Livro Violencia Domestica

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Violência Doméstica contra as Mulheres:

uma necessária reflexão sobre suas causas e efeitos,


bem como as formas de seu enfrentamento
Reitora
Carmen Lúcia de Lima Helfer

Vice-Reitor
Rafael Frederico Henn

Pró-Reitor Acadêmico
Rolf Fredi Molz

Pró-Reitor Administrativo
Dorivaldo Brites de Oliveira

EDITORA DA UNISC
Editora
Helga Haas

COMISSÃO EDITORIAL
Helga Haas - Presidente
Adilson Ben da Costa
Carlos Renê Ayres
Cristiane Davina Redin Freitas
Hugo Thamir Rodrigues
Marcus Vinicius Castro Witczak
Mozart Linhares da Silva
Rudimar Serpa de Abreu

Avenida Independência, 2293


Fones: (51) 3717-7461 e 3717-7462
96815-900 - Santa Cruz do Sul - RS
E-mail: [email protected] - www.unisc.br/edunisc
Caroline Fockink Ritt
Eduardo Ritt

Violência Doméstica contra as Mulheres:


uma necessária reflexão sobre suas causas e efeitos,
bem como as formas de seu enfrentamento

Santa Cruz do Sul


EDUNISC
2020
© Copyright :

Direitos reservados: Universidade de Santa Cruz do Sul

Editoração: Clarice Agnes, Caroline Fagundes Pieczarka


Capa:
SUMÁRIO

PREFÁCIO
Ingo Wolfgang Sarlet.....................................................................9

APRESENTAÇÃO
Miloš Sklenka..............................................................................13

APRESENTAÇÃO
Profª Carmen Lúcia de Lima Helfer.............................................17

APRESENTAÇÃO
Eduardo Ritt, Caroline Fockink Ritt............................................19

EIXO 1 – O ESTADO, A SOCIEDADE E PARTICIPAÇÃO


DA UNIVERSIDADE NO COMBATE À VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA CONTRA A MULHER:

1 A IMPORTÂNCIA DA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA NA


FORMAÇÃO DO ESTUDANTE E NA SOCIEDADE, POR
MEIO DE PROJETO DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E FAMILIAR
Angelo Hoff e Patrícia Maria Konzen Klamt..............................25

2 O PROJETO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA “ENFREN-


TAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
CONTRA A MULHER: DIREITOS E GARANTIAS LEGAIS
DA MULHER AGREDIDA” E A SUA TRANSFORMAÇÃO
COMO “TELE MARIA DA PENHA/UNISC” DURANTE
A PANDEMIA DO COVID-19 COMO INSTRUMENTOS
PARA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS DA
MULHER.
Eduardo Ritt, Camila Alves Nemecek e Joseane Medtler............47
3 O PAPEL DA SOCIEDADE NA PREVENÇÃO E COMBATE
À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: A NECESSÁRIA ATUAÇÃO
CONJUNTA COM O ESTADO NA ARTICULAÇÃO E
CONTROLE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS, PRIVADAS E
LEGISLATIVAS
Rogério Gesta Leal e Chaiene Meira de Oliveira.......................69

4 A RELEVÂNCIA DA ATUAÇÃO DO DELEGADO DE


POLÍCIA PARA A PRESERVAÇÃO IMEDIATA DA
INTEGRIDADE DAVÍTIMADE VIOLÊNCIADOMÉSTICA
E FAMILIAR E PARA A RESPONSABILIZAÇÃO
CRIMINAL DO AGRESSOR
Graciela Lourdes Foresti Chagas e Renata Sebben Mohr..........88

5 O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO E A LEI MARIA


DA PENHA: A CONTROVÉRSIA ACERCA DE SUA
APLICABILIDADE NO CASO DE VIOLÊNCIA CONTRA
TRANSGÊNEROS E TRANSEXUAIS
Martin Albino Jora e Évelyn Caroline Jora Mendes Ribeiro....109

6 VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER E A ATUAÇÃO


DO SERVIÇO SOCIAL: ELEMENTOS PARA UMA
REFLEXÃO CRÍTICA
Marta von Dentz e Priscila Froemming....................................131

7 POLÍTICAS PÚBLICAS E AS AÇÕES AFIRMATIVAS


DE COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA
A MULHER: UMA CONDIÇÃO DE EFETIVIDADE DA
LEGISLAÇÃO PROTETIVA DA MULHER NO BRASIL
Cristiano Cuozzo Marconatto..................................................148

8 A AUTOCOMPOSIÇÃO NO TRATAMENTO DOS CON-


FLITOS ENVOLVENDO CASOS DE VIOLÊNCIA CON-
TRA A MULHER
Fabiana Marion Spengler e Amanda da Cruz Saraiva..............166
9 O PROJETO “ESCUTATÓRIA”: EFETIVIDADE AO
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ÀS
VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Josiane Caleffi Estivalet e Marli M. M. Costa........................186

10 JUSTIÇA RESTAURATIVA E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA


Cláudia Cagliari.......................................................................211

11 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: JUSTI-


FICA-SE A INTERVENÇÃO ESTATAL EM DISSONÂN-
CIA COM A VONTADE DA VÍTIMA?
Catiuce Ribas Barin.................................................................233

EIXO 2 – ASPECTOS IMPORTANTES A RESPEITO DA


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E DA LEI Nº 11.340/2006 (LEI
MARIA DA PENHA):

1 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMETIDA CONTRA


A MULHER: ASPECTOS HISTÓRICOS, O ESPAÇO
RESERVADO PARA A MULHER, PATRIARCALISMO
E INSTRUMENTOS LEGAIS PREVISTOS NA
ATUALIDADE PARA SUA PROTEÇÃO
Caroline Fockink Ritt e Eveline Bernardy...............................257

2 EPISTEMOLOGIA FEMINISTA E SEGREGAÇÃO URBA-


NA FEMININA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA
PENSAR A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES
Tuize Silva Rovere e Mariana Barbosa de Souza..................276

3 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER:


REVISÃO INTEGRATIVA
Alba Regina Zacharias e Rafael Souza...................................295
4 UMA EPIDEMIA EM MEIO A PANDEMIA: A VIOLÊNCIA
CONTRA AS MULHERES COMO UM PROBLEMA DE
SAÚDE PÚBLICA
Janaína Machado Sturza, Emanuele Dallabrida Mori e Tatiana
Diel Pires.................................................................................319

5 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A


MULHER NA PANDEMIA DE COVID-19
Caroline Fockink Ritt e Monike Pasqualotti Ghisleni.............344

6 A INTERSECCIONALIDADE ENTRE VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E TRANSFOBIA: INSTRUMENTOS
LEGAIS DE PROTEÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS
Diego Carvalho Locatelli........................................................368

7 ANÁLISE DO AUMENTO DO FEMINICÍDIO E O


EMPODERAMENTO FEMININO COMO FATOR DE
MUDANÇA
Vinícius de Melo Lima e Rosmeri Kunkel...............................392

8 O FORMULÁRIO NACIONAL DE RISCO E PROTEÇÃO À


VIDA (FRIDA) COMO ELEMENTO IMPORTANTE PARA
A ANÁLISE DAS MEDIDAS PROTETIVAS EM FAVOR
DA MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E
FAMILIAR
Eduardo Ritt, Isadora Hörbe Neves da Fontoura
e Flávia Esteves......................................................................416

9 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: UMA ANÁLISE COMPARA-


TIVA BRASIL- PORTUGAL
Luciane Bertoletti....................................................................440

10 A SISTEMATIZAÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE


URGÊNCIA PREVISTAS NA LEI 11.340/06
Camila Conrad........................................................................471
PREFÁCIO

Dentre os inúmeros e mesmo efeitos perversos decorrentes da


Pandemia do COVID-19, que tem se revelado como sendo um dos
eventos de amplitude global mais complexos e desafiadores para a
humanidade desde a Segunda Grande Guerra, estão, ademais dos
impactos na esfera social, econômica, política e científico-cultural,
as suas implicações para o Direito e, em especial, dos direitos
humanos fundamentais.
Basta um olhar sobre os noticiários que circulam pelos mais
diversos meios, para que se perceba a magnitude e diversidade dos
problemas que tem sido objeto de milhares de atos normativos e
decisões judiciais, abarcando todas as áreas do Direito e, no tocante
aos direitos e garantias fundamentais, tanto os assim chamados
direitos civis e políticos, quanto os direitos sociais, econômicos,
culturais e ambientais.
Aspecto particularmente alarmante – que lamentavelmente
não é em si novo – é que no contexto da crise pandêmica e como
efeito colateral de algumas medidas impostas pelo poder público com
o objetivo de proteção da vida e da saúde, na perspectiva coletiva
e individual, é o que diz respeito ao fato de que mais uma vez são
os segmentos mais vulneráveis da população os mais sacrificados.
Isso se manifesta de diversas maneiras em diferentes
contextos, como dão conta, em caráter meramente ilustrativos, os
casos da seletividade (ainda que não necessariamente intencional)
do acesso aos meios de prevenção e tratamento das parcelas mais
pobres da população, do descaso dominante com a situação dos
internos do desumano sistema penitenciário brasileiro, dos povos
indígenas, e, no que interessa especificamente para o presente
texto, da ainda maior exposição das mulheres ao mal da violência
doméstica, associada ao isolamento social imposto em função da
pandemia.
Além disso, como amplamente documentado e noticiado,
a despeito de todos os esforços na esfera legislativa, das políticas
públicas, das providências estruturais e organizacionais que vem
sendo tomadas na esfera do sistema judiciário (aqui compreendido
10

em sentido amplo, abarcando todos as funções - e atores -essenciais


contempladas pela Constituição Federal de 1988), o número de
casos de violência doméstica que segue sendo registrado não
realmente tem permitido festejos, muito antes pelo contrário, indica
que o combate concentrado e multilateral da infame patologia social
carece de prosseguimento.
Já por tal razão, recebi honrado o convite que me foi
formulado pelos amigos CAROLINE e EDUARDO RITT de lançar
algumas linhas à guisa de prefácio deste novo livro que veio a dar a
sua contribuição tanto para o debate acadêmico sobre o tema, quanto
como relato de projetos exitosos e proposições úteis para o processo
de superação do problema, que, a exemplo de outros, configura
claramente aquilo que se tem designado de um estado de coisas
inconstitucional e, poderemos agregar, também inconvencional,
porquanto em violação ao próprio sistema internacional (universal e
regional) de proteção dos direitos humanos.
O título da obra, por sua vez, não poderia ser mais apropriado
- Violência Doméstica contra as Mulheres: uma necessária
reflexão sobre suas causas e efeitos, bem como as formas de seu
enfrentamento, e reflete de modo preciso o conteúdo dos textos que
a integram.
Outrossim, merece destaque, além da adequada
interdisciplinaridade, a riqueza e atualidade dos conteúdos
versados e o seu comprometimento com a causa do enfrentamento
da violência doméstica, bem como a circunstância de a obra ter
origem numa altamente meritória e exemplar atividade de extensão
universitária e de integração e impacto comunitário desenvolvida
sob os auspícios da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e
coordenação dos organizadores da obra juntamente com estudantes
e outros atores sociais.
Tais iniciativas mostram que é possível mobilizar esforços
positivos e eficazes, gestados e levados a efeito no âmbito de uma
responsabilidade compartilhada entre a sociedade civil organizada
e o poder público, para enfrentar e superar o gigantesco desafio
representado pela violência doméstica e seus efeitos perversos que
diretamente atingem as mulheres, mas, ao fim e ao cabo, impactam
toda vida social.
11

Assim sendo, o que nos cabe aqui é parabenizar efusivamente


os organizadores e autores e desejar que tanto o livro que ora se
publica, mas em especial o trabalho que tem sido realizado por todos
os participantes do projeto de extensão, possa seguir em frente, se
fortalecer e frutificar cada vez mais.

Porto Alegre, 21 de agosto de 2020

Ingo Wolfgang Sarlet


Professor Titular e Coordenador do PPGD da PUCRS e
Desembargador aposentado do TJRS.
APRESENTAÇÃO

A proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais,


juntamente com o apoio à democracia, é um dos principais objetivos
da política externa da República Tcheca. Este objetivo concretiza-
se por meio de atividades do Ministério das Relações Exteriores e
das suas missões diplomáticas em relações bilaterais com outros
Estados, na execução da política externa comum da União Europeia
e na participação em organizações internacionais. Ao mesmo tempo,
a política externa da República Tcheca, baseada no respeito pela lei,
pela democracia e pelos direitos humanos, tem contribuído a longo
prazo para a segurança, a paz, a estabilidade e o desenvolvimento
sustentável no mundo.
A promoção dos direitos humanos e da democracia
desempenha um papel importante na cooperação bilateral entre a
República Tcheca e a República Federativa do Brasil. Isso deve-
se principalmente à ampla cooperação na área da transformação
social apoiada pelo Ministério das Relações Exteriores da República
Tcheca, que se baseia na nossa própria experiência histórica com o
processo de transformação da sociedade controlada por um regime
totalitário comunista e com a construção da democracia no país,
depois da Revolução de Veludo, no final de 1989.
O Consulado Geral da República Tcheca em São Paulo
considera a realização do projeto de extensão Enfrentamento da
Violência Doméstica e Familiar - Direitos e Garantias Legais da
Mulher Agredida, apresentado pela Universidade de Santa Cruz do
Sul, no estado do Rio Grande do Sul, e financiado pelo Programa da
Cooperação de Transição da República Tcheca, uma concretização
prática dos princípios dos direitos humanos na política externa do
nosso país. Neste caso, em cooperação com a República Federativa
do Brasil, com a qual, no ano de 2020, completamos 100 anos de
estabelecimento de relações diplomáticas.
No presente momento, a violência doméstica não pode ser
vista mais como um problema particular de duas pessoas ou de uma
família, mas como um problema público de toda a sociedade. Um
sério problema social que precisa ser discutido publicamente e, acima
14

de tudo, resolvido em tempo útil. Isso porque a violência doméstica


assume muitas formas e geralmente tem um impacto negativo a
longo prazo na vida das vítimas, em particular na das mulheres e de
seus filhos. Além da agressão física, a violência doméstica refere-
se também a abuso psicológico, extorsão econômica ou violência
sexual.
Levando em conta esse fato importante, o Consulado
Geral da República Tcheca em São Paulo e a Universidade de
Santa Cruz do Sul, em seu projeto conjunto, concentraram-se na
criação de três centros de atendimento nas delegacias de polícia das
cidades de Sobradinho, Venâncio Aires e Capão de Canoa. Nestas
cidades, estudantes de Direito selecionados fornecerão orientação
e apoio jurídico às vítimas de violência doméstica e implementarão
atividades de prevenção quanto a este tipo de violência.
Um elemento importante desse projeto internacional é a
estreita conexão que se estabelece entre vários componentes da
sociedade. Começando com a administração pública, representada
pela missão diplomática da República Tcheca em São Paulo e pelas
autoridades policiais das cidades acima mencionadas, passando pela
universidade comunitária e terminando em cada um dos cidadãos
que possam ser vítimas de violência doméstica.
Ficamos também muito felizes que este projeto tão
significativo e tão bem coordenado seja realizado justamente
no Rio Grande do Sul, estado brasileiro com o qual a República
Tcheca mantém uma longa cooperação e no qual reside um grupo
relativamente grande de descendentes de imigrantes tchecos. Assim,
o nosso objetivo é que a presença tcheca neste estado seja evidente,
não apenas na forma de apoio ao desenvolvimento econômico e
cultural, mas também na transformação social, ajudando a construir
aqui uma sociedade civil saudável e tentando reduzir o máximo
possível a violência, em particular, a violência doméstica contra as
mulheres.
Não há dúvida de que uma sociedade civil forte e saudável
só pode funcionar à base do respeito pelos direitos humanos e pela
dignidade de todos os seus membros. A violência física doméstica ou
qualquer outra forma de violência contra as mulheres está em claro
15

contraste com os princípios do Estado de Direito. O apoio legal às


mulheres no combate à violência doméstica e na consciencialização
sobre os seus direitos e garantias, o que é um dos principais objetivos
de nosso projeto conjunto, pode, sem dúvida, ajudar a reduzir o
crime contra as mulheres e fortalece a sua igualdade na sociedade
brasileira.
Ao mesmo tempo, tenho a certeza de que os estudantes
de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul envolvidos em
atendimento jurídico às mulheres no âmbito do projeto ganharão
uma única e valiosa experiência a qual poderão usar no futuro de
forma eficaz na construção das suas próprias carreiras profissionais,
o que os enriquecerá também na vida pessoal.

Miloš Sklenka,
Cônsul Geral da República Tcheca
APRESENTAÇÃO

A Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, seguindo


sua missão e sua identidade comunitária, comprometida com a pro-
dução, sistematização e socialização do conhecimento, com vistas à
formação de cidadãos livres, capazes e solidários, que contribuam
para o desenvolvimento de uma sociedade sustentável; e prezando
pela indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, assumiu,
desde sempre, o desafio de educar por meio da integração dessas di-
mensões. Dessa forma, a relação entre a produção do conhecimento
e o processo de aprendizagem vem sendo feita de distintas maneiras
e com uma infinidade de enfoques, que permitem a dinamicidade do
processo ensino-aprendizagem e a formação de sujeitos capazes de
transformar a sociedade.
O profundo envolvimento da Universidade com a comuni-
dade é viabilizado, em grande parte, pelos atendimentos realizados
pelos cursos de graduação para usuários em situação de vulnerabili-
dade social e para a população em geral. A formação dos estudantes
e a atenção aos usuários possibilita a articulação entre o ensino, a
pesquisa, a extensão e o serviço, configurando-se num valioso dife-
rencial para a formação dos profissionais egressos da UNISC.
As atividades do projeto de extensão “Enfrentamento da vio-
lência doméstica e familiar – direitos e garantias legais da mulher
agredida”, realizado nos municípios de Santa Cruz do Sul, Capão
da Canoa, Sobradinho, Venâncio Aires e Montenegro, sob a coorde-
nação da Professora Doutora Caroline Fockink Ritt e do professor
Mestre Eduardo Ritt, que presta atendimento às vítimas de violência
doméstica junto às Delegacias de Polícia dessas cidades, através do
atendimento semanal por acadêmicas do Curso de Direito, bolsistas
do projeto, com a finalidade de orientação dessas vítimas quanto a
seus direitos, previstos na Constituição Federal, na Lei Maria da
Penha e em outras legislações, tanto estaduais como municipais, são
exemplo desse movimento que acontece na universidade.
Especificamente, com relação às questões referentes à mu-
lher e sua cidadania, as ações da UNISC foram se evidenciando a
partir de 1992. Em 1993, foi instituído o grupo Mulher e Cidadania
18

para incentivar a organização, a participação e a conscientização


da mulher, a partir do estudo de temas do cotidiano, dos direitos
e cidadania das mulheres e, com o passar do tempo, muitas outras
proposições tomaram forma na defesa dos direitos das mulheres. A
Universidade, nesta trajetória, sempre esteve presente, procurando
dar significativa contribuição para a causa, provocando mudanças e
promovendo novas chances e oportunidades para as mulheres, em
parceria com os Conselhos Municipais da Mulher, Polícia Civil,
Ministério Público, Poder Judiciário, Defensoria Pública e outras
entidades correlatas.
Aproximação, intencionalidade, organização, participação;
necessidade do outro, do encontro, do coletivo, do conhecimento,
da reflexão e do debate, são ações que permitem uma aprendizagem
sistêmica, com visão interdisciplinar e com uma sinergia que integra
professor, estudante e comunidade.
A efetiva concretização da igualdade de gêneros ainda é uma
causa dos Direitos Humanos e constitui-se na batalha diária de to-
das as mulheres e de todos os homens que aprenderam as lições do
respeito ao próximo, independente da condição de gênero. Nesse
sentido, a leitura das experiências trazidas por este e-book soma-se
às mais diversas ações e movimentos que historicamente buscam
contribuir para a construção de conhecimentos que, mesmo que pro-
visórios, façam sentido à vida e proponham o encaminhamento de
melhorias ou soluções para os problemas reais.
Boa leitura!

Profª Carmen Lúcia de Lima Helfer,


Reitora da UNISC.
APRESENTAÇÃO

Eduardo Ritt1
Caroline Fockink Ritt2

A Constituição cidadã de 1988 garantiu tratamento isonômico


entre os homens e as mulheres, em seu art. 5º, inciso I, afirmando
que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos
termos desta Constituição”.
Todavia, a ideologia patriarcal ainda subsiste em nossa
sociedade, mantendo uma realidade social de total desigualdade.
A violência cometida contra a mulher, nesse sentido, é um
fenômeno histórico, pois a mulher sempre foi relegada a um papel
secundário em nossa sociedade.
O preconceito e a discriminação contra a mulher ainda estão
evidentes em dados socioeconômicos que indicam que as mulheres,
principalmente as negras, são discriminadas inclusive no mercado
de trabalho, não só pelo desemprego, mas também fazendo com que
recebam salários inferiores aos dos homens, mesmo em ocupações
semelhantes.
A desigualdade sociocultural e econômica é uma das razões
da discriminação feminina, e, principalmente, de sua dominação
pelos homens. Muitas vezes, o corpo da mulher, assim como sua
própria vontade, é entendido como uma propriedade masculina, e a
violência é uma consequência natural desse processo.
E a violência contra a mulher se traduz em atos de brutalidade,
constrangimento, abuso, proibição, desrespeito, discriminação,
imposição, invasão, ofensa, agressão física, psíquica, moral ou
patrimonial, ou seja, baseado no medo e pelo terror.
A Organização Mundial da Saúde indica que quase a metade
das mulheres vítimas de feminicídios são assassinadas pelos maridos
ou namorados, tanto pelos antigos como também pelos atuais. Da
mesma forma, pesquisa realizada pela Anistia Internacional, em
cinquenta países, trouxe dados que revelaram que uma em cada
20

três mulheres já foi vítima de violência doméstica, como também


obrigada a manter relações sexuais ou submetida a outros tipos de
violência.
No Brasil, a violência doméstica contra a mulher é uma
verdadeira tragédia social, e sua grande ocorrência não está ligada
somente à lógica da pobreza, ou à desigualdade social e cultural.
Também está ligada ao preconceito, à discriminação e ao abuso de
poder que possui o agressor com relação à sua vítima. A mulher, em
razão de suas peculiaridades, compleição física, idade e dependência
econômica encontra-se numa situação de verdadeira vulnerabilidade
social.
Precisamos, então, reconhecer que não há uma igualdade real
entre homens e mulheres, ou seja, que essa isonomia constitucional
continua a ser apenas formal, e que ainda não se transferiu dos textos
legais para a vida cotidiana, situação que precisa mudar.
Concretizar a igualdade de gêneros se constitui, então, numa
prioridade social, protegendo a mulher da violência doméstica.
Concretizar a verdadeira igualdade de gêneros se constitui uma
necessidade constitucional e real, urgente.
Por isso, o Estado deve estar juridicamente comprometido a
proteger a família e a cumprir sua função preventiva no que se refere
à prática da violência doméstica.
Mas não só o Estado deve estar comprometido, mas toda
a sociedade, inclusive as Universidades, organizações públicas e
privadas, etc.
Por isso, considerando que a violência doméstica contra
a mulher necessita, para sua erradicação, da atuação de toda a
sociedade, há muitos anos, sob a coordenação dos professores
Caroline Fockink Ritt e Eduardo Ritt, ambos do Curso de Direito
da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), foi criado um
projeto de Extensão Universitário denominado “Enfrentamento da
Violência Doméstica e Familiar – Direitos e Garantias da Mulher
Agredida”, no qual alunas do Curso de Direito são escolhidas e
preparadas para atender mulheres vítimas de violência doméstica
e familiar na própria Delegacia de Polícia de Santa Cruz do Sul,
21

quando da lavratura do registro de ocorrência policial, no sentido de


oportunizar um atendimento humanizado e de orientação jurídica,
tanto na área criminal como também na área de direito de família, ou
seja, nos principais reflexos que a referida violência traz, indicando
caminhos e formas de enfrentar a situação, inclusive com os demais
órgãos da rede de proteção.
O Projeto possui várias facetas, pois proporciona à mulher
vitimada um atendimento humanizado, mas, também, sendo
uma oportunidade de interação social dos acadêmicos do Curso
de Direito, com aprendizagem jurídica e crescimento pessoal e
humanista. Além disso, as acadêmicas são instadas a participar de
eventos acadêmicos, escrevendo artigos e expondo a problemática
da violência doméstica a todos e a todas, unindo, assim, a graduação
com a extensão e a própria pesquisa, ramos fundamentais de
uma universidade que se propõe comunitária como é o caso da
Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
Com o tempo, o Projeto passou a ser desempenhado na
Delegacia de Polícia da cidade de Montenegro/RS, e também seria
iniciado nas Delegacias de Polícia de Sobradinho/RS, Capão da
Canoa/RS e em Venâncio Aires/RS, abrangendo, assim, todas as
cidades onde a Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) possui
Cursos de Direito, sempre com total apoio da Polícia Civil gaúcha e
dos Delegados de Polícia e de seus agentes.
Muito importante foi o apoio dado ao Projeto pelo Consulado
Geral da República Tcheca em São Paulo, através de seu Cônsul
Geral, Senhor Miloš Sklenka, e do seu corpo administrativo,
que, tocados pela importância do tema, conveniaram com a
Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), através do Programa
da Cooperação de Transição da República Tcheca, e passaram a
ajudar financeiramente o Projeto, que possibilitaram a compra de
equipamentos para as acadêmicas e de brinquedos para as crianças,
filhas das mulheres agredidas, que foram disponibilizadas nas
Delegacias de Polícia.
Infelizmente, a pandemia do Covid-19 adiou
momentaneamente o processo de crescimento do Projeto, em razão
do necessário distanciamento social e das regras de segurança. Ao
22

mesmo tempo, fez crescer a violência doméstica contra a mulher,


justamente em face da reclusão a que todos nós nos submetemos,
dificultando o acesso da mulher vitimada aos meios de proteção
e colocando a mulher em posição mais vulnerável perante seu
agressor.
A reinvenção era necessária, e, por isso, o Projeto foi adaptado,
criando-se o Tele Maria da Penha/UNISC, consistindo em um Call
Center de atendimento, por telefone, das vítimas de violência
domésticas, preservando, assim, possíveis exposições ao contágio da
Covid-19 e, também, garantindo total sigilo quanto às informações
e identidade da vítima. O Projeto mantém seu alicerce principal:
a promoção de um atendimento humanizado às mulheres vítimas
de violência doméstica e familiar e esclarecimentos adequados.
Desse modo, ao acionar o Tele Maria da Penha/UNISC, a vítima é
atendida por telefone pelas bolsistas de extensão responsáveis, e, de
igual modo ao que ocorre nas Delegacias de Polícia, estas realizam
uma escuta atenta e sugerem o melhor encaminhamento, podendo,
inclusive, indicar a realização de um pedido de medida protetiva pela
delegacia online, garantindo o acesso aos direitos fundamentais da
mulher agredida e preservando a sua saúde diante do caos causado
pela pandemia.
Além disso, com todo o conhecimento obtido com a realização
do Projeto, entendeu-se ser muito importante criar uma obra jurídica
que pudesse aglutinar todo o saber adquirido e propiciar a sua
divulgação, debate e reflexão, para a qual foram convocados bolsistas
e ex-bolsistas do Projeto, bem como advogados, magistrados,
promotores de justiça, professores, psicólogos, integrantes da
Brigada Militar e da Polícia Civil, entre outras pessoas envolvidas
com a temática.
Assim, surgiu nosso livro intitulado “Violência Doméstica
contra as Mulheres: uma necessária reflexão sobre suas causas
e efeitos, bem como as formas de seu enfrentamento”, contendo
diversos artigos e ensaios sobre a própria violência, seus fatores,
consequências, formas de combate, atores e instrumentos legais.
Mais uma vez, foi imprescindível o apoio da Universidade
de Santa Cruz do Sul (UNISC), através da Senhora Reitora Carmen
23

Lúcia de Lima Helfer, assim como do próprio Consulado Geral


da República Tcheca em São Paulo, através do seu Cônsul Geral
Senhor Miloš Sklenka, que financiou a obra através do mencionado
Programa da Cooperação de Transição da República Tcheca, a quem
agradecemos enormemente.
Não poderíamos deixar de enaltecer a excelente qualidade
dos inúmeros trabalhos enviados pelos articulistas, de amplo
espectro, propiciando um amplo saber sobre a temática da violência
doméstica contra a mulher.
Não poderíamos deixar de agradecer, ainda, a Senhora Helga
Haas e sua equipe, coordenadora da Editora da Universidade de
Santa Cruz do Sul (UNISC), pelo auxílio e grande colaboração.
Agradecemos, ainda, a distinção do jurista e professor Ingo
Wolfgang Sarlet, de prefaciar a obra, o que muito engrandeceu o seu
conteúdo.
Por fim, não poderíamos deixar de agradecer a contribuição
dos articulistas e ensaístas Alba Regina Zacharias, Amanda da Cruz
Saraiva, Angelo Hoff, Camila Alves Nemecek, Camila Conrad,
Catiuce Ribas Barin, Chaiene Meira de Oliveira, Cláudia Cagliari,
Cristiano Cuozzo Marconatto, Diego Carvalho Locatelli, Emanuele
Dallabrida Mori, Eveline Bernardy, Évelyn Caroline Jora Mendes
Ribeiro, Fabiana Marion Spengler, Flávia Esteves, Graciela Lourdes
Foresti Chagas, Isadora Hörbe Neves da Fontoura, Janaína Machado
Sturza, Josiane Caleffi Estivalet, Joseane Medtler, Luciane Bertoletti,
Mariana Barbosa de Souza, Marli M. M. Costa, Marta von Dentz,
Martin Albino Jora, Monike Pasqualotti Ghisleni, Patrícia Maria
Konzen Klamt, Priscila Froemming, Rafael Souza, Renata Sebben
Mohr, Rogério Gesta Leal, Rosmeri Kunkel, Tatiana Diel Pires,
Tuize Silva Rovere e Vinicius de Melo Lima, sem os quais seria
impossível criar uma obra deste porte, no essencial debate de ideias
a serviço da informação e da cultura jurídica.
Esperamos uma proveitosa leitura para todos e que a presente
obra possa ser útil para o enfrentamento da violência doméstica em
nossa sociedade.
24

NOTAS
1
Eduardo Ritt, professor das disciplinas de Direito Penal e Processo Penal do
Curso de Direito e nas Especializações (presencial e Direito Penal e Processual
Penal da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Promotor de Justiça
Criminal no Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Mestre em
Direito. E-mail: [email protected]. Currículo Lattes: 8342935944007299.
2
Caroline Fockink Ritt é Doutora em Direito e Pós-Doutora em Direitos
Fundamentais na PUC – RS. Professora de Direito Penal no Curso de
Direito da UNISC. Coordenadora do Projeto de Extensão “Enfrentamento
da Violência Doméstica e Familiar: Direitos da Mulher Agredida”. E-mail:
[email protected]
A IMPORTÂNCIA DA EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA NA FORMAÇÃO DO
ESTUDANTE E NA SOCIEDADE, POR MEIO
DE PROJETO DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E FAMILIAR

Patrícia Maria Konzen Klamt1


Angelo Hoff2

1 INTRODUÇÃO
O presente artigo científico tem como objetivo principal
demonstrar a importância de projetos de extensão universitária na
formação acadêmica de alunos, em especial em uma Universidade
comunitária como a UNISC. Como referência para corroborar
essa experiência prática que enriquece a formação estudantil,
detalharemos a relevância do projeto de extensão intitulado
“Enfrentamento da Violência Doméstica e Familiar: Direitos e
Garantias da Mulher Agredida”, coordenado pelos Professores
Eduardo Ritt e Caroline Ritt, da UNISC.
O trabalho desenvolve-se três tópicos: (1) concepção e
diretrizes de extensão universitária; (2) aprendizado do estudante e
contribuições para a sociedade: o papel da extensão das Universidades
comunitárias; e (3) o projeto “enfrentamento da violência doméstica
e familiar: Direitos e garantias da mulher agredida: nascedouro e
contribuições acadêmicas e sociais. Uma revisão conceitual sobre
a extensão universitária que norteia as políticas educacionais do
país e uma visita aos documentos, como o projeto e os relatórios de
atividades em questão, foram nossos faróis para o desenvolvimento
do artigo.
O resgate do manifesto de Córdoba, considerado o marco
fundador da extensão universitária, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira e a própria Constituição Federal são textos e
contribuições importantes para concebermos uma formação integral
de um universitário. De outra parte, os marcos legais da própria
UNISC, como o Plano de Desenvolvimento Institucional e o
26

Regulamento das Atividades de Extensão, nos ajudam a compreender


a concepção extensionista da UNISC, uma universidade que visa
formar alunos críticos e com vivências reais de situações reais em
sua jornada formativa.
Finalmente, o entendimento e a compreensão dos atores
principais do projeto em análise, os docentes e alunos bolsistas,
aliados ao perfeito entendimento do impacto e do benefício do
trabalho junto às mulheres vítimas de violência, são, sem sombra de
dúvida, uma comprovação de formação acadêmica mais humanista.

2 CONCEPÇÃO E DIRETRIZES DE EXTENSÃO


UNIVERSITÁRIA
A legitimação da extensão como uma das bases e atividades-
fim das universidades ocorreu com a publicação da Constituição
Federal brasileira vigente, que estabelece em seu artigo 207
que “As universidades gozam de autonomia didático-científica,
administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao
princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”
(BRASIL, 1988). Ao assegurar a educação como um dos pilares
do Estado, a Carta Magna também instituiu a importância da
indissociabilidade, colocando a extensão como intrínseca ao papel
das universidades.
Posteriormente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), em 20 de dezembro de 1996, estabeleceu que:

Art. 43. A educação superior tem por finalidade:


[...]
VII - promover a extensão, aberta à participação da
população, visando à difusão das conquistas e benefícios
resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e
tecnológica geradas na instituição.
VIII - atuar em favor da universalização e do aprimoramento
da educação básica, mediante a formação e a capacitação
de profissionais, a realização de pesquisas pedagógicas e o
desenvolvimento de atividades de extensão que aproximem
os dois níveis escolares.
[...]
27

Art. 52. As universidades são instituições pluridisciplinares


de formação dos quadros profissionais de nível superior,
de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber
humano [...]. (BRASIL, 1996).

Entretanto, o surgimento da extensão enquanto atividade


universitária remonta ao ano de 1910, com o surgimento das
Universidades Populares. A Universidade Livre de São Paulo deu
origem às primeiras manifestações extensionistas, com a criação
de cursos de extensão. Porém, a prática de ações de extensão
voltadas à contribuição na melhoria da sociedade se deu por meio
do Manifesto de Córdoba (1918), no qual estudantes reivindicaram
que a universidade se voltasse mais à sociedade, estabelecendo
um compromisso social por meio do compartilhamento de
conhecimentos científicos e suas aplicações (SANTOS; SANTOS,
2011).
A partir de então, as universidades passaram a envolver
estudantes e docentes em práticas extensionistas, visando a maior
inserção da instituição nas comunidades e no compartilhamento e na
socialização do conhecimento e, também, buscando na valorização
do saber popular sua fonte de inspiração e novos conceitos e novas
práticas. Pode-se afirmar que a extensão existe como política em
todas as universidades, sejam públicas ou privadas. Entretanto, como
neste trabalho será tratado o caso específico de um projeto proposto
por uma universidade comunitária, o foco será nesse modelo.
A comunidade é parte inerente do modelo de universidade
comunitária, uma vez que faz parte da sua identidade, é seu
público-alvo e também, por vezes, sua idealizadora. Isso porque,
em sua grande maioria, essas universidades existem por um esforço
da sociedade local pela sua criação e consolidação, na falta de
oportunização, por parte Estado, do ensino superior e da oferta de
serviços aos cidadãos. Segundo Schmidt (2008), sua propriedade é
da coletividade, não possui fins lucrativos, com forte inserção no seu
território e com gestão democrática, formada por diversas entidades
da sociedade civil. Estão mais presentes nos estados do Rio Grande
do Sul e de Santa Catarina, em que são organizadas em consórcios
e associações, como o COMUNG (Consórcio das Universidades
Comunitárias Gaúchas) e a ACAFE (Associação Catarinense das
28

Fundações Educacionais).
As universidades comunitárias também estão unidas pelo
Fórum Nacional de Extensão e Ação Comunitária das Universidades
e Instituições de Ensino Superior Comunitárias, o FOREXT, espaço
em que se qualifica a ação extensionista por meio da troca de
experiências e da busca por tornar a extensão universitária e seus
resultados ainda mais visíveis e valorizados nas mais diversas
instâncias. O FOREXT define que a extensão é um

a) [...] processo acadêmico e social, é uma das atividades-


fim da IES; b) sua institucionalidade pressupõe seu
entrelaçamento com as dimensões teórica, política, ética
e social do processo educativo; c) sua práxis é capaz
de desencadear processos pedagógicos criativos, que
possibilitam a articulação teoria e prática e o estímulo à
postura interdisciplinar assim como a elaboração de novas
metodologias no processo de construção do conhecimento,
possibilitando suporte à apreensão crítica do real e a
realimentação das políticas curriculares. (FOREXT, 2006).

Um importante documento que legitima e embasa a extensão


universitária é o Plano Nacional de Extensão, sistematizado pelo
Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas
Brasileiras (FORPROEX) e pelo Ministério da Educação (MEC),
em 2001. É um dos instrumentos que mais e melhor conceitua essa
dimensão. Segundo o Plano, a extensão “é o processo educativo,
cultural e científico que articula o Ensino e a Pesquisa de forma
indissociável e viabiliza a relação transformadora entre Universidade
e Sociedade” (FORPROEX, 2001). Além disso, segundo esse
documento, a extensão preconiza a relação entre universidade e
comunidade, proporcionando à primeira a aplicação do conhecimento
científico e transitando entre o acadêmico e o popular, a fim de
socializar o conhecimento produzido na universidade e possibilitar
a participação comunitária no seu espaço, uma vez que “a Extensão
é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integrada do
social” (FORPROEX, 2001).
Esse conceito demonstra que a raiz das universidades
comunitárias está na extensão. É o caso da UNISC, que nasceu
29

com a oferta de cursos de graduação, em 1964; passou a se intitular


Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul (FISC), em 1980; e
tornou-se a Universidade de Santa Cruz do Sul, em 1993, por
força não apenas do seu caráter comunitário, mas das atividades
de pesquisa e de extensão desenvolvidas, já naquela época, em
favor da comunidade. Nesse sentido, é importante mencionar que
a essência comunitária da UNISC torna a extensão ainda mais
necessária, visto que a aliança com a comunidade se estabelece,
principalmente, pelas suas inúmeras ações de extensão, que levam o
conhecimento científico e seus serviços às mais diversas populações,
principalmente às mais vulneráveis.
Um dos documentos que norteia a extensão na UNISC
é o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), no qual se
estabelecem as diretrizes para o desenvolvimento das atividades
extensionistas e seus pressupostos, bem como objetivos a atingir.
Segundo o PDI, a extensão reafirma o compromisso da UNISC
com a comunidade, uma vez que a Instituição trabalha na busca de
soluções para os problemas de onde está inserida, que é composta pela
região em que é atuante. Entre as prioridades dessa relação estão a
interdisciplinaridade, o diagnóstico dos interesses e das necessidades
da população e a melhoria dos padrões socioeconômicos e culturais
da comunidade (UNISC, 2013).
É também o PDI que define que o estudante terá acesso a essas
atividades por meio da concessão de bolsas, oportunidade em que
se dedica às atividades de determinado projeto ou ação mediante a
concessão, ou não, de descontos nas mensalidades. Certamente, esse
é um dos pontos de maior impacto, visto que o estudante também é
um beneficiário do projeto, uma vez que sua atividade gera novos
conhecimentos, saberes, experiências e olhares sobre sua atuação e
sua futura profissão.

3 APRENDIZADO DO ESTUDANTE E CONTRIBUIÇÕES


PARA A SOCIEDADE: O PAPEL DA EXTENSÃO DAS
UNIVERSIDADES COMUNITÁRIAS
Conforme mencionado, o documento que regulamenta as
bases e determina as diretrizes da extensão na UNISC é o seu PDI,
30

que está na versão quatro, com vigência até dezembro de 2020.


Foi construído a muitas mãos, pela gestão, por docentes, técnicos
administrativos, estudantes e representantes da comunidade.
Segundo ele, numa universidade comunitária, a extensão
faz parte da sua essência, uma vez que “é especialmente através
da extensão que a Instituição se relaciona com a sociedade e busca
fortalecer sua identidade comunitária. A legitimidade conquistada
através de projetos sociais expressa os interesses coletivos, assim
como o caráter comunitário da Universidade” (UNISC, 2013, p.
126).
O PDI destaca, especialmente, a importância da extensão
para a formação acadêmica e profissional do estudante, visto que
é por meio dela que se possibilita a aplicação dos conhecimentos
em sala de aula e a experiência de relacionar a sua formação com
a realidade social. A relação de troca entre o saber sistematizado
da academia e os diferentes contextos contidos na sociedade atual
constitui a via de mão dupla que alimenta a formação do estudante.

Trata-se de construir essa relação com a sociedade que,


integrada ao ensino e à pesquisa, proporciona ao estudante
uma formação cidadã, estruturada numa relação íntima
com a realidade que confere atualidade e pertinência a
essa formação. Para que isso aconteça, é fundamental que
a prática extensionista esteja presente no fazer diário na
sala de aula, nas pesquisas, portanto, nas reflexões e nos [a]
fazeres da comunidade acadêmica. (UNISC, 2013, p. 127).

Em se tratando dos aspectos relacionados ao público, que é


a comunidade, é necessário mencionar que a extensão é importante
política para a democratização do conhecimento, uma vez que
suas ações proporcionam o compartilhamento do saber científico a
toda comunidade, e também a inserção desta na universidade. Esse
diálogo, que chega a se caracterizar como uma fusão, enriquece
a sociedade, enriquece a universidade e enriquece a formação do
futuro profissional que encontrará as mais diversas demandas e
situações quando se deparar com o mercado de trabalho.
No meio acadêmico, muito se fala em transpassar os muros
31

da universidade, ou seja, levar todo esse saber e experiência


acumulados a serviço da população. Desse modo, a extensão possui

[...] princípios estruturantes que estão na relação entre


consciência e convivência, ciência e vivência, sapiência
e experiência, redes e vínculos, compreensões e relações.
A consciência está ligada à qualidade da [con]vivência no
processo educativo que possibilita o pensar conjuntamente,
compartilhando espaços de trocas e de empoderamento.
Na medida em que se deseja, realmente, modificar essas
estruturas é preciso que não existam fronteiras entre ensino,
pesquisa e extensão, que não existam fronteiras entre o
modo de investigar, de pensar, de intervir, de sintetizar
conhecimentos, para que as consciências não sejam
fragmentadas e os sujeitos se percebam de forma integrada.
(UNISC, 2013, p. 127).

Essa quebra, ou o desmantelamento, das fronteiras não só


entre a universidade e a comunidade, mas entre as três dimensões
acadêmicas – ensino, pesquisa e extensão –, vai gerar uma nova
gama de saberes, ações, impactos e resultados. A universidade
consegue encontrar seu verdadeiro propósito quando seus três
pilares se fundem num só, agregando os saberes compartilhados
em sala de aula, a busca pelo aprofundamento desse conhecimento
por meio da pesquisa e sua aplicação efetiva por meio da extensão.
Nesse sentido,

[...] a extensão é o próprio ensino e a pesquisa desenvolvidos


dentro de uma concepção político-metodológica que
privilegia as necessidades da maioria da população, numa
perspectiva do movimento ação-reflexão-ação, em que a
concepção de ensino se constitui a elaboração, ela mesma,
do conhecimento pelos alunos, resultante do confronto com
a realidade concreta e a pesquisa da sistematização dessa
prática. (JANTKE; CARO, 2013, p. 99).

E, nessa discussão, não se pode esquecer de outra importante


missão que a extensão possui: a prestação de serviços. Conforme o
Regulamento das Atividades de Extensão da UNISC, a prestação de
32

serviços é “[...] meio de trabalhar com a comunidade e não um fim


em si mesma, caracteriza-se pelo atendimento a uma demanda da
comunidade, sendo uma atividade remunerada” (UNISC, 2011). Na
universidade, trabalha-se a prestação de serviço em si como mais
uma oferta da expansão do conhecimento científico à sociedade, na
grande maioria das vezes voltada à captação de recursos. Entretanto,
ela se realiza, também, nos atendimentos à comunidade, exercidos
pelos projetos de extensão, de forma gratuita. É o exemplo de
atendimentos da área da saúde, das atividades no meio ambiente,
das capacitações oferecidas ao meio rural, das atividades de
empoderamento da população vulnerável, entre tantas demandas.
O objetivo do projeto de que trata este estudo também pode
ser visto como uma prestação de serviço, uma vez que suprime
uma lacuna no atendimento às vítimas de violência doméstica,
exercendo um papel que o Estado não tem condições de oferecer.
Ainda, possibilita à comunidade de menor faixa de renda (embora
o projeto atenda mulheres de todas as classes sociais) uma opção,
sem custo, para entender os direitos e caminhos que pode escolher.
Ou seja, mostra que a agredida tem escolha e apoio para modificar
sua realidade.
É importante mencionar que a UNISC possui sua política
de extensão estruturada em princípios que convergem com sua
missão, visão e valores. Cabe, aqui, contextualizar esses conceitos
construídos ao longo de 50 anos de atuação no ensino superior.

Coerente com a trajetória histórica e levando em conta


a análise do contexto regional e nacional e os anseios da
comunidade regional, a Missão da UNISC é: Produzir,
sistematizar e socializar o conhecimento, visando à
formação de cidadãos livres, capazes e solidários,
contribuindo para o desenvolvimento de uma sociedade
sustentável.
A Visão expressa a aspiração da Universidade no futuro
próximo e ajusta-se às suas intenções estratégicas. Coerente
com a trajetória histórica e levando em conta a análise do
contexto regional e nacional e os anseios da comunidade
regional, a Visão da UNISC é: Ser uma universidade
comunitária e democrática, reconhecida por relevantes
33

contribuições ao desenvolvimento, capaz de responder


de forma criativa e dinâmica às transformações do
contexto social. (UNISC, 2013, p. 13, grifos do autor).

A UNISC tem buscado, ao longo de toda sua existência,


cumprir seu papel diante da sociedade que a idealizou e a constituiu.
Percebe-se que a essência da extensão está presente na missão e
visão da Universidade, uma vez que a formação dos seus estudantes,
enquanto sujeitos ativos de transformações sociais e atentos à
dinâmica social, é oriunda da extensão universitária, realizada nas
suas mais diversas formas. Assim, é moldado, também, o caráter
comunitário da UNISC que tem na comunidade o seu início, o seu
desenvolvimento e o seu maior objetivo.
Quanto aos valores institucionais, muitos expressam e se
expressam na extensão. Conforme o PDI, são eles:
– Ética: concepções e valores que levam a educação superior
a serviço da coletividade;
– Humanismo: busca do desenvolvimento integral do ser
humano, a efetivação de seus direitos e a capacidade de
reagir de forma crítica ao contexto que se apresenta;
– Democracia: descentralização e transparência administra-
tiva, respeito às posições divergentes e busca do equilíbrio
por meio do diálogo;
– Cidadania: formação e sensibilização para o despertar da
consciência crítica;
– Participação: direito de participar nas decisões e de arcar
com as responsabilidades delas, bem como o engajamento
como parte ativa da coletividade;
– Compromisso comunitário: efetivação da interação com
a comunidade das regiões em que se localiza, buscando
contribuir com o processo de desenvolvimento social,
cultural e econômico;
– Solidariedade e Cooperação: compromisso com a busca de
justiça social e com o enfrentamento de desigualdades;
34

– Qualidade: desempenho do seu papel com excelência,


entregando à sociedade cidadãos competentes, éticos,
humanos e comprometidos com sua formação e com o
meio em que vivem.
– Criatividade: estímulo à capacidade de encontrar soluções
inovadoras, voltadas à realidade social;
– Criticidade: capacidade de se posicionar criticamente
diante de acontecimentos e de julgar com razão os fatos
que se revelam, utilizando-se do conhecimento científico
adquirido e refletido; e
– Autonomia: atuação autônoma no ensino, na pesquisa e na
extensão, com base na missão, na visão, nos objetivos e nos
valores institucionais e seguindo a legislação referente às
universidades, para se tornar formadora de cidadãos livres,
capazes e atuantes na sociedade.

Para cumprir com esses importantes compromissos, uma


universidade comunitária deve não somente ver na comunidade o
seu nicho de trabalho, mas estabelecer uma parceria em que ambos
os lados são beneficiados. É o que se alcança estabelecendo relações
comunitárias com instituições, lideranças, entidades e outros
membros da sociedade, que facilitam a atuação da universidade em
determinado território e também aproximam os usuários/beneficiados
da gama de serviços e do auxílio que a extensão disponibiliza.
O fortalecimento das relações comunitárias também é uma das
diretrizes da extensão, definidas no PDI, sendo imprescindível para
o desenvolvimento das ações e também para o alcance de resultados
realmente efetivos para a comunidade. No projeto em questão, se
observa a importante parceria com a Delegacia Especializada para
a Mulher (DPCA), de Santa Cruz do Sul, para viabilizar as ações
previstas, o que será descrito no item 4.
Outro ponto que merece destaque é a produção e a
socialização do conhecimento extensionista, que consiste na busca
pelo aprimoramento de conceitos, práticas e metodologias de
trabalho, a fim de qualificar cada vez mais a atuação de docentes
e estudantes. A produção da extensão, que se caracteriza na forma
35

de artigos e demais formas de publicação, deve despertar a partir


das necessidades da comunidade e contar com seu envolvimento na
construção. Entretanto, muitas vezes a produção acadêmica acaba
“esquecida” nas prateleiras das bibliotecas, deixando de colaborar
com a melhoria da qualidade de vida e com o empoderamento de
muitos indivíduos.
Tem-se observado ao longo dos anos que o estímulo à
publicação do trabalho extensionista tem aumentado, na medida
em que os resultados aparecem e que podem se refletir em ganhos
para mais pessoas. Obviamente, os artigos científicos são o carro-
chefe, mas as apresentações em eventos e matérias em jornais e,
mais recentemente, na internet, democratizam o acesso a esse
conhecimento produzido a partir da fusão entre conceitos e
experiências.
Esse processo se tornará ainda mais qualificado com a
aplicação de instrumentos de avaliação e de monitoramento das
atividades de extensão, conforme também previsto no PDI: “O
processo de avaliação é importante, pois permite um diagnóstico
da Instituição, para as ações que envolvem programas, projetos,
cursos, eventos, participações e apoios a entidades e a serviços na e
da UNISC, através de um exercício de análise crítica e autocrítica”
(UNISC, 2013, p. 135). É por meio da avaliação e do monitoramento
que se identificam os reflexos e impactos da atividade extensionista
na formação do aluno e na qualidade das soluções apresentadas
à comunidade. Essa avaliação é realizada por todos os atores do
processo – estudantes, docentes, beneficiados –, para que possam
expor seu ponto de vista e suas impressões a respeito da eficácia das
atividades praticadas. É um importante processo de qualificação dos
projetos e que é utilizado para aprimorar, ano a ano, o planejamento
das ações que se refletem na vida das pessoas.
O projeto de uma universidade comunitária e de suas
interferências e contribuições para com a sociedade em que
está inserida é complexo e constante. Tem-se o compromisso
permanente e ainda mais sólido de estar a serviço da construção do
conhecimento e da contribuição com a comunidade que a acolhe.
No caso da UNISC, trabalha-se com quatro regiões distintas, onde
estão localizados os seus campi: Vale do Rio Pardo (Santa Cruz do
36

Sul e Venâncio Aires), Região Centro-Serra (Sobradinho), Vale do


Caí (Montenegro) e Litoral Norte (Capão da Canoa). As atividades
de extensão acontecem em todos esses territórios, com intensidades
diferentes, devido aos focos de suas necessidades, à disponibilidade
de estudantes e à estrutura do campus. Obviamente, a grande maioria
dos projetos acontece no campus-sede, de Santa Cruz do Sul, que
foi criado primeiro e é o maior em estrutura e oferta de cursos de
graduação; mas, também existem projetos consolidados e muito
valorizados pela sociedade nos outros espaços. É o caso do projeto
em tela, que iniciou suas atividades, em 2013, em Santa Cruz do
Sul; mas, devido à sua importância e visibilidade pela sociedade,
estendeu-se para Capão da Canoa, Montenegro, Venâncio Aires e
Sobradinho.
Outro expressivo exemplo é o projeto “Quem é meu
pai? Concretização do direito fundamental à filiação através do
reconhecimento de paternidade de crianças sem pai registral”,
também de iniciativa do Departamento de Ciências Jurídicas, que
visa garantir o direito fundamental de filiação paterna à criança e
ao adolescente sem pai registral, por meio de ações envolvendo
estudantes das escolas públicas municipais e recém-nascidos do
município. O projeto busca aproximar crianças sem registro e seus
pais biológicos, promovendo o reconhecimento da paternidade e o
estabelecimento de laços afetivos. É realizado em Capão da Canoa
e em Montenegro, com inúmeras histórias de reaproximação entre
pais e filhos, muitos que haviam perdido contato ou que nem sequer
sabiam da existência um do outro.
Dessa forma, a extensão vai se enraizando nas comunidades
e impulsionando a formação acadêmica, uma vez que a alocação
territorial também é uma de suas marcas. A natureza da extensão
implica o contato, a aproximação, o estar presente e estar dentro
da comunidade. Assim, quando se oferece a oportunidade para
um estudante de um campus que fica a 280 quilômetros da sede
(distância entre Santa Cruz do Sul e Capão da Canoa), com as mesmas
oportunidades de aprendizado, também se entrega à sociedade um
profissional mais qualificado, marcado pela experiência vivida
e pelos conhecimentos adquiridos na sua prática extensionista. E
esse profissional, com formação híbrida, visão de mundo ampliada
37

e capacidade de compreender as diferentes realidades, é, muitas


vezes, aquele que mais se necessita naquela localidade.
Ademais, a extensão é essencial na formação do estudante,
pois “[...] proporciona a conscientização de sua realidade social e
desperta o desejo de mudança pessoal e social. A eficácia dessa ação
pedagógica está nas considerações que o estudante terá sobre o ser
humano e a sociedade” (JANTKE; CARO, 2013, p. 102). No meio
universitário, observa-se que muitos estudantes, ao passarem pela
extensão, exercendo atividades como bolsistas ou como voluntários,
mudam radicalmente os rumos de sua futura carreira, ao vivenciarem
a realidade social e a compararem com a sua própria realidade que,
em sua grande maioria, difere em muito do que vê no seu dia a dia
como acadêmico extensionista.
Inúmeros projetos de extensão da UNISC oferecem essa
experiência que realmente faz os estudantes pensarem sobre o que
farão com a sua formação; esse é o maior legado que se pode deixar
para um diplomado. É o caso do projeto em análise, que desperta nos
estudantes o outro lado do exercício da profissão no meio jurídico,
resgatando a verdadeira essência de um bom conhecedor e aplicador
das leis, aliando à capacidade de empatia e de entendimento de como
é a sociedade que o aguarda após a colação de grau.

4 O PROJETO “ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E FAMILIAR: DIREITOS E GARANTIAS
DA MULHER AGREDIDA”: NASCEDOURO E
CONTRIBUIÇÕES ACADÊMICAS E SOCIAIS
Conforme mencionado, a extensão universitária tem seu cerne
no fortalecimento da comunidade, no empoderamento das pessoas
e na formação ampla do estudante. Partindo desse pressuposto, a
professora Caroline Fockink Ritt, do Departamento de Ciências
Jurídicas da UNISC, propôs, em 2013, a primeira edição do projeto
acima referido, visando ao atendimento das mulheres vítimas de
violência doméstica em Santa Cruz do Sul.
Isso porque o cenário da violência contra a mulher no Brasil
é preocupante e, infelizmente, crescente. Em 2018, a Central de
38

Atendimento à Mulher, que atende pelo número de telefone 180,


recebeu 92.663 denúncias em todo o país; destas, 62.485 de violência
doméstica e familiar, 2.075 de tentativas de feminicídio e 63 de
feminicídio (ALVES, 2019). Em 2020, até o mês de abril, foram
registrados 19.915 registros pelo Ligue 180, um incremento de 27%
em relação ao mesmo período do ano anterior, cenário motivado,
também, pela pandemia de COVID-19 (GONÇALVES, 2020).
Os dados são divulgados todos os anos no dia em que se
celebra a publicação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 07 de
agosto de 2006), a qual é fruto da busca por justiça, durante dezenove
anos, pela mulher que lhe dá o nome, culminando na aprovação
de penas mais severas ao agressor, como a medida protetiva e o
endurecimento das penas privativas de liberdade, que, na época, não
passavam de meras transações penais, como o pagamento de cestas
básicas. É sempre bom lembrar que, em 1983, após recorrentes
agressões já sofridas, Maria da Penha Maia Fernandes foi baleada
pelo marido enquanto dormia, resultando em paraplegia, laceração
na dura-máter e destruição de um terço da medula à esquerda; e,
ainda, 4 meses após esse fato, foi mantida em cárcere privado, com
uma nova tentativa de homicídio por parte do então esposo, desta
vez por meio de choque elétrico. Ou seja, uma situação de violência
extrema, que resultou em uma das maiores conquistas das mulheres
em termos de direitos e garantias no Brasil, que é a referida lei (IMP,
2020).
É nesse cenário que iniciativas para prevenção e combate à
violência contra a mulher se mostram cada vez mais necessárias.
E, nele, a Universidade entra para possibilitar um espaço de
acolhimento e apoio a essas vítimas, bem como uma oportunidade
de aprendizado aos acadêmicos que, no mercado de trabalho,
independente da direção da sua carreira, encontrarão situações
como esta.
O projeto de extensão “Enfrentamento da Violência Doméstica
e Familiar: direitos e garantias da mulher agredida” trabalha com
essas duas frentes, oportunizando um suporte às agredidas e um
espaço de aprendizado aos estudantes, considerando que entre seus
objetivos está a orientação e o apoio jurídico e a aproximação do
conhecimento técnico com a comunidade e realidade social que,
39

por vezes, acaba distanciada dele, que se depara com esse contexto
apenas quando adentra no mercado de trabalho com a profissão que
escolheu.
O atendimento é realizado pelas bolsistas do projeto, todas
mulheres, para minimizar o constrangimento e oportunizar o
acolhimento e a empatia pelas vítimas, visto que o relato da agressão
sofrida é um momento difícil para a agredida. As acadêmicas foram
orientadas pela coordenação do projeto e pela delegada Lisandra
de Castro de Carvalho, responsável pela DPCA de Santa Cruz do
Sul, sobre como tornar esse relato menos duro para as mulheres,
propiciando-lhes segurança e empoderamento, visto que, apesar
de que o papel das bolsistas é prestar os esclarecimentos jurídicos,
muitas vezes atuam como ouvintes da tristeza e da decepção das
agredidas, prestando um verdadeiro suporte moral a essas mulheres.
A troca de experiências entre bolsistas, coordenadores e a delegada
permanece ao longo de todo o período de execução das atividades.
Considera-se, também, a importância da parceria com a
DPCA, pelo acolhimento à proposta de realização do projeto. Sabe-
se que existe toda uma estrutura de amparo à mulher agredida,
mas que, por vezes, não chega ao conhecimento dela. É necessário
destacar, na pessoa da delegada Lisandra, o reconhecimento sobre a
necessidade desse trabalho de amparo à vítima, proporcionando-lhe
um espaço seguro e discreto, para que possa se abrir e compartilhar
suas dores.
O atendimento é feito de forma individual, em sala
separada, somente entre bolsista e vítima. Em alguns casos,
familiares acompanham, oportunidade em que também podem
esclarecer dúvidas e contribuir com o relato da agredida, trazendo
a leitura de quem presenciou a agressão, o que colabora com os
encaminhamentos necessários em termos de registro de ocorrência,
além de possibilitar a identificação de mais membros da família
que passam por igual situação. É também realizado contato
telefônico com as vítimas, como forma de monitorar a situação após
o atendimento e de propiciar amparo e interesse sobre a vida da
agredida após seu comparecimento à delegacia.
Conforme dados do relatório do projeto (RITT, 2019), o
maior problema no apoio às vítimas de violência doméstica é o
40

conhecimento sobre quais órgãos devem ser procurados para prestar


esclarecimentos e encaminhamentos que derivam da agressão, que
vão além do registro da ocorrência – divórcio, guarda dos filhos,
afastamento do agressor da convivência do lar, entre outros. Na
oportunidade, as vítimas são orientadas a fazer o registro e os
demais encaminhamentos acerca da denúncia do crime na DPCA,
que é o local em que recebem esse atendimento, bem como procurar
a Defensoria Pública do Estado ou o Gabinete de Assistência
Judiciária (GAJ) da UNISC, que são instituições que realizam os
procedimentos de cunho civil, de forma gratuita.
A coordenação do projeto também relata a satisfação pessoal
e profissional com a realização desse importante trabalho, visto que
muitas vítimas não possuem uma rede de apoio ou membros da
família que as protejam e as incentivem a procurar seus direitos.
Apesar de entraves encontrados, como a dificuldade em obter de
forma clara e verídica o depoimento da agredida, a pressão do
agressor, a dificuldade de localização de ambos após a denúncia,
entre outros, considera-se que o saldo é muito positivo, visto que
o projeto se dedica não somente a orientar as mulheres sobre seus
direitos e encaminhamentos, mas também mostrar que elas não
estão sozinhas e que não podem se amedrontar ou se envergonhar
diante de uma situação tão desesperadora e humilhante. Pode-se
dizer que a missão do projeto é empoderar essas mulheres na busca
por justiça, por melhor qualidade de vida e por respeito de toda a
sociedade, e no entendimento de que podem sair de uma situação
perigosa e depreciativa como a que vivem.
É nesse ínterim que se destaca a fala das bolsistas, que são os
principais atores desse trabalho tão importante. A bolsista Eveline
Bernardy, que é uma das estudantes que atuou mais tempo no
projeto, destaca em seu relatório que

conhecer com tanta proximidade os casos de violência


doméstica e familiar certamente me proporcionou muito
aprendizado, na área acadêmica, tendo em vista que o
retorno se deu através de estudos, inclusive com publicações
de artigos relacionados ao tema. [...] Além do mais, a
participação em eventos acadêmicos com apresentações de
41

artigos relacionados ao tema proposto pelo projeto, também


contribuiu muito para o meu aprendizado, eis que tais eventos
possibilitam a troca de conhecimentos, disseminando ainda
mais um tema tão importante a ser debatido por toda a nossa
sociedade, pois além de pesquisarmos sobre o tema temos
a oportunidade de visualizarmos na prática. (BERNARDY,
2019).

Observa-se, no relato da estudante, um reconhecimento de


que a extensão oportunizou um mundo novo de aprendizados que
não se alcançam em sala de aula. A participação em eventos e a
publicação de artigos mostram-se como experiências riquíssimas
para ampliar a visão de mundo, buscar novos conhecimentos e
interagir com outros atores que atuam nas mesmas áreas. Sem
dúvida, a troca de conhecimentos agrega em muito a atividade
desses estudantes, principalmente quando atuarão como
profissionais. Assim, a extensão se materializa na forma de
produção e socialização do conhecimento.
E, certamente, as marcas que a atividade extensionista deixa
na vida pessoal desses estudantes impactam ainda mais no seu modo
de viver e de compreender os contextos em que muitas populações
estão inseridas:

Obtive, ainda, um grande crescimento na vida pessoal, ao


passo que desenvolvi maior facilidade com o atendimento
ao público, com muita sensibilidade em razão do assunto
tratado. Conviver com as vítimas de violência doméstica,
compreendendo suas dificuldades e principalmente ajudando
a solucionar ou mesmo a encontrar o caminho para resolver
seus problemas, foi, sem dúvidas, uma experiência única e
de suma importância para a minha formação profissional,
pois tive a oportunidade de experimentar práticas que vão
além dos conteúdos passados em aula. (BERNARDY, 2019).

