Bullyng Freud

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O PRATICANTE DE BULLYING À LUZ DE FREUD

Monica Cossalter*

Resumo – Este artigo pretende avaliar de que modo a construção do conhecimento e a formação psíquica se dão
nas vítimas do bullying, de forma a justificar a “cristalização” de uma autoimagem negativa, e de como essa
autoimagem sustenta a posição de oprimido nesta relação de poder desigual em que ambos se alimentam: agres-
sor e agredido. Para tal fim, abordaremos aspectos relevantes das teorias de Piaget e Paulo Freire, para, enfim,
focalizar o perfil do praticante de bullying sob a luz da teoria do Princípio do Prazer, de Sigmund Freud.
Palavras-chave: bullying, agressão, violência, psicanálise, Princípio do Prazer.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o Brasil e o mundo têm vivenciado situações escolares inimagináveis
em outras épocas. Do excesso de disciplina escolar e do respeito submisso aos mestres,
passamos gradativamente a uma situação de completo caos nos relacionamentos entre edu-
candos e educadores, e dos primeiros entre si. As normas escolares foram se modificando,
tornando-se mais flexíveis, o ambiente escolar foi abandonando sua atmosfera obscura,
mais condizente com a Idade Média, em que quase tudo era proibido, inadmissível ou reves-
tido de uma aura pecaminosa, e se modernizou, adotando maior liberdade nas relações alu-
no–professor e aluno–aluno. Vivemos uma época em que se apregoa a liberdade de expressão.
Todavia, parece que tal liberdade tem desembocado, já há algum tempo, nas águas revol-
tas – e não menos obscuras – da violência que grassa pelo mundo, e não poupa nem alunos,
nem professores, transformando o ambiente educacional em campo de guerra. Uma guerra
que, de tão banalizada, passa despercebida por muitos, mas que tem produzido frutos abun-
dantes e amargos. Um desses frutos tem lançado seu sabor na boca de alunos, que são viti-
mados por colegas, e recebeu recentemente, de um respeitado estudioso norueguês, a curiosa
alcunha de bullying.

*  Mestre em Educação, Arte e História da Cultura e graduada em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Tradu-
tora espanhol-português.

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Emoldurado por um invólucro inglês, o fenômeno bullying pode parecer distante de nos-
sas vidas, como se quebrasse a próxima esquina, tornando o universo escolar seguro, tran-
quilo e confortável. Entretanto, este artigo pretende atalhar o percurso, iluminando o que se
esconde por trás do termo, e que nos grita, diariamente, em diversas línguas, o seu pedido
de socorro, sufocado pelos atos que são praticados sob o violento jugo da crueldade.

A VIOLÊNCIA COMO INFORMAÇÃO SUBJACENTE E FORMADORA

Segundo a mestra em Educação, Tânia Zagury (2006), “o bullying pode levar à sensação de
impunidade, e conseqüentemente, no futuro, à [...] delinqüência e atos criminosos [...] ou à
violência familiar”.
Tanto o bullying quanto o cyberbullying ou bullying virtual, fazem uso das agressões
verbais, da difamação, dos atos discriminatórios e da promoção do isolamento social, mas
também se caracterizam por perseguições, dentro e fora do ambiente escolar, àqueles que
não se submetem às vontades dos agressores, mais fortes, em maior número, ou ocultos
sob o anonimato.
O bullying, quando extrapola os limites verbal e virtual, encontra as vítimas já psicologi-
camente fragilizadas – presas perfeitas e fáceis para os agressores, que passam à violência
física, agredindo, agora, com chutes, socos, empurrões, surras coletivas, roubo e destruição
de objetos pessoais, como roupas, calçados, bonés, mochilas, material escolar, lanches e di-
nheiro. Em outros casos, as vítimas sofrem ferimentos provocados com estiletes, pedras e
facas, queimaduras com cigarro e vela, sufocamentos com sacos plásticos e água, e outras
indignidades, como ser forçada a ingerir urina, fezes, insetos, detergente, ou refrigerante em
que todos os agressores cuspiram ou escarraram.
Vítimas e testemunhas – aqui, principalmente alunos–testemunhas, por sua condição de
maior vulnerabilidade – do bullying convivem com a violência caladas; as segundas, em ra-
zão do temor de se tornarem as próximas vítimas, e também tendem a apresentar reflexos
negativos em sua psique, diante da violação de seu direito de aprender e conviver em um
ambiente seguro, solidário e sem temores. Tal direito sequer é percebido conscientemente, e
a impunidade passa a ser um dos pilares que norteiam a formação.

