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Luiz Marcos de França Dias Márcia Cristina Américo Laudessandro Marinho Da Silva Viviane Marinho Luiz Amanda Nainá Dos Santos Vanderlei Ribeiro

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Luiz Marcos de França Dias

Márcia Cristina Américo


Laudessandro Marinho da Silva
Viviane Marinho Luiz
Ilustrações
Amanda Nainá dos Santos
Vanderlei Ribeiro
Muita gente pode confundir tradição com
conservadorismo e é bom começarmos nos-
sa prosa por aí. Enquanto o conservadoris-
mo se recusa a acolher qualquer tipo de mu-
dança por não aceitar diálogos com o novo, a
tradição engrandece o imaginário com o po-
der da memória recuperando desde o mais
longínquo passado as práticas que conso-
lidaram sabências do bem viver. Por isso, o
conservador finca o pé na sua posição mes-
mo no prejuízo de alguém, e o tradicionalis-
ta mantém ativa a conversa com o presente,
revisando os conhecimentos e aprimorando-
-os para ser ainda melhor o futuro. A tradi-
ção reconhece que sempre há uma oportu-
nidade de ser repensada, aprimorada e va-
lorizada por quem a conhece. Pessoas que
olham para a tradição aprendem a história
do que veio antes e sabem mais sobre si, so-
bre o povo ao qual pertencem, o território
que ocupam, as lutas que foram travadas e
as transformações que resultaram resistên-
cia e continuação. É sobre isso que conta a Luiz Marcos de França Dias
Márcia Cristina Américo
generosa Dona Fartura, e nenhuma perso-
Laudessandro Marinho da Silva
nagem poderia alcançar mais afetividade do Viviane Marinho Luiz
que essa imagem altiva da avó de todas as
iscriança, dos novos aos adultos. Se seus ne- Ilustrações
Amanda Nainá dos Santos
tinhos querem saber da história, Dona Fartu-
Vanderlei Ribeiro
ra contará, mas não somente para os ouvi-
dos atentos dos doiszinhos, como também
para quem quiser aprender. Dona Fartura São Paulo
Grupo de Trabalho da Roça
vai abrir os olhos da gente e relembrar a in-
2022
teligência ancestral que ensina a ver a terra
como bença, a natureza sagrada. É assim, no
toque do pilão, que essa história vai trazendo
ankofa, para o povo vivente no Reino Ashanti, onde
hoje estão localizados Gana e Costa do Marfim, é
um provérbio que ensina: “não é tabu voltar atrás e
buscar o que esqueceu”. O provérbio fala da impor-
tância de se aprender com o passado, trazer os ensinamen-
tos para o presente para que ele seja reproduzido sabia-
mente no futuro. Sankofa é simbolizado por um pássaro
que olha para trás com um ovo na boca. É ontem, hoje e
amanhã caminhando juntos.
Os conhecimentos quilombolas contidos no livro Na com-
panhia da Dona Fartura, uma história sobre cultura alimen-
tar quilombola é uma representação desse pássaro. Escrito
por mãos visíveis e invisíveis, dos ancestrais vivos e dos que
foram para outro plano, este livro é um legado lúdico para as
futuras gerações de quilombolas que terão contato com cada
palavra e ensinamento escritos e descritos em suas páginas.
A proposta do livro veio do GT da ROÇA, grupo de traba-
lho formado pelas associações quilombolas e organizações

