O Couro Lavrado Mudéjar - Franklin Pereira

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Medievalista

Online
22 | 2017
Número 22

O couro lavrado de estética mudéjar na Casa-


Museu e Fundação Guerra Junqueiro – memórias
do al-Andalus em terras portuguesas
Leather carvings of mudéjar aesthetics at the Guerra Junqueiro House-Museum
and Foundation – memories of al-Andalus in Portuguese lands

Franklin Pereira

Editora
Instituto de Estudos Medievais - FCSH-
UNL
Edição electrónica
URL: http://medievalista.revues.org/1344
DOI: 10.4000/medievalista.1344
ISSN: 1646-740X

Refêrencia eletrónica
Franklin Pereira, « O couro lavrado de estética mudéjar na Casa-Museu e Fundação Guerra Junqueiro
– memórias do al-Andalus em terras portuguesas », Medievalista [Online], 22 | 2017, posto online no
dia 01 Dezembro 2017, consultado no dia 01 Dezembro 2017. URL : http://
medievalista.revues.org/1344 ; DOI : 10.4000/medievalista.1344

© IEM
Re vist a ISSN 1646-740X

online Número 21 | Janeiro – Junho, 2017

Título / Title: O couro lavrado de estética mudéjar na Casa-Museu e Fundação Guerra


Junqueiro – memórias do al-Andalus em terras portuguesas / Leather carvings of mudéjar
aesthetics at the Guerra Junqueiro House-Museum and Foundation – memories of al-
Andalus in Portuguese lands
C H A R T

Autor(es) / Author(s): Franklin Pereira


T E C H I C A L

Universidade / University: Universidade de Lisboa


Faculdade e Departamento / Unidade de Investigação – Faculty and Department /
Research Center: Faculdade de Letras, Artis – Instituto de História da Arte da
/

Código Postal / Postcode: 1600-190


T É C N I C A

Cidade / City: Lisboa


País / Country: Portugal
F I C H A

Email Institucional / Institutional email: [email protected]


Fonte: Medievalista [Em linha]. Direc. Bernardo Vasconcelos e Sousa. Lisboa: IEM.
Disponível em:
http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA22/pereira2205.html
ISSN: 1646-740X

Data recepção do artigo / Received for publication: 30 de Junho de 2016


Data aceitação do artigo / Accepted in revised form: 22 de Fevereiro de 2016
O couro lavrado de estética mudéjar na Casa-Museu e Fundação Guerra Junqueiro […] ● Franklin Pereira

Resumo
O autor centra-se em três cadeiras e cinco estofos soltos das colecções do poeta Guerra
Junqueiro, actualmente na Casa-Museu e Fundação com o seu nome; o couro lavrado
apresenta particularidades estéticas que o fazem integrar na arte mudéjar de linhagem
omíada que permaneceu no ocidente peninsular depois da Reconquista. As relações que
estes motivos permitem considerar salientam Portugal como depósito de continuidades
e adaptações de estéticas arcaicas; ficaram na arte do couro da elite c.1500-1600, antes
dos padrões renascentistas se terem tornado dominantes.

Palavras-chave: Legado islâmico; Arte mudéjar; Couro lavrado; Mobiliário português;


Cadeiras.

Abstract
The author analyses three chairs and five upholstery pieces of the collection of the poet
Guerra Junqueiro, nowadays at the House-Museum and Foundation bearing his name;
these leather carvings show aesthetical peculiarities that turn them part of Mudejar art of
Umayyad lineage that remained in the West of Iberia Peninsula after the Reconquest.
The connections that such motives allow highlight Portugal as a deposit of continuities
and adaptations of archaic aesthetics; they have remained in the elite’s leather art c.
1500-1600 before the Renaissance motives becoming dominant.

Keywords: Islamic legacy; Mudejar art; Carved leather; Portuguese furniture; Chairs.

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O c ouro la vra do de e st é t ic a m udé ja r na Ca sa -M use u e

Funda ç ã o Gue rra J unque iro – m e m ória s do a l-Anda lus

e m t e rra s port ugue sa s / Le a t he r c a rvings of m udé ja r

a e st he t ic s a t t he Gue rra J unque iro H ouse -M use um a nd

Founda t ion – m e m orie s of a l-Anda lus in Port ugue se

la nds
Franklin Pereira

Inicio este texto com uma citação de R. W. Hamilton: “The causal links between such
simple motives in their manifold variants, distributed in widely separated regions
between many crafts, present the kind of problems apt to generate profitless speculation
which the available materials can never resolve” 1. Não subscrevo esta opinião, pelo
prazer das viagens que encerra, da descoberta, pela importância em descodificar
estéticas e de as fazer ingressar na História de Arte; na Península Ibérica há que
considerar a herança de motivos arcaicos no couro utilizado para estofos, motivos esses
passados entre manufacturas e viajados entre geografias. Apoio-me, antes, numa outra
visão: “Nearly all media, except for the art of the book, are represented and in many
instances, as with ivories, there is a critical mass of works which should allow for
reflections and conclusions on classical art historical topics such as sources, styles,
subject matter, and expression” 2.

As peças lavradas adiante apresentadas – cadeiras completas (peças nºs 1, 2, 3) da Casa-


Museu Guerra Junqueiro (CMGJ) e estofos soltos (peças nº 4 a 8) da Fundação Guerra

1
HAMILTON, R. W. – Khirbat al-Mafjar: an Arabian mansion in the Jordan valley. Oxford: Claredom
Press, 1959, p. 213.
2
ETTINGHAUSEN, Richard – “Notes on the lusterware of Spain”. Ars Orientalis I (1954), pp. 133-156,
p. 100.

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Junqueiro (FGJ) – pertencem ao núcleo mais antigo do panorama da gravura em


Portugal; são da época de transição entre as modas mudéjares e o Renascimento, com o
uso mais frequente da cadeira. A descodificação das estéticas destes estofos transporta-
nos à época medieval peninsular, com um relevo particular dado ao sul islâmico.

Saliente-se, ainda, a mente coleccionista do poeta Guerra Junqueiro; a colecção de


cadeiras lavradas e guadamecis mostra a consideração que tinha pelas artes do couro,
não só devido à abundância de móveis de assento, mas por recolher estofos soltos –
como alguns destes em estudo – que, devido à sua secura e cortes, nunca poderiam
tornar-se funcionais. O mesmo digo quanto aos guadamecis, também da FGJ, todos eles
da indústria repetitiva dos Países Baixos do século XVIII 3: se a cortina ainda poderia ter
alguma utilidade ou servir de ornamento, os restantes fragmentos são inúteis para um
restauro; mostram, tão-só, como o poeta estimava estas manifestações.

A estética islâmica foi recriada na arte mudéjar, onde as alcatifas e estrados atapetados,
coxins, panejamentos em têxtil ou guadameci são os aspectos mais salientes nos
interiores abastados, em usos que perduraram até inícios do século XVII. Uma outra
vertente ficou reduzida às manifestações populares do sul ibérico, prolongando-se nos
artefactos típicos como os safões e sacos de pastores 4. Relativamente aos couros da
época islâmica, pouquíssimo sobreviveu; resumem-se a duas aljavas 5, com a técnica do
calado – que veremos continuada na arte pastoril do sul ibérico – e duas adargas
nazarís 6.

3
PEREIRA, Franklin – “Couros dourados” / guadamecis dos Países Baixos em Portugal (séculos XVII-
XVIII)”. Al-Madan, 2ª série, 19/2 (Janeiro 2015), pp. 117-132, pp. 127-128.
4
PEREIRA, Franklin – “A arte dos pastores do sul peninsular: arquétipos em final de estrada”. in Actas
das III Jornadas Internacionais de Vestígios do Passado / Almeida, 2007. Póvoa do Varzim: AGIR /
Associação para o Desenvolvimento Sócio-cultural, 2007, p. 220; PEREIRA, Franklin – “A sul do rio
Mondego. Arcaísmo, simbologia e transmigração de ornamentos nas artes populares do sul ibérico”. A
Cidade de Évora, 2ª série, 7 (2009), pp. 540-542; PEREIRA, Franklin – “Eqqus cursare – uma viagem a
partir do Festival Anual do Cavalo na Golegã”. Nova Augusta 22 (2010), pp. 176-177; PEREIRA,
Franklin – “Estéticas em trânsito: a partilha do ornamento da cerâmica do Gharb al-Andalus com outros
artefactos”. Arqueologia Medieval 12 (Outubro 2012), p. 199.
5
PEREIRA, Franklin – “Cueros artísticos en el Museo Arqueológico Nacional”. Boletín del Museo
Arqueológico Nacional 20 (2002), pp. 237-238; PEREIRA, Franklin – “A sul do rio Mondego”, p. 541.
6
PÉREZ HIGUERA, Teresa – Objetos y imagenes de al-Andalus. Madrid: Editorial Lundwerg, 1994, p.
124; (AL-)ANDALUS: las artes islámicas en España. Madrid: Ediciones El Viso, 1992, p. 296;
PEREIRA, Franklin – “Eqqus cursare”, p. 171.