Ou seja, aqui se percebe a mudança de visão de mundo que essa


acadêmica teve e o quanto isso impactará na sua vida profissional,
uma vez que lhe trouxe o lado mais frágil da história. Além disso,
oportuniza que a vítima seja vista como um ser humano, uma pessoa
42

com trajetória de vida, com medos, incertezas, inseguranças e tantos


outros aspectos que, por vezes, não se pode sentir na leitura de um
processo penal. E, ainda, destaca-se a importância na vida pessoal
dessa estudante do ponto de vista do seu modo de se expressar, visto
que ela relata a percepção de uma melhoria no seu modo de interagir
com as pessoas e com o seu futuro público. Ou seja, mais uma face
que a extensão modifica, entre tantas outras que se apontou neste
trabalho e que ainda se identificarão.
Não há como mensurar o impacto que essa experiência
trouxe na vida acadêmica, profissional e pessoal dessa estudante.
Primeiramente, pela ampliação de visão, pelo entendimento de
determinados contextos familiares e sociais que vão muito além
de números e que demonstram o quanto o cenário da violência
doméstica é complexo. Segundo, pela compreensão das razões
que levam essas mulheres a não buscarem auxílio, desmistificando
a opinião da sociedade de que passam por essa situação porque
querem e não fazem nada para mudar sua condição. Por fim, e não
menos importante, a dura realidade do mercado de trabalho futuro,
uma vez que, como profissionais do Direito, certamente enfrentarão
situações semelhantes no atendimento a seus clientes. Situações em
que não basta a orientação sobre encaminhamentos jurídicos, mas
onde se requer o acolhimento, o afeto, a compreensão, o saber ouvir
e as demais características fundamentais a um bom jurista.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo traduz de forma incontestável que a
experiência prática proporcionada aos docentes e discentes, quando
da realização do projeto de extensão de “Enfrentamento da Violência
Doméstica e Familiar: Direitos e Garantias da Mulher Agredida” é
imensurável. O relato das mulheres beneficiadas com a atenção aos
seus problemas, somado ao rico processo de formação humanista
acumulado pelas alunas, são exemplos de uma formação acadêmica
integral. Os benefícios são mútuos e a UNISC cumpre sua missão
institucional de promover e desenvolver soluções dos problemas de
sua comunidade.
A extensão universitária na formação prática dos acadêmicos
43

do Curso de Direito é uma ferramenta muito interessante para que


os alunos desenvolvam no campo de atuação, experimentando de
forma epidérmica a realidade, os ensinamentos teóricos aprendidos
dentro da sala de aula. Costuma-se dizer no meio extensionista que
um aluno que teve experiência na dimensão da extensão durante
a sua formação é um aluno mais completo, mais apto e preparado
para se inserir de forma mais adequada na vida profissional. Pelo
que se percebeu durante a preparação deste artigo, essa afirmação
pode-se entender verdadeira. A riqueza dos relatos de experiência, o
testemunho encantador das bolsistas e a descrição das atividades são
elementos que corroboram essa mesma afirmação.
O presente artigo foi desenvolvido em três partes. Na
primeira, pretendeu-se abordar a concepção e as diretrizes da
extensão universitária brasileira. A compreensão das finalidades da
educação superior, com destaque para a extensão e o conhecimento
e domínio sobre os conteúdos do plano nacional de extensão,
é fundamental para quem pretende fazer a correta leitura da
importância dessa dimensão formativa no percurso acadêmico.
Percebeu-se, igualmente, que a UNISC tem clareza na definição da
extensão universitária através de seus marcos legais internos. Soma-
se a isso uma trajetória consolidada no seio da comunidade regional
que se expressa pela sua caminhada histórica desde a fundação de
sua mantenedora, ainda na década de sessenta do século passado.
No segundo capítulo foram destacados o aprendizado
do estudante e as contribuições para a sociedade, com ênfase no
papel da extensão nas universidades comunitárias. Nesse aspecto,
restou nítido que a UNISC fundamenta suas diretrizes em uma
formação integrada das dimensões de ensino, pesquisa e extensão.
As normativas internas direcionam, jogam luzes e estimulam o
desenvolvimento de processos ensino-aprendizagem centrados na
prática e na realidade da comunidade.
Na terceira parte, o objetivo foi o de analisar alguns aspectos
referentes ao projeto de extensão chamado “Enfrentamento da
Violência Doméstica e Familiar: Direitos e Garantias da Mulher
Agredida”. Os dados alarmantes e crescentes de violência contra
a mulher no Brasil infelizmente justificam e tornam cada vez mais
necessário o desenvolvimento de projetos com essa temática.
44

O acolhimento da mulher agredida, a tentativa de minimizar


o constrangimento sofrido e finalmente o alcance da rede de
atenção e proteção são destaques desse projeto. Bem orientadas
pelos professores coordenadores, as bolsistas fazem um trabalho
social absolutamente relevante e importante e merecem todo o
reconhecimento.
Finalmente, afirmamos de maneira muito segura que o projeto
de extensão “Enfrentamento da Violência Doméstica e Familiar:
Direitos e Garantias da Mulher Agredida” é um projeto destacado
dentro e fora da UNISC, pela sua importância. Com um trabalho
abnegado, comprometido e intenso dos coordenadores e bolsistas,
afirmamos que é um privilégio para a UNISC poder desenvolver
esse trabalho. Para muito além dos benefícios diretos às mulheres
agredidas e violentadas, a repercussão e a visibilidade que o projeto
atingiu nos últimos anos contribuiu para que esse assunto, essa
temática, esse tabu, fossem parar na mesa de discussões das famílias
da nossa região. As reportagens e entrevistas com as repercussões
do projeto certamente contribuíram muito sob o ponto de vista
preventivo e pedagógico da prevenção à violência doméstica.
Quanto mais pessoas debaterem, discutirem, falarem sobre essa
temática, mais certamente o nível de vigilância e prevenção coletiva
da comunidade crescerá.
Docentes, alunos e comunidade integrados em um projeto
como esse são motivos de sobra para comemorarmos o êxito do
trabalho de uma universidade comunitária como a UNISC.

NOTAS
1
Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do
Sul (UNISC). Bacharel em Direito pela UNISC. Assessora da Direção de
Extensão e Relações Comunitárias da UNISC. E-mail: [email protected].
2
Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz
do Sul – UNISC. Fisioterapeuta pela Universidade Luterana do Brasil
(ULBRA). Diretor de Extensão e Relações Comunitárias da UNISC. E-mail:
[email protected] .
45

REFERÊNCIAS

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violência doméstica. Observatório do Terceiro Setor. 09 ago.
2019. Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/em-
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Acesso em: 11 ago. 2020.
BERNARDY, Eveline. Relatório final das atividades de bolsista
desenvolvidas no projeto de extensão “Enfrentamento da Violência
Doméstica e Familiar Direitos e Garantias Legais da Mulher
Agredida”. Santa Cruz do Sul: UNISC, 2019. 16p. (Relatório do
projeto).
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as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Senado
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46

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RITT, Eduardo. Projeto de Extensão: Enfrentamento da Violência
Doméstica e Familiar – Direitos e Garantias Legais da Mulher
Agredida 2019. Santa Cruz do Sul: UNISC, 2019. 15p. (Projeto).
RITT, Eduardo; RITT, Caroline Fockink. Relatório final das
atividades desenvolvidas no projeto de extensão em Santa Cruz do
Sul e Montenegro “Combate à Violência Doméstica – Direitos e
Garantias Legais da Mulher Agredida”. Santa Cruz do Sul: UNISC,
2019. 16p. (Relatório do projeto).
RITT, Caroline Fockink. Relatório final das atividades desenvolvidas
no projeto de extensão “Combate à violência doméstica – Direitos e
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In: MENEZES, Ana Luisa Teixeira de; SÍVERES, Luiz (org.).
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instituições comunitárias de ensino superior (ICES). Santa Cruz do
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comunitária: aspectos conceituais e jurídicos. Revista do Direito,
local, n. 29, jan./jun. 2008.
UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL - UNISC. Plano de
Desenvolvimento Institucional – PDI V 2013-2017 (prorrogado
até dezembro de 2020). Santa Cruz do Sul, RS: UNISC, 2013.
UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL - UNISC.
Regulamento das Atividades de Extensão. Santa Cruz do Sul, RS:
UNISC, 2011.
O PROJETO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA
“ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
E FAMILIAR CONTRA A MULHER: DIREITOS E
GARANTIAS LEGAIS DA MULHER AGREDIDA” E
A SUA TRANSFORMAÇÃO COMO “TELE MARIA
DA PENHA/UNISC” DURANTE A PANDEMIA
DO COVID-19 COMO INSTRUMENTOS PARA
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS DA
MULHER.

Eduardo Ritt1
Camila Alves Nemecek2
Joseane Medtler3

1 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER.
A Constituição Federal de 1988 garante tratamento isonômico
entre homens e mulheres, preconizando, em seu art. 5º, inciso I:
“homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição”.
Porém, consoante Mércia Cardoso de Souza (2015), entendem
os tribunais que a terminologia “isonomia” não significa conferir o
mesmo tratamento a todos, mas tratar desigualmente os desiguais.
No caso específico dos sexos masculino e feminino, é inegável a
existência de aspectos específicos que diferenciam (e desigualam)
um do outro, porém, o tratamento “desigual” dado à mulher é
plenamente justificável, na medida em que o fator discriminante é
um reflexo tanto do resquício ainda existente da sociedade patriarcal,
machista, quanto até mesmo da natureza da própria mulher.4
A ideia patriarcal, por sua vez, ainda muito cultivada na
sociedade, que enfatiza hierarquias de gêneros, caracterizando
a mulher como posse do parceiro e, por conseguinte, exposta a
situações abusivas e de violência, funciona como um verdadeiro
aparato de naturalização da violência doméstica.
48

A violência cometida contra a mulher é um fenômeno


histórico que ocorre há milênios, uma vez que era estigmatizada
como indivíduo sem vontade própria dentro do ambiente familiar,
sem posicionamentos e opiniões, vivendo à margem do cônjuge. A
vida dessas mulheres baseava-se em acatar ordens, fossem de seu
pai ou de seu marido.5
Segundo Freire (2006):

As desigualdades de gênero entre homens e mulheres


advêm de uma construção sociocultural que não encontra
respaldo nas diferenças biológicas dadas pela natureza.
Um sistema de dominação passa a considerar natural uma
desigualdade socialmente construída, campo fértil para
atos de discriminação e violência que se “naturalizam” e
se incorporam ao cotidiano de milhares de mulheres. As
relações e o espaço intrafamiliares foram historicamente
interpretadas como restritos e privados, proporcionando a
complacência e a impunidade. (apud DINIZ; COUTINHO,
2011, p. 17).

Para Dias (2007, p. 32), a violência doméstica está ligada,


frequentemente, tanto ao uso da força física, psicológica ou
intelectual, no sentido de obrigar outra pessoa a fazer algo que não
quer. Ou seja, impedir que ela manifeste sua vontade, tolhendo sua
liberdade, o que é considerada uma forma de violação dos direitos
essenciais do ser humano.
O vocábulo Violência é oriundo do Latim violentia, que
significa caráter violento ou bravio. Para Cavalcanti (2007, p. 29)
o termo violare significa tratar com violência, profanar, transgredir.
Esses termos devem ser referidos a vis, que significa a força em
ação, o recurso de um corpo para exercer a sua força e, portanto, a
potência, o valor, ou seja, a força vital. Violência que é composto por
vis, que em Latim significa força, sugere a ideia de vigor, potência,
impulso. Também traz a ideia de excesso e de destemor. Então,
mais do que uma simples força, violência pode ser conceituada
como o próprio abuso da força. Consiste no ato de brutalidade,
constrangimento, abuso, proibição, desrespeito, discriminação,
imposição, invasão, ofensa, agressão física, psíquica, moral ou
patrimonial contra alguém, caracterizando relações que se baseiam
49

na ofensa e na intimidação pelo medo e pelo terror.


Arendt (1994, p. 32) traz a devida observação sobre as
discussões a respeito do fenômeno da violência e do poder. Então,
é possível perceber que existe um consenso entre os teóricos da
política, tanto da esquerda como da direita, no sentido de que a
violência é tão somente a mais flagrante manifestação de poder.
Especificamente no que tange à violência contra a mulher
e à violência doméstica, há uma explicação cultural para a sua
grande ocorrência no Brasil. Ela não está ligada somente à lógica
da pobreza, ou às desigualdades sociais e culturais, mas diretamente
relacionada ao preconceito, à discriminação e ao abuso de poder
que possui o agressor com relação à sua vítima. A mulher, em razão
de suas peculiaridades, compleição física, idade, e, principalmente,
dependência econômica, está em uma situação de absoluta
vulnerabilidade social.
Não obstante, a vítima, ao buscar a tutela do Ente Público,
se depara com um serviço falho no intento de primar pela efetivação
de direitos humanos e fundamentais, possuindo, não raras vezes,
uma postura omissa de banalização à violência, seja por resistência
a intervir na entidade familiar, seja por deixar de ver tais delitos
como de segurança social:

A tendência de desqualificá-la tem origem na injustificável


resistência em aceitar a interferência do Estado nas relações
familiares. Nunca ninguém quis ver, nunca ninguém encarou
com seriedade ou se preocupou em quantificar a violência que
ocorre na esfera privada. Por serem delitos que acontecem
dentro do lar, parece não afrontar a segurança social. Por
isso seus números sempre foram subdimencionados. Foi
esta postura omissiva que levou à banalização da violência
doméstica, condenando à invisibilidade o crime de maior
incidência no país. (HIRIGOYEN, 2006, p. 10-11). fonte
ver

Hirigoyen (2006, p. 10-11) complementa que foi somente


após a década de 1970, por meio das iniciativas das feministas, que
se começou a fazer um estudo do impacto da violência conjugal
50

entre as mulheres. Até então, não se intervia, sob o pretexto de que


se tratava de assunto privado.
Por conseguinte, denota-se que as relações de ordem privada
não estão imunes ao direito público, considerando que, justamente
pela sua maior liberalidade, lá encontra-se a maior probabilidade
de violação de direitos fundamentais. Ainda que em certos aspectos
fiquemos a mercê da intervenção estatal, temos por outro lado que
reconhecer que a ausência por completo pode favorecer a ocorrência
de abusos.6
Consoante Diniz e Coutinho (2011, p. 18):

Com efeito, a justiça exige que a igualdade jurídica emerja


como paradigma capaz de assegurar tratamento igualitário e
eficaz a todas as pessoas. Todavia, onde o direito anunciado
não se efetiva, não se materializa, é dever do Estado assegurar
maior proteção aos grupos vulneráveis, preservando-lhes a
dignidade contra os abusos do poder, sejam eles políticos,
econômicos, morais ou físicos. É esse o sentido da
proteção conferida, não só as mulheres, por exemplo, mas
as (os) trabalhadoras (es) nas relações trabalhistas, as (os)
consumidoras(es) nas relações de consumo, bem como as
pessoas com deficiências, idosas, crianças e adolescentes
nas relações sociais, familiares e afetivas.

Nesse sentido, fomentou-se uma longa trajetória de lutas


constantes realizadas por feministas e ativistas, em busca de
segurança e proteção aos direitos das mulheres, sendo instituída no
Brasil, em 07 de agosto de 2006, a Lei Nº 11.340, conhecida como
a “Lei Maria da Penha”.
A justificativa de sua aprovação, nas palavras de Maria
Berenice Dias (2007, p. 13) é dolorosa, pois Maria da Penha Maia
Fernandes foi mais uma das vítimas da violência doméstica no
Brasil.
Como muitas outras mulheres, ela reiteradamente denunciou
as agressões que sofreu. Por duas vezes, seu marido, professor
universitário e economista, tentou matá-la. Na primeira tentativa de
homicídio, em 29 de maio de 1983, ele simulou um assalto fazendo o
uso de uma espingarda, como resultado ela ficou tetraplégica. Após
51

alguns dias, na segunda tentativa de homicídio, buscou eletrocutá-la


por meio de uma descarga elétrica enquanto ela tomava banho.
Tais fatos aconteceram em Fortaleza, no Ceará, sendo as
investigações iniciadas em junho de 1983, mas a denúncia foi
oferecida em setembro de 1994. Em 1991, o ex-marido de Maria
da Penha foi condenado pelo Tribunal do Júri a oito anos de prisão.
Além de recorrer em liberdade, um ano após, teve seu julgamento
anulado. Em 1996 foi levado a novo julgamento, quando lhe fora
imposta a pena de dez anos e seis meses após os fatos. Mais uma vez
recorreu em liberdade e somente dezenove anos e seis meses após
os fatos, no ano de 2002, que ele foi preso, cumprindo apenas dois
anos de prisão.
Dias (2007, p. 14) destaca que a repercussão da história da
Maria da Penha foi tão grande, que o Centro pela Justiça e o Direito
Internacional – CEJIL e o Comitê Latino Americano e do Caribe
para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM – formalizaram
denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
organização dos Estados Americanos.
A Comissão solicitou, por quatro vezes, informações ao
Governo brasileiro, mas nunca recebeu nenhuma resposta. O
Brasil foi condenado internacionalmente em 2001. O Relatório
da OEA, além de impor o pagamento de indenização no valor de
20 mil dólares em favor de Maria da Penha, responsabilizou o
Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência
doméstica, recomendando a adoção de várias medidas, dentre elas as
de simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa
ser reduzido o tempo processual. Foi em face da pressão sofrida
por parte da OEA que o Brasil cumpriu as convenções e tratados
internacionais dos quais é signatário.
Em decorrência disso, a Lei Maria da Penha, em suma,
surge no intento de ressignificar uma conduta que até então era
naturalizada, e em resposta à crueldade sofrida todos os dias por
milhares de mulheres no âmbito familiar. A legislação contempla
um sistema de prevenção, proteção e assistência, estabelecendo
competências e obrigações do Estado em âmbitos federais, estaduais
e municipais.
52

No capítulo dois da referida Lei são apresentadas cinco


formas de violência doméstica e familiar, sendo elas: a violência
física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial,
e a violência moral.
Violência física – entendida como qualquer conduta que
ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher (espancamento,
atirar objetos, estrangulamento, ferimentos diversos, tortura.
Violência psicológica – considerada qualquer conduta que
cause danos emocionais e diminuição da autoestima; prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento da mulher; ou vise degradar ou
controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões (ameaças,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância
constante, perseguição contumaz, insultos, chantagem, exploração,
ridicularização, tirar a liberdade de crença, distorcer e omitir fatos
para deixar a mulher em dúvida de sua memória e sanidade)
Violência sexual – qualquer conduta que constranja a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força (estupro,
obrigar a mulher a fazer atos sexuais que causam desconforto ou
repulsa, impedir uso de métodos contraceptivos ou forçar aborto,
forçar matrimônio, gravidez ou prostituição por meio de coação,
chantagem, suborno ou manipulação, limitar ou anular o exercício
dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher.
Violência patrimonial – qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e
direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer
suas necessidades. (Controlar dinheiro, destruição de documentos
pessoais, furto, extorsão, estelionato, privar de bens, valores ou
recursos econômicos)
Violência moral – qualquer conduta que configure calúnia,
difamação ou injúria (acusar de traição, emitir juízos morais sobre
a conduta, expor a vida íntima, rebaixar a mulher por meio de
xingamentos que incidem sobre sua índole, desvalorizar a vítima
pelo seu modo de vestir).7
Há, ainda, a violência simbólica, não compreendida no tipo
penal, mas evidenciada no cotidiano, expressa através da força da
ordem masculina instalada e cultural, não questionada pela mulher
dominada; é uma violência disfarçada, seja na divisão social do
trabalho ou nas atividades atribuídas a cada um dos sexos (DINIZ;
COUTINHO, 2011, p. 29).
Nesse ponto, entende-se pertinente destacar O ciclo da
violência, de Lenore Walker, o qual destaca a exposição e sofrimento
ao qual é exposta a mulher vítima de agressão até que consiga
romper com este ciclo, ou, por vezes, até que ele resulte em uma
lesão mais gravosa ou em um feminicídio.
Segundo a especialista, a violência doméstica é composta de
3 fases distintas, que são reproduzidas de forma cíclica, sendo elas:
1ª fase: tensão: Esta fase não teria duração específica, poderia
durar semanas, meses ou anos. Consistiria no gradual escalonamento
de irritabilidade do agressor sem motivos, comportamentos verbais
desrespeitosos, humilhantes, ciúmes, críticas, etc., são empregadas
sem resistência por parte da mulher, pequenas brigas rotineiras por
coisas insignificantes, que tomam proporções maiores sem qualquer
motivação específica.
2ª fase: agressão: Essa fase tende a ser mais curta, segundo
a especialista. Associada à violência psicológica inicial, o agressor
passa a fazer uso da força física, podendo ser em paralelo à violência
sexual, moral e patrimonial.
3ª fase: “lua de mel”: Nesta fase, o comportamento violento
cessa, bem como os xingamentos e críticas, dando lugar a um
homem ideal. O agressor busca convencer a companheira de que
seu comportamento agressivo foi um caso pontual que não irá voltar
a acontecer, e está acaba cedendo, dando início a um novo ciclo.
Nesse diapasão, a busca por proporcionar amparo às mulheres
que se encontram em situação de violência é primordial, no intuito
de levar a elas conhecimento das alternativas e direitos que possuem
e possibilitar o rompimento desse ciclo, que foi uma das diretrizes
buscadas pela LMP (DINIZ; COUTINHO, 2011, p. 20-21).
54

O que se espera, agora, é que os crimes praticados com


violência doméstica e familiar não sejam beneficiados seja
por práticas judiciais discriminatórias ou sexistas, seja pela
morosidade do sistema de justiça, pois a banalização da
violência doméstica e familiar praticada contra as mulheres,
muitas vezes resulta em reincidências e agravamento do
ato violento motivadas pela sensação de impunidade, como
ocorria na época em que os agressores eram condenados a
pagar uma cesta básica.

Como grande respaldo e fundamento temos a Lei Maria da


Penha, que é, atualmente, a mais importante regra categórica que
dispõe a mulher vítima da violência doméstica; todavia, muito
embora os indiscutíveis avanços trazidos pela lei, os números
aumentam a cada ano no Brasil, tornando perceptível a fragilidade
de seu alcance e de suas diretrizes.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2015)
realizou um estudo sobre a efetividade da Lei Maria da Penha, por
meio de um método conhecido como modelo de diferenças em
diferenças, em que os números de homicídios contra as mulheres
dentro dos lares foram confrontados com aqueles que acometeram
os homens. Os pesquisadores do Instituto utilizaram dados do
Sistema de Informações sobre Mortalidade do Sistema Único de
Saúde (SUS) para estimar a existência ou não de efeitos da Lei na
redução ou contenção do crescimento dos índices de homicídios
cometidos contra as mulheres.8
Ao analisar os dados coletados pelo IPEA, é possível
identificar que a Lei Maria da Penha contribuiu para uma diminuição
de cerca de 10% na taxa de homicídios contra mulheres praticados
dentro das residências das vítimas.9

O momento da denúncia é tido por muitas mulheres como


um evento traumático, o que acaba inibindo o engajamento
para efetivação mais massiva de todas as formas de violência
cometidas a elas. Há um estigma da delegacia, como um
lugar onde possivelmente irão se deparar com um policial,
homem, autoritário e centrado em verdades orientadas pelo
controle e pela disciplina. De outro lado, coloca-se à vítima,
com seus discursos fortemente marcados por questões
55

de gênero, de classe e de raça, as quais colocam, para o


olhar do policial, o feminino em um lugar de descrédito.
A mulher, nesse cenário, sente-se constrangida, subjugada,
sendo interpelada diversas vezes sobre fatos os quais sofre
em relatar (VIEIRA, 2018, p. 37).

O Poder Judiciário no Enfrentamento à Violência Doméstica


e Familiar contra as Mulheres", desenvolvida pelo Ipea em
cooperação com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ....?ver
Segundo Joana Alencar, pesquisadora responsável, o foco do
estudo foi conhecer e observar o atendimento do Poder Judiciário
às mulheres em situação de violência doméstica, seja ela física,
sexual, psicológica, moral ou patrimonial. Doze localidades foram
escolhidas para a pesquisa de campo, representando as cinco regiões
do país:
De maneira geral, as mulheres entrevistadas e observadas
apresentavam um conhecimento difuso sobre a existência
da Lei Maria da Penha e alguns de seus dispositivos, em
especial as medidas protetivas, mas não conheciam seus
aspectos processuais mais específicos. Foi comum ouvir
delas que o que sabiam sobre a lei tinha origem na mídia
e em pessoas conhecidas, e não nas instituições de Justiça.
No geral, observou-se que elas não distinguem as diferentes
etapas processuais, seus objetivos e implicações, o que
podem ou não esperar.10

O mesmo estudo, em seu relatório, completa com algumas


experiências presenciadas pelas pesquisadoras:

Embora tenha se observado nos balcões dos cartórios esse


atendimento cordial e os atores jurídicos tenham afirmado
nas entrevistas que as mulheres que apresentam alguma
dúvida recebem explicação sobre o processo, as entrevistas
com elas revelam que as informações não são suficientes e é
costumeiro afirmarem que ninguém lhes explica sobre a Lei
Maria da Penha. Nesse sentido, salvo exceções em que há
procedimentos sistemáticos de fornecimento de explicações
às mulheres (conforme relatado a seguir), elas só recebem
56

estas elucidações se tiverem a iniciativa de questionar.


Mesmo assim, há que se ponderar a qualidade da prestação
de informação, pois elas aparentam não ser suficientes.
Em uma unidade, o chefe de cartório lamenta o tempo
que é despendido para atender as mulheres que acionam a
secretaria. Ele diz: “temos que ouvir, perdemos tempo com
isso (...) ela vai contar o que está acontecendo com ela (...) a
gente logicamente dá uma condução para que isso não seja
muito extenso”.11

2 DA NECESSIDADE DE ATENDIMENTO ESPECIALI-


ZADO À MULHER AGREDIDA E DESENVOLVIMEN-
TO DO PROJETO DE EXTENSÃO
Nesse sentido, em face das múltiplas facetas contempladas
pela violência doméstica, se faz impositivo buscar desenvolver
diretrizes capazes de abranger, de forma ampla, políticas públicas
regionais aptas a garantir os direitos fundamentais da mulher. Nesse
cenário, restou desenvolvido o projeto intitulado “Enfrentamento
da Violência Doméstica e Familiar – Direitos e Garantias
Legais da Mulher Agredida”, o qual é vinculado à pro-reitoria de
extensão e relações comunitárias da Universidade de Santa Cruz
do Sul (UNISC), em parceria com a delegacia especializada de
atendimento à mulher (DEAM), sendo realizado nos municípios de
Santa Cruz do Sul/RS e Montenegro/RS, com previsão de aplicação
nos municípios de Capão da Canoa, Sobradinho e Venâncio Aires.
Percebe-se que, diante da própria violência doméstica, a vítima
ainda não tem conhecimento dos direitos e das garantias que a lei
determina. Assim, o projeto tem como principal objetivo a promoção
de um atendimento humanizado a essas mulheres, buscando orientá-
las quanto aos seus direitos previstos na Constituição Federal, na Lei
Maria da Penha e em demais determinações infraconstitucionais,
como questões de direitos de família, divórcio, alimentos, guarda
dos filhos, englobando tanto a legislação estadual quanto municipal.
Ao comparecer à Delegacia especializada, em ambos os
municípios, primando por compreender o cerne das relações
familiares e acolhimento da vítima, estas são encaminhadas à
uma sala de atendimento privado, onde as bolsistas de extensão
57

responsáveis verificam se os fatos relatados são inerentes à esfera


penal ou cível, prestando orientações quando aos procedimentos
a serem adotados, pedido de medidas protetivas, como também
realizam os encaminhamentos necessários (CREAS, conselho
tutelar, defensoria pública, gabinete de assistência judiciária,
escritório de defesa dos direitos da mulher, entre outros).
No período compreendido entre abril e dezembro de 2019,
na cidade de Santa Cruz do Sul, as bolsistas realizaram, no total,
33 (trinta e três) atendimentos às vítimas de violência doméstica
e familiar, sendo dezesseis deles referentes ao delito de ameaça;
este, vem seguido pela contravenção penal de perturbação da
tranquilidade, com nove atendimentos; por último, estão os delitos
de lesão corporal e injúria, com quatro atendimentos cada.
Na cidade de Montenegro, durante o mesmo período, cenário
similar foi observado. As bolsistas realizaram, no total, 104 (cento
e quatro) atendimentos às vítimas de violência doméstica e familiar,
sendo 62 (sessenta e dois) deles referentes ao delito de ameaça; este,
vem seguido pelo delito de injúria, com 17 (dezessete) atendimentos;
após, o delito de lesão corporal, com 15 (quinze) atendimentos; e,
por último, a contravenção penal de perturbação da tranquilidade,
com 10 (dez) atendimentos.
Nesse sentido, foi possível perceber, ao longo dos
atendimentos de ambos os municípios, a presença marcante dos
casos de violência psicológica, sinalizando a necessidade de um
atendimento especializado a essas vítimas. Ainda, foi possível
observar o alarmante crescimento nos números de violência contra
a mulher no ambiente onde mais deveriam se sentir seguras, suas
casas.
A violência psicológica se destaca nos números, como mais
denunciada, ainda com a provável subnotificação, e, também, por
estar presente em praticamente todas as demais formas de violência.
A Lei Maria da Penha, no art. 7º, II, assim dispõe:

[...] II - a violência psicológica, entendida como qualquer


conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da
auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
58

ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante


ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação
do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause
prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (grifo
nosso?).

Violência psicológica é descrita como “qualquer conduta”, o


que gerou diversas críticas em razão da larga abrangência; consoante
alegações dos juristas, a redação do artigo permitia que qualquer
comportamento apresentado pelo homem poderia ser interpretado
dentro das previsões do art. 7º, II, da Lei Maria da Penha (VIEIRA,
2018, p. 87).
Maria Berenice Dias esclareceu a interpretação do dispositivo,
dirimindo eventuais dúvidas. Para ela, para a compreensão da
violência doméstica e familiar, é necessário realizar a interpretação
do art. 7º da Lei em conjunto do art. 5º; ou seja, a violência doméstica
é qualquer das ações taxadas no art. 7º, praticadas contra a mulher
em relação de vínculo de natureza doméstica, familiar ou afetiva,
prevista no art. 5º.
A autora complementa, evidenciando que para caracterização
das ações do art. 7º, estas devem estar fundadas em uma relação de
poder baseada no gênero; que cause um dos resultados apontados
pela lei, seja no plano físico, psicológico, patrimonial, moral ou
sexual; desde que tenha lugar em um dos espaços enunciados no
art. 5º da mesma lei, quais sejam, âmbito da unidade doméstica, da
família, ou em qualquer relação íntima de afeto. (DIAS, 2015, p.51;
apud VIEIRA, 2018, p. 64).
Segundo Dias (2007, p.16), independentemente do tipo de
violência praticada, o lugar de maior ocorrência continua sendo
dentro do próprio lar da vítima:

Segundo relatório da Organização Mundial da Saúde, a


maioria da violência cometida contra a mulher ocorre dentro
do lar ou junto à família, sendo o agressor o companheiro
atual ou o anterior. E o pior. As mulheres agredidas ficam,
em média, convivendo um período não inferior a dez anos
59

com seus agressores.


A conclusão é uma só: as mulheres nunca param de apanhar,
sendo a sua casa o lugar mais perigoso para elas e para os
filhos. DIAS, 2007, p. 16).

Observa-se, assim, que o ambiente doméstico, o qual
deveria ser sinônimo de segurança e afeto, acaba por se tornar um
local inóspito, onde a mulher se encontra sozinha e vulnerável
às agressões perpetuadas. É real e perceptível a situação dessas
mulheres, que dentro dos seus próprios lares vivem à sombra do
medo e à iminência da violência.

3 O POSSÍVEL AUMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA


EM TEMPOS DE ISOLAMENTO SOCIAL
Embora os homens representem entre 60% e 80% dos mortos
pela Covid-19, as mulheres são afetadas de maneira mais severa
pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2). Elas estão mais expostas ao
risco de contaminação e às vulnerabilidades sociais decorrentes da
pandemia, como desemprego, violência, falta de acesso aos serviços
de saúde e aumento da pobreza.12 Esses números, por si só, já causam
grande temor social. Tais fatos se exacerbam quando associados a
agressões físicas e psicológicas vivenciadas no ambiente doméstico
por milhares de mulheres no Brasil e no mundo.
As necessárias medidas de isolamento social determinadas
desde março de 2020 em diversas regiões têm auxiliado a frear a
disseminação da pandemia da Covid-19; de outro modo, ao que
tudo indica, intensificaram o risco de violência doméstica, com a
convivência ininterrupta e o fomento de situações conflituosas.
Cavalcanti (2007, p. 29) destaca a relação de poder e da força
física utilizada pelos agressores para subjugar as vítimas e mantê-
las sob seu jugo. Nessa senda, percebe-se que a contextualização
imposta pela pandemia pode vir a gerar instabilidade na sensação de
poder buscada pelo agressor, de modo que uma simples divergência
de opinião pode se transformar em agressões verbais e físicas,
no anseio de mecanismos que o reafirmem enquanto provedor e
detentor do lar.
60

Não à toa, a Corte Interamericana de Direitos Humanos


publicou, no dia 9 de abril, manifestação com o objetivo de lembrar
aos Estados suas obrigações internacionais e a jurisprudência
daquela corte, na qual destacou:

Tendo em vista as medidas de isolamento social que


podem levar a um aumento exponencial da violência contra
mulheres e meninas em suas casas, é necessário enfatizar o
dever do Estado de devida diligência estrita com respeito ao
direito das mulheres a viverem uma vida livre de violência
e, portanto, todas as ações necessárias devem ser tomadas
para prevenir casos de violência de gênero e sexual; ter
mecanismos seguros de denúncia direta e imediata; e
reforçar a atenção às vítimas.13

Delineia-se, um quadro propício ao crescimento nos números
de agressões, vez que não só aumentam as horas de permanência
no ambiente doméstico, como tendem a se fomentar situações
conflituosas. Desse modo, insurge dúvida instransponível acerca das
alternativas à disposição das vítimas de violência doméstica para
efetivar as denúncias.
Locais como trabalho, escola e amigos, que antes poderiam
servir de refúgio à vítima, em razão da restrição de serviços passam
a não existir, aumentando o poder de controle do agressor sobre suas
vidas com a convivência ininterrupta.
Porém, o confinamento não é o único causador de grandes
tensões no ambiente doméstico. Há várias possibilidades de gatilhos
que têm seus efeitos acentuados durante o período de quarentena,
que podem ser desencadeadores de comportamentos agressivos:
aumento do desemprego e, por conseguinte, da pressão e do estresse
com as preocupações de falta de dinheiro e da própria subsistência;
aumento do consumo de álcool, sobrecarga de trabalho doméstico
às mulheres, entre outros, decorrendo em picos de estresse e
irritabilidade.
Sob esse prisma, vislumbra-se o aspecto cultural da violência,
que pode ser inclusive transgeracional, onde se faz necessária a
aplicação não só de políticas públicas ao seu enfrentamento, mas
voltadas à prevenção, incorporando ao Estado um efetivo aparato
61

material ao combate de tal criminalidade desde sua matriz.


Nesse sentido, nota-se que não bastasse a mulher carregar
estigmas de potencialidades exíguas, lutando até hoje pela
efetivação de seus direitos, em contextos como o atual, percebe-se
latente a perseverança de juízos defasados (ou que deveriam estar),
consoante dados apresentados pelo CONJUR, a respeito dos efeitos
da crise do coronavírus no setor de empregos:

A violência doméstica é um tema notadamente relevante em


tempos de pandemia, em primeiro lugar, porque a conjuntura
socioeconômica atual tende a exacerbá-la. A perda de
empregos decorrente da crise afeta especialmente mulheres,
que se concentram no setor de serviços14, o mais afetado pela
crise. No Brasil, mulheres são mais sujeitas à informalidade
do que homens15. Mais de 90% dos trabalhadores domésticos,
mais vulneráveis economicamente na crise, são mulheres, e
mais de 70% são negros16, indicando a maior precariedade
do emprego da mulher negra. (BIANQUINI, 2020, p. ?).17

Cavalcanti (2007, p. 31) vai além, ressaltando que
o preconceito e a discriminação estão evidentes em dados
socioeconômicos que indicam que as mulheres, principalmente
as negras, são discriminadas no mercado de trabalho, quando não
conseguem empregos ou ocupam cargos secundários, apesar de
serem qualificadas; ou quando recebem salários inferiores, quando
ocupam os mesmos cargos que os homens ou as mulheres brancas.
Diante disso, vislumbra-se inegável retrocesso social à
medida em que ainda latente certa tolerância à violência e a conceitos
depreciativos e estigmáticos, tornando insidiosa e invisível a luta
contra a elevada posição do país nos casos de violência doméstica.
No Brasil, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos constatou alta de quase 9% nas denúncias realizadas no
disque 180, destinado a denúncias de violência doméstica: enquanto
a média diária entre os dias 1° e 16 de março foi de 3.045 ligações e
829 denúncias, entre os dias 17 e 25 de março foram 3.303 ligações
e 978 denúncias.18 A Justiça Estadual do Rio de Janeiro, por sua vez,
divulgou que o confinamento gerou um aumento de mais de 50% nos
62

casos de violência doméstica,19 dados que podem ser ainda maiores,


eis que o isolamento social dificulta sobremaneira os registros de
ocorrências nas delegacias de polícia.
Já no Rio Grande do Sul os números não são menos
entristecedores. Nesse período de isolamento, houve aumento
de 75% nos casos de feminicídio, saltando de 15 casos no 1º
trimestre de 2019, para 26 casos no 1º trimestre de 2020, consoante
levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública.20 Quanto às medidas protetivas, é possível acompanhar
através do Violentômetro,21 o qual menciona as medidas deferidas
no ano de 2020 em nosso Estado, que, até a data de 05 de agosto de
2020, alcançam o número de 62.822.
Não obstante, o mesmo estudo realizado pelo Fórum BSP
observou que as denúncias de violência doméstica no Rio Grande
do Sul registraram queda de 22,9% em março deste ano quando
comparado ao mesmo período do ano passado, demonstrando a
inexatidão dos registros administrativos. A dificuldade das mulheres
para conseguir realizar as denúncias pode ocorrer tanto pelo controle
exercido pelo agressor, quanto pela sensação de dependência
econômica que o contexto impõe. Como consequência, a vítima vai
perdendo ainda mais a autoestima e a autoconfiança, imergindo em
pontos devastadores de violência.
Ainda que o crescimento de números não seja tão elevado,
acredita-se que a violência tenha reduzido, mas, sim, em uma
subnotificação, considerando que as mulheres estão presas em casa
convivendo de forma ininterrupta com seus agressores.

4 A NECESSIDADE DE ADAPTAÇÃO DO PROJETO


DE EXTENSÃO E DESENVOLVIMENTO DO “TELE
MARIA DA PENHA/UNISC”
De acordo com a Lei Maria da Penha, cabe ao poder público
desenvolver políticas que visem a "garantir os direitos humanos das
mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido
de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão", bem como criar
63

as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos


fundamentais inerentes à pessoa humana.
Nesse cenário, de obstáculos subjetivos e impactos
ainda desconhecidos gerados pelo período de confinamento, é
imprescindível a implementação de projetos e políticas públicas
que visem à efetivação das medidas previstas em Lei, garantindo o
período de isolamento livre de qualquer forma de violência.
Tendo em vista a dificuldade para fazer denúncias de
violência por conta própria do caos que se apresenta, é necessário,
de pronto, destacar a possibilidade de registro por terceiros que
percebam a relação abusiva. Não obstante, outras iniciativas têm
sido implementadas pela sociedade civil organizada como forma
de apoio às mulheres em situação de violência doméstica durante
a pandemia.
Nesse diapasão, com o intuito de direcionar às vítimas de
violência doméstica sobre os seus direitos em caso de agressão,
sejam elas físicas, psicológicas ou patrimoniais, criou-se o Tele
Maria da Penha UNISC.
O projeto de extensão é uma adaptação daquele desenvolvido
junto às delegacias especializadas de Montenegro e Santa Cruz do
Sul, e visa proporcionar atendimento por telefone às vítimas de
violência doméstica e familiar, orientando-as sobre as medidas a
serem adotadas e, após, os encaminhamentos aos órgãos públicos
da rede de proteção à mulher.
O atendimento via Call Center tem por objetivo preservar
possíveis exposições ao contágio da Covid-19 e, também, garante
total sigilo quanto às informações e identidade da vítima. O projeto
mantém seu alicerce principal: a promoção de um atendimento
humanizado às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar e
esclarecimentos adequados!
Desse modo, ao acionar o Tele Maria da Penha/UNISC,
a vítima é atendida por telefone pelas bolsistas de extensão
responsáveis, e, de igual modo ao que ocorre na DEAM, estas
realizam uma escuta atenta e sugerem o melhor encaminhamento,
podendo, inclusive, indicar a realização de um pedido de medida
64

protetiva pela delegacia online, aqui no Rio Grande do Sul,


garantindo o acesso aos direitos fundamentais da mulher agredida
e preservando a sua saúde diante do caos causado pela pandemia.
O Tele Maria da Penha, o qual é gratuito e acessível de
qualquer parte do Brasil, tornou-se um dos principais aliados da
mulher no combate à violência doméstica e familiar durante esse
período de quarentena, uma vez que o procedimento realizado
é altamente sigiloso, proporcionando à vítima maior confiança,
segurança e amparo ao esclarecer os meios adequados à resolução
de sua situação conflituosa.

4 CONCLUSÃO
No que se refere ao cenário de confinamento, muito embora
nos atenhamos a positivas prospecções de retorno à “normalidade”
com a flexibilização do isolamento social, é preciso manter em
evidência o estado de atenção à mulher.
De todo modo, os rastros gerados pela pandemia vão
além dos entonados pela mídia, vez que poderão vir a acentuar
vulnerabilidades econômicas e dificultar o cenário de rompimento
da relação abusiva.
Nesse diapasão, é imperioso exigir do Estado, e atuar
enquanto sociedade, no sentido de além de conter a pandemia da
Covid-19, não deixar o período de isolamento tornar a violência
doméstica invisível e estrita ao lar. É, mais do que nunca, necessário
que se forneçam meios adequados à efetivação de denúncias, com
segurança, possibilitando condições mínimas de acesso à informação
e garantindo os direitos humanos e fundamentais da mulher.

NOTAS
Possui graduação no curso de direito pela Universidade de Santa Cruz do
1

Sul - UNISC e mestrado em direito pela mesma Universidade. É professor


do curso de direito da UNISC, onde exerce o magistério superior nas áreas
do direito penal e processual penal. É Promotor de Justiça e atualmente
exerce a função na Promotoria de Justiça Criminal de Santa Cruz do Sul/RS.
Coordenador do Projeto de Extensão “Enfrentamento da violência doméstica
65

e familiar contra a mulher: direitos e garantias legais da mulher agredida”.


Endereço eletrônico: [email protected]. Currículo Lattes: 8342935944007299.
2
É aluna do décimo semestre do Curso de Direito da Universidade de Santa
Cruz do Sul/UNISC e bolsista de Projeto de Extensão “Enfrentamento da
violência doméstica e familiar contra a mulher: direitos e garantias legais
da mulher agredida”. Endereço eletrônico: [email protected].
Currículo Lattes: 5324495557600377.
3
É aluna do segundo semestre do Curso de Direito da Universidade de Santa
Cruz do Sul/UNISC e bolsista de Projeto de Extensão “Enfrentamento da
violência doméstica e familiar contra a mulher: direitos e garantias legais
da mulher agredida”. Endereço eletrônico: [email protected].
Currículo Lattes: 8487255877297348.
4
Baracho e Souza, 2015, p. 100.
5
MELLO, 2007, p. 03.
6
VIEIRA, 2018, p. 36.
7
INSTITUTO MARIA DA PENHA, 2018.
8
IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA: Pesquisa
avalia a efetividade da Lei Maria da Penha, 2015.
9
Idem. A institucionalização das políticas públicas de enfrentamento à
violência contra as mulheres no Brasil, 2015.
10
Idem. O Poder Judiciário no Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar
contra as Mulheres, 2019.
11
Idem.
12
Modelli e Matos, 2020.
13
Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2020, p. 02.
14
IBGE, 2019.
15
I dem.
16
Organização Internacional do Trabalho, 2020.
17
Bianquini, 2020.
18
Ministério da mulher, da família e dos direitos humanos, 2020.
19
G1. Casos de violência doméstica no RJ crescem 50% durante confinamento,
2020.
20
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.
21
Dispõe a quantidade de Medidas Protetivas emitidas no Estado do RS desde
01/01/2020 através de um violentômetro de fácil visualização, disponível em
https://www.tjrs.jus.br/novo/violencia-domestica/.
66

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O PAPEL DA SOCIEDADE NA PREVENÇÃO
E COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: A
NECESSÁRIA ATUAÇÃO CONJUNTA COM O
ESTADO NA ARTICULAÇÃO E CONTROLE
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS, PRIVADAS E
LEGISLATIVAS

Chaiene Meira de Oliveira1


Rogério Gesta Leal2

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente trabalho tem como objetivo geral analisar de
que maneira a atuação conjunta entre Estado e sociedade pode
contribuir com a prevenção e combate à violência doméstica. O
tema da pesquisa está relacionado à atuação conjunta entre Estado
e sociedade na prevenção e combate à violência doméstica estando
delimitado ao contexto brasileiro em termos de legislação bem como
das medidas que serão analisadas ao longo do desenvolvimento do
artigo. O método de abordagem utilizado é o dedutivo, o método de
procedimento monográfico e as técnicas de pesquisa estão resumidas
em consulta em livros, revistas, periódicos, teses, dissertações,
dentre outros meios.
Assim, considerando a necessidade de prevenir e combater a
violência doméstica no cenário brasileiro, bem como a existência de
políticas públicas e legislativas sobre a temática, além do fato de que
o Estado de forma isolada não consegue atuar em todos os setores,
questiona-se: de que maneira a atuação conjunta entre Estado e
sociedade pode contribuir com a sua prevenção e combate?
A hipótese inicial é no sentido de que a atuação conjunta
entre Estado e sociedade é cada vez mais necessária na medida em
que tão somente medidas legislativas não dão conta de solucionar
este grave problema necessitando da participação social desde
a prevenção até a detecção de casos de violência doméstica, os
quais devem ser comunicados às autoridades competentes. Por sua
vez, as autoridades policiais e judiciárias necessitam priorizar o
70

atendimento com urgência, possibilitando a resposta adequada às


vítimas e, após o devido processo legal, culminar com a aplicação
das respectivas sanções.
O estudo justifica-se no campo teórico pela necessidade da
realização de pesquisas sobre a temática objetivando a identificação
do problema da violência doméstica e a delimitação de suas
características dentre outros fatores, para que desse modo seja
possível estabelecer instrumentos públicos e privados para sua
prevenção e combate. Ademais, diante da complexidade das relações
estabelecidas entre Estado e sociedade, a sua atuação conjunta é
essencial para obtenção de melhores resultados.
Em termos práticos, a justificativa centra-se no fato de que
a atuação estatal de forma isolada não consegue atender a todas
as demandas, o que ocorre tanto pela inexistência de recursos
financeiros e pessoais disponíveis, bem como pelo acesso à crescente
ocorrência de casos de violência doméstica, os quais, em muitas
situações, por ocorrerem no interior das residências, não seriam
levados ao conhecimento do Estado sem a participação conjunta da
sociedade utilizando-se dos instrumentos disponíveis para denúncia.
Os objetivos específicos da pesquisa, em conformidade
com a divisão dos capítulos, centram-se em inicialmente delimitar
os aspectos conceituais e introdutórios relacionados à violência
doméstica. Após, visa-se descrever os principais instrumentos
existentes nas esferas pública e privada para a sua prevenção e
combate e por fim, analisar de que forma a atuação conjunta entre
Estado e sociedade pode contribuir com a prevenção e combate à
violência doméstica a partir dos instrumentos descritos.

2 ASPECTOS CONCEITUAIS E INTRODUTÓRIOS


SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Neste primeiro tópico, pretende-se delimitar os aspectos
conceituais e introdutórios relacionados à violência doméstica,
realizando uma breve exposição teórica sobre o seu conceito e uma
contextualização histórica, ainda que de forma sucinta, como forma
de posteriormente relacionar com a situação atualmente vivenciada,
71

possibilitando assim o estabelecimento de diretrizes para atuação


conjunta entre Estado e sociedade na prevenção e combate à
violência doméstica.
Inicialmente, no que se refere aos aspectos conceituais, para
Teles e Melo (2002) a violência pode ser definida como aqueles
atos relacionados ao uso da força física, psicológica ou intelectual
utilizados para constranger a vítima, restringindo a sua liberdade
ou causando-lhe incômodos. Trata-se de um meio de coagir,
submetendo o outro ao seu domínio, de forma mais ampla, pode-se
dizer que é uma violação aos direitos humanos. Destaca-se que a
definição proposta pelos autores é um conceito aberto de violência,
o qual pode ser utilizado como embasamento para a conceituação da
violência doméstica de forma mais específica.
Especificamente no que se refere à violência doméstica,
Cunha e Pinto (2011) a definem como sendo a agressão contra a
mulher, ocorrida no ambiente doméstico, familiar ou de intimidade, o
qual tem a finalidade específica de objetá-la, o que, no entendimento
dos autores, significa retirar-lhes direitos, utilizando-se da sua
hipossuficiência. Ou seja, no contexto de violência doméstica, a
mulher é vista pelo agressor como se estivesse em uma posição de
inferioridade pelo fato de ser do sexo feminino.
Importante é a distinção realizada por Porto (2016) ao
diferenciar violência de gênero e violência contra mulher, afirmando
que toda violência de gênero é uma das formas de violência contra
a mulher, porém o contrário não é verdadeiro. Na visão da autora,
a violência de gênero é aquela que envolve a determinação social
dos papeis feminino e masculino e sua construção histórico-social
na medida em que de uma forma ou de outra, toda sociedade ainda
que intrinsecamente atribui papeis distintos a homens e mulheres.
Muitas vezes tal atribuição de papeis torna-se uma raiz machista
na sociedade sobretudo quando são atribuídos valores diferentes às
funções desempenhadas por mulheres e homens, supervalorizando
os papeis masculinos em detrimento dos femininos.
Ainda segundo Porto (2016), algumas das características
mais importantes da violência de gênero é que esta decorre de
uma relação de poder de dominação do homem e da submissão da
mulher, resultando de uma cultura ideológica machista e patriarcal
72

que há séculos persiste nas mais diversas sociedades. A autora


ressalta, também, que a violência doméstica, pode apresentar-se
em pelo menos quatro formas principais que têm características
bem específicas, citando a violência física, sexual, psicológica e
negligência, não havendo uma demarcação sólida entre as formas de
violência tendo em conta que em muitas situações estas ocorrem de
forma conjunta ou até mesmo uma forma de violência desencadear
outra.
Em termos legislativos, a Lei n° 11.340/2006, popularmente
chamada de Lei Maria da Penha, define em seu art. 5° e incisos I a II
que, para os efeitos da referida lei, configura-se violência doméstica
e familiar contra a mulher toda e qualquer ação ou omissão baseada
no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico, além de dano moral e patrimonial.
O inciso I do referido artigo define que para os efeitos
dessa lei, compreende-se no âmbito da unidade doméstica aquela
compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas,
com ou sem vínculo familiar, incluindo as esporadicamente
agregadas. O inciso II dispõe como no âmbito da família, aquela
compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são
ou se consideram aparentados, sejam estes unidos por laços naturais,
afinidade ou vontade expressa e; o inciso II, em qualquer relação
íntima de afeto na qual o agressor tenha convivido com a ofendida
independentemente de coabitação. Por sua vez, o parágrafo único
traz a importante previsão de que as relações pessoais enunciadas
no artigo independem da orientação sexual.
Na sequência, o art. 7° da Lei 11.420/2006 dispõe que são
formas de violência contra a mulher, dentre outras, a violência
física, que pode ser entendida como qualquer conduta que ofenda
a sua integridade ou saúde corporal; a violência psicológica,
a qual envolve qualquer conduta que cause dano emocional e
diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o
pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância
constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de
sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito
73

de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde


psicológica e à autodeterminação da vítima.
Também é uma das formas de violência doméstica, nos termos
da legislação brasileira, a violência sexual, compreendida como toda
e qualquer conduta que constranja a vítima a presenciar, a manter ou
a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação,
ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou
a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de
usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à
gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem,
suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus
direitos sexuais e reprodutivos.
Ainda, é necessário citar, conforme dispõe o texto legal,
sobre a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta
que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de
seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens,
valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados
a satisfazer suas necessidades e; a violência moral, entendida como
qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
No que tange aos aspectos históricos, denota-se que a
violência contra a mulher não é um problema recente, estando
presente na sociedade desde os primórdios das primeiras civilizações
tendo a sua forma de ocorrência modificada ao longo da história
sofrendo influências sociais de acordo com o período vivenciado
pelas sociedades.
A título exemplificativo dessa persistência secular da
violência doméstica, cita-se o fato narrado por Leite e Noronha
(2015), as quais, em uma abordagem histórica da temática, explicam
que a mulher sempre sofreu com o preconceito por ser considerada
um ser inferior ao homem seja pela sua capacidade física ou pela
maternidade, fatores que a faziam ser considerada vulnerável.
As autoras citam, como exemplo, as organizações tribais, onde
a mulher era responsável pela coleta de cereais enquanto que o
homem caçava, uma vez que a carne era vista com maior valor do
que os demais alimentos.
O fato é que, embora tenham se passado séculos desse período
74

narrado, as raízes patriarcais e machistas persistem intrínsecas à


sociedade, o que faz com que seja gerada uma cultura de violência,
a qual muitas vezes passa despercebida. Além disso, importante
ressaltar que a violência não é apenas física, tanto que a legislação
brasileira e a doutrina chamam atenção para as outras formas
violentas, as quais causam danos igualmente severos.
Sobre tais aspectos, Guimarães e Pedroza (2015) aduzem
que as trajetórias das mulheres, em geral, e dos movimentos
feministas, evidenciam a diversidade das pautas discutidas e das
lutas enfrentadas sobretudo a partir do século XVIII. Destaca-se o
fato que por volta da metade do século XX, mais especificamente
na década de 1960, o foco das mobilizações passou a ser justamente
sobre as denúncias dos casos de violência ocorridos no ambiente
doméstico e familiar.
Concluindo o presente capítulo, entende-se pela necessidade
de uma constante atualização legislativa e também de estudos
doutrinários sobre o tema tendo em conta que a partir de uma
compreensão sobre as suas origens e modos de ocorrência é que
se torna possível a instrumentalização de formas de prevenção e
combate à violência doméstica, as quais passam a ser analisadas no
tópico seguinte, o qual terá como foco o contexto brasileiro, sem
prejuízo dos instrumentos adotados internacionalmente, os quais
tiveram influência direta no ordenamento jurídico pátrio.

3 INSTRUMENTOS PARA PREVENÇÃO E COMBATE


À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: UMA BREVE ANÁLISE
NO CONTEXTO BRASILEIRO
Neste segundo tópico, pretende-se descrever os principais
instrumentos existentes nas esferas pública e privada para a sua
prevenção e combate considerando o contexto brasileiro. Desde
logo, ressalta-se que em virtude do espaço para exposição, o
objetivo não é esgotar a discussão sobre a temática nem mesmo
expor todos os instrumentos legislativos e de políticas públicas
e privada existentes, mas sim, destacar alguns mecanismos que
podem contribuir para a posterior análise no tópico seguinte quanto
à atuação conjunta entre Estado e sociedade. Cumpre destacar que
75

grande parte das iniciativas desenvolvidas pela sociedade civil


contam com o apoio ou são realizadas por universidades por meio
de projetos de extensão, conforme será mencionado na sequência.
Inicialmente, o primeiro instrumento analisado é justamente
a Constituição Federal de 1988, a qual dispõe no art. 226, §8°, que
a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado de
modo que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa
de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a
violência no âmbito de suas relações. Este artigo juntamente com
os textos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros
tratados internacionais ratificados pela República Federativa do
Brasil é que serviram de base para promulgação da já mencionada
Lei 11.340/2006, popularmente chamada de Lei Maria da Penha.
Em relação ao texto infraconstitucional, alguns pontos da
Lei 11.340/2006 foram mencionados no que tange à definição de
violência doméstica e suas formas, por sua vez, no que se refere
aos mecanismos de prevenção e combate, cita-se o art. 8°, o qual
prevê que a política pública que visa coibir a violência doméstica e
familiar contra a mulher é feita por meio de um conjunto articulado
de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
e de ações não-governamentais. No que tange à assistência à mulher
em situação de violência doméstica, esta, nos termos do art. 9°
do mesmo dispositivo legal, será prestada de forma articulada e
conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da
Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único
de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de
proteção, e emergencialmente quando for o caso.
Na sequência, a Lei 11.340/2006 traz outras previsões,
porém para o foco deste trabalho, destaca-se também o art. 19, o
qual tem a disposição de que as medidas protetivas de urgência
poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério
Público ou a pedido da ofendida. Além disso, caso seja constatada
a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor,
em conjunto ou separadamente as medidas elencadas no art. 22, as
76

quais desempenham um papel de extrema importância na proteção


às vítimas.
Dentre as medidas, é possível citar: a suspensão da posse ou
restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente;
o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a
ofendida; a proibição de determinadas condutas; a restrição ou
suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe
de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; a prestação de
alimentos provisionais ou provisórios; o comparecimento do agressor
a programas de recuperação e reeducação; e o acompanhamento
psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou
em grupo de apoio.
Outro serviço prestado pelo Estado no que se refere à
violência doméstica é a Central de Atendimento à Mulher em
Situação de Violência - Ligue 180, o qual é definido como um
serviço de utilidade pública gratuito e confidencial e que preserva
o anonimato de quem está realizando a denúncia. O serviço existe
desde 2005 sendo oferecido pela Secretaria Nacional de Políticas
Públicas. Conforme consta no site institucional, o Ligue 180 tem
como objetivo receber denúncias de violência, reclamações sobre os
serviços da rede de atendimento à mulher e de orientar as mulheres
sobre seus direitos e sobre a legislação vigente, encaminhando-as
para outros serviços quando necessário.
No campo das políticas públicas, considerando o extenso rol
de políticas existentes no cenário brasileiro, escolheu-se para fins
de explanação a Política Nacional de Enfrentamento à Violência
contra Mulheres. Conforme informações do documento oficial
divulgado no site institucional (2011) desde a criação da Secretaria
de Políticas para as Mulheres, no ano de 2003, as políticas públicas
de enfrentamento à violência contra as mulheres foram fortalecidas,
utilizando-se, para tanto, elaboração de conceitos, diretrizes,
normas e a definição de ações e estratégias de gestão e também de
monitoramento no que se refere às questões inerentes à temática.
A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres
tem como finalidade o estabelecimento de conceitos, princípios,
diretrizes e ações de prevenção e combate à violência contra a
mulher, bem como a de garantir assistência e garantia dos direitos
77

das mulheres em situação de violência, respeitando as normas


internas e tratados internacionais.
Acerca das políticas públicas de enfrentamento à violência
contra mulher, verifica-se que:

A importância do desenvolvimento de políticas públicas de


enfrentamento à violência contra as mulheres é efetivamente
consolidada quando do lançamento do Pacto Nacional pelo
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, em agosto
de 2007. O Pacto Nacional foi parte da Agenda Social do
Governo Federal e consiste numa estratégia de integração
entre governo federal, estadual e municipal no tocante às
ações de enfrentamento à violência contra as mulheres
e de descentralização das políticas públicas referentes à
temática, por meio de um acordo federativo, que tem por
base a transversalidade de gênero, a intersetorialidade e a
capilaridade das ações referentes à temática. (SECRETARIA
DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2011, p. 17).

Esclarecidos os breves exemplos quanto às políticas públicas,


passa-se a elencar alguns instrumentos utilizados pela iniciativa
privada, de forma isolada, e, também, em conjunto com o Estado,
na prevenção e enfrentamento do problema.
Uma ação no âmbito da iniciativa privada, a qual ganhou
notoriedade recentemente, foi a de uma loja que inseriu um botão
para denunciar casos de violência doméstica em seu aplicativo de
compras online. Conforme veiculado pela imprensa nacional, o
aplicativo das lojas Magazine Luiza, chamado Magalu, possui uma
funcionalidade, a qual permite que sejam realizadas denúncias sobre
casos de violência contra mulher. O serviço que funciona de forma
permanente, permite, com um simples clique, que seja acionado
diretamente o número 180 anteriormente mencionado (ÉPOCA
NEGÓCIOS, 2019).
O site responsável pela veiculação da notícia, destaca que
este não é o único meio incorporado pela iniciativa privada nos
últimos anos, elencando como exemplos de resultados positivos,
a campanha “#eumetoacolhersim”, a qual incentivava denúncias
realizadas por terceiros e também o Canal da Mulher, instrumento
78

para que as vítimas pudessem narrar os episódios de violência e


buscar a assistência necessária.
Um destaque mais recente, desta vez ocorrendo em conjunto
entre Estado e sociedade, surgiu diante do aumento de número de
casos de violência doméstica durante a pandemia do coronavírus.3 A
campanha Máscara Roxa lançada pelo Ministério Público do Estado
do Rio Grande do Sul em parceria com as farmácias parceiras que
tiverem o selo “Farmácia Amiga das Mulheres” possibilita que as
vítimas denunciem os casos de agressão diretamente no balcão da
farmácia. Neste caso, a mulher deve pedir a máscara roxa, que é a
senha para que o atendente saiba que se trata de um pedido de ajuda
(RBSTV, 2020).
Tal iniciativa ocorre dessa forma porque, em muitos casos,
o agressor controla a vítima impossibilitando-a de buscar auxilio
diretamente com as autoridades competentes. A partir do pedido da
máscara, o profissional da farmácia informa que o produto está em
falta e regista os dados da vítima como se fosse para avisá-la sobre
a reposição do pedido, mas na verdade os seus dados são repassados
às autoridades registrando, assim, a ocorrência de situação de
violência doméstica.
Por fim, encerrando o rol exemplificativo das medidas de
prevenção e combate à violência doméstica, destaca-se o projeto
de extensão desenvolvido na Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC, denominado Tele Maria da Penha, o projeto é coordenado
pelos professores Caroline Fockink Ritt e Eduardo Ritt, e proporciona
atendimento gratuito, via telefone, às vítimas de violência doméstica
e familiar, de modo que no atendimento ocorre a orientação sobre
quais medidas devem ser adotadas e, após, as encaminhando aos
órgãos públicos da rede de proteção da mulher vítima de violência
doméstica (UNISC, 2020).
O atendimento via Call Center, da mesma forma que ocorre
em relação à campanha Máscara Roxa, surgiu diante do contexto
da pandemia na qual ocorreu o aumento dos casos de violência
doméstica. Ademais, o atendimento remoto atinge o objetivo de
preservar possíveis exposições ao contágio da Covid-19 e, também,
garante total sigilo quanto às informações e identidade da vítima.
79

A partir do atendimento são realizados os encaminhamentos


necessários conforme a necessidade, podendo ser para o Conselho
Municipal da Mulher, a Delegacia Especializada no atendimento
da Mulher, o Ministério Público, a Defensoria pública, a Patrulha
Maria da Penha da Brigada Militar e o GAJ da Unisc.
Desse modo, conclui-se o presente capítulo a partir da
breve exposição que são muitas as possibilidades de prevenção
e combate à violência doméstica no Brasil, desde a previsão
constitucional, políticas públicas e iniciativa privada. Com base em
tais considerações, passa-se a analisar especificamente de que modo
tal atuação conjunta funciona na articulação e controle das políticas
públicas, privadas e legislativas.

4 A ATUAÇÃO CONJUNTA ENTRE ESTADO E


SOCIEDADE NA PREVENÇÃO E COMBATE À
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Neste terceiro capítulo, pretende-se analisar de que forma a
atuação conjunta entre Estado e sociedade pode contribuir com a
prevenção e combate à violência doméstica a partir dos instrumentos
descritos. Com isso, parte-se da conexão entre os espaços público
e privados de forma ampla até o estudo específico dessa atuação
conjunta no âmbito da violência doméstica, ressaltando que assim
como nos capítulos anteriores, a abordagem ocorrerá de forma
objetiva e sucinta sem esgotar as possibilidades de discussão sobre
a temática.
Quanto aos aspectos conceituais, para fins introdutórios,
compreende-se o Estado, de forma sintetizada, como sendo uma
estrutura organizacional e política, na qual estão presentes os
elementos de uma entidade com poder soberano, o povo e um
território. O estado pode estar configurado nas mais diversas formas,
o que certamente traz reflexos na forma de organização da sociedade
e consequentemente nas formas de trabalho.
Enquanto que a sociedade é vista como um conjunto de
indivíduos os quais vivem de forma organizada, ou seja, não é a
mera aglomeração de indivíduos que pode ser considerada como
80

uma sociedade. Além disso, ao longo da história, as formas de


organização social assim como foi mencionado em relação ao
estado também sofreram significativas mudanças. Assim, estado e
sociedade ocupam o mesmo espaço não podendo ser realizada uma
análise isolada sem levar em consideração todos os seus aspectos de
modo que não há um isolamento entre as esferas no momento em
que estes se entrelaçam.
Outro fator que merece destaque é sublinhado por Furtado
(2015), no sentido que os Estados Modernos assumem estruturas
nunca antes vistas nem na medida em que o volume de recursos
geridos no âmbito do orçamento público e a variedade de funções
assumidas, as quais não estão mais limitadas às tradicionais atividades
estatais de prestação de serviços, polícia administrativa e fomento.
As questões inerentes a esta relação vão além desses aspectos,
porém tal constatação é necessária para fins de demonstração da
complexidade do assunto em discussão.
Do mesmo modo que em relação aos aspectos sociológicos,
Estado e sociedade se relacionam, e esta conexão também ocorre no
âmbito econômico, social, político, na esfera do direito do trabalho,
e na temática deste estudo não é diferente. A percepção da violência
doméstica e sua forma de prevenção e combate é resultado de vários
aspectos e não apenas jurídicos. Acerca de tais aspectos, Ritt e Costa
(2007, p. 5119) ressaltam que

era consenso social que “em briga de marido e mulher não


se mete a colher”, então o que acontecia dentro da unidade
domiciliar não dizia respeito nem à polícia, à justiça, à
vizinhança, à comunidade, à sociedade ou mesmo ao resto
da família. Se esses atos fossem repetidos no espaço público
com certeza causariam horror nos transeuntes, com a pronta
intervenção policial. Mas, até há pouco tempo, esses atos
eram considerados assuntos de “esfera privada”. Entende-
se, assim, por que, quando há referência a estudos sobre a
posição das mulheres no direito ou na sociedade, ocorre a
divisão entre a esfera pública e a esfera privada. Argumenta-
se que há décadas a divisão entre espaço público e privado
foi construída com base em uma distinção hierárquica entre
os gêneros masculino e feminino.
81

Percebe-se mais uma vez sobre a influência dos aspectos


históricos e culturais sobre a forma pela qual a violência doméstica
é percebida e consequentemente sobre o papel desempenhado por
cada um dos atores sociais nesse contexto. A forma como agressores,
vítimas e sociedade civil como um todo se comportam diante de uma
situação de violência doméstica é resultado de séculos de história de
determinada sociedade na qual estão inseridos.
Nesse mesmo entendimento, ao ser entrevistada, a Defensora
Pública do Estado de Goias, Gabriela Hamdam (2018) afirmou
que a sociedade exerce um papel fundamental na luta pelo fim da
violência contra a mulher, ressaltando que os pais precisam educar
as crianças desde pequenas sobre a igualdade de gênero, bem como
a sociedade não pode mais aceitar comportamentos misóginos e
sexistas tendo o papel fundamental de denunciar casos de violência
doméstica nos termos da Lei Maria da Penha.
Com isso, entende-se que no campo da violência doméstica,
a atuação conjunta entre Estado e sociedade ocorre de diferentes
formas, dentre as quais é possível citar: a) na promulgação de
legislação sobre a temática tendo em conta que os textos legislativos
são um reflexo da sociedade no qual estão inseridos; b) na
formulação e execução de políticas públicas destinadas à prevenção,
combate e também no atendimento das vítimas; c) no exercício do
controle social das políticas públicas; d) nas iniciativas adotadas de
forma conjunta com os órgãos públicos ou de forma isolada seja
por pessoas físicas ou jurídicas, visando a denúncia de casos de
violência doméstica ou até mesmo o atendimento das vítimas; e)
nas estratégias jurídicas e de saúde física e psicológica das vítimas;
sem prejuízo de outras medidas.
Sobre o controle social das políticas públicas, denota-se que
este pode ser compreendido como sendo a participação da sociedade
no acompanhamento das ações estatais, avaliando os seus objetivos,
processos e resultados e atuando de maneira conjunta. De forma
sucinta, é a fiscalização e o monitoramento por parte da sociedade
indicada como forma de controle das ações da administração pública,
destacando, aqui, a participação popular no acompanhamento
das políticas públicas, o que, no âmbito das políticas públicas
relacionadas à violência doméstica, também se mostra essencial.
82

Ademais, nos casos práticos, também cabe às testemunhas,


por exemplo vizinhos ou familiares que tiverem conhecimento da
ocorrência de situações de violência doméstica, comunicarem às
autoridades competentes nos termos da legislação, conforme já
mencionado nos tópicos anteriores.
Conclui-se, desse modo, que são muitas as possibilidades
de atuação conjunta entre Estado e sociedade, as quais perpassam
não apenas sobre o prisma jurídico, mas também sociológico
e educacional. Ressalta-se que a existência dos instrumentos
destacados no tópico anterior é essencial, porém, conforme
destacado no presente capítulo a forma de estruturação e relação
entre o Estado e a sociedade também impacta diretamente na forma
como a violência é percebida e combatida.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho objetivou analisar de que maneira a
atuação conjunta entre Estado e sociedade pode contribuir com
a prevenção e combate à violência doméstica estando o estudo
delimitado à verificação dos instrumentos existentes na legislação
brasileira de modo que foram citados exemplos no campo
constitucional, legislativo e também de estratégias desenvolvidas na
esfera pública, privada e também de forma conjunta.
Para isso, em um primeiro momento foram delimitados
os aspectos conceituais e introdutórios relacionados à violência
doméstica, realizando uma breve exposição teórica sobre o seu
conceito e uma contextualização histórica, ainda que de forma
sucinta e neste ponto verificou-se que há uma necessidade de uma
constante atualização legislativa e também de estudos doutrinários
sobre o tema, tendo em conta que a partir de uma compreensão
sobre a sua origem e modos de ocorrência é que se torna possível a
instrumentalização de formas de prevenção e combate à violência
doméstica. Ademais, constatou-se que a violência doméstica não é
uma realidade recente, estando presente há séculos, não somente
na história brasileira, mas de uma forma global, o que indica a sua
persistência secular e necessidade constante de aprimoramento dos
mecanismos de prevenção e combate.
83

No segundo tópico, foram descritos os principais


instrumentos existentes nas esferas pública e privada para a
sua prevenção e combate considerando o contexto brasileira,
concluindo que são muitas as possibilidades de prevenção e
combate à violência doméstica no Brasil, desde a previsão
constitucional, políticas públicas e iniciativa privada. Neste ponto,
merece destaque o fato de que no contexto da pandemia muitas das
ações desenvolvidas foram modificadas, bem como outras medidas
foram acrescentadas diante do aumento dos casos de violência
doméstica e também da necessidade de adaptação às normas de
saúde pública, o que a longo prazo com certeza vai trazer impactos
ainda maiores, os quais poderão ser analisados em estudos futuros.
Por fim, no terceiro e último tópico foi analisado de que
forma a atuação conjunta entre Estado e sociedade pode contribuir
com a prevenção e combate à violência doméstica a partir dos
instrumentos descritos, momento no qual a conclusão foi no sentido
de que são muitas as possibilidades de atuação conjunta entre Estado
e sociedade, as quais perpassam não apenas sobre o prisma jurídico,
mas também sociológico e educacional. O destaque do tópico é
sobre como os aspectos culturais influenciam diretamente tanto na
percepção por parte da sociedade como também na forma de atuação
estatal, além disso, considerando as constantes modificações sociais,
as medidas legislativas e de políticas públicas também precisam ser
atualizadas.
Exposto um breve resumo das considerações obtidas com
a pesquisa, passa-se a responder ao problema de pesquisa, o qual
questionou: de que maneira a atuação conjunta entre Estado e
sociedade pode contribuir com a sua prevenção e combate? A
resposta ao questionamento, conforme já adiantado ao longo da
exposição e também desta conclusão é no sentido de que a atuação
conjunta entre Estado e sociedade na prevenção e combate à violência
doméstica, engloba diversos fatores, dentre os quais, retomando ao
terceiro capítulo, elenca-se: a) na promulgação de legislação sobre
a temática tendo em conta que os textos legislativos são um reflexo
da sociedade no qual estão inseridos; b) na formulação e execução
de políticas públicas destinadas à prevenção, combate e também
no atendimento das vítimas; c) no exercício do controle social das
84

políticas públicas; d) nas iniciativas adotadas de forma conjunta


com os órgãos públicos ou de forma isolada seja por pessoas físicas
ou jurídicas visando a denúncia de casos de violência doméstica ou
até mesmo o atendimento das vítimas; e) nas estratégias jurídicas
e de saúde física e psicológica das vítimas; sem prejuízo de outras
medidas.
Assim, a hipótese inicial restou comprovada no sentido de
que a atuação conjunta entre Estado e sociedade é cada vez mais
necessária na medida em que tão somente medidas legislativas
não dão conta de solucionar este grave problema, necessitando da
participação social desde a prevenção até a detecção de casos de
violência doméstica, os quais devem ser comunicados às autoridades
competentes. Por sua vez, as autoridades policiais e judiciárias
necessitam priorizar o atendimento com urgência possibilitando
a resposta adequada às vítimas e após o devido processo legal
culminar com a aplicação das respectivas sanções.
Com isso, conclui-se o presente artigo ressaltando que os
objetivos geral e específicos foram cumpridos, tendo como resultados
teóricos os dados apresentados ao longo do desenvolvimento
e da conclusão de maneira que a partir dessas considerações
introdutórias será possível delimitar de forma mais específica os
aspectos estudados, possibilitando a formulação de diretrizes para
modificações nas políticas públicas e legislativas.
É preciso pontuar que a prevenção e o combate à violência
doméstica ocorre, sim, de maneira conjunta entre Estado e sociedade
na esfera jurídica, mas também é necessário direcionar a atenção à
assistência social, de saúde pública e também educacional para que
a partir de uma mudança cultural seja erradicada a cultura machista
e de propagação da violência.

