Fox, Psicologia Crítica

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Critical Psychology: An Introduction (second edition)

Edited by Dennis Fox, Isaac Prilleltensky e Stephanie Austin

Capítulo I
Psicologia Crítica para justiça social: preocupações e dilemas
Dennis Fox, Isaac Prilleltensky e Stephanie Austin

Tradução
Filipe Boechat
Marina Dantas

Revisão técnica
Francisco Portugal

"Psicologia Crítica: uma introdução" apresenta um leque de abordagens que desafiam a


psicologia hegemônica de maneiras decisivas. Por psicologia hegemônica entendemos
a psicologia que as universidades muito frequentemente ensinam e que os clínicos, os
pesquisadores e os consultores muito frequentemente praticam. É a psicologia que você
provavelmente estudou no seu curso introdutório, apresentada como uma ciência onde em que

pesquisadores utilizam-se de métodos objetivos para compreender o comportamento


humano e cujos praticantes auxiliam indivíduos a lutar contra a angústia. Amparados em
suas descobertas, aqueles que reconhecem as fontes sociais dessa angústia propõem
certas vezes reformas institucionais para ajudar as pessoas a funcionarem mais
eficazmente. Em suma, muitos psicólogos esperam fazer o bem. E frequentemente o
fazem. Psicólogos críticos, em contrapartida, vêem as coisas muito diferentemente.
Acreditamos que a psicologia hegemônica institucionalizou uma perspectiva estreita do
compromisso ético do campo para promover o bem-estar humano. Essa estreiteza leva a
muitas consequências negativas, tal como este livro elabora detalhadamente.

Da maneira como vemos, as pequenas reformas que os psicólogos hegemônicos muito


frequentemente defendem para suavizar os limites rígidos da sociedade simplesmente
não vão longe o suficiente. As instituições culturais, econômicas e políticas dominantes
exibem dois problemas fundamentais especialmente relevantes para a psicologia: elas
orientam mal seus esforços para vida plena, promovendo desigualdade e opressão. O
que nos concerne enquanto psicólogos é que essas instituições utilizam rotineiramente
conhecimento e técnicas psicológicas para manter um status quo inaceitável. Entretanto,
ao invés de expô-los e opor-se ao seu uso, a psicologia hegemônica os fortalece. Suas
concepções prevalentes das necessidades e dos valores humanos e sua imagem da
objetividade científica comportam muito facilmente um perigoso poder institucional. Além
disso, como poderosa instituição que é, a psicologia gera suas próprias consequências
prejudiciais que recaem pesadamente, em particular, sobre aqueles que são oprimidos e
vulneráveis. Portanto, em vez de mexer com as estruturas, psicólogos críticos de uma
gama de tradições críticas advogam não apenas pequenas reformas, mas estruturas
sociais fundamentalmente diferentes e mais aptas a trazer justiça social e bem-estar
humano. Imaginamos e exploramos alternativas. Acreditamos que a psicologia possa
fazer melhor.

Sabemos também a princípio o quão desconfortável pode ser a leitura da crítica de


valores, pressuposições e práticas que julgamos serem fundamentalmente verdadeiras.
Os cursos de psicologia hegemônica comumente não examinam seriamente as
implicações sociais, morais e políticas da pesquisa, da teoria e da prática. Em parte
porque a psicologia crítica rejeita as perspectivas subjacentes ensinadas nesses cursos,
nossa crítica pode lhes soar como “muito política” ou “ideológica”. Infelizmente, a
fragmentação da psicologia e a sobreespecialização reduz a exposição a domínios como
os da teoria política, da sociologia e da antropologia, os quais muito frequentemente
exploram criticas ao status quo. Estudantes que planejam trabalhar como psicólogos e
psicólogos já em atividade podem interpretar mal, como ataque pessoal, nossa crítica do
sistema. No entanto, da forma como os psicólogos críticos vêem, justificativas para
nossos próprios papéis dentro desse sistema refletem por vezes valores políticos e
ideológicos muito frequentemente deixados sem exame.

Vocês descobrirão nos capítulos à frente que, apesar de nossas análises, suspeitas,
generalizações e conclusões sobrepostas, os psicólogos críticos não sabem todas as
respostas. Descobrirão também que a maioria de nós ocupa papéis profissionais
tradicionais tais como terapeutas, pesquisadores, avaliadores, consultores, professores,
estudantes ou advogados. O que nos diferencia (como gostamos de acreditar) é nosso
esforço para levantar questões sobre o que nós e os outros estão fazendo. Queremos ser
agentes de mudança social, não agentes de controle social. Seguimos adiante apesar de
saber que nós nem sempre podemos ter êxito, ou sermos completamente consistentes,
ou até mesmo saber sempre com segurança o que o êxito poderia parecer.

Refletindo nossa variedade de pontos de partida e de interesses, as abordagens inter-


relacionadas da psicologia crítica diferem umas da outras na justificação filosófica, na
preferência metodológica, na estratégia política, na terminologia preferida e nas suas
prioridades. Não seria incorreto falar de um conjunto de psicologias críticas ao invés de
uma simples abordagem. Para tornar tudo isto ainda mais confuso, muitos psicólogos
críticos sequer usam o termo psicologia crítica. E, às vezes, alguns psicólogos fazem um
importante trabalho que alcançam objetivos progressivos apesar de estarem amparados
em pressupostos e métodos hegemônicos. É por esta razão que, ao convidar colegas a
contribuir para esta segunda edição de "Psicologia Crítica: uma introdução", nós não
insistimos numa perspectiva simples. Focamos, ao contrário, nos temas centrais que são
comuns a uma variedade de tradições críticas: a perseguição da justiça social, a
promoção do bem-estar das comunidades em geral e dos grupos oprimidos em particular,
e a transformação do status quo tanto da sociedade quanto da psicologia.

No que resta deste capítulo, introduzimos primeiramente os principais conceitos


relacionados às preocupações centrais e aos dilemas internos da psicologia crítica. Em
seguida, explicamos como o restante do livro explora estas preocupações e dilemas em
maior profundidade.

