Charles Maycon Almeida Mota
Charles Maycon Almeida Mota
Charles Maycon Almeida Mota
SER-NA-ROÇA:
RURALIDADE DA PRESENÇA E EXPERIÊNCIA DO SER-
DOCENTE
Salvador
2022
CHARLES MAYCON DE ALMEIDA MOTA
SER-NA-ROÇA:
RURALIDADE DA PRESENÇA E EXPERIÊNCIA DO SER-
DOCENTE
Salvador
2022
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Bibliotecária: Célia Maria da Costa CRB: 5/918
CDD: 370.72
SER-NA-ROÇA: RURALIDADE DA PRESENÇA E
EXPERIÊNCIA DO SER-DOCENTE
A Deus e aos espíritos de luz, pela força, orientação e acalento nos momentos mais difíceis de
minha vida.
A Fabrício (Sineco) e Luciana, pela forma linda com que me acolheram nas travessias
solitárias que fazia do interior até a capital, tecendo afetos e dando visibilidade às minhas
produções e aos meus modos de ser e fazer e narrar a vida.
A Luis Porta, pelo acolhimento em Mar Del Plata, pelos diálogos e orientações no decorrer do
período que precisei ficar na Argentina e, ainda, pelas contribuições que trouxe para a
qualificação dessa tese.
A Beto e Liege, pelas significativas contribuições nos momentos das bancas de qualificação
do presente trabalho, indicando caminhos para a construção de uma pesquisa que significasse
modos de habitar a roça e a docência nas escolas da roça.
Ao meu grupo de pesquisa DIVERSO, representado por Grazi, Adelson, Joana, Celina, Maria
Helena, Ziziane, Leo, Dani, Dulce, Lucia, Jan, Cema, Simone, Taisa e Andressa, pelo
acolhimento, diálogos, diversão e pelas fortes contribuições em meu processo formativo.
Aos meus colegas do PPGEduC, em especial Nanci, Juliane, Joelson, Moisés, Joelson,
Carina, Bionor, Antônio Macedo e Lígia, pela parceria construída, pelas trocas de apoio
constantes e leveza no processo de doutoramento.
A Day, Dulina, Deyse, Cecília, Antonieta, Adson, Luiz, Felipe e Márcio, pelos encontros,
companhias, refeições e discussões acadêmicas compartilhadas na casa do professor.
A Mainha e Painho, pelo melhor que puderam ser em minha vida, pelas maneiras como se
fazem presença em meus processos de vida-escolarização-profissão.
A Vó Rosinha, Charlene, Soró, Davi, Ayrton, Ian, Tia Telinha e família, Tia Neuza e família,
Tia Soninha, pelo carinho e acolhimento nos momentos que mais precisei e, também, pela
relação de afeto e cuidado que temos.
A Adé e Mael, por não medirem esforços ao me acompanharem em madrugadas nas idas e
vindas até Paraíso-Jacobina. A Elizelma Gomes, Eliane, Roh, Marga, Sílvia e Jacilma, pelo
amor que dedicam a mim e pelos momentos de bate-papo, desabafos e confissões de segredos,
tornando minha vida cheia de confiança.
A Paula Luciana e Elizelma Sousa, pelo apoio e incentivo constantes, provocando em mim a
vontade de sonhar e lutar por uma educação inclusiva que valorize quem somos e os lugares
nos quais moramos.
A Samilla, Acely, Izana, Deise, Bel, Rubia, Yvana, Nem, Natielle, Cris, Alice, Ione, Magno,
Neijanir, Kely, Jéssica e Tati, pela parceria e afetos tecidos no encontro e trabalho que nos
permitimos realizar juntos.
Esta pesquisa está ancorada na Pesquisa Narrativa com ênfase no movimento biográfico-
narrativo por trazer sua centralidade a partir dos processos de vida das pessoas que vivem em
contextos rurais, propondo-se um movimento de compreensão que leve em conta suas
subjetividades pessoais. Busco entender como professores/as que atuam em escolas da roça
constituem a presentificação do ser-na-roça para significar sua existência, bem como,
produzem experiências de ser-docente numa perspectiva de afirmar uma vida autêntica que é
manifestado no ente que habita espaços rurais. O estudo utiliza como método a Pesquisa
Narrativa associada à abordagem qualitativa por possibilitar pensar a respeito da construção
de uma concepção de ruralidade da presença que institui o ser-na-roça a partir dos estudos
de Heidegger (2015) e das poesias de Manoel de Barros (1999, 2001, 2009, 2015, 2016,
2018). Este estudo ancora-se nas bases da fenomenologia e da hermenêutica por buscar
compreender o ser em seu contexto de vida e os sentidos atribuídos à sua condição de existir
em contextos rurais. A pesquisa foi desenvolvida nas escolas rurais do município, a partir de
entrevistas narrativas e etnografias da roça constituídas por registros realizados ao longo da
pesquisa com minhas narrativas sobre a experiência. Estes são dispositivos de pesquisa que
trouxeram condições para a compreensão dos modos de ser-viver-na-roça a partir da
presentificação do ente que constitui o ser-na-roça. Cada processo desenvolvido para a
recolha das narrativas com os respectivos dispositivos de pesquisa foram possibilidades para
pensar narrativamente o habitar a roça e a profissão docente neste espaço. Esta pesquisa
desencadeou questões provocativas em relação aos sentidos e significâncias atribuídas aos
modos de ser-na-roça, considerando como relevante o movimento de autobioformação como
espaço que possibilitou repensar nosso processo de vida-formação-profissão no sentido que
possa valorizar os modos de habitar a roça. Esta pesquisa contou com quatro professores/as
colaboradores/as, sendo estes/as professores/as do Ensino Fundamental de escolas rurais e
moradores/as das comunidades rurais. Concluiu-se que a ruralidade da presença representa o
assenhoramento de diversas ruralidades que as pessoas da roça produzem e que as
experiências do ser-docente vão sendo produzidas conforme os modos que cada professor/a
mobiliza e traduz os sentidos dos acontecimentos que os/as envolvem nesse processo de
habitar a roça, possibilitando condições para trans-ver o rural habitado e a profissão docente
na roça.
REFERÊNCIAS 259
experiências que produzem, por terem configurações outras e destoarem daquilo que a
mesmidade toma como padrão numa lógica hegemônica e urbanocêntrica.
Sendo assim, o presente estudo insurge desse contexto anunciado por docentes da
Educação Básica nas escolas rurais, motivado por minha história de vida-formação-profissão
por compreender a diversidade como um princípio que tem atravessado minhas experiências
com variados sentidos, podendo desencadear um movimento formativo a partir da proposição
de uma ruralidade da presença1 que se coloca através da presentificação do ser-na-roça2, em
que a autobioformação3 se apresenta como espaço fecundo para (re)pensar a formação que
valorize as pessoas e as experiências que lhe constituem.
É importante ressaltar que Heidegger (2015) utiliza o termo dasein, que significa
existência e numa tradução literal para o português temos ser-aí. A primeira tradutora da obra
Ser e Tempo para português achou por bem traduzir dasein por presença. Neste estudo,
Ruralidade da presença representa bem uma ruralidade do ser-aí. Esse ser-aí é abertura de
um ser-sendo que traz possibilidade de existir de forma autêntica ou inautêntica e desain é um
movimento, um transcender como a possibilidade de um ser que se lança no mundo a partir de
si mesmo, uma abertura para outros horizontes possíveis.
A proposição de construir um conceito para a ruralidade da presença e da categoria
ser-na-roça tem relação com os estudos das ruralidades contemporâneas que têm considerado
os sujeitos que habitam os territórios rurais e os modos de ser, viver e fazer que vão sendo
constituídos nestes espaços. É relevante pensar numa categoria ou dimensão que possa
corresponder aos sentidos e significados que são produzidos pelas pessoas que vivem na roça,
mantendo viva suas tradições que vão sendo representadas numa dinâmica da tradução,
difundindo elementos do passado e do presente (re)significando os processos culturais e
sociais a partir da construção simbólica que fazem ao habitar a roça.
Ruralidade da presença insurge aqui como uma condição para se pensar a existência
do ente evocada pelo ser-sendo que habita os espaços rurais como forma de compreensão dos
1
Esse termo está construído a partir das discussões que realizei com base nos escritos de Heidegger a partir da
primeira tradução para o português feita por Marcia Sá Cavalcante (HEIDEGGER, 2015), para pensar como as
existencialidades do ente constitui o ser-na-roça, conforme o que vai se dando na vida dos sujeitos que habitam
os territórios rurais instituídos nos modos de ser-viver-na-roça.
2
Este termo é apresentado a partir dos modos de ser-viver-na-roça, se colocando aqui como um constructo que
tem inspiração na proposta de ser-sendo (HEIDEGGER, 2015).
3
O termo autobioformação é reorganizado por Pineau (2016), que desmembra a palavra (auto)biográfica, tendo
gráfica substituída por formação e a retirada dos parênteses de (auto) com o intuito de emancipar as narrativas
da base do gráfico para pensar possibilidades de superação de um grande desafio: pensar a formação docente
parametrizada na “[...] formação da vida e de sua própria vida por si mesmo” (PINEAU, 2016, p. 11).
18
modos de ser e viver nestes espaços, a partir da interpretação que esse ser realiza por si
próprio.
A ruralidade da presença se coloca como uma condicionalidade para que as pessoas
que vivem em territórios rurais possam constituir-se como ser-na-roça a partir da produção de
sentidos outros que tenham significância do real vivido. Assim, a categoria ser-na-roça
compõe a dimensão da ruralidade da presença por abarcar dois sentidos: um está no âmbito do
que o sujeito está envolvido coletivamente e de maneira mais global, desencadeando
processos intersubjetivos, e o outro se encontra no campo do individual e de cunho da
interioridade desse sujeito, insurgindo de sua subjetividade.
Tomo minha história de vida como possibilidade inicial para pensar os caminhos dessa
pesquisa, por compreender que a centralidade desse trabalho está nos modos de viver a roça e
habitar a profissão docente em contextos rurais, para entender como as experiências da
docência acontecem nas escolas rurais. Pensar os caminhos percorridos no processo de
realização dessa pesquisa considera pensar narrativamente o movimento que integra as
acontecências da pesquisa narrativa por evidenciar formas do fazer e narrar como
possibilidade de desvelamento de ser-docente que se presentifica com as relações que
produzimos nos contextos das escolas da roça.
Sinto-me instigado a apresentar como minhas implicações com a pesquisa perpassam
pelo movimento que vou constituindo como ser-na-roça a partir de um movimento de habitar
a roça e desenvolver uma docência influenciada pelo processo de habitar o espaço que habito,
revelando um ser que é dizível em alguns momentos e em diversos outros é somente um ser
sensível.
Muitos têm sido os debates e embates a respeito da diferença cultural que abarca
questões étnicas, culturais, de gênero e sexualidade, religiosas, físico-sensoriais, de
localização geográfica, entre outras que compõem os espaços escolares na
contemporaneidade. Com isso, temos vivenciado processos de tensões, conflitos, mas também
de diálogos no campo educacional. Tais processos têm desencadeado momentos de discussões
e reflexões na Educação Básica, promovido por professores/as que se mostram
preocupados/as com movimentos de invisibilidade, silenciamento, imposição cultural e
exclusão que alguns sujeitos de determinados grupos sociais, considerados minoritários
politicamente, têm sofrido no cotidiano escolar.
19
De acordo com Mota, Silva e Rios (2017, p. 855), “[...] as novas ruralidades vão sendo
constituídas a partir da produção de bens simbólicos e culturais embutidos nos processos de
intersubjetividades que são estabelecidos pelas pessoas da roça que ressignificam suas formas
de pensar, viver e agir”. Desse modo, cabe reiterar que as localidades rurais foram se
modificando a partir das reconfigurações das subjetividades dos sujeitos através das relações
com outros espaços sociais. Isso tem implicado de maneira contundente nos valores culturais
e morais presentes nestas localidades, gerando um processo de tensão muito grande.
Tal processo reflete no ambiente escolar, de modo a requerer maneiras outras que
venham a possibilitar a ampliação de reflexões e debates sobre os modos de ver, pensar, agir e
dizer das pessoas da roça, visando uma melhor compreensão sobre estas questões,
possivelmente implicadas nas maneiras de conviver com as diferenças e respeitá-las.
Considerando esta problemática, desenvolvi um trabalho de pesquisa–formação no
mestrado em Educação e Diversidade com professores/as de classes multisseriadas do
município de Várzea do Poço4 para compreender como concebiam a diferença na sala de aula.
A pesquisa intitulada Conhecimento de si, práticas pedagógicas e diferenças na docência
rural evidenciou alguns resultados que entendem a diferença, a partir de variados sentidos,
demarcados pelas narrativas de professores/as de classes multisseriadas que apontaram em
suas narrativas o fator social dos/as alunos/as, como também as dificuldades de aprendizagem
que algumas crianças apresentam como aspectos que revelam o entendimento de que a
diferença ainda se encontra vinculada aos elementos que normalizam e normatizam alunos e
alunas.
Cabe mencionar que nas narrativas de professores/as colaboradores/as da pesquisa
mencionada aparecem relatos de práticas docentes onde a valorização de ser quem é, fazer o
que fazem e viver onde vivem, quando abordada nas classes multisseriadas, gerava grandes
conflitos e tensões na sala de aula. Isso evidencia que há uma produção cultural presente no
cotidiano escolar e nas práticas educativas que podem estar submetidas a modelos
normatizantes, fazendo com que os modos de ser das pessoas da roça, seja pelas diferenças ou
pela localização geográfica, fossem invalidados.
4
Considerado como município rural por ter uma base de renda centrada na agricultura familiar e na pecuária,
contando com uma população de 8.809 habitantes, distribuídos em 5.810, residentes na sede, e 3.098,
residentes em roças e povoados, Várzea do Poço está localizada no semiárido do Nordeste, na 13ª microrregião
de Jacobina e na mesorregião do centro norte baiano, fazendo parte do Território da Bacia do Jacuípe. Situa-se
a 331 km da capital, Salvador, pelas rodovias BA-417, BR-324 e estrada vicinal, e conta com uma área
territorial de 221,3 km², fazendo limite com os municípios de Serrolândia, Mairi, Piritiba, Miguel Calmon e
Várzea da Roça (VÁRZEA DO POÇO, 2015).
20
se propõe a trilhar, considerando o demorar-se nas paradas desse caminho no qual nos
lançamos e produzimos nossas trajetórias de vida-formação-profissão.
A expressão presentificação do ser-na-roça é o entendimento que apresento para
compreender os movimentos realizados pelos entes das pessoas que habitam a roça pelas
condições de fazer-se fazendo-se roça, numa provocação de abertura constante de um ser-
sendo que se revela com acontecimentos5 do ser-na-roça. Com isso, entendo que é a partir da
valorização dos sujeitos em suas multidimensionalidades que as instituições escolares poderão
garantir um diálogo nas relações entre as diversas culturas e, consequentemente, gerar
possibilidades de êxito no processo de desenvolvimento cognitivo, social e cultural dos
indivíduos. Reitero que há uma grande relevância em concentrar esforços na pesquisa, que dá
centralidade aos modos de existir como professor/a da roça que atua nas escolas rurais, como
um movimento que propõe condições outras de entender a docência na Educação Básica
numa perspectiva da ruralidade da presença.
Este trabalho de pesquisa integra a Pesquisa Profissão Docente na Educação Básica da
Bahia, projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico - CNPQ através da Chamada Universal MCTIC/CNPq n. 28/2018. Com isso,
reitero que, além da participação na pesquisa matricial do Grupo de Pesquisa Docência,
Narrativas e Diversidades na Educação Básica - DIVERSO, o interesse em desenvolver esse
estudo, como uma proposta de pesquisa, tem uma forte relação com minhas motivações como
professor da Educação Básica e pesquisador das questões inerentes às ruralidades e aos
diferentes modos de ver, pensar, ouvir e dizer de meninos/as, homens, mulheres e idosos/as da
roça que vivem as escolas da roça. O desejo surgiu a partir de inquietações que foram
aparecendo no decorrer de minha trajetória como estudante do Programa de Pós-graduação
em Educação e Diversidade - UNEB e aluno do Programa de Pós-graduação em Educação e
Contemporaneidade - UNEB.
Tais motivações também são reforçadas pela grande lacuna que existe sobre a
produção de estudos relacionados à filosofia heideggeriana como aporte para discutir a
docência nas escolas rurais, onde posso destacar, que, de acordo com o recente levantamento
realizado sobre a temática em questão na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações
– BDTD, desenvolvida e coordenada pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e
5
Tomo o termo acontecimento ao longo do texto com sentido de uma significação do fazer que se perfaz-se
naquilo com que o ente se afeta (o que lhe acontece).
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6
Este banco integra os sistemas de informação de teses e dissertações que existem em muitas instituições de
ensino e pesquisa no país, estimulando a publicação e registro destas produções por meio eletrônico.
Atualmente a BDTD tem 15 anos de existência e abriga 348.116 dissertações e 169.522 teses de 119
instituições.
23
abordagem sobre esse ser-mais que representa a afirmação de uma vida autêntica como
possibilidade de pensar a experiência como fundamento da formação e investigação narrativa,
vinculando um movimento biográfico-narrativo como lastro desencadeador de um
desvelamento do ser.
O terceiro capítulo, Notas da experiência narrada na pesquisa narrativa, apresenta
uma posição teórica sobre o (auto)biográfico e o biográfico-narrativo, situando-os como
enfoques provenientes da pesquisa narrativa, mostrando escolhas e decisões metodológicas.
Busco considerar o movimento narrativo que se constituiu a partir dos processos de
investigação, evidenciando como se deu a experiência de realizar uma pesquisa narrativa em
contexto rural. Desse modo, apresento posicionamentos epistemo-político-sociais que
demarcam movimentos do ser-na-roça que constitui o ser-docente a partir de como habita a
roça e compreende a profissão que desenvolve. Faço também a exposição dos dispositivos de
pesquisa que foram utilizados, detalhando todo o processo da pesquisa narrativa, que resulta
na parte metodológica do trabalho.
Com o quarto capítulo, Por uma filosofia da roça, abordo como as condições de
habitar a roça vão sendo constituídas de uma ruralidade da presença que convoca o ser-na-
roça. Isso aparece como forma de compreender como as pessoas que moram na roça
significam suas vidas neste lugar, bem como, professores/as de escolas da roça constituem
seus modos de ser-docente a partir dessa condição de ser-na-roça numa perspectiva do ser-
mais. Aqui, pretendo traçar discussões fundamentadas nas perspectivas dos estudos de
Heidegger (1969, 1991, 2012 e 2015) e Manoel de Barros (2009 e 2015) como mote para
pensar essa ruralidade da presença. A proposta de pensar partindo de uma filosofia da roça é
trazer à tona modos outros de ver, ouvir, dizer e sentir a roça numa perspectiva da presença.
No quinto capítulo, Habitar a roça na profissão docente, apresento uma discussão
sobre a docência na roça a partir da perspectiva da ruralidade da presença como mote para
discutir como o movimento de habitar a roça na profissão docente se dá, visto que há uma
especificidade em desenvolver a profissão docente quando consideramos o habitar a roça
como forma própria que cada pessoa produz para significar seu ser-no-mundo. Busco desvelar
experiências de ser-docente a partir das narrativas de professores/as sobre modos de habitar a
profissão na roça tomando como indagação o pensamento de sentido (HEIDEGGER, 2012)
que se apresenta entre habitar a profissão na roça e habitar a roça na profissão.
24
7
A expressão é apresentada como possibilidade de compreensão de uma visão que é orientada por um conjunto
que é constituído pelo “[...] material, os usuários, o uso, a obra, em todas as suas ordens” (Heidegger, 2015, p.
566), considerando tudo que se encontra disposto em nosso campo de visão e se produz conforme ocupações e
envolvimento de um mundo cotidiano.
8
Ente é um termo designado por Heidegger (1991) como a possibilidade que o humano tem como condição de
ser. Neste caso, o ser só pode se manifestar no ente que somos que nos colocamos como abertura para aquilo
que não é esperado e que nos acontece.
9
Na obra de Heidegger (2015), a expressão “mundo” é tomada a partir de um ponto de vista ontológico que
significa a própria presença – existência. Neste sentido, mundo circundante representa mundo mais próximo,
aquilo que se constitui do que está à mão, está dado, ou seja, o assenhoramento do próprio mundo.
25
10
Acontecimento se apresenta como uma expressão que será bastante utilizada aqui, principalmente no capítulo
IV, representando o vivido que se dá na presentificação do ser, em que o ente se coloca abertura para um ser
que se manifesta conforme suas buscas e pretensões.
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Essa construção que realizo numa potência formativa, que elege o biográfico-narrativo
como elemento provocativo de evocações de um passado, que ganha formas outras e é
significado no tempo presente, numa perspectivação de devires, é uma base consistente para
posicionamentos epistemo-político-sociais em meu espaço de vida. Isso compõe minha
condição de ser quem sou, justamente por me posicionar como me posiciono, dando e
construindo possibilidades de um ser-docente, habitante da roça, numa contemporaneidade
que nos convoca a lidar com demandas e desafios que os movimentos culturais, sociais e
políticos vão desencadeando e provocando nos grupos compostos por minorias políticas, um
ser-mais que se apresenta nesses entes, provocando e requerendo proposições
transformadoras.
Percebo que existe uma relação importante da narrativa com o ser, já que ambos
necessitam de abertura para seu acontecimento. Narrar é uma condição de presentificação,
pois evoca aquilo que foi provocado, acontecimentos que o ente vivenciou, sua condição
sensível que envolveu o ver, ouvir e sentir. Ricouer (2010a, p. 131), afirma que, “[...] é no ato
de presentificar que se distinguem o ato de „narrar‟ e a coisa „narrada‟”.
Significa dizer que o narrar se configura pela presença, ou seja, não pode ser narrado e
sim vivido, pois a narrativa é a possibilidade de constituição do narrar, do que foi vivido,
tendo em vista que na narrativa evidenciamos aquilo que o narrar nos permitiu constituir na
presentificação do ser. A narrativa é condição de provocação de como restituímos o vivido.
Assim, temos a condição de perceber que há distinção entre o “[...] tempo do narrar e o tempo
narrado” (RICOUER, 2010a, p. 132).
O tempo narrado evoca o tempo do narrar evidenciando aquilo que a presença restitui.
Neste caso, é no tempo narrado que elegemos aquilo que constituirá a narrativa, pois nem
tudo que foi constituído, vivido no tempo do narrar será apresentado na narrativa, de modo
que produziremos, a partir do tempo narrado, narrativas de ficção, ou seja, possibilidades de
narrar o vivido considerando formas com as quais conseguimos interpretar esse vivido, aquilo
que se constituiu no tempo do narrar.
Pensar no jogo que existe entre o tempo do narrar e o tempo narrado é convocar uma
relação de tensão para a compreensão de como esses dois tempos estão imbricados, pois são
os dois tempos necessários para a constituição da vida narrada. O que acontece é que quando
nos propomos a desenvolver uma narrativa, estamos convocando esses dois tempos para
evidenciar aquilo que interpretamos dos sentidos constituídos com esses dois tempos, que se
responsabilizam pela constituição que aparece na narrativa.
31
A narrativa tem sua própria temporalidade, nos permitindo um lançar-se num tempo
que autoriza evocação de um passado vivido que será ressignificado no ato dessa narrativa,
contando com modos próprios de narrar, tendo os fatos do vivido envolvidos com enlaces de
ficcionalidade que resultou do modo como tomamos o que foi vivido para representar nesse
tempo do presente, por isso a condição instituída pela presença se coloca como abertura do ser
para evocação dessa narrativa.
Sendo a narrativa, também, considerada como abertura, é “[...] inútil insistir no fato de
a narrativa não estar datada: ela se liga por pontos frouxos aos devaneios, igualmente
relegados ao passado indeterminado do narrador” (RICOUER, 2010a, p. 243). Compreendo
que a narrativa se apresenta como uma trama que vai sendo enredada, ganhando estrutura
numa temporalidade própria que propicia a criação de contextos específicos para significação
de relações subjetivas que justificam a vida e a existência de quem se propõe a narrar.
Entendo que será a partir da condição na qual o ser dos entes se encontra, e com suas
formas de ver, ouvir e sentir o que está no campo de sua circunvisão, que o processo de
instituição de minha narrativa será desenvolvido, buscando afirmar uma vida autêntica por
uma condição instituída pela presença. Com isso, reitero que desenvolver uma investigação
narrativa requer um fazer que desencadeie a potencialização da reflexividade narrativa,
podendo promover situações de análise baseadas numa hermenêutica da compreensão que
possa trazer à baila uma mirada que signifique autocrítica, desembocando numa construção de
perspectivas sociopolíticas que direcione pensar narrativamente a docência na roça e os
percursos de vida que as pessoas desse lugar realizam.
11
A perspectiva de sujeito da diferença, nesse trabalho, parte da concepção de Différance apresentada por
Derrida (1986) que visa dar significância à presença (ao presente) por propor considerações a um
entendimento a respeito das marcas dos elementos do passado que guardamos conosco e que fazem
referência aos elementos do futuro que nos diferenciam de outrem a partir de uma performatividade própria.
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12
Termo utilizado para designar o espaço da cidade e povoados com características urbanocêntricas. Assim,
nesse trabalho, ao referir-se a esse termo entenda-se os estudos que se realizam nas cidades ou povoados.
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Os nomes dos/as docentes narradores/as da pesquisa são fictícios, os codinomes surgiram em decorrência da
minha relação com a ave Acauã que vive aqui nas matas de minha roça, anunciando o anoitecer e representando
um modo específico de minhas existencialidades na roça. Faço uma apresentação mais detalhada sobre a escolha
e, também, apresento as narrativas de si desses/as docentes narradores/as na página 106.
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14
Professores/as que não tinham a formação no curso Magistério em nível Médio, mas tinham algum domínio de
leitura, escrita e cálculos. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 5.692/71 permitia que essas
pessoas pudessem assumir a docência em espaços rurais (BRASIL, 1971). É importante enfatizar que Rios
(2015) apresenta uma discussão relevante sobre as histórias de vida-formação-profissão de professores leigos
que atuam em escolas rurais, enfatizando como a Profissão docente na roça foi sendo constituída.
35
que se colocaram em minha vida como formação que deslocou meus modos de ver a educação
e minha vida como professor, compreendendo como são construídas nossas identidades,
entendendo a diferença de um lugar outro que não nos é possibilitado facilmente, uma vez que
servimos a projetos de sociedade ancorados nas intencionalidades de grupos hegemônicos.
Sou motivado a apresentar essa experiência a partir de uma narrativa que envolve
modificações nos meus modos de pensar, agir e viver a docência e os outros âmbitos de minha
vida.
Em toda a minha trajetória de vida-escolarização-profissão sempre fui interpelado
pelas questões da diferença, mais especificamente pela questão de gênero. Na escola, na rua e
na roça isso sempre esteve presente nas relações que se estabeleciam nos espaços que
frequentava. Na infância, as demarcações do que era de menino e de menina já faziam uma
separação entre brincadeiras e brinquedos que podíamos usar, as formas de andar, falar, se
vestir, pentear os cabelos e escolher as cores.
Na adolescência, os desejos foram ocultados por perceber que estava demarcado
socialmente como e por qual gênero deveríamos nos interessar e nos constituir a partir das
proposições de uma heteronormatividade estabelecida e imposta. Na vida adulta, as decisões e
as ações também eram conduzidas por todas as interpelações de um discurso proveniente
dessa imposição legitimada como coerente, conforme parâmetros de normalidade para o
gênero e a sexualidade.
Esse contexto relacionado ao meu movimento de construção-desconstrução-
reconstrução de uma identidade de gênero e sexualidade desencadeou em minha vida muitas
situações que foram cômodas e outras não tanto, fazendo com que eu pudesse ir me
posicionando de modo a compreender meus percursos de vida-formação-profissão de um
lugar outro, constituído a partir da consciência de ser quem sou e afirmar minha condição de
ser.
Cabe evidenciar que minhas ações e pensamentos trazem o reflexo dessa identidade
que fui constituindo, o que tem me mobilizado a perceber a docência e os outros espaços de
vida de um modo diferente, num propósito de intermediar relações, conflitos e tensões pelo
diálogo, quando possível, mas, se a situação ou prática requer embate, também tenho me
proposto a isso.
Compreendo que experiência é um movimento efetivo e afetivo no qual nos dispomos
a envolvimentos múltiplos que nos proporcionam construção de conhecimentos e saberes, que
impactam e se tornam significativos para nossas vidas nos variados âmbitos dela. É a
exposição a determinados eventos e situações que nos traz ou possibilita a criação de
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tenho compreendido de outra forma a diferença nos espaços da escola, buscando lidar de
maneira que seja possível a valorização desse aspecto como uma afirmação e não mais como
negação e ocultamentos.
Evocar em minha narrativa uma trajetória de vida-formação-profissão que evidencia
meu percurso formativo e profissional, complementado com os estudos e vivências logradas
no contexto da Pós-Graduação, significa para mim um momento em que posso expor o
reconhecimento de minhas identidades, que foram construídas a partir de tudo aquilo que
vivenciei no decorrer de meu percurso na docência. Pude compreender meus modos de ser,
agir e habitar a profissão docente, afirmar uma vida autêntica, me fazendo abertura para um
ser que se presentifica nas paradas que realizo no caminho da experiência. Heidegger (1969,
p. 19), reitera que “[...] é o caminho que fala, que diz do que entendeu, do que sua atenção re-
colheu unindo e distinguindo. Mas um re-colher dis-ponível. É o re-colher o sentido, o dis-por
à liberdade”.
Recolher disponível é a forma mais precisa da presença que acontece quando
realizamos o processo da caminhada. Essa caminhada exige muito de cada ente, propondo-lhe
indagações acerca daquilo que se encontra no campo de sua circunvisão em cada parada que
faz ou até mesmo no movimento. Esse movimento compõe a travessia que conduz esse ente
como abertura constante para um ser que provoca sua transcendência. Recolher o sentido é
trazer à baila o que foi provocativo na presença desse ser configurado do inesperado que se
faz temporalidade no que vai sendo desocultado, na produção dessa experiência pensada
como travessia, atravessamento. É um reunir de coisas que se mostram nesses caminhos.
Aquilo que o distanciamento nos faz ver, ouvir e sentir.
Para chegar nesta parada que fiz, que está representada por uma narrativa daquilo que
significou um movimento transformador em meu percurso de vida-formação-profissão, foi
preciso recolher o disponível, deixando de lado e fora de minha circunvisão coisas que não
têm mais significado para esse meu modo de ser. Para isso, se colocou como necessário
imaginar possibilidades outras de falar e escrever como forma de dar sentido de pertinência ao
que vi, ouvi e senti.
Ver, ouvir e sentir é condição de se fazer abertura para o ser, deixando-se tomar por
aquilo que se apresenta como (sem)sentido que nada mais é que acontecimento, o que emerge
de nossas relações subjetivas e intersubjetivas provocadas pelas inconstâncias do vivido, da
nossa vida. “A vida, como a experiência, é a relação com o mundo, com a linguagem, com o
pensamento, com os outros, com nós mesmos, com o que se diz e o que se pensa, com o que
38
dizemos e o que pensamos, com o que somos e o que fazemos, com o que já estamos
deixando de ser” (LARROSA, 2019, p. 74).
Tomar a vida como experiência é uma provocação que abarca nossa condição sensível
de ver, ouvir e sentir de modos outros, que extrapolem as ações simplórias de como temos
feito esse movimento de percepção das coisas que se encontram cercadas por nossa
circunvisão. Para compreender melhor como essa condição sensível significa o vivido como
possibilidade de experiência, busco no poema Pêssego de Manoel de Barros (2015, p. 137)
uma explicação mais intimista que demonstre maneiras outras de ver, ouvir e sentir:
Proust
Só de ouvir a voz de Albertine entrava em
orgasmo. Se diz que:
O olhar de voyeur tem condição de phalo
(possui o que vê).
Mas é pelo tato
Que a fome do amor se abre.
Apalpar desabrocha o talo.
O tato é mais que o ver
É mais que o ouvir
É mais que o cheirar.
É pelo beijo que o amor se edifica.
[...]
Brincar embaixo das árvores sempre foi muito imaginativo e gerou boas sensações.
Nos arredores da casa na roça ou no quintal de nossa casa na rua sempre havia uma árvore
frutífera, de boa sombra para construir curralzinhos feitos com pequenas lascas de pau,
15
O termo distanciar tem grande relevância neste texto, pois diz-se de uma condição espacial da presença que
não está relacionada a algo estático e imóvel, ou seja, “[...] o espacial e o espaço da presença é uma abertura e
instalação de espaços” (HEIDEGGER, 2015, p. 570).
40
casinhas de barro, estradas para carrinhos, bem como, cabanas compostas por tudo aquilo que
representava móveis, louças e outros elementos de uma casa. Tudo isso como modo de
representar, através das brincadeiras, o mundo dos adultos e as atividades que desenvolviam.
Sempre tive uma quantidade de brinquedos que considero essencial para a época, pois em
minhas brincadeiras conseguia utilizar tudo que tinha. Eram alguns carros, cavalos, vacas,
bois, bezerros, porquinhos, cabras, burros, dinossauros e outras miniaturas de bichos
parecidos com os que existiam na roça e pertenciam à minha imaginação.
Minha irmã, 5 anos mais velha que eu, tinha bonecas e outros brinquedos. Poucas são
minhas recordações de brincarmos juntos utilizando algum dos brinquedos que eram meus ou
os que eram dela. Lembro bem que quando estava em casa passava o dia inteiro brincando no
quintal com as fazendinhas que construía ou então numa cabana que montei. Cresci ouvindo
dizer que menino não brinca com coisas de menina. Isso não era impedimento, pois sempre
brinquei com coisas de meninas às escondidas. Como não podia ter bonecas, apenas carrinhos
e essas coisas que convencionaram ser para meninos, tinha um ursinho e com ele representava
o desejo e o afeto do cuidado, instituindo a vivência de uma infância que fugia ao que estava
demarcado socialmente como modo de ser menino ou menina. Nas brincadeiras livres, sempre
me envolvia com minha irmã e suas amigas, pois a acompanhava na maior parte do tempo
quando ela saía para brincar na rua.
Todo objeto interessante para mim se tornava um brinquedo ou a possibilidade de um
divertimento. Na roça, o que mais gostava de fazer era subir em árvores, andar a cavalo e em
jegue. Correr pelas estradas de terra, tomar banho nos tanques 16, procurar búzios e pedrinhas
para serem meus brinquedos. O que adorava fazer também era juntar latas vazias e coisas
velhas jogadas no meio do mato que serviam para montar minhas casinhas embaixo do
umbuzeiro.
Esse pé de umbu era bem fechado e por baixo o chão era muito limpo, sem nenhum
mato ou garrancho, um lugar propício para viajar em qualquer fantasia ou realidade que
quisesse. Um espaço seguro dos olhares maliciosos dos mais velhos, que tinham uma
concepção de vida mais fechada para as questões que se apresentavam como diferentes. Ali,
fazia fogão e colocava folhas de mato para cozinhar, simulava uma vivência em um lugar
sozinho ou de poucas pessoas. Qualquer criança que chegava ia brincar comigo. Parecia que o
tempo era eterno e nada nem ninguém me faria algum mal. Não ouvia comentários, não
percebia olhares desconfiados e maldosos.
16
Pequenos reservatórios naturais de água encontrados em meio à vegetação natural da caatinga que servem
como bebedouros para os animais, bem como para o consumo humano.
41
Parece que era uma prospecção de minha vida no futuro. Uma espécie de preparação
despretensiosa de um ser presentificado num ente que o lançava no mundo. Era eu fazendo-
me abertura para o ser. Percebo que era uma condição de me tornar clareira para o ser. Para
Heidegger (1969, p. 77), “[...] a clareira, no entanto, o aberto, não está apenas livre para a
claridade e a sombra, mas também para a voz que reboa e para o eco que se perde, para tudo
que soa e ressoa e morre na distância. A clareira é o aberto para tudo que se presenta e
ausenta”. Sendo prospecção de futuro ou não, compreendo que era um fazer-se abertura,
clareira do ser que estava se presentificando no envolvimento com aquilo que a vida lhe
oferecia através de provocações de uma criança que constituía sua experiência de vida na
infância, pela liberdade de ser quem era, atendendo aos desejos de fazer como acreditava que
podia. Era um deixar-se fazer naquilo e a partir do que se apresentava ou se ausentava.
Na sombra do umbuzeiro, havia condições de um desvelamento do meu ser próprio –
autêntico ‒ que se manifestava nesse contexto da infância enquanto uma provocação para ser
o que já é, onde meus modos de existir na infância tinham influência de um fazer livre e leve,
sem comandos de outrem, em que o imperativo não tinha lugar. Era um ser-sendo ele mesmo,
numa sentenciação desencadeada pelo gerúndio constante.
Quando meu pai saía para fazer qualquer coisa de sua lida diária com os animais, eu o
acompanhava, adorava andar com ele. Sentia-me desafiado pelas atividades que ele me
ensinava. A maneira de ensinamento às vezes não era tão interessante assim, pois havia coisas
que ele fazia que me provocavam medo. Acredito que, como forma de demonstrar força e
segurança, acabava fazendo o que tinha que fazer. Isso foi preponderante para enfrentar as
situações da vida.
Minha mãe, sempre preocupada com nosso bem-estar, cuidava de tudo e se virava para
que nada nos faltasse em casa. Pensava em nosso futuro, cuidando da parte de escolarização
como algo muito importante em nossas vidas. Ela era a mantenedora da casa. Não media
esforços para fazer o melhor por mim e por minha irmã. Sempre estava atenta à nossa boa
aparência, nos arrumava impecavelmente. É uma lembrança constante o modo como cuidava
de nós. Escolhia a roupa que eu ia vestir, numa combinação de muito bom gosto. Eu sentia
aquilo como uma orientação para a vida. Cresci valorizando o cuidado comigo mesmo,
zelando por uma boa aparência, isso sem perder de vista os princípios de honestidade,
liberdade e dignidade que pude construir.
Minha infância foi um tempo vivido com bastante intensidade. Dividia-me entre as
descobertas do ver a roça, as aventuras no lombo do jegue, as brincadeiras de casinha na
42
sombra do umbuzeiro e tantas outras formas de ser criança na roça e na rua. Era um menino
quase parecido com o qual Manoel de Barros (2015, p. 131) descreve em sua poesia:
17
Tomo essa expressão como a condição de um ver, ouvir, sentir que abarca toda sensibilidade produzida no
movimento de habitar um lugar.
43
Em meio a tudo isso, uma coisa ficou demarcada em minha vida: ainda me utilizo
dessa visão de Fontana como possibilidade de ver, ouvir e sentir aquilo que tem sentido em
minhas formas de habitar a roça e desenvolver a docência, percebendo quais são as coisas que
simbolizam meus modos de existência, exercitando condições de abertura numa constância.
Narrar a experiência nos propõe uma articulação daquilo que nos afetou, nos envolveu e nos
atravessou como uma forma de anunciar e denunciar eventos e situações vividas, desvelando
compreensões instituídas por uma maneira de pensar o caminho da experiência a partir de
quem somos agora, do que nos motiva a desenvolver uma narrativa de vida, levando em conta
as intencionalidades de narrar o que está sendo narrado.
Isso se apresenta nesta pesquisa como princípio ético e político de um eu-pesquisador
que prima pela valorização das relações que cada pessoa da roça estabelece para construção
do conjunto simbólico que representa suas vidas e maneiras de existir e resistir em contextos
rurais. Penso que seja também por acreditar que as escolas da roça tenham uma potência
muito grande nas comunidades em que estão situadas e é delas que essa comunidade se nutre
social e politicamente. É por tais motivos que acredito na importância de buscar pensar
narrativamente sobre essas questões que me afetam e provocam inquietações como
condicionalidade de luta e defesa do que acredito como professor da Educação Básica e
morador de áreas rurais.
Paralelo às brincadeiras e montaria acontecia meu processo de escolarização numa
escola da rua. Era uma escolinha particular, sua estrutura não era muito grandiosa no que se
refere aos espaços de sala de aula e áreas pedagógicas. Lembro que as turmas eram formadas
com um número pequeno de alunos/as. A metodologia de ensino estava pautada nas propostas
de cartilhas, segundo as quais o desenvolvimento da coordenação motora fina era muito
estimulado. Utilizava-se bastante as propostas de desenvolvimento das competências de
leitura e escrita através do método fonema e grafema. As famílias silábicas eram apresentadas
de forma muito criativa, depois seguíamos com as reproduções de escrita, com as cópias e
repetindo com orientação das professoras. Desse modo, me alfabetizei logo e passei a ler as
palavras dos livros e me dedicar às atividades que a escola apresentava.
Em minha trajetória como estudante da Educação Básica, sempre fui muito envolvido
com a escola, adorava minhas professoras da Educação infantil e Ensino Fundamental, pois
demonstravam acolhimento, afetividade e respeito ao meu jeito de ser. Isso me fazia muito
bem, uma vez que eu sempre estava em busca de uma aceitação, pois ser filho de uma mulher
separada não era fácil, já que todos os/as meus/minhas colegas tinham seus pais e mães
convivendo juntos.
44
Como não conseguia me encaixar neste modelo, sempre me considerei diferente por
ter pais separados e também ter alguns trejeitos femininos. Eu não conseguia perceber
problema nisso, mas na rua sempre ouvi falas do tipo: Toma jeito de homem! Menino não se
comporta assim! Menino segura os livros assim!. Além de, às vezes, ser chamado de viado ou
mulherzinha na escola, na rua ou na roça. Isso tudo implicou em tentativas de ocultar minha
identidade sexual e de gênero, indo em busca de ser igual aos outros meninos, reproduzindo
atitudes de homem, passando a viver um conflito muito grande comigo mesmo, que se
estendeu durante toda minha infância e juventude. Com o tempo, consegui compreender meu
jeito de ser e construí minha identidade sexual e de gênero sem me considerar inferior.
