Poema Desentranhado (Davi Arrigucci JR)

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Copyright © 1990 by Davi Arrigucci .Jr.

Capa:
Rita Aguiar Para Gilda e Antonio Candido
Foto de capa:
Acemo lconographia À memória de
Alexandre Eu/alio
Folha de rosto:
e
Grafite ele L1sar Segai! (1928),
gentilmente cedido pela família Segai! Cacas o

Revisão:
AQUISIÇAO POR COMPRA Man'rza Tronca
ADQUIRIDO DE~ Denise Pegorim

O1 MAR. 2010

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ArriglKd Júnior. D:wi 19·B-


Humillltde, p:.1ix:i<1emc1nt": ;11x~ia<k: M:1nud lk1ndeir;.1
/ l>.ivi Arrigun:i Jr. - Si'Jo Paulo : Companhi:1 d:1~ LI:-1ras.
1990.

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3
POEMA DESENTRANHADO

" O Brasil é um país achado. "


Prudente de Moraes, Neto,
Historinha do Brasil
Do diário de um Tupiniquim

1.

UM ACHADO

O pequeno "Poema tirado de uma notícia de jornal" indica ostensiva-


mente, pelo título comprido e explicativo, em contraste com seu reduzido
tamanho, a fonte e o método de que procede. Pressupõe que a poesia possa
ser tirada de algo; no caso, inesperadamente, de uma coisa tão cotidiana,
prosaica, heterogênea e fugaz como a matéria jornalística. Na sua forma des-
carnada e breve, feita de versos livres, tão irregulares e disc~epantes no per-
fil, espetados no corpo seco e abrupto - poema só ossos-, de algum mo-
do parece imitar o jornal de onde saiu:
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num
barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. 1

À primeira vista, novidade, brevidade, simplicidade coloquial, clareza


e objetividade na apresentação direta e impessoal dos fatos são traços da lin-
guagem jornalística que aí comparecem de forma nítida. A "matéria" toda

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parece ter passado pela necessária simplificação para virar notícia. A morte resposta compreensiva, como algo que agora lhe pertence ou diz respeito
inesperada de um pobre-diabo, logo depois de esbaldar-se, tem, pela nature- à sua intimidade pessoal.
za do assunto e dos dados escolhidos, o ar da ocorrência policial que tanto A exigência dessa resposta é como um desafio à interpretação crítica.
se presta ao sensacionalismo barato, comum em certo tipo de imprensa. O Antes, entretanto, de ensaiá-la é preciso reconstruir um longo percurso his-
recorte aparentemente arbitrário do caso, contado a seco, sem comentário tórico e teórico. Até os achados têm sua história. Comentá-la talvez possa
ou explicação, pode lembrar a falta de correlação entre as notícias tomadas abrir caminho para uma compreensão mais adequada e penetrante do modo
isoladamente, cujo destino é serem lidas e esquecidas, passado o choque da de ser do poema, em que se revela uma concepção da poesia e da prática
novidade ou tão logo surjam outras novas. E o conjunto pode ainda sugerir, poética, decisiva para a obra do poeta como um todo.
pelo aspecto visual, o esqueleto da diagramação de uma notícia na página
do jornal. Mas nada disso .funciona assim aí.
Raras vezes, Bandeira conseguiu tirar tanto de tão pouco. O seu achado UMA HISTÓRIA QUE VIROU NOTÍCIA
se tornou tão seu, que é difícil não reconhecer-lhe os traços inconfundíveis
do estilo pessoal, as características marcantes de um modo de conceber e Tal como foi transcrito, o "Poema tirado de uma notícia de jornal" apa-
dar forma à poesia que definem sua fase madura. Além disso, a total concen- receu em Libertinagem, na primeira edição de 1930, no momento de ade-
tração do poema, fruto de uma poda completa, gera uma extraordinária in- são mais clara de Manuel Bandeira ao ideário estético do Modernismo. Sua
tensidade do sentido, que só se expande, com essa máxima contenção. Um história, porém, começa antes, ainda na década de 20, quando a ordem do
duplo paradoxo: por um lado, do achado supostamente casual de uma maté- dia da vanguarda modernista era a irreverência como tática de combate, fa-
ria jornalística, impessoal e não poética, se faz um poema com a marca per- zendo da experiência de choque sobre o público um meio de abrir caminho
sonalíssima de um estilo e de uma poética; por outro, a simplificação da ma- para os novos valores.
téria achada, feita com suprema economia de meios, produz uma amplifica- Naqueles dias, a prática de ruptura da velha norma estético-literária con-
ção do sentido. sistia, entre tantas outras coisas, em traduzir "para moderno" ou "pra caçan-
O resultado é um grande impacto sobre quem lê: o fim abrupto, sobre- ge" (conforme o poeta chamou o "idioma nacional dos brasileiros") a lin-
posto a um instante de festa, instaura uma situação contraditória que instiga guagem poética tradicional. Na luta, se buscava ferir de morte a língua culta
a atenção, impondo-se à reflexão do leitor. O conflito e o desconcerto se dos puristas, em nome da realidade brasileira e da fala coloquial de nosso
irradiam à história toda dessa vida em resumo. Fica-se pensando no misté- povo, "porque ele é que fala gostoso o português do Brasil". Foi o que acon-
rio dessa vida humilde, afogada pela morte inexplicável após um momento teceu, por exemplo, durante "O mês modernista", espaço aberto para o mo-
de máxima exaltação. Na forma breve, se condensa um verdadeiro enigma vimento no jornal carioca A Noite, em dezembro de 1925. 2 Ali, podiam os
verbal, suscitando, retesado, as mais variadas representações. A contradi- novos tomar suas liberdades, e ali se estampou, pela primeira vez, o poeme-
ção se estende à relação com o jornal: ao extrair dele um texto, o poeta to, com seu ar de desabusada ironia, incluindo no jornal algo que se tirava
muda o seu sentido. Ao invés de aparar o choque, lança-o além. dele.
Tirado de uma notícia, o poema já não é notícia; não se esgota na in- Revezando com outros modernistas, Bandeira publicou diversos textos
formação sobre a morte singular de um joão-ninguém, expondo-a à curiosi- durante aquele mês propício, sempre com agudo senso da carga de poesia
dade pública momentânea. Ao contrário: arrancada ao tempo e às circuns- que pode haver nas piadas, contrariando a alta seriedade da herança parna-
tâncias fugazes que a transformaram em notícia, esta vira um caso ambíguo siano-simbolista que dominara sua concepção inicial do poético: "A ~ma das
num presente intemporal, recontando indefinidamente o instante final do minhas quatro ou cinco crônicas ·chamei 'Bife à moda da casa' [... ]" .3
destino dramático e inexplicável de um pobre-diabo, renovando sempre O poeta era então assíduo freqüentador do restaurante Reis, no velho
o convite à nossa compreensão. Um poema desentranhado, para nossa sur- centro do Rio, onde, à roda do prato de resistência, costumava reunir-se com
. presa, como uma semente, sempre capaz, em seu contido segredo, da pro- os amigos: Jaime Ovalle, Dante Milano, Osvaldo Costa, Germaninha Bitten-
digiosa germinação. court ... Na "mixórdia" que era aquele prato, cabia decerto até um "Poema
De algum modo, o poema busca assim a adesão do leitor, ferindo sua tirado de uma notícia de jornal", fragmento de uma "crônica" e achado co-
sensibilidade e imaginação, tendendo a gravar-se em sua memória. Na verda- mo um objet trouvé dos dadaístas, em meio à matéria mais heterogênea e
de, busca incorporar-se à própria experiência do leitor, pedindo-lhe uma prosaica do cotidiano, de repente transformada em matéria literária. Eram

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dias de vida boêmia, e apesar de todo o resguardo que tocava a um "tísico tividade, o mandamento de objetividade épica, determinando, pela nova re-
profissional", Bandeira descia do morro do Curvelo ao sorvedouro da Lapa lação entre sujeito e objeto, mudanças da zona de percepção de valores, da
e vizinhanças, à realidade misturada das "sarças de fogo" e das "paixões sem forma de apresentação no que diz respeito ao público, do tipo de imagina-
amanhãs", à vida pobre e corriqueira aos pés da Glória - o mundo de Oval- ção e da própria posição em face da realidade. Na verdade, implicava algo
le, onde a poesia se mesclava a um pouco de tudo. No Itinerário de Pasár- geral e, ao mesmo tempo, muito particular: uma abertura maior da vida do
gada, o poeta se refere à importância que teve "o espírito do grupo alegre espírito para a realidade presente de um país largamente desconhecido de
de meus companheiros diários naquele tempo" para a produção de muitos si mesmo e para a novidade de fatos palpáveis da existência material de todo
versos dessa época, que não teria escrito, não fosse isso, "apesar de todo dia, tal como afloravam chocantes no espaço modernizado das cidades, ecoan-
o modernismo" .4 do nas páginas do jornal.
A operação transformadora, de que resultou o poema, supunha uma mu- A fratura da antiga convenção poética coincidia com a brecha do novo,
dança profunda da atitude estética, pois tornava o poeta o ser capaz de ex- por onde os fatos do dia penetravam no universo da arte, exigindo um trata-
trair poesia de onde menos se espera. Ou como diria Bandeira numa crônica mento artístico igualmente renovado, que já encontrava pela frente uma for-
de anos depois, fazia do poeta "um sujeito que sabe desentranhar a poesia ma de organização dessa matéria na imprensa cotidiana. O jornal aparecia
que há escondida nas coisas, nas palavras, nos gritos, nos sonhos". 5 Ou ain- assim como um campo de exploração da nova percepção da poesia e ainda
da, mais genericamente: "A poesia que há em tudo, porque a poesia é o éter como espaço de mediação para a nova poética, entendida como uma nova
em que tudo mergulha, e que tudo penetra". Como "abstrator de quinta- atitude diante da obra a fazer.
essências líricas", o poeta devia estar sempre "atento a essa poesia disfarça-
da e errante" que pode haver em tudo e que, por isso, exigia dele uma atitu-
de constante de "apaixonada escuta" para dar com os "raros momentos" EIS A POESIA ESTA MANHÃ
em que pudesse desentranhá-la do mundo. 6 Desse modo, já não é o ser ex-
clusivamente voltado para si mesmo, na busca da expressão da pura subjeti- No âmbito internacional, já vinham de muitos anos, como se sabe, as
vidade, mas antes um sujeito que se entrega ao outro, num movimento de relações próximas entre a poesia e certos canais da modernização, como o
abertura para o mundo, de que deriva uma espécie de objetivação do liris- jornal e a publicidade, com suas atrações de réclames e affiches, com o mag-
mo: "O poeta muitas vezes se delicia em criar poesia, não tirando-a de si, netismo de anúncios e notícias onde a novidade dos fatos se confundia à
dos seus sentimentos, dos seus sonhos, das suas experiências, mas das mercadorias, estampando-se como vitrines nesse espaço comum das me-
'desgangarizando-a', como disse Couto de Barros, dos minérios em que ela trópoles do capitalismo ocidental, irradiando-se até um país periférico como
jaz sepultada: uma notícia de jornal, uma frase ouvida num bonde ou lida o Brasil. A verdade é que então a lírica se abria à novidade da experiência
numa receita de doce ou numa fórmula de toilette''. 7 do homem na cidade moderna.
Ao meter as mãos na matéria impura do mundo - ganga bruta de onde Em Paris, "capital do século x1x'', Baudelaire, no momento decisivo de
desentranhar o metal nobre e raro da poesia - o poeta se afastava de fato formação da lírica moderna, leva muito adiante a proposta romântica de liber-
da esfera elevada onde tradicionalmente se situava o poético; o nobre e raro tação da linguagem poética. Há muito tempo já, Victor Hugo afirmara que não
produto do espírito de alguma forma, para ele agora, jaz entranhado no chão havia diferenças entre as palavras elevadas e a linguagem cotidiana, mas nun-
do cotidiano. ca se havia ido tão longe nessa direção quanto o autor de Les fleurs du mal.
Uma tal atitude, cheia de conseqüências para os rumos da poesia brasi- Conforme apontou Auerbach, ele infringe toda idéia tradicional da dignidade
leira até hoje, seguramente tinha enormes implicações para diversos lados, do sublime poético, aproximando inesperadamente a poesia do terreno do
desde o início. Implicava, desde logo, a linguagem poética, na medida em prosaico, não apenas no poema em prosa, forma que ele ajuda a cristalizar após
que tornava possível perceber qualidade de poesia em formas lingüísticas si- os experimentos importantes de Aloysius Bertrand e Maurice de Guérin, mas
. tuadas num espaço muito além dos limites a que até então se restringia o até em esferas de máxima seriedade e elevação artísticas, como na do horror
discurso poético. A linguagem poética passava, por exemplo, a incorporar sem esperança que se mostra, por exemplo, no poema "Spleen". 8
de repente, em arranjos incomuns, lugares-comuns da língua falada. Mas im-
Quand te ciel bas et lourd pese comme un couvercle [... ].9
plicava também uma quebra de convenções mais amplas da literatura, como
a dos gêneros, uma vez que trazia para o universo da lírica, reino da subje- O prosaico baudelairiano (capaz de trazer o céu para o nível de uma