Principais preocupações e conceitos centrais relevantes

Já tocamos em três preocupações inter-relacionadas que dirigem significativamente a


atenção da psicologia crítica, as quais podemos resumir vagamente da seguinte maneira:

1. Ao focar no indivíduo menos do que no grupo ou na sociedade, a psicologia


hegemônica superestima valores individualistas, impedindo a realização da mutualidade e
da comunidade, fortalecendo instituições injustas;

2. Os pressupostos subjacentes à psicologia hegemônica e suas alianças institucionais


ferem desproporcionalmente os membros de grupos impotentes e marginalizados,
facilitando a desigualdade e a opressão; e

3. Estes efeitos intoleráveis ocorrem a despeito das intenções contrárias, individuais ou


coletivas, dos próprios psicólogos.
Nesta seção, descrevemos estas preocupações de uma maneira mais organizada. No
decorrer dessa descrição, explicamos a relevâncias de três conceitos centrais: o nível de
análise restrito da psicologia hegemônica; o papel da ideologia no fortalecimento do
status quo; a falsa reivindicação da psicologia à objetividade e à neutralidade científicas.
Embora não sejam os únicos conceitos relevantes, serão estes os que vocês encontrarão
ao longo deste livro.

Individualismo e insignificância: o nível de análise

Em toda sociedade, instituições econômicas, educacionais, religiosas, dentre outras,


inculcam em seus membros visões preferidas da natureza humana e da ordem social.
Estas visões, e as instituições que elas suportam, variam de sociedade à sociedade muito
mais amplamente do que frequentemente imaginamos. A imensa diversidade normativa
entre as milhares de culturas históricas e atualmente existentes no mundo
frequentemente espanta aqueles que cresceram assumindo que suas próprias crenças e
preferências representavam a “normalidade”. Em contraste com os antropólogos, cujo
campo estuda mais diretamente os diversos comportamentos, instituições e formas de
poder no mundo, os psicólogos muito frequentemente esquecem que muitos dos
comportamentos que eles e outros em torno deles realizam na vida cotidiana refletem a
cultura e a história menos do que uma inevitabilidade universal. Thomas Teo aponta, no
capítulo 3, que a psicologia hegemônica demonstra pouca consciência de perspectivas
psicológicas de outras tradições culturais, ou que a psicologia ocidental é ela mesma uma
“psicologia local”. Ou ainda, tal com Ingrid Huygens estabelece em sua discussão sobre a
colonização, uma “psicologia nativa” (capítulo 16). “Nenhuma cultura tem todas as
respostas', acrescenta Tod Sloan, “mas nossas teorias [...] deveriam ao menos não
universalizar os valores da cultura de onde provém” (capítulo 19).

Apesar da expansão da globalização e dos esforços corporativos para homogeneizar a


experiência humana, é importante ter em mente que as culturas ocidentais tradicionais
não compartilham dos pressupostos individualistas dominantes no ocidente, e que
colonizadores alardeando valores individualistas, nacionalistas, cristãos e capitalistas tem
recorrentemente dominado e dizimado culturas indígenas. Sabendo que nossos valores
refletem nossas próprias pressuposições culturais, os psicólogos críticos prestam atenção
particular às instituições dominantes nas sociedades ocidentalizadas – as sociedades nas
quais a maioria dos psicólogos vive e trabalha e onde se desenvolveu a psicologia
hegemônica. Dos conselhos educacionais ao currículo escolar, ao trabalho e ao consumo,
à cobertura midiática e à tomada de decisão política, todas estas instituições encorajam
as pessoas a buscar identidade e significado através de atividades individuais e
competitivas ao invés de empreendimentos colaborativos ou comunitários. Assistir
televisão e navegar na Internet, promover-se na carreira, manter verde o gramado e fazer
compras por diversão são apenas algumas das coisas que muitas pessoas fazem que
desviam atenção e energia da construção de amizades mais significativas, da
participação na vida comunitária ou do reconhecimento da injustiça e do trabalho para a
extinção dessa injustiça mesma. Não é coincidência que uma mentalidade auto-centrada
ofereça mais benefícios àqueles que controlam o capitalismo corporativo e outros
membros de grupos relativamente privilegiados que ao vasto número de pessoas que se
reúne nas lojas dos shoppings e nos estádios de futebol, ou que buscam por
comunidades virtuais anônimas.

Que essa visão de mundo ocidentalizada e individualista da psicologia hegemônica aceite


e mesmo sustente empreendimentos isolados e auto-centrados não é um fato que tenha
passado despercebido. Uma literatura surpreendentemente ampla explora suas graves
consequências (para uma amostra de perspectivas na literatura psicológica, ver Bakan,
1966; I. Prilleltensky, 1994; Sarason, 1981; Teo, 2005). Particularmente preocupante é o
fato de que uma visão de mundo individualista impede a mutualidade, a conectividade e
um senso psicológico de comunidade, em parte por levar as pessoas a crer que estas
coisas são tanto inalcançáveis quanto desimportantes (Fox, 1985; Sarason, 1974). Isso
também cega as pessoas para o impacto de suas ações e estilos de vida sobre outros
que permanecem oprimidos, sobre o meio-ambiente, e mesmo sobre familiares e amigos.
De modo geral, psicólogos encaixam-se muito confortavelmente em um sistema
capitalista democrático que oferece um discurso de apoio vazio tanto à liberdade
individual quanto à igualdade política mas que, na prática, prefere a apatia política e a
liberdade de mercado em lugar de democracia participativa e justiça distributiva (Baritz,
1974; Fox, 1985, 1996; Pilgrim, 1992).

