Artigo Mestra Janja
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Resumo
No presente artigo apresentamos reflexões sobre a Capoeira Angola como uma cultura de matrizes negras e
africanas no Brasil e como uma práxis educativa transformadora e libertadora. Destacamos alguns princípios
compreendidos como fundamentais à cosmo visão afro-brasileira para pensarmos em formas de educação mais
inclusivas e voltadas para o crescimento humano integral, como: Comunidade, Ancestralidade, Oralidade,
Ritualidade, Ética e Corporeidade. Buscamos, com essa reflexão, construir elementos de análise sobre os limites
e potencialidades da Capoeira Angola para a construção da autonomia e emancipação dos sujeitos, e formadora
na relação com a diversidade cultural. Essas reflexões foram frutos de nossa pesquisa de mestrado, que tratou do
trabalho do grupo Nzinga de Capoeira Angola com crianças e jovens da comunidade quilombola do Alto da
Sereia, em Salvador/BA.
Palavras-chave: Capoeira Angola, Ancestralidade, Educação, Diversidade.
Abstract
In this article we present reflections about Capoeira Angola as a culture of black and African heritage in Brazil
and as a transforming and liberating educational praxis. We emphasize some principles understood as
fundamental to the African-Brazilian worldview to think of ways to add more inclusive education and focused
on integral human growth, such as: community, ancestry, orality, rituality, ethics and corporality. We seek with
this reflection to build analytical elements about the limits and potentialities of Capoeira Angola to promote the
autonomy and empowerment of people, as well as promoting a learning relationship with the cultural diversity.
These considerations are the result of our master's research, which dealt with the work of the Capoeira Angola
group Nzinga with children and young people in a quilombo community called Alto da Sereia, in Salvador,
Bahia, Brasil.
Keywords: Capoeira Angola, Ancestry, Education, Diversity.
curiosidade que nos move e que nos põe destaca a importância do exercício comunitário
pacientemente impacientes diante do mundo que proporcionado na prática educativa dos grupos de
não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos” Capoeira Angola, e a sua relação com um
(FREIRE, 1996, p. 32). aprendizado para a formação dos sujeitos, para além
(b) O desafio que se apresenta no processo da “pequena roda” da capoeira:
de construção da autonomia. Para Freire (1996, p. ‘O exercício’ da Capoeira Angola no
40), uma das tarefas do educador é, “exercendo cotidiano dos seus iniciados cumpre o aspecto
como ser humano a irrecusável prática de inteligir, filosófico que lhe é primordial: o exercício entre a
desafiar o educando com quem se comunica e a Pequena e a Grande Rodas. Ou seja, embora a sua
quem comunica”. prática assegure as complexidades da individuação,
(c) A assunção dos educandos como é no exercício comunitário que ela é avaliada,
sujeitos sociais e transformadores, sendo uma das refletida e re-avaliada, constantemente (ARAÚJO,
tarefas mais importantes da prática educativo-crítica 2004, p. 113).
a de propiciar as condições em que os educandos, Pedro Abib (2005) complementa essa
em suas relações uns com os outros e todos com o/a perspectiva, enfatizando também a importância e a
professor/a, “ensaiam a experiência profunda de riqueza de significados da vivência comunitária no
assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, aprendizado, na perspectiva cultural africana:
como ser pensante, comunicante, transformador, Na perspectiva africana, como afirma
criador...” (FREIRE, 1996, p. 41). Gonçalves e Silva, a construção da vida encontra
(d) A busca pelo equilíbrio entreautoridade um sentido maior quando relacionada à comunidade
e liberdade, para se romper com o autoritarismo e a daqual faz parte o sujeito, não se restringindo ao seu
licenciosidade: aspecto individual. O crescimento das pessoas tem
Um esforço sempre presente à prática da sentido quando representa fortalecimento para a
autoridade coerentemente democrática é o que a comunidade a que pertencem (ABIB, 2005, p. 125).
torna quase escrava de um sonho fundamental: o de O autor relaciona essa experiência, ainda,
persuadir ou convencer a liberdade de que vá ao desafio, elemento destacado por Freire, dizendo
construindo consigo mesma, em si mesma, com que o aprendizado do aluno que se inicia na
materiais que, embora vindo de fora de si, sejam capoeira ocorre de forma “profundamente integrada
reelaborados por ela, a sua autonomia (FREIRE, àquela comunidade cultural, que passa então a
1996, p. 93). acolhê-lo como um novo membro” (ABIB, 2005, p.