NOTAS

Advogada. Servidora pública municipal. Graduada em Direito na Universi-


1

dade de Santa Cruz do Sul – UNISC (2018). Mestranda em Direito na Uni-


versidade de Santa Cruz do Sul – UNISC na linha de pesquisa Constitu-
cionalismo Contemporâneo, com bolsa CAPES modalidade II (2019-2021).
Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal na Fundação Escola Su-
85

perior do Ministério Público – FMP. E-mail: [email protected].


Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Dou-
2

tor em Direito. Professor Titular da UNISC e da FMP. E-mail: gestaleal@


gmail.com
De acordo com dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do
3

estado, no mês de abril de 2020, durante o período de isolamento devido à


pandemia, o número de casos de feminicídio no Rio Grande do Sul aumentou
em 66,7%, em relação ao mesmo mês do ano passado.

REFERÊNCIAS

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08 ago. 2020.
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para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera
o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
Penal; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 07, ago, 2006. Disponível
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86

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em-meio-a-pandemia-da-covid-19#:~:text=O%20Tele%20
Maria%20da%20Penha%20%E2%80%93%20Unisc%20
prestar%C3%A1%20informa%C3%A7%C3%B5es%20e%20
orienta%C3%A7%C3%B5es,acione%20ou%20indique%20
esse%20servi%C3%A7o. Acesso em: 11 ago. 2020.
A RELEVÂNCIA DA ATUAÇÃO DO DELEGADO
DE POLÍCIA PARA A PRESERVAÇÃO
IMEDIATA DA INTEGRIDADE DA VÍTIMA
DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR E
PARA A RESPONSABILIZAÇÃO CRIMINAL DO
AGRESSOR

Graciela Lourdes Foresti Chagas1


Renata Sebben Mohr2

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção de
Belém do Pará (1994), ratificada pelo Brasil em 1995, proclama que
a violência contra a mulher constitui violação aos direitos humanos
e às liberdades fundamentais.3 No capítulo concernente aos deveres
dos Estados, mais especificamente no artigo 7, prevê, dentre outras
disposições, que os Estados-Membros acordam em incorporar em
sua legislação interna, normas necessárias para combater a violência
contra a mulher e estabelecer procedimentos judiciais eficazes.
Entretanto, apesar do compromisso internacional, só no ano de 2006
o Congresso Nacional brasileiro aprovou uma lei específica voltada
à problemática da violência doméstica e familiar.
Criada com o objetivo de estabelecer mecanismos para coibir
e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher,
da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais
ratificados pela República Federativa do Brasil, a Lei 11.340/06 (Lei
Maria da Penha) dispôs sobre a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher e estabeleceu medidas
de assistência e proteção às mulheres em situação de violência
doméstica e familiar, conforme refere em seu artigo 1º. Além disso,
conceituou as formas de violência doméstica e familiar contra a
89

mulher e delineou os procedimentos a serem adotados por diversas


autoridades, em esferas distintas de atuação, a fim de concretizar
tais objetivos.
Em seu Título III a lei estabeleceu determinações de cunho
propedêutico, com enfoque na necessidade de ser estabelecida
uma rede de proteção à mulher em situação de violência doméstica
e familiar, através de ações integradas dos órgãos públicos, neles
incluída a Polícia Civil (BASTOS, 2019, p. 51). Assim, as medidas
adotadas pela autoridade policial constituem a primeira via de
assistência às mulheres nessa situação, atuando como uma forma de
conter agressões e evitar aquelas que possam ser iminentes.
Nesse cenário, o presente artigo almeja analisar as atribuições
da Polícia Civil e do Delegado de Polícia à luz da Lei Maria da
Penha, averiguando a relevância da sua atuação para a preservação
imediata da integridade física e psicológica da vítima, bem como
para a responsabilização criminal do agressor. Para tanto, serão
abordadas as diretrizes a serem observadas por essa instituição
para o enfrentamento dessa espécie de crime e, ainda, avaliados
indicadores de violência contra a mulher a partir de estatísticas de
órgãos oficiais.

2 O DELEGADO DE POLÍCIA COMO PRIMEIRO


GARANTIDOR DE PROTEÇÃO À VÍTIMA DE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu que às Polícias
Civis, dirigidas por Delegados de Polícia de carreira, incumbem
as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais,
exceto as militares (artigo 144, §4º). O Código de Processo Penal,
por sua vez, em seu artigo 4º, determina que a polícia judiciária será
exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas
circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e sua
autoria.
Nesse contexto, com o objetivo de cessar infrações penais em
curso relativas à violência doméstica e familiar, bem como evitar
aquelas que fossem iminentes, a Lei 11.340/06 atribuiu à Polícia
90

Civil as funções de interventora e protetora da vítima, através de


diversas providências legais que se traduzem como os principais
meios imediatos de proteção. Assim, os artigos 10, 11 e 12 da Lei
Maria da Penha delinearam a atuação da autoridade policial nessa
espécie de crimes desde o acolhimento inicial da vítima até a
conclusão da investigação.
Sobre a atuação da autoridade policial, Francisco Sannini
Neto (2016, p. ?) evidencia o papel essencial na proteção da vítima:

Salta aos olhos, nesse contexto, a figura do delegado de


polícia como o primeiro garantidor dos direitos e interesses
da mulher vítima de violência doméstica e familiar, afinal,
esta autoridade está à disposição da sociedade vinte e
quatro horas por dia, durante os sete dias da semana, tendo
aptidão técnica e jurídica para analisar com imparcialidade a
situação e adotar a medida mais adequada ao caso.

Conforme o artigo 10 da referida lei, na hipótese de


iminência ou prática de violência doméstica e familiar contra a
mulher, bem como na hipótese de descumprimento de medida de
urgência deferida, a autoridade policial que tomar conhecimento
da ocorrência adotará, de imediato, as providências legais cabíveis.
Essa verificação da existência de risco iminente à mulher deve ser
feita pela autoridade policial com cautela, pois, como bem indica
Valéria Diez Scarance Fernandes (2015, p. 182),

a análise da periculosidade não pode estar condicionada à


vida pregressa do agente. Em regra, os autores de violência
doméstica não ostentam antecedentes em sua vida pregressa,
muitos trabalham regularmente e exercem atividades lícitas,
são bons cidadãos, vizinhos e pais, como já salientado ao
longo deste trabalho. A violência é direcionada tão somente
à parceira, que demora anos para relatar as agressões físicas
ou desiste de prosseguir, por medo ou ilusão.

Dessa forma, além da preservação da integridade física da


vítima, o legislador, preocupado também com a integridade psíquica
e emocional e a sua não revitimização,4 determinou, no artigo 10-A,
ser direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar o
91

atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado


por servidores previamente capacitados, preferencialmente do sexo
feminino. O mesmo dispositivo também estabeleceu as diretrizes
a serem observadas na inquirição da vítima e das testemunhas,
definindo que:

I – a inquirição será feita em recinto especialmente projetado


para esse fim, o qual conterá os equipamentos próprios e
adequados à idade da mulher em situação de violência
doméstica e familiar ou testemunha e ao tipo e à gravidade
da violência sofrida;
II – quando for o caso, a inquirição será intermediada por
profissional especializado em violência doméstica e familiar
designado pela autoridade judiciária ou policial.

Ainda, através do artigo 11 foram fixados deveres à autoridade


policial, como: garantir proteção policial à vítima; encaminhá-la a
hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; na hipótese
de existência de risco de vida, fornecer transporte a abrigo ou local
seguro para a ofendida e seus dependentes; e acompanhá-la para
a retirada de seus pertences do domicílio ou local da ocorrência.
Além disso, também cabe à autoridade policial informar à vítima
os direitos a ela conferidos pela lei e os serviços disponíveis, como
o de assistência judiciária para eventual ajuizamento da ação de
separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de
dissolução de união estável.
Tais providências foram elencadas de forma exemplificativa,
razão pela qual a autoridade policial não está adstrita ao rol ali
discriminado, incumbindo-lhe, ainda, a adoção de todas as demais
medidas que o fato concreto demandar e que forem necessárias à
segurança da vítima e de seus dependentes. Contudo, apesar de
tratar-se de rol exemplificativo, o emprego do verbo “deverá” nos
artigos 11 e 12 demonstra o caráter obrigatório da atuação quando
verificada a necessidade de aplicação de alguma das medidas
previstas, sob pena de responsabilização pela omissão.
Com relação ao atendimento especializado, muito embora o
artigo 12-A da Lei tenha determinado que os Estados, na formulação
de suas políticas e planos de atendimento à mulher em situação
92

de violência doméstica e familiar, darão prioridade, no âmbito da


Polícia Civil, à criação de Delegacias Especializadas de Atendimento
à Mulher (DEAMs),5 de Núcleos Investigativos de Feminicídio e
de equipes especializadas para o atendimento e a investigação das
violências graves contra a mulher, o Rio Grande do Sul, de acordo
com números divulgados pela Secretaria de Segurança Pública
(2020), conta com apenas vinte e três DEAMs.
Nesse sentido, dados da Pesquisa de Informações Básicas
Municipais (IBGE, 2019), demonstraram que 91,7% dos municípios
brasileiros não possuem DEAMs. Assim, os crimes de violência
doméstica praticados em locais não abrangidos por Delegacias
Especializadas são atendidos por Delegacias comuns, que muitas
vezes não dispõem da estrutura idealizada pelo legislador.6

2.1 ACOLHIMENTO À VÍTIMA DE VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E FAMILIAR REALIZADO PELA
POLÍCIA CIVIL DO RIO GRANDE DO SUL
Estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada demonstrou que o índice de violência doméstica com
vítimas femininas é três vezes maior que o registrado com homens
e que a violência possui fortes implicações para o desenvolvimento
do país, pois envolve perda de produtividade das vítimas, custos
com tratamento no sistema de saúde e menor participação da mulher
no mercado de trabalho. Além disso, o estudo refere que, como
problema reflexo, crianças que vivem em lares onde a violência
doméstica é prática comum possuem maior probabilidade de
desenvolver distúrbios comportamentais na primeira infância, que
são preditores para o envolvimento em atividades criminosas a partir
da adolescência (CERQUEIRA; MOURA; PASINATO, 2019).
De acordo com levantamento feito pela Federação das
Mulheres Gaúchas, no Rio Grande do Sul, em 2010, apenas 28%
das mulheres agredidas realizaram denúncia contra seus agressores
(apud CARNEIRO; FRAGA, 2012). Nessa perspectiva, conforme
dados do site da Secretaria de Segurança Pública (2020), nos seis
casos de feminicídios registrados no mês de maio deste ano no
Rio Grande do Sul, nenhuma das vítimas possuía qualquer registro
93

policial anterior contra o agressor.


Tais indicativos evidenciam que o atendimento humanizado
nos casos de violência doméstica se reveste de especial valor, na
medida em que grande parte das vítimas dessa espécie de crimes
vivencia durante muitos anos as práticas violentas antes de procurar
ajuda. Enquanto muitas nunca procuram, dentre as que efetivam o
registro policial, diversas desistem do prosseguimento antes mesmo
da conclusão do inquérito ou, ainda, no início da etapa processual.
Ainda nesse aspecto, o Observatório da Mulher contra a
Violência do Senado Federal publicou em 2018 a segunda edição
do estudo “Panorama da violência contra as mulheres no Brasil:
indicadores nacionais e estaduais”. Segundo os dados apresentados,
em 2016, no Brasil, 72% dos inquéritos policiais relativos à
violência doméstica e familiar foram arquivados. Ou seja, a cada
dez inquéritos policiais, mais de sete foram arquivados sem ensejar
o início de processos, e, consequentemente, sem a responsabilização
criminal do agressor. Levando em consideração dados estaduais,
essa taxa é ainda maior: no mesmo ano, no Rio Grande do Sul, 84%
dos inquéritos foram arquivados.
Ciente da relevância do tema e da necessidade de incentivar
que as vítimas procurem a assistência policial, a Polícia Civil
do Estado do Rio Grande do Sul iniciou, em 2019, o projeto de
acolhimento humanizado às mulheres em situação de violência
denominado “Sala das Margaridas”. Considerada uma das principais
políticas públicas da instituição no combate à violência contra a
mulher e efetivação das diretrizes da Lei Maria da Penha, a Sala das
Margaridas consiste em um espaço privativo e acolhedor destinado
às mulheres em situação de violência doméstica que buscam o
auxílio da Polícia Civil, onde profissionais especializados registram
as ocorrências policiais, realizam a oitiva das vítimas, solicitações de
medidas protetivas e demais procedimentos indicados na Lei Maria
da Penha. Além disso, o espaço também se torna um local acolhedor
às crianças, vítimas indiretas da violência, que acompanham as
mães à delegacia (BASTOS, 2019).
A Sala das Margaridas também é o local indicado para a
aplicação do Questionário de Avaliação de Risco, que tem como
94

objetivo conhecer o contexto de violência no qual a vítima está


inserida, examinar os fatores de risco e avaliar o perfil do agressor.
Tais informações são fundamentais para que a polícia possa elaborar
um plano de proteção imediato à vítima a fim de evitar crimes como
o feminicídio. O questionário também é anexado ao requerimento de
medidas protetivas de urgência, além de compor o inquérito policial,
auxiliando na responsabilização criminal do agressor (BASTOS,
2019).
Atualmente, o Estado do Rio Grande do Sul conta com
dezessete Salas das Margaridas, sendo quinze em Delegacias de
Polícia de Pronto Atendimento (DPPA), uma em plantão de órgão
policial e uma na DEAM de Porto Alegre.7 O objetivo é que as salas
sejam instaladas de forma gradativa e padronizada em todas as
Delegacias de Polícia de Pronto Atendimento do Estado, contudo,
nada obsta que sejam ainda ampliadas para outras delegacias de
polícia que atendam às determinações técnicas exigidas e que contem
com equipes qualificadas para o atendimento policial empático e
humanizado (BASTOS, 2019).
Esse projeto, assim como a sua constante ampliação, representa
papel de grande importância na concretização do atendimento que
foi idealizado pelo legislador às vítimas de violência doméstica, na
medida em que dos 497 Municípios do Rio Grande do Sul, apenas
23 possuem Delegacias Especializadas para crimes dessa espécie.
Assim, Delegacias comuns que atendem diariamente vítimas de
violência doméstica poderão contar com espaço adequado em locais
não abrangidos pelo atendimento especializado.
Nesse mesmo contexto, a fim de aprimorar cada vez
mais o atendimento das vítimas, a Delegacia Especializada no
Atendimento à Mulher de Porto Alegre, em parceria com o
Instituto-Geral de Perícias (IGP), inaugurou o serviço de plantão
psicológico online para vítimas diretas e indiretas de violência
doméstica. Após o atendimento inicial na Delegacia, se for de
interesse da vítima, enquanto aguarda para prestar depoimento, a
psicóloga responsável do Departamento Médico-Legal faz contato
por meio de videochamada para uma conversa em sala reservada.
Tal acolhimento psicossocial tem como propósito ouvir a mulher e
auxiliá-la no preenchimento do questionário de avaliação de risco e
95

na sua organização mental para prestar o depoimento. O objetivo é


que o serviço seja implantado em todas as DEAMs do Estado (SSP-
RS, 2020).
Na região Centro-Serra, com o objetivo de qualificar
o atendimento oferecido às vítimas de violência doméstica e
familiar, a Delegacia de Polícia de Sobradinho,8 em parceria com a
Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) iniciou a implantação
do projeto Combate à violência doméstica – Direitos e Garantias
Legais da Mulher Agredida. O projeto tem por objetivo orientar, com
auxílio de estudantes do curso de Direito do Campus Sobradinho,
mulheres vítimas de violência doméstica que buscam atendimento
policial acerca das providências jurídicas a que têm direito.
Os dados estatísticos mencionados, assim como a dinâmica
vivenciada no cotidiano das Delegacias, denotam que o acolhimento
inicial adequado oferecido na fase policial através do atendimento
humanizado, incluindo o suporte psicológico à vítima, é elemento
fundamental a ser utilizado por Delegados de Polícia e suas equipes.
Com isso, além do encorajamento para que as vítimas procurem o
auxílio policial, aquelas que o fazem recebem o suporte necessário
para dar prosseguimento aos procedimentos que culminarão na
responsabilização do autor do fato, notadamente quanto aos crimes
de ação penal pública condicionada à representação.

2.2 PROCEDIMENTOS A SEREM ADOTADOS PELA


AUTORIDADE POLICIAL PARA CONTER
AGRESSÕES EM CURSO E EVITAR AQUELAS
IMINENTES
Em 1995, com a criação dos Juizados Especiais Criminais
(Lei 9.099/95), a violência contra as mulheres passou a ser
tratada como problema de menor importância, pois os delitos
com mais registros pelas mulheres (ameaça e lesões corporais
leves), independentemente de terem sido cometidos em situação
de violência doméstica ou familiar, passaram a ser de competência
de tais juizados, que são pautados na tentativa de evitar as fases
instrutória e decisória do processo. Desse modo, no registro desses
delitos a atuação da autoridade policial ficava restrita à lavratura
96

de Termo Circunstanciado e requisição de exame pericial, quando


necessário. A única previsão expressa na Lei 9.099/95 para os
casos de violência doméstica era a possibilidade de determinação
de medida cautelar consistente no afastamento do agressor do lar
ou local de convivência da vítima, conforme disposto no parágrafo
único do art. 69.9
Só em 2006 a Lei Maria da Penha veio para solucionar esse
problema, afastando expressamente, no art. 41, a competência do
JECRIM para julgar os casos relacionados à violência doméstica.10
Com isso, a autoridade policial passou a ter a possibilidade de,
quando preenchidos os requisitos legais, proceder à prisão em
flagrante do agressor, mesmo nos delitos de menor potencial ofensivo
anteriormente de competência do JECRIM, desde que praticados
em situação de violência doméstica e familiar. Essa mudança foi
considerada fundamental para a repressão desses crimes, conforme
constata Maria Berenice Dias (2016, p. ?),

O grande mérito da lei foi assegurar a concessão de medidas


protetivas de urgência. Não houve a criação de novos
tipos penais, mas foi afastada a possibilidade de os delitos
reconhecidos como domésticos serem considerados de
menor potencial ofensivo, a ensejar o decreto da prisão em
flagrante e proibir a concessão de benefícios.

Nessa senda, visando garantir a maior proteção possível às


vítimas de violência doméstica, a Lei Maria da Penha criou o instituto
das Medidas Protetivas de Urgência, uma série de providências que
objetivam preservar a integridade física e psicológica da ofendida.
Dispostas nos artigos 22, 23 e 24 da lei, as medidas são divididas,
respectivamente, entre as que obrigam o agressor, as atribuídas à
vítima e as relativas a proteção patrimonial. Da mesma forma
que ocorre com o já referido artigo 11 do mesmo diploma legal,
as medidas podem ser aplicadas em conjunto ou separadamente e
constituem um rol exemplificativo.
Contudo, até o ano de 2019 o deferimento das medidas
protetivas de urgência era ato privativo da autoridade judicial.
Assim, feito o registro da ocorrência, caso a vítima solicitasse
as medidas, a única opção concedida ao Delegado de Polícia era
97

remeter a solicitação, no prazo de até 48 horas, à apreciação da


autoridade judicial, que, após recebê-la, dispunha de mais 48 horas
para apreciar o pedido. Assim, entre a comunicação do fato e a
efetiva implementação das medidas protetivas, era possível o lapso
temporal de quatro dias - isso sem contar que, após o deferimento
pelo Juiz, ainda há a necessidade de intimação do agressor, o que
aumenta o período de espera. Essa demora se mostra contrária à
própria natureza das medidas (CASTRO; CARNEIRO, 2016, p. ?
?):

Para quem está na ultrajante posição de vítima de violência


doméstica, poucos dias, horas ou até minutos sem a proteção
são uma eternidade, aumentando de modo insuportável essa
odiosa vulnerabilidade. [...]
O próprio nome do instituto evidencia essa necessidade:
medidas protetivas de urgência. Quando o Estado demora
para agir, ofende a própria natureza da medida, deixando a
ofendida com o justo receio de que voltará a ser vitimada
e o agressor com o caminho livre para dela se aproximar e
voltar a delinquir.

O Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo


realizou em 2018 a pesquisa intitulada “Raio X do Feminicídio em
São Paulo: é possível prevenir a morte”, em que foram analisadas
364 denúncias de feminicídio (tentado ou consumado) oferecidas
pelo órgão entre os anos de 2016 e 2017. Após constatar a existência
de referências em outros países de que as mulheres sob proteção
estatal, em regra, não são vítimas de feminicídio, mas nenhum estudo
equivalente no Brasil, analisaram, dentre as denúncias, aquelas em
que as vítimas obtiveram medidas protetivas. A conclusão a que
se chegou foi que, da mesma forma que no exterior, em regra, os
feminicídios acontecem quando a vítima não está protegida.
A Lei nº 13.827 de 2019, editada com o objetivo de dar maior
efetividade às medidas protetivas de urgência, abreviou essa lacuna
em que a vítima mesmo após buscar ajuda do Estado e formalizar o
pedido permanecia desamparada por vários dias. Para tanto, incluiu
a possibilidade do Delegado de Polícia, quando o Município não
for sede de comarca e, do Policial, quando o Município não for
98

sede de Comarca e não houver Delegado disponível no momento


da denúncia, promover o imediato afastamento do agressor do lar,
domicílio ou local de convivência com a ofendida.
Tal previsão está contida no artigo 12-C11 da Lei Maria da
Penha, e será possível quando verificada a existência de risco atual
ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação
de violência doméstica e familiar ou de seus dependentes. Em tais
circunstâncias, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte
e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou
a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério
Público concomitantemente.
Essa modificação legislativa não implica em afronta ao
princípio da inafastabilidade da jurisdição, pois, após o deferimento
da medida, a autoridade policial deverá comunicar à autoridade
judicial, que poderá manter a medida já aplicada, revogá-la ou
ampliá-la.12 Trata-se de uma dupla cautelaridade, em que ao delegado
de polícia incumbe a providência inicial e a decisão final fica restrita
ao magistrado competente (SANNINI NETO, 2016).
Além disso, foi conferida a atribuição apenas para promover
o imediato (e provisório) afastamento do agressor do lar, domicílio
ou local de convivência com a vítima, permanecendo a aplicação
das demais medidas protetivas previstas nos artigos 23 e 24 de
atribuição exclusiva do Juiz. Portanto, o poder conferido à autoridade
policial tem prazo de eficácia limitado e não substitui a atividade
jurisdicional (DIAS, 2016).
Entretanto, essa mudança legislativa, mesmo que benéfica,
se mostrou tímida ao restringir a atuação do delegado de polícia
aos municípios que não são sede de comarca, pois municípios com
comarca própria possuem uma demanda maior, e consequentemente,
também têm maior tempo de espera para a apreciação pelo Juiz
do requerimento de medida protetiva. Assim, sustenta-se que, em
atenção ao Princípio da Vedação à Proteção Deficiente,13 é necessário
que as determinações do art. 12-C, inciso II, abranjam também os
municípios sede de comarca, nos mesmos moldes da sistemática
das prisões em flagrante, em que o Delegado, ao encaminhar o
respectivo auto à apreciação do Juiz, possibilita a ele a análise do
99

ato para homologação (ou não), bem como para as demais medidas
judiciais possíveis.
Deferidas as medidas protetivas, a autoridade policial estará
apta a efetuar a prisão em flagrante do agressor em razão de eventual
descumprimento, hipótese em que somente a autoridade judicial
poderá arbitrar fiança, ou representar pela decretação de sua prisão
preventiva. Tais circunstâncias denotam a eficiência que o legislador
pretendeu dar a esse instituto de proteção, bem como a relevância
da atuação da autoridade policial que, em regra, é a primeira a ser
cientificada do descumprimento através de novo registro policial
efetuado pela vítima.

3 A IMPORTÂNCIA DO INQUÉRITO POLICIAL NA


FUTURA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DO
AGRESSOR
Além do atendimento inicial prestado à vítima, cabe à
autoridade policial, em decorrência do princípio da indisponibilidade,
instaurar o inquérito policial e realizar as diligências cabíveis ao
caso. Os procedimentos de cunho investigativo que devem ser
tomados, além daqueles previstos no Código Penal, estão descritos
nos incisos I ao VII do artigo 12 da Lei Maria da Penha. Entretanto,
nas ações penais públicas condicionadas à representação, para que o
inquérito tenha início é necessário que a autoridade policial tome a
termo a representação da ofendida.14
Conforme dados publicados pela Secretaria de Segurança
Pública do Estado do Rio Grande do Sul, nos últimos três anos (2017,
2018 e 2019) foram registradas mais 185.000 mil ocorrências pela
prática de crimes de violência doméstica em todo o estado. Dessas,
mais de 65.000 mil ocorrências foram de lesões corporais e mais
de 5 mil foram de estupros. Ambos os crimes demandam atuação
imediata para coleta e preservação dos vestígios que subsidiarão a
materialidade necessária para o indiciamento do suspeito e a futura
responsabilização criminal.
Nesse aspecto, tão logo a vítima compareça ao órgão
policial, após o acolhimento e registro da ocorrência serão feitos
100

os encaminhamentos periciais, a fim de que tais vestígios sejam


documentados. Nesse sentido, muito embora a lei Maria da Penha
admita como meios de prova os laudos ou prontuários médicos
fornecidos por hospitais e postos de saúde, corriqueiramente a
vítima desconhece tal possibilidade e se dirige até a Delegacia antes
mesmo da busca pelo atendimento médico, sendo acompanhada,
frequentemente, pelas equipes policiais para receber os primeiros
socorros.
Essa atuação preliminar (pré-processual) da autoridade
policial para preservação e constituição de provas perecíveis
constitui um dos elementos mais relevantes de toda a persecução
penal nos crimes de violência doméstica que deixam vestígio, pois,
na medida em que se exaurem com o tempo, esta ação assegura
a documentação de circunstâncias que não mais existirão na fase
processual. Além disso, é elemento de grande importância para
eventual representação por prisão provisória, quando necessária à
garantia da integridade da vítima ou de seus dependentes. Assim,
mesmo que a vítima modifique seu depoimento na fase judicial
com o intento de inocentar o agressor (circunstância comum nos
procedimentos de violência doméstica), subsistirão nos autos os
elementos de materialidade necessários para subsidiar as ações que
independem de representação, como nos casos de lesões corporais.
Nesse passo, a rapidez na conclusão e remessa dos
procedimentos investigatórios também é fundamental para o
desencadeamento da etapa processual e para ruptura do ciclo de
violência. A agilidade na conclusão dos procedimentos policiais
reflete diretamente no afastamento da sensação de impunidade, que
é a grande fomentadora de novas práticas criminosas, notadamente
nos crimes de violência doméstica e familiar em que vítima e
agressor muitas vezes permanecem coabitando.
Ciente desta necessária celeridade, a Polícia Civil Gaúcha
iniciou, no mês de junho deste ano, fase de testes para a remessa
de Inquéritos Eletrônicos nos Municípios de Santa Maria e Porto
Alegre. O novo sistema possibilita a transmissão de medidas
protetivas e demais peças que integram o Inquérito em tempo
real pela internet, por meio do Portal Eproc.15 O Departamento
de Tecnologia da Informação Policial (DTIP), responsável pela
101

implantação desse mecanismo que vai abolir parte dos inquéritos


em papel nas Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher
dessas cidades, explicou que esse período inicial servirá para
analisar o funcionamento do novo modelo e, de início, não abrangerá
feminicídios. Além de agilizar a remessa de procedimentos, o novo
sistema contribui para diminuição de gastos. A expectativa é de que
a partir de 2021 toda a Polícia Civil passe a remeter seus inquéritos
de forma eletrônica.
Nesse contexto, o Conselho Nacional dos Chefes de Polícia
(CONCPC), que tem como missão promover a padronização
de procedimentos e a multiplicação de boas práticas na busca da
excelência dos trabalhos desenvolvidos pelas polícias civis dos
Estados e do Distrito Federal, implementou em outubro de 2019 o
Fórum Permanente de Enfrentamento à Violência Contra Mulher.
Na ocasião, foram aprovadas minutas de resoluções relacionadas
à temática do enfrentamento à violência contra as mulheres. Neste
ano, no mês de maio, através da publicação da Resolução 06/2020
foi estabelecido um protocolo único de atendimento às mulheres em
situação de violência doméstica e familiar, objetivando, assim, o
enfrentamento padronizado, especializado e mais eficaz.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O enfrentamento da violência doméstica e familiar constitui
desafio diário para a Polícia Civil. Nesse contexto, a dinâmica
delineada pelo legislador na Lei Maria da Penha evidencia que a
atuação dos Delegados de Polícia e suas equipes é fundamental para
a preservação imediata da integridade da vítima e de seus familiares,
bem como para a responsabilização criminal do agressor.
Assim, as primeiras providências adotadas pela autoridade
policial na fase pré-processual, como a garantia de proteção policial,
encaminhamento médico-pericial, fornecimento de transporte
para local seguro, ou, ainda, a autuação em flagrante e posterior
representação pela prisão preventiva, são capazes de garantir a
sobrevivência das vítimas. É nesse viés que a alteração legislativa
que possibilitou ao Delegado de Polícia afastar imediatamente o
agressor do local de convivência com a vítima - mesmo que apenas
102

nos Municípios que não são sede de comarca - é vista como positiva,
por ampliar o caráter protetor da Lei.
Além disso, a condução eficiente da investigação a fim de
formalizar indícios qualificados de autoria e materialidade que
assegurarão a responsabilização criminal do agressor e a utilização
de mecanismos tecnológicos para agilizar a conclusão do inquérito,
possibilitando o célere início da ação penal, garantem a efetivação
da proteção almejada pelo legislador e reduzem a sensação de
impunidade e desamparo promovida pela morosidade ou ausência
de tutela estatal.
Dessa forma, a atuação da Polícia Civil firma-se como peça
fundamental e imprescindível para a efetivação da ruptura do ciclo
de violência que transcende a mulher-vítima e atinge todo o núcleo
familiar, causando sérias consequências de ordem social, de forma
gradativa e silenciosa.

NOTAS

Delegada de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul. Especialista em


1

Direito Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio


Grande do Sul. E-mail: [email protected].
Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria.
2

E-mail: [email protected].
O artigo 1 da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
3

Violência contra a Mulher (1994) conceitua a violência contra a mulher como


“qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofri-
mento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na
esfera privada”.
De acordo com Valéria Diez Scarance Fernandes (2015), a revitimização ou
4

vitimização secundária ocorre quando as autoridades públicas, em decorrên-


cia da ausência de capacitação interdisciplinar, tratam com desdém os relatos
feitos pela vítima, minimizando a situação de violência relatada ao ter a falsa
noção de que o fato não é tão grave e que a vítima não está em uma real situ-
ação de risco. Dessa conduta decorrem ações como orientar a vítima a refletir
melhor antes de registrar o boletim de ocorrência ou não efetivar o seu regis-
tro – condutas estas contrárias à lei e que desmotivam a vítima a prosseguir
com a representação.
Vale destacar que a primeira Delegacia de Atendimento Especializado à Mu-
5
103

lher no Brasil foi implantada na cidade de São Paulo, em 1985, ou seja, ante-
riormente à Lei 11.340/06.
6
Dentre os vinte e três municípios do Vale do Rio Pardo, que abrigam mais
de 418.000 mil habitantes, Santa Cruz do Sul é o único a contar com uma
DEAM. (SZCZECINSKI, Fernanda). Santa Cruz é o único município da re-
gião com uma delegacia da mulher. Portal GAZ – Notícias de Santa Cruz
e Região. 27 set. 2019. Disponível em: http://www.gaz.com.br/conteudos/
jornal_gazeta_do_sul/2019/09/27/154761-santa_cruz_e_o_unico_munici-
pio_da_regiao_com_uma_delegacia_da_mulher.html.php.
7
Dados atualizados em 16/06/2020 pela Secretaria de Segurança Pública do
Rio Grande do Sul.
8
A Delegacia de Sobradinho está localizada na região Central do Estado do
Rio Grande do Sul, denominada Centro-Serra, e abrange seis Municípios:
Sobradinho, Ibarama, Passa Sete, Lagoa Bonita do Sul, Segredo e Lagoão,
que juntos abarcam mais de 40.000 habitantes. Todas as infrações criminais
de violência doméstica e familiar praticadas nos Municípios descritos per-
tencem à circunscrição da Delegacia de Sobradinho, que também atua na
apuração de quaisquer outros delitos praticados nesses locais, na medida em
que não é Delegacia Especializada.
9
Art. 69. [...] Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo,
for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a
ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em
caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cau-
tela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.
10
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a
mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de
26 de setembro de 1995.
11
Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à inte-
gridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de
seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio
ou local de convivência com a ofendida:
I - pela autoridade judicial;
II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou
III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver
delegado disponível no momento da denúncia.
§ 1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será co-
municado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá, em igual
prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar
ciência ao Ministério Público concomitantemente.
12
Ressalta-se que a alteração também não demonstra nenhum prejuízo ao con-
traditório e à ampla defesa, pois mantém-se a possibilidade de questionar a
decisão administrativa perante o Judiciário, por meio de habeas corpus, da
mesma forma que ocorre com a prisão em flagrante e a imposição de fiança.
104

Eduardo Faria Fernandes (2011, p. 17) conceitua o Princípio da Vedação à


13

Proteção Deficiente, originariamente desenvolvido no direito germânico,


“como sendo um critério com bases constitucionais que, como aspecto posi-
tivo do princípio da proporcionalidade, atua como parâmetro de controle das
omissões estatais”.
O Enunciado 20 do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Domés-
14

tica e Familiar Contra a Mulher (FONAVID) prevê que a conduta da vítima


de comparecer à Delegacia para a lavratura do boletim de ocorrência deve ser
entendida como representação, ensejando a instauração do inquérito policial.
Sistema de processo eletrônico desenvolvido e cedido pelo Tribunal Regio-
15

nal Federal da 4ª Região.

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os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências.
105

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mulher agredida 2020. Coordenador: Caroline Fockink
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em: http://online.unisc.br/gape/consultarProjetos.
do;jsessionid=52F2E07A9638F3D7F1EAA8956A603BDB.
Acesso em: 4 ago. 2020.
O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO E A
LEI MARIA DA PENHA: A CONTROVÉRSIA
ACERCA DE SUA APLICABILIDADE NO CASO
DE VIOLÊNCIA CONTRA TRANSGÊNEROS E
TRANSEXUAIS

Martin Albino Jora1


Évelyn Caroline Jora Mendes Ribeiro2

1 INTRODUÇÃO
O artigo encetou sobre as atribuições funcionais do Ministério
Público e analisou a (im)possibilidade de abarcar a proteção jurídica
às mulheres transgêneros e transexuais por intermédio da Lei nº
11.340/2006.
Para o desenvolvimento do artigo, restou empregado o
método dedutivo e a pesquisa bibliográfica, correlacionando a
atividade ministerial com a Lei Maria da Penha, para enfrentamento
da exponencial violência doméstica numa era de sociedade de risco
ou modernidade líquida. Num segundo momento, são explicitados
os entendimentos doutrinários divergentes sobre a possibilidade
de aplicar os ditames da Lei Maria da Penha numa perspectiva
transcendente à natureza biológica da mulher.
Na terceira parte, tematiza-se o uso da técnica interpretativa e
a conjugação de princípios constitucionais, da proibição de proteção
deficiente e cânones do direito internacional para referendar a
incidência da Lei Maria da Penha no tocante à violência doméstica
de gênero.

2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA LEI MARIA DA


PENHA E A CONFORMAÇÃO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO
A Lei nº 11.340/2006 foi instituída após a punição do Brasil
pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (caso nº
110

12.051/OEA), devido à negligência em instituir políticas públicas


e mecanismos para erradicar ou coarctar a violência doméstica, a
exemplo do que se deu com a farmacêutica bioquímica Maria da
Penha Fernandes, casada por 23 anos com o colombiano Marco
Antonio Heredia Viveros, o qual tentou assassiná-la em oportunidades
distintas, por disparo de arma de fogo nas costas enquanto dormia,
causando-lhe paraplegia, e depois por eletrocussão durante o banho.
Em vista disso, por manter o caso na impunidade por mais de
quinze anos, sobreveio recomendação para agilizar a conclusão do
processo contra o contumaz agressor, apurar os atrasos injustificados
na investigação e responsabilização criminal, promover medidas
administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes, além de
conceder uma reparação à vítima pela incúria estatal.
Uma das medidas que o governo brasileiro engendrou foi a
remodelação do Código Penal, introduzindo o § 9º no artigo 129,
intitulado violência doméstica, cominando uma punição de 03
meses a 03 anos de detenção.
A Constituição Federal, em seu artigo 127, consagrou que
“o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica,
do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis.” (BRASIL, 1988).
Na verdade, o Ministério Público na Constituição de 1988
recebeu uma conformação inédita e poderes alargados. Ganhou o
desenho de instituição voltada à defesa dos interesses mais elevados
da convivência social e política, não apenas perante o Judiciário,
mas também na órbita administrativa (MENDES; BRANCO, 2014,
p. 1.012).
A Lei nº 7.347/1985, denominada de “Lei da Ação Civil
Pública”, estabeleceu que o Ministério Público poderá instaurar
inquérito civil e celebrar termo de ajustamento de conduta com os
investigados para fins de proteção do patrimônio público e social,
do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. No
seu espectro jurídico, o inquérito civil é compreendido como um
procedimento administrativo investigatório, instaurado sob a
titularidade e presidência exclusiva do Ministério Público, com o
escopo de amealhar elementos probatórios para propositura de ação
111

civil pública ou embasar a formalização de termo de ajustamento


de conduta, contemplando obrigações reparadoras para defesa dos
interesses metaindividuais.
Na órbita criminal, o Ministério Público detém o monopólio
para deflagrar a ação penal pública quando presentes indícios
suficientes de autoria e prova de materialidade delituosa, com o
desiderato de punir as condutas lesivas aos bens jurídicos protegidos
pelo ordenamento, consoante exegese do artigo 129, inciso I, da
Magna Carta; artigo 46 do Código de Processo Penal; e artigo 100
do Código Penal.
Hodiernamente, a desenfreada violência urbana, a inoperância
dos sistemas de segurança pública, o reinante sentimento de
impunidade, o risco de desemprego, o receio de catástrofes naturais,
o preconceito e o egoísmo intolerante nas relações humanas
pulverizaram uma onda de medo na sociedade, o que se agrava
pela gradativa perda de confiabilidade nas instituições estatais e
nos mecanismos de controle social e natural, desencadeando-se em
atmosfera de frustração, ressentimento e ceticismo generalizado.
Na ótica de Ulrich Beck, “com o advento da sociedade de
risco, os conflitos de distribuição em relação aos “bens” (renda,
empregos, seguro social), que constituíram o conflito básico da
sociedade industrial clássica e conduziram às soluções tentadas
nas instituições relevantes, são encobertos pelos conflitos de
distribuições dos “malefícios” (BECK; GIDDENS; LASCH, 1997,
p. 17).
À guisa de reflexão, no ano de 2017, o Brasil contabilizou
63.880 mortes violentas, constituindo o recorde de homicídios
registrados do país, consoante dados divulgados pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. O relatório aponta que foram 175
assassinatos por dia em tal ano, ou seja, sete por hora, figurando um
aumento de 2,9% em relação a 2016 (ACAYABA; PAULO, 2018).
O Brasil ainda ocupa o 5º lugar no ranking mundial de
feminicídios, com uma taxa de 4,8 homicídios de mulheres num
grupo de 100 mil habitantes, conforme dados da Organização
Mundial da Saúde (OMS), apresentado pela Organização das Nações
Unidas (ONU, 2016). De acordo com o escólio de Maria Helena
112

Sleutjes (2001, p. 192), a pós-modernidade na reflexão de Martin


Heidegger, filósofo alemão e autor de importantes obras como “Sein
Zeit” (Ser e Tempo, 1927), “Holzwege” (Sendas Perdidas, 1950) e
“Unterwegs zur Sprache” (Um Caminho para a Linguagem, 1960),
descortinou um fenômeno de quebra de valores, desaparecimento de
linhas de orientação guiadas pela razão, destronamento da ciência,
desfazimento de mitos e disfarces, pressentindo que o ser humano
tem apenas a angustiante ambição de não sucumbir, e arremata:

Heidegger tenta demonstrar a grande inversão de valores do


mundo moderno no que se refere ao conceito de sujeito e
objeto, pois o homem passa a ser produto de seu próprio
produto, estando em vias de se anular. Segundo o filósofo,
na busca desenfreada de auto-asseguramento, o homem
reduz toda a grandeza, diminui toda a profundidade, e foge
da vitalidade criadora. O poder crescente da automação e do
progresso implica uma crescente desumanidade. O homem
só poderá se refazer dos malefícios da pós-modernidade
ou melhor superá-los quando tomar consciência da própria
alienação de sua essência, porém procurando sair de sua
perdição está construindo uma trilha em qualquer sentido.
(SLEUTJES, 2001, p. 192).

Na mesma trilha, Zygmunt Bauman (2008, p. 74-75)


argumenta que, em tempos líquidos modernos, o medo e o mal são
irmãos siameses, ou dois atributos de uma só experiência, traduzindo
aquele ao que se vê e ouve, enquanto este ao que se sente. Esclarece
que se criou um código para catalogar o que é crime e uma lista
de mandamentos para definição dos pecados, porém a filosofia
ainda não conseguiu decifrar a amplitude da presença do “mal”
na humanidade, pelo simples fato de ser “ininteligível, inefável e
inexplicável”. Acrescenta que as relações humanas tendem a ser
cada vez menos permeadas por zonas de tranquilidade, certeza e
regozijo espiritual. Cônscio das instabilidades da era contemporânea,
o renomado sociólogo polonês, falecido em janeiro de 2017, aos 91
anos, adverte que:

Os rastros deixados por essa busca por segurança parecem,


contudo, um cemitério de esperanças destruídas e
113

expectativas frustradas, e o caminho à frente está salpicado


de relacionamentos frágeis e superficiais. O chão não está
mais firme à medida que caminhamos, parece mais lodoso
e inadequado para nos assentarmos sobre ele. Estimula
os caminhantes a correr, e os corredores a aumentar a
velocidade. As parcerias não se fortalecem, os medos não
se dissipam. Tampouco a suspeita de um mal que espera
pacientemente a sua chance. (BAUMAN, 2008, p. 94).

A rotineira violência doméstica e familiar infligida à


mulher retrata uma das facetas do “mal” e da crise na sociedade
contemporânea, que derrui os pilares das declarações de direitos
humanos e da Constituição Federal, os quais erigiram a igualdade
de direitos e de obrigações entre homens e mulheres, impondo
a repressão estatal e de garantir a assistência e a proteção aos
integrantes da família, conforme se extrai dos artigos 4º, inciso II;
5º, inciso I; e 226, § 8º, todos da Magna Carta.
Ancorado em tais arcabouços jurídicos e devido às pressões
sociais vindicando um sistema de justiça criminal que priorize a
prevenção e repressão da violência no recôndito do lar, o legislador
ordinário criou a Lei nº 11.340/2006, comumente tratada de Lei
Maria da Penha, estatuindo que a violência doméstica e familiar
contra a mulher decorre de qualquer ação ou omissão baseada no
gênero que lhe cause morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico
e dano moral ou patrimonial, seja no âmbito da unidade doméstica, da
família ou de qualquer relação íntima de afeto, independentemente
de orientação sexual (artigo 5º).
Outrossim, dedicou o capítulo III exclusivo ao Ministério
Público, determinando-lhe o enfrentamento, tanto em causas
cíveis ou criminais, quando se confrontar com casos de violência
doméstica e familiar, podendo requisitar força policial e serviços de
saúde, educação, assistência social e segurança, além de fiscalizar
os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher
em situação de vulnerabilidade, cadastrando, ainda, os casos em
sistema próprio, conforme se infere dos artigos 25 e 26 da Lei nº
11.340/2006.Gize-se, ainda, que os crimes de violência doméstica
e familiar contra mulheres não permitem a aplicação das medidas
despenalizadoras da composição civil, transação penal e suspensão
114

condicional do processo, independentemente da cominação abstrata


da reprimenda, constantes na Lei nº 9.099/1995.
Em que pese o ajuizamento de diversas denúncias pelo
Ministério Público para punição de agressores e feminicidas,
inclusive precedidas de representação por prisão preventiva e de
medidas protetivas de urgência, e de estímulo ao engajamento de
gestores para implantação de políticas públicas prioritárias, máxime
redes de atendimento multidisciplinar especializadas nas áreas
psicossocial, jurídica e de saúde em prol da mulher, com espeque
nos artigos 20 a 24 e 29 a 32, todos do indigitado diploma legal,
o resultado do combate à violência doméstica e familiar ainda
é bastante insatisfatório, conforme se extrai do quadro abaixo do
Conselho Nacional de Justiça:

Quadro 1 – Monitoramento da Política Judiciária Nacional


de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do
Conselho Nacional de Justiça

Fonte: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020.

Depreende-se, portanto, que os esforços interinstitucionais


não impediram o recrudescimento dos alarmantes índices de
violência contra mulheres, tanto que o relatório do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) e do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) intitulado “O Poder Judiciário no enfrentamento
à violência doméstica e familiar contra as mulheres” (2019, p. 13)
consigna que:

No que se refere especificamente ao Poder Judiciário, embora


existam investimentos na capacitação dos atores jurídicos
e demais profissionais, na estruturação dos equipamentos
e na implantação das equipes multiprofissionais, há
poucas evidências da efetividade da política judiciária de
enfrentamento à violência doméstica e familiar no que tange
mais diretamente ao tratamento dispensado às mulheres,
seja com relação ao processamento dos feitos, seja no que
concerne ao atendimento de suas demandas e necessidades.

Não bastasse isso, o Brasil ainda lidera o topo do ranking


dos países com mais homicídios perpetrados contra travestis e
transexuais. Com efeito,

O número de assassinatos em 2019 foi menor em relação


aos últimos dois anos. Em 2017, foram 179, ante 163 em
2018. Entretanto, Bruna Benevides, secretária de articulação
política da Antra e autora do dossiê, pondera que, apesar da
queda dos números, não há diminuição efetiva da violência.
Apenas de 1º a 24 de janeiro de 2020, por exemplo, houve
um aumento de 180% no número de homicídios em relação
ao ano anterior. (REDAÇÃO RBA, 2020).

Sendo assim, impende maior articulação e empenho de todos


para suplantar o arraigado sentimento machista de subjugação
feminina e de coisificação de seu corpo, inclusive a superar a
infundada crença de que a violência contra a mulher prescinde
da interferência de agentes externos quando perpetrada em
abstruso ambiente doméstico, a pretexto de constituir ingerência
na intimidade e privacidade do casal, o que apenas contribui para
dominação masculina e que, não raro, culmina na silenciosa morte
de muitas vítimas indefesas.
A Lei Maria da Penha priorizou coibir a violência direcionada
contra a mulher, aqui compreendida como pessoa do sexo
116

feminino numa acepção biológica, mesmo se envolta numa relação


homoafetiva. De rigor, descarta-se a aplicação em favor de homem,
ainda que vitimizado pelo cônjuge ou companheiro numa relação
homoafetiva no ambiente doméstico, porquanto o artigo 1º da Lei nº
11.340/2006 deixa entrever mecanismos protetivos apenas à mulher,
em razão de presumida vulnerabilidade ou hipossuficiência frente
ao agressor.

3 A DIVERGÊNCIA SOBRE A POSSIBILIDADE DE


ALBERGAR OS TRANSGÊNEROS E TRANSEXUAIS
NA LEI MARIA DA PENHA
A palavra “gênero” goza de significados variados em
diferentes campos do conhecimento, costumando ser empregada
para identificar o conjunto de seres ou objetos que possuem a mesma
origem ou que se acham ligados pela similitude de uma ou mais
particularidades. Teresa Nunes enuncia pertinentes considerações
para personificar o “gênero”, sem restringir a compreensão da
feminilidade ou masculinidade ao determinismo biológico da
anatomia corporal, apregoando que homem e mulher é um construto
cultural, produto da realidade social (2017):

Na biologia, o termo se refere à categoria taxonômica


que agrupa espécies relacionadas filogeneticamente,
distinguíveis das outras por características marcantes que
permitem assim a subdivisão das famílias.
[...].
O gênero é também o principal conceito do campo de
conhecimentos feminista, originário da sexologia.
Pode ser definido como a construção educacional, cultural,
social e histórica de noções de masculinidade e feminilidade.
Opostas e dicotômicas, assimétricas e hierárquicas, com
base na diferença sexual binária.
Essa construção está implicada em relações de poder, de
dominação sexista/masculina e heterossexista, e afeta: os
sujeitos, seus corpos, suas identidades, subjetividades,
hábitos; a ordem social e simbólica, a divisão do trabalho
(horizontal e vertical), os espaços e objetos, suas
representações, significados e valores e as práticas sociais
117

e culturais (androcêntricas, patriarcais, heteronormativas).


Para as ciências sociais e humanas, o conceito de gênero se
refere à construção social do sexo anatômico.
Ele foi criado para distinguir a dimensão biológica da
dimensão social. (NUNES, 2017, p. ver).

Em linhas gerais, identidade de gênero é a maneira como


o sujeito se reconhece no meio social, englobando pessoas que
se identificam com mais de um gênero, tais como travestis, ou
simplesmente com nenhum deles. Já a orientação sexual versa
sobre a preferência da atração do sujeito: inclinação homo, bi ou
heterossexual. O sexo biológico se circunscreve às estruturas
cromossômicas e a presença de genitália originária do nascimento.
Partindo dessas premissas, a doutrina diverge sobre a
factibilidade de enquadrar os transgêneros e transexuais como
beneficiários da tutela da Lei Maria da Penha.
A corrente restritiva sufraga a incidência de tais cânones
unicamente à mulher, sob viés determinista anatômico biológico,
valendo-se da mens legis do art. 5º da Lei nº 11.340/2006.
Inicialmente, Renato Brasileiro de Lima aduziu que,

[...] a nosso juízo, ainda que um transexual se submeta à


cirurgia de reversão genital (neovagina), obtendo a alteração
do sexo em seu registro de nascimento por meio de decisão
transitada em julgado, não se pode querer equipará-lo a uma
mulher para fins de incidência da Lei Maria da Penha, já
que, pelo menos sob o ponto de vista genético, tal indivíduo
continua a ser um homem. (LIMA, 2018, p. 1186-1187).

Num segundo momento, alicerçado nos julgamentos da Ação


Direta de Inconstitucionalidade n. 4275/DF e Recurso Extraordinário
670.422 pelo Supremo Tribunal Federal, em que restou assegurada a
igualdade de direitos sem discriminação da identidade ou expressão
de gênero, o renomado doutrinador flexibilizou sua posição
originária e assinalou

[...] é de rigor a conclusão no sentido de que, na eventualidade


de um transgênero (ou transexual) proceder à alteração de
seu gênero diretamente no registro civil, identificando-se,
a partir de então, como mulher, poderá ser sujeito passivo
de violência doméstica e familiar prevista na Lei Maria da
Penha. (LIMA, 2020, p. 1260-1261).

Em contrapartida, a jurista Maria Berenice Dias, ao discorrer


sobre o sujeito passivo de violência doméstica, inseriu no rol
qualquer pessoa que se identifique com o sexo feminino, sem exigir
condicionantes do tipo hormonioterapia ou cirurgia de redesignação
genital, tampouco a alteração da identidade no registro civil:

No que diz com o sujeito passivo – ou seja, a vítima da


violência – há a exigência de uma qualidade especial –
ser mulher. Mas não se cinge a agressões masculinas
contra esposa ou companheira. Segundo o STF, estão no
âmbito de abrangência do delito de violência doméstica e
podem integrar o polo passivo da ação delituosa esposas,
companheiras ou amantes, bem como a mãe, as filhas, as
netas do agressor e também a sogra, a avó ou qualquer outra
parente que mantém vínculo familiar com o agressor.
A referência legal ao sexo da vítima não se limita ao
conceito biológico da pessoa com genitália feminina. Diz
também com quem tem identidade de gênero feminino.
A constatação de que a vítima apenas pode ser mulher
decorre do propósito legislativo de empoderar a mulher na
luta contra a cultura patriarcal e machista, razão pela qual a
lei se debruçou sobre o gênero para impor mecanismos de
coibição da violência.
Ao afirmar que a mulher está sob o seu abrigo, sem
distinguir sua orientação sexual ou identidade de gênero,
a Lei assegura proteção tanto a lésbicas como a travestis,
transexuais e transgêneros de identidade feminina que
mantém relação íntima de afeto em ambiente familiar ou
de convívio. Quando ocorrem situações de violência em
quaisquer desses relacionamentos, justifica-se a especial
proteção como violência doméstica (decisões disponíveis
no site: <www.direitohomoafetivo.com.br>)
[...]
A violência contra a população LGBTI – lésbicas, gays,
bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais – não se
119

cinge à relação de conjugalidade. Inclui também a violência


levada a feito por familiares, como pais, irmãos ou outros
parentes. Tais formas de violência requerem igualmente
medidas de prevenção e de proteção às vítimas. (DIAS,
2019, p. 80-82, grifos da autora).

No atual contexto, subsiste dissenso acerca da real amplitude


tuteladora da Lei Maria da Penha, havendo certa resistência para
salvaguardar direitos de transgêneros e transexuais quando vítimas
de violência doméstica e familiar, prescrevendo-se extremadas
condicionantes corretivas, como necessário procedimento de
extração da genitália e consecutiva alteração de dados identificadores
no registro civil.

4 OS PILARES OU SUBSTRATOS JURÍDICOS PARA


SACRAMENTAR A PROTEÇÃO DE TRANSGÊNEROS
E TRANSEXUAIS NA LEI MARIA DA PENHA
O comando normativo do §8º do artigo 226 da Constituição
de 1988 determinou ao Estado criar mecanismos para proibir a
violência no âmbito das relações mantidas na unidade familiar, sem
promover qualquer seletividade entre seus integrantes.
De igual sorte, os artigos 2º e 5º, parágrafo único da Lei
Maria da Penha coíbem qualquer forma de discriminação relativa
à orientação sexual no âmbito da unidade doméstica, familiar e
em qualquer relação íntima de afeto. Por conseguinte, afigura-se
despropositado auscultar a realidade social no discurso hegemônico
binário-ideológico de identidade, adstrito à categoria masculino/
feminino, promovendo-se a exclusão social e/ou a patologização
daqueles tachados de desviantes. A hierarquização assimétrica
da proteção jurídica, orientada unicamente na lógica linear ou
determinista macho/fêmea, não se compatibiliza com o princípio
civilizatório; ao revés, afronta o princípio da isonomia e fragiliza a
prevalência dos direitos humanos, que são corolários da República
Federativa do Brasil.
A propósito, no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 4.424/DF, em que se debatia a natureza
120

da ação penal do crime de violência doméstica, o Ministro Marco


Aurélio assentou que não se pode auscultar a Lei Maria da Penha
dissociada dos tratados de direitos humanos ratificados pelo país,
cujos preceitos são de cunho supralegal e guiam a interpretação da
legislação ordinária:

[...]. Não se pode olvidar, na atualidade, uma consciência


constitucional sobre a diferença e sobre a especificação dos
sujeitos de direito, o que traz legitimação às discriminações
positivas voltadas a atender as peculiaridades de grupos
menos favorecidos e a compensar desigualdades de fato,
decorrentes da cristalização cultural do preconceito. [...]
(BRASIL, 2012, p. 7).

Outro esteio jurídico para inclusão de tais protagonistas é o


decantado princípio da dignidade da pessoa humana, ancoradouro
e núcleo essencial do Estado Democrático de Direito do Brasil,
consoante exegese do artigo 1º, inciso III, da Magna Carta. Neste
sentido, deve-se frisar que

[...] os juízes podem e devem aplicar diretamente as normas


constitucionais para resolver os casos sob sua apreciação.
Não é necessário que o legislador venha, antes, repetir ou
esclarecer os termos da norma constitucional para que ela
seja aplicada. O artigo 5º, § 1º, autoriza os operadores do
direito, mesmo à falta de comando legislativo, venham a
concretizar os direitos fundamentais pela via interpretativa.
(MENDES; BRANCO, 2014, p. 154).

De fato, para imprimir força normativa à multiplicidade de


significados dos direitos fundamentais, Konrad Hesse pontifica que

[...] onde a Constituição ignora o estágio de desenvolvimento


espiritual, social, político ou econômico de seu tempo lhe
falta o germe indispensável de sua força de vida e ela não
é capaz de alcançar que o Estado, que ela, em contradição
com esse estágio de desenvolvimento normaliza, realize-se.
(HESSE, 1998, p. 48).
121

No campo do Direito, ainda de relevante envergadura


a proibição de proteção deficiente, derivante do princípio da
proporcionalidade, tanto que irradiou o Excelso Pretório no
julgamento em que considerou constitucional a Lei Maria da Penha.
Em criteriosa investigação histórica, Ingo Sarlet leciona que o
Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, em maio de 1993, ao
decidir segundo caso de aborto, embasado nos estudos engendrados
por Claus-Wilhelm Canaris e Josef Isensee,

[...] considerou que o legislador, ao implementar um


dever de prestação que lhe foi imposto pela Constituição
(especialmente no âmbito dos deveres de proteção)
encontra-se vinculado pela proibição de insuficiência, de
tal sorte que os níveis de proteção (portanto, as medidas
estabelecidas pelo legislador), devem ser suficientes
para assegurar um padrão mínimo (adequado e eficaz) de
proteção constitucionalmente exigido. (SARLET, 2008, p.
150-151).

No mesmo diapasão, Lenio Luiz Streck (2005, p. 80) pontua


que o Direito Penal deve ser aferido não apenas sobre o estrito
prisma da proibição de excesso (Übermassverbot), mas suas baterias
também direcionadas ao garantismo positivo, valendo-se da cláusula
de proibição de proteção deficiente (Untermassverbot), subsistindo
uma obrigação implícita de reprimir condutas que obstaculizam
a concretização dos direitos fundamentais-sociais, não mais se
admitindo que a vulnerabilidade seja aterrada por uma impunidade
de cunho universalizante. Reforça que o legislador atual não detém
mais a autonomia de legislar como sucedia no arquétipo liberal-
iluminista:

[...] a inconstitucionalidade pode advir de proteção


insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre
quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções
penais ou administrativas para proteger determinados bens
jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade
decorre da necessária vinculação de todas os atos estatais à
materialidade da Constituição, e que tem como consequência
a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de
conformação) do legislador. (STRECK, 2005, p. 80).
122

O delegado de polícia e professor Thiago Garcia, em vídeo


disponível no YouTube (2018), dentre outros fundamentos, comenta
a obrigação de interpretar o regramento da Lei Maria da Penha
levando-se em conta os fins sociais a que se destina (artigo 4º), o que
ensejaria, numa interpretação teleológica e sistemática, a aquilatar
o sentido e alcance de tais normas (ratio essendi), facultando a
proteção jurídica aos transgêneros e transexuais.
Ademais, entre 6 e 9 de novembro de 2006, especialistas de
diferentes setores, inclusive com ciência do catálogo de direitos
humanos, se reuniram na Universidade Gadjah Mada, em Yogyakarta,
Indonésia, e formalizaram os Princípios de Yogyakarta, que
explicitam regramento de direito internacional de direitos humanos
e sua incidência a questões de orientação sexual e identidade de
gênero, inclusive estampam detalhadas recomendações aos Estados,
avultando-se o seguinte:

Princípio 02
“Direito à igualdade e a não-discriminação”
Todas as pessoas têm o direito de desfrutar de todos os
direitos humanos livres de discriminação por sua orientação
sexual ou identidade de gênero. Todos e todas têm direito
à igualdade perante a lei e à proteção da lei sem qualquer
discriminação, seja ou não também afetado o gozo de
outro direito humano. A lei deve proibir qualquer dessas
discriminações e garantir a todas as pessoas proteção igual e
eficaz contra qualquer uma dessas discriminações.
A discriminação com base na orientação sexual ou identidade
gênero inclui qualquer distinção, exclusão, restrição ou
preferência baseada na orientação sexual ou identidade
de gênero que tenha o objetivos ou efeito de anular ou
prejudicar a igualdade perante à lei ou proteção igual da
lei, ou o reconhecimento, gozo ou exercício, em base
igualitária, de todos os direitos humanos e das liberdades
fundamentais. A discriminação baseada na orientação sexual
ou identidade de gênero pode ser, e comumente é agravada
por discriminação decorrente de outras circunstâncias,
inclusive aquelas relacionadas ao gênero, raça, idade,
religião, necessidades especiais, situação de saúde e status
econômico. (PRINCÍPIOS..., 2006, p. 12-13).
123

Ainda, conforme os Princípios de Yogyakarta, os Estados


deverão:
a) Incorporar os princípios de igualdade e não-discriminação
por motivo de orientação sexual e identidade de gênero
nas suas constituições nacionais e em outras legislações
apropriadas, se ainda não tiverem sido incorporados,
inclusive por meio de emendas e interpretações, assegurando-
se a aplicação eficaz desses princípios;
b) Revogar dispositivos criminais e outros dispositivos
jurídicos que proíbam, ou sejam empregados na prática
para proibir, a atividade sexual consensual entre pessoas
do mesmo sexo que já atingiram a idade do consentimento,
assegurando que a mesma idade do consentimento se
aplique à atividade sexual entre pessoas do mesmo sexo e
pessoas de sexos diferentes;
c) Adotar legislação adequada e outras medidas para proibir
e eliminar a discriminação nas esferas pública e privada por
motivo de orientação sexual e identidade de gênero;
d) Tomar as medidas adequadas para assegurar o
desenvolvimento das pessoas de orientações sexuais e
identidades de gênero diversas, para garantir que esses
grupos ou indivíduos desfrutem ou exerçam igualmente
seus direitos humanos. Estas medidas não podem ser
consideradas como discriminatórias;
e) Em todas as respostas à discriminação na base da
orientação sexual ou identidade de gênero deve-se considerar
a maneira pela qual essa discriminação tem interseções com
outras formas de discriminação;
f) Implementar todas as ações apropriadas, inclusive
programas de educação e treinamento, com a perspectiva
de eliminar atitudes ou comportamentos preconceituosos ou
discriminatórios, relacionados à idéia de inferioridade ou
superioridade de qualquer orientação sexual, identidade de
gênero ou expressão de gênero. (PRINCÍPIOS..., 2006, p.
13).