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tampa de panela) tem suas raízes precisamente no chão da cidade moderna, víduo recebe de si mesmo, ao se assenhorear de sua própria experiência,
na trivialidade do progresso, onde o poeta encontra por vezes o aroma sur- observa como os eventos de nossa vida interior não têm, por natureza, um
preendente da beleza resguardada no "bizarro" ou o encanto novo da feiú- caráter inelutavelmente privado, somente o adquirindo na medida em que
ra, a mistura de demoníaco e idealidade no grotesco ou no absurdo, portas diminuem as chances de se incorporar os acontecimentos exteriores à ex-
evasivas e chocantes contra a banalidade opressiva do real. 10 periência pessoal. O jornal representaria, exatamente, um dos índices dessa
Na dedicatória que escreve a Arsene Houssaye para os poemas em prosa diminuição no espaço da vida moderna. Seu fito seria o oposto, ou seja,
de Le spleen de Paris (1869), ao revelar a intenção de realizar alguma coisa o de impedir a incorporação à nossa própria experiência das informações
análoga ao Gaspar de la nuit, de Bertrand, aplicando-a, porém, à descrição que ele fornece. Aponta como os princípios da informação jornalística -
da vida moderna, escreve Baudelaire: novidade, brevidade, clareza e, sobretudo, a ausência de correlação entre
''Que/ est celui de nous qui n 'a pas, dans ses jours d 'ambition, rêvé as notícias, consideradas isoladamente - contribuem para esse efeito, lem-
le miracle d'une prose poétique, musica/e sans rythme et sans rime, assez brando ainda as observações de Karl Kraus, no mesmo sentido. 14 A barrei-
souple et assez heurtée pour s 'adapter aux mouvements lyriques de l 'âme, ra entre a informação e a experiência seria a mesma que impede ainda a
aux ondulations de la rêverie, aux soubresauts de la conscience? entrada dos acontecimentos noticiados no domínio da tradição, os quais,
"C'est surtout de la fréquentation des villes énormes, e 'est du croise- por isso mesmo, não serviriam como matéria-prima do narrador tradicio-
ment de leurs innombrables rapports que nait cet idéal obsédant [... )" . 11 nal, carreador da substância viva acumulada na memória das gerações. Apa-
No espaço da cidade, a poesia que se acerca do prosaico das ruas, desse rando os choques da novidade cotidiana, o jornal sustaria assim o processo
mundo de inumeráveis relações, dominado pelo movimento da multidão in- pelo qual um leitor poderia narrar um fato, se o tivesse assimilado à sua
forme, sempre infiltrada na visão baudelairiana, tem que conformar-se às ten- própria vida. Substituindo a forma tradicional da comunicação que permite
sões contrastantes, às ondulações, aos sobressaltos, aos choques a que se sub- ao narrador oral contar histórias, a predominância da informação seria um
mete o sujeito lírico. Deve-se perguntar como a poesia lírica poderia se fun- índice decisivo da degradação crescente da experiência no mundo moder-
dar sobre uma experiência em que o choque se tornou norma, afirma Walter no. Degradação responsável, igualmente, pela crise da comunicação na líri-
Benjamin, ao analisar a obra de Baudelaire. 12 O apelo ao leitor, no poema ca, conforme se verifica em Baudelaire e vai se acentuando nos modernos,
inicial de Les fleurs du mal, indiciava a dificuldade que, nos meados do sé- que, sintomaticamente, incorporam em seus versos os traços dessa relação
culo, a poesia lírica enfrentava diante do público: Baudelaire desejava ser com- problemática com o jornal, na qual se espelham as dificuldades da poesia
preendido e seu livro conhecerá o último sucesso de massa; no entanto, já na modernidade.
a essa altura a lírica só excepcionalmente mantém um contacto efetivo com Jules Laforgue, um dos pioneiros na utilização do verso livre e do poe-
a experiência do leitor. Esta havia se transformado em sua própria estrutura, ma em prosa, é também dos primeiros a incorporar citações de cartazes
e Benjamin busca justamente compreender a transformação por que passara de publicidade em seus poemas, como se pode ver pela "Grande complain-
a experiência do "hypocrite lecteur", com que o poeta sem disfarce se iden- te de la ville de Paris", que traz o subtítulo significativo de "Prose blan-
tificava, na abertura de sua obra. Encontra então no jornal um dos indícios che", em sua irônica aproximação desse mundo prosaico e heterogêneo,
daquela alteração profunda, que no momento do despertar da modernidade
onde o bombardeio dos fatos não atinge a interioridade privada de quem
já definiria os rumos futuros da lírica na direção que aqui importa.
os lê :
A questão co!ocada por Benjamin se baseava com certeza nas mudanças
fundamentais ocorridas na vida mental dos indivíduos nas metrópoles do Bonnes gens qui m 'écoutez, e 'est Paris, Charenton compris. Maison fondée en ...
mundo moderno, com o avanço do capitalismo e as transformações da exis- à louer. Médailles à toutes les expositions et des mentions. Baíl immortel. Chan-
tência material, mudanças apontadas também, com extrema precisão crítica, tíers en gros et en détail de bonheurs sur mesure. Fournísseurs brevetés d 'un
por Georg Simmel, num estudo famoso do princípio deste século. 13 Benja- tas de majestés. Maison recommandée. Prévient la chute des cheveux. En loté-
ries! Envoie en province. Pas de morte-saison. Abonnements. Dépôt, sans ga-
.min aproxima a noção de experiência da duração bergsoniana, tal como apa-
rantíe de l 'humanité, des ennuís les plus comme il faut et d 'occasion . Facilítés
rece em Matiere et mémoire, e, levando em conta a crítica implícita de Proust
de paiement, mais de l'argent. De l'argent, bonnes gens/ 15
a Bergson, também da noção de memória involuntária no romancista, em
contraste com a memória voluntária, dependente da inteligência. Comen- No avanço desse processo, foi decisiva a reconhecida contribuição dos
tando o puro acaso que regeria, segundo Proust, as imagens que um indi- poetas do Esprit Nouveau, no raiar do século. Assim é o caso de Guillaume

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Apollinaire que, cansado "de ce monde ancien" e atento à nova experiência tas vezes tenho vontade de fazer isso com certos "fedivers" como você es-
que se colhe no movimento das ruas da grande cidade, registra nos versos creveu tão engraçado . Aliás nos 19 poemes élastiques tem um exemplo dis-
so não se lembra? Não sei que outro, parece que dadaísta, Aragon ou Sou-
livres de "Zone", de seu livro Alcools (1913), a poesia dispersa que se estam-
pault, tem também um poema desses. Eu, duma feita fiz um lindinho poema
pa nas imagens da manhã:
dadaísta "Parlons peinture" copiando na íntegra o sumário dum número do
Tu /is les prospectus les catalogues les affiches qui chantent tout haut Bulletin de la vie artistique que não sei quem mandou de Paris" . 19
Voilà la poésie ce rnatin et pour la prose il y a les journaux 16 De fato, entre os 19 poemes élastiques de Cendrars, se encontra o poe-
Mas é o caso de Blaise Cendrars que aqui sobretudo interessa, dados os ma "Derniere heure", datado de janeiro de 1914, ao que parece extraído di-
contactos diretos que com ele teve a vanguarda modernista brasileira, exata- retamente do Paris-Midi. A novidade da poesia de Cendrars naqueles anos
decerto não poderia passar despercebida dos brasileiros, alguns dos quais
mente na época em que foi composto o "Poema tirado de uma notícia de
trabalhavam em direções próximas às dele, como era o caso de Oswald. Além
jornal".
disso, a presença física do inquieto poeta franco-suíço entre nós só faria in-
Numa carta de 1925, Prudente de Moraes, Neto, conta a Mário de An-
tensificar o contacto com aquela obra marcada pela experimentação de no-
drade como, plagiando Oswald de Andrade e O Globo, isolou "umas frases
vos caminhos, obra que parecia encarnar na pesquisa estética o mesmo mo-
de um fediver" e tirou pronto do jornal um poema, intitulando-o "Sui-
vimento da paixão pela viagem que siderava o autor de Du monde entier.
cídio": A grande repercussão de sua presença no Brasil foi admiravelmente re-
Aquela janela fatídica construída por Alexandre Eulalio, no livro A aventura brasileira de Blaise
que se abre ao lado da mesa do identificador Cendrars. Em diversos textos ali recolhidos, se pode entender em profundi-
olha entre as árvores para a praça Tiradentes dade o que significou para a poesia modernista esse contacto importante com
e já deu passagem a três desesperados as novas tendências poéticas européias. Ali se registram os pontos fundamen-
tragicamente tais da leitura crítica que os brasileiros fizeram de Cendrars, e por eles se po-
O acusado aguardava sereno de compreender o que realmente deve ter interessado na novidade vinda
ao lado dos companheiros de fora, o que repercutiu internamente e talvez se tenha incorporado de for-
o momento das declarações ma substancial à nossa própria tradição moderna, de que é um dos marcos
o poema de Bandeira.
O investigador chamou José Ferreira de Melo! mostrando uma cadeira