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parceiras envolvidas com o movimento social quilombola. e cuidar da natureza com respeito e parcimônia para que
Nas histórias e ilustrações, feitas por quilombolas, aquilom- ela, em troca nos dê o alimento, o chamado “livre mercado”
bados, educadores e educadoras que atuam na temática da atua norteado pela busca incessante pelo lucro, muitas ve-
educação escolar quilombola, é possível se reconhecer jun- zes em detrimento a vida de milhares de pessoas, animais e
to de muitas outras pessoas que dividem o mesmo chão e espécies. O livro, ainda, trata de “nutricídio”, uma forma de
a mesma luta. genocídio disparada pelo consumo contumaz de alimentos
Na companhia da Dona Fartura, uma história sobre cul- multiprocessados, repletos de conservantes e agrotóxicos e
tura alimentar quilombola conta a história de um dos ele- que, mais cedo ou mais tarde, causarão danos à natureza e
mentos centrais do Sistema Agrícola Tradicional Quilombo- aos seus consumidores.
la (SATQ), que, desde 2018, é reconhecido como Patrimônio A jornada proposta pelo livro, portanto, nos leva a olhar
Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e para trás e aprender com os nossos ancestrais, não apenas
Artístico Nacional (Iphan). Desta forma, o livro materializa para manter as tradições vivas em nós e nas crianças, mas
a relevância da cultura alimentar quilombola, tornando-se, também para manter viva a própria natureza, de onde vêm
também, um registro e uma forma de preservar e manter os alimentos que vão para as mesas e as sementes que vão
viva essa manifestação que faz parte da cultura brasileira. virar novas florestas e fontes de água. Reproduzir os sabe-
Este livro, entretanto, não substitui o papel fundamen- res originários de cuidados com a terra não é sinônimo de
tal que a oralidade possui, de reunir e possibilitar a passa- atraso, mas sim uma garantia de proteção territorial e cul-
gem de conhecimentos por meio das conversas e conta- tural no futuro.
ções de histórias. O livro é mais um braço que permite que A cultura alimentar atravessa o campo da comida. Ela
a sociabilidade e a transmissão de saberes aconteçam e se- é alimento para o corpo e para alma, faz parte das celebra-
jam repassados, mesmo que de outra forma. ções, é memória, afeto e ancestralidade. E na tradição qui-
Assim, a obra cumpre um compromisso de levar até a lombola, a cultura alimentar, assim como todo o Sistema
pessoa que a lê os conhecimentos quilombolas sobre cui- Agrícola Tradicional Quilombola, é um elo entre o passado,
dado com a terra, feitura de roça e hábitos culinários e ali- o presente e o futuro e um bem coletivo a ser cuidado e pre-
mentares, mostrando a relação da pessoa com a natureza servado não só pelos quilombolas, mas por todas as pes-
e a sua importância para a manutenção da ancestralidade, soas que, de alguma forma, se beneficiam de tudo que a
alimentação e sociabilidade quilombola. terra nos dá.
Em suas linhas, é possível perceber como a cultura
alimentar, que vai desde o plantio, colheita a garantia de
moradia, permite criar relações de afeto, aprendizado e cui-
dado entre as pessoas envolvidas. Mas vai além. Está re-
lacionada com o conhecimento sobre as propriedades de
plantas, sementes e ervas, sobre a importância dos animais,
e com o entendimento sobre a influência e impacto da tem-
peratura, chuva e lua nesses processos. Andressa Cabral Botelho
De forma lúdica, é possível entender visões opostas Frederico Viegas de F. Silva
para uma mesma necessidade básica: a alimentação. En- Instituto Socioambiental – ISA
quanto quilombolas apontam a importância de se trabalhar Programa Vale do Ribeira

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Final de tarde é lindo de ouvir o lambú chororocando e os pássaros urutaus e grilos presenteiam os arredores
agitados anunciando o anoitecer. Devagarinho, a lua vem surgindo com a música natural, em harmonia e ta-
entre o verde das montanhas. Iluminando o céu, aos poucos, seu manha perfeição. O nosso lugar encantado
brilho encontra o brilho das estrelas. Sapos, pererecas, rãs, corujas, é quilombo entranhado no Vale do Ribeira.

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Foi numa dessas tardes que meu fi-
lho, Êxodo, e minha nora, Resistência,
trouxeram Esperança, minha netinha,
para passar o final de semana comi-
go. Esperança é muito viva e, quando
lhe peço alguma coisa, ela realiza com
prazer, e no seu tempo. Legado, meu
outro netinho, já estava aqui em casa
desde o dia que fui à tapéra cortar la-
ranja para doce com a sua mãe, mi-
nha filha, Continuação. Esse menino
é uma mistura de esperteza e sabe-
doria, falante sem igual. Meus netos
são a minha alegria e sempre me tra-
zem outras. Não passou muito tempo
da chegada de Esperança, a criança-
da, como de costume, veio de matula
para brincar com os doiszinhos.
Entre pega-pega, esconde-escon-
de, subidas e descidas das goiabeiras,
jabuticabeiras, ameixeiras, jaqueiras,
jambeiros e outras árvores do terrei-
ro, a fome bateu, e foi sem cerimô-
nia que se achegaram à beira da téi-
pa pegando bananas, batatas-doces,
mandiocas para assar.

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Enquanto eles comiam seus assados,
preparei um café com os grãos co-
lhidos aqui mesmo no terreiro, ado-
cei com garapa da cana moída mais
cedo no escraçador. Para reforçar a
mistura do café, esquentei na pane-
la um pouco de banha de porco, con-
servada em lata, misturei no cará an-
gola, que eu já tinha socado no pilão,
e temperei com um pouquinho de
sal, cebolinha e salsa. Meus netinhos,
querendo me ajudar, fizeram o vira-
do de banana que não podia faltar.
As crianças desenrolaram a esteira de
taboa no chão e foram se ajeitandi-
nho, uma pertinho da outra. Coloquei
no meio delas as gamelas com os ali-
mentos. Entre falas e risos, faziam
bolinhas nas palmas das mãos, ora
com virado, ora com cará. Comiam e
se deliciavam. Pense a alegria!