OS PORQUÊS DO SILÊNCIO

A pergunta que cabe aqui é: “por que motivo as vítimas suportam caladas durante tanto
tempo, sem quase nunca reagir ou buscar ajuda?” Sabemos que tal resposta encontrará
melhores explicações na psicologia e na psicanálise, e, para tanto, buscaremos lançar alguma

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luz sobre o assunto. Em seu Discurso sobre a servidão voluntária, Etienne de La Boétie (1982,
p. 23-24-25) afirma que “é natural no homem o ser livre e o querer sê-lo; mas está igual-
mente na sua natureza ficar com certos hábitos que a educação lhe dá”; [que] “a tirania
subtrai-lhes toda e qualquer liberdade de agir, de falar e quase de pensar”; [e que] “as pessoas
escravizadas [...] vão para o castigo como que manietadas ou entorpecidas, como quem vai
cumprir uma obrigação.
Nesse sentido, manifestou-se também Paulo Freire (1987, p. 34), ao analisar os sentimen-
tos paradoxais do oprimido, que tanto deseja quanto teme a liberdade. O opressor acaba
sendo introjetado pelo oprimido de tal forma que se torna difícil para a vítima conscientizar-se
das barreiras energéticas limítrofes entre ambos:

Dentro desta visão inautêntica de si e do mundo, os oprimidos sentem como se fossem


uma quase “coisa” possuída pelo opressor. Enquanto, no seu afã de possuir, para este [o
opressor] ser é ter, [...] para os oprimidos, num momento de sua experiência existencial, ser
nem sequer é ainda parecer com o opressor, mas é estar sob ele. É depender. Daí que os
oprimidos sejam dependentes emocionais (FREIRE, 1987, p. 51-52).

Em fevereiro de 2003, uma notícia do Jornal do Brasil informava que Edmar Freitas, 18 anos,
havia invadido a escola e feito 15 disparos. Depois se matou com um tiro na cabeça. Segun-
do Cléo Fante (2003), Edmar sofria bullying havia 11 anos, tendo cometido os assassinatos e
o suicídio aos 18. Então, seu sofrimento teve início aos sete – fase do período operatório,
e estendeu-se até o final do período das operações abstratas, segundo classificações de Piaget.
Isto significa que um enorme período de formação mental, emocional e afetiva de Edmar
ficou comprometido em função do tipo de estímulo a que foi submetido. A ausência de in-
tervenção adulta e efetiva forneceu a Edmar mais informações acerca de seu valor no mundo,
e lhe deu a medida exata da importância de sua dor para os outros: nenhuma. Esse foi um
processo de construção mental de subsequentes etapas de assimilação das informações ne-
gativas, acomodação dessas informações, tentativas de alteração seguidas de novas infor-
mações destruidoras da autoestima, novo processo de equilíbrio, e assim sucessivamente,
até um nível de cristalização de difícil reversão.
Não nos absteremos aqui de admitir o ódio que devia sentir Edmar, posto que não preten-
demos atribuir-lhe características angelicais, mas humanas. Questionamos, no entanto:
quanto tempo é possível resistir sem reagir? Edmar era diariamente agredido e oprimido. Se
o Ego de Edmar foi massacrado a ponto de tornar-se um quase nada, é natural [que], em um
esforço inconsciente de sobrevivência psíquica, uma inversão desta autoimagem ocorresse,
transbordando em sentimento de autograndeza, mesmo que só por alguns minutos.

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NARCISO ATACA

Frequentemente advindos de famílias desagregadas, tanto as vítimas quanto os agresso-


res, apresentam desvios de comportamento profundamente preocupantes. Relação destruti-
va e extremamente negativa que contamina todo o ambiente escolar, físico ou virtual, cresce
na contramão da preocupação mundial com a inclusão e a prática da tolerância. Expressão
de uma “ética da perversidade”, e o mais (im)puro reflexo de um modelo social preconceituo-
so e que nos cobra constantemente o prazer, o gozo e o sucesso. “A sociedade se divide entre
os que ‘conquistam’ o direito de gozar e os outros, otários, a serem usados e abusados pelos
mais espertos” (KEHL, 2013, p. 26).
Essa “obrigatoriedade do gozo”, a que se refere Kehl, é uma alusão ao “Princípio do Pra-
zer”, de Freud, e pode ser observada amplamente nas posturas e inquietudes de crianças e
adolescentes de nossa sociedade, sempre em busca de “diversão”, rejeitando regras ou hie-
rarquias, sempre buscando a satisfação de prazeres imediatos, mesmo se, para isso, necessi-
tarem desconsiderar e mostrar-se superior aos pais, amigos, professores e desconhecidos. O
egoísmo patente nas relações despojadas de senso de alteridade é visível nas atitudes dos
que se acreditam donos de uma liberdade capaz de lhes conferir impunidade. É o sentimen-
to de onipotência natural no jovem, levado a consequências desastrosas:

O sujeito onipotente da Cultura do Narcisismo vive um delírio semelhante ao que Freud


descreveu como o estado psíquico regido pelo Princípio do Prazer: sem história, sem me-
diação de tempo e esforço entre desejar e obter, sem dívida para com nenhum passado,
nenhuma instância paterna. É o self-made-man imaginário (como todo self-made-man),
que se acredita sem outro compromisso a não ser com o próprio gozo, ao qual a mídia
publicitária [...] apela incessantemente (KEHL, 1996/1997, p. 22).