José Ferreira de Melo sentou-se


respondeu a todas as perguntas O POETA É NOTÍCIA: CENDRARS NO BRASIL
depois assignou com mão trêmula uma ficha
deu um salto Oswald de Andrade é dos primeiros entre nós a saudar a novidade que
e precipitou-se pela janela do cartório. 17 representava a literatura de Cendrars, num artigo do Correio Paulistano, de
As semelhanças com o poema de Bandeira são evidentes, tanto do pon- fevereiro de 1924. Aponta nele a "sensibilidade contemporânea", o· olhar
to de vista temático, quanto por traços de linguagem e aspectos técnicos da do viajante que atravessa os trópicos e as cidades, que recorta "quadros mo-
construção, sem falar no vínculo análogo com o jornal. As diferenças, essen- dernos", numa "prosa aguda, telegráfica", em que a descrição, "cinemato-
ciais, que implicam também discrepâncias de qualidade, exigiriam análise de- gráfica, precisa", "abandona todo o verbalismo''. 2 º
tida, que não convém fazer agora. Entretanto, o comentário explicativo de "'Blaise Cendrars explodiu de madrugada em nós", afirma Mário de An-
Prudente ajuda a esclarecer a tendência da época que estava na base de am- drade ao tentar mostrar como a técnica de associação de imagens sem trava
bos. os poemas e se difundia entre os modernistas: "Senti que era quando intelectual teria sido uma lição cendrarsiana para ele e, sobretudo, para Luís
li a n.otícia e não tive descanso enquanto não 'fiz' isso. Processo que o Os- Aranha, que a teria convertido em princípio básico de sua própria poética,
valdo emprega às vezes mais (sic) saiu diferente do Osvaldo. Ele faz mais ca- a partir da descoberta dos 19 poemes élastiques. 21
ricatura" .18 Em resposta a essa carta, no mesmo mês de novembro de 1925, No longo artigo que dedicou ao poeta visitante, na Revista do Brasil,
Mário comenta, com aprovação, o achado de Prudente. E acrescenta: "Mui- em março de 1924, Mário faz finas observações sobre a poética de Cendrars,

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frisando aspectos tanto de sua prosa quanto de sua poesia, que vê ainda sob nitiva do "Poema tirado de uma notícia de jornal", tal como surgiu em mea-
o signo de uma continuidade do Impressionismo. dos da década de 20.
Ao distinguir o pontilhismo de sua prosa do de Signac ou de Previati, Em janeiro-março de 1925, Mário retoma o comentário crítico da obra
nota sua técnica de composição por justaposição e síntese, em rapidez cine- de Cendrars, num artigo da revista Estética, debruçando-se sobre as Feuilles
mática, capaz de criar a impressão de vida intensa, por uma espécie de "ultra- de route (!. Le formose) e L 'Or, com um olhar mais acerado e de ponta mais
realismo de objetivação dramática", combinando a secura de expressão a uma restritiva que da primeira vez. Louva, como princípio estético pessoal, o es-
"ingenuidade primitiva, voluntariamente pobre" .22 forço para se tornar simples, mas chama a atenção para os riscos de confu-
Quanto aos poemas, cuja expressão definitiva teria se firmado no decê- são entre o simples e o banal em que às vezes Cendrars incorreria. Reconhe-
nio de 1910-1920, procura mostrar como se aproximam da fonte psicológi- ce "uma humildade poética emocionante" em Le formose, conseguida com
ca de um lirismo puro, pela exposição do subsconsciente, numa espécie de "pobreza de efeitos, nudez absoluta, ingenuidade coitada que Kodak já pre-
simplicidade sincera e sóbria, que atinge um efeito de realismo ou mesmo nunciava"; desconfia, porém, da validade, para a época, desse "primitivis-
ultra-realismo, mediante o encadeamento de realidades, comoções, lembran- mo absoluto". A restrição ao primitivismo se transforma, por fim, numa crí-
ças num todo harmonioso e coerente, obtido por essa ordem misteriosa das tica do lirismo puro, louvado anteriormente, mas agora confrontado com
associações inconscientes. Cendrars teria, assim, chegado a um "ascetismo a necessidade de arte: "Por isso estou inclinado a ver em Le formose mais
de expressão", tendendo a um poema de poucas linhas, esquemático, livre um livro de lirismo que um livro de poesia propriamente. Poesia é uma arte.
de toda retórica que não fosse a própria sistematização dos meios expressi- Toda arte supõe uma organização, uma técnica, uma disciplina que faz das
vos individuais, senhor de um verso livre rápido, elástico e certeiro, ponto obras uma manifestação encerrada em si mesma" . O abandono de Cendrars
culminante desta técnica poética. O resultado, na visão de Mário, é a "ma- à realidade das sensações, o impressionismo do poeta viajante, já não lhe pa-
neira direta de expressar a naturalidade irresistível, como inconsciente", dan- rece mais, portanto, bom companheiro de rota. 2 6
do a impressão de um "mundo apanhado do vivo, concreto", como se fosse
naquele momento a "poesia mais representativa da Babel universal".
Vê, por fim, no poeta visitante não um modelo a imitar servilmente, mas BANDEIRA LP CENDRARS
um companheiro de viagem capaz de facilitar o óminho para uma poesia
"livre, forte, vibrante, audaz e colorida" entre nós. 23 Manuel Bandeira relembrou, em 1957, num artigo do]ournal Français
Em setembro de 1924, Sérgio Buarque de Holanda publica, na revista du Brésil, as leituras da poesia e a figura insólita do poeta, com a manga esvoa-
Estética, uma breve resenha de Kodak, tentando caracterizar a modificação çante sem braço dentro e com seu gosto das "deliciosas mentiras", frisando
nos processos de Cendrars. Comenta, com alguma perplexidade, um certo a influência que teria exercido sobre o Oswald de Pau-Brasil e todo o efeito
"objetivismo lírico" do poeta, tornado então mais modesto e próximo à rea- que causou nos modernistas de São Paulo, antes mesmo de aqui aportar com
lidade: "]'ai le sens de la réalité, moi, poete" .24 a bagagem de Paulo Prado, em 1924. Pessoalmente, confessa então ter sido Cen-
Em abril de 1925, novamente na Revista do Brasil, Sérgio Milliet, drars que levantou nele "o gosto da poesia do quotidiano'', estendendo a lição
referindo-se às "notações rápidas e cinematográficas" de Feuilles de route, aos companheiros de movimento: "E foi sem dúvida de Cendrars também que
aponta a semelhança de técnica com Kodak, "pela mesma maneira direta e veio em grande parte o gosto dos poetas modernistas pela poesia do prosaico
quase seca de apresentar a emoção", resultando na "síntese absoluta" de uma cotidiano. E quem sabe se ainda o gosto pelo poema-piada?". 27
" simplicidade corajosa". Opõe, por isso, essa concepção de poesia de Cen- No Itinerário de Pasárgada, anos antes, Bandeira já afirmara que esse
drars ao " classicismo" de Valéry, cujo espírito de geômetra parecia buscar gosto pelo "humilde cotidiano" lhe teria vindo não propriamente de uma
a obra-prima com a ajuda de arqueologia e abstrações, "como se a vida quo- intenção modernista, mas dos tempos de sua moradia no morro do Curve-
tidiana e chã não fosse poética e sublime em si" .25 lo, do convívio com a gente pobre que ali vivia, de uma experiência da
Fica evidente até aqui como esse conjunto de observações críticas da rua , de uma poesia dispersa num mundo ao rés do chão , em anos decisivos
poesia de Cendrars, cheias de pontos em comum, mesmo quando se nota para a formação de sua obra madura. 28 Compreende-se a contradição por-
diversidade na concepção geral de cada crítico (como no caso da ênfase psi- que a questão é complexa e envolve diversos lados, não dependendo ex-
cologizante no conceito de lirismo puro de Mário) , tem a ver provavelmente clusivamente de nenhum , mas da interação da personalidade do poeta com
com o modo de conceber, com os meios técnicos e a própria forma defi- o contexto total, que não implica apenas a tradição literária, mas também o