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De referir ainda os apetrechos do último sultão – botas, sapatos, espada e bainha


bordada, adaga em bainha incisa, carteira e cinto, pequena bolsa de ombro 7–, onde a
decoração é sobretudo realizada pelo bordado com fio de prata; existe ainda uma
cadeira dobradiça no Palácio de Alhambra 8, de couros muito secos; a sua estética,
lavrada no couro bovino do encosto e assento, retoma as linhas básicas vistas noutras
manifestações, como a cerâmica ou têxtil: escudo da dinastia nazarí, laçaria exterior e
animais estilizados. O mesmo museu possui um chapim em guadameci, pintado com um
animal olhando sobre o ombro, entre folhagem estilizada, e moldura de encordoado 9.

O Museu de l’Art de la Pell (em Vic, Espanha) expõe um guadameci árabe do século
XIV 10 e uma sanefa na mesma técnica e datação 11, sem especificar se é andalusí; integra
ainda uma cortina em padrão de hexágonos alongados (século XIV) 12, uma caixa
octogonal, com um motivo de entrançado com ferreteado típico das encadernações, com
pontos dourados, e datada do século XIV 13, e uma cortina gofrada de padrão em
pequenos trapézios, já do século XVI 14.

Outros dados podem ser retirados de encadernações muçulmanas 15 e mudéjares 16, e de


raros guadamecis do século XVI 17, revelando permanência e partilha de estéticas:

7
(AL-)ANDALUS, pp. 288, 291, 293; PEREIRA, Franklin – “Identidade e memória nas artes do couro de
linhagem ibero-muçulmana”. in Actas do I Seminário Internacional de Memória e Cultura Visual/ Póvoa
do Varzim, 2007. Póvoa do Varzim: AGIR/Associação para o Desenvolvimento Sócio-cultural, 2008, p.
208.
8
PEREIRA, Franklin – As cadeiras em couro lavrado e os guadamecis do Museu de Pontevedra.
Pontevedra: Museu de Pontevedra, 2000, p. 245; PEREIRA, Franklin – “Leather decoration tools of the
Iberian tradition, since the 13th century”. Tools and Trades 12 (2000), p. 11.
9
MATILDA ANDERSON, Ruth – “El chapin y otros zapatos de la Alhambra”. Cuadernos de la
Alhambra 5 (1969), pp. 17-41; PEREIRA, Franklin – “Leather decoration tools”, p. 22; PEREIRA,
Franklin – “Identidade e memória”, p. 209.
10
ART en la pell: cordovans i guadamassils de la col.lecció Colomer Munmany. Barcelona: Fundació la
Caixa / Generalitat de Catalunya, 1992, p. 73, imagem 47.
11
ART en la pell, p. 73, imagem 48.
12
ART en la pell, p. 72, imagem 46.
13
(EL) ARTE en la piel – Colección A. Colomer Munmany. Madrid: Fundación Central Hispano / Museu
de l’Art de la Pell, 1998, p. 54.
14
ART en la pell, p. 80, imagem 78; (EL) ARTE en la piel, p. 79.
15
“Sur un type de reliure des temps almohades”. Ars Islamica I (1934), p. 80; (AL-)ANDALUS, pp. 123 e
308.
16
EXPOSICIÓN de encuadernaciones españolas, siglos XII al XIX. Madrid: Sociedad Española de
Amigos del Arte, 1934, pp. 10, 23 e 35; PASSOLA, José M. – Artesania de la piel. Encuadernaciones en
Vich, siglos XII-XV. Vic: Colomer Munmany, 1968, imagens 28, 30, 34 e 36; ÁLVARO ZAMORA,
María Isabel; MONDINGORRA LLAVATA, María Luz; GIASANTE, Donatella – Els vestits del saber.
Enquadernacions mudèjars a la Universitat de València. Valência: Universitat de València, 2003, pp. 27,
31, 58, 83, 85, 91, 93 e 99; CARPALLO-BAUTISTA, Antonio – “Las encuadernaciones mudéjares de

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encordoados, polígonos estrelados e entrançados apresentam-se nas duas manifestações.


Tecnicamente falando, os guadamecis são pintados a óleo sobre um fundo de folha de
prata, seguindo-se a leve texturação com punções; o couro utilizado é o de carneiro. Já
as encadernações têm motivos vincados no couro de bezerro ou cordovão, seguidos de
suave puncionamento a frio ou com ferros aquecidos, por vezes com apontamentos de
folha de ouro. Ora os estofos em causa são em couro bovino de 6 mm, com recurso a
goiva em V cortante, e parcas punções em curva, ou em granulado para o campo,
levando a um lavrado profundo e visível; são posteriores à época áurea das
encadernações espanholas e dos guadamecis ibéricos.

A datação dos objectos enumerados e, em particular, a sua estética, não ajudam muito
no entendimento global das gravuras mudéjares portuguesas, aqui consideradas. Só uma
análise detalhada destes couros lavrados, a par de paralelismos com peças já incluídas
na arqueologia medieval, e outras obras do mundo antigo, é que permite clarear dados,
abrir portas e perceber a viagem que contêm.

Os correeiros, estofadores de cadeiras em couro lavrado


Em 1545, uma acta da vereação do Porto refere a necessidade em elaborar novas taxas,
“por quanto a carestia em todallas cousas hia em tamanho crecjmento que era necesario
prouer a jsso” 18. Quanto aos “coreyros d obra grosa”, a listagem inicia-se pelas peças de
mobiliário de assento; estes artífices estofavam diversos tipos de cadeiras: “d espalldas
das mayores”, “d espalldas chãas e meaãs”, “d espalldas menores”, “de barrotes sem
espaldas”, “Rasa das mayores acustumadas”, “Rasa e das menores”, e “dobradiças
nouamente emvemtadas” 19. São sete modelos, e o facto de terem estofos em “couro
laurado” mostra como este material está indissoluvelmente ligado ao mobiliário
português de assento, pois não há referências ao uso de tecidos (sedas, veludos). Tendo

lacerías, tipo «toledano» y «salmantino», en la Catedral de Toledo”. Al-Qantara XXXIII/2 (julio-


septiembre 2012), pp. 375-404; ÁLVARO ZAMORA, María Isabel – “Encuadernaciones mudéjares”.
Artigrama 23 (2008), pp. 445-481.
17
(EL) ARTE en la piel, pp. 27 e 78; GUADAMASSILS antics a Catalunya / Guadamecíes antiguos en
Cataluña / Ancient Gilt Leather in Catalonia. Vic: Museu de l’Art de la Pell / Ayuntament de Vic, 2001,
pp. 23 e 41; PEREIRA, Franklin – “Identidade e memória”, p. 208.
18
CRUZ, António – Os mesteres do Porto. Porto: Imprensa Industrial Gráfica, 1943, p. XCV.
19
CRUZ, António – Os mesteres do Porto, pp. CV-CVI.

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em atenção a qualidade dos lavrados, é de considerar que havia correeiros


especializados na gravura, ou, pelo menos, dedicando-lhe muito tempo, em detrimento
da manufactura dos artefactos mais correntes.

O regimento lisboeta dos correeiros, de 1572, refere apenas a “cadeira de espaldas” como
peça de exame, entre outros artefactos típicos do ofício. Noutro item estão referidas “as
cadeiras de qualquer sorte” 20, que não devem ser entendidas como obras da livre criação
dos artífices envolvidos no seu fabrico. Aliás, é o regimento dos carpinteiros, também da
mesma data, que esclarece haver modelos oficiais e medidas estabelecidas, em depósito
na câmara municipal, e marcadas com a “marca da cidade”; ao afirmar “como erão
antigamente” e “que se costumão fazer” 21 para essas peças, o texto revela a antiguidade
desses modelos, devedores aos seus congéneres tardo-medievais.

Já publiquei uma série de desenhos que mostram a evolução da cadeira, do século X ao


século XVI 22; algumas imagens dizem respeito à cadeira espanhola (“sillón frailero”) 23,
que, estruturalmente, é muito semelhante à congénere portuguesa da mesma época;
aliás, uma dessas imagens apresenta o espaldar em couro, cravado com tachas; já as
outras duas têm, parece, o espaldar em tecido.