O envolvimento da psicologia no capitalismo, sugere Teo (capítulo 3), conflita com seu
potencial para ser uma ciência emancipatória. O capitalismo não é a única força destrutiva
atuando no mundo, mas seus pressupostos são talvez os mais dependentes de uma
visão de mundo individualista que vê a classe econômica como natural, antes do que um
estado de coisas construído (ver o capítulo 13, de Heather Bullock e Wendy Limbert).
Certamente, os psicólogos hegemônicos defendem a orientação individualista de seu
campo definindo a psicologia como o estudo dos indivíduos, em contraste com disciplinas
tais como Sociologia e Antropologia, que examinam grupos maiores. Embora essa
explicação pareça razoável, ela simplifica demais. Psicólogos tentando dar sentido ao
porquê de um indivíduo comportar-se de determinada maneira, sustentar certas
perspectivas, ou buscar certos objetivos inevitavelmente deparam-se com o impacto
direto e indireto de outras pessoas. Mas mesmo a psicologia social hegemônica, a
disciplina tradicional mais propensa a tatar da interação e do contexto social, tornou-se
cada vez mais individualista, como nos conta Frances Cherry no capítulo 6.

Imaginem um terapeuta cujo cliente sofre de um tipo de “estresse de trabalho”, assim


como Jeanne Marecek e Rachel Hare-Mustin descrevem em sua discussão crítica da
psicologia clínica (capítulo 5). Deveria o clínico investigar as dificuldades psicológicas de
longa data desse cliente? Ensinar técnicas de controle do estresse? Tentar modificar a
situação de trabalho estressante ou sugerir ao cliente conseguir um novo emprego? O
psicólogo que oferece terapia (ou que ensina estudantes sobre este assunto ou conduz
uma pesquisa sobre ele) poderia considerar um número de fatores, um dos quais – bem
importante – são os constrangimentos do ambiente terapêutico. O psicólogo na prática
privada está ajudando um profissional de alto escalão a lidar com subordinados? Ela ou
ele trabalham numa clínica, providenciando terapia para uma secretária da classe
trabalhadora sobrecarregada e com relativamente poucas opções? Ou numa fábrica,
contratado por um administrador para assegurar que os trabalhadores manterão o ritmo?

Diferentes funções levam a diferentes interpretações do problema e, como Scot Evans e


Colleen Loomis enfatizam no capítulo 22, diferentes interpretações do problema levam a
diferentes tipos de soluções. Evans e Loomis prestam particular atenção ao nível de
análise relevante, assim como Bullock e Limbert, em sua discussão sobre classe social
(capítulo 13). Assim, no caso de nosso cliente estressado, um terapeuta crítico poderia
dar um passo para trás da personalidade individual e dos hábitos do cliente (o nível
individual de análise) e mesmo do ambiente específico de trabalho (o nível situacional ou
interpessoal) para considerar o nível social de análise. Gazi Islam e Michael Zyphur
apontam, em sua discussão sobre psicologia industrial/organizacional (capítulo 7), que
tratar o estresse no trabalho como um problema médico significa focar a solução no
indivíduo ao invés da mudança do sistema. Aprender a relaxar ou encontrar um emprego
menos estressante, mesmo quando bem sucedido, nada faz para iniciar uma mudança no
sistema gerador de tanto estresse. Terapia individual ainda pode ser recomendada. Isaac
Prilleltensky, Ora Prilleltensky e Courte Voorhees descrevem, no capítulo 21, como
terapeutas criticamente orientados podem adotar abordagens menos restritas por
pressuposições hegemônicas. Mas o psicólogo crítico simultaneamente sonha alto e, no
nível da mudança de comunidade, Evans e Loomis descrevem esforços políticos mais
amplos, tais como aqueles que Vicky Steinitz e Elliot Mishler descrevem (capítulo 23),
entre outros.

George Albee (1990) aponta o absurdo que há em negar a individualidade de qualquer


problema que confronte milhares e mesmo milhões de pessoas. Para além da
absurdidade repousa uma política do 'culpe-a-vítima' (Ryan, 1971). Culpar indivíduos por
seus problemas amplamente compartilhados, legitimando apenas soluções individuais,
tais como terapia, educação ou treinamento para controle de estresse, torna as pessoas
menos afeitas à defender mudança social. A reconfiguração psicológica de problemas
sociais em doenças psíquicas reforça, assim, a noção conservadora de que não há
necessidade de mudar o sistema quando se pode mudar a pessoa (Fox, 1985; I.
Prilleltensky, 1994; Teo, 2005).

Por conta de seu extensão, as implicações dessa visão de mundo individualista da


psicologia são especialmente relevantes para algumas das subdisciplians do campo.
Assim também outras preocupações e conceitos introduzidos neste capítulo, tais como
ideologia e nível apropriado de análise. Assim, alguns dos autores deste livro descrevem
como psicólogos hegemônicos e críticos trazem diferentes hipóteses e métodos a áreas
particulares de interesse. Isso inclui teorias da personalidade (Tad Sloan, capítulo 4);
psicologia clínica (Jeanne Marecek e Rachel Hare-Mustin, capítulo 5); psicologia social
(Frances Cherry, capítulo 6); psicologia industrial-organizacional (Gazi Islam e Michael
Zyphur, capítulo 7); psicologia comunitária (Isaac Prilleltensky e Geoffrey Nelson, capítulo
8); psicologa da saúde (Kerry Chamberlain e Michael Murray, capítulo 9); e psicologia
jurídica (Bruce Arrigo e Dennis Fox, capítulo 10). Infelizmente, não houve espaço
suficiente para incluir outras disciplinas que apareceram na primeira edição (Fox e
Prilleltensky, 1997): psicologia do desenvolvimento, teste de inteligência, psicologia
intercultural, psicologia política, psicologia lésbica e gay e ética em psicologia.

