Portanto, já tinha morrido
Maria Helena Vieira da Silva e a artista plástica que vai ter uma relação mais próxima com
Sophia é justamente Graça Morais. Aliás, este quadro chama-se “Menina do Mar” [mostra-me
a pintura em uma sala no CNC]. É de Graça Morais. “Agora, a tua terra é o mar”, que é uma
frase de Sophia sobre crianças que vivem no mar.Sophia teve conhecimento dessa
homenagem, porque ela ainda vivia. Mas relativamente aoTimor, o empenhamento de Sophia
foi justamente através do seu conto “O Anjo de Timor”, que teve muito mais força, bem mais
influência do que discursos ou outras tomadas de posição.

ESA: Muito obrigada.

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ENTREVISTA COM MARIA LUÍSA SARSFIELD CABRAL (POR ELOÍSA ARAGÃO)
LISBOA, 17 fev. 2014

ESA: Eloísa S. Aragão – Investigadora


MLSC: Sra. Maria Luísa Sarsfield Cabral – Entrevistada

ESA: Muito prazer em estar aqui com a senhora, que foi amiga de Sophia. Uma honra.

MLSC: Pois, eu gosto muito da obra da Sophia, tanto da obra poética como dos contos e
também da literatura infantil. Utilizei-a muito nas aulas, enquanto fui professora de Português
numa escola, do quinto ao nono ano, o que abrangia alunos entre os dez e os dezesseis anos,
sensivelmente. Lia-lhes os livros de Sophia e as crianças gostavam, sempre, sempre. Dava
imenso resultado. Depois, anos mais tarde, cheguei a encontrar alunos na rua, que me diziam:
“Ó, professora, por causa da senhora, lembro-me muito da Sophia”. Acho que esta literatura
para crianças marcou muitas gerações.

ESA: Que maravilha! E a senhora a conheceu quando?

MLSC: A minha relação com a Sophia é quase familiar, ou até mesmo familiar, porque há um
parentesco longínquo entre nós. Depois, há uma história de amizade familiar. Por exemplo, o
meu pai era muito amigo da mãe de Sophia (Maria Amélia de Mello Breyner). Curiosamente,
a Sophia era muito mais velha do que eu... quase uns vinte anos e isso não interferiu na
amizade. Eu sou da idade dos filhos dela, da idade da filha mais velha, a Maria Andressen.
Sou nascida em 1941 e a Maria deve ser uns três ou quatro anos mais nova do que eu. Eu
nasci e vivi no Porto e a Sophia também é do Porto, como deves saber. A sua casa era
geminada com a casa de uma tia minha, aonde eu ia muito. Portanto, era uma figura que a
gente sempre conheceu desde pequena. Eu brincava muito com as filhas no verão, na praia.
Muitas vezes também a Sophia estava, assim como o Francisco, o marido, a quem chamavam
Tareco. Não sei se já ouviu falar?...
ESA: Sim, sim, já me disseram desse apelido dele.

MLSC: Para mim, eles eram como uma espécie de tios, pois conheço-os desde a infância e
a adolescência e, depois, quando vim para Lisboa, para a Universidade – porque no Porto
não havia o curso de Letras – aos dezessete anos, a Sophia convidava-me muitas vezes para
ir à casa dela almoçar ou jantar, eu frequentava muito aquela casa. E gostava imenso de ouvir
a Sophia e também de falar com ela. Mas com bastante cerimónia, um pouco à distância,

244
porque a considerava de tal maneira fantástica e tinha aquela admiração que não deixa a
gente aproximar-se muito. Então, foi sempre uma relação assim... Exatamente. Era uma
pessoa bem mais velha do que eu. E nos grupos de católicos estivemos algumas vezes juntas,
lembro-me...

ESA: A senhora pode tentar se lembrar? Há alguns marcos, como a Vigília de São Domingos.

MLSC: Não pude ir a essa vigília. É que tenho que lhe explicar: eu tinha um arquivo aqui em
casa, acho que o frei Bento Domingues talvez lhe tenha dito.

ESA: Um pouco por cima.

MLSC: Posso contar, apesar de que não estou aqui para lhe contar a minha história. Para
situar: há uma parte da minha casa independente, eu vivia aqui e as pessoas do grupo BAC
(Boletim Anti-Colonial) entravam por outra porta e lá nos encontrávamos para trabalhar.
Entravam quando quisessem, pois havia ali o acervo do boletim, que não era feito aqui, era
feito noutro sítio, depois era distribuído ainda por outro grupo. Era uma coisa completamente
clandestina, sobre a guerra colonial.

ESA: Essa era uma bandeira muito forte contra o fascismo, não é?

MLSC: Sim, porque a guerra colonial era um tema completamente tabu. Imagina, era
exatamente assim, um tabu. Nós tínhamos informações, textos, fotos sobre muito do que se
passava na guerra colonial. Era algo gravíssimo. Eu trabalhava aqui dentro de casa quando
podia, mas o arquivo era ali, nesse espaço independente, que foi descoberto. A pessoa
principal daqui, do arquivo BAC, era o Nuno Teotónio Pereira, grande amigo da Sophia. E a
Sophia também participava em imensas acções nessa altura. E, portanto, o boletim foi
descoberto e o Nuno Teotónio Pereira foi preso e também o Luís Moita, que era muito
importante no grupo, e eu também fui presa passados uns dois dias.

ESA: Em que ano foi isso?

MLSC: Em 1973. Foi mesmo antes do 25 de Abril. Não sei se lhe interessa que falemos sobre
isso?

245
ESA: Sim, é muito bom aproveitar as informações de acordo com o fluxo que elas chegam à
memória.

MLSC: Ah, está muito bem.

ESA: Falando desse assunto, como vocês recolhiam os documentos, as informações para
produzirem o boletim?

MLSC: Era muito difícil, eu precisamente, na altura, não tinha ninguém nas guerras em África.
Talvez filhos de conhecidos, amigos não próximos, mas o Nuno recolhia muitas informações,
tinha grandes redes de informação lá, e cá também. E reuníamo-nos aos terceiros sábados,
não sei se já ouviu falar disso? Foi uma ideia da Natália, a primeira mulher do Nuno Teotónio
Pereira e grande amiga da Sophia.
No terceiro sábado de cada mês, fazíamos uma celebração com o apoio de umas irmãs
franciscanas, ali no Campo Pequeno. Tivemos de mudar do sítio original, porque havia
rumores de que estava para ser descoberto. Tudo isso era às escondidas, evidentemente.
Não estou certa se a Sophia chegou a participar, talvez esporadicamente... A maior parte das
vezes, quem celebrava as missas nesse grupo era o frei Bento Domingues. Esse era um bom
ponto de informação. Nós passávamos informação, documentos, tudo o que na altura
julgávamos importante...

ESA: Então, além da celebração da eucaristia, havia troca de informações?

MLSC: Sim, havia missa, havia recolha de informações e distribuição de informações, tudo
isso pensado propositalmente. Era uma eucaristia e, quero sublinhar, autêntica, que servia de
cobertura a uma troca de informação muito importante... Entrava o frei Bento, porque tinha
uma posição política. Era diferente da maioria dos padres. Contavam-se pelos dedos os que
tinham uma posição assim. O frei Bento assumia uma posição muito arriscada.

ESA: O Luís Moita também participava desses terceiros sábados?

MLSC: Sim, sim, e a irmã, Maria Conceição Moita. Era um grupo grande e sempre diverso, o
Nuno Teotónio Pereira era o principal. Como disse, a ideia foi da Natália, que morreu
entretanto... O Nuno e a Natália eram um casal base, chave de tudo isso, tinham um
empenhamento enorme e imensas ideias, muitas propostas a fazer.

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ESA: E a Catalina Pestana também participava?

MLSC: Sim, lembro-me dela lá.

ESA: A senhora se recorda dos anos em que isso ocorreu?


MLSC: Durou cerca de 3 anos, aproximadamente, entre 1970 e 1973.
Agora, aqui em casa havia documentação, o Nuno tinha imensa informação e era tudo
catalogado e arquivado aqui em casa. E havia um grupo, que eu não conhecia, que fazia o
boletim, que o escrevia. Eu não conhecia esse grupo, de propósito, por uma questão de
segurança. E havia outro grupo que distribuía o boletim, eu também não sabia quem eram.
Conto-lhe isso para se perceber que pelo facto de eu ter o arquivo aqui em casa, durante esse
período de uns dois anos, eu não podia ir a coisas arriscadas, porque, se por acaso me
apanhassem, pronto, apanhavam isso tudo. Era uma grande responsabilidade, de tal modo,
que eu tinha dificuldade de explicar às pessoas por que razão eu não ia aqui ou ali. E, assim,
não fui à Vigília de São Domingos, nem à Vigília da Capela do Rato. Sei que a Sophia esteve
lá e o Tareco também.

ESA: Na Vigília de São Domingos, a Sophia ocupou um papel fundamental, foi ela quem fez
o poema “Vemos, ouvimos e lemos”...

MLSC: Sim, sim.

ESA: Mas não sei se ela participou na Vigília da Capela do Rato.

MLSC: Eu não posso garantir, mas talvez não tenha participado. Eu associo-a mais à Vigília
de São Domingos, mas posso estar enganada...

ESA: A Sophia combateu o fascismo por meio da literatura. Um dos poemas mais diretos
sobre isso é “O abutre”, no qual temos uma expressão muito concreta da oposição ao
salazarismo. Há também o conto “O jantar do bispo”, que, segundo o frei Bento Domingues,
ela própria dizia a ele tê-lo escrito como forma de repúdio ao que acontecera ao bispo do
Porto. A senhora a presenciou se expressando sobre o fascismo?

MLSC: Sim, muitas vezes ouvi a Sophia falar expressamente contra o antigo regime, em
diferentes aspectos. Era profundamente sensível às questões da justiça. A justiça era mesmo
uma palavra muito importante para ela. Acerca de tudo o que se passava de injusto – e

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passavam-se muitas coisas, naquela altura – a sua atitude era sempre firme. Era uma pessoa
que falava bem alto, ela não tinha medo. Fui também várias vezes a Espanha, com a Natália
e o Nuno, a umas reuniões com a produção dos Cuadernos para el Diálogo.

ESA: E estas reuniões estavam relacionadas à Igreja?

MLSC: Sim, havia pessoas da Igreja.

ESA: E isso também porque havia o combate ao fascismo em Espanha?

MLSC: Sim, também havia essa Oposição lá. Lembro-me de a Sophia e o Francisco estarem
nessas reuniões em Madrid e no Escorial. Penso que esses factos já estão documentados em
alguns sítios.

ESA: Bem, não sei... Já ouvi falar sobre isso, as reuniões em Espanha, mas ainda não
encontrei documentação em que pudesse ter informações sobre a participação da Sophia.
Penso que este é um tema ainda a ser investigado. E o que ouvi foi do doutor Guilherme
D’Oliveira Martins, no Centro Nacional de Cultura, que me contou que havia um trabalho
paralelo de combate ao fascismo também em Espanha.

MLSC: A Sophia tinha uma grande preocupação com a justiça social.

ESA: O frei Bento Domingues me contou até uns casos. Ela tinha, por exemplo, uma
consciência muito forte da luta de classes e parece que a usava para proteger algumas
pessoas que trabalhavam para ela. Diziam que estavam a tirar coisas da casa dela e
chamavam-na atenção, ao que ela respondia: “Eu prefiro ser roubada por pobres que
realmente precisam a ser roubada por ricos”.

MLSC: Sim, tinha uma profunda consciência social, tive sempre essa ideia dela. Voltando um
pouco ao assunto do BAC, quero dizer que, quando da minha prisão em Caxias, o marido
dela, o Francisco, ofereceu-se para ser meu advogado de defesa. Portanto, eu saí da cadeia
em março de 1974 e iria ser julgada, e ele ofereceu-se logo para ser meu advogado, aliás foi-
me visitar à prisão, mesmo nos últimos tempos, quando eu já podia receber visitas. Foi óptimo,
óptimo quando ele me foi visitar. Era uma pessoa muitíssimo desabrida, irado, exuberante,
chegou lá e gritou: “O que te fizeram? Bateram-te?”. Não tinha pides a assistir, pôde estar lá
sozinho comigo, mas gritava: “Isto deve estar cheio de microfones, procura aí debaixo,

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descobre os microfones”. Era uma pessoa explosiva, não tinha medo, era também muito
engraçado. Diria que ele e Sophia conjugavam muito bem, eram os dois lutadores. Ela não
ficava só a fazer poemas, não. Eles empenhavam-se politicamente.
No meu caso, não houve julgamento (justamente porque a prisão foi em novembro de 1973
e foi liberta perto do eclodir da Revolução de Abril). A Sophia mandou-me pelo marido o seu
livro Geografia, para eu ler na prisão. Nesse tempo, eu já podia receber livros.
Depois desse tempo, aproximámo-nos mais, como hei-de dizer? Ela apoiava-me muito por
tudo isso que aconteceu, por eu ter estado na prisão, e ficámos muito ligadas sempre. A certa
altura, era como se não houvesse mais a diferença de idade entre nós, pois, como já disse,
antes eu dava-me mais com as filhas. Então, estreitei mais a amizade com Sophia. E, nos
últimos anos da sua vida, ela procurava-me, pedia-me para lá ir visitá-la. Tive muito convívio
com ela, nos últimos tempos. Porque precisava, já estava com certa idade, então
conversávamos muito. Mantinha-se igual, sempre movida por um sentimento de justiça. Foi
como o frei Bento lhe disse, preocupava-se com a protecção dos mais fracos, dos pobres, dos
que precisam. Isso transparece também nos seus poemas. Era muito sério.

ESA: Era uma pessoa compromissada com a realidade social.

MLSC: Sim, não se conformava com as coisas erradas, com as coisas injustas, ou que se
espezinhassem os mais fracos. Era muito sensível a isso.

ESA: Houve também o trabalho dela na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos.
A senhora chegou a acompanhar o desempenho dela na comissão?

MLSC: Não. Quem sabe bem disso é o frei Bento Domingues, já chegou a falar com ele?
Também participou na comissão, ao lado dela. Eu não pertenci a esse grupo, sei que fizeram
um trabalho fantástico, por muitos anos. Não cheguei a ter contacto com essa comissão.

ESA: E a senhora acompanhou a parte da trajetória da Sophia em que ela ingressou no


Partido Socialista e saiu como deputada à Assembleia Constituinte?

MLSC: Sim, foi depois de o Mário Soares ter voltado a Portugal, o Álvaro Cunhal também, um
processo que foi muito rápido, depois do 25 de Abril. Neste grupo dos católicos, muita gente,
como o Nuno Teotónio, entrou para o MES (Movimento da Esquerda Socialista). Por exemplo,
o Nuno Teotónio veio-me convidar para integrar o MES, mas eu não aceitei. Depois, senti

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imensa pena, porque me separei de pessoas com quem trabalhei durante muito tempo. Ele e
o Luís Moita, entre outros. Entrei no Partido Socialista.

ESA: E para a senhora que diferença fez ter entrado no Partido Socialista naquela altura e
não ter optado por integrar o MES?