Os elementos lavrados nas oito peças do Porto


Este elencar de estéticas mostra como a arte mudéjar no couro se apoia em motivos
antigos, antecedendo o mais usual do mudéjar ibérico, como os polígonos estrelados,
enlaçados e entrançados. O paralelismo estético com outras peças salienta o seu papel
de embaixadores de cultura; sendo em grande parte objectos de fácil transporte no
comércio, tornavam mais simples a difusão de modos de ornamentrar, enraizados no
património e visão do mundo. Encadernações, iluminuras, sedas, adargas, caixas em

20
LIVRO DOS REGIMENTOS dos officiaes mecânicos da mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa
(1572). Ed. e prefácio por Virgílio CORREIRA. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926, p. 88.
21
LIVRO DOS REGIMENTOS, pp. 115, 117 e 118.
22
PEREIRA, Franklin – O couro lavrado no Museu Municipal de Viana do Castelo: da arte “mourisca”
à época barroca. Viana do Castelo: Museu Municipal, 2000, pp. 22 a 27.
23
ARIÉ, Rachel – Miniatures hispano-musulmanes: recherches sur un manuscrit arabe illustré de
l’Escurial. Holanda: E. J. Brill, 1969, pranchas XVIII, XXI e XXXV; PEREIRA, Franklin – As cadeiras
em couro lavrado, pp. 232 e 233.

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marfim esculpido, bolsas, tapeçarias, guadamecis, bainhas ou cerâmicas moviam-se nas


redes comerciais, carregando os ornamentos da identidade cultural.

Quanto às ferramentas, bastava uma goiva em “v” cortante, e punções/cinzéis não-


cortantes em duas ou três curvas (e o necessário martelo) para executar estas gravuras
mudéjares; por vezes são acompanhadas por punções em pequeno círculo, e outra de
meia-lua riscada. Eram ferramentas leves, que cabiam num pequeno saco, longe ainda
da cinzelagem e aumento considerável de punções diversas nos lavrados renascentistas
e barrocos posteriores, e que deram fama além-fronteiras à cadeira portuguesa.
Provavelmente, estas oficinas trabalhavam sobretudo em Lisboa e não funcionavam em
regime de itinerância.

a) Triângulos obtidos por justaposição de curvas realizadas por cinzel não-


cortante
Os estofos nºs 2 a 8 apresentam curvas cinzeladas, assentes nas linhas-limite da
moldura, à esquerda e à direita, formando triângulos escalonados. Os triângulos em
patamares encontram-se já na arquitectura e artes móveis pré-islâmicas médio-
orientais 24, que chegaram a influenciar a arte grega 25 . As conquistas e expansão do
império islâmico levaram à absorção deste motivo. Daí se encontrar tais elementos
presentes, por exemplo, no Palácio omíada de Khirbat al-Mafjar, na Palestina,
construído na primeira metade do século VIII 26. Encontram-se também tais ameias na
cidade palatina de Madinat’ al-Zahra, e na Mesquita de Córdova 27, que a antecede. O
mesmo tipo de triângulo ou “espiga” continuou na azulejaria hispano-muçulmana,
presente no Palácio de Alhambra e em edifícios mudéjares. O pequeno “ferro” de espiga
mantém-se entre os últimos gravadores de couro de Granada – punção esta denominada
“pino” – e encontra-se em raros estofos renascentistas portugueses; reapareceu na época
do revivalismo de inícios do século XX em Portugal.

24
CRESWELL, K. A. C. – Early Muslim Architecture. Umayyads. A. D. 622-750. Oxford: Claredom
Press, II, 1969, p. 389; ASIA, ruta de las estepas: de Alejandro a Gengis Khan. Barcelona: Fundación La
Caixa, 2001, p. 77.
25
YON, Jean-Baptiste – “La época grecoromana – fusión de culturas bajo la impronta helenística”. in
Oriente Próximo – Historia y Arqueología. Colónia: Konemann, 2000, p. 81.
26
HAMILTON, R. W. – Khirbat al-Mafjar, pp. 99, 102 e 182.
27
PAVÓN MALDONADO, Basílio – El arte hispano-musulmán en su decoración floral. Madrid:
Agencia Española de Cooperación Internacional, 1990, tabla III-12-100 e XXI-61-413; PEREIRA,
Franklin – O couro lavrado no Museu Municipal, p. 45.

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Formados por cravos de cabeça tronco-crónica, tais triângulos são usuais nas selas
tradicionais portuguesas. A explicação que os artífices me deram para tal decoração é
exactamente essa: é tradicional ser assim. Eventualmente, tal simplismo poderá
esconder algo mais, enraizado na herança islâmica. As selas portuguesas são devedoras
ao tipo de equitação denominado “à gineta”, identificado com os exércitos andalusís
desde o século X. Escritos entre 971 e 975, os relatos palacianos do califa al-Hakam II
parecem dar uma explicação plausível para os cravos tradicionais da selaria portuguesa.
Alguns relatos referem cavalos com selas e arreios com a marca do Califato; outros
especificam que a sela e o arreio estão adornados de prata, ou são os equinos
provenientes das cavalariças do Califato 28. A distinção entre arreios “civis” e califais
deveria fazer-se por estes terem marcas estéticas específicas. Tem toda a lógica admitir
que tal decoração se apresentaria na face exterior dos arções. Deste modo, os triângulos
cravados nas selas portuguesas têm uma origem centenária e são uma manifestação de
uma provável obrigação tornada tradição, aqui em selaria, e que se manteve após a
Reconquista.

b) Flor quadripétala sobre quadrado


Seguimos para outro elemento, agora floral – representando a união entre o Céu e a
Terra –, colocado no centro do assento da cadeira nº 2. Outros dois assentos, mais
“puros” no seu arcaísmo de linhas califais ibéricas, nos museus dos Patudos e Municipal
de Viana do Castelo, repetem o motivo entre o entrançado floral da moldura 29. Este
pequeno motivo – flor quadripétala com cantos entre cada pétala, como se estivesse
assente sobre um quadrado – parece ser o ornamento com mais longa vida.

Nos primeiros séculos da era cristã, a produção têxtil do Egipto copta atingiu grande
qualidade, onde se incluía este motivo 30. Com ligeiras variantes – com cinco cantos, ou
enlaçado em si, e também a elementos iguais, mas com as pétalas transformadas em

28
AL-RASI, Isa Ibn Ahmad – Anales Palatinos del Califa de Córdoba al-Hakam II, 360-361 H. – 971-
975 J. C. Madrid: Sociedad Estudios y Publicaciones, 1967, pp. 63, 68, 166 e 167; PEREIRA, Franklin –
“Uma leitura do painel “Santiago aos Mouros” do Museu de Arte Sacra de Mértola – a equitação
medieval e os artefactos da guerra a cavalo”. Arqueologia Medieval 12 (Outubro 2012), p. 288.
29
PEREIRA, Franklin – O couro lavrado no mobiliário artístico de Portugal. Porto: Lello e Irmão, 2000,
p. 12; PEREIRA, Franklin – O couro lavrado no Museu Municipal, p. 43; PEREIRA, Franklin – “Couros
artísticos nos interiores abastados de Arraiolos e Montemor-o-Novo, no século XVII”. Almansor 1-2ª
série (2002), pp. 145-168; PEREIRA, Franklin – “Couros artísticos nos interiores abastados”, p. 156.
30
KYBALOVÁ, Ludmila – Les tissus coptes. Paris: Cercle d’Art, 1967, p. 13.

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círculo colocado sobre os lados do quadrado –, encontra-se tal módulo na escultura


arquitectónica do já referido palácio de Khirbat al-Mafjar 31; com o canto do quadrado
virado para o interior, repete-se noutro padrão nesse palácio 32. A mesma dinastia, agora
limitada ao al-Andalus, utilizou a flor quadripétala enlaçada nos estuques e pedras de
Madinat al-Zahra 33, entre outros exemplos. Algumas plantas de edifícios islâmicos têm
esta forma 34.

Numa placa ornamental de Lisboa, as grandes flores quadrilobadas, também com os


cantos do quadrado colocados entre cada pétala, mostram que estavam esculpidas
internamente com águias; no topo, vê-se as garras e cauda da ave, e, na base, aparece
ainda uma cabeça. Segundo Manuel Luís Real, em ficha de catálogo, essa placa repete
desenhos dos estuques do palácio de Khirbat al-Mafjar, e “Não têm qualquer paralelo
com a restante arte peninsular, atribuível à época visigótica” 35; o autor atribui esta placa
a uma oficina moçárabe de Lisboa islâmica dos séculos IX-X. Tanto a flor quadripétala
como a palmeta (também presente neste relevo, em grupos de quatro) – que veremos
adiante – são motivos que aparecem nestes couros lavrados mais antigos. Contendo
figuras, tal módulo – com menor ênfase dada aos meios-círculos / pétalas – encontra-se
em iluminuras do “Apocalipse do Lorvão”, de 1189 36. A mesma forma utilizada no
couro lavrado encontra-se talhada em madeira na cabeceira do túmulo de Isabel de
Aragão, c. 1330, na Igreja de Sta. Clara (Coimbra); os cantos entre as pétalas
apresentam-se agudos 37. No Mosteiro da Batalha, do século XIV final, na fachada do
portal sul, duas flores quadripétalas, no gablete triangular, encerram a heráldica dos reis
D. João I e D. Filipa.