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amálgama da experiência existencial, carreando elementos psicológicos, so- te. É claro que o contacto direto com uma poesia como a de Cendrars, assim
ciais e culturais no sentido mais amplo. como a repercussão dela e de outras manifestações da vanguarda européia
O Bandeira que então leu a poesia de Cendrars, pela mão do amigo Ri- no meio literário brasileiro - estímulos poderosos para a criação poética nos
beiro Couto, é o morador pobre e solitário do morro do Curvelo, poeta já rumos do futuro-, só podem ter fortalecido e direcionado a tendência da
bastante experiente nos ossos do ofício, portador da herança simbolista e poesia de Bandeira num sentido semelhante, embora, no essencial, claramente
das inquietações modernas do tempo. Em janeiro de 1961, num artigo por distinto tanto em relação ao contexto brasileiro mais próximo, quanto no
ocasião da morte de Cendrars, já então um pouco esquecido, Bandeira re- que diz respeito à tendência internacional que a obra de Cendrars tão bem
lembra de forma breve, porém incisiva, a significação histórica daqueles versos encarnava.
inovadores que fizeram época, apontando, com extrema agudeza crítica, o A questão essencial está justamente na forma orgânica com que Bandei-
fundamento de sua novidade: "A sua poesia impressionava então violenta- ra conseguiu integrar ao desenvolvimento coerente de sua obra e às suas ne-
mente pela mistura do épico e do lírico: ao mesmo tempo que representava cessidades expressivas mais fundas as novas tendências da poesia moderna,
a vida moderna no que ela tinha de mais novo e mais chocante, sabia confi- dando-lhes um tratamento pessoal e até certo ponto único.
denciar os s.entimentos mais íntimos do seu autor. Cendrars era um possuí- Mário foi provavelmente o primeiro a apontar esse feito, anos mais tar-
do da vida moderna". E mais adiante: "Lembro-me nitidamente do fervor de, ao reconhecer no "Poema tirado de uma notícia de jornal" um dos poe- -
com que líamos e relíamos os versos, tão surpreendentes para nós, de Les mas mais intensos e particularmente bandeirianos, apesar de limitado, na apa-
Pâques à New York, Prose du Transsibérien e Le Panama ... Versos que ho- rência, ao registro de um fato, pois nele apenas se "conta sem comentário
je não me satisfazem mais, mas que naquele tempo punham em meu coração um caso''.3 1 Entendeu que o poeta, ao se "inspirar" numa notícia ou num
um frêmito novo ... ". 29 drama da vida real, na verdade conservava a "fluidez" originária das pala-
Esses dois trechos de documento e crítica, notáveis também por seu ca- vras. Por meio dela, podia realizar de forma concreta o "estado estético"
ráter lapidar de prosa límpida e lúcida, são suficientes para demonstrar a pro- em que se colocou, após ter percebido com "intensidade dinâmica criado-
fundidade da leitura que Bandeira fez da poesia cendrarsiana. Apanham real- ra" o fato. Além disso, podia propiciar esse " estado de poesia" ao leitor, co-
mente aspectos fundamentais, pois caracterizam o núcleo da poética que tanta mo uma efusão lírica capaz de suscitar "transferências intuitivas" para den-
importância teve para a definição dos rumos da poesia moderna na década tro da própria experiência de quem lê o poema.
de 20: a matéria nova e chocante, cujo caráter jornalístico e prosaico marca- Instigado por essa noção de uma fluidez "musical" da linguagem neces-
va o deslocamento da noção de poético; o tratamento novo e também cho- sária à poesia, próxima da noção atual de ambigüidade poética, Mário toca,
cante dessa matéria, que implicava a mescla de gêneros, a liga entre o épico indiretamente, em aspectos paradoxais e profundos da forma poética de Ban-
e o lírico, com a nova posição do sujeito, capaz de confidenciar emoções deira, tal como se configura no poemeto. É que, ao observar o poder que
íntimas, aparentemente desaparecendo do primeiro plano . Notícias de jor- o poema tem de suscitar forte ressonância na experiência do leitor, levanta
nal, fragmentos de conversa ou de escrita telegráfica constituíam os mate- também a questão funda da dificuldade de recepção da lírica moderna, co-
riais preferenciais dessa abrupta simplificação da matéria poética. O objeti- mo veio se mostrando desde Baudelaire. Com isto, envolve ainda a relação,
vismo lírico fundava um modo paradoxal de dar forma, como se nota pela neste caso básica e problemática, entre o poema e o jornal.
aparente contradição dos termos que definia essa voluntária pobreza do tra- O tratamento poético da notícia opera sobre.uma contradição essencial:
tamento artístico. Matéria e forma novas, naqueles anos, que poderiam mui- retira o resumo do destino singular de um pobre-diabo do universo da infor-
to bem caracterizar o achado do próprio Bandeira no "Poema tirado de uma mação jornalística, para transformá-lo na síntese de uma experiência huma-
notícia de jornal''. na, densa e complexa, mediante a forma poética. E assim fica ecoando no
Fazia muito tempo que vários fatores da formação pessoal de Bandeira universo de representações do leitor. Um destino singular, virado notícia,
pareciam encaminhá-lo na direção de um crescente despojamento formal, é resgatado com força significativa de valor geral, que se impõe à compreen-
de uma simplicidade natural como meta de estilo . Desde A cinza das horas, são do leitor. O choque violento da morte inesperada, afogando toda uma
em 191 7, o olho crítico de João Ribeiro pudera detectar a marca da novida- vida no mistério, deixa de ser aparado pela notícia sensacionalista; irradia-se
de bandeiriana nesta "volta à simplicidade e ao natural" .3° Mas é na década no leitor com o poder de revelação. A complexidade de um destino e tudo
de 20, quando se delineiam os traços principais de sua obra madura, que a o que ele envolve se condensa numa forma simples, desentranhada do jor-
busca de soluções formais no sentido da simplificação se acentua fortemen- nal para ironicamente contradizê-lo.

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É preciso penetrar mais fundo no poema para se compreender essa pas- estendido também aos ritmos mais livres e à musicalidade encantatória do
sagem de um caso singular a uma forma significativa de valor geral. Nela resi- verso simbolista. Até chegar, mais tarde, por uma "prática de aproximação",
dem provavelmente as implicações maiores da poética que aí se exprime, começada por volta de 1912, ao verso livre.3 2 Do mesmo modo, foi aban-
cifrada na simplicidade com que se desentranha o sublime do mais prosaico
e humilde cotidiano.
donando as tintas deliqüescentes e crepusculares do penumbrismo,
~- __._- da vaga
esteira pós-simbolista, em face das inquietações da sensibilidade moderna,
despojando-se aos poucos do "gosto cabotino da tristeza", para terminar na
2. recusa radical de todo "lirismo que não é libertação". O ritmo dissoluto, pu-
blicado na edição das Poesias, em 1924, marca o momento decisivo dessa
O TÍTULO E A MATÉRIA transição, como o próprio poeta o reconheceu e esse título atesta, preparan-
do a efusão modernista de Libertinagem, em 1930.
Um dos modos de se fazer uma leitura analítica do "Poema tirado de Mas já em meados da década de 20, como se nota pelo poema em estu-
uma notícia de jornal" é começar precisamente pela analogia com o jornal
do, o processo está bem adiantado no rumo da nova poética. Sua direção
que, desde o título, chama tanto a atenção.
principal parece ter sido a de um acercamento a uma matéria heterogênea
Já se observou como o próprio título está posto em destaque, em parte
e prosaica como era a do jornal, matéria bruta e impura, constituída de fatos
porque é longo, em contraste com o corpo do poema tão breve, mas em
até então considerados não poéticos. Com ela, no entanto, o poeta molda
parte também porque explicita, de modo ostensivo, o vínculo de origem num
o verso livre, forma limítrofe com a prosa, e dela extrai os temas corriquei-
contexto novo, onde esse vínculo é inesperado, dado o seu caráter absolu-
ros a que tão bem se casam as palavras simples de todo dia - ideal de lingua-
tamente prosaico. É o que não se pode deixar de notar pelo tom trivial da
gem que se firma doravante, acompanhando a nova descoberta. Pode-se di-
explicação que ele contém, indicando a fonte da poesia e sugerindo, para-
zer, portanto, que a descoberta da nova matéria, correspondendo a uma ten-
doxalmente, ao leitor, num banho de água fria, a expectativa de um poema
dência ascética de simplificação, para que tantos fatores internacionais, na-
feito de matéria não poética. O choque da novidade, tão característico do
jornal, vem materializado, assim, na própria linguagem com que se anuncia cionais e pessoais se combinavam, era também a descoberta ou invenção de
de forma insólita o poema. É o que se vê, sobretudo, pelo emprego de um temas, procedimentos e linguagem novos. E ainda muito mais: o achado es-
particípio como "tirado", corriqueiro e tão próximo da materialidade banal tético era também o achado de um país, pois equivalia a um modo de tratar
do ato que exprime, que soa como um golpe baixo em toda expectativa de esteticamente uma visão do Brasil.
elevada inspiração poética. Nesse momento, que é exatamente o do poema em questão, Bandeira
Essa entrada direta e abrupta no terreno de um discurso não organizado parece muito próximo de Oswald de Andrade e sua concepção do poema
artisticamente como o do jornal, devia ser, na época, ainda mais chocante, "pau-brasil", forma simplificada, de síntese fulgurante, capaz de fixar, atra-
uma vez que, pelos padrões estéticos então dominantes, o discurso poético vés de uma drástica redução alegórica, um retrato da contraditória realidade
era tido como o espaço da máxima diferenciação com relação à prosa co- nacional, apanhada sobretudo na confluência desencontrada de primitivis-
mum. As noções de poesia que predominavam entre nós eram, sabidamen- mo e modernismo.
te, as da tradição parnasiano-simbolista. Antes de mais nada, a semelhança da matéria que Bandeira encontrava
A poesia, produto nobre do espírito, dependia de uma idéia elevada de numa página de jornal ou que Oswald registrava em instantâneos telegráfi-
inspiração, de um vocabulário escolhido e raro, de temas antecipadamente cos do Pau-Brasil, em 1925, parecia derivar do movimento comum e mais
poéticos, de um desgarramento idealista de toda referência à realidade ime- amplo da consciência poética e crítica dos modernistas em função da reali-
diata, aspirando à pureza da linguagem da música, conforme a herança do dade histórica particular do país, que então nela aflorava como numa redes-
Simbolismo. Por outro lado, a idéia mais clara de poesia então corrente era coberta e, por isso mesmo, impregnada de um entusiasmo que não arrefecia
ainda a do soneto parnasiano, com suas regras estritas de versificação, seu nem mesmo diante dos aspectos negativos com que vinha marcada, ao se
. fascínio do mundo greco-latino, sua retórica altissonante, seu culto do mate- considerar o seu atraso. Embora o tratamento que cada um dá a essa matéria
rial nobre e da palavra escultórica. seja, no mais fundo, muito diferente, em ambos, a redescoberta entusiástica
Bandeira já havia passado por tudo isso, como se pode constatar pela permite o reconhecimento de uma poesia nos fatos, como se estes estives-
fase inicial de sua obra, em que a técnica parnasiana do verso medido foi sem imantados, em si mesmos, por sua novidade, de um potencial de sur-
habilmente assimilada e superada por excepcional domínio do ofício, logo presa estética. Isto fica patente, por exemplo, desde a abertura do "Mani-