Desigualdade e opressão: o papel da ideologia

Os psicólogos críticos entendem que uma ênfase em valores relacionados a


individualismo e competitividade fere desproporcionalmente membros de grupos
relativamente impotentes. Igualmente danosa é a suposição de que o que é bom para o
mundo ocidentalizado é o melhor para todos, um ponto que Huygens enfatiza ao discutir o
impacto opressivo da democracia representativa sobre culturas indígenas (capítulo 16).
Estados-nações modernos, especialmente aqueles que se descrevem como democracias,
garantem formalmente igualdade política e legal. No entanto, os poderes político, jurídico
e econômico não são divididos igualmente. Os psicólogos críticos exploram, assim, a
participação da psicologia hegemônica na manutenção da desvantagem e da opressão na
base de categorias óbvias, tais como raça (Kevin Durrheim, Derek Hook e Damien Riggs,
capítulo 12); classe social (Heather Bullock e Wendy Limbert, capítulo 13); gênero
(Victoria Clarke e Virginia Braun, capítulo 14) e deficiência (Ora Prilleltensky, capítulo 15).
Eles também exploram cada vez mais o papel da psicologia num mundo que se desloca
da colonização à globalização (Ingrid Huygens, capítulo 16) e em comunidades recém-
saídas da guerra onde esforços dos grupos hegemônicos para lidar com os traumas
falham em atingir os direitos humanos e a justiça social (Brinton Lykes e Erzulie Coquillon,
capítulo 17). E, como explica Michael McCubbin (capítulo 18), psicólogos críticos têm
também começado a examinar a opressão dentro do sistema de saúde mental, que
emprega tantos psicólogos.

Por vezes, a desigualdade e a opressão são óbvias, fazendo essas formas de injustiça
relativamente fáceis de identificar e (ao menos para aqueles à certa distância segura) a
elas se opor (ver, por exemplo, a descrição de Huygens das imposições, por parte dos
colonizadores, da propriedade da terra capitalista aos povos indígenas. Outras vezes,
elas são institucionalizadas de maneiras sutis, dificultando tanto a compreensão de sua
operação quanto o combate à sua presença. É o que ocorre, por exemplo, quando
sistemas legais seguem regras mecanicamente mascarando verdadeiras injustiças (ver
Arrigo e Fox, capítulo 10). Em ambos casos, indivíduos e grupos dominantes mantém seu
poder às custas de outros, mesmo quando acreditam que suas ações são meramente
“normais” e “tradicionais” em vez de injustas e opressivas (I. Prilleltensky, 2008). Este
pressuposto normalizado dificulta nossos esforços para descobrir uma solução para os
problemas globais complexos quando usamos nosso próprio sentido (culturalmente
forjado) de princípios universais de justiça social (por exemplo, Fox, 2008a; Fox e
Prilleltensky, 2002).

Manter uma ordem social desigual requer persuasão ideológica. Ideologia tem diferentes
significados em contextos diferentes (Prilleltensky e Fox, 2007). A maioria dos psicólogos
críticos usa o termo em seu sentido marxista tradicional, referindo-se a crenças
largamente disseminadas que as elites políticas lançam mão para justificar uma
sociedade injusta e, assim, atenuar a crítica do status quo – ou, como Sloan coloca ao
discutir teorias da personalidade (capítulo 4), “ideias ou imagens que sustentam relações
sociais injustas”. Algumas crenças ideológicas eventualmente desaparecem. Hoje é difícil
imaginar que as pessoas comuns aceitem a noção de que reis governem por direito
divino. Entretanto, outras crenças persistem e novas outras entram em cena. Por
exemplo, o poder institucional ainda repousa em pressupostos ideológicos que são
frequentemente psicossociológicos em sua natureza – por exemplo, que pessoas
geralmente ganham o que merecem e que, assim, são pobres porque não trabalham duro
ou que um sistema econômico capitalista é melhor porque os seres humanos são
inerentemente egoístas e competitivos e que o governo sempre vai à guerra por boas
razões. Na medida em que não é universal, o acordo com crenças institucionalizadas da
ideologia dominante representa o que muitos críticos consideram falsa consciência, um
termo marxista que se refere a aceitação disseminada de crenças ideológicas imprecisas
(ver capítulo 4). Ensinando que a fonte da maior parte da opressão e da desigualdade é o
individual ou interpessoal antes do que social e política – “maçãs podres” antes do que
um “sistema podre” – instituições como escolas, doutrinas religiosas, cortes, partidos
políticos e mídia desviam movimentos para mudança social. A maioria dos autores neste
livro enfatizam o papel da ideologia neste sentido.

Alguns autores usam o termo mais amplamente. Ao longo do tempo, a ideologia associou-
se no discurso público a qualquer declaração que tenha conotação político-crítica,
permitindo ironicamente os que defendem o status quo julgar “ideológicas” mudanças do
limite esquerdo do espectro político. Psicólogos sociais hegemônicos e outros cientistas
sociais ampliaram o significado ainda mais para referirem-se a qualquer sistema de
crenças e valores, como sinônimo para uma visão geral de mundo. Este uso imparcial e
despolitizado, de acordo com o qual todos 'têm' uma ideologia, pode fazer qualquer
crença forte parecer algo suspeita, reforçando assim a noção de que aqueles que estão
mais ao centro vêem as coisas claramente (Fox, 2008a). Certamente, fazer observações
como essas acarreta frequentemente acusações dos psicólogos hegemônicos de que
nosso criticismo é ideológico, e assim, de alguma maneira suspeito e ilegítimo. Ao nosso
ver, o foco hegemônico no individualismo é ele próprio ideológico. De fato, a emergência
no final do século XX de uma 'psicologia positiva' que ignora completamente as críticas à
individualização dos problemas sociais ilustra a força contínua da ideologia dominante
(Pawelski e Prilleltensky, 2005).

Um objetivo principal da psicologia crítica, de acordo com isso, é identificar e revelar


mensagens ideológicas e práticas relacionadas que desviam nossa atenção das fontes de
poder e privilégio da elite. De acordo com Michel Foucault (1980), cujo influente trabalho
muitos dos integrantes deste livro fazem referência, necessitamos compreender as
relações de poder para determinar a moralidade. E porque o poder não reside apenas em
estruturas sociais, precisamos também explorar formas mais flúidas e não-institucionais
de poder. O poder do capitalista sobre o operário é apenas uma forma. O poder reside
também nas trocas interpessoais, nos atos cotidianos de resistência e na própria
linguagem que utilizamos, incluindo a maneira como delimitamos os fenômenos pessoais
dos fenômenos sociais (ver a discussão de Hepburn e Jackson sobre psicologia
discursiva no capítulo 11). Ao longo desse livro, assim, vocês verão os autores discutindo
sobre vários métodos de conscientização, referindo-se frequentemente ao trabalho do
pedagogo brasileiro Paulo Freire (1970). A ênfase de Freire no desenvolvimento da
consciência crítica tem tido um enorme impacto ao auxiliar os oprimidos a superar a
defesa ideológica do status quo e identificar a fonte de sua opressão.