Extrai-se, portanto, que a arregimentação de lutas por


sujeitos que sempre aguentaram esteriotipação e marginalização já
produziu algumas conquistas sociais e jurídicas, inclusive no Brasil,
destacando-se o reconhecimento de uniões estáveis e o matrimônio
124

entre pessoas do mesmo sexo, possibilidade de adoção, dependência


previdenciária e direito à herança. Diante do cenário de violência
simbólica e real e de omissão legislativa, o Fórum Nacional de
Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
editou o seguinte enunciado:

ENUNCIADO 46: A lei Maria da Penha se aplica às


mulheres trans, independentemente de alteração registral
do nome e de cirurgia de redesignação sexual, sempre que
configuradas as hipóteses do artigo 5º da Lei 11.340/2006
([201-], grifos do autor).

Calha enaltecer a tramitação do Projeto de Lei do Senado


nº 191, de 2017, de autoria do senador Jorge Viana, com o escopo
de acrescentar ao artigo 2º da Lei Maria da Penha a expressão
“identidade de gênero”, de modo a dirimir a polêmica e sepultar
a discriminação, proporcionando maior alcance sociopolítico,
com equiparação protetiva a transexuais e transgêneros que se
identifiquem como mulher.
Em julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
4275, o Supremo Tribunal Federal sufragou a tese de possibilidade
de alteração de nome e gênero no registro civil, dispensando a
cirurgia de redesignação de sexo (BRASIL, 2018).
Nas instâncias inferiores afloram decisões inovadoras
abrigando os transgêneros e transexuais sob os auspícios da Lei
Maria da Penha:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO DO


MINISTÉRIO PÚBLICO CONTRA DECISÃO DO
JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. DECLINAÇÃO
DA COMPETÊNCIA PARA VARA CRIMINAL COMUM.
INADMISSÃO DA TUTELA DA LEI MARIA DA
PENHA. AGRESSÃO DE TRANSEXUAL FEMININO
NÃO SUBMETIDA A CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO
SEXUAL (CRS). PENDÊNCIA DE RESOLUÇÃO DE
AÇÃO CÍVEL PARA RETIFICAÇÃO DE PRENOME NO
REGISTRO PÚBLICO. IRRELEVÂNCIA. CONCEITO
EXTENSIVO DE VIOLÊNCIA BASEADA NO GÊNERO
125

FEMININO. DECISÃO REFORMADA.


1 O Ministério Público recorre contra decisão de primeiro
grau que deferiu medidas protetivas de urgência em favor de
transexual mulher agredida pelo companheiro, mas declinou
da competência para a Vara Criminal Comum, por entender
ser inaplicável a Lei Maria da Penha porque não houve
alteração do patronímico averbada no registro civil.
2 O gênero feminino decorre da liberdade de autodeterminação
individual, sendo apresentado socialmente pelo nome que
adota, pela forma como se comporta, se veste e se identifica
como pessoa. A alteração do registro de identidade ou a
cirurgia de transgenitalização são apenas opções disponíveis
para que exerça de forma plena e sem constrangimentos essa
liberdade de escolha. Não se trata de condicionantes para
que seja considerada mulher.
3 Não há analogia in malam partem ao se considerar mulher
a vítima transexual feminina, considerando que o gênero é
um construto primordialmente social e não apenas biológico.
Identificando-se e sendo identificada como mulher, a vítima
passa a carregar consigo estereótipos seculares de submissão
e vulnerabilidade, os quais sobressaem no relacionamento
com seu agressor e justificam a aplicação da Lei Maria da
Penha à hipótese.
4 Recurso provido, determinando-se prosseguimento do
feito no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher, com aplicação da Lei Maria da Penha (DISTRITO
FEDERAL, 2018).

Lei Maria da Penha. Pleito de medida protetiva. Vítima


transexual. Decisão combatida que julgou extinto o
processo sem julgamento do mérito. Pedido de reforma da
sentença mediante retorno dos autos à comarca de origem,
para reabertura processual e respectivo julgamento do
feito. Possibilidade. Agressões perpetradas contra vítima
do gênero feminino dentro de uma relação íntima de afeto.
Caso em apreço que atrai a incidência da Lei n. 11.340/06.
Recurso conhecido e provido. (BAHIA, 2018).

Apesar de certa circunspecção, despontam decisões judiciais


vanguardistas, pautadas na Lei Maria da Penha, para contornar a
omissão legislativa, punindo violações aos direitos fundamentais
126

de indivíduos tachados como secundarizados, desprovidos de


visibilidade sociopolítica.

5 CONCLUSÃO
A vicejante metamorfose sociocultural na complexa pós-
modernidade ou sociedade líquida demanda atuação mais célere
e eficiente do Estado, sem protelar ou descurar da tutela jurídica
às minorias vulneráveis, sujeitas à restrição de cidadania e alvo de
violação de direitos.
Embora crescentes as estatísticas de violência, inclusive de
gênero, o Ministério Público empenha-se na luta para reprimir tais
crimes, ajuizando ações penais contra o agressor, requerendo medidas
protetivas de urgência à mulher e acompanhando a implementação
da rede de atendimento à ofendida, além de ser indutor de políticas
públicas na área.
A inscrição do termo “gênero” no regramento da Lei Maria da
Penha não é aleatória, cimenta a construção social alusiva às visões
de masculino e feminino, refletindo o contraste ao designativo
“sexo” de cunho restritivo morfobiológico.
A Lei nº 11.340/2006 não é um repositório hermético
que limita guarida à mulher apenas na tradicional perspectiva
biologizante, pois permite interpretação extensiva e teleológica para
a amplitude dos sujeitos de direitos, sem exigir readequação física
ou alteração registral. Destarte, sujeitar transgêneros ou transexuais
à mutilação corporal (transgenitalização), esterilização e terapias
hormonais, bem como à burocrática formalidade de retificação do
registro civil, para lhes conceder a terminologia somática mulher e
titularidade de gozarem amparo quando vítimas de agressões de seus
companheiros, representa execrável discriminação e preconceito,
porquanto relegam a dignidade e a autodeterminação do ser humano,
além de subverter princípios de Yogyakarta, no sentido de que as
pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero diversas
devem gozar de capacidade jurídica em todos os aspectos da vida.
Por sua vez, a proibição de proteção deficiente, consectário
do princípio da proporcionalidade, traduz um status de garantismo
127

positivo para asseguração da densidade dos direitos fundamentais,


criando um imperativo contra a omissão estatal, o que implica
redução do campo de discricionariedade do legislador na adoção de
políticas criminais.
Malgrado a omissão legislativa e a dissonância na doutrina
e jurisprudência acerca de tal temática, sob pretexto de existência
de regra específica, aos poucos afloram decisões vanguardistas,
ajustando o Direito à evolução social, em especial ao reconhecimento
da autodefinição de gênero e da amplificação do conceito usual
de família, como as famílias paralela e poliafetiva, por exemplo,
deferindo a proteção jurídica da Lei nº 11.340/2006 quando
presente relação de dominação e violência doméstica masculina em
detrimento de vulnerável ou hipossuficiente que se identifica mulher
– gênero feminino.

NOTAS

Mestre em Direito pela Universidade Luterana do Brasil – Ulbra. Professor


1

de Processo Penal e Direito Penal na Universidade de Santa Cruz do Sul –


UNISC. Promotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul.
E-mail: [email protected].
Graduada em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
2

Advogada inscrita na OAB/RS. E-mail: [email protected].

REFERÊNCIAS

ACAYABA, Cíntia; PAULO, Paula Paiva. Brasil bate novo recorde


e tem maior nº de assassinatos da história com 7 mortes por hora em
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VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER E A ATUAÇÃO
DO SERVIÇO SOCIAL: ELEMENTOS PARA UMA
REFLEXÃO CRÍTICA

Marta von Dentz1


Priscila Froemming2

1 ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
O presente artigo problematiza a violência doméstica
contra a mulher e a atuação profissional do Serviço Social neste
âmbito, trazendo elementos para uma reflexão crítica a partir do
olhar da garantia efetiva de direitos e de proteção social. Destaca-
se, inclusive, que este estudo traz um levantamento de dados
importante realizado junto aos órgãos da rede de proteção às
mulheres vítimas de violência do município de Santa Cruz do Sul/
RS. Esse levantamento subsidia as reflexões tecidas no decorrer
dos aprofundamentos e problematizações. O objetivo central deste
itinerário, então, é tecer uma reflexão crítica acerca da atuação do
Serviço Social nesta complexa temática trazendo aportes teórico-
metodológicos bem como referendando a importância das políticas
públicas no atendimento direto às mulheres vítimas de violências.
A temática evidenciada, violências contra a mulher, é
apontada como uma violação de direitos humanos e como um
problema de saúde pública pela Organização das Nações Unidas
(ONU). Em outras palavras, as violências contra as mulheres são
causadoras de doenças considerando os aspectos biopsicossociais
de vida dessas mulheres. Enfatiza-se que, violências – no plural,
quer destacar, neste estudo, que todo ato de violência é gerador de
violências em suas diferentes formas e complexidades.
A violação de direitos humanos, nesta temática, se revela de
forma nua, fria, desumana e, historicamente, difícil de ser superada
enquanto um processo de trabalho coletivo e de responsabilidade
social. O extremo das violências contra as mulheres é o mesmo
extremo da vida humana, a saber: a morte. Não raras vezes as
violências contra as mulheres no Brasil culminam neste extremo.
132

Neste sentido, coadunamos com a filósofa norte-americana quando


questiona:

De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso


mundo público? Quais são essas vidas que, se perdidas, não
serão consideradas em absoluto uma perda? É possível que
algumas de nossas vidas sejam consideradas choráveis e
outras não? Faço essas perguntas difíceis e perturbadoras
porque eu, como vocês, me oponho à morte violenta; à morte
por meio da violência humana; à morte resultante de ações
humanas, institucionais ou políticas; à morte provocada
por uma negligência sistêmica por parte dos estados ou por
modos de governança internacionais. (BUTLER, 2020, p. ).

Enfatiza-se que, o resultado, efetivo ou não, da rede


de equipamentos e de governança que atuam nessas situações
específicas de violências contra a mulher; as ações humanas,
institucionais ou políticas, necessitam ser qualificadas, questionadas
e provocadas à mudança uma vez que os dados atualizados são, sem
sombra de dúvidas, alarmantes.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em pesquisa conjunta
realizada em 2019, apontaram que o Brasil vivencia um ritmo
crescente de homicídios de mulheres. “Entre 2007 e 2017 houve
aumento de 20,7% na taxa nacional de homicídios de mulheres,
quando passou de 3,9 para 4,7 mulheres assassinadas por grupo de
100 mil mulheres”. A referida pesquisa ainda apontou que no Brasil,
em 2017, foram assassinadas 4.936 mulheres, correspondendo a
uma média de 13 vitimizações por dia (IPEA; FBSP, 2019, p. 35).
Diante dos dados supracitados, enfatiza-se que um dos
grandes desafios no enfrentamento das violências contra as mulheres
é a efetivação de uma rede de serviços que agregue as diferentes
políticas, órgãos, programas, projetos, consolidando uma política
social de atendimento efetiva. Os serviços, dessa rede de atuação,
ainda não conseguem atender as mulheres de uma forma integral e
dialogar entre si. Ou seja, os profissionais devem ter conhecimento da
rede existente para, consequentemente, fazer e construir articulações
mais eficazes para consolidar os direitos sociais das mulheres que
133

sofrem violências. A importância da atuação do Serviço Social


com esta questão se faz necessária, considerando que as violências
contra as mulheres são uma problemática social e, portanto, devem
ser enfrentadas através de um conjunto de estratégias políticas e de
intervenção social.
A partir dos elementos referendados, pontua-se a organização
deste estudo para fins de conduzir à leitura: inicialmente busca-se
enfatizar as diferentes formas de violência contra a mulher trazendo
questionamentos fundamentais de como prevenir, de como proteger
a partir de arcabouço legal e histórico brasileiro e da perspectiva de
garantia de direitos humanos; como segundo aspecto, o estudo se
debruça em tencionar o que seria o ideal de proteção e a realidade
concreta vivida pelas mulheres vítimas de violências, trazendo o
cenário do município de Santa Cruz do Sul/RS; este segundo aspecto
se subdivide em outra parte que aborda um elemento peculiar deste
estudo – a rede intersetorial de atendimento municipal – e, nela, o
fazer do Serviço Social.

2 VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER: COMO PREVI-


NIR, COMO PROTEGER?
Para construir um percurso denso e coeso acerca da temática,
sinaliza-se que as trajetórias históricas construídas a partir de
movimentos feministas e de mulheres remetem, sobretudo, ao século
XVIII. A partir do “século XX, década de 60, essas mobilizações
enfocaram, principalmente, às denúncias das violências cometidas
contra mulheres no âmbito doméstico” (GUIMARÃES; PEDROZA,
p. 257, 2015). No Brasil, as primeiras pesquisas que evidenciaram a
gravidade das violências contra as mulheres ocorreram em meados
dos anos 2000 pela Fundação Perseu Abramo (GUIMARÃES;
PEDROZA, 2015). Além dos dados trazidos neste estudo, pontua-se
que o Brasil se encontra na quinta maior posição do mundo quanto
à taxa de feminicídios que é de 4,8 para 100 mil mulheres, segundo
dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).3
Este cenário evoca à sociedade brasileira “a percepção
da urgência e da necessidade em se romper com esta tradição
legitimadora e banalizadora da violência contra as mulheres trouxe
134

diversos debates a respeito do fenômeno da violência, de suas


definições e tipificações jurídicas” (GUIMARÃES; PEDROZA, p.
261, 2015).
Enquanto arcabouço histórico de debates e construções
quanto a garantia dos direitos das mulheres no Brasil, pontua-se: duas
convenções internacionais sobre os direitos das mulheres - Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher CEDAW (ONU, 1979) e a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida
como Convenção de Belém do Pará (OEA, 1994). Dentre estas duas
convenções tem-se a própria Constituição Federal de 1988 que, em
seu art. 5°, afirma que homens e mulheres são iguais perante a lei.
O desafio presente historicamente na realidade brasileira é
justamente o de encontrar formas de operacionalizar os aspectos
legais e romper com os ciclos contínuos de violências contra a
mulher. A junção de inquietações, da organização, de mobilizações
da sociedade brasileira, na forma concreta das violências vividas
pela mulher Maria da Penha, culminou, na conhecida Lei Maria
da Penha, 11.340/2006. Esta foi o marco de uma das principais
vitórias das mulheres vítimas de violências no Brasil. Com a meta
de prevenir e eliminar todas as formas de violência contra a mulher,
a lei visa proteger, dar assistência às mulheres em situação de
violência doméstica bem como atribuir punições mais rígidas aos
agressores (BRASIL, 2006).
Segundo a Lei Maria da Penha, existem cinco tipos de
violência doméstica e familiar contra a mulher: violência física
como condutas que ofendam a integridade ou saúde corporal (art.
7º, I); violência moral como atos de calúnia, injúria ou difamação
(art.7º, V); violência psicológica como condutas de controle,
ameaça, constrangimento, perseguição e humilhação (art. 7º, II);
violência sexual como condutas que, mediante força ou ameaça,
obrigam a mulher a participar de relação sexual não desejada;
a violência patrimonial que se configura a partir de condutas de
retenção, subtração ou destruição de objetos, documentos, bens e
valores (BRASIL, 2006).
Importante enfatizar que, a partir da legislação referenciada
anteriormente, desencadeou-se a criação de uma rede ampliada
135

de atuação, a saber: criação dos Juizados ou Varas de Violência


Doméstica e Familiar contra a Mulher para julgar os crimes,
com atendimento multidisciplinar; criação de novas Defensorias
Públicas da Mulher; medidas protetivas de urgência (suspensão do
porte de armas, afastamento do agressor do lar, suspensão de visitas
aos filhos etc.); inclusão das mulheres em programas oficiais de
assistência social; atendimento à mulher em situação de violência
por serviços articulados em rede, incluindo saúde, segurança,
justiça, assistência social, educação, habitação, cultura, entre outros
(SILVA; NOGUEIRA, 2020).
Avançando nesses aportes, em 2018, a Lei nº 13.641 alterou
a Lei Maria da Pena tipificando o crime de descumprimento de
medidas protetivas de urgência. Em seu art. 24 - Descumprir decisão
judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta
Lei: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos (BRASIL,
2018).
Ao flertar aprofundar acerca das diferentes violências
sofridas pelas mulheres, a partir de aspectos prescritivos e históricos
vale ressaltar que as violências contra as mulheres, sejam elas quais
forem, é uma das piores formas de violação dos direitos humanos,
e que tem uma sequência sumarizada em ciclos da violência.
Inicialmente com sinais de tensão, em que o agressor ameaça,
sente ciúmes, destrói objetos da mulher. A mulher, por sua vez,
o acalma, evita discutir, aumentando o medo e a obediência ao
agressor. O ciclo segue, aumentam as agressões verbais e físicas;
após violências, o agressor se arrepende, promete não cometer
mais violência. Esse cenário acaba formando um ciclo difícil de ser
rompido. Uma mulher fará denúncia apenas se houver uma estrutura
que lhe ofereça segurança e uma justiça que, de fato, a proteja, caso
contrário, a violência é silenciada.

3 DO SONHO DA PROTEÇÃO À REALIDADE


CONCRETA: CENÁRIOS DA VIOLÊNCIA CONTRA
MULHER NO MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ DO SUL
Realizada a abordagem histórica e prescritiva acerca da
temática, possibilita avançar nesses aportes trazendo elementos
136

concretos da realidade do município de Santa Cruz do Sul/RS –


município com 130.416 habitantes (IBGE, 2019). Do sonho da
proteção à realidade concreta evoca e tenciona a perspectiva crítica
de análise acerca das violências contra a mulher em um município
de referência na região do Vale do Rio Pardo. O objetivo deste
momento é o de abordar acerca dos cenários de violências contra
mulher, trazendo dados concretos da rede de atendimento municipal.
Importante salientar que o município em tela, desde 2004,
conta com a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher
(DEAM). Essas delegacias foram criadas para fins de atender as
vítimas de forma humanizada e acolhedora bem como providenciar
os pedidos de medida protetiva e encaminhar as mulheres e seus
filhos para a casa de passagem quando a vítima corre risco de vida.
Santa Cruz do Sul foi, e continua sendo, o primeiro município da
região a contar com a referida delegacia. Sinalizam-se, portanto,
dados referentes a ocorrências registradas na DEAM, considerando
uma década.

Gráfico 1: Ocorrências DEAM (2009-2019)

Fonte: DEAM (2019)

As ocorrências registradas na última década pretendem


dar visibilidade de que a violência contra a mulher na região de
abrangência da delegacia é continuada e, por mais que a partir
de 2013 se perceba uma leve diminuição de ocorrências, a linha
de tendência geral indica para um crescimento paulatino delas.
Na sequência, salientam-se dados obtidos junto à Patrulha
137

Maria da Penha, considerando janeiro de 2019 a agosto de 2020,


especificamente do município de Santa Cruz do Sul/RS.

Gráfico 2: Relatório de Operação Patrulha Maria da Penha


(01/2019 a 08/2020)

Fonte: Dados fornecidos pela Patrulha Maria da Penha (2020)

Consoante o gráfico 2, o município de Santa Cruz do


Sul (considerando o período de um ano e meio) teve um total de
2.473 operações realizadas pela Patrulha Maria da Penha. Número
significativamente superior ao último ano de dados obtidos
junto à DEAM (2019), consoante o gráfico 1. Chama atenção o
quantitativo de certidões emitidas de não localização das vítimas
(202) subentendo a existência de violências ocultas. Outrossim, o
trabalho de prevenção também causa impacto uma vez que os dados
referem seis palestras realizadas em um ano e meio. Subentendendo
a fragilidade existente quanto a prática efetiva de evitar que a
violência ocorra com programas e projetos organizados e planejados
de forma contínua.
A seguir, mostra-se quantitativos do último ano (julho 2019
a julho 2020) considerando a DEAM, mas também outros órgãos e
equipamentos que atendem demandas de violências contra a mulher
sinalizados no gráfico 3.
138

  Gráfico 3: Registros de violência contra mulher


(07/2019 a 07/2020)


Fonte: Informações coletadas pelas autoras (2020)

Considerando o recorte temporal destacado no gráfico


2, observa-se que os registros de ocorrências junto à DEAM são
consideráveis, mantendo a linha geral do gráfico 1 ascendente;
no mapa estatístico da 2ª Vara Criminal, referente ao ingresso de
ações acautelatórias (procedimento para representação por Medidas
Protetivas de Urgência) de Violência Doméstica, na comarca de
Santa Cruz do Sul, foram localizados, de julho de 2019 a junho de
2020, 1287 processos; o dado referente à medida protetiva aplicada4
(489 medidas) refere-se somente ao segundo semestre de 2019, o
mesmo - compilado pela coordenadoria da violência doméstica do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – não foi atualizado com
dados de 2020; o Escritório de Defesa dos Direitos da Mulher do
município informou que 46 mulheres foram acolhidas entre outubro
de 2019 até julho de 2020 e na casa de passagem registrou-se o
encaminhamento de 9 mulheres no mesmo período, ambos serviços
geridos pela Secretaria Municipal de Políticas Públicas (SEPOP).
O Centro de Referência Especializada da Assistência Social
informou que, somente em 2020, estão sendo acompanhadas pelo
equipamento 22 mulheres vítimas de violência. Além dos dados
139

abordados, em 2020 a DEAM informou 46 ocorrências registradas


no Disque 100/180 - denúncia anônima; e, outras 10 ocorrências
registradas na delegacia online.
Dentre os dados levantados, foi possível verificar os tipos de
violências ocorridas especificamente no que se refere aos dados da
DEAM.

Gráfico 4: Violências registradas pela DEAM (janeiro a


junho 2020)

Fonte: DEAM (2020)



Como referendou-se, neste estudo, a violência contra a
mulher amplia-se para violências. Sublinha-se, por exemplo, o
registro de oito casos de estupro no primeiro semestre de 2020, dada
a complexidade da violência praticada, as mulheres vivenciaram,
em outros termos, a desproteção em todos os sentidos, o medo
permanente. No mesmo sentido, pode-se problematizar quanto à
lesão corporal e quanto aos outros tipos de violências sinalizados.
Qualquer forma de violência implica na totalidade da vida das
mulheres e, não raras vezes, de seus filhos e filhas.
Os dados atualizados e abordados neste estudo mostram o
cenário da violência contra a mulher no município de Santa Cruz
do Sul/RS. Dentre todos os dados levantados e apresentados, o
140

presente estudo traz inquietações imprescindíveis. Considerando o


contínuo do índice de violência monitorado pela DEAM na última
década, importa questionar como é realizado, em rede, o trabalho
de proteção e prevenção no município? Considerando que cada
equipamento forneceu a este estudo o registro de suas demandas
interessa perguntar, os casos se repetem em cada órgãos e/ou
equipamento? E, ainda, como é realizado este acompanhamento?
O trabalho intersetorial, em rede, com existência de um fluxograma
de atendimento às mulheres vítimas de violência, ocorre? Existem
projetos educativos de prevenção continuados e permanentes?
A gravidade das situações de violências contra a mulher
tem exigido cada vez mais estudos e reflexões teórico-práticas que
embasem compreensões dessa complexa realidade. A partir dessas
inquietações, avança-se no estudo, trazendo elementos acerca da
rede intersetorial de atendimento municipal.

3.1 A rede intersetorial de atendimento municipal: o que faz


e o que poderia fazer o serviço social?
Uma vez realizada a aproximação breve com a realidade
concreta da violência contra a mulher em Santa Cruz do Sul, importa
pautar a rede intersetorial de atendimento existente.
 Atendimento Sociojurídico realizado pela Universidade
de Santa Cruz do Sul através do Gabinete de Assistência
Judiciaria (GAJ);
 Escritório de Defesa dos Direitos da Mulher;
 Casa de Passagem para Mulheres em situação de violência;
 Na política de Assistência Social do município: atua-se
na formulação, execução e gestão de politicas públicas,
garantindo prioridade a mulheres vítimas de violência nos
critérios de seleção em programas de proteção social e
outros na garantia de renda mínima. Atualmente o Centro
de Referência Especializada da Assistência Social atende
como equipe de referência no acolhimento de mulheres em
situação de violência de Santa Cruz para casa de passagem
141

e equipe de referência pós desencolhimento. Sinaliza-se a


existência de demanda reprimida nesse segmento, em que
o serviço atende todos os tipos de violações de direitos, não
suportando a atual demanda. Atualmente o município conta
também com dois Centros de Referência da Assistência
Social, ambos sem profissionais de Serviço Social;
 Na política de saúde os atendimentos e ações realizados
pelas unidades básicas de saúde da rede pública, trazem
estratégias que ressaltam a violência contra a mulher
como um problema de saúde pública, todavia, não se
encontrou projetos ou campanhas contínuas acenando para
a problemática;
 O Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres realiza
anualmente encontro de rede para capacitação específica,
mas poucos profissionais, principalmente da área da saúde,
são liberados para participar;
 No que se refere a trabalho e renda, grupos de produção em
cooperativa de mulheres, envolvendo empresas, sindicatos,
tanto em comunidades urbanas e rurais são atuantes.
Em Santa Cruz do Sul, na Cooperativa de Catadores e
Recicladores de Santa Cruz do Sul (COOMCAT), com
grupos de mulheres catadoras juntamente com grupos de
mulheres rurais em parceria com Associação Riograndense
de Empreendimento de Assistência Técnica e Extensão
Rural (EMATER), vendem seus produtos artesanais ou
advindos da agricultura familiar.
 Na política de Educação, nota-se atividades de esclareci-
mento e conscientização em relação à violência contra a
mulher, que envolve, pais, alunos, professores, corpo pe-
dagógico da rede pública e privada. O município de Santa
Cruz do Sul possui Lei municipal, deliberada pelo CMDM,
que estabelece que o tema violências contra a mulher seja
transversal nas escolas municipais bem como a Lei Maria
da Pena. Todavia, efetivamente o trabalho não se efetiva
de fato;
 Na política de habitação, o trabalho técnico social
142

desenvolvido por Assistentes Sociais possibilita a esse


público o acesso à moradia e condições inerentes à cidadania.
Quando se tratar a mulher agredida, chefe de família, é
garantida a prioridade em programas habitacionais. Nesse
aspecto, muitas mulheres em situação de violência, pedem
acolhimento na casa da mulher. Sem ter onde morar, ao
invés de voltar para suas casas ou ir para a casa de parentes
elas, provisoriamente, ficam na casa de passagem. Este é
um dos principais motivos de as mulheres retornarem ao
agressor: pela falta de renda e pela questão habitacional.
No município, através do aluguel social, a mulher, após
avaliação da equipe técnica da habitação passa a receber
valor de um aluguel em uma moradia de sua escolha, com
valor determinado pela lei. A mulher deve ser contemplada
como público prioritário, em programas habitacionais;
 Órgãos de segurança: Delegacias da Mulher, Delegacia
de Pronto atendimento, sala das margaridas, Brigada
Militar (patrulha Maria da Penha). Esses órgãos atendem
diretamente mulheres em situação de violência; recebem
ocorrências e realizam visitas.
Nota-se uma ampla rede de atendimento com especificidades
importantes no atendimento às mulheres vítimas de violências. O
profissional de Serviço Social, qualificado para atuar nas diversas
áreas ligadas à condução das políticas públicas, trabalha com
compromisso de responder às demandas dos diferentes sujeitos
nos diferentes serviços prestados, a fim de garantir atendimento
humanizado e efetivação dos direitos.
O próprio Código de Ética da profissão é um marco orientador
para intervenção dos Assistentes Sociais, na medida em que
explicita a dimensão ético-política que deve ser assumida. “É dever
do profissional empenhar-se na viabilização dos direitos sociais dos
usuários, através de programas e políticas sociais (BRASIL, 1993).
Ou seja, sua função é lutar por condições dignas de vida para que
todos os sujeitos possam alcançar possibilidades de atingir e efetivar
os direitos sociais.
Diante da rede de atuação municipal citada neste estudo, é
143

importante salientar o potencial do Serviço Social. O profissional,


presente nas políticas de assistência social, habitação, saúde,
educação, entre outros espaços atua cotidianamente com demandas
específicas de violência contra a mulher, integrando, portanto,
esta rede de proteção e prevenção. Outrossim, vale destacar que a
presença desse profissional é imbuída de referência uma vez que os
mesmos possuem ferramentas importantes para conhecer a realidade
concreta e intervir de maneira a garantir a proteção.
Salienta-se que o profissional Assistente Social possui
potencial para agregar no combate às violências contra a mulher
nos serviços de referência do município. No mesmo sentido, nota-
se a sobrecarga de trabalho de profissionais da área atuando nas
diferentes políticas públicas; e, salientando, que no momento do
levantamento de dados encontrou-se a inexistência de profissionais
nos próprios Centros de Referência da Assistência Social do
município. Outrossim:

Pensar em minimizar as práticas de abuso contra mulher


dentro das relações domésticas, cujo cerne é regado por
intimidade e privacidade, é primeiramente investir em
intervenções particularizadas, acompanhadas por um
assistente social com habilidade para realizar a escuta,
detecção e intervenção perante o caso, realizando os devidos
encaminhamentos no intento de dar cumprimento às normas
estatuídas pela Lei Maria da Penha e direitos fundamentais
femininos. (SILVA; NOGUEIRA, 2020, p. 58).

Defende-se, desse modo, uma releitura dessa realidade


concreta a partir de uma ampliação do olhar para a perspectiva
dos direitos humanos. “Além do mais, essa perspectiva traz à tona
a necessidade de uma reflexão política e ética que abarque uma
compreensão crítica e complexa da sociedade, da história, das
leis e costumes, dos direitos e violações e das próprias noções de
humanidade e dignidade” (GUIMARÃES; PEDROZA, 2015,
p. 264). Portanto, é urgente um olhar político e social para essa
realidade específica bem como um trabalho árduo de conexão dessa
rede de atuação com potencial de reverter as estatísticas encontradas.
144

4 CONSIDERACOES FINAIS
Ao realizar uma abordagem geral do contexto de violências
contra a mulher em Santa Cruz do Sul, é importante observar que
muitas mulheres não levam em frente suas denúncias, por medo
ou vergonha da sociedade, e, em outros casos, por dependerem
financeiramente do agressor. Estar ligada emotivamente ou ainda
acreditar na mudança também influencia sobremaneira no processo
da denúncia. Sublinha-se que, mesmo havendo avanços políticos e
sociais, eles ainda não são suficientes para minimizar o elevado índice
de violências contra a mulher, estes presentes no Brasil e no mundo.
Questionamentos e reflexões são constantes: estão as políticas
realizando um trabalho efetivo frente a esse tipo de violência? Quais
as nuances da violência contra mulher na contemporaneidade?
Destaca-se a importância de estudos locais, como este,
que refletem acerca dos dados reais e buscam propor alternativas
diferenciadas em uma realidade especifica. Neste caso concreto,
percebe-se uma rede ampla existente com potencial importante
para trabalhar de forma conectada e planejada. Diferentes órgãos,
instituições trabalhando coletivamente e articuladamente faz
toda a diferença para aportar impactos sociais mais relevantes e
permanentes.
A melhoria na qualidade dos serviços oferecidos às mulheres
em situação de violências é de fundamental relevância, é assunto
ligado a mobilização da sociedade civil e ao engajamento político. A
participação junto aos fóruns que discutem as questões das mulheres,
no conselho da mulher, incentivando mais mulheres a participarem
efetivamente da política, ocupar espaços públicos, faz, com certeza,
maior diferença.
Considerando os equipamentos públicos existentes no
município que atendem mulheres em situação de violência,
comparando com os demais municípios do estado e do país, o
município de Santa Cruz do Sul tem uma rede consideravelmente
ampla com: Delegacia Especializada da Mulher, Brigada Militar
com Patrulha Maria da Penha, Escritório Municipal da Mulher, casa
de acolhimento para mulheres em situação de violência, Centro de
Referência Especializado de Assistência Social, assistência jurídica
145

gratuita no GAJ/UNISC e também efetiva atuação do Conselho


Municipal dos Direitos da Mulher.
Ressalta-se que a qualificação quanto ao fluxo efetivo de
atendimento e profissionais capacitados para atuar nesta demanda
é urgente. A rotatividade de pessoas qualificadas, quando tornam
referência para a rede e para as próprias mulheres muitas vezes são
trocadas de local, para suprir demandas em outros postos. Além
desses enfoques nas políticas públicas, a profissão também tem uma
dimensão pedagógica, na medida que se trabalha numa perspectiva
de transformação da consciência dos sujeitos, com vistas à sua
emancipação. Junto às mulheres que sofrem violências deve-se
empreender um trabalho incansável na perspectiva do resgate dessas
mulheres, como sujeitas de direitos, como seres sociais e como
cidadãs, resgatando-lhes autoestima e a autoconfiança, trabalhando
seu processo de fortalecimento e de emancipação.
Reforça-se, neste estudo, que para romper com o ciclo
da violência contra a mulher, para obter um impacto nos dados
quantitativos levantados no município de Santa Cruz do Sul/RS é
preciso que a rede intersetorial possua um fluxo efetivo e coerente
para encaminhamentos efetivos. Do contrário, além da mulher sofrer
a violência, corre-se o risco de ela perambular de um equipamento
para outro tendo de relatar violências inúmeras vezes. Além disso,
é indispensável que se realize um trabalho de prevenção organizado
e sistemático. Afinal, de que valem os dados concretos obtidos nos
diferentes órgãos e equipamentos? Se não para pensar estratégias,
encontrar alternativas, acompanhar impactos e prospectar novas
possibilidades.

NOTAS

Doutora em Serviço Social (PUCRS); Coordenadora e Docente do Curso


1

de Serviço Social da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). E-mail:


[email protected]
Assistente Social (Unisc). Coordenadora do escritório de defesa dos direitos
2

da mulher e da casa de acolhimento para mulheres em situação de violência


(2014 a 2019). Vice presidente do Conselho da Mulher por dois mandatos
(2015/2016 e 2018/2019). E-mail: [email protected]
146

Disponível em: https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-


3

maior-mundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/. Acesso em: 8 ago.


2020.
Disponível
4
em: https://www.tjrs.jus.br/novo/violencia-domestica/
estatisticas/. Acesso em: 10 ago. 2020.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República


Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Código de ética do Assistente Social. Brasília: CFESS,
1993.
BRASIL. Lei nº 8.662, de 7 de junho de 1993. Dispõe sobre a
profissão de Assistente Social e dá outras providências. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 8 jun.
1993.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera
o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
Penal; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 08 ago. 2006.
BRASIL. Lei nº 13.641, de 03 de abril de 2018. Altera a Lei nº
11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para tipificar
o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência.
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF,
04 abr. 2018.
BUTLER, Judith. Sin Miedo – Formas de Resistencia a la Violencia
de Hoy. Local: Editora Taurus, 2020.
GUIMARÃES, M. C. ; PEDROZA, R. L. S. Violência contra a
147

mulher: problematizando definições teóricas, filosóficas e jurídicas.


Psicologia & Sociedade, local, v.27, n.2, p. 256-266, 2015.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA);
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP)
(org.). Atlas da Violência 2019. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo:
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, 2019. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/
atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019. Acesso em: 31
jul. 2020.
SILVA, Allan Jones; NOGUEIRA, Daniele de Araújo. O Assistente
Social e o atendimento de mulheres vítimas de violência doméstica
e familiar. Revista Barbarói, Santa Cruz do Sul, n. 56, p.44-67, jan./
jun. 2020. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/
barbaroi
POLÍTICAS PÚBLICAS E AS AÇÕES
AFIRMATIVAS DE COMBATE À VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA
CONDIÇÃO DE EFETIVIDADE DA LEGISLAÇÃO
PROTETIVA DA MULHER NO BRASIL

Cristiano Cuozzo Marconatto1

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente artigo trata da abordagem da violência doméstica
e familiar contra a mulher, a partir de elementos históricos,
doutrinários e dados estatísticos de órgãos oficiais, que refletem
a efetivação das legislações internacionais e nacionais no âmbito
de gênero, vislumbrando-se a proteção dos direitos humanos das
mulheres como uma conquista histórica na evolução da humanidade.
Para tanto, visando a aplicação da legislação protetiva à mulher
existente no Brasil, a efetivação de tais ditames legais deve vir
acompanhada de políticas públicas que atendam às necessidades
materiais de prevenção, repressão imediata, repressão qualificada
e assistência às mulheres em situação de violência doméstica
ou familiar. No desenvolvimento do presente trabalho, a fim de
concretizar o atingimento dos objetivos acima elencados, propõem-
se a adoção do método de abordagem dedutivo. Do ponto de vista
dos procedimentos técnicos, a pesquisa se desenvolverá levando
em conta a revisão bibliográfica, jurisprudencial, documental e de
levantamento de dados.

2 OS ELEMENTOS EVOLUTIVOS DA NOÇÃO DE


DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES, COMO
AFIRMAÇÃO DA PRÓPRIA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA
A expressão “direitos humanos” ou “direitos do homem”, já
no século XVIII, apresentou-se como um critério de legitimidade
inspirador de todas as instituições jurídico-políticas e, a partir do
149

segundo pós-guerra foi eleito à condição de guia de toda a doutrina


e práxis política ocidental. Entretanto, quanto mais alargado se torna
o uso da expressão direitos humanos, mais imprecisa tem se tornado
a sua significação, ou mesmo banalizada e até subvertida. Daí a
necessidade de buscar os contornos delineadores da expressão,
bem como tratar a diferenciação com os chamados “direitos
fundamentais” (PÉREZ LUÑO, 2005, p. 24).
Os direitos humanos são entendidos valores universais, ideais
a serem seguidos, a partir de sua identificação com a dignidade da
pessoa humana. Ao tratar a questão da dignidade humana Symonides
destaca que a origem do pensamento sobre direitos humanos está na
proposição de que certos valores devem ser reconhecidos de forma
expressa, na condição de direitos individuais, sendo o valor mais
protegido a dignidade da pessoa humana, em que

o conjunto valorativo ‘direitos humanos’ revela-se como um


agrupamento de valores instrumentais que asseguram ou
levam a outros mais profundos e substantivos. Certamente,
a própria noção de direitos humanos com o sentido de
que todo ser humano é, por natureza, dotado de um certo
conjunto de direitos inerentes, que não são garantidos
pelo Estado nem podem ser por ele removidos, é um valor
propriamente dito, sobretudo se comparado ao período
pré-direitos humanos, quando essa noção era virtualmente
desconhecida. Nesse sentido, os direitos humanos aparecem
como valor na Carta das Nações Unidas, sem indicação do
seu conteúdo, salvo pela referência à igualdade dos seres
humanos (‘sem distinção de raça, sexo, língua ou religião’)”.
(SYMONIDES , 2003, p. 82-83).

Por seu turno, o termo “direitos fundamentais” é originário da


França, em 1770, no movimento político que conduziu à Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789:

La expresión ha alcanzado luego especial relieve en


Alemania, donde bajo el título de los Grundrechte se ha
articulado el sistema de relaciones entre el individuo y el
Estado, en cuanto fundamento de todo el orden jurídico-
político. Éste es su sentido en la Grundgesetz de Bonn de
1949”. (PÉREZ LUÑO, 2005, p. 32).
150

É por esse motivo, senão outro, que grande parte da doutrina


entende que os direitos fundamentais são os direitos humanos
positivados nas Constituições dos Estados, isto é, transferidos
para o plano da positividade. Nessa esteira, denota-se que “a ética
emancipatória dos direitos humanos demanda transformação social,
a fim de que cada pessoa possa exercer, em sua plenitude, suas
potencialidades, sem violência e discriminação” (PIOVESAN, 2014,
p. 337). Sob essa ótica percebe-se que na construção histórica da
afirmação dos direitos humanos em sua acepção positiva, enquanto
ações afirmativas e consubstanciados em políticas públicas estatais,
essa marcha é marcada por avanços e retrocessos, em um processo
contínuo de afirmação da dignidade da pessoa humana. Inicialmente,
essa proteção vem marcada em uma significação de caráter geral, os
chamados direitos do cidadão frente ao Estado.
No que tange à garantia e proteção de direitos de pessoas
ou grupos de pessoas particularmente vulneráveis – como o caso
da violência contra a mulher em razão do gênero – a igualdade
meramente formal – consubstanciada na fórmula de que “todos são
iguais perante a lei”2 – não mais se sustenta, tendo em vista que
essa noção, consagradora do modelo de Estado Liberal, calcado na
liberdade individual, necessariamente exige a igualdade para dar
forma à consagração de direitos fundamentais de ordem social. Nas
palavras de Piovesan

esse processo implicou ainda a especificação do sujeito de


direito, tendo em vista que, ao lado do sujeito genérico e
abstrato, delineia-se o sujeito de direito concreto, visto
em sua especificidade e concreticidade de suas diversas
relações. Isto é, do ente abstrato, genérico, destituído de cor,
sexo, idade, classe social, dentre outros critérios, emerge
o sujeito de direito concreto, historicamente situado, com
especificidades e particularidades. Daí apontar-se não mais
ao indivíduo genérica e abstratamente considerado, mas ao
indivíduo ‘especificado’, considerando-se categorizações
relativas ao gênero, idade, etnia, raça etc. (PIOVESAN,
2014, p. 313).

É nessa esteira evolutiva que as legislações protetivas de


151

gênero passam a surgir na pós modernidade, revelando a necessidade


de proteção específica em relação à violência de gênero, cujas raízes,
infelizmente, remontam à história evolutiva de uma sociedade
patriarcal e paternalista.
Internacionalmente, no âmbito das Organização das Nações
Unidas, tem-se a Convenção para eliminação de todas as formas de
discriminação contra a mulher, de 1979, posteriormente denominada
como “Convenção da Mulher”, está em vigor desde 1981 e se
constitui como um dos mais importantes documentos no sentido
do reconhecimento e valorização da dignidade da mulher. Segundo
Guerra,

a Convenção internacional registra a grande preocupação de a


mulher continuar sendo vítima de abusos, constrangimentos
e discriminações. As mulheres, ao serem discriminadas,
passam por grandes dificuldades para participarem da
vida política, econômica, social e cultural de seu país.
Dessa forma, a discriminação feminina constitui-se em
obstáculo para o aumento do bem-estar da sociedade e da
família, dificultando o desenvolvimento das potencialidades
da mulher para a prestação de serviços a seu país e à
humanidade. (GUERRA, 2013, p. 227).

Para além de reconhecer a vulnerabilidade do gênero feminino,


a Convenção enaltece o papel da mulher na sociedade, em igualdade
de condições com os homens, como condição indispensável para a
construção da família, de um ambiente de paz e mesmo para o pleno
desenvolvimento do país. Nesse sentido

a Convenção veda, portanto, qualquer tipo de discriminação


contra a mulher, entendendo como toda a distinção, exclusão
ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou
resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou
exercício pela mulher, independentemente de estado civil,
com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos
humanos e liberdades fundamentais nos campos político,
econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro
campo. (GUERRA, 2013, p. 227).
152

Para tanto, na Convenção há previsão de uma série de


compromissos e políticas públicas internas que deverão ser adotadas
pelos Estado signatários, a fim de eliminar qualquer espécie de
discriminação contra a mulher, bem como assegurar-lhe direitos que
são inerentes à dignidade da pessoa humana.
De acordo com Pimentel,

a Convenção vai além das garantias de igualdade e idêntica


proteção, viabilizada por instrumentos legais vigentes,
estipulando medidas para o alcance da igualdade entre
homens e mulheres, independentemente de seu estado civil,
em todos os aspectos da vida política, econômica, social
e cultural. Os Estados-parte têm o dever de eliminar a
discriminação contra a mulher através da adoção de medidas
legais, políticas e programáticas. Essas obrigações se
aplicam a todas as esferas da vida, a questões relacionadas
ao casamento e às relações familiares e incluem o dever
de promover todas as medidas apropriadas no sentido
de eliminar a discriminação conta a mulher praticada por
qualquer pessoa, organização, empresa e pelo próprio
Estado. [...] Entretanto, a simples enunciação formal dos
direitos das mulheres não lhes confere automaticamente a
efetivação de seu exercício. (PIMENTEL, 2013, p. 15).

Assim, para que haja o efetivo reconhecimento da igualdade –


não somente perante, mas através da lei – de direitos entre homens e
mulheres, há necessidade de um esforço contínuo e conjunto de todo
o aparelho governamental. Para a autora, ao retratar a necessidade
de efetivação do exercício de toda a plêiade de direitos consagrados
formalmente às mulheres, refere que

este depende de ações dos três poderes: do Legislativo,


na adequação da legislação nacional aos parâmetros
igualitários internacionais; do Executivo, na elaboração de
políticas públicas voltadas para os direitos das mulheres; e,
por fim, do Judiciário, na proteção dos direitos das mulheres
e no uso de convenções internacionais de proteção aos
direitos humanos para fundamentar suas decisões. [...] De
acordo com os artigos 1o a 6o da Convenção, os Estados-
parte concordam em tomar medidas apropriadas a fim
153

efetivar os avanços das mulheres. Estas tomam a forma


de medidas constitucionais, legislativas, administrativas e
outras, incluindo medidas especiais temporárias, tais como
ação afirmativa, modificação de padrões sociais e culturais
de conduta, além da supressão do tráfico de mulheres e da
exploração da prostituição feminina. (PIMENTEL, 2013, p.
16).

O certo é que essa condição de vulnerabilidade que acaba por


tornar a mulher alijada de todo o processo evolutivo da sociedade
e da própria família traz consigo severas consequências de toda a
ordem, o que deve ser objeto de correção no âmbito da legislação
interna do Estado.
No Brasil, a referida Convenção foi ratificada no ano de
1984, através do Decreto n. 89.460, revogado pelo Decreto n. 4.377,
de 13 de setembro de 2002, seguindo uma tendência de legislações
protetivas da mulher, visando garantir igualdade material entre
homens e mulheres, para além da previsão do Art. 5º, I, da
Constituição Federal, que consagra o reconhecimento da igualdade
formal entre homens e mulheres.
Outro documento nessa evolução da proteção à mulher
é a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de
junho de 1994, e promulgada através do Decreto n. 1.973, de 01 de
agosto de 1996. Para muitos, a Convenção de Belém do Pará é – ou
ao menos deveria ser – o arcabouço mínimo para guiar as ações
estatais afirmativas dos direitos das mulheres.
Nesse sentido

A referida Convenção deve ser tomada como parâmetro


mínimo de ações estatais na promoção dos direitos
humanos das mulheres e na repressão às suas violações,
direcionando toda e qualquer política pública à eliminação
da discriminação contra a mulher, através da adoção de
medidas legais, políticas e programáticas. (CAMPOS;
CORRÊA, 2012, p. 139).

Para Piovesan, a Convenção de Belém do Pará representa o


154

primeiro documento internacional de proteção a direitos humanos


que enfatiza a violência contra a mulher enquanto um fenômeno
generalizado, atingindo indiscriminadamente as mulheres,
independente de raça, classe, religião ou qualquer outra condição.
A autora afirma que “a violência contra a mulher constitui grave
violação aos direitos humanos e ofensa à dignidade humana, sendo
manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre
mulheres e homens” (PIOVESAN, 2014, p. 359).
Porém, mesmo com a recepção no ordenamento interno
das referidas Convenções, bem como com a edição de legislações
em âmbito interno, o Brasil seguiu sendo um país marcado pela
discriminação do gênero feminino, seja nas condições da vida
civil, nas relações de trabalho, no acesso a cargos públicos eletivos,
relações socias etc.
No entanto, de todas as formas de discriminação contra a
mulher, em razão de gênero, certamente a forma mais simbólica e
que causa maior perplexidade é a violência doméstica e familiar, em
suas mais diversas manifestações. É nesse contexto, por não coibir
de forma adequada a violência contra a mulher, que o Brasil, no
ano de 2001, foi condenado na Comissão Interamericana de Direitos
Humanos - órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos
– em um caso de violência doméstica contra Maria da Penha
Fernandes, decisão essa publicada no Relatório 54/2001, tendo em
vista denúncia recebida pelo referido organismo internacional, em
20 de agosto de 1988.
No Relatório, após uma análise pormenorizada do fato, a
Comissão apontou diversas falhas do Estado brasileiro que violavam
documentos de caráter internacional já ratificados pelo Brasil, como
a Convenção Americana e a Convenção de Belém do Pará. No
Relatório, assim se pronunciou a Comissão:

A Comissão recomenda ao Estado que proceda a uma


investigação séria, imparcial e exaustiva para determinar
a responsabilidade penal o autor do delito de tentativa
de homicídio em prejuízo da Senhora Fernandes e para
determinar se há outros fatos ou ações de agentes estatais
que tenham impedido o processamento rápido e efetivo do
155

responsável; também recomenda reparação efetiva e pronta


da vítima e adoção de medidas, no âmbito nacional, para
eliminar essa tolerância do Estado ante a violência doméstica
contra mulheres. (CUNHA; PINTO, 2014, p. 29-30).

Diante desse contexto é que surge a Lei n. 11.340, de 07


de agosto de 2006, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”,
nomenclatura que remete especialmente à Maria da Penha
Fernandes,3 cujo caso de violência doméstica foi levado à Comissão
Interamericana de Direitos Humano, para que fosse, finalmente,
decretada a mora legislativa do Brasil e fossem adotadas, no
âmbito interno, mecanismos de proteção à mulher. A lei traz para o
ordenamento jurídico, de forma inédita, um conjunto de medidas de
proteção à mulher, bem como mecanismos para coibir a violência
doméstica, além de criar um sistema de prevenção, proteção e
assistência às mulheres.

3 POLÍTICAS PÚBLICAS E AÇÕES AFIRMATIVAS DE


GARANTIA DA EFETIVIDADE DA LEGISLAÇÃO
PROTETIVA DA MULHER NO BRASIL
Sabe-se que a Constituição Federal de 1988 representa
um marco na história constitucional do Brasil, no que tange ao
reconhecimento e institucionalização dos direitos humanos no
ordenamento interno. No âmbito da proteção à mulher não foi
diferente, sendo que a experiência constitucional inaugurada
no período pós 1988, aliada às conquistas obtidas em âmbito
internacional, impulsionaram uma série de transformações internas
que perfectibilizam os anseios das mulheres. No entanto, “ainda
persiste na cultura brasileira uma ótica sexista e discriminatória com
relação às mulheres, que as impede de exercer, com plena autonomia
e dignidade, seus direitos mais fundamentais” (PIOVESAN, 2014,
p. 371).
O próprio caso “Maria da Penha” é o reflexo mais claro
de uma forma de violência que perpassa gerações e segue
indiscriminadamente atingindo as mulheres, a violência doméstica,
praticada no ambiente familiar ou mesmo decorrente de relações
156

de afeto entre o agressor e a vítima, a despeito do Brasil ter uma


das legislações mais avançadas no tocante à proteção da mulher.
Os números de casos de feminicídio no Brasil são alarmantes, uma
vez que as mulheres correspondem a cerca de 90% das vítimas de
crimes sexuais em nosso país, de forma que

esses índices por demais elevados reforçam a ideia de que


a única maneira de enfrentar a violência de gênero é atuar
com políticas públicas estruturadas que envolvam diversas
dimensões, como o trabalho, a família, a saúde, a renda, a
igualdade racial e de oportunidades. (SCHWARCZ, 2019,
p. 186).

Acerca dos dados da violência doméstica, o Fórum Brasileiro


Segurança Pública realizou uma pesquisa chamada “Visível e
Invisível: A vitimização das mulheres no Brasil”, nos anos de 2017
e 2019,4 com resultados que demonstram a manutenção dos altos
índices de violência. De acordo com os pesquisadores (2019, p. 25),

em 2017, a pesquisa Visível e Invisível: a vitimização de


mulheres no Brasil, do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública (FBSP), revelou que 29% das mulheres sofreram
violência ou agressão e 40% sofreram assédio, dados que
se traduzem na ocorrência de 503 agressões por hora, 5,2
milhões de assédios em transporte público e 2,2 milhões
de mulheres agarradas ou beijadas sem consentimento. [...]
Após 2 anos, o novo levantamento realizado pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública revela que os índices de
violência permanecem inalterados. Para cada 10 mulheres,
quase 3 ainda sofrem violência.

Na pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro Segurança


Pública, os dados coletados no ano de 2019, acerca da percepção
da violência contra a mulher e sobre a vitimização da mulher,
revelam que 76,4% das entrevistadas que sofreram violência, essa
violência foi praticada por pessoas conhecidas da vítima e 42% dos
casos de violência se deram dentro da própria casa (2019, p. 15)
Os dados revelam que os casos atingem indistintamente mulheres,
independente do grau de escolaridade, e 52% das entrevistadas não
157

procuraram nenhum tipo de ajuda para relatar a violência sofrida,


o que denota ainda haver muitos casos que se inserem na chamada
cifra oculta, de registros de violência doméstica não efetuados e que
não chegam ao conhecimento das autoridades policias.
Nesse sentido, a pesquisa também revela a necessidade de
conscientização e informação, em todas as classes sociais, de modo a
permitir que as mulheres também identifiquem as formas invisíveis de
violência, como a verbal e a psicológica. Nesse sentido (2019, p. 27)

lesões com marcas são facilmente percebidas como violência,


o que não acontece com outras formas de violência, como
a psicológica, moral ou mesmo a importunação sexual
(conhecida como “assédio”). [...]
Na pesquisa de 2019, 31,6% das mulheres com ensino
superior identificaram com mais facilidade essas violências,
com predominância de ofensas verbais (23,3%) e ofensa
sexual (12,8). Estas mesmas mulheres sofreram 0% de
ataques com tiro ou esfaqueamento.

Os resultados da pesquisa também revelam que 42,6% das


mulheres agredidas tinham entre 16 e 24 anos (2019, p.14), o que
denota a necessidade de se romper o ciclo de violência e vitimização
da mulher, que muitas vezes se inicia na adolescência, quando a
mulher não rompe relacionamentos abusivos. Na distribuição
regional da violência, o estudo revela que nas Regiões Norte e
Sudeste 29,8% das entrevistadas sofreram algum tipo de agressão,
na Região Nordeste foram 22,9 das entrevistadas ao passo que na
Região Sul do Brasil, 25,1% das entrevistadas referiram ter sofrido
algum tipo de violência (2019, p. 16).
Esses resultados demonstram que no Rio Grande do Sul
os índices de violência doméstica contra a mulher mantêm-se
altos, em que pese todos os esforços governamentais, bem como a
atuação efetiva da rede de proteção, que é composta pelas Patrulhas
Maria da Penha, da Brigada Militar, Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher (DEAM), Salas Lilás, Postos Médicos-
Legais e Departamento Médico-Legal, vinculados ao Instituto-
Geral de Perícias (IGP), Observatório da Violência Contra a
Mulher, vinculado à Secretaria da Segurança Pública, Juizado de
158

Violência Doméstica e Familiar, Defensoria Pública, Coordenadoria


Penitenciária da Mulher da Superintendência Estadual dos Serviços
Penitenciários (SUSEPE) e Casas-abrigo.
Considerando os registros oficiais de violência doméstica
contra a mulher, de acordo com as informações disponibilizadas
pela Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP/
RS).5 O quadro abaixo traz os dados dos principais indicadores de
violência contra as mulheres no Estado, relativos ao ano de 2019:

Os dados totalizados demonstram a realidade do


enfrentamento da violência contra a mulher no Estado do Rio
Grande do Sul. No ano de 2019 ocorreram 456 feminicídios, entre
crimes tentados e consumados, dos quais 97 feminicídios foram
consumados. No que tange aos registros de ameaça e lesão corporal,
foram 58.370 registros durante todo o ano, numa média de 4.865
registros por mês. Em relação aos crimes de estupro e estupro de
vulnerável, foram registrados 1.714 casos, uma média 143 registros
efetuados por mês.
Em relação ao ano de 2020, com números consolidados até o
mês de Julho, tem-se os seguintes dados, conforme quadro a seguir:
159

No ano de 2020, nos primeiros sete meses ocorreram 241


feminicídios, entre crimes tentados e consumados, dos quais 53
feminicídios foram consumados e 188 tentados. Por sua vez, nos
primeiros sete meses de 2019, verificaram-se 55 feminicídios
consumados e 205 tentados. No comparativo dos dois anos, verifica-
se uma redução de 4% nos feminicídios consumados e de 9% nos
casos de feminicídios tentados.
No que tange aos registros de ameaça e lesão corporal, foram
30.076 registros durante os primeiros sete meses do ano, numa
média de 4.296 registros por mês. Nos primeiros sete meses de
2019, foram registrados 34.008 casos de ameaça e lesão corporal,
numa média de 4.858 registros por mês. No comparativo, verifica-se
que nos primeiros sete meses de 2020 houve uma redução de 11,5%
nos casos de ameaça e lesão corporal.
No tocante aos crimes de estupro e estupro de vulnerável,
foram registrados 920 casos nos primeiros sete meses de 2020,
sendo em média 132 registros efetuados por mês. Nos primeiros sete
meses de 2019, foram registrados 929 casos de estupro e estupro de
vulnerável, numa média de 133 registros por mês. No comparativo,
verifica-se que nos primeiros sete meses de 2020 houve uma redução
de 1% nos casos.
Em que pese a redução em todos os indicadores de violência
doméstica contra a mulher analisados pela Secretaria de Segurança
Pública do Estado do Rio Grande do Sul, no comparativo entre os
160

sete primeiros meses do ano de 2020, em relação ao ano de 2019,


verifica-se que os números totais ainda permanecem altos. Soma-se
a isso o dado revelado através da pesquisa realizada pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, de que 52% das entrevistadas que
sofreram algum tipo de agressão não procuraram nenhuma ajuda
para relatar a violência sofrida. Assim, levando-se em consideração
essa cifra oculta de subnotificação dos registros de crimes ocorridos,
os números revelam-se ainda mais elevados.
Esses dados demonstram que somente um arcabouço
legislativo atual e que congregue toda uma rede protetiva não é
suficiente para romper esse ciclo de violência contra a mulher, pois
há a necessidade de implementação de políticas públicas para que
as leis protetivas da mulher tenham efetividade. Ressalta a pesquisa
realizada pelo Fórum Brasileiro Segurança Pública (2019, p. 27)
que recomenda:

Enfrentar a violência contra a mulher exige romper muitas


barreiras, que se estendem desde os “pré-conceitos” e
machismos naturalizados até os fatores que mantêm as
mulheres em silêncio como temor, vergonha, crença na
mudança do parceiro e revitimização por parte de autoridades
e da sociedade. Essa violência tem vitimado mulheres pelas
mãos de agressores conhecidos, iniciando-se na juventude e
agravando-se na fase adulta.

A fim de buscar essa efetividade na proteção da mulher


e prevenção à violência doméstica, recentemente, o governo do
Estado do Rio Grande do Sul lançou o Comitê Interinstitucional
de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, que integra as
estratégias do Programa RS Seguro e tem “o objetivo central é
fortalecer a rede de apoio às vítimas e promover entre os gaúchos
uma mudança de cultura, que valorize a proteção da mulher na
sociedade em todas as suas formas, tendo como premissa a atuação
integrada”.6
A estratégia nasce com o objetivo de congregar 16 instituições
das esferas estadual e municipais. Dentre os projetos que serão
desenvolvidos, serão priorizados os que envolvem o Monitoramento
do Agressor; Ações nas Escolas; Informar, Prevenir e Proteger; e
161

Grupos Reflexivos de Gênero.


O caminho ainda é longo, mas a organização de todos os órgãos
e instituições que compõem a rede de proteção prevista na Lei n.
11.340/06 demonstra que há gestão qualificada e comprometimento
no que se refere ao fortalecimento dessa rede de proteção à mulher.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A existência de toda uma plêiade protetiva de direitos
humanos das mulheres, em âmbito internacional e na legislação
interna do Brasil, revela antes de mais nada a necessidade de se
garantir uma igualdade material entre homens e mulheres, de modo
a permitir, através de políticas públicas protetivas das mulheres,
essa condição mínima. É somente a partir do reconhecimento dessa
condição de igualdade plena que a violência doméstica poderá ser
aplacada, pois apesar de todos esforços protagonizados pelos atores
da rede de proteção à mulher, bem como das ações estatais que se
revelam nessa seara, sabe-se que a gênese da violência de gênero
contra a mulher está justamente calcada na errônea e absurda noção
de sua inferioridade de gênero.
A despeito de toda a legislação protetiva consubstanciada nos
tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário,
bem como da legislação nacional existente - notadamente a Lei
n. 11.340/06, “Lei Maria da Penha” -, que é uma das legislações
mais avançadas, os dados oficiais de violência contra a mulher
revelam que as políticas públicas situam-se na condição de condutos
necessários para garantir a efetividade das previsões legais.
Ainda, tendo em vista toda a construção histórica e cultural
que coloca o homem em condição de superioridade em relação à
mulher, é importante registrar que esse padrão se reproduziu nas
legislações e mesmo nas construções doutrinárias que servem de
fonte do Direito. O ordenamento jurídico brasileiro adota tradição
jurídica da civil law, que possui como fonte principal do Direito as
diversas leis e codificações, a partir do texto constitucional, onde
a doutrina exerce um papel de relevância, enquanto mecanismo
de interpretação da legislação. Porém, vivemos sob a égide de
162

um complexo universo normativo, que parte de uma Constituição


contemporânea e inovadora, consagra Tratados e Convenções
Internacionais de Direitos Humanos, ao mesmo tempo que conjuga
isso com Codificações editadas na primeira metade do século
XX, o que revela, nas palavras de Piovesan, “tensões e conflitos
valorativos”, destacando que em “relação à condição jurídica da
mulher, essa tensão valorativa alcança seu grau máximo”, pois
de um lado a Constituição consagra a igualdade entre homens e
mulheres, ao passo que a promoção dessa igualdade – a igualdade
material – parte de diplomas que foram construídos a partir de uma
visão do homem como “paradigma da humanidade” (PIOVESAN,
2014, p. 387-388).
A incorporação da perspectiva de gênero na doutrina nacional
não é tarefa fácil, pois revela uma mudança de paradigmas, que
necessariamente envolve a profusão de valores consagradores de
uma visão que permeie a igualdade de gênero, de forma a garantir,
através da lei, uma igualdade material, de condições materiais de
implementação de direitos sociais (PIOVESAN, 2014).
Para além da implementação de políticas públicas que
contribuam para a redução da violência doméstica contra a mulher,
há sim a necessidade de pensar as causas desse fenômeno e adotar
mecanismos que contribuam para romper esses paradigmas
históricos, que ao longo da evolução da humanidade tem contribuído
sobremaneira para manutenção de todas as formas de discriminação
da mulher, notadamente no que toca à violência doméstica, tendo
em vista essa cultura secular arraigada. É papel do Direito contribuir
para a construção de novos paradigmas e novas perspectivas que
se movam na direção da ruptura desse ciclo de discriminação e
violência, que coloca a mulher, em razão do gênero, na condição de
vítima dessa violência.

NOTAS

Mestre em Direito e Especialista em Políticas e Gestão da Segurança Pública


1

pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Major do Quadro de Ofi-


ciais de Estado Maior da Brigada Militar Professor de Direito Penal e Direito
Processual Penal na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Email:
[email protected].
163

A ideia de igualdade formal nasce a partir das modernas declarações de direi-


2

tos que marcaram o final do Século XVIII, notadamente decorrente da Revo-


lução Francesa (1798) e da Declaração de Independência das treze colônias
americanas (1776), como forma de garantir uma liberdade do cidadão em
relação ao Estado absolutista, opressor, notabilizado por excessos e abusos
de poder de toda a ordem. Ao tratar dos Direitos Humanos na sociedade con-
temporânea, GORCZEVSKI retrata que os direitos civis e políticos foram os
primeiros direitos a afirmarem-se, pois traziam a ideia de limitar o poder do
Estado, ao passo que os direitos sociais, que expressam um dever estatal de
agir, identificados com a chamada “igualdade material”, foram conquistados
na sequência. GORCZEVSKI, Clovis. Direitos humanos: dos primórdios da
humanidade ao Brasil. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2005, p. 73-74.
Acerca da nomenclatura da lei, infere-se que “A nomenclatura dada à lei
3

cinge-se ao fato de que Maria da Penha, biofarmacêutica, em 1983, foi víti-


ma de seu marido que, por duas vezes, com animus occidendi, atingiu-a, por
primeiro, com um disparo de arma de fogo que lhe causara paraplegia e na
segunda através de choque elétrico. Apesar da gravidade do crime, somente
após quase vinte anos (à beira da prescrição), foi o mesmo condenado, cum-
prindo tão somente 02 (dois) anos de prisão, já se encontrando em liberdade”
(CAMPOS; CORRÊA, 2012, p. 145).
Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/02/
4

relatorio-pesquisa-2019-v6.pdf. Acesso em: 01 ago. 2020.


Disponível em: https://www.ssp.rs.gov.br/indicadores-da-violencia-contra-a-
5

-mulher. Acesso em: 14 ago. 2020.


Disponível em: https://www.ssp.rs.gov.br/governo-do-rs-lanca-comite-inte-
6

rinstitucional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-a-mulher. Acesso em: 10


ago. 2020.