Na roça onde meu pai morava tinha uma escola multisseriada perto. Quando ficava na
roça e sem ir à minha escola, ia lá para a fazenda de seu Pequeno 18, onde o prédio escolar19
estava localizado. Ficava na janela, olhando a professora dar aulas para uma turma que tinha
todo mundo misturado, desde crianças bem pequenas até crianças maiores que eu. Na época,
aquilo me fascinava... Uma escola no meio do tempo, sem muros, sem farda, onde eu podia
ficar na janela assistindo aulas e na hora que eu quisesse podia ir brincar com eles, andar a
cavalo, tomar banho nos tanques, fugir daquele sofrimento, dos padrões que a sociedade
exigia.
Os espaços da roça me encantavam, pois, além de uma condição de vida mais livre,
podia ver todas as coisas que pareciam sem muita importância para outras pessoas,
principalmente para adultos e quem não conseguia ver, ouvir e sentir essas coisas com visão
de Fontana. Em minhas caminhadas, nas proximidades da casa, do curral e de uma lagoa
imensa que existia na roça que ficava a uns 100 metros de distância da casa, encontrava
constantemente as carapaças que os caracóis abandonavam, parava para contemplar os
peixinhos e girinos mais minúsculos que já pude ver.
Passava um montão de tempo admirando as carreiras de formigas e os formigueiros, as
borboletas sugando o néctar das flores silvestres. Besouro rola-bosta20 enrolando pelo chão
rolos de bostas dos animais. Minhocas e outros moluscos que ficavam nos lugares mais
úmidos. Parava para ouvir o som dos pássaros e até mesmo o barulho do silêncio. O vento
parecia canção do tempo na natureza, às vezes calmo e sereno, outras vezes intenso e raivoso,
18
Senhor conhecido por seu Pequeno, dono de uma área de terra extensa que ficava em frente à casa que meu pai
morava na roça. Ele havia cedido uma área de sua terra para a construção de um prédio escolar.
19
Nas décadas de 70 e 80 do século XX, houve uma expansão das escolas nos espaços rurais (RIOS, 2015),
quando muitos donos de terras e com influência nas comunidades cediam uma área de suas terras para a
construção de salões para o funcionamento de uma sala de aula. Além do salão, existia também, um banheiro
nas proximidades da escola.
20
Digitonthophagus gazela, inseto responsável pelo controle da mosca-de-chifre em várias regiões do mundo.
45
tinha um zumbido de quem queria anunciar alguma coisa. Nada disso era apresentado na
escola. Lembro que somente no livro de Ciências tinha algumas transformações de plantas,
animais e insetos. Tudo para explicar que todo ser vivo, nasce... cresce... reproduz... e...
morre... Isso me incomodava, pois parecia uma coisa sem cabimento, conforme o
entendimento que tinha sobre a vida e o ser vivo.
Olhar as coisas em meu contexto de vida me oferecia possibilidades grandiosas de ver
o mundo, era uma coisa impressionante que apenas as poesias de Manoel de Barros (2015, p.
61-62), conseguem explicar e descrever com tamanha semelhança os modos de ver que eu
tinha na infância e como compreendia a vida a partir daquilo que me afetava, impressionava e
se apresentava para mim como inesperado e (sem)sentido:
[...]
Quando as águas se encurtam nos brejos, a arraia escolhe uma terra propícia,
pousa sobre ela como um disco, abre com as suas asas uma cama, faz chão
úbere por baixo – e se enterra. Ali vai passar o período da seca.
[...]
Ali, por debaixo da arraia, se instaura uma química de brejo. Um útero
vegetal, insetal, natural. A troca de linfas, de reima, de rúmen que ali se
instaura é como um grande tumor que lateja.
Faz-se debaixo da arraia a miniatura de um brejo. A vida que germinava no
brejo transfere-se para o grande ventre preparado pela matrona arraia. É o
próprio gromel dos cascudos!
[...]
Penso num (...). Comércio de hermafroditas de instintos adesivos. As veias
rasgadas de um escuro besouro. O sapo rejeitando sua infame cauda. Um
comércio de anéis de escorpiões e sementes de peixe.
[...]
É a pura inauguração de um outro universo. Que vai corromper, irromper,
irrigar e recompor a natureza [...].
compreensão e ser provocado por aquilo que não conseguia se explicar. Era o modo de ser
próprio – autêntico – fazendo-se vigorar na minha infância, impondo formas sensíveis para a
construção de minha relação comigo mesmo, com o outro e com os espaços de vida em que
estava inserido.
Essa relação que se produzia era nutrida da mesma maneira que a arraia conseguia
nutrir um agroval de vermes e tantas espécies de inseto que se inseriam no seu útero vegetal,
tirando dali o sustento essencial durante o período da seca, sem vales úmidos e com lamaçais
endurecidos. Disso também se nutria a arraia, numa relação de troca equilibrada. Manutenção
de vidas. Maneiras complexas de se fazer existir por aquilo que se mostra possível pela
alteridade constituída.
Eram minhas relações sendo constituídas nas descargas de ajuda. Solidarização de um
eu que perseverava, utilizando o afeto que as pessoas de sua convivência lhe ofereciam.
Afetado sempre pela condição de sensibilidade, atenção e cuidado, percebo que estava sendo
convocado, constantemente, a uma co-responsabilização com essas pessoas e com os lugares
que habitava na infância.
Às vezes me colocava na condição de arraia, que guardava tudo, encobrindo meus
sentimentos como se fossem insetos, vermes e girinos, como forma de manter meu existir
diante do que me afligia, amedrontava e desorientava. Outras vezes, me fazia inseto, verme ou
girino, apenas pela necessidade de um encobrimento maternal e incubatório, como maneira de
fortalecimento para os enfrentamentos do que me causava aflição, medo e desorientação,
numa infância marcada pela necessidade constante de um ser-mais que buscava se compor
através de formas possíveis de abertura para o ser do meu ente-criança.
Com essa situação de dupla sensação, de me fazer arraia e, também, tudo aquilo que
era abarcado por sua condição de útero vegetal, acontecia minha vida, sendo significada por
uma troca que instaurava a produção de uma estrutura sustentada por tudo que pulsava e
latejava em seu interior, fazendo com que fossem vitais as trocas, o mutualismo e o equilíbrio
para a construção de minhas relações de subjetividade e intersubjetividade. Foram essas
relações que se instituíram como condição para compreender minhas possibilidades de existir
e resistir como menino que vivia os espaços da rua e da roça, transitando entre todas as
possibilidades de construção de identidade de gênero e sexualidade e, contemplando cada
lugar conforme o que se apresentava para meu ser.
Viver os espaços da rua, frequentar uma escola urbana com uma configuração
totalmente diferente da escola que existia na roça, ser interpelado constantemente por desejos
e vontades que subvertiam o gênero e a sexualidade de um menino, conforme o que sempre
47
esteve legitimado pelo padrão heteronormativo, eram formas de acontecimentos que se faziam
oportunidades para que eu afirmasse meu ser próprio, de modo a revitalizar toda experiência
do que foi vivido na infância.
O espaço rural se colocava em minha vida como um lugar de liberdade, que
desencadeava em mim possibilidades de ter uma vida pautada em maneiras outras, que não
padronizavam as coisas por uma perspectiva de ambivalências e dualidades. Tais perspectivas
poderiam até ser bem presentes nesta realidade rural, mas eu não as sentia de modo tão
evidente nas relações estabelecidas neste espaço como na rua e na escola onde eu estudava.
Na narrativa da professora Di-Acauã, habitar a roça e produzir relações com o lugar vão
se constituindo a partir de sentidos e significados que mostram sua afirmação de uma vida
autêntica por outro lugar diferente do que narrei anteriormente, mostrando outras perspectivas
que sua realidade rural representava para ela:
Morar na roça significa produzir, ao longo da vida, formas que reconfiguram o lugar
através de sentidos e significações de existir na roça para se afirmar como pessoa do lugar que
cria condições próprias para superar estigmas e preconceitos por ser de onde é. A professora
expressa, em sua narrativa, elementos que reconfiguram esse rural que, ao longo do tempo,
era demarcado pela pobreza das pessoas e pela falta de escolaridade, carregando o estigma de
tabaréu como uma marca do ser da roça. A superação dessas questões se estrutura pelo lugar
da afirmação das maneiras de habitar o rural que foram sendo reforçadas conforme as
significâncias que Di-Acauã construiu sobre a roça.
Há uma valorização do processo de vida-escolarização na roça que se efetiva através
de relações parentais, de modo que os vínculos afetivos ressoam nos movimentos de
escolarização que as pessoas da roça vivenciam na infância, o que demarca condições
específicas na construção de nosso mundo circundante. Esse processo de afirmação de ser e
48
viver a roça colabora para a inscrição de insurgências de um rural (re)significado que instaura
as muitas possibilidades de desvelamento do ser-na-roça como a condição que cada pessoa do
lugar reúne para produzir ruralidades a partir de como vê, ouve, pensa e narra a roça.
Esse rural (re)significado propõe relações de intercomplementaridade urbano-rural
numa proposição conjuntiva que supera concepções binárias e de sobreposição de um espaço
em relação ao outro pela lógica urbanocêntrica que é constitutiva de condições da vida
inautêntica. Compreendo que essa intercambialidade que existe entre o rural e o urbano
convoca entendimentos outros a respeito dos processos culturais e sociais que vão sendo
constituídos pelas pessoas que habitam a roça como rompimento oriundo das relações
intersubjetivas que produzimos conforme nosso demorar junto às coisas e ao lugar.
O que se colocava com relevância na roça, na época de minha infância, era a produção
da intersubjetividade a partir do encontro das famílias para a quebra e tiragem de licuri,
debulha de milho, tarefadas21 na casa de farinha, batas22 de feijão. Essas atividades eram
desenvolvidas por todas as pessoas da comunidade rural e não tinha separação entre o
masculino e o feminino. Isso era o que notava com meu modo de ver na infância. Hoje
percebo que havia sim a divisão daquilo que o gênero feminino tinha que dar conta e também
o gênero masculino. A divisão de tarefas estava relacionada à força muscular e manuseio de
máquinas e engenhocas. Lembro que as mulheres desenvolviam a parte de atividades que
envolviam o cuidar, a preparação do alimento, a parte de tirar a tapioca 23 e preparar o beju24.
Assim, os homens se encarregavam de arrancar as raízes de mandioca, sevar 25, prensar26 a
massa e mexer a farinha. As atividades mais pesadas ficavam para o gênero masculino.
As crianças desenvolviam as atividades consideradas mais leves, alimentando os
animais de pequeno porte, ajudando no plantio de sementes conforme as culturas que cada
família cultivava em suas propriedades, cuidando do abastecimento da casa com água, que
precisava ser transportada de tanques, lagos e lagoas, pois nenhuma das casas da roça, na
época de minha infância, contava com água encanada e muito menos com energia elétrica. O
21
Atividade realizada por muitas pessoas juntas na casa de farinha no decorrer de uma semana, com o objetivo
de produção dos derivados da mandioca.
22
Processo de colheita, separação e apuramento do grão que é realizado manualmente por grupos de homens e
mulheres. A atividade se dá com o auxílio de pequenos porretes para bater um volume médio de feijão seco na
casca que vai se desprendendo facilmente com esse movimento.
23
Massa fina que ficava concentrada no fundo da gamela quando separada a água que passava pelo motor que
sevava as raízes de mandioca para o preparo da farinha.
24
Bolacha produzida com a tapioca ou a massa resultante da ação que moía a raiz de mandioca.
25
Ação de introduzir as raízes numa máquina ou engenhoca para que se transformassem numa espécie de massa.
26
Ação de separação entre a massa e o líquido ‒ a massa da mandioca é colocada num compartimento chamado
prensa, engenhoca de madeira com um compartimento com pequenos buracos instalado numa base com uma
tábua na parte de cima acoplada a um tronco no formato de parafuso, em que facilmente poderia enroscar
através da força braçal e comprimir a massa para eliminação do líquido.
49
plantar e o cultivar estavam na responsabilidade de todos que moravam na roça. Era uma ação
de cuidado com tudo que precisavam cultivar. Neste sentido, cuidar do solo e das condições
da terra, para que as culturas germinassem com força e saúde, era uma responsabilidade de
todas as pessoas que habitavam a roça. Mota, Silva e Rios (2021, p. 117) reiteram que:
[...] a vida na roça é regida por princípios que instituem para meninos e
meninas a realização de tarefas ou trabalhos que a estes cabem na
organização do espaço da casa estabelecida por cada família, é importante
ressaltar que a infância na roça encontra-se permeada por fazeres e afazeres
fundados em princípios e valores inerentes à vida nos territórios rurais. Em
meio aos fazeres e afazeres, encontram-se o brincar e o estudar como
atividades inerentes à(s) infância(s) no espaço rural, sendo a escola o local
reservado para o encontro de meninos e meninas da roça poderem
estabelecer relações diversas que são construídas ao estudarem e ao
brincarem.
É na própria infância que essas divisões de tarefas já vão sendo apresentadas para as
crianças conforme o gênero, aí vai sendo instituída uma condição de ser menino e menina a
partir do que estava demarcado socialmente por uma cultura sustentada pelo modo patriarcal
que ainda impera em nossas sociedades. Mas, em meio a questões como estas, alguns/mas
meninos e meninas subvertiam esses padrões e se lançavam no seu mundo, de acordo com
suas vontades e desejos de ser quem eram orientados/as por seu ser-mais. Mesmo com essa
separação das atividades conforme o gênero, percebia que havia uma relação de ajuda mútua.
Quando era preciso o apoio de mais pessoas, não havia distinção de gênero. As pessoas se
ajudavam conforme suas necessidades. Assim, a vida na roça ia sendo tecida e enredada como
uma condição da produção de um existir na roça. Uma maneira de habitar específica do lugar.
Na roça, todas as atividades que as crianças desenvolviam estavam divididas entre
trabalhar, brincar e estudar. O trabalho que as crianças desenvolviam era de colaboração junto
à família e, em muitos casos, para juntar um dinheiro que já servia para a compra de algum
material para a utilização pela própria criança. O brincar estava paralelo ao trabalho que
precisava desenvolver, nos momentos mais livres entre o intervalo de uma atividade e outra.
O estudar se dava como uma possibilidade de conseguirem avançar, sendo incentivadas a não
permanecerem nos espaços rurais quando se tornassem adultos, pois ficar na roça, para muitas
pessoas, era como uma condição de não-gente (RIOS, 2011).
Cabe ressaltar que, mesmo tendo essas atividades realizadas coletivamente em cada
propriedade das famílias que vivem em espaços rurais, sempre houve atividades que eram
executadas por pessoas do gênero masculino e outras pelo gênero feminino. Assim, as
atividades domésticas, cuidados com a produção agrícola e manejo dos animais da
50
propriedade familiar ficavam por conta das mulheres e das crianças, enquanto os homens
adultos e jovens saíam para trabalhar nas propriedades maiores da região ou em outras
comunidades.
O sentimento que tinha na infância se produzia em torno da manutenção de uma
condição mais segura, pois parecia ser uma questão de sempre querer me manter numa zona
de conforto, bolhas que criava para me proteger daquilo que podia me afetar de modo
desestruturante. Vivemos na busca constante de retomar a lugares como esse que a arraia
oferece. Lugar de proteção, onde existe uma nutrição mútua. Mas nossa possibilidade de
afirmar uma vida autêntica nos mobiliza a sair, seja pela escassez de recursos que esta
situação apresenta ou por necessidade de desenvolver-se. Percebo que esse sentimento, busca
de conforto e proteção acontecia comigo na infância, mas uma coisa me provocava a sair
como possibilidade de vida e ampliação de uma circunvisão que me permitia habitar meu
lugar de vida e existência de maneira alargada, tomando decisões que afirmariam um modo de
ser próprio que se manifestava em meu ente-criança.
Este ser que confluía numa perspectiva de fazer-se inauguração de mundos,
corrompendo, cultivando, produzindo a vida e recompondo meu espaço de vida. Um espaço
determinado pela presentificação de um ser-criança que se envolvia com aquilo que acontecia
na roça, na rua e na escola em que desenvolvia sua trajetória de escolarização, buscando
caminhar produzindo experiência, recebendo as provocações de um espaço-tempo
condicionado por coisas do afeto que me faziam espaço e me lançavam num espaço-mundo,
expondo modos de entendimentos sustentados pela necessidade de irromper aquilo que estava
imposto.
Sendo a presença espacial minha maneira de distanciamento e direcionamento do que
se fazia significância, fundada numa circunvisão constituída do que me afetava e provocava a
uma exposição, conduzia minha forma de viver as temporalidades da roça e da infância de
modo que pudesse tomar meus espaços de existência como abertura e, paralelo a isso, me
fazer abertura. A presencialidade que instituía as temporalidades da roça e da infância
demarcava formas de distanciamento a partir das condições de abertura para o ser que se
desvelava conforme eu me fazia exposição, pela possibilidade de ser-sendo manifestado num
ente envolvido num espaço-mundo representado e produzido pelas circunstâncias das
existencialidades na roça.
Isso não se dava de maneira consciente de minha condição de existir. É a forma que
me utilizo no tempo presente e instituidor de um ser articulado de um presente histórico,
buscando compreender suas experiências da infância interpretadas num contexto muito íntimo
51
e ficcional que se faz elementar para a maneira como vejo, ouço e sinto as coisas e meu
mundo. Heidegger (2015, p. 166) reitera que:
O nosso modo de ser é, também, um deixar vir ao encontro, assim, noto que quando
criança, tanto na escola quanto na rua ou na roça, deixava que os espaços e coisas viessem ao
encontro de meu ser. Era como encontrava um modo de arrumar as coisas que me
provocavam exposição e me convocava a fazer o que fazia, impulsionado por desejos e
vontades, uma forma de descobrimento de minha sexualidade representada por aquilo que era
desencadeado a partir de minhas ações.
Era minha maneira de sentir e ser quem era, eroticamente, sensível, deixando que o
acontecer se fizesse presença. A partir disso, arrumava as coisas como uma necessidade de
doação orientada por cada situação que me passava, me colocava em evidência como pessoa
de uma experiência única, efetivada pelo modo como via o mundo, articulando, a partir do
distanciar, as coisas que se encontravam no lugar de minha circunvisão, elegendo os espaços
da presença que representavam o encontro permissivo da construção das relações relativas aos
meus processos subjetivos e intersubjetivos.
Um arrumar as coisas desarrumando a vida num sentido bem profundo de buscar
compreender como o movimento de aprender e apreender a respeito de um jeito outro de ver o
mundo, fazendo relação com todas as coisas que adultos e crianças de minha convivência
podiam me oferecer. Nesta fase, sempre foi muito relevante a presença de primos e primas,
amigos e amigas, seus pais e suas mães, tios e tias e, principalmente, de minha vó Rosinha,
para que pudesse construir meus entendimentos sobre o que era afeto, troca, cumplicidade,
lealdade, amor, carinho e compreensão.
Entender que o mundo não era apenas aquele que pensava conhecer; era meu mundo e
o mundo de cada pessoa que se fazia presença em minha vida na infância. Então, tinha
oportunidade de construir relação com o outro e, a partir disso, reconstituir, ressignificar,
recompor e reconfigurar o meu mundo. Fazia-se de grande importância meu envolvimento
com essas pessoas. Minha vó, tias e mães de amigos/as representavam para mim outra forma
de maternidade que se distinguia daquela que mainha fazia. Meus tios, primos mais velhos
que eu e pais de amigos/as significavam a relação mais paternal que não encontrava em
52
painho. Assim, fui me constituindo menino que via, ouvia e sentia de um jeito próprio, de
fazer referência a essas pessoas como grandes personalidades em meu processo
transformativo.
Dentre estas pessoas, destaco minha relação de afeto e formativa com minha vó
Rosinha, pois foi com ela que aprendi a arte de narrar, o poder de produzir histórias e
ressignificar a vida pela linguagem. Ter o privilégio de conviver com uma mulher que
produzia sua experiência de vida e formação no acontecer do vivido, enredava cada
ensinamento, do que considerava importante em meu processo de formação, numa narrativa
de vida, apresentando seu mundo como lugar encantador, apesar de todo sofrimento,
abandono e necessidades que havia passado. Tudo isso essa mulher ressignificou e
transformou em condições de leitura de mundo. Foi minha professora de referência. Como
não podia me ensinar as letras por não ter sido alfabetizada, ensinava-me histórias, contas,
formas outras de registrar e grafar a vida. Valorava muito a educação formal, garantindo que
filhos e filhas frequentassem a escola, o que acontecia também com netos, netas, bisnetos e
bisnetas.
Minha história de vida acontece a partir de uma reconfiguração provocativa e
instituída por uma rede em que cada fio vai sendo interseccionado com fios das vidas dessas
pessoas em pontos que não significam fim, mas início, parada, intervalo. Ou seja, uma vida
constituída e significada nas relações, presentificadas pelo ser que habita cada ente das
pessoas com quem tive oportunidade de conviver na infância.
desarrumar numa perspectivação do arrumar tem sentido amplo e valorativo para as formas de
nos fazer abertura para o ser.
Essas formas de fazer-se abertura são convocativas de uma busca constante de um
espaço que será instituído pelas temporalidades e espacialidades que se apresentam com
nossas maneiras de ser-no-mundo que compreende toda trajetória de vida que tivemos
oportunidade de construir, elegendo situações e acontecimentos que nos provocaram à
produção da experiência que congregamos e tomamos como fundamento para dar
continuidade aos nossos processos formativos e de existência.
A própria presença já significa o desencobrimento de um espaço como possibilidade
de descoberta, que está relacionada com modos de representar o vivido a partir da condição
que cada um de nós temos e está instituída pela nossa forma de ser-no-mundo. Heidegger
(2015, p. 166), apresenta que “[...] o espaço nem está no sujeito nem o mundo está no espaço.
Ao contrário, o espaço está no mundo à medida que o ser-no-mundo constitutivo da presença
já sempre descobriu um espaço. O espaço não se encontra no sujeito nem o sujeito considera o
mundo „como se‟ estivesse num espaço”. Compreendo que este espaço constitutivo da
presença do ser é equivalente a uma construção simbólica, que se dá com o envolvimento de
cada pessoa com seus lugares de vida e existência, sendo reconfigurado e ressignificado com
tudo aquilo que se encontra no campo de circunvisão de cada um.
Nesta direção, percebo que minha vida foi sendo enredada por outros caminhos um
pouco diferentes dos que narrei sobre a infância. Outras representações, referências que se
efetivavam pelo afastamento de algumas pessoas e situações de vida, pela percepção de que
minha condição de ser quem era começava a despertar olhares, insinuações e maneiras de
educar, orientar e conduzir a construção de meu processo formativo conforme o que estava
instituído socialmente em minha comunidade para o gênero masculino legitimado.
Distanciei-me daquela roça em que meu pai morava, por um longo período, pois ele
havia ido embora para trabalhar em fazendas de outros municípios. A partir de então, nos
desvinculamos e nosso contato passou a não existir mais ao longo de uns 20 anos. Minha mãe
passou a viajar com maior frequência em suas aventuras amorosas. Eu e minha irmã
ficávamos sob os cuidados de vó Rosinha, que se encarregava de orientar, nos acompanhar
em algumas atividades e outras situações.
Muita coisa mudou entre minha infância e juventude. A escola deixou de ser o lugar
de envolvimento e passou a significar relações de ocultamento, receio e retraimento para
minha maneira de ser, pois tinha trejeitos femininos e gostava de brincar com algumas
meninas. Passei a estudar na escola pública, que era um prédio grande, poucos/as alunos/as
54
também. Nessa escola, fiz amizades muito boas, que me ajudaram a entender a importância de
lidar com as diferenças. A escola pública significou, para mim, formas outras de perceber
minha condição como sujeito que teria que lutar e insistir na transformação de sua condição
de existir como uma garantia e possibilidade de tomar como presentificação do ser maneiras
para afirmar uma vida autêntica. Logo, passei a entender que a vida não seria muito fácil
como pensava antes, por ter tido muita atenção, de modo que as coisas pareciam vir até mim.
Significa dizer que com cada situação de ausência e afastamento das pessoas de meu
afeto aprendia a lutar em busca daquilo que pretendia me tornar, valorizando princípios de
respeito ao outro, desenvolvendo minhas potencialidades de ser. Isso seria a minha melhor
condição para enfrentar preconceitos e outras dificuldades que iam surgindo. Esses
afastamentos que iam se dando em minha vida passavam a desencadear impossibilidades na
construção de novas relações de afeto, pois havia um medo que se ocultava neste movimento.
Medo de construir novas relações de afeto e ter que me afastar novamente das pessoas
envolvidas nessas relações.
A roça sempre significou uma presencialidade do ser que se manifesta no ente que
sou, instituída como espacialidade de meu ser-no-mundo e, também, como espaço de vida.
Acredito que era uma forma de refúgio para esses momentos que vivenciava em relação às
questões de gênero e sexualidade que me atravessam, bem como, maneira de busca de um
tempo que já havia ficado para traz, mas que representava e significava meu ser sensível,
desencadeado a partir daquilo que outrora se mostrava um arrumar das coisas.
Descobrir e desencobrir espaços instituídos pela presença que se construíam com meu
jeito de desarrumar as coisas do meu ser-no-mundo fazia com que me mobilizasse no
encontro de outras roças, que não seria mais como na infância. Então, acompanhava alguns de
meus tios e tias em idas para suas roças, com mais frequência tia Telinha27 e tia Neuza28. Suas
roças passavam a ser minhas também, pois esses se faziam espaços da presença em que meu
ser se mostrava.
Cada vez mais, me ligava aos espaços rurais, aprendia as coisas da roça, observando as
outras pessoas fazendo, buscando orientações sobre as atividades que me interessavam. Desse
27
Essa minha tia é a segunda filha de minha vó Rosinha. Mulher resiliente que sempre ajudou minha vó na lida
da roça e depois se constituiu comerciante e proprietária de uma padaria na cidade, bem como agricultora.
28
A tia que se formou professora e construiu uma carreira na docência ocupando os cargos de Direção,
Coordenação e, atualmente, Secretária Municipal de Educação em Várzea do Poço-BA. É a filha caçula de vó
Rosinha.
55
modo, passei a me responsabilizar por buscar o cavalo na manga 29 perto da rua para que meu
tio ou primo fossem para a roça e esperava ansioso a chegada do final da tarde, para que
quando retornassem eu pudesse cuidar do animal e levá-lo até a manga novamente.
Nosso município tem característica rural e quase todas as famílias tinham uma forte
ligação com a roça como um meio de cultivo e produção para a subsistência da família. Sendo
assim, muitas famílias moravam na rua e desenvolviam suas atividades na roça. Como a
motocicleta ainda não era uma realidade de nossa região, os meios de transportes mais
utilizados eram a bicicleta e animais como jegues, cavalos e burros. Quando era tempo de
chuva, as estradas ficavam cobertas de lama e barro, então, tínhamos que seguir da roça para a
rua, e vice-versa, a pé ou no lombo de jegues, cavalos e burros. Pisar no barro escuro das
estradas me dava uma sensação de prazer pela textura que sentia, era como se atingisse outras
estruturas de meu corpo e pensamento. Por outro lado, pisar no barro sem saber que tipo de
solo e textura meus pés tocariam trazia um sentimento incerto que me provocava a tomar
cuidado e pisar devagar, pois o terreno que antes das chuvas era sólido e um pouco pedregoso
não afundava, se apresentava de um jeito diferente.
Era uma condição de lançar-se no mundo inaugurando condições que significavam a
afirmação da vida autêntica conduzida por modos de ver, ouvir e sentir aquilo que se
encontrava no campo de uma circunvisão estimulado a ampliar este campo através de
proposições incertas que instigavam meu ente-adolescente a ver, ouvir e sentir de uma forma
outra, considerando outros elementos e situações que provocavam a presentificação do ser.
Utilizo-me da poesia de Manoel de Barros (2009, p. 39) como elemento que desvela
meu modo de compreensão da vida e do mundo, a partir de uma circunvisão que se
ressignifica a cada vez que sou provocado a ver, ouvir e sentir minha realidade de vida e meus
percursos formativos, considerando meu jeito de ser, pensar e agir que tem sido nutrido por
minhas relações de subjetividade e intersubjetividades:
29
Pequena área de terra dividida como piquetes com pastagem abundante que servia para prender alguns animais
durante a noite para que no outro dia estivessem com mais fácil acesso para retomar às atividades diárias na
roça.
56
modos de ser a partir desse processo cultural. Tal produção pode ser considerada como
possibilidade de uma vida inautêntica.
Desse modo, aprendi a lidar com as situações em que o preconceito estava revelado
nos espaços da escola bem como na roça. Assim, consegui perceber que era necessário
valorizar mais os estudos sem precisar me desvincular da roça e do que sempre desenvolvi
neste espaço. Então, comecei a frequentar todas as aulas e cumprir com bastante dedicação
todas as propostas que professores/as lançavam. Isso se intensificou mais no período do
Ensino Médio. A cada atividade realizada, debates e apresentações no Curso de Magistério
que me envolvia, a docência ia sendo desabrochada em mim. Logo, no meu segundo ano de
curso realizei uma atividade de observação numa classe multisseriada com estudantes adultos
e esta era composta pelas turmas de 2ª e 3ª séries primárias 30, que atualmente equivalem aos
3º e 4º Anos das Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Por ter me desempenhado bem nesta
atividade, o professor regente passou a me pagar para que assumisse a turma durante o resto
do ano. Nesta época eu tinha 16 anos31, a turma funcionava no turno noturno e estava
vinculada a uma escola estadual.
Isso foi estimulador para minha formação no Magistério, pois estudava e buscava
propostas de contextualização, considerando a idade das pessoas, pensando maneiras como
poderia desenvolver com a turma o processo de leitura e escrita. O afeto era a grande questão
que me ajudava a conduzir uma turma multisseriada com pessoas numa idade de 15 a 50 anos.
Em meio a esse processo do curso de Magistério, minha mãe precisou ir morar em outro
município. Minha irmã já não morava mais com a gente, então, fiquei sozinho. Minha vó
Rosinha e tia Neuza me acolheram em suas casas. Dormia na casa de vó e fazia as refeições
na casa de minha tia. Foi um período difícil. Passei a trabalhar na roça, carregando leite para
vender na rua e também para a desnatadeira32 de meu tio.
Estagiava, estudava e ainda desenvolvia essa atividade na roça. Isso foi muito valioso
para que eu pudesse entender que meu empenho nos estudos seria uma condição de lançar-me
no mundo. Era meu ser sendo instituído pela minha condição de ser-mais, ampliando o campo
de minha circunvisão, redimensionando a vida de acordo com meus projetos de si. Era um
caminhar no barro, enfrentando as incertezas de uma construção de relações significadas por
30
Com a implantação do Ensino Fundamental em 9 anos, essa nomenclatura mudou. Elas equivalem agora ao 3º
e 4º Anos das Séries Iniciais do Ensino Fundamental.
31
Nesta ocasião, era uma atividade informal com consentimento da diretora da instituição por duração de um
trimestre.
32
Fábrica de queijos e requeijão artesanais.
60
Eu nasci neste lugar, não me vejo morando em outro lugar, até porque
quando eu nasci na roça, não foi aqui nesse mesmo município, foi no
município de Mairi. Mas nasci na roça e valorizo as coisas da roça, o
levantar cedo, o cuidar dos animais, são essas minhas escolhas, não me vejo
em outro lugar sem fazer isso. Vou pra a escola, quando chego vou ajeitar a
comida para os animais, tem vaca, galinha, porco e a plantação, é assim que
eu gosto. Isso também dá certo muito bem em meu trabalho, porque as
crianças têm a mesma linguagem. São pessoas que também vivem na
comunidade e que tem galinha, porco, horta, é uma língua que a gente
entende o outro. Isso aí gera resultado positivo. (Damiana-Acauã, entrevista
narrativa, 2020)
mais sólida abaixo dele que, a depender do lugar, pode ser profunda ou mais rasa. A partir das
discussões apresentadas por Larrosa (2019, p. 69), entendo que o ser da experiência é
presentificado na força e significação daquilo que acontece nos intervalos e inconstâncias, que
se apresenta para nossa condição do que não se sabe com o que consideramos saber:
Com isso, somos sempre convocados pelo ser que produz experiência para pensar que
as formas de dizer da experiência estão centradas nas perspectivas de uma presença que
provoca abertura nos entes, oferecendo possibilidades de sentir o que se passa no lugar desse
intervalo e inconstância, que há entre o dizer e o não-dizer responsáveis pelos acontecimentos
que nos sucedem como forma própria da produção de linguagem autêntica e singular,
elaborada para representar e instituir o vivido que se constituiu experiência.
Por compreender que a experiência se elabora em forma de relato, posso reiterar que
as narrativas apresentadas e tecidas aqui sobre meus percursos de vida e formação são
abertura e possibilidade de manter a elaboração da experiência centrada naquilo que se
apresenta como incertezas provocativas da manifestação do desconhecido, que vai sendo
descoberto e desencoberto nos processos de vida que vão se dando. Isso só se passa com
quem se lança no mundo e se dispõe às diversas maneiras provocativas dos modos de
exposição, entrega, doação e reunião do que está evidente no campo de sua circunvisão com o
que ainda não se apresenta com tanta evidência, mas que já existe por perto. Assim, não
conseguimos relatar uma vivência qualquer como se esta fosse experiência. Somente é
possível relatar o que está significado no tempo narrado e tempo da narrativa o que se
constituiu experiência.
As perspectivas formativas que concebo como importantes para esse meu ser-docente
foram sendo instituídas pelas experiências do vivido, através dos atravessamentos da docência
em minha condição de ser, desencadeada a partir da proposição de um ser-mais, evocado e
provocado pelas narrativas do outro, que evidenciava as experiências logradas no
desenvolvimento de seus fazeres na docência e, também, do ser-docente que habitava nessas
pessoas, com quem pude apre(e)nder um tornar-se professor. Por isso, cabe desvelar a
62
respeito de como eu via e acompanhava as formas com as quais Tia Neuza e meu primo Adé 33
representavam seus modos de ser professora e professor em classes multisseriadas, situadas
em comunidades rurais, pois ao narrarem para mim sobre suas experiências na docência
revelavam um jeito apaixonado e apaixonante de fazer o que faziam, bem como enfrentavam
e lidavam com as dificuldades da profissão. Eram momentos em que tinha oportunidade de
conhecer como os dois desenvolviam a profissão docente, suas maneiras de estabelecer
relação com as crianças considerando o fator de sempre demonstrarem uma preocupação com
os contextos de vida e condição social dessas crianças e das comunidades na qual moravam.
Além disso, eu conseguia observar atentamente como eles planejavam suas propostas
didáticas e o jeito de articular seus fazeres no cotidiano da sala de aula, desenvolvendo suas
práticas e intervindo nas questões de dificuldades apresentadas por seus/as alunos/as. Narro
esses acontecimentos a partir dos relatos que constantemente ouvia deles ao apresentarem
suas experiências, bem como através das oportunidades que tive ao assumir por alguns
períodos a turma de Adé, além de ter acompanhado tia Neuza nos momentos que ia para a
escola. Tais acontecimentos vão além das representações que apresento com minhas
narrativas. Eles são apresentados pelo professor Sebastião-Acauã quando narra as relações
que constitui com as pessoas da comunidade:
Eu posso dizer o tanto que eu fui querido, não só aqui Nova Esperança por
minha família, mas também no município, minha comunidade pequena,
comunidade na qual eu moro e me identifico muito, o tanto que a gente é
querido, porque também a gente tem uma caminhada muito grande e muito
longa com essas pessoas, eu me lembro que no meu período de professor de
alfabetização, hoje meus alunos estão todos formados, a maioria já fez
faculdade, tem vários exemplos assim deles que saem para fora aí quando
chega de Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, me encontram é aquela festa,
aí o professor vai começar a relembrar aqueles casos que aconteceram na
sala. (Sebastião-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
33
Ser-sensível, professor da Educação Básica que desvela seu ser-docente pela compreensão de que a relação
entre professor/a e aluno/a acontece pelo campo do afeto e do acolhimento.
63
Acauã toma para mencionar esses processos e o movimento de ser afetado pelas relações que
produzia na docência.
A partir disso, posso mencionar que vivenciava a docência de muitas formas diferentes
ao longo de minha vida, podendo conhecer espaços escolares organizados de acordo com a
realidade e os modos de fazer próprios de cada um/a. Neste movimento, conseguia ver e
perceber a distinção entre o fazer docente a partir de perspectivas diversas, modos de afeto
presentificados nas relações que cada uma dessas pessoas estabelecia com as crianças. Isso se
mostra para mim como uma questão de co-formação que provocava um lançar-se na docência,
alimentando meus desejos de ser-docente a partir do modo como testemunhava essas duas
pessoas de minha família e algumas de minhas professoras da Educação Infantil e das Séries
Iniciais do Ensino Fundamental.
Desse modo, nos valemos das narrativas de vida para apresentar aquilo que se
configura como nossa experiência. Logo, o que está sendo narrado, relatado são
acontecimentos que representam a experiência que produzimos e não a experiência em si. É
por este motivo que vou apresentando minha história de vida-formação como uma tessitura
que vai sendo enredada a partir de compreensões sobre a constituição da experiência que me
provocou exposições do que se passou comigo e daquilo que me tocou.
De acordo com o que vai se tecendo no movimento dessa narrativa de minha vida, vou
percebendo a significação do processo reflexivo que sou provocado a fazer a respeito do ser
que se apresenta no ente que sou num tempo presente. Isso compõe uma dimensão que vai
sendo configurada pelas narratividades, que aqui trago como sentido de narrar, sendo
desencadeadas por um saber da experiência que proporciona um trans-ver meus percursos
formativos de outro lugar que simboliza dois tempos.
O primeiro é o tempo do distanciamento proposto pelo movimento de buscar no
biográfico-narrativo entendimento a respeito de pontos e intersecções que foram sendo
construídos a partir das relações subjetivas e intersubjetivas, de acordo com o modo como nos
envolvemos com o outro, com nossos espaços de vida e com quem somos. O segundo é o
tempo que ocorre dentro do primeiro tempo. É um tempo que se mostra no próprio
movimento de distanciar, que se dá quando evocamos, intencionalmente, as coisas e os
espaços que compõem nossa circunvisão para deslocar nossas formas de ver, ouvir e sentir o
que já se encontrava exposto e reunir com o que se fazia oculto nas sombras daquilo que
estava exposto.
Esses dois tempos acontecem simultaneamente, numa relação de interdependência e
são importantes no movimento feito ao narrar o vivido, de modo que sejam evidenciadas as
64
Apresento aqui uma retomada sobre como significo a experiência de narrar a vida num
presente histórico por perceber que o movimento de reflexividade formativa emerge de um
processo narrativo desencadeado do movimento biográfico-narrativo como possibilidade de
tomar as narrativas como abertura para a presentificação de um ser da experiência que revisita
pontos para compreender-se na sua condição de ser-mais. Com isso, fica evidente que o
próprio ato que desenvolvo ao narrar minha história de vida e formação se coloca para mim
como projeção de um futuro que se sustenta no presente.
Este presente histórico representa o como instituo acontecimentos do passado que
compõem o vivido. Dessa maneira, a narrativa se apresenta também como a possibilidade de
ampliação dos horizontes que nos permitem a elaboração de um projeto de si que vai sendo
perspectivado conforme as significações que pude fazer sobre esse presente histórico que
aparece no que é narrado.
Tomar a vida como elemento narrativo nos propõe um movimento de distanciamento
de nossa condição de narrador/a para uma dimensão da análise, que nos oferece oportunidades
para uma contemplação fundamentada em princípios epistemológicos, nos ajudando a pensar
65
sobre esse vivido num tempo presente como movimento instituído pelo processo biográfico-
narrativo. Este tempo presente se mostra na forma como reunimos dimensões do tempo vivido
que congregam entre si para nos oferecer ferramentas que serão necessárias para melhor
compreensão de cada nó que foi tecido nas redes de sentidos e significados que vamos
produzindo ao longo dessa vida que se coloca como evidência, numa narrativa constituída
através de um movimento de pensar caminhos da experiência.
vida e existência, motivos para enfrentar o que, socialmente, ameaça essa existência e a
presentificação do seu ser.
O processo de autobioformação é decorrente dos percursos de vida-formação
desencadeados pelo pensamento do sentido. Assim, é a partir do pensamento do sentido que
conseguimos compreender, o movimento que nos provoca abertura do ser-docente, conduzido
por aquilo que o faz acontecer, o toca, o expõe, oferecendo elementos de um constituir-se
num caminho do pensar. A respeito do pensamento do sentido neste processo, busco um
melhor entendimento quando Heidegger (2012, p. 59) expõe que “[...] os caminhos do
pensamento do sentido sempre se transformam, ora de acordo com o lugar, onde começa a
caminhada, ora consoante o trecho percorrido pela caminhada, ora conforme o horizonte que,
no caminhar, vai se abrindo no que é digno de ser questionado”.
É a travessia que nos mobiliza a utilizar o vivido como lastro para a instituição da
nossa história de vida como movimento de autobioformação. É no acontecimento do que nos
passa na caminhada que nos propomos a realizar a construção de sentidos e significados que
provocarão abertura do ser-docente. Isso colabora para a ampliação de nossas condições de
ver, ouvir e sentir o lugar que habitamos e como nos utilizamos dessas condições para
desenvolver a docência.