MLSC: Naquela altura, fez imensa diferença – se calhar hoje não faria nenhuma –, porque a
seguir ao 25 de Abril houve um período muito conturbado em Portugal, muito difícil. Foi o que
chamávamos gonçalvismo, que afinal era a tentativa de o Partido Comunista tomar o poder.
Foi mesmo muito brutal. Posso-lhe contar que saí da cadeia e voltei para a escola, que era
aqui perto. Eu era professora. Antes de se dar o 25 de Abril não podia dar aulas, porque o
regime me considerava inconveniente. Mas, depois do 25 de Abril, apesar de haver muitas
coisas interessantes nas acções da esquerda, da extrema esquerda, quem não era apoiante
do Partido Comunista, teve muitos problemas. Quase se formou outra resistência contra o
gonçalvismo. Por exemplo, o que aconteceu com a diretora da escola onde eu trabalhava,
que nunca me ajudou diretamente depois de eu ter saído da cadeia, mas também não me fez
grande oposição...
Havia tanta confusão no período revolucionário desse primeiro tempo! Mesmo pessoas que
nunca tinham sido antifascistas, passaram a saber tudo o que se devia fazer. Eram recém-
chegadas à política, nunca tinham feito nada, de repente eram gonçalvistas e sabiam tudo.
Na escola, fez-se um ataque severo à diretora, um ataque selvagem, de tal modo que eu me
senti na obrigação de a defender, não tendo por ela grande simpatia. Mas achei que era tão
injusto ela sair da escola, expulsa e completamente cheia de anátemas em cima, pensei: não
é caso para isso, não está certo. Portanto, as coisas estavam funcionando assim.
E a Sophia teve também posições semelhantes. Foi deputada pelo Partido Socialista, esteve
no Parlamento, era muito amiga do Mário Soares, partilhava uma ideologia muito semelhante
à dele. Ela lutou contra o gonçalvismo e fez um bom papel como deputada.

ESA: Em certo momento dos debates na Assembleia Constituinte, a Sophia se empenha em


lutar para que a cultura não seja dirigida por órgãos estatais. Ela chama isso “evitar o dirigismo
cultural”. A Sophia diz que as pessoas ali estão a falar como loucos – é esta mesmo a
expressão que ela usa. Isso é um desabafo, mas talvez fosse algo mais...

MLSC: Pronto. Primeiro, foi mesmo a posição dela de lutar contra a ditadura com posições
fortes, claras e públicas. Nessa altura, era também muito antigonçalvista. Se aquilo que
decorria do gonçalvismo tivesse sido concluído, teríamos outra ditadura. Uma ditadura do PC.

250
Felizmente isto não aconteceu. Mário Soares percebeu e realmente conseguiu evitar isso. Na
verdade, eu tive esse medo.

ESA: Dizem que o próprio Saramago teve por um tempo esse discurso com viés stalinista...

MLSC: Pois, teve. E isso, na Sophia, pudemos assistir a uma grande retidão, manteve-se no
fundo sempre igual, nas duas épocas, antes e depois do 25 de Abril.

ESA: A Sophia até chegou a desenvolver um conceito sobre o que era alienação cultural. Há
um discurso muito belo em que ela trata do tema. Às vezes de certos escritores esperamos
uma posição política e de reflexão a respeito dos problemas sociais, mas isso não é
manifestado por eles. Suponho que de alguns escritores portugueses também se esperava
isso, mas não veio, ao passo que a Sophia refletiu sobre isso e produziu discursos bem
elaborados.

MLSC: Acho que a Sophia reflectia mesmo sobre esses temas, a sua atitude era muito
consciente, muito construída. Quanto ao 25 de Abril, Sophia já tinha uma consciência
totalmente formada e combativa em relação ao gonçalvismo e ao estalinismo e a toda essa
confusão com a liberdade, que ela tanto queria. Sobretudo, nos aspectos culturais, desejava
muito que esse sector fosse livre de amarras, isso era algo muito vivo nela.

ESA: Houve também os debates em que a Sophia participou na televisão, a senhora tem
informação a respeito?

MLSC: Sim, nesses debates podia-se sentir a sua firmeza. Isso fazia diferença em relação a
muita gente. A liberdade, antes e depois do 25 de Abril, porque, nela, a defesa da liberdade
estava sempre presente. De facto, naquela altura a liberdade estava em risco. Agora, é muito
fácil dizer que não, porque atualmente não há essa sombra. Actualmente, não temos medo,
mas naquela altura, sim. Porque corríamos o risco de ficar sem liberdade, como aconteceu
noutros países, em Cuba, por exemplo.

ESA: Há também um discurso dela sobre moradia em que ela vai construindo a ideia de que
toda pessoa precisa de abrigo, mas também que é preciso existir nele beleza. E nesse
discurso o importante é que o Estado possibilite o acesso à moradia, tendo as pessoas a
liberdade de espaço e de convívio com a beleza. De fato eu nunca tinha visto um texto político
sobre moradia em que se incluísse a necessidade de beleza.

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MLSC: Isso que está a dizer é muito giro, é lindo esse texto. Porque isso era muito da
personalidade dela. É interessante como ela conseguia espelhar-se tanto através de seus
próprios textos, a gente sentia que eram ideias que vinham dela e que eram a expressão de
uma unidade. E também uma mistura de posição política – enquanto defensora da polis, no
plano da vida que atinge as pessoas diretamente – com uma atitude humana. Não bastava
uma posição fria e desencarnada, quer dizer, ela falava dessas questões compreendendo a
vida dela, a vida das pessoas, era tudo isso muito encarnado. Falava num plano político que
incluía a humanidade das pessoas, em coisas muito concretas. Isso era muito nítido nela e
era fascinante. Para mim, era encantatório ouvir a Sophia falar, era tudo muito sentido. Havia
uma unidade. Eu gostava de a ouvir, assim como de ler os seus poemas e textos. Tinha até
mesmo certa reverência por ela.

ESA: Quanto à produção dela para crianças, talvez tenha sido precursora de uma forma de
linguagem e seleção de temas, porque ela diz que era preciso que os livros para crianças
fossem bem escritos, bonitos e pudessem chegar a todas as crianças, e não somente aos
filhos da elite.

MLSC: Sim, acho que entendeu que essa produção deveria chegar aos adultos e também às
crianças. Há uma preocupação em transmitir valores nesses livros. Por exemplo, julgo que
em A Fada Oriana existem valores importantes para ela, Sophia, que os desejaria incutir nas
crianças. De facto, ela gostaria que os seus livros chegassem a todas as crianças. Estes livros
estão escritos num português muito bonito, uma linguagem simples e muito bem construída,
é um português lindíssimo, gosto muito. A Sophia tinha nela uma luz, uma transparência e os
seus livros para crianças têm essa transparência.

ESA: Até a ligação dela com o mar... Vejo isso, de certa maneira, pode ser um pouco forçado
pensar assim, mas vou expressar. Enxergo isso também como uma vertente política, no
sentido de atingir um aspecto grande da dimensão humana, em que o mar pode remeter: a
lembranças, ao passado, a travessias, especialmente no caso de Portugal, país que se lançou
a novas conquistas, país das Grandes Navegações, e ainda como ideia de movimento
constante, de imensidão, e àquela do inconsciente coletivo que está lá em Gustav Jung.

MLSC: Sim, acho que é possível fazer essas conexões. Era fascinada pelo mar; e, no Porto,
vivia numa zona relativamente perto da Foz do Douro – de carro, demora cinco minutos. Ali,
na Foz do Douro, o mar é lindo e bravo. Sophia passava as férias numa praia perto do Porto,
na praia da Granja. Também fui para essa praia com a minha família, durante muitos anos,

252
até aos meus 16 ou 17 anos, e lá encontrávamos a Sophia e a família dela. Depois, a minha
família deixou de ir para lá e a Sophia passou a ter uma casa no Algarve. Como sabe, o
Algarve lembrava-lhe a Grécia, com as cigarras e aquele clima quente e o mar calmo. Mas
ela gostava imenso da Granja e do mar da Granja – é uma praia linda, que hoje está muito
destruída pela fortaleza do mar, que comeu um grande volume de areia. A história de A
Menina do Mar é passada na Granja. Há referências da Granja, também em poemas; outras
praias de que fala serão praias do Algarve, como a Ingrina. Aquela “casa branca em frente ao
mar imenso”... é tão bonito o poema – essa é a casa onde a família se hospedava quando ela
era pequena e, depois, durante anos. É uma casa em cima da praia, com uma varanda verde
à volta, onde, na história, o rapazinho gostava de estar a ver o mar. Tanto o poema como o
conto infantil se reportam à mesma casa da Granja.

ESA: Em Sophia, há o encontro de grandes valores de duas culturas: um embasado pelo


ideal grego e outro pelo cristão. Da inspiração grega, ela tomou o impulso por um convívio
social e democrático, e o lado cristão que remete a uma perspectiva da humanidade, em que
uma pessoa deve se solidarizar com as outras (eis a máxima “Amai-vos uns aos outros”), de
conciliação, e parece que também a um projeto de redenção, que remete ao futuro, a uma
transcendência...

MLSC: Curioso, não tinha chegado a pensar nisso. Mas sim, creio que sim, há uma ideia de
participação dos cidadãos, de todos os cidadãos por meio da democracia; é como um motor
que a motiva a escrever, a viver em sociedade. Assim como há essa projeção para o futuro,
sim. Há mesmo poemas em que o tema é a ressurreição.

ESA: É verdade, para ela existia em algum tempo ou lugar a possibilidade de o ser humano
ser pleno.

MLSC: Ela tem essa fé, mas ao mesmo tempo queria muito um paraíso aqui. Quer dizer:
queria transformar as coisas para que elas fossem paradisíacas, aqui, na nossa terra, na
nossa sociedade. Era muito interessada no presente. Isso nota-se também nos seus poemas.

ESA: Sim, porque ao mesmo tempo ela mergulha no momento presente, sem deixar de estar
atenta a muitas coisas ao redor, ao que estava acontecendo, e vai trazendo esses ideias para
a elaboração de suas reflexões, de sua escrita, como vemos nos poemas e contos, e de
maneira muito clara nos discursos políticos.

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MLSC: Sim, mas há o tema da ressurreição, que aparece expressamente em alguns poemas.
Eu julgava sentir nela uma preocupação, uma inquietação com a ideia da morte... Porque
algumas vezes coincidiu eu estar perto dela em ocasiões de morte de alguém que lhe era
querido e presenciei... Aconteceu, por exemplo, quando o seu irmão Tomás Andresen morreu,
fui visitá-la e vi como expressava o seu desgosto, com uma enorme perplexidade e
interrogação perante a morte.

ESA: No caso do marido, o Francisco Sousa Tavares... Ele faleceu antes dela?

MLSC: Sim, faleceu antes dela. Nos últimos anos, eles separaram-se, e ela ficou sempre
tristíssima com isso. A morte do Francisco foi terrível para ela.

ESA: Imagino... Agora, ainda falando sobre um assunto digamos existencial, lembrei-me de
o frei Bento Domingues ter comentado comigo que a Sophia nunca foi uma católica beata e,
até o contrário, ela dizia algumas vezes que seria mais interessante se a missa fosse rezada
em meio à natureza, tendo árvores ao redor, podendo sentir bater o vento, enfim nessa
atmosfera diferente do que se passa num local encerrado como as igrejas.

MLSC: Ah, sim, tem toda a razão, essa ideia é mesmo dela... Aliás, achava que as missas
que existiam aqui em Lisboa eram muito aborrecidas e, portanto, às vezes, apetecia-lhe ir e
outras vezes, não. De modo que, se existisse alguma nesse ambiente novo, junto à natureza,
ela iria, certamente, mais vezes. E, de qualquer modo, isso não significava menos
cristianismo, significava que as coisas não estavam a corresponder ao que ela achava que
deveriam ser. Dizia, às vezes, o seguinte, que eu achava engraçado: “A minha fé é a fé do
carvoeiro”. Não gostava de ter grande explicação para as coisas, nem grandes teorias
teológicas – embora, depois até as tivesse –, mas gostava de dizer que a sua fé era simples
e não movida por intelectualidades excessivas. “Porque o carvoeiro acredita de uma maneira
muito básica e é assim que eu sou” – dizia muitas vezes, e eu achava graça.

ESA: Voltando um pouco ao compromisso social e político exercido pela Sophia... Ela teve
uma participação importante junto aos escritores, na Sociedade Portuguesa dos Escritores e
no Centro Nacional de Cultura. A senhora tem memória a respeito disso? Costumava ir a
esses locais no passado quando Sophia e o marido lá estiveram?

MSLC: Não, não me lembro bem. Sabia que frequentavam o Centro Nacional de Cultura, de
que foram diretores, cruzei-me lá com eles algumas vezes, mas nada de marcante, lembro-

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me pouco... Houve um problema no Centro com a PIDE. É um facto conhecido, creio que Dr.
Guilherme D’Oliveira Martins o tenha referido.

ESA: Sim, ele me contou. E a senhora sabe se a Sophia teve de ir responder a interrogatórios
na PIDE?

MSLC: Não me lembro disso. Ele sim, o Francisco. Foi interrogado várias vezes e esteve até
preso por duas vezes, mas a verdade é que não tenho disso uma ideia precisa. Assim como
não tenho ideia da Sophia estar em contacto directo com a PIDE, a ser interrogada.
Evidentemente, que tinha problemas com a PIDE... Nós tivemos algumas atividades em
comum, mas, como lhe disse, também havia propositadamente certos afastamentos, em
relação a essas programações políticas a que nos dedicávamos. Acho que não vai ser difícil
encontrar informações...

ESA: Sim, com a pesquisa creio que vou encontrar informações nos acervos. O que encontrei,
por enquanto, numa pasta na Torre do Tombo, foi um documento em que se registra que a
Sophia teve a intenção de abrir uma editora com um senhor, na Travessa das Mónicas, na
casa que ela habitava. A polícia política, por meio do órgão censório, recusou o pedido e
carimbou algo como “deixar em suspenso: a personalidade em questão [Sophia de Mello
Breyner] e o senhor tal... são tidos como suspeitos pelo regime”. Enfim, uma intervenção para
que o projeto deles não seguisse adiante, pois eram “gente suspeita” [risos].

MLSC: Sim, ela era tida como suspeita [risos]. Não sei se lhe interessa falar com pessoas da
família, mas talvez, se desejar, possamos tratar disso.

ESA: Sim, eu lhe agradeço antecipadamente. E, ainda, sobre uma questão mais política:
depois da experiência como deputada constituinte, Sophia afasta-se possivelmente por um
desapontamento, uma frustração mesmo com o curso que a revolução tinha tomado. Esse
tema foi transposto por ela até mesmo em poemas... Ela chegou a comentar com a senhora
a respeito dessa postura baseada em tal descontentamento?

MLSC: Sim, falava disso muitas vezes. Falava da sensação de ter tido um ideal, de ter lutado
por ele e, por fim, não o ver concretizado. Dizia que estava a ocorrer muito oportunismo, que
não se viam concretizados os ideais de justiça com os quais tinha sonhado e, portanto, sentia
uma grande desilusão, apesar de sempre ressaltar a alegria de se ter dado a Revolução, de
ter acontecido o 25 de Abril, a chegada da liberdade e tudo isso. Mas pensava que se não

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estava a aproveitar esta oportunidade como se poderia. Creio que esse foi um sentimento que
teve ao longo de vários anos, de várias formas, conforme a situação da altura. Mas, realmente,
ela não se reviu em nenhum modelo que tenha aparecido, isso não.