REFERÊNCIAS

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Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Lei n.º 11.340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera
o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
164

Penal; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República


Federativa do Brasil, Brasília, DF, 07 ago. 2006. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/
l11340.htm. Acesso em: 01 ago 2020.
CAMPOS, Amini Haddad; CORRÊA, Lindinalva Rodrigues.
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Editora Juruá, 2012.
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência
doméstica: Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 5. ed.
rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.).
Visível e invisível: A vitimização de mulheres no Brasil. 2. ed. São
Paulo: FBSP, 2019, 50 p. Disponível em: https: //forumseguranca.
org.br/wp-content/uploads/2019/02/relatorio-pesquisa-2019-v6.
pdf. Acesso em: 01 ago. 2020.
GORCZEVSKI, Clovis. Direitos humanos: dos primórdios da
humanidade ao Brasil. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2005.
GUERRA, Sidney. Direitos humanos: curso elementar. São Paulo:
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Mulher - CEDAW 1979. Disponível em: http: //www.onumulheres.
org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw.pdf. Acesso
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Disponível em: https://www.ssp.rs.gov.br/indicadores-da-violencia-
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SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. 1e
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
165

SYMONIDES, Janusz. Direitos humanos: novas dimensões e


desafios. Brasília: UNESCO Brasil, Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, 2003.
A AUTOCOMPOSIÇÃO NO TRATAMENTO
DOS CONFLITOS ENVOLVENDO CASOS DE
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Amanda da Cruz Saraiva1


Fabiana Marion Spengler2

1 INTRODUÇÃO
Na forma tradicional de tratamento dos conflitos,3 os
cidadãos buscam pelo acesso ao sistema jurisdicional, encontrar
justia para seus problemas. Esse modelo se caracteriza por ser
forma heterocompositiva, ou seja, quando um terceiro – Estado – é
chamado para atender e resolver a disputa. O poder judiciário se
encontra com suas vias esgotadas, devido à grande demanda de
litígios que lhe são submetidas, causando a morosidade processual e
gerando sua ineficiência, o que é consequência da crise na jurisdição.
Para tanto, na tentativa de auxiliar o Estado criam-se os
meios autocompositivos de tratamento de conflitos como solução
a esse problema. Essa forma se caracteriza por ter como base o
consentimento espontâneo na resolução do conflito - de uma das
partes ou de ambas-, sem existir a participação de um terceiro com
poder decisório para definir a situação conflitiva. Nesse caso, a
autocomposição entende que os litígios devam ser tratados a partir
da aproximação dos envolvidos, da comunicação, do diálogo direto
e pessoal, sem necessidade dos formalismos que a lei/norma jurídica
impõe.
Desse modo, o legislador brasileiro implementa os meios
alternativos de solução de conflitos, que usam do consenso para o
tratamento da lide, identificando-os como: conciliação, mediação e
arbitragem, a tríade básica opcional à tradicional jurisdição estatal.
Destacando-se o meio autocompositivo da mediação, como tema
principal da pesquisa, cumpre dizer que esse iniciou com seus
primeiros passos, sendo institucionalizado, primeiramente, pela
Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
167

A mediação é, então, apresentada como um instrumento


complementar de acesso à justiça que passou a enxergar no conflito
a oportunidade para desenvolver e cumprir a autonomia do cidadão,
o empoderamento do indivíduo e a capacidade de transformação da
Justiça ao realizar seu propósito, objetivando a pacificação social.
Nesse viés, essa prática usa do consenso para articular novas técnicas,
a fim de que se obtenha o acesso à uma ordem justa, ganhando até o
reconhecimento dos operadores do direto.
Logo, a mediação se concretiza quando um terceiro
desinteressado no caso, agindo de forma neutra e imparcial,
denominado de mediador, exerce a função de facilitador e não de
autoridade, auxiliando os envolvidos na comunicação, para que eles
sejam os protagonistas na decisão final, e alcancem, consensualmente,
o acordo para sua contenda, da forma mais adequada e satisfatória.
Esse mediador tratará conflitos das partes que possuem vínculo
anterior e pretendem continuar com aquela relação, como por
exemplo, questões do âmbito do Direito de Família, sendo esses,
portanto, os principais litígios, geralmente ligados ao dia a dia da
sociedade e, também, analisando ainda, aqueles conflitos atinentes
aos casos de violência contra a mulher na seara familiar.
Contudo, tem-se como objetivo principal do artigo verificar
a autocomposição, através da mediação e quais suas possibilidades
de tratar os conflitos, para então responder: qual o papel da
autocomposição no cenário de violência contra a mulher? Para
elaborar o artigo, se utilizou o método de abordagem dedutivo e como
técnicas de pesquisa a bibliográfica e documental, consubstanciadas
principalmente de livros e artigos científicos.

2 A AUTOCOMPOSIÇÃO COMO MEIO DE TRATAR


CONFLITOS
O meio tradicional de solucionar os conflitos e obter o
legítimo acesso à justiça se dá pela via do Poder Judiciário. Essa,
pois, é uma forma heterocompositiva de resolução de conflitos,
uma vez que um terceiro imparcial definirá a resposta com caráter
impositivo em relação às partes. Contudo, a sociedade vem
demonstrando a insatisfação com o tradicional meio de acesso à
168

justiça, pois suas necessidades conflitivas não estão sendo atendidas


de modo satisfatório.
Entende-se que a quantidade de litígios que adentram ao poder
judiciário está agravando, de tal forma a atrasar a justiça, fazendo
com que a mesma se torne injusta, devido à morosidade processual.
Por conseguinte, na tentativa de auxiliar o Estado (detentor do
monopólio jurisdicional) apresenta-se os meios autocompositivos de
tratamento de conflitos como solução a esse problema (WRASSE,
2012).
Antes de tudo, ressalta-se que a heterocomposição pode se dar
por duas vias: a arbitral, onde um terceiro, de confiança das partes,
decidirá o impasse; e a jurisdicional, acessando o Poder Judiciário,
quando uma das partes pretender resolver o seu conflito, obtendo
uma decisão proferida por uma autoridade estatal dotada de poder
coercitivo (TARTUCE, 2016).

Nessa medida, a solução judicial da controvérsia constitui


modalidade de heterocomposição potencialmente apta a
propiciar a resposta ao conflito de interesses que não pôde
ser debelado pelos próprios envolvidos na relação litigiosa e
que precisa de um elemento coercitivo para sua realização.
(TARTUCE, 2016, p. 62).

Sendo foco desse trabalho, importa a abordagem do meio


autocompositivo para solucionar os empasses. Essa, pois se
caracteriza quando houver consentimento espontâneo ou de uma das
partes para encerrar a hipótese conflitiva. Nesse caso, essa forma
também pode ser dita autônoma, pois revelam a intenção de que
os litígios sejam tratados a partir da aproximação dos envolvidos
e da (re)elaboração da situação problemática, sem necessidade dos
formalismos da norma jurídica (MORAIS; SPENGLER, 2019).
Visto isso, segundo Spengler (2019) a autocomposição é ato
volitivo das partes no sentido de resolver o conflito e se caracteriza
por contar ou não com a presença de um terceiro imparcial que
auxiliará nesse processo. Esse método pode ser usado para realizar
a mediação, a conciliação ou a negociação.
169

Trata-se de uma forma autônoma, uma vez que quem decide


a contenda são as próprias partes, atuando com mais eficiência
quanto ao comprometimento dos interesses. A autocomposição tem
por base fatores consensuais e persuasivos, mediante os quais as
partes compõem o litígio, de tal forma que obtêm soluções mais
douradoras e exequíveis (MORAIS; SPENGLER, 2019).
O principal efeito da autocomposição “é fazer desaparecer
o litígio. Se judicial, dá causa ao fim do processo; se preventiva,
evita-o. Os escopos da autocomposição são os mesmos do processo,
de natureza judicial, social e política”, tanto em relação aos
envolvidos no conflito quanto à sociedade (CAHALI, 2015, p. 43).
Spengler complementa que:

Fala-se de autocomposição na medida em que os envolvidos


no conflito assumem o risco e a responsabilidade da decisão
que tomam, em consenso, ao lhe pôr um fim por meio
de transação (acordo), desistência (renúncia a direito),
submissão (reconhecimento jurídico do pedido), etc.
(SPENGLER , 2019, p. 76).

Assim sendo, Tartuce (2016, p. 26) também coloca que


“a possibilidade de que as partes resolvam, isoladamente ou
em conjunto, uma saída para o conflito encerra a hipótese de
autocomposição”. Ou seja, a solução da controvérsia contará com a
vontade de uma ou ambas as partes para que se verifique, sem existir
a participação de um terceiro com poder decisório para definir tal
caso.
A solução encaminhada pelas próprias partes é dita pacífica,
pois substitui a força pela razão e adota as seguintes modalidades,
conforme aduz Amaral Santos (2012): a) a solução “moral”, em que
os antagonistas se conformam em limitar seu interesse, inclusive
renunciando a ele; b) a solução contratual, em que ambos se
entendem e convencionam a composição do conflito; c) a solução
arbitral, em que as partes confiam a um terceiro a função de resolver
o desencontro de seus interesses. Nesse sentido, o autor diz que se
nenhuma dessas soluções forem definitivas, o conflito pode voltar a
surgir e, por tal razão, deverá ser encaminhado ao tratamento pela
jurisdição por meio da forma heterocompositiva.
170

Nessa perspectiva, salienta-se que a principal diferença entre


a autocomposição e a hetorocomposição é que, enquanto no processo
autocompositivo de modelos consensuais (negociação, mediação e
conciliação) se busca por soluções vencedoras, com ganhadores e
ganhadores (ganhadores x ganhadores), observando os interesses de
todos; no processo heterocompositivo, cujos modelos são chamados
de adversariais (arbitragem e jurisdição), haverá sempre vencedores
e vencidos (ganhadores x perdedores) (BACELLAR, 2011).
Contudo, a busca do consenso e de meios que o utilizam,
vem sendo a questão na legislação e na atuação dos órgãos estatais
na administração da Justiça, por serem extremamente vantajosos às
partes, haja vista a comunicação ser o fator principal que ajuda na
solução do impasse. Dessa forma, a relação humana é reestabelecida,
ou pelo menos, aprimorada, permitindo a sua continuidade
(TARTUCE, 2016).
Para tanto, a autocomposição poderá ocorrer tanto no
plano pré-processual (por submissão ao direito da parte, acordos
diversos, ajustamento de conduta, remissão de dívidas) quanto no
plano judiciário, conciliando-se as partes (MANCUSO, 2004).
“Pode-se referir, em outras palavras, à autocomposição judicial
e autocomposição não-judicial”. Se judicial, dá causa ao fim do
processo; se não judicial, será preventiva, ou melhor, evitará o
processo (CALMON, 2008, p. 55).

Como premissa para a adequada aferição da possibilidade


de realizar a autocomposição, deve-se considerar a
disponibilidade do direito em debate, merecendo atenta
consideração tal aspecto tanto em sua vertente substancial
quanto em sua índole processual. (TARTUCE, 2016, p. 27).

Posto isso, Calmon (2008) aduz que a autocomposição


é a prevenção ou solução do litígio por decisão consensual das
próprias partes envolvidas no conflito; é fruto do consenso, onde
não há imposição de decisão e o resultado é parcial – por obra das
próprias partes. Segundo o autor, esse meio pode ser unilateral ou
bilateral, pois quando unilateral (exemplo: renúncia, submissão) a
atitude altruísta é proveniente de apenas um dos envolvidos; quando
bilateral (transação), o altruísmo é caracterizado pela atitude de
171

ambos, uma vez que as concessões são recíprocas e todos abrem


mão parcialmente do que entendem ser de seu direito.

Todavia, apesar de existirem essas três formas tradicionais é


de suma importância o estudo da autocomposição para que
possam ser estabelecidas novas técnicas, mais modernas e
apropriadas para o tratamento dos conflitos. Esse estudo é
indispensável, uma vez que possibilitará a diminuição de
preconceitos e fará com que o Estado compreenda mais
amplamente sua função de pacificador. (WRASSE, 2012, p.
51).

Logo, a autocomposição poderá ocorrer “1) antes de cogitar


um processo; 2) após uma das partes se encontrar predisposta a
recorrer à via judicial, porém antes de efetivar tal decisão; ou 3)
durante o próprio processo [...]” (CALMON, 2008, p. 56).
Nessa seara, quanto à natureza jurídica da autocomposição,
o autor diz que ela se destaca como um dos modos de se pôr fim
ao processo, porém, vai além disso, ela se caracteriza por ser
como um dos tipos de solução dos conflitos, uma vez que põe
fim ao conflito, assim como a sentença homologatória põe fim ao
processo. “Em conclusão, a autocomposição é um legítimo tipo de
solução de conflitos, pondo fim ao conflito jurídico (e muitas vezes
ao sociológico)” (CALMON, 2008, p. 57), proporcionando que a
relação continue e promovendo uma forma socialmente pacífica de
resolver controvérsias.
Ainda, são sujeitos da autocomposição aqueles titulares dos
direitos e das obrigações sobre os quais versa o litígio:

Não é possível a autocomposição realizada por menores


ou quando presentes outras modalidades de incapacidade,
nem tampouco será válida a autocomposição realizada por
procurador ou representante legal d pessoa jurídica que não
possua poderes específicos para tanto. (CALMON, 2008, p.
60).

Enfim, o requisito mais importante da autocomposição é a


“livre manifestação da vontade”, já que é preciso que os sujeitos
não ajam apenas com uma liberdade aparente. Quando um dos
172

envolvidos cede totalmente ou, quando há concessões recíprocas,


essa atitude deve ser verdadeiramente manifestada, sem que haja
pressão ou fruto de sentimento interior diferente daquele pessoal de
resolver o conflito da melhor maneira possível, dentro do “binômio
benefício-custo” (CALMON, 2008, p. 61).
Desse modo, dentro do atual panorama brasileiro dos meios
alternativos de tratamento de conflitos, identifica-se a conciliação, a
mediação e a arbitragem como tríade básica opcionais à tradicional
jurisdição estatal (HALE; PINHO, CABRAL, 2016). Esses, foram
institucionalizados pela Resolução nº 125/2010 do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ). Como meio autocompositivo de
tratamento dos conflitos, um deles, em especial, baseará a presente
pesquisa: a mediação.

3 A PRÁTICA DA MEDIAÇÃO: ASPECTOS


INTRODUTÓRIOS
Face ao exposto, se verifica que o consenso surge como grande
articulador dessas novas práticas, ocupando lugar importante na
ordem jurídica, promovendo o fomento e a introdução desses novos
meios, aos poucos, foram ganhando reconhecimento e aceitação
dos operadores do direito (MORAIS; SPENGLER, 2019). Nesse
viés, para uma melhor administração do conflito se deve adotar
estratégias adequadas para lidar com cada tipo de controvérsia.
Como alternativa apropriada, aparece a Mediação.
Calmon destaca que vem sendo adotado uma terminologia
mais objetiva ao falar desses meios autocompositivos alternativos
à jurisdição, sendo então, “meios adequados de solução de
conflitos”, ou ainda, “meios adequados de pacificação social”,
expressão que se considera “feliz e prospectiva, ao considerar um
sistema multiportas, em que a jurisdição estatal se apresenta apenas
como uma possibilidade, um meio seguro, mas não o único e nem
tampouco o mais efetivo” (2008, p. 88, grifos no original).
Posto isso, a mediação – foco da presente pesquisa – se
concretiza quando um terceiro desinteressado, denominado
mediador, exerce uma função limitada e não autoritária, auxiliando
173

facilitando a comunicação entre as partes, para que elas, protagonistas


na decisão, tratem a lide da forma mais adequada e satisfatória para
ambas. Segundo Morais e Spengler (2019, p. 129):

Trata-se de um processo no qual uma terceira pessoa –


o mediador – auxilia os participantes na resolução da
disputa. O acordo final trata o problema com uma proposta
mutuamente aceitável e será estruturado de modo a manter
a continuidade das relações das pessoas envolvidas no
conflito.

Visto isso, a mediação é um mecanismo de autocomposição,


uma vez que os próprios participantes decidam pela situação
conflitiva. O mediador, terceiro neutro e imparcial, não apresentará
nenhuma solução para o problema, ele auxiliará de maneira adequada
os envolvidos para que eles façam um acordo de vontades, sendo
assim, todos sairão ganhadores nessa configuração, já que as partes
mesmo decidem através do diálogo. “Além disso, a mediação se dá
em ambiente privado o que faz com que as pessoas fiquem à vontade
para se comunicar” (WRASSE, 2012, p. 51).
Warat (1998, p. 5) aduz que “a mediação pode ser considerada
como a forma ecológica de resolução dos conflitos sociais e jurídicos
na qual o intuito de satisfação do desejo substitui a aplicação
coercitiva e terceirizada de uma sanção legal”. Spengler (2017, p.
15) complementa:

A mediação, como espaço de reencontro, utiliza a arte do


compartir para tratar conflitos e oferecer uma proposta
inovadora de pensar o lugar do Direito na cultura
complexa, multifacetada e emergente do terceiro milênio.
Essa proposta diferenciada de tratamento dos conflitos
emerge como estratégia à jurisdição tradicional, propondo
uma metodologia que faça novas abordagens ao contexto
conflitivo atual, esses são seus aspectos mais importantes.

Quanto aos conflitos tratados nesse caso, a mediação busca


administrar àquelas questões onde as pessoas possuem vínculo
anterior e pretendem continuar com aquela relação, como por
exemplo, questões do âmbito do Direito de Família.
174

Os principais litígios levados à mediação são assuntos,


geralmente, ligados ao dia-a-dia da sociedade como,
por exemplo, controvérsias familiares. Porém, podemos
conduzir qualquer tipo de conflito para essa forma alternativa
de justiça, desde que seja interessante para as partes e que
estas estejam buscando maior velocidade, baixo custo e
Privacidade. (SILVA; SPENGLER, 2013, p. 133).

Assim, o tratamento do conflito pode ocorrer contando com


uma pluralidade de técnicas, desde a negociação até a terapia e,
pode ser aplicada aos mais variados contextos, como na mediação
judicial, extrajudicial, no Direito do Trabalho, na escola, no Direito
de Família (SPENGLER, 2019). Entretanto, o propósito maior
do instituto é religar o que se rompeu, reestabelecendo aquela
relação para, na continuidade, tratar a controvérsia que provocou o
rompimento (SPENGLER, 2016).
Interessante é a definição de Six (2001, p. 91) quando diz
que a mediação pode ser considerada como “gestão ativa de conflitos
pela catálise de um terceiro”, como uma “técnica mediante a qual
as partes mesmas, imersas no conflito, que tratam de chegar a um
acordo com a ajuda do mediador, terceiro imparcial que não tem
faculdades de decisão”. Contribui Spengler (2019) quando diz que
a palavra mediação evoca o significado de centro, meio, equilíbrio,
resultando na figura do terceiro elemento que se encontra entre as
partes, não em posição superior, nem inferior, mas entre elas.

A mediação difere das práticas tradicionais de jurisdição


justamente porque o seu local de trabalho é a sociedade,
sendo a sua base de operações o pluralismo de valores, a
presença de sistemas de vida diversos e alternativos; sua
finalidade consiste em reabrir os canais de comunicação
interrompidos e reconstruir laços sociais destruídos. O seu
desafio mais importante é aceitar a diferença e a diversidade,
o dissenso e a desordem por eles gerados. Sua principal
ambição não consiste em propor novos valores, mas em
restabelecer a comunicação entre aqueles que cada um traz
consigo. (SPENGLER, 2016, p. 174).

Nesse sentido, Tartuce (2016, p. 178) diz que “esse método se


insere por inteiro na noção de justiça coexistencial, sendo totalmente
175

coerente com o estímulo à cultura da paz”. Salienta Calmon (2008)


que a mediação é considerada um meio não adversarial em que o
terceiro imparcial coopera com as partes a encontrarem o ponto de
harmonia do conflito. Esse terceiro imparcial é um modelador de
ideias que mostrará a realidade necessária para que os participantes
atinjam o acordo, desde que seja satisfatório para ambos.

Uma das grandes finalidades da mediação é evitar o


acirramento da potencial litigiosidade e, por meio do
restabelecimento da comunicação entre os indivíduos,
evitar que outros conflitos venham a se instalar sem possível
autocomposição pelos contraditores. (TARTUCE, 2016, p.
223).

Bem traduz a autora: “Posto que voltada para a construção


do consenso, a mediação sugere que quando há conflito, disputas
e dificuldades humanas, há a oportunidade para a reconciliação, a
comunicação, o entendimento, o aprendizado (FOLEY, 2010, p.
81). “A mediação pretende ajudar as partes a desdramatizar seus
conflitos, para que se transformem em algo de bom à sua vitalidade
de interior” (SPENGLER; RIGON, 2012, p. 128).
Justamente por isso a mediação surge como espaço
democrático, uma vez que trabalha com a figura o mediador, que,
ao invés de se posicionar em local superior às partes, se encontra
no meio delas, partilhando de um espaço comum e participativo,
voltado para a construção do consenso, num pertencer comum. Isso
se dá porque a mediação não é uma ciência, mas uma arte na qual o
mediador não pode se preocupar em intervir no conflito, oferecendo
às partes liberdade para tratá-lo. (MORAIS; SPENGLER, 2019, p.
145).
Com isso, é figura essencial para garantir o sucesso do
procedimento, o terceiro – mediador. Esse, buscará o equilíbrio
entre os litigantes que serão detentores da capacidade decisória,
não induzindo ao acordo, tendo em vista que sua função é somente
reestabelecer o diálogo entre os conflitantes. Atuando de forma
imparcial, o mediador não irá julgar e nem aconselhar as partes,
mas somente tendo a finalidade de resolver aquela lide (WRASSE,
2012).
176

Ressalta-se, então, que profissionais preparados para


exercer a função de mediador se utilizam de técnicas de manejo
comportamental previamente programadas a fim de estimular as
partes a participar efetiva e proveitosamente das atividades do
processo objetivando obter uma decisão que realmente pacifique a
discordância. (MORAIS; SPENGLER, 2019, p. 155).
Nessa perspectiva, de forma geral, Spengler (2019, p. 68)
contribui dizendo também que “o mediador não decide, apenas
fomenta o diálogo” e, por isso, frisa “a importância do papel
desempenhado em prol de uma sociedade cada vez mais complexa,
plural e multifacetada, produtora de demandas, que, a cada dia,
superam-se qualitativa e quantitativamente”.
Ademais, cumpre dizer que a mediação brasileira fora
estabelecida, primeiramente, pela Resolução nº 125/2010 do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e posteriormente regrada
pela Lei nº 13.140/2015, pelo Código de Processo Civil de 2015
e ainda, pela Resolução nº 174/2016 do Conselho Superior da
Justiça do Trabalho (CSJT), as quais finalizam com algumas outras
características legais a respeito do mediador (e do procedimento
de mediação), como capacitação, requisitos e princípios a serem
seguidos.

4 A POSSIBILIDADE DE MEDIAR CONFLITOS NOS


CASOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO
ÂMBITO FAMILIAR
A partir do conceito legal, previsto na lei específica de
proteção à mulher, chamada de Lei Maria da Penha, se observa
que a violência doméstica e familiar é aquela que é identificada
por comportamentos danosos que ocorrem no “âmbito da unidade
doméstica, compreendida como o espaço e convívio permanente de
pessoas, tenham ou não essas pessoas vínculo familiar” (artigo 5º da
Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006), abrangendo também aquelas
mulheres que sofreram violência praticada por seus ex-cônjuges,
ex-companheiros e ex-namorados.
A Lei Maria da Penha foi criada por haver uma necessidade
177

de conceituar o acesso à Justiça e contextualizar os casos de


violência contra mulher, resultado pois, de uma abordagem histórica
da luta pelos direitos da mulher, trazendo então o entendimento de
que os novos mecanismos de acesso à justiça, bem como as novas
legislações, são consequência de uma evolução de reinvindicações
(RAMOS, 2011).
Visto isso, passar-se-á a tratar a violência contra mulher nas
relações íntimas de afeto, haja vista existirem abrangentes tipos de
violência no âmbito de família. Por violência familiar, entende-se
ser aquela mais ampla do que a doméstica, tratando de casos mais
comuns de violência, pois não se estende apenas àquelas pessoas
que moram sob o mesmo teto, contando também com proteção da
lei (RAMOS, 2011).
Destarte, segundo Tartuce (2016, p. 330) “nas relações
familiares, o afeto revela-se como ponto nuclear, o que gera
especificidades consideráveis no trato do tema”. Pinto (1998, p. 35)
explica que o direito de família não se limita somente ao pai, mãe e
filho, pois para ser família, deve-se haver necessariamente a presença
do afeto. Nesse âmbito, é apresentada a mediação para resolver os
conflitos atinentes de relações continuadas, onde há vínculo entre
os indivíduos, onde se preza pela vivência daquele relacionamento,
como por exemplo, nas questões familiares (SPENGLER, 2019).
Logo, cumpre ressaltar quanto ao conflito. Seu principal
aspecto é visar uma mudança construtiva. Segundo Sales (2010, p.
87), o conflito deve ser visto como possibilidade de transformação e
de aprimoramento das relações, pois “é uma oportunidade de viver,
questionar experiências profundas e assim crescer jun¬to com essa
avaliação e mudança”.
Complementa a autora que o conflito deve ser visto como
momento natural nas relações quando se busca a compreensão
não apenas expressa e individual, mas a profundidade da situação,
avaliando a relação entre esses conflitos individuais e os padrões de
comportamento social: “É o motor de transformação das relações e
das estruturas sociais sensíveis às dinâmicas das relações humanas”
(SALES, 2010, p. 87).
178

A ‘dinâmica conflitiva’ torna-se, então, o meio de manter a


vida social, de determinar seu futuro, facilitar a mobilidade
e valorizar certas configurações ou formas sociais em
detrimento de outras. Essa dinâmica conflitiva permite
verificar que o conflito pode ser tão positivo quanto negativo
e que a valoração de suas consequências se dará, justamente,
pela legitimidade das causas que pretende defender.
(SPENGLER, 2017, p. 191, grifos no original).

Por outro lado, diferente de conflito, a violência, por não ser


considerada fator de intensidade de conflito, não mede o grau de
envolvimento na situação conflitiva; mas assinala a inexistência, a
inadequação, a ruptura de normas aceitas por ambas as partes e de
regras do jogo (SPENGLER, 2018). Segundo o dicionário online de
português:

Qualidade ou caráter de violento, do que age com força,


ímpeto. Ação violenta, agressiva, que faz uso da força bruta.
[Jurídico] Constrangimento físico ou moral exercido sobre
alguém, que obriga essa pessoa a fazer o que lhe é imposto:
violência física, violência psicológica. Ato de crueldade, de
perversidade, de tirania: regime de violência. Ato de oprimir,
de sujeitar alguém a fazer alguma coisa pelo uso da força;
opressão, tirania: violência contra a mulher. Ato ou efeito de
violentar, de violar, de praticar estupro. (Dicio, 2020).

Sendo assim, a violência é utilizada quando há falta de diálogo


e “isso é ainda muito mais visível nas relações continuadas, como
as familiares: discussões, gritos, um tapa e tudo se silencia. Naquele
momento o tapa serviu para colocar um ponto final na discussão,
mas até quando?” (ZAPPAROLLI, 2003, p. 477).

Quando se sugere a mediação de conflitos nos casos de


casais que já estiveram envolvidos na violência doméstica
é justamente, porque se sabe que mesmo após a violência,
separados e às vezes até sob medidas protetivas, os casais
continuam se comunicando. Entretanto, continuam se
comunicando pela forma inadequada. (RAMOS, 2011, p.
110).

Para Ramos (2011) estudar a mediação em casos de violência


179

doméstica, tem relevância quando se objetiva verificar o acordo e seu


adimplemento, mesmo para aquelas famílias que não vivenciaram
episódios violentos, mas que há a necessidade do cumprimento do
acordo, independente do conflito. É essencial avaliar as pessoas
e seu cumprimento diante do acordo feito, a fim de completar o
processo de mediação.
Para a autora mencionada, mesmo havendo limitações, nos
casos de violência contra a mulher a mediação é viável, pois além
de solucionar alguns conflitos, pode prevenir outros que possam vir
a surgir e resultar em agressões:

Não se pode excluir a possibilidade de reconciliação, mesmo


que não seja o papel do mediador se esforçar para isso. Para,
além da voluntariedade envolvida, deve ser considerado que
nem todos os casais atingiram o nível extremo de violência
e muitos casais se reconciliam (mesmo sem mediação)
em casos de violência patrimonial e moral, por exemplo.
(RAMOS, 2011, p. 112).

A mediação pode trazer a proposta para a mulher agredida,


de ser transformadora da sua própria vida. Nessa visão, Sen (2001,
p. 220) aduz que a mulher não é mais uma simples receptora de
mudanças, elas podem ser vistas como “promotoras dinâmicas de
transformações socias que podem alterar a vida das mulheres e dos
homens”.
Ou seja, partindo dessa ideia, verifica-se uma maior
preocupação diante do bem-estar feminino. “Não se propõe uma
maneira de tolerância da violência, mas uma estratégia que busque
desenvolver, tanto o homem quanto a mulher, mesmo que para
o agressor existam consequências legais e que estas devam ser
cumpridas” (RAMOS, 2011, p. 114).

A proposta não desconsidera o bem-estar feminino, pois se


verifica que muitas foram as lutas para que hoje na legislação
pátria existisse uma lei específica para proteção da mulher,
mas não se pode partir de uma ideia inocente de que os pares
que se envolvam em episódios violento ficarão solitários
para o resto de suas vidas. Por isso, a mediação pode ser uma
maneira de sinalizar para as partes envolvidas, que além de
180

encontrarem uma solução para aquele conflito imediato, elas


precisam encontrar um acompanhamento mais específico
individual, a fim de que muitos padrões sejam revistos e
a violência não ocorra nas próximas relações. (RAMOS,
2011, p. 113-114).

Contudo, a participação da mediação é o primeiro passo para


se resolver os conflitos. Segundo Robles (2009) o processo judicial
não é a única alternativa para se conseguir imputar a culpa ao outro –
quando este for culpado, requerendo o fim do conflito. Geralmente,
arrasta-se por anos, prolongando a angustia dos envolvidos,
dificultando o andamento normal das vidas, aumentando a dor e a
desconsideração por interesses de longa duração.
Face ao exposto, entende-se que a violência em si não
está sendo mediada, mas sim, os conflitos cíveis pendentes,
sendo prevenidos para novos e outros tipos de violências. Logo,
a mediação pode servir como instrumento de empoderamento
para aquela mulher que sofreu a violência, na medida em que ela
participa das decisões e da mudança de seu destino, ao contrário da
decisão judicial, que não garante atender às suas necessidades de
forma efetiva (RAMOS, 2011). Para os casos em que não caiba o
instrumento da mediação, por qualquer motivo, a mulher então será
estimulada a promover o Estado, através do Poder Judiciário, para
que ele tome a devida providencia e administre a situação conflitiva.

5 CONCLUSÃO
Em suma, é notável que os conflitos, embora inerentes à
condição humana, podem ser vistos como oportunidade, quando
compreendidos, na medida em que propagam a transformação
social. Já a questão da violência, rompe com as normas e regras do
jogo, tornando o seu ato ilegal. Desse modo, a busca por solucionar
problemas de forma mais adequada, ou ao menos, prevenir que
outros aconteçam, traz o uso de práticas como o da mediação para
atender a este fim.
Com isso, vê-se a mediação como forma autocompositiva de
administrar conflitos de maneira mais eficaz, porquanto a vontade
de entabular um acordo ou de ao menos tentar começar pelas
181

próprias partes. O mediador, nesse caso, terá papel secundário,


atuando como um terceiro, porém não impondo sua decisão, apenas
intermediando os envolvidos, reestabelecendo o diálogo, com o
objetivo de pacificar a relação e encontrar um remédio ao litígio.
Apesar da mediação ser utilizada na seara do Direito de
Família, tratando de questões cíveis, o estudo da mediação em casos
de violência doméstica familiar tem relevância, pois pode ter como
resultados acordos passíveis de serem cumpridos. Nesses casos a
mediação pode auxiliar na melhoria da comunicação, objetivando
a não violência.
Além de, não menos importante, a mediação nos casos de
violência contra a mulher, vir a prevenir outros problemas que
possam surgir e resultar novamente em agressões. Posto isso,
evidenciando a mulher que sofreu a violência, o instrumento
de mediar pode servir como empoderamento, na medida em que
apenas ela decide e resolve, conforme o que lhe convém, a sua vida
familiar/civil/amorosa. Não estando satisfeita com os resultados,
nada impede que essa mulher busque seus direitos e o auxílio do
Estado, com uso da jurisdição, para que ele dê o devido tratamento
ao litígio.

NOTAS
1
Mestranda em Direito junto ao Programa de Pós-Graduação UNISC, com bol-
sa BIPPS Edital 02/2019, na linha de pesquisa de Políticas Públicas de Inclu-
são Social. Integrante do grupo de pesquisa denominado Políticas Públicas
no Tratamento de Conflitos, vinculado ao CNPq e liderado pela Professora
Pós-Drª Fabiana Marion Spengler, com vice-liderança do Prof. Ms Theobal-
do Spengler Neto. Mediadora voluntária de família no Projeto de Extensão
da UNISC denominado: “A crise da jurisdição e a cultura da paz: a mediação
como meio democrático, autônomo e consensuado de tratar conflitos” desen-
volvido junto a Defensoria Pública de Santa Cruz do Sul. Pós Graduada em
Direito de Família e Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério
Público (FMP/RS). Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: [email protected]
Bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ2) do CNPq. Possui graduação
2

em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (1994), mestrado em


Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul (1998).
É doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2007)
182

com bolsa CAPES e pós-doutora pela Universidade degli Studi di Roma Tre
(2011) com bolsa do CNPq. Atualmente é professora adjunta da Universida-
de de Santa Cruz do Sul lecionando na graduação as disciplinas de Direito
Civil - Família, Processo Civil I, Mediação e Arbitragem, e na pós graduação
junto ao Programa de Mestrado e de Doutorado em Direito as disciplinas de
“Políticas Públicas no Tratamento de Conflitos” e “Políticas Públicas para
uma nova jurisdição”. Publicou diversos livros e artigos científicos. Desen-
volveu atividades de consultora junto ao Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento - PNUD -, no âmbito do projeto BRA/05/036 executado
pela Secretaria de Reforma do Judiciário ligada ao Ministério da Justiça. É
líder do grupo de pesquisa “Políticas Públicas no Tratamento dos conflitos”
certificado pelo CNPQ. Líder da Rede de Pesquisa em Direitos Humanos
e Políticas Públicas (ReDiHPP) (site: http://bit.ly/1LePnPi ). É integrante
do grupo de pesquisa internacional “Dimensions of Human Rights” (http://
www.ijp.upt.pt/page.php?p=298), mantido pelo Instituto Jurídico Portuca-
lense (IJP). É integrante da Comissão de mediação e Práticas Restaurativas
da OAB de Santa Cruz do Sul. Recebeu Menção Honrosa no Prêmio Capes
de Teses 2008. Recebeu o primeiro lugar no Prêmio SINEPE/RS 2010 na
categoria Responsabilidade Social pelo projeto de extensão em Mediação
(UNISC). Foi vencedora no X Prêmio Conciliar é Legal, promovido pelo
CNJ, na Categoria Ensino Superior, também com o projeto de Extensão em
Mediação (UNISC). É mediadora. Email: [email protected]
“O conflito é a exceção e ocorre quando o almejado equilíbrio social não é
3

atingido. Pode perpetuar-se ou ser resolvido. Se resolvido, restabelece-se a


harmonia” (CALMON, 2008, p. 22).

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Mediação de conflitos: pacificando e prevenindo a violência. São
Paulo: Summus, 2003.
O PROJETO “ESCUTATÓRIA”: EFETIVIDADE
AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA

Josiane Caleffi Estivalet1


Marli Costa2

É chegado o momento, não temos mais o que esperar.


Ouçamos o humano que habita em cada um de nós e clama
pela nossa humanidade, pela nossa solidariedade, que
teima em nos falar e nos fazer ver o outro que dá sentido e
é a razão do nosso existir, sem o qual não somos e jamais
seremos humanos na expressão da palavra.
Trecho do texto de Rubem Alves: “A Escutatória”

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A constatação da historiadora Mary Del Priore (2019) de
que, na medida em que a população feminina foi reivindicando
a ampliação dos seus horizontes, para além da casa e da família,
foram se multiplicando situações de violência contra a mulher, que,
ainda hoje, se mantém irrefutável. Ao descrever como era a vida na
década de 1980, a autora aponta: “fumar, usar biquini e ver Malu
Mulher, naqueles tempos, podia acabar em morte” (DEL PRIORE,
2019, p. 393).
Um dos crimes de maior repercussão no cenário nacional, de
violência contra a mulher, aconteceu em um reduto de mansões de
luxo do Rio de Janeiro, na Praia dos Ossos, em Búzios. Num final
de tarde de dezembro, o paulista Doca Street matou, com três tiros
no rosto e um na nuca, a mineira Ângela Diniz:

Tudo começou com uma crise de ciúme. ‘Ela vivia


comparando Doca com outros namorados’, explicou o
advogado do assassino. Acusada de ‘amores homossexuais’
e devassidão, a defesa conseguiu provar que Ângela tinha
187

má conduta e fora agredida para que Doca preservasse


a ‘legítima defesa’ da sua honra. Condenou-se a vítima e
absolveu-se o assassino, que contava com uma claque de
torcedores nas primeiras filas do tribunal. (DEL PRIORE,
2019, p. 392).

O ano era o de 1976, mas a cena, certamente, repete-se, desde


então, todos os anos, meses, semanas, quiçá dias, em diferentes
cenários do Brasil.
O crime mencionado foi capa dos principais jornais no país
e ganhou especial notoriedade em razão de Doca Street fazer parte
da alta sociedade paulistana. A sucessão de brutalidades cometidas
contra as mulheres passou a ser manchete nos periódicos de maior
circulação do país. Mary menciona que a revista Veja, em 1978,
fez uma reportagem sobre homens, da alta sociedade mineira, que
assassinaram as suas esposas e não haviam recebido qualquer punição
pelos crimes praticados até então (DEL PRIORE, 2019). A revista
transcreveu, naquela oportunidade, o depoimento do engenheiro
Márcio Stancioli, de 32 anos, que matou Eloísa Ballesteros Stancioli,
com sete tiros, porque acreditava que ela o traía. O debate em torno
do tema violência contra a mulher, acompanhado da sensação de
impunidade que reinava então no Brasil criou um campo fértil para
as mudanças legislativas que estavam por vir:

Tais casos tornaram-se símbolos de denúncias na imprensa


e apertaram outro gatilho: o das lutas feministas em favor
da condenação de maridos violentos. Problemas de abusos
domésticos e conjugais começavam a ganhar maior
visibilidade na imprensa e nos tribunais. Os principais casos
tinham a ver com espancamentos, bofetões, pontapés, uso
de objetos contundentes, contatos íntimos não autorizados
com ou sem relação sexual, intimidações, calúnias, rapto,
injúrias e ameaças. O movimento passou a exigir que
os crimes cometidos nas relações íntimas tivessem um
tratamento equivalente ao dos crimes de igual natureza
praticados por desconhecidos. Os direitos tinham que ser
iguais para todos. No âmbito familiar – denunciavam as
feministas – escondiam-se os piores agressores. O bordão
“quem ama não mata” ecoava em toda parte. O esforço foi
188

correspondido. A partir da década de 1980 foram criadas


instituições de amparo às vítimas: S.O.S. Mulher, Conselhos
de Condição Feminina, Delegacias de Defesa da Mulher.
(DEL PRIORE, 2019, p. 395-396).

Nesse cenário emergiu a Constituição Federal de 1988 que


adotou, no artigo 5º, I, o princípio da igualdade de direitos e obrigações
entre homens e mulheres, afastando as hipóteses discriminatórias de
gênero, sempre que ele seja eleito com o propósito de desnivelar
materialmente o homem da mulher, aceitando-o quando tiver por
finalidade atenuar desníveis (CAMPOS; CORREA, 2007).
No ano de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos da OEA, órgão encarregado de receber as denúncias
de violação dos direitos estabelecidos na Convenção Americana
sobre Direitos Humanos e na Convenção de Belém do Pará,
provocada pelo Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos
da Mulher (CLADEM) e de denúncia do Centro pela Justiça pelo
Direito Internacional (CEJIL), concluiu que o Estado Brasileiro
era demasiadamente tolerante e complacente, no que diz respeito
à violência doméstica praticada contra a mulher (CAMPOS;
CORREA, 2007).
Não fosse a exposição internacional da omissão estatal
brasileira, no que diz respeito à solução dos conflitos intrafamiliares,
especialmente com relação a sua gravidade, muito provavelmente
não haveria uma lei da envergadura da Lei Maria da Penha, que tem
por objetivo estancar um sistema de dominação e poder, gerador de
desigualdades no que toca aos direitos humanos das mulheres.
Assim nasceu a legislação de caráter afirmativo de maior
expressividade no sistema jurídico nacional, voltada especificamente
ao combate da violência contra a mulher, no âmbito doméstico.
Trata-se da Lei 11.340, de 2006, também conhecida como Lei Maria
da Penha.
Posteriormente, no ano de 2010, com a intenção de fomentar
a resolução de conflitos, inclusive no âmbito doméstico, surgiu a
Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça. Passaram então
a serem criados os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e
Cidadania (CEJUSCs) que comportam, na sua gênese, conforme
189

artigo 10 da mencionada Resolução, três setores distintos: um setor


de solução de conflitos pré-processuais, outro de atendimento das
demandas processuais e o terceiro, vocacionado às práticas relativas
ao efetivo exercício da cidadania.
A proposta dos CEJUSCs está voltada para a emancipação
do sujeito. É da natureza da autocomposição o protagonismo dos
envolvidos no conflito assim como o abandono da ideia de que a
solução do problema surgirá espontaneamente. E dentro desse
contexto, emancipatório, encontra-se o setor de cidadania.
Importante mencionar que o conceito de cidadania aqui
adotado será o pleno, na medida em que “trata-se de um direito
que precisa ser construído coletivamente, não só em termos de
atendimento às necessidades básicas, mas de acesso a todos os níveis
da existência, incluindo o mais abrangente, o papel do(s) homem(s)
no Universo” (MANZINI-COVRE, 2006, p. 11).
Dentro desse contexto surge a possibilidade de
desenvolvimento de projetos que visem à apropriação de espaços
reflexivos, que se coadunem com a construção de uma sociedade
mais igualitária e democrática. Buscando esse espaço educativo/
reflexivo, sobre a existência e a possibilidade de exercício de
direitos, alicerçando a construção de uma sociedade mais justa e
igualitária foi pensado o Projeto “Escutatória” dentro do CEJUSC
de Santa Cruz do Sul.
Por fim, dentre os obstáculos para alcançar efetividade, no
âmbito dos direitos das mulheres vítimas de violência doméstica,
encontra-se o de ter a sua voz ouvida, sob pena de inefetividade do
princípio da dignidade da pessoa humana.
Segundo Oliveira (2018, p. 129),

a dignidade da pessoa humana é o valor-base de interpretação


de qualquer sistema jurídico, internacional ou nacional,
que possa se considerar compatível com os valores éticos,
notadamente da moral, da justiça e da democracia. Pensar
em dignidade da pessoa humana significa, acima de tudo,
colocar a pessoa humana como centro e norte para qualquer
processo jurídico de interpretação, seja na elaboração da
norma, seja na sua aplicação.
190

A análise de como a violência contra a mulher vem ganhando


destaque nos tribunais do país e como o Poder Judiciário vem
realizando a especialização de varas que detenham competência
exclusiva para tratar do tema, a partir de dados extraídos do relatório
Justiça em Números de 2019, do Conselho Nacional de Justiça, faz
parte da presente pesquisa.

2 ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NO CENTRO


JUDICIÁRIO DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS E
CIDADANIA DE SANTA CRUZ DO SUL
O CEJUSC (Centro Judiciário de Solução de Conflitos e
Cidadania) de Santa Cruz do Sul, foi instalado em 22 de maio de
2013. Tem competência regional e atende às comarcas de Santa Cruz
do Sul, Vera Cruz, Candelária, e Venâncio Aires. Dentre as principais
atividades desenvolvidas, destacam-se a mediação, a conciliação, as
práticas restaurativas (círculos de construção de paz), as Oficinas de
Parentalidade e os projetos que envolvem homens e mulheres em
situação de violência doméstica.
A mediação é uma forma pacífica e eficiente por meio da
qual o mediador, de forma imparcial, auxilia que os conflitantes
restabeleçam as vias dialogais. A sessão é conduzida de forma
que oportunize aos mediandos que construam, com autonomia
e solidariedade, a melhor solução para o conflito que estão
enfrentando. Trata-se de método altamente eficaz na promoção da
pacificação social, já que apresenta aos conflitantes soluções que
compatibilizam seus interesses e necessidades, evitando desgastes
e ressentimentos, eis que não trabalha dentro de uma perspectiva de
vencedores e vencidos.
Da mesma forma, a conciliação auxilia na solução de
conflitos, sendo um método utilizado em situações de menor
complexidade, no qual conciliador pode adotar uma posição mais
ativa que o mediador, porém, neutra e imparcial. É um processo
autocompositivo e consensual breve, que busca uma efetiva
harmonização social e a restauração, dentro dos limites possíveis,
da relação social das partes.
191

Tanto a mediação, quanto a conciliação, são norteadas por


princípios como informalidade, simplicidade, economia processual,
celeridade, oralidade e flexibilidade processual.
No que se refere ao espaço destinado ao exercício da
cidadania, desenvolvem-se no CEJUSC práticas restaurativas,
oficinas de parentalidade e reuniões de grupos reflexivos de gênero,
em uma perspectiva de efetivo fortalecimento ao exercício de
direitos. Para tanto, trabalha-se dentro de uma realidade social, sem
ignorar o quanto o capitalismo, que se refere ao tema cidadania,
mostra-se ambivalente. Se, por um lado, fomenta a exploração e
a desigualdade, por outro, de forma concomitante, acena com
uma igualdade formal e com a possibilidade de construção de
uma cidadania plena (MANZINI-COVRE, 2006, p. 36). A sua
construção, em nível econômico, político, social e cultural, depende
de múltiplos fatores, dos quais destaca-se o direito às condições
democráticas de reivindicação de direitos. Para que eles possam
ser reivindicados há necessidade de educar os cidadãos sobre a
existência desses direitos, sob pena de esta concepção de cidadania
plena ser esvaziada, imobilizada.

A bandeira de luta da cidadania plena deve ser transformar


o cotidiano do trabalhador em algo bom, satisfatório, sob
condições que respeitem a própria vida, dando chance
também à questão do desejo – a identidade do indivíduo
com as atividades que realiza. Num segundo momento,
reitero: o pressuposto básico para a existência da cidadania:
o de que os sujeitos ajam e lutem por seus direito. Assim,
é preciso que essa prática ocorra sempre na fábrica, no
sindicato, no partido, no bairro, na escola, na empresa, na
família, na favela, na rua, etc. É preciso trazer as coisas até
o visível político (ter presente sempre a negociação), para
que o cotidiano se transforme historicamente. (MANZINI-
COVRE, 2006, p. 73).

As práticas restaurativas visam pacificar conflitos e tensões


sociais geradas por violências, crimes ou infrações. Para tanto,
fazem uso de procedimentos que têm o objetivo de promover
responsabilidades, permitir restauração das relações e reparar os
danos causados, evitando a propagação da violência.
192

Utilizando-se de Círculos de construção de paz, o CEJUSC


faz um atendimento a jovens em conflito com a lei, que respondem
pela prática de atos infracionais, através do programa de Justiça
Restaurativa do Brasil, a paz pede a palavra em escolas municipais
e estaduais.
O projeto desenvolvido pelo Psicanalista e Professor do
Departamento de Psicologia e do Mestrado em Psicologia da
UNISC, Eduardo Steindorf Saraiva, trabalha com homens autores de
violência contra mulheres, e visa auxiliar estes homens no processo
de ressignificação do comportamento violento, identificando causas
e motivações, bem como mudanças nos modos de expressão de
sentimentos e emoções.
A Oficina de Parentalidade é um programa educacional
e preventivo, criado pelo Conselho Nacional de Justiça, que visa
criar um espaço de diálogo através de encontros, coordenados por
profissionais treinados para auxiliar as famílias que enfrentam a
ruptura dos laços conjugais. Tem por objetivo fornecer elementos
para que os pais possam criar uma relação parental saudável junto
aos seus filhos, priorizando os direitos das crianças e adolescentes.
O público-alvo são as famílias em fase de reorganização familiar,
motivada pelo fim do relacionamento dos pais, com filhos menores.
Em vista disso, a participação é direcionada precipuamente aos
genitores, podendo incluir, eventualmente, a família extensa,
tais como avós e tios. O programa visa também apoiar a família
em diferentes esferas políticas, legais e institucionais a fim de
que possam alcançar resultados que reflitam positivamente no
desenvolvimento de crianças e jovens.
O Grupo reflexivo Flor&Ser, investe no fortalecimento de
mulheres vítimas de violência doméstica, especialmente através
do Projeto “Escutatória”, objeto do presente trabalho. Este consiste
no acolhimento das mulheres vítimas de violência doméstica, a
fim de que elas sejam cuidadosamente escutadas para que as suas
perspectivas sobre as situações enfrentadas possam fomentar
futuros programas e políticas públicas de proteção às vítimas.
Importante mencionar que o citado projeto faz parte do rol de
práticas restaurativas adotadas no setor de cidadania do CEJUSC de
Santa Cruz do Sul.
193

3 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO UNIVERSO DO


PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO
Como expresso no seu artigo 1º, a Lei 11.340, de 07 de
agosto de 2006 foi concebida para criar mecanismos que coíbam
e previnam a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos do § 8º, do art. 226, da Constituição Federal, da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher,
da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais
ratificados pela República Federativa do Brasil. Prevê a criação
dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em
situação de violência doméstica e familiar.
A complexidade do tema perpassa por questões como a
interpretação do termo violência doméstica, o conceito de violência,
a sua aplicação e a extensão das medidas preventivas e punitivas
previstas em lei. Segundo Saffioti (2004), o termo violência
doméstica pode ser empregado como sinônimo de violência familiar,
de violência de homens contra mulheres e a de mulheres contra
homens, uma vez que o conceito de gênero é aberto.
No que diz respeito à conceituação da violência, os desafios
estão, via de regra, nos seus contornos e limites, uma vez que não
se limitam à esfera interpessoal. Alcançam as dimensões política,
social e cultural, resultante das interações sociais ou de um
componente cultural naturalizado existente em todas as sociedades.
Arendt (1990), se dizia surpresa com quão pouco esse fenômeno era
investigado pelos cientistas. Ela apresenta uma das mais rigorosas
reflexões sobre o tema e considera que nenhum historiador ou
político deveria ser alheio ao imenso papel que a violência sempre
desempenhou nos assuntos humanos.
Para Arendt (1990), a violência tem um caráter instrumental,
ela é um meio que necessita de orientação e justificação dos fins que
persegue. Denisov (1986) reconhece a violência como um conceito
multifacetário por suas características externas (quantitativas)
e internas (qualitativas). E encontra sua expressão concreta no
fato de que indivíduos, grupos, classes e instituições empregam
194

diferentes formas, métodos e meios de coerção e aniquilamento


direto ou indireto (econômico, político, jurídico, militar, etc.) contra
os indivíduos, grupos, classes e instituições, com a finalidade de
conquistar ou reter o poder, conquistar ou preservar a independência,
obter direitos ou privilégios.
Domenach (2000), em seus estudos, enfatiza que a violência
está inscrita e arraigada nas relações sociais, não podendo, portanto,
ser considerada apenas como uma força exterior se impondo aos
indivíduos e às coletividades, havendo, desta forma, uma dialética,
entre vítima e algoz, o que deve ser objeto de reflexão dos estudiosos
para compreensão dessa complexa relação.
Freud (1996) associa a violência a uma agressividade
instintiva do ser humano, o que o inclina a matar e a fazer sofrer seus
semelhantes. Para Freud (1996), a violência seria um instrumento
para arbitrar conflitos de interesses, sendo, portanto, um princípio
geral da ação humana frente a situações competitivas.
Pode-se perceber que os autores citados têm em comum,
a clareza de considerar a violência como um problema social
e histórico, que deve ser estudada no contexto social em que ela
emerge, porque ela se alimenta de fatos políticos, econômicos
e culturais traduzidos nas relações cotidianas. Em razão de ser
socialmente construída, ela é passível de desconstrução e superação.
Embora, dogmaticamente, o fenômeno da violência possa ser
concebido a partir da ideia da inteligibilidade e da complexidade,
histórica, empírica e específica, percebe-se que não se trata de um ente
abstrato. Quando analisada nas suas expressões concretas permite
ser assumida como objeto de reflexão e superação. Na medida em
que os autores mencionados a definem como “uma relação humana”,
compreendem-na também como um comportamento aprendido e
culturalizado, que passa a fazer parte dos padrões intrapsíquicos,
dando a falsa impressão de ser parte da natureza biológica dos seres
humanos. Nesse contexto, a violência contra a mulher, precisa ser
interpretada em suas várias faces, de forma interligada em rede, e
através dos eventos em que se expressa, repercute e se reproduz.
A necessidade de um olhar institucional diferenciado, em
razão da complexidade do tema, restou reconhecida pelo Conselho
195

Nacional de Justiça na medida em que passou a compilar, em


um capítulo próprio, os dados relativos à violência doméstica e
familiar contra a mulher, cíveis e criminais, a partir da 15ª edição
do Relatório Justiça em Números de 2019.3 O mencionado relatório
trata-se de uma publicação anual, do Conselho Nacional de Justiça,
que desde 2005 compila e analisa as informações obtidas pelo
Departamento de Pesquisas Judiciárias4 (DPJ) trazendo detalhes
sobre o funcionamento do Poder Judiciário brasileiro.
Consta no Relatório Justiça em Números de 2019
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019) que tramitavam,
em 2018, na Justiça Estadual, aproximadamente 70% do total de
processos ingressados no Poder Judiciário brasileiro. Em razão de a
Justiça Estadual trabalhar com uma grande diversidade de assuntos
processuais, há naturalmente maior necessidade de criação de varas
especializadas, responsáveis pelo processamento e julgamento de
demandas específicas.
Muitos são os exemplos de tribunais que vêm, ao longo
dos anos, criando varas especializadas em diversas matérias.
Essas unidades judiciárias destinadas a tratar especificamente
de determinados temas do Direito permitem o aprofundamento
do trabalho a ser desenvolvido e o aperfeiçoamento da prestação
jurisdicional. Exemplificativamente, podem-se citar as varas
de família, varas da infância e juventude, juizados de violência
doméstica, varas de direito empresarial, de execução fiscal, de
combate ao crime organizado, do tribunal do júri, de execução
criminal, da Fazenda Pública etc.
O Relatório Justiça em Números faz a distinção entre as varas
especializadas por temas e as não especializadas. Estas últimas
podem ser divididas em dois grandes grupos: o das varas judiciais
com jurisdição plena, que atendem a todo o tipo de demanda e
detêm a competência para julgar e processar todas as matérias de
direito, normalmente instaladas em comarcas de pequeno porte e
as varas especializadas que acumulam todas as questões cíveis e/ou
criminais. Como exemplo destas últimas, podem-se citar as varas
cíveis ou criminais de comarcas de médio porte.
Dentre as matérias que são numericamente mais expressivas,
196

no primeiro grau do juízo estadual, destacam-se os temas de Direito


Civil, especialmente os atinentes ao Direito de Família (CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019), cuja natureza inclui questões
albergadas pela Lei 11.340/2006.
Em sendo a matéria violência doméstica da competência
da Justiça Estadual, importa mencionar que, das 9.627 unidades
judiciárias do juízo estadual, apenas 131 atendem, exclusivamente,
ao tema da violência doméstica. Estes juizados detêm competência
cível e criminal, para o processamento, julgamento e execução das
causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar
contra a mulher, em conformidade com o disposto no artigo 14
da Lei 11.340/20065. O gráfico extraído do Relatório Justiça em
números retrata a situação de desvantagem numérica na qual os
juízos especializados se encontram dentro do contexto do Poder
Judiciário em âmbito nacional:

Gráfico 1 – Unidades judiciárias de 1º grau da Justiça


Estadual, por competência

Fonte: Conselho Nacional de Justiça (2019, p. 165).


197

O desempenho do Poder Judiciário no país é analisado pelo


Conselho Nacional de Justiça, em vários aspectos, dentre os quais o
referente à taxa de congestionamento. Trata-se de um indicador que

mede o percentual de processos que ficaram represados sem


solução, comparativamente ao total tramitado no período
de um ano. Quanto maior o índice, maior a dificuldade
do tribunal em lidar com seu estoque de processos.
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019, p. 78).

Portanto, a relação entre os processos iniciados e finalizados


no ano-base traduz a capacidade de resolução das demandas.
Quanto maior o número de casos solucionados no ano-base, menor
será a taxa de congestionamento. As situações que permanecem
pendentes de solução final, de um ano para o outro, incrementam
a taxa de congestionamento e revelam a incapacidade de absorção
da demanda. Obviamente, nem todos os processos podem ser
solucionados e baixados no mesmo ano, seja em razão da sua
complexidade, dos prazos legais a serem observados, do momento
do ingresso, ou da sua natureza, como ocorre com as execuções
criminais. O grande gargalo dos tribunais do país, com relação à
taxa de congestionamento, está no processo de execução.6 Este
constitui o nó górdio a ser desmembrado para que se experimente
uma justiça mais célere em todos os seus aspetos.
Embora as varas que atendem exclusivamente à violência
doméstica apresentem uma das menores taxas de congestionamento
(67%), se comparados aos aferidos nas varas exclusivamente
cíveis ou criminais (70% e 78%, respectivamente), segundo o
relatório Justiça em Números 2019, percebe-se que muito há que
ser feito, pelo Poder Judiciário, no âmbito da proteção da mulher
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019).
198

Gráfico 2 – Taxa de congestionamento nas varas exclusivas,


por tipo de competência

Fonte: Conselho Nacional de Justiça (2019, p. 166).

Da análise dos dados mencionado exsurge a conclusão de


que, umas das justificativas para a baixa resolução das demandas
relacionadas à violência doméstica contra as mulheres está
relacionada à escassez de varas que tratem exclusivamente da
matéria. Embora exista o incentivo de especialização das varas,
grande parte dos feitos atinentes à violência doméstica, como já
visto, tramitam, ou em juízos únicos (varas judiciais), ou em juízos
criminais.
Precisamente 63% do acervo dos feitos relativos à violência
doméstica encontra-se em vara não exclusiva/especializada. Trata-
se de um percentual expressivo se somarmos ao fato de que, segundo
o Relatório Justiça em Números de 2019, 69,2% das comarcas
brasileiras são providas com apenas uma vara judicial (CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019).
E, quando não afeitos a uma vara exclusiva, os procedimentos
atinentes à violência doméstica tramitam nos juízos criminais,
conforme estabelecido pelo artigo 33 da Lei Maria da Penha.7 Nessa
hipótese experimenta-se um alargamento da competência originária
daqueles juízos, uma vez que passam a conhecer e julgar as causas
decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a
mulher, tanto no âmbito criminal quanto cível.
199

As vantagens da especialização das varas da violência


doméstica foram expressamente reconhecidas pelo legislador.
O artigo 29, da Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006 dispõe que
os juizados da violência doméstica e familiar contra a mulher
poderão contar com estrutura diferenciada, qual seja, com uma
equipe de atendimento multidisciplinar, integrada por profissionais
especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde. A essas
equipes atribui-se a missão de fornecer subsídios ao magistrado,
ao Ministério Público e à defensoria, seja mediante laudos ou
verbalmente, para que as decisões a serem tomadas atentem às
necessidades e interesses dos envolvidos no conflito. São também da
responsabilidade das equipes multidisciplinares o desenvolvimento
dos trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e demais
medidas voltadas para atender, em especial, à ofendida, ao agressor,
aos familiares e, em especial, às crianças e adolescentes que
forem, por algum motivo, afetados pelo conflito. Ainda, cabe aos
profissionais que compõem as equipes multidisciplinares indicarem
qual a especialidade ou natureza da intervenção necessária, no caso
sub judice, para, concretamente, reduzir a violência.
O desempenho das varas especializadas é destacado nos
Tribunais de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT),
Tribunal de Justiça de Roraima (TJRO), Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Norte (TJRN) e Tribunal de Justiça do Amapá, nos
quais mais de 80% dos processos atinentes à violência doméstica
estão em unidades destinadas a julgar exclusivamente a matéria.
Merecem destaque o TJAP e TJDFT por apresentarem taxas de
congestionamento inferiores a 50%. Ainda,

As varas exclusivas dos Tribunais de Justiça de São Paulo


e do Ceará abarcam, respectivamente, 52% e 56% do
total de processos de violência doméstica em tramitação e
apresentam os maiores quantitativos de processos baixados
e em tramitação por unidade judiciária, com 8.346 casos
pendentes por vara e 11.721 processos baixados por vara.
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019, p.169.
Grifo nosso).

No Estado do Rio Grande do Sul, apenas 9% dos feitos


200

relativos à violência doméstica praticada contra a mulher tramitam


em varas que atendem exclusivamente à matéria e a taxa de
congestionamento é da ordem de 61,1% (CONSELHO NACIONAL
DE JUSTIÇA, 2019). Existem varas que atendem exclusivamente
ao tema nas comarcas de Porto Alegre (1º e 2º juizados), Canoas,
Caxias do Sul, Pelotas, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Rio Grande
e Santa Maria (RIO GRANDE DO SUL, 2020). Em Santa Cruz do
Sul, os feitos atinentes à violência doméstica praticada contra a
mulher é da competência da 2ª Vara Criminal.
A partir da perspectiva de que os feitos que versam sobre a
violência praticada contra a mulher, em nenhuma das comarcas que
fazem parte do CEJUSC Regional de Santa Cruz do Sul são atendidos
por juízos exclusivamente designadas para a matéria, entendeu-se
haver necessidade de desenvolver projetos que atentassem para as
necessidades das mulheres, com o objetivo de alavancar políticas
públicas que venham a, efetivamente, reduzir a violência doméstica.
Para tanto foram selecionadas mulheres, conhecedoras das
práticas restaurativas, cujo interesse era, notadamente, trabalhar
questões de gênero. Formou-se então, em parceria com o Projeto
Acadêmico do Grupo Gaia, da Unisc, em outubro de 2017, o
grupo Flor&Ser. A proposta inicial estava centrada na formação
e grupos reflexivos de gênero, que reunir-se-iam periodicamente
para a realização de círculos de autoconhecimento e círculos de
reconstrução do feminino.
Na intenção de formar os grupos reflexivos de mulheres
vítimas de violência doméstica, durante o ano de 2017, divulgou-se
o trabalho que estava sendo disponibilizado através de panfletos nas
dependências do foro, em especial no hall de entrada, elevadores
e espaços de circulação dos usuários dos serviços prestados pelo
Poder Judiciário. Também se disponibilizou material informativo
sobre a Justiça Restaurativa esclarecendo que ela visa pacificar
conflitos gerados por tensões de toda e qualquer natureza, inclusive
os que resultam em violência.
Em razão do reduzido número de mulheres que compareceram,
de forma voluntária, ao CEJUSC, para dividir suas experiências nos
círculos de construção de paz, as vítimas de violência doméstica
201

passaram a ser pessoalmente convidadas a se dirigir ao CEJUSC,


logo após participarem de qualquer uma das audiências previstas na
Lei 13.340/2006.
Conforme disposto na Lei 13.340/2006 existem pelo menos
três hipóteses legais que desafiam a designação de audiência nos
feitos relativos à Lei Maria da Penha: a audiência para os fins do
artigo 16 da mencionada lei,8 a audiência de Justificação e a de
Acolhimento.
Na audiência designada para os fins do artigo 16 da Lei
13.340, a vítima poderá manter ou renunciar à representação
criminal, quando ela será alertada sobre as consequências de sua
decisão e receberá informações quanto às etapas sucessivas do
processo judicial.
Segundo o Manual de Rotinas e Estruturação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, do Conselho
Nacional de Justiça (2018, p. 34), enquanto a audiência de
acolhimento permite a verificação quanto à conveniência e
cumprimento das medidas protetivas concedidas, a audiência de
Justificação

possibilita ao juiz verificar os requisitos autorizadores das


medidas protetivas postuladas. No curso da audiência, deve
o juiz apurar a presença de eventuais fatores de risco para
a análise sobre o deferimento ou indeferimento de medidas
protetivas, podendo utilizar instrumentos de avaliação de
risco e oitiva da equipe multidisciplinar, bem como realizar
encaminhamentos para a rede de proteção.

Importante referir que a participação em solenidades junto


ao Poder Judiciário, naturalmente, desperta ansiedade e tensão. No
caso das vítimas de violência doméstica, tais sentimentos podem
ser potencializados, pois implicam estar frente a frente com o seu
algoz. Ainda que seja facultado à vítima permanecer resguardada do
contato direto com o agressor, durante a solenidade, o fato de haver
a possibilidade de virem a se encontrar pode gerar sentimentos que
as fragilizam ainda mais. A tudo isso somam-se os naturais efeitos
devastadores que o conflito é capaz de gerar nas mulheres vítimas
202

de violência doméstica, inevitavelmente revisitados na forma


dos inúmeros questionamentos que serão feitos, possivelmente
pelo magistrado, ministério público e advogados, por ocasião da
audiência.
Levando em consideração todos os aspectos acima elencados
passou-se a realizar, em pareceria com o juízo da 2ª Vara Criminal
de Santa Cruz do Sul, um trabalho de acolhimento das vítimas de
violência doméstica que comparecem ao foro para participar das
audiências judiciais designadas para os fins da Lei 13.340/2006.
Surgiu então, em 2019, uma nova configuração do Grupo Flor&Ser,
que continua em desenvolvimento, através do Projeto “Escutatória”,
e que tem por objetivo proporcionar, em um ambiente acolhedor e
seguro, um espaço de escuta qualificada das vítimas de violência
doméstica. Neste novo formato, no período de janeiro a dezembro de
2019, foram escutadas 121 mulheres vítimas de violência doméstica.
No ano de 2020, em razão da pandemia causada pelo Coronavírus, o
foro de Santa Cruz do Sul deixou de atender ao público externo em
24 de maço, havendo o registro de escuta de 16 mulheres vítimas de
violência doméstica.
Finalizada a audiência, a vítima é encaminhada até uma
das salas do CEJUSC. Considerando que a imagem tem um valor
performativo no mundo contemporâneo, prepara-se a atmosfera em
que as vítimas de violência doméstica são recebidas com objetos
e/ou elementos que remetam ao universo feminino: tapetes, flores,
lenços, etc. Evita-se a utilização de mesas. As cadeiras são colocadas
em forma de círculo ou semicírculo para que a mulher se sinta
incluída e não marginalizada. Neste ambiente, que procura quebrar
a hostilidade do Foro, a vítima tem, a sua disposição, água, café,
chá, lenços, balas e biscoitos. Constrói-se assim, materialmente, um
espaço sereno e respeitoso no qual assegura-se a atenção plena às
inquietações das vítimas de violência doméstica que comparecem
ao foro de Santa Cruz do Sul.
O acolhimento é feito por uma ou duas mulheres, facilitadoras
de círculos de construção de paz, que dirigem à vítima perguntas
condutoras abertas, capazes de provocar a verbalização dos
sentimentos experimentados durante a audiência. Normalmente,
questiona-se unicamente: como foi a sua audiência? A mulher,
203

vítima de violência doméstica, tem então a oportunidade de expor


suas dificuldades, descrever os obstáculos enfrentados, discorrer
sobre as sensações experimentadas, as angústias e decepções que
fazem parte do seu universo.
Os princípios do Projeto “Escutatória” alinham-se com os
previstos no artigo 2º, da Resolução 225, do Conselho Nacional
de Justiça, que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça
Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências.
Merecem especial destaque a informalidade, a voluntariedade, a
imparcialidade, a participação, o empoderamento, a consensualidade,
a confidencialidade, a celeridade e a urbanidade.
É interessante referir que

escutar com qualidade é algo que se aprende. Depende de


alguma técnica e exercício, mas também, e principalmente,
de abertura e experimentação. É uma arte difícil de dominar
porque seus efeitos visíveis acontecem no outro em tempo
real e segundo as leis do improviso: o riso, a metamorfose
do humor, a mudança de atitude com relação a si mesmo,
ao mundo e aos outros. O escutador está interessado em
produzir efeitos no outro. (DUNKER, 2019, p. 25).