O pensamento do sentido é a condição efetiva de um ente que se coloca à disposição
do ser e está constantemente desenvolvendo-se a partir de como demora-se nos espaços que
existe e com as coisas que consideram importantes no seu existir. Este desenvolver-se
constantemente vai sendo significado aqui pelo processo de autobioformação que me
proponho fazer, ao ser provocado numa condição de ser-mais, pensando a partir de minha
história de vida que enfoca a trajetória de vida-formação-profissão, como busco pensar os
sentidos do vivido para demarcar posicionamentos, fazendo-me abertura constante para meu
ser-docente.
A autobioformação se institui no processo de narrar a vida como elemento anunciativo
e, também, acomodador de um ser que se desvela no que aparece e se oculta neste processo.
Neste sentido, vou narrando minha vida e o que consegui significar a partir do vivido e com
minha produção de experiência. Evidencio aqui que minha vida diante de meu envolvimento
com as instituições de ensino, seja como professor ou como estudante, ia se organizando
conforme as vivências na rua e na roça que conseguia (re)significar. Assim, ingressei no curso
de Pedagogia e no mesmo ano consegui uma vaga para professor de Educação Artística em
meu município. Passei, então, a ter o contato com alunas/os da rua e da roça.
69
No decorrer de minha atuação como docente nas Séries Finais do Ensino Fundamental
percebia que havia uma separação muito visível na escola. Tal separação se dava por variados
aspectos como questões de gênero, espaço geográfico de origem, situação econômica e
condição étnico-racial. Como narra o professor Geni-Acauã, “[...] no Brasil [...] há um
preconceito de ordem geográfica ainda, a nível nacional quanto a nível local, se você mora no
Sul tem um preconceito sobre o Nordeste, você é discriminado e, quem mora na cidade tem
preconceito com quem está na roça, é local e nacional” (Geni-Acauã, Entrevista narrativa,
2020). Essa concepção está permeada em nossa cultura, onde aprendemos o tempo inteiro a
nos inferiorizar por ser da roça e estudar nas escolas desse lugar. Tudo isso decorre de
demarcações fundadas pela manutenção do binarismo sustentado pelas lógicas do capitalismo.
Com isso, fui vivenciando processos de invisibilidade e ocultamento das diferenças ao longo
de meu percurso na docência.
Minha prática era desenvolvida a partir de elementos que considerassem as histórias
de vida desses/as alunos/as na tentativa de respeitar algumas especificidades e buscar
condição para realizar um trabalho docente que estivesse pautado em princípios da educação
inclusiva e da diversidade. Contudo, passei a atuar como Coordenador Pedagógico na mesma
escola, onde pude colocar em prática, de maneira mais abrangente, muitas coisas que
acreditava e que sempre discuti com meus colegas de trabalho.
Em paralelo às minhas atividades de coordenação pedagógica surge a possibilidade de
desenvolver um trabalho de apoio e acompanhamento mais ligado ao social. Envolvi-me com
as propostas do Programa Todos Pela Alfabetização – TOPA. Uma oportunidade de retomar
um fazer docente com jovens e adultos/as nas escolas rurais. Uma proposta que me motivou a
pensar modos de contextualização para o desenvolvimento do processo de alfabetização das
pessoas da roça que foram privadas de estudar quando mais jovens por variados fatores.
Esse envolvimento com jovens, adultos/as e idosos/as de comunidades rurais se
apresentou como um re-encontro com o que vivi no início de minha experiência na docência.
Era outra condição na qual podia me valer do pensamento do sentido para compreender que
era uma circunstância de um modo outro de ressignificar meu ser-docente. Com isso, podia
perceber como as pessoas que habitavam territórios rurais eram privadas do acesso aos
serviços públicos, bem como suas condições de vida eram marcadas pelo encaminhamento ao
trabalho, deixando a escola em função da necessidade de manutenção financeira da família ou
por não poderem acessar o espaço escolar por algumas dificuldades de deslocamento,
incompatibilidade com os tempos que são instituídos na roça. Isso fica evidente quando Geni-
Acauã relata em sua narrativa como se dava a entrada na docência em contextos rurais:
70
34
Proposta estruturada pela Secretaria Municipal da Educação do município de Várzea do Poço, em 2013, para
atender crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem e assistir àqueles que apresentam uma
deficiência física ou intelectual e estão no processo de intervenção nas salas de Acompanhamento Educacional
Especializado – AEE.
72
ressaltar que a proposta de apoio pedagógico no CRAP foi re-estruturada de modo que viesse
a superar a visão de medicalização da educação e dar ênfase à valorização das diferenças
existentes em nossas salas de aula. Atualmente sou professor da Educação Básica na rede
pública de ensino, responsável pelas atividades do CRAP. Ministro aulas de Matemática em
algumas turmas da Escola Recanto Colorido, que é vinculada à rede privada de ensino,
destinando uma carga horária como diretor e mantenedor nesta mesma escola.
É importante destacar que minha formação como pesquisador tem uma forte
contribuição das propostas desenvolvidas no âmbito do Grupo de Pesquisa Docência,
Narrativas e Diversidades na Educação Básica ‒ DIVERSO, que está vinculado ao Programa
de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC, pois tem sido uma
experiência ímpar em meu processo de formação, já que sua proposta de estudo e discussão
toma como lócus de pesquisa os espaços da Educação Básica em contextos de diversidade.
Tal grupo se coloca como espaço formativo que me possibilita um aprofundamento em temas
relevantes à minha formação docente.
Na busca por um maior aprofundamento em discussões e temáticas relevantes aos
meus interesses de pesquisa, tomando como perspectiva metodológica a Pesquisa Narrativa,
dando ênfase a um processo biográfico-narrativo, venho ampliando meus horizontes como
pesquisador das questões sobre diversidade e ruralidades, nutrindo o desejo de desenvolver
um estudo que possibilite compreender a importância de repensar o lugar da diferença nesses
espaços, uma vez que as ruralidades contemporâneas têm trazido sentidos outros para
pensarmos os modos de ser e viver em contextos rurais.
Por estes motivos, me proponho a pensar o vivido que se traduz através das narrativas
de minha história de vida evidenciadas como produção de experiências logradas ao longo de
minha trajetória como professor. Um ser presentificado com a oportunidade de ressignificar
aquilo que emerge nessas narrativas através de uma construção simbólica do que insurge do
tempo narrado no tempo da narrativa. Tomo aqui esse potencial de abertura como um
movimento exercido constantemente, estando ancorado nos princípios da alteridade e do
aprender com e no processo de disponibilidade para compreensão de si e do outro, onde não
prevaleçam reforços de binarismos e sim de complementariedade.
Isso significa dizer que a valorização e a reafirmação de nossas identidades podem ser
pensadas a partir dos nossos espaços de vida e da potencialidade das relações de
intersubjetividades produzidas nos grupos constituídos pelos elementos da diferença e da
subjetividade. Desse modo, são inúmeras as contribuições que um fazer docente poderá
promover, seguindo por esse caminho de tomar a experiência como espaço de reflexão, para
73
pensar a docência na Educação Básica, articulada com o que acontece nos espaços de vida de
quem se encontra na escola, bem como da comunidade em que a escola se encontra inserida.
Meu ser-docente vai sendo presentificado conforme as travessias que me proponho a
fazer, caminhando para pensar a experiência como possibilidade estimuladora de pensar o
processo de autobioformação como movimento propositivo e evocativo de fazer vir à tona
condições de um biográfico-narrativo que signifique o narrar a vida e os processos de vida,
instituindo-se numa circunstancialidade de um ente que se faz abertura em seu percurso de
vida e formação.
Habitar a roça significa, para mim, modos próprios e singulares de como compreendo
meu existir. Acredito que essa construção do meu lugar habitado demarca minhas decisões e
posicionamentos nos espaços de atuação. Por isso, narrar minha história de vida se colocou
como uma possibilidade potente de rever meus percursos a partir daquilo que representou
experiência e que evocou tempos e coisas necessárias para que eu pudesse entender por que
faço o que faço e como tenho produzido sentidos para existir e resistir na roça. Com isso, vou
entendendo o que provoca em meu ente abertura para um ser que busca em si mesmo razões
para ser o que é, numa possibilidade transformadora que está vinculada a uma maneira de
afirmar uma vida autêntica que se estrutura conforme a presença, que se efetiva no acontecer
de minha vida num presente, reconfigurado pelo vivido e pelo que projeto desse meu ser que
se manifesta a partir das formas como habito a roça.
Vale mencionar que, da mesma forma e com a mesma intensidade que habito a roça,
esta habita em mim. E é através do pensamento do sentido que percebo essas formas e
intensidades, pois quando não estou presente fisicamente nesta minha roça noto que busco
reunir elementos do que significam sua presença e transporto para os lugares que estou. Me
sinto ligado a tudo que meus modos de distanciamento me provocam, fazendo com que as
coisas e os lugares que são alcançados por meu ver, ouvir e sentir ganhem novas perspectivas
e sejam ampliados meus horizontes, propondo tais coisas e lugares de um jeito reposicionado
no campo de minha circunvisão. Tomo o vivido como propulsor de minha formação docente,
simbolizando meu pensar e reagir a partir daquilo que acesso em outros espaços que frequento
e atuo, sendo proporcionadores de complemento dessa minha condição de existir. Habitar a
roça se coloca como oportunidade de produzir meu espaço de vida conforme o que acredito. É
74
neste espaço que meu modo de ser próprio e autêntico se desvela, presentificado naquilo que
faço e vivo diariamente.
Preparar as coisas na roça, me envolver com a lida desse lugar, cuidando dos cavalos,
das galinhas, dos cachorros e de outros bichos que tenho em casa é uma grande situação
provocativa de uma relação que envolve cuidados. Tais cuidados não estão apenas no âmbito
do alimentar e do manejar seus espaços de acomodação, pois representam muito mais para
nós que moramos em contextos rurais, tendo em vista que estabelecemos uma relação muito
específica com tudo isso que se encontra nos espaços da roça. Observar as mudanças no
tempo e nas coisas que se encontram no espaço natural impõe condições bem específicas de
existência na roça. As temporalidades desse lugar demarcam formas de compreender porque
as relações de subjetividade e intersubjetividade que produzimos com e na roça têm
significância com o real que não está no campo do abstrato. São a coisa e o ser por eles
mesmos. Isso possibilita uma construção de saberes no e com o lugar habitado, como narra o
professor Sebastião-acauã sobre seus diálogos com seu pai:
Os movimentos que realizamos neste lugar de vida trazem à tona saberes e jeitos
próprios de lidar com os fenômenos da natureza e ações humanas que descaracterizam o
natural. Não entrarei nessa questão de intervenções humanas nos espaços naturais da roça,
pois minha intenção aqui é apresentar como os sentidos e os significados de viver a roça e na
roça são construídos. O sol e a lua demarcam, de maneira muito específica, a minha forma de
vida na roça. Eles desencadeiam formas de como lidar com o tempo a cada dia que vivo neste
lugar. O horário de cada atividade é determinado pela presença e ausência de luz natural. Por
mais que elementos da urbanidade já se façam presentes na roça onde moro, não são
determinantes dos fazeres e afazeres que realizo nesse contexto. Estes elementos têm
representação própria e específica para cada pessoa que habita a roça conforme seus modos de
significação e produção de sentido.
75
meu ser-na-roça e fazem com que eu tenha que pensar no intercambiamento entre o que
acesso na roça e o que acesso nos outros espaços fora dela.
Noto que meu ser se presentifica a partir de como lido com cada espaço e relações
estabelecidas, direcionando a realização de minhas ações e atitudes em decorrência do que
acredito e me amparo, para justificar como penso a vida, bem como busco reinventar-me a
cada circunstância de meu ser que se presentifica numa constância das influências que sofro
levando em conta o que vivo na roça.
Considerando que só podemos habitar aquilo que construímos, é preciso entender que
essa construção requer de quem pretende habitar um dado espaço um empreendimento
semelhante ao cultivar e cuidar desse lugar. Na medida em que vamos construindo nossos
espaços, fazemos um esforço para determinar circunstância de existência nele, significando
nossas formas de ver, ouvir e sentir o mundo. Isso não significa dizer que um espaço habitado
é aquele que edificamos como construção para nos abrigar. O lugar habitado está para além
dessa proposta de abrigo. O lugar em que construímos nosso habitar reúne elementos e
configurações próprias, que são desenvolvidas numa perspectiva de cultivo e cuidado com o
que estou construindo e pretendo habitar, sabendo que quando nos propomos a construir um
lugar e reunimos esses elementos e configurações próprias, já nos lançamos nele como forma
de demarcar nosso habitar.
Essa construção permite nosso habitar apenas quando reúne sentidos e significados do
nosso existir, que vai sendo impresso de um jeito bem peculiar por cada um de nós onde nos
dispomos a viver acontecimentos que significarão nossas experiências e condições de
existência. Estas vão sendo vinculadas ao movimento que tecemos e enredamos ao concentrar
nossos esforços no sentido de um cultivar e cuidar desse lugar e das coisas que nele temos ou
construímos para compor as redes de sentidos que são tecidas nesse construir para habitar e
que ao habitar nos provocamos a reconstrução e a reconfiguração desse lugar habitado de
acordo com o que vamos encontrando no caminho de pensar sobre a experiência do habitar a
roça.
Sou à medida que habito, pois são as formas reunidas nesse meu habitar que
representam minha vida e aquilo que me utilizo para produzir significado e sentido sobre
minhas formas de existir no lugar que habito. É uma relação de mutualidade e alteridade entre
meu ser e o espaço no qual este ser se presentifica e reconfigura seus jeitos de pensar e agir,
criando possibilidades outras que podem potencializar as circunstâncias do habitar que é
construído numa relação de interposição entre o percurso caminhado e as paradas neste
percurso.
77
Construir o lugar habitado representa minha proposição de ser quem sou para
configurar meu lugar de vida e existência de acordo com os princípios e simbologias que
carrego ao longo de meu existir, o que demanda reunir elementos do vivido na infância, na
juventude e o que temos no presente. É o cuidar do crescimento e dar tempo para que a coisa
cuidada se mostre e se apresente conforme seu desenvolver no tempo cuidado.
Construir no sentido de proteger, cultivar e cuidar representa modos de atribuição de
sentimentos, troca, mutualidade, doação, oferecimento e busca incessante de manutenção do
que significa a reunião de coisas no âmbito do (sem)sentido, tomado aqui para representar
aquilo que é próprio, sagrado, e por isto indizível, como maneira de construção do lugar no
qual queremos ser e estar. Dessa forma, construir à medida que habito a roça está relacionado
com meus modos de permanecer nas paradas que vou fazendo, no caminhar pensando a
experiência. É um demorar-se nessas paradas que evoca minha condição de construir meu
habitar a roça.
O demorar-se nos lugares e com as coisas revelam o desdobramento dos jeitos como
instituímos a experiência do vivido. Demorar-se propõe um resguardar que possibilita
compreender como habitamos os espaços que construímos não como edificações
(HEIDEGGER, 2012) e sim como lugares que acolhem nossa manifestação como ser,
propondo a nosso ente abertura constante. Meu modo de ser próprio e autêntico foi sendo
presentificado a partir do que busquei reunir no meu demorar nas paradas35 que realizei no
decorrer de minha caminhada pensando a experiência. Demorar-se nas paradas que fiz na roça
e na rua, durante a infância e a juventude, reflete nos (sem)sentidos que trago comigo como
condição de ser quem sou.
Demorar nas paradas me instiga a pensar sobre os percursos de vida-formação que me
propus a desenvolver, pois foram os jeitos de fazer, pensar e agir nessas paradas que
qualificaram o demorar para construir meu lugar habitado. Hoje me deixo demorar na roça e
espero a presença do ser que se manifesta em mim através da abertura que meu ente se faz,
reunindo coisas dos (sem)sentidos da infância, da juventude e de um presente vivido. Por isso,
me proponho a utilizar o que Manoel de Barros (2015, p. 41) apresenta sobre ascensão à
infância como forma de buscar compreensões para aquilo que na fase adulta me amparo nas
condições que acreditava ter como jeito de ser, por ver, ouvir e sentir na infância e, que
insistem em fazer-se presença no meu ser-sendo:
35
A expressão demorar-se nas paradas, traz uma significação a respeito da forma como contemplamos os
processos de vida nos quais vamos nos envolvendo ao produzir as experiências, bem como nos propomos ver,
ouvir e sentir as coisas que se encontram nos percursos que traçamos ao longo de nossa existência.
78
Na roça que habito, me proponho a ser criança numa forma de liberação da infância
que ainda tem seus resquícios no ser que se manifesta na minha existência. Em meu caminho
para pensar a experiência sou instigado a promover uma ascensão para a infância de modo a
mantê-la viva. Isso no sentido de manter minha sensibilidade, deixar meu ser-sensível viver
com a possibilidade de ver, ouvir e sentir de um jeito mais efetivo que me propõe abertura e,
com isso, condições de ser afetado, tocado, exposto aos acontecimentos que o vivido propõe.
Enxergar o início das coisas, a descoberta dos verbos, o nascer dos nomes, é próprio
da infância e, se faz presença nos espaços da minha roça. Assim, não posso abrir mão de um
modo de vida que se propõe a meu ser um retorno, uma volta aos sentidos que produzi na
infância e me permitiram construir o espaço que habito, sendo condição para ampliação do
horizonte de possibilidades de modo a reconfigurar o campo de circunvisão que tenho. Não
me permito fazer esse movimento como forma de saudosismo. Pelo contrário, ressignifico o
vivido a partir do que consegui transformar no caminhar que realizei e que era provocativo do
pensamento do sentido que foi sendo e será sempre modificado conforme os percursos que
posso realizar.
A ascensão para a infância se apresenta como refazer o caminho, numa travessia que
não representa volta pelos mesmos lugares, mas retornar com possibilidade de carregar
consigo o que é necessário e significa a nossa vida e nos oferece condições de
existencialidades, decidindo, então, qual caminho seguir, pensando a experiência que já foi
instituída. O caminho representa um novo horizonte, que foi descoberto e representa formas
79
dinâmicas e contemplativas para condições outras de reaprender a ver, ouvir e sentir esse
original das coisas que se apresentam na roça.
Produzir minhas formas de existência na roça, ter estabelecido uma relação
homoafetiva com uma pessoa que complementava esse meu modo de existir pelo lugar
provocativo de outras maneiras de ver, ouvir e sentir as coisas foi instigante por possibilitar
deslocamentos diversos para meu distanciamento da roça como circunstância de compreender
meu jeito de ser, fazer, agir e pensar. Entendo que é através daquilo que consegui resguardar
das relações de intimidade e de sensibilidade compartilhadas, insurgente de uma proposição
de demorar conjuntamente em paradas que, decerto, significa distintamente para cada um,
mas revela para meu ser uma perspectiva singular de construir e afirmar meu lugar habitado.
Significa considerar que minhas ações e posicionamentos na docência e para além desta são
impulsionados pela representação que tenho e me proponho a construir neste lugar que habito,
numa possibilidade de um contínuo movimento de recolha dos (sem)sentidos que considero
relevantes para a produção das redes de relações subjetivas e intersubjetivas que são tecidas e
enredas pelo meu vivido.
Narrar o vivido numa compreensão de como a experiência é instituída a partir disso
representa as circunstâncias de um ser revelado pelo que significa para si e toma como
importante e necessário para produção de sentidos insurgentes das relações que estabelece em
seus lugares de existência. A narrativa se apresenta como provocativa da descontinuidade que
demanda um evidenciar daquilo que desarrumamos como possibilidade de arrumar, que se
apresenta como uma maneira descontínua no sentido de uma continuidade que apenas se
coloca a partir do tempo narrado num tempo da narrativa.
Para Ricoeur (2010b, p. 72), “[...] pode-se no máximo dizer que continuidade e
descontinuidade estão entrelaçadas na consciência da unidade do fluxo, como se a distância
nascesse da continuidade e vice-versa”. Aqui, elege-se descontinuidade como fluxo que
acontece no tempo que é revelado na narrativa, quando evocamos o que será narrado ou não.
Assim, passa a ser valorado em relação a um distanciamento do que é antigo ou não como um
afastamento necessário que está ligado ao fluxo temporal evidenciado na narrativa.
Esta questão de descontinuidade representa muito em relação ao que conseguimos
narrar com as perspectivas de futuro inter-relacionadas no presente da narrativa. Ou seja, o
vivido que institui experiência no narrado se articula com o tempo de pensar a experiência
vinculada ao que compreendo numa distância mais recente de acontecimentos que nos propõe
refletir sobre o presente histórico numa possibilidade de projeção de si. O fluxo temporal a
que estou fazendo referência traz em si mesmo a possibilidade narrativa que se mostra a partir
80
de um processo que tem incisão nele mesmo e provoca continuidade de acordo com a
proposição da distância do tempo que representamos e vem à tona quando nos propomos a
narrar a vida e tomar o vivido como evocativo para experiência.
Apresentar uma reflexão a respeito de como estou buscando interpretar meu percurso
de vida a partir das transformações que são possíveis com o movimento biográfico-narrativo
que é formativo e atravessado pela experiência se mostra como oportunidade de envolvimento
num processo da autobioformação que, a meu ver, possibilita a afirmação de um ser próprio e
autêntico que vai sendo presentificado nas inconstâncias da representação de meus modos de
existir colocando-se como impressões e sentidos de um ser evocado a partir da forma que
utilizo para afirmar uma vida autêntica.
Tomo esse movimento de narrar como demarcação de proposições epistemológicas e
políticas de meu ser-docente e morador de um contexto rural, como motivação para o
desenvolvimento de uma investigação narrativa com professores/as de escolas da roça
justificando o meu encontro com o objeto de estudo, apresentando a partir desta narrativa de
minha vida, a relevância social que pesquisas a respeito da docência e experiências em
contextos rurais têm na contemporaneidade.
Minhas narrativas de vida-formação-profissão se tornaram, no âmbito desta
investigação, categoria central para os desvelamentos de outras narrativas de vida e
experiências de professores/as que habitam os espaços da roça, tomando essa possibilidade
que a narrativa oferece em direção a um movimento reflexivo como proposição colaborativa
para o processo de distanciamento que necessitei fazer em busca de compreensões a respeito
de que está proposto no meu espaço de vida, ampliando as condições de compreensão do que
tem se apresentado como significância de minha existencialidade como professor da
Educação Básica, considerando meus percursos de vida na roça.
Distanciar é uma forma incisiva de aproximação das coisas e do lugar que compõem
conjuntos de sentidos e significados, inerentes às redes e relações constitutivas da presença,
evidenciando o que está descoberto e requer um jeito próprio e singular de ver, ouvir e sentir
como oportunidade para ampliar minha maneira de compreender a existência, que se revela e
está num constante desvelamento. Esse movimento de distanciamento a partir do qual a
existência se dá reconfigura nossas formas de compreensão do ser-na-roça, reposicionando os
modos de caminhar e pensar as paradas. Isso desencadeia acontecimentos que se dão no
demorar-se com as coisas e lugares na caminhada que realizo e faz com que eu possa
aproveitar aquilo que tenho oportunidade de viver fora de meu espaço habitado, podendo
81
entender de maneira outra como e por que vivo neste espaço, que representa meu lugar
habitado.
Os enredamentos demandam acontecimentos de um aqui que se dá numa
determinação espacial que institui possibilidade de distanciamento, calcado numa condição de
presença que aparece nos interstícios do aqui e lá, fazendo insurgir o ser conforme a ocupação
do que representa a presença no próprio interstício. Heidegger (2015, p. 191) faz menção a
essa questão, mostrando que:
É a partir do entendimento desse eu-aqui que percebo que a presença determinada num
intervalo de um aqui e lá faz do encontro oportunidade de ocupação de um lugar que
representa aquilo que tomamos como elemento essencial para compor nosso ser-no-mundo.
Há espacialidade dimensionada por esse pre da presença, que significa abertura para o ser a
partir do que o eu-aqui traz consigo através do que foi relevante dos acontecimentos que lhe
passaram como fundantes para constituição de seu ser-na-roça.
Tomar a história de vida como provocação de um pensar narrativamente a experiência,
como possibilidade de presença que evoca a manifestação do ser a partir das condições de
proposição do eu-aqui, como consideração de uma espacialidade para o distanciamento, o lá,
que pode ser entendido como acontecimentos vividos que se colocam ao encontro do aqui que
está sendo o vivido, é determinante para o rumo que será tomado visando à ocupação do lugar
feito no encontro.
Este encontro que propõe acontecer numa presença que institui o ser-na-roça vai sendo
demarcação de um jeito singular de existência que apresenta reunir sentidos produzidos na
relação que estabelecemos com as coisas e pessoas que foram/estão presentes nos lugares que
habitamos, propondo uma compreensão de que nosso ser-na-roça se presentifica nas
condições de um ser-em. O ser-em é a condição que nosso ente tem de se determinar numa
relação constituída entre o si mesmo e as coisas que estão postas no espaço de nossa
existência. Isso também se coloca como referência do que o outro representa para nós neste
processo de construção no qual vamos nos envolvendo no lugar habitado, sendo
82
essa poética para revelar como se deu meu enveredamento na construção de um movimento
biográfico-narrativo através da experiência de narrar a experiência na pesquisa narrativa.
A pesquisa narrativa foi sendo construída e enredada de uma forma muito encarnada
com meus modos de compreender e habitar a roça, desencadeados a partir do modo como o
demorar-se (HEIDEGGER, 2012) com as coisas da roça se fazia lastro para escuta sensível e
compreensão das narrativas recolhidas no percurso que me propus desenvolver. Para além das
certezas científicas, fui me amparando naquilo que o campo apresentava, buscando apoio nas
produções que embasam a pesquisa narrativa e nas condições que ver, ouvir, pegar, provar,
cheirar representavam enquanto possibilidades para compreender o ser-na-roça e a ruralidade
da presença.
É com esse entendimento que me lancei numa aventura de pensar narrativamente a
roça e percursos na docência, sendo convocado a desenvolver um movimento de etnografar a
roça como modo próprio de afirmar uma vida autêntica (HEIDEGGER, 1991) e encontrar
possibilidade de abertura para apresentação de Narrativas de experiência na pesquisa
narrativa, produzindo um processo metodológico a partir de princípios epistemo-político-
sociais que se associassem à forma como habitamos poeticamente a roça.
Habitar poeticamente a roça de modo a associá-la a princípios epistemo-político-
sociais se apresentou para mim como condição de potência para tensionar, distanciar e me
aproximar do lugar habitado e desenvolver uma pesquisa narrativa que foi se firmando num
movimento de fazer fazendo-se investigador a partir da proposição biográfico-narrativa na
pesquisa, narrando de si e dos percursos realizados nos quais os sentidos dessa pesquisa iam
sendo desvelados com as narrativas sobre experiência de narrar a experiência, constituindo o
movimento de etnografias na roça.
Entendendo que as condições de distanciamento e de aproximação se davam no ir-e-
vir provocativo de pensar narrativamente a docência na roça, fui tendo oportunidade de narrar
minhas experiências com/na roça para compreender que os desvelamentos dos sentidos na
pesquisa narrativa e do ser-na-roça numa perspectiva da ruralidade da presença iam sendo
percebidos bem sutilmente, como vagalumes em noite de lua minguante na escuridão e no
silenciar das coisas na roça. Essa é a metáfora mais cabível aqui para tentar explicar como o
processo metodológico se configurava neste estudo, pois sempre que me afastava do texto e
da pesquisa notava que eles não saíam de mim. Como sempre realizei passeios com meus
cavalos Capricho e Topázio, retornando para casa, na maioria das vezes à boca da noite 36, fui
36
Expressão utilizada em nossa região para fazer referência ao início da noite na roça.
85
tomado por uma cena que mesmo sendo habitual em algumas épocas na roça chamou minha
atenção, provocando entendimentos outros que estavam relacionados aos processos de
compreensão sobre o movimento de desvelamentos de sentidos, do ser-na-roça que inspirava
o pensar narrativamente esta pesquisa.
Próximo a uma baixada37 com uma lagoa imensa, sendo mais orientado pelo tato do
cavalo do que por minhas habilidades de visão no escuro, sou surpreendido por uma nuvem
brilhante de vagalumes por toda parte. No momento isso se colocou como acontecimento de
um modo de ver, ouvir, pensar e trans-ver. Era como se eu e meu cavalo tivéssemos sido
transportados para um lugar que, neste momento, só consigo descrever superficialmente como
o céu bem estrelado em noite escura. Eram estrelas brilhantes e reluzentes com um verde
fluorescente piscando sem parar. A partir disso, passei a pensar na pesquisa narrativa como
experiência do vivido, acontecimento, evento que nos afeta e demarca as condições e as
possibilidades para a constituição metodológica de uma perspectiva que se ancora na
hermenêutica por propor abertura para os processos de subjetividade que são instituídos por
pessoas que realizam movimentos próprios para significarem seus processos de vida.
Por isso, é importante compreender que as bases epistemológicas que sustentam a
perspectiva de posições teóricas sobre o enfoque biográfico-narrativo são decorrentes da “[...]
abordagem constituída pelas histórias de vida, na fronteira da Literatura e das Ciências
Humanas” (PINEAU; LE GRAND, 2012, p. 64). Disso provém o entendimento de que o
(auto)biográfico e o biográfico-narrativo se comprometem com processos hermenêuticos que
dão centralidade a movimentos de compreensão que possibilitam apreensão de sentidos e
significados que se constituem de subjetividades que emergem das narrativas.
O enfoque de estudos que assumem o biográfico-narrativo somente despontou com
maior força na Espanha e América Latina a partir da segunda metade dos anos 1990 do século
XX, tendo em vista o desenvolvimento de estudos doutorais que apresentavam histórias de
vida como elementos de pesquisa no âmbito de paradigmas qualitativos que tinham
centralidade nos movimentos da pesquisa etnográfica com uma mirada mais focada nos
processos de subjetividade experiencial, levando em conta as temporalidades de
professores/as. Neste caso, as vozes dos sujeitos tinham uma valorização, eram legitimadas
num primeiro plano tendo como complementações documentos pessoais, diários,
(auto)biografias e entrevistas biográficas e/ou narrativas, podendo explorar com maior
profundidade as centralidades de temas dentro das experiências que cada sujeito constituía
37
Uma espécie de vale com lagos e riachos.
86
investigação narrativa pelo lugar das potencialidades que este campo representa, elegendo
como método a pesquisa narrativa.
Essa é uma perspectiva que traz à baila o protagonismo das ações cotidianas das
pessoas da roça, tendo uma concepção pautada no saber local, de modo que podem ser
deslocadas para outras dimensões que ultrapassam esta base do local e integram outros
espaços e se reconfiguram no encontro com outras ações promovidas. Assim, vão sendo
88
superados modelos de uma ciência que buscava sustentar uma única verdade através dos
procedimentos de descrição e testagem que aconteciam para dar passagem às proposições de
ciências outras que não se limitam a padrões determinísticos por valorizarem o conhecimento
total ou descritivista por ser local (SANTOS, 2010).
Nesta direção, cabe ressaltar que um estudo que considera uma Ruralidade da
presença por conceber o ser-na-roça e intencionar uma compreensão das experiências de
professores/as de escolas rurais como ser-docente numa perspectiva do ser-mais que habita a
roça, reconhece como essas experiências poderão se colocar como espaço de narrativa de
vida, em que o ser-na-roça possa ser compreendido por ele mesmo.
Aqui a narrativa se mostra como a possibilidade de desvelamento do ser-na-roça na
medida em que o ente vai sendo convocado pela ruralidade da presença, promovendo a
constância de uma circunstancialidade própria e específica de cada pessoa que mora na roça.
Dessa maneira, dizer de si e formar-se pesquisador/a na roça insurge de um processo de
subjetividade produzido pelos sentidos que o habitar a roça representa para meninos/as,
homens, mulheres e idosos/as do lugar.
Pensar narrativamente a partir da experiência de habitar poeticamente a roça e
demorar-se junto às coisas desse lugar se mostra como potência criadora e condição criativa
das formas como compreendo o desenvolvimento de uma pesquisa que está amparada num
paradigma emergente por considerar importante esses processos de subjetividades que se
produzem através do nosso envolvimento com nossos espaços de vida e com aquilo que nos
provoca e nos faz estremecer.
Vou me valendo dos (sem)sentidos que compõem minhas existencialidades na roça
como inspiração para buscar e construir os elementos desse percurso metodológico de uma
pesquisa que está amparada pela filosofia heideggeriana e pela poesia de Manoel de Barros
(2015, p. 71), convergindo numa poética das matas reveladas nos compêndios de minhas
narrativas da roça:
Dizer de si e formar-se pesquisador/a na roça nos convoca a mobilizar tudo aquilo que
representam os (sem)sentidos de nossas experiências de habitar nosso lugar de vida, nos
valendo inicialmente da compreensão que temos e produzimos sobre como vemos, sentimos,
ouvimos e nos envolvemos com a roça e as coisas que compõem nosso campo de circunvisão,
numa presentificação do ser-na-roça, desvelado pelas condições subjetivas que reunimos para
significar nossas formas de existir na roça.
O poema Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho cabe neste contexto por sua
potência provocativa desse modo próprio e específico que é desver a roça para cada menino/a,
mulher, homem e idoso/a que habita territórios rurais. Cada (des)encontro de palavras no
poema apresenta a condição de ser-na-roça que se mostra e, também, se oculta conforme os
modos que cada pessoa mobiliza suas proposições de ver, ouvir e sentir.
Tomar as experiências de um ser-na-roça interpelado pela ruralidade da presença é
promover condição outra de existência na roça, em que homens, mulheres, idosos/as e
meninos/as sejam compreendidos/as como seres sociais, culturais e históricos que se
constituem como sujeitos de linguagem, portanto, sujeitos narradores que contam de suas
vidas e narram seus modos de (re)existir.
Isso significa entender que no movimento que vai sendo constitutivo e constituinte de
docentes que narram suas experiências e configuram a vida nos espaços rurais, possibilitando
um redimensionamento que se dá no presente, mas não desconsidera o que esse sujeito viveu
no passado nem o vir a ser que é a possibilidade de futuro, isso acontece a partir do que as
pessoas da roça relatam de si, dos outros e dos espaços em que vivem.
A narrativa que o ser-na-roça constrói e ressignifica suas condições de (re)existir em
espaços rurais considera os modos de ser-viver-na-roça, pois ao relatar de si, dos outros e dos
espaços de vida, não o fazem apenas de uma perspectiva interior, mas também exterior, onde
são evidenciados contextos de vida constituídos pelos elementos de subjetivação e
intersubjetividade que os atravessam. Neste sentido, quando uma pessoa conta de si,
evidentemente, acaba contando dos outros e dos espaços que a constitui, foram ou estão
presentes em sua vida, produzindo maneiras próprias e específicas de (re)existências na roça.
O pensamento de Bertaux (2010, p. 47) a respeito do relato de vida como forma
narrativa evidencia que “o verbo „contar‟ (fazer relato de) é aqui essencial: significa que a
produção discursiva do sujeito tomou a forma narrativa”. Desse modo, considerando que o
ser-na-roça é constituído pelas narrativas de si, dos outros e dos espaços de vida, podendo ser
compreendido pela ontologia desses sujeitos em si. É desse entendimento que a proposição de
um espaço de insurgências como a autobioformação traz possibilidades múltiplas e
90
como também, uma análise crítica a respeito de suas produções acadêmicas e científicas,
revendo modos de compreender a si, o outro e sua realidade de vida, necessitando
reconstruções dessas mesmas produções e modos de compreensões para compreender a vida
através de uma narrativa, a sua narrativa de vida.
Elegendo esse lugar como uma demarcação política e epistemológica, busquei a partir
do objeto, visando a possibilidade de ele gerar um argumento de tese, ancorar este estudo na
pesquisa narrativa, cujo foco de sua epistemologia fundamenta-se na pesquisa qualitativa.
Assim, há de se compreender que a pesquisa narrativa não pode estar associada à pesquisa
que trata a narrativa dominante como elemento primordial. Isso revela posicionamentos que
desvelem pensar narrativamente.
Este pressuposto aparece para que seja feita uma reflexão a respeito da fronteira
existente entre o pensar narrativamente e o pensar formalista explicitados por Clandinin e
Connely (2015). Esses dois campos epistêmicos são evidenciados aqui para justificar como
o/a pesquisador/a começa sua pesquisa e vai constituindo-se neste percurso e como os
formalistas começam suas pesquisas. Enquanto os formalistas começam suas pesquisas com
as teorias “[...] a pesquisa narrativa começa, caracteristicamente, com a narrativa do/a
pesquisador/a orientada autobiograficamente” (CLANDININ; CONNELY, 2015, p. 74).
A pesquisa narrativa requer, também, um rigor que possa favorecer uma contemplação
das subjetividades através de pré-requisitos compreensivos-interpretativos, possibilitando aos
sujeitos que se encontram nesse processo uma nova perspectiva sobre as compreensões que
desenvolvem a respeito de seu ser, fazer, pensar, sentir e existir. Neste sentido, realizar uma
pesquisa narrativa “[...] implica a ultrapassagem do quadro lógico-formal e do modelo
mecanicista que caracterizam a epistemologia científica dominante” (FERRAROTTI, 2014, p.
47).
Com esta pesquisa realizei um movimento no qual os/as colaboradores/as puderam
refletir sobre a relação da docência com seus modos de habitar a roça, tomada aqui como uma
dimensão específica de escolas rurais, considerando as concepções embutidas no pensamento
heideggeriano como possibilidade de reconhecimento da poesia de Manoel de Barros (1999,
2009, 2015), como elemento que fez emergir uma poética das matas a partir da relação com
meu movimento de viver a roça e o cotidiano escolar, evidenciando disso, como as narrativas
podem se apresentar como espaço de autobioformação com abertura do ser-docente.
A abordagem que compreende a pesquisa narrativa tem se colocado, nas últimas
décadas, como um pressuposto potente de pesquisa na área de formação docente e, sobretudo,
como um espaço dinâmico de formação de muitos/as professores/as, sejam como
92
objeto de estudo e a problemática que tomei como mote para a construção da tese
desenvolvida ao logo dessa pesquisa.
A pesquisa foi desenvolvida em dois momentos. O primeiro momento se configurou
com o mapeamento das pesquisas nos bancos de Teses e Dissertações IBCIT e CAPES
intentando para o movimento de etnografar ruralidades através das concepções apresentadas
em cada estudo que compôs o Estado da arte (MOTA; SILVA; RIOS, 2021). O segundo
momento compreende a realização de entrevistas narrativas e etnografias da roça com a
pretensão de reflexionar sobre o ser-na-roça que cada professor/a constitui a partir de seu
habitar a roça e desenvolver a docência no Ensino Fundamental em contextos rurais, para
compreender quais as experiências professores/as de escolas rurais produzem na relação de
ser-docente com suas formas de habitar a roça.
As etnografias foram produzidas como forma de narrar minhas compreensões a
respeito do movimento de pesquisa que desenvolvi e, se apresentam como dispositivo que
teve a pretensão de impulsionar discussões e reflexão a respeito de núcleos de sentidos que
emergiram das narrativas. Este movimento se colocou como constituinte de um espaço
formativo na perspectiva da autobioformação, em que os/as professores/as narradores/as
tiveram oportunidade de fazer exposição de suas compreensões de mundo habitado, tomando
como base suas experiências de vida e formação.
A utilização das entrevistas narrativas e etnografias da roça, como dispositivos de
pesquisa, possibilitaram pensar as experiências a partir de uma proposição da
autobioformação como oportunidade de descentralização das narrativas da base do escrito,
dando oportunidade para outras maneiras de narrar a vida e considerar as realidades dessa
vida. O desafio foi pensar a possibilidade de realizar a pesquisa narrativa em escolas rurais
numa perspectiva que desencadeasse a constituição de uma etnografia da presença fundada na
proposição das ruralidades da presença, em que os/as docentes narradores/as e os contextos da
roça foram tomados ontologicamente.
Muitas vezes algumas paradas requerem o acompanhamento de um café, uma fruta da
estação, uma conversa na qual pode surgir uma mininarrativa através das prosas e pilhérias a
respeito da vida e dos espaços de vida na roça, ou seja, é o momento em que o/a
pesquisador/a, juntamente com o fenômeno pesquisado, experiencia a sua transformação ao
realizar a pesquisa narrativa.
A construção de etnografias da roça vai sendo constituída a partir de diário de pesquisa
com narrativas, resultando em um dos dispositivos de pesquisa por oferecerem condições para
a compreensão dos modos de ser-viver-na-roça a partir da presentificação do ente que
94
38
Mucunã é uma espécie de planta trepadeira como cipó, conhecida em outras regiões como feijão-da-flórida,
suas vargens tem várias sementes arredondadas com tons avermelhados e morrons.
39
Bolsa feita de forma artesanal com couro, sisal e/ou tecido de calças jeans usadas.
96
por perspectivas outras que nos empoderam e também nos tornam sujeitos compostos pela
tridimensionalidade narrativa.
A tridimensionalidade narrativa é um fator chave para a pesquisa narrativa por tomar
os aspectos pessoal e social, passado, presente, futuro e o lugar associados à condição da
experiência e da temporalidade. Essa associação é elementar para quem desenvolve a pesquisa
narrativa, pois ao realizar esse processo desemboca-se nos movimentos que demandam
envolver-se nas direções da investigação na pesquisa narrativa para significar o percurso que
o/a pesquisador/a faz, vivencia e constrói experiências. Nossas histórias de vida, além de se
cruzar com as histórias de vida dos outros, são evocadas com as narrativas dos/as
colaboradores/as da pesquisa. É esse recontar de histórias que possibilita o movimento que
caracteriza o espaço tridimensional na pesquisa narrativa e nos possibilita a situação de nos
formarmos narrativamente no fazer da experiência.