(e) Outra característica da prática educativa 127), e acrescenta:
voltada para a autonomia seria a resistência, As situações desafiadoras da roda de
marcada pela rebeldia que não permite a resignação capoeira se tornam então, parte do processo de
em face às injustiças sociais. Assim, o autor defende aprendizagem e estão presentes, como dizem
que é preciso que tenhamos na resistência que nos Castro Júnior e Sobrinho (2001), ‘no imprevisível,
preserva vivos, na compreensão do futuro como no inesperado, na ginga desconcertante, no mar
problema e na vocação para o ser mais como claro-escuro cheio de turbilhão, enfim, numa
expressão da natureza humana em processo de estar vivência inspirada e imersa na comunidade e nas
sendo, fundamentos para a nossa rebeldia e não para histórias individuais e coletivas, mobilizadas pela
a nossa resignação em face das ofensas que nos memória ancestral do grupo’. O aprendizado da
destroem o ser. Não é na resignação mas na rebeldia capoeira angola, simbolizado pela roda, tem o
em face das injustiças que nos afirmamos (FREIRE, caráter profundamente comunitário (grifos
1996, p. 78). meus).
Para pensarmos sobre os princípios dos Na Capoeira Angola o seu processo de
processos educativos a partir da Capoeira Angola, aprendizagem não se limita a momentos de
um aspecto fundamental é compreendermos seu treinamento ou de aulas, mas passa pela inserção e o
sentido de prática comunitária. Mestre Pastinha já envolvimento dos aprendizes no universo da
nos alertava: “Camaradas, persisamos ainda de capoeiragem, o que atualmente acontece
brilhantes capoeiristas que <se>unam fazendo-se principalmente por meio dos grupos de capoeira. Os
colegas, reunam os seus votos mais cincerios41 que grupos, por sua vez, reconhecem-se como
formulam o seu crecente progresso...” (DECÂNIO pertencendo à determinada linhagem, que apontam
FILHO, 1997, p. 28). os mestres das gerações passadas aos quais os
Rosângela Araújo (2004) – a mestra Janja – ensinamentos, filosofias e formas de trabalho de
cada grupo se referem. No entanto, cada grupo contraditório com a ideia de autonomia ou liberdade
apresenta suas peculiaridades, de acordo com seus de escolha.
mestres diretos e seus participantes, o que nos leva a Araújo (2004) já levanta uma outra
compreender que pertencer a uma ou outra perspectiva em relação ao comprometimento no
linhagem não implica necessariamente em perda de grupo, agora já se referindo mais especificamente à
autonomia, como salienta Araújo (2004), referindo- Capoeira Angola, que passa pelos exercícios de
se às comunidades de Capoeira Angola nas quais liderança, ao ressaltar que:
esses sujeitos estão inseridos:
Entre os angoleiros todas as etapas do
Estas comunidades se caracterizam pela aprendizado (e suas promoções) são
autonomia de um ajuntamento histórico, exercícios de lideranças que se iniciam no
simbólico, afetivo, opcional. Aqui, não nos princípio do comprometimento,
interessa tanto o referendo destas criações independentemente da obtenção de uma
conceituais e identitárias, mas o aporte das “autorização” para fazê-lo. Ao contrário,
ressignificações que lhes justifiquem a esta dedicação é compreendida como
constituição do estarem juntos formando resultante do envolvimento e compromisso,
mais uma comunidade vinculada a tal e é tida como um fundamento de avaliação
matriz ou linhagem (ARAÚJO, 2004, p.138, permanente sobre o próprio pertencimento
grifos meus). de cada um à comunidade (ARAÚJO, 2004,
p. 133).