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festo da poesia pau-brasil" que Oswald lançou em março de 1924, valendo ria e do procedimento oswaldiano foi agudamente pinçada por um crítico
perfeitamente também para o achado de Bandeira: "A poesia existe nos fa- recente do poeta, Roberto Schwarz: "A sua matéria-prima se obtém mediante
tos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabra- duas operações: a justaposição de elementos próprios ao Brasil-Colônia e
lino, são fatos estéticos" .33 ao Brasil burguês, e a elevação do produto - desconjuntado por definição
A exigência de invenção, logo em seguida posta por Oswald, parece se - à dignidade de alegoria do país. Esta é a célula básica sobre a qual o poe-
satisfazer literalmente, no puro achado da matéria bruta, quando captada a ta vai trabalhar. Note-se que a mencionada contigüidade era um dado de
partir de um "estado de inocência" ou ingenuidade primitiva, com a "ale- observação comum no dia-a-dia nacional, mais e antes que um resultado
gria dos que não sabem e descobrem". Sabe-se muito bem os limites de toda artístico, o que conferia certo fundamento realista à alegoria, além de expli-
ingenuidade, ainda mais num primitivo desta nova era. Apesar das críticas car a força irresistível da receita oswaldiana, um verdadeiro 'ovo de Colom-
que logo recebeu, como as de Drummond, já em dezembro de 25, pareci- bo' na acertada expressão de Paulo Prado. A nossa realidade sociológica
das, aliás, às que se fizeram a Cendrars, a poesia "pau-brasil" de Oswald está não parava de colocar lado a lado os traços burguês e pré-burguês, em con-
longe de se reduzir pura e simplesmente à matéria bruta, estilizando sempre, figurações incontáveis, e até hoje não há como sair de casa sem dar com
através do corte e montagem das imagens descontínuas, os fatos, até obter elas". 3 5
a sua radical condensação "em comprimidos, minutos de poesia", de que O tratamento que Oswald dá às imagens de mazelas e atrasos, gritantes
falava Paulo Prado, no prefácio do livro de 25. Ao desentranhar o seu acha- nos contrastes da realidade nacional, assume uma surpreendente feição "oti-
do, Bandeira modifica-o profundamente, como já se sugeriu e se mostrará mista, até eufórica", que se transforma em alvo da crítica ideológica do cita-
pela análise, estilizando-o também no sentido da simplicidade natural que do crítico. Este a vê como um traço do comprometimento da estética "pau-
é a sua marca de fábrica. Mesmo quando, em ambos, o procedimento de cons- brasil", em seu esforço para conferir relevância ao país, inserindo a expe-
trução está muito próximo da colagem cubista, o recorte analítico e a reor- riência local no plano da cultura dos países centrais, com o "progressismo
ganização do fragmento em um novo contexto indicam o evidente esforço conservador da burguesia cosmopolita do café". A proposta de um olhar ino-
de estilização. cente, tão enfatizada por Oswald, acabaria então, fascinada pela pura pre-
De qualquer modo, porém, o fascínio que ambos os poetas revelam pe- sença das figuras, suprimindo-lhes muito da força contraditória e da negati-
la matéria tomada, à primeira vista diretamente, da realidade brasileira, é um vidade, perdendo-se um pouco na irrealidade e no infantilismo, que só o tom
resultado do deslumbramento que a redescoberta do país produz na cons- de piada constante redime, em sua alta qualidade poética.36
ciência histórica do Modernismo, em meados da década de 20. Era um país Bandeira confere um tratamento distinto a uma matéria em tudo muito
redescoberto no seu dia-a-dia, atravessado pelas contradições e desconcer- parecida a essa de Oswald, nesse momento. Para o reconhecimento crítico
tos do desenvolvimento econômico-social desequilibrado, onde o avanço dessa diferença tão relevante, é preciso penetrar fundo na tessitura do poe-
do processo de modernização se chocava com vastas zonas de atraso, em- ma em que a semelhança se espelha. Desde logo, esta se acha bem visível
perradas desde sempre, de forma que pontas contrastantes de sua história, na própria situação que marcou a publicação desse texto bandeiriano .
aliás malcontada, saltavam aos olhos, em misturas e interpenetrações pecu- No contexto onde surgiu, em 1925, no jornal A Noite, o "Poema tirado
liares do mais primitivo ou tradicional com o mais moderno. O país do "mo- de uma notícia de jornal" fazia parte, muito significativamente, de uma "crô-
dernismo atrasado" a que se referia Oswald de Andrade, num artigo de 1924, nica" da vida brasileira, junto com outros textos: "Lenda brasileira"; "Dialeto
sempre atento aos descompassas que a junção do mundo pré-burguês com brasileiro"; "História literária"; "Estilo"; "Trecho de romance" e "Sonho de
o burguês determinava.3 4 O processo de montar imagens descontínuas, tão uma noite de coca". Em todos eles, é clara a preocupação com a literatura, a
importante para várias tendências da vanguarda européia e norte-americana língua falada e a realidade do país, aludidas na irreverência irônica do título
- desde a immaginazione senza fili dos futuristas, dos papiers collés dos geral, "Bife à moda da casa", expressão trivial da linguagem cotidiana, tirada
cubistas, da montagem surrealista ou das fieiras de imagens concretas dos diretamente, como se viu, da experiência boêmia do poeta, com seu fermento
imagistas e dos ultraístas - encontrava, sob a visada tão cinematográfica de libertário e seu toque de humor dissolvente. Não é à toa que no "Sonho de
. Oswald, uma base real, bem concreta e próxima, nas descontinuidades con- uma noite de coca", um suplicante implora, com descaramento cômico, pelo
trastantes da própria realidade brasileira. Da reorganização dos fragmentos "pó nosso de cada dia". Algo dessa dissolução que pode lembrar ainda a vida
em atrito no âmbito do poema "pau-brasil", surgia a chispa generalizante boêmia, também está presente no "Poema tirado de uma notícia de jornal":
da alegoria, alastrando-se em imagem total do país. A natureza dessa maté- a bebedeira que precede o afogamento de João Gostoso e que parece um

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desdobramento coerente do seu nome e dos traços com que se delineia a Nesse impressionante jogo de espelhos, de semelhanças, lembranças e
sua existência de marginal ou malandro carioca. evocações, fica muito clara a matéria comum sobre a qual trabalhavam os
Mas outras afinidades sutis ligam em profundidade os textos da crônica. escritores modernistas, no seu aproveitamento culto do material populares-
No ''Trecho de romance'', mais tarde incorporado à Estrela da manhã, com co, com intenções parecidas de simbolização, buscando, através de uma ex-
o título de "Conto cruel", uma criança implora a "Meu Jesus-Cristinho" pe- periência coletiva, imagens reveladoras da realidade multifacetada do país.
lo pai moribundo, e obtém como resposta só as palavras do narrador: "Mas Sob um tipo de herói como Joaquim Bentinho parece encontrar-se o mesmo
Jesus-Cristinho nem se incomodou". O diminutivo da linguagem afetiva in- arquétipo do aventureiro astucioso, cujos traços de comicidade popularesca
fantil, reproduzido mecanicamente pela voz do narrador, toma assim a fei- foram detectados por Antonio Candido no "romance malandro" de Manuel
ção de uma tirada de humor negro, misturando à seriedade dramática da si- Antônio de Almeida e na figura simbólica de Macunaíma, ambos lembrando
tuação a dissonância de uma comicidade irônica e cruel, desforra lírica ao a figura do "trickster imemorial" ou a fisionomia de cert()S heróis populares
mesmo tempo contra o destino implacável, como no ''Pneumotórax'', e con- como Pedro Malasarte, tão presente na obra de Mário de Andrade.39 No ca-
tra a ineficácia do apelo religioso. so da "Lenda brasileira", os ecos dessa tradição parecem igualmente presen-
Noutro texto, "Lenda brasileira", depois também incluído em Liberti- tes, sobretudo quando se considera que Bentinho Jararaca parece a contra-
nagem, a historieta de Bentinho Jararaca, que tem o cano de sua espingarda parte rural, cômica e folclórica, do malandro urbano que é o João Gostoso
de caça comido "devagarinho" pelo demônio, aparecido sob a forma da ex- do "Poema tirado de uma notícia de jornal".
pressão popular do Cussarui, corruptela de "coisa-ruim" por diabo, é um O tratamento cômico-sério é comum a todos os textos dessa "crônica"
caso folclórico de sabor claramente pré-macunaímico. Parece ainda anteci- brasileira, "Bife à moda da casa''. Certamente algo da comicidade cruel e ir-
par as narrativas exemplares de Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas, tra- reverente dos demais fragmentos contamina também a historieta de João Gos-
tando das artimanhas do demo. O nome do personagem junta, com graça toso, no contexto primitivo em que foi publicado pela primeira vez. Mas a
contraditória, a lembrança de São Bento e o da cobra venenosa: como se incongruência repentina que marca o destino do malandro logo gela o riso
sabe, na tradição folclórica, o santo é conhecido por afugentar ou imobilizar cômico e dá o que pensar, carreando a atenção para a esfera da seriedade
as cobras; na designação do herói já está sugerido seu destino irônico de ca- dramática de um conflito sem saída, enigmaticamente acentuado pela que-
çador caçado - feitiço virado contra o feiticeiro. Mas, além disso, o nome bra da expectativa, que faz a morte sobrevir à festa. Imediatamente, portan-
de Bentinho Jararaca pode evocar o de outro personagem famoso na época, to, esse destino humilde se transforma num problema sério, tratado, porém,
nas histórias de Cornélia Pires: Joaquim Bentinho, citado também por Mário
à primeira vista, com a isenção distanciada de uma voz narrativa, por assim
de Andrade, na ''Louvação da tarde'', escrita provavelmente numa época mui-
dizer, em off, que se limita a narrar, sem qualquer comentário, aparentando
to próxima à do poema de Bandeira.37
a neutralidade pretensamente imparcial da notícia jornalística. O distancia-
Joaquim Bentinho, o "Queima-Campo'', é o caçador mentiroso, cheio
mento do narrador, máximo na anedota lendária do folclore, que nisto ain-
de preguiça e malícia, capaz de inventar as mais "estrambóticas aventuras".
da lembra o afastamento do mundo do mito, se repete aqui em outra chave,
Ao que parece, moldado sobre diversas figuras de contadores de causas que
próxima, urbana e moderna. O mythos primitivo, dado tradicional da
teria conhecido o escritor e folclorista, inclusive a de seu pai, Nhô Raimundo.
providência divina, com o qual se deveria compor a narrativa, conforme o
Desde a década de 20, o herói se tornou célebre em várias regiões do Brasil,
por onde passou o notável animador da cultura caipira paulista que foi Cor- conselho de Aristóteles, é agora a novidade prosaica e cotidiana do jornal:
nélia Pires, ele mesmo misto de narrador oral e rapsodo, que divulgou seu numa "era ímpia" como a nossa, dizia Karl Kraus, a providência é a impren-
personagem de mil maneiras pelos quatro cantos do país, em livros, confe- sa, com sua suposta onisciência elevada em objeto de convicção, com sua
rências, palestras em rádios e teatros etc., numa existência movimentada e missão de propagar o espírito, mas, ao mesmo tempo, de destruir também
repleta de lances de aventura, semelhantes aos de sua fantasia folclórica. O toda capacidade de assimilação da matéria nova que divulga. 40 O narrador
caso da "Lenda brasileira'' lembra mesmo um episódio da vida do autor, que, ausente é sinal da objetividade isenta e ainda da transformação da experiên-
quando menino, teria perdido no mato uma espingardinha, ao defrontar-se cia, matéria-prima do narrador tradicional, em pura informação, compreen-
com uma jaguatirica.3 8 Mas, a caçada do Veado Branco, já é coisa para o he- sível em si mesma e por si mesma, esgotável no ato da leitura - fósforo apa-
rói romanesco Joaquim Bentinho, em cujas mentiras Mário percebe a expres- gado no instante que segue a chama da novidade. Ao desentranhar, contu-
são de desejos profundos, uma espécie de utopia compensatória "do que me do, a matéria da notícia, dando-lhe a forma do poema, o poeta torna perene
falta", como está dito no poema citado. o foco da surpresa, realimentando-o pela complexidade ambígua da expe-