ESA: Então, a partir desse momento ela continuou a dedicar-se à escrita, à vida de escritora...

MLSC: Sim, continuou sempre a escrever.

ESA: Houve situações em que a senhora se recorda de que a Sophia tenha voltado a fazer
intervenção política?

MLSC: No caso de alguma questão que envolvesse injustiça, que envolvesse minorias, ela
interessava-se e assinava abaixo-assinados. Mas concretamente, não estou a ver, a recordar
nenhuma situação em particular. Mas também é preciso lembrar que, nos últimos anos, ela já
estava com bastante idade...

ESA: Estava bastante cansada, suponho.

MLSC: Sim, bastante cansada, sim.

ESA: Depois da saída do Partido Socialista, a senhora sabe se Sophia continuou ligada às
discussões que nele se faziam, se emitia opiniões a respeito do que estava se desenrolando?

MLSC: Sim, na verdade continuou sempre muito ligada a Mário Soares. Não só era amiga
dele, como tinha afinidades políticas com ele. E houve lideranças de que ela gostava mais,
ou gostava menos, mas penso, basicamente, que Mário era da sua família política. Assim,
julgo que sempre se manteve ligada a essas questões, era a sua área, ser socialista. Mas
nem sempre se revia na forma partidária em que as pessoas da altura se filiavam. E, portanto,
voltando àquele assunto anterior, ela manifestava às vezes bastante desilusão, tinha certa
pena de ver como era a realidade criada após o 25 de Abril, criticava este, criticava aquele,
apoiava mais este ou aquele. Mas não estou errada, suponho, ao dizer que o Mário Soares
era a voz que ela apoiava frequentemente.

ESA: Parece que, nos anos 90, a Sophia se envolveu na causa de apoio ao Timor Leste...

256
MLSC: Lá está, ela empenhou-se nessa causa. Eu também fui a umas reuniões de apoio a
Timor Leste, aqui em Lisboa.

ESA: E, antes, a senhora havia comentado sobre a Cooperativa Pragma...

MLSC: Era mais uma associação política de debates e produção de textos. Participei na
Pragma, mas como sou do Porto, estive uns anos ora cá, ora lá. E lá no Porto, estive na
Cooperativa Confronto. Se a Sophia tinha contacto com a Pragma, não sei...

ESA: Creio que depois, se eu conseguir documentação, poderei verificar esse fato. Agora,
voltando um pouco... A certa altura na prisão, a senhora teve direito à visita, conforme
comentou anteriormente. A Sophia chegou a visitá-la?

MLSC: Estive três meses na prisão, não foi assim tanto tempo... Primeiro, foi o período de
isolamento: a pessoa não tem contacto com nada, com ninguém, nem livros nem coisa
nenhuma. Pronto, e nesse primeiro mês, passei quatro dias e quatro noites pela tortura do
sono. E, depois, no segundo mês, já me juntaram com outras pessoas, numa cela com mais
três raparigas, a Maria da Conceição Moita, a Fátima Pinto Ribeiro e outra, muito nova, a
Maria José, tinha 17 anos naquela altura – ela pertencia à LUAR (Liga de Unidade e Acção
Revolucionária). Naquela época, eu tinha de 27 para 28 anos.
Durante esse primeiro mês, como não podia receber visitas, a Sophia não me foi visitar. Mas,
mais tarde, o seu marido, Francisco, visitou-me [conforme ela havia comentado, foi visitar
também na qualidade de advogado, em defesa de Maria Luisa], com empenho. Mas só na
última semana, só na última semana conseguiu ir, mesmo sendo advogado... Não nos
deixavam receber visitas... Não era fácil. Quando acabou o isolamento, só podia entrar uma
pessoa por sua vez, e família directa. Saí da prisão em 1974, um mês antes da Revolução de
Abril. Foi mesmo assim.

ESA: No tocante à sua luta, a senhora teve sua consciência política voltada, em algum
momento, a questões feministas?

MLSC: Não fui activa em movimentos desse teor, mas considero que se ocupam de assuntos
muito importantes. Hoje em dia, são mais contemplados. Na realidade, eu tinha amigas,
conhecia e frequentei atividades no movimento Graal, um movimento com essa vertente
feminista, mas eu nunca tive propriamente militância feminista.

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ESA: Curiosamente, houve alguns homens que me disseram que se eu fosse estudar a vida
militante de Sophia, seria um pouco complicado, porque julgavam que foi o Francisco Sousa
Tavares quem mais teve atuação política. Pensei que isso podia acontecer justamente porque
eles estavam acostumados a enxergar no mundo a prevalência do desempenho masculino.
Ao contrário, tendo em conta o que pesquisei até o momento, notei que Sophia foi capaz de
ter uma trajetória consciente e não precisava estar associada ao Francisco para se inteirar
das coisas e desenvolver sua própria visão da realidade. Tinha a construção de seu próprio
pensamento. De todo modo, a senhora pode comentar algo a respeito dessa informação?

MLSC: Penso que a Sophia fazia intervenção política e era opositora ao regime por convicção,
julgava fundamental fazer oposição naqueles anos em que se vivia, em Portugal, um tempo
tão fechado, de repressão e ditadura. E era-lhe extremamente penoso viver num país sem
liberdade. Creio que o seu empenho não tinha a ver com ter uma marca feminista. Fazia
oposição porque considerava necessário fazer oposição. Com pensamento próprio e de modo
autónomo, sim. Era desassombrada, não temia... Tinha suas ideias próprias, era
independente.

ESA: Muito agradecida pela entrevista.

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ENTREVISTA COM JOSÉ MANUEL MENDES (POR ELOÍSA ARAGÃO)
LISBOA, ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ESCRITORES, 24 fev. 2014

ESA: Eloísa S. Aragão – Investigadora


JMM: Dr. José Manuel Mendes - Entrevistado

[Havíamos dialogado um pouco sobre meu objeto de estudo, a vida militante de Sophia de
Mello Breyner Andresen, e com isso o Sr. José Manuel começou a fazer uma introdução sobre
a importância do papel de mulheres que, durante longo tempo, se empenharam na luta contra
a ditadura. Neste momento, solicitei-lhe darmos início à gravação.]

JMM: Tudo o que digo é apenas a partir da memória, nada mais. E do conhecimento que
adquiri em estudos que tive que fazer em outras circunstâncias. E é exatamente por isso que
devo sublinhar que a participação da luta de mulheres contra a ditadura vem muito de trás
[anterior à década de 1950], e deve ter começado no período em que as próprias organizações
de resistência se formaram ou estavam a se robustecer. E digo isto para sublinhar, por
exemplo, a existência de algumas mulheres, no caso do Partido Comunista, que apenas se
adaptaram num período de clandestinidade, assumindo novos processos, novas
metodologias, como é fácil depreender.

E na legalidade, portanto, e não no quadro clandestino, mas na legalidade, havia


personalidades de grande relevo que, com maior ou menos vigor, davam expressão a um
sentido de oposição clara à ditadura. Por todas direi o nome de Maria Lamas [1893-1983], por
exemplo. Mas ela não esgota, nem de perto nem de longe, nesse contexto, todas as
personalidades que entenderam dar voz e de mil maneiras a uma causa democrática. A
Sophia está com elas, pertence de facto, como há pouco dizia, a um movimento que anda
perto dos católicos progressistas. E assume posições tanto no apoio aos presos políticos,
como na condenação dos actos do salazarismo, através dos actos públicos que eram
assumidos nesse tempo, em que o próprio marido dela até então, o Francisco Sousa Tavares,
teve um papel importante.

E a obra de Sophia também assumiu essa perspectiva de uma forma discreta, nunca
panfletária, não era o seu destino escrever poesia como panfleto. Ela colocava na sua obra
aspectos nucleares do que deveria ser a atitude do homem no contexto em que se insere, nas

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poucas circunstâncias dando sinais exatamente do que era o tempo amordaçado e fazendo
prevalecer-se a partir das raízes, designadamente a partir das raízes helênicas, do sentido de
liberdade e do sentido da democracia. A obra da Sophia está muito impregnada desses
valores, sem nenhuma espécie de dúvida. Mas sua prática concreta foi de uma intervenção
nem sempre discreta, às vezes mais do que discreta, junto dos movimentos que se opunham
ao fascismo em Portugal. E sempre que foi preciso intervir na política ela fê-lo com uma
argúcia, uma clareza e um brilho invulgares. Como se vê no texto que eu trabalhei e que fiz
referência, na sua intervenção no Congresso de Escritores Portugueses no pós 25 de Abril.

E como se viu, evidentemente, quando falou com o Guilherme de Oliveira Martins, ele teria
dito com toda a explicitude, nesse tempo de ligação ao Centro Nacional de Cultura, quando
depois da extinção da Sociedade Portuguesa de Escritores, que só viria a ser constituída com
o nome de Associação Portuguesa de Escritores, em 1973... portanto há 40 anos recém
concluídos. Portanto, dizia eu nesse tempo que toda a actividade empreendida pelo Centro
Nacional de Cultura e que o papel da Sophia foi muito activo.

ESA: Dessa forma, os escritores ficaram sem ter um local para se reunirem, e as reuniões
passaram a ser no Centro Nacional de Cultura?

JMM: Algumas, outras não, porque algumas reuniões tiveram que ser feitas em casa deste,
daquele, ou daquele outro escritor. Os espaços foram muito variados. Foi necessário em
muitas circunstâncias partir até de actos de resistência, quase que conspirativa, e não raro de
natureza clandestina, para forjar formas de intervenção que pudessem exprimir com clareza
que os intelectuais portugueses, os escritores nesse caso concreto de que estamos a falar,
tinham um campo, que era o campo da liberdade, da democracia. Foram múltiplas as formas,
não podemos pensar que eram apenas aquelas que nasciam da organização concreta do
Partido Comunista Português, dominante no que toca à resistência, e particularmente forte.
Ou aquelas que eram feitas por uma mão cada vez mais inteligente e activa dos católicos
progressistas. Eram também muitas outras e que passavam por tertúlias e por acções
desenvolvidas por personalidades com imenso destaque na vida pública, sem alinhamento
partidário ou com alinhamento partidário, com opções ideológicas inteiramente definidas. Por
exemplo, no quadro do marxismo ou do socialismo europeu, portanto a social-democracia, ou
em alguns casos nem sequer isso.

260
ESA: E também o socialismo ligado a uma vertente cristã, supondo o caso da própria Sophia,
que depois foi integrar o socialismo?

JMM: De maneira geral, essa era a tônica dos católicos progressistas. Eram católicos: a
doutrina social da Igreja para eles era fundamental, e era uma boa base para progredir no
interior da sociedade portuguesa, com o intuito de fazer aumentar o caudal da oposição; e
eram socialistas por opção. Portanto, uns afinavam-se com a linha ideológica da chamada
social-democracia europeia, outros até eventualmente com uma visão em que o diálogo com
o marxismo se impunha. Isto vai ter muita importância na forma como a Sophia desempenha
toda a intervenção que lhe coube. Porque, após o 25 de Abril, ela foi pela mão do Mário Soares
deputada à Assembleia da República pelo Partido Socialista. E eu penso que vale a pena ter
em conta essa passagem dela pela Assembleia da República.

Podemos de certa maneira admitir que são poucos os materiais, os documentos,


compulsáveis, porque foi um período muito intenso e tumultuoso, não havia o registo integral
de todas as intervenções, havia sim o registo do que se passava no Plenário.

ESA: Desculpe, mas aproveito para perguntar: o senhor foi deputado constituinte?

JMM: Fui mais tarde, não fui constituinte. Constituinte foi, por exemplo, o Manuel Alegre, que
penso ser uma pessoa que vale a pena ouvir nesse contexto. Em todo caso, recordo uma vez
– tendo em conta que com frequência os testemunhos pessoais são importantes –, recordo-
me de ter encontrado nesse tempo a Sophia, no Parlamento. Eu não era deputado, fui ao
Parlamento por uma razão que não tenho de todo presente. Estive um longo tempo a
conversar com ela, num período em que eram muito intensas as divergências entre os
comunistas e os socialistas.

ESA: Conversaram sobre a questão da cultura especialmente, ou não?

JMM: Não, não tanto, mas também. E nós falamos, aliás, um pouco sobre esse tema. E
apesar daquilo que entre nós era diferente, do ponto de vista da opção política – nesse tempo
eu era militante do Partido Comunista –, nosso diálogo foi extremamente intenso.

No plano cultural, basicamente havia a ideia de que o Partido Comunista tinha uma política
para a cultura que era impositiva, à maneira soviética: norma ativista ligada exclusivamente
261
ao realismo socialista, e incapaz de se abrir a outras formas de expressão estética. Esta visão
que os especialistas tinham nessa altura não correspondia à realidade de facto, pela simples
razão de que o líder histórico do PCP, Álvaro Cunhal, numa reunião de intelectuais e num
contexto muito concreto, afirmou exatamente o princípio contrário. E havia numerosos
escritores comunistas que praticavam uma arte, uma estética, e uma literatura que não era
tributária do realismo socialista ou, como nós dizíamos em Portugal, do neo-realismo.

É certo, que por outro lado, havia também essa evidência que era a evidência de uma
dominância do neo-realismo no quadro da literatura portuguesa, que viria de resto, com o 25
de Abril, deixar de existir. O 25 de Abril faz explodir formas de realização artística, e de certa
maneira a prática de algumas pessoas no passado e no presente poderia levar a uma ideia e
uma atitude de afastamento e de repúdio por qualquer princípio que constituísse o
condicionamento do escritor na sua liberdade de criar. Ora, a oposição que desde a primeira
hora, aliás, que desde sempre, antes de 25 de Abril, de todos os tempos, a Sophia tinha era
de que nada, mas nada pode condicionar a liberdade do escritor no seu percurso e nas suas
formas de realização. Sempre digo, partilhei esse ponto de vista, essa posição até o ponto de
me ter tornado um defensor intransigente dela em todas as circunstâncias.

ESA: Nesse sentido, o senhor também fez uma defesa contrária a certo dirigismo cultural?

JMM: A um dirigismo cultural que o PCP não impôs nem impunha, mas que estava no ar.
Vinha de facto de momentos vividos ainda antes do 25 de Abril. Houve momentos traumáticos
na história do Partido Comunista, em que esse dirigismo cultural existiu e se tentou impor de
uma forma, aliás, muito inequívoca. Mas depois do 25 de Abril, sobretudo, nada da linha oficial
do Partido Comunista... Eu estou a ser estritamente fiel aos factos e estou a ser quase que
historiador. Não estou de maneira nenhuma a fazer interpretação subjetiva do que se passou.
Portanto não era difícil que houvesse autores que estivessem realizando a sua obra com
inteira liberdade. Há autores que pertenciam a um partido, ou a outro partido, ou a nenhum.
Havia autores que tinham uma sensibilidade, eu diria, inequivocamente, da área do socialismo
marxista ou cristão ou de qualquer outra matriz, e que eram grandes nomes da cultura
portuguesa. Estou a pensar, por exemplo, no Fernando Namora, como poderia pensar em
vários outros, que eram tal como os melhores escritores ligados ao PCP, os melhores
escritores ligados ao Partido Socialista. Personalidades de uma imensa liberdade e de uma
imensa capacidade de alma. Só que a Revolução, o Pós-Revolução, e os conflitos políticos
extremamente graves e agudos que existiram nesse tempo acabaram por introduzir factores

262
de afastamento e de divergência, que, todavia, na área da cultura, não em poucos aspectos,
acabariam por serem esbatidos relativamente cedo.