Intenção e consequência: a armadilha da neutralidade

Muitos psicólogos são levados a estudar psicologia motivados, em primeiro lugar, por
valores positivos e compromissos políticos. Com efeito, alguns sabidamente usam suas
habilidades e status profissional para ajudar segmentos elitistas da sociedade a manter o
controle. Steinitz e Mishler (capítulo 23) descrevem um exemplo: a participação de
psicólogos em técnicas de interrogatório que utilizam tortura. Todavia, como Ben Harris
particularmente sublinhou (capítulo 2), mesmo que a psicologia tenha sido utilizada
repressivamente, muitos psicólogos têm abraçado seu poder libertador. O problema, tal
como apontado acima, é o de que muitos psicólogos identificam sua tarefa em termos
abertamente estreitos: ajudar clientes individalmente ou aumentar o conhecimento
científico sobre tópicos tradicionais usando práticas de pesquisa tradicionais. Muitos
defendem reformas relativamente pequenas que consideram 'responsáveis' e 'práticas',
enquanto suas associações profissionais cada vez mais entram na arena política para
defender políticas públicas particulares (Herman, 1995), geralmente consistentes com
reformas políticas liberais e moderadas (Fox, 1993b).

Bullock e Limbert apontam que os psicólogos hegemônicos ainda não abraçaram a


reflexividade, uma exploração consciente de como nossos próprios valores e
pressuposições afetam nossos objetivos, ações e interpretações teóricas e
metodológicas. Ao contrário, conformam-se a normas profissionais que retratam a
psicologia como uma ciência objetiva, neutra no que diz respeito aos valores e à política.
A principal tarefa política da psicologia, de acordo com essas normas, é prover
conhecimento científico imparcial para um público pacífico e faminto por dados. Esta
ênfase nos dados, antes do que nos valores e no poder (ele próprio, um valor preferido,
como aponta Teo) leva a uma direção convencional antes do que desafiadora do sistema.
Status profissional e exigências de trabalho, preferências mesquinhas de agências de
financiamento, política externa, pressões e compromissos, e a esperança de que os
políticos realmente prestarão atenção às nossas pesquisas desviam os psicólogos para
longe de tópicos e conclusões que poderiam chacoalhar as coisas.

A Psicologia compartilha esta orientação estabelecida com profissões tais como


pedagogia, advocacia e medicina. Normas usualmente refletem valores, pressupostos e
interesses de profissionais mais velhos e superiores, particularmente (ainda) aqueles que
são brancos e homens. Como em qualquer campo profissional, treinamento avançado
transforma futuros bem-feitores em profissionais cautelosos que internalizam os reais
limites sociais e políticos do campo (Schmidt, 2000). Ensinando o que é legítimo e o que
não é, restringe ideais de maior alcance. Dirige os estudantes a projetos de pesquisa
facilmente executáveis que consistem todos, muito frequentemente, em variações triviais
de trabalhos passados, incapazes de trazer qualquer conhecimento científico relevante ou
justiça social transformadora. Além disso, conforme deslocamos o olhar das intenções às
consequências, nós nos fazemos as seguintes questões: uma postura hegemônica leva
as pessoas – tanto os psicólogos quanto o público geral – a tomar problemas sistêmicos
por problemas puramente individuais? Intervenções restritas naqueles que são
gerenciáveis – e financiados – dentro de prazos profissionalmente convenientes impedem
possibilidades significativas? Falhar ao perseguir soluções mais fundamentais
desencoraja o trabalho em direção a uma mudança mais transformadora e, assim, se
transforma numa profecia auto-realizadora?

Em comparação com campos como Antropologia, Sociologia, História, e mesmo Direito, a


Psicologia é especialmente resistente ao reconhecimento de que a ciência social não é
nem neutra nem livre de valores (Rein, 1976). Harris nos conta (capítulo 2) que,
remodelando sua imagem da história da psicologia, cursos hegemônicos fazem parecer
que as questões psicológicas são respondidas sempre logicamente. Mas nós sabemos
que vieses pessoais, profissionais e políticos determinam que perguntas de pesquisa nós
fazemos, que metodologia utilizamos, que conclusões alcançamos, e que recomendações
políticas advogamos (ver a discussão metodológica de Wendy Stainton Rogers no
capítulo 20). Ocultar essas decisões para alcançar uma postura objetiva e neutra, ao
invés de reconhecê-las, conduz a uma timidez política. A frase pro forma que comumente
os pesquisadores acrescentam aos artigos publicados – “mais pesquisa precisa ser feita”
– implica que nenhuma resposta pode jamais ser resolvida. Afinal de contas, nós não
temos ainda dados suficientes! E nunca teremos!