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riência humana que ali se condensa de forma inesgotável, em constante de- é essa mescla de elementos épicos e dramáticos, enquadrada na estrutura lírica,
safio à interpretação do leitor. O destino humilde de um malandro de morro justamente a novidade característica de certos poemas de Cendrars que Bandeira
carioca, imagem social da cara de um país que de repente se acha numa pági- e outros dos seus companheiros modernistas, com tanta agudeza, observaram.
na de jornal, é agora um fato trágico que, ressaltado aos olhos do leitor, pe- Esse objetivismo lírico (para retomar os termos de Sérgio Buarque, apli-
de resposta. cados a Cendrars), resultante da mistura indefinida e algo arcaizante dos gê-
A força simbólica do achado de Bandeira, que com ele arrasta o bloco neros, assim como da simplificação drástica de uma matéria já em si pobre
de uma realidade muito mais ampla e complexa, demonstra a autonomia da - o destino de um pobre-diabo de uma favela brasileira-, confere ao poe-
forma significativa obtida pelo poema, ao desvencilhar-se do jornal e doca- ma de Bandeira uma feição primitiva, e, ao mesmo tempo, 0 aproxima de
ráter circunstancial da notícia de onde se originou. É preciso compreender, um meio moderno como o jornal. A singularidade de um caso da vida cario-
pela análise, como isto se deu. Uma vez considerada a analogia com o jornal, ca, tirado da página do jornal, se estampa, no poema, com a elementaridade
agora cumpre examinar a diferença essencial: o que mudou na passagem pa- abstrata do destino universal do indivíduo que se encontra com a morte. Uma
ra o poema e com que sentido. notícia da vida moderna se transforma num mythos trágico, narrado co-
mo uma historieta numa estrutura lírica, cuja fonte (a posição do sujeito)
permanece oculta.
A FORMA E O SENTIDO
A junção paradoxal do primitivo e do moderno pode ser vista neste ca-
so também como um produto da atitude primitivista que os modernistas as-
Um dos aspectos fundamentais que ressalta quando se analisa o poeme- sumiram, em parte por influência da voga européia da arte primitiva e das
to é o seu caráter narrativo. Ele é a história supercondensada de uma vida, manifestações arcaicas e populares, que exerceram papel importante, como
em seu instante final, contada em terceira pessoa por um narrador aparente- se sabe, na configuração da arte moderna entre as correntes de vanguarda,
mente neutro, impessoal e distanciado - justo o que no texto se aproxima representando uma ruptura e poderoso desrecalque de elementos até então
ao suposto ideal jornalístico de objetividade e isenção. reprimidos no contexto europeu. Antonio Candido observou como essa ten-
O que fàlta claramente, quando se olha o poema em si, é a característica dência encontrou aqui um chão propício e condições favorabilíssimas para
fundamental do poema lírico: a presença marcante, em primeiro plano, da se arraigar e expandir, uma vez que as culturas primitivas faziam parte de
voz central do sujeito, que expressa seus próprios pensamentos e sentimen- nossâ realidade cotidiana e muitas das ousadias e transgressões da vanguarda
tos, fundindo-se ao mundo pelo canto. Aqui, ao contrário, o sujeito lírico européia, nesse sentido, "eram, no fundo, mais coerentes com a nossa he-
está, por assim dizer, oculto; suas emoções, seu estado de alma, ou mesmo rança cultural do que com a deles". 41 O arraigamento em nosso solo dessa
suas concepções ou visões não se revelam à primeira vista. Percebe-se pri- influência permitiria, por isso mesmo, uma reelaboração em profundidade,
meiro a história que é contada impessoalmente; as razões da seleção, da for- resultando na possibilidade de se forjar aqui uma expressão própria, ao mes-
ma do tratamento da matéria e os possíveis vínculos de tudo isso com o su- mo tempo local e universal, pela penetração na particularidade concreta da
jeito permanecem subjacentes, embora, desde o início, o leitor possa intuir realidade brasileira. Como diz. o crítico: "É impressionante a concordância
a corrente funda de emoção que ligou o poeta ao seu tema, mantendo, po- com que um Apollinaire e um Cendrars ressurgem, por exemplo, em Oswald
rém, essa identificação latente sob a forma que lhe deu. Ainda mais: o leitor 42
de Andrade". Seguramente é esse também o caso de Manuel Bandeira nes-
pode supor que é esse um traço decisivo da forma lírica neste caso, corres- se momento, que o poema em estudo representa.
pondendo a uma necessidade profunda da expressão que só assim pôde se Mas essa junção do primitivo com o moderno, que faz parte da tradição
realizar, levada por alguma razão intrínseca, exigida pela própria relação com moderna e foi uma das linhas de força de nosso Modernismo, permite ainda
a matéria específica aí tratada. a compreensão de alguns aspectos importantes da inovação do tratamento
O fato é que, em lugar da fusão lírica do sujeito com o objeto, surge lírico que o poemeto adota, em sua relação complexa de proximidade e afas-
a distância característica da épica, projetando o mundo narrado no primeiro tamento do jornal. O objetivismo lírico, em sua forma simplificada e de gê-
plano, onde se desenrolam acontecimentos marcados por uma alta tensão neros mesclados, representa, evidentemente, uma novidade da técnica poé-
dramática. Uma vida diante do fim, contada em resumo na brevidade de uma tica e uma mudança do meio de produção literária. Essa mudança, que é uma
forma lírica, aparece animada pelo teor conflitivo dos elementos contraditó- recusa do passado próximo, em seu impulso de modernização, é ao mesmo
rios que envolve. Na verdade, portanto, o que se nota, antes de mais nada, tempo uma volta a um passado arcaico, que aflora, despojado, no mythos

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trágico a que se reduz o destino do joão-ninguém, na concentrada e fatal efu- Em primeiro lugar, a identificação pelo nome: a substituição do sobre-
são dionisíaca em que se manifesta.43 No poema, a notícia se transforma nu- nome por uma espécie de apelido e o caráter comum do prenome estão cheios
ma história exemplar em que ressoam modelos arquetípicos. O que se tira de implicações. Indiciam, antes de mais nada, a condição social do indiví-
do jornal, veículo moderno, onde transparecem contradições que dão uma duo pobre, para quem não conta a distinção de família e o nome próprio
fisionomia presente do país, é uma narrativa que evoca o mito. corriqueiro é um modo de dissolver-se na generalidade do grupo. O adjeti-
Para se compreender a mescla de gêneros e a integração profunda dos vo gostoso distingue o indivíduo por uma forma de consideração pelo gru-
elementos contraditórios na forma orgânica do poema, convém distingui- po social, conotando um matiz erótico e popular, com seu lado meio gaiato,
los pela análise miúda em suas funções precisas e no processo pelo qual se que faz logo imaginar o universo do malandro, cuja força de atração e poder
articulam no todo. de sedução têm decerto um fundo sexual importante. Esta característica se
A ausência da linguagem expressiva ou emotiva é preenchida pelo dis- liga, sem dúvida, coerentemente, prenunciando-a, à inclinação do malandro
curso narrativo, responsável pelo desenvolvimento da história: o mundo nar- para a diversão e a festa, a que se entregará em seguida, num espaço igual-
rado é que se projeta em primeiro lugar, sem que o narrador interfira, por mente apropriado a seu caráter: o bar.
isso mesmo acentuando a relativa autonomia do microuniverso ficcional e O subemprego (carregador de feira-livre), implicando a força física e
da ação dramática que aí se desenrola. A ação ganha em dramatismo ainda a baixa remuneração, reforça o traço da condição humilde do tipo social e,
mais por efeito da brevidade, que aproxima, secamente, a rápida seqüência indiretamente, o aspecto físico que o distingue, introduzindo ainda a nota
de atos de João Gostoso (Bebeu/Cantou/Dançou), em sua aparente expres- da sua instabilidade e precariedade. Estas, por sua vez, aparecem enfatizadas
são da alegria de viver, manifestada num crescendo da expansão efusiva, ao pelo local da moradia, que é uma favela carioca (morro da Babilônia) e uma
abrupto desfecho do último verso. O despojamento ascético, a descarnadu- habitação tosca, provisória e imprecisa (barracão sem número). A falta do
ra esquemática, a condensação brutal dessa síntese brevíssima de uma vida, número parece frisada pelo contraste com o nome do bar que vem a seguir:
acentuam-lhe a incongruência conflitiva e o caráter enigmático por compres- Vinte de Novembro, em que a data sugere uma falsa precisão.
são, fazendo colidir a efusão do êxtase vital com a morte numa unidade ma- Na verdade, todo esse processo de caracterização está marcado por uma
ciça, que dependesse de uma ordem necessária e inevitável, sob o império ambigüidade contraditória: os traços singularizadores e localistas que deter-
da causalidade. A não intervenção do narrador abre espaço para o desenvol- minam o malandro carioca em seu espaço característico são ao mesmo tem-
vimento compacto da ação dramática, que parece desenrolar-se por si mes- po fatores de indeterminação genérica e abstratizante do tipo social, não dei-
ma, num avanço ininterrupto rumo ao fim, a partir da chegada de João Gos- xando espaço para a diversidade individual. Ao chegar ao bar e se entregar
toso no bar Vinte de Novembro. Na verdade, a unidade de ação parece vir à diversão, João Gostoso parece estar cumprindo o que estava pré-
de antes, desdobrando, coerentemente, traços do "personagem" e de seu determinado em seu nome e modo de ser, como um indivíduo que deixa
espaço característico, apresentados na caracterização feita no primeiro ver- atrás de si toda diversidade para ir de encontro à universalidade de seu desti-
so, que abre a moldura narrativa do poema. Ainda uma vez aqui, como na no na morte. Um homem despido de tudo que vai irrevogavelmente rumo
antiga Grécia, nos primórdios da literatura ocidental, o "caráter do homem à catástrofe, que o aguarda em sua estranheza inesperada, como a diversida-
é o seu destino", conforme se lê numa máxima de Heráclito. 44 Os atos de de máxima para alguém que caminha para o oposto: a exaltação vital da
João Gostoso seguem-se à descrição de seu modo de ser, apresentado de iní- festa.
cio, compondo com ele um bloco único. · Essa caracterização generalizadora, baseada no paradoxo da determina-
De fato, o longo verso livre do princípio, com sua continuidade pro- ção que indetermina, depende assim de relações cerradas e coerentes entre
saica e seu caráter descritivo, não apenas lembra a ocorrência policial trans- os elementos lingüísticos que mobiliza, afastando-se obviamente das relações
formada em notícia de jornal, mas apresenta, por assim dizer, o ethos de aleatórias, artisticamente não organizadas, do texto jornalístico, voltado ape- 1.
um indivíduo, mediante a identificação pelo nome, pelo tipo de trabalho nas para a comunicação da informação de forma clara e direta. A ambigüida-
e. pelo local de moradia. A informação do meio moderno de comunicação de deriva dessas relações intricadas entre as palavras, que apenas deveriam
se abre para traços genéricos e abstratizantes de determinação elementar prender-se à referência informativa e, no entanto, acabam por relacionar-se
do indivíduo, que logo topará com a catástrofe e o desenlace de seu desti- entre si como se estivessem num campo oscilante de forças contraditórias.
no , de algum modo contido já nos elementos da descrição que o carac- A coerência própria da linguagem poética se mostra já no nível material
terizam. do som, que, pela recorrência inesperada, quebrando a expectativa de uma