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— Comemos milho verde assado e cozido, fizemos curau e pamo-
nha. Agora estamos fazendo canjica, cuscuz, tabaqui, e alimentamos
os porcos e galinhas! – Disse comadre Luta, em tom de felicidade.

— E já separamos três mãos desse milho para levarmos à feira de tro-


ca de sementes e mudas das comunidades quilombolas, e meio alquei-
re para plantar no ano que vem, assim não corremos o risco de perder
Na boquinha da noite, a comadre, Luta, e o compadre, Território, nossas sementes crioulas! – Disse compadre Território entusiasmado.
passaram aqui em casa para deixar as sementes de milho antigo
que eu havia dado para eles plantarem na colheita passada. É des- — Essas aqui eu vou aproveitar para plantar numa tiguera, lá na
sa forma que nós trabalhamos na comunidade, na base da troca. minha capova! – Afirmei.

— A melhor forma de guardar as sementes crioulas é plantan- Entre uma prosa e outra, anoiteceu. Para aproveitar a carona do
do-as na terra, né, comadre? – Afirmei feliz, sabendo que a roça compadre e da comadre, as crianças juntaram as mãozinhas le-
deles havia dado uma boa colheita. vando-as à frente para pedir a bença aos parentes que, com o
dedo polegar, fizeram o sinal da Santa Cruz em suas testas. Depois
— Pois é, comadre Fartura! disso, a meninada foi embora para suas casas.
12 13
Ficamos apenas eu, Esperança e Legado. Atiça-
mos o fogo com a lenha de tabocuva para prepa-
rar o jantar e secar o arroz que estava no apá em
cima do tendá. Meus netinhos são muito curiosos,
participam do preparo da comida, experimentam
tudo o que eu faço. Usei os temperos que eles ha-
viam buscado na horta com a criançada, no inter-
valo das brincadeiras. Eles chegaram com as mão-
zinhas cheias de hortelã-gorda, coentro, cebolinha,
salsinha, manjericão, alfavaca e manjerona.

Preparamos na téipa o arroz, o feijão, o quibebe de


abóbora mogango e uma deliciosa farofa de folhas
de taiá. Para a mistura fiz uma aniá cozida que Es-
perança gosta muito. Cada vez que visitamos a rede
nas águas do rio, o Ribeira nos presenteia com aniá,
cascudo, saguaru, mandi, taíra, nundjá, acará, lis-
bão, corimba, lambari e outros peixes. O jantar fi-
cou pronto com variedade de alimentos.

Uma a uma, fui colocando as panelas ainda ferven-


do sobre a mesa e nos sentamos. Os doiszinhos co-
meram de boca cheia, apreciando cada colherada
vagarosamente. Eu comia e os observava orgulho-
sa. Aprendi com os mais velhos o cultivo e prepa-
ro dos alimentos e as histórias que cada um deles
carrega. Guardo tudo na minha memória e sempre
conto e ensino para as crianças.

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Naquela noite, após o jantar, continuamos ao pé do fogo Em um lugar muito distante existe o reino mais antigo do
para nos aquecer. Enquanto a fumacinha saía da téipa, Es- mundo, o Reino da Tradição. Lá, o próprio povo escolheu
perança me pediu: para regê-los o Rei Tempo Livre e a Rainha Cultura Alimen-
tar, pois eles garantiriam que todas as pessoas tivessem
— Vovó, conta uma de suas histórias? tempo para o bem viver: cultivar alimentos e se alimentar,
conversar, cultuar a natureza, festejar e descansar.
— Sim, Nhanhá! Espera só um pouquinho. Vou colher um
mato lá fora para fazer chá. Qual vocês querem?

— Eu gosto de erva-cidreira, hortelã-pimenta e erva-doce


– disse a menina.

— Vovó, eu gosto de hortelã-preto, capim-cidró e cidreira


– falou o menino, todo afoito.

Minha mãe criou todos nós com chá do mato. Peguei o fifó
para iluminar o terreiro que estava escuro. Saí, cortei um
pouco de erva-cidreira, para agradar os dois, e retornei. Es-
sas crianças apreciam tudo o que temos aqui no quilombo
e isso me enche de satisfação.

Preparado o chá, eu me ajeitei na cadeira com a caneca na


mão, Legado e Esperança puxaram o banco mais próximo à
téipa e se sentaram. Os dois estavam com os olhinhos bri-
lhantes, desejosos de história. Comecei:

— Iscriança, hoje vou contar a história do Reino da Tradi-


ção, coisa antiga que eu ouvia de minha avó.