Dilemas centrais

O mundo da psicologia crítica é maior e mais diversificado hoje em dia do que era há uma
dúzia de anos atrás, quando a primeira edição deste livro surgiu. Como você poderia
esperar, considerando sua identidade como uma alternativa crítica, este mundo
permanece muito distante do núcleo da psicologia hegemônica. Apesar de sua
marginalidade, existe hoje mais espaço para a formação e a prática em psicologia crítica
do que no passado. Novos livros (inclusive muitos deles escritos pelos colaboradores
deste livro) exploram diversas arenas e expandem o terreno da psicologia crítica. Outros
indicativos do crescimento da psicologia crítica variam entre conferencias, jornais, e
organizações de cursos, sites da internet e blogs. Apesar da maior parte da psicologia
crítica ainda estar relativamente isolada dentro de instituições tradicionais e muitos
estudantes de psicologia se depararem com o problema de encontrar um professor que
aprecie, ou mesmo conheça, a psicologia crítica, a expansão deste campo faz com que
estejamos menos sozinhos no nível nacional, internacional ou virtual. Um volume
especial do Annual Review of Critical Psychology descreve progressos em várias partes
do mundo (Dafermos, Marvakis e Triliva, 2006) .
Esta expansão também tem uma desvantagem prática: a crescente diversidade teórica e
metodológica da psicologia crítica a torna, de certa maneira, mais confusa do que ela
parecia há algum tempo atrás. As noções sobre o que a psicologia crítica é e o que ela
deveria ser se sobrepõem e competem entre si (colocadas, por exemplo, por Teo no
capítulo 3 e Cherry no capítulo 6). Algumas noções são especialmente favoráveis para a
exploração de certas questões. Por exemplo, algumas normas discriminatórias da
psicologia são mais fáceis de compreender quando centradas em questões de sexo e
gênero, tornando a análise feminista mais adequada. Ao mesmo tempo, o neo-marxismo
é mais relevante para as questões de classe econômica e poder. Os 35 colaboradores
deste livro fazem referência a esta e outras tradições intelectuais: psicologia crítica alemã,
psicologia da libertação latino-americana, construcionismo social, psicologia discursivista,
pós-modernismo, anarquismo, teoria crítica da raça, e mais. Todas encontram terreno na
psicologia crítica na medida em que visam eliminar as formas de opressão e promover a
justiça social. Apesar disso, a multiplicidade de abordagens e jargões torna mais difícil
mantê-las localizadas neste campo.

Isso também contribui para uma série de dilemas. Hoje em dia o trabalho dos psicólogos
críticos é cada vez mais definido por confrontar posições conflitantes, do que por seu
distanciamento em relação às normas tradicionais. Do teórico e metodológico, ao político
e pessoal, nossas escolhas ganham maior relevo. Algumas dessas escolhas dividem os
psicólogos de forma mais geral, como quando discordam entre si sobre, por exemplo, se
os seres humanos são principalmente racionais ou irracionais. Outros dilemas concernem
a psicologia crítica de forma mais direta, como, por exemplo, – apesar da nossa suspeita
sobre a reivindicação de uma autoridade científica para a psicologia – se devemos usar
nosso status profissional para impulsionar nossa credibilidade. Para ambos os dilemas,
nenhuma resposta única irá satisfazer a psicologia crítica como um todo. Como indivíduos
trabalhando na psicologia crítica, como um grupo de profissionais engajados na disciplina,
e como membros de sociedades falhas, nós estamos trabalhando para a mudança, cada
um de nós deve descobrir o que precisa ser feito.

Na tentatida de criar um sentido para o que traz as pessoas à psicologia crítica, Sloan
(2000) pediu que 20 psicólogos críticos refletissem sobre sua bagagem pessoal e sobre
os sentidos que conferem ao campo de estudo. Dentre várias coisas, ele perguntou “qual
o maior debate em psicologia social? Quais questões ainda não foram resolvidas?” Nesta
sessão, nós contruimos nossas próprias respostas para estas questões (Fox, 2000; I.
Prilleltensky, 2000) assim como Austin e Prilleltensky o fizeram em sua abordagem mais
sistemática e em importante trabalho realizado por outros estudiosos (por exemplo,
Hepburn, 2003). Nós vagamente dividimos nossos dilemas nas categorias sobrepostas
mencionadas a seguir: a natureza da natureza humana, que consiste em escolhas frente
à psicologia de um modo geral e o âmbito da mudança social e da ação política, um
tópico particularmente importante para os psicólogos críticos. Muitos dos colaboradores
deste livro se debruçam sobre um ou mais desses dilemas, às vezes de forma explícita,
outras apenas nas entrelinhas.

A natureza da natureza humana

Depois de descrever como a psicologia crítica “faz teoria”, Tod Sloan pergunta:

Que tipo de pressupostos sobre o psiquismo e a sociedade melhor guiariam


uma teorização crítica? Quais pressupostos básicos são problemáticos?
Quais posicionamentos diante de velhas questões – como livre escolha vs.
determinismo, natureza vs. cultura, consciência vs. forças inconscientes –
são mais apropriados para uma psicologia crítica? Quais novas questões
precisariam ser colocadas?

Como vocês podem ver, nós temos questões, mas ainda nenhuma resposta!

Um pressuposto central em psicologia crítica é que nossa subjetividade, nosso mundo


psicológico, está profundamente imbricada na nossa cultura e nas nossas práticas
sociais. Nossas vontades, necessidades e desejos refletem as normas e expectativas que
absorvemos como membros de uma tribo, grupo ou comunidade particular. A consciência
desta interligação ajuda a explicar porque rejeitamos o enfoque exclusivo, operado pela
psicologia hegemônica, no indivíduo e no nível interpessoal de análise, e elevamos nosso
olhar ao nível social.

Estar atento a isso também nos permite avançar em explorações reflexivas que estejam
de acordo com nossas vontades, necessidades e desejos. O que flui do nosso eu interior,
se é que ele existe, e da cultura que, estritamente falando, não existe para além de nós
mesmos, mas que nós e outros membros da sociedade criamos? E, apesar de termos
enfatizado a natureza socialmente enraizada do indivíduo, nós também vemos, e
procuramos reafirmar, as centelhas de ação e resistência que nos permitem mudar
nossas vidas e comunidades. Psicólogos críticos lutam para localizarem-se dentro da
dialética do determinismo e da livre escolha (Teo, 2005).