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linguagem prosaica como a do jornal, forma a cadeia verbal e ambígua do da de João tem uma coerência lógica férrea, pois parece obedecer cegamen-
sentido. Assim, os índices que designam o local da moradia aparecem vincu- te, em primeiro lugar, ao desnível do espaço, submetendo-se a uma causali-
lados pela aliteração das bilabiais !mi, lbl, da nasal dental ln/ e da vibrante dade gerada pela necessidade física, como se se tratasse da ananke dos gre-
/ri: MoRava No MoRRo da BaBilôNia Num BaRRacão sem NúMeRo. Trata- gos, atuando como uma fatalidade material e bruta. Mas, ao mesmo tempo,
se, porém, de uma sonoridade expressiva, mas discreta, que apenas se insi- o desnível do espaço é também um desnível social, determinado por condi-
nua em meio a um verso de hausto longo e andadura prosaica, atulhado de ções históricas específicas do atraso social brasileiro. O modo de ser do ma-
dados factuais como um documento policial, virado do avesso pela indeter- landro carioca condiciona-o a essa fatalidade, pois a condição precária do
minação que torna a descrição ambígua. Por essa analogia com a ocorrência pobre o coloca à mercê da força fatal: obviamente, são sempre os desampa-
policial, ele se liga com verossimilhança ao título, fazendo eco ao jornal, ao rados os que mais sofrem com as catástrofes naturais. Nesse sentido, como
mesmo tempo que cria uma tensão expressiva entre a prosa e a poesia, cujas tantas vezes na tragédia grega, o caráter é de fato o destino. O circunstancial
características também aí se acham presentes e saltam à vista. Esta tensão, ganha a dimensão trágica do inevitável: João Gostoso desce, implacavelmente,
derivada das contradições, constitui a marca da construção do poema. para a destruição, ao entregar-se a si mesmo, ao ir ao encontro do que ele
A atenção do leitor é chamada para algo que parece prosa, mas que se próprio é. Aqui o caso singular, dado pela circunstância brasileira, encarna
afirma como verso, pelo destaque tipográfico, que o mantém isolado como o arquétipo. Sua história adquire a proporção exemplar do mythos trágico.
uma linha única (embora as palavras que o compõem não caibam nessa li- O destino humilde de um tipo popular de uma grande cidade, onde se cho-
nha), e pelo corte, que interrompe a enumeração de dados, suspendendo cam as contradições do desenvolvimento moderno e do atraso, não apenas
a frase sem pontuação final. De certo modo, essa frase inicial se abre para evoca o esquema primitivo e arquetípico em sua trajetória exemplar rumo
as demais, nos outros versos, todos eles também sem pontuação, como se à catástrofe, mas se alça ao sublime da elevação trágica, ao revelar, pela se-
se ligassem por uma necessidade interna, num bloco de fato único, até o apa- riedade do tratamento poético, a substância altamente problemática de sua
recimento do ponto final. A leitura deve percorrer rapidamente o todo, condição humana. João Gostoso se acha numa situação de bamartia (para
precipitando-se na descida, acelerando-se intensamente pela brevidade dos empregar o termo com que Aristóteles designou o erro trágico), não pro-
versos centrais, até distender-se no fim, com o desenlace. Assim fazendo, priamente porque cometa um erro ou falha moral que o coloque num beco
na realidade ela acompanha o movimento interno do ritmo e da ação, toda sem saída, mas porque sua situação é difícil de antemão, dadas as circunstân-
a trajetória em que João Gostoso cumpre implacavelmente seu destino para cias que o condicionam e determinam seu caráter. Não sendo especialmente
a mo~te . Numa descida inevitável e sem explicação, como a da pedra que bom ou mau, mas um ser naif, um simples joão-ninguém, com a simpatia
rola morro abaixo por necessidade física, esse ser sem características preci- e a alegria de viver impressas no nome, basta que siga naturalmente seu mo-
sas, sem nome próprio, sem moradia ou emprego definidos, também se pre- do de ser para que sobrevenha o descomedimento (hybris) que lhe é pró-
cipita nesses versos livres sem pontuação . A passagem do ritmo lento dos prio, com seu terrível desfecho. Empurrado para baixo, sua vontade de vi-
versos iniciais, o primeiro longuíssimo e o segundo ainda longo, para os se- ver o eleva por um instante, antes de destruí-lo.
guintes , curtíssimos, imita na expressão esse movimento, enfatizado até vi- A contradição entre o alto e o baixo, com tudo o que ela implica, no
sualmente pela oposição entre a verticalidade rápida dos curtos e a horizon- plano espacial, social e da representação literária da realidade, arma, assim,
talidade espraiada dos longos, no princípio e no fim. Algo da dança de mor- um poderoso campo de forças em choque, complexo e rico de sentido, cuja
te de João Gostoso se imprime nas angulosidades do ritmo do poema como compreensão em profundidade depende da penetração nos detalhes concre-
um todo: um movimento que, do caos da vida sem rumo certo (Babilônia), tos que nele se articulam significativamente. A começar, dos elementos es-
mergulha no caos das águas fatais da Lagoa. paciais, ao mesmo tempo ligados à circunstância brasileira e tensos pelos ecos
João Gostoso parte do alto, do morro da Babilônia, para morrer em- dos arquétipos que evocam, ao se organizarem nesse contexto.
baixo, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Esses dois espaços, tensos e carregados Babilônia designa, primeiramente, o conhecido morro carioca, que apa-
com todo o significado que possam sugerir, por entrar significativamente no rece também num poema de Drummond, um poema do Sentimento do mun-
m~vimento do todo, são os marcos espaciais da ação, os limites de uma vi- do, com as marcas de sua história, seu encanto, sua paisagem e o ar festivo
da, em máxima compressão. Aí se percebe que a designação desses espaços que a voz de um "cavaquinho bem afinado" garante, como "uma gentileza
se acha motivada dentro do poema, em virtude das relações laterais entre do morro". Mas no poema de Bandeira, Babilônia se opõe ao espaço de bai-
as palavras dentro do mesmo campo de forças do contexto comum. A desci- xo, o da Lagoa Rodrigo de Freitas, e essa oposição suscita uma série de signi-

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ficados secundários que se associam aos termos, enriquecendo pela ambi- sugestão imaginativa no âmbito do poema, pois se casa ao princípio estrutu-
güidade o sentido. ral básico de oscilação entre o alto e o baixo, foco dos significados contradi-
A Lagoa, designada pelo nome próprio de uma figura histórica, é um tórios, ironicamente harmonizados. A imagem de confusão e caos que pro-
local de beleza e riqueza, no Rio de Janeiro, embora se situe embaixo, tanto jeta o morro da Babilônia, lugar de miséria situado paradoxalmente no alto,
no espaço real da cidade como no corpo do poema. Numa curiosa crônica sugere antecipadamente algo da dissolução em que mergulhará João Gosto-
de 1951, recolhida por Bandeira e Drummond numa antologia sobre a Cida- so, literalmente tragado pelo caos das águas da Lagoa, lugar de riqueza, mas
de Maravilhosa, por ocasião de seu quarto centenário, José Lins do Rego capta localizado embaixo. De algum modo o fim está contido na origem. No meio
o surgimento de uma favela em contraste com aquele local "de uma beleza da trajetória catastrófica, o momento de festa e de exaltação dos sentidos
de espanto": "Era o povo do morro que descera com os seus barracos na é o instante dionisíaco, ao mesmo tempo baixo e alto, em que o paroxismo
cabeça para enfincá-los ali" .4 5 Esse contraste, apanhado ao vivo pelo cro-
de vida se mistura à dissolvência, preparando o fim, mas seguindo-se coe-
nista, está contido no poema, onde se transforma num traço estrutural de
rentemente à descrição do princípio.
valor simbólico. Por ele se relacionam dois aspectos opostos da realidade
Na verdade, um elemento de indeterminação, fluido e caótico, de dis-
física, material e social - o morro e a lagoa; o alto e o baixo; a pobreza e
solvência e progressiva "liquefação", liga as três partes do poema num todo
a riqueza-, mas também as duas pontas da ação - o começo e o fim; a
coeso, como história que é de um processo de dissolução do indivíduo: o
vida e a morte -, assim como suas implicações no plano simbólico, em que
início, com a caracterização do primeiro verso, onde esse elemento está pre-
se juntam as duas dimensões de um destino humano ao mesmo tempo sin-
sente em vários traços da pobreza anônima, da insinuação erótica, da confu-
gular e universal, histórico e arquetípico, moderno e primitivo, e dois níveis
são e da própria tendência a dissolver o indivíduo no tipo e no grupo; a ação,
da representação literária: o humilde e o sublime. O que permite que esses
elementos contrastantes se relacionem e se integrem num todo orgânico é que começa com a chegada ao bar, local "dissoluto'', e se expande com os
o princípio formal da ironia, capaz de articular dialeticamente as contradi- atos da bebida, do canto e da dança, manifestações todas da "embriaguez"
ções numa estrutura mais inclusiva, cuja força expressiva reside justamente dionisíaca; por fim, no último verso, a morte literal por água. Assim, a desci-
na amplificação do sentido ambíguo que propicia, potenciando a prolifera- da de João Gostoso do morro da Babilônia às águas da Lagoa Rodrigo de Frei-
ção dos significados associados, numa cadeia poderosa de idéias ao mesmo tas representa a liquidação do indivíduo, o mergulho do ser na indiferencia-
tempo oponentes e afins. Uma ironia cujo eixo principal é o movimento in- ção caótica do mundo natural, como se nessa trajetória regressiva se desfi-
consciente de um ser que caminha na direção de si mesmo, conforme as for- zesse o processo de individuação. Este movimento, sugerido obscuramente
ças da vida, e mergulha na destruição. no começo pelas condições que cercam o "herói", se clarifica no meio, co-
Em contraste com o espaço da Lagoa, chamada pelo nome próprio (Ro- mo se aí, no encontro do indivíduo consigo mesmo, se revelasse um desti-
drigo de Freitas), o morro da Babilônia é o espaço da favela e da miséria no, cujos traços marcantes estavam postos desde o princípio, assim como
anônima, mas também da indeterminação, da confusão e do caos, significa- ainda aí se retém, no mais fundo, a razão oculta da reviravolta do fim, em
dos contidos no termo, em seu emprego como substantivo comum, em que que o indivíduo por assim dizer se dissolve no seio da natureza. Uma análise
pesa ainda o eco degradado da Babel primordial. Ironicamente, o termo evoca cerrada do meio permite a integração das partes e uma compreensão mais
ainda o passado histórico e mítico de uma cidade maravilhosa como o Rio completa do todo.
de nosso tempo, coberta de luxo e riqueza - a cidade "tão magnífica'', na O movimento da ação tem início, como se observou, no segundo ver-
descrição de Heródoto; a cidade dos jardins suspensos de Nabucodonosor; so, com a chegada de João Gostoso ao bar Vinte de Novembro. Esse verso
a cidade mítica, cujo nome, na origem, era uma Bâb-ilâni, uma "Porta dos principia por uma das fórmulas características de começo da narrativa tradi-
deuses", conforme ensina Mircea Eliade. 46 A complexidade aumenta, e com cional: Uma noite ... Como outras similares (Era uma vez ... ), ela introduz um
ela a tensão das contradições, quando se considera que essa cidade também tempo indeterminado e vago, certamente incompatível com a exatidão que
conhecida por "Liame entre o Céu e a Terra" ou por "Casa da base do Céu se requer de uma notícia de jornal, mas com poder encantatório e pressago
_e da Terra", freqüentemente assimilada à montanha cósmica, como um cen- de evocação (acentuado pelo sortilégio da palavra noite, sempre tão forte
tro ou eixo do mundo, abria-se ainda para as regiões inferiores, P<?is teria em Bandeira), capaz de cativar e manter em suspense o ouvinte, lembrando
sido construída sobre bâb-apsf, a "Porta de apsu", em que apsu designa as velhas raízes na tradição oral do conto popular, das histórias da carochinha
águas do Caos anterior à Criação. A duplicidade do simbolismo tradicional e do mito. 47 A fórmula liminar acentua mais uma vez o caráter primitivo do
do termo Babilônia vibra, portanto, com toda a sua intensidade e poder de texto, casando-se ainda perfeitamente, pelo traço popular e oral que traz