Mais um elemento para compreendermos o
sentido dos grupos ou comunidades de Capoeira Com isso, podemos refletir em que medida
Angola que se identificam com a matriz cultural essas comunidades podem ou não contribuir para
africana é a concepção do Ngunzo, Axé, a energia desenvolver as características de criatividade e
ou força vital, um “princípio-chave da cosmovisão liberdade dos sujeitos e, ao mesmo tempo, carregar
africana”, segundo Muniz Sodré (1988b, p. 87). Ele os sentidos de Força das tradições. Nesse sentido,
diz que “essas forças não existem (tampouco) como Abib (2005, p. 151) parece também mostrar essa
unidades individualizadas, isoladas, mas sempre em possibilidade, quando diz que a comunidade “trata-
conexão e em exercício de influência umas sobre as se de uma reconstrução criativa das possibilidades
outras” (SODRÉ, 1988b, p. 87). Esse sentido de de se viver e se relacionar com o mundo, com base
interação entre as forças pode ser visto na realização em outros princípios e valores, pautados por uma
dos rituais da roda de capoeira, onde a participação dimensão mais solidária e humanizante”.
de cada um afeta o todo do ritual e são criadas as Nas práticas pedagógicas da capoeira, nesse
condições para a transmissão e “renovação” do sentido de Comunidade, o(a) mestre(a) ou
Ngunzo. Esse princípio relacional da força é o que educador(a) é a maior referência, que demonstra um
traz, também, o sentido de comunidade, com saber adquirido por meio de sua experiência,
atenção para a importância da interrelação entre fundamentalmente de forma oral, seja contando
seus membros. histórias, fazendo reflexões durante os momentos de
O exercício comunitário é aqui treinos ou em outras situações informais com os
compreendido a partir das vivências grupais e pelo educandos, ou por meio das músicas cantadas
nível de envolvimento no grupo. Assim, são durante as rodas. Mestre Pastinha ensina: “Os
elementos fundamentais os valores da solidariedade mestres rezerva segredos, mais não nega a
e cooperação nos relacionamentos, o esplicação. Você deve cantar com inredo
comprometimento com o grupo e a formação de improvisado” (DECÂNIO FILHO, 1997, p. 30).
liderança – aspectos que podem ser diretamente Consideramos a oralidade de forma ampla,
relacionados à característica da assunção, ou seja, não apenas restrita à palavra falada, mas ao que diz
com a tomada de responsabilidade sobre si, respeito à vivência, à observação prática e aos
descritas por Freire em relação à autonomia. exemplos de conduta. Mestra Janja diz que a
Pensando essa questão a partir da concepção de Capoeira Angola, como práxis pedagógica
comunidade nas culturas identificadas como Arkhé, articulada à ancestralidade, “está assentada na
segundo Muniz Sodré (1998b), o comprometimento prática da vivência grupal e da oralidade e, como
parece estar ligado mais a “obrigações originárias”, todo assentamento, impõe a ligação entre o mundo
que não dependem do indivíduo, o que pode parecer visível e o invisível, numa ética própria assegurada
uma coisa, te passando alguma coisa, tem dicotômica a separação entre a “lógica analítica ou
todo um gesto, um brilho nos olhos, que da razão instrumental” e uma lógica baseada na
você sente uma alma sendo passada para ontologia africana, como no caso da transmissão do
você. axé. Devemos ainda ponderar as singularidades
existentes entre as religiões de matriz africana e a
Após ler esse relato, tive a oportunidade de capoeira. Se por um lado, vemos muitas
ouvir a mesma mensagem do Mestre Cobra Mansa semelhanças e a forma de transmissão do axé nos
durante um debate realizado com um grupo de ajuda a entender a pedagogia da própria capoeira
capoeiristas, em que ele falava sobre a diferença angola, vale considerar que os “mecanismos da
entre a palavra escrita e falada. Ele nos chamou a lógica analítica ou da razão instrumental” também
atenção para o fato de ser condição para a oralidade estão presentes em suas práticas educativas, pois
o “estar presente”. Naquele momento, as pessoas fazem parte do cotidiano das pessoas envolvidas.