Novamente, assim como os psicólogos hegemônicos, os psicólogos críticos também


manobram entre os legados conflitantes da pessoa hiper-racional semelhante a um
computador e o ser totalmente irracional modelado pelas concepções freudianas. A
pessoa racional, pelo menos de acordo com a corrente principal em teoria econômica e
certas perspectivas em psicologia, toma decisões baseada puramente em um cálculo
lógico de custos e benefícios. A pessoa irracional, por outro lado, age passional e
instintivamente. Subjetivamente sabemos que lidamos com ambas as tendências, porém
também sabemos que a subjetividade pode nos enganar.
Como observado na discussão teórica de Sloan e no capítulo de Arrigo e Fox sobre a
intersecção entre psicologia e direito, alguns psicólogos críticos utilizam aspectos da
psicanálise para elucidar nossa compreensão da subjetividade e da racionalidade (e.g.,
Oliver, 2004; Parker, 1997). Os conceitos de consciência e inconsciência podem ajudar a
explicar como as injunções sociais atravessam o vínculo indivíduo-sociedade. E eles
levantam questões: se as forças inconscientes guiam nosso comportamento social, ético
e político, então nossas tentativas de ser útil ou de defender a mudança social indicam
simplesmente um estratagema para ganhar elogios e reconhecimento, ou algum outro
desejo insconciente? Nosso engajamento político nada mais é do que uma busca egoísta
e irracional? Ainda que seja assim, existe alternativa? Ao desconstruir a experiência
humana, interpretando-a de acordo com modelos abstratos, corremos o risco de extirpar a
existência de significado. Isso também torna a mudança social menos provável.

O âmbito da mudança social e da ação política

Victoria Clarke e Virginia Braun nos lembram que a mudança social não é o objetivo
principal de todos os psicólogos críticos (capítulo 14). O notório desacordo entre Kerry
Chamberlain e Michael Murray sobre como a psicologia crítica da saúde "deve centrar-se
em revelar a disparidade e a desvantagem ou em alterá-la" (capítulo 9), ressalta que a
pesquisa narrativa e discursiva enfatiza a primeira posição, enquanto que a pesquisa-
ação enfatiza a segunda (Alexa Hepburn e Clare Jackson descrevem a psicologia
discursivista no capítulo 11). Apesar da diversidade política, é plausível dizer que a maior
parte dos psicólogos críticos acredita haver algo fundamentalmente errado em uma
disciplina que não somente falha em modificar práticas sociais injustas, mas de fato as
reforça, e há algo de fundamentalmente errado com sistemas sociais que excluem,
alienam e oprimem massas de pessoas. O debate interno na psicologia crítica não é tanto
se a mudança social é necessária, mas qual nível de mudança buscar e como realizá-la.
Os posicionamentos em relação a esta questão refletem uma confluência do político e do
pessoal ao profissional e pragmático.

A postura de uma consciência reflexiva nos lembra que o ambiente que nos cerca afeta
aquilo que realizamos. O ambiente inclui as configurações acadêmicas tradicionais que
empregam psicólogos críticos mais bem definidos. A acadêmica oferece um número de
vantagens, não somente benefícios práticos, mas também a norma (bastante prevalente)
de que a exploração intelectual faz parte do trabalho. Nosso geralmente confortável e
privilegiado ambiente de trabalho, contudo, impõe uma variedade de limites formais e
informais, alguns dos quais levam ao que Huygens referiu-se por “derrotismo político da
acadêmica” (capítulo 16). Estes limites restringem especialmente os alunos já graduados,
que procuram emprego e estão em estágio probatório, esperando manter os empregos
que possuem. Todos sabemos que, para manter-se na academia, especialmente nas
principais instituições, é preciso mais do que aparecer na hora certa e realizar um bom
trabalho. Assim como nos espaços de trabalho marcados por uma configuração
hierárquica, isso também significa agradar administradores e professores seniores. Esta
já é uma tarefa bastante difícil para acadêmicos que aceitam as normas institucionais,
particularmente numa era em que as universidades cortam custos contratando
professores em tempo parcial para substituir os de tempo integral. A tarefa é ainda mais
difícil para professores críticos, cujo trabalho critica, implicita ou às vezes explicitamente,
as normas acadêmicas em geral e em suas próprias instituições. Psicólogos críticos que
desafiam a pesquisa, os valores e a política daqueles, em seus departamentos ou
administrações, que têm o poder de contratar e deminitr, com frequência colocam-se em
situação de risco profissional. (Dennis Fox apresenta algumas dessas questões na parte
final deste livro dedicada às perguntas mais frequentes).

Restrições como essas contribuem para dois tipos de dilemas inter-relacionados,


um pessoal e outro político. O dilema pessoal é que os acadêmicos recebem mais
incentivos para escrever o próximo artigo ou obter mais subsídios, do que para trabalhar
mais diretamente pela mudança social. Como é verdade dentro da sociedade mais ampla,
trabalhos demorados e, às vezes, estressantes – procurar emprego, progredir no
emprego, e apenas realizar um bom trabalho – não deixam muito espaço para o ativismo
político que a maioria do psicólogos críticos defende. Além do tempo sobrecarregado,
existe a pressão para que se demonstre um foco profissional. Professores seniores
costumam aconselhar seu alunos de graduação que não passem muito tempo ensinando,
o que seria um desperdício de tempo de dedicação à carreira de pesquisador e a
publicações. Alguns dizem aos seus jovens colegas de trabalho que o envolvimento
político e comunitário irá prejudicar suas perspectivas de emprego.

Perante tudo isto, pode ser tentador afirmar que a nossa mais importante contribuição é
escrever livros que identifiquem problemas para que outros resolvam. O coração da
academia é, afinal de contas, intelectual e não ativista. E assim como Teo (2005)
observou, dentro da tradição crítica, tanto a desconstrução do atual estado de coisas,
quanto a oferta de visões para um melhor estado de coisas, falharam. Muitos de nós
ainda tentam achar algum equilíbrio entre teoria e ação, entre criticar o mundo e tentar
mudá-lo. Teo aponta no capítulo 3 que, embora o aumento do conhecimento seja uma
forma legítima de ação, “teorização em prol da teorização e pesquisa em prol da pesquisa
devem ser consideradas práticas indulgentes dado que a vida e a morte estão em jogo”.

Então nós tentamos mesclar nossa política crítica com nosso trabalho profissional, às
vezes, realizando pesquisas politicamente relevantes e intervenções, ilustradas ao longo
deste livro. Mas, adotar uma metodologia crítica, como descreve Stainton Rogers no
capítulo 20, é mais fácil em algumas sub-disciplinas do que em outras. Por exemplo, a
natureza da psicologia comunitária torna particularmente úteis abordagens como a da
pesquisa-intervenção na comunidade (ver, por exemplo, capítulos 8, 17, 22).