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consigo, à caracterização anterior de João Gostoso. Outros traços da lingua- Na verdade, dão forma a um mesmo movimento ritualístico de atos repeti-
gem desse verso reforçam esse aspecto. Com efeito, o emprego redundante dos e exemplares, encarnando os gestos efusivos da alegria e da exultação
do pronome sujeito ele, que se omitiria na linguagem culta escrita, e a sinta- vital, constituindo a expressão ditirâmbica de um crescente entusiasmo.
xe de regência do verbo chegar (chegar em, ao invés de chegar a) demons- De fato, eles formam uma espécie de microestrutura climática, em crescen-
tram o aproveitamento de detalhes da fala cotidiana e popular, do "portu- do, corroborada até pela ordem alfabética das letras iniciais, pela sugestão
guês do Brasil", em cujo emprego o poeta se achava então empenhado, con- visual de verticalidade, pela acumulação de traços repetitivos, de sons ecoan-
forme se notou. tes, exprimindo uma efusão progressiva do ser, desencadeada pela embria-
Da mesma forma que essas características da linguagem dão seqüência guez até a expansão exultante do canto e da dança. Um movimento de as-
ao fio do discurso, combinando-se, coerentemente, com o quadro social an- censão para o êxtase, em contradição com o movimento de descida do
teriormente apresentado no verso de abertura, a chegada ao bar desdobra, pobre-diabo, um movimento do ser humilde para o sublime - instante
com a mesma propriedade, um aspecto decisivo da caracterização de João de alumbramento.
Gostoso, sugerido desde a apresentação de seu nome: a inclinação para o Esse momento de repetição e elevação extática, aberto para um tempo
prazer, para a vida festiva, para a dissolução. Em relação ao contexto coeso diverso, o tempo da festa, com seu paroxismo de vida - tempo de embria-
e coerente que assim se vai formando, os três versos subseqüentes consti- guez e descomedimento (hybris) fora do tempo habitual - está impregnado
tuem uma seqüência natural que o leitor tende a apreender mesmo como de sugestões arcaicas, evocando o mito e a presença do "deus estranho":
uma conseqüência necessária, cumprindo-se o princípio de causalidade da Dioniso. 48 A seqüência da bebida, do canto e da dança, em ritmo tenso e
construção do enredo: post hoc, propter hoc. frenético, suscita a imagem primitiva do séquito orgiástico em louvor desse
No entanto, esses três versos se destacam, em nítida oposição aos de- deus vindo do Oriente, estranho entre os gregos, sempre acompanhado desse
mais que compõem o poema. Em primeiro lugar, visualmente, pois são de cortejo delirante cuja pré-história, como observou Nietzsche, remonta à Ásia
fato curtíssimos, se comparados aos outros, mesmo se se considera que en- Menor e à Babilônia. 49 Dioniso, deus da vegetação, ligado à vida e ao vi-
tre eles e o primeiro, longuíssimo, o segundo, menos longo, atenua um pou- nho, é também um deus profundamente vinculado ao elemento da umida-
co a passagem completamente abrupta. De qualquer modo, porém, eles cha- de, como o caracterizou Walter Otto, não apenas porque o mar foi o seu
mam a atenção pelo tamanho contrastante, formando uma espécie de bloco refúgio, como está na Ilíada, mas porque as várias versões de sua história
uniforme, cuja impressão de verticalidade é realmente oposta à horizontali- o relacionam com águas de lagos ou lagoas, conforme atestam alguns de seus
dade derramada dos restantes, sobretudo do primeiro e do último. Por ou- nomes: "Aquele do lago", "Aquele que nasceu no lago" ... 5° Ligado, pelas
tro lado, essa marcada assimetria que revelam com relação ao conjunto, pa- águas, à vida e à morte. Um deus com o poder de misturar ao elemento lí-
rece compensada pela completa simetria que mantêm entre si. Na verdade, quido todos os sucos da terra e, assim, plasmar a vida. Um deus que desceu
são versos perfeitamente regulares, dissílabos, em contraste com o número aos Infernos, às regiões ínferas do Hades, em busca da sombra da mãe, Se-
inteiramente arbitrário de sílabas que reina entre os outros três. Além disso, mele, através das águas do Lago de Lema. "Hades e Dioniso, no fundo, o
do ponto de vista da formação morfológica, são totalmente homogêneos - mesmo". 51
três formas verbais, no mesmo tempo, modo e pessoa; três pretéritos perfei- Nietzsche procurou mostrar, como se sabe, que a tragédia clássica grega
tos do indicativo, na terceira pessoa do singular: Bebeu/Cantou/Dançou. Do era uma estrutura de tensões, resultante do embate entre o espírito apolíneo
ponto de vista do ritmo e do som, a simetria não é menos marcante. São e a sabedoria dionisíaca, tensões nela harmonizadas musicalmente, com a força
os únicos versos que rimam, perfeita ou imperfeitamente, no poema (-eu/ou/- das dissonâncias e das energias contrastadas. Nessa forma de grande arte, o
ou). E o acento rítmico incide sempre na segunda sílaba, formando a mesma sonho apolíneo, entendido como a visão contemplativa e ideal que repre-
sucessão de uma sílaba átona e uma tônica, ou seja, uma mesma célula rítmi- senta as coisas não como são mas como deveriam ser, se submeteria de al-
ca repetitiva, um mesmo pé jâmbico: Bebéu/Cantóu/Dançóu. gum modo ao impulso primitivo do dionisíaco, com seu fundo inconsciente
Com sua simetria, uniformidade, regularidade e homogeneidade, os três de extravagância e violência, de raiz asiática, tal como se representava no cor-
versos curtos introduzem no poema um momento de marcada repetição em tejo orgiástico ao deus e se expressava com júbilo ou profunda tristeza nos
meio à diferença, com importantes implicações no plano semântico. É que ditirambos líricos. O trágico decorre dos ditirambos, assim como o coro dos
representam a repetição de atos análogos num mesmo sentido, como sedes- sátiros, primitivamente um grupo de adoradores extáticos do deus, foi o "ven-
sem forma, pela reiteração, a um movimento sempre numa direção idêntica. tre do diálogo" da tragédia. Apolo acaba por falar a linguagem de Dioniso;

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dá forma à sabedoria dionisíaca no mito: o mito trágico não é senão "uma riência. Com isto, desentranha não apenas a imagem de um país ou a dimen-
simbolização da sabedoria dionisíaca por meio dos procedimentos da arte são trágica universal de um destino comum, resgatando-os das páginas fuga-
apolínea''.5 2 Na estrutura de conflitos da tragédia se exprime "uma grande zes de um jornal para a perenidade da arte, mas também a poesia sublime
vontade de viver"; o trágico brota de uma força exultante: da alegria do que se oculta numa vida humilde e se mostra na forma simples das palavras
êxtase. de todo dia, cuja fonte pode se achar escondida na imprensa cotidiana. Pou-
Na interpretação nietzschiana do trágico, o deus, ligado freqüentemen- cas vezes a poesia brasileira soube descer assim fundo para subir tão alto,
te ao ciclo de morte e renascimento do ano, encarna ao mesmo tempo um encerrando, com naturalidade, um todo tão complexo em secreta e sóbria
princípio de destruição e regeneração, de modo que sua força de embria- simplicidade.
guez e dissolvência na verdade é um modo de comunhão profunda com a
unidade primordial da natureza. O dionisíaco é, nesse sentido, uma negação
do princípio de individuação e pode representar um retorno do ser ao inde-
terminado. As contradições gritantes entre manifestações de dor e júbilo nos
ditirambos, na raiz do trágico, implicam as contradições mais fundas e re-
correntes entre vida e morte no bojo da natureza. A dor trágica vem com
a exultação, do próprio nervo da vida.
O momento central do poemeto suscita esse fundo arcaico e poderoso
com suas contradições fundamentais. O estilo, através dos recursos aponta-
dos, serve de mediação ou passagem para essas camadas profundas que, por
assim dizer, se ~tualizam na historieta de um marginal de uma cidade moder-
na, ao mesmo tempo que a colocam na dimensão do universal e de uma vas-
ta e complexa tradição. A serenidade épica com que essa historieta vai sendo
narrada de um ponto de vista impessoal, de repente se confrange na tensão
lírico-trágica dos versos centrais e do desenlace, que não é senão o resultado
natural do embate que se trava no meio, quando, pelo movimento da disso-
lução sugerido desde o princípio, a vida em sua máxima intensidade se faz
morte. A irrupção do trágico em meio à vida de um pobre-diabo atua como
uma dissonância (musical e irônica), revelando em sua miséria ordinária a
elevação sublime. A intuição do poeta captou profundamente essa contradi-
ção essencial, num momento de festa, em que a efusão material dos sentidos
é já anúncio da destruição. Assim, é esse também o instante de reconheci-
mento e elevação de um ser humilde, destituído de tudo, reduzido à elemen-
taridade de seu destino humano, à sua miséria humana mais radical, mas al-
çado como um símbolo ao mesmo tempo de nossa condição e da face trági-
ca de um país, cujo processo de modernização se faz às custas do sacrifício
do pobre, com sua fragilidade exposta às forças elementares da natureza.
Ao nos revelar este rosto da miséria, o poeta, à primeira vista ausente,
se solidariza no mais fundo com ela, confidenciando-nos contraditoriamen-
te, pela ironia aparentemente isenta, a emoção que o irmana à substância trá-
gica onde a própria face do homem se espelha, no processo mesmo de sua
dissolução, em seu destino enigmático para a morte. Identificado com esse
destino, ele o transforma em objeto de uma emoção pessoal, em achado líri-
co, e o passa ao leitor num concentrado enigma, como uma forrrra da expe-

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