ESA: Na reunião dos escritores, como se tratava dessas oposições, dessas diferenças, uma
vez que as coisas estavam tão polarizadas? Digo isso porque o senhor comenta em certa
altura de seu artigo [trata-se do artigo do Prof. José Manuel Mendes intitulado “Sophia e o
associativismo de escritores” em: TAVARES, Maria Andresen Sousa; CENTRO Nacional de
Cultura (orgs.). Sophia de Mello Breyner Andresen: Actas do Colóquio Internacional. Porto:
Porto Editora, 2013.] que, no momento da formação da Sociedade Portuguesa de Escritores,
houve a preocupação de mantê-la como uma entidade independente, autônoma, na qual a
base pessoal ideológica ficasse de fora, tendo o princípio de estarem a defender a forma de
escrita e a liberdade de tal manifestação. Como se a declamar: “Antes de qualquer coisa, nós
somos escritores”. Não sei bem... Mas eu entendi isso. Eu estou equivocada? O senhor pode
comentar um pouco a respeito?

JMM: Quando se fundou a Sociedade Portuguesa de Escritores, ainda muito no tempo da


ditadura... Quer dizer, isso na primeira fase da Sociedade, a primeira que é criada, tal como
se fundou a Associação Portuguesa de Escritores em 1973, a ideia era a mesma: era unir as
pessoas de bem, no sentido que tivessem uma opção pela liberdade individual, pessoal e
colectiva, e que aceitassem o princípio da democracia. O que não quer dizer que, por exemplo,
na primeira sociedade não tenham estado pessoas que não tinham sequer esse pensamento,
mas que se procurasse alargar o quadro das inscrições e da presença de autores, de toda a
gente, independente das suas ideologias. Ou seja, tal como acontece hoje, agora, neste
momento em que lhe falo. Aquilo que era a vida da Sociedade Portuguesa de Escritores e
aquilo que é hoje a Associação Portuguesa de Escritores é alguma coisa em que as opções
ideológicas, políticas e até partidárias, depois do 25 de Abril, são as que são.

Aqui dentro, aquilo do que se trata, do que une os escritores enquanto autores, enquanto
pessoas que dão um contributo insubstituível à sociedade, que é a sua obra, o seu lugar, e
que têm problemas comuns, e por isso mesmo a sociedade e a associação, que tendo dois
nomes acaba por ser praticamente a mesma, procura resolver. Tanto na difusão da obra de
cada autor – tanto quanto é possível – , como na preservação dos seus direitos fundamentais.

ESA: Sim. E, agora, foi apenas uma dúvida que me ficou... Em seu artigo registra-se a data
de 6 de julho de 1973, e de uma reunião para (pelo que eu compreendi) a fundação da nova

263
entidade como uma associação. Mas eu encontrei outra data nos jornais, que registram a
inauguração da Associação Portuguesa de Escritores em 1974.

JMM: Não, a Associação é criada em 1973.

ESA: E como foi amadurecendo esse processo?

JMM: É um processo muito complexo, porque quando foi extinta a Sociedade Portuguesa de
Escritores, vandalizada pela barbárie da ditadura...

ESA: Ninguém imaginava que pudesse acontecer desse modo, não é? Com tanta barbárie!...

JMM: Sim, foi completamente destruída, foram levados e desfeitos muitos materiais de
arquivos do que era então a Sociedade Portuguesa de Escritores, na sequência da atribuição
de um júri do prêmio ao escritor Luandino Vieira, que estava preso por combater o regime. E
a circunstância de ter havido um júri que atribuiu o prêmio foi considerada, pelo regime, um
acto hostil e sem apelo nem agravo. Agindo da pior forma que possa imaginar-se, a sede foi
vandalizada e a associação foi extinta.

ESA: Só uma pergunta, porque isso para mim foi tão chocante quando li, depois de ter sido
fechada e vandalizada, ninguém teve mais condição, nenhum escritor, de lá buscar algum
documento que fosse?

JMM: Não foi possível propriamente salvar quase nada..., porque não havia quase nada para
se salvar. Não foi possível salvar, foi muito pouco o que salvou-se. O essencial quase tudo foi
destruído. Isso significa obras de artes, isso significa biblioteca, isso significa arquivos,
documentação importantíssima, que tinha a ver com o modo como a associação foi criada,
com toda a sua história. Eu quero lembrar que nesses anos da Sociedade Portuguesa de
Escritores, debaixo de ditadura, as direções e as pessoas de maior relevo que a elas estavam
ligadas conseguiram fazer programas de intervenção muitíssimo importantes. Se eu disser,
desde logo, que foi possível trazer a Portugal Roland Barthes, ou trazer o escritor americano
Erskine Caldwell, estarei bem a dar o sinal da diversidade e da abertura de espírito que tudo
isso significava, mas também de um certo sentido do tempo e da modernidade. É isso que se
dilapida, é isso que se destrói. E é uma ofensa a nomes gloriosos da cultura portuguesa: o

264
Adelino Ribeiro, o Hernâni Cidade, o Jacinto do Prado Coelho, para dizer três ao acaso, e não
querer com eles esgotar a lista dos nomes.

No período que se segue à destruição da Sociedade Portuguesa de Escritores, houve um


grupo de escritores, um grupo concreto de escritores, muito aberto, que não se rendendo à
ideia de que não poderia haver um organismo, uma instituição que fizesse a defesa dos
escritores, dos seus direitos e dos seus interesses, no estrito plano daquilo que é a actividade
que cada um tem na realização dos seus livros, do seu projecto estético, foram sendo
realizadas múltiplas reuniões, e foram sendo estabelecidas ligações com o poder político. E,
então, convém que diga o seguinte: nem todo o poder político era, a partir de determinado
momento, estrita e violentamente salazarista.

Com a chegada do Marcelo Caetano ao poder, mantendo-se a natureza do regime, há


algumas pequenas mudanças que tornaram viável a constituição de uma sociedade com os
mesmos objectivos que tinha a Sociedade Portuguesa de Escritores. Esse núcleo de
escritores, a que a Sophia está ligada também, aquilo que verdadeiramente queria era
recuperar a Sociedade Portuguesa de Escritores, que havia sido extinta, inclusive no nome.
Mas com o evoluir dos contactos e com aquilo tudo que se ia passando na relação com o
poder político, percebeu-se que havia um ponto em que foi preciso tomar a decisão de
prescindir do nome, criando um nome outro, que é associação ao invés de sociedade. Sendo
que a Associação Portuguesa de Escritores, que é como hoje nós nos chamamos, é a
continuação da Sociedade Portuguesa de Escritores. Nós sempre reivindicamos que esse
passado, que foi o da Sociedade Portuguesa de Escritores, é nosso.

ESA: Mas para inscrever na lei, houve a escolha pelo termo associação buscando se escapar
de outros nomes que o regime poderia barrar?

JMM: Era, para o regime ditatorial, claro que queriam um nome diferente para que se não
dissesse que se estava a contrariar o que tinha sido a extinção da Sociedade Portuguesa de
Escritores. Então, encontrou-se o nome associação. E formou-se a associação, que tinha o
mesmo espírito, já com outras pessoas, algumas ainda eram as mesmas, daquela que tinha
sido a Sociedade Portuguesa de Escritores. Nesse percurso, e nessa fase, sobretudo,
bastante mais aguda, a Sophia de Mello Breyner está presente, sempre. Não é por acaso que
depois ela acaba sendo um nome importantíssimo, à frente dos órgãos diretivos iniciais dessa
causa.

265
ESA: No seu artigo, o senhor faz a citação do excerto do discurso proferido pela Sophia em
1973, no qual ela diz: “A poesia é necessariamente política, porque uma cidade sem poesia
é uma cidade desmantelada e morta”. É muito interessante que ela tenha formulado a questão
política ligada à literatura, à cultura, de um modo muito claro, quando sabemos, do que ela
partilhava com amigos, ela tinha também certa – vamos dizer assim – ojeriza pelo jargão
político, pelas coisas que pudessem ser estabelecidas com certo enquadramento ou certo
dirigismo. Bem... isso é mais um comentário do que uma questão... O senhor concorda? Pode
falar um pouco a respeito?

JMM: Dirigismo nunca, a Sophia não aceitaria nenhuma espécie de dirigismo. Creio que essa
era uma das razões pelas quais ela não estava com o Partido Comunista, compreendendo a
sua luta, e sendo solidária, por exemplo, com os presos políticos. Dirigismo nunca, mesmo
que porventura partisse daqueles a quem estava ligada. Fossem eles o Partido Socialista ou
qualquer outra organização. Dirigismo no sentido da impositividade de critérios estéticos ou
de negação da liberdade criadora, isso nos quadros mentais da Sophia era incolocável. Não
fazia qualquer sentido e não havia a mínima possibilidade de ela transigir diante de coisas
assim. Por isso é que no Congresso, naquele quadro histórico português em que o Congresso
se realiza e onde pairava, segundo autores como ela, o espectro de um qualquer dirigismo
cultural, ela assumiu uma palavra que foi muito frontal e clara contra ele, em defesa do criador,
do escritor. Mas fê-lo não como uma forma de se opor à intervenção política, mas, pelo
contrário, pressupondo a intervenção política. Ou seja, a intervenção política deveria existir
naturalmente, e deveria existir sempre, mas assumida livremente pelo criador, pelo escritor.
Como no fundo eu posso dizer sem nenhuma espécie de erro, julgo, por qualquer homem, ou
seja, a concepção que a Sophia tinha da vida era incompatível com o condicionamento das
liberdades individuais. Nesse exato sentido é que estou a exprimir. O que é uma forma de
dizer que era incompatível com o condicionamento das liberdades individuais, neste exato
sentido que estou a exprimir. O que é uma forma de dizer que era incompatível com o
condicionamento da liberdade pública. O que é uma forma de dizer que era irredutível nesse
ponto, como sendo uma das bases sobre as quais uma democracia deveria ser construída.

ESA: Agora, falando sobre a literatura que ela produziu para crianças. É possível dizer
claramente que isso é também parte da consciência política dela, sabendo que no país, até
certa altura, não havia muitas obras de qualidade para esse público – ou ao menos esta era
uma das queixas que ela fazia sobre o gênero até determinada época. Ela, num dos discursos,
citou que se devia fazer obras para crianças: com qualidade, numa linguagem acessível, com
grande qualidade gráfica, e que pudessem chegar aos filhos de camponeses, de professores
266
e qualquer cidadão. Ela tem uma visão sobre a necessidade de atingir esse público e de um
modo mesmo socialista, assim eu percebo. E como disse o Frei Bento Domingues a respeito
de tal produção da Sophia: “Isso foi a vingança pela qualidade” – uma expressão que achei
muito bonita. O senhor poderia comentar como enxerga a produção da Sophia para crianças?

JMM: Eu direi que ela assume essa posição na linha do que outras personalidades da época
já faziam e continuaram a fazer. Lembro que houve autores de grande relevo e de todos os
quadrantes ideológicos que tiveram a preocupação de escrever e de melhorar aquilo que era
a escrita para crianças, para adolescentes e para jovens. O que distingue a obra da Sophia?
É o seu modo peculiar, e aquilo que nessa peculiaridade é grandeza. Portanto, a Sophia era
na realidade uma escritora de primeiro plano, uma escritora à margem, muito acima de tanta
coisa que se publicava e que se fazia no seu tempo. E a obra que fez para os mais novos –
se me é permitido dizer assim, porque não gosto nada da expressão infanto-juvenil e estou a
tentar evitá-la – é uma obra marcada por todo o engenho e por toda a preocupação de que
há pouco falou, com todos esses sinais. A Sophia era de uma lucidez extrema quando
observava relativamente ao essencial do que se escrevia nesse tempo – ao muito do que se
escrevia nesse tempo, a expressão mais rigorosa é esta. Em relação a muito do que se
escrevia nesse tempo, na área infanto-juvenil, era preciso remodelar completamente e fazer
com que o primado da qualidade se impusesse. Havia outras pessoas preocupadas com isso,
e ela vem na mesma linha, com seu próprio modo. E, de facto, aquilo que aconteceu foi uma
viagem: ainda hoje os livros que ela escreveu e publicou nesse domínio são essenciais, são
marcantes, são decisivos.

ESA: Lamento que no Brasil não conheçam a produção dela para crianças.

JMM: Também ninguém em Portugal conhece os livros para a infância e juventude da Clarice
Lispector ou do Jorge Amado, se quisermos falar de outro público.

ESA: Mas estão a conhecer agora.

JMM: Do Jorge Amado, tanto quanto me recordo, só se terá publicado uma história cá, deste
lado do Atlântico. Eu disse dois nomes brasileiros, podia dizer vinte ou trinta, ou seja, há de
certa maneira uma menorização, mesmo dos próprios hermeneutas, dos próprios
acadêmicos, dos especialistas, daquilo que se faz nessa área. Valoriza-se o romance,
valoriza-se a poesia, valoriza-se o ensaio enquanto ele existe, às vezes a cronística e a

267
diarística, e só muito remotamente é que se valoriza a literatura infanto-juvenil. Agora, tanto
no Brasil quanto em Portugal, começa a haver estudos universitários e licenciaturas que têm
essa matéria como base. E então começa, de certa maneira já começou, um estudo muito
mais sério e o reconhecimento do que existiu e existe. E é absolutamente... como dizer isso?
É indiscutível o papel singularíssimo da Sophia de Mello Breyner nesse domínio, e que seja
hoje completamente reconhecido por todos os historiosos.

ESA: No seu texto há um trecho que se refere a um momento na Assembleia da República


quando lá houve uma discussão, no início da década de 1980, em que foi suscitada a questão
do domínio público remunerado. Eu gostaria que o senhor comentasse o que era exatamente
essa proposta do domínio público remunerado, e como as pessoas se manifestaram...

JMM: O problema é que... como hei de lhe dizer isso? Eu fui muito cauteloso com o que
escrevi aí. Cauteloso por quê? Porque eu não quero falar de mim, de todo. E esse debate foi
um debate que foi no essencial promovido e realizado por mim. Portanto eu vou contar
completamente coisas que um dia alguém há de dizer e são importantes.

ESA: Mas me chamou muito a atenção.

JMM: Mas não quero falar de mim, entende? Eu peço que compreenda isso.

ESA: Sim, está bem. É que o tema me despertou interesse.

JMM: Agora, acontece que a ideia do domínio público remunerado andava no ar. E era uma
ideia de algum tempo, e consistia na circunstância de que pela venda dos livros uma
percentagem mínima de cada um deles, e, portanto, de toda a massa de livros vendidos,
revertesse para um fundo que pudesse constituir-se como dinamizador de iniciativas culturais.
Como um recurso para editar autores jovens que tivessem dificuldades de acesso à edição,
ou outros autores em circunstâncias idênticas. E também como uma instância para apoio aos
escritores em estado de necessidade social, ou seja, pretendia-se que de alguma forma esse
fundo pudesse assegurar os meios financeiros para prestar apoio e assistência. Eu não gosto
da palavra assistência, vou dizer por isso apoio, prestar justiça, se me posso exprimir assim,
àqueles escritores que tinham caído na pobreza e viviam em circunstâncias de grande
carência.