31
HAMILTON, R. W. – Khirbat al-Mafjar, p. 199.
32
HAMILTON, R. W. – Khirbat al-Mafjar, p. 184.
33
PAVÓN MALDONADO, Basílio – “La formación del arte hispanomusulmán: hacia un corpus de la
ornamentación geométrica rectilínea”. Al-Andalus XXXVIII-1 (1973), pp. 195-242, tabla XIII.
34
STIERLIN, Henri – Islão. de Bagdade a Córdova: a arquitectura primitiva do século VII ao século
XIII. Colónia: Tachen, 2002, p. 81.
35
PORTUGAL ISLÂMICO: os últimos sinais do Mediterrâneo. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia /
Instituto Português de Museus, 1998, pp. 86 e 87.
36
EGRY, Anne de – Um estudo de “O Apocalipse do Lorvão” e a sua relação com as ilustrações
medievais do apocalipse. Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1972, pp. 101-102; PEREIRA, Franklin – O
couro lavrado no Museu Municipal, p. 51.
37
PEREIRA, Paulo – História da arte em Portugal. Vol. I. Lisboa: Círculo de Leitores, 1995, p. 443.

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O couro lavrado de estética mudéjar na Casa-Museu e Fundação Guerra Junqueiro […] ● Franklin Pereira

O recurso a tal desenho continuou na arte mudéjar de Toledo, Tordesilhas e Sevilha;


neste último caso, cada módulo encerra silhuetas com cenas da corte e de cavalaria 38.
Na azulejaria andalusí do século XIII-XIV, presente no Museu Arqueológico de
Córdova, as cenas internas de medalhões entrançados do século XIII-XIV incluem
também animais, cavaleiros, e aspectos dos sentidos do gosto, olfacto e ouvido 39.
Encontra-se tal módulo (composto por duas variantes, pintadas alternadamente) na
moldura interna definindo dois arcos contra-curvados encerrando uma pinha, num
frontal de altar do século XVI, em guadameci (com o pano central pintado com um
Cristo recebendo a pomba branca do Espírito Santo), no Museu Abade de Baçal
(inventário nº 147) 40. O mesmo módulo foi utilizado num padrão de dois guadamecis
tradicionais ibéricos – motivos pintados, puncionamento com ferros clássicos –,
presentes no Museu de l’Art de la Pell (Vic), e datáveis do século XVI 41; o tamanho
grande deste padrão afasta estes dois guadamecis daquele de estética mudéjar, na
colecção do museu brigantino. No século XVI-XVII português continuava-se a recorrer
a outras versões da flor quadripétala em azulejos de parede, como ainda se pode ver em
várias igrejas. Na escultura arquitectónica, já dos séculos XVII-XVIII, o mesmo módulo
foi utilizado, seja de um modo austero (em fontes), seja com todo o tratamento floral
barroco, como molduras de janelas. Num outro livro já publiquei uma série de desenhos
relativos a este módulo, e às viagens subjacentes 42 e já abordei mais extensamente o
tema num artigo 43. No século XX, encontram-se exemplos na azulejaria e ferro, de
produção industrial massificada.

c) Moldura larga e com motivos florais inscritos em SS


O recurso a estas molduras tão arcaicas parece basear-se na facilidade em utilizar um
modelo mais que corrente, um esquema “pronto a usar”, apenas necessitando de ajustes

38
PAVÓN MALDONADO, Basílio – Arte toledano: islámico y mudéjar. Madrid: Instituto Hispano-
árabe de Cultura, 1988, lâmina CLXXIII.
39
TORRES BALBÁS, Leopoldo – “De cerámica hispano-musulmana”. Al-Andalus IV (1939), pp. 421 e
422.
40
PEREIRA, Franklin – “Identidade e memória”, p. 209.
41
ART EN LA PIEL, pp. 81 e 95.
42
PEREIRA, Franklin – O couro lavrado no Museu Municipal, pp. 50-53.
43
PEREIRA, Franklin – “A grande viagem da flor quadripétala: um estudo a partir da fíbula da escultura
“Nossa Senhora do Ó” do Museu Municipal Carlos Reis/Torres Novas”. Nova Augusta 24 (2012), pp.
183-196.

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para preencher as quatro faixas/lados do estofo. Com o avançar do Renascimento, estas


molduras arcaicas serão substituídas pela fileira de folhas estilizadas de acanto.

Nas peças nºs 2, 3, 4 e 5, a moldura floral estilizada tem como estrutura uma espiral ou
S, havendo, por vezes, um ponto de união das curvas simétricas, constituído por um
anel, argola ou fivela (“hebilla”, em espanhol) 44. Denominadas em inglês “scroll
patterns”, aparecem como bordas internas de vasos cerâmicos de Bizâncio; quanto à sua
proveniência, “it is hard to be certain of origins, the pattern being so universal. (...)
Sometimes they were stylized into what are little more than undulating bands, but when
they are elaborate they usually take on a form which suggests relationships with Islamic
pottery” 45. Relativamente ao emprego deste tipo de molduras na arte ibérica, B. Pavón
Maldonado afirma: “La cenefa estrecha con palmetas asidas a roleos ondulados
encuentra ya ampla acogida en el arte sasánida, el bizantino e en el omeya oriental; se
impone sobre todo en Madinat al-Zahra y en la Mesquita de Córdoba” 46.

Assim, este tipo de moldura tem paralelos com outras, presentes tanto na arquitectura
islâmica do Médio Oriente omíada e abássida 47 como na peninsular, em Madinat al-
Zahra 48 (à qual não falta o vinco interno) e na Mesquita de Córdova 49; nas artes móveis,
encontra-se, por exemplo, numa arqueta de marfim da época Taifa 50, numa lápide
funerária do século XII, em território português 51, e em iluminuras dos “Beatos”
espanhóis.

d) Folha de acanto, estilizada em gomos e anéis


Na CMGJ, esta estilização aparece no minucioso lavrado da peça nº 1, com
semicírculos assentes na borda das folhas. De novo, convoco a arte islâmica peninsular,
44
PAVÓN MALDONADO, Basílio – Arte toledano, p. 225.
45
RICE, David Talbot – “The pottery of Bizantium and the Islamic world”. in Studies in Islamic Art and
Architecture in Honour of Professor K. A. C. Creswell. Cairo: The American University in Cairo Press,
1965, p. 206.
46
PAVÓN MALDONADO, Basílio – El arte hispano-musulmán, p. 111.
47
ANDALOUSIES. de Damas à Cordoue. Paris: Institut du Monde Arabe / Hazam, 2000, pp. 27 e 28.
48
PAVÓN MALDONADO, Basílio – El arte hispano-musulmán, lâmina XII-26, nº 222; (EL)
ESPLENDOR de los omeyas cordobeses. La civilización musulmana de Europa Occidental. Madinat al-
Zahra: Fundación El Legado Andalusí / Junta de Andalucia, 2001, p. 139.
49
BARRUCAND, Marianne; BEDNORZ, Achim – Arquitetura islámica en Andalucía. Colónia:
Taschen, 1992, p. 57.
50
(AL-)ANDALUS, p. 249.
51
PORTUGAL ISLÂMICO, p. 249.

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na busca de uma explicação para tal estética: a folha com anéis intercalados nos gomos
– denominada em estudos espanhóis como “palmeta digitada” 52 – aparece em marfins
califais e nos estuques de Madinat al-Zahra 53, nos primeiros anos do século XI; o seu
uso prolongou-se na arte dos reinos de Taifas 54. As épocas almorávida 55 e almóada 56
levaram o acanto a maior estilização; por vezes, a folha é reduzida a gomos intercalados
com anéis, ou preenchida com estilizações florais. O seu uso prolongou-se nas
produções nazarís 57; aparece também na Sinagoga de Santa Maria la Blanca (Toledo),
do século XIII 58, denotando o prolongamento da estética califal na comunidade judaica,
e, ainda, na ornamentação cristã elaborada por mudéjares, como no Mosteiro de las
Huelgas, em Burgos 59, do mesmo século.

Outra série de desenhos, ilustrando o desenvolvimento desta estilização “aos gomos e


anéis”, encontra-se num artigo que volta a focar o Mosteiro de las Huelgas 60. Considera
o autor ainda exemplos da Mesquita de Córdova, Madinat al-Zahra, da arte almorávida
(em Almeria, Fez e Tremecén), na Mesquita do Cairo, terminando na produção mudéjar
(onde sobressaem os estuques do claustro do Mosteiro de las Huelgas, já referido).

Tendo permanecido sete séculos na Península, esta estilização, a nível dos couros de
arte, apenas se encontra nos lavrados portugueses, com diversos aspectos decorrentes da
sua génese sob o Califato.