presentes na sala encontravam-se em total silêncio, Podemos sim reconhecer a co-existência de
apenas escutando, atenciosamente, as palavras do perspectivas diversas sobre o “educar”, em que pese
mestre, observando as suas expressões e sentindo a a valorização do corpo, como um lugar do sagrado e
profundidade do que ele tentava transmitir. Pude o poder das forças vitais, o que não implica em uma
sentir a diferença da qual ele falava – a partir relação de interdependência entre a capoeira e a
daquele momento, as mesmas palavras que eu havia religião afro-brasileira.
lido tomavam outro sentido para mim e se cravavam A respeito dessas questões, trazemos um
mais fortemente em minha memória. Ele citou a exemplo do campo de nossa pesquisa de mestrado,
autora Juana Elbein dos Santos que em seu livro Os que tratou do trabalho do grupo Nzinga de Capoeira
Nàgô e a morte4 ele encontrou a idéia de que: Angola com crianças e jovens da comunidade
quilombola do Alto da Sereia, em Salvador/BA
quando se fala, você não está transmitindo (MACHADO, 2012). Na ocasião do evento em
simplesmente a palavra, mas a sua alma. E comemoração aos 15 anos do grupo Nzinga,
que o que estou falando agora é o que me realizado na sede do grupo em São Paulo
foi passado por pessoas, que receberam de (localizada em um bairro da Zona Oeste da capital),
outras pessoas, que receberam de outras em agosto de 2010, durante uma aula de capoeira do
pessoas, e assim por diante. O que vale é a Mestre Poloca, ele falou sobre a possibilidade que a
alma, que está no olhar, no gesto, no capoeira traz de trabalhar os diversos sentidos
movimento (Informação verbal)5. humanos, chamando a atenção para a necessidade
de despertarmos para isso, para ampliar nossa
Muniz Sodré também destaca a importância percepção, a qual é muitas vezes desconsiderada na
da oralidade, relacionando-a com a transmissão do vida moderna. Ou seja, para aprender capoeira, é
axé, com a noção de tempo não-linear que une preciso utilizar amplamente a visão, a audição e o
passado, presente e futuro e com a corporalidade, tato, ampliando-se conseqüentemente a capacidade
quando diz: de intuição, de forma que não seja necessário mais
despender muita energia concentrando-se, por
A transmissão do axé implica na exemplo, no ritmo da música, pois com o tempo ela
comunicação de um cosmos que já inclui passa a ser “natural”, intuitiva. A capoeira ensina,
passado e futuro. Nesse processo, a palavra dessa forma, a utilizar uma atenção “multifocal”,
pronunciada é muito importante, porque percebendo as diversas coisas que estão
pressupõe o hálito – logo, vida e história do acontecendo ao nosso redor.
emissor. Não tem aí vigência, entretanto, Uma característica da oralidade seria a
mecanismos da lógica analítica ou da razão dificuldade de se absorver a informação, por ser
instrumental, pois a transmissão se opera apenas “ouvida”, não escrita, não necessária em
pelo deslocamento espacial de um conjunto uma avaliação escrita posteriormente. Pode-se dizer
simbólico – gestos, danças, gritos, palavras que esta questão da oralidade seria mais uma forma
– em que o corpo do indivíduo tem papel de se trabalhar essa atenção, como também a
fundamental (SODRÉ, 1988b, p.96). memória, que não significa repetição exata do que
foi falado, mas a compreensão e interpretação de
No caso da capoeira, nos dias de hoje, cada aluno. Mestre Poloca disse também que muitas
ressalto o cuidado para não pensarmos de forma informações são passadas, especialmente nos
crianças, como capoeiristas e protagonistas. esse tipo de atitude e de sentimento mais autônomo
Inclusive tocando o berimbau gunga (o instrumento por parte delas. Indo na mesma direção, Pedro Abib
responsável pela coordenação da roda, geralmente afirma que:
tocado pelo mestre ou peloaluno mais antigo no
grupo), não simplesmente para garantir sua A lógica diferenciada e diferenciadora
participação por serem crianças, mas porque já se desse processo permite que os capoeiras
mostram capazes de cumprir tais funções e ali sejam sujeitos de sua própria ação, na
encontram espaço e estímulo para assumir esse medida em que no jogo, durante o ritual da
papel e aprender a fazê-lo. É por meio da sua roda, o indivíduo tanto aprende quanto
participação no ritual, semanalmente, que as ensina num rico processo de interação
crianças vão aprendendo como ele deve acontecer e social, em que o improviso, o inusitado, o
os sentidos que ele carrega, seja observando os desafio, o “estar atento” são elementos
adultos ou as crianças mais velhas, seja pelas constitutivos de formas diferenciadas de
palavras dos mestres, ou ainda, por meio da relação aprendizagem no jogo de capoeira, com
que fazem com suas vivências nos rituais do base nos princípios de oralidade (...). Uma
candomblé, para aqueles que estão envolvidos na frase do mestre Pastinha que ficou famosa,
religião. foi aquela que diz: ‘cada qual é cada qual,
Assim acontece com o ritual: ele se repete, é e ninguém joga do meu jeito’ (ABIB, 2005,
modelo de retorno e religação com o divino, e, ao p. 142. Grifos meus).