Contribuir para o dilema acadêmico é cair na armadilha da neutralidade que discutimos


anteriormente: adaptar-se à figura neutra e apolítica da psicologia hegemônica e acreditar
que precisamos de mais pesquisa antes que possamos advogar por uma mudança
significativa. Isso faz sentido para entendermos as falhas do sistema existente, antes de
defendermos algo novo. Por outro lado, nossas sociedades possuem tantas falhas que
poderíamos passar uma vida inteira tentando dissecá-las. Como algum de nós colocou
em outra ocasião, “conscientizar-se é bom, mas agir é melhor” (Fox, 2003).

O segundo dilema, gerado em parte pelo nosso ambiente acadêmico, mas que reflete
também questões mais amplas da filosofia e estratégica políticas, determina o nível de
ação apropriado. Como Prilleltensky e Nelson observaram (capítulo 8), e como foi
discutido em muitos outros capítulos, existe uma importante distinção entre práticas
paliativas – por exemplo, aquelas que tendem para os feridos, para o cuidado dos
deficientes, e tratamento dos enfermos – e práticas transformadoras, cujo objetivo é
mudar os sistemas que ferem e marginalizam tantos. Psicólogos críticos acusam a
psicologia hegemônica de ser, quase que exclusivamente, paliativa, focada na terapia
para os aflitos, em pesquisas destinadas a pequenas reformas e empreendimentos de
horizonte limitado. Levando em conta estas críticas, os psicólogos críticos deveriam
abandonar a esfera paliativa e simplesmente adotar transformações de maior alcance?
Na prática, não é sempre fácil identificar esforços transformadores, ou determinar qual o
papel que podemos desempenhar (ver a discussão de Steinitz e Mishler sobre as políticas
de resistência). Nós nem sempre concordamos entre nós sobre se, por exemplo, um
projeto em particular é realmente transformativo ou meramente melhorativo. Parece claro
que, ao menos em curto prazo, práticas melhorativas ajudam mais rapidamente aqueles
que necessitam, ainda que essa ajuda seja mais limitada do que uma psicologia da
emancipação ou libertação potencialmente visariam. Mesmo em condições menos
terríveis como aquelas pesquisadas por Lykes e Coquillon, cujas comunidades saiam de
uma guerra (capítulo 17), é exigida uma resposta prática.

Ao descrever o terreno da psicologia crítica, Teo observa que “no pensamento crítico é
possível encontrar orientações ético-políticas que variam da esquerda liberal progressista
à radical” (capítulo 3). Alguns autores presentes neste livro, distribuídos neste espectro,
estão remetidos ao dilema político. E descrevem o quanto os métodos de pesquisa
tradicionais, que estão firmemente enraizados na visão positivista da psicologia
hegemônica, ajudaram a marginalizar ou oprimir pessoas de formas significativas (por
exemplo, os capítulos de Ora Prilleltensky sobre deficiência e Cherry sobre psicologia
social). Na verdade, Ignacio Martin-Baró (1994), cujo desenvolvimento de psicologia da
libertação é apontado por muitos como um modelo, utilizou métodos tradicionais de
pesquisa para promover a libertação. Poderíamos chamar esses esforços cruciais de
“críticos”? Uma psicologia crítica que está focada na “mudança transformativa” e que
atinja a “raiz do problema” está localizada unicamente no espectro radical e político, ou
podem os liberais e progressistas, que buscam reformas pragmáticas, também ser
críticos? Se sim, como poderíamos distingui-los de seus pares progressistas “não-
críticos”?

Talvez haja uma distância maior do que gostaríamos de acreditar entre o que é teórico,
metodológico e politicamente consistente em “psicologia crítica” e, mais confuso, o que é
inconsistente em "psicologia da justiça social". No capítulo 2, Ben Harris utiliza as
percepções e equívocos sobre a história da psicologia para nos lembrar que o
pensamento dicotômico pode levar psicólogos críticos a se perderem. As definições são
ardilosas. Nossos dilemas persistem.

Pontos principais do capítulo

1. A psicologia crítica remete a uma série de abordagens sobrepostas que desafiam a


forma implícita e explícita como a psicologia hegemônica sustenta um status quo
injusto e insatisfatório.

2. O impacto negativo dos psicólogos ocorre apesar de suas boas intenções.

3. Preocupações centrais são enquadradas nas seguintes categorias: individualismo e


insignificância; desigualdade e opressão; e consequências não intencionais.

4. Conceitos centrais incluem o nível de análise, o papel da ideologia e a armadilha


da neutralidade.

5. Psicólogos críticos diferem entre si com relação aos seus dilemas, os quais foram
discutidos aqui segundo duas categorias: aqueles sobre os quais se debruçam os
psicólogos em geral, a natureza da natureza humana, e aqueles enfrentados pelos
psicólogos críticos, mais diretamente relacionados ao âmbito da mudança social.

Glossário

– psicologia crítica: uma variedade de abordagens que desafia os pressupostos, os


valores e as práticas que concernem a psicologia hegemônica, os quais ajudam a
manter um status quo injusto e insatisfatório.

– ideologia: em geral, uma visão de mundo ou conjunto de pressupostos sobre os


modos de funcionamento da sociedade; mais especificamente, um conjunto de
ideias incutida por setores dominantes da sociedade, para justificar o poder de uma
elite e das instituições.

– nível de análise: o âmbito da generalização no pensamento sobre comportamentos


relevantes, do mais estrito (nível individual), continuando por um intermediário
(nível interpessoal ou situacional), ao mais amplo (nível estrutural e social).

– psicologia hegemônica: a psicologia praticada pelas instituições dominantes e seus


profissionais.

– positivismo: a posição filosófica de que o progresso viria apenas através de uma


aplicação objetiva e lógica do método científico formal.

Questões

1. Com que frequência os cursos da psicologia hegemônica abordam questões


levantadas por psicólogos críticos? Os psicólogos hegemônicos estão
familiarizados com a psicologia crítica?

2. De que maneira a psicologia ajuda a promover a mudança social?

3. A psicologia crítica é um ativismo político?

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