Aos desenhos já publicados 61, mostrando a evolução da tão corrente folha de acanto, até
se estilizar em “palmeta digitada”, haverá que acrescentar o exemplo português aqui

52
PAVÓN MALDONADO, Basílio – El arte hispano-musulmán, p.115.
53
TORRES BALBÁS, Leopoldo – ““Las yeserías descubiertas recientemente en las Huelgas de Burgos”.
Al-Andalus VIII (1943), pp. 209-254.
54
TORRES BALBÁS, Leopoldo – “Las yeserías descubiertas”.
55
RICARD, Prosper – Pour comprendre l’art musulman dans l’Afrique du Nord et d’Espagne. Paris:
Hachette, 1924, p. 170, figuras 303 e 304.
56
RICARD, Prosper – Pour comprendre, figuras 305-312.
57
RICARD, Prosper – Pour comprendre, figuras 317-320.
58
TORRES BALBÁS, Leopoldo – “Las yeserías descubiertas”, p. 224; PAVÓN MALDONADO, Basílio
– Arte toledano, pp. 81 e 136.
59
PAVÓN MALDONADO, Basílio – Arte toledano, pp. 124 e 125.
60
TORRES BALBÁS, Leopoldo – “Las yeserías descubiertas”, p. 215.
61
PAVÓN MALDONADO, Basílio – El arte hispano-musulmán, tabla XXI, nº 43, p. 121; PEREIRA,
Franklin – O couro lavrado no Museu Municipal, p. 57; PEREIRA, Franklin – “Identidade e memória”,
p. 213.

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referido, que ombreia com semelhantes desenvolvimentos, presentes em estofos da


mesma época e tradição 62, estofos esses nos museus de Soares dos Reis 63, dos Patudos e
de Artes Decorativas de Viana do Castelo 64, na Igreja de Santa Eufémia de Chancelaria
(Torres Novas) 65 e numa colecção particular do Porto 66.

e) Rameado com palmetas em quadro direcções, saindo de um centro


Este caso apresenta-se no assento da peça nº 2; os quatro braços poderão ser invocações
dos quatro rios do paraíso muçulmano. A palmeta, com um anel na base, encontra-se
esculpida em estuque no palácio de Khirbat al-Mafjar; quatro palmetas, apontando a um
centro, formam uma roseta ou, em linha, formam outro padrão 67. Em mosaico, aparece
na Mesquita de Córdova e, noutros materiais, em Madinat al-Zahra 68; prolongou-se na
época taifa 69, almorávida e almóada, e permaneceu na arte do Sultanado de Granada 70.

Atrás, referi o módulo da flor quadripétala sobre quadrado, presente num relevo lisboeta
do século X-XI; um outro também apresenta palmetas, organizadas como que nas
diagonais de um quadrado, e que terá, como os outros do relevo citado, a “sua filiação em
paralelos de origem oriental, como os de Khirbat al-Mafjar (739-743), transmitidos por
artistas do período omíada à Península Ibérica, talvez no tempo de Abd al-Rahman I” 71.

Uma outra versão, mais requintada, aparece pintada em cerâmica islâmica atribuída aos
séculos XI-XII, descoberta em Mértola 72: quatro ramos iguais saindo do enlaçado têm
paralelos com o centro do assento em causa.

62
PEREIRA, Franklin – O couro lavrado no Museu Municipal, pp. 59 e 60.
63
PEREIRA, Franklin – “Identidade e memória”, p. 212.
64
PEREIRA, Franklin – O couro lavrado no Museu Municipal, pp. 43 e 44; PEREIRA, Franklin –
“Couros artísticos nos interiores”, p. 156.
65
PEREIRA, Franklin – “Identidade e marcas de cultura – a propósito de uma cadeira em couro lavrado
na igreja de Santa Eufémia da Chancelaria (Torres Novas)”. Nova Augusta 21 (2009), pp. 143-153.
66
PEREIRA, Franklin – O couro lavrado, pp. 36, 92 e 93.
67
PEREIRA, Franklin – “Identidade e memória”, p. 211; HAMILTON, R. W. – Khirbat al-Mafjar, p.
151, figura 114a, p. 213.
68
PAVÓN MALDONADO, Basílio – El arte hispano-musulmán, lâmina I-5, nº 47, e lâmina I-2, nº 6;
BARRUCAND, Marianne; BEDNORZ, Achim – Arquitetura islámica, p. 78.
69
(Al-)ANDALUS, p. 253.
70
PAVÓN MALDONADO, Basílio – El arte hispano-musulmán, tabla III, nºs 19 e 26.
71
REAL, Manuel Luís – “Os Moçárabes do Gharb português”. in Portugal Islâmico: os últimos sinais do
Mediterrâneo. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia / Instituto Português de Museus, 1998, p. 86.
72
TORRES, Cláudio (org.) – Cerâmica islâmica portuguesa. Mértola: Câmara Municipal de Mértola /
Fundação Gulbenkian / Campo Arqueológico de Mértola, 1987, imagem 76.

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f) estilização floral com pequenos enrolamentos


Este esquema arcaico encontra-se nas peças nºs 2, 3 e 4; trata-se de pequenos
enrolamentos, como que “caracóis”; tal modo de elaborar a estilização floral é
semelhante ao que se encontra nos medalhões vegetalistas que acompanham alguns
“suras”, elaborados nas épocas Taifa, almorávida e almóada, no al-Andalus, séculos XI
e XII 73.

g) campo floral trabalhado com minudência


Saliente da peça nº 1 está o trabalho de grande minúcia do lavrado floral, com cinco
pássaros. Remete para os marfins califais 74, relevando-se, de novo, as pequenas
produções transportáveis como inspiradoras e transmissoras de estéticas. Repete-se
numa cadeira semelhante, exposta no Museu de Pontevedra, com o espaldar cortado
para caber na estrutura de madeira 75, denotando que o estofador não teve apreço pelos
couros lavrados; a moldura desta cadeira é em amplos SS, sendo outra variante mudéjar.

h) moldura em duplo arco contrecurvado


Este tipo de moldura, também único na peça nº 1, foi empregue nos “panos d’armar” em
tecido, e também em guadameci, tal como se vê nos exemplos espanhóis
quinhentistas 76; com a mesma data, o já referido frontal de altar de Bragança recorre a
este módulo nos dois “panos” laterais. Os guadamecis relevados nas colunas da charola
do Convento de Cristo 77, de inícios do século XVI, mostram outro paralelismo para este
padrão, enlaçado a folhagem gótica. A fachada do portal sul do Mosteiro da Batalha –
encimada pelos brasões dos reis, encerrados em flor quadripétala sobre quadrado, atrás
referida – apresenta este padrão esculpido no espelho trilobado da porta, com filetes que
se entrecruzam.

73
(AL-)ANDALUS, pp. 304-311.
74
(AL-)ANDALUS, pp. 191 a 204.
75
PEREIRA, Franklin – As cadeiras em couro lavrado, pp. 223, 230 e 231.
76
FERRANDIS TORRES, José – Cordobanes y guadamecíes: catálogo ilustrado de la exposición.
Palácio de la Biblioteca y museos nacionales. Madrid: Sociedad Española de Amigos del Arte, 1955,
imagens 49, 50 e 59; ART en la pell, pp. 80, 90 e 91; (EL) ARTE en la piel, p. 85.
77
PEREIRA, Franklin – “Os couros artísticos: modas e estéticas em trânsito”. in Sphera Mundi – Arte e
cultura no tempo dos Descobrimentos / Congresso Internacional. Lisboa, 13-15 Outubro 2015. Vale de
Cambra: Caleidoscópio, 2015, pp. 297-312; PEREIRA, Franklin – “The Charola de Tomar: early 16th
century mould-embossed gilt leather, glued to stone walls”. Newsletter. Stroke-up-Trent: Archeological
Leather Group 43 (Março 2016), pp. 14-16.

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Todas as peças aqui em estudo são réstias de um passado esquecido, da estética islâmica
que permaneceu nestes modelos de cadeira “d espaldas”. Acessível e resistente, o couro
bovino tornou-se a matéria-prima ideal para estofos nos territórios que se tornaram
Portugal, sendo de admitir que foi buscar os elementos lavrados a outras artes, ou
mesmo aos correntes artefactos de couro (adargas, cintos, selas, aljavas, coxins e
guadamecis) das modas mudéjares.

O “sillón frailero” do país vizinho, contemporâneo da cadeira “d’espaldas” portuguesa,


mostra o couro bovino vincado com linhas paralelas às bordas (obtidas com um estilete
de metal ou osso) 78 ou puncionado em pouca quantidade e variedade mas, na maioria
dos casos, com pespontado em padrões geométricos simples 79. Completamente distintos
dos estofos simples da cadeira espanhola da mesma época, estes lavrados provam a
especificidade portuguesa, enraizada no legado andalusí, que permaneceu no ocidente
peninsular após a Reconquista, e durou até inícios do Renascimento.

A participação de mudéjares e o trabalho do couro lavrado


Várias questões fundamentais surgem perante este elencar de estéticas: como é que
motivos tão antigos, antecessores daqueles mais usuais da arte mudéjar (vistos na
encadernação mudéjar e em raros guadamecis), passam a ser os “oficiais” nas cadeiras
encouradas? Quem eram esses correeiros-gravadores? Qual a participação de artífices
mudéjares neste trabalho para a elite da época? Para responder, passo em revisão alguns
tópicos relativos ao couro e à presença dos muçulmanos nos ofícios.