Na pesquisa narrativa temos a oportunidade de experimentar e nos autorizar a relatar
os modos como vivenciamos as nossas experiências como pesquisador/a revelando sentidos e
significados que nossas narrativas imprimem juntamente com o que conseguimos
compreender das narrativas de colaboradores/as da pesquisa. Com isso, entendo que as
experiências que vão sendo constituídas no percurso que nos propomos a realizar na pesquisa
narrativa serão únicas para o/a pesquisador/a.
Cabe evidenciar que também faz parte da postura de um/a pesquisador/a a disposição
para se apegar à sensibilidade que já tem de modo a captar elementos outros que se
apresentam no espaço de pesquisa, pois se pontos/paradas mudam ou se redefinem, todo o
planejamento e/ou roteiro de pesquisa precisa ser reconfigurado e reorganizado. Dessa forma,
entendo que os modos de ser, fazer e formar-se pesquisador/a se apresentam como um desafio
grandioso e complexo, com condições de proporcionar, a quem se dispõe a fazer imersões
nesse movimento, possibilidades outras de compreensão dos fenômenos de pesquisa em
educação, potencializando uma formação numa perspectiva que evidencie as narrativas das
pessoas que vivem e estão envolvidas nos contextos da roça.
importante destacar que em Várzea do Poço, interior da Bahia, não há nenhum caso positivo
para o coronavírus até o momento – junho de 2020 ‒ mas, mesmo assim, seguimos
rigorosamente as orientações dos órgãos oficiais de saúde, respeitando as restrições que
surgiram nesta ocasião. Apesar de morar numa localidade que está nos limites dos municípios
de Várzea do Poço e Serrolândia e meu endereço aqui na roça constar que estou localizado no
município de Serrolândia, tenho uma forte identificação com o município de Várzea do Poço
por diversas questões, sendo uma delas o lugar de trabalho e referência familiar e afetiva.
Posso dizer que, atualmente, são inúmeras as questões que têm me afligido
emocionalmente, isso no que se refere ao meu processo de doutoramento e realização da
pesquisa que venho desenvolvendo com professores/as da roça. Há um ano – julho de 2019 ‒
fiz um movimento de aproximação do campo de pesquisa, dialogando com professores/as das
escolas da roça nas comunidades rurais do município de Várzea do Poço. Realizei entrevistas
como condição para escolha de participantes da pesquisa, construí meu diário de pesquisa
com registros sobre meus percursos na pesquisa, no qual tive oportunidade de produzir
minhas etnografias da roça.
Após esse movimento, viajei para Mar Del Plata na Argentina para realização do
doutorado sanduíche com o professor Luis Porta, na Universidad Nacional de Mar del Plata.
Cheguei em 10 de março de 2020 e no dia 16 desse mesmo mês todas as atividades
presenciais da Universidade foram suspensas devido à pandemia que se instalava no mundo.
Permaneci em Mar del Plata por 45 dias. Foram dias que se passaram lentamente e me
projetavam a um espaço de velhice, era como se estivesse vivendo numa espécie de asilo
pelas características do quarto e das condições do isolamento social que vivíamos no
momento. Outra questão se assemelhava muito com uma condição de exílio, pois não podia
retornar ao meu país e à minha roça, pois as fronteiras foram fechadas e eu não tinha
autorização consular para retornar.
Passei a me concentrar na escrita de parte de meu texto provocado pelas orientações
do professor Luis Porta e realizando leitura do material indicado por ele. Esse passou a ser um
momento de reflexão sobre meu processo de vida-formação-profissão a partir do qual tive
oportunidade de compreender como a roça que habito se fazia presença em mim, demarcando
minha existência na roça.
Concluí os processos de (re)colhimento das narrativas reunindo registros que
compuseram as etnografias da roça no decorrer da pesquisa, sendo atravessado por muitas
questões que provocaram afetamento e exposição pela situação de isolamento social, pois a
pressão da comunidade foi expressiva na cobrança de posicionamentos em relação às
103
conceber que colaboradores/as de pesquisa não são objetos, pois são, neste processo,
protagonistas que se apresentam como atores, atrizes, narradores e narradoras de suas próprias
vidas, expondo suas narrativas e como constituíram experiências, modos específicos e
singulares de como compreendem suas realidades e contextos, dizendo de si para si e para
quem busca saber, neste caso, o/a pesquisador/a.
Com isso, buscamos superar a dicotomia sujeito/objeto tão valorizada pelo paradigma
dominante que condizia com uma ciência moderna pautada nas ciências naturais clássicas.
Sendo assim, o/a narrador/a compartilha suas experiências e se envolve com o/a pesquisador/a
narrador/a de modo a proporcionar uma interação formativa potente no que se refere ao
narrar, pois nesse movimento há uma aproximação com o que estudamos que favorece a
construção de um “[...] conhecimento compreensivo e íntimo” (SANTOS, 2010, p. 85) que
não nos separa do nosso lócus e dos colaboradores/as de pesquisa. Tal concepção motivou o
desenvolvimento da pesquisa por propor condições de um estudo aprofundado e cuidadoso,
pois os/as docentes narradores/as desta pesquisa são professores/as de escolas da roça que
desenvolvem a docência na rede municipal de ensino de Várzea do Poço, interior da Bahia.
Os critérios utilizados para a seleção de docentes narradores/as da pesquisa foram: a) ser
professor/a do Ensino Fundamental em escolas rurais municipais; b) atuar há mais de três
anos em qualquer uma das três escolas rurais existentes no município.
No contexto desse estudo, os/as docentes narradores/as da pesquisa ocupam lugares de
destaque e protagonismo no movimento biográfico-narrativo que se desenvolve no processo
de narrar suas vivências e experiências de vida na roça. Cabe mencionar que esse
protagonismo se organiza em torno de duas situações bem peculiares ao movimento da
pesquisa narrativa que caracterizam os/as colaboradores/as e seus modos de narrar, ora como
parceiros/as do/a pesquisador/a ao entrarem juntos no campo da pesquisa, ora por produzirem
a própria formação do grupo envolvido na pesquisa, tomando suas histórias de vida como
elemento principal para congregarem o processo de reflexividade formativa que permeia o
narrar.
Esse vivenciar narrativamente nossas existências no campo não fica restrito apenas ao
grupo envolvido na pesquisa, pois acaba permeando as salas de aula e toda a comunidade
desses/as docentes narradores/as, já que na pesquisa narrativa não importam somente as
histórias de vida narradas, mas também outros modos de narrar a vida e os espaços de vida na
roça. Os contextos em que cada história vai acontecendo, as paisagens desses contextos,
anunciações da natureza, silêncios da noite, fases da lua e estações do ano são na pesquisa
105
narrativa modos de narrar a vida na roça. Com isso, sou motivado a pensar como poderia
trazer uma singularidade para demarcar os processos de subjetividades com a roça pelo lugar
que me afeta e provoca desvelamento de um ser-na-roça instituído pela ruralidade da presença
e plenitude de escrever uma tese-vida que se inspira na filosofia heideggeriana e na poesia de
Manoel de Barros (1999) para produzir as etnografias da roça. Reitero aqui que os nomes
dos/as docentes narradores/as na pesquisa são fictícios, atendendo às orientações do Comitê
de Ética na Pesquisa. Ressalto que cada docente escolheu o nome e o codinome foi uma
decisão minha conforme influências da roça e da poesia de Manoel de Barros (1999, p. 15-16)
com o poema A menina avoada:
[...]
Quis pegar
entre meus dedos
a Manhã.
Peguei o vento.
Ó sua arisca!
Esses passarinhos
sempre eram fedidos a árvores com rios
que eles traziam da mata
antes de chover
[...]
Como no poema A menina avoada, quis pegar a noite e acompanhar o crepúsculo dos
dias sem chuva, no entardecer que dava um intervalo na produção escrita e buscava aquietar
meus pensamentos como modo próprio para continuar pensando sobre a vida e a docência na
roça, numa constância que o etnografar a roça me convocava, pois era imperativo pensar na
pesquisa quase o tempo inteiro. O vento na roça que trazia o som anunciativo de Acauã se fez
presença o tempo inteiro e no mesmo horário durante todo o meu percurso nessa jornada da
pesquisa narrativa na roça, onde outros passarinhos brincavam, se apresentando como
companhias suavizadoras e provocativas para o movimento de trans-ver a roça e a docência
pelos processos que se instituíam com a pesquisa.
106
3.4.1 Narrativas de si
Sebastião-Acauã:
Damiana-Acauã:
Geni-Acauã:
Sou morador daqui de Nova Esperança desde quando nasci, me criei aqui e
estou até hoje com 53 anos junto com minha família. [...] Quando comecei
essa trajetória na Educação, [...] em 1982, mas comecei a trabalhar mesmo
em 1984. [...] Fiz a faculdade de Geografia e a pós-graduação em Geografia
Física e das Populações e continuo na luta. Em setembro dia 15 mais ou
menos, é final de inverno início de primavera, estou chegando aos 36 anos
nessa trajetória da Educação [...]. Quando entrei para trabalhar na Educação
eu tinha uma certa habilidade com cortes de cabelo, [...] quando entrei na
Educação não parei com esta atividade, [...] durante a semana, [...] a
Educação é prioridade, no final de semana, [...] ou feriado [...] atuo aqui num
pontinho, faço bico. (Entrevista narrativa, 2020)
Como já foi elucidado nas seções anteriores, este estudo é de cunho qualitativo e está
ancorado numa compreensão biográfico-narrativa com base na pesquisa narrativa. Dessa
forma, desenvolvi cada momento da pesquisa buscando possibilidade de aproximar-me dos/as
docentes narradores/as, dos espaços rurais nos quais suas escolas estão situadas, ou seja, uma
aproximação com o campo empírico dessa investigação. Considerando este movimento, é
importante apresentar os dispositivos de pesquisa que ofereceram condições para buscar os
achados da pesquisa e os modos de compreensão que compõem a estrutura metodológica. O
espaço que compõe os modos de compreensão se apresenta por narrativas orais e escritas
tomando a entrevista narrativa e etnografias da roça produzidas a partir do diário de campo
como tessituras na pesquisa narrativa.
Tomar a entrevista narrativa como dispositivo de pesquisa e, consequentemente as
etnografias da roça, foi importante por compreender que a recolha e a produção das narrativas
“[...] se ajusta à formação das trajetórias; ela permite identificar por meio de que mecanismos
e processos os sujeitos chegaram a uma dada situação, como se esforçam para administrar
essa situação e até mesmo superá-la” (BERTAUX, 2010, p. 27). As narrativas são construídas
em torno das experiências vivenciadas e constituídas pelos sujeitos, já que ninguém narra algo
109
que não viveu, pois as histórias surgem a partir da intensidade de momentos vividos, se
transformam e nos formam.
Partindo dessa percepção sobre a produção e a recolha das narrativas como abertura
para o ser, realizei um estudo com base hermenêutica fenomenológica (GADAMER, 2013),
por considerar a necessidade de buscar elementos nos quais pudesse me apoiar num trabalho
com as subjetividades de sujeitos que têm uma experiência de vida, uma concepção de mundo
e um fazer docente permeados de sentidos e significados, adotando uma centralidade no
processo de formação docente calcado na vertente compreensiva-interpretativa (RICOEUR,
2010a).
A busca por uma base epistemológica que congregue com a ontologia do ser-na-roça e
possibilite uma análise consubstanciada dos achados da pesquisa, levando em conta as
realidades e os modos de ser e viver na roça, é de suma importância para essa investigação,
pois tomo a premissa posta por Gadamer (2013) de que cada conteúdo/espaço constitui sua
hermenêutica. Diante do exposto, busquei na investigação possibilidades de compreender a
tradição e os modos de ser-viver-na-roça para encontrar elementos que me ajudaram a fazer
um movimento de compreensão da realidade desses espaços e de quem vive nele.
Para Heidegger (2015, p. 41), “[...] a interpretação dessa compreensão mediana de ser
só pode conquistar um fio condutor com a elaboração do conceito de ser. É à luz desse
conceito e dos modos de compreensão explícita nela inerentes que se deverá decidir o que
significa essa compreensão [...]”. Uma reflexão acerca da investigação sobre o ser-na-roça,
como proposto nesta pesquisa, se dá através de uma busca por compreensão a respeito do
sentido do ser.
Falar sobre a ontologia desse ser-na-roça sugere um entendimento que considera
salutar que eu possa buscar compreender a coisa por ela mesma. Isso requer que seja tomado
como pressuposto a proposição de um circuito retroalimentar que não nos deixe cair no
círculo vicioso. Ampliação das possibilidades de compreensão representam um modo
importante neste processo de análise que se articula à proposição dos círculos hermenêuticos
de Gadamer (2013) e da compreensão do sentido do ser de Heidegger (2015).
Os círculos hermenêuticos se colocam como uma representação do movimento
contínuo do ir e vir do/a pesquisador/a à tradição que possibilita a busca de elementos que
ajudaram numa compreensão mais próxima e coerente da ontologia do ser. Esta compreensão
perpassa pela questão da descrição e possível entendimento, pois o processo de compreensão
é um projetar que vai sendo revisado constantemente. Isto justifica a aposta na pesquisa
narrativa como uma complementariedade de elementos necessários à compreensão, sendo um
110
41
Sugestão de uma proposta de análise elaborada pelo autor (2021) para compreensão e interpretação das
narrativas (re)colhidas. Ver anexo.
111
Nos percursos que fazemos na roça, caminhamos por meio do mato, da capoeira 42, das
matas brancas em meio à caatinga no sertão da Bahia. Caminhos vão sendo construídos para
que possamos alcançar nossos objetivos, ou seja, chegar aos nossos destinos por lugares que
encurtam distâncias ou até mesmo passam a ser os únicos trajetos que são possíveis de se
fazer quando vivemos em espaços rurais. Ainda é costume utilizar animais, bicicleta e
motocicleta em nossas comunidades para fazer os trajetos na localidade e acessar a escola, as
casas mais próximas, os campos de futebol, prados de argolinha43 e de corrida de cavalos, a
venda, as roças de milho, feijão, melancia, mandioca e tantas outras culturas que cultivamos
nestes espaços onde a vida acontece e as pessoas desse lugar produzem seus modos de habitar
a roça a partir das experiências constituídas de seus fazeres e afazeres.
Para Mota, Silva e Rios (2021, p. 116), os termos fazeres e afazeres apresentam
sentidos específicos quando se trata da vida na roça, tendo uma grande relevância para
compreendermos as significâncias que são dadas por quem habita a roça. Os autores
apresentam:
[...] atribuímos para o termo “fazeres” tudo que está relacionado aos variados
modos de agir, ser e viver em contextos rurais, nisto encontram-se as
diversas formas de representação da vida e trazem sentidos e significados
para valores e princípios que estão implícitos às ações que materializam o
viver na roça. Para o termo “afazeres” entendemos como todas as atividades
que são desempenhadas por crianças, jovens, adultos e idosos que vivem e
convivem nos espaços rurais como tarefas obrigatórias e de responsabilidade
de cada um para a manutenção da casa e da família.
Esses fazeres e afazeres que pessoas da roça produzem são elementos responsáveis
pela forma como cada morador/a desse lugar significa sua vida e constrói seus modos de
habitar a roça, através desses movimentos desencadeados pela maneira como cada menino/a,
homem, mulher e idoso/a percebe e significa para si o que é habitar a roça. Este habitar a roça
tem relação direta com a condição de clareira que cada ente é e pode ser e que, tomado numa
perspectiva da ruralidade da presença, institui seu ser-na-roça.
Com este entendimento de habitar a roça e desenvolver formas próprias de significar a
vida e os espaços de vida neste lugar, compreendo que é no caminho de pensar a experiência e
42
Este termo tem origem do tupi, é bastante utilizado no interior da Bahia para fazer relação com a vegetação
secundária que se desenvolve em áreas desmatadas.
43
Atividade esportiva com a utilização de cavalos praticada no interior da Bahia.
112
(re)constituir-se habitante da roça que nos colocamos entes que são abertura para o ser e que
na condição de afirmar uma vida autêntica nos propomos à produção de formas diversas de
construir caminhos para pensar a experiência desse ser que já é.
Posso evidenciar que como ser que habita a roça e que a cada movimento de minha
experiência neste e com este lugar, me coloco como clareira do ser e isso possibilita que esta
roça habite em mim do mesmo modo que consigo habitar nela. Com estas proposições de
construir caminhos para pensar o ser dos entes e das coisas são formadas as veredas e as
encruzilhadas pelo meio da vegetação, na roça e ao lado das roças, pelo chão de terra batida 44,
num lugar em que tempo bom é tempo de chuva, de colheita e de fartura, mas que no tempo
de seca conseguimos nos organizar e reinventar maneiras de nos manter e produzir a vida nos
espaços da roça conforme as formas como habitamos este lugar.
É por considerar os sentidos e as significâncias que existem nesses espaços e
compõem as variadas maneiras de viver nele que busco compreender o que seria a produção
de um argumento a respeito do movimento de pensar essa provocação do ser-na-roça
instituído por uma ruralidade da presença que requer um lançar-se na roça para entender os
diferentes contextos dos acontecimentos a partir do pensar narrativamente esse lugar que
habito, criando condições de distanciamento para propor essa condição de ser que instaura
uma filosofia da roça. Tomo um pensamento de Heidegger (2015, p. 159) para reiterar os
sentidos do termo dis-tanciar como um movimento de aproximação e tensionamento daquilo
que compõe a presentificação do ser-na-roça:
44
Utilizamos a expressão “chão de terra batida” para nos referir a estradas e caminhos que são construídos nas
áreas rurais através de trabalho braçal com a utilização de instrumentos produzidos na roça como a zorra
(utensílio construído com a forquilha de uma árvore muito grande, resistente e que levasse bastante tempo
para se desgastar com o atrito para ser acoplada a uma corrente que era presa a arreios de animais como bois,
cavalos, jegues, mulas) para essa finalidade.
113
que temos e nos condicionamos a viver e que, em alguns momentos, somos provocados a
romper certas condições por considerar que é importante olhar para essa realidade de vida de
forma diferente. Nisto, compõe-se o trans-ver como condição outra de olhar para a nossa
realidade e espaços de vida. O distanciar revela a presença no trans-ver. O trans-ver passa a
apresentar possibilidades para uma compreensão do ser-aí composto por uma rede de
simbologias que justifica as formas de ser, pensar, agir e viver a roça.
A filosofia da roça pode ser instituída a partir da ideia que possibilita uma
compreensão do que seria, na roça, o ser reverberado por um laço constituído entre o ser-
sendo e o vivido, que vai acontecendo e provocando uma construção incessante de formas e
condições específicas de entrelaçamentos que cada pessoa que habita o espaço da roça se
propõe a fazer. Essa filosofia da roça pode ser compreendida como condição de uma
manifestação que se dá a partir do ser-na-roça, de modo que o sujeito que habita este espaço é
abertura – clareira do ser. Com isso, não pretendo descrever como se dá a vida na roça, mas
provocar formas que nos deem condições de pensar como o acontecimento do ser-na-roça
fundado numa ruralidade da presença habita este espaço, bem como desvela seu ser.
Estas provocações, em alguns momentos, se utilizarão de uma subjetividade inerente
às minhas narrativas, fazendo emergir experiências de um ser-sendo que tem seus modos
próprios de se relacionar com os espaços da roça e de produzir suas condições de habitar a
roça, evidenciando seu ser-na-roça para pensar outras formas de habitar este espaço. Quando
menciono esse produzir condições próprias de habitar a roça, remeto-me a modos e ritmos de
ser, pensar e agir inerentes a cada pessoa que se sente parte desse lugar e, com isso, constrói
redes que sustentarão e justificarão ser quem são, numa grande possibilidade de tornar-se
clareira para um ser que já é.
Ao se sentir parte do lugar habitado, as pessoas da roça convocam para si este lugar.
Isto nos traz a ideia de que este lugar habitado passa a ser tudo aquilo que cada pessoa
significa para si. Ao pensar dessa forma, entendo que o ser que se manifesta em cada ente que
moradores e moradoras da roça se permitem fazer ressoa este lugar habitado, o ser-na-roça.
Este lugar habitado, a roça, institui-se como extensão desse ser presentificado nos entes
manifestados em meninos/as, homens, mulheres e idosos/as que vivem nos territórios rurais e
buscam construir em seus espaços de vida formas outras de lavrar a terra e produzir suas
experiências e existências na roça.
Isso desestrutura aqueles/as que não podem trans-ver o mundo por ainda assumirem
uma condição de ver apenas o que está à mostra. A possibilidade de compreender as
114
45
O termo insignificante/insignificância é tomado aqui a partir da compreensão que Manoel de Barros nos deixa
imprimir ao contemplar sua poesia. Neste caso, insignificante/insignificância revela-se conforme a maneira
contemplativa das coisas que cada pessoa possui quando provocada ao movimento de trans-ver o mundo.
115
linguagem como presentificação de seu ser e do lugar habitado. Essa abertura para o ser só
acontecerá se cada menino/a, homem, mulher ou idosos/a da roça se colocar como entrega, ou
seja, deixar algo ser – deixar-ser. Para Heidegger (1991, p.128) “[...] deixar-ser o ente – a
saber, como ente que ele é – significa entregar-se ao aberto e à sua abertura, na qual todo ente
entra e permanece, e que cada ente traz, por assim dizer, consigo”.
Deixar-ser também pode significar aqui condição de extensão do lugar habitado
através do ser-na-roça, pois ao entregar-se ao aberto cada pessoa que se faz ente na roça está
se permitindo trans-ver seu lugar de vida, mobilizando para si condições outras de
compreensão daquilo que se coloca como valorativo e (in)significante para suas produções de
habitar. Deixar-ser como condição de compreender o lugar habitado como extensão do ser
representa apropriação de um fazer pautado na experiência que cada pessoa da roça se propõe
a construir ao entender-se ser-na-roça instituído pela ruralidade da presença.
A convocação que me proponho a desenvolver aqui, ao construir um pensamento que
possa instituir possibilidades outras de conhecer o ser dos entes, que são presentificados nas
relações que cada menino/a, homem, mulher e idoso/a estabelece e reconstrói ao vivenciar os
espaços da roça, revelando seus modos de habitar este lugar, congrega que por uma filosofia
da roça se coloca como sendo uma construção que se desenvolve como provocador para
entender o ser-na-roça e a forma como este ser se desvela, bem como compreender como um
ente na roça se coloca como abertura desse ser-aí que tenho apresentado.
Ao entender uma ruralidade como possibilidade de valorização dos modos de viver e
fazer, conforme orientações de uma tradução que está concebida a partir de significados que
são atribuídos ao viver na roça, tomo a presença como elemento valorativo desse ser-na-roça
que não pensa apenas nos seus modos de sobrevivência, mas também na manutenção do
espaço de vida. Este espaço, quando habitado de fato, passa a ser integrante e integrador da
vida das pessoas que produzem vínculos e significam ao desenvolverem efetiva relação
consigo mesmo, com o outro e com seu espaço de vida. Isso significa dizer que não há o
sentimento de exploração quando o habitar é produzido neste lugar, pois, pelo contrário, o
sentimento de quem habita é de cuidado, construção interdependente e de
complementariedade.
Conceber uma proposição que integra a construção de um pensar por uma filosofia da
roça significa rever movimento que valorize o cuidar e o lavrar. Isso vai requerer de nós
habitantes da roça um desprendimento de enaltecimento das técnicas modernas que propõem
um descobrimento explorador:
116
Descobrimento aqui está relacionado ao sentimento de exploração, pois quem diz ser
descobridor/a de alguma coisa desenvolve um senso de propriedade, assim, passa a controlar.
O habitar a roça não toma como fundamento de significação para sua relação com o lugar
aquilo que seja caracterizado como destruidor, que traga o sentido da eliminação do lugar
habitado. Quando menciono um movimento que valorize o cuidar e o lavrar como
possibilidade de fazer a potência do lugar habitado emergir e significar nossas vidas na roça,
estou me colocando à disposição para trans-ver a roça como lugar em que a vida tem valor e o
ser pode ser presentificado por um ente com muito mais tranquilidade, por ser um espaço em
que meninos/as, homens, mulheres e idosos/as buscam traduzir modos de vida e de cultura
para se manterem na roça como sujeitos históricos e culturalmente constituídos pela
influência e pelas marcas do lugar habitado.
Tomar a filosofia heideggeriana para propor uma ruralidade da presença que é
convocativa de um pensar a filosofia da roça é possibilidade para buscar outras formas de ver
os processos de vida nos territórios rurais, em que o deixar-ser demarca as condições que cada
pessoa que habita este espaço assume para si e como significa suas relações. Então, essa
filosofia da roça a que estou me referindo toma como elemento fundante os sentidos e os
significados provenientes do/a produtor/a, aquele/a que cuida de seu espaço de vida e, ao
cuidar deste espaço, está cuidando de si e do outro.
O/a explorador/a não pensa no espaço para além daquilo que pode ser retirado dele,
pois não vive e nem tem condições de habitar este espaço por não se considerar parte dele. É
com esta situação que noto a distinção da valorização ou não do que existe e compõe o espaço
da roça, sendo a partir desse movimento que compreendo a diferenciação do habitar ou não a
roça. A ruralidade da presença como provocativa de uma filosofia da roça me instiga a buscar
compreender mais profundamente o ser como algo que se manifesta num ente que se coloca
como abertura e, assim, notar que cada um de nós que habita a roça pode se entregar e deixar-
ser, já que revelar-se ser-na-roça significa traduzir-se poesia.
117
do lugar habitado, presentificado nos modos a que cada pessoa da roça recorre para lavrar a
terra e cultivá-la.
Cuidar da terra nesta condição de lavrar e cultivar traz consigo um entendimento de
salvar a terra, cuja semântica de salvar, aqui, diz respeito a deixar livre, fazendo a utilização
do que é necessário à vida e à manutenção das pessoas que habitam a roça. Faço uma relação
entre o lavrar e o cultivar a terra como forma de compreensão de tudo aquilo que motiva e
atribui significado ao habitar a roça na concepção da ruralidade da presença.
Menciono o demorar-se com sentido de morar. Demorar-se na roça e junto às coisas
da roça está associado à condição de trans-ver a roça a partir de um movimento congregado
pela simplicidade que encontra sentido naquilo que conseguimos resguardar do lugar
habitado. O demorar-se no lugar nos possibilita a experiência de permanecer. Essa
experiência implica na construção do habitar. Com isso, temos a constituição de um ser-na-
roça: ser que se demora num lugar.
A sobrecarga de sentidos para o termo ruralidade da presença que busco cunhar aqui
traz uma equivalência semântica do ser-aí, ou seja, ruralidade da presença se co-forma com
ruralidade do ser-aí. Para Heidegger (1991, p. 186), “[...] as palavras existência, ser-aí,
atualidade, designam um modo de ser”. São os modos de ser das pessoas da roça que têm,
nesta pesquisa, maior relevância. Posso dizer que são esses modos de ser que significam o
fazer docente de professores/as da roça, determinando a compreensão de mundo de
meninos/as, homens, mulheres e idosos/as que moram na roça.
A ruralidade da presença surge para congregar valor à forma como cada morador e
moradora da roça compreendem a si mesmo e o espaço de vida em que estão inseridos. Num
sentido mais amplo do que significa ruralidade da presença, entendo-a como assenhoramento
de ruralidades diversas que cada pessoa que habita a roça toma para significar sua forma de
viver a roça e produzir a vida neste lugar. É essa ruralidade da presença que institui o ser-na-
roça a partir da presentificação de um ser que já é e busca afirmar uma vida autêntica ou não,
revelando compreensões de como são ao produzirem as redes de significados que dão sentido
às suas vidas, sendo condição própria de entendimento sobre a forma como vivem, pensam e
se relacionam com a roça.
A ruralidade da presença não significa apenas a compreensão dos modos de vida das
pessoas na roça. Representa, de maneira muito bem acentuada, acontecimentos que são
119
construídos nas relações com seu lugar de vida, da forma como entendem a vida e veem o
mundo. O termo acontecimento traz para a condição do ser-sendo toda a manifestação desse
ser-na-roça reverberado pela ruralidade da presença. Ao viver a roça, cada pessoa vai
produzindo sentidos que demarcam quem é e o que pretende ser neste lugar. Isso está muito
relacionado aos acontecimentos provocados pelo produzir. Nesse movimento de produção que
cada pessoa da roça realiza vão sendo tecidas inúmeras maneiras que tornam essas pessoas
clareira para o ser.
O professor Sebastião-Acauã demarca o envolvimento com o outro para representar
como constrói suas relações com sua comunidade a partir do espaço da escola, dizendo:
“Conheço todo mundo aqui, brinco com todo mundo. Eu acho que o colégio é nossa escola,
que hoje em tudo que tem a comunidade toda participa. Então o nosso colégio aqui, graças a
Deus, é inserido na comunidade e, é referência” (Sebastião-Acauã, Entrevista narrativa,
2020). O ser-na-roça vai sendo desvelado com a maneira que as pessoas da roça se envolvem
com seu espaço habitado, permitindo-se uma produção provocativa da copresença que vai
sendo desencadeada da ruralidade da presença como possibilidade de representação do lugar
habitado e das relações oriundas do envolvimento com o outro.
A ruralidade da presença abarca toda significação que as pessoas da roça produzem a
partir do afeto com as pessoas de sua comunidade e com a forma como isso vai sendo
representado, provocando constantemente um revelamento do ser-na-roça numa condição
instituída pelos modos como os acontecimentos envolvem as pessoas com seus espaços de
vida, numa proposição que reúne possibilidades que compõem as existencialidades de
professores/as da roça. Como narra o professor Geni-Acauã:
O lugar de vivência a gente cria uma relação muito forte com ele, é onde a
gente cria os laços familiares, com amigos. Então, venho desempenhando
esse trabalho aqui e me dando muito bem com isso. Em todo lugar que a
gente mora, existem os nossos amigos e inimigos também, mas a amizade
que a gente construiu aqui é muito boa dentro desse espaço, tem pessoas que
ajudam a comunidade a viver melhor. (Geni-Acauã, Entrevista narrativa,
2020)
121
Para mim a roça traz todos os valores. Hoje sou o que sou agradeço aos
meus pais. Meu pai analfabeto faz apenas um nome e minha mãe estudou só
até a quarta série, mas me ensinaram os valores que eu precisava, eles
transmitiram para mim. Tento a todo momento transmitir esses valores
também para todos os meus alunos, como morar na roça e não se
envergonhar, porque nós somos da roça, mas somos pessoas, somos
profissionais, somos cidadãos. (Di-Acauã, Entrevista narrativa, 2020)
Noto que a narrativa da professora faz uma apresentação acerca do modo como ela
significou e ressignifica suas compreensões a partir dos vínculos estabelecidos com seu
espaço de vida, com sua família e com seus alunos/as. Há uma sinalização de que a condição
e o nível de escolaridade decorrentes da falta de oportunidade em usufruir o direito à
educação por habitarem a roça não representa impossibilidade de insurgência para afirmar
processos que representam as existencialidades das pessoas da roça. Entendo que os valores
mencionados na narrativa da professora se mostram como modos de ser-na-roça. A partir
disso são tecidos os significados para resistir às situações impostas por um sistema capitalista
que subalterniza a roça e quem mora nesse lugar. Na roça, produzimos experiências que são
constituídas de um ser-na-roça que nos propõe pensar caminhos e possibilidades de existir
nesse lugar entendendo que a presentificação desse ser que se manifesta em nós-entes nos
122
ajuda a perceber a sobrecarga de simbologias e sentidos que carregamos como modo de ser-
na-roça.
Com isso, me sinto mobilizado a narrar minha experiência com a lua nos espaços da
roça, pois se coloca como elemento místico e simboliza tempo. Tempo das coisas na roça.
Tempo de aparecimento e, também, de ocultamento. A lua influencia tudo que compõe o
espaço da roça. Demarca o brotar das plantas, o colher dos frutos, o cio dos animais, a
mudança do estado físico das coisas. A lua para as pessoas da roça representa ciclos de vida,
determinando cada estação e como cada lavrador e lavradora precisará cuidar da terra. Além
de todas essas relações que a lua significa em minha vida e na vida das outras pessoas da roça,
ela traz consigo o mistério da noite e o misticismo que alimentamos a partir das narrativas das
pessoas mais velhas de nossa comunidade.
Isso significa dizer que em noite de lua podemos sair até determinado horário sem nos
preocupar com o perigo que a escuridão pode reservar, pois sem lua clara no céu fica difícil
ver o mundo e as coisas. Por não conseguir ver com nitidez as coisas físicas da roça à noite,
criamos lendas e histórias para explicar algumas coisas quando não as entendemos. A noite na
roça propõe recolhimento, aquietamento, solidão na minha roça e no meu coração. Isso
significa para mim proposição de isolar-se, abrir distância como possibilidade de produzir
arte, escrever (FOGEL, 2012). Sendo assim, a lua tem influência em minha vida na roça por
se colocar como elemento de um tempo que me permite recolher para escrever e sentir meu
ser-na-roça numa outra dimensão.
Tomo essa narrativa para buscar compreender que cada coisa é de um tempo e o ser
que se manifesta em meu ente me provoca a pensar o movimento de desver a roça e o mundo
das coisas como proposição de uma compreensão outra da vida e dos modos de perceber as
relações que são construídas nos contextos desse espaço. Desver para ver as coisas da roça
está ancorado aqui pelo movimento de deslocamento que sou provocado a fazer a partir de
meu processo de distanciamento daquilo que durante muito tempo se colocou para mim como
conhecido, familiar e não mais possibilita desafio para entender a vida na roça por outros
modos de olhar, ouvir e sentir. Então, me apoio na poesia de Manoel de Barros (2015, p. 141),
para explicar o que significa desver a roça, de maneira a compreender meu movimento de
vida neste lugar, entendendo que cada pessoa significa para si seu lugar de vida a partir da
forma como vê a roça e sua vida na roça. Isso tem a ver com aquilo que vive e já viveu, com
aquilo que se tornou experiência constituída pelo que nos afetou, nos tocou, nos provocou
exposição:
123
mesmos no envolvimento com a roça e as coisas que significamos para desver a roça é uma
possibilidade de ser-mais desvelada numa presencialidade de um ser-sendo, que mobiliza suas
formas de compreender e habitar sua roça, como a professora Di-Acauã expõe:
um pintor pinta sua tela, como um poeta que desnuda realidades com sua poesia e mostra
abertura para o ser.
Conforme Fogel (2012, p. 184), busco com essa proposição de desver a roça um
movimento de olhar, sentir e dizer que se mostre para além do que está sendo mostrado. Um
movimento que intenta para o desnudar as formas de olhar a roça que nos ensinaram, ou seja,
instaurar nesse movimento formas de afastamento de um “[...] olhar simples, seco, que vê e se
satisfaz com o pouco e o parco do possível tornado necessidade (lei) e que não é, pois o olhar
típico, próprio da concupiscência do e no ver, que é justo o ver sem medida, sem contenção,
sem forma. Sem pudor”. A ruralidade da presença é condição e abertura para ver a roça como
potência e um lugar de vida, sobrecarregado de sentidos para os que a vivem e buscam
possibilidades de existir e resistir. Isso na insistência de compreender que são as formas
diversas de perceber os significados construídos nas relações que são estabelecidas neste lugar
que promovem modos específicos de vinculação com o espaço e nos provocam a produzir
experiências responsáveis por redes de afeto que simbolicamente nos mobilizam à afirmação
da vida autêntica conduzida pelo ser-na-roça.
4.1.1 Ser-na-roça
significados para viverem nestes espaços. Tais dimensões são entendidas aqui como a relação
que se estabelece consigo mesmo, a relação com o outro e a relação com a natureza e
favorecem e trazem condições para que esses grupos superem situações de invisibilidade e
marginalidade e se coloquem como protagonistas de suas vidas; fortaleçam suas identidades
de meninos/as, homens, mulheres e idosos/as da roça e intervenham em suas realidades de
vida na busca pela garantia de dignidade humana e orgulho em ser da roça. Ser da roça
sempre esteve associado a carregar consigo estigmas e preconceitos ao buscar acessar espaços
urbanos na garantia de direitos e serviços que não chagavam nos espaços rurais, como fica
evidente na narrativa do professor Sebastião-Acauã ao relatar sobre situações vivenciadas nos
espaços urbanos:
permanência de ações centradas na exploração dos recursos naturais, matéria prima e mão de
obra barata, quando isso tem relação com as pessoas da roça e seus espaços de vida.
A professora Damiana-Acauã evidencia em sua narrativa essas demarcações que
existem nos espaços de formação de professores/as, mencionando como isso teve uma
representação negativa e de silenciamento, trazendo à tona as intencionalidades de uma
formação docente parametrizada no binarismo e em concepções dos grupos hegemônicos:
Sou tímida, nas formações que têm eu não falo nada, não é porque não sei,
mas me dê um papel para eu escrever para ver, ali eu sei tudo o que fazer. Eu
não sou de falar porque já fui podada demais, sabe aquela história de que não
sabe nada. Você dá uma resposta, você fica olhando e quem foi que falou foi
uma pessoa com aquela roupa e aquele salto. Eu peguei aquele trauma e não
sei, aquilo ali criou um bloqueio, eu participo de reunião do sindicato, eu
entendo tudo. Percebo tudo, mas não falo nada porque já falei muito e não
teve valor, são 40 anos, eu comecei em 80, são 40 anos na sala de aula e me
sinto bem assim. (Damiana-Acauã, Entrevista narrativa, 2020)
Isso nos possibilita a compreensão sobre a potência que temos e que podemos nos
libertar da condição na qual o pensamento colonizador nos colocou, introjetando em nós uma
ideia de inferioridade por ser da roça. Para criar condições outras de pensar um ser-na-roça
como modos de existir inseparavelmente do mundo habitado busco nas discussões e estudos
de Heidegger (1969, 1991, 2012 e 2015) e na poesia de Manoel de Barros (1999, 2001, 2009,
2015, 2016 e 2018) uma ancoragem para rever como os grupos que habitam os espaços rurais
foram recriando e redimensionando seus modos de existir na roça na tentativa de articular um
engajamento narrativamente construído com a experiência que tenho por ser professor da
Educação Básica. Engajamento constituído por subjetividades de um habitar a roça tomando
meus modos de existir e resistir para narrar como as histórias de vida-formação-profissão na
roça evidenciam experiências a partir de seus modos de habitar a roça numa condição
ontológica do ser-na-roça narrado por professores/as e moradores/as da roça.
Tem sido a partir dos estudos e pesquisas dos teóricos citados acima, dentre outros,
que tivemos uma compreensão outra a respeito dos territórios rurais no Brasil e no mundo,
tendo como fundamento principal a superação de um rural como lugar da industrialização e da
exploração de seus elementos naturais. O rural passa a ser compreendido como espaço de vida
e produção cultural com base em princípios ontológicos que insurgem mediante as imposições
de estruturas sustentadas pelo capitalismo e pelos grupos hegemônicos. Isso tem me ajudado a
pensar no conceito de ruralidade da presença buscando uma articulação dialógica entre o
pensamento do ser e tempo em Heidegger (2015), que tem me dado sustentação teórico-
epistemológica para me aventurar numa construção conceitual com base na compreensão do
ser por ele mesmo ao narrar suas vidas e seus modos de existir na roça, perpassando pelas
relações que somos convocados a construir com o lugar que habitamos desde nossa
compreensão como menino/a, homem, mulher e idoso/a, entes abertos à manifestação do ser-
sendo que podem ser melhor compreendido na proposição de ser-aí.
Para atender às proposições da contemporaneidade, sem desmerecer as tradições que
os povos da roça valorizam e, também, não perdendo de vista as necessidades do presente de
sujeitos híbridos que passaram a vivenciar outras realidades além da realidade de suas
comunidades, vão surgindo maneiras de significar a vida e as relações que são estabelecidas e
construídas nestes espaços, demandando outros modos de repensar o rural e a ruralidade para
além de uma maneira unívoca, estática e dada. Conforme Wanderley (2000), passamos a
primar por uma nova ruralidade que atendesse às modificações que a contemporaneidade
requer por considerar que as tradições se mantêm presentes nestes espaços através de
traduções culturais e reinvenções de modos de viver e fazer na roça.
129
Compreendo, então, que essa nova ruralidade está embutida nas concepções das
ruralidades contemporâneas segundo as quais o rural passa a ser um espaço ressignificado,
sendo o lugar de produção social, cultural, econômica e simbólica. Um mundo habitado por
meninos/as, mulheres, homens e idosos/as que instituem sua morada num ser da presença,
onde a vida e as relações estão acontecendo assimetricamente e conforme princípios,
experiências e devires, ou seja, modos de existencialidades e transcendência. Cada pessoa da
roça vai se fazendo morada do ser conforme seus modos de existencialidade e transcendência,
decorrentes de como compreende o lugar e sua relação com ele, como estão evidenciadas na
narrativa da professora Di-Acauã, as produções e experiências de habitar a roça:
E as crianças, a gente vê que está na voz dela, em tudo que elas pronunciam.
Hoje a gente vê que muitas não se sentem mais com aquela vergonha de
dizer que seu pai é da roça. Aconteceu que se identificou, criou aquelas
raízes, está no sangue. Mesmo que negue, mas não vai conseguir não, porque
na própria fala acaba se entregando que tem um sangue da roça mesmo.