Mas não é apenas a publicidade que faz apelos constantes à obrigação de gozar. Toda a
programação televisiva, apoiada no formato de programa–espetáculo, faz este apelo. E, para
isto, lança mão de estereótipos, ridicularizando-os ou endeusando-os. Vende a ideia de seres
humanos que são, em verdade, inexistentes, retratados como a perfeição da felicidade: jo-
vens, famosos, magros, fisicamente perfeitos, lindos (reproduzindo determinados padrões
impostos de beleza), ricos, “desencanados” (sem qualquer espécie de problemas; mas, se
porventura os têm, logo se livram deles e “partem para outra”, sempre de bem com a vida),
sexualmente ativos – e mais do que isto, máquinas do sexo – sempre bem acompanhados,
portando peças de grife, pintando a imagem de prazer constante, sob o rótulo indefectível
de Very Important Persons – “VIP”s. Até mesmo o discurso dos artistas reflete essa busca
enlouquecida pelo prazer: “Ah, nós nos divertimos muito”, é uma resposta frequente para
perguntas sobre o processo de criação e o trabalho de gravação.

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Ora, se a televisão e o computador são as janelas por meio das quais a criança e o jovem
brasileiros assistem seu país e veem a si mesmos refletidos naqueles que eles acreditam se-
rem os brasileiros – e, portanto, seus iguais – então o óbvio é que eles reproduzam tais
comportamentos e modelos, e acabem por rejeitar tudo aquilo que se oponha a eles. Se lá
dentro da “caixa mágica” tudo é gozo, “eu vou gozar também”. Assim, é como se, na incapa-
cidade de realizar, em si, o modelo social de perfeição que exige o gozo constante, os alunos
agressores encontrassem no desmerecimento alheio o autoengrandecimento. De que forma,
então, é possível desmerecer o outro? Destruindo-o, atacando-o naquilo que é reconhecido,
erroneamente, por ele próprio e por seus pares, como inferior, de menor qualidade, expressos
pelas falas e atitudes racistas, sexistas, homofóbicas, amplamente divulgadas pelos meios
de comunicação.
O bullying, fruto do mundo contemporâneo, mais do que ações que garantam a redução
de seus números, carece urgentemente de ações que ataquem seu âmago, propiciando uma
formação de valores morais que possa ir muito além das ideias de solidariedade que andam
em moda.
Se não é possível impedir que programas televisivos, campanhas publicitárias e páginas
virtuais continuem a ser veiculados e acessados livremente, reforçando estigmas, dissemi-
nando preconceitos e fomentando o ódio, a solução, então, obrigatoriamente, tem de estar
na qualidade da formação que pode ser proporcionada nas escolas. Uma educação funda-
mentada em princípios éticos, valores humanos e criticidade, que garanta o direito ao con-
vívio e ao aprendizado, em ambiente seguro e solidário.
Não podemos falar de educação e formação sem aludir ao fato de que, por elas, são
corresponsáveis pais e educadores. Muitas vezes, compete aos educadores a orientação
dos pais, chamando-os à sua responsabilidade, pois, mais do que um problema educacio-
nal, o bullying é, indubitavelmente, um problema nascido de um modelo social neurótico
e neurotizante.

The bullie under the Freud's light

Abstract – This article aims to evaluated that way the building of the knowledge and the character psychic hap-
pens in the victims of the bullying, to justify the “crystallization” of the negative self-image, and like this to sup-
port the oppressed’s position in this relation of the unfair/unequal power that boths to be nourished mutually:
the aggressor and the victim. For this, we approach important aspects of the Piaget’s and Freire’s theories to fi-
nally focus on the profil of the bullie under the theory of the Principle of the Pleasure, of the Freud.
Keywords: bullying, aggression, violence, psychoanalysis, Principle of Pleasure.

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REFERÊNCIAS

FANTE, C. Fenômeno Bullying: como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz.
Campinas: Versus, 2003.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FREUD, S. Teoria psicanalítica, por prof. Laerte M. Santos. Disponível em: <http://www.cefetsp.
br/edu/eso/filosofia/topicosfreud.html>. Acesso em: 9 maio 2010.
KHEL, M. R. Você decide e Freud explica. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/
sos/discrim/preconceito/vocedecide.html>. Acesso em: 22 mar. 2013.
LA BOÉTIE, E. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1982.
ZAGURY, T. Bullying: agressividade entre estudantes. Editora Opet. 27 mar. 2006. Disponível
em: <http://www.opetonline.com.br/main.asp?View=%7B6C3EEFA6-FC6E-45D0-B008-A11
6FFE94906%7D&Team=&params=itemID=%7BE3D52F26-32FF-42F2-AFF4-47187E3ED6D5
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