O regimento dos “borzeguyeyros çapateiros çoqueiros e chapineyros cortidores


çurradores e odreyros”, de 1489, é uma peça importante para clarear, a nível mesteiral, a

78
PEREIRA, Franklin – “Leather decoration tools”, p. 11.
79
FEDUCHI, Luís – Historia del Mueble. Madrid: Afrodisio Aguado, 1946, figura 367; FEDUCHI, Luís
– Antologia de la Silla Española. Madrid: Afrodisio Aguado, 1957, figuras 33, 37 e 45; GUILÓ
ALONZO, Maria Paz – “Cordobanes y guadamecíes”. in BONET CORREA, António – Historia de las
artes aplicadas y industriales en España. Madrid: Editorial Cátedra, 1982, p. 326; AGUILÓ ALONZO,
Maria Paz – El mueble clásico español. Madrid: Editorial Cátedra, 1987, p. 154; AGUILÓ ALONZO,
Maria Paz – El mueble en España, siglos XVI-XVII. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones
Cientificas / Ediciones Antiqvaria, 1993, pp. 353-355; AGUILÓ ALONZO, Maria Paz – “Cordobanes y
guadamaciles”. in (EL) ARTE en la piel, p. 21; AGUILÓ ALONZO, Maria Paz – “Cordobanes y
guadameciles”. Madrid: Espasa Calpe. Summa Artis LXV (1999), pp. 266 a 268.

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participação dos artífices das “três religiões do Livro” no trabalho do couro; esse
documento envolve os fabricantes da matéria-prima (curtidores e surradores), aqueles
que manufacturam o utilitário sapato (em vários modelos) e os fabricantes de odres.
Cristãos, judeus e mudéjares/”mouros” estão presentes no curtume e estabelecem regras
para o uso de determinadas cores no calçado 80; rectificado em 1532, este documento
tem uma muito explícita frase final: “tiramdo as palauras que falão nos Judeus e mouros
81
pelos Ja hy não aver” – este é o reconhecimento da extinção das minorias judaica e
muçulmana nos ofícios básicos do couro, a par de um final anteriormente oficializado:
“O ciclo do mudejarismo português encerra-se a Dezembro de 1496 com a publicação
do édito de D. Manuel” 82. O surgir da cadeira encourada no século XVI afasta-nos das
“vivências mistas” 83 nos ofícios; as referências da autora à participação dos mudéjares
no calçado são do século XV, em Beja, Loulé, Avis e Évora; nesta última cidade, em
finais do século XIV, vemos os “mouros çapateiros” 84 envolvidos também no
curtume 85. O Livro dos Regimentos de 1572 refere que o oficial, no exame para mestre
sapateiro de obra de vaca, realizava dois tipos de calçado: “abrochados Solados de
correa e outros chãos solados aa mourisca” 86; neste último, empregava um método
herdado dos sapateiros islâmicos. Na selaria, e ainda lendo o mesmo Livro dos
Regimentos, continuava a fabricar-se o modelo de sela gineta, permanecendo, portanto,
o tipo de monta à gineta herdado dos exércitos andalusís, a par da sela estradiota do
norte cristão; o ofício de correeiro tinha anexo o de adargueiro – a adarga era o escudo
de couro que protegia o cavaleiro da monta à gineta. Métodos de elaboração e
apetrechos continuaram em uso no Portugal cristão, agora sem artífices mudéjares, mas
antes por continuidades e provas da sua eficiência, seja no calçar ou no cavalgar.

Afastados do curtume e da utilidade do calçado, os correeiros, logo que a cadeira


lavrada foi ganhando terreno face ao ocaso das modas de se sentar herdadas do Islão –
em estrados atapetados e coxins, muitas vezes em guadameci –, trouxeram para o estofo

80
PEREIRA, Franklin – Ofícios do couro na Lisboa medieval. Lisboa: Editora Prefácio, 2009, p. 54.
81
LIVRO das Posturas Antigas. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1974, pp. 324 e 330.
82
BARROS, Maria Filomena Lopes de – Tempos e espaços de mouros: a minoria muçulmana no reino
português (séculos XII a XV). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 595.
83
BARROS, Maria Filomena Lopes de – Tempos e espaços de mouros, p. 593.
84
BARROS, Maria Filomena Lopes de – Tempos e espaços de mouros, p. 515.
85
PEREIRA, Franklin – Ofícios do couro, p. 54.
86
LIVRO DOS REGIMENTOS dos officiaes mecânicos da mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa
(1572). Ed. e prefácio por Virgílio CORREIRA. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926, p. 77.

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em couro grosso de bovino as estéticas da elite. Tal diversidade de motivos indicia


haver uma possante produção anterior (popular e erudita), usando diversas matérias-
primas, em aspectos decorativos semelhantes; era manufacturada pelas populações
islâmicas e pelos mudéjares portugueses, sobrevivendo tais padrões ao desaparecimento
e integração dos muçulmanos na sociedade cristã. Valem estes excelentes estofos para
provar a continuidade da tradição artística, antes de ter sido remetida à produção de
cariz popular (safões, sacos de pastores, cerâmica, chifre, madeira, cabaça, tecelagem), a
partir do advento do Renascimento. Eclipsam os “couros de Córdova”, um termo
genérico onde se mescla cordovões, trabalho artístico e guadameci, pretendendo dar
supremacia à capital do Califato como iniciadora das artes do couro ibérico; esta
designação tem mais de nacionalismo do que fundamentação histórica, e é um mito,
como comprovam estes couros lavrados portugueses 87. Apesar de já ter abordado o
assunto em seminário em Espanha 88, ainda não vi estudos espanhóis que se debrucem
sobre os lavrados mudéjares portugueses.

Tecnicamente falando, o uso da goiva em V cortante aparece também numa arca


mudéjar do século XVI, da colecção da Escola de Artes e Ofícios de Córdova 89; os
motivos lavrados no grosso couro bovino – felinos em pé segurando ramagem, aves no
interior de medalhões florais ou bicando frutos –, o uso do puncionamento (bola, curva,
triplo V) no corpo dos animais e na texturação do fundo, e a imprecisão de mão no uso
da goiva cortante, afastam esta arca das cadeiras mudéjares portuguesas.

Augusto Cardoso Pinto publicou uma série de imagens e comentários a quatro cadeiras
estruturalmente semelhantes às da Casa-Museu Guerra Junqueiro 90. Nenhum dos couros
lavrados é, no entanto, em estilo mudéjar; uma das peças apresenta couros prensados 91.

87
PEREIRA, Franklin – “A arte dos pastores”; PEREIRA, Franklin – “O couro e o Islão na Península
Ibérica: identidade cultural, pedagogia e património. Reflexões em torno de uma tese de mestrado”.
Ensinarte / Revista das artes em contexto educativo 10 (2007), pp. 22-33; PEREIRA, Franklin –
“Identidade e memória”.
88
PEREIRA, Franklin – “Las influencias del Califato de al-Andalus en los cueros labrados de Portugal
del siglo XVI”. in Mil años de trabajo del cuero. Actas del II Simposium de Historia de las Técnicas.
Córdova: Sociedad Española de Historia de las Ciências y de las Técnicas / Universidad de Córdoba
2003, pp. 501-518.
89
PEREIRA, Franklin – “Leather decoration tools”, p. 10.
90
PINTO, Augusto Cardoso – Cadeiras portuguesas. Lisboa: A. C. Pinto, 1952, estampas XIV, XV e
XVII.
91
PINTO, Augusto Cardoso – Cadeiras portuguesas, estampa XVII, figura 12.

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Este caso prova a raridade destes lavrados e a falta de conhecimentos do autor referido
quanto às artes do couro, incluindo a do guadameci.

A par do frontal de altar do século XVI, em guadameci, no Museu Abade de Baçal 92, já
referido, e da produção alentejana de sacos de pastores e safões 93, poderiam/deveriam
estes estofos ter estado presentes nas exposições (e respectivos catálogos) “Memórias
Árabo-islâmicas em Portugal” (realizada em Mértola em 1997) 94 e “Portugal islâmico:
os últimos sinais do Mediterrâneo” (realizada no Museu Nacional de Arqueologia em
1997-98) 95.

Servem também estes estofos para um fim mais vasto: “reequacionar as interacções
entre a maioria cristã e a minoria islâmica (nomeadamente com o auxilio de outras
ciências, que não apenas a História), o que permitirá perspectivar de forma mais
correcta a realidade que chamamos «nação»” 96. Uma nação que tem, no mobiliário de
assento, a cadeira em couro lavrado como representante, uma particularidade europeia
com fama. Mais do que as cadeiras renascentistas e barrocas, muito frequentes em
museus e colecções particulares, estão estas peças cheias de História, e são janelas para
um legado de riqueza e esplendor.