268
Estou a falar em 2014, numa altura em que o quadro a este nível é o pior que alguma vez
conheci, ou seja, a crise, a chamada austeridade, o modelo de governo que existe em
Portugal, conduziu a que a realidade se tivesse transformado... numa realidade dolorosa. E,
portanto, se visava naquela altura, no período dos anos 1980, que houvesse formas de a partir
daqui apoiar, fazer justiça aos escritores que estavam em estado de grande precariedade. Era
por outro lado garantir a edição daqueles que não tinham editor. Portanto, as regras de
mercado e as relações entre escritor e autor existem, mas é sabido que há numerosas obras
que não conseguem chegar à edição por dificuldades de toda a ordem. Isso também não
significava a ausência total de critério, pelo contrário. Para tudo se podem criar júris
independentes, com saber, e com uma justa visão das coisas, mas o que se pretendia era a
edição daqueles que não tinham qualquer editor onde colocar a obra. Ou, a partir de
mecanismos de protocolo, chegar a contactos com editoras para edição desses livros, de
alguma maneira subvencionadas pelos que estivessem...

Portanto, era um pouco de tudo isso que passava pela ideia da criação do chamado domínio
público remunerado. A questão foi suscitada na Assembleia da República, esteve quase a ser
adotada, quase a passar. Um golpe palaciano à última hora impediu e nunca chegou a ser
adotada em Portugal. Com o evoluir dos tempos tudo se tornou muito mais difícil e não foi
possível. Qual é o papel da Sophia...

ESA: Só um minutinho, essa proposta estava ligada a alguma frente ou a algum partido?

JMM: Não, isso foi a proposta muito notabilizada por mim, mas eu nunca assumi que ela
estivesse a ser apenas veiculada pela bancada a que eu pertencia, pelo contrário. Na altura,
eu era presidente da Comissão de Cultura, se a memória não me atraiçoa, e isto foi
trabalhado. Eu posso dizer com clareza: a esquerda política estava de acordo! A direita política
dividia-se entre os que compreendiam a ideia e estavam próximos, e aqueles que se opunham
de uma forma determinante.

Em comissão, nós conseguimos fazer com que uma parte importante da direita política
compreendesse os argumentos por nós usados e, portanto, tudo esteve muito perto. Depois,
quando tudo teve que ser decidido em função do orçamento de Estado, e pelos homens das
finanças... Os homens das finanças, nesse passado que vai sendo longínquo, como hoje,
ignoram as pessoas e decidem pelos cifrões, e decidem pelas inscrições orçamentais, e,
portanto, não foi possível passar.

269
Nesse contexto, lembro com grande veemência o seguinte, um autor como Fernando Namora
tinha feito um estudo pessoal muito denso, muito sério, a demonstrar o quanto seria justa a
criação dessa ideia, a criação desse instrumento. E eu quis ouvir o máximo de pessoas. Como
tinha uma grande amizade, não diria por toda a gente, mas praticamente toda a gente, que
na época, para cá, para a sociedade literária e a sociedade cultural, ouvi imensa gente. Falei
com a Sophia, de quem era amigo, e ela teve um papel de apoio total da primeira hora à
última. Na Assembleia, nessa altura, também estava outra amiga minha, que era a Natália
Correia, que deu uma ajuda, e teve um papel importante no diálogo com certas
personalidades, digamos, um pouco mais à direita, com as quais mantinha um convívio natural
e precioso. Mas, por fim, o domínio público pago não vingou.

ESA: A Natália Correia conseguia isso, não é?

JMM: Sim, um pouco. Ela conseguiu duas ou três pessoas, aliás, uma delas era uma pessoa
de quem eu gostava imenso também. Presto homenagem ao seu nome, um homem que se
chamava Henrique Barrilaro Ruas, que era naquele bloco mais conservador da Assembleia a
personalidade que mais tinha aderido à ideia. Já não me lembro dessa história tão bem, com
pormenores. O que ficou foi isso que trago à memória... A referência que faço é seguramente
a do apoio que a Sophia me deu a mim, direta e inequivocamente, não estou em condições
de dizer se escreveu algum texto sobre isso, eu não conheço o espólio. Tenho imensas coisas
guardadas daquilo que a Sophia dizia ou publicava nos jornais, no meu próprio arquivo não
está nada, mas é, enfim, um testemunho meu e foi esse testemunho que deixei.

ESA: Assim, depois da atuação da Sophia de Mello Breyner enquanto deputada constituinte,
ela se afasta da cena política mais diretamente. Pelo que se revela nos documentos, ela se
sentiu muito decepcionada com o curso das coisas. A essa altura, ela afirmou em torno desse
afastamento que havia participado na luta antifascista e havia chegado a bom termo tendo se
dedicado a ser deputada constituinte, mas que a partir de tal momento só continuaria a
desempenhar-se em situações que julgasse urgentes, pois afinal o papel dela era ser
escritora. O senhor tem notícia se houve, depois de 1976, circunstâncias em que a Sophia
atuou no campo político? Sei apenas sobre o envolvimento dela na questão do Timor Leste.

JMM: Olha, o Timor Leste, como acabas de conferir e é verdade... Porventura, noutras causas
o afastamento dela eu compreendo bem. Também, sem querer falar de mim, a partir de 1991
eu não voltei a desempenhar nenhum cargo político, ou seja, eu estive mais anos no

270
Parlamento do que ela, experimentei tudo o que havia para experimentar durante estes dez
anos. Era, enfim, um deputado referenciado, é a palavra que encontro para dizer o que não
quero dizer. Em 1991, declarei publicamente que não voltaria a desempenhar nenhum cargo
político partidário, que não voltaria à Assembleia da República – palavra que cumpri, como
ninguém acreditava, e aqui estou a provar que cumpri. A Sophia esteve muito menos tempo
e também se retira. Por quê? Porque, de alguma forma, a vida parlamentar tem coisas
contraditórias para alguém que tem um projecto cultural com traços de alguma radicalidade,
e que procura nas coisas, numa feição tanto quanto possível não muito dominada por
pragmatismos, sejam eles de que natureza for. E, sobretudo, não contaminada pelos jogos
de bastidores que sempre existem na luta que se vai travando. Uma personalidade como a
da Sophia não era compatível com tudo isso e, pouco a pouco, o afastamento é o afastamento
da intervenção regular, quotidiana, não é o afastamento de sua implicação como cidadã na
construção das coisas. Ela manteve-se muitíssimo atenta a tudo, fiel aos seus valores de
sempre. Ah, e já no fim da vida era muito afagante, para dizer o mínimo, conversar com ela
sobre o que era a vida pública. Porque tinha uma ideia muito clara sobre tudo, meditava,
pensava, e posso lhe dizer sem nenhuma espécie de exagero: estava sempre à esquerda.

Foi nesta sala em que nós estamos a conversar que, com o presidente Mário Soares, na altura
presidente, eu lhe entreguei o prêmio Vida Literária. E, nessa altura, eu fiz um discurso que
tenho imensa pena de não ter ficado integralmente gravado, ou se calhar ficou gravado
algures e eu nunca encontrei a cópia. Foi um discurso muito emocional e muito afetuoso. Por
quê? Porque a Sophia era uma figura envolvente, marcante e decisiva para muitos de nós.
Para mim, obviamente, mas também para os meus colegas de direcção e para a grande parte
da sociedade portuguesa.

Mais tarde – sou membro do júri do prêmio Reina Sofía, em Madri, ao longo dos anos –, no
primeiro ano em que fiz parte do júri, contribuí para que a Sophia tivesse o prêmio Reina Sofía.
Foi a primeira escritora portuguesa a ganhar o prêmio Reina Sofía. E esse triunfo foi um triunfo
conseguido no meio de um júri de alta qualificação, com honestidade, terei que dizer muitas
vezes, porque esta é a verdade. E o José Saramago, já prêmio Nobel, fez de uma forma
fulgurante a defesa do prêmio para a Sophia.

E eu acompanhei, no registro mais eminentemente técnico ou literário, uma vez que era
preciso que de alguma forma uma parte do júri percebesse que mais do que o nome era uma
escrita, e essa escrita era aquela que tinha notáveis características. E foi, de facto, o último
prêmio que a Sophia recebeu, se não estou enganado.
271
ESA: Parece que sim, de acordo com o que eu pesquisei.

JMM: E eu no texto não sei se acabei por incluir ou não, no texto que estamos a ver...

ESA: O fechamento do artigo, pois.

JMM: Não sei se incluí o recital que depois se fez em Madri, no Palácio Real, que foi dos
momentos mais impressionantes da minha vida. E isso também é uma coisa que me diz
respeito e relativamente ao que tenho a dizer eu ficaria por aqui.

ESA: O senhor faz o registro no seu artigo de que havia de sua parte a expressão de
encantamento quando a Sophia discursava, como foi o caso no I Congresso dos Escritores
Portugueses, em 10 e 11 de Maio de 1975. Confesso que estou um pouco presa a esse
encantamento faz uns anos, pois percebo que, escapando à minha vontade, às vezes tropeço
nisso, mas estou conseguindo avançar no trabalho acadêmico. E isso resulta, em grande
medida, de uma descoberta muito feliz para mim: saber que existiu a Sophia, uma escritora
que teve essa matriz do cristianismo, da filosofia grega, e comprometeu-se por muitos anos
na luta contra o fascismo, conseguindo manter a inteireza, quero dizer a inteireza igualmente
na intervenção cívica que realizou. E essa luta aguerrida pela liberdade manifestada, por
exemplo, em um ambiente como o da Assembleia Constituinte. Suponho que era um ambiente
em que, a princípio, ela tinha de fazer esforço para enfrentar, pois assim o frei Bento
Domingues comentou que a Sophia se queixava, às vezes, dizendo que era necessária sua
contribuição àquele contexto político, mas que, de fato, era muito desgastante para ela.

JMM: Em todo caso volto a dizer que, nessa altura, na constituição das listas, os diferentes
partidos procuraram colocar personalidades de grande relevo na vida nacional: pelas artes e
pelas letras, pela economia e pelas finanças, pelo desempenho em actos cívicos de múltipla
ordem. Portanto, a Assembleia Constituinte era empregada em muitos níveis por
personalidades importantes do que era o Portugal democrático. E isso ocorreu tanto à
esquerda como à direita. É diferente do que hoje acontece com o Parlamento, porque o que
ocorre atualmente escolhe-se... Não quer dizer que não se tenha em conta a visibilidade, que
é uma palavra que também já é diferente, para pior, deste ou daquele. Mas escolhe-se muito
em função de uma lógica de aparelho partidário ou muito próximo disso.

272
Nesse tempo, e, sobretudo, na Assembleia Constituinte, e ainda nos anos que seguiram à
Assembleia Constituinte, portanto, nessas primeiras formações da Assembleia da República,
escolhia-se tendo em conta personalidades que tinham grande impacto na vida nacional, ou
então na vida local. Visto que a Assembleia representava também, gostava de ter no seu seio,
pessoas com grande relevo na vida local. Portanto, a escolha da Sophia é a escolha em que
se vê um tributo que lhe é prestado pelo próprio partido com o qual ela está. Dessa forma,
quando Mário Soares a escolhe – permito-me interpretar assim, o Mário Soares que o diga,
mas quero dizê-lo eu –, ele presta um tributo a alguém que se chama Sophia de Mello Breyner
Andresen, como um nome importantíssimo da cultura portuguesa. Houve outros autores que
não aceitaram porque de todo em todo eram alérgicos à política enquanto representação. A
Sophia aceitou e fez muito bem, se me é permitida a opinião, teve uma presença muito bela
na Assembleia Constituinte. Do ponto de vista da dignidade, do ponto de vista do que
representava como figura. Creio que é uma glória da Assembleia da República – que acaba
finalmente por decidir que ela vá para o Panteão Nacional – ela um dia ter sido deputada.

ESA: Muito obrigada por me conceder a entrevista.

JMM: De nada.

273
ENTREVISTA COM MARIA DA CONCEIÇÃO MOITA (POR ELOÍSA ARAGÃO)
LISBOA, 12 fev. 2014

EA: Eloísa Aragão - Investigadora


MCM: Sra. Maria da Conceição Moita - Entrevistada

EA: Você comentava sobre a sua história. Como começou a sua consciência política, sua
atuação?

MCM: A minha consciência política iniciou-se no seio do cristianismo. É uma vertente da


minha vida que foi fundamental e ainda hoje é muito significativa. Dá o mote central da minha
vida. Eu pertencia a uma família burguesa, com uma formação católica muito tradicional. O
meu pai era um homem muito ligado à situação política vigente naquela altura, era muito
salazarista, foi presidente da Câmera da minha terra natal, no Ribatejo. Por isso eu vivi
sempre, enquanto pequena e mesmo adolescente, num meio pouco aberto às situações
sociais, sendo que já à infância e adolescência – eu agora olhando para trás percebo – via as
coisas, sobretudo as questões sociais, com algum sofrimento e alguma timidez.

Lembro-me por exemplo de quando eu ia à missa com os meus pais. Eu ia muito bem
vestidinha e era olhada pelas raparigas, as meninas da terra, como um zelo, como uma
menina mimada era olhada. Eu tinha muita vergonha, era muito tímida. Aquela situação
incomodava-me muito. Só depois é que comecei a me dar conta de que havia diferenças
sociais ao meu redor, quer dizer, por exemplo, os empregados de meu pai não tinham férias.
Não havia salário estipulado, eles eram pagos conforme o meu pai achava ou eles pediam.
Era assim, não havia sindicato, movimento, não havia proteção nenhuma do trabalho.
Nenhuma! Embora os empregados de meu pai não fossem propriamente miseráveis, nem
vivessem em condições desumanas nem nada disso, havia realmente uma grande diferença.
E eu tinha vergonha disso, quer dizer, eu estava inserida naquele meio, mas interiormente
sentia aquilo como uma humilhação para mim. Era uma coisa estranha. Eu não sabia nomear,
não tinha consciência explícita disto, mas havia um incômodo muito grande.

Até que vim para a Lisboa com dez anos de idade...

EA: Antes era em qual cidade?

MCM: Alcanena, no Ribatejo. Vim para a cidade e comecei a fazer parte do movimento cristão
que se chamava as noelistas, um grupo feminino, que era também uma coisa estranha mas
que tive grande sorte de encontrar. Porque aí foi um ninho onde fiz a minha formação e fui
274
lendo o Evangelho como uma grelha social, primeiramente social, e depois progressivamente
política. Fui passando do social para o político – não sozinha, que isso não foi um movimento
pessoal, foi um movimento de grupo. Algumas de nós fizeram esta trajetória. Por isso,
passamos a ver a questão social não como uma questão de solidariedade dos ricos para com
os pobres, de esmola, mas como uma questão estrutural e política.

EA: Que idade a senhora tinha?