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A Rainha, grande guardiã
das lavouras e da moradia, é
conhecedora do poder curativo
das plantas medicinais e de
uma infinidade de espécies
alimentares. Mulher sábia,
bonita, altiva e valente,
trabalha em contato direto com
a terra e é a grande mediadora
de conflitos. Ela se inspira no
exemplo da mãe terra, por isso,
é muito generosa. A Rainha
Cultura Alimentar garante que
todos e todas tenham terra
para plantar, tenham colheita
para se alimentar e casa para
morar. Essas são as bases para
o bem viver coletivo no reino.

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O Rei Tempo Livre é sábio,
observador e conhecedor
da natureza. Protetor dos
caçadores e dos animais.
É o guardião do território
e da organização social
do reino. Um belo homem
que conversa com a mata
e com as águas. Ele lê os
sinais presentes no céu e
na terra. Para ele, tudo tem
o seu tempo, e tudo está
relacionado ao tempo da
vida em todos os planos.

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No Reino da Tradição, homens, mulheres e crian-
ças aprendem a observar, interpretar e respeitar os
sinais da natureza, pois estão conectados a ela. As-
sim, quando o sabiá canta, nos últimos meses do
ano, é o pássaro abrindo a boca para dizer que é
tempo de plantar arroz. Quando as saracuras can-
tam, as pedras choram ou os sapos se alvoroçam,
é anunciada a chegada da chuva. As fases da lua
e o modo como as estrelas no céu se apresentam,
indicam o tempo do plantio, cultivo e colheita das
lavouras, da caça e da pesca, também a extração
de cipós, madeiras e outras fibras naturais para a
feitura de artefatos, artesanatos e utensílios do
dia a dia. Existem os pássaros que cantam agouro
e anunciam passagem para o plano ancestral. Ga-
nha-se tempo, no reino, conversando com a natu-
reza, porque a gente não conseguiria decifrar os si-
nais se estivéssemos sempre correndo, desatentos.

— Vovó, quero morar nesse reino para aprender a


decifrar os sinais da natureza – disse minha neti-
nha, encantada.

— Eu quero ser igual ao Rei Tempo Livre, vovó –


falou o menino.

— Se acalmem, iscriança, agora é que vem a com-


plicação!

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Tudo ia bem, até que um dia, o Reino da Tradição passou a sofrer
ameaças. O Reino da Ilusão, comandado pelo Rei Mercado Livre
e pela Rainha Propaganda Enganosa, começou a invadir e do-
minar os reinos vizinhos tomando as suas terras para explorar a
natureza e as pessoas, transformando tudo em mercadoria para
ganhar dinheiro. Aquela rainha, sendo a maior mentirosa, só quer
engambelar as pessoas com suas artimanhas e propagandas ar-
dilosas. Ela diz que a alimentação do Reino da Ilusão é prática e
rápida, além de nutritiva e saudável, mas isso não é verdade.

— Nunca acreditem nisso! Nem sempre o mais fácil e rápido é o


mais saudável, meus netinhos.

O Rei Mercado Livre não passa de um terrível invasor disfarçado


de conquistador, convence as pessoas que a natureza é infinita
para fazer crer que tudo pode ser vendido. Foi por causa dessas
invasões que as pessoas passaram a competir entre si acredi-
tando que poderiam disputar com os grandes e poderosos.

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Com o apoio da Rainha Propaganda Enganosa, o Rei Mer- Vejam só, nos territórios vizinhos, já dominados pelo Reino
cado Livre passou a comandar a produção, a venda, o preço da Ilusão, a diversidade de árvores, pássaros, bichos e plan-
e quais seriam os alimentos plantados e comercializados. tas deixou de existir, a Mata Atlântica foi derrubada porque
Diferentemente, no Reino da Tradição, as pessoas são des- os grandes e poderosos queriam vender madeiras e lucrar
cendentes dos saberes da Rainha Cultura Alimentar e do com as árvores no chão. No lugar da mata, plantaram um
Rei Tempo Livre e perpetuam os cuidados para manter viva único tipo de árvore: eucalipto ou pinus. Em outros reinos,
a mata, as nascentes, os bichos da terra e os pássaros, tra- passaram a cultivar só um tipo de planta: milho, soja, cana
tando a natureza com zelo, eis que ela é generosa e cuida ou banana. E ainda tiveram os reinos que viraram pasto
de todos os seres e os alimenta. para gado.