Caracterização das peças em estudo


Peça nº 1- cadeira da CMGJ
A moldura em duplo arco contracurvado destes lavrados relembra particularmente os
“panos d’armar” de c. 1500 elaborados em guadameci, em Espanha e Portugal. Repare-
se, ainda, que a moldura contém, no interior de cada módulo, uma flor, que se aproxima
ao arcaico desenho da flor quadripétala sobre quadrado. Vê-la-emos claramente no
centro do assento (figura 2A).

92
PEREIRA, Franklin – “Identidade e memória”, p. 209.
93
PEREIRA, Franklin – “A arte dos pastores do sul peninsular”; PEREIRA, Franklin – “O couro e o
Islão”; PEREIRA, Franklin – “Identidade e memória”.
94
PEREZ, Rosa Maria (org.) – Memórias árabo-islâmicas em Portugal. Lisboa: Comissão Nacional para
a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1997.
95
PORTUGAL ISLÂMICO.
96
BARROS, Maria Filomena Lopes de – A comuna muçulmana de Lisboa: sécs. XIV e XV. Lisboa:
Hugin, 1998, p. 165.

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O couro lavrado de estética mudéjar na Casa-Museu e Fundação Guerra Junqueiro […] ● Franklin Pereira

Estamos perante um motivo partilhado entre a tradição mudéjar dos “panos d’armar”
(seja em têxtil, seja em guadameci) e uma linhagem a emergir, a do mobiliário de
assento, onde o couro bovino era a matéria-prima dominante em Portugal; esta linhagem
absorveu, na sua estética, motivos arcaicos, sendo o padrão de arcos duplos
contracurvados um dos pouquíssimos elementos partilhados. O interior do espaldar
(figura 1A) relembra os marfins califais 97; apresenta delicadas ramagens, onde se
encontram cinco aves diferentes, a maior das quais parece ser um pavão; alguns ramos
têm pequenas curvas sobre o enrolamento, sugerindo ser continuidade da estilização do
acanto no al-Andalus califal 98. Para a execução de tanto detalhe, o correeiro utilizou,
além da goiva em “v” cortante ou da faca de incisão – este é um caso em que a finura
das linhas cria dúvidas sobre o tipo de ferramenta –, uma punção minuciosa
(denominada “escama” pelos gravadores actuais) para criar o efeito de penas nos
pássaros. Como novidade, há um riscado obtido por punção, que dá a ideia de
rebaixamento e sobreposição, e que iria passar a ser corrente nas gravuras renascentistas
posteriores. O correeiro utilizou ainda um “fosco”/granulado para o fundo, como era
típico desde o Gótico peninsular.

O assento (figura 1B) repete a moldura do espaldar; o seu centro, no entanto, parece ser
uma evolução a partir dos modelos califais das palmetas distribuídas em quatro
direcções. A estilização floral que rodeia o centro deste assento – quatro folhas nas
diagonais, enrolamentos e faixas – repete-se em dois outros da FGJ, soltos da estrutura,
que veremos adiante (peças nºs 7 e 8). Pela negativa, note-se que a pregaria, que fixa o
espaldar, atropela a moldura; aconteceria o mesmo na estrutura original?

O Museu de Pontevedra possui uma cadeira recente, de estrutura simples; o espaldar


repete o mesmo lavrado desta peça da CMGJ, e não faz par com o assento. A sua
moldura baseia-se no antigo motivo das ondas, ou largos SS deitados (que veremos nos
assentos nº 7 e 8); o espaldar foi cortado, denotando que o marceneiro ou o estofador
nada percebia de couros artísticos e procurou, com o beneplácito do proprietário, tornar

97
FERRANDIS TORRES, José – Marfiles árabes de Occidente, siglos X y XI. Vol. I e II. Madrid:
Estanislao Mestre, 1935-1940; (AL-)ANDALUS, pp. 191 a 204; ANDALOUSIES, pp. 122 e 123.
98
PAVÓN MALDONADO, Basílio – El arte hispano-musulmán, p. 121, tabla XXI, nº 43; PEREIRA,
Franklin – O couro lavrado no Museu Municipal, pp. 59 e 60.

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a cadeira funcional 99. Apesar deste corte, este espaldar adiciona mais dados à produção,
rara e magnífica, desta “tenda” de correeiros, com um peculiar método de gravura
minuciosa, possivelmente herdado das anteriores oficinas de mudéjares portugueses (se
não de sangue, pelo menos de tradição cultural erudita). Permite também este espaldar
considerar as trocas comerciais com a Galiza no século XVII e XVIII, aspecto que
também foquei no estudo citado, publicado pelo Museu de Pontevedra 100.

Figura 1 – Cadeira da CMGJ.

99
PEREIRA, Franklin – As cadeiras em couro lavrado, pp. 223, 230 e 231.
100
PEREIRA, Franklin – As cadeiras em couro lavrado, pp. 240 a 242.

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Figura 1A – Espaldar de cadeira da CMGJ.

Figura 1B – Assento de cadeira da CMGJ.

Peça nº 2 - cadeira da CMGJ


Nos estofos deste exemplar, de estrutura semelhante à cadeira anterior, encontram-se
triângulos, obtidos pela justaposição de curvas cinzeladas, e colocados à esquerda e

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direita da larga moldura. O rameado arcaico da moldura, inscrito em amplos SS, tem
semelhanças com o seguinte, sendo, todavia, menos requintado. Neste rameado, é de
notar pequenos enrolamentos, relembrando medalhões que acompanham alguns “suras”,
elaborados no al-Andalus nos séculos XI e XII; adiante, na peça nºs 3 e 4, veremos de
novo este esquema arcaico. Em cada canto encontram-se flores aparentadas à palmeta.
Os motivos centrais do espaldar são, supostamente, armas de aliança, a que não falta a
fantasia. Os arcos podem ser lidos como a letra M, encimada por uma coroa de conde,
de sete pérolas (o clássico são nove pérolas). No escudo, no peito da ave estão
representadas as armas plenas de Coelho (na bordadura estão oito coelhos, quando o
clássico são cinco). Como suporte da heráldica está um dragão marinho. Tal como na
peça seguinte, o ferramental resume-se a uma goiva em “v”, e um cinzel curvo. Os
coelhos foram executados um a um, e não por punção única.

O assento (figura 2A) faz par com o espaldar e, como era usual, o motivo é de
inspiração vegetalista, dispensando a brasonária. Os rameados simétricos a partir de
uma flor central parecem derivar das palmetas califais. A flor central é aparentada ao
antiquíssimo motivo da flor quadripétala sobre quadrado, o que acrescenta raridade e
importância a esta peça; é outro dos pouquíssimos elementos partilhados com os
guadamecis de 1500, portugueses e espanhóis.

Figura 2 – Espaldar de cadeira da CMGJ.

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Figura 2A – Assento de cadeira da CMGJ.

Peça nº 3, cadeira da CMGJ


A cadeira é semelhante àquela vista anteriormente, na figura 1. A pregaria que fixa os
estofos à madeira também é rara, e deverá ser a original, tal como os dois pináculos
cravados no topo do espaldar. Os couros gravados do espaldar (figura 3) mostram um
escudo, contendo as armas plenas de Sousa de Arronches sob coroa de duque; o brasão
de armas é dos Duques de Lafões (chefes da Casa de Sousa), e que foram os primeiros a
utilizar estas armas. Os meios círculos sobre os enrolamentos florais estilizados
parecem decorrer do desenvolvimento do acanto califal. Por sua vez, os pequenos
enrolamentos nos rameados parecem derivar da estilização vegetalista vista em
medalhões florais acompanhando “suras” do Corão (figura 3A), já referidos para a peça
anterior. O espaldar tem um rameado arcaico na moldura, em estrutura de grandes SS
deitados, limitada, à esquerda e à direita, por triângulos de curvas justapostas,
executadas por um cinzel curvo.

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Esta cadeira tem semelhanças, no modelo e na moldura lavrada, com outra, presente no
Museu Nacional de Arte Antiga 101, assim como com a peça anterior deste estudo.
Quanto ao assento, o original ter-se-á estragado e foi substituído por um péssimo
exemplar, que denota a falta de capacidades do pretenso gravador, de uma época recente
onde já não havia exames nem juízes de ofício. Nunca saberemos o grau de distorção
que o gravador, talvez na época em que a estrutura foi substituída, imprimiu ao desenho.
Parece só ter restado os triângulos, limitando uma moldura devassada pelo simplório e o
fácil; as volutas são invenção, mas as cabeças de ave deixam-me na dúvida se existiriam
no original, sabendo que, muitas vezes, a gravura partilhava figuras zoomórficas com os
têxteis. A própria texturização do assento parece ter sido realizada com um pequeno
cinzel curvo, e não com o tradicional “fosco” de grão, usado desde o Gótico até ao
Rococó.

Figura 3 – Espaldar de cadeira da CMGJ.

101
MOBILIÁRIO Português. Roteiro. Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga / Instituto Português de
Museus, 2000, p. 50; PEREIRA, Franklin – “Las influencias del Califato de al-Andalus”, p. 513, figura
11.