Entende-se por escuta ativa ou escuta plena aquela escuta


empática, que se realiza sem interrupções, na qual o ouvinte procura
compreender o que está sendo dito sem emitir julgamentos de valor
ou tecer comentários ou opiniões. O ouvinte deve ainda demonstrar,
de todas as formas que estão ao seu alcance, até mesmo por
linguagem corporal, que está prestando plena atenção ao locutor.
Empatia não pode ser compreendida como sinônimo de
simpatia. “A etimologia pode nos ajudar a entender melhor. A palavra
empatia deriva do grego e forma-se de em, ‘dentro de’ + pathos,
‘sofrimento, dor’, enquanto simpatia derivado prefixo sym (ou sin)
que significa ‘ao lado de’” (ZIMERMAN, 2005, p. 268). Portanto,
quando o ouvinte consegue se colocar no lugar do locutor, vestir a
sua pele e os seus sapatos e compartilhar das suas dores emocionais,
haverá empatia. Já quando o ouvinte é gentil, afável, agradável, mas
não consegue se colocar no lugar do locutor e se conectar com o que
204

ele comunica, não haverá empatia e sim simpatia.


A comunicação não verbal, ou pré-verbal, que não
deve passar despercebida ao ouvinte, segundo Zimerman
(1999) admite subdivisões em: paraverbal, gestural, corporal,
conductual, metaverbal, oniroide, transverbal e por meio de efeitos
contratrasnferenciais.
O autor esclarece que, por comunicação paraverbal entendem-
se as nuances das alternâncias do timbre de voz utilizada pelo locutor.
A partir da forma com que se utiliza a voz é possível compreender
os sentimentos envolvidos no discurso, especialmente no ritmo da
fala, intensidade e altura. A gestural é aquela revelada a partir da
postura, das contrações faciais, do riso, do choro. A conductual se
manifesta a partir da forma de aproximação do locutor, como ele
caminha, cumprimenta, sua postura. Já a metaverbal relaciona-se
às contradições entre os gestos e o discurso do locutor, enquanto
a oniroide relaciona-se a eventuais devaneios do ser humano. Por
fim, a transverbal é o acting ou performance e a contratransferência
se dá a partir dos sentimentos que o ouvinte desperta no locutor
(ZIMERMAN, 1999).
Todas essas formas de comunicação podem ser identificadas
nas práticas restaurativas, cujas raízes remontam às práticas
comunais. Desenvolvidas para trabalhar as mais dolorosas situações
de crime e violência em diferentes molduras, visando preservar
os laços comunitários, a Justiça Restaurativa pode ser identificada
também entre os povos originários da América Latina. Destaca-se
aqui a etnia tupi, que preserva sete formas distintas e complementares
de escuta. Para os tupis, dentro do universo de características
pessoais que distinguem uns dos outros, está o desenvolvimento de
uma dessas formas de escuta. Ei-las:

1. Ouvido direito (WaK’Mie): é um modo de escuta


associada ao masculino, não como gênero, mas como atitude
prospectiva, ativa e impulsiva.
2. Ouvido esquerdo (Kat’Mie): escuta associada à
energia feminina, tida como passiva, apreciativa ou sem
filtros, no sentido de maior acolhimento e abertura, pois
não seleciona ou dirige a fala do outro. É o ouvido de quem
205

gosta de ‘assuntar’
3. Ouvido terra: forma de escuta baseada no corpo e na
receptividade global, mais tátil e concreta do que a que se
pratica com os ouvidos. Percebe o ambiente com ênfase em
suas pequenas diferenças.
4. Ouvido água: é a escuta dos pescadores de afetos,
emoções e sentimentos. Ela flui como a água, ora formando
cascatas, ora em corredeiras intensas, ou ainda em vagarosa
morosidade e até mesmo formando lagoas ou poças
pantanosas.
5. Ouvido ar: é a escuta reflexiva ou filosófica, que nós
entendemos como demais curadores da alma. Disposta
a acolher aquilo que é mais reflexivo ou argumentativo
construindo cenários e futuros possíveis assim com histórias
imprevistas.
6. Ouvido fogo: é a escuta intuitiva ligada às narrativas
imagéticas. É uma forma de escuta que convida para a
ação, para a decisão, assim como para a solidariedade e
comunidade entre as pessoas em torno de uma história
ou de um sentido comum. Ela se faz valer de paisagens e
cenários sonoros que aguçam a curiosidade em busca das
possibilidades escondidas de uma determinada situação ou
pessoa.
7. Todos os ouvidos integrados: escuta ampla e totalmente
integrada, acessada por poucos, envolve coordenar os
sucessivos movimentos cooperativos e competitivos, em um
esforço simultâneo de acolher e transformar a situação pela
ação conjunta dos participantes. (DUNKER, 2019 p. 165).

Embora o objetivo do Projeto “Escutatória”, como já


mencionado, seja o de garantir um espaço seguro, de inclusão,
para as vítimas de violência doméstica refletirem sobre os eventos
que aconteceram nas suas vidas, os benefício da fala e a técnica
da livre associação foram e ainda são objeto de ampla investigação
psicanalítica e inspiraram autores como Freud, Lacan, M. Klein, etc.,
depois de ouvidas há uma perceptível mudança no estado emocional
dessas mulheres. Ademais, elas se deparam com um serviço que até
então não haviam experienciado e passam a se reconhecer enquanto
sujeitos de direitos, na medida em que seus lugares de fala são
respeitados.
206

Acredita-se que a escuta qualificada das mulheres, nos moldes


realizados através do Projeto “Escutatória”, constitui instrumento de
exercício da dignidade da pessoa humana das vítimas de violência
doméstica. Tendo em mente que, conforme Oliveira (2018, p. 132),

a dignidade da pessoa humana é muito mais que mero


recurso retórico, mas efetivo fundamento do sistema
protetivo de direitos humanos ao qual estão relacionados
diversos outros fundamentos que conferem sentido às
previsões dos documentos declaratórios de direitos humanos
e fundamentais.

A criação de uma consciência coletiva capaz de romper


com as violências que historicamente silenciam as mulheres, e em
especial as vítimas de violência doméstica, constitui múnus do qual
nenhum cidadão que acredite na democracia pode se furtar.

4 CONCLUSÃO
A violência contra a mulher é endêmica, desafiadora e
complexa. As deficiências de implementação da Lei Maria da Penha,
na sua plenitude, em especial no que diz respeito ao tratamento
diferenciado que o tema merece, no Poder Judiciário, restou
evidenciado a partir da análise do relatório Justiça em Números do
Conselho Nacional de Justiça, edição 2019. O mesmo registra que, até
dezembro de 2018, das 9.627 unidades judiciárias do juízo estadual,
apenas 131 haviam sido instaladas para atender, exclusivamente,
aos procedimentos relativos à violência doméstica. Ou seja, há uma
evidente escassez de juizados da violência doméstica no Brasil.
Isso significa que a maior parte dos feitos, que envolvem o tema,
tramitam em juízos que não dispõem da estrutura mínima prevista
em lei para atendimentos das vítimas de violência doméstica. A falta
de estrutura vai da ausência de espaços físicos a total inexistência
de equipes técnicas qualificadas, capazes de elaborar estudos que
podem subsidiar decisões judiciais nos expedientes instaurados em
razão da Lei Maria da Penha.
Por outro lado, o Centro Judiciário de Solução de Conflitos
e Cidadania de Santa Cruz do Sul vem se consolidando enquanto
207

genuíno espaço de desenvolvimento de projetos, voltados às vítimas


de violência doméstica, capaz de fomentar o pleno exercício da
cidadania dessas mulheres.
A experiência tem mostrado que, quando a vítima de violência
doméstica encontra um espaço de fala livre, no qual pode expressar
suas inquietações, uma vez que garantido o não julgamento,
ela exercita sua capacidade de percepção da sua realidade. A
consequência poderá fomentar a quebra do ciclo da violência e a
articulação do rumo que a sua vida pode tomar a partir de então.
A demonstração inequívoca de interesse pelas singularidades/
particularidades dessas mulheres está relacionada ao pleno respeito
ao princípio da dignidade da pessoa humana. Aliando-se a Oliveira
(2018, p. 132), tem-se ser

inequívoco que a dignidade da pessoa humana é o principal


norte de interpretação das normas de direitos humanos,
servindo também como a justificativa principal para a
criação de um sistema com tal natureza de proteção, seja
ele internacional, seja ele nacional. Em verdade, o sistema
nacional de proteção de direitos humanos ganha novos
rumos quando a Constituição Federal de 1988 traz a
dignidade humana como um de seus fundamentos.

É urgente que se criem cada vez mais espaços que respeitem


as singularidades que precisam ser consideradas, as dores, tristezas e
o desamparo das vítimas para podermos quebrar o ciclo da violência.

NOTAS

Doutoranda em direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC,


1

doutoranda em direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC,


coordenadora do grupo de estudos em Mediação da Escola Superior da Ma-
gistratura – AJURIS, juíza de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul.
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC,
2

com pós-doutoramento em Direito pela Universidade de Burgos - Espanha,


com bolsa CAPES. Professora da Graduação e da Pós-Graduação Lato Sensu
em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Professora do
Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado da UNISC.
208

Coordenadora do Grupo de Estudos Direito, Cidadania e Políticas Públicas


do PPGD da UNISC. Especialista em Direito Privado. Psicóloga com Espe-
cialização em Terapia Familiar. Membro do Núcleo de Estudos em Justiça
Restaurativa-NEJUR. Membro do Conselho Consultivo da Rede de Pesquisa
em Direitos Humanos e Políticas Públicas. Membro do Núcleo de Pesquisas
Migrações Internacionais e Pesquisa na Região Sul do Brasil - MIPESUL. In-
tegrante do Grupo de Trabalho em Apoio a Refugiados e Imigrantes (GTARI/
UNISC). Membro do Conselho Editorial de inúmeras revistas qualificadas
no Brasil e no exterior. Autora de livros e artigos em revistas especializadas.
ORCID:http://orcid.org/0000-0003-3841-2206 E-mail: [email protected]
O 15º Relatório Justiça em Números reúne informações dos 90 órgãos do Po-
3

der Judiciário, elencados no art. 92 da Constituição da República Federativa


do Brasil de 1988, excluídos o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Na-
cional de Justiça, que possuem relatórios à parte (CONSELHO NACIONAL
DE JUSTIÇA, 2019).
Unidade responsável pelo recebimento e pela sistematização das estatísticas
4

judiciárias nacionais.
Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,
5

órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser


criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados,
para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática
de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Em todos os segmentos de justiça, a taxa de congestionamento da fase de
6

execução supera a da fase de conhecimento, com uma diferença que chega a


23 pontos percentuais no total e que varia bastante por tribunal. Desconside-
radas as justiças Eleitoral e Militar Estadual, a maior diferença é de 56 pontos
percentuais, no TRT2. Para receber uma sentença, o processo leva, desde a
data de ingresso, o triplo de tempo na fase de execução (4 anos e 9 meses)
comparada à fase de conhecimento (1 ano e 6 meses). Esse dado é coerente
com o observado na taxa de congestionamento, 85% na fase de execução e
62% na fase de conhecimento. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA,
2019).
Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e
7

Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências


cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de
violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do
Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente. Pará-
grafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para
o processo e o julgamento das causas referidas no caput.
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendi-
8

da de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante


o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do
recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
209

REFERÊNCIAS

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http://www.inf.ufpr.br/urban/2019-1_205_e_220/205e220_Ler_
ver_para_complementar/RubemAlves__Escutat%C3%B3ria.pdf.
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números 2019. Brasília, 2019. Disponível em: https://www.cnj.
jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_
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DUNKER, Christian. O palhaço e o psicanalista: como escutar os
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1996. (Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 21).
MANZINI-COVRE, Maria de Lourdes. O que é cidadania. São
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OLIVEIRA, Bruna Pinotti Garcia. Manual de direitos humanos:
volume único. 4. ed. rev. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2018.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Juizados de violência
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210

Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/novo/violencia-domestica/


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SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado e violência. [S. l.]:
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ZIMERMAN, David E. Fundamentos psicanalíticos: teoria,
técnica e clínica – uma abordagem didática. Porto Alegre: Artmed,
1999.
ZIMERMAN, David E. Psicanálise em perguntas e respostas:
verdades, mitos e tabus. Porto Alegre: Artmed, 2005.
JUSTIÇA RESTAURATIVA E A VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER

Cláudia Taís Siqueira Cagliari1

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A discriminação e a violência praticada contra as mulheres
acontecem em todo o mundo, sem distinção de classe social, cor,
religião, etc. Assim, existe a necessidade dessa discussão na atual
conjuntura brasileira.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) cumpre o respeitável
papel de afirmação dos direitos humanos, em atendimento a todas
as formas de discriminação contra a mulher, voltadas à prevenção, à
punição e à erradicação da violência doméstica.
Importa destacar que a Constituição Federal/88 determina a
criação de mecanismos para coibir esse tipo de crime no âmbito
das relações familiares, em favor dos preceitos fundamentais da
dignidade da pessoa humana e da igualdade.
Diversos dispositivos foram contemplados na nossa Carta
Magna no que tange ao princípio da igualdade entre homens e
mulheres em todos os campos da vida social (art. 5º, I), na vida
conjugal (art. 226, inciso 5º) e, ainda, a inserção do art. 226, inciso
8º, em que o Estado se compromete com as situação referente à
violência contra as mulheres.
A Lei Maria da Penha consagra um novo microssistema
jurídico de democratização do acesso à justiça e abordagem
sistêmica do problema, por meio de políticas públicas afirmativas
de prevenção e de mediação dos conflitos.
Não obstante de todos os avanços, da equiparação entre o
homem e a mulher realizada pela nossa Constituição Federal de
1988, a ideologia patriarcal ainda subsiste a todas essas conquistas.
A desigualdade sociocultural é uma das razões da discriminação
feminina e, especialmente, de sua dominação pelos homens que se
consideram como sendo seres superiores e mais fortes.
212

Assim, a Lei Maria da Penha é utilizada para coibir a prática


de violência contra as mulheres como um instrumento de efetivação
de direitos e garantias para elas.
E o instituto da Justiça Restaurativa pode ser um instrumento
eficaz de combate à violência doméstica contra mulher. É um meio
extrajudicial eficaz para prevenção de futuros casos de violência
doméstica, ou seja, é uma nova perspectiva no que diz respeito à
preservação e à efetivação dos direitos das mulheres.
O processo criminal não deve ser a única opção aos diversos
casos de violência contra a mulher. Por isso, a aplicabilidade da
Justiça Restaurativa, por meio da mediação de conflitos abrangendo
violência doméstica, com o intuito de destacar uma nova perspectiva
para o conflito que origina a violência.

2 A VIOLÊNCIA FAMILIAR/DOMÉSTICA E A LEI


MARIA DA PENHA
A violência contra a mulher no ambiente familiar geralmente
começa na infância, pois a menina aprende que se trata de um “ato
de correção”, acostumando-se a aceitar a violência como algo que
simplesmente faz parte das relações familiares. Assim, é muito
difícil conseguir identificar como violência aquilo que socialmente
não é reconhecido como tal (SABADELL, 2005, p. 236).

Ninguém duvida que a violência sofrida pela mulher não


é exclusivamente de responsabilidade do agressor. A
sociedade ainda cultiva valores que incentivam a violência,
o que impõe a necessidade de se tomar consciência de que
a culpa é de todos. O fundamento é cultural e decorre da
desigualdade no exercício do poder e que leva a uma relação
dominante e dominado. Essas posturas acabam sendo
referendadas pelo Estado. Daí o absoluto descaso de que
sempre foi alvo a violência doméstica. (DIAS, 2007, p. 15-
16).

A distinção entre os sexos sempre foi evidente, pois os


homens tinham a participação exclusiva no papel público, enquanto
213

as mulheres somente participavam do setor privado, não podendo


exercer nenhum papel além de cuidar o lar, filhos e outras questões
domésticas, já os homens tinham a obrigação de sustentar a família.
Essas características eram dadas em razão do indivíduo ser homem
ou ser mulher.
A conquista dos direitos civis das mulheres ocorre de forma
lenta; isso não causa nenhuma surpresa, haja vista que a aprovação
das leis sempre esteve em mãos masculinas e poucos foram os que
comungaram com os ideais femininos. Mulheres que sentiram na
carne a opressão verbalizam seus sentimentos:

Até há pouco, [...] as expressões ‘mulher’ e ‘cidadã’


afiguram-se como antônimas. Como somente em 1932
passou a existir o voto feminino e até 1962 as mulheres, ao
casarem, se tornavam relativamente capazes (eram assistidas
pelo marido para os atos da vida civil e necessitavam de sua
autorização para trabalhar), não se podia falar em cidadania
feminina. (DIAS, 2004, p. 65).

A atualidade histórica coloca em evidência, e de maneira


ardorosa, problemas do vasto conflito dos sexos, oculto há milênios.
Conflitos que têm suas origens nas primeiras formas de sociedade,
na evolução da conquista da cidadania que se procura encontrar e
analisar.
A evolução de um conceito amplo de Direitos Humanos
da mulher foi abalizada pela conquista da cidadania feminina no
que diz respeito à aquisição de direitos civis. O engajamento das
mulheres na economia do mundo, em condições de subalternidade,
impulsionava-as a pugnar pelo direito de influenciar nas decisões
deste mesmo mundo. Para que lhes fossem dadas tais prerrogativas,
tinham que possuir o direito básico de votar e serem votadas.
Historicamente, a conquista do direito ao sufrágio sofreu
percalços das mais diversas formas tanto de ideias como de culturas.
A igualdade perseguida era ameaçada pela visão masculina desse
valor discricionário.
Acerca dessa desigualdade entre os gêneros, Pessis e Matín
destacam que:
214

A desigualdade de gênero parece se estruturar em torno de


dois fatores originais que condicionarão, ideologicamente,
essa forma de organização social da espécie humana.
São estes os controles da informação técnica, ou seja, o
conhecimento, e a solidariedade masculina na apropriação
e gestão dessa informação. (PESSIS; MATÍN, 2005, p. 18).

Socialmente, considera-se que afetividade e sensibilidade


não são expressões da masculinidade, pois desde criança o homem
é educado para ser “o forte”, não chorar, não levar “desaforo pra
casa”, ou seja, não ser “mulherzinha”. Ele é educado para ser o
super-homem e não apenas humano. E essa equivocada consciência
masculina de poder é que lhes assegura o suposto direito de fazer
uso da força física e de sua superioridade corporal sobre a mulher e
os demais membros de sua família.
As discrepâncias construídas entre os gêneros são oriundas
em virtude das diferenças biológicas entre os sexos, entre o corpo
masculino e feminino, mas, especialmente, pelo princípio da visão
social, isto é, a diferença socialmente construída.
Indiscutivelmente, a diferença entre homens e mulheres não
pode ser pretexto para justificar as desigualdades.
Para Beauvoir (1967), apenas quando for extinta a escravidão
de uma parte da humanidade e todo o sistema de hipocrisia é que a
humanidade conseguirá se manifestar de forma autêntica e o casal
humano poderá descobrir sua forma verdadeira.
Nessa conjuntura, os relacionamentos

[...] oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como


determinar quando um se transforma no outro. Na maior
parte do tempo, esse dois avatares coabitam — embora em
diferentes níveis de consciência. No líquido cenário da vida
moderna, os relacionamentos talvez sejam os representantes
mais comuns, agudos, perturbadores e profundamente
sentidos da ambivalência. (BAUMAN, 2004, p. 08).

O comportamento do agressor tem como matriz a própria


estrutura social, que ensina o homem a discriminar a mulher. Por
215

mais que se tente dizer que se trata de desvios psicológicos, a


origem da violência doméstica é estrutural, está no próprio sistema
social que influi no sentido de estabelecer que o homem é superior à
mulher e que esta deve adotar uma postura de submissão e respeito
para com o homem-agressor (CAVALCANTI, 2007, p. 54-55).
A violência2 contra a mulher resulta do patriarcado
congregando a violência familiar, intrafamiliar e a violência
doméstica. É importante destacar que a expressão violência de
gênero3 é bastante ampla e abarca diferentes vítimas, como por
exemplo: mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos.
Também em relação ao termo gênero, Butler destaca:

Quando a cultura ‘relevante’ que ‘constrói’ o gênero é


compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis,
tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado e
tão fixo quanto na formulação de que a biologia é o destino.
Nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino.
(BUTLER, 2010, p. 26).

A feminilidade e a masculinidade são sopesadas como uma


elaboração social, na qual fixa posições de hierarquia, bem como
lugares de poder, de desigualdade e de discriminação. Ao se tratar de
gênero,4 põe-se em debate a relação de poder sobre a subjetividade
do feminino e do masculino, tendo efeitos sociais distintos a cada
um, pois para o homem é o poder econômico e o racional, enquanto
para a mulher é o poder afetivo (MARTÍN, 2005, p. 61).
A discriminação de gênero, produto de uma tradição patriarcal
que não conhece limites geográficos e culturais, é do conhecimento
de todos os brasileiros. A inferioridade da mulher5 em relação ao
homem foi por muito tempo considerada normal e resultante da
própria natureza das coisas.
No que se refere à violência de gênero, Teles preleciona que:

O conceito de violência de gênero deve ser entendido


como uma relação de poder de dominação do homem e
de submissão da mulher. Ele demonstra que os papéis
impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo
216

da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia,


induzem relações violentas entre os sexos e indica que a
prática desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas
sim do processo de socialização das pessoas. Ou seja, não
é a natureza a responsável pelos padrões e limites sociais
que determinam comportamentos agressivos aos homens e
dóceis e submissos às mulheres. Os costumes, a educação
e os meios de comunicação tratam de criar e preservar
estereótipos que reforçam a ideia de que o sexo masculino
tem o poder de controlar os desejos, as opiniões e a liberdade
de ir e vir das mulheres. (TELES, 2003, p. 18).

Não faltam justificativas para tratar as mulheres de forma


especial, perante um modelo conservador de sociedade que coloca
a mulher em situação de inferioridade, desigualdade e submissão.
Importante relembrar que historicamente a mulher foi
subjugada e explorada pelos homens que detinham o poder sobre
seus corpos e utilizando, muitas vezes, o uso da força física. E essa
ideologia patriarcal foi disseminada por todas as classes sociais.
De modo que se possa colocar em prática o desígnio da lei
que é assegurar à mulher o direito a sua integridade física, psíquica,
moral e patrimonial.

A dominação dos homens sobre as mulheres e do direito


masculino de acesso sexual regular a elas estão em questão
na formulação do pacto original. O Contrato social é uma
história de liberdade. O contrato original cria ambas, a
liberdade e a dominação. A liberdade do homem e a sujeição
da mulher derivam do contrato original e o sentido da
liberdade civil não pode ser compreendido sem a metade
perdida da história, que revela como o direito patriarcal dos
homens sobre as mulheres é criado pelo contrato. A liberdade
civil não é universal, é um atributo masculino e depende do
direito patriarcal. (PATERMAN, 1993, p. 16-17).

Os direitos inseridos na própria Carta Constitucional de 1988,


particularmente no seu art. 1º, inciso III, estabelecem como um dos
fundamentos de nossa República “a dignidade da pessoa humana”.
217

Constata-se que a cada ano, a violência tira milhares de vidas


no mundo todo e prejudica a vida de outras pessoas, não havendo
limites. E o legislador da Lei Maria da Penha relembrou que a
mulher, enquanto ser humano normal possui os mesmos direitos
reconhecidos em favor do homem.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) surge como resposta
da busca incansável pela garantia e pelo respeito à dignidade da
mulher agredida, se condizendo aos documentos internacionais de
proteção aos direitos das mulheres, e, em seu artigo 6º, afirmou,
taxativamente, que “a violência doméstica e familiar contra a
mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”
(CAVALCANTI, 2007, 79-80).
A lei supracitada deve ser subsidiada por delegacias de
atendimento e proteção às mulheres vítimas de violência,6 todavia,
ainda existem regiões que não possuem esse atendimento especial.
E isso acaba evidenciando um despreparo de alguns profissionais na
condução desse grave problema de violência.
Sobre o tema em pauta, é relevante ressalvar que a Lei
Maria da Penha existe com o escopo de reduzir as desigualdades de
gênero,7 pois a violência também implica em relações de dominação
e de submissão.
Muitos agressores isolam a mulher do meio social como
uma maneira de possuí-la somente para si. Impedem-na de ver a
família, os amigos ou, até mesmo, de buscar um trabalho. O objetivo
é aprisionar a mulher para que o seu único apoio seja o marido. Isso
não deixa de ser uma espécie de “arma de controle”, usada com um
único objetivo:

[...] para criar o desespero do abandono e da solidão,


tornando a mulher totalmente dependente da única pessoa
que lhe resta, o seu vitimizador. Durante algum tempo, ele
força-a a afastar-se não apenas das pessoas significativas em
sua vida, mas também da comunidade humana mais ampla,
à qual um dia ela já pertenceu. (MILLER, 1999, p. 65-66).

O princípio da igualdade veda qualquer tratamento desigual


218

entre as pessoas, tendo como escopo extinguir privilégios e


proporcionar garantia individual. Porém, essa igualdade deve ser
proporcional a situações e fatos desiguais, ou seja, tratar igualmente
os iguais e desigualmente os desiguais na proporção de suas
desigualdades.
Nesse contexto, Bobbio pontua que “uma desigualdade torna-
se um instrumento de igualdade pelo simples motivo de que corrige
uma desigualdade anterior: uma nova igualdade é o resultado da
equiparação de duas desigualdades” (BOBBIO, 1997, p. 32).
Portanto, uma lei, ao ser cumprida, deve oferecer tratamento
igualitário a todos (igualdade formal), e, com isso, deve ser genérica
e abstrata, tratando a todos sem que haja desfavorecimento ou
privilégios.
Conforme Cabral (2004, p. 61), “quando falamos em
igualdade material, subentende-se que as oportunidades devem ser
oferecidas de forma igualitária para todos os cidadãos”, porque é por
meio da igualdade material que o Estado busca garantir os direitos
dos cidadãos e proteger os seus direitos fundamentais.
Averigua-se que aconteceram avanços expressivos, tanto
no âmbito internacional quanto nacional, em relação às ações
afirmativas de direitos igualitários entre homens e mulheres.
Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos é que se
reconheceu o direito de todos os homens como livres e iguais em
dignidade e direitos. Foi a partir do conceito de direitos humanos,
que tinha como escopo a proteção da dignidade da pessoa humana,
com direitos de caráter universal, é que se pode destacar os Direitos
Humanos das Mulheres, na esfera internacional.
O Estado está juridicamente comprometido a proteger a
família e a cumprir sua função preventiva no que se refere à prática
da violência doméstica. Por isso deve ser chamado a redimensionar o
problema sob a ótica dos direitos humanos e fundamentais. Entende-
se que a Lei Maria da Penha é instituto legal que procura proteger
as mulheres, seus direitos humanos e fundamentais, já expressos na
Constituição Federal de 1988.
A dignidade humana é valor imperativo e fundamento da
219

República Federativa do Brasil e representa, juntamente com


os direitos fundamentais, a própria razão de ser da Constituição
Brasileira, pois o Estado é apenas meio para a promoção e defesa
do ser humano.
É mais que um princípio, é norma, regra, valor que não pode
ser esquecido em nenhuma hipótese. É irrenunciável e os direitos
humanos decorrem do reconhecimento da dignidade do ser humano,
e combater a violência doméstica é uma das formas de garantir a
dignidade da mulher.
Os homens e as mulheres possuem divergências no mundo
familiar, com essa inclusão da mulher na educação e em todas
as outras formas, pode-se ajudar que haja uma cooperação entre
eles no âmbito familiar, fazendo com que busquem soluções
conjuntamente. As mulheres agindo com poder maior e condição de
agente independente, inclui a correção das iniquidades que arruínam
a vida e o bem-estar das mulheres em comparação com a situação
dos homens.
O contexto atual remete a um processo de democratização,
com uma busca de novas relações familiares, nas quais se discutem os
papeis atribuídos, culturalmente, ao masculino e ao feminino. Vive-
se uma era contemporânea em que a cultura e as tradições passam
por transformações, principalmente, aquelas ligadas às entidades
familiares. O modelo de família hierárquica sob predominância do
poder patriarcal, deu lugar à democracia e à igualdade de direitos
(ARAÚJO, 2010, p. 9-10).
As famílias contemporâneas não consistem mais naqueles
modelos em que somente o homem trabalha fora e a mulher
exclusivamente cuida do lar. Diferentemente do século passado,
hoje não existe mais um modelo de família padronizado.
Atualmente, o poder das mulheres é uma característica central
para o desenvolvimento em vários países, incluindo a educação,
seus empregos e também as suas atitudes no âmbito familiar e da
sociedade, caracterizando-se um dos principais motivos da mudança
econômica e social no mundo de hoje.
Sobre o tema em pauta, é relevante observar que a realidade
demonstra que a mulher de nossos dias, de regra emancipada, em
220

diversas situações, não é reconhecida como sujeito. Destarte, a luta


das mulheres por reconhecimento ainda encontra espaço em nosso
tempo, não restando esvaziada.
Quiçá já tenhamos superado a fase de reivindicação8 de
normas que aboliram com a discriminação da mulher. Atualmente,
deseja-se passar para o terreno prático: as decisões judiciais, a
prática dos tribunais, a discriminação positiva para que, de fato, se
alcance a igualdade econômica, social, política, jurídica, trabalhista
e familiar com o homem.
A cidadania deve ser redefinida para que não se converta em
uma categoria egoísta e não solidária, que acabe induzindo à ruína
os direitos fundamentais. Os novos desafios da cidadania devem
ser encarados a partir de uma atitude de cooperação e solidariedade
“com o outro” e “não à custa de outro” ou “contra o outro”. A
cidadania exige uma atitude de todos.
Constata-se que a Lei Maria da Penha determina que as
relações pessoais independem de orientação sexual, demonstrando a
intenção estatal de não haver qualquer discriminação entre pessoas,
independente dessa característica. Estabelece que a violência
doméstica9 e familiar constitui uma das formas de violação dos
direitos humanos e abrangem todas as classes sociais. Nesse sentido,
afirma-se que essa lei também busca a igualdade de direitos, uma
das inquietações das lutas feministas.
Importante destacar que a criação da Lei da Lei Maria da
Penha foi um grande avanço no que diz respeito a lutar contra a
desigualdade e a busca de mudança nos comportamentos agressivos
e violentos enraizados na sociedade predominantemente machista.
A Maria da Penha é uma lei com diversas preocupações:

[...] revela a presença organizada das mulheres no embate


humano, social e politico por respeito. Sua presença está
marcada na ênfase a valorização e inclusão da vítima no
contexto do processo penal, na preocupação com prevenção,
proteção e assistência aos atores do conflito, no resguardo de
conquistas femininas, como espaço no mercado de trabalho.
(HERMANN, 2007, p. 19).
221

Cabe destacar, também, que a violência ocorre de diversas


formas e acontece nos diferentes espaços: público ou privado,
em uma cultura predominante machista, ou seja, a supremacia
masculina nas esferas públicas e privadas se traduz em consenso e
muitas vezes se estabelece por meio da violência.
Essa discriminação e violência contra as mulheres são sinais
da desigualdade histórica entre os homens e as mulheres, sendo
produto de uma construção sociocultural, num sistema de dominação
e poder naturalizado, reproduzido de geração para geração.
A inferioridade da mulher sempre foi reportada pelas
diferenças anatômicas e biológicas, desqualificando-a de forma
física, social e intelectual, e desse modo, fazendo com que ela se
sujeite, naturalmente, à submissão e à dependência.
De acordo com Bourdieu (1983, p. 21), o conceito de violência
simbólica é um espaço onde “manifestam relações de poder, o que
implica afirmar que ela se estrutura a partir da distribuição desigual
de um quantum social que determina a posição que um agente
específico ocupa em seu seio”.
Ressalta-se que a violência simbólica ocorre pelas formas e
linguagem, que não está somente nos casos evidentes de provocações
e de relações de dominação social, mas na imposição de certo
universo de sentido.
E o Estado tem o dever de delinear ações afirmativas
ou políticas públicas para o enfrentamento da desigualdade nas
relações de gênero na esfera doméstica, marcadas pela violência
da mulher, porque a mulher padece com a violência doméstica. E
essa violência doméstica é manifestada de várias maneiras: sexual,
física, psicológica, moral e patrimonial.
Para o combate à violência contra a mulher, foi sancionada
a Lei 11.304/06 (Lei Maria da Penha) que aborda com mais rigor
as infrações cometidas com violência contra a mulher no espaço
doméstico e familiar. E essa ação afirmativa implantou medidas
rigorosas para coibir esse tipo de violência, com reflexos no âmbito
civil e penal.
Essa lei é fundamental para coibir a violência doméstica,
222

pois historicamente as mulheres sofreram com a discriminação e a


desigualdade, tornando-se essencial uma ação afirmativa como essa
para proteger os direitos das mulheres. Todavia, nota-se que ainda
falta a instrumentalização e a sua efetividade.
Jamais deve ser esquecido o objetivo da lei, ou seja, a sua
função social diante da legislação brasileira, conforme Souza:

A função social da Lei Maria da Penha busca a real


igualdade de gênero no que diz respeito à necessidade de
pôr fim à violência doméstica, já que nesse campo é patente
a desigualdade existente entre os gêneros masculino e
feminino, pois as mulheres aparecem como a parte que sofre
as discriminações e violências em índices consideravelmente
maiores, não só pelas diferenças físicas, mas também,
culturais que envolvem o tema. (SOUZA, 2008. p. 37).

As ações afirmativas para as mulheres surgiram do


reconhecimento de um sofrimento discriminatório e grave
desse grupo social, cujos aspectos culturais foram arraigados e
naturalizaram a violência contra a mulher.

3 A APLICABILIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA


COMO INSTRUMENTO DE COMBATE À VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER
A nomenclatura Justiça Restaurativa é conferida a Albert
Eglash que, em 1975, escreveu um trabalho em que apontou três
respostas ao crime: a retributiva baseada na punição; a distributiva
voltada para a reeducação; e a restaurativa, tendo como embasamento
a reparação (JACCOUND, 2005. p. 165).
No atual sistema de justiça retributiva, o foco está no dano, o
que muitas vezes produz no infrator uma sensação de alienação em
relação à sociedade, fazendo ele próprio sentir-se vítima.
Distintas são as construções apresentadas ao conceito de
Justiça Restaurativa, podendo-se afirmar, inicialmente, que a
proposta está em desenvolvimento, e conforme afirma Sica (2007,
p 10) é “[...] mais do que uma teoria em formação, a Justiça
223

Restaurativa é uma prática, ou mais precisamente, um conjunto


de práticas em busca de uma teoria”. Em resumo, trata-se de uma
proposta que busca promover o diálogo e a solidariedade por meio
de programas de reconciliação.
A autora Jaccound (2005, p. 169), reconhecendo a pluralidade
de objetivos e aspirações da Justiça Restaurativa, acaba por
definir que “[...] é uma aproximação que privilegia toda a forma
de ação, individual ou coletiva, visando corrigir as consequências
vivenciadas por ocasião de uma infração, a resolução de um conflito
ou a reconciliação das partes ligadas a este.”
Konzen sustenta que, para definir Justiça Restaurativa, os
autores têm em comum a afirmação de valores como referência
teórica para a compreensão do proceder pelo sistema da Justiça
Restaurativa.

A proposta está focada em priorizar os aspectos que


dêem ênfase aos processos deliberativos ao invés do
preenchimento da expectativa por um resultado a partir de
possibilidades predefinidas. Tudo porque pelo proceder da
Justiça Restaurativa é a deliberação dos interessados que
determina o que a restauratividade significa em um contexto
específico. (KONZEN, 2007, p. 80).

Um dos conceitos mais relevantes de Justiça Restaurativa é


o do advogado norte-americano Howard Zehr (2008), considerado
um dos fundadores e um dos principais teóricos sobre Justiça
Restaurativa, destacando-se a sua obra “Trocando as Lentes”.
O autor estudou uma compreensão particularizada sobre
os fundamentos da Justiça Restaurativa que descreve da seguinte
forma: “O crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele
cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima,
o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam
reparação, reconciliação e segurança” (ZEHR, 2008, p. 170-171).
Em outros termos, “[...] a justiça restaurativa é o processo
por meio do qual todas as partes com interesse em uma particular
situação problemática encontram-se para resolver coletivamente
como lidar com as consequências do fato (crime, ofensa, conflito) e
224

suas implicações futuras” (SICA, 2007, p. 12).


Destarte, o objetivo da Justiça Restaurativa é a reformulação
da maneira com que os conflitos são solucionados, tanto
individualmente quanto perante o grupo social, a partir de instâncias
informais de julgamentos como a família, a escola ou o trabalho, ou
seja, em todos os ambientes dos quais somos participantes.
Com relação à natureza conceitual do significado de
comunidade (accountability)10 e à potencialização do papel da
vítima, para os programas de Justiça Restaurativa mais ancestrais,
entende-se por comunidade de relação (community of concern) da
vítima e do ofensor, como também de uma forma mais extensa, o
lugar em que ocorreu o crime (SICA, 2007, p. 14).
Conforme esclarece Sica (2007, p. 13), ao intensificar a
participação da comunidade, esta passa a participar das políticas de
reparação e fortalecimento do “sentimento” de segurança coletivo,
assim como pode ser ator social de um percurso de paz, fundada
sobre ações reparadoras as consequências do delito.
A partir desses procedimentos restaurativos já implementados
em diversos países, pode-se afirmar que a prática da Justiça
Restaurativa é formada por valores fundamentais que a distingue de
outras abordagens de justiça para resolver os conflitos. Os valores
das práticas restaurativas são aqueles considerados essenciais aos
relacionamentos: participação, respeito, honestidade, humildade,
interconexão, responsabilidade, empoderamento e esperança11 (
MARSHALL, C; BOYACK, J; BOWEN, H, 2005, p. 271-273).
Em relação ao atual panorama brasileiro sobre os casos de
violência doméstica contra a mulher, a justiça Restaurativa é um
instrumento de combate a esse tipo de violência.
O seu procedimento restaurativo estimula o encontro
consensual e voluntário, de configuração informal, das partes em
casos de violência (ofensor, vítima, familiares, amigos e comunidade)
que são orientados por um facilitador ou um coordenador, a incidirem
sobre o problema e, assim, construírem possíveis soluções.
O objetivo da Justiça Restaurativa não se encontra no delito,
mas no conflito advindo do delito.
225

A justiça Restaurativa tem como desígnio o equilíbrio nas


relações sociais, consequentemente, as necessidades das partes,
assim como possibilitar a participação da comunidade, para
restabelecimento dos laços entre vítima-agressor e do mesmo
modo para que o agressor tenha a possibilidade de se restaurar na
sociedade, tendo uma convivência social digna.
Por meio extrajudicial, objetiva-se que as partes envolvidas
restaurem a convivência prejudicada, de forma voluntária e
produtiva, ou seja, a recuperação do indivíduo, pois, são auxiliadas
por um terceiro imparcial e com credibilidade para a solução da lide.
Assim, quando ocorre a violência doméstica surge a
necessidade de buscar outros meios alternativos ao sistema penal
para a solução do litígio entre o agressor e vítima, e, dessa forma,
haverá uma reparação ao dano causado à vítima.
E a justiça restaurativa tem a finalidade de possibilitar o
diálogo e aproximação entre as partes, em decorrência da violência
empregada no ambiente doméstico contra a mulher. Objetiva-se a
restauração das relações perdidas, com a resolução dos conflitos.
Para que isso ocorra, é necessário a colaboração da comunidade
para construção de redes sociais, para a obtenção da função social
da justiça restaurativa.
Por outro lado, a Justiça Restaurativa também faz com que o
agressor faça uma reflexão de todos os seus erros, atitudes e expõe
todas as consequências à vítima, aos filhos, à família, e também
à comunidade. O terceiro imparcial e investido de credibilidade
auxiliará para que as partes voluntariamente encontrem uma solução
adequada e justa para o caso.
Portanto, a Justiça Restaurativa é um meio extrajudicial que
tem por fim a obtenção da pacificação social. É meio alternativo
e complementar para a solução dos litígios entre agressor-vítima,
especialmente nos casos de violência doméstica e familiar. A Justiça
Restaurativa ocasiona a possibilidade de colocar agressor-vítima
frente a frente para que dialoguem e busquem uma solução adequada,
atendendo os interesses de ambas as partes. Afinal, pode consistir em
uma alternativa de resgaste do Processo Penal Democrático, bem
como consiste em importante ferramenta de emancipação feminina.
226

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A conquista pelos direitos das mulheres teve uma grande
evolução, todavia, ainda há muito para avançar. Importante destacar
que o ideal das mulheres não é tirar o espaço do homem na sociedade,
mas alcançar o seu próprio espaço.
Desse modo, o tema abordado é de extrema relevância social,
pois a realidade evidencia que a mulher de nossos dias, de regra
emancipada em diversas situações, não é reconhecida como sujeito,
apesar da sua luta por reconhecimento. Percebe-se que a dominação
masculina ainda persevera em diversos casos.
Com a criação da Lei 11.340/06, houve uma maior proteção
aos direitos das mulheres em situação de violência familiar e
doméstica, a qual elenca as mais diversas formas de violências
que podem ser praticadas contra elas, exclusivamente, no âmbito
doméstico e familiar.
Contudo, a lei também responsabilizou o Estado na
implantação de medidas que devem auxiliar as vítimas de violência
doméstica e familiar, para, assim, pôr em prática as exigências
abstratas descritas na lei. Observa-se que a várias cidades do país
não possuem locais apropriados para receber e proteger as mulheres,
em delegacias especializadas, conforme prescreve a lei.
Com o surgimento da Lei n. 11.340/06 houve uma maior
conscientização e contribuição para o enfrentamento da violência,
pois ela representa um instrumento jurídico fundamental para que
se possa enfrentar essa situação.
Assim, a Lei Maria da Penha pode ser considerada marco
histórico em relação à luta das mulheres em busca de direitos e
contra a discriminação, bem como contra violência cometidas contra
as mulheres, ou seja, houve um avanço na sociedade com o advento
da referida Lei Maria Penha.
Ademais, a intenção da lei é proteger a mulher vítima de
violência e, além disso, há muito para ser aprimorado, como no
que se refere à disponibilização de programas de prevenção para
as mulheres que se encontram nessas situações, dando maior
efetividade à lei.
227

A violência doméstica deixou de ser um problema “familiar”,


ou privado, para ser considerado um problema de saúde pública,
um problema social e muito grave, que gera preocupação dos
administradores públicos e de toda a sociedade.
Ela é consequência direta do aspecto cultural de nossa
sociedade machista e patriarcal, de poder punitivo e violento, como
forma de controle patriarcal. Repete-se em um círculo vicioso,
pois geralmente a mulher que é agredida e não tem coragem
para denunciar a violência, na infância também conviveu em um
ambiente doméstico onde pessoas de sua família sofreram violência.
Portanto, maiores esforços se fazem necessários para uma
educação em gênero, com a participação de todos, para que juntos
reelaborem papeis em condições iguais, na busca de uma sociedade
mais justa e igualitária.
E a Justiça Restaurativa também é um instrumento
restaurativo de combate à violência doméstica contra a mulher,
eficaz e um meio extrajudicial que tem por escopo a resolução dos
conflitos entre agressor-vítima e principalmente a ressocialização do
agressor, evitando futuros delitos.
Assim, diante desse cenário, é urgente a necessidade de se
estabelecer um novo paradigma que auxilie no sentido de destacar a
importância da construção de um ideal comum.

NOTAS

Doutora e Mestre pela Universidade de Santa Cruz do Sul – RS, UNISC.


1

Especialista em Direito Público pela Universidade Regional do Noroeste do


Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Professora Universitária. E-mail: claudiatca-
[email protected].
Os movimentos feministas tiveram repercussão no mundo inteiro. Mesmo
2

com muitos antifeminismos, as mulheres fizeram história e, atualmente, as


Leis vigentes possuem reflexos dos movimentos feministas da época. Talvez,
a maior marca dessas lutas é o dia 08 de março, destinado a homenagear as
mulheres do mundo inteiro, reconhecido como dia internacional da mulher.
Nessa data, no ano de 1857, numa indústria têxtil de Nova York, mulheres
protestaram as péssimas condições de trabalho à que estavam submetidas.
Em resposta, os patrões trancaram o prédio e atearam fogo, resultando na
morte de 129 mulheres, queimadas vivas.
228

A partir do ano de 1980, discussões sobre o assunto ganharam espaço. Pas-


3

sou-se a utilizar a terminologia “gênero” para diferenciar os papéis masculi-


nos e femininos construídos pela própria sociedade. O objetivo era esclarecer
que as desigualdades são o resultado de todo um processo histórico-cultural e
não determinadas pela diferença biológica do sexo. Essa discussão de gênero
fez entender que as diferenças sexuais superam a mera definição biológica.
Para compreender a questão da violência contra a mulher na sociedade con-
4

temporânea, é importante distinguir os conceitos de sexo e de gênero. Sexo


se refere às atribuições físicas e biológicas das pessoas. Diferente de gênero
que se refere às ideias culturalmente elaboradas em relação à feminilidade e
a masculinidade, discutindo aquilo que é próprio da mulher ou do homem.
Distinções estas, são importantes na luta e no reconhecimento dos direitos da
mulher, evidenciando equívocos em relação à feminilidade.
Friza-se que existe a violência sistêmica que é aquele tipo de violência invisí-
5

vel, hegemônica e extremamente catastrófica, pois a coerção ocorre por meio


das relações de dominação e exploração.
A prática da violência de gênero é transmitida de geração a geração, por
6

ambos os sexos. A sua prática é vista como algo natural, fazendo parte da
natureza humana. É uma das primeiras formas de acometimentos agressivos
que colocaram as pessoas em contato direto, das quais, aprenderam outras
condutas violentas. Passou a sociedade a legitimar esses comportamentos e,
atualmente, a violência contra a mulher é um problema em diversas esferas
da sociedade.
No decorrer da história feminista, o gênero começou a ser usado mais se-
7

riamente pelas feministas na segunda metade do século passado, como uma


maneira de referir-se à organização social das relações entre os sexos.
No decorrer da história feminista, o gênero começou a ser usado mais se-
8

riamente pelas feministas na segunda metade do século passado, como uma


maneira de referir-se à organização social das relações entre os sexos.
Tentar simplificar a relação entre homem e mulher em vítima e agressor, com
9

a finalidade de apontar causas ou fatores da violência contra a mulher, muitas


vezes, acaba por prejudicar a compreensão do problema. As relações sociais
foram construídas ao longo da história, formando indivíduos com culturas,
valores e princípios diferenciados, o que resulta numa dificuldade em romper
com a violência contra o feminino.
10
Para o autor Leonardo Sica (2007, p. 15), o termo accountability é de uso
recorrente, mas não encontra tradução exata para o português. No sentido
meramente literal, poderia ser traduzido por “responsabilidade” mesmo, o
que não corresponderia ao conteúdo que lhe é atribuído no contexto espe-
cífico, no qual pode ser equiparado a algo como “responsabilidade ativa”,
pois supõe que o autor deve reconhecer o dano causado à vítima por sua ação
e deve tomar passos ativos em prol de restaurar, emendar ou minimizar as
229

consequências, superando o caráter individualista ou de reprovação moral da


responsabilidade penal tradicional.
Marshall, Boyack e Bowen definem cada um dos valores da seguinte forma:
11

Participação: Os mais afetados pela transgressão – vítimas, infratores e suas


comunidades de interesse – devem ser, no processo, os principais oradores e
tomadores de decisão, ao invés de profissionais treinados representando os
interesses do Estado. Todos os presentes nas reuniões de justiça restaurativa
têm algo valioso para contribuir com as metas da reunião. Respeito: Todos
os seres humanos têm valor igual e inerente, independente de suas ações,
boas ou más, ou de sua raça, cultura, gênero, orientação sexual, idade, cre-
do e status social. Todos, portanto são dignos de respeito nos ambientes da
justiça restaurativa. O respeito mútuo gera confiança e boa fé entre os parti-
cipantes. Honestidade: A fala honesta é essencial para fazer-se justiça. Na
justiça restaurativa, a verdade produz mais que a elucidação dos fatos e o es-
tabelecimento da culpa dentro dos parâmetros estritamente legais; ela requer
que as pessoas falem aberta e honestamente sobre sua experiência relativa à
transgressão, seus sentimentos e responsabilidades morais. Humildade: A
justiça restaurativa aceita as falibilidades e a vulnerabilidade comuns a todos
os seres humanos. A humildade para reconhecer esta condição humana uni-
versal capacita vítimas e infratores a descobrir que eles têm mais em comum
como seres humanos frágeis e defeituosos do que os divide em vítima e in-
frator. A humildade também capacita aqueles que recomendam os processos
de justiça restaurativa a permitir a possibilidade de que consequências sem
intenções possam vir de suas intervenções. A empatia e os cuidados mútuos
são manifestações de humildade; Interconexão: Enquanto enfatiza a liberda-
de individual e a responsabilidade, a justiça restaurativa reconhece os laços
comunais que unem a vítima e o infrator. Ambos são membros valorosos da
sociedade, uma sociedade na qual todas as pessoas estão interligadas por
uma rede de relacionamentos. A sociedade compartilha a responsabilidade
por seus membros e pela existência de crimes, e há uma responsabilidade
compartilhada para ajudar a restaurar as vítimas e reintegrar os infratores.
Além disso, a vítima e o infrator são unidos por sua participação compar-
tilhada no evento criminal e, sob certos aspectos, eles detêm a chave para a
recuperação mútua. O caráter social do crime faz do processo comunitário
o cenário ideal para tratar as consequências (e as causas) da transgressão e
traçar um caminho restaurativo para frente. Responsabilidade: Quando uma
pessoa, deliberadamente causa um dano à outra, o infrator tem obrigação mo-
ral de aceitar a responsabilidade pelo ato e por atenuar as consequências. Os
infratores demonstram aceitação desta obrigação, expressando remorso por
suas ações, por meio da reparação dos prejuízos e talvez até buscando o per-
dão daqueles a quem eles trataram com desrespeito. Esta resposta do infrator
pode preparar o caminho para que ocorra a reconciliação; Empoderamento:
Todo ser humano requer um grau de autodeterminação e autonomia em suas
vidas. O crime rouba este poder das vítimas, já que outra pessoa exerceu
controle sobre elas sem seu consentimento. A Justiça restaurativa devolve
230

os poderes a estas vítimas, dando-lhes um papel ativo para determinar quais


são as suas necessidades e como estas devem ser satisfeitas. Isto também dá
poder aos infratores de responsabilizar-se por suas ofensas, fazer o possível
para remediar o dano que causaram, e iniciar um processo de reabilitação e
reintegração; Esperança: Não importa quão intenso tenha sido o delito, é
sempre possível para a comunidade responder, de maneira a emprestar forças
a quem está sofrendo, e isso promove a cura e a mudança. Porque não procu-
ra simplesmente penalizar ações criminais passadas, mas abordar as necessi-
dades presentes e equipar para a vida futura, a Justiça Restaurativa alimenta
esperanças – a esperança de cura para as vítimas, a esperança de mudança
para os infratores e a esperança de maior civilidade para a sociedade. (grifos
originais).

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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER:
JUSTIFICA-SE A INTERVENÇÃO ESTATAL EM
DISSONÂNCIA COM A VONTADE DA VÍTIMA?

Catiuce Ribas Barin1

1 INTRODUÇÃO
O fenômeno da violência doméstica, principalmente
contra as mulheres, é complexo e comum a diferentes sociedades,
ainda hoje. As estatísticas reveladas no âmbito nacional e pelos
organismos internacionais são preocupantes sobre o tema que, além
de multifacetado, somente é compreensível à luz de uma perspectiva
interdisciplinar. Mais do que um problema jurídico e criminológico,
apresenta-se como um problema social, econômico e cultural.
A busca por estratégias e medidas de atuação frente à
violência doméstica, e a preocupação em proteger importantes
direitos fundamentais e a dignidade humana das vítimas-mulheres,
têm feito com que Estados de Direito (como Brasil) adotem
posturas paternalistas e protecionistas, olvidando – e muitas vezes
contrariando – a vontade e a própria autonomia dessas vítimas. Tal
contexto estabelece peculiar tensão entre a necessidade de proteção e
o respeito à vontade e à autonomia das vítimas de violência doméstica,
e é daí que emerge a problemática: justifica-se a intervenção estatal
penal nos casos de violência doméstica contra a mulher, mesmo
dissonante de sua vontade? Como desdobramentos: a intervenção
contrária à vontade da vítima pode resultar outra violência? Ou
o acato à vontade da vítima pode implicar complacência com a
violência doméstica? São questões que não geram respostas singelas
e têm projeções dogmáticas interessantes.
Para o tratamento da problemática conformada naquelas
questões, limitada à violência doméstica contra a mulher,
traçaremos considerações sobre a intervenção do Estado em sede de
violência doméstica contra a mulher, começando pela verificação da
234

legitimidade e passando pelas espécies de intervenção (recortadas


em preventiva primária e a pós-conflitual).
Traçado breve panorama da intervenção estatal no âmbito da
violência doméstica contra a mulher, finalizaremos com o exame
específico da intervenção estatal em dissonância com a vontade da
vítima, refletindo sobre as razões pelas quais as mulheres desejam
desistir das representações criminais ou queixas-crime. Para
encerrar, abordaremos se a intervenção dissonante da vontade da
vítima pode resultar outra violência.

2 A INTERVENÇÃO ESTATAL NA VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA CONTRA A MULHER

2.1 Da legitimidade da intervenção estatal no âmbito da


violência doméstica
A necessidade e a legitimidade de o Estado intervir no
âmbito da violência doméstica eram temas controvertidos, pois, até
há poucas décadas, restringiam-se ao universo privado da família.2
Hodiernamente, entende-se que a violência doméstica viola os mais
básicos direitos individuais fundamentais3 consagrados nacional
e internacionalmente, repercutindo na qualidade de vida geral da
comunidade4 e exigindo a intervenção do Estado enquanto guardião
e promotor dos direitos fundamentais.
No atual cenário, a intervenção estatal no âmbito da violência
doméstica assenta-se em motivações de ordem internacional inseridas
nos diplomas de defesa e proteção dos direitos fundamentais, dentre
os quais a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra
as Mulheres, de 1967; a Convenção sobre a Eliminação de todas as
formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), de 1979;
as Recomendações do Comitê de Ministros do Conselho da Europa
R (85) 4, de 1985, R (90) 2, de 1990, e Rec (2002) 5;5 a Declaração
e Programa de Ação da Conferência Mundial sobre Direitos
Humanos, de 1993, sob a égide das Nações Unidas; a Declaração
para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, adotada pela
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU);
235

a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a


Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), de 1994;
a Declaração de Pequim e a Plataforma de Ação da IV Conferência
Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres (Pequim, 1995); e as
Iniciativas e Ações Futuras para a implementação da Declaração e
Plataforma de Ação de Pequim – 2000 (Pequim +5).
A intervenção do Estado brasileiro na questão da violência
doméstica é constitucionalmente imposta, encontrando fundamento
no artigo 226, 8º, da Constituição Federal de 1988.
O reconhecimento da necessidade da intervenção estatal não
está dissociado das mudanças no cenário internacional em relação
à temática, especialmente da afirmação dos direitos das mulheres.
Foi na década de 80 que leis voltadas mais especificamente à
violência contra a mulher começaram a ser publicadas. Em 1984,6 o
Brasil subscreveu, com reservas, a CEDAW (de 1979); e, em 1995,
ratificou a Convenção de Belém do Pará. Apesar disso, a proteção
da mulher continuava a ser deficitária, a ponto de ganhar destaque
nacional e internacional a história da brasileira Maria da Penha Maia
Fernandes, vítima duas vezes de tentativa de homicídio,7 em 1983,
por seu marido. Em razão dos crimes, ficou paraplégica. Os anos
se passaram e o Estado Brasileiro não responsabilizava o autor dos
crimes. Diante da repercussão da história, o Centro pela Justiça e
o Direito Internacional (CEJIL) e o Cômite Latino-Americano
e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM)
formalizaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos da OEA. Em 2001, o Brasil foi condenado pelo organismo
internacional por negligência e omissão frente à violência doméstica.
Ao país foram recomendadas, dentre outras medidas: a adoção de
políticas públicas voltadas à prevenção, punição e erradicação da
violência contra a mulher; e a simplificação dos procedimentos
judiciais penais, a fim de que fosse reduzido o tempo processual8.
O grande passo foi dado com a publicação da Lei nº
11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que deu cumprimento ao
estabelecido no artigo 226, 8º, da CF/88, às convenções e tratados
internacionais, e à recomendação da OEA decorrente da condenação
imposta ao Brasil.9 Até o advento dessa lei, os avanços legais foram
tímidos: a Lei nº 10.455/2002 criou medida cautelar, de natureza
236

penal, prevendo a possibilidade de o juiz determinar o afastamento


do agressor do lar conjugal nos casos de violência doméstica; e a
Lei nº 10.886/2004 acrescentou um subtipo à lesão corporal leve
decorrente de violência doméstica, majorando a pena mínima de três
para seis meses de detenção. Nenhuma dessas alterações modificou
o cenário de banalização da responsabilização criminal dos autores
de crimes praticados no âmbito doméstico ou familiar contra a
mulher,10 na medida em que a maioria deles (excluindo-se os casos
mais graves) era processada e julgada pelo rito da Lei nº 9.099/95,
que prevê vários mecanismos despenalizadores.11
Nesse cenário, criaram-se condições adequadas à aprovação
da Lei nº 11.340/2006, um microssistema que visa coibir e prevenir
a violência doméstica ou familiar contra a mulher. Considerada
uma das três melhores leis do mundo, na matéria, pelo Fundo de
Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher,12 trouxe
avanços significativos no trato da questão.
Na linha evolutiva do tratamento da violência doméstica
contra as mulheres, foi sancionada a Lei nº 13.104/15, denominada
“Lei do Feminicídio”, que estabeleceu o feminicídio como
circunstância qualificadora do homicídio, incorporando-o como
crime hediondo, além de ter previsto causa de aumento da pena.
Enfim, no panorama atual, as normativas constitucionais e
internacionais supramencionadas legitimam a intervenção estatal
no âmbito da violência doméstica no Brasil. Mas essa intervenção
não é unívoca, e sim com faces distintas, podendo se dar mediante
intervenção preventiva primária ou pós-conflitual.

2.2 A intervenção preventiva primária do Estado


A intervenção preventiva primária (pré-conflitual) do Estado
tem lugar antes da manifestação da violência doméstica; isto é, visa
a evitar que ela se concretize. Por isso, assume papel fundamental
no enfrentamento do problema, pois diz respeito ao domínio
privilegiado da educação, do esclarecimento e da sensibilização
para o respeito e à proteção dos direitos fundamentais, podendo
materializar-se de diferentes formas.
237

Das medidas que estão sendo implementadas pelo Estado,


podem ser destacadas a realização de campanhas nacionais contra a
violência doméstica dirigidas a públicos estratégicos; a dinamização
do papel das redes locais e sociais na prevenção e no combate à
violência doméstica; a elaboração e a divulgação de materiais
informativos e pedagógicos com ações de sensibilização dirigidas
à comunidade educativa;13 a promoção de práticas que contribuam
para a melhor articulação entre o sistema de justiça e as instituições
de proteção à vítima; e a disseminação do projeto de teleassistência
a vítimas de violência doméstica para todo o território nacional.
Medidas relevantes também podem ser implementadas
no âmbito social, como o acolhimento das vítimas de violência
doméstica em situação de emergência e a facilitação do acesso à
habitação para elas. Ainda no campo de proteção das vítimas, pode-
se ampliar a utilização da vigilância eletrônica, dos programas de
teleassistência a vítimas e das medidas de controle penal com foco
no agressor.
Por um lado, houve progressiva conscientização pública e
política no sentido de prevenir e combater a violência doméstica, o
que levou ao esforço para aumentar a ajuda institucional às mulheres
nessa situação,14 com a criação de casas de abrigo, estruturas de
atendimento, formação e qualificação de profissionais que intervêm
junto às vítimas. Por outro, não obstante tudo isso, os indicadores de
violência revelam que as medidas até então adotadas não têm sido
suficientes ao enfrentamento do problema da violência doméstica e
familiar contra a mulher. O Estado está falhando na sua intervenção
primária, assim como as instâncias informais de controle.
Nesse cenário, é premente sejam incrementados os meios de
informação, sensibilização e intervenção precoce,15 sem descurar
da complexidade do fenômeno e da necessidade da abordagem
interdisciplinar – com atuação conjunta dos vários segmentos
públicos e privados. Isso porque, sem dúvida, o foco principal do
Estado deve ser a intervenção primária, mediante o aperfeiçoamento
das medidas e das estratégias de prevenção (por excelência)
da violência doméstica, sem prescindir do apoio das instâncias
informais de controle. Já a intervenção pós-conflitual deve ter papel
secundário, residual, na medida em que comumente implica na
238

atuação do Direito Penal – que, é cediço, não se pode despir de sua


condição de ultima ratio.

2.3 A intervenção pós-conflitual: a resposta penal reforçada


A intervenção pós-conflitual (ou secundária) ocorre após
a verificação do ato violento e almeja evitar sua repetição ou
perpetuação, possuindo caráter remediativo ou repressivo da
violência (não exclusivamente preventivo). A resposta estatal ao ato
de violência doméstica pode ser efetivada de diferentes formas.16
Delimitaremos nossa análise à resposta penal, hoje reforçada em
consonância com as normativas internacionais.17
No tratamento da resposta do sistema penal, a Lei nº
11.340/2006 é de referência obrigatória, pois representa um regime
jurídico integrado e articulado de prevenção, proteção e assistência
às vítimas de violência doméstica.