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Mas não parou por aí. O tenebroso Reino da Ilusão devas-
tou um reino inteiro, o da Juçara, barrando o rio para fazer
água e energia virarem mercadoria, e em outro reino ex-
pulsou o povo, abrindo crateras no solo para exploração de
minérios. A água, o solo e o ar ficaram poluídos, contami-
naram os peixes e as pessoas. O artesão ficou sem arte, o
agricultor ficou sem terra, o pescador ficou sem rio.

Antes de seus territórios serem invadidos, todos os reinos


tinham espaços grandes para o plantio e rios saudáveis
para pescar. As pessoas saiam cedo para trabalhar em suas
roças, ou ajudar nas lavouras vizinhas. No final do traba-
lho, antes de voltar para casa, colhiam uma abóbora aqui,
um pepino acolá, tiravam o cará ou a mandioca e cortavam
algumas frutas como limão, goiaba e abacaxi. Os cestos
sempre voltavam pesados de alimentos.

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Depois das invasões, sem os seus territórios, as pessoas
trabalhavam para o Terceiro ou para o Atravessor, coman-
dantes de todas as terras dominadas. O pouco que conse-
guiam ganhar ficava nas compras feitas na venda do patrão
que anotava tudo na caderneta e as pessoas ficavam sem-
pre devendo. A soberania alimentar, que é a liberdade de
escolher o que plantar, o modo de plantar e comercializar,
passou a não existir nesses lugares. As pessoas deixaram de
ser importantes e cuidadas. Um absurdo!

No Reino da Ilusão não é revelado aos habitantes que a ali-


mentação que eles comem é tratada com pesticidas e ou-
tros venenos, além de serem cheias de conservantes. A Ra-
inha Propaganda Enganosa nada diz sobre essa comida
causar doenças que fazem as pessoas morrer aos poucos.
Por lá, somente a essência dos temperos serve para colocar
com um monte de coisas, transformando-se em um sim-
ples quadradinho: um para temperar carne, outro para pei-
xe, outro para frango. Será que ainda sabiam que poderiam
usar as ervas para fazer remédio? No Reino da Tradição to-
dos aprendem com gente mais velha que os temperos não
são só cheiros, eles curam doenças porque são plantas me-
dicinais. Mas em Ilusão, a rainha e o rei enganam várias
pessoas com dizeres de modernidade e bem viver. Até gen-
te dos reinos que viviam a soberania alimentar foram iludi-
das por eles e passaram a acreditar que eram atrasadas por
manter o modo de vida originário, onde a comida saudável
e sem química é dignidade e muito valor. A soberania ali-
mentar garante nobreza aos que vivem suas práticas.

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Preocupados com a situação, a Rainha Cultura Alimen-
tar e o Rei Tempo Livre chamaram as anciãs e os anciãos
que formavam o Conselho para elaborarem formas de
defesa contra a invasão. Recorreram aos saberes de
mestras e mestres para garantir a proteção do território
e do povo. Raizeiros usaram as raízes e as ervas, benze-
dores benzeram, e rezadeiras invocaram os ancestrais.

O Conselho de Anciãos, de forte sabedoria e tradição


oral, articulou os movimentos de defesa relembrando o
povo do reino sobre a importância do território para fa-
zer a roça de coivara da qual se alimentam para viver a
liberdade. As pessoas foram aconselhadas sobre aque-
le outro sistema que diziam moderno e que não ornava
com o modo de vida tradicional por faltar com a preser-
vação da natureza e o cuidado com a saúde das pessoas.

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É por isso que, até hoje, o povo da Tradição con-
tinua organizado e resiste às investidas da Ilusão
criando novas estratégias de cooperação com
outros reinos tradicionais, trocando experiências,
realizando feiras para troca de mudas e semen-
tes crioulas. É assim que, no reino mais antigo do
mundo, onde a natureza é sagrada, a soberania
alimentar continua presente como uma realidade
de todos os dias, porque lá as pessoas seguem vi-
vendo o modo tradicional com orgulho da origem
e de pertencer ao Reino da Tradição.

— Vovó, nosso quilombo é o Reino da Tradição,


não é?
— Isso mesmo! Somos a continuidade deles. No nosso território a na-
Quando terminei a história, os netinhos foram tureza é sagrada. Vivemos o tempo livre e mantemos a nossa cultu-
logo perguntando, maravilhados com ar de feli- ra alimentar. Nós plantamos saúde! E vejam só, iscriança, como esse
cidade e gratidão. E antes de ouvirem resposta, mundo é cheio de coincidências porque, tanto você, minha Esperan-
continuaram: ça, quanto você, meu Legado, nasceram no mês de agosto, quando
celebramos a Feira Anual de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais
— Nossos antepassados eram reis e rainhas? – dos Quilombos do Vale do Ribeira. Um mês que tem festa de todo o
34 questionou Esperança. jeito para as sementes e, também, para a Esperança e para o Legado!
A noite passou e, no dia seguinte, os parentes foram che-
gando. Minha filha, Continuação, e meu filho, Êxodo, com
minha nora, Resistência, mais as comadres e os compadres
e a criançada do quilombo, todos para celebrar os aniversa-
riantes, Esperança e Legado.