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Figura 3A – Detalhe do espaldar de cadeira da CMGJ: moldura e estilização floral em


torno do brasão.

Peça nº 4 – espaldar da FGJ


O espaldar apresenta os cânones correntes da época mudéjar do século XVI/inícios do
século XVII, já estudados nas obras anteriores (cadeiras n.s 1 a 3): nove triângulos
escalonados, à esquerda e direita da moldura, estando esta elaborada por estilização
vegetalista assente em SS, produzindo, nos quatro cantos, uma folha com semelhanças
com a palmeta (figura 4A). No campo, o brasão central, sob o elmo, está lavrado com
as armas de Pereira de Castro. O aspecto de pequenas folhas enroladas, que se encontra
no rameado que rodeia o brasão, é outra recriação mudéjar da estilização vegetalista já
vista em ornamentos de “suras” do Corão.

Neste espaldar, além da tradicional goiva em “v” cortante, o artífice gravador usou um
cinzel não-cortante em curva (empregue para formar os triângulos laterais), uma punção
de bola pequena (apresenta-se entre cada curva dos triângulos), um outro cinzel de curva
pequena (encontra-se nos rameados) e uma punção de grande bola (marcada no brasão
central). Este espaldar devia estar fixo a uma cadeira semelhante àquela da figura 1. O
espaldar desta última cadeira, ilustrado adiante (figura 5B), distingue-se deste apenas no
brasão. É de crer que este espaldar, o seu assento correspondente (figura 5), e aqueles da
cadeira “despaldas” lisboeta, ilustrados adiante – figura 5A e figura 5B –, são gravuras
da mesma oficina mudéjar portuguesa, sem eliminar a hipótese de várias oficinas
partilharem os mesmos motivos requeridos pela elite cristã de então.

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Figura 4 – Espaldar da FGJ.

Figura 4A – Detalhe de um canto de espaldar da FGJ.

Peça nº 5 – assento da FGJ


Seco e rasgado, retirado da estrutura (que deveria ser como a das peças nºs 1 a 3), este
assento é outra gravura mudéjar, lavrada à goiva; é o par correcto do espaldar atrás
referido (figura 4). No medalhão central, ovalado, dispõem-se exteriormente quatro

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grandes palmetas estilizadas. A larga moldura rectangular repete uma estrutura


semelhante ao espaldar anterior: estilização vegetalista inscrita em SS, com o que
parece ser uma palmeta nos quatro cantos; à esquerda e à direita encontram-se nove
triângulos escalonados, obtidos pela justaposição de curvas cinzeladas. Um cinzel curvo
foi também usado para gravar o ornamento interno do medalhão, das palmetas e das
pequenas flores entre estas; um outro cinzel curvo, pequeno, foi utilizado para decorar
interiormente os “anéis” donde brotam as quatro palmetas e o centro de medalhão floral;
uma punção de ponto foi aplicada no centro destes “anéis”.

No antiquário “Galeria da Arcada”, em Lisboa, entre as várias cadeiras expostas,


encontrei uma “d’espaldas” bastante intacta, semelhante à figura 1, cujo assento (figura
5A), menos gasto, repete este desenho da FGJ. Existem pequenas diferenças nesta
gravura: as pontas das palmetas, à esquerda e direita, tocam na moldura; as flores entre
as palmetas não são as mesmas; nas palmetas, a curva cinzelada interna está
acompanhada por uma outra curva pequena. É fácil de admitir que ambas são obra de
uma mesma oficina, sem colocar de lado a hipótese em serem obra de oficinas
diferentes, partilhando o mesmo esquema estético.

A cadeira lisboeta é, tal como as cadeiras “d’espaldas” da CMGJ (nºs 1 a 3), uma
excelente réplica; os cravos serão, no entanto, os originais, cujo desenho “aos gomos”
foi abandonado nos inícios do século XVII, passando a usar-se cravos de cabeça em
meia esfera. Note-se, ainda, que o assento lisboeta (figura 5A) foi cosido a um outro
couro, salvando-o da eliminação. O espaldar desta cadeira (figura 5B) é o par correcto
do assento. A moldura e os triângulos escalonados repetem-se, enquanto o motivo
central é um brasão sob elmo, em que aquele encerra um vaso de flores. O rameado que
rodeia o brasão é outra versão mudéjar da estilização vegetalista, semelhante a outro,
estudado páginas atrás (peça nº 4). Aliás, a diferença entre o espaldar lisboeta e a peça
nº 4 da FGJ encontra-se apenas no brasão.

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Figura 5 – Assento da FGJ.

Figura 5A – Assento, ainda em bom estado, em cadeira do antiquário “Galeria da


Arcada” (Lisboa).

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Figura 5B – Espaldar dessa peça. Cadeira do antiquário “Galeria da Arcada” (Lisboa).

Peça nº 6 – espaldar da FGJ


Este espaldar é de inícios do século XVII. O brasão central é dos Senhores de Távora; o
rameado que o rodeia inscreve-se nos modelos renascentistas, mas parece uma versão
menos elaborada, o que faz supor a mão de um artífice ainda não examinado para
mestre; outra hipótese é se tratar de um lavrado produzido fora das principais cidades da
arte (Porto, Lisboa, Coimbra), e daí a leitura que o gravador fez de estilização
vegetalista. A larga moldura às ondas é um prolongamento mudéjar, já estudada nos
couros lavrados desta época de transição 102 e que permaneceu na arte popular do sul
ibérico 103.

O gravador recorreu à goiva em “v” cortante, e a alguns cinzéis não cortantes, para
elaborar a flor do elmo, as cunhas do brasão, as linhas rectas e curvas na folhagem e o
zig-zag encordoado da fina moldura interna. Uma punção de grão texturou o campo do
lavrado, assim como o do brasão. Uma punção de bola foi usada no brasão. Tal como o
espaldar e assentos anteriores, este devia estar fixo a uma cadeira semelhante à atrás
considerada (figura 1).

102
PEREIRA, Franklin – As cadeiras em couro lavrado, p. 227; PEREIRA, Franklin – O couro lavrado
no Museu Municipal, pp. 67 a 69.
103
PEREIRA, Franklin – “Identidade e memória”, p. 220.

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Figura 6 – Espaldar da FGJ.

Peça nº 7 – assento da FGJ


Muito estragado e retirado da estrutura – que deveria ser como aquela anteriormente
ilustrada (figura 1) –, este assento (não ilustrado) é mais uma versão da arte mudéjar no
couro lavrado. Elaborado à goiva, o assento apresenta uma grande flor central de oito
pétalas, inscrita num círculo, que relembra a arte popular. Rodeiam-no estilizações e
enrolamentos semelhantes às presentes num assento da CMGJ, atrás estudado (figura
1B). A larga moldura assenta no arcaico esquema das ondas ou grandes SS deitados,
estando ela própria emoldurada, interna e externamente, por uma fina moldura de
ondulados (obtidos pela justaposição de curvas, realizadas por um cinzel não-cortante);
finalmente, à esquerda e à direita, estão seis triângulos escalonados, também realizados
por um cinzel curvo. Além da goiva em “v” cortante e de três cinzéis em curva
(aplicados na moldura ondulada, nas pétalas e nos enrolamentos vegetalistas), o artífice
usou um texturador de grão no fundo.

Peça nº 8 – assento da FGJ


Este assento (ilustrado apenas com um detalhe), bastante usado, é muito semelhante ao
anterior, sugerindo serem ambos obra da mesma oficina, ainda com motivos mudéjares.
Mantém a larga moldura às ondas (já referida na peça anterior), e duas outras molduras
finas (interna e externamente), aqui elaboradas num simples padrão de curvas seguidas,
criando como que escamas em linha; na linha exterior da frente e na de trás, o gravador
aplicou também o mesmo cinzel curvo, para criar um padrão contínuo de curvas, como

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mostra o detalhe (figura 7). É de admitir que este acrescento ao comprimento do


rectângulo lavrado tenha sido realizado para um enquadramento igualizado no assento;
tratar-se-á, assim, de um ajuste, sem que o gravador necessitasse de alterar o desenho
central e as medidas das molduras. De novo, exteriormente à moldura, à esquerda e à
direita, encontram-se oito triângulos escalonados. Tal como na peça anterior, o gravador
usou goiva em “v” cortante, e três cinzéis não-cortantes em curva, e um em linha recta;
o fundo foi texturado com a punção de grão.

Figura 7 – Detalhe de assento da FGJ.

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COMO CITAR ESTE ARTIGO


Referência electrónica:
PEREIRA, Franklin – “O couro lavrado de estética mudéjar na Casa-Museu e Fundação
Guerra Junqueiro – memórias do al-Andalus em terras portuguesas”. Medievalista 22
(Julho-Dezembro 2017). [Em linha] [Consultado dd.mm.aaaa]. Disponível em
http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA22/pereira2205.html
ISSN 1646-740X.

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