MCM: Eu era muito nova, tinha por aí uns 12 ou 13 anos. E depois eu fui tendo
responsabilidades ao nível do movimento e progressivamente até os meus trinta e poucos
anos essa consciência social e política foi crescendo em mim, como aconteceu com muitos
cristãos ditos progressistas, noutros contextos, na Ação Católica, entre outras formas de
agrupamentos católicos, houve um movimento de conscientização como explica Paulo Freire,
o que é muito bonito. No sentido de perceber que o Evangelho nos obrigava a uma leitura
outra, mais consentânea e mais rica, que era encontrar a pobreza e as raízes da pobreza nas
estruturas sociais e políticas. Assim, o Evangelho nos obrigava: Por que é que há pobres?
Por que é que há pobres? Não é problema deles, isto é uma questão que ultrapassa a esmola
e o benfazer – é uma questão com raiz política. Foi assim que se deu a minha evolução, a
minha consciência política, de algum modo, e foi no interior do cristianismo. Não foi a ler Marx
não foi a ler os grandes teóricos do marxismo, não foi nada dessa forma. Isso só veio a seguir,
só depois, por exigência de uma necessidade de cultura política, mas a minha conscientização
deu-se no seio do cristianismo. Como aconteceu a muitos cristãos não só em Portugal. Essa
é uma tônica que é visível em muitos processos do cristianismo. Alguns vieram a abandonar
a Igreja mantendo a fé em Jesus Cristo, outros mandando às urtigas tudo, quer dizer, deixando
de acreditar, mas outros não. Como eu. Eu ainda hoje me digo cristã. Eu vejo nisso uma fonte
de inspiração e de estrutura mesmo do meu pensamento, do meu modo de estar no mundo e
minha vida.

EA: Quando a senhora foi para a universidade, que curso fez? Havia essa firmeza de
conscientização?

MCM: Eu não fiz propriamente universidade. A minha formação de base é como educadora
de infância. Eu fiz os meus estudos, àquela altura a formação dos educadores não era feita
em escolas públicas, por isso foi em escolas particulares. As mais importantes nessa altura
eram de inspiração cristã. Fiz meus estudos como educadora, foram três anos de uma
formação muito exigente, fantástica. Foi decisiva porque me deu uma abertura muito grande
para o que pode ser o desenvolvimento da pessoa e da humanidade no seu conjunto. Eu não

275
participei nas lutas estudantis, tudo isso passou ao lado, nessa altura eu andava empenhada
na minha formação.

EA: E leu Paulo Freire?

MCM: Sim, posteriormente, em meados dos anos 60. Paulo Freire começou a ser importante
para aqueles que se dedicavam às questões sociais e faziam alfabetização. Eu estudei
afincadamente o método dele para fazer alfabetização. Depois fui desafiada para fazer a
alfabetização junto de um grupo de mulheres prostitutas. Para mim foi uma escola muito
importante, uma riqueza imensa de experiência. Aí mais uma vez a minha consciência política
se aprofundou. Porque pensava: isso não é possível, tanta miséria! Naquela altura a maioria
das pessoas que se prostituíam em Portugal, sobretudo nas cidades porque nas aldeias isso
não existia, vinha do campo. Eram mulheres muito pobres que tinham vindo para a cidade e
que ficavam normalmente como empregadas domésticas, muito carentes afetivamente, muito
sozinhas, abandonadas e a precisar muito de dinheiro. Mas sobretudo era uma questão
afetiva. E necessidade de autoestima reconhecida. Aí era muito fácil a mulher desmunida ir
atrás de uma conversa de um chulo com quem se encontrava num fim de semana e que
rapidamente se aproveitava para a meter na prostituição. A prostituição era duma pobreza
extrema e se concentrava em alguns bairros de Lisboa, como o Bairro Alto. Depois a
prostituição foi evoluindo e hoje é outra realidade. Aí trabalhei depois como educadora num
movimento que se chamou Ninho, que penso que existe também no Brasil. Fundei uma casa
de acolhimento a maio aberto, pessoalmente investi muito no Ninho. Eu morava no Ninho na
época em que foi a Capela do Rato. Porque fui educadora de infância mas rapidamente passei
para outras profissões, outros modos de fazer trabalho social e comunitário. Não fixei a minha
vida profissional na educação de infância, rapidamente fui trabalhar com jovens e depois com
adultos.

EA: Como foi sua participação na Capela do Rato?

MCM: Foi uma experiência muito importante. A guerra colonial existia em Portugal desde o
começo dos anos 60, e para os cristãos era uma situação muitíssimo complicada. Porque era
uma guerra que nós considerávamos injusta, que não tinha nenhuma razão de ser. Aquela
não era a nossa pátria, mentira, aquela era a pátria daqueles nascidos em África. Alguns de
nós fizeram este caminho de conscientização. Eu tive um irmão que foi para a guerra, um
irmão mais novo, e foi complicado. Ele não tentou escapar, fugir significava ir para fora de
uma maneira radical. Ele esteve na Guiné, e eu participei de uma maneira muito sofrida
daquela situação. Também para ele foi importante porque no campo de guerra foi uma
conscientização muitíssimo grande do que aquilo significava. São as contradições. Os

276
paradoxos das vidas das pessoas. Como é que uma guerra pode despoletar num movimento
militar, o movimento de 25 de Abril? Um movimento iniciado com os militares que fizeram a
guerra.

EA: E este mote que vocês católicos da oposição tiveram de fazer: a comemoração do Dia
Mundial da Paz numa situação de guerra? Esse tema era tabu, o regime não permitia que se
falasse da guerra colonial?

MCM: De todo, era completamente proibido. Organizamos a vigília... Foi uma ideia que meu
irmão Luís teve [Luís Moita] durante o verão, na praia, a partir da experiência da vigília de São
Domingos. Ele começou a refletir que a vigília de São Domingos tinha sido importante, mas
tinha sido pouco preparada, pouco consistente. Quer dizer, ela foi importante, mas foi só um
flash. E via que era necessária uma ação com mais impacto no tempo, no plano social e de
divulgação do que estava a acontecer no país. E assim pensou numa ação bem estruturada,
reunindo-se a outras pessoas para fazer a iniciativa no Dia Mundial da Paz, em 1973.

EA: Entre essas pessoas estava o Nuno Teotónio Pereira? A senhora se lembra de outros
nomes?

MCM: Sim.

EA: José Augusto Pereira Neto?

MCM: Não. Algumas pessoas que estavam na Capela na altura em que a polícia entrou, mas
nem todos prepararam o evento. Foi um núcleo pequeno que organizou, que deu a cara ao
movimento, digamos assim: meu irmão, eu própria, a Isabel Pimentel, o António Matos
Ferreira, o João Cordovil e o João Galamba, se não me engano. O Nuno Teotónio estava lá,
mas não aparecia como parte do grupo produtor. Depois ajudaram a preparar várias outras
pessoas. Houve um grupo de jovens que distribuiu papéis nas portas das igrejas de Lisboa
no dia 1, diziam o que estava a acontecer na Capela do Rato.

EA: O projeto era fazer algo para além de só um dia?

MCM: Dia 1 era um sábado nesse ano. Na Capela do Rato havia as missas ao fim da tarde
de sexta, todo o dia no sábado, dia 1, e as missas no domingo. A nossa ideia era aproveitar
a permanência na Capela de toda aquela gente que vinha para as missas. Isso foi pensado
como uma data ideal. A declaração de greve de fome foi feita por mim, num texto que eu li.

EA: Esse texto me interessa muito.

277
MCM: Eu li: “Estamos aqui, enquanto grupo, e tal e tal... Um grupo que se vai manter sem
tomar qualquer alimento em solidariedade com as vítimas da guerra. E para mostrar a nossa
determinação em lutar contra esta realidade”. Estávamos ali em oração, em debate, e
chamávamos todos que quisessem participar.

EA: As pessoas que estavam nesse grupo pertenciam a diferentes afiliações ideológicas ou
formavam um conjunto mais homogêneo?

MCM: Nessa altura os cristãos que lutavam contra o fascismo e contra a ditadura, contra a
guerra e contra a injustiça social – eram essas as vertentes da luta – e a pobreza, a imigração
maciça por conta da pobreza, a repressão e a ausência de liberdade. A ausência de
democracia era uma coisa terrível para a consciência de muitos. Havia uma panóplia de
objetivos em relação aos quais estávamos todos de acordo. Ninguém se dizia mais isto ou
mais aquilo. A luta era semiclandestina e clandestina. Alguns de nós tínhamos muitos contatos
com gente variada, que estava nos partidos políticos. Por isso algumas pessoas que estiveram
na Capela do Rato não eram cristãs, foram porque ouviram dizer o que acontecia lá. Mas
ninguém perguntava na entrada: o senhor é comunista?

EA: Mas há o que os registros históricos, os estudos apontam. Por exemplo, no Dicionário
História do Estado Novo registra-se assim uma passagem: “A coordenação da vigília foi
assegurada por Luís Moita, que pediu a colaboração das Brigadas Revolucionárias,
organização clandestina chefiada por Carlos Antunes e Isabel do Carmo, com a missão de
divulgar o acontecimento na região de Lisboa, o que foi feito através de panfletos.” Essas
informações do seu ponto de vista procedem?

MCM: Pouca gente sabia que as Brigadas Revolucionárias estavam dando apoio. Nem todo
o grupo sabia, nem por sombra. Isso foi uma combinação que o Luiz Moita e eu própria
fizemos com pessoas que conhecíamos das Brigadas e que se propuseram a fazer isso.
Apoiar esta ação da Capela do Rato com a divulgação, de fazer o rebentamento de petardos
na cidade de Lisboa e do lado do Tejo, no Arreio e zonas mais industriais. Houve uma
articulação que não foi assumida porque havia uma compartimentação de tarefas para
preservar as pessoas. Como as Brigadas Revolucionárias eram uma organização política
completamente clandestina, para proteger o grupo havia pessoas que não sabiam. Depois, a
posteriori, algumas pessoas ficaram incomodadas com essa articulação. Duas ou três
preferiram que isso não tivesse havido. Mas nós assumimos responsabilidade.

EA: Porque precisava ter um alcance maior?

MCM: Exatamente.

278
EA: E a escolha da Capela do Rato foi porque era coordenada pelo padre Alberto Neto?

MCM: O padre Alberto Neto era uma personalidade muito especial. Muito ligado à Igreja,
muito fiel. Era professor de religião e moral nos liceus da cidade, tinha muito contacto com a
gente nova e era muito carismático. Ele falava muito bem e era um homem com uma grande
fidelidade à verdade. À justiça. Por isso ele tinha sempre pides a assistir as suas missas para
ouvir o que ele dizia e a gravar as suas homilias. Mas ninguém conseguia tocar-lhe porque
ele era só evangélico. Ele fazia uma articulação entre o Evangelho e a situação muito certeira.
Não omitia nada, mas não era político. Fazia homilias fantásticas, de maneira que a Capela
do Rato era uma comunidade conhecida em Lisboa como um lugar de acolhimento das ideias
mais avançadas. Uma ação deste gênero podia ter acolhimento ali. Mesmo os padres que
funcionavam em volta do padre Alberto eram muito novos, gente empenhada e ligada à
justiça. Eu própria frequentava a Capela do Rato.

EA: Mas no dia em que houve a vigília ele ficou doente e não esteve?

MCM: Não esteve, estava com uma pneumonia. Tinha vindo com uma gripe gravíssima não
sei de onde, quase uma pneumonia, e estava fechado em casa com febre. Isso foi uma pena.
Mas estavam outros a substituí-lo.

EA: Na vigília ficaram outros padres?

MCM: Não. No fim da missa das 19 horas eu própria fui ao microfone, o padre que estava a
celebrar era muito meu conhecido e pensou que eu fosse dar um aviso. Ele ficou espantado,
não esperava que eu fosse dizer aquelas palavras. O que eu fui fazer foi um convite e dizer
que nós iríamos permanecer ali.

EA: A senhora lembra o nome desse padre?

MCM: Sim, agora já não é padre, é psicanalista, e se chama João Seabra Diniz. Ele
imediatamente telefonou ao padre Alberto dizendo o que tinha acontecido. O padre Alberto
participou ao patriarca de Lisboa, cardeal António Ribeiro. Ele disse: Sim, desde que
respeitem o local. Pedimos que respeitem o local. E que as missas continuem. Nós dissemos
obviamente que sim e as missas continuaram no dia seguinte, o dia 1. As pessoas
perguntavam: Mas o que é isto? O que está a acontecer aqui? Está arrumado de uma maneira
diferente. E ficavam sabendo. Alguns iam almoçar à casa e depois voltavam.

EA: A disposição dos bancos ficou diferente?

MCM: Exatamente. Fizemos um círculo para haver maior possibilidade de debate.

279
EA: E vocês leram cartas de pessoas que tinham estado em guerra? Como aconteceu?

MCM: Foram lidos vários comunicados de crimes de guerra, matanças de populações inteiras,
muitas delas vistas e presenciadas por missionários. Que tiveram um grande papel de
denúncia do que viam na guerra. Eram testemunhos de cristãos que viam as populações
serem dizimadas.

Foram feitos vários debates, havia pessoas que tinham informações suplementares, liam uma
carta, liam um documento.

EA: A senhora lembra da presença do Nuno Teotónio Pereira?

MCM: Sim, ele foi ativo como tantos outros foram. Ele era um militante antiguerra muito ativo.
Como o Luiz Moita. Tinham informações privilegiadas porque faziam o Boletim Anti-Colonial.
Mas havia gente de todo lado, e promoviam debates sobre temas dos mais instigantes,
voltados à realidade daquilo que mais nos interessava enquanto opositores.

EA: Em que momento começou a presença dos policiais?

MCM: A capela foi invadida pela polícia. Não foi propriamente a PIDE, foi a polícia. Lá estariam
pides no debate certamente, mas nós não conhecíamos, não perguntávamos. A porta estava
aberta, vinha quem queria. A polícia foi quem interrompeu aquela ação por volta das seis da
tarde do dia 1, entrando na capela fardados, com viseiras, com cães, dizendo: “A ordem é
para acabar imediatamente. Saiam!”.

As pessoas não saíram imediatamente. Ficaram em seus lugares e eles ficaram ali também.
Mas eles insistiram: “Faz o favor de saírem.” Algumas pessoas obedeceram, duas ou três,
mas a maior parte ficou. O Nuno Teotónio estava sentado na primeira fila e não se levantou,
não olhou para eles nem nada. O Nuno era ali uma referência. O que eles fizeram então foi
arrastar o Nuno com a cadeira, ele foi trazido cá para fora com a cadeira. Houve então alguém
que disse: “Se ele vai preso, vamos todos.” Cá fora estavam grandes carrinhas da polícia
onde nos encaixaram todos.

EA: A senhora foi também?

MCM: Sim. Fomos levados para a esquadra da polícia onde fomos todos identificados. Aí
foram identificados alguns que era funcionários públicos. Daí que os funcionários públicos
foram todos despedidos. É a lista que está aí [no livro mostrado a ela].

EA: Entendi. Estes precisaram de uma defesa mais empenhada para serem reintegrados.
Eles conseguiram?

280
MCM: Não porque estava pendente ainda o processo até que houve o 25 de Abril. Foi muito
complicado porque ficaram sem ordenado. De modo que houve uma coleta para que ninguém
passasse mal, houve solidariedade de nós todos para com as pessoas que tinham sido
despedidas.