Para nós tomarmos o café da manhã fiz uma pressada. Mi-


nha nora trouxe bijú e bolo de roda, minha filha preparou
uma paçoca de amendoim e minha comadre Luta veio com
cuscuz de arroz. Tomamos um delicioso café de milho com
essas misturas. Compadre Território já tinha picado a lenha
e Êxodo acendido o fogo para deixar a fornalha quente e
pronta para assar a carne de porco criado aqui mesmo no
quintal. Para pegar bem o gosto, deixei a carne de molho no
tempero desde a noite passada, antes mesmo de contar a
história para as crianças. Êxodo e Território socaram, aba-
naram e escoaram o arroz. Enquanto eles catavam os ma-
rinheiros no apá, as crianças escolhiam o feijão. Mais tar-
de, na cozinha, eu mestiava o almoço. Junto com as outras
mestras da culinária quilombola fiz os preparos do frango
caipira com mamão verde. Comadre Luta preparou uma bo-
queca refogando o palmito com bastante cebolinha, alfa-
vaca, folha de alho, pimenta-do-reino, coentro de peixe e
um pouco de banha de porco, para depois colocar o cama-
rão e juntar a farinha de mandioca. No final, ela murchou a
folha de escardamona no fogo, fez um canudo, colocou a
massa dentro e pôs para assar na fornalha. A folha de es-
cardamona é cheirosa e passa esse cheiro para a boqueca.
Todo mundo fica com vontade de comer.

Cada um desses preparos tem a sua combinação de tem-


peros: açafrão, cebolinha, salsinha, manjerona e alfavaca. O
cheiro da comida preparada na téipa, aos poucos vai se es-
palhando por toda a casa e pelo terreiro.

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Fizemos uma salada colorida com alface roxa, alface cres-
pa, rúcula, rabanete, tomatinho do mato, palmito refogado
e uma farofa de couve manteiga com farinha de mandioca.
Para comer e fazer suco, há variedades no nosso quintal:
mamão, ameixa amarela, banana, abacate, acerola, limão
rosa, abacaxi, pitanga e goiaba, cada um na sua época, e as
crianças participam colhendo os temperos e as frutas.

A mesada ficou bonita, um presente para Esperança e Lega-


do, tudo enfeitado com os próprios alimentos, pratos embru-
lhados nas folhas de escardamona e de bananeira, porque
na nossa cultura a comida faz parte de todas as celebrações.
Nos puxirões de arroz, de milho e varação de canoa, a comi-
da dá sustância e força para o trabalho; nas rezas o alimento
é ofertado para o sagrado; e nas guardações a nossa comida
alimenta não só o corpo, mas fortalece os corações. Nas fes-
tas é motivo de celebração da fartura com alegria. A comida
para nós é afeto e carinho, alimento para a alma. A comida é
história, aconchego e memória nessas receitas que passam
dos mais velhos e das mais velhas para as outras gerações.

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Hoje, dia de festa, celebraremos as vidas de Esperança e
Legado, ambos são nossas sementes. Todo quilombola
que planta a semente na terra é também uma semente
que está plantada no território, e no tempo livre da natu-
reza vira ancestral e a terra o recebe. É por isso que cele-
bramos a vida no território que a todos alimenta e acolhe.

Comemorar com Esperança e Legado compartilhando


comida e comunhão é o que mantém nossa tradição en-
tre as gerações de Fartura, Resistência e Continuação.

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AJEITANDINHO BOQUECA
Diminutivo de ajeitar. Usualmente Comida típica quilombola
alguns termos são falados no a base de palmito e camarão
diminutivo pelos quilombolas de água doce.
nessa região, como, por exemplo,
chovendinho, que é quando CAPOVA
está chuviscando. Local de roça, distante da casa,
onde se tem uma pequena casa
ALQUEIRE para dormir.
Unidade de medida de área que
correspondente a 40 litros. CORTAVAM
O mesmo que apanhar ou colher
ANIÁ frutas no pé.
Peixe de água doce.
DOISZINHOS
APÁ duas pessoas.
Utensílio feito de taquara com
arco de madeira utilizado para ESCARDAMONA
abanar arroz e feijão. Alpinia zerumbet
Planta cujas folhas largas e
ATRAVESSADOR as flores possuem aroma suave
Aquele que compra produtos a e agradável.
preços baixos, diretamente do
produtor, e revende a preço alto, ESCRAÇADOR
obtendo grande margem de lucro. Tipo de moenda de cana feita
de madeira.
BENÇA
O mesmo que pedir a benção. FIFÓ
Lamparina, utensílio utilizado
BIJÚ para iluminar o ambiente, feito de
Alimento preparado a base de bambu que usa como combustível
massa de mandioca. o diesel ou querosene, também
chamado de tocha.
BOLO DE RODA
Bolinho assado na fornalha feito GAMELA
a base de farinha de milho, Utensílio feito de madeira
polvilho doce ou azedo e ovos. esculpida.