(Sebastião-Acauã, Entrevista narrativa, 2020)
E aí você conversa com eles que tanto na escola como também no diálogo
aqui na praça ou em qualquer lugar, que o planeta terra com uma população
que vive em qualquer um desses lugares, no que se refere ao contexto
geográfico, o primeiro fator de convivência é as pessoas buscarem entender
o clima, seja o clima chuvoso, equatorial, seja um deserto, um clima
semiárido como o nosso, seja litorâneo, tropical ou subtropical. Enfim, seja
num clima frio, então as pessoas têm que primeiro aprender sobre o clima,
ele é fundamental para a convivência, principalmente para quem trabalha na
área do campo. (Geni-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
A terminologia ser-na-roça abarca aqui dois sentidos: um que pode ser considerado
como amplo e coletivo, englobando uma dimensionalidade do espaço da vida, lugar habitado
onde são produzidos os modos resultantes dos movimentos da intersubjetividade. E outro diz
respeito a algo mais íntimo e próprio de cada sujeito, podendo ser compreendido como uma
constituição de interioridade desencadeada a partir da produção da subjetividade desse sujeito
para significar seus modos de viver e fazer na roça. Estes dois sentidos embutidos no ser-na-
roça são condições necessárias para que a presentificação do ser seja um constitutivo para
uma hermenêutica de si, de modo que a presença seja uma possibilidade de conhecimento do
lugar habitado e das significações que o sujeito que vive na roça vai dando à sua
existencialidade neste lugar.
Sendo esse rural um espaço ressignificado em que os sujeitos promovem suas ações e
reflexões parametrizadas em concepções de vida que levam em conta seus modos de ser e
viver na roça, trazendo elementos e proposições que nos fazem superar o pensamento do
filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre. Este versava a respeito de uma teoria da
completa urbanização com fundamentos numa sociedade que desenvolvia o modelo industrial
e poderia alcançar as propriedades rurais de maior extensão, propondo uma ideia de tornar os
territórios rurais apenas espaços de produção agrícola (LEFEBVRE, 2002). Temos também a
proposição do renascimento rural exposta pelo geógrafo e sociólogo Bernard Kayser, que
evidenciava uma total ruralização dos espaços urbanos (VEIGA, 2004).
Uma nova ruralidade surge nesse entremeio da ideia de um rural industrializado e do
nascimento de um rural que desconsidera os impactos do capitalismo e concepções de grupos
hegemônicos. Essa nova ruralidade tem seus fundamentos num pensamento que coloca em
cena a conjunção e a interdependência, congregando de maneira mais coerente a utilização da
conjunção aditiva e e não mais a conjunção alternativa ou, dando possibilidades para que
sejam superadas as dualidades campo/cidade, rural/urbano, civilizado/incivilizado num
sentido de sobreposição que esteve, durante muito tempo, centrada num entendimento
maniqueísta. Neste sentido, será valorativo congregar para o rural a noção de qualificação de
suas especificidades e potências no cenário da vida de qualquer ser humano, considerando a
relação sujeito e natureza.
Pensar essas ruralidades contemporâneas pelo viés da complementariedade urbano e
rural é trazer como centralidade as relações estabelecidas entre professores/as que vivem na
roça a partir de uma compreensão de complementações de culturas que são também
intercambiantes e propõem a esses sujeitos possibilidades diversas de compreenderem a si
mesmos e as realidades que vivenciam. Tomo essa premissa para enfatizar que a produção da
133
vida e da cultura na roça não se restringe apenas aos modos de fazer e de pensar fincados nas
tradições do lugar, ou seja, essas tradições são direcionadoras para que meninos/as, homens,
mulheres e idosos/as possam buscar sentidos que deem significância aos seus modos de ser.
Assim, uma ruralidade da presença que institui o ser-na-roça busca respaldo e
validação na proposição de um ser ontológico que ocupa os espaços rurais, ou melhor
dizendo, projeta seu si nestes espaços através da presença que em seu modo de ser-sendo
convoca para sua existencialidade a copresença. Essa copresença é a existência do outro nesse
movimento de produção de sentido e atende ao sentido da coletividade, do espaço habitado
em que o outro é parte importante e fundamental na constituição desse ser-na-roça. Como
reitera Heidegger (2015, p. 174), “[...] o „com‟ é uma determinação da presença. O „também‟
significa a igualdade no ser enquanto ser-no-mundo que ocupa dentro de uma circunvisão”.
Os outros são nossos pares e trazem o eu em seu ser-na-roça, de modo que o com o revela
como uma complementaridade e extensão de um ser que se coloca como presença, ou melhor,
um ser constituído pela copresença.
A copresença representa o vínculo que cada pessoa produz e constitui com os outros,
numa condição de existir convocativa do ser-na-roça presentificado pela interação decorrente
do envolvimento do ser-sendo que é constantemente ser com o outro, na medida em que se faz
abertura e demora-se nas paradas do espaço habitado, como é o caso do professor Sebastião-
Acauã que narra o vínculo que tem com as pessoas de sua comunidade:
que se perde, para tudo que soa e ressoa e morre na distância. A clareira é o aberto para tudo
que se presenta e ausenta”. O ente das coisas necessita da clareira para que o ser se manifeste.
Essa manifestação intenta para um pensar original da tradição que se encontra no caminho da
experiência, pois é no caminhar que produzimos experiências e ao produzi-las temos a
possibilidade de claridade sob esses pensamentos que sendo desvelados podem aparecer e se
ocultar.
Tomo a autobioformação como caminho da experiência que recebe claridade e
possibilita o pensamento de verdade do ser (HEIDEGGER, 2015), ou seja, a autobioformação
aqui é evidenciada como abertura, como clareira do ser-na-roça que se utiliza de uma
linguagem para manifestar sua presença. Sendo a autobioformação caminho da experiência
por se colocar como abertura e clareira do ser-na-roça, desvelando esse ser como ser-sendo,
numa perspectiva de continuidade na busca por alcançar a si mesmo para além do que já é,
cabe o entendimento da ruralidade da presença vinculada à proposição de um ser em
acontecimento que se presentifica através de um ente que habita os espaços da roça, fazendo
desse espaço um lugar de significação do real para sua existência, constituindo condições de
vida relacionadas com o que acontece neste espaço, interpretando a si mesmo conforme suas
compreensões de um ser em si. Isso significa dizer que o ser-na-roça se insurge dessa
ruralidade da presença e vice-versa – um acontecimento cíclico de acontecências do ser-aí
(desain), em Heidegger (1969).
A presencialidade do ser-na-roça desencadeada a partir das condições de existência
produzidas, conforme acontecimentos que vão se dando pelas relações que cada pessoa da
roça se propõe a construir com seu espaço habitado, compõe a dimensão da ruralidade da
presença pelas circunstâncias estabelecidas com os fazeres e afazeres dessas pessoas, como
estão evidenciados na narrativa da professora Di-Acauã:
alimentados e bem é que a gente vai cuidar na gente, fazer e tomar o nosso
café mais felizes porque os animais que precisam da gente já estão
alimentados e todos bem. (Di-Acauã, Entrevista narrativa, 2020)
Narrar fazeres e afazeres na roça nos provoca a entender a respeito da experiência que
cada pessoa que habita o espaço rural se propõe a construir como forma de significar suas
existencialidades no lugar de vida a partir de um lançar-se neste espaço e com as coisas do
lugar como possibilidade de desvelamento do ser-na-roça instituído por uma ruralidade da
presença concebida dos múltiplos sentidos de existir na roça. Observo que cada atividade que
a professora Di-Acauã desenvolve na roça reúne condições da representação de como deixa-
se fazer clareira do ser pelos modos de compreensão sobre o ser em si que tem influência
pelas acontecências do ser-aí da professora.
Esses fazeres e afazeres muito próprios e específicos dos espaços rurais ganham
sentidos múltiplos de acordo com a forma como cada pessoa da roça representa sua realidade
de vida neste espaço e como se deixa fazer clareira do ser, considerando o conjunto de
simbologias que compõe a ruralidade da presença. A ruralidade da presença passa a ser
concebida como terminologia que agrega múltiplos sentidos e dimensionalidades múltiplas
para representar a presentificação do ser-na-roça. Esses múltiplos sentidos que estão
embutidos nessa terminologia têm a ver com transcendência e existencialidade, ou seja, são
convocados por meninos/as, mulheres, homens e idosos/as que vivem na roça conforme a
relação que estabelecem com seus espaços de vida, morada, realidades em que se encontram
imersos/as na tentativa constante de afirmar a vida autêntica. Seria a ideia de um eu e o
mundo inseparáveis com possibilidade de pensar modos de transcendência e existencialidade
em que um contém e, ao mesmo tempo, está contido no outro.
A condição de existencialidade de meninos/as, mulheres, homens e idosos/as que
vivem na roça é uma caracterização do ser-sendo de cada pessoa, daquilo que pretende como
ser-na-roça numa constante busca de ser para além do que já são e podem ser. É a abertura
para a manifestação do ser dos entes numa possibilidade potencial que cada pessoa tem para o
projetar a si mesmo no mundo, produzindo experiências de ser quem desejar ser, vivendo
outros modos de existencialidade que contestem o aprisionamento de um existir condenado
apenas à submersão em realidades injustas e subumanas.
As dimensionalidades múltiplas a que me refiro como conjunto de (in)construções que
emergem da ruralidade da presença têm sua significância no movimento que cada pessoa que
habita a roça se propõe a fazer a partir das condições de vida que tem e das relações que
estabelece com sua realidade, morada, roça. Está ancorada no pensamento heideggeriano da
137
experiência em construção que vai se dando no processo de vida que cada um de nós se
propõe a desenvolver. É um tomar como oportunidade as possibilidades potenciais que cada
realidade de vida na roça nos apresenta para nos lançar no mundo e nos abrirmos para a
manifestação do ser.
Processo é pensado aqui com sentido de um movimento desencadeado por um
conjunto de acontecimentos nos quais pessoas da roça se encontram envolvidas. Um conjunto
de acontecimentos que se efetiva no caminho e tempo que é o produzir experiências no qual o
ser-na-roça se manifesta a partir de um recolhimento e de uma reunião que pressupõe pensar o
ser a partir dele mesmo. É uma prospecção do ser em acontecimento que é lançado no mundo
e se vale do que tem condições de construir no caminho da experiência do pensar a partir de
um redimensionamento do passado-presente, entendendo-se como ser-mais que se traduz no
ser-sendo, em que o futuro significa a copresença do passado-presente como principais
categorias desse ser em processo.
Essa expressão significa aqui a condição na qual o ser-na-roça, a partir da ruralidade
da presença, encontra-se envolvido por uma copresença que requer paradas para momentos de
reflexões, recolhimento, reunião de sentidos que significam a exposição de ser no que ele
mesmo se mostra ser, retomadas com possibilidade de acontecimento, disposição para seu
lançamento no mundo. É o deixar-se ser que já é e, cultivar-se como abertura para ser-na-roça
através da potência desse ser que já é além daquilo que pensa ser. As dimensionalidades que
estou fazendo referência são produzidas numa constância do projetar a si mesmo a partir
desse movimento que, toma como centralidade os modos de existencialidade e
transcendência. Transcender equivale aqui, aos sentidos que cada pessoa, seja menino/a,
mulher, homem ou idoso/a, produz sobre a roça, seu mundo, colocando-se como abertura para
o ser, clareira.
É um contínuo caminhar e produzir experiências, em que o ser-sendo se coloca como
uma provocação incessante da falta, da nossa incompletude, aquilo que não descansa, faz
vigília, uma sentinela, noite e dia na morada de nosso ser e no lugar que habitamos. Cabe
aqui, fazer uma reflexão a respeito da representação dessa vigília apresentando uma narrativa
da minha experiência de desenvolver uma pesquisa narrativa na roça e sobre a docência na
roça e o habitar a profissão docente na roça, evidenciando outros acontecimentos que se dão
nesse meu lugar habitado, paralelamente ao meu pensar como pesquisador motivado pelas
questões heideggerianas e pelas poesias de Manoel de Barros (2015).
Dia e noite, noite e dia a espanta-boiada faz vigília à minha casa e à minha vida na
roça. Esse passarinho que constrói seus ninhos no chão e povoa vales, baixadas, longos
138
campos de pastagens em chapadões altos e planos, que nos perdemos ao olhar o seu sem-fim.
A espanta-boiada é conhecida no pantanal de Manoel de Barros (2015) e em outros lugares
distantes do sertão nordestino como quero-quero. Descobri isso lendo seus poemas e pelas
descrições que sempre faz para cada pássaro quando elege como inspiração poética.
Em noites enluaradas nas estações mais quentes em nossa região, sempre gosto de
caminhar por alguns lugares na roça para sentir o cheiro de mel exalado da mata que quase se
torna o meu quintal, também para meditar e conversar com o sem-fim da escuridão que faz
parecer que estou sozinho, pensar enquanto não estou pensando, aquietar a alma como modo
de conexão com meu mundo. Nessas minhas caminhadas à noite nas proximidades do terreiro,
das baias que abrigam os cavalos, dos cercados das vacas, dos galinheiros e do curral estou
sendo sempre surpreendido pelo grito alarmante das espanta-boiadas que construíram seus
ninhos e governam um perímetro extenso em frente de casa.
Esse grito anunciador da presença inesperada também acontece com os estranhos
movimentos na noite ou de dia, seja gente, seja bicho, ela anuncia de um modo que ecoa na
região quase toda, chama atenção dos/as vizinhos/as. Ela faz vigília, protege seu espaço e seus
filhotes, não dorme, está em alerta constante. Nas noites em claro ou nos dias extensos que
passo escrevendo, lendo e buscando pensar narrativamente, uma de minhas companhias tem
sido esse bichinho. Ele não me incomoda, apenas me alerta de que não estou sozinho naquele
espaço.
Minha espanta-boiada é livre e parece briguenta, segue sua disciplina, não brinca em
serviço. Minha espanta-boiada anuncia e denuncia o que podemos ver e entender e, também, o
que não se pode perceber. Ela anuncia quem chega e denuncia quem passa. O quero-quero de
Manoel de Barros (2015, p. 65, grifos meus) apareceu em minha vida para me ajudar trans-ver
meu mundo, me aproximar de condições outras de transcendência e existencialidade na roça,
compreender que em meu processo para ser abertura, clareira do ser é importante me afastar
de minha realidade sem sair dela. Ver o mesmo mundo por outras lentes e de outros ângulos,
exercitar o movimento de aproximação e distanciamento, provocando acontecimentos que
compõem meu processo formativo na pesquisa narrativa:
De forma que não sobra ócio ao quero-quero para arrumar o ninho. Que faz
em beira de estrada, em parcas depressões de terreno, e mesmo aproveitando
sulcos deixados por cascos de animal.
(...) Em tempo de namoro quero-quero é boêmio. Não aprecia galho de
árvore para o idílio. Só conversa no chão. No chão e no largo. Qualquer
depressãozinha é cama. Nem varre o lugar para o amor. Faz que nem
boliviana. Que se jogue a cama na rua na hora do prazer, para que todos
vejam e todos participem. Pra que todos escutem.
Não usa o silêncio como arte.
Quero-quero no amor é desbocado. Passarinho de intimidades descobertas.
Tem uma filosofia nua, de vida muito desabotoada e livre.
Depois de achado o ninho e posto o ovo porém, vira um guerreiro o quero-
quero. Se escuta passo de gente se espeta em guarda. Tem parenteza com
sentinela. Investe de esporão sobre os passantes. E avisa os semoventes de
redores.
(...) De olhos ardidos, finas botas vermelhas, não pode ver ninguém perto do
ninho, que se arrepia e enfeza, como um ferrabrás.
Passarinho de topete na nuca, esse!
Não conhecia esse quero-quero que mais ama que trabalha, conhecia minha espanta-
boiada, mas como o movimento de pensar narrativamente nos convoca a trans-ver o mundo,
desencadeando nesse processo de constituição de um eu-pesquisador modos outros de
compreender a roça como lugar habitado na busca de desvelar a respeito da docência na roça
e experiências de ser-docente, sou instigado pelo quero-quero a considerar outras versões da
minha espanta-boiada, de mim mesmo e da docência na roça, passando a perceber o quanto
essa reconfiguração da roça e o que a compõe como lugar de vida e produção de sentidos, em
que as possibilidades de presentificação do ser que vai se desvelando através da manifestação
do que é próprio de um ser.
Posso tomar essa descrição sobre o quero-quero no amor desbocado, que é livre e não
se permite abotoamentos, para pensar que o que vem a ser essa manifestação que preserva o
próprio ser que tem atenção para cultivar princípios de seus modos de existencialidade,
embutidos em sua relação com a roça como elementos responsáveis pela construção de
sentidos do habitar e produzir referências com as coisas do seu mundo. Com minha espanta-
boiada e com o quero-quero que conheci, passo a compreender que a preservação e o cultivo
daquilo que compõe o movimento de trans-ver a roça como lugar habitado e que, propõe um
processo que nos possibilita a (re)fazer paradas e reorganizar curso do caminhar na roça
próximo a ninhos de espanta-boiada construindo experiências.
Caminhar entre ninhos de espanta-boiadas é provocativo para pensar como as
narrativas podem ser espaço potencial, de compreensões de como cada pessoa que vive na
roça faz para a criação de condições próprias para a manifestação do ser-sendo conforme a
instituição de possibilidades que os múltiplos sentidos e dimensionalidades múltiplas da
140
Então a gente vai dialogando e, observe gente que é agora nesse período
inclusive estamos com essa facilidade da chegada das massas de ar úmidas
até aqui. Agora estamos tendo muitas chuvas, ocorre isso por conta do
fenômeno la niña, isso porque resfriam as águas do pacífico, com esse
resfriamento das águas a umidade consegue chegar. Aí eles perguntam por
que esses nomes, então vou explicar que esse fenômeno foi batizado em
espanhol, el niño que é o menino e la niña que é a menina. Eles perguntam
qual dos dois é melhor pra gente, eu digo: - A menina, pois o menino é
malvado. Então os caras acabam entendendo, aí é uma conversa diária, uma
prosa, a gente vai tentando ajudar, eu também aprendo com eles, eles
aprendem comigo, a gente vai estabelecendo essa relação desse jeito. Aí eu
digo: - Quando você ouvir falar na tv que o el niño está se aproximando,
tenha cuidado na hora de se preparar para a forma de consumir a água. A
distribuição de chuvas nesse período agora tem sido melhor, têm outros
períodos que não são tão bons, então os caras passam a entender e planejar
também, se você trabalhar no campo ou na Educação e não tiver o
planejamento acaba pagando mico. (Geni-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
A relação que o professor faz entre o conhecimento específico da área em diálogos
sobre os fenômenos naturais e suas implicações em nossos contextos de vida tem
141
representação significativa para quem vive a docência na roça e interage com as pessoas do
lugar em conversas que se iniciam no espaço físico da escola. Com isso, insurge a relação
desse professor com o lugar habitado, consigo mesmo e com as pessoas de sua comunidade.
Na narrativa do professor fica evidente um aprofundado conhecimento do espaço habitado e
uma relação potente entre este conhecimento e sua área de atuação docente na medida em que
o ser-na-roça vai se desvelando pelo movimento de narrar os diálogos que estabelece com as
pessoas da roça.
Essas relações produzidas no encontro são desencadeadas por um movimento de
lançar-se no mundo habitado, articulando processos inerentes à ruralidade da presença que
cada pessoa da roça toma para representação de suas realidades e compreensões de vida que
constituem as experiências produzidas por professores/as da roça. A docência na roça pensada
a partir de uma perspectiva da ruralidade da presença pode ser tomada como um espaço que
valoriza o ser como uma manifestação do pensamento original e não nega as condições
vividas por meninos/as, mulheres, homens e idosos/as como entes de um ser-aí que não pode
ser, nem temos a pretensão de impedir que esse ser-aí se manifeste considerando os caminhos
que cada pessoa da roça faz para pensar seu passado-presente numa vertente direcionada à
afirmação de uma vida autêntica e um lançar-se no mundo.
Uma proposição de docência que reconsidera modos outros de pensar a vida e suas
proposições de desvelamento do ser que se presentifica conforme os significados que constitui
nos seus modos de existencialidade e transcendência como ser-na-roça, interpretando a vida
pelo ser em si, em que o ser-sendo significa o movimento e a inconstância de um ser que se
projete para além do que já é.
É tomar o ser-aí como abertura para ser quem se quer ser e construir modos de habitar
conforme o próprio entendimento do ser que quer afirmar ou não a vida autêntica, buscando
ser clareira e abertura para o ser-na-roça que se revela conforme seus modos de compreender-
se a si próprio na (in)construção enquanto sujeito em processo. Logo, a experiência
constituída no movimento desse caminho que trilhamos se coloca como principal precedência
para a compreensão de si próprio e também do outro, fazendo desse encontro um lugar
hermenêutico em que o aprender acontece numa horizontalidade constante por considerar que
meninos/as, mulheres, homens e idosos/as encontram-se numa constante transição que nos
remete a pensar que todos nós nos encontramos como abertura, clareira para a presentificação
do ser-na-roça, revelando modos de existencialidades e transcendência.
Penso que seja importante, nesse contexto em que apresento a ruralidade da presença,
desenvolver uma proposição revelada nos modos de narrar a vida na roça e minha experiência
142
sobre meu engajamento na pesquisa narrativa que pretende desvelar o ser-na-roça de pessoas
que habitam esse lugar. Isso por entender que o movimento de pensar narrativamente me
possibilita ser abertura para o ser-sendo por me compreender como ente do ser lançado no
mundo que busca realizar o processo de narrar minha experiência numa jornada da pesquisa
narrativa para compreender a vida e a docência na roça. Desse modo, apresento minhas
narrativas sobre as experiências constituídas nos percursos que me proponho a desenvolver
para compreender meu ser-na-roça numa ruralidade da presença provocadora dos diversos
modos de ser e viver os espaços que habitamos, pensando a docência e a escola da roça como
espaços potentes para o movimento que possibilita a construção de processos de compreensão
das experiências que podem ser constituídas no caminhar do nosso ser.
com distância de 8 km até a sede do município que integra esta pesquisa, tive que organizar
um roteiro que possibilitasse a realização de imersão inicial às três comunidades que a Escola
Municipal Professor Laurentino Barreto dos Santos abrange.
Após organizar o roteiro para imersão, segui viagem rumo a outras roças – localidades
rurais. No trajeto que fazia, inúmeros questionamentos iam passando pela minha cabeça:
como estes/as professores/as vão me receber? Como reagirão ao apresentar a proposta de
pesquisa? Qual a condição de envolvimento ou não como colaboradores/as da pesquisa? Em
paralelo a tais questionamentos, eu ia observando a estrada de terra batida, cheia de costelas
de vaca46 e com algumas poças d‟água, pois era estação de inverno com muito frio e chuvas
escassas. Nesse percurso avistei um pé de barriguda 47 todo florido, uma imagem exuberante
em meio à caatinga, pois o branco das flores numa árvore com madeira num tom verde
acinzentado e sem folhas destoava em meio à vegetação.
Com a imagem do pé de barriguda fixada em minha memória desse trajeto para
aproximar-me das escolas da roça, pude refletir sobre a importância da empiria no movimento
de pesquisa, reorganizando meus pensamentos e abrindo mão dos meus apriorismos a respeito
do que o lócus de pesquisa apresentaria. Minha primeira parada foi na Sala São José, na
comunidade de Cotovelo. O professor dessa escola mora na comunidade, possui carga horária
de 20 horas semanais e atua em uma classe multisseriada com um total de 9 alunos/as. Fui
muito bem recebido pela servente, pelo professor e pelos/as alunos/as. Tive oportunidade de
dialogar um pouco com o professor sobre a proposta de pesquisa fazendo uma breve
exposição das questões que pretendia estudar. O professor ficou empolgado com nossa
conversa e passou a falar sobre o rendimento de sua classe, mencionando o apoio da
coordenação pedagógica no planejamento que colaborou com uma melhor maneira de
desenvolver seu trabalho com a produção de texto em sala de aula. Após nossa conversa fiz o
convite ao professor para participar como colaborador nesta pesquisa. O professor expressou
com entusiasmo que estava disposto a colaborar com essa proposta que trata da centralidade
para as classes multisseriadas.
A segunda parada foi na Sala João Felipe Coutinho, na comunidade de Caraibinha. A
professora que atua nesta escola mora nesta comunidade e possui regime de trabalho de 20
horas semanais. A professora atua há mais de 20 anos na docência em classes multisseriadas
nesta comunidade. Atualmente, está com 9 alunos/as de 3 a 7 anos de idade que cursam a
46
Pequenas ondulações no decorrer da estrada que são provocadas pelas chuvas nos terrenos mais duros.
47
Árvore alta, de troco robusto e espinhoso, folhas verde-acinzentadas, é bem predominante nas regiões do
semiárido nordestino, suas flores brancas se destacam no meio da vegetação.
144
48
Conforme consulta ao banco de dados do Catálogo de escolas do Inepdata, nos últimos quatros anos houve a
desativação de 22.853 escolas públicas rurais no Brasil, 2.646 escolas rurais na Bahia e 1 escola rural em
Várzea do Poço (INEP, 2020).
146
discutir um tema que não esteja vinculado à realidade deles, não dão muita
atenção. Agora quando o tema está vinculado ao espaço de vivência deles,
eles passam a ter uma atenção especial para o professor, não desgrudam o
olhar, você atrai toda a atenção deles, inclusive agora nessa temática sobre a
convivência com o semiárido, as técnicas utilizadas no campo e na cidade,
todas as questões que estavam no conhecer os alunos responderam, tiveram
atividades para eles em que trabalhei e eles fizeram sem resistência. Então,
quando você toca na realidade do aluno fica bem mais fácil para trabalhar.
Tenho propriedade para falar diretamente. (Geni-Acauã, Entrevista narrativa,
2020)
encontro dos serviços na comunidade. Para isso, será necessário tomar como âncora a
ruralidade da presença como possibilidade de trans-ver a realidade e produzir condições de
resistir e (re)existir, desconstruindo os modos como nos propõem ver o mundo pelas lentes de
quem não vive nossas realidades da roça, querendo utilizar discursos que suplantam a
existência das escolas da roça através da expressão de intenções de negar o direito de quem
mora na roça ter condições de acesso à educação numa escola situada no contexto da roça.
Esses discursos são sustentados pelas lógicas de estruturas capitalistas que têm sido
alimentadas pelas lógicas dos grupos hegemônicos que acreditam na manutenção de domínio
de uma classe sobre outra, instaurando ou mantendo o que Paulo Freire (1987) nos apresentou
como estrutura mantida pela relação oprimido-opressor. Isso significa pensar que as forças
dessas estruturas estão sendo reativadas a partir dos movimentos políticos dos grupos de
direita e extrema-direita que comungam com as propostas neoliberalistas para a manutenção
de poder.
Penso que essas ameaças e suposições do fechamento de escolas da roça significam
maneiras de impossibilitar que pessoas que habitam a roça possam ter acesso a espaços
públicos e coletivos como a escola. Nestas escolas se instauram modos potentes de
organização que minam as estruturas hegemônicas como a constituição de movimentos
contra-hegemônicos para adentrarem nas fissuras que existem nessas estruturas e rompê-las,
desmontando essas formas de poder que se sustentam nas variadas formas de opressão e
marginalização das minorias políticas que habitam os espaços da roça.
Seguindo com a conversa, apresentei minha proposta e as questões da pesquisa. Fiz
alguns esclarecimentos sobre termos que apareciam nas questões. O professor começou a
dizer que em relação a conviver em espaço rural e atuar como professor nessa comunidade lhe
dá condições de entendimento a respeito de muitas coisas que acontecem naquele espaço
escolar, mencionando as relações que tem com cada família e o que tem feito para manter
algumas crianças estudando.
Em meio ao diálogo sobre as preocupações em relação ao funcionamento das turmas
multisseriadas, surge uma discussão sobre a diversidade nas comunidades rurais. Então, o
professor trouxe um posicionamento a partir de uma lógica do respeito ao que o outro quer
fazer em seus espaços de vida e de como cada pessoa pode entender essas questões na
contemporaneidade, mencionando que atualmente existem muitas mulheres na roça que têm
desenvolvido as atividades que antes só eram realizadas por homens, sendo que elas têm
assumido responsabilidades para garantir a sobrevivência da família nesse espaço.
150
(...) O homem havia sido posto ali nos inícios para campear e hortar. Porém
só pensava em lombo de cavalo. De forma que só campeava e não hortava.
Daí que campear se fez de preferência por ser atividade livre e andeja.
Enquanto que hortar prendia o ente no cabo da enxada. O que não era bom.
e afazeres de acordo com a dinâmica de seus espaços de vida e das necessidades que
constituem sua presencialidade com as coisas do lugar. Di-Acauã faz uma apresentação de sua
rotina e evidencia como compreende seus modos de deixar-se fazer na roça:
Meu modo de viver na roça é muito simples. Primeiro eu vou falar da minha
rotina diária, todos os dias acordo 5 horas da manhã, vou para o curral ajudar
o meu esposo tirar o leite, depois vou cuidar dos animais de pequeno porte
que criamos aqui na nossa roça, galinhas, perus, saqués, cuidar dos
pintinhos, cuidado de um modo geral, quando termina vou cuidar das hortas,
molhar as hortaliças que a gente produz aqui para o próprio consumo. Um
exemplo é o capim de corte que a gente molha para alimentar o gado. Logo
mais vou preparar o café da manhã, depois do café da manhã cuido da casa,
depois vou ajudar o meu esposo a preparar ração para o gado até a hora de
preparar o almoço. Descanso um pouco e à tarde a partir das três horas já
tenho que ajudar meu esposo novamente a preparar a ração para o gado. Às 5
horas da tarde fazemos a segunda ordenha, ajudo meu esposo novamente a
tirar o leite, chega à noite hora de preparar o jantar e dormir, essa é a minha
rotina diária. (Di-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
modos que as pessoas da roça tomam para desenvolverem seus processos experienciais no
caminho do pensamento de seu ser-aí de acordo ao que são-sendo e projetam-se como ser-
mais na roça.
A narrativa que me proponho a desenvolver aqui vai sendo uma configuração de uma
descrição de um processo, movimento que tenho oportunidade de vivenciar. De acordo com
Ricoeur (2010a, p. 170), “[...] o narrador determina de fato um presente – o presente de
narração – tão fictício quanto a instância de discurso constitutivo da enunciação narrativa”.
Reitero que essa narrativa é constitutiva também do ser-sendo que institui passado-presente
articulado por um ser que está além do que já é quando afirma uma vida autêntica ou
inautêntica. Isso se mostra como potencial narrativo que possibilita ao ente abertura para o
ser-na-roça e produzir narrativas para uma descrição através do modo como traduz e preserva
o original de sua relação com seu espaço de vida.
Com os desvelamentos sobre condição atual das escolas da roça e seus modos de
existencialidade e a respeito dos entendimentos sobre divisão de afazeres na roça que foram
explicitados, cabe aqui uma relação do pé de barriguda florido com os desvelamentos nas
escolas rurais. Esse evento do pé de barriguda florescer se apresenta para nós na caatinga
como prenúncio de tempos prósperos. Essa árvore dá suas flores no mês de agosto para
anunciar os camboeiros49 de setembro. O mais interessante é que o pé de barriguda se destaca
entre as outras árvores da caatinga quando floresce, pois, cai toda sua folhagem e suas flores
brancas destoam em meio ao verde-acinzentado das árvores das matas brancas de nossa
região. Esse tempo do florescimento do pé de barriguda que destoa na caatinga pode ser
relacionado com os desvelamentos que se apresentaram nas narrativas que pude desenvolver
para evidenciar como esse contexto das escolas da roça vai sendo anunciado e vivenciado
conforme os acontecimentos na contemporaneidade.
O professor dos 2º e 3º Anos das Séries Iniciais do Ensino Fundamental tem 16
alunos/as em sua turma, mora no município de Várzea da Roça, integra o quadro docente no
seu município, sendo lotado com 20 horas em nosso município. No decorrer desse diálogo, o
professor apresentou a situação de Várzea da Roça em relação ao movimento de nucleação
das escolas e como o impacto do fechamento está visível nas comunidades em que isso
aconteceu e manifestou que acredita na existência das classes multisseriadas como solução
para questões de economia, manutenção e possibilidade para a gestão municipal.
49
Essa expressão é utilizada em nossa região para caracterizar as chuvas de início de trovoadas que aparecem no
mês de setembro.
154
Este professor nos propõe interpretar de modo mais aprofundado o sentimento das
comunidades que estão sendo ameaçadas de não terem mais escolas em seus espaços. Em
nossa região, não é realidade ter os movimentos sociais compreendidos a partir de um
entendimento da potência que são como organização social em contextos rurais. Nos lugares
onde existe o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST e outras formas de
organização social, há uma luta para a manutenção e até mesmo criação de escolas em
espaços rurais, sendo uma conquista desse movimento. Mas nos espaços em que não existem
organizações desse cunho, a comunidade se torna um espaço vulnerável à perda de seus
direitos como cidadãos, pois as políticas de Estado não garantem isso e muitas outras coisas
às quais essa população tem direito.
Posso evidenciar que com essa conversa entre e com professores/as da Educação
Básica de escolas rurais pude compreender que os professores/as entendem a escola da roça
como lugar de potência e abertura para o fortalecimento da comunidade como grupo que
reinventa modos de existencialidades a partir das relações intersubjetivas que conseguem
construir no encontro com o outro em locais como a escola da roça. Isso passa a ser uma
convocação para pensar uma escola que valorize o tempo livre e se oriente conforme a
proposição do movimento de conceber a escola da roça como skholé 50. Para Kohan (2017, p.
78) a proposta é:
50
Termo grego que representa literalmente “tempo livre” e é equivalente a escola e desencadeia uma
significância “ao tempo (livre) e ao espaço (público) dedicado ao estudo” (RECHIA; MENDONÇA;
MENDES; PREVE, 2017, p. 11).
155
É importante mencionar que o professor que atua com uma classe multisseriada de 14
alunos/as dos 3º e 4º Anos das Séries Iniciais do Ensino Fundamental participava dessa nossa
discussão a respeito das dificuldades enfrentadas por essas escolas situadas em áreas rurais.
Nossa conversa trouxe à tona a situação que o município enfrenta ao ter um dos menores
percentuais da arrecadação do Fundo de Participação Municipal – FPM, sendo 0.6%, pois
nossa população não chega a 10.000 habitantes, bem como sobre outros convênios e recursos
que a educação recebe e que reflete nessa situação das propostas de fechamento das escolas
em comunidades rurais. Ressaltamos que para a gestão é mais conveniente e a visibilidade é
menor quando fecha uma escola na roça do que quando reduz números de aulas extras em
alguma escola da sede em função da reorganização de turmas e remanejamento de
professores/as.
O movimento de imersão de aproximação do campo e observação realizado nas
classes multisseriadas da Escola Municipal Professor Laurentino Barreto dos Santos
possibilitou compreender como essas classes se colocam como potência política, social e
cultural de cada comunidade na qual elas ainda existem, nos oferecendo condições de pensar
maneiras outras que possam garantir sua permanência nessas comunidades a partir do lugar da
valorização de quem constitui esse espaço. É importante evidenciar também as contribuições
que cada professor/a traz para estes espaços, desvelando sentidos outros que estão para além
das propostas de seriação e compartimentalização das áreas de conhecimento, fundamentados
em modelos urbanocêntricos e eurocêntricos que instituem uma vida inautêntica para as
pessoas da roça.
Utilizar na abertura dessa seção a proposta do riacho de água salgada que corre por
entre pés de jeremas desvela contextos das escolas da roça em meio a todas as necessidades
que se apresentam em nível estrutural e estruturante tendo em vista seu funcionamento e suas
condições de resistir. É como ver impossibilidades de seu acontecimento, já que a todo tempo
o que se faz constante é a política da negação dessa escola da roça como espaço de
transformação. Em meio aos pés de jeremas que margeiam o riacho, a luz irrompe por
menores lacunas que se façam aparecer entres galhos e folhagens, clareando esse riacho e nos
deixando ver que há possibilidade de outras vidas e condições de existência por ali.
Esse clareamento se mostra insistência do existir e resistir da escola da roça no que
tem sido a negação. A isso resolvi dar o nome de proposições. Ou seja, proposição que se
156
apresenta desse clarear que ao se revelar também se oculta. A escola da roça como proposição
por tomar seus modos de existencialidade entendendo que a educação é possibilidade,
abertura para o mundo que cada pessoa se predispõe a criar. O professor Geni-Acauã
evidencia a educação como clareira do ser-na-roça desvelado pelas proposições que se
apresentam em suas compreensões sobre os processos de subjetividades que são decorrentes
do movimento que os grupos provocam nos espaços da escola:
Acho que não existe nada igual que a educação. Tem alguns pensadores que
dizem que a Educação é a preparação para a vida. Acho que a Educação já é
a própria vida, é na escola que se aprende a escrever, calcular, contar e
principalmente a conviver com as pessoas. Não buscar apenas coisas
materiais, mas só em aprender a conviver com as pessoas é fantástico. (Geni-
Acauã, entrevista narrativa, 2020)
apresenta como abertura, clareira do ser. É neste sentido que vou entrecruzando minhas
narrativas com as narrativas de professores/as narradores/as para desenvolver um movimento
de compreensão sobre como a ruralidade da presença vai instituindo o ser-na-roça a partir dos
modos de lançar-se na roça que cada pessoa se propõe fazer e, com isso, produz em seu ente
formas de abertura para afirmar a vida autêntica.
Os modos de lançar-se na roça do professor Sebastião-Acauã perpassa pelas
compreensões que constrói de um rural ressignificado com a implementação dos processos de
complementariedade de elementos de urbanidade e ruralidade, numa composição provocativa
de reconfigurar os espaços da roça como lugar de acolhimento de outras possibilidades de
existir:
A energia chegou em vários locais, todo casebre hoje tem energia, isso levou
para o campo também uma forma de conforto, levou uma tv e uma geladeira,
o liquidificador. Então essas pessoas da cidade ou da comunidade que
tinham e têm a sua roça e deixaram a casa na roça há algum tempo e vieram
morar na cidade, estão voltando para suas roças, com advento dessas
políticas públicas. A chegada dessa energia mais especificamente, a água
com essas cisternas que também é um meio de política pública que o
governo federal implantou. Tendo a água, a energia e um conforto, essas
pessoas aderiram mais a sua moradia no campo. Então esse alunado passou a
morar diretamente na roça. (Sebastião-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
O mundo pela imagem é uma caracterização do que podemos ver e as palavras não
conseguem descrever. É a possibilidade da presentificação do ser desvelado, apresentado de
maneira desformada pelo ente que é artista, que por ser artista brinca com a linguagem e com
a poesia na composição de imagens que nos ajudam a compreender como seria esse
movimento de trans-ver o mundo e a roça a partir do ser-sendo que desencadeia o nosso ser-
na-roça.
A ruralidade da presença pode ser entendida como processo que institui nosso ser-na-
roça ao nos aproximar das possibilidades que temos de nos colocar como abertura, clareira,
160
ser-aí das coisas. Por isso, as narrativas são tomadas aqui como acontecimentos que revelam
os percursos de nossas temporalidades na roça, sejam na docência ou em outros espaços na
comunidade rural e, conforme Ricoeur (2010a, p. 132), “[...] o que é narrado, e não é
narrativa, não é dado em carne e osso na narrativa, é simplesmente „representado, restituído‟;
por outro, o que é narrado é fundamentalmente a „temporalidade da vida‟; ora, „não se narra a
vida [propriamente dita], vive-se a vida”.
Do mesmo modo que não se narra a vida porque a vivemos, não narramos a
manifestação do ser: ele se presentifica. O que fazemos é o movimento de narrar os percursos
das temporalidades da vida e da manifestação do ser-na-roça compreendendo os sentidos de
ser dos entes. É nesse processo que está instituída a ruralidade da presença como modo de
entender a roça como lugar em que os entes ao produzirem sentidos para habitar a roça, se
abrem para a manifestação do ser. O habitar a roça, neste sentido, é o próprio ser-aí da
presença. É a partir dessas reflexões sobre as condições do existir que dou continuidade às
minhas narrativas que vão revelando uma presentificação do ser através dos sentidos que cada
pessoa que vive em espaços rurais pode revelar seu ser-na-roça.
Isso tudo me mobiliza, também, a narrar como se deu minha visita de aproximação ao
meu lócus de pesquisa, outra escola da roça – Centro Educacional Coronel Antonio Lopes
Filho, situado no povoado de Nova Esperança com uma distância de aproximadamente 10 km
da sede do município, sendo escola núcleo da Sala Cosme Pereira que fica situada na
comunidade de Pé do Morro num outro extremo do município, em que ficam os limites de
Várzea do Poço com Serrolândia. A distância entre a escola núcleo e sua sala anexa é de
aproximadamente 14 km. Isso significa dizer que não há uma relação direta entre estas
comunidades, não apenas pelo fato da distância entre elas, mas pela organização de cada
comunidade entre si no que se refere a lideranças comunitárias, costumes e características que
se fazem presentes nos jeitos de ser, fazer, viver e narrar das pessoas que vivem em cada
comunidade, bem como das referências que têm com a sede do município de Várzea do Poço
e de Serrolândia.
O Centro Educacional Coronel Antonio Lopes Filho é a única escola rural do
município que oferece as Séries Iniciais e Finais do Ensino Fundamental e Educação de
Jovens e Adultos. Tendo seu funcionamento nos três turnos, no matutino essa escola oferece
três turmas: o 1º Ano está organizado com apenas essa série, uma turma com as séries de 2º e
3º Anos e a outra com os 4º e 5º Anos das Series Iniciais do Ensino Fundamental; no turno
vespertino funcionam as turmas de 6º ao 9º Ano. Atualmente existem 130 alunos/as
161
num trabalho de acompanhamento itinerante nas escolas da roça como uma maneira de
efetivação de políticas públicas de inclusão.
Isso significaria propor o movimento de ampliação ao atendimento desse aluno na sala
de AEE como possibilidade de valorizar sua potência, pensando a escola da roça como lugar
que precisa ser mais bem implementado e atendido pelas políticas de inclusão a partir do
funcionamento dessa sala. De modo proposital ou não, ainda há uma estruturação das escolas
da rua como possibilidade de acesso e para a escola da roça perdura a condição de não-acesso,
pois se reforça o movimento de deslocar-se até a sede do município para buscar recursos.