EA: E quando a senhora falou do enquadramento na polícia...

MCM: Alguns foram presos mesmo. O Luiz Moita, o Francisco Louçã, um que era um grande
professor de economia, Francisco qualquer coisa... [Francisco Pereira de Moura], uma série
de pessoas. Eu por exemplo não fui, o que é espantoso. Eu que dei a cara, fui responder na
PIDE... Me chamaram para fazer um depoimento, perguntaram se tinha estado lá. Eu disse
que sim, que tinha achado interessantíssima aquela iniciativa [risos]. Sim, que estava
completamente de acordo, que qualquer cristão tinha que estar de acordo com aquilo. Porque
eu era contra a guerra, eu era pela paz, pela mensagem do papa para aquele dia. A paz é
possível, quem faz a guerra não é cristão, fiz todo um discurso ao PIDE.

EA: Houve algum episódio mais pitoresco sobre a vigília que a senhora queira comentar?

MCM: Mais pitoresca foi a minha conversa com a PIDE. Eles disseram: “A senhora é uma
utópica, a senhora nasceu em outro tempo”. Respondi que sim, é possível, mas é assim que
penso. “A senhora não sabe identificar a pessoa que leu a declaração?”. Ah, isso não sou
capaz porque estava cá atrás [risos]. É impossível de eles não saberem, não quiseram
prender-me por qualquer razão.

EA: Desse grupo que a senhora comentou das noelistas, havia pessoas lá?

MCM: Não sei identificar. É possível, mas não sei. Muitas delas frequentavam normalmente
a Capelo do Rato.

EA: E as leituras que vocês fizeram?

MCM: Leituras do Evangelho, de cartas da guerra, cantigas do Fanhais... Cantigas do Zeca


Afonso, obviamente. Nós cantamos, rezamos, fizemos pausas de silêncio, escrevemos
cartazes dizendo o que apoiávamos e o que não apoiávamos, o que denunciávamos. Isso
ficou registrado em grandes painéis.

Depois, muito pitoresco foi o debate que houve na Assembleia Nacional entre os deputados.
Da ala liberal e de direita. Penso que está nesse livro.

EA: Sim, eu li. E o seu irmão, voltou da guerra?

MCM: Sim, voltou da Guiné. Ficou dois anos.


281
EA: Alguns que estiveram na guerra estão agora produzindo relatos, livros sobre a situação
colonial.

MCM: Meu irmão não fez isso, antes pelo contrário. Nunca falou disso. Nada, nada. Era um
assunto tabu. É uma maneira que ele teve de arrumar as coisas. Depois casou-se, teve
crianças, agora já morreu.

EA: Gostaria que a senhora respondesse a algumas perguntas que fiz com base no livro
Cristãos pelo socialismo, em que há um texto da senhora com o título “Está lançado o
movimento”. A senhora pode comentar a evolução do pensamento dos católicos
progressistas, que acabaram professando interesse pelo socialismo, alguns até pelo
comunismo? A senhora viu dessa maneira? Houve essa evolução?

MCM: É evidente que, durante o tempo do fascismo, a frente dos cristãos era muito vasta.
Havia os objetivos comuns: o fascismo propriamente dito, as questões sociais, e a guerra. Em
torno desses três a luta dos cristãos se encaminhou. Havia os moderados e os mais radicais,
um leque muito grande de pessoas com trajetórias políticas que depois vieram a se declarar
muito diferentes. Nesse tempo, tudo quanto era intervenção política tinha diferenças tênues.
O grupo MDP/CDE [Movimento Democrático Português / Comissão Democrática Eleitoral] era
uma frente ampla também, era tudo comum.

Depois do 25 de Abril, as coisas começaram a tornar-se mais claras. Nós, os cristãos, nunca
estivemos de acordo em formar um partido cristão. Nunca! Depois do 25 de Abril, o Nuno
Teotónio, eu própria, fomos ao encontro de cristãos europeus na Alemanha do Leste. E os
integrantes da democracia cristã de lá, que formavam um partido, convidaram-nos
expressamente para jantar e nos convencer a formar um partido democrata cristão em
Portugal.

Nós dissemos que a democracia cristã foi muito importante em determinados momentos
históricos e em certos contextos. Em 73, ou 75 ou 74, a situação em Portugal era outra. As
opções políticas eram diferentes, e tudo bem. Uns foram para os socialistas, outros para os
comunistas, outros para os mais radicais. E tudo bem! Cada um fazia sua leitura da situação
política e ingressava no partido que achava mais consequente. Mais pertinente, mais lógico,
mais perto das situações legais ou não. Cada um era livre.

Minha opção pelo socialismo, por exemplo, não significa que eu estivesse interessada no
Partido Socialista. Como pode imaginar, socialistas são muitos. E havia também o problema
dos países do Leste, da ditadura em que estavam. Aquilo não era para nós, o socialismo que
nós queríamos. Queríamos outra coisa, um socialismo vivido de uma maneira humana.

282
EA: Seria uma nova camisa-de-força com um nome diferente.

MCM: Exatamente. Eu defendia o socialismo no sentido de ser anticapitalista, porque o


capitalismo era o regime econômico anti-humano. Que fomentava e fomenta as
desigualdades sociais. Como ainda se vê hoje de uma maneira feroz. Agora, se eu era
socialista em termos de seguir aquele modelo soviético? Nem pensar! Por isso nunca estive
ligada a nenhum partido político, a única coisa que eu fiz antes do 25 de Abril foi apoiar
algumas ações das Brigadas Revolucionárias. Dava apoio logístico, dava boleias – caronas,
vocês chamam –, tinha uma casa alugada em meu nome para onde podiam ir pessoas que
estavam clandestinas – por isso arrisquei-me. Para dar apoio às Brigadas, que eram uma
organização que fazia ações violentas, mas não atentados pessoais. Isso para mim era uma
condição sine qua non. Podia haver um desastre, e houve. Pessoas morreram,
nomeadamente das Brigadas. Mas eles nunca fizeram atentados contra pessoas. Faziam
contra barcos que iam para a guerra, contra armamentos, passavam mapas militares aos
movimentos de libertação, essas coisas. Aceitei colaborar com essa condição, por saber que
não estava na linha das Brigadas fazer terrorismo. Não era terror o que se queria, mas explicar
ao governo daquela altura que havia força, e força até armada, para destruir coisas injustas.

EA: E foi nessa situação de apoio às Brigadas Revolucionárias que a senhora Maria Luísa
Sarsfield Cabral foi presa?

MCM: Não, não tive nada a ver com isso.

EA: Ela alugava uma casa também.

MCM: Sim, ela alugava um quarto, mas não teve absolutamente nada a ver com o que lá se
passava. Ela esteve presa, na minha cela, sou muito amiga dela, mas ela nunca soube o que
se passava lá. O quarto foi alugado a meu irmão Luiz e ao Nuno Teotónio Pereira e era da
responsabilidade deles.

EA: E a senhora então foi presa?

MCM: Fui presa quando houve aquelas prisões todas no fim de 73. Em dezembro de 73. E fui
libertada no 25 de Abril. Como meu irmão, como o Nuno.

EA: A razão foi pela descoberta desse grupo das Brigadas Revolucionárias?

MCM: Sim. Problemas com as Brigadas, uma mala com explosivos... Houve ali um “rolo”.

EA: E no 25 de Abril foi aquela saída negociada para a libertação de todos os presos?

MCM: Sim.
283
EA: Vi um documentário em que se passa a cena de todos saindo da prisão.

MCM: Em que eu estava, dá para ver a minha cara. Eu saí com um advogado do meu irmão,
com um ar muito contente. Eu era muito nova! Tinha 37 anos. Agora tenho 76, sou velha
[risos].

EA: Nessa luta que se travava e na qual a senhora esteve tão envolvida, na altura houve
alguma percepção de que as mulheres tinham também uma luta? As mulheres estariam
alcançando alguma coisa diferente?

MCM: Não. Nessa altura a questão das mulheres pelo menos para mim não se punha. Era
uma luta comum de homens e mulheres. Evidentemente que éramos mulheres com nossa
identidade completa, éramos sensíveis aos sofrimentos das mulheres, mas a especificidade
da luta não estava muito aí.

EA: E durante o período na prisão a organização que vocês mulheres faziam da rotina tinha
algo de especial?

MCM: Sim, muito. Nossa ala era diferente da dos homens. Estávamos todos na prisão de
Caxias, porque não tínhamos sido julgados, não estávamos a cumprir pena. Era uma prisão
temporária para os homens. Quem era julgado ia cumprir pena em Peniche, uma cadeia
própria para homens. As mulheres, ao contrário, tinham uma situação mais penosa. As que
eram condenadas ficavam a cumprir pena em Caxias. A situação era terrível porque não havia
nenhuma vida em comum. Não havia refeitório, não havia biblioteca, ficavam fechadas nas
celas. Enquanto que os homens tinham essas coisas todas. As mulheres, como eram uma
minoria, não tinham uma prisão própria para elas. Isso foi uma luta em que eu e minhas
companheiras de cela nos metemos com o diretor, escrevemos cartas dizendo que aquilo era
inacreditável. As mulheres que cumpriam pena ficavam lá fechadas nas celas por três anos,
quatro, sempre com as mesmas pessoas, não viam mais ninguém. Não tinham leituras nem
uma vida mais comum. Psicologicamente ninguém aguentava.

EA: Mas elas podiam receber visitas?

MCM: Visitas sim. A cada semana.

EA: Os familiares mandavam livros e outras coisas?

MCM: Sim. A partir de determinada altura começamos a receber livros. E música.

EA: Não havia um momento em que todas conseguissem ficar juntas?

284
MCM: Não. E no domingo de Páscoa a nossa cela fez uma ação, éramos quatro. As visitas
eram como nos confessionários de antigamente, havia uma rede que nos separava das
famílias, e uma cadeira em frente. Primeiro ia uma, depois a outra, depois a outra, em filinha.
E estávamos separadas por uma porta de bater, como dos bares americanos, da outra cela.
E na outra cela estavam pessoas a cumprir pena, o que significava que nunca nos viam nem
nós a elas. Nunca tínhamos contato físico nem visual. O que fizemos? Combinamos que, no
domingo de Páscoa, eu fazia um sinal batendo na madeira da cadeira, e imediatamente todas
nós levantávamos, passávamos por essa portinha e íamos ter com as outras. Íamos abraçar
as outras camaradas. E as famílias estavam todas lá, se misturavam. Pensávamos nós e
assim aconteceu. Fomos beijar e abraçar as outras camaradas que nunca tínhamos visto, só
sabíamos os nomes. Dissemos: “Olá, fiquem bem, força, o que precisam?”. Isso foi uma ação
no interior da cadeia que nos mereceu castigo. Ficamos não sei quantos dias sem ter recreio,
que era ir lá ao pátio ter ar puro. Era um quadrado com grandes muros, mas víamos o céu!

EA: Iam sozinhas ou em grupo?

MCM: Íamos em grupo, só as da nossa cela. As outras estavam noutro quadrado, e noutro
quadrado. Por celas. E era assim que nós pensávamos que pensávamos eventualmente vir a
cumprir pena. Eu dizia: “Eu quero ir para uma prisão comum. Com gente comum”. Claro que
eles nunca deixariam porque eu era um problema [risos]. Podia contagiar as outras presas.

Era uma luta que nós tínhamos iniciado no seio da cadeia para as mulheres que ali estavam
terem condições diferentes. Mas vivíamos as quatro. Eu, Maria Luísa Sarsfield Cabral, Fátima
Pereira Bastos, que morreu há dois anos, e Maria José, que também morreu.

Nós na cadeia tínhamos uma grande preocupação de ter uma vida saudável. E por isso
tínhamos as nossas camisolas todas arrumadas em tons degradê, para fazer bonito. Os
amarelos, os vermelhos, os azuis, os verdes, tudo bonito! Tínhamos um livro de arte que
tinham mandado a uma de nós, a Luísa Sarsfield, aberto cada dia a uma página. Para ter uma
coisa bonita para vermos. Tínhamos poemas nas paredes. Tínhamos a cela muito limpinha e
o mais bonita possível. Tínhamos tempo para estar caladas obrigatoriamente, duas horas sem
falarmos umas com as outras. Escrevíamos, líamos, mas não falávamos, para haver alguma
intimidade. Era proibido dizer “não chores”. O choro é alguma coisa a que todos nós temos
direito. Éramos muito simpáticas umas com as outras. Se uma se mostrava mais carente,
estávamos mais atentas a ela. Ou mais aflita, ou que tinha tido uma carta a dizer do filho ou
a contar do marido – éramos muito simpáticas e vivíamos uma situação de comunidade muito
intensa e muito bonita.

285
E cantávamos. Era completamente proibido. A guarda vinha: “Estão a cantar, é proibido!”. Eu
dizia: “Não nos faz mal, estamos a cantar”. E ela acabava por gostar. Porque achava que nós
éramos simpáticas, enquanto que algumas as tratavam muito mal. Camaradas de outras celas
tratavam mal as carcereiras. Mas eram mulheres portuguesas, estavam ali para ganhar
dinheiro, era um emprego como outro qualquer. Não eram pides.

EA: E os poemas? O que vocês colocavam na parede?

MCM: Algumas coisas da Sophia. Só podia. Outras de outros poetas, poemas para levantar.
Queriam nos matar, mas nós não nos deixamos matar. Estávamos bem vivas!

EA: E livros? Houve algum mais marcante?

MCM: Lembro de um livro de poemas do Herberto Helder, me marcou muito, uma coisa
lindíssima. E um livro muito grosso, que foi para mim precioso porque o estudei
aprofundadamente, que se chamava Pedagogia institucional. Naquela altura estava muito em
voga e tinha uma perspectiva até política da educação das crianças e dos adultos. Foi um
livro que li e estudei, foi muito importante para mim.

EA: E antes, no processo de sua formação como cristã e católica progressista, que outros
livros de tema político a senhora leu e achou importantes?

MCM: Eu digo que olhar para a minha pequena biblioteca, que é muito pequenina, muitos
livros já se foram andando porque não tenho espaço, mas há uns que permanecem. Acho
que é muito engraçado ver que a nossa história pode ser vista pelos livros que estávamos a
ler. O que é que eu lia em 60, em 70, quais eram meus interesses. Os livros que vinham da
América Latina eram fundamentais. Casaldáliga, Leonardo Boff foram livros importantíssimos
para nós, exatamente porque tinham inspiração cristã e nos abriam para a consciência política
de uma maneira muito forte. Daí que havia uma correspondência muito grande entre o que se
passava aqui e o que se passava na América Latina.

EA: Ainda daquele livro Os cristãos pelo socialismo, os objetivos que se colocam são três,
vou ler. Primeiro: debate ideológico no seio da própria igreja e da função que a religião tem
de suporte ideológico do sistema capitalista. Segundo: reinterpretação da fé para anunciar a
mensagem de Jesus Cristo enquanto forma efetiva das classes exploradas. Terceiro, que não
compreendi: desbloqueamento e neutralização para as massas de cristãos das influências do
aparelho ideológico eclesiástico e incentivo que essas massas enquadrem-se nas
organizações de classe revolucionárias, por serem as únicas capazes de apresentar uma
alternativa para a sua emancipação.