3 A INTERVENÇÃO PENAL NA VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA EM DISSONÂNCIA COM A VONTADE
DA MULHER-VÍTIMA

3.1 Por que as mulheres vítimas de violência querem desistir


das representações criminais ou queixas-crime?
Diversas são as razões que determinam que a mulher
maltratada queira desistir do processo penal contra o agressor,
abdicando da intervenção estatal penal. A mulher-vítima que
adota esse comportamento acaba, repetidas vezes, estereotipada
como irracional: alguém que não sabe o que quer, ou quer algo
incompreensível,18 ou que faz os profissionais do sistema frustrarem-
se e perderem tempo.
Entrementes, não soa coerente exigir que a mulher denuncie
e confie na intervenção penal quando o sistema não escuta e
corresponde às suas necessidades.
O processo penal não deve ser um fim em si mesmo, e a
mulher pode utilizá-lo como um meio a mais para modificar sua
239

situação – que pode se alterar com a mera ameaça do processo, não


havendo, assim, motivos para frustrações.19
Dentre os motivos pelos quais uma mulher deseja desistir
da representação criminal, destacamos, em primeiro lugar, a
permanência de laços de afetividade com o agressor. As relações
familiares – especialmente as conjugais – são, provavelmente,
as mais conflituosas e produtoras de violência na convivência
humana.20 O que as tornam diferenciadas são os laços e sentimentos
de afetividade existentes entre os envolvidos; laços, estes, difícieis
de romper. Pois a responsabilização penal representa – como regra
– o rompimento peremptório, ao passo que a desistência da queixa
pode significar uma chance de manutenção dos vínculos e uma nova
oportunidade ao agressor.
Um segundo fator passa pela ausência de apoio econômico. O
sistema penal pouco pode fazer em comparação com outros tipos de
intervenção estatal (como a assistência social). Contudo, ao insistir
que a mulher denuncie, transmite-se a mensagem de que o sistema
penal pode contribuir à solução de sua dependência econômica em
relação ao agressor (sendo este um motivo para suportar a agressão).
Na medida em que o sistema penal não atende a essa expectativa,
não se deve estranhar – e muito menos atribuir o estereótipo de
irracional – que a mulher recorra ao sistema penal por conta da
emergência e, depois, desista da representação criminal ou queixa.21
Noutro tanto, há se considerar, também, o medo de
represálias: o elevado risco às mulheres que recorrem ao sistema
penal é atestado por investigações empíricas.22 Ao perceber que a
mulher insurgiu-se contra o seu domínio, buscando o sistema penal,
o agressor ameaça-a para que desista da representação penal ou
queixa, ou, ainda, que moifique seu depoimento em juízo. Se assim
proceder, a atitude da mulher não é irracional, mas fruto dos limites
de o sistema garantir sua proteção.23 Logo, a despeito de as medidas
de proteção representarem uma tentativa de melhoria da situação,
deve-se ter em conta sua real efetividade, assumindo relevo os
meios de controle, especialmente os técnicos/eletrônicos, ainda não
efetivados na maioria do território nacional.
Outro fator determinante para a desistência das
representações/queixa é “a tradicional desconsideração da vítima”24
240

pelo sistema penal, que, até há pouco, valorava positivamente a


sua neutralização, segregando-a da sua posição natural junto ao
delinquente, de modo a solicitar para o Estado o monopólio da
reação penal.25 Com a afirmação da Victimologia,26 a figura da
vítima reclama protagonismo crescente – o “redescobrimento” da
vítima.27 Na atualidade, tenta-se a superação da neutralização da
vítima por meio de alterações legislativas que estabelecem o direito
à informação das vítimas, as quais, contudo, inúmeras vezes não
são cumpridas. Parece inequívoco que as informações precisas
(quanto à dinâmica do processo penal) e a efetiva participação no
processo influenciam positivamente para que a vítima persista com
a representação e colabore com o sistema.
E há outras causas que podem ser apontadas, como: a) a
desconfiança de muitos julgadores do sistema penal das declarações
da mulher – e essa incredulidade, percebida pela mulher, faz com
que ela questione a decisão de buscar ajuda no sistema penal;28 b) o
receio de sofrer rejeição da família e/ou o fato de se sentir socialmente
isolada;29 c) questões culturais – nomeadamente quando não foi a
mulher que deu ensejo à instauração do procedimento criminal; e d)
os filhos – o medo de que os filhos restem prejudicados econômica
ou psicologicamente pela privação da presença do pai, ou de perdê-
los – quando o agressor ameaça os próprios filhos ou que irá isolá-
los da mãe.30
Por fim, enfatizamos como motivo determinante da
desistência das representações o fato de o sistema penal não escutar
as mulheres, não atentar para o que realmente desejam. As vítimas
que recorrem ao sistema penal nem sempre buscam o castigo do
agressor, mas quiçá um elemento a mais nas diversas estratégias
possíveis para a melhora da situação.31 Na medida em que o sistema
penal atende apenas a lógica de impor castigos e desqualifica
qualquer outra demanda da vítima, não se deve surpreender se ela
entender que o sistema não a ajuda naquilo que pretende.
Ouvir a vítima! Essa é a questão que se coloca. Buscaremos,
na sequência, analisar o grau de disponibilidade que deve ter a vítima
sobre o processo, verificando até que ponto pode ser respeitada a sua
autonomia, ou se é conveniente o paternalismo e o protecionismo
estatal dissonante da sua vontade.
241

3.2 A proteção contra a vontade da vítima: justifica-se a


intervenção penal do Estado?
A intervenção estatal penal deve atender a vontade da vítima
ou a proteção estatal da mulher justifica a anulação de sua vontade?
Na seara da violência doméstica, a proteção da vítima – pelo sistema
penal – em dissonância com sua vontade pode se dar em diferentes
âmbitos: para início e prosseguimento do processo penal, na
detenção do agressor, no deferimento e/ou manutenção de medidas
de proteção, e nas penas fixadas ao agressor.32
Dentre as razões que parecem sustentar o não atendimento
da vontade da mulher, destacamos a concepção do caráter público
do Direito penal e sua indisponibilidade por parte da vítima. Ocorre
que, mais precisamente, a questão centra-se na vítima ter ou não
voz privilegiada no processo penal,33 o que é um tanto diferente.
As correntes que discordam da participação da vítima no processo
refletem a concepção clássica (retribucionista) do Direito penal,
para a qual existe diferenciação entre ilícito e delito: o primeiro
afeta direitos particulares (disponíveis), enquanto o segundo atinge
interesses públicos (indisponíveis); o ilícito admite como resposta
a reparação pelo dano causado, já o delito requer um castigo pelo
mal perpetrado. Com visão distinta, os simpatizantes do modelo de
justiça restaurativa entendem que as diferenças entre delito e outros
ilícitos não são tão acentuadas; assim, mesmo mantendo aspectos
do atual sistema penal público, admitem a maior participação da
vítima no processo penal. Embora não tratem a voz da vítima como
única, escutam-na, o que redunda numa maior democratização – e
consequente legitimação – do sistema penal.34
Como um segundo motivo, enfatizamos a imagem pública da
mulher maltratada, baseada nos casos mais dramáticos35: uma pessoa
cuja vida corre grave risco, exigindo-se a proteção mesmo contra sua
vontade. A isso se agrega a incompreensão do comportamento da
mulher violentada, que consubstancia um perfil quase irracional da
imagem pública, a ponto de transformar-se em rejeição. Com efeito,
desperta o sentimento de censura ou vingança contra a mulher, no
sentido de que devia ter pensado antes, pois agora não depende mais
da sua vontade.36
242

Num terceiro motivo, acrescentamos o receio de que,


outorgando à vítima o poder de estancar o processo, ela venha a
sofrer novas violências por parte do agressor, agora com o objetivo
de retirada da denúncia, agravando e intensificando o problema.
A reticência em ouvir a vontade da vítima se assenta,
também, no conflito de interesses criado entre as mulheres que
denunciam e o sistema penal. As campanhas publicitárias, os
políticos, os profissionais do sistema e a sociedade em geral
conclamam as mulheres a denunciarem as violências que sofrem
no âmbito doméstico. Converte-se, assim, o sistema penal na
primeira intervenção para todos os casos de violência doméstica,37
independentemente da gravidade e das necessidades. E surge o
paradoxo: de um lado, as vítimas são chamadas para que venham ao
sistema penal e denunciem; de outro, as mulheres são censuradas e
culpabilizadas pois, “por qualquer coisa”, recorrem ao sistema penal
– mormente quando querem desistir da representação ou queixa.38
Defendemos que a dinâmica precisa ser invertida. O Direito
penal tem de ser a última intervenção, e não a primeira. Para tanto,
importa melhor esclarecer acerca dos serviços de assistência social
e médica que as mulheres dispõem, das intervenções em relação ao
agressor e das medidas cíveis possíveis – para o término da relação
e eventual fixação de guarda, visitação e alimentos dos filhos.
É preciso atentar que o sistema penal trabalha com uma
única lógica: a mulher violentada deve se separar e querer a punição
do agressor; isto é, não está aberto a mulheres que perdoam, que
não querem se separar do parceiro ou que buscam proteção sem
a necessidade da representação penal.39 Essas possibilidades são
vistas pelo sistema como mostras de irracionalidade; daí que –
pretensamente – se justifica a atuação, mesmo desrespeitando
a vontade da mulher. Porém, olvida-se que, na resposta penal à
violência doméstica contra a mulher, deve-se ter como ponto de
partida o princípio basilar do reconhecimento de que as vítimas
possuem a condição de sujeitos ativos.40 Por essa série de fatores é
que muitos países41 hesitam na escolha do sistema mais vantajoso
para o tratamento da violência doméstica (e que mais atenda aos
anseios da mulher violentada): público ou semipúblico.
243

Dentre os argumentos favoráveis à opção pelo crime público


recorta-se que o próprio caráter “público” do delito reflete que é
um problema de toda a sociedade, contendo, por isso, importante
mensagem simbólica. Em complemento, a participação da vítima,
ainda que forçada, pode elevar o número de condenações42 e,
consequentemente, reduzir a reincidência do agressor – em relação
àquela mulher em específico e a novas vítimas.
Num outro rumo, há posicionamentos que apregoam cautela
quanto à possibilidade de intervir sem levar em consideração a
vontade da vítima ou mesmo em dissonância desta, inspirados no
temor de fazer mais mal do que bem,43 ou na preocupação com
a autonomia da mulher-vítima.44 Nesse sentido, os argumentos
favoráveis à desistência do processo penal enfatizam o maior
respeito à autonomia da mulher; a crença de que ela sabe qual é a
melhor maneira de proteger-se; a admissão de que reconsidere sua
situação futura (emocional, financeira e em relação aos filhos); e a
aceitação de sua ambivalência em relação ao sistema penal.45
Trazendo à tona o exemplo de Portugal, para além da opção
pelo crime público, no país há ainda outra amarra consistente na
normativa que possibilita os depoimentos para memória futura,
colhidos precocemente. Se, por um lado, a regra previne a vitimização
secundária,46 por outro, fulmina a possibilidade da recusa de depor
em audiência. Essa consequência pode ser positiva em algumas
hipóteses (medo de ameaças ou represálias do agressor), mas, em
outras, acaba por afrontar a vontade livre da vítima de não mais
desejar a responsabilização do agressor – o que alcançaria com a
recusa ao depoimento.
Sobre tal tema, de difícil solução, concordamos com Elena
Larrauri: não se deve criminalizar a decisão da mulher-vítima
que não comparece para depor em juízo, e deve-se descartar a
advertência da obrigação de depor sob pena de incorrer em delito,
ou, ainda, de que a mudança do depoimento em juízo faz incidir
ilícito penal (denunciação caluniosa). Esse tipo de “ameaça”, além
de ignorar a autonomia da mulher, traduz profunda incompreensão
sobre a situação da vítima e da complexidade das circunstâncias do
fenômeno da violência doméstica.
244

Mas, frisamos: apenas essas providências, que de algum


modo relativizam o caráter peremptório da persecução penal no
âmbito da violência doméstica por intermédio do crime público,
não são suficientes. O núcleo duro, deveras complexo, conforma a
aceitação da vontade da mulher, e até que ponto.
Se é verdade que a condenação do agressor com base no
depoimento da vítima serve, muitas vezes, para protegê-la, noutras,
complica-lhe ainda mais a vida. Assim, ao lado das reflexões
ulteriores, parece-nos que cumpre ao juiz, mediante a ponderação
da situação em concreto e sem criminalizar a mulher, optar por
continuar o processo (com uma condenação previsível) ou atender
aos anseios da mulher, interrompendo-o.47
É perceptível que a desconsideração da vontade da mulher
pelo ordenamento jurídico acaba gerando decisões inusitadas (quiçá
dissimuladas) nas hipóteses em que a mulher manifesta intenção
de desistência da representação. Na prática, por vezes “se aceita”
a desistência da representação, arquivando o procedimento com
fundamento de discutível respaldo legal; ou continua-se o processo,
condenando o agressor mesmo em situações em que a violência foi
superada; ou absolve-se por faltas de provas.48 Essa última situação
é paradoxal, pois o sistema penal não admite que a mulher desista
da representação, mas, em contrapartida, absolve o agressor por
falta de provas, culpabilizando a mulher como responsável pela
absolvição (diante da recusa de testemunhar) e minimizando o papel
que outras instituições devem ter na recolha de provas e manutenção
da acusação.49
Outro ponto em que a vontade da mulher é desconsiderada é o
que se atém à detenção do agressor, embora estudos criminológicos
apontem que o melhor preditor de violências futuras é a própria
opinião da mulher50: as mulheres que opinam pela detenção do
agressor são as que, de fato, têm um maior risco de serem novamente
violentadas, e as que não desejam a detenção são porque têm
menores possibilidades de nova vitimização.51
Enfim, no âmbito geral da violência doméstica, sustentamos
a necessidade de que a vontade – livre – da mulher reste mais e
melhor considerada, cabendo a ela decidir a via mais adequada para
245

modificar a situação e para sua proteção. Com efeito, ao sistema


penal cumpre ajudar a vítima no desenvolvimento de uma vida
segura, sem desqualificá-la por suas hesitações. Esse sistema não
pode ignorar que romper uma relação – mesmo que com um algoz
aos olhos externos – pode ensejar muito esforço pessoal, quer pela
permanência dos laços de afeto, quer pelos vínculos passados, quer
pelas incertezas do futuro, bem assim que o rompimento pode não
ser alcançado na primeira ou na segunda ocasião, por mais que os
profissionais envolvidos tenham atuado para a resolução do caso.52
Com outras palavras, o sistema penal não deve permanecer
indiferente à noção de que, se a violência doméstica resulta, em
tese, ofensa a direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana
da vítima, por vezes a imposição de uma ruptura na relação ou da
obrigação de insistir na persecução penal, ou, ainda, o advento de
uma condenação, podem trazer consequências ainda mais nefastas à
mulher. Não é razoável que o sistema penal, com a meta de proteger
direitos fundamentais da mulher, concretize, com sua resposta
“surda”, violação de direitos desse jaez num patamar ainda maior.
A intervenção estatal no âmbito da violência doméstica deve
empreender, precipuamente, duplo esforço: primeiro, assegurar
que a mulher possa externar sua vontade livre (isto é, alheia a
qualquer tipo de pressão, coação ou condicionante externo – como a
dependência econômica ou a relação com os filhos); segundo, ouvir
e considerar essa vontade.

3.3 A intervenção estatal dissonante da vontade da vítima


pode resultar outra violência?
Uma indagação desse jaez pode ser mal compreendida
mediante análise perfunctória, já que tudo o que o Estado pretende
ao lançar mão de mecanismo legal que ignore a vontade – contrária
ou omissa em relação à atuação estatal – da mulher vítima de
violência doméstica é exatamente sua cessação. No entanto, colher-
se apressadamente a resposta negativa pode significar olvidar a
complexidade que o fenômeno da violência doméstica contra a
mulher muitas vezes traz consigo.
246

Melhor ilustrando, o problema reside em contemplar, como


alguns sistemas penais o fazem, a peremptoriedade da intervenção
estatal nas hipóteses de violência doméstica contra a mulher. Assim
como similar problema pode ser identificado nos sistemas que
exigem uma manifestação singela de vontade por parte da vítima,
sem maior preocupação atinente à “liberdade” dessa vontade,
sobretudo quando ela é negativa. Enfim, como sói acontecer, optar-
se pelo “sempre” ou pelo “nunca”, em Direito ou na vida, é um
convite a uma decisão equivocada.
Noutras palavras, se o sistema estatal delega à vítima-mulher
a iniciativa de provocar a atuação (mormente a repressiva), sem
investigar se aquela vontade é livre de qualquer forma de coação,
pressão ou constrangimento, evidentemente abre a possibilidade de
perpetuar a violência. Ou seja, numa hipótese assim, o Estado acaba
por agir contra a vontade (a vontade livre) da mulher-vítima e, pior,
chancela a permanência da violência ou, não raro, seu agravamento.
No entanto, numa situação paradoxal, se o Estado prescinde de ouvir
a vontade da vítima e desencadeia a atuação penal, alheio a outras
medidas não penais potencialmente hábeis à cessação da violência
e à recuperação da relação doméstica, também permite a submissão
da vítima a uma nova forma de violência.
Enfim, num e noutro casos, se o Estado trata o fenômeno
da violência doméstica mediante o simplismo de desencadear ou
não a persecução penal contra o agressor, certamente a intervenção
dissonante da vontade da vítima pode, sim, resultar outra violência.
É o que acontece quando a violência doméstica é algo incipiente
e de pouca gravidade, que, por isso, desperta na mulher-vítima o
desinteresse pela resposta penal ao agressor: o procedimento penal
à revelia da manifestação da vítima pode agravar o desentendimento
do casal e conduzir à ruptura da relação, com consequências danosas
(sentimentais, emocionais ou econômicas) à mulher e à entidade
familiar como um todo. Por via inversa, acatar de todo a manifestação
negativa de provocação do aparato penal, sem preocupação com a
liberdade dessa manifestação, pode confinar a mulher num ciclo de
violência cada vez maior, até mesmo por criar para o agressor a
ideia de que novas violências (coação, ameaça ou agressões físicas)
prestam-se como instrumento de sua impunidade.
247

Cogitamos que evitar essa nova violência passa pela obrigação


de que o Estado investigue e apure a vontade livre da mulher-vítima,
considere-a e, então, adote as medidas mais adequadas à solução
do problema – mantendo o procedimento e a repressão penal
como ultima ratio. E, no exercício desse mister, suscitamos que a
intervenção estatal no âmbito da violência doméstica deve partir da
identificação do perfil da mulher-vítima e, na mesma medida, da
dimensão do contexto de violência em que ela está inserida.
Com efeito, nas hipóteses de violência doméstica menos
grave e incipiente, conjugada com a manifestação negativa ou
hesitante da vítima no que concerne à provocação do sistema
penal, pela percepção dela da possibilidade de restauração do
vínculo, condicionada à cessação da violência, parecem ter lugar,
por excelência, as medidas extrapenais, com escopo precípuo na
tentativa de superação do problema e de manutenção do vínculo –
reciclado – entre vítima e agressor. Ponderamos que, nesse caso,
ainda é possível ouvir a mulher e considerar que o foco restaurativo
– e menos repressivo – é potencialmente mais consonante com a
defesa dos direitos fundamentais e da dignidade humana da vítima
do que a resposta penal consubstanciada na responsabilização do
agressor.
Tratamento diferente, no entanto, merecem os casos de
violência doméstica mais contumaz e de violências graves,
ainda que aliados ao comportamento de negação ou hesitação da
vítima em desencadear o procedimento penal. Nessas ocasiões,
concebemos que as medidas extrapenais devem ter por finalidade o
despertar da vítima para sua dignidade, para a violação de direitos
que a relação com o agressor lhe resulta, para o restabelecimento
de sua liberdade. Isso tudo em concomitância com a persecução
penal contra ao agressor, independentemente daquela primeira voz
negativa ou hesitante da vítima, pois, diante da intensa violência,
tem-se por inviável concluir que sua preterição (isto é, a ausência
de consequência ao agressor), de alguma forma, pode respaldar a
defesa dos direitos fundamentais da vítima.
Conjecturamos que, com soluções assim, estar-se-á,
simultaneamente, ouvindo o que a mulher vítima de violência
doméstica manifesta livremente, protegendo seus reais interesses e
248

respeitando a condição de ultima ratio do Direito penal.

4 CONCLUSÃO
Sendo certo que o fenômeno – de âmbito mundial – da
violência doméstica contra a mulher é algo complexo, não
surpreende que a solução de um problema que é social, econômico
e cultural não se sintetize na singela responsabilização penal do
agressor. Exatamente por ser multifacetada, com ramificações tanto
jurídicas como criminológicas, a violência doméstica tem de ser
estudada por uma perspectiva interdisciplinar para que se atinja
um bom termo na defesa dos direitos fundamentais e da dignidade
humana das vítimas.
Esse contexto, por si só, revela nosso pensamento de que a
opção paternalista ou protecionista de um Direito penal desatento
à vontade e à autonomia da vítima da violência doméstica não só
é insuficiente para enfrentar efetivamente o problema e proteger
a mulher, como pode gerar a ela outra violência. E é importante
frisar que o desafio em identificar formas de controlar de modo
eficaz o fenômeno não pode ser adiado, seja pelos custos sociais,
econômicos, morais e políticos que traz às sociedades atuais,
seja porque sua perpetuação enseja contínua violação de direitos
fundamentais e da dignidade humana das mulheres.
Como meio inequivocamente profícuo de enfrentamento
da violência doméstica, sobressai-se a intervenção preventiva
primária do Estado, já que, como a denominação sugere, assume
papel eminentemente preventivo. De fato, não ter o problema,
evitado antes de sua concretização, é a melhor forma de combatê-
lo. Logo, a intervenção preventiva primária deve merecer máxima
atenção e investimento. Contudo, sabemos todos – assim informam
as estatísticas – que, diariamente, milhares de situações escapam à
prevenção, materializando-se em eventos de violência doméstica.
Para esses casos resta a intervenção pós-conflitual, com
a atuação do Direito penal, de escopo remediativo ou repressivo
da violência – mas que, pela atuação, acaba também agregando
um componente preventivo. Nesse quadro, ponderamos que,
249

especificamente no que toca à atuação do Direito penal, é de extrema


importância a investigação casuística da violência doméstica e de
até que ponto, naquele caso concreto, é possível superá-la com a
preservação ou restauração do vínculo entre vítima e agressor, ou se o
que resta é a repressão penal. Cenário em que, sem dúvida, sobreleva
assegurar à vítima plena liberdade para, nessa condição, manifestar
sua vontade – a qual necessariamente deve ser considerada na ação
interventiva.
Por isso, salvo nos casos de violência doméstica contumaz/
reiterada e de violências graves, não se deve perder de vista que muitas
vezes as mulheres não desejam a resposta penal e sim a mudança de
comportamento do agressor, e que muitas vezes esta é a solução
para a violência doméstica. Grifamos, contudo, ser imprescindível
assegurar à vítima sua plena liberdade para que se manifeste isenta
de qualquer tipo de pressão. Com essa conformação, visualizamos
possível a proteção da vítima (não estereotipada), ao mesmo tempo
em que se evita o paternalismo do Direito penal.
Não é à toa que muitas mulheres vítimas de violência querem
desistir da responsabilização penal do agressor: isso ocorre pela
percepção de que não é ouvida (sua manifestação desimporta) e
por antever que a repressão penal pouco ou nada adiantará como
solução à violência que sofre da pessoa com quem mantém vínculos
afetivos, familiares e/ou econômicos.
Por esses motivos é que enfatizamos ser imprescindível à
intervenção estatal na violência doméstica o ato de ouvir a vítima
e dar-lhe a consideração adequada. Enaltecemos a necessidade
de atentar à palavra – livre – da vítima como trilha para melhor
proteger seus direitos fundamentais. Esta é a principal conclusão
deste estudo. Até porque a intervenção dissonante da vontade da
vítima pode resultar uma outra violência.
É que o sistema estatal, seja quando destina à vítima o poder
supremo de provocar a intervenção sem investigar se sua vontade é
livre, seja quando ignora por completo essa vontade e já parte para
a intervenção, gera o risco real de uma outra violência à mulher,
quiçá com resultados ainda mais danosos do que os advindos com a
“primeira violência”.
250

Daí, em complemento àquela conclusão, aduzirmos a


existência de um dever – precípuo – do Estado, consistente em
elucidar a vontade livre da mulher vítima, bem assim em clarificar
a dimensão da violência em que ela está inserida, emanando dessa
primeira etapa a definição sobre as medidas mais adequadas à
solução da violência doméstica concreta. E, dentre tais medidas,
sem excluir a repressão penal, se necessária.
Com tal norte, ponderamos que nas hipóteses de violência
doméstica menos grave e incipiente deve-se investir, como regra,
nas medidas extrapenais tendentes à superação da violência. Já nas
violências contumazes e nas graves, as medidas extrapenais devem
encarregar-se de devolver à vítima sua dignidade, despertando-a à
liberdade, sem prejuízo da persecução penal contra ao agressor.
Nesse idealizado estado das coisas, a audiência à vontade
– livre – da vítima terá protagonismo na defesa dos seus direitos
fundamentais e de sua dignidade humana, ao passo que o Direito
penal ainda permanecerá como instrumento de combate à violência
doméstica, mas verdadeiramente como ultima ratio.

NOTAS

Promotora de Justiça do Ministério Público do RS. Mestre em Ciências Jurí-


1

dico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Auto-


ra da obra Violência Doméstica contra a Mulher: Programas de Intervenção
com Agressores e sua Eficácia como Resposta Penal (Ed. Juruá).
A “sociedade familiar” era vista como local de privacidade e liberdade, onde
2

a intromissão do Estado era ilegítima e destruidora. Cf. BELEZA, 1993, p.


366.
Como as integridades física e moral, a liberdade, a autodeterminação sexual
3

e, por vezes, a própria vida.


A violência gerada no ambiente doméstico não pode ser dissociada daquela
4

que se desenvolve no exterior, visto que os níveis de interpenetração entre


uma e outra são indissociáveis. Diversos estudos sugerem que o homem que
é violento no espaço doméstico tende também a ser no ambiente externo, as-
sim como, em sentido inverso, variáveis do exterior podem potencializar ou
eclodir a tendência para atos violentos no âmbito familiar. Vide BARNETT;
MILLER-PERRIN; PERRIN, 2011.
FERNANDES, 2008, p. 301.
5
251

6
A CEDAW foi plenamente aprovada pelo Congresso Nacional, em 1994, e
ratificada pelo Presidente da República (Decreto Legislativo nº 26/1994 e
Decreto nº 4.377/2002). Cf. ANGELIM, p. 23.
7
Na primeira vez, em 29 de maio de 1983, seu parceiro simulou um assalto e
desferiu um tiro contra Maria, deixando-a paraplégica. Dias depois, objeti-
vando consumar seu intento homicida, tentou eletrocutá-la por meio de uma
descarga elétrica, enquanto ela tomava banho. A história completa pode ser
lida na obra publicada pela própria vítima, vide PENHA, 2012.
8
Cf. DIAS, 2012, p. 16.
9
Cf. DIAS, 2012, p. 33.
10
Os dados revelados quando da apresentação do projeto da Lei nº 11.340/2006
eram impactantes: nos 10 anos de implementação dos JECrim, 90% dos ca-
sos eram arquivados ou conduzidos à transação penal; apenas 2% dos acusa-
dos por violência doméstica ou familiar eram condenados; de cada 100 brasi-
leiras assassinadas, 70 eram vítimas no âmbito das suas relações domésticas.
Vide FEGHALI, 2005, p. 18.
11
A Lei nº 9.099/95, conhecida como a Lei dos Juizados Especiais, disciplina,
na área criminal, o processamento e julgamento das infrações de “menor po-
tencial ofensivo”, assim consideradas as contravenções penais e os delitos
cujas penas não excedam dois anos. Dentre os institutos despenalizadores,
estão a transação penal, a suspensão condicional do processo e a composição
civil dos danos, como causas extintivas da punibilidade.
12
Cf. DIAS, 2012, p. 30.
13
Nesse sentido, destacamos a recente Lei Estadual nº 15.484, de 07 de julho de
2020, que, no âmbito do Rio Grande do Sul, Estabelece a promoção de ações
que visem à valorização de mulheres e meninas e a prevenção e combate à
violência contra as mulheres.
14
V. FARO, 2012p. 1; BELEZA, 2008, p. 282.
15
Acerca da prevenção através da intervenção precoce, v. MEDINA ARIZA,
2002, p. 204-205.
16
Dentre essas, a responsabilização na seara civil do agressor, e a ação de di-
vórcio, nos casos de violência doméstica praticada por cônjuge. FERREIRA,
2005, p. 76.
17
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) condenou alguns Esta-
dos vinculados à Convenção Europeia dos Direitos Humanos por não terem
adotado as medidas necessárias a assegurar um adequado nível de proteção
de quem vive em relação íntima com outrem (Ac. Opuz c. Turquia, Processo
nº 33401/02, de 09-06-2009, e arestos aí citados). LEITE, 2010, p. 50.
18
LARRAURI, 2008, p. 96.
252

19
LARRAURI, 2008, p. 97.
20
MUÑOZ CONDE; HASSEMER, 2011, p. 137.
21
Cf. LARRAURI, 2008, p. 102-103.
22
Vide LARRAURI, 2008, p. 103-104.
23
Cf. LARRAURI, 2008, p. 104.
24
LARRAURI, 2008, p. 107. Essa desconsideração também se dava pela Cri-
minologia Positivista, que polarizava a explicação do comportamento cri-
minoso em torno do delinquente, considerando a vítima um objeto neutro e
passivo, que nada fornece à gênese do fato criminal. Cf. GARCIA-PABLOS
DE MOLINA, 2009, p. 108.
25
Cf. GARCIA-PABLOS DE MOLINA, 2009, p. 79; HASSEMER, 1984, p.
92 e ss.
26
Aqui se refere mais especificamente à “Victimologia moderna, interaccio-
nista (Gutotta, Fattah, Beristáin, etc.), impulsionada por el movimiento inter-
nacional en favor de las víctimas y de los derechos humanos.” HASSEMER,
op. cit., p. 92. Para estudo aprofundado, vide HERRERA MORENO, 1996.
27
Cf. SANGRADOR apud GARCIA-PABLOS DE MOLINA, 2009, p. 109.
Atualmente, o estudo da vítima está recuperando o interesse que merece,
quer por parte da Criminologia, do sistema legal, da Política Criminal e da
Psicologia Social. Para estudo dos fatores que explicam esse fenômeno, vide
GARCIA-PABLOS DE MOLINA, 2009, p. 109-115.
28
Cf. LARRAURI, 2008, p. 117.
29
LARRAURI, 2008, p. 181.
30
Nesses casos, o sistema penal deve atentar para a realidade distinta das mu-
lheres com filhos, buscando dar respostas que diminuam os custos pessoais e
econômicos da separação, de modo a ajudá-las a se libertarem da situação de
violência a que estão submetidas. LARRAURI, 2008, p. 130-132.
31
Cf. FORD apud LARRAURI, 2008, p. 179.
32
Acerca da intervenção estatal contrária à vontade da(s) vítima(s), importa
referir os casos de Magatte Gueye e Valentín Salmerón Sánchez (Processos
apensos C-483/09 e C-1/10), v. Espanha. Submetidos os casos à apreciação
do Tribunal de Justiça de la Unión Europea, este declarou que os artigos
2.°, 3.° e 8.° da Decisão Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15/03/2001,
relativa ao estatuto da vítima em processo penal, devem ser interpretados no
sentido de que não se opõem a que uma sanção obrigatória de afastamento
com uma duração mínima, prevista pelo direito penal de um Estado Membro
a título de pena acessória, seja pronunciada contra os autores de violências
cometidas no seio da família, mesmo que as vítimas dessas violências con-
testem a aplicação de tal sanção. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/
253

LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX: 62009CJ0483:PT:NOT.
33
Cf. LARRAURI, 2008, p. 168.
34
Cf. LARRAURI, 2008, p. 168.
35
Para estudo mais aprofundado, vide BEST, 1999.
36
Cf. LARRAURI, 2008, p. 170-171.
37
Não é incomum que a expansão do Direito penal se apresente como uma es-
pécie de perversidade do aparato estatal, que buscaria no permanente recurso
a legislação penal uma (aparente) solução fácil aos problemas sociais, deslo-
cando ao plano simbólico o que deveria se resolver em nível instrumental, ou
seja, de proteção efetiva. Cf. SILVA SÁNCHEZ, 2011, p. 6-7.
38
Cf. LARRAURI, 2008, p. 171-172.
39
LARRAURI, 2008, p. 173-174.
40
Cf. MEDINA ARIZA, 2002, p. 75.
41
Essa discussão estabeleceu-se na Espanha - Cf. LARRAURI, 2008, p. 174; e
no Brasil, em relação ao crime de lesões corporais leves, sendo que o Supre-
mo Tribunal Federal entendeu que é público, ao julgar, em 2012, a Ação Di-
reta de Constitucionalidade 19-3/610 e Ação Direta de Inconstitucionalidade
4.424, 08-12-12, relator Ministro Marco Aurélio. DIAS, 2012, p. 88.
42
Esses argumentos são elencados por CORSILLES, p. 853-881, ao analisar a
adoção das denominadas no drop policies, as quais abarcam diversas políti-
cas jurisdicionais, que variam nos diferentes Estados americanos, mas visam
impedir que as mulheres-vítimas retirem as acusações depois de ter apresen-
tado a denúncia.
43
ARMERO apud LARRAURI, 2008, p. 177.
44
Cf. LARRAURI, 2008, p. 167-198; MEDINA ARIZA, 2002, p. 533-534.
45
LARRAURI, 2008, p. 179-180.
46
NEVES, 2010, p. 5.
47
Nesse sentido é o entendimento de LARRAURI, 2008, p. 181.
48
LARRAURI, 2008, p. 182-183.
49
Cf. HANNA, 1996, p. 1901-1905.
50
Cf. GONDOLF, 2002, p. 175-176.
51
LARRAURI, 2008, p. 184.
52
LARRAURI, 2008, p. 97-98.
254

REFERÊNCIAS

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Revista dos Tribunais, 2012.
FARO, Patrícia Ribeiro. Representações das vítimas de violência
doméstica sobre o sistema de justiça criminal. Dissertação
apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Fernando Pessoa, por Patrícia Ribeiro Faro, como
parte dos requisitos para obtenção do grau de mestre em psicologia
jurídica, sob orientação da Professora Doutora Ana Isabel Sani.
UNIVERSIDADE FERNANDO PESSOA, Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas, Porto, 2012.
FEGHALI, Jandira. Violência contra a mulher: um ponto final.
Projeto de Lei 4.559/2004. Brasília: Câmara dos Deputados, Centro
255

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FERREIRA, Maria Elisabete. Da intervenção do Estado na
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256

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de 2010, na Assembleia da República (Subcomissão da Igualdade).
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PENHA, Maria da. Sobrevivi... posso contar. 2.ed. Fortaleza-CE:
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SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. La expansión del Derecho penal:
Aspectos de la Política criminal en las sociedades postindustriales.
Montevideo-Buenos Aires: Editorial B de F, 2011.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMETIDA
CONTRA A MULHER: ASPECTOS HISTÓRICOS,
O ESPAÇO RESERVADO PARA A MULHER,
PATRIARCALISMO E INSTRUMENTOS LEGAIS
PREVISTOS NA ATUALIDADE PARA SUA
PROTEÇÃO

Caroline Fockink Ritt1


Eveline Bernardy2
1 INTRODUÇÃO
Historicamente a mulher sempre foi vista como um ser
submisso, devendo se sujeitar, inicialmente, às ordens de seu pai e,
após, de seu marido. Desse modo, criou-se a ilusão de que a mulher é
do sexo frágil e, por tal razão, necessitaria de proteção e orientação,
papel socialmente atribuído ao homem.
Assim, surge a violência contra a mulher que, praticada em
seu ambiente doméstico, tem como objetivo a punição e controle
da mulher que desobedecesse a seu marido, colocando-a em uma
situação de submissão em relação ao homem, sendo discriminada e
oprimida dentro de sua própria casa.
Desse modo, no presente estudo se fará uma abordagem sobre
os aspectos históricos da violência doméstica contra a mulher como
consequência de uma sociedade patriarcal que se perpetua até os
dias atuais, onde o homem é visto como provedor do lar, enquanto
à mulher fica reservado o espaço doméstico de cuidados com a casa
e os filhos.
Por fim, o presente artigo apresenta um histórico dos
principais instrumentos legais de proteção, criados para a mulher em
situação de violência doméstica, como forma de repressão e punição
ao agente que comete essa forma de violência.
258

2 A VIOLÊNCIA COMETIDA CONTRA A MULHER:


APONTAMENTOS HISTÓRICOS
A violência cometida contra a mulher é um fenômeno
histórico que dura milênios, pois a mulher era tida como um ser sem
expressão, uma pessoa que não possuía vontade própria dentro do
ambiente familiar. Ela não podia sequer expor o seu pensamento e
era obrigada a acatar ordens que, primeiramente, vinham de seu pai
e, após o casamento, de seu marido. Explica Mello (2007, p. 03-
04), que, historicamente, o homem possuía o direito assegurado pela
legislação de castigar a sua mulher. Observa-se que, na América
Colonial, mesmo após a independência americana, a legislação não
só protegia o marido que “disciplinasse” a sua mulher com o uso de
castigos físicos, como dava a ele, expressamente, esse direito.
Nos Estados Unidos, apesar de muitos esforços ocorridos
durante o séc. XIX, com o objetivo de diminuir as formas e a
intensidade dos castigos físicos que eram impostos legalmente às
mulheres por seus maridos, foi somente em 1871, e apenas nos
estados do Alabama e Massachussetts, que foi oficialmente extinto
o direito de os homens baterem nas mulheres, mas mesmo assim,
não havia previsão de punição para os que continuassem a cometer
essa violência (SOARES, 1999, p. 25).
Ensina Hirigoyen (2006, p. 10-11), que foi somente após a
década de 1970, com as iniciativas das feministas, que se começou a
estudar o impacto da violência conjugal entre as mulheres. Até então
se hesitava em intervir, sob pretexto de que se tratava de assunto
privado. Destaca ela que, atualmente, quando nos deparamos com
o noticiário dos jornais, tal pode levar a crer que se trata de um
fenômeno marginal, quando na realidade vivemos um verdadeiro
flagelo social que não está sendo levado em consideração, de forma
suficiente. Destaca que os números, que só levam em conta as
violências físicas que chegam ao Judiciário, são assustadores.
Destaca Sabadell (2005, p. 258), que a Organização Mundial
da Saúde, em seus estudos, indica que quase a metade das mulheres
vítimas de homicídio são assassinadas pelo marido ou namorado,
tanto pelo ex como também pelo atual. Da mesma forma, pesquisa
realizada pela Anistia Internacional, em cinquenta países, trouxe
259

dados que revelaram que uma em cada três mulheres foi vítima
de violência doméstica, como também obrigada a manter relações
sexuais ou submetida a outros tipos de violência.
A violência, em suas mais variadas formas de manifestação,
afeta a saúde e a vida. Também produz enfermidades, danos
psicológicos e pode provocar a morte. Tem como objetivo causar
dano a um organismo vivo, ou seja, é qualquer comportamento que
tem como objetivo o de causar dano a outrem.
Especificamente à violência contra a mulher e à violência
doméstica, há uma explicação suplementar para a sua grande
ocorrência no Brasil. Ela não está ligada somente à lógica da
pobreza, ou desigualdade social e cultural. Também está ligada
diretamente ao preconceito, à discriminação e ao abuso de poder
que possui o agressor com relação à sua vítima. A mulher, em razão
de suas peculiaridades, compleição física, idade, e dependência
econômica, está numa situação de vulnerabilidade na relação social
(LINTZ, 1987, p. 27,34,35).
Devido à relação de poder e à dominação que existe no
relacionamento afetivo, geralmente o agressor detém, em relação à
mulher que ele agride, a força física e o poder econômico, passando
a manipulá-la, violá-la e agredi-la psicologicamente, moralmente e
fisicamente.
A violência praticada contra a mulher possui aspectos
históricos determinados pela cultura machista que considera a
mulher como uma propriedade do homem, e que ocorre até nos dias
de hoje, mesmo diante de muitos avanços com relação a direitos das
mulheres, produzindo inúmeros danos em suas vítimas, consoante
abordado.
Percebe-se que, culturalmente, a formação da mulher
está atrelada à adoção de uma postura coadjuvante, e, por vezes,
inferiorizada, e que a gênese do homem, ao contrário, suscita
a superioridade. Assim, a formação dos indivíduos envolvidos
nesses conceitos negativos é influenciada pelo comportamento
discriminatório em relação ao gênero e dificulta a promoção da
igualdade pretendida como elemento intrínseco da dignidade da
pessoa humana. Ao tratar da desigualdade, Catless (1999) afirma
260

que o tratamento dispensado às mulheres depende substancialmente


das informações produzidas e assimiladas pelo grupo no qual
elas estejam inseridas. Se a educação formadora dos indivíduos
de determinado grupo não incitar a disseminação de conceitos
estereotipados e o tratamento depreciativo da mulher, a promoção
da igualdade e da justiça social será mais propícia.
A dominação masculina, para Bordieu (1999, p. 23), é
evidente na sociedade e, para estudá-la, são utilizados métodos que
pertencem a própria dominação masculina, porque ela influencia,
como algo natural e espontâneo, todas as interrelações, sem
precisar de justificação. E, apesar da equiparação entre o homem
e a mulher, feita pela Constituição Federal de 1988, bem como da
implementação de ações afirmativas, destinadas à eliminação das
formas de discriminação, a ideologia patriarcal subsiste a essas
conquistas.
Porto (2007, p.14), ensina que, com relação à desigualdade
dos gêneros, observa-se que, ao longo dos tempos, na história
ocidental, a criação inicial de formas estatais e jurídicas muito
pouco, ou praticamente nada, melhorou a condição feminina.
A mulher sempre ficou relegada a um segundo plano, preterida e
colocada numa situação de submissão, discriminação e opressão.
Basta lembrar períodos históricos da Antiguidade e Medieval
onde apenas o homem podia ser sujeito de direitos e detentor de
poderes. O mundo antigo girava predominantemente em torno da
comunidade, e não do indivíduo, cuja personalidade era facilmente
sacrificada em benefício da totalidade dos clãs, das cidades e dos
feudos. A mulher, nesse período, foi muito vitimizada, e não apenas
pelo homem, sendo o marido, seu pai ou seus irmãos, mas também
o era pelas religiões. Sobre a natureza feminina que era tida como o
portal dos pecados, foram inúmeras as vezes que pesaram acusações
de bruxaria e hermetismos heréticos que as levaram à tortura e à
fogueira.
A violência sofrida pela mulher não é exclusivamente de
responsabilidade do agressor. Ensina Dias que a sociedade ainda
cultiva valores que incentivam a violência, o que impõe a necessidade
de se tomar consciência de que a culpa é de todos. O fundamento é
cultural e decorre da desigualdade no exercício do poder e que leva
261

a uma relação dominante e dominado. Essas posturas acabam sendo


referendadas pelo Estado. Daí o absoluto descaso de que sempre foi
alvo a violência doméstica (DIAS, 2007, p. 15-16).
Com apoio da mais consistente literatura crítica sobre o
estudo da violência, é necessário reconhecer que vivemos numa
sociedade que possui valores patriarcais, na qual os homens usam a
violência para controlar as mulheres e submetê-las à sua dominação
(ANDRADE, 2003, p.117).
É fundamental compreender que a violência doméstica
também é consequência da sociedade patriarcal em que vivemos,
onde o espeço público foi, historicamente, destinado aos homens e o
privado às mulheres, ponto que passamos a abordar a seguir.

3 A CRIAÇÃO DO CONTEXTO DE INFERIORIDADE:


ESPAÇO PÚBLICO X ESPAÇO PRIVADO E O
PATRIARCADO
Adentrando ao estudo, mesmo que de forma breve, da
construção social e histórica que aconteceu na determinação do
espaço público para o homem e o privado para a mulher, destacam-
se os ensinamentos de Dias (2007, p.13), argumentando que as
evidências históricas permitem a compreensão de que ao homem,
de modo geral, sempre foi garantido o espaço público, ao tempo em
que o espaço da mulher se restringia aos limites da família e do lar,
ou seja, ao espaço privado. A consolidação dessa divisão ensejou a
formação de dois mundos, e, com relação a essas diferenças é que
foram concebidos papéis ditos como ideais a cada gênero: ele, o
homem, como provedor da família, e ela, a mulher, como cuidadora
do lar. São padrões de comportamento que foram instituídos de forma
tão distinta, que geram um verdadeiro código de honra. Assim,
a sociedade outorga ao macho um papel paternalista, exigindo da
“fêmea” uma postura de submissão. As mulheres acabam recebendo
uma educação diferenciada, pois necessitam ser mais controladas,
mais limitadas em suas aspirações e desejos.
Entende-se, assim, por que, quando há referência a estudos
sobre a posição das mulheres no direito ou na sociedade, ocorre a
divisão entre a esfera pública e a esfera privada. Argumenta-se que
262

há décadas a divisão entre espaço público e privado foi construída


com base em uma distinção hierárquica entre os gêneros masculino
e feminino. Ensina Sabadell (2005, p. 234-235), que o espaço de
atuação da mulher sempre foi prioritariamente o privado. Basta
recordar que o movimento feminino da segunda metade do século
XIX na Europa reivindicava a igualdade jurídica, econômica e
política entre os gêneros, exigindo que a mulher ‘saísse de casa’
e se liberasse da tutela do homem (pai, irmão, marido). Naquele
momento, o direito exercia uma espécie de tutela que colocava as
mulheres em posição subalterna. Lembra a referida autora que as
mulheres eram excluídas da vida política e do exercício de uma série
de profissões (sobretudo as de caráter liberal), possuíam acesso muito
limitado à instrução, sofriam restrições ao direito de administrar o
seu próprio patrimônio e, no âmbito do casamento, eram tidas como
uma espécie de acessório do homem. Tudo isso confinava a mulher
ao espaço privado. Por isso, na explicação de Dias (2007, p.17), o
tabu da virgindade, a restrição em suas aspirações ao exercício da
sexualidade e a sacralização da maternidade.
Argumenta Sabadell (2005, p. 235-264), que no âmbito das
relações privadas, a violência contra a mulher é um aspecto central
da cultura patriarcal. A violência doméstica é uma forma de violência
física e/ou psíquica, exercida pelos homens contra as mulheres no
âmbito das relações de intimidade e manifestando um poder de posse
de caráter patriarcal. Podemos pensar na violência doméstica como
uma espécie de castigo que objetiva condicionar o comportamento
das mulheres e demonstrar que não possuem o domínio de suas
próprias vidas. O problema não é a postura de certos homens,
mas uma cultura que influencia toda a sociedade. Assim define-se
o patriarcado: ele consiste em uma forma de relacionamento, de
comunicação entre os gêneros, caracterizada pela dominação do
gênero feminino pelo masculino. Indica o predomínio de valores
masculinos, fundamentados em relações de poder. O poder se exerce
através de complexos mecanismos de controle social que oprimem
e marginalizam as mulheres. A dominação do gênero feminino pelo
masculino costuma ser marcada (e garantida) pela violência física
e/ou psíquica em uma situação na qual as mulheres (e as crianças)
encontram-se na posição mais fraca, sendo desprovidas de meios e
reação efetivos.
263

Historicamente, relata-se que somente nos finais do século


XIX e no início do século XX ocorreram algumas mudanças que
permitiram alguma inclusão, mesmo que muito limitada, da mulher
na esfera pública. Tal ocorreu sem que houvesse contestação do poder
masculino e da predominância dos homens tanto no espaço público
como também no espaço privado. Explica a referida autora que a
divisão entre as esferas “pública e privada” trouxe dois problemas:
primeiro: de acontecer a exclusão da mulher da esfera pública, apesar
dos grandes progressos que ocorreram nas últimas décadas, através
da inclusão da mulher no mundo das atividades públicas, políticas
e econômicas. Segundo problema: o espaço privado é apresentado
como sendo o lugar onde o homem exerce sua liberdade, sem que
o Estado possa violar a sua privacidade, mas, é justamente, neste
espaço, no privado, onde as mulheres como também as crianças são
submetidas, de forma sistemática, a discriminações e a toda espécie
de violência, permanecendo “invisíveis” para a comunidade.
Antes da aprovação de qualquer instituto legal para a
prevenção e punição desses crimes que ocorrem no ambiente
doméstico e familiar, ou seja, no “espaço privado”, a realidade que se
apresentava à vítima desses crimes era, no máximo, de provocarem
comentários irônicos ou até a curiosidade mórbida da vizinhança.
Esses personagens até contribuíam para manter o pacto de silêncio
que protege vítimas e agressores de qualquer intervenção externa,
ajudando inclusive a perpetuar essas relações violentas e abusivas.
Era consenso social que “em briga de marido e mulher não se
mete a colher”. O que acontecia dentro da unidade domiciliar não
dizia respeito nem à polícia, à justiça, à vizinhança, à comunidade,
à sociedade ou mesmo ao resto da família. Se esses atos fossem
repetidos no espaço público com certeza causariam horror nos
transeuntes, com a pronta intervenção policial. Mas, até há pouco
tempo, esses atos eram considerados assuntos de “esfera privada”
(SOARES, 1999, p. 26-27).
Observa-se que, na esfera privada, nunca existiram garantias
jurídicas em relação à integridade física e psíquica da mulher, como
também ao livre exercício da sua sexualidade. A mulher quando
segue a pauta de comportamento da sociedade patriarcal é tratada
como a rainha do lar, mas, quando não obedece às referidas pautas
264

patriarcais, entram em cena os chamados mecanismos de correção:


que são os insultos, espancamentos, estupros e homicídios. Assim,
a violência entre cônjuges ou companheiros constitui uma das
faces da violência familiar que está relacionada com os valores
do mundo patriarcal. Muitas vezes a mulher fica numa posição de
bode expiatório, pois sobre seu corpo se canaliza grande parte da
violência que é produzida numa sociedade marcada pela cultura
patriarcal, como também por um modelo que é caracterizado pela
competitividade como também pelo aumento da agressividade.
Especificamente, quanto à igualdade de gêneros, sob o
impacto da atuação do movimento de mulheres, a Conferência dos
Direitos Humanos de Viena de 1993 (que tanto inspirou a Convenção
de Belém do Pará) redefiniu as fronteiras entre o espaço público e
a esfera privada, superando a divisão que até então caracterizava as
teorias clássicas do Direito. A partir dessa reconfiguração, os abusos
que têm lugar na esfera privada – como o estupro e a violência
doméstica – passam a ser interpretados como crimes contra os
direitos da pessoa humana (PORTO, p.17).
Na prática a violência familiar, e em relações conjugais, foi
o aspecto ao qual as referidas organizações acabaram outorgando
maior peso, passando elas a terem, com relação a esse assunto,
maior dedicação. Tal ocorre devido a seu caráter muito amplo e,
principalmente, à influência e à participação das mulheres. Então,
com relação à “violência na família”, conseguiu-se criar uma
preocupação pública, fazendo com que ocorresse a atenção de
múltiplos agentes, sociais, políticos e jurídicos, trazendo, com
relação a esse assunto, diversos discursos, como também diversas
propostas (SOARES, p. 66).
Ou seja, determinados problemas, que até pouco tempo eram
definidos como privados, como a violência sexual do lar (doméstica)
e no trabalho se converteram, mediante campanhas mobilizadas pelas
mulheres, em problemas públicos e alguns deles se converteram e
estão se convertendo em problemas penais (crimes), mediante forte
demanda (neo)criminalizadora (SABADELL, p. 83-236).
Muito bem argumenta Cavalcanti (2007, p. 49), que não é
possível tratar da mesma maneira um delito que é praticado por um
265

estranho e o mesmo delito praticado por alguém de convivência


muito próxima, como é o caso dos maridos, companheiros ou
namorados. A violência praticada por estranhos em poucos casos
voltará a acontecer. Na que é praticada por pessoa próxima, a
violência tende a se repetir, podendo acabar em agressões de maior
gravidade, como é o caso dos homicídios das mulheres que foram
inúmeras vezes ameaçadas ou espancadas antes de morrer.
Na concepção de Matos (2005, p.90), consolida-se o
entendimento segundo o qual os padrões de gênero sofreram
transformações consideráveis, principalmente ao longo das últimas
décadas. Os valores que fundamentam o arquétipo de sociedade
segmentada e hierarquizada, e o próprio formato das relações
interpessoais, sofreram interferências do processo de modernização
e se adaptaram, flexibilizando as concepções tradicionais dos papéis
femininos e masculinos. Apesar de possuírem historicamente uma
situação privilegiada de poder na sociedade brasileira, os homens
passaram a adotar condutas que, na opinião da autora, representariam
a “reinvenção da masculinidade”.

4 A SITUAÇÃO JURÍDICA DA MULHER: INSTRUMEN-


TOS DE PROTEÇÃO LEGAIS NA ATUALIDADE
Diante da criação de um contexto de inferioridade da
mulher a qual necessita de maior proteção, perpetuado ao longo
dos anos, nasce também a necessidade de criação de mecanismos
que possibilitem uma maior punição aos agressores. Nesse sentido,
acrescentou-se, no ano de 2002, o parágrafo único no artigo 69 da Lei
nº 9.099/1995 (Lei do Juizados Especiais Criminais), introduzindo
a medida cautelar de afastamento do agressor do lar conjugal, a ser
decretada pelo juízo, em caso de violência doméstica e familiar.
Seguindo-se o mesmo norte, em 2004 foi editada a Lei nº
10.886/04, a qual introduziu parágrafos específicos no artigo 129
do Código Penal, prevendo um aumento de pena quando o delito
de lesão corporal fosse praticado contra cônjuge ou companheiro,
ou quando o agente se aproveitava das relações domésticas ou de
coabitação.
266

Argumenta Dias (2007, p. 23-24) que as alterações


legislativas foram praticamente inócuas, ou seja, nenhuma dessas
mudanças “empolgou”. Explica que, como era considerado crime de
menor potencial ofensivo, o flagrante ficava dispensado se o autor
se comprometesse a comparecer no Juizado Especial Criminal.
Também era possível a transação penal, a concessão da suspensão
condicional da pena – sursis – a aplicação das penas restritivas de
direitos, e, se a lesão fosse considerada leve, a ação penal dependia de
representação, conforme artigo 88 da lei 9.099/95. Relata a referida
autora que, mesmo com a criação das Delegacias das Mulheres, que
resultou num aumento expressivo de registros policiais de lesões
corporais e ameaças, não se apresentava uma solução satisfatória
para o conflito, devido ao baixo índice de condenações.
Lembra Dias (2007, p. 24-25) que a justificativa dessa
realidade sempre foi a “preservação da família”. Ou seja, a mulher
era considerada propriedade do marido, sendo assegurado para ele
o direito de dispor do seu corpo, da sua saúde e até da sua vida.
Assim, as absolvições sistemáticas levadas a efeito para garantir
a harmonia familiar acabaram gerando efeito contrário, qual seja:
o de consagrar a impunidade e também condenaram a violência
doméstica á invisibilidade.
Avena (2017, p. 580), também explica que essas iniciativas
legais não foram suficientes para diminuir os índices de agressões,
praticadas contra a mulher em seu ambiente doméstico. Esse cenário
acabou fazendo com que o legislador fosse obrigado a adotar
providências mais eficazes no combate à violência doméstica e
familiar contra a mulher, as quais foram concretizadas pela Lei nº
11.340/2006.
Referida legislação, como destacado por Cavalcanti (2007,
p. 173), foi resultado de uma denúncia apresentada perante a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra o Estado
brasileiro por violação aos direitos previstos no Pacto de São José
da Costa Rica e na Convenção Interamericana para Prevenir Punir e
Erradicar a violência Contra a Mulher, pela injustificável demora na
responsabilização do agressor de Maria da Penha Maia Fernandes,
farmacêutica e professora universitária, a qual foi vítima, por duas
vezes, de tentativas de homicídio, praticadas por seu marido na época.
267

Vigorando a partir de 22 de setembro de 2006, a Lei Maria da


Penha, como ficou popularmente conhecida, cria mecanismos para
coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher,
considerando as disposições contidas na Constituição Federal, na
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência
contra a Mulher, na Convenção do Belém do Pará, bem como nos
demais tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
A Lei Maria da Penha estabelece que todo o caso de violência
doméstica e intrafamiliar é crime, deve ser apurado através de
inquérito policial e ser remetido ao Ministério Público. Esses crimes
são julgados nos Juizados Especializados de Violência Doméstica
contra a Mulher, criados a partir dessa legislação, ou, nas cidades em
que ainda não existem, nas Varas Criminais. A lei também tipifica
as situações de violência doméstica, proíbe a aplicação de penas
pecuniárias aos agressores, amplia a pena de um para até três anos de
prisão e determina o encaminhamento das mulheres em situação de
violência, assim como de seus dependentes, a programas e serviços
de proteção e de assistência social (CONSELHO NACIONAL DE
JUSTIÇA).
Com relação às principais inovações da Lei Maria da Penha,
pode-se apontar que ela tipifica e também define a violência
doméstica contra a mulher, estabelecendo como esta pode acontecer,
e que esta violência pode ser tanto na forma física, psicológica,
sexual, patrimonial e moral, também determina que esta violência
independe de sua orientação sexual (SOUZA, 2007, p. 44-53).
Tal norma, como ensina Habib (2016, p. 821), possui conteúdo
misto, ao passo em que traz questões pertinentes à legislação penal,
como por exemplo o procedimento a ser realizado pela autoridade
policial ao solicitar as medidas protetivas de urgência (artigo 12),
assim como trata de questões diretamente ligadas ao direito civil,
como as medidas de proteção patrimonial aos bens da sociedade
conjugal (artigo 24).
Frisa-se que, além da repressão aos atos de violência doméstica
e familiar, a legislação em comento traz elevada preocupação no que
se refere ao desenvolvimento de políticas públicas de prevenção que
objetivem a erradicação ou diminuição dos índices dessa forma de
268

violência. Assim, expõe em seu artigo 8º, que a prevenção se dará


mediante um conjunto articulado a ser exercido pela Administração
Pública direta, juntamente com ações não governamentais, de forma
que nenhum Órgão Público possa se eximir dessa responsabilidade,
mantendo constante diálogo para que as ações se complementem,
trazendo resultados cada vez mais eficazes (BRASIL, 2006).
Outro ponto que merece especial atenção na Lei Maria da
Penha diz respeito à implementação das Delegacias especializadas
no atendimento à mulher vítima de violência doméstica e familiar,
denominadas de DEAM em alguns lugares. Conforme destaca
Habib (2016, p. 832), o encaminhamento da mulher vítima de
violência doméstica e familiar à Delegacia especializada é de suma
importância, vez que garante um atendimento adequado, realizado
por pessoas devidamente capacitadas para essa finalidade, as quais
tomarão as devidas providências no que diz respeito a essa espécie de
delito. Ainda, nos locais em que não houver delegacia especializada,
deverá a vítima ser encaminhada à Delegacia comum.
Como argumentado por Lima (2017, p. 539), uma das
preocupações do legislador ao editar a Lei nº 11.340/06, repousa em
evitar que a lentidão apresentada no caso Maria da Penha voltasse
a ocorrer. Assim, tem-se a necessidade de criação de um órgão
especializado para os casos de violência doméstica e familiar contra
a mulher, o qual veio disposto em seu artigo 14º, sendo chamado de
Juizados Especializados na Violência Doméstica e Familiar.
Referido artigo, como bem salienta Avena (2017, p. 583),
possui competência mista, ou seja, atribuição para processamento
de causas cíveis e criminais, facilitando o acesso à Justiça a vítima
de violência doméstica, otimizando e dando maior celeridade aos
processos relacionados ao tema. Desse modo, no mesmo momento
em que se julga um delito de violência contra a mulher, praticam-se
atos de natureza civil, como a separação judicial por exemplo.
Ainda, segundo o doutrinador, importante destacar que a lei
previu regras de transição, contidas em seu artigo 33, o qual dispõe
que, enquanto não estruturados os Juizados da Violência Doméstica e
Familiar Contra a Mulher, a competência para processo e julgamento
deverá ser acumulada pelas varas criminais, garantindo-se direito de
preferência às causas que envolvam essa espécie de violência.
269

Apesar de receber a denominação de juizado, estabelece a Lei


em seu artigo 41, com a finalidade de sanar qualquer dúvida sobre o
tema, que aos crimes praticados com violência doméstica e familiar
contra a mulher, independentemente do quantum de pena previsto,
não poderão ser aplicadas as disposições da Lei nº 9.099/95. Tal
determinação, segundo Nucci (2014, p. 403), passa a desconsiderar
a agressão à mulher, praticada em ambiente doméstico ou familiar,
como infração de menor potencial ofensivo, garantindo ao agressor
uma punição mais severa.
Outro destaque a ser feito sobre a Lei Maria da Penha
diz respeito às medidas protetivas, as quais possuem caráter de
urgência, e têm por finalidade garantir a efetiva aplicação da
legislação especial. Tais medidas se dividem em três espécies: a)
Medidas protetivas de urgência relacionadas ao agressor, como por
exemplo o seu afastamento do lar; b) Medidas protetivas de urgência
relacionadas à ofendida, como a separação de corpos e; c) Medidas
de proteção ao patrimônio da ofendida, como a proibição temporária
de celebrar contratos de compra e venda, evitando, assim, que o
agressor se desfaça do patrimônio construído.
Não há como negar que a Lei nº 11.340/06 foi um marco
histórico na luta contra a violência doméstica e familiar contra
a mulher, mas referida legislação não é a única a tratar do tema.
Considerando os elevados índices de violência praticada contra a
mulher, cada vez mais se torna necessária a criação de leis que, em
conjunto com a Lei Maria da Penha, auxiliem na repressão de tal
agressão.
Sobre o tema, podemos destacar a criação da Lei nº 13.827/19,
a qual introduz o artigo 12-C na Lei Maria da Penha, permitindo,
sempre que se verifique a existência de um risco atual ou iminente
à vida ou integridade física da mulher em situação de violência
doméstica, a concessão de medidas protetivas de urgência pela
autoridade policial. Tal medida visa impedir a demora na concessão
das medidas aos municípios que não são sede de Comarca,
aumentando efetivamente a proteção da vítima.
Também, com os avanços tecnológicos, nasce também
a prática de delitos virtuais e, visando desencorajar o agressor
270

a praticar crimes cibernéticos, bem como punir aqueles que


descumprem a norma foi sancionada a Lei nº 12.737/12, a qual visa
a punição do agente que invade dispositivos informáticos mediante
violação indevida. Referida legislação ficou conhecida como Lei
Carolina Dieckmann, devido à repercussão do caso em que a atriz
teve seu computador invadido e fotos intimas divulgadas por meio
eletrônico.
Ainda, com a intenção de coibir a divulgação de material de
cunho pornográfico, muitas vezes expostos por ex-maridos ou ex-
namorados após o término não consensual do relacionamento, criou-
se a Lei nº 13.718/18, incluindo o artigo 218-C no Código Penal.
Tal dispositivo visa a proteção de todas as mulheres, independente
da forma de violência praticada. No entanto, prevê em seu §1º, um
aumento de pena se o caso for praticado por agente que mantém ou
tenha mantido relação intima de afeto com a vítima, com a finalidade
de vingança ou humilhação desta.
O Estado está juridicamente comprometido a proteger a
família e a cumprir sua função preventiva no que se refere à prática
da violência doméstica. Por isso deve ser chamado a redimensionar
o problema sob ótica dos direitos humanos e fundamentais. Entende-
se que a Lei Maria da Penha é instituto legal que procura proteger
as mulheres, seus direitos humanos e fundamentais, já expressos na
Constituição Federal de 1988.
Ensina Nucci (2006, p. 861), com relação às mulheres e
seus direitos humanos fundamentais que o art. 2º da Constituição
Federal estabelece que toda mulher goza dos direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, o que parece óbvio, pelo simples fato de
que a mulher é um ser humano. Os direitos humanos fundamentais
são voltados a qualquer pessoa e não somente às do sexo feminino.
Assim estabelece, claramente, a Constituição Federal: “os homens
e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição” (art. 5º, I). Além disso, há o disposto no art. 3º, IV:
“Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:[...] promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Portanto, a Constituição Federal já fez seu papel, igualando os
brasileiros perante a lei (art. 5º, caput) e os homens e mulheres em
271

direitos e obrigações (art. 5º, I), bem como o homem e a mulher na


relação conjugal (art. 226, §5º).
A dignidade humana é valor imperativo e fundamento da
República Federativa do Brasil e representa, juntamente com
os direitos fundamentais, a própria razão de ser da Constituição
Brasileira, pois o Estado é apenas meio para a promoção e defesa
do ser humano. É mais que um princípio, é norma, regra, valor que
não pode ser esquecido em nenhuma hipótese. É irrenunciável e os
direitos humanos decorrem do reconhecimento da dignidade do ser
humano, e combater a violência doméstica é uma das formas de
garantir a dignidade da mulher.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) surge como uma
resposta da busca incansável pela garantia e pelo respeito à dignidade
da mulher agredida, se enquadrando aos documentos internacionais
de proteção aos direitos das mulheres, e, em seu artigo 6º, afirmou,
taxativamente, que “a violência doméstica e familiar contra a
mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”
(CAVALCANTI, 2007, p. 79-80).
A luta pela erradicação da violência doméstica e familiar
contra a mulher está longe acabar e precisa cada vez mais de
mecanismos de repressão e proteção, para que assim, possamos
superar essa cultura, fazendo com que a mulher ganhe cada vez mais
respeito e espaço na sociedade.

5 CONCLUSÕES
A violência doméstica e familiar contra a mulher é fruto de
uma construção histórica, enraizada em nossa sociedade e justificada
pela superioridade na força física masculina e na fragilidade da
mulher. Tal conduta, na realidade, é fruto das sociedades patriarcais,
responsáveis por estabelecerem uma relação de dominação-
subordinação entre homens e mulheres, fazendo, assim, com que a
desigualdade de gênero seja um dos eixos estruturais da sociedade.
Nesse seguimento, tem-se que a luta pelo reconhecimento
de direitos, embora necessário, não é suficiente para romper a
estrutura social da violência. As conquistas de direitos, por outro
272

lado, desnaturalizam condutas opressoras, naturalizando outras


tidas como emancipatórias, ocasionando grande repercussão às
pautas trazidas pelos movimentos feministas.
No que concerne à legislação, importante destacar
a Constituição Federal de 1988 como um marco na luta pela
igualdade entre homens e mulheres. Assim, para que se cumprisse
com as disposições da carta magna, aliada aos demais tratados
internacionais ratificados pelo Brasil, bem como a luta feminina por
justiça fez surgir a Lei nº 11.340/06, a qual este ano completa seus
14 anos. Referida legislação é considerada um marco histórico na
luta feminina contra a violência doméstica, uma vez que representa
o reconhecimento, pelo Estado Brasileiro, do seu dever de intervir
na instituição familiar, promovendo os valores constitucionais por
ele firmados. Desse modo, é considerado um documento inédito, já
que reconhece a violência de gênero, em seu ambiente doméstico,
interferindo de forma significativa no poder patriarcal outorgado ao
homem em seu espaço privado, acabando por limitá-lo.
Portanto, além da luta feminina para o reconhecimento dos
seus direitos, para que haja o combate efetivo da violência doméstica,
faz-se necessária a superação dos valores patriarcais, fixados
em nossa sociedade através do tempo, devendo o Estado intervir
com políticas públicas de inclusão da mulher na esfera pública,
cumprindo seu dever constitucional na promoção da igualdade entre
homens e mulheres, pois somente com essa integração seremos
capazes de construir uma sociedade mais justa e voltada ao combate
da violência.

NOTAS

1 Caroline Fockink Ritt é doutora em direito e pós-doutora em Direitos Fun-


damentais na PUC – RS. Professora de Direito Penal no Curso de Direito da
UNISC. Coordenadora do Projeto de Extensão “Enfrentamento da Violência
Doméstica e Familiar: Direitos da Mulher Agredida”. E-mail: carolinefritt@
gmail.com
2 Eveline Bernardy é Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz
do Sul – RS. Foi bolsista do Projeto de Extensão “Enfrentamento da Violên-
cia Doméstica e Familiar: Direitos e Garantias Legais da Mulher Agredida”,
durante os anos de 2018, 2019 e 2020. E-mail: [email protected]
273

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275

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EPISTEMOLOGIA FEMINISTA E
SEGREGAÇÃO URBANA FEMININA:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA PENSAR A
VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

Tuize Silva Rovere1


Mariana Barbosa de Souza2

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS – REFLETINDO SOBRE


EPISTEMOLOGIA FEMINISTA
As mulheres foram excluídas dos direitos sociais e políticos
por séculos, tendo sua existência ligada a uma condição biológica
inferiorizada em relação à condição masculina. Elas foram não só
ridicularizadas, mas tiveram sua capacidade mental menosprezada
pela ciência, de forma a reafirmar os estereótipos masculinos que
colocam os homens como detentores de características como a razão
e a objetividade (KETZER, 2017). A construção do sujeito universal
nas ciências passa a ser então pela questão do gênero, privilegiando
o homem, aparentemente detentor da condição idealizada de sujeito
cartesiano.
Considerado precursor da epistemologia moderna, Descartes
afirmava que o sujeito pensante seria adotado como algo distinto
e indubitável, ponto de referência e discernimento. Esse sujeito
cartesiano seria fonte de todo o conhecimento, inclusive da
racionalidade, rompendo com a questão corpórea, na qual o corpo
era visto como fonte de erro (KETZER, 1993). Segundo Scheman
(apud KETZER,1993) o homem que representa este sujeito
purificado, que nega a condição corpórea, seria o sujeito europeu
branco, que na verdade se liberta dos “outros”, daqueles que não
fossem masculinos e brancos. É somente a partir da década de
1970 que o conhecimento passa da individualidade do sujeito, para
o conhecimento socialmente construído, em que se consideram as
práticas sociais como fonte de conhecimento. No mesmo contexto,
explode a segunda onda feminista3 e ações movidas em favor da
liberação sexual e da igualdade de direitos tomam suas pautas,
277

demonstrando a existência de outras relações de poder (CALIÓ,


1992). A epistemologia feminista surge nesse contexto, como um
campo de pesquisa preocupado em investigar o papel do gênero
na produção científica e epistêmica. A epistemologia feminista
considera que há preconceito de gênero infiltrado nas mais variadas
áreas do conhecimento (KETZER, 1993), sendo seu papel elucidar
esses preconceitos e questioná-los:

Nos anos oitenta, Michelle Perrot se perguntava se era


possível uma história das mulheres, num trabalho que se
tornou bastante conhecido, no qual expunha os inúmeros
problemas decorrentes do privilegiamento de um outro
sujeito universal: a mulher. Argumentava que muito se
perdia nessa historiografia que, afinal, não dava conta de
pensar dinamicamente as relações sexuais e sociais, já que
as mulheres não vivem isoladas em ilhas, mas interagem
continuamente com os homens, quer os consideremos na
figura de maridos, pais ou irmãos, quer enquanto profissionais
com os quais convivemos no cotidiano, como os colegas
de trabalho, os médicos, dentistas, padeiros ou carteiros.
Concluía pela necessidade de uma forma de produção
acadêmica que problematizasse as relações entre os sexos,
mais do que produzisse análises a partir do privilegiamento
do sujeito. Ao mesmo tempo, levantava polêmicas questões:
existiria uma maneira feminina de fazer/escrever a história,
radicalmente diferente da masculina? E, ainda, existiria uma
memória especificamente feminina? (RAGO, 1992, p. 1).