mesmo tempo em que possui toda uma hierarquia
que dita as formas como deve acontecer, ele A Ancestralidade nos remete a uma dessas
também estimula a criatividade. A referência à coisas que se encontram nas profundezas de nossos
hierarquia e aos fundamentos considerados de Ser nos (re)ligando ao nosso “natural”.
tradição no ritual apresenta o limite entre liberdade Sopro 9
e libertinagem e entre autoritarismo e autoridade. A Atente os seus ouvidos
autoridade do mestre se justifica por ser o mais Mais às coisas que aos Seres
antigo, portanto responsável por garantir que o À voz do Fogo, fique atento,
ritual mantenha essa “força mítica”, essa religação Ouça a voz das Águas.
ancestral, assumindo, assim, o papel de educador. Ouça através do Vento
A criatividade, assentada na tradição, pode A Savana a soluçar
ser vista na ludicidade, expressividade e teatralidade É o Sopro dos ancestrais...
que devem compor o jogo da capoeira, onde os
corpos estão em uma situação em que podem se A referência à ancestralidade diz de quem
expressar mais livremente doque no cotidiano. Os somos nós, a quem devemos a nossa existência aqui
princípios como o desafio, a espontaneidade e a e agora, mas vai além de laços consanguíneos,
autoconfiança, citados por Freire, são trazendo seu sentido para o pertencimento. Implica
imprescindíveis, ao mesmo tempo em que há toda em conhecer e reconhecer-se na construção de sua
uma obediência às “regras” ou aos “fundamentos” própria história e missão de vida. A ancestralidade
do ritual, como tanto defendeu Mestre Pastinha. remete não ao passado descolado do presente e do
Mais uma vez, o ritual pode contribuir para a noção futuro, mas a partir da ideia do tempo circular, não-
de limite (contrapondo-se à licenciosidade), a partir linear. Ela remete ao reconhecimento dos valores e
do respeito aos seus fundamentos ou princípios, que sentidos que nos conformam, que dão sentido à
definem a forma com que ele deve ser organizado. nossa auto-percepção no mundo, ao auto-
Esses fundamentos se justificam pela relação com a conhecimento, à compreensão mais ampla de nossa
ancestralidade, que traz o sentido maior ao ritual. própria existência. Ancestralidade que envolve a
Lembremos, porém, que “cada qual é cada dimensão espiritual, passando pelo corpo e pela
qual” e cada roda tem sua singularidade. A ligação natureza.
com a mandinga8 e a espiritualidade pode fortalecer Oliveira (2007a) explica que a
a pessoa a se assumir como capoeirista e a ancestralidade tornou-se e difundiu-se como
conquistar autonomia dentro de um grupo. Mestra categoria analítica, que supostamente se refere à
Janja enfatizou, em relato feito ao seu grupo, que as tradição da África tradicional, para interpretar as
crianças devem assumir-se como capoeiristas, não várias esferas da vida do negro brasileiro,
como “crianças jogando capoeira”, estimulando principalmente na religião – sendo o candomblé o
tema central de seu trabalho. E mostra como não se práticas cotidianas dos grupos ou comunidades. E
restringe aos negros, incluindo qualquer grupo os rituais são fortes veículos para tal.
racial que se identifique com a “africanidade”: O(a) mestre(a) é, novamente, a figura
responsável pela preservação da memória coletiva.