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GUARDAÇÕES
Plural de guardação, ato de
TAÍRA OU TRAÍRA
Hoplias malabaricus
Sobre autorias
velar defunto, geralmente Peixe de água doce, encontrado
realizado na casa da pessoa nos rios e lagoas.
falecida ou de algum familiar LUIZ MARCOS DE FRANÇA DIAS (LUIZ KETU),
próximo. TAPÉRA quilombola da comunidade São Pedro, localizada
Área que antes foi utilizada no Vale do Ribeira (SP). Liderança comunitária,
ISCRIANÇAS pesquisador, graduado em Letras, Mestre em
para moradia e que pode
Crianças, termo utilizado ser reutilizada para o plantio educação. Docente da Escola Estadual Maria
tanto para crianças quanto ou nova moradia. Antonia Chules Princesa, que atende 7 comunidades
para adultos. quilombolas do município de Eldorado (SP).
TENDÁ É também um dos autores do texto de Roça é Vida.
MATULA
Suporte feito de bambu ou
Quando chega na casa de MÁRCIA CRISTINA AMÉRICO – natural de
madeira, que fica acima da
alguém com muitas pessoas. Piracicaba-SP, escolheu aquilombar-se e fixar
téipa, utilizado para defumar
moradia no Quilombo São Pedro, no município de
carnes, na secagem arroz
MESTIAVA Eldorado região do Vale do Ribeira (SP). É professora
e outros alimentos.
da rede pública municipal em sua comunidade,
Ação desenvolvida por mestra
pesquisadora, Mestre e Doutora em educação.
ou o mestre. TIGUERA
Além de Na companhia da Dona Fartura,
Área onde a roça foi feita e, uma história sobre cultura alimentar quilombola,
NHANHÁ após colheita, fica em pouso; é uma das autoras do texto de Roça é Vida publicado
Forma local de tratamento das cuja vegetação encontra-se em pelo IPHAN em 2020.
filhas, netas ou sobrinhas. estado primário de regeneração.
LAUDESSANDRO MARINHO DA SILVA, agricultor
NUNDJÁ TRÊS MÃOS familiar nascido e criado no Quilombo Ivaporunduva,
Jundiá, bagre. Espécie de peixe Unidade de medida de espiga no Vale do Ribeira, município de Eldorado (SP). Possui
de água doce (Rhamdia quelen). de milho (uma mão equivale formação técnica em Agricultura pelo Centro Paula
a 16 atilhos, um atilho a Souza e bacharelado em Administração de Empresas
PRESSADA 4 espigas de milho). pela Universidade São Francisco (USF). É um dos
Bolo feito de goma autores do texto de Roça é Vida (2020), publicado
de mandioca. TÉIPA pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Fogão de lenha geralmente Nacional (IPHAN).
TABAQUI feito de barro que pode ser
suspenso ou no chão. VIVIANE MARINHO LUIZ é natural de Campinas
Alimento a base de milho
(SP). Ativista social no campo da educação das
seco torrado, socado no pilão,
TOMATINHO DO MATO relações étnico-raciais e aquilombada no quilombo
transformado em uma farinha
Tomate nativo que não precisa Ivaporunduva, no município de Eldorado, região
ou paçoca. Pode ser consumida
semear ou plantar mudas, do Vale do Ribeira (SP). É professora do Ensino
com café ou com a comida
nasce naturalmente. Fundamental I em sua comunidade na rede pública
(feijão com arroz).
municipal. É escritora, pedagoga, pesquisadora,
Mestre e Doutora em educação. Além de Na
companhia da Dona Fartura, uma história sobre
cultura alimentar quilombola, é uma das autoras do
texto de Roça é Vida publicado pelo IPHAN em 2020.