Neste caso, o atendimento educacional especializado só está disponível nas escolas da rua. No
momento em sala de aula com a professora, pude notar a atenção e o respeito de toda a turma
quando apresentei minha proposta de pesquisa, abordando a valorização dos espaços rurais e
das pessoas que nele habitam e produzem sentidos de existência que se estendem até a escola.
Conversei também com o professor de geografia, que mora e atua como docente nesta
comunidade há mais de 20 anos. Ao apresentar a proposta de pesquisa, mencionando a
respeito da docência em escolas da roça e ao convidá-lo para colaborar com este estudo, ele já
apresentava indagações e reflexões a respeito dos livros didáticos que não atendem à realidade
das escolas rurais. O professor também demonstrava grande interesse em aprofundar mais a
discussão sobre o contexto da educação nesses espaços. Cabe enfatizar que nesse período de
nossas conversas estava acontecendo o movimento de escolha dos livros didáticos no âmbito
do Programa Nacional do Livro Didático ‒ PNLD 2020, destinado ao atendimento de
estudantes e professores/as do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental, por isso a preocupação e
crítica desse professor em relação à não contemplação da realidade de nossas escolas/regiões
nos livros didáticos apresentados para a escolha.
Tensionar sobre a estrutura apresentada nos livros didáticos como negação da roça por
não trazerem discussões e propostas que contemplem a educação do campo é compreender
que muito tem sido negligenciado ao minimizar os marcos legais que instituem um
movimento em defesa da educação do campo no Brasil. As políticas públicas têm
desconsiderado grande parte do que concerne à Resolução CNE/CEB n. 1, de 03 de abril de
2002, que apresenta as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica das escolas do campo,
e a ampliação dessa política educacional através da Resolução CNR/CEB n. 4, de 13 de julho
de 2010, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica.
Instituiu-se também o Decreto n. 7.352, de 04 de novembro de 2010, que compreende
também a política nacional de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária – PRONERA.
163
É importante nos atentar para esses movimentos que ainda existem como forma de
manutenção de uma concepção de educação centrada em realidades urbanocêntricas que
insiste em suprimir os direitos dos povos do campo que já são garantidos legalmente. Isso
tudo se mantém como processo de negação de um rural habitado e com modos próprios de
existencialidades. A narrativa do professor Sebastião-Acauã demarca as caracterizações de
identidade rural de nossa região conforme os modos de fazer e configurar a vida na relação
com a roça pelo lugar da intercambialidade que as pessoas fazem em suas comunidades:
É a partir das relações construídas com a roça que o ser-na-roça das pessoas dessa
região vai sendo desvelado, num jogo que se mostra e se oculta, desencadeando os modos
distintos de produzir suas existencialidades no lugar habitado como condição para insistir
conforme seu demorar-se no lugar, resistindo aos movimentos que representam a negação
disso tudo que é significado pelas pessoas da roça. A ruralidade da presença vai sendo
possibilidade de um ser-mais constituído pelo ser que já é e se faz roça a partir dos processos
que se produzem com seu ser lançado na roça, desvelando-se esse movimento de deixar-se
fazer constantemente o espaço habitado. É a provocação que se propõe pelas
condicionalidades que as pessoas da roça se colocam a desver sua realidade como proposição
de trans-ver a roça e os processos de demorar-se no lugar como insistência para permanecer
ou não.
Saber que professores/as das escolas da roça têm reivindicado o que lhe é de direito
nos instiga a pensar que há um movimento de valorização da educação do campo que garante
especificidades e características próprias desses espaços como modos de resistir que é
legítimo e que contribui para a existência da escola da roça. É entender que ainda temos muito
a fazer neste processo que se refaz a partir de acontecimentos vários conforme o projeto
econômico e político fundado no neoliberalismo que se instaura sorrateiramente no Brasil.
Após esse momento de conversa e reflexão com o professor de geografia, tive a
oportunidade de apresentar a proposta de pesquisa para a professora de ciência que mora na
roça, mencionando os sentidos que o termo roça tem carregado em meus estudos para explicar
164
como pretendo discutir a proposição do ser-na-roça. Falei também sobre as categorias teóricas
de meu estudo, enfatizando como surgiram e como são importantes as narrativas de vida-
formação-profissão dos/as colaboradores/as para o delineamento da proposta metodológica.
Apresentei como a pesquisa está estruturada em seu desenho inicial, deixando
explícita a importância de envolvimento e colaboração de cada docente buscando
compreender suas experiências na docência em escolas da roça através das narrativas sobre
suas trajetórias de vida-formação-profissão. Em meio a toda conversa a professora se sentiu
motivada a narrar de maneira muito espontânea como se deu sua entrada na profissão,
trazendo à tona dificuldades de acesso às escolas rurais, narrando como fazia em suas aulas,
como era seu fazer docente e quais rituais cumpria para poder iniciar a aula. Relatou
condições de trabalho e falta de acesso a informações sindicais.
A professora foi evidenciando informações a respeito de contextos políticos e sociais
do momento em que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ‒ LDBEN n. 9.394/96
havia sido sancionada, sua condição como professora leiga que era perseguida politicamente
por sua família ser de oposição. A professora foi enredando sua narrativa por esse contexto
até chegar ao assunto sobre os precatórios do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino Fundamental ‒ FUNDEF, que foram liberados para o município e que está correndo o
risco da categoria docente não ser beneficiada com um recurso que não foi repassado no
período de 1997 a 2006, quando os/as docentes sofreram com falta de pagamentos, ausência
de fiscalização dos recursos destinados à educação impactando nas condições de trabalho,
funcionamento e estrutura das escolas.
As narrativas de experiências docente que trazem à tona as trajetórias de vida-
formação-profissão de professores/as da roça são marcadas pela escassez de recursos, falta de
apoio e material pedagógico, espaços físicos precários, não-acesso a formação específica para
o trabalho na docência em classes multisseriadas. Mesmo diante dessa situação de
precariedade, de falta e negação da profissão em contextos rurais precisam ser destacados
elementos como criatividade, inventividade e compreensão da construção de relações na
horizontalidade.
Esses elementos são marcas de uma profissão produzida nos entremeios das ausências,
em que a formação se produzia na/da experiência como aluno/a-professor/a e a busca pelo
novo acontecia a partir de encontros promovidos pelas igrejas, associações comunitárias e
principalmente pelos encontros que as próprias pessoas da roça criavam como modos de viver
a coletividade e o processo experiencial de alteridade e reciprocidade, onde o maior objetivo
165
desses encontros não eram apenas os digitórios51 que aconteciam em suas casas, mas sim a
proposta do encontro e de aprendizagens construídas a partir das relações intersubjetivas que
se davam nesses espaços, aprendizagens intergeracionais.
Essas narrativas vão constituindo um movimento enredado ao processo em que a
docência e a formação nos espaços da roça vão acontecendo de modo instituído numa
ruralidade da presença que desvela o ser-na-roça de professores/as e outros/as moradores/as
da roça desencadeando possibilidades de produção de modos geradores de sentidos e
significados importantes para a existencialidade e a transcendência do humano na roça.
De acordo com o pensamento de Pineau (2016, p. 12), compõe esse movimento de
autobioformação uma revolução de cunho biopolítico, em que uma autoformação da vida
conforme o que cada ser-na-roça institui em seu próprio sentido de ser se encontra no modo
como esse ser é compreendido por ele mesmo:
51
Movimentos realizados por grupos de pessoas de uma comunidade, seja ela rural ou não, na propriedade de
uma das pessoas dessa comunidade com o propósito de executar tarefas como batas de feijão, quebra e tiragem
de licuri, plantio e colheita, tarefadas em casas de farinhas. Os grupos eram organizados por meninos/as,
homens, mulheres e idosos/as da roça e definiam dias na semana ou no mês para que uns atendessem às
demandas do outro.
166
O professor expôs seu interesse e motivação para ser colaborador neste estudo.
Instigado pelas narrativas da professora de ciências passou a contar como foi seu início na
docência, suas dificuldades para permanecer na profissão e como o ranço de pensamentos
políticos com base no coronelismo influenciava a entrada na profissão docente em nosso
município na década de 90. Evidenciou também em suas narrativas como tem sido sua relação
com essa escola em que iniciou seus estudos e lá se tornou professor. Mencionou que essa
escola é sua vida e que se ela acabar, a vida dele e de sua comunidade acabam juntas, pois sua
história de vida-formação-profissão carrega os sentidos que esse lugar tem.
A eminência da temática sobre os precatórios do FUNDEB é recorrente nas conversas
com professores/as das escolas da roça. Isso me motiva a pensar no modo como docentes
refletem a respeito de suas condições de trabalho, bem como por terem seus direitos
trabalhistas e estatutários negados ao longo de gestões lideradas por governantes
irresponsáveis, que negligenciavam a legislação e não cumpriam o que nela estava previsto
como direito trabalhista de docentes.
As narrativas de professores/as da roça evidenciam as ausências do cumprimento legal
dos direitos de trabalhadores/as da educação pelo lugar do medo e da compreensão de serem
subservientes aos gestores. A ausência de fiscalização por órgãos como o Tribunal de Contas
da União – TCU e conselhos fiscais eram mecanismos que garantiam a não transparência da
gestão na aplicação dos recursos provenientes dos fundos de manutenção da Educação nos
municípios como o nosso.
Tal subserviência e medo se constituíam em torno de ameaças de desempregos e
perseguições políticas em nosso município. Isso passa a ser anunciado e denunciado através
das narrativas desses/as docentes. É importante enfatizar que com os movimentos sindicais
trabalhadores/as da educação passaram a conhecer seus direitos e construírem consciência da
necessidade de autonomia como modo de resistência e (re)existência na profissão,
reivindicando seus direitos e construindo uma educação como fonte de possibilidade
formativa na roça.
Construir uma educação como fonte de possibilidade formativa na roça tem relação
com os processos e modos de ser-na-roça desvelados pelo ente professor/a ao compreender o
espaço habitado como potência educativa, lançando mão de práticas que sejam convergentes
com as demandas do lugar e contribuam com a afirmatividade da vida autêntica. A narrativa
da professora Di-Acauã apresenta um movimento que segue na direção que toma a educação
como possibilidade formativa na roça:
167
Por morar na roça, conviver com as coisas da roça, aprender a lidar com as
coisas da roça e desenvolvo um trabalho dentro da proposta de Educação
Contextualizada para a convivência com o semiárido. Eu trabalho numa
escola rural, então, aproveito todos os elementos pedagógicos presentes no
entorno da escola e que fazem parte da realidade dos alunos e todos os
espaços disponíveis para a realização dos projetos. Então esses projetos
proporcionam engajamento dos alunos, pais e comunidade. O exemplo de
um projeto desenvolvido com práticas investigativas que eu sempre
desenvolvo na escola que trabalho é o Projeto cuidando do meio ambiente.
Então a gente desenvolve esse projeto a cada ano, graças a Deus esse projeto
vem sendo melhorado a cada ano. Então fazemos isso com a aula campo em
propriedade dos pais dos alunos e temos a participação da família e
comunidade nessas práticas. É o tipo de atividade que favorece o processo de
ensino-aprendizagem, pois aproxima o cotidiano do aluno e a investigação
científica. (Di-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
condição para conviver com a seca e produzir outros modos de relação com o espaço da
natureza pelo lugar do cultivo e valorização dos bens naturais, desenvolvendo consciência
ecológica e planetária a partir de uma tradução das tradições ancestrais.
A presentificação de um rural ressignificado pelas insurgências decorrentes dos
acontecimentos provocados pelos movimentos desses grupos que conseguiram desenvolver
um nível de consciência ecológica e planetária como possibilidade de vida e existência na
roça, se faz de um fazer-se roça pela compreensão que têm sobre a importância de habitar esse
lugar e demarcar processos que representem as relações com cultivo e manutenção de tudo
que pulsa neste espaço. É com os sentidos e os significados decorrentes da ruralidade da
presença que se institui o ser-na-roça dessas pessoas que ao se lançarem na roça e produzirem
condições de desver suas realidades de vida e modos de existir em territórios rurais
desenvolvem as condições para trans-ver a roça a partir de como demoram-se nas paradas que
fazem nesse lugar.
Minha outra parada foi na sala anexa Cosme Pereira. Lá encontrei a professora que
atua com a classe multisseriada com alunos/as de Educação Infantil e Séries Iniciais do
Ensino Fundamental aplicando uma avaliação diagnóstica proposta pela coordenação
pedagógica. A professora se dispôs a conversar comigo por um instante na própria sala de
aula enquanto iria auxiliando as crianças com a avaliação.
Num canto da sala, iniciei a conversa com a professora, perguntando sobre seu tempo
na docência, na escola da roça e o que ela pensava sobre essa classe, considerando sua
experiência como docente. A professora foi narrando com muito entusiasmo seus 4 anos na
profissão, dizendo que fazia apenas um mês que estava nessa turma, pois a Secretaria
Municipal de Educação solicitou que ela viesse substituir uma professora que estava grávida e
não poderia mais fazer o trajeto da sede do município até a comunidade.
Em relação à sua experiência na docência, sua percepção sobre a classe multisseriada
era por notar que tudo naquele espaço se apresentava muito diferente. O acompanhamento
pedagógico, o material disponibilizado, os/as meninos/as eram mais fracos/as. Isso tudo
exigia outras formas de ensinar. Penso que a professora ainda precisaria de um maior
amadurecimento na docência e conhecimento de especificidades a respeito das classes
multisseriadas e dos contextos da roça para compreender melhor o movimento de docência
nesses espaços.
Uma das realidades vividas pelas escolas da roça é a rotatividade de professores/as.
São muitos os casos de profissionais contratados/as apenas por curtos períodos para atuação
nessas escolas. Isso nos impulsiona a tensionar as condições de trabalho que a profissão
170
docente na roça tem enfrentado ao longo dos tempos. Essa situação de contratos temporários
de professores/as para escolas da roça pode ser pensada a partir de duas situações: uma
positiva e outra negativa, isso considerando as especificidades das escolas da roça como
espaço de potência e possibilidades de formação política e social das pessoas que usufruem
desse lugar.
Situação positiva no que se refere a poder contar com a possibilidade de contratar
um/a professor/a com formação adequada para compreender a realidade das escolas da roça e
promover um trabalho na docência que venha agregar valor às propostas educacionais
pautadas nos princípios tomados pelo movimento da educação do campo, considerando os
contextos de vida das pessoas que habitam a roça e a legislação educacional instituída e
legitimada para esta realidade.
A situação que tomo como negativa neste movimento de contratação temporária de
professores/as para as escolas da roça está relacionada ao estabelecimento de vínculo com a
escola e com as pessoas que acessam este espaço. Na maior parte do movimento de
contratação temporária docente, o próprio contexto de insegurança e permanência no ano
posterior não tem impossibilitado que essas pessoas constituam vínculos com a escola da
roça, como também com as pessoas que habitam esses espaços. Isso dificulta o
desenvolvimento da docência na roça, pois não há condições para o profissional construir uma
relação tridimensional necessária para o processo da docência nas escolas da roça.
Evidencio aqui que essa relação tridimensional está fundamentada na teoria tripolar de
Pineau (2003) e assumida por Mota (2019, p. 61) como princípio da docência em classes
multisseriadas na roça. A tridimensionalidade se especifica pelo contexto formativo que se dá
na interação docente a nível:
Diante de tudo isso, entendo que a lógica que ainda persiste em muitos contextos do
município é uma não aceitação das escolas da roça como lugar de potência e de possibilidade
de (re)existência como projeto transmoderno (DUSSEL, 2017) pensado por uma lógica outra
que destitua os modelos de uma educação colonizadora e perversa que desconsidera nossos
modos de existir e anula as condições de ser de nossas comunidades, promovendo a
construção de estruturas dominantes que valorizam a subserviência de quem habita os espaços
rurais.
Conforme diálogos realizados com os/as professores/as de comunidades rurais, há uma
inferiorização das escolas da roça e isso acaba impactando na vida de meninos/as, mulheres,
homens e idosos/as que habitam este lugar. Essa inferiorização é evidenciada nas narrativas
dessas pessoas quando mencionam suas dificuldades de acesso e a permanência na instituição
escolar, seja na roça ou na cidade, pois não existe uma valorização dos espaços de vida dessas
pessoas.
Considerando o projeto de modernidade que tem permeado propostas de organização
pedagógica e curricular de boa parte das instituições educacionais, reforçam estigmas e
preconceitos para com as pessoas que não vivenciam os modelos instituídos por este projeto,
que tem dado centralidade ao capitalismo, reforçando, com isso, uma estruturação
educacional que alimenta os mecanismos que destituem a escola como espaço público e de
tempo livre. Conforme Masschelein e Simons (2014, p. 26), a escola em sua composição
originária e arcaica fazia a suspensão de questões consideradas operantes numa sociedade
organizada pela divisão de classe que estabelecia uma conexão com o mundo do trabalho de
acordo com marcadores sociais, reiterando que:
Diante desse pensamento, compreendo que a escola como tempo livre é uma ameaça a
proposições que buscam se manterem ou se instituírem pelas bases de um projeto de
173
modernidade. Neste caso, a escola da roça em sua própria reconfiguração como espaço
político e social de manutenção de um espaço que também é de encontro nas comunidades em
que estão situadas como multisséries e, mesmo com um histórico de invisibilidade, como
lugar esquecido pelas políticas públicas, tem usurpado condições de subserviências,
suplantando imposições constituídas pelas lógicas hegemônicas e binárias que adentram a
roça.
A escola da roça pode ser compreendida como possibilidade de tempo livre. Um
tempo que se contrapõe ao que a sociedade tem desenhado como forma de controle do espaço
escolar que condiciona a escola a uma estruturação de processos que a torna extensão da
família, negando sua condição de espaço público que recebe e atende um coletivo de pessoas
com diferentes modos de pensar, agir, sentir, viver e narrar. Uma escola como tempo livre se
instaura nos espaços da roça através do movimento que professores/as como Di-Acauã se
propõem a realizar, tomando as necessidades do lugar e as condições de desvelamento do ser-
na-roça instituído pela ruralidade da presença que provoca abertura constante desse ente
lançado na roça:
É nesta parceria que desenvolvo algumas ações. Para essas ações temos o
plantio de árvores frutíferas, ornamentais e nativas na escola, na praça do
povoado e na beira do rio, nas roças dos próprios alunos. O cultivo de horta
na escola e hortas caseiras, pesquisa sobre tecnologia de convivência com o
semiárido, observações das experiências exitosas já desenvolvidas na própria
família ou comunidade, sempre levando o aluno a conhecer tecnologias
apropriadas para a convivência harmoniosa com clima e a cultura e,
sobretudo, com os recursos naturais do semiárido, que os alunos também
reflitam sobre hábitos simples do nosso dia a dia que podem contribuir de
forma positiva para a sustentabilidade do nosso ambiente. Produção de
alimentos orgânicos, criatórios adaptados, prática de fortalecimento da
Agricultura Familiar, conservação da biodiversidade, dentre outros. (Di-
Acauã, entrevista narrativa, 2020)
A perspectiva da professora Di-Acauã vai sendo tomada pelo lugar da parceria efetiva
com sua comunidade, vinculando os fazeres da docência na roça aos processos de vida e
existência em territórios rurais, desencadeando um movimento provocativo da produção de
sentidos de habitar a roça, mobilizando-se conforme seu demorar-se no lugar e compreender a
escola como possibilidade de tempo livre, por deixar-se fazer na copresença e de acordo como
se propõe desver seu contexto de vida na roça para trans-ver a escola na condição de tempo
livre.
A narrativa da professora Di-Acauã é uma provocação desse deixar-se fazer fazendo-
se roça conforme a ruralidade da presença que cultiva pelos modos de ver, sentir, pensar e
174
que os movimentos do encontro com esse professor e outros/as professores/as que aparecem
em minhas narrativas, proporcionaram a construção de diálogos e potencializaram minhas
imersões nas escolas da roça.
Ao avançar no trajeto de casa à Escola núcleo – Centro Educacional Coronel Antonio
Lopes Filho (CECALF) na comunidade de Nova Esperança, tentava olhar de modo mais
apurado, buscando exercer um movimento de estranhamento neste meu percurso de
construção de minha trajetória como pesquisador. Tudo parecia muito familiar por todos os
lados, os licurizeiros, o gado, jegues e cavalos pastando, tanques e lagoas com suas águas
barrentas e sinais de poucas enxurradas por conta de um período de inverno com baixos níveis
de chuvas. Parecia que era sinal de que iríamos enfrentar nos próximos meses um período
extenso de estiagem.
Em cada terreno que eu avistava à beira da estrada sempre tinha uma pequena
plantação de milho ou um quintal de palma bem capinados. Em algumas casas o movimento
de mulheres e homens na lida da roça, atividades diárias! Até que quase chegando à escola
avistei um senhor um pouco distante da estrada, com chapéu de palha na cabeça, camisa fina e
de mangas compridas, facão embainhado e preso à cintura. Debruçado sobre o chão seco,
fazia o movimento de retirar terra de um buraco com uma cuia. Esse senhor estava fazendo
uma cerca, demarcando um terreno, organizando uma área de terra.
Essa atividade do dia a dia na roça se colocou para mim de uma maneira como nunca
havia percebido, pois todos os dias na roça ouço o som de martelos e machados no trabalho
com troncos de madeira e trincados de arames. Dessa vez, isso tudo parecera diferente ao meu
olhar, ouvir, sentir e narrar a roça. Logo, coloquei-me a pensar a respeito da nossa grande
necessidade de demarcação de espaços, delimitação de territórios, ou seja, um movimento de
apropriação.
Isso se apresentou para mim como uma ação recorrente em nossos espaços de vida,
não apenas como um fazer materializado fisicamente, mas simbólico, podendo ser relacionado
com diversas situações, das quais poderei mencionar duas. Uma está relacionada ao meu
trabalho como pesquisador e se desdobra no escavar informações, dados, no meu caso,
recolher narrativas de vida-formação-profissão. Para isso, é necessário um conjunto de
ferramentas e a disposição para lançar-se ao labor da construção do que irá delimitar espaços
de estudo, especificar quais territórios teórico-metodológicos a pesquisa irá utilizar. Esse é o
movimento de apropriação que o/a pesquisador/a narrativo/a precisa fazer. A outra situação
está relacionada ao que a sociedade impõe cultural e socialmente para delimitar os modos de
ser, pensar, dizer e viver como pessoa que mora na roça, estabelecendo territórios que podem
176
ou não ser acessados e por quem. Isso significa dizer que há uma institucionalidade que
determina modos de ser, pensar, dizer e viver como condição para ser aceito em determinados
espaços sociais. Penso que um desses espaços tem sido a escola. A narrativa da professora
Damiana-Acauã traz à tona seu sentimento em relação às comparações que existem entre
escolas da roça e da rua pelo lugar de discursos apresentados sem conhecimento das potências
que a escola da roça tem, sendo sustentados como elemento que venha a justificar a extinção
das escolas da roça por ter a seriação e lógica urbanocêntrica como sinônimos de qualidade:
O aluno que estuda lá não tem medo de ir a lugar nenhum. Tenho medo não,
pode levar para qualquer lugar que ele vai dominar Português, Matemática,
História e Ciências, domina. Não tenho medo disso, porque não é
diferenciado para você me menosprezar porque ele produz muito. Essa
comparação que é feita entre a escola da roça e da cidade é por falta de
conhecimento e falta valorizar o que é seu. (Damiana-Acauã, Entrevista
narrativa, 2020)
pessoas também procuram me chamar e seja lá ela qual for, no nosso São
João, nas quadrilhas, nos quebra potes, no pau-de-sebo, naquelas corridas
com o ovo, naquelas brincadeiras existentes que tem no nosso meio. Eu
procuro me envolver, me engajar no meio da comunidade para que a gente
possa desempenhar da melhor forma um papel como professor. (Sebastião-
Acauã, Entrevista narrativa, 2020)
estabelecem pelas relações desiguais de poder, instaurando maneiras para a afirmação da vida
inautêntica.
Os povos da roça compõem esse grupo das minorias políticas por terem sido
subalternizados diante do modelo estruturado pelo projeto de modernidade instalado via
colonização. Com os movimentos de compreensão de possuir direitos, a reafirmação de suas
identidades através de potencializações das diferenças, os povos da roça passam a se
organizar coletivamente e reivindicar suas identidades a partir da compreensão que têm como
grupo constituído pelo encontro das diferenças e subjetividades em comum.
Esses movimentos têm impactado positivamente os posicionamentos, ainda tímidos,
mas insistentes e existentes dos modos de pensar e assumir outras formas de identidade nos
espaços da roça, transgredindo os modelos instituídos pela mesmidade. Reitero que esse é um
processo de abertura para o ser-na-roça instituído pela ruralidade da presença que se apresenta
como possibilidade do ser-aí que provoca reinventar-se como ente disposto, clareira do ser-
sendo que compreende modos de fazer-se e refazer-se como sujeitos incompletos, da falta,
inacabados.
Transgredir modelos instituídos pela mesmidade tem a ver com modos de
transcendência e existencialidades que as pessoas que subvertem essas imposições embutidas
nas propostas de subalternidade ousam a fazer. Isso está intimamente ligado ao processo de
pensar um caminho provocativo de experiências do ser-na-roça pela ruralidade da presença
que está compreendida por elementos de um ser que não está dado, convocando condições de
um ser que já é, mas que está por ser, na mesma intensidade daquilo que provoca esse sujeito
a fazer-se caminho e caminhante ao mesmo tempo.
O movimento que nos provoca compreender esse ser-na-roça como possibilidade de
assumir formas próprias de pensar, ver, sentir e narrar, que se encontra inscrito pelas vontades
de ser-mais que se presentifica a partir das relações que produzem na roça. Heidegger (2015,
p. 204) reitera que: “Compreender é o ser desse poder-ser, que nunca está ausente no sentido
de algo que simplesmente ainda não foi dado, „é‟ junto com o ser da presença, no sentido da
existência”.
Esse compreender como ser se coloca aqui como abertura do ser-na-roça que traz
possibilidades de ser caminho e caminhante, desvelando-se numa constância pelos
movimentos de delimitar espaços neste caminho e apropriação de elementos que são
apresentados pela ruralidade da presença, propondo condições de um ser que se faz e perfaz-
se caminhante. É este um processo que se coloca como condição de um habitar a roça como
modos de estar e ser-na-roça, trans-vendo este lugar e a si próprio.
180
Todas as pessoas ali são amigas, isso não quer dizer que se for estudar em
outro lugar não tenham cuidado. Ali existe uma ligação, por perceber que
tem todo um vínculo, toda uma vida, é sua raiz. O menino da roça que sai
para estudar na cidade, ele vê tudo desnorteado, não fala a mesma língua,
pois a convivência dele é outra, a limitação é outra totalmente diferente. O
menino que mora na roça levanta cedo, a vivência dele é totalmente diferente
do menino que mora na cidade, que levanta até mais tarde, dorme mais tarde,
é um contexto de vida totalmente diferente, de lidar com os animais, dar
comida para as galinhas, molha a horta junto com os pais, é totalmente
diferente. É uma vida na escola do campo que se renova a cada dia.
(Damiana-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
No início eu procurava fazer da melhor forma de dizer a eles que aquele que
estiver bem na escola vai estar bem no futebol, no baba da gente. Era
engraçado que às vezes o que acontecia lá na escola eles chegavam dizendo:
- Olha professor não bota fulano no baba não, porque hoje deu muito
trabalho com a professora ou professor tal. Eu procurei conversar com eles o
porquê que aquilo estava acontecendo. Eram situações que às vezes eu me
deparava, às vezes problemas familiares, a criança joga para fora, mesmo
não querendo me envolver com isso, eu procurava resolver da melhor forma,
aconselhando que não faça mais isso, conversava com ele. A gente sabe que
no futebol como na escola envolve uma série de coisas. Às vezes eu percebi
que o menino tinha dia que ele arrebentava no futebol e tem dia que ele não
estava legal. Eu conhecia a pessoa, a gente tem até um pouco de tudo, o
professor é psicólogo, a gente tem um pouco de psicologia. Então a gente
procurava conversar com essa pessoa, aí ia ver essa criança, o que estava
acontecendo, o que aconteceu durante o dia para que ele ali tivesse.
(Sebastião-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
182
pensava. O que sempre vigorou como realidade das populações rurais foi e é a construção de
um ideário permeado pela inferiorização, onde as condições de vida na maioria das vezes são
tomadas por quem não habita este lugar com um sentimento de indiferença de modo que os
conjuntos simbólicos e significâncias que são constituídas nos espaços da roça são
invisibilizados.
A narrativa da professora Damiana-Acauã anuncia como se dá o processo de negação
da escola e docência na roça, em que os elementos considerados neste movimento de
invisibilidade vão se instituindo sorrateiramente pela maneira injusta de parametrização que
se coloca pelo lugar da institucionalização da escola que considera o pensamento
urbanocêntrico como indicativo do que é melhor:
A nossa escola tem essa identificação maior também por esse lado. Esses
carros passam fazendo um percurso por esses corredores, apanhando esses
alunos onde os ônibus não conseguem chegar nessas localidades. Esses
carros fazem o percurso mais difícil que é levar até a própria escola e outros
caminham poucos quilômetros. É um ou dois quilômetros para que possam
pegar o ônibus para chegar até a escola. Então a identidade já vem daí dessas
crianças, a identidade da nossa escola já começa por aí, a identificação maior
seria por isso. (Sebastião-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
terem condições de percorrer as longas distâncias no período da noite para estudar em escolas
afastadas de suas comunidades ou ir para as escolas da cidade, em que são desconsideradas
suas realidades de vida, onde o tempo, o currículo e as práticas pedagógicas não comungam
com as especificidades da vida na roça que essas pessoas têm.
Com o fenômeno de fechamento das escolas na roça, longos períodos de estiagem,
falta de apoio e incentivo de políticas públicas para atendimento dessa população e
manutenção de sua permanência na roça, houve um processo migratório para a cidade,
permanecendo nas áreas rurais do município um terço da população. A tabela 1 nos dá um
panorama em relação à faixa etária e localização da população de Várzea do Poço,
possibilitando compreender quais os impactos do fechamento de escolas, bem como as
consequências disso para as comunidades rurais:
Fonte: Tabela elaborada pelo pesquisador a partir dos dados do Plano Municipal de Educação de 2015.
que é configurada pelo lugar da subalternidade que se reforça por uma dualidade urbano/rural
centrada na proposição de que o melhor, o moderno e o mais promissor está na cidade:
Parece ser uma coisa fora do normal. Quando chego na sala de aula com as
crianças eu me sinto bem. Quando vejo uma criança aprender uma letrinha é
aquela felicidade, aquele orgulho. Me sinto bem, agora, não sou de falar.
Isso não quer dizer que não sei, porque eu sei. Mas não escutou porque eu
não fui com uma roupa arrumada, um cabelo arrumado, não estava com salto
alto. Já entrei e saí ninguém me viu. Não foi uma vez nem duas, são 49 anos.
Ninguém me viu, eu não me sentia como um ser humano. (Damiana-Acauã,
entrevista narrativa, 2020)
Ser é o verbo dos verbos, isto é, o verbo que, antes de mais nada, fala em
todo e qualquer verbo. Ele cai, decai como verbo dos verbos ao tornar-se
cópula, conectivo ou partícula de ligação. [...] que ser seja o verbo dos
verbos quer dizer: em todo e qualquer verbo faz-se, dá-se ser, ou seja, ser
fala nele, através dele, antes e precisamente, como ele. Ser em si, o puro ser
como verbo não há, não pode haver – é nada! Por outro lado, ser é aparecer
193
(dar-se, mostrar-se) e, por outro, por isso ou graças a isso, ser, tal como vida,
é sempre ação, atividade, verbo.
[...] ser é sempre sendo como algum verbo possível, concretizando-se como
um possível verbo do/no existir, p. ex., como pescar, como navegar, como
lutar, como escrever, etc. Navegar, o verbo, a ação, é ser-navegar; pescar é
ser-pescar; escrever é ser-escrever. Então, navegar, pescar, escrever é o
modo como em cada caso ser se faz, aparece, se dá ou se realiza.
Entendendo o ser por esse lugar de um verbo que tem veemência no sentido de uma
autoexposição, convocada por um gerúndio constante, ser professor/a se faz pela ação de
professorar, pois ser é aparecer, é uma ação, acontecimento que se faz no fazer-se. Formar-se
professor/a e não exercer a docência não provoca ninguém à autoexposição que somente é
instituída no movimento de concretização da ação. Se não há provocação de autoexposição,
não houve realização, concretização. Portanto, não tem como constituir experiência sem
acontecimento para aquilo ou o que necessita ser-sendo. Por isso, ser-docente se faz no fazer-
se da docência como acontecimento e disso decorre a produção da experiência do ser-docente
em escolas da roça.
Ser-docente é proposição do agora, de um ser sendo que se revela pelo interesse de
fazer-se visível, ser (aparecer). Interesse representando uma semântica que apresenta o ser
sempre já dentro de um modo de ser. Sendo assim, a docência é convocativa de um ser-
docente que se ampara nas condições do ser-na-roça que vai sendo desvelado na e pela ação
de dar-se, mostrar-se (viver) em seu lugar habitado. A docência faz o/a docente de modo que
a compreensão do ser-docente seja desencadeada de um movimento unívoco de uma ação
encarnada que se faz de um saber-fazer, potencializada pelas formas de ser-sendo, conforme
as circunstâncias de habitar a roça na profissão docente.
Para evidenciar essa proposta de que o ser-docente é acontecimento encarnado e, por
isso, produz experiência que potencializa sua ação e as variadas maneiras de fazer-se visível
na docência em escolas da roça, apresento uma narrativa que compõe o texto Do espírito
artesão na seção Filósofos e mestres, parte da obra produzida por Larrosa (2018, p. 128) ao
visitar o Brasil e participar de muitas atividades que o provocaram a pensar sobre o ofício de
professor/a:
O carpinteiro declara seu amor às ferramentas (diz que olha para elas, toca
nelas e inclusive que dorme com elas) e diz que “seu ser carpinteiro” está
encarnado em seu corpo, em seus movimentos, em seus gestos, como se seu
trabalho revelasse a madeira, as possibilidades da madeira, mas também as
possibilidades de seu próprio corpo.
194
[...] A cozinheira conta que não pode trabalhar com receitas, que cozinhar é
sempre interpretar as receitas, ir além delas ou, inclusive, deixá-las para trás,
deixar-se inspirar pela própria comida.
O barqueiro diz que para navegar tem que ler a água, ser sensível a ela, e que
a lancha é o sensor que lhe permite se dar conta das possibilidades que a
mesma água lhe dá para sua navegação.
O que todos eles mostram é seu estar vinculados a um mundo, seu estar
chamados a atuar de certa maneira em um mundo, seu estar prontos ou
preparados para responder ao que dizem as distintas situações nas quais se
encontram em sua maneira de viver o ofício. Mostram como essa vinculação
é a que lhes dá uma espécie de naturalidade, essa sensação de saber fazer em
195
cada momento o que toca, o que é preciso, sem esforço aparente, sem saírem
deles mesmos, como se fluíssem quase naturalmente de sua forma de estar
ali, isso que se aprende com treinamento, disciplina e atenção, mas que não
tem a ver com seguir procedimentos padronizados, princípios, regras ou
normas.
Escrevo esse registro exercitando minhas formas de ver, ouvir, sentir e narrar as coisas
que se encontram em meu espaço habitado como possibilidade de ampliação e modificação
dessas formas de apreensão das coisas do meu mundo. Com minha preparação para a
realização de mais uma entrevista narrativa, passei a pensar sobre as coisas da vida na roça,
refletindo sobre a condição das pessoas que moram nesse espaço e produzem formas de
habitar. Sendo assim, me dedicava ao movimento etnográfico de viver e observar como as
coisas na roça e nas escolas da roça se dão para além das orientações estruturadas por um
sistema educacional organizado a partir de bases urbanas que chegam às escolas da roça e
permeiam as aulas neste espaço interno da escola.
198
O ninho de carrega-madeira é reforçado a cada dia e quando uma ninhada sua nasce
eles não abandonam o ninho, apenas os filhos saem e vão construir outros ninhos, mas seus
pais continuam a se reproduzirem no ninho antigo. Eles só abandonam se houver alguma
invasão ou outro tipo de interferência, caso contrário, permanecerão ali até o fim de suas
vidas. Em minhas observações diárias, notei que um casal de sofrer, preguiçoso que é, ou por
não compreender como fazer ninhos e habitações como o carrega-madeira, tentou tomar esse
ninho no pé de monzê52, ao lado da janela da cozinha, lugar em que passei maior parte do
tempo pensando e escrevendo minha tese. Mas esse casal de sofrer passou apenas um período
curto nesse ninho. Assim, então, os governantes dessa árvore (BARROS, 2015) retomaram
seu posto e seu ninho, reforçando-o ainda mais.
Pensar também que uma ciência centrada nos fundamentos logocêntricos não dá conta
de compreender esse ser, pois é como se com essas lentes não conseguíssemos enxergar o que
mora nesse ninho e quais relações são construídas no movimento do habitar. Se dessa maneira
insistirmos, não poderemos alcançar o ser. Para iniciar a realização da primeira entrevista,
mediada pela tecnologia e afetado pelas questões do momento, passei a pensar sobre o habitar
a roça fazendo um aprofundamento sobre o ser-na-roça e como produzimos os lugares
habitados por nós numa ruralidade da presença. Para tanto, tomava como mote os fazeres dos
pássaros que governam um pé de monzê ao lado de casa e sua grande construção, cotidiana e
incessante: o fazer do ninho.
A realização da entrevista narrativa com o professor de Matemática das Séries Finais
do Ensino Fundamental do Centro Educacional Coronel Antonio Lopes Filho ‒ CECALF,
situado no povoado de Nova Esperança. Na sexta-feira, dia 17 de julho de 2020 realizei uma
entrevista narrativa mediada através do aplicativo Teamlink, tendo duração média de uma
hora e meia de narrativas e diálogos sobre ser professor/a de escola rural. Acostumado a fazer
o percurso até as comunidades de residência de professores/as que atuam nas escolas da roça e
moram em localidades rurais, me encontro nessa impossibilidade de me reunir
presencialmente como esses/as docentes. Então, o caminho é seguir a partir da utilização de
outros meios para poder acolher os dados para a pesquisa.
Cabe ressaltar que o professor que participou dessa primeira entrevista mediada pela
tecnologia foi muito colaborativo. Mesmo com as dificuldades de acesso à internet e
manuseio do aplicativo ele se manteve à disposição, acessando novamente à chamada quando
52
Árvore de altura com 8 a 10 metros, da família da Fabaceae, seu nome científico é Albizia polycephala. É uma
árvore que se adaptou bem à região da caatinga. Em períodos de estiagem prolongada utilizamos para
alimentação do gado.
201
houve problemas com o sinal de nossa internet aqui na roça. Iniciamos nossa conversa
retomando o movimento que realizamos na primeira entrevista no início da pesquisa, quando
buscava me reaproximar das comunidades nas quais esses professores/as atuam. Depois
falamos um pouco sobre a ética na pesquisa e o respeito ao isolamento social por conta do que
estamos vivendo nesses tempos de pandemia. Solicitei que ele narrasse sobre a vida em sua
comunidade e buscasse abordar a respeito do significado do lugar, do morar, ser professor/a
nessa escola e viver nesta comunidade, sua relação com a roça, bem como desenvolve seus
fazeres e afazeres neste espaço de vida.
O professor fez um breve relato sobre sua entrada na profissão, sendo professor leigo
por um tempo, mencionando ter ido estudar na escola da rua para cursar o Magistério e
concluir seu 2º grau. Com isso, abordou os preconceitos que vivenciou por morar na roça. A
partir daí passou a narrar sobre sua dedicação como professor na comunidade e atividades de
manutenção do espaço físico da escola, trazendo à tona seu envolvimento com atividades
socioeducativas relacionadas ao esporte, pois desenvolve um trabalho com o futebol
masculino e feminino com todas as faixas etárias de sua comunidade. Ele deu ênfase à
condição na qual o futebol se coloca para a construção de relações de amizade com outras
comunidades e também proporciona um melhor envolvimento com estudantes e familiares.
Isso significa sua relação de pertencimento e afeto pela escola na comunidade,
representando ações de um ser-docente em comunidades rurais que, além da docência, se
compromete com o desenvolvimento sociocultural do lugar, fazendo emergir condições outras
de ser-docente na roça que se presentifica por um envolvimento e uma participação efetiva na
construção e na manutenção do espaço físico da escola e de sua comunidade como forma de
entendimento do fazer docente que se propõe a outros fazeres na escola da roça. O professor
Sebastião-Acauã apresenta em sua narrativa como sua experiência na docência em escolas da
roça foi sendo construída, sua compreensão a respeito de como sua escola significa em sua
vida, fazendo uma comparação com outras escolas do município por onde passou:
saudade muito grande. Eu sinto saudade do meu trabalho, dos meus colegas,
dos meus alunos e me identifico muito com a escola.
Eu sinto falta porque com a rotina que a gente tinha e depois a gente passar a
viver totalmente diferente. Essa escola por ser assim no nosso município, na
nossa localidade pequena, abrange a Barra Nova que é um local próximo,
então ela é uma escola que acolhe de uma forma carinhosa os alunos que
vem da zona rural. Ela é uma escola totalmente rural de acordo a sua
localização. Eu me identifico muito com a escola, gosto muito de trabalhar
ali naquela escola, me identifico também com todos os meus colegas. Então
é assim, gosto muito do trabalho da escola e, na verdade, quando a gente fala
assim, quando a gente usa o termo roça, me identifico com esse termo
também porque nós somos uma comunidade, uma escola totalmente rural.