Legitimada pela “força” da tradição, a Vanda Machado (2006, p. 107), referindo-se a
ancestralidade é um signo que perpassa as Hampatê Bá, destaca a figura do Doma, entre os
manifestações culturais dos negros no povos Iorubá, o qual “é considerado o guardião dos
Brasil, esparramando sua “dinâmica” para segredos da Gênese cósmica e das ciências da vida e
qualquer grupo racial que queira assumir a mestre de si mesmo”. Ela conta que:
identidade de “africano”. Passa assim a ser
a portadora autentica de uma “lógica” Antes de iniciar as histórias do seu povo,
africana que organiza a vida de seus ele evoca os ancestrais com todo respeito,
adeptos – brancos ou negros – e engendra dizendo-lhes o que pretende falar com seus
estruturas sociais capazes de manter e ouvintes. Quando se trata de transmitir
atualizar os “valores africanos” forjados conhecimentos, ele o faz considerando os
na África pré-colonial (OLIVEIRA, 2007a, conhecimentos mais antigos, o
p. 23). conhecimento tradicional como uma cadeia
de transmissão onde, segundo a tradição,
Ele traz a ideia de uma “África mítica”, que ele é apenas o contador. (...) As primeiras
não apresenta necessariamente semelhanças palavras do Doma servem para evocar a
significativas com a África contemporânea, uma vez presença dos seus antepassados, para
que se trata de um vasto continente, que abriga uma pedir-lhes que venham assistir a sua
diversidade de povos e culturas, muitos deles história para que sejam evitados equívocos.
vivendo em uma realidade distante das tradições da Isto porque o africano acredita que o
África pré-colonial. ancestral não se afasta de sua família nem
Esta busca pela re-construção de uma da sua comunidade quando morre. Na
história negada e pela oportunidade de pensar o verdade, a palavra, para muitos africanos,
mundo desde um lugar mais próprio e anti- tem poder de realização; é sopro, vida,
hegemônico, resulta numa ação positiva e produz força (MACHADO, 2006, p. 107, 108).
uma narrativa e um sistema de identificação
inclusivos. O que não impede de reconhecer as No início das rodas de Capoeira Angola
culturas como processos dinâmicos de significação, também evocamos os ancestrais ao cantar a
nas quais não há uma essência. “chula”10 ou “louvação”, louvando o sagrado, os
No caso do grupo Nzinga de Capoeira ancestrais, os mestres que nos possibilitaram
Angola, a questão político identitária do negro aprender a capoeira:
brasileiro é posta como uma bandeira de luta, que Iê, viva meu Deus
defende essa ligação intrínseca da capoeira com Iê viva meu mestre
suas matrizes africanas. Sabemos que essa não é Iê a todos mestres
uma situação de unanimidade dentre os diversos Iê a capoeira
grupos de capoeira, que seguem ideologias Iê que é de Angola
diferentes e muitas vezes opostas. Mas podemos Iê, que é de Angola, camará!
perceber, a partir dessa perspectiva da
ancestralidade, que o reconhecimento da A louvação é cantada não apenas em
“africanidade” na capoeira, assim como no memória e homenagem aos grandes mestres do
candomblé, não significa negar que ela vem sendo passado (lembrando que este passado é ainda
constantemente (re)criada no Brasil, pois se trata, recente, em torno de apenas um século atrás).
mais, de uma posição política que luta pela Louvamos também os Orixás, Inquices, a Deus, os
valorização desta que se reconhece como “cultura elementos da natureza e a sua (nossa) essência
negra” no Brasil, diante da história de discriminação espiritual. É um momento em que cada um pode se
que ainda se faz presente em nossa sociedade. concentrar em suas próprias crenças e
Assim, o conceito de Ancestralidade não se refere a espiritualidade, agradecendo e pedindo sua
um passado congelado no tempo, mas é proteção. As músicas da capoeira são também um
constantemente (re)construído e (re)significado nas elemento fundamental de relação com a
Circulando por fora da estrela, estão dessas categorias envolve uma diversidade de
conceitos mais diretamente relacionados à Capoeira outros elementos, de forma complexa e dinâmica.