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AMANDA NAINÁ DOS SANTOS – natural de FICHA TÉCNICA
Piracicaba (SP), é arquiteta, ilustradora, cantora
e artesã. Enquanto artista e ativista negra, os Texto
encontros com pessoas e vários coletivos de Luiz Marcos de França Dias
juventude negra inspiram suas artes, que se referem Márcia Cristina Américo
as escrevivências, contando através de traços e cores Laudessandro Marinho da Silva
a história, a vivência e o movimento do povo preto. Viviane Marinho Luiz
Desde 2008 se dedica ao desenho artístico com
técnica de aquarela. Destacam-se as ilustrações nas Ilustrações
obras Roça é vida (IPHAN, 2020) e Ngoma Chamou!
Amanda Nainá dos Santos (Nainá)
batuques em terreiros paulistas (Malê, 2021).
Vanderlei Ribeiro (Deco)
VANDERLEI RIBEIRO – Artista plástico que
Projeto gráfico e diagramação
nos anos 1990, em Miracatu (SP), participou
do “Dissipação Visual”, movimento artístico de Estúdio Voador
expressão do Vale do Ribeira. É professor de História
na Rede Pública Estadual de Educação em Registro- Realização
SP, onde reside. Além de produções artesanais GT da ROÇA (Grupo da Roça) composto por representantes
independentes, ilustrou Zine Caiçara (editado de dezenove associações quilombolas que tiveram seu Sistema
por Caiçaras de Iguape. Edição on-line, 2021), Agricola Tradicional reconhecido como patrimônio cultural
Roça é vida (IPHAN, 2020) e Cartilha Educação brasileiro em 2018, além de organizações parceiras. O GT é o
Escolar Quilombola (DPE-SP, 2018). responsável pela organização da Feira de Troca de Sementes
e Mudas das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira.

Agradecimento
A Penélope Martins, pela revisão e leitura amorosa.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) bijú desde antes de ser farinha de mandio-
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
ca, vai botando chaleira na téipa para chá de
mato, mistura calmante de cidreira, melis-
Na companhia de Dona Fartura, uma história sobre sa, camomila que perfuma a casa e as lem-
cultura alimentar quilombola / Luiz Marcos de branças, acordando nossos corações como
França Dias... [et al.] ; ilustrações Amanda Nainá
dos Santos , Vanderlei Ribeiro. – 1. ed. – São Paulo, faz o revigorar do café de milho. E é fácil re-
SP : ISA - Instituto Socioambiental, 2022. conhecer o quão preciosa é a escrevivência
de Dona Fartura uma vez que ela traz para a
Outros autores: Márcia Cristina Américo,
Laudessandro Marinho da Silva, Viviane Marinho Luiz. história algo que o viver moderno não tem:
ISBN 978-65-88037-12-6 tempo livre e cultura alimentar. Se a moder-
nidade faz coisas boas, não tenhamos dúvi-
1. Agrobiodiversidade 2. Alimentação - Aspectos
sociais 3. Comunidades Quilombolas do Vale do
da, não fosse o que é hoje, tanta facilidade
Ribeira - História 4. Patrimônio cultural 5. Patrimônio de comunicação, eu mesma não teria notí-
imaterial - Brasil 6. Sistema Agrícola Tradicional cias das amizades do Vale do Ribeira com a
Quilombola (SATQ) I. Dias, Luiz Marcos de França.
II. Américo, Márcia Cristina. III. Silva, Laudessandro
rapidez de um clique, uma mensagem, uma
Marinho da. IV. Luiz, Viviane Marinho. V. Santos, chamada de vídeo e a gente junto. Porém,
Amanda Nainá dos. VI. Ribeiro, Vanderlei. esse mesmo furacão de benfeitorias tecno-
IV. Título.
lógicas vem tirar tempo, aumentar ansieda-
de, iludir com vidas de consumo instantâ-
22-104495 CDD-631.5830981 neo. Plim! É preciso respirar nessas horas e
voltar à casa de Dona Fartura para se sentar
Índices para catálogo sistemático: ao pé da téipa e ouvir histórias sobre quem
somos e o quanto precisamos de comunhão
1. Sistema Agrícola Tradicional Quilombola (SATQ) : nesse legado de esperança.
Alimentação : Aspectos culturais e históricos :
Agrobiodiversidade 631.5830981

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

Penélope Martins, escritora e narradora


de histórias.

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A jornada proposta pelo livro
nos leva a olhar para trás e aprender
com os nossos ancestrais, não apenas
para manter as tradições vivas em nós e nas
crianças, mas também para manter viva a
própria natureza, de onde vêm os alimentos
que vão para as mesas e as sementes que
vão virar novas florestas e fontes de água.
Reproduzir os saberes originários de cuidados
com a terra não é sinônimo de atraso,
mas sim uma garantia de proteção
territorial e cultural
no futuro.

Apoio: Realização GRUPO DE TRABALHO DA ROÇA e parceiros:

União Europeia

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