(Sebastião-Acauã, entrevista narrativa, 2020, grifos meus)
condições de ser-na-roça, evocado por uma relação produzida conforme sua subjetividade,
que demarca o cuidado com o lugar e a manutenção do que existe naquele espaço como
elementos produzidos no encontro com o outro.
Olhar para o espaço da escola em que desenvolve a docência e se ver nele se apresenta
aqui para Sebastião-Acauã como forma específica de habitar a profissão docente na roça, uma
vez que se vive a escola intensamente e de maneira indissociável de sua vida na comunidade,
pois a escola da roça é extensão da casa do professor e da professora, do mesmo modo que a
escola é extensão de nossas casas. Entender que um lugar se coloca como extensão do outro, e
vice-versa, é compreender uma construção de habitação através do pensamento de sentido
(HEIDEGGER, 2012) de que nos utilizamos para fazer o que fazemos conforme nossas
formas de ver, ouvir, sentir e dizer de um ser-na-roça que se desvela daquilo que nos
acontece.
Habitar um lugar é significar nossa existência na presença com o outro, que também
tem seus modos próprios e específicos de habitar esse lugar. Isso significa entender que
habitar a profissão docente na roça se faz pelas condições inerentes ao movimento de
intersubjetividade que se dá nas relações que são produzidas com nossos pares, com nossos
espaços de vida e com nós mesmos, sendo uma forma de existir e produzir experiência com e
na roça para habitar a profissão docente neste espaço. Isso é evidenciado quando o professor
Sebastião-Acauã externa em sua narrativa o sentimento de saudade de colegas e alunos/as.
Outra questão interessante que desvela o ser-docente na roça é a valorização do
encontro no espaço da escola, pois sendo um espaço físico que se faz extensão de casa e tendo
colegas e alunos/as morando próximos, mas não poder se encontrar neste espaço por conta da
suspensão das atividades presenciais devido ao isolamento social em decorrência da pandemia
da Covid-19, coloca-se como elemento de falta e incompletude para a presentificação do ser-
docente de professores/as da roça. Neste caso, o espaço físico da escola na roça significa a
condição do ser-docente na comunidade.
A rotina da escola se apresenta como elemento constituinte dos modos de habitar a
profissão docente na roça e sua instabilidade diante do momento vivido neste período de
isolamento social traz consigo uma série de incertezas para professores/as de escolas da roça,
uma vez que não se sabe como as atividades presenciais se organizarão no período pós-
pandemia. Isso diz respeito ao modo como o professor Sebastião-Acauã habita a profissão
docente. A escola se coloca aqui na narrativa do professor como lugar de afeto e acolhimento
aos/às estudantes da comunidade e suas adjacências. Essa forma de acolhimento e cuidado
tem relação com o entrosamento que existe entre professores/as, alunos/as e pessoas da
204
Penso que se minha relação com alunos e pais fosse apenas na escola, ficaria
uma coisa muito vaga. Com essa relação na escola e em outro espaço, gente
é fantástico! Você pode abordar as coisas lá na escola e trazer aqui para a
praça da comunidade, no jardim da comunidade, no pontinho da barbearia no
final de semana. Tem um detalhe, sobre essas duas áreas profissionais que
tenho, dou prioridade a Educação, de coração dou prioridade a Educação,
tudo que acontece na Educação não fico fora. Se vai ter uma reunião, eu
participo, só fico aqui no meu tempo livre. Procuro fazer o trabalho, tanto na
escola como também na minha comunidade. Visito vários colegas aqui na
roça, são pessoas chegadas mesmo, eu nem chamo de colegas, são amigos.
Eles me chamam para ir lá, então vou de bicicleta, a pé ou de carro, sempre
estou ali dialogando com as pessoas, em Barra Nova, Cotovelo, a
205
O ser-em aqui não é uma condição de algo simplesmente dado. É uma relação que se
constitui de um ser que é junto ao espaço e às coisas do lugar habitado, que já é ou passa a se
familiarizar com aquilo que tem sentido para sua existência provocada pelo ente que
professores/as da roça já são. Isso propõe o entendimento de que ser-docente no contexto
dessa discussão representa a condição de uma relação produzida por aquilo que sou conectado
ao junto a alguma coisa que faço de um modo que é próprio e, por isso, se tornou familiar
pelas circunstâncias que se dão por um processo de demorar-se junto.
A experiência de ser-docente que Geni-Acauã produz é o desvelamento do ser-na-roça
que vai se dando a partir da ruralidade da presença provocada pelos acontecimentos do
encontro com o outro, que aqui se apresenta como convocativo de deslocamentos realizados
pelo/a professor/a de escolas da roça. Quando Geni-Acauã menciona o grau de intimidade que
tem com as pessoas de sua comunidade e das outras localidades rurais próximas, é uma forma
de fazer vir à tona seus modos de habitar a profissão docente na roça, que se dão pelo
envolvimento, pelo afeto e pelas condições dialógicas que tem com as pessoas do lugar, sendo
que tais condições são elementos motrizes para se manter bem e motivado como professor de
escolas da roça.
Narrar o ser professor/a em comunidades rurais e produzir experiências que significam
ser-docente se apresenta para o professor Geni-Acauã como um movimento que se institui das
condições que encontra para ampliar os horizontes na docência e extrapolar seu fazer docente
na sala de aula. Essa forma de extensão da docência para outros espaços que se dá a partir das
discussões e diálogos na barbearia, praças, jardins e em outros lugares da região representa
sentidos que este professor mobiliza para deixar-se ser-docente para habitar a profissão
docente na roça.
Esta é a condição de demorar-se junto com as coisas e as pessoas do lugar que
representam as existencialidades desse ente que se coloca como abertura para o ser-na-roça
que envolve e se envolve com seu espaço habitado para produzir sentidos e significados de
um ser-docente instituído por um ser-em que vai se dando e mobilizando sentidos de uma
ruralidade da presença desencadeada desse ser-junto-a (HEIDEGGER, 2015). O/a próprio/a
professor/a quando morador/a do mesmo lugar em que a escola está situada acaba
contribuindo com o movimento de vida no lugar, realizando propostas que complementam a
formação escolar de quem está matriculado/a, quem já passou pela escola e também de quem
nunca acessou o espaço escolar.
Continuando a narrativa, o professor Sebastião-Acauã falou sobre suas aulas de
matemática no espaço físico da escola e fora dela, pois mencionou que quando tem
207
Outro dia eu tive na roça de um rapaz, ele foi meu aluno, ele é um criador de
galinhas. Você sabe que para que se tenha um desenvolvimento e às vezes
um gasto, porque hoje tudo tem um embasamento no retorno. Você vai fazer
um investimento numa propriedade sua para criar animais, tem que ter um
retorno, não é só investir, as pessoas vivem é da agricultura, praticamente da
agricultura familiar. É uma galinha, um bode, qualquer coisa eles têm esse
retorno. É uma horta no fundo da casa, na própria comunidade, em uma área
de cisterna de produção.
Então ele pediu que eu fosse lá com ele fazer uma medida que eles não
sabiam. Queriam fazer uma ração. Eu fiquei lá poucas horas. Ele comprou
uma balança de precisão e só sabia pesar a partir dos quilos, aí eu dei uma
aula de matemática. Até hoje ele brinca comigo, ele diz: - Como é que eu
não sabia disso, os números decimais. Fui trabalhar mais ele o que é
centavos, ele nunca sabia que centavo é a parte decimal do real. Aí ele pode
fazer as pesagens com o calcário para fazer a ração das galinhas lá, o núcleo,
o milho. Ele foi pesando tudinho de uma forma, foi bom que ele descobriu a
balança dele que tinha um negócio da tara, zerava. Antes ele pesava o balde,
depois ele fazia uma conta de subtração em cima do que ele tinha que ficar,
mas aí é bom que você já aprende fazer também uma subtração aquela coisa
todinha. (Sebastião-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
sapiência, como modo conjuntivo que não elimina os saberes de uma tradição que se sustenta
nas comunidades rurais, tampouco os saberes científicos que a escola apresenta. Essa
compreensão de complementariedade faz insurgir outros modos de ser-viver-na-roça que aqui
são instituídos pela ruralidade da presença, oferecendo possibilidades dessa habitação da
profissão docente na roça como proposição de afirmação de quem somos e de como
desenvolvemos a docência.
Para o professor Sebastião-Acauã, esse movimento que realizou ao mostrar como se
utiliza a balança de precisão a partir do entendimento sobre o funcionamento desse utensílio e
a compreensão dos números decimais para calcular a quantidade de itens que compõem a
mistura da ração para as galinhas que seu ex-aluno cria, representa formas de um fazer
docente que se mostra pelos contextos de vida das pessoas da roça. Então, a significância do
conhecimento sobre o funcionamento da balança e utilização do conceito e das operações com
números decimais só tem significado quando relacionados e aplicados a uma realidade
vivenciada na roça, caso contrário, não terá serventia alguma na vida dessas pessoas.
A relação de viver e existir na roça se funde com os modos de produzir e desenvolver
a docência, seja no espaço físico da escolar ou fora dele, seja com alunos/as ou ex-alunos/as.
Isso revela como esses/as professores/as compreendem seu fazer docente e as condições de
atuação social e política na comunidade através das relações de intersubjetividades que vão se
desencadeando dos movimentos e interações com as pessoas que também habitam a roça em
que a escola está localizada.
As existencialidades na roça vão sendo produzidas conforme sentidos que o próprio
lugar apresenta para cada professor/a da roça. Isso se coloca para além do domínio de técnicas
e saberes pedagógicos que se instituíram em torno da profissão docente conforme as lógicas
urbanocêntricas fundamentadas no pensamento hegemônico que apenas legitimava o fazer
docente que estivesse centrado nos parâmetros das escolas urbanas e, nesta relação, o que
tinha valor para os grandes centros urbanos. Isso deslegitimava os saberes da roça
subalternizando toda forma de existencialidade que as pessoas desse lugar produziam,
instaurando a docência inautêntica nas escolas da roça.
Essa não-legitimação do outro implicou, e ainda implica, numa situação da falta de
compreensão de que cada um/a pode produzir seus modos de existencialidades conforme
aquilo que valoriza e representa para suas vidas como importantes. Neste caso, o importante é
afirmar-se na condição de ser que se é, instituindo para si suas condições de ser-em. O
professor apresenta em sua narrativa que há uma linguagem própria quando falam do lugar de
vida nas atividades formais da escola; é como se as pessoas envolvidas nesse âmbito escolar
209
fossem elas mesmas por terem oportunidade de falar e apresentar o que lhes é familiar e
conhecido:
Na escola, me lembro que outro professor daqui fez uma culminância com os
produtos agrícolas da nossa região. Teve tanta coisa bonita, foi onde ele
achou mais coisa para falar, porque os alunos estavam com aquilo na ponta
da língua sobre o que ele apresentou. Não precisou nem de uma cópia ou de
cola para que os alunos lessem, porque iam apresentar sobre uma mandioca,
sobre uma acerola, uma abóbora, aquilo que eles veem, pegam, aquilo que
eles trabalham, que o pai, a mãe, o avô está todo dia trazendo para casa,
vendem, convivem com aquilo. (Sebastião-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
Falar de si e das coisas que são produzidas na roça, sejam elas numa dimensão dos
sentidos para viver ou numa dimensão do que é cultivado para a sobrevivência no lugar, se
coloca como espaço do ser-em em que se é junto a. Isso traz à tona as possibilidades de
promover a docência na direção do que tem significância para estudantes da roça que vivem
uma cultura e tradições próprias de seus espaços de vida.
Acolher formas de vida desses/as estudantes e se valer disso para o desenvolvimento
de fazeres na docência é condição de afirmação do vivido e das experiências constituídas
nestas localidades. Perceber que as crianças que vivem na roça estão envolvidas num
cotidiano de produção e cultivo o tempo inteiro é afirmação das condições de ser-na-roça,
compreendendo que em meio a esse cotidiano essas crianças produzem experiências que
demandam sentidos próprios para o universo da infância, fazendo-se envolver nas atividades
formais da escola quando existem as condições de associarem o vivido e o familiar com
aquilo que lhes é apresentado como conhecimento formal.
A roça na profissão provoca e faz vir à tona os saberes do lugar onde os
acontecimentos da vida na roça se apresentam como provocativos das acontecências que se
dão no contexto da escola, por reunir dimensões da docência na roça por uma associação
anunciativa das formas de ser, pensar, fazer e viver em espaços rurais. Seguindo essa conversa
sobre envolvimento e acolhimento, o professor Sebastião-Acauã trouxe o exemplo dos
digitórios que ainda existem na comunidade para fazer uma relação desse envolvimento e
acolhimento que apresentou, pois é nesse movimento de envolver-se uns com os outros que
demandam as trocas, a reciprocidade a partir de um envolvimento mútuo de um fazer que é
feito com afeto.
Esse afeto que mencionamos aqui é uma relação que apresento como a experiência
que constituímos com aquilo que somos afetados e nos deixamos afetar, pois experiência
neste contexto acontece com o que nos afeta, nos envolve, nos expõe e convoca o ser desse
210
ente que somos. Chamou minha atenção que esses digitórios são realizados na comunidade do
professor Sebastião-Acauã para a construção de casas para essas pessoas produzirem suas
moradas e assim construírem seus modos de habitar o lugar. Isso aqui seria forma de
valorização da roça e possibilidade da construção do habitar um espaço de vida, conforme as
relações que são estabelecidas neste lugar pelas condições de afeto que se instituem desse
envolvimento.
No curso da narrativa, o professor Sebastião-Acauã retomou abordando as distinções
que existem entre escola da rua e escola da roça, ou seja, há uma questão complexa no que se
refere ao trabalho docente nas escolas que estão situadas na sede do município e escolas que
estão situadas nas comunidades rurais, pois, conforme a experiência que o professor teve em
atuar nessas duas realidades de lugares, este reafirma que nas escolas da rua as crianças,
jovens e adultos/as sofrem discriminação por serem da roça e terem modos próprios de ser,
falar e pensar.
Isso tem causado desistência e muito sofrimento em quem necessita estudar em
escolas que não estão situadas em suas comunidades, pois as escolas da sede não acolhem
esses modos próprios de ser, falar e pensar de pessoas que habitam espaços rurais, mesmo
sabendo que o município carrega uma forte identidade rural, mas que se reconfigura por
acreditar que tem acesso a uma urbanidade que não chegou nas comunidades rurais. Dessa
forma, o professor apresentou que diante de tudo isso que fragiliza e pressiona a identidade de
ser da roça, há uma constante maneira de afirmar-se os modos da comunidade rural pelas
condições de produção da vida e do que necessitam para viver na roça. Assim, abordou que
mesmo negando essa condição de ser da roça na fala, o jeito de ser das pessoas de
comunidades rurais as denuncia.
Seguindo a narrativa, o professor falou da falta de formação para atuar nas escolas do
campo, considerando isso como falta de acesso a políticas públicas de formação que possam
dar conta das especificidades do local, pois há uma demanda que não é tratada nas formações
que a secretaria de educação oferece, visto que nos espaços rurais as pessoas perdem frutas e
outras culturas por não saberem beneficiar e não terem acesso a políticas públicas de fomento
ao desenvolvimento local que valorizem a produção da comunidade. Passamos, então, a
dialogar sobre essas questões por conta de uma formação específica para professores/as do
campo da qual participamos em 2012, pois a centralidade dessa formação estava nos
princípios da educação do campo, trazendo a Educação contextualizada como mote para um
fortalecimento das comunidades e o protagonismo da escola:
211
Ser professor da roça é um tanto difícil, não é tão fácil, justo por ser difícil o
acesso, isso dificulta. Em tempo de chuva o acesso à escola é complicado,
pois as estradas não são pistas, são estradas de chão, em tempo de sol tem a
questão da poeira também. Às vezes a tecnologia não chega de forma 100%,
sei que nada é 100% na escola da roça. Às vezes na escola da cidade chega
primeiro para depois chegar na escola da roça. Se chega a carteira nova para
a escola da cidade depois é que chega na escola da roça, mas isso já mudou
também, era assim. Lembro que quando comecei a trabalhar no prédio a
gente só recebia carteiras velhas, as carteiras velhas da sede que não
prestavam mais ou que tinham algum parafuso quebrado, essas eram
mandadas para a escola da roça e as novas ficavam na cidade. A gente sabe
que hoje com o caixa escolar de cada escola isso mudou, mas mesmo assim a
gente ainda vê algum ranço dessa questão. O novo é para sede e o velho, o
usado vai para a escola da roça. (Di-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
vai sendo constituída em meio às temporalidades das comunidades rurais, implicando nas
formar de ver, sentir, pensar e fazer de professores/as que lidam cotidianamente com as
condições climáticas do nosso semiárido e com aquilo tudo que se convencionou para a
profissão docente na roça.
Sendo assim, há uma situação que já é bem peculiar às escolas de comunidades rurais:
a ausência de material didático que considere as necessidades desse contexto, falta de
equipamento pedagógico e mobiliário decente para o desenvolvimento de propostas
pedagógicas com inserção tecnológica, ou seja, professores/as de escolas da roça são
provocados o tempo inteiro a fazerem das ausências movimentos de insurgências. Fazer das
ausências movimentos de insurgências significa aqui pensar pedagogias específicas que não
aprisionem as pessoas ao que tem sido imposto por um sistema capitalista que
hegemonicamente se utiliza da falta para subalternizar pessoas e, com isso, reforçar ideais de
exploração humana e dos espaços da natureza onde essas pessoas vivem. É com isso que são
reforçados pensamentos de escassez a respeito do que pode contemplar ou não as escolas da
roça. Isso por conta do histórico de negação que os espaços rurais vivenciaram ao longo dos
tempos, na medida em que estas localidades eram, e ainda são, espaços daquilo que não tem
mais serventia na cidade ou até mesmo serem considerados sem necessidade de ter. Isso é
uma condição de ausência conforme os entendimentos de quem não vive na roça e quer fazer
imposições de como devam ser os espaços rurais.
Pensar a escola da roça como lugar de escassez é contribuir com estruturas que se
sustentam hegemonicamente em uma realidade marcada pela ausência de políticas públicas e
oferecimento de serviços públicos de qualidade e que, verdadeiramente, cheguem às escolas
das comunidades rurais. Vivenciar ao longo de uma história de vida-profissão a sentença de
que “o novo é para sede e o velho, o usado vai para a escola da roça” é resistir a uma estrutura
ideológica que quer acabar com sentidos que as pessoas da roça produzem para habitar seus
espaços, numa tentativa incessante de eliminar as subjetividades de um povo, de uma
tradição, de um lugar de vida. Fazer o movimento contrário a tudo isso que está posto para
essa realidade é, sem dúvida, insurgir na precariedade, na falta e na ausência, se utilizando dos
próprios sentidos de habitar a roça e não aceitar condições indignas para si e para as pessoas
de seu lugar. Uma ruralidade da presença provoca as insurgências quando nós homens,
mulheres, meninos/as e idosos/as da roça nos fazemos abertura para o ser-na-roça que se
demora nas paradas para irromper-se.
A professora Di-Acauã narra como os processos de negação e subalternidade se
constituem quando se trata da manutenção do espaço físico da escola da roça e da organização
214
básica deste espaço para a oferta de uma educação de qualidade. Mesmo tendo algumas
modificações em relação à forma de pensar as escolas rurais e a manutenção de seus espaços,
ainda há um reforço da não valorização destes espaços, instaurando concepções equivocadas
sobre a roça e quem habita este lugar.
Entendo que com os processos de negação e subalternidade da escola da roça em
relação à escola da cidade, é deixada de lado a dignidade humana das pessoas que vivem em
espaços rurais, instaurando um movimento de deslegitimação desses seres como sujeitos de
direito e, também, de seus saberes e tradições que são elementares para as produções de
sentidos do habitar a roça.
Esse movimento de deslegitimação que acontece com as pessoas da roça e o
negligenciamento de direitos que possibilitam melhores condições de acesso a políticas
públicas que respeitam os contextos de vida das pessoas da roça tem descaracterizado a escola
da roça como espaço em que as políticas públicas e a gestão da localidade se fazem presentes
e, muitas vezes, acabam representando a concepção de escola e educação que a gestão tem.
Isso está evidenciado na narrativa que a professora Damiana-Acauã apresenta:
[...] estou trabalhando ainda na sala de aula. Já fiz dois cursos de Pós-
graduação. Venho trabalhando aqui na sala de aula, mas ultimamente venho
assim um pouco chateada com a escola do campo, porque pela atenção dos
pais que não valorizam, estou sentindo que eles não valorizam a escola do
campo. Eles querem que tenha televisão, essas coisas assim, lugar para
brincadeira e a escola do campo não está tendo. Por mais que o professor
busque fazer um trabalho adequado, mas está faltando a valorização dos
pais. Eu vejo que há uma necessidade dos pais e mães valorizarem mais,
porque a gente busca fazer um bom trabalho, mas eles não querem ver isso.
(Damiana-Acauã, entrevista narrativa, 2019)
lugar da escola e da profissão docente na roça tomando as formas de habitar a roça como
possibilidade de valorização da potência que a escola da roça tem para cada comunidade rural.
Como superação de situações como estas, muitas pessoas da roça têm buscado
construir outros sentidos para existirem em meio às condições impostas, constituindo
movimentos que afirmam as condições de vida e existência por um lugar outro que possibilita
a superação dos processos de negação e subalternidade, considerando aquilo que as
comunidades podem produzir com as relações de subjetividade e intersubjetividade que
emergem do e no envolvimento com as coisas do lugar, gerando disso mobilizações políticas
e sociais que se contrapõem às estruturas hegemônicas que geram a não-condição.
É neste sentido que sou provocado a compreender minhas formas de habitar a roça na
profissão docente a partir dos modos de ser-docente que professores/as da roça produzem e
narram como o faz, revelando o ser-na-roça numa ruralidade da presença que nos convoca
pelos acontecimentos na roça. Com isso, busco refletir sobre as (in)significâncias que tomo
como condição de desver a roça, pensando minhas formas de habitar poeticamente a roça
como possibilidade de compreender o ser-na-roça que se revela com minha existência neste
lugar. Busco compreender como esses/as professores/as significam suas vidas na comunidade
em que vivem, assim como produzem seus modos de habitar esse lugar e a profissão docente
com aquilo que fazem e consideram importante para sua escola e comunidade.
Iniciamos o mês de abril de 2021, após três meses sem chuva num verão lindo e ao
mesmo tempo provocador da escassez de água e de alimentação para os bichos. Esse tempo
foi sendo marcado pelo canto forte e anunciativo da acauã no interior da mata aqui de casa,
lamentações de nicos e passarinhos nos pés-de-pau em todo terreiro. Tempo de trabalho
redobrado para as pessoas que moram aqui na roça, onde todas as coisas passaram a ter
sentidos outros em tempos de pandemia.
Durante esse período de verão aqui na roça, pude perceber muita beleza, mesmo com
essa situação de escassez de recursos, o pôr do sol e o nascer da lua acalentavam meu coração
em meio a pensamentos tumultuados de uma nova condição de vida em que o esperançar
sempre foi a sustentação dos (sem)sentidos que nutriam minha vida neste lugar. Os passeios a
cavalo, as caminhadas com os cachorros, os banhos de cachoeiras, leituras, orações e diálogos
longos e afetuosos com amigos e familiares me ajudavam a seguir em meio a tudo aquilo que
216
me fazia estremecer pela situação de afastamento e uma outra forma de convocação de viver a
roça na solitude.
Uma solitude que inicialmente causou-me muita dor, mas agora, como uma chuva no
meio da noite que refresca e nos anima aqui na roça, com um amanhecer festivo de
passarinhos e nicos cantando, anunciando um clima de leveza e felicidade, me proponho
sonhar outra vez e afirmar meu ser-na-roça através de uma provocação do ser-mais para
ressignificar minhas formas de habitar a roça e a docência, mais uma maneira que encontro de
afirmar a vida autêntica. Para isso, foi preciso voltar a lugares e espaços da roça que já foram
habitados e significaram sentidos de viver o que vivi para perceber as compreensões de vida e
os processos de afetamento naquele momento da vida como condição de trans-ver a roça e
reunir modos outros de habitar meu espaço de vida aqui em casa. Precisei reconfigurar a
maneira de ver, ouvir, sentir e narrar minhas existencialidades a partir de retornos aos lugares
da infância e adolescência como busca e reencontro comigo mesmo. Foi um enveredamento
para si que provocou a clareira e a abertura para um ser-mais desvelado pelos (sem)sentidos e
(in)significâncias que me constituem.
Foi com esse movimento que encontrei possibilidade de reconfigurar meu campo de
circunvisão para (re)significar minhas existencialidades na roça e na docência, pois esse
processo foi e está sendo provocativo para desver a roça e a docência na roça como condição
para trans-ver as formas como habito a profissão docente e compreender os desvelamentos do
ser-na-roça de professores/as que narraram suas vidas e existências na roça.
A docência precisou ser reconfigurada e tudo que entendíamos como possibilidade de
fazer-se na presença com o outro passou a ter um novo entendimento no sentido do
afastamento e do isolamento social. Na roça, as atividades chegam para os/as estudantes de
maneira escassa também, o que parece influência de seca, pois a conexão da rede de internet
nem sempre existe e, quando há, as condições financeiras de muitas pessoas na roça não
permitem gastos com pacotes de dados móveis ou mensalidades e aquisição de aparelhos para
ter a rede via rádio em suas casas. Sem contar que o sinal não tem abrangência em todos os
espaços habitados na roça.
Percebo que estamos ampliando o abismo social na contemporaneidade, de modo que
o não acesso vai prevalecer na vida das pessoas da roça. Isso se apresenta como mais um fator
de invisibilidade dos povos do campo, reforçando a ausência de políticas públicas e garantia
de direito para essa população. Resta, então, nossa mobilização como professores/as da roça
para pensar maneiras de enfrentar e lidar com essas questões como proposição conforme
aquilo que acreditamos e necessitamos manter em nossos lugares habitados.
217
5.2.1 Entre garças e siriemas: ser-docente numa condição dada e demarcada pela
circunvisão
com o movimento educativo em comunidades rurais, que por sua vez não se delimitam apenas
nos espaços físicos da escola da comunidade, se dando nos variados espaços de encontro na
roça e nos povoados.
É importante destacar a existência de diversos fatores que precarizam a profissão
docente na roça e instituem o não acesso a políticas públicas de educação que considerem os
contextos dessas comunidades e as realidades presentes nessas escolas. Desse modo, ficam
evidentes as intencionalidades que se encontram embutidas numa visão que não valoriza as
pessoas que habitam territórios rurais e seus modos de viver a roça.
Geralmente essa visão de inferiorização é construída em torno daquilo que não é
conhecido e do que não tem sentido e significância, pois quem não habita os espaços da roça
não pode pensar a partir dela. Se assim o tentar fazer, incorrerá no risco de estabelecer
condições essencializadas de identidades que não se reconstituem conforme processos
interrelacionais que consideram a hibridização de quem vive a roça e tem oportunidade de
vivenciar outros espaços diferentes desses que habitam.
Nos espaços da roça estamos envolvidos/as diretamente com diversos animais e com
uma variedade de árvores, arbustos, insetos de todos os tipos e uma vasta quantidade de
passarinhos que chama minha atenção, tudo com uma funcionalidade para que a natureza se
organize e se (re)estabeleça como sistema vital. Então, vou sendo provocado a pensar
narrativamente a respeito de como todas essas peculiaridades do lugar, que têm cheiros e
formatos únicos, significam nossas vidas na roça e se colocam como influência de um ser-
docente que se desvela numa presencialidade constituída pelas relações que professores/as da
roça estabelecem com seus espaços de vida, numa condição de existencialidade composta
pelo ser-aí desses entes de quem habita a roça.
Pensar narrativamente sobre as experiências de habitar a roça e a profissão docente,
considerando todo o processo que se dá com os acontecimentos desencadeados pela existência
na roça, se coloca como um movimento etnográfico que é vivenciar a roça intensamente e
buscar compreender a docência a partir do modo como consigo habitar este lugar. Isso
compõe uma perspectiva que se ancora num pensamento direcionado por uma compreensão
que insurge de um processo hermenêutico-interpretativo que se apresenta aqui como uma
possibilidade de compreender as narrativas das pessoas e suas formas de viver a roça
entendendo que estes espaços de vida são preponderantes para serem como são e quem são.
É importante tomar o movimento etnográfico como elemento relevante desse processo
hermenêutico-interpretativo por apresentar condições que favorecem um melhor
entendimento a respeito da experiência de narrar a experiência como narram professores/as da
219
roça sobre a docência nestes espaços. Como pesquisador, sou convocado a narrar aquilo que
me afeta neste movimento de compreender o ser-docente considerando as formas que
professores/as de escolas da roça produzem através dos modos de habitar estes espaços
através de uma significação que se constitui em torno das experiências construídas desse
afetar-se com o lugar e as coisas que são (sem)sentidos e (in)significantes do acontecer dessas
experiências.
Interpretar as coisas da/na roça numa perspectiva de um habitar poeticamente este
espaço é evidenciar essas coisas que considero atreladas àquilo que se mostra como
(sem)sentido, conforme as composições das (in)significâncias que tomo numa inspiração na
poesia de Manoel de Barros (2015) para intensificar modos de compreender meu habitar
poeticamente a roça. Neste momento, me sinto instigado pelos passarinhos que volta e meia
vêm no terreiro de minha casa, se banham e bebem água nos recipientes dispostos pelo chão,
sobrevoam próximos às janelas da cozinha, adentram a casa, procuram lugares nos
varandados para fazerem ninhos. Outros pássaros como siriemas e acauãs se mantêm no
interior ou nas beiradas da mata, anunciando seu viver e demarcando momentos específicos
das manhãs ou dos anoiteceres.
A partir disso, sou mobilizado a narrar aqui mais uma de minhas formas de ver, sentir,
ouvir e pensar a roça e elementos que demarcam condições de meu existir nesse lugar e como
habito poeticamente este espaço. E sobre o cantar das siriemas, quase todas as manhãs elas
fazem sua amostra quase-lírica. É uma exposição sonora em manhãs de inverno no sertão.
Entendo que esta situação seja uma forma de ver ouvindo, pois em tempo chuvoso, com o
mato alto, a capoeira e as matas mais verdes e fechadas, não dá para mirar as siriemas, apenas
nos tempos mais secos. Em meados de outubro é que conseguimos ver os rebanhos dessas
aves correndo pelos campos, fazendo seus espetáculos quase-líricos à procura de cobras e
lagartos para sua alimentação. Siriemas são aves de pernas longas e finas, uma altura de mais
ou menos meio metro, muito presentes nos espaços da caatinga, tendo lugar de destaque nas
narrativas de criança a idosos/as pela representação que têm para nós que habitamos estes
espaços.
Em arte de passarinho, tenho tendência a pensar como árvore que de um (sem)sentido
se mantém num lugar acolhendo uma imensidão de coisas vivas, bem como um tempo das
(in)significâncias que se fazem de acontecimentos. Ainda falando sobre passarinhos e outras
aves, quero mencionar a garça que vive aqui na frente de casa, fazendo limpeza em lombos e
úberes das vacas. Passam o dia catando os carrapatos e parece que cada garça se encarrega de
dar conta de um animal. Sua brancura e elegância são destaques em meio ao verde dos
220
campos. Seus grasnidos, diferentes das siriemas, são leves e delicados, parecem se harmonizar
com a brancura de suas penas e o tom leve de amarelo de seus bicos.
Cada ave com seu jeito próprio de anunciar a vida, podendo significar modos
singulares para cada pessoa que habita a roça e isso tem a ver com o campo de circunvisão
que construímos ao vivenciar nossas realidades, estando relacionados às experiências que
produzimos, dimensionando nossas formas de sentir, ouvir, ver e pensar os lugares e nossa
própria existência na roça. Na poesia de Manoel de Barros (2015, p. 66) tenho oportunidade
de conhecer essa garça pantaneira e, a partir disso, interpretar os meus (sem)sentidos ao narrar
sobre (in)significâncias de pássaros e árvores para compreender a forma de meu habitar
poeticamente a roça, produzindo maneiras que me provocam pensar narrativamente a respeito
do que narram professores/as da roça para evidenciar seus modos de habitar a roça e a
profissão docente na roça:
A nossa garça
Penso que têm nostalgia de mar estas garças pantaneiras. São viúvas de
Xaraés? Alguma coisa em azul e profundidade lhes foi arrancada. Há uma
sombra de dor em seus voos. Assim, quando vão de regresso aos seus
ninhos, enchem de entardecer os campos e os homens.
Sobre a dor dessa ave há uma outra versão, que eu sei. É a de não ser ela
uma ave canora. Pois que só grasna - como quem rasga uma palavra.
De cantos portanto não é que se faz a beleza desses pássaros. Mas de cores e
movimentos. Lembram Modigliani. Produzem no céu iluminuras. E propõem
esculturas no ar.
A elegância e o Branco devem muito às garças.
Chegam de onde a beleza nasceu?
Nos seus olhos nublados eu vejo a flora dos corixos. Insetos de camalotes
florejam de suas rêmiges. E andam pregadas em suas carnes larvas de sapos.
Aqui seu voo adquire raízes de brejo. Sua arte de ver caracóis nos escuros da
lama é um dom de brancura.
À força de brancuras a garça se escora em versos com o lodo?
(Acho que estou querendo ver coisas demais nestas garças. Insinuando
contrastes - ou conciliações? - entre o puro e o impuro etc. Etc. Não estarei
impregnando de peste humana esses passarinhos? Que Deus os livre!)
suas condições de sensibilidade de fazer-se abertura para o ser. Isso tem a ver com o campo
de circunvisão que cada pessoa que habita a roça tem e vai sendo convocada por um demorar-
se nas paradas a modificar suas formas de ver, ouvir, sentir e pensar.
Esse demorar-se nas paradas significa para o ser-docente de professores/as da roça
modos específicos de produzir experiências na docência em comunidades rurais através do
modo como vivenciam os espaços da escola da comunidade e os outros espaços que habitam,
deixando-se afetar pelas condições de suas relações com a roça. Estas se colocam como
influências do ser-docente, contribuindo para a promoção de um fazer na docência em escolas
rurais que considera as condições de vida e existência das pessoas em suas comunidades.
Garças e siriemas são aves do (sem)sentido e das (in)significâncias de quem habita
poeticamente a roça e podem ser relacionadas aqui com a docência em espaços rurais que têm
relevância e representam muito para quem mora em comunidades rurais. Neste contexto, tive
oportunidade de dialogar com o professor Geni-Acauã sobre a docência na roça. Dessa forma,
pude realizar uma entrevista narrativa no dia 29 de julho, às 19h30min, tendo uma duração de
uma hora e meia. Foi um momento rico e bem provocativo, em que busquei me deslocar
conforme as narrativas que o professor ia tecendo.
Ele iniciou fazendo uma apresentação sobre sua história de vida-formação-profissão,
ressaltando as dificuldades encontradas no início da experiência na docência, pois ainda não
tinha concluído o curso de Magistério e foi desafiado a assumir uma turma de 1ª Série ‒
antigo primário, que atualmente equivale ao 2º Ano das Séries Iniciais do Ensino
Fundamental. Destacou as práticas que conseguia desenvolver, estando estas pautadas nas
concepções dos métodos de alfabetização que se baseavam nas propostas de repetição de
famílias silábicas. O referido professor relatou a precariedade que existia nas escolas rurais,
reforçando que as condições de trabalho na profissão docente eram bem perversas. Como
professor leigo, recebia apenas metade do salário mínimo, passando a receber um salário
mínimo na época em que pode assumir duas turmas.
Esse professor iniciou na profissão com 17 anos, em 1984, na Escola Paulo Cassiano,
em Nova Esperança, comunidade em que o professor Geni-Acauã nasceu, constituiu sua
família e se tornou professor. Concluiu o curso de Magistério, passou a atuar na antiga 4ª
série, atualmente 5º Ano das Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Com a proposta de
fundar uma escola que oferecesse nessa comunidade os cursos de 5ª à 8ª séries, antigo ginásio,
atuais Anos Finais do Ensino Fundamental, foi inaugurado o Centro Educacional Coronel
Antonio Lopes Filho, sendo assim, o professor foi convidado a lecionar a disciplina de
222
Tenho contato com meus alunos na escola durante a semana, como também
tenho contato com eles nos finais de semana na barbearia. A gente conversa
e passo a discutir com eles os temas que são trabalhados na escola, tanto com
os alunos como também com os pais dos alunos. Essa relação não fica
somente estabelecida na escola, isso sai das quatro paredes da escola. Isso é
muito bom, a gente discute as questões aqui ligadas a geografia, como falar
de clima, relevo, condução, de vegetação, daquela coisa toda para a
convivência com o lugar, convivência com o clima, é muito bom. Tem pais
que vão lá no pontinho para a gente bater papo, não falta gente, é tanto que
nesse momento de pandemia do Covid-19, eles dizem que pararam de ir lá
para não aglomerar. Então digo para irem de máscara. (Geni-Acauã,
entrevista narrativa, 2020)
As narrativas desse professor explicitam que as conversas que realiza nessas visitas
nas roças e nos encontros na sua barbearia abordam a convivência com o lugar, trazendo à
223
baila temas diversos e com um teor científico que vai sendo contextualizado a partir do que
essas pessoas vivenciam na comunidade, tendo uma conexão com as aulas que desenvolve
com suas turmas do 6º ao 9º ano. Isso proporciona um fortalecimento nas relações com
estudantes e outras pessoas desse espaço.
O ser-docente que se manifesta no ente professor Geni-Acauã vai sendo desvelado
pelos modos de compreensão que tem sobre a docência na escola da roça. Isso perpassa pelas
condições de seu envolvimento com as pessoas de sua comunidade, seja na escola ou na
barbearia, e também nas residências próximas que pode frequentar. Posso notar que a relação
que o professor estabelece com as pessoas de sua comunidade possibilita uma compreensão
outra a respeito da forma como habita a profissão docente na roça, desencadeando desse
processo a maneira como vê, ouve, sente e narra seu espaço de vida e os movimentos que o
envolvem e o provoca a pensar o lugar habitado e se comprometer nele.
É com essa forma própria de habitar a roça e a profissão docente na roça que o fazer
docente desse professor de Geografia vai sendo constituído, como circunstância para a
produção de uma experiência que é dada neste seu envolvimento com a docência, com as
pessoas da comunidade e com o espaço habitado. Isso demanda uma evidenciação do campo
de circunvisão que Geni-Acauã construiu a partir das experiências de habitar a roça e a
profissão docente na roça, de modo que seja sempre ampliada em função da abertura que se
faz para o ser-na-roça convocado pela ruralidade da presença.
Trazer para o ceio da comunidade as temáticas e conhecimentos que inicia com
estudantes nas aulas de Geografia, oferecendo condições formativas para outras pessoas que
vivem na comunidade e já não mais se encontram envolvidas nos processos de uma educação
formal é criar possibilidades de ter uma escola que valoriza outras formas de habitar a
profissão docente na roça, empreendendo esforços para o desenvolvimento e formação de
uma comunidade, considerando a vida e as circunstâncias de vida na roça.
Dessa maneira, desenvolver a docência na roça é possibilitar que as discussões da sala
de aula permeiem outros espaços e provoquem as pessoas do lugar a pensar sobre como
vivem a roça e suas situações climática, política, cultural e social, ressignificando as formas
de ver, sentir, ouvir e narrar como habitam esse território e produzem suas experiências. É
potente o diálogo que se estabelece entre o professor e as pessoas da comunidade, pois se
apresenta como um movimento de pensar a respeito das especificidades do lugar como fator
primordial para o repensar sobre os modos de ser-viver-na-roça de meninos/as, mulheres,
homens e idosos/as que lidam com fenômenos naturais, com destaque aqui para a seca, e
necessitam criar e se reinventar no lugar como possibilidade de existencialidades na roça.
224
pessoas que acessam esse espaço escolar na comunidade, deixando margem para que essas
pessoas não queiram ficar nessa escola e busquem as escolas da cidade.
Desenvolver a docência em contextos rurais é conviver constantemente com o desafio
de construir formas de habitar a profissão docente na roça pelo lugar da insurgência e da
(re)significação do que está disposto neste ambiente. Ouvir as narrativas de professores/as da
roça nos permite perceber condições outras de desenvolver a docência em territórios rurais,
entendendo a forma como cada professor/a ressignifica e reinventa modos de fazer docente,
produzindo maneiras próprias de um movimento de formar e formar-se conforme os contextos
nos quais estão inseridos, evocando para isso formas de habitar a roça e a profissão docente na
roça.
É desse movimento que cada professor/a da roça realiza que se desvela o ser-docente
que se lança num ato provocativo do ser-mais que cada ente professor/a é, criando
insurgências de um fazer docente na roça que respeita os jeitos de ser, viver, fazer e pensar de
meninos/as, homens, mulheres e idosos/as de comunidades rurais a partir de como são
provocados/as pela ruralidade da presença. O professor Sebastião-Acauã narra como
desenvolve seu fazer docente na disciplina de Matemática, considerando os contextos e as
condições de sua comunidade, evidenciando as contribuições que a formação tem e, também,
seus modos de habitar o lugar e a produção de sentidos e significados que representam suas
existencialidades na roça:
Nós sabemos que lecionar matérias da área de exatas não é fácil. Então eu
procuro tornar minhas aulas mais lúdicas possível, uma vez que quando nós
fizemos uma faculdade sabemos que não é fácil encarar uma aula de
matemática, é cansativa. Então eu procuro me aperfeiçoar e levar para os
meus alunos da melhor forma possível o entendimento. E na comunidade eu
procuro desempenhar o meu papel nem só como professor de matemática,
mas como pessoa, como um cidadão eu procuro desempenhar da melhor
forma esse papel. Na comunidade eu procuro desenvolver e fazer da melhor
forma e me engajar em todos os acontecimentos que porventura eu possa
está colaborando. (Sebastião-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
conhecimento da área articulado a situações de vida que contemplem a realidade das pessoas
do lugar como condição inicial para a compreensão desses conhecimentos, podendo construir
bases cognitivas para avançarem nos conhecimentos da área, seja para utilizar em benefício
da localidade em que moram e desenvolverem suas atividades, seja para participarem de
processos seletivos ou atuarem em outros espaços.