286
MCM: Credo, isso é muito radical! [Risos] Não me lembrava que tinha dito isso. É ridículo,
completamente loucura! Revela uma leitura dos acontecimentos a partir de uma grelha muito
simplista. Não concordo nada com este terceiro objetivo. É absurdo. Só se compreende no
contexto.

Foi a revolução, estávamos em pleno processo revolucionário. Pronto, fizemos e pensamos


bobagens. Era um radicalismo absurdo.

EA: Para o historiador, os referentes tempo, espaço e dinâmica de um processo em estudo


são fundamentais. E essas fontes, incluindo a oral, precisam ser instrumentalizadas. Dos fatos
e processos que já estão escritos na história e dos quais a senhora participou, tem alguma
coisa que a incomode?

MCM: Não, com franqueza não. Eu tenho que ler a minha história contextualizada. Não me
arrependo de nada, quer dizer, posso ter errado na confiança que pus em algumas pessoas.
Mas entendendo a minha história pelo contexto. Naquela altura eu só podia ter feito aquilo,
estava muito influenciada pelo meu próprio registro cristão. Ou se dá tudo ou não se dá nada.
Há uma palavra do Evangelho em que Jesus diz: “Os medíocres, eu vomito-os”. Aqueles que
ficam para meias tintas, eu vomito. Eu nunca me contentei pelas meias tintas. E por isso,
quando me imbriquei politicamente, fui até o fundo. Sendo que corri o risco de sujar as mãos,
como se dizia naquela altura.

EA: Nesse longo trajeto de luta e resistência em Portugal, houve momentos em que a senhora
ou o grupo a que estava associada pensou que estavam derrotados?

MCM: Não. Mesmo na cadeia eu sempre tive uma convicção, disse isso aos pides: vão a
perder porque não têm razão. Estão do lado do mal na história.

EA: E como a senhora se recorda do 25 de Abril?

MCM: Completamente inesperado. Uma dupla libertação. A libertação do país e a minha


libertação e de todos que estávamos presos. E a libertação dos povos das colônias, terceira
libertação. Vimos como uma oportunidade fantástica, um golpe de Estado que foi feito pelos
militares e depois se transformou numa revolução que era a visão das massas populares. Era
evidente. O povo português estava naquele movimento. Só assim se explica o 25 de Abril.
Porque se tivesse sido uma coisa estritamente militar, era um golpe, as pessoas ficavam em
casa, ninguém ia para a rua nem dizia nada ao povo. Mas não. O primeiro de maio foi uma
festa incomensurável no país todo. Claro que havia zonas de direita e extrema direita, muito
acantonadas, mas que não tiveram expressão àquela altura. A expressão grande foi a mais
genuína do povo português. E eu graças a Deus nunca tive desânimo, no sentido de perder
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a alma para lutar por aquilo que achava que era justo. Nunca perdi. Isso foi importante porque
é muito violento uma pessoa ser presa, a prisão pode ser vivida como uma derrota ou como
um momento passageiro. Foi como a vivi. Um momento passageiro numa história feliz. Que
agora vamos a ver como é que é. Estamos outra vez num momento muito infeliz, o país
mergulhado numa circunstância muito complicada, andamos muito aflitos, sem perceber como
se dá a volta a isto.

EA: Muito obrigada, foi um imenso gosto ouvi-la falar.

MCM: Nada, foi muito gosto para mim também.

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ENTREVISTA COM FRANCISCO LOUÇÃ (POR ELOÍSA ARAGÃO)
LISBOA, 26 fev. 2014

EA: Eloísa S. Aragão - Investigadora


FL: Sr. Francisco Louçã - Entrevistado

EA: É curioso ler sobre o assunto porque o senhor era uma das pessoas mais jovens das que
participaram na vigília da Capela do Rato. O senhor poderia contar um pouco sobre isso e
sobre sua vinculação à fé cristã, à Igreja católica?

FL: Sim, eu tinha acabado de fazer dezesseis anos. Eu não sou cristão, não tenho nenhuma
relação com a religião. Tinha muitos amigos cristãos que aliás tiveram um papel muito digno
e muito importante na luta contra a ditadura e em certa medida foi isso que me levou à capela.
A capela foi ocupada por um grupo de cristãos frequentadores da capela no dia 30 de
dezembro de 1972 à noite. E prolongou-se pela noite afora e por todo o dia seguinte, dia 31
de dezembro, uma assembleia popular, chamaríamos hoje, em que as pessoas entravam na
capela, falavam, e que se tornou um debate sobre a paz, ou seja, um debate sobre a guerra
colonial, que era o principal problema político em que a ditadura oprimia o país. E eu com
amigos do liceu, dois ... amigos, Miguel António Pereira, filho de Nuno António Pereira que eu
conhecia e cuja casa eu frequentava, e que é o Nuno que era na altura uma das figuras mais
importantes dos católicos de esquerda progressista, digamos, contra a ditadura e contra a
guerra. E portanto foi por ele que eu soube desta iniciativa e participei durante a tarde, durante
o dia nesse debate.

A polícia só interveio 24 horas depois de ter começado este processo, na realidade por ter
muito medo de o fazer, se fosse numa universidade teria atacado logo ou se fosse numa praça
pública teria atacado logo, mas era uma igreja. E criava devido a relações históricas da
ditadura com a Igreja católica uma situação muito difícil: a ditadura estava habituada que a
Igreja apoiasse a ditadura e não contestasse a ditadura. Mas já tinha havido alguns elementos
importantes, por exemplo o Papa tinha recebido os dirigentes dos principais movimentos de
libertação que estavam em guerra contra o exército colonial português, e tinha dados sinais
de que a emancipação dos povos africanos era bem vista por uma parte importante da Igreja.
E, portanto, esta iniciativa [a vigília] teve muita importância por causa disso: juntou pessoas
muito diferentes e decorreu nessas circunstâncias que o Nuno terá contado, a Conceição
Moira, enfim pessoas que tiveram um papel muito importante nessa iniciativa.

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EA: E àquela altura o senhor já tinha uma ampla consciência política do que estava a
acontecer?

FL: Sim, eu fazia parte de uma organização política contra a ditadura. Na verdade, muitos
jovens, embora com 15 ou 16 anos, tinham uma percepção de que a ditadura era uma forma
de opressão da liberdade, mas que a guerra colonial era seu destino. Porque nós quando
fizéssemos 18 anos tínhamos que entrar no exército colonial e, portanto, estávamos muito
próximos do momento em que teríamos de combater numa guerra... e disparar... e combater
numa guerra com nenhum sentido, que era uma mortandade, uma chacina dos povos
africanos, e também uma ameaça muito grande para todos os jovens que participavam nesse
exército. E a politização na Europa, o Maio de 68 francês, a luta contra a guerra no Vietnã,
tudo isso tinha feito a consciência de que as guerras podiam ser vencidas e que a paz podia
impor-se, a democracia podia impor-se sobre as ditaduras. Isto dava-nos muita confiança e
muita alegria também.

EA: Dos eventos que aconteceram durante a vigília, houve a leitura de cartas de pessoas em
guerra? Do que o senhor se lembra que foi feito como atividade lá dentro desse espaço
eclesiástico?

FL: O espaço foi ocupado por coisas muito diferentes, desde cantigas até intervenções,
alguns velhos advogados antissalazaristas intervieram, um advogado muito conhecido de
Lisboa naquela época, o Francisco Sousa Tavares, um velho monárquico democrático contra
a ditadura, fez suas intervenções, outros jovens dirigentes estudantis, tinha muita gente que
intervinha ali e lia uns poemas, lia uns textos, lia uns testemunhos.

EA: Então o Francisco Sousa Tavares, que na época ainda era marido da Sophia de Mello
Breyner, estava, o senhor se recorda se ela estava presente na ocasião?

FL: Não me recordo, não sei se estava ou não. Poderia ter estado mas eu não tenho certeza.

EA: De modo retrospectivo, observando hoje, houve diferença fazer a vigília na Capela do
Rato? Porque a anterior, a vigília de São Domingos, aconteceu na catedral perto do Chiado.

FL: Quando eu fui para a Capela do Rato não conhecia o processo anterior, de São Domingos.
Ele era bem conhecido mas eu para já tinha talvez catorze anos. Claro que os cristãos
democratas contra a ditadura conheciam muito bem esse processo. Estive preso com alguns
que eram homens muito mais velhos, o Francisco de Sousa Tavares, o Luiz Moita, o Francisco
Pereira de Moura, outras pessoas que na altura eram homens maduros e portanto conheciam
perfeitamente, tinham feito parte, tinham apoiado essa iniciativa. Foi mais localizada, durou
menos tempo, e a Capela do Rato teve um papel mais destacado, foi uma iniciativa muito
290
maior. Porque era no centro de Lisboa – bom, a outra também era –, mas era uma capela
muito conhecida entre os meios de católicos progressistas, muitos a frequentavam. É uma
capela pequena com uma disposição curiosa, quando eu entrei, na altura, minha memória é
que ela era de que era muito maior do que realmente, quando a vejo hoje, quando lá voltei.
Mas muita gente passava por lá e tinha uma grande prática de comunhão, de comunidade
cristã naquele movimento e, portanto, repercutiu-se imenso pela sociedade. E centenas de
pessoas passaram por lá durante aquele dia, durante aquela noite. Lisboa toda, toda a gente
que estava ativa, foi sabendo do acontecimento. E o prolongamento no tempo teve um enorme
efeito de confiança. A ditadura estava paralisada durante aquelas horas, não sabia o que
fazer, e isso deu-lhe uma dimensão muito grande.

Eu não tenho memória anterior, não sabia, não conhecia, mas eles certamente tinham
calculado, pensado, programado, combinado com os padres da capela até para protegê-los
de responsabilidade. Foi como se fosse sem eles saberem, mas eles sabiam e portanto
retiraram-se, deixaram a igreja, tudo aquilo teve uma grande preparação.

EA: E a figura do pároco Alberto Neto, o senhor pode comentar? Parece que no dia ele estava
doente e não foi? Mas foi um dos agentes que ajudou a articular o movimento?

FL: O padre Alberto era muito conhecido, era professor no ensino secundário, foi professor
de minha irmã, por exemplo, e de quando havia aulas de religião no curso oficial do ensino
público. Era um padre muito envolvido, muito generoso. Eu o conheci depois disso, era um
homem extraordinário, de uma simplicidade enorme, de uma grande generosidade e um
grande empenho. Ele sabia, queria que acontecesse, contribuiu para que acontecesse e
conspirou para que acontecesse aquela inciativa.

EA: Sobre o momento em que as forças policiais entram e começam a fazer as prisões o
senhor pode comentar? E se houve interrogatórios? Se o senhor foi levado? Se foi preso ou
interrogado?

FL: Todos dirão mais ou menos o mesmo. Todas as pessoas que lá estavam – eles fecharam
a rua, fecharam a capela e todas as pessoas que lá estavam foram levadas para uma
esquadra da polícia que era muito próxima da Capela do Rato, uns duzentos ou trezentos
metros no Largo do Rato. Aí as pessoas foram identificadas, cem, cento e cinquenta talvez,
não sei precisar exatamente quantas, e algumas, dezesseis, foram levadas à prisão de
Caxias, que é a prisão política de Lisboa.

EA: Como no caso do Nuno Teotónio Pereira?

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FL: Eu também fui para a prisão de Caxias. E aí é que foram feitos interrogatórios e as
pessoas foram identificadas. Alguns ficaram lá alguns dias, como eu, outros alguns meses,
como o caso do Nuno Teotónio Pereira, do Luiz Moita, ou seja, os mais velhos ficaram muito
mais tempo. Eu e alguns outros de minha idade ou um pouquinho mais velhos ficamos alguns
dias e fomos interrogados pelos agentes da polícia, os inspetores da polícia política, que era
a PIDE, a DGS (Direcção Geral de Segurança) na altura já chamava-se. Fomos interrogados
para saberem como é que tínhamos sabido, o que é que estávamos a fazer, que
responsabilidade tínhamos. No meu caso e dos outros, eu saí pagando uma caução, bastante
dinheiro, aliás, na altura era muito, e haveria um julgamento posterior mas que nunca ocorreu
porque veio o 25 de Abril e o processo acabou.

EA: Houve o caso dos funcionários públicos que perderam o trabalho, vi a defesa que
advogados fizeram. Poderia comentar se conseguiram recuperar suas funções?

FL: depois do 25 de Abril voltaram todos. O problema é que depois da prisão eles foram
demitidos dos seus cargos na função pública. Alguns eram funcionários públicos sem grande
destaque, mas no caso de um deles, o [Francisco] Pereira de Moura, ele era o mais importante
professor de Economia da Faculdade de Economia. E houve aliás um movimento muito
interessante de vários prêmios Nobel da Economia que fizeram um apelo internacional contra
a expulsão dele. Não porque o conheciam pessoalmente, mas porque sabiam que era um
economista destacado, um professor muito respeitado, e manifestaram oposição à ditadura
por causa disso. Na verdade, o prêmio Nobel de Economia tinha começado pouco tempo
antes, em 1969, estávamos em 72. Alguns grandes economistas norte-americanos e
europeus subscreveram esse apelo a favor do Pereira de Moura, que depois foi libertado e
naturalmente reintegrado na faculdade e depois até foi ministro dos primeiros governos
provisórios depois de a ditadura cair.

EA: Então, na altura em que aconteceu a vigília na Capela do Rato o movimento de combate
à ditadura e da libertação das colônias africanas já estava tão enraizado nos movimentos de
oposição que os católicos progressistas estavam em contato com os grupos de luta armada?

FL: Sim. Sabia-se, tinha-se consciência disso. Aliás, devo dizer que os católicos
progressistas, o grupo em torno do Luiz Moita e Nuno Teotónio Pereira, tinham a questão
colonial como sua grande prioridade. Eles editavam um boletim clandestino: BAC-Boletim
Anti-Colonial. E também atuavam na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos
(CNSPP), que era muito importante na divulgação da situação dos presos e da solidariedade
com eles e, portanto, ficava na fronteira da legalidade e da semilegalidade, reunindo
informações dos advogados e das famílias. Mas a sua atividade política era concentrada

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sobre a ideia da paz. E acabar com a guerra! E, dessa forma, proteger os povos coloniais até
porque sabiam muito bem que o fim da guerra seria o fim da ditadura.

EA: O que provoca no senhor relembrar esses eventos hoje?

FL: As memórias de cada um são diferentes. Para mim foi um fato político muito importante,
me parece que com dezasseis anos isso marca intensamente. Eu tinha acabado de fazer
dezasseis anos no mês anterior. E a PIDE era muito temida, a prisão de Caxias era muito
temida, portanto houve uma importância grande para mim. O acontecimento em si foi
importante para Portugal, foi importante para a luta democrática, foi importante para a luta
contra a ditadura. A Vigília da Capela do Rato foi um dos eventos de mais relevo naquela
altura, no contexto que alguns acontecimentos históricos têm quando olhamos para o
passado. Pequenos grandes acontecimentos históricos vêm para ajudar a mudar as
consciências, são alavancas que mudam o mundo.

EA: Sim. O fato de ter acontecido num espaço eclesiástico fez ter uma difusão maior do
impacto? E demorou mais tempo para a repressão acontecer?

FL: Sim, concordo. Exatamente.

EA: Muito obrigada pela entrevista.

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