Angola em sua relação com a chamada cosmogonia Sem a pretensão de esgotar a diversidade do real, a
africana no Brasil; e na parte de dentro da estrela intenção éapenas focar em alguns aspectos-chave
estão categorias voltadas à autonomia, sendo esses para o olhar aqui proposto.
elementos importantes para pensarmos criticamente A comunidade é elemento central, uma vez
as práxis educativas da Capoeira Angola. Cada uma que traz a dimensão das relações, remetendo às
ao som do berimbau traz leveza à luta, o sorriso DECÂNIO FILHO, Ângelo. A herança de Pastinha.
traiçoeiro, o golpe não previsto, a brincadeira de 2. ed. Salvador: Coleção São Salomão, 1997.
capoeira” (DIAS, 2006, p.17-18). Podemos dizer DIAS, Adriana Albert. Mandinga, Manha e
que a mandinga seria um dos aspectos dessa Malícia: uma história sobre os capoeira na capital
herança africana na capoeira, portanto presente da Bahia (1910-1925). Salvador: EDUFBA, 2006.
em suas marcas ancestrais, como uma das
importantes armas de luta, que disfarça a força do LUZ, Marco Aurélio. Agada: dinâmica da
mais fraco contra sua situação de opressão. civilização africano-brasileira. Salvador: Centro
9 Poema de Birago Diop, em tradução de Leo Editorial e Didático da UFBA, Sociedade de
Gonçalves. Disponível em: Estudos da Cultura Negra no Brasil, 2000.
<http://revistamododeusar.blogspot.com/2011/06/
birago-diop-1906-1989.html>. Acesso em 07 jun. MACHADO, Sara Abreu da Mata. Saberes e
2011 Fazeres na Capoeira Angola: a Autonomia no jogo
10 Os cantos, na roda de Capoeira Angola, são de muleekes. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de
identificados como: ladainha (canto inicial, que Educação, Universidade Federal da Bahia,
geralmente conta uma história ou passa uma Salvador, 2012.
mensagem, que não tem resposta do coro), chula
ou louvação (saudando os/as mestres/as, os MACHADO, Vanda. Tradição Oral e Vida Africana
antepassados, a capoeira, etc. Nesse momento não e Afro-brasileira. In: SOUZA, Fiorentina, LIMA,
se joga, apenas se escuta o canto) e corrido Maria Nazaré. Literatura Afro-brasileira. Salvador:
(cantigas mais curtas que a ladainha, são Centro de Estudos Afro-Orientais, 2006.
respondidas pelo coro e enquanto são cantadas os
jogadores jogam na roda). OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da
11 A ladainha corresponde ao canto de abertura do ancestralidade: corpo e mito na filosofia da
ritual, cantada no início da roda e pode ser educação brasileira. Curitiba: Editora Gráfica
novamente cantada se, por algum motivo, o(a) Popular, 2007a.
mestre(a) pára a roda, seja para dar algum recado
ou para reorganizar o ritual, cantando uma outra _____________. Ancestralidade na Encruzilhada.
ladainha quando reinicia a roda. A ladainha pode Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2007b.
falar de histórias antigas da capoeira, de
seus(suas) mestres(as) e mitos antepassados, de PASTINHA, Vicente Ferreira (Mestre Pastinha).
mensagens de aviso para os jogadores, mensagens Quando as pernas fazem mizerer. Manuscritos e
de contestação ao sistema, dentre outros. desenhos de Mestre Pastinha. Disponível em:
<http://portalcapoeira.com/Downloads/Download-d
ocument/155-Capoeira-Angola-por-Mestre-pastinha
Referências >. Acesso em: 15 mar. 2011.
Sobre as autoras
Sara Abreu da Mata Machado é capoeirista, educadora e musicista. Atualmente, vem realizando a pesquisa de
doutorado “Baobá na Encruzilhada: Ancestralidade, Capoeira Angola e Permacultura”, junto ao Programa de