Compreendo que aqui o professor também traz em evidência as dificuldades que já
enfrentou para entender fórmulas e cálculos dessas áreas, notando a importância que uma
formação docente tem para seu aprimoramento na área que atua, considerando o teor do que
precisa ser apresentado para os/as estudantes do Fundamental II na escola que atua. Tudo isso
se articula a partir das relações que o professor Sebastião-Acauã estabelece com alunos/as e
pessoas da comunidade, compreendendo-se como sujeito político e engajado em sua
comunidade por participar de maneira efetiva das ações comunitárias ao desenvolver
atividades de cunho social, o que o coloca numa condição de ter o desvelamento do ser-
docente pelo lugar do engajamento comunitário e da produção de uma consciência social
desencadeada a partir de suas possibilidades subjetivas e intersubjetivas de relacionar-se com
seu espaço de vida.
As condições dadas na realidade de vida de Sebastião-Acauã se apresentam como
convocativas de um ser-docente presentificado através das formas de ser-viver-na-roça que o
envolve num enlace instituído pelas proposições de um coletivo que enreda as pessoas do
lugar a partir das formas como habitam a roça e se envolvem entre si para significarem suas
existências. Esse envolvimento com as pessoas da comunidade vai se constituindo como
parceria que se fortalece em proposições de reciprocidade entre a escola e as pessoas da roça
como condição de troca de conhecimento entre professores/as, alunos/as e comunidade, como
é o caso das atividades que Di-Acauã desenvolve na propriedade de dois irmãos que já foram
estudantes dessa escola e atualmente oferecem seu espaço para que sirva como lócus de
aprendizagem, possibilitando que os/as alunos/as conheçam maneiras de viver e fazer na roça
em seus próprios lugares de vida:
Com o conhecimento que a gente tem e o que eu aprendo quando faço visitas
a essas comunidades rurais, essas experiências que a gente vê nas
comunidades rurais ajudam bastante para trazer isso para sala de aula porque
eu não vou trabalhar só aquela parte teórica, porque é cansativa, chata e tal.
Então, uso a experiência dessas visitas, assim você pega o domínio de sala
de aula, a atenção da classe. Você sabe que quando a gente pratica algo fica
evidente que contribui bastante no desenvolvimento do trabalho. É muito
bom o que aprendo lá e trago para a sala de aula. (Geni-Acauã, entrevista
narrativa, 2020)
de quem habita a roça faz toda diferença na docência em contextos rurais. Habitar a roça na
profissão docente é mobilizar as experiências constituídas pelo envolvimento com o outro,
propondo a si mesmo como professor/a de escola da roça, outras possibilidades de
compreensão a respeito de como vê, ouve, sente e narra suas condições de habitar a roça.
A narrativa do professor Geni-Acauã vai apresentando diversas questões que implicam
nos modos de habitar a roça e a profissão docente na roça. Assim, faz um relato a respeito de
elementos de urbanidade que se fazem presentes na roça, especificamente em pequenas
propriedades onde a agricultura familiar é predominante, deixando claro que as técnicas de
manejo e produção nas áreas rurais ganharam novas formas de fazer substituindo as técnicas
mais rudimentares que não contribuíam com o crescimento do lugar. Isso tudo facilita suas
discussões na disciplina de Geografia, abordando pecuária extensiva, impactos ambientais que
isso demanda, demarcando que para as mudanças acontecerem nos nossos espaços de vida a
comunidade necessita entender como ponto relevante o clima desse lugar:
A Geografia tem tudo a ver com quem trabalha no campo. Ela está
totalmente interligada. Então, eu vou chegar e falar sobre o clima, porque
acontecem as secas, quais são os fenômenos naturais que ajudam a
intensificar a seca. Há poucos dias recebi o convite para ir à casa de um
colega, lá o trabalho no campo é bem organizado, bem estruturado. Eu disse
a ele que chega dava inveja e quando aposentasse iria fazer isso, iria entrar
nessa área de produção agrícola. Eu vou sair da Educação e ser produtor
rural, vou aprender muito com vocês. Aí a gente começa a falar sobre a
necessidade de mudar nosso modo de pensar em relação ao clima, depois a
gente começa conversar como as pessoas no passado que passaram pela
escola e que não tiveram esse aprendizado. O professor não dava aulas
assim, não que esteja culpando o passado, mas com o passar do tempo a
gente vai aprendendo como tratar melhor essas questões. Antes o professor
chegava lá e só pedia para escrever e escrever, hoje a gente conversa como
estamos conversando aqui, com os alunos e pais de alunos, eles questionam
porque acontece a seca, conversamos sobre os fenômenos el niño e la niña.
Eu explico que a seca ocorre por questões horográficas, aí os alunos dizem: -
Que bicho é esse? Horográfica é a questão do relevo. Nosso relevo é muito
alto e aí todas as umidades marítimas não conseguem avançar para o sertão
como também as frentes dificultam a entrada pela parte oeste, aí eu começo
explicando pra eles que a Chapada Diamantina é muito alta, sobre o Planalto
da Borborema. Eles começam perguntando também sobre o que é aquela
coisa chamada el niño, então vou explicar que são fenômenos naturais super
interessantes, para você ter uma ideia, foram uma descoberta pelos
pescadores, e até hoje com tanto avanço no serviço de meteorologia eles
ainda não sabem qual a origem desse fenômeno. (Geni-Acauã, entrevista
narrativa, 2020)
que são constituídas ao longo da vida das pessoas que habitam territórios rurais, propondo
formas próprias de compreensão sobre acontecimentos e situações específicas do lugar de
vida como proposição para a configuração da docência na roça. Geni-Acauã busca em seu
espaço de vida, e nas relações que estabelece com as pessoas que moram em propriedades
rurais próximas, possibilidades que contribuam para o seu fazer docente como professor de
Geografia, que pensa na contextualização como proposta que o provoca a realizar
movimentos insurgentes em suas práticas docentes na escola da roça.
Entender que a Geografia está muito relacionada com as pessoas da roça é decorrência
de maneiras próprias de uma circunvisão constituída por aquilo que tem sentido neste espaço
habitado que traz em si confluências de um ser-docente presentificado na e pela interação com
o lugar habitado. Repensar sobre como a docência em escolas da roça era desenvolvida e não
considerava as características dos contextos rurais e os fenômenos naturais que implicam
nestes espaços é relevante para perceber a grande necessidade de uma mudança de
pensamento em relação ao processo de desenvolvimento formativo em que professores/as e
aluno/as são protagonistas e corresponsáveis pelo movimento de formar e formar-se, levando
em conta dimensões sociais, políticas, cognitivas e culturais de cada pessoa, como elementos
de valorização de quem são, onde vivem e como pensam.
O modo como Geni-Acauã narra sobre seus processos de reflexividade formativa,
dizendo sobre como era seu fazer docente e como ele passou a rever e reconfigurar esse fazer,
de acordo com as necessidades da escola e de seu contexto de vida, é decorrente de uma
maneira de instituir uma prática docente afirmativa, autêntica, que vai sendo potencializada
no envolvimento e abertura que o professor se fez em todo seu percurso de vida-formação-
profissão, provocado por condições outras do ser-docente que sempre é proposição de um
querer ser-na-roça que tem influência significativa da ruralidade da presença.
Narrar o habitar a roça desemboca em narrar como se habita a profissão em
comunidades rurais. Neste caso, aqui há um ganho quando professores/as da roça realizam
esse movimento de discussão e reflexão juntamente com as pessoas da sua comunidade. É
uma configuração de formar e formar-se pela e na interação com o outro, numa recorrência
aos princípios do conhecimento de si que Mota e Silva (2020, p. 23) reiteram como elementos
relevantes na docência em escolas da roça:
em decorrência das relações que professores/as como Geni-Acauã constroem em seus espaços
de vida, assumindo a docência como modo convocativo do ser.
Em suas narrativas sobre a escola em contextos rurais, o professor mencionou a
importância da escola na roça, apresentando o lugar que este espaço tem na sua comunidade,
enfatizando como essa escola representa o desenvolvimento social e cultural do lugar,
trazendo de maneira enfática que educação é o acontecer da vida nesse espaço que habita.
Neste sentido, também mencionou a ausência de políticas públicas e investimentos para
ampliação e manutenção de espaços físicos dessas escolas, mesmo sabendo que já houve uma
certa valorização desses espaços que ainda não foram fechados nas localidades rurais.
A escola significa muito para a vida desse professor e de toda a comunidade, ressaltou
ele, apresentando uma narrativa que versa sobre o impacto que essa escola tem para a
erradicação do analfabetismo no lugar motivando a busca por melhores condições de vida a
partir do entendimento de ascensão social, mudanças nas formas de ver o mundo e mudar
práticas de um desenvolver fazeres nas propriedades. Em seguida, o professor Geni-Acauã foi
provocado a falar de valorização da profissão docente na roça, bem como no contexto geral da
profissão. Sendo assim, afirmou que se sente valorizado na escola que atua e tem buscado se
envolver nas propostas de formação que a SME tem promovido, o que tem contribuído para
um melhor desempenho na profissão e desenvolvimento de uma prática docente baseada na
reflexão e na contextualização:
Se inscrever na roça e produzir a profissão docente no espaço rural tem relação direta
com o ser-docente que cada professor/a desvela, considerando as experiências que logrou ao
longo dos movimentos que realizou em sua vida na roça, potencializado pelas condições de
um ser que já é e sempre foi a presentificação do ser-na-roça. Viver na roça e desenvolver a
docência nesse espaço provoca pensar seu contexto de vida e modos de fazer, sentir, ouvir,
ver e viver sua realidade a partir do que está proposto no lugar e também das condições a
partir das quais o ente professor/a se coloca como abertura para o ser-docente, considerando
acontecimentos que se dão circunstancialmente pela ruralidade da presença. É neste sentido
que Di-Acauã revela como seu fazer docente se dá na escola da roça:
O que acontece comigo na roça, na minha casa e no meu dia a dia levo essas
experiências para sala de aula, porque você falar uma coisa que você não
vive é uma coisa e, você falar para os seus alunos o que você vê, o que você
vive é outra. Muitas práticas, muitas atividades que eu desenvolvo na minha
roça levo para sala de aula para fazer juntamente com meus alunos. Um
exemplo é a horta escolar, todos os anos eu desenvolvi esse projeto com os
meus alunos porque eu sei que pode, sei que é uma coisa real, sei que você
vai se alimentar de forma saudável e que é possível, porque eu fiz, eu faço na
minha casa. Ao fazer em minha casa passo para eles também fazerem junto
com a família deles. (Di-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
53
Divisão que as pessoas fazem numa área de terra a ser capinada ou roçada como forma de organizar o trabalho
a ser realizado.
237
cultivado é preciso dar terra à planta54 ou até mesmo juntar o mato em pequenas coivaras 55
para não atrapalhar o crescimento da plantação. Essa é uma atividade que exige preparo físico
para a roça, mãos fortes e grossas para o manuseio da enxada, tudo isso é feito de coração,
envolve vontade, delicadeza e cuidado.
Ao mesmo tempo em que estou a escrever e produzir textos sobre as (in)significâncias
que se encontram em meu habitar poeticamente a roça e acompanhar as pessoas capinando
suas roças, ouço gritos e aboios56 de pessoas tangendo boiadas na estrada aqui em frente de
casa. O gado vai sendo tocado por homens montados a cavalo. Ora seguem tranquilos, em
outros momentos seguem mais apressados e quando o gado que está no meio da boiada avista
ou sente cheiro de outro gado que se encontra nas roças ao lado das estradas e corredores,
começa a berrar, às vezes se agita, às vezes só berra anunciando sua passagem por aquele
lugar, outras vezes parecem iniciar um entoar berradeiro que movimenta os olhares de todo
ser vivente que se encontra ali por perto.
Tanger boiada requer cuidado, atenção e firmeza. Precisa saber o momento de relaxar
sem se descuidar, decorando rapidamente o que torna cada boi único naquela boiada,
observando como cada um deles reage à condução que o vaqueiro e os cachorros vão
realizando. Tudo precisa ser feito de coração, com sangue, envolvimento, seguindo o tempo
dos bichos, estando preparado para as eventualidades da estrada. Os cavalos, os cachorros de
gado57 e os vaqueiros vão seguindo o ritmo da boiada. Seus aboios se realizam conforme o
caminhar do gado e chega um momento em que tudo toma rumo, então, o gado, o cavalo e o
vaqueiro seguem um só ritmo, caminhando conforme suas vontades. Para tanger boiada na
roça é necessário entender de manha de gado e arte de tangedura, assim como contar com
cachorros e cavalos que disso entendem também, pois os comandos são precisos e necessários
para tocar boiada palas estradas afora.
Cada afazer que nos propomos realizar na roça exige plenitude, seja capinar, tanger
boiada na roça, escrever ou desenvolver a docência. Cada atividade exige nossa atenção,
nossa dedicação, nosso envolvimento e nossa força. São atividades feitas com sangue, de
coração. Afazeres que nos oferecem condições de aprender constantemente com as
observações, o modo e a intensidade com que somos convocados e provocados a desenvolver.
54
Ação de juntar um pouco de terra no pé da planta para que se fortaleça e possa dar bons frutos.
55
Vários garranchos secos que são juntados em meio ao roçado para serem queimados ou se desfazerem no
tempo.
56
Cantiga entonada por vaqueiros para tocarem os rebanhos de bois e vacas.
57
Cachorros adestrados pelos próprios vaqueiros para encontrarem os animais e ajudar a tocar quando estes dão
trabalho para seguir.
238
A plenitude se faz pela forma como cada pessoa que se propõe a fazer se entrega e se
afeta com o que está fazendo. Isso revela o ser dos entes e institui para as pessoas da roça sua
condição de ser-mais evocada a partir de sua existência na roça. A plenitude está
compreendida aqui pelas formas de envolvimento e doação que cada pessoa da roça
depreende para realizar as atividades e afazeres que são convocadas a fazer em seus lugares
habitados. Não é diferente com a docência em escolas da roça. São inúmeros os sentidos que
as coisas e o tempo na roça me provocam para pensar narrativamente a docência e o ser-
docente, considerando os modos de afecção pelas coisas e acontecimentos do ser-na-roça,
considerando formas de ver, sentir, ouvir e pensar próprios de minha circunvisão neste lugar.
Nessa época chuvosa e muito fria aqui na roça, início do mês de agosto, os terreiros
estão cobertos por um limo verde acinzentado, a terra da chapada vermelha aqui de casa foi
completamente recolorida por um tom quase preto por conta da chuva constante e dos ventos
frios desse mês. Confesso que não estava muito acostumado com um inverno como o desse
ano58, um inverno bom de chuva, tudo que foi plantado deu com fartura, todo mundo aqui na
região fez boa colheita de milho, feijão, abóbora e quiabo. As hortaliças estão se perdendo nos
canteiros, seja nas hortas próximas de casa, ao lado das cisternas de produção59 ou na beira de
tanques e lagoas.
Um tempo bom, tempo de chuva em abundância, tempo de plantar e poder colher num
lugar que os períodos de seca são intensos por conta das estiagens prolongadas. É assim no
sertão da Bahia: a fome de muitas pessoas da roça diminui, o trabalho aumenta e o que
desponta com tudo isso é o esperançar por tempos melhores, para viver num lugar onde é
necessário muito esforço para manter a vida e produzir (in)significâncias para existência na
roça.
Este é o contexto e o sentimento que tenho neste movimento de realização das
entrevistas narrativas que me proponho a realizar com professores/as da roça. Realizei a
entrevista narrativa de modo presencial com a professora Di-Acauã, que estava com algumas
dificuldades de acesso a meios digitais e por contar apenas com poucos dados móveis para
acesso à internet, de modo que não teríamos condições de realizar uma entrevista mediada
pela tecnologia, utilizando o aplicativo Teamlink como tenho utilizado com os/as outros/as
professores/as. Então, a professora sugeriu que a entrevista fosse realizada num local na rua.
Combinamos nosso encontro para o dia 31 de julho de 2020, na Escola Recanto Colorido,
58
Agosto de 2020.
59
Reservatórios construídos em propriedades de pequenos/as produtores/as rurais como proposta da agricultura
familiar para cultivo de hortaliças e árvores frutíferas, acompanhando o nível do terreno, tendo uma área de
100m² em média de calçamento para captar água da chuva.
239
pois só teria a presença de nós dois no espaço, mantendo o distanciamento físico, seguindo as
orientações dos órgãos oficiais de saúde para maior proteção em relação ao contágio da
Covid-19.
A professora iniciou sua narrativa apresentando como era sua lida na roça juntamente
com seu esposo, relatando que a primeira coisa que os dois fazem ao levantar bem cedinho é a
realização da ordenha com algumas vacas que tem em sua propriedade. Em seguida, organiza
a alimentação dos animais de pequeno porte como galinhas, perus, saques60 e pintos e
somente após ter cuidado e organizado a alimentação desses animais é que vai preparar o café
da manhã.
Depois de realizar todo esse movimento dos afazeres matinais da roça, a professora
Di-Acauã segue para a escola da rua, em que leciona a disciplina de Ciências em apenas três
turmas de Séries Finais do Ensino Fundamental do Instituto Educacional São Francisco de
Assis – IESFA. Essa é uma carga horária extra, pois é lotada com as 20 horas de sua carga
horária efetiva através de concurso público no CECALF, onde também ensina a disciplina de
Ciências nas Séries Finais do Ensino Fundamental.
A professora mencionou que sua chegada na escola da roça é bem diferente da escola
na rua, pois na escola da roça ela vivencia um momento de partilha, pois, como precisa chegar
mais cedo, antes do início das aulas no período da tarde, acaba se encontrando com colegas
professores/as que vêm de lugares mais distantes e almoçam juntos/as. Isso traz à tona
condições de uma relação que se efetiva a partir de momentos de envolvimento e prazer por
estar com quem compartilha as histórias e fazeres na escola da comunidade.
As narrativas da professora Di-Acauã vão evidenciando as práticas que esta
desenvolve com estudantes e que se potencializam fora da escola, quando os/as estudantes são
desafiados/as a produzirem ações da agricultura familiar nos quintais de suas casas ou em
outros espaços da propriedade rural que vivem. Ao mencionar esse trabalho, a professora
ressalta o envolvimento das famílias nas atividades solicitadas e orientadas pela escola. Isso
tem dado condições de uma melhor interação desses familiares com a escola, pois são
atividades que estão relacionadas com suas experiências de vida e afazeres do cotidiano na
roça.
A partir disso, a professora indicou que ser da roça possibilita entender quem estuda
em escolas rurais, pois sabe das dificuldades que as pessoas enfrentam para chegar na escola,
seja professor/a ou estudante. Para algumas pessoas, os percursos entre suas casas e a escola
60
Ave conhecida conforme cada região do país. É uma ave de porte médio e convive bem com galinhas e perus.
Tem uma plumagem acinzentada com várias pintas brancas pelo corpo inteiro.
240
são longos, ficando difícil para acessar a escola em tempo de chuva, pois, muitas vezes não
têm como se deslocar. Então, se manter estudando ou exercendo a docência em escolas da
roça requer muito esforço, estímulo e entusiasmo:
Estar perto e saber entender o/a aluno/a de escolas da roça considerando toda condição
de ser e viver na roça tem outra perspectiva quando o/a professor/a também mora e
desenvolve suas atividades docentes na escola da roça, uma vez que tanto o/a professor/a
como o/a estudante deparam-se com dificuldades de acesso, dilemas para continuar
estudando, dificuldade para conciliar os afazeres na roça e o compromisso com o estudo,
ausência de apoio e incentivo de políticas públicas e ainda outras implicações específicas que
se apresentam com as temporalidades da roça.
Todas estas questões com as quais professores/as e estudantes de escolas da roça lidam
ao longo de suas histórias de vida-escolarização congregam para a produção de experiências
que se colocarão como pilar para suas formas de significar a vida na roça pelo fato de serem
provocativas para afirmar uma vida autêntica que cada ente vivente na roça deixa-se ser a
partir de como fez-se abertura neste movimento de produzir experiências. Ao narrar
acontecimentos na roça que provocam formas diversas de lidar com o inesperado, a
professora Di-Acauã apresenta uma situação específica que impediu sua chegada à escola,
mas não comprometeu o andamento da comemoração com a qual havia se comprometido.
241
Essa narrativa que Di-Acauã realiza evidencia um fato que coloca sua vida em risco e
como lida com o inesperado e a circunstancialidade do momento vivido. Tal acontecimento
não significa para a professora motivo de desistência, pois, pelo contrário, provoca-a a
encontrar maneiras de chegar à escola todos os dias, utilizando sua motocicleta como
principal transporte para acessar seu espaço de trabalho. Habitar a profissão docente na roça
tem forte relação com as temporalidades que demarcam momentos e condições próprias de
acesso à escola em espaços rurais. Essas temporalidades da roça propõem condições próprias
de (re)existir e persistir como professor/a de escolas da roça por trazer consigo possibilidades
de abertura para o ser-na-roça.
Neste sentido, entendo que habitar a roça na profissão docente vai sendo uma
produção desencadeada a partir da reunião entre as condições que as temporalidades da roça
acontecem e como construímos modos de significar a vida na roça em meio a essas
temporalidades. Essa reunião traz em si uma maneira específica de pensar e desenvolver a
docência. É neste movimento de habitar a roça na profissão e construir um habitar a profissão
docente na roça que compreendo o deixar-se ser-docente, considerando que para construir
habitações é necessário que sejamos abertura para o ser.
Reafirmar a identidade como professora da roça é uma situação que desencadeia
compreensões sobre a vida e a docência neste espaço, de modo a valorizar formas próprias
das pessoas que moram na roça e acessam a escola. É também possibilidade de ampliar
horizontes e reconfigurar formas de ver, ouvir, sentir e pensar, considerando como cada
morador/a da roça se relaciona com o lugar e a partir disso produz suas formas de habitar a
roça. A Professora Di-Acauã traz em suas narrativas a relação que existe entre elementos de
urbanidade e ruralidades em seu contexto de vida, ressaltando como isso tem sido necessário
para o desenvolvimento dos espaços rurais como manutenção de melhores condições de fazer
e viver em contextos rurais. Ela destaca que a roça é lugar de constituição das relações,
deixando em evidência que sua família tem fortalecido os vínculos em torno da roça.
Além disso, discorreu sobre o respeito que as pessoas da roça nutrem pela figura do
professor/a, fazendo com que tanto a escola como a família signifiquem espaços de formação
que proporcionam uma relação colaborativa entre as famílias e a escola da roça. Tudo isso
gera possibilidades de um fazer docente que leve em conta os afazeres da roça com a
docência, dando centralidade à vida neste contexto como uma proposta coerente e de respeito
aos processos vivenciados na roça. A professora Di-Acauã narra como tem percebido o
desenvolvimento de um fazer docente num contexto em que a ausência de incentivos e
proposta de políticas públicas se fazem escassas e como a comunidade se organiza diante
242
forma de resistência a lógicas hegemônicas que tentam eliminar a roça e suas tradições, de
maneira intencionalmente organizada para manter o trabalho escravo e uma condição de
subalternidade.
O espaço da escola representa para a comunidade o lugar do encontro e da manutenção
das tradições de um povo que luta incansavelmente para existir em seus espaços de vida, seja
pela ordem da subsistência ou pela produção de sentidos e significados que simbolizam sua
condição de habitação do lugar. Habitar a profissão docente na roça permeia condições de
incertezas e instabilidades em relação à existência ou não da escola na comunidade,
provocando professores/as da roça a lidarem com inúmeras questões que afetam seus modos
de existir como professores/as. É por considerar essa realidade de ameaça ao funcionamento
de escolas da roça que esses/as professores/as sinalizam a necessidade de maiores
investimentos para estes espaços, disponibilização de políticas públicas que proponham
qualidade da educação em espaços rurais, possibilitando que as pessoas da roça tenham boas
perspectivas para uma formação decente e condizente com as formas de existencialidades que
produzem.
Conforme as narrativas de Di-Acauã, a escola representa muito mais que um espaço de
execução de propostas pedagógicas e curriculares centradas apenas no conhecimento
científico e técnico. Ela se coloca nas comunidades rurais como espaços potentes de formação
de toda a comunidade, fazendo-se condição provocativa de um deixar-se ser-na-roça por ser
instituída pela ruralidade da presença que se revela no ser-docente de professores/as que
habitam a roça.
A gente tenta tornar a escola um lugar prazeroso, não só para os alunos, mas
também para a comunidade, para os pais. A gente sabe que na roça não tem
tantos atrativos como na cidade, então tudo que a gente tenta fazer na escola
da roça não é só para os alunos, a gente tenta fazer para toda a comunidade
local. Se a gente faz uma festa do São João, a gente não faz apenas para os
alunos, a gente convida a comunidade, já que a escola da roça não tem tanto
atrativo, a roça não tem tanto atrativo. Na escola a gente proporciona este
envolvimento da comunidade, faz café da manhã todo mundo junto e em
todas as comemorações da escola a gente tenta trazer a família e a
comunidade, já que é um lugar que não tem tanto atrativo. Na comunidade e
na roça a gente tenta promover este envolvimento e a família está ali com
toda dedicação, com toda vontade de participar dos festejos. Acho que um
ponto significativo é que a gente faz na escola da roça é comemorar junto
com a comunidade, dá essa oportunidade para eles estarem na escola
desfrutando também daqueles momentos de diversão. (Di-Acauã, entrevista
narrativa, 2020)
244
A escola eu posso te dizer, sou até suspeito de estar falando isso, nossa
escola é referência na comunidade. Vou citar aqui vários exemplos de festa
na qual a gente faz e vê as pessoas aderirem, seja festa folclórica ou não. Se
você faz uma apresentação do samba de roda que mais eles gostam aqui, a
escola enche de um jeito. Nossa escola tem um pátio pequeno e nós não
temos na escola um ambiente no qual a gente possa fazer uma apresentação
boa, então a gente apresenta mais na rua, em um lugar público como a
quadra, em outro momento na praça.
Aconteceu aqui um envolvimento muito grande numa festa do licuri que a
escola estava envolvida. Foi uma coisa fora do comum. A gente vê as
pessoas se envolvendo. As pessoas gostam porque está falando uma
linguagem delas. A mãe e o pai veem seus filhos envolvidos, botando a mão
na massa. Por isso, que eles se envolvem, as pessoas se engajam porque
quando você vê as pessoas fazendo um trabalho e está envolvido naquele
trabalho é muito diferente. (Sebastião-Acauã, entrevista narrativa, 2020)
A escola passa a ser o espaço que mantém a tradição viva na comunidade, isso é
motivo de envolvimento de homens, mulheres, meninos/as e idosos/as que habitam a roça,
pois é com esse movimento de manutenção cultural das coisas que a comunidade valoriza que
essas pessoas produzem significações do existir na roça. A escola na roça passa a representar
a condição do encontro e, consequentemente, a construção de sentimento de coletividade que
245
possibilita e garante a produção intersubjetiva para que estas pessoas valorizem a escola e
constituam uma relação referencial com este espaço na roça.
As comemorações que as escolas da roça promovem, em sua maioria, tem relação com
a vivência da comunidade, sua cultura, atividades que as pessoas do lugar valorizam, por isso
Sebastião-Acauã evidencia que por estas comemorações terem uma linguagem própria do
lugar convocam as pessoas da comunidade a terem maior interesse. Esse falar a mesma
linguagem é uma maneira de fazer menção a um modo específico de contextualização dos
fazeres da docência em contextos rurais, trazendo à baila uma ênfase para as atividades que
estudantes poderão apresentar para familiares. Isso é agradável e muito satisfatório para
professores/as da roça pelo fato de perceber aí, uma valorização de seu trabalho como
possibilidade de ressignificação das condições de ser professor/a em escolas rurais.
Pensar a escola da roça pelo lugar do envolvimento e valorização de quem vive na
roça, se coloca como possibilidade para habitar a profissão docente neste espaço e lutar para
que as coisas na roça sejam valorizadas, afirmando aquilo que promove condições de existir
em contextos rurais e representam as formas de habitar a roça. Com esse movimento de narrar
sobre a docência e vida na roça, a professora Di-Acauã passou a relatar sobre sua experiência
na docência, trazendo a tona como se deu sua entrada na profissão, evidenciando momentos
que são uma referência para que compreenda o que é ser professora de escolas rurais e como
isso implica no desenvolvimento de seu fazer docente.
Sendo assim, relatou que aos 18 anos realizou o primeiro concurso público municipal
em 1996, concorrendo a uma vaga para regente auxiliar, pois naquele momento ainda não
tinha concluído o curso de Magistério. Por seu pai e o restante de sua família terem sido
oposição política naquela época, só foi chamada pelo fato de ter um nome desconhecido,
sendo conhecida somente por seu apelido. Por perseguição política teve que ir trabalhar numa
escola distante de sua casa e não tinha transporte para o lugar, então com seu primeiro salário
comprou uma bicicleta. Na ocasião, ela tinha uma parceria de grande cooperação com a
servente da escola onde trabalhava, então, as duas precisavam se deslocar para a escola pela
manhã, organizar o espaço e a merenda, abastecer a escola com água, que precisava ser
apanhada num tanque da propriedade onde a escola fora construída. Todas as atividades elas
desenvolviam em parceria.
No decorrer da tarde as crianças chegavam, era uma classe multisseriada com crianças
de 3 a 10 anos, sendo divididas em grupo e orientadas pela professora e pela merendeira que
se comprometia a ajudar nesse processo. O espaço físico da escola era bastante precário, de
246
modo que uma parte das crianças tinha que passar a tarde sentada em esteiras, pois não tinha
cadeiras suficientes para todas:
Diante disso tudo, a professora ressalta que considerou esse momento inicial de sua
carreira como muito importante para ser a profissional que é hoje, pois buscou formação e se
esforçava para desenvolver uma prática efetiva que pudesse colaborar com a formação
daquelas crianças, sendo destaque na área de alfabetização pelas metodologias que
desenvolvia. Para ela, a escola da roça, para além da proposta de formação acadêmica das
pessoas que a frequentam, desempenha uma função social muito grande na vida de crianças,
247
jovens, adultos e idosos que habitam os espaços rurais, pois a escola pública em comunidades
rurais tem sido um dos únicos lugares em que as políticas de estado se fazem presentes.
Muitos/as gestores/as municipais, ainda, consideram a escola da roça como lugar de
retrocesso, espaço que era ocupado por professores/as da sede que votaram contra o gestor
que assume o mandato. No geral mesmo, a escola da roça é tomada como inferior em relação
às escolas da cidade. Este entendimento é fundamentado numa lógica hegemônica e,
principalmente reforçada pelo lugar de quem não entende o que significa ser e viver na roça,
levando adiante um ideário que se construiu em torno de uma visão do atraso, fragilizando as
identidades rurais que nossos municípios carregam.
As histórias de vida-escolarização-profissão de professores/as da roça são permeadas
pelas condições de precariedade em todos os sentidos, sendo que uma das únicas coisas que
os motivam a persistirem e criarem outras condições para suas vidas é lutar na contramão das
lógicas hegemônicas que impõem para o outro uma perspectiva da subalternidade. Neste
sentido, cada professor/a da roça se vale do deixar-se ser-docente numa condição reforçada
pelas possibilidades que seu campo de circunvisão lhe oferece, mobilizando-se com o outro
para construção de outros modos do fazer que superem e coloque em cheque aquilo que
estruturas hegemônicas instituíram para as pessoas da roça.
Lidar com a precarização da profissão e das escolas rurais mobiliza professores/as da
roça a circunstâncias diversas que provocam a uma reinvenção de si, considerando o que tem
à sua disposição, trazendo à tona suas compreensões como parte de um coletivo que vive em
comunidades alijadas de seus direitos e, que historicamente em nosso país e em países latino-
americanos, sentem na pele os resquícios da colonização e da carga que tudo isso deixou para
nós. Deixar-se ser-docente aqui, está numa configuração daquilo que o ser-na-roça se revela
num ente que é abertura constante e não se apega a um conjunto de normas e convenções
sociais instituídas pelos parâmetros urbanocêntricos, mesmo tendo influência de uma
formação pautada neste parâmetro.
Ser professor/a de escola rural é dedicar-se de maneira integral, mesmo sendo lotado/a
oficialmente com 20h. É ter um estatuto da profissão e desempenhar outras funções que
destoam do que existe neste estatuto para insurgir em seus espaços de vida e criar condições
dessas insurgências em suas comunidades, vivenciando condições indignas de uma profissão
que se encontra fragilizada socialmente falando. Quando professores/as da roça narram sobre
a experiência que constituíram ao longo de seus percursos no início da docência, mostrando
como conseguiu lidar com as situações de dificuldades na entrada da profissão docente na
roça, evidenciando seu ser-docente numa presentificação de seu ser-na-roça, possibilita uma
248
Posso citar um exemplo dessa primeira escola que trabalhei, quando passo
hoje não tem nada, não tem mais nem o prédio, estrutura nenhuma, só tem o
terreno e, ali eu vejo que tem muitos alunos, mas esses alunos vão ser todos
trazidos para a sede enquanto aquela escola poderia estar ali. Ah! Porque são
249
poucos alunos ali, alguns dois, três, quatro. Ah! Não compensa! Mas, dois,
três, quatro, possa ser que um tempo depois venham mais, depois vão
chegando mais. Então acho que não é viável porque tem poucos alunos
fechar a escola. Tem que dar um tempo para ver se vai chegando e, hoje eu
acho que as escolas que foram fechadas vão ser construídas ou reconstruídas
porque as pessoas hoje estão optando a irem morar na roça. Vejo como
exemplo lá perto da minha casa, não tinha quase ninguém, quase nenhum
vizinho, hoje a gente já vê o pessoal loteando duas tarefas, três tarefas, então
já tem muita gente morando ali naquela região, creio que logo mais vai ter
que se construir escolas na roça e não demolir escolas da roça. (Di-Acauã,
entrevista narrativa, 2020)
Não quero nem pensar, vou ser sincero, se o gestor público municipal de
Várzea do Poço pensa em fechar essa escola que tem uma história de mais
de 30 anos, ele vai dar um tiro muito grande no pé que ele não vai voltar a
caminhar nunca mais, pois manter a escola é uma questão de moral e ética
porque todas características boas que ele pode colocar aqui a gente encontra
dentro daquela escola. Se tirar a escola daqui eu acho que a comunidade vai
ser totalmente menosprezada, depreciada e desvalorizada. Essa valorização
que temos aqui parte daquela escola que tem uma história muito grande, me
emociona muito quando chego a falar do CECALF, porque foi dali que todo
o desenvolvimento dessa comunidade principalmente do ano 2000 pra cá,
mudanças, espaço físico bem organizado. Jamais deve se pensar em fechar
aquela escola, vou falar o quê para meus alunos. (Geni-Acauã, entrevista
narrativa, 2020)
Fazer menção ao um dito popular para se referir a uma atitude precipitada de um/a
gestor/a ao cogitar o fechamento de uma escola rural representa de maneira enfática o repúdio
de Geni-Acauã, bem como de muitas pessoas da comunidade, uma vez que a instituição tem
uma história e atende à comunidade há mais de três décadas. A manutenção de uma escola
como o CECALF na comunidade é a oportunidade de acesso a um bem público que para as
pessoas da roça equivale ao esperançar por dias melhores, sendo o espaço de encontro. Além
disso, esta escola significa condição de existencialidade da própria comunidade em si.
Quando o professor evidencia que manter a escola em sua comunidade é uma questão
ética e moral, significa que é direito das pessoas contar com serviços públicos básicos em seus
espaços de vida. Isso tem sido muito negligenciado ao longo da história do país, pois são
ínfimas as propostas de políticas públicas que incluem as pessoas que vivem em espaços
rurais. Para Damiana-Acauã, a escola da roça oferece comodidade, facilitando o acesso a um
bem público, por isso, a comunidade precisa rever seu entendimento a respeito de ter a escola
de sua região em pleno funcionamento, buscando por uma educação de qualidade. Para isso,
faz-se necessário tomar a escola da roça como esse lugar de potência que tem seus sentidos e
significados, evitando comparações esdrúxulas com as escolas da rua.
Entendo que cada escola tem suas especificidades conforme seu público e o lugar onde
se encontra inserida e isso não inviabiliza que a docência seja desenvolvida de uma forma
251
O cheiro do mato verde, a brisa leve dos tempos de trovoadas, o cantar suave dos
passarinhos, os caminhos repletos de mariposas e borboletas amarelas compõem a poética do
lugar que habito. Ouvir o canto do sofrer misturado com o cantar do pássaro-preto é uma
sinfonia linda ecoada das bananeiras, pés de seriguelas, de cajás, das mangueiras e dos vários
pés de monzês que cercam minha casa aqui na roça. Como menino da roça, ainda me perco
olhando para as borboletas que aparecem nas janelas de casa e com facilidade abandono o que
estou fazendo para mergulhar em pensamentos de poesia. Acredito que sejam desses
mergulhos que nascem meus melhores pensamentos sobre a vida e sobre meu demorar na
roça.
Na escrita da tese, um dos lugares de parada significativa que se apresentou como
ponto inicial e, em alguns momentos final, foi a minha roça. Esse lugar habitado e
provocativo de meu ser-na-roça. Foi aqui que tive oportunidade de demorar com a tese, em
meio a dezenas de pés de monzês, onde os primeiros pensamentos narrativos sobre a tese
surgiram e foram amadurecendo, tomando forma, escopo e robustez ao longo do tempo com
as prosas solitárias e também acompanhadas pela minha orientadora, colegas do grupo de
pesquisa, amigos/as e familiares.
Muitas vezes essas prosas se faziam em outros espaços da roça e da rua e, no final,
aqui mesmo nessa roça entre pés de monzês eu passava a refletir e repensar questões
provocativas que se apresentavam como ruralidade da presença que constituía o ser-na-roça
dessas pessoas que habitam territórios rurais. Minhas etnografias da roça eram realizações
incansáveis, pois vivi a tese intensamente, pois até mesmo quando estava nos bares e vendas 61
da roça ouvia atentamente as narrativas de meninos/as, homens, mulheres e idosos/as da roça
para acolher o movimento de vida que essas pessoas fazem e, possivelmente, entender como
significam suas vidas na roça.
Conforme pensamentos construídos a partir de leituras e discussões a respeito das
ruralidades contemporâneas, docência na roça e o movimento das etnografias na roça,
defendo como tese que professores/as que atuam em escolas da roça ressignificam suas
existencialidades na roça e na profissão docente conforme seus modos de ser-viver-na-roça,
produzindo experiências constituídas pelo desvelamento do ser-na-roça centrado na ruralidade
61
Pequenos armazéns que servem como apoio às pessoas que moram em comunidades rurais.
253
escola nas comunidades rurais por entenderem a potência que este espaço representa para
essas comunidades, sendo que sua existência é a legitimação de respeito aos direitos dos
povos do campo e representa possibilidade de ser-mais numa condição fundada pela
ruralidade da presença.
Essas experiências do ser-docente também vão sendo produzidas conforme os modos
que cada professor/a mobiliza e traduz os sentidos dos acontecimentos que os/as envolvem
nesse processo de habitar a roça. Isso possibilita condições para trans-ver o rural habitado e a
profissão docente na roça, revelando o ser-na-roça a partir do ser-aí constitutivo dos entes
desses/as professores/as. É desse movimento que a presentificação do ser-na-roça vai se
fazendo numa constância dos acontecimentos em espaços rurais e propõe-se atravessamento
da docência nas escolas da roça, instituindo pedagogias insurgentes produzidas no
envolvimento com o outro a partir de compreensões que cada professor/a constrói com a
experiência de habitar a roça e a docência na roça.
Os resultados desse estudo também indicam que habitar a profissão docente na roça
requer um movimento de constituição contínua da co-presença a partir da presentificação das
ruralidades que habitam os/as docentes em seus pertencimentos, em suas trajetórias e
narrativas. Que ainda é muito forte o processo de negação e subalternidade da escola da roça
em relação à escola da rua e da profissão docente em comunidades rurais, deixando-se em
segundo plano a dignidade humana de quem habita territórios rurais, deslegitimando direitos,
saberes e tradições dessas pessoas.
O estudo sinaliza a grande necessidade de pensar a escola e a profissão docente e
outros processos de vida na roça com quem de fato vive a roça, pois as comunidades rurais
não são ouvidas e não participam dos processos de elaboração das políticas públicas. O
entendimento de gestores/as em relação aos espaços rurais ainda é sustentado por lógicas do
assistencialismo, deixando a roça em segundo plano quando o assunto é educação,
desenvolvimento cultural e intelectual dos povos do campo. Isso reforça o pensamento de que
os espaços rurais são somente espaços de produção agrícola e fornecedores de matéria prima e
recursos naturais para o desenvolvimento urbano.
Esta pesquisa anuncia condições e possibilidades de existencialidades na roça,
evidenciando o espaço rural como um lugar de insurgência por se apresentar como lugar
hermenêutico, no qual as pessoas produzem modos próprios que ressignificam sentidos e
simbologias de habitar a roça a partir da maneira como compreendem a si mesmo e seu
espaço de vida, e denuncia toda e qualquer forma de pensamento preconceituoso,
estereotipado e inferiorizante em relação à roça, pois estes têm sido sustentadores de
258
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