Mais recentemente, a crítica feminista tem se dedicado a


denunciar o caráter particularista, ideológico, racista e sexista da
produção científica ocidental, valendo-se de categorias reflexivas
incapazes de pensar a diferença, afirmando que os conceitos com que
as ciências trabalham, especialmente as humanas, são identitários
e por isso, excludentes. As feministas questionam o conceito
de sujeito universal masculino que se refere ao homem branco,
heterossexual, europeu - deixando de lado todos que escapam deste
modelo e também o olhar para as práticas masculinas como mais
valorizadas e hierarquizadas em relação às femininas, considerando
o mundo privado de menor valor que o público (RAGO, 1992). A
epistemologia feminista vem então a colocar em xeque as noções de
278

objetividade e neutralidade adotadas até então pela ciência ocidental,


denunciando os valores masculinos impregnados nos padrões de
normatividade científica adotados como válidos até então. Essa
maneira de pensar torna-se imprescindível à medida que as ciências
tornaram as mulheres por muito tempo sujeitos invisíveis, indignos
de protagonismo seja na história, seja na produção científica,
isentando-as do seu papel de agentes sociais, levando-as a uma
subordinação que precisa ser questionada (KETZER, 1993).
Para Calió (1993) a ciência foi sexista em pelo menos três
campos interrelacionados:

Na prática, porque dela excluiu as mulheres; nos seus


objetivos, porque contribuiu para a consolidação da
sociedade patriarcal e seus interesses masculinos e,
finalmente em sua aplicação e resultados, porque serviu
à construção de uma sociedade patriarcal-capitalista que
proclamou a superioridade e a virilidade masculina. É o
sistema patriarcal que justifica a exploração através de
diferenças biológicas, reforçando a ideia de “natureza” e
de uma “essência” feminina, limitando a criatividade das
mulheres, e dirigindo-as para atividades cientificas que mais
se adaptem às suas prioridades enquanto mulheres: esposas,
mães, donas-de-casa. (CALIÓ, 1993, p. 3).

Assim, busca-se através da construção do conhecimento


pelo viés da epistemologia feminista, a concepção de um projeto
humano que venha a renunciar a divisão do trabalho emocional
e intelectual, que mantém a ciência no âmbito das atividades
inerentemente masculinas, buscando uma produção científica que
permita a convivência de diferentes concepções de mundo entre
si, sem a justaposição de uma sobre a outra (CALIÓ, 1993). Essa
ciência é a que procura investigar a diferença ao invés de apostar
no sujeito universal masculino, trazendo para o universo científico,
especialmente dentro das ciências sociais, diferentes realidades e
pontos de vista, analisando a sociedade de um prisma mais próximo
da realidade concreta.
Diante disso, com a intenção de traçar reflexões acerca
da epistemologia feminista enquanto uma ferramenta teórica e
279

metodológica para se pensar e compreender a cidade normativa,


este artigo estabelece, também, relação com a segregação urbana
feminina. Com o auxílio de técnicas de pesquisa documental e
bibliográfica, contando com uma abordagem qualitativa, também
serão apontadas algumas considerações a respeito da dicotomia que
envolve o masculino X feminino e o espaço urbano patriarcal.

2 A DICOTOMIA “MASCULINO X FEMININO” E O


ESPAÇO URBANO PATRIARCAL
Ao tratar do gênero feminino, entende-se que este é um
conceito socialmente estabelecido, a partir das práticas, performances
e identidades construídas, fundamentadas em um papel social
assumido. O sistema de significação de gênero é relacional, mutante
e individual, além de posicionamento político e dependente do lugar
que cada corpo assume diante de relações sociais de poder (SCOTT,
1989; BUTLER, 2006; SAFFIOTI, 2013 apud TAVARES, 2015).
Nesta concepção do conceito de gênero, a construção de identidades
masculina ou feminina não é inerente ao chamado sexo biológico,
e sim calcado em subjetividades, em que o sujeito está em processo
constante de construção. Então, aqui trataremos o termo gênero
como não necessariamente associado ao sexo biológico, em que
homens não ocupam necessariamente corpos masculinos e mulheres
os corpos femininos. A construção social normativa do feminino e
do masculino no ocidente está intimamente ligada ao sexo biológico
e às funções consideradas intrínsecas a ele:

O padrão hegemônico que categorizou os corpos também


lhes atribuiu papéis sociais a serem desenvolvidos e,
mais do que isso, instituiu uma forte carga naturalista
no seu desempenho. Aos sujeitos femininos se atribui o
desempenho da maternagem, passividade, docilidade,
fragilidade e emoção. Ao sujeito masculino, agilidade, força,
agressividade, astúcia e raciocínio. (SILVA, 2009, p. 123).

A diferença entre as formas de vivenciar o espaço urbano por


homens e mulheres foi deixada de lado, se não ignorada por muitos
séculos. As variáveis levadas em consideração no planejamento
280

urbano diziam respeito apenas a aspectos demográficos, econômicos,


culturais e políticos, levantados de forma pretensamente neutra
(JACOBS, 2000), deixando a questão do gênero fora de pauta. Os
planos urbanísticos setorizados, estatísticos e tecnicistas aos moldes
modernistas relegam a mulher a uma condição de invisibilidade
na produção normativa do espaço urbano, priorizando agentes
hegemônicos e a dominação masculina da cidade.
Na condição de subordinada ao homem e relegada à
realização do trabalho reprodutivo, o espaço delegado à mulher
sempre foi o da esfera doméstica, ou espaço privado. Ao serem
impedidas de apropriar-se do espaço público, as mulheres ficam
impedidas de acesso às esferas de poder, ao prestígio e aos valores
culturais reservados como prerrogativas à condição masculina.
Para Calió (1992) a sociedade precisa preocupar-se não só com as
desigualdades espaciais fruto das diferenças sociais, mas também
com as relações de poder entre os gêneros.
O espaço delegado à mulher sempre foi o privado, em
contraposição ao espaço público destinado aos homens protagonistas
do trabalho produtivo e remunerado. O cotidiano feminino nas
cidades está imbricado com o espaço privado no interior das
residências, nos quais a mulher realiza o trabalho reprodutivo. A
investigação dessas diferenças entre as vivências masculinas e
femininas da cidade, de acordo com os papéis socialmente impostos
aos sexos, traz a percepção de que existe uma lógica urbana para
cada sexo, e que a cidade patriarcal vem respondendo a apenas
uma dessas demandas: a masculina. Para Calió (1993) a divisão
do espaço-tempo urbano entre a dimensão objetiva do trabalho e
a subjetiva da casa explicita a diferença de comportamentos e
atitudes entre homens e mulheres em relação à cidade. Em espaços
inversos e hierarquizados, o homem tende ao espaço “do mundo” e
a mulher ao espaço interior, da casa. A combinação do patriarcado
com o capitalismo vem reafirmar a divisão entre trabalho masculino
e feminino, colocando mais uma vez a mulher como detentora do
espaço privado, onde se realiza o trabalho feminino de dentro da
esfera doméstica da casa, visto como secundário perante o trabalho
remunerado masculino realizado fora, na vida pública. Assim, os
espaços-tempos vivenciados por homens e mulheres no espaço
281

urbano diferenciam-se, porém, somente a experiência masculina do


espaço urbano é levada em consideração, uma vez que é ao homem
que o espaço público legitimamente pertence, dentro de uma cidade
que obedece a lógica patriarcal.
Sendo a cidade fruto das interações sociais (LEFEBVRE,
2001), uma sociedade regida pela lógica patriarcal produz espaços
urbanos normativos e racionalistas que acabam reproduzindo em
si as relações de subordinação e constrangimento do corpo não
normativo: branco, masculino e heterossexual. A abordagem sob
a perspectiva feminista do espaço urbano possibilita uma reflexão
crítica a respeito dos espaços construídos em função da divisão
sexual do trabalho, tomada como regra.

A ordenação da cidade ainda hoje obedece aos planos


urbanísticos funcionalistas de forte influência modernista,
privilegiando as relações de produção do capital em
detrimento às relações de reprodução da vida humana.
Neste contexto, a abordagem feminista do espaço urbano
busca a compreensão das relações estabelecidas entre a
subordinação reproduzida na construção deste espaço e a
ação de resistência e também de transformação das mulheres
a partir de sua própria realidade. (HOFF, 2018, p. 21).

Identificar os lugares a que mulheres e homens são levados


a ocupar no espaço permite que se observe ainda a invisibilização
das mulheres na multidão urbana (CALIÓ, 1993), que significa
que apesar de presentes neste espaço, elas não se tornam
relevantes – “importantes para o cenário, mas insignificantes para
a cena” (CALIÓ, 1993, p. 6). A cidade tratada do ponto de vista
universalizante, leia-se masculinizante, apaga os conflitos sociais
que não dizem respeito aos conflitos de classes. A casa é vista
como simples unidade geográfica, sem estruturas hierárquicas de
poder e sem levar-se em consideração todo o trabalho reprodutivo
ali realizado, ignorando dessa forma grande parte do trabalho
realizado pelas mulheres e que se desenvolve no espaço privado.
Os constrangimentos a que as mulheres estão submetidas no espaço
público também dizem respeito à lógica capitalista da produção do
espaço urbano, no qual a cidade se desenvolve de maneira a atender
282

às necessidades de reprodução do capital.


O olhar para a diferença é um importante elemento para a
construção de um espaço urbano não normativo, além de elemento
fundamental para a compreensão dos fenômenos intrínsecos a ele.
Assim, a abordagem de gênero nos estudos urbanos e acadêmicos
em geral, a partir da epistemologia feminista, traz o necessário olhar
crítico para aquilo que é socialmente construído como natural para a
mulher e para o lugar que ela, em tese, deveria ocupar na sociedade.
Indo além, considera-se ainda de que forma estas construções sociais
influenciam na produção do espaço urbano, tendo em vista que essa
produção se dá diante de relações sociais que se reproduzem e são
contingenciadas, mas também tensionadas e reconfiguradas a partir
de diferentes realidades.

3 MULHERES, ESPAÇO URBANO, SEGREGAÇÃO E


VIOLÊNCIA
Apesar da manutenção da divisão sexual do trabalho,
as mulheres têm assumido jornadas de trabalho remuneradas
cada vez maiores. Porém, continuam responsáveis pela maior
parte do trabalho doméstico não remunerado de cuidados com a
casa (limpeza, alimentação, manutenção, etc.) e com as pessoas
dependentes (crianças, idosos, enfermos, etc.). De acordo com
dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, 90%
das mulheres brasileiras desempenham esta função. Para os homens,
este percentual é de 50%.4 Os relatórios do PNAD (Pesquisa
Nacional de Amostra por Domicílios) de 2009 demonstram que as
mulheres despendem em média 26,6 horas semanais apenas com os
serviços domésticos não remunerados, enquanto os homens gastam
10,5 horas para desempenhar o mesmo tipo de trabalho5. A condição
social em que essas mulheres se encontram também é determinante
para a realização desse tipo de atividade: quanto mais pobre, maior
a carga a que são submetidas.
Ainda que o trabalho doméstico sem remuneração permaneça
essencialmente entendido como um trabalho feminino, as mulheres
têm assumido cada vez mais a responsabilidade pelo sustento das
famílias, sejam monoparentais ou não. Segundo dados do censo do
283

IBGE do ano de 2010,6 as mulheres são responsáveis por quase 40%


dos domicílios urbanos brasileiros. Levando-se em consideração
a composição familiar, nas famílias que contam somente com um
responsável, cerca de 88% destes são mulheres. Cabe ressaltar que
46,4% das famílias urbanas que vivem com rendimentos de até ½
salário mínimo são de reponsabilidade feminina, assim como 30%
das famílias com filhos de até 5 anos de idade.
As demandas femininas das mulheres que adentram o mercado
de trabalho entram em choque com a estrutura física das cidades
e a maneira funcionalista que o planejamento urbano normativo
continua a produzi-las (HOFF, 2018). As mulheres, responsáveis
pela dupla jornada de trabalho (remunerado e doméstico), são as que
se utilizam do espaço urbano de forma mais complexa, conciliando
as atividades consideradas não produtivas com as atividades
produtivas. Enquanto o homem-padrão (branco e produtivo)
realiza um deslocamento pendular e normalmente motorizado
(casa-trabalho, trabalho-casa), elas ocupam a cidade realizando
percursos poligonais atendendo às necessidades familiares, além
de suas próprias: levam os filhos à escola, aos serviços de saúde,
aos espaços de lazer, constantemente no mesmo deslocamento que
realizam ao trabalho (MADARIAGA, 2004). No caso das mulheres
em situação de pobreza, que não tem acesso aos bens e serviços
privados, esta condição afeta ainda mais a sua mobilidade urbana e
por consequência sua autonomia:

Las mujeres son las principales usuarias del transporte


público, encadenan más viajes, viajan por más motivos
diferentes, recorren distancias más cortas, realizan una gran
parte de sus desplazamientos en el entorno de la vivenda
y hacen muchos viajes acompañando a otras personas que
carecen de autonomia personal. Aunque se muevam más,
tienem menos movilidad y ésta está constreñida por su
dependencia de las necesidades de los otros y de los horarios
de los servicios públicos, y por su menor acesso al transporte
privado. (MADARIAGA, 2004, p. 109).

Como maiores usuárias dos serviços e bens públicos, as


mulheres pobres utilizam de forma mais intensa o transporte coletivo,
284

creches, escolas e postos de saúde. Além disso, são dependentes das


infraestruturas públicas urbanas (iluminação e saneamento, etc.)
e ainda de equipamentos urbanos de lazer e cultura como praças
e parques (MUXÍ, 2009; MADARIAGA, 2004). A consequência
direta é que essas mulheres se tornam as principais afetadas pelos
processos de segregação urbana ao ter o seu trabalho social e
reprodutivo dificultado pela falta de mobilidade e condições de
bem-estar no espaço urbano:

Si la vida cotidiana funciona, funciona todo lo demás. Hasta


ahora las ciudades se han pensado desde las necesidades de
la producción, del trabajo pagado, sin darnos cuenta de que
todo ello es sostenido por un trabajo invisibilizado para el
que las ciudades no han sido pensadas. Las distancias de
las ciudades pensadas en funciones separadas, teóricamente
rentables para la producción, hacen inviable que las mujeres
con responsabilidades reproductivas puedan acceder en
igualdad de condiciones que los hombres a estos trabajos.
(MUXÍ, 2009, p. 42).

Entre os constrangimentos impostos aos corpos femininos


e as lutas cotidianamente travadas pela ocupação do espaço
público está o enfrentamento da segregação urbana pelas mulheres
periféricas. Embora a literatura brasileira venha tratando o fenômeno
da segregação urbana como um fenômeno universal, abordando
somente o que diz respeito à classe social, a abordagem feminista
do espaço urbano vem apontando para as consequências específicas
da segregação urbana para as mulheres, especialmente aquelas que
se encontram em situação de pobreza e precariedade habitacional.
Para Vasconcelos (2013, p. 24), no que tange à segregação,
ela tem origem na criação do guetto de Veneza, oportunidade em que
os judeus se recolheram a uma pequena ilhota, com muros e portas,
dando sentido ao conceito. A sua utilização se deu, primeiramente,
pelos sociólogos da Escola de Chicago, que se dedicaram ao estudo
de cidades em crescimento e que experimentavam a sua formação
por imigrantes, algo até então inédito. Outra visão do conteúdo
do conceito de segregação é apresentada por Sabatini e Sierralta
(2004): a segregação envolve três dimensões. A primeira diz
285

respeito à tendência de alguns grupos sociais concentrarem-se em


determinados espaços da cidade; a segunda dimensão refere-se ao
grau de homogeneização de algumas porções territoriais da cidade;
e a terceira condiz com um entendimento subjetivo que se dá a partir
do que é a segregação, tanto para os que estão segregados, quanto
para os que não estão. Saliente-se que a segregação se manifesta de
formas diferentes, desse modo é importante se conhecer, em cada
cidade, a relação da segregação com os processos que a estimulam
e quais os resultados, observando, inclusive, a compra e venda de
propriedades.
Villaça (2001) aponta para o fato de que a segregação envolve
não só o preço da terra urbana, mas condições de proximidade aos
bens e serviços e atrativos como infraestrutura, natureza e status,
fatores que levam à procura por aqueles que têm condições de
escolher seu local de moradia. Não se refere somente ao valor
da terra, na medida em que as classes mais altas também podem
procurar pela terra mais barata das periferias urbanas, se for de
seu interesse e de acordo com os atrativos ali presentes. Assim, a
segregação pode ser considerada um processo dialético “em que
a segregação de uns provoca, ao mesmo tempo e pelo mesmo
processo, a segregação de outros”, tratando-se então de um processo
único, no qual os mais ricos segregam-se voluntariamente7 em busca
dos locais que melhor lhes convêm (como é o caso das pessoas
que optam por viver em condomínios de luxo), e os mais pobres
sofrem em consequência a segregação involuntária, sendo levados
a ocupar os espaços mais baratos e nos quais as classes mais altas
não têm interesse. Essa ocupação normalmente se dá via moradias
irregulares, cedidas, alugadas ou ainda através das políticas públicas
habitacionais, ocupando locais normalmente afastados dos centros
urbanos em que se localiza o setor terciário e que contam com
menos atrativos (VILLAÇA, 2001, p. 148). “Adicionalmente,
o grupo autossegregado tem condições de criar ou influenciar
normas e leis capazes de garantir a exclusividade do uso do solo,
tornando-o impeditivo aos grupos sociais subalternos” (CORRÊA,
2013, p. 43, grifou-se). De qualquer modo, o autor segue afirmando
que independentemente de ser a segregação imposta ou induzida,
após sua realização no espaço urbano, dificilmente ela é revertida
(CORRÊA, 2013).
286

As cidades em que a segregação socioespacial é presente


e rotineira na vida de seus cidadãos aponta para a sobreposição
da hierarquia social com a hierarquia espacial, como apontado
por Carlos (2020). Para a autora a primeira é promovida pela
desigualdade dos sujeitos na sociedade de classes e a segunda
trata da localização e dos acessos desiguais aos usos dos espaços-
tempos da vida urbana, refletindo na maneira sobre como se dará a
quarentena de cada pessoa e como cada cidade passa a ser tida como
espaço interdito. E nesse contexto, a mobilidade urbana também
é vista por Villaça (2011) como fator fundamental no processo de
segregação involuntária, que os mais pobres ocupam normalmente
os locais mais afastados e com menor mobilidade urbana. Destaca-
se ainda a influência da setorização das cidades funcionalistas
modernas, em que as áreas industriais, de moradia e de serviços são
separadas. Setores com a função exclusiva de moradia, nos quais
normalmente são implementados os conjuntos habitacionais sociais
promovidos pelas políticas públicas habitacionais, acabam por
dificultar a mobilidade feminina.
Chama-se atenção para o caso do Brasil, em específico,
em razão de um debate que permeia as discussões a respeito de
um urbanismo que se preocupe com questões de gênero. Muito
embora essas discussões sejam insípidas, sobretudo em razão
da população a que se refere (inclusive numérica, já que como
mencionado alhures, as mulheres são mais que metade da população
brasileira), é possível encontrar trabalhos que vem focando as suas
análises para as temáticas não somente de gênero, mas também de
sexualidade (HOFF, 2018). Para além, esses trabalhos assumem
uma perspectiva feminista de entendimento do espaço urbano que
não possui neutralidade técnica ou científica possível (TAVARES,
2015; SILVA, 2003; MCDOWELL, 1999). Logo, entende-se que
apesar de existir uma subserviência construída na produção do
espaço urbano em relação a sua forma normativa e racionalista,
a concepção feminista de construção e mudança da cidade resiste
e se mostra, principalmente por meio de suas vivências. Nesse
sentido, Madariaga (2004) assevera que as necessidades das
mulheres entram em choque com as estruturas do espaço urbano,
que são funcionalistas, além de normativas. Hoff (2018) aponta que
as mulheres, especialmente as que se encontram em situação de
287

vulnerabilidade, não acessam os bens e serviços particulares e tal


condição influi para a mobilidade urbana e, consequentemente, para
a autonomia feminina.
O aumento da distância da moradia aos serviços, comércios e
empregos, muitas vezes inviabiliza a inserção feminina no mercado
de trabalho e ainda na esfera social (HOFF, 2018). Outro fator
implicado pela dificuldade de mobilidade e apontado por Villaça
(2011) é o tempo de deslocamento. Quanto maior a distância entre
locais de emprego e residência, maior o tempo de deslocamento
entre eles. Muitas mulheres, obrigadas a tomar conta dos filhos sem
contar com redes de apoio, acabam ficando confinadas ao espaço
doméstico, sem acesso ao emprego remunerado. Essas mulheres
muitas vezes têm a mobilidade diminuída pela distância e também
pelo tempo necessário para conciliar o cuidado com os filhos e o
deslocamento até o trabalho (HOFF, 2018). A produção financista
e funcionalista da cidade e a condição de segregadas perpetuam a
violência contra as mulheres, tanto no espaço urbano, como na vida
privada. Segundo relatório da ActionAid de 2017,8 as mulheres ainda
não conseguem desfrutar de forma plena ao seu direito à cidade. Elas
estão mais suscetíveis que os homens a sofrer agressões nos espaços
públicos, sujeitas ao assédio e intimidação, além da violência física
e do estupro. Também são as mulheres que enfrentam de forma
cotidiana a violência doméstica dentro de suas casas. Assim como a
ausência ou a distância aos bens e serviços públicos são fatores de
agravamento das condições de vida das mulheres segregadas, a falta
de segurança para o acesso a esses bens e serviços funciona como
constrangimento à sua circulação no espaço urbano, restringindo
ainda mais o acesso ao direito à cidade.
De acordo com pesquisa realizada pela Agence Française
de Développement (AFD)9, o Brasil é o pior lugar para ser mulher
na América Latina devido ao machismo e ao assédio sexual nos
espaços públicos e privados. Segundo dados do Fórum Nacional
de Segurança Pública, em 2014, uma mulher foi estuprada a cada
11 segundos. Relatórios da ActionAid10 mostram que 87% das
mulheres brasileiras que vivem em áreas urbanas sofreram assédio
em 2017. Da mesma forma, 90% das mulheres que moram nas
periferias urbanas, com idades entre 14 e 24 anos, afirmam já terem
288

parado de frequentar espaços públicos ou de usarem determinados


tipos de roupas por medo da violência, segundo dados de pesquisa
realizada pela Agência Enois11, ligada ao Instituto Patrícia Galvão
(ACTIONAIND, 2017). Nesse contexto cabe a discussão que
relaciona a abordagem de gênero com a democratização do espaço
da cidade através de políticas públicas urbanas se mostra como tema
urgente. É preciso de iniciativas que busquem não só a equidade
entre os diferentes gêneros, mas também tragam segurança e acesso
à cidade e que levem as mulheres a alcançarem plena cidadania.
Nesse sentido, a extensão universitária, enquanto elo de ligação entre
academia e comunidade e como veículo de promoção de ações no
sentido da busca pela equidade social e da aproximação dos esforços
acadêmicos com a prática, se mostra como meio fundamental para
a ação. É a extensão universitária que abre portas para a práxis,
podendo ocupar o importante papel de fornecer subsídios para
a elaboração de políticas públicas mitigatórias dos processos de
exclusão social e segregação urbana.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A ABORDAGEM DE


GÊNERO E A POSSÍVEL DEMOCRATIZAÇÃO DA
CIDADE
Ainda que o movimento feminista tenha alcançado várias
conquistas em termos de direitos civis e emancipatórios, a luta
feminista por igualdade efetiva de direitos está longe de ter um fim.
No campo científico, a epistemologia feminista vem para afirmar a
importância das vivências, experiências, objetivos e interpretações
femininas para a ciência e para a construção do conhecimento. Tanto
a ciência como a história vêm sendo observados por uma ótica única
e hegemônica que segue a ordem patriarcal da sociedade – a ordem
masculina. Nesse sentido, essa abordagem epistemológica elucida,
traz à tona a noção de que não são apenas os grupos dominantes
que ocupam importância científica e acadêmica nas transformações
sociais necessárias para uma sociedade mais justa e equivalente.
Com o objetivo de tecer reflexões acerca da epistemologia
feminista enquanto uma ferramenta teórica e metodológica para se
pensar e compreender a cidade normativa, este artigo estabeleceu,
289

também, relação com a segregação urbana que acomete diferentes


grupos sociais, mas no caso apresentado, as mulheres. Assim, com o
auxílio de técnicas de pesquisa documental e bibliográfica, contando
com uma abordagem qualitativa, também foram apontadas algumas
considerações a respeito da dicotomia que envolve o masculino
X feminino e o espaço urbano patriarcal. A partir das questões
sociais de gênero, raça e classe surge a possibilidade de produção
científica dedicada a compreender a forma como o gênero influencia
concepções teóricas e práticas, e como as mulheres e outros grupos
vulnerabilizados vêm sendo deixados em segundo plano frente a
suposta neutralidade científica que prioriza uma realidade sobreposta
a todas as outras. Pesquisar as diferenças, sob uma perspectiva
feminista é desafiar a lógica dominante do mundo patriarcal.
Pesquisar a cidade sob a abordagem epistemológica
feminista é atender a antigas reivindicações de luta feminista por
um outro olhar sobre os fenômenos urbanos, na busca da construção
de espaços mais horizontais, que tragam cidadania para todos. A
cidade por si tem sido espaço de luta e resistência feminina. As
reivindicações das mulheres por creches, educação não sexista,
salários iguais, formação profissional, direito à saúde sexual e
controle de natalidade, segurança pública, moradia digna e acesso
igualitário aos bens e serviços públicos urbanos, nada mais são do
que a reivindicação de cidadania e direito efetivo à cidade. Assim
como o não acesso a esses direitos se configura como forma de
perpetuação da violência e dos constrangimentos que impedem a
plena cidadania feminina.
Mulheres e homens vivenciam a problemática urbana de
maneira diferenciada, assim, como deixar de lado metade da
população em nome de uma suposta universalização das questões
socioespaciais que se desenvolvem nas cidades? Grande parte
das propostas de ação, especialmente no que diz respeito às
políticas públicas não contemplam as diferentes realidades que
se materializam no espaço urbano. A busca por estratégias que
melhorem a qualidade de vida das mulheres e assim de outros grupos
vulneráveis passa necessariamente por mudanças na abordagem
dos problemas enfrentados. Entre as diferentes possibilidades de
enfrentamento está a busca por respostas científicas, a produção do
290

conhecimento e as ações comunitárias que contemplem essa parte


da população. A extensão universitária se apresenta nesse contexto
como uma das formas de aliar a teoria à prática, em busca das
mudanças sociais há tanto tempo objeto das lutas feministas. Só é
passível de mudança aquilo que é visto. Neste contexto, o olhar para
a mulher e suas questões é fundamental para a busca da cidadania
plena e a transformação da sociedade na prática. Feminilizar a
ciência é mais um passo em direção ao que buscamos enquanto
feministas, cientistas e acadêmicas e para alcançá-las é preciso que
ocupemos de forma presente nossos espaços.

NOTAS

1 Doutoranda e Mestra em Desenvolvimento Regional pela Universidade


de Santa Cruz do Sul – UNISC. Especialista MBA em Gestão Ambiental
pela Universidade do Oeste de SC -UNOESC. Arquiteta e Urbanista pela
Universidade Federal de Pelotas – UFPEL. Pesquisadora membro do
GEPEUR - Grupo de Estudos em Planejamento Urbano e Regional – CNPq,
do GEDEPP – Grupo de Estudos em Democracia e Políticas Públicas –
CNPq, do Observatório do Desenvolvimento Regional - Observa – DR e
do Observatório dos Conflitos da Cidade (UCPEL) – CNPq. Endereço
eletrônico: [email protected].
2 Doutora em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz
do Sul (UNISCO com estágio pós-doutoral em Geografia pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Mestra em Desenvolvimento e Advogada
(Bacharela em Direito), ambos também pela Universidade de Santa Cruz do
Sul (UNISC). Pesquisadora nos Grupos de Pesquisas: GEPEUR – Grupo
de Estudos Urbanos e Regionais – CNPq; e GETE – Grupos de Estudos
Territoriais (UEPG). Endereço eletrônico: barbosadesouzamariana@gmail.
com.
3 A primeira onda feminista reivindicava o direito ao voto, à propriedade e à
educação, ou seja, direitos básicos na esfera pública. A segunda onda exigia
que mulheres pudessem ocupar o mercado de trabalho em todas as áreas, com
igualdade no ambiente de trabalho e também pelos direitos reprodutivos.
Na terceira onda, foram discutidos os paradigmas estabelecidos nas outras
ondas, colocando a micropolítica em discussão, onde foram salientadas as
diferentes realidades femininas, desconstruindo definições essencialistas de
feminilidade, trazendo a tona diferenças como raça e orientação sexual, além
da classe social. As críticas trazidas por algumas feministas da terceira onda
vêm no sentido de mostrar que o discurso universal é excludente pois as
opressões atingem as mulheres de modos diferentes, seria necessário discutir
291

gênero com recorte de classe e raça e levar em conta as especificidades das


mulheres (RIBEIRO, 2018).
4 Dados do IPEA em http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_
content&view=article&id=14321
5 Dados da PNAD em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/co-
municado/120523_comunicadoipea0149.pdf
6 Dados do Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística, expressos no relatório Estatísticas de Gênero: Uma análise
dos resultados do Censo Demográfico 2010, disponível em: http://
agenciapatriciagalvao.org.br/wp-content/uploads/2014/10/dados-de-genero-
ibge.pdf.
7 Vasconcelos (2013, p. 27) chama atenção para o conceito de autossegregação:
[...] é resultado de uma decisão voluntária de reunir grupos socialmente
homogêneos, cujo melhor exemplo é o dos loteamentos e condomínios
fechados, com suas entradas restritas, muros e sistemas de segurança. É
uma forma radical de agrupamento residencial defensivo que procura juntar
os semelhantes e excluir os diferentes e impedir o acesso dos indesejáveis.
O autor segue afirmando que “A autossegregação residencial das classes
subalternas resulta também de uma política de classe, gerada por aqueles que
detêm poder, controlando diferentes meios de produção. É possível distinguir
a segregação imposta, envolvendo aqueles que residem onde lhes é imposto,
sem alternativas de escolha locacional e de tipo de habitação, e a segregação
induzida, que envolve aqueles que ainda têm algumas escolhas possíveis,
situadas, no entanto, dentro de limites estabelecidos pelo preço da terra e
dos imóveis. Ressalte-se, contudo, que o limite entre segregação imposta e
induzida é tênue, como que uma se dissolve na outra”. (VASCONCELOS,
2013, p. 43).
8 Informações disponíveis em: http://actionaid.org.br/wp-content/files_mf/
1512135627DeQuemeaCidadeLow.pdf
9 Informações em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/en/geral/noticia/2017-03/
brazil-women-work-75-hours-more-men
10
Informações em: http://actionaid.org.br/na_midia/87-das-brasileiras-foram-
-assediadas-no-ultimo-mes-afirma-actionaid/
11
Instituto Patricia Galvão e Instituto Vladmir Herzog. Informações em: http://
www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/wp-content/uploads/2015/07/
ENOIS_meninapodetudo2015.pdf
292

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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER:
REVISÃO INTEGRATIVA

Rafael Souza1
Alba Regina Zacharias2

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Não é de hoje que a violência contra a mulher está presente
no contexto familiar, silenciosa, carregada de medo, vergonha
e insegurança. Para Silva; Almeida (2018) e Bonetti; Pinheiro
e Ferreira (2008), ambientes como esses aliados a um contexto
de vulnerabilidade social e o baixo desenvolvimento intelectual
colocam em risco a vida da mulher que muitas vezes é obrigada a
conviver com as agressões, sejam elas físicas, psicológicas, sexuais,
etc., por questões financeiras, afetivas e ou emocionais.
Segundo os autores, fatores como esses asseguram a
dificuldade do rompimento da relação agressiva, assim como a busca
por auxílio uma vez que, geralmente o agressor é o companheiro
com quem constituiu família. Nesse sentido, Cisne e Oliveira
(2017) caracterizam a prática de violência contra mulher como ato
de violação sistemática de direitos, que não se limita ao ambiente
doméstico, pois afeta a integridade física, social e emocional da
mesma.
No Brasil é utilizado o caso da Sra. Maria da Penha Fernandes
para representar a gravidade das agressões e consequências oriundas
dessas práticas, pois após sofrer duas tentativas de homicídio pelo
marido, ficou paraplégica. Uma das primeiras pesquisas realizadas
no Brasil, apresentada por Venturi e Recamán (2004), revelou
que 43% das mulheres já sofreram com algum tipo de violência
doméstica, em que 70% dos casos o companheiro, ex-companheiro
ou namorado são os responsáveis.
Na pesquisa realizada por Almeida (2018) é apresentado um
crescimento de 47% dos casos de violência doméstica contra mulher
296

atendidos nos primeiros cinco meses do ano de 2018 se comparados


ao mesmo período do ano de 2017, o que representa uma mudança
de atitudes das mulheres agredidas. Porém Brasil (2016), revela que
o número de homicídio e violência sexual também tem apresentado
crescimento. Fato confirmado por alguns veículos de comunicação
(JORNAL NACIONAL, 2019; PORTAL GAZ, 2019), onde
apresentam números elevados, de casos de mulheres violentadas e
mortas por seus companheiros ou ex-companheiros.
Day et al. (2003) revelam que uma em cada três mulheres já
sofreram alguma forma de abuso no decorrer de sua vida e no Brasil
cerca de 29% das mulheres já sofreram algum tipo de violência
grave de seus companheiros, motivadas por ciúme, uso de álcool,
falta de diálogo, uso de drogas, etc (NASCIMENTO, 2004).
Para Minayo (1994, p. 7) a violência “trata-se de um complexo
e dinâmico fenômeno biopsicossocial”, criada e desenvolvida
nas relações sociais. Para a autora, a violência não faz parte da
natureza humana, devido à ausência de raízes biológicas, por isso
a compreensão dá-se através da análise histórica, sociológica,
antropológica, observando o meio social, econômico, psicológico,
institucional, político e o plano individual.
Para tanto, a prática de violência contra mulher tem se
apresentado como um problema cada vez mais emergente na
atualidade, e um estudo acerca desse tema, faz-se de grande
importância. Pois a prática de violência, além de ferir o direito à
segurança da família, garantido pela constituição federal em seu
artigo 226 parágrafos 8, torna-se um problema social e de saúde
pública (GUIMARÃES; PEDROZA, 2015; BRASIL, 1988). Do
ponto de vista de Silva e Almeida (2018, p.6) “pode-se entender
políticas públicas como um conjunto de normas direcionadas à
resolução de algum problema que seja do interesse público, e que
satisfaçam os direitos do cidadão os quais encontram-se assegurados
pela Constituição Federal”.

2 HISTÓRICO DA PRÁTICA DE VIOLÊNCIA


No Brasil apenas nos anos 80, foi que se estabeleceu a criação
de Políticas Públicas voltados para o enfretamento à violência contra
297

mulher, resultado dos movimentos feminista e das Conferências


Internacionais voltadas à mulher. (NASCIMENTO, 2004).
No País a prática de violência doméstica contra mulher
passou a ser efetivamente coibida pelo judiciário apenas após a
promulgação da Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha, sancionada
pelo então presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, a qual
visa proteger e prestar assistência às vítimas. De acordo com Brasil
(2006; 2017) essa Lei altera o Código de Processo Penal, o Código
Penal e a Lei de Execução Penal. Já no ano de 2017 é instituído
por meio do projeto de Lei n°7.181-A o programa Patrulha Maria
da Penha acrescido ao artigo 22 da Lei Maria da Penha, como
complemento fiscalizador do cumprimento das medidas protetivas
previstas na Lei 11.340/06. Na Lei 11.473/07 também é inserido a
proteção à mulher em situação de violência no ambiente doméstica
e familiar.
Nesse sentido, umas das primeiras instituições instalada nos
anos 80, com vistas ao enfrentamento à violência contra mulher
foram as delegacias da mulher, por segundo os Juizados Especiais
Criminais, no início dos anos 90 (TAVARES; SARDENBERG;
GOMES, 2012). Diante desse cenário, Nascimento (2004) ressalta
a importância das políticas e serviços para o enfrentamento e
erradicação da violência contra mulher, uma vez que, segundo a
Constituição Federal de 1988 no seu artigo 5° todos sem qualquer
distinção somos iguais perante a lei, tendo reforçado a igualdade
de direitos e obrigações entre homens e mulheres no inciso I, do
mesmo artigo (CAVALCANTI; OLIVEIRA, 2017; BRASIL, 1988).

3 GÊNERO X VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA


MULHER
No estudo da violência contra a mulher é fundamental abordar
o conceito de gênero, visto ser um termo recente, utilizado para
definir as diferenças de masculino e feminino (ZANATA; FARIA,
2018). Para Lauretis (1994) o termo gênero configura-se como uma
relação de pertencimento a uma classe, um grupo ou uma categoria
é uma representação da relação social que encaixa o sujeito dentro
de uma determinada classe.
298

Embora o fenômeno de violência doméstica contra mulher


possa ser atualmente equiparado a um problema de saúde pública,
devido às significativas sequelas e traumas que podem causar na
vítima, ainda não possui terminologia oficial, pois violência de
gênero, violência contra mulher, violência doméstica, violência
intrafamiliar e violência conjugal (CAVALCANTI, 2007) são
algumas das terminologias utilizadas para se referir ao tema.
Por isso, ao longo deste escrito, será mantido o termo violência
doméstica contra mulher para melhor compreensão da leitura.
Embora os dados de diversos veículos de comunicação
apresentarem um aumento nos índices de denúncia de violência
contra mulher, os quais variam desde agressões físicas, psicológicas,
sexuais até a morte das vítimas, muitos outros casos ainda continuam
ocultados pelas vítimas, seja por vergonha, medo, ineficácia das
medidas protetivas, ou até mesmo pela dificuldade em acessar os
locais de suporte (VELASCO;CAESAR; REIS, 2018; JORNAL
NACIONAL, 2019; PORTAL GAZ, 2019NASCIMENTO, 2004).
No entanto, esses são possivelmente alguns dos motivos que
dificultam a busca por ajuda e que levam as mulheres a esconder
a violência sofrida, pois de acordo com Nascimento (2004, p. 14)
são vários os motivos que levam as mulheres a ocupar, nas palavras
do autor, “posição de submissão aos homens”, tais como baixa
autoestima, acreditar que o marido vai mudar e as violências irão
cessar dificuldades econômicas, necessidades de apoio financeiro,
além das dúvidas se conseguem gerir sua própria existência
(LANGLAY; LEVY, 1980).
No entanto, Dias (2007) observa que as dúvidas da mulher
sobre a capacidade de gerir sua própria existência estão atreladas
a uma constante manipulação do agressor e, devido à fragilidade
psicológica, interpretam as agressões sofridas como uma forma
de castigo, pois acreditam fielmente que são culpadas pelo
comportamento agressivo do cônjuge. Segundo o autor a prática de
violência é um ciclo perverso, que inicia silencioso, evolui para as
reclamações, reprovações até as agressões físicas, até virar hábito
de imposição para o controle; isso reflete a gravidade dessa prática
no contexto social e familiar, pois contribui para prejuízos que,
dependendo do grau de agressão, pode ser fatal para a vítima.
299

4 CARACTERIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA E SUAS


MÚLTIPLAS FACES
Existem diversas formas de manifestação de violência
contra mulher, a saber, “violência física, a psicológica, a sexual, a
patrimonial e a moral” (DIAS, 2007, p. 46). No entanto, aqui serão
abordadas às três formas mais comuns de violência contra mulher:
violência física, psicológica e sexual.
Para Day et al. (2003) e Nascimento (2004) a violência física
acontece quando alguém causa ou tentar causar danos utilizando-se
de algum instrumento capazes de causar lesões internas, externas
ou ambas para a vítima, além de socos, pontapés. Com relação à
violência psicológica, o artigo 7°, inciso II, da Lei 11.340/06,
apresenta como qualquer conduta que acarrete em dano emocional e
diminuição da autoestima, que cause constrangimento, manipulação,
isolamento, prejuízo da autoestima, da identidade ou prejudique o
desenvolvimento da pessoa (BRASIL, 2006; DAY et al., 2003).
E, por fim, a violência sexual, definida por Nascimento
(2004) como sendo o momento em que a mulher é obrigada a
manter relações sexuais com o homem, ou a prática sexual com
outras pessoas, mesmo em desagrado. Diante do exposto torna-se
visível a necessidade de políticas públicas mais eficazes voltadas
para o atendimento e assistência às mulheres, as quais encontram-se
em situação de violência com ou sem risco de vida.

5 LEI MARIA DA PENHA E OS JUIZADOS ESPECIAIS


CRIMINAIS
Antes da promulgação da Lei n° 11.340/2006, a violência
doméstica não era tida como um problema da sociedade, e de
nenhum órgão público civil ou criminal.Mas passou a ganhar
visibilidade após a criação dos Juizados Especiais previstos na
Constituição Federal de 1988. Por meio da Lei 9. 099/95 originaram-
se os Juizados Especiais Criminais, considerados um marco pelo
judiciário, porque possibilitaram ao poder judiciário maior acesso
para resolução de conflitos quando o crime apresentasse baixo risco
(BARSTED, 2012). Após a promulgação da Lei Maria da Penha
300

(LMP), os casos de violência doméstica contra a mulher deixaram de


ser julgados pela Lei 9.099/95, a qual tratava a violência doméstica
por meio da conciliação podendo determinar a afastamento do
agressor. Os casos somente eram julgados pela esfera penal quando
a vítima ficava impossibilitada de exercer suas atividades laborais
por mais de 30 dias devido à gravidade das lesões e ou nos casos de
homicídios (BARSTED, 2012; CISNE; OLIVEIRA, 2017).
Para Cisne e Oliveira (2017), a Lei 11.340/06 é a legislação
mais apta e adequada para atuar no combate à violência contra
Mulher. Em 09 de março de 2015 o Decreto –Lei n° 2.848/1940 –
Código Penal, tem seu art. 121 alterado pela Lei n° 13.104 de 09 de
março de 2015 que prevê o feminicídio como crime para os casos
de morte da mulher. Dessa forma, o art. 1° da Lei n° 8.072 de 25 de
julho de 1990 passa por atualização, pois foi incluído o feminicídio
na categoria de crimes hediondos (BRASIL, 2015).

5.1 As delegacias de mulher e as instituições de proteção à


mulher
De acordo com Pasinato e Santos (2008), a primeira delegacia
instituída no País foi no Estado de São Paulo, no ano de 1985 por
meio do decreto 23.769, de 6 de agosto de 1985, no mesmo ano foi
instituído o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, e em 1986 é
construída a primeira Casa- Abrigo, voltada às mulheres em situação
de risco de vida (CAVALCANTI; OLIVEIRA, 2017). Para Silva e
Almeida (2018), tanto as Delegacias da Mulher, quanto as Casas-
abrigo foram uma das principais conquistas na luta da violência
contra mulher. Campos (2015) salienta que as casas-abrigo são
lugares seguros, sigilosos de caráter temporário, onde as vítimas
podem permanecer por um período até encontrarem condições
seguras de guiar sua própria vida.

5.2 A Patrulha Maria da Penha como recurso de enfrenta-


mento à violência contra a mulher
No ano de 2017 é aprovado pela câmara dos Deputados do
Senado Federal, o projeto de Lei n° 7.181- A, que acrescenta ao
301

art. 1° da Lei 11.340/06 o artigo 22-A, estabelecendo o programa


Patrulha Maria da Penha, com objetivo de garantir maior efetividade
às medidas protetivas de urgência prevista no art. 22 da referida
lei (BRASIL, 2017). O programa é composto pelos órgãos de
segurança dos Estados e Distrito Federal, e com base em seus
regulamentos institui equipe específica que realiza as fiscalizações
quando do deferimento das medidas protetivas (HELAL; VIANA,
2019). Partindo desse pressuposto, Gerhared (2014) citado por
(HELAL; VIANA, 2019) comenta que o programa, por meio
de uma fiscalização sistemática, faz cumprir de forma efetiva a
aplicação das medidas protetivas solicitada pela vítima e sancionada
pelo judiciário, minimizando a lacuna existente entre a aplicação da
medida solicitada pela vítima e o cumprimente desta pelo agressor.
No Rio Grande do Sul, as atividades do programa tiveram
início no ano de 2012 pela Brigada Militar centralizadas,
inicialmente em bairros da capital que detinham altas taxas de
violência (SPANIOL; GROSSI, 2014). No Município de Santa Cruz
do Sul, as ações de combate à violência contra mulher acorrem
desde dezembro de 2013. Os policiais oferecem suporte psicológico
e proporcionam para as vítimas segurança no processo de denúncia
contra o agressor. A frequência dos atendimentos varia de acordo
com a gravidade da agressão, pode ser diária, semanal, quinzenal
ou mensal.

6 MÉTODO E RESULTADOS
Este artigo trata de uma revisão integrativa de leitura a
partir de estudos qualitativos, retrospectivos, realizados com o
levantamento das produções científicas publicadas no período
de janeiro de 2015 a junho de 2019 nas bases de dados Google
acadêmico, Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e Portal de Periódicos
CAPES, as quais frequentemente indexam produções científicas
brasileiras. Uma revisão integrativa, além de proporcionar uma
síntese do conhecimento, incorpora a aplicabilidade de resultados
de estudos significativos na prática. Determina o conhecimento
atual sobre um tema específico através da identificação, análise e
sistematização dos resultados de diversos estudos sobre o mesmo
302

tema (SOUZA; SILVA; CARVALHO, 2010).


Depois de excluir estudos em duplicidades e que não
apresentaram a violência conjugal, restaram 19.170 textos. A
aplicação dos critérios de inclusão e análise prévia dos títulos e
resumos resultou em 81 artigos pré selecionados. Por fim, após novas
exclusões por não atenderem na íntegra aos critérios propostos,
12 artigos foram selecionados para formar a base de análise deste
estudo. As referências dos estudos selecionados foram analisadas,
no intuito de buscar outros artigos empíricos não contemplados nas
bases de dados consultadas, e o processo resultou na inclusão de
mais um estudo. Desse modo, 13 artigos foram eleitos para formar
a base de análise. A busca dos artigos, bem como a análise dos
resultados e considerações ocorreu no período entre agosto 2019 a
outubro 2019.
Os principais achados referentes às pesquisas analisadas
dos 13 artigos analisados foi publicada em 2015, somando oito
(8) publicações (61,5%), seguindo pelos anos 2017 e 2018 com
dois (15,4%) artigos respectivamente e um (1) (7,7%) artigo no
ano de 2016. Até o momento de levantamento de dados não foram
identificadas publicações para o ano de 2019 nas referidas bases
de dados. Quanto ao número de autores, observou-se que maior
parte dos 13 estudos selecionados foram publicados por até dois (2)
autores- cinco (5) (38,5%) textos, quatro (4)(30,8%) textos foram
elaborados por três (3) autores, dois (2) (15,4%) estudos foram
publicados com dois (2) autores. Apenas dois (2) (15,4%) dos
artigos selecionados foram publicados por cinco (5) autores.
Entre os estudos analisados houve prevalência de sete (7)
textos (54%)- tendo como objeto de estudo os profissionais, desses-
quatro (4) textos (30,8%) eram pesquisas com profissionais da
área da saúde; um (1) (7,7%) texto abordava os profissionais da
segurança pública em conjunto com profissionais da saúde pública;
um(1) (7,7%) texto foi construído com profissionais da área jurídica
e um (1) (7,7%) texto foi elaborado com profissionais da segurança
pública. Para coleta e análise de dados, os autores utilizaram
diferentes métodos e abordagens de pesquisa dos quais 13 (100%)
artigos são de estudos qualitativos. Destes, nove (9) (69,2%) se
utilizaram de entrevistas semiestruturada e sete (7) (53,8%) estudos
303

utilizaram o recurso de gravação.


Dentre os estudos selecionados não foram identificadas
pesquisas nas abordagens quantitativa, nem mista. Para tratar sobre
o assunto, os autores utilizaram diferentes métodos de pesquisa ou
análise de dados, em que um (1) (7,7%) estudo utilizou o método
descritivo em conjunto com o exploratório, dois (2) (15,4%)
manuscritos utilizaram o método de pesquisa participante, quatro
(4) (30,8%) artigos usaram o método de análise, um (1) (7,7%)
escrito foi exploratório. Três (3) (23,1%) foram estudos de pesquisa
de campo e dois (2) (15,4%) não foi possível identificar o método
utilizado, pois os autores não apresentaram este dado em suas
pesquisas.
As formas de violência mais citadas nos estudos são
violência psicológica e física, quatro (4) (30,8%) textos. Porém
dois (2) (15,4%) estudos referiram sobre a violência física, sexual e
psicológica presente na mesma agressão e, dois (2) (15,4%) textos
relataram a presença também de violência financeira. Cinco (5)
(38,5%) estudos não mencionaram as formas de violência. Em
relação ao número de publicações, as áreas com maior destaque
foram; Psicologia e Serviço Social com seis (6) (46,2%) e três(3)
(23,1%) artigos, respectivamente. Seguido por Enfermagem dois (2)
(15,4%) e Direito um (1) (7,7) artigos. Uma (1) (7,7%) publicação
foi realizada por duas áreas, a saber, Psicologia e Enfermagem.

7 DISCUSSÃO
O fenômeno de violência contra mulher no contexto
doméstico é uma das principais formas de violação dos direitos
humanos, além de uma realidade problemática enfrentada pela
mulher na atualidade (SOUZA, SANTANA; MARTINS, 2018).
Frente a isso, o presente estudo teve como objetivo, realizar uma
análise das publicações nacionais sobre as Políticas Públicas / rede
de enfretamento e assistência às mulheres vítimas de agressões
doméstica existentes no país, no período de janeiro de 2015 a
junho de 2019.
Para discussão dos resultados, serão utilizados como
categorias de análise os objetivos específicos deste estudo. Dessa
304

forma, a categoria um versa sobre a identificação dos suportes


disponíveis às mulheres em situação de violência doméstica
verificando sua eficiência no atendimento e amparo as essas
vítimas. A categoria tem o propósito de refletir sobre os possíveis
desafios enfrentados por esses suportes no amparo e assistência a
essas vítimas.

7.1 Suporte disponível x eficiência no atendimento


Atualmente são encontrados diversos locais disponíveis
para o amparo e assistências às mulheres vítimas de violência
doméstica, tanto no âmbito da segurança púbica quanto da Saúde e
Assistência, além da Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha. Dentre os
estudos analisados, os locais apontados como suportes disponíveis
às mulheres vítimas de violência conjugal são: Centro de Referência
e Atendimento à Mulher (CRAM), Centro Especializado de
Atendimento à Mulher vítima de violência Doméstica (CEAM),
Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher (GEDEM), Casa
de Acolhimento/ Abrigo, Sistema Único de Assistência Social
(SUAS), Secretarias de Assistência Social, Unidades Básica de
Saúde (UBS) e ou Estratégias e Saúde da Família (ESF), Unidade
Hospitalar e as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher
(DEAM) (NETTO et al., 2015; TAVARES, 2015; ROLIM; et
al., 2015; SOUZA;SABINI, 2015; SOUZA; REZENDE, 2018;
ARAUJO; SANTOS; RANGEL, 2016; CAMPOS, 2015; NETTO
et al., 2017; TERRA; OLIVEIRA; SCHAIBER, 2015; SOUZA;
SOUSA, 2015; SILVA; PADOIN; VIANNA, 2015; SOUZA;
SANTANA; MARTINS, 2018).
As DEAMs são um dos primeiros serviços e a primeira
Política de Segurança Pública voltadas às mulheres, sendo locais
de referência para atuar sobre os casos de violência conjugal
(CAMPOS, 2015). Mas, estudos mencionam que muitas mulheres
em situação de violência doméstica têm buscado os atendimentos
nas Unidades Básicas de Saúde e Pronto Atendimento hospitalar,
como estratégia de enfrentamento para a violência sofrida no
ambiente doméstico, no entanto essa busca vem mascarada através
de queixas relacionadas a problemas de saúde de ordem física como
305

os ginecológicos, e ou emocional como transtornos depressivos,


baixa estima, denotando a importância de uma escuta e um olhar
holístico do profissional, para poder captar essas situações e adotar o
encaminhamento mais adequado para o caso, através do documento
de Referência e Contra-Referência (NETTO et al., 2017; SOUZA;
REZENDE, 2016; SOUZA; SABINI, 2015).
Do ponto de vista de Netto; Moura; Silva; Penna; Pereira
(2015), a instrumentalização e qualificação dos enfermeiros
contribui para um atendimento eficiente e resolutivo, uma vez que é
a equipe de saúde que atua diretamente com essas mulheres quando
buscam por atendimento nas Unidades de Saúde, intervindo em
questões emocionais e físicas, além de promoverem ações coletivas
e grupais que visem o fortalecimento da mulher na busca por apoio
institucional especializado. Nesse sentido, cabe ressaltar que a
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, sendo
uma política estratégica para superação da violência contra mulher,
preconiza por meio de diretrizes que os profissionais do SUS devem
ser orientados e capacitados para promover a atenção integral à
saúde das mulheres, atendendo às suas necessidades (SOUZA;
REZENDE, 2018).
Por outro lado, Souza; Sabini (2015) e Araújo; Santos e Rangel
(2016), salientam que a Atenção Básica sozinha não consegue atender
todos os tipos de demandas, por isso a importância do trabalho
interprofissional e setorial nos atendimentos às mulheres vítimas
de violência doméstica. Observações essas também levantadas em
estudos de Krenkel e Moré (2015), que ressaltam a necessidade de
profissionais de diversas áreas possuírem conhecimento acerca das
situações de violência que ocorrem no âmbito familiar, para que
possam ser resolutivos ao se depararem com essas situações no
cotidiano profissional.
Desse modo, compreender os elementos presentes no
fenômeno de violência doméstica contra mulher é importante
para o profissional poder atuar e coibir de maneira efetiva frente
às situações de violência (SOUZA; REZENDE, 2018). Para Netto;
Moura; Silva; Penna; Pereira (2015); Krenkel e Moré (2015), fatores
como, medo de morrer, insegurança, ou por não aguentar mais as
situações de violência vivenciada, influenciam a busca da mulher
306

por apoio institucional especializado. Segundo esses autores, o


convívio em uma relação conflituosa e agressiva se torna prejudicial
tanto para a mulher quanto para os filhos, que por vezes resulta em
prejuízos escolares e sociais.
Nesse sentido a escola, mesmo não sendo diretamente ligada
às políticas de proteção à mulher vítima de violência doméstica,
contribui para a identificação dos casos de violência, pois atua em
parceria com o conselho tutelar quando as denúncias de violência
ocorrem inicialmente contra as crianças, resultando posteriormente
na identificação dos atos violentos também contra a mulher
(SOUZA; REZENDE, 2018; KRENKEL; MORÉ, 2015).
No contexto de violência, as DEAMs e as secretarias de
Assistência Social, configuram-se espaços de garantias de direito,
além de atuarem como porta de entrada para rede de assistência
e apoio às mulheres vítimas de violência conjugal, como a Casa-
Abrigo, Centros Referência de Assistência Social (CREAS), dentre
outros (SOUZA; SABINI, 2015; KRENKEL; MORÉ, 2015;
SOUZA; SOUSA, 2015).
A entrada, assim como a permanência na casa- abrigo dá-se por
meio de procedimentos e regras internas, tais como: encaminhamento
feito por órgãos de segurança pública e ou assistência social, horários
para atividades domésticas, para alimentação e visitas somente
com agendamento prévio. Os cuidados com as crianças, quando
há, é de responsabilidade da mãe. Com isso, a estadia na casa,
proporciona segurança e possibilita a reflexão e ressignificação na
vida das abrigadas, mas também emerge sentimentos de injustiças,
pois enquanto seu parceiro agressor está em liberdade, elas, para
manterem-se seguras necessitam do isolamento social.
Para solucionar essas questões, a casa-abrigo conta com
uma equipe de profissionais que disponibilizam um tempo para
atender as essas demandas, tornando-se um ambiente adequado
para a reestruturação psicológica das mulheres, devido ao apoio
multiprofissional ofertado (KRENKEL; MORÉ, 2015). Em
contraponto a isso, estudo publicado por Tavares (2015), revela
a atuação de algumas juízas/ juízes que baseados nos princípios
patriarcais muitas vezes optam pela reconciliação do casal,
307

contribuindo com a naturalização da desigualdade de poder presente


no âmbito familiar e a ideia da mulher de que está sozinha, sem o
amparo e proteção do estado, culminando em sentimento de culpa,
vergonha e responsabilização sobre a situação vivida (TERRA;
OLIVEIRA; SCHAIBER, 2015).
Para tanto, o acesso à educação tem se tornado um aliado
para a mulher mudar de vida, uma vez que “a educação é uma
ferramenta importante para as classes menos favorecidas acenderem
socialmente ou assumirem uma postura frente à sua realidade”, pois
possibilita o conhecimento necessário para fazer uma reflexão sobre
a realidade que a cerca. Com isso, o estudo e o trabalho contribuem
para o fortalecimento da mulher, fazendo-a sentir-se melhor consigo
mesma. Para além da educação, as reuniões promovidas pelo
Centro de Referência à Mulher propiciam um espaço de apoio e
encorajamento para o rompimento do ciclo de violência (NETTO;
MOURA; SILVA; PENNA; PEREIRA, 2015, p. 139).
Quanto às medidas protetivas, estudos apontam que há
descumprimento do prazo estabelecido no Art. 12, inciso III da
LMP, que determina o prazo de 48 horas para remeter ao juiz/
juíza o pedido da vítima para concessão das medidas protetivas, há
também a negligência dos operadores do direito frente à emissão
das medidas protetivas, as quais são apenas baseadas em artigos
específicos da Lei 11.340/2006, sem levar em consideração de
que modo serão executadas (TAVARES, 2015; SILVA; PADOIN;
VIANNA, 2015; SOUZA; SOUSA, 2015), apontando a despreparo
do poder judiciário para resolução de conflitos de âmbito familiar.

7.2 Desafio para a assistência às vítimas


Essa categoria busca identificar as possíveis dificuldades e
desafios enfrentados pelos profissionais tanto da área de Segurança
Pública, quanto do Poder Judiciário e da Saúde, para o amparo e
assistência às mulheres vítimas de violência doméstica. Netto;
Moura; Silva; Penna; Pereira (2015), observam que a denúncia se
torna opção para mulher em situação de violência intrafamiliar só
quando já não sabe mais o que fazer para resolver o problema, e não
detém de outra escolha a não ser buscar auxilio na Lei.
308

Estudos apontam que além do medo, a vergonha, a baixa


autoestima, o isolamento, o sentimento de culpa e a dependência
financeira, as pressões sociais e a falta de informação sobre a
justiça, assistência e proteção, também são alguns fatores que
podem influenciar a vítima em optar por não denunciar a situação
vivida, ou buscar o apoio institucional especializado de maneira
espontânea, aumentando o silêncio sobre a violência (NETTO
et al., 2017;TERRA; OLIVEIRA; SCHAIBER, 2015; ROLIM;
FALCKE, 2017; SOUZA; SABINI, 2015;SOUZA; REZENDE,
2016; SOUZA; SANTANA; MARTINS, 2018).
Frente a isso, Terra; Oliveira; Schaiber (2015); Souza e Sousa
(2015); Netto et al. (2017), evidenciam que o sentimento de vergonha
contribui para a falta de diálogo, e para o isolamento da vítima, uma
vez que evita qualquer tipo de relacionamento que possa contribuir
em novos episódios agressivos acarretando em sentimento de culpa,
vendo-se obrigada a suportar as práticas violentas do companheiro.
Esse silêncio e isolamento adotado pelas vítimas se estendem até as
instituições que lhes poderiam oferecer algum suporte.
Para Terra; Oliveira; Schaiber (2015), a falta de apoio
familiar, comunitário e institucional intensificam o sentimento
de medo e desamparo. O baixo acesso à educação assim como
a divulgação restrita de alguns locais destinados ao amparo às
mulheres vítimas de violência doméstica influencia na baixa busca
por apoio institucional especializado, uma vez que a divulgação
é realizada apenas por locais que visam a garantia dos direitos
humanos e questões relacionadas à mulher.
Tavares (2015) apresenta, em um estudo realizado com
mulheres vítimas de violência doméstica, o descontentamento e a
descrença com a rede de proteção. Pois, além do descumprimento da
Lei 11.340/06, há o despreparo dos profissionais em abordar o tema
para além dos princípios parentais, destaca ainda a morosidade nos
atendimentos, falta de orientação tanto para as vítimas quanto para
os profissionais sobre os trâmites do processo, bem como a precária
articulação entre os serviços da rede de assistência.
Nesse ponto Rolim; Falcke (2017) Silva; Padoin; Vianna,
(2015), observam que a fragmentação dos serviços influencia
negativamente na qualidade da assistência prestada à mulher, o
309

que dificulta o rompimento com a relação violenta, resulta na


hesitação da mulher em realizar e ou, dar seguimento ao Boletim de
Ocorrência (BO) e, dificulta o trabalho dos operadores da Lei, além
de contribuir com a descrença das vítimas com relação à efetividade
da mesmo em punir o agressor. Uma vez que a opção em suspender
o processo de BO é uma prática comum (SOUZA; SANTANA;
MARTINS, 2018).
Fatores como o sucateamento dos serviços, a falta de
recursos humanos e materiais, da ausência de locais específicos para
o atendimento à mulher vítima de agressão intrafamiliar, ausência
de plantões 24 horas, no caso das DEAMs, presença de profissionais
desmotivados, processos dos inquéritos lentos e burocráticos e
ausência de protocolos e comunicação fluída com a rede de assistência
(CAMPOS, 2015; SILVA; PADOIN; VIANNA, 2015; SOUZA;
SANTANA; MARTINS, 2018), dificultam o desenvolvimento do
trabalho, além de causar lentidão aos atendimentos nos casos de
violência contra mulher. Silva; Padoin; Vianna, (2015), observam
que devido à complexidade do fenômeno de violência, torna-se
necessário para além de implementação de protocolos fluídos para
organizar as ações, a mobilização da rede como um todo, para a
promoção de ações que visam coibir tais práticas de violência.
Por outro lado, um estudo publicado por Araujo; Santos;
Rangel, (2016) sobre os desafios enfrentados por uma equipe de
estratégia e saúde da família atuantes em um complexo de favela
nos atendimentos dos casos de violência doméstica contra mulher,
aludem sobre as dificuldades ofertadas pelo próprio contexto
social, onde o profissional tem dificuldade em notificar os casos de
violência doméstica contra mulher, devido ao contexto social no
qual está inserida pois as práticas de violência são comuns no dia a
dia, e muitas vezes o mesmo profissional que notificou a violência
também é morador dessa comunidade.
Esse contexto emerge no profissional sentimento de
impotência, opressão e coação frete às situações de violência
doméstica presentes no cotidiano de trabalho, pois nesse contexto
um instrumento de notificação pode se tornar um risco para sua
própria vida porque este instrumento pode ser facilmente entendido
como denúncia.
310

Dessa forma, Rolim; Falcke (2017) observam a necessidade


de adaptação das políticas à realidade de cada local. Para tanto, a
complexidade do fenômeno da violência conjugal requer estratégias
que visam tanto a segurança do profissional quanto da vítima de
agressão.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos assinalam a criação de diversos dispositivos
voltados às mulheres vítimas de violência intrafamiliar, além da Lei
Maria da Penha, a qual representa um marco na luta contra a violência
de gênero, estabelecendo dispositivos protetivos de urgência e de
assistência à mulher, que deveriam punir com severidade o agressor.
Observou-se que a Lei, assim como os locais disponíveis quando
bem estruturados, promovem à vítima segurança e proteção. Mas,
devido à escassez de recursos humanos e financeiros faz com que
esses serviços não sejam efetivos da forma como deveriam ser.
Desse modo, ressalta-se a necessidade de um olhar mais
atento por parte dos órgãos públicos para a efetividade das políticas,
bem como suas adequações de acordo com o contexto no qual está
inserida, de modo que possa atender às solicitações da vítima de
maneira efetiva, mantendo e garantindo a segurança da mesma,
assim como do profissional da rede. Observou-se também a
necessidade de uma comunicação fluída entre as instituições que
compõem a rede de enfrentamento à violência contra mulher, assim
como a necessidade de um trabalho interprofissional e setorial.
É válido ressaltar, a necessidade de um olhar atento também
dos pesquisadores no tocante à produção de discussões voltadas
para a agressão intrafamiliar contra a mulher, pois as pesquisas
contribuem de diversas formas, tanto para a divulgação da gravidade
do tema em questão, quanto para a produção de estratégias que
visem coibir qualquer forma de violência no âmbito familiar, a qual
apresenta crescimento substancial, independente da classe social.
Espera-se que os resultados desta pesquisa contribuam para uma
reflexão sobre ações desenvolvidas para o combate à violência
contra a mulher, e possam refletir em melhorias na implantação de
estratégias para o enfrentamento das práticas de violência contra
311

mulher no contexto doméstico. Frente a isso, sugere-se que novas


pesquisas sejam realizadas, de modo que haja maior apropriação
acerca da complexidade do fenômeno de violência desferida contra
mulher no ambiente doméstico.

NOTAS

1 Psicólogo, Pós-Graduado em Gestão de Pessoas e Recursos Humanos, email


[email protected]
2 Psicóloga, Mestre em Desenvolvimento Regional, UNISC, email: albaregi-
[email protected]

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UMA EPIDEMIA EM MEIO A PANDEMIA: A
VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES COMO UM
PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA1

Emanuele Dallabrida Mori2


Tatiana Diel Pires3
Janaína Machado Sturza4

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Tendo em vista o fato de que a violência contra as mulheres
é um problema de grandes dimensões no Brasil, o que o colocou, no
ano de 2015, na lastimável 5º posição, no mundo, em um grupo de
83 países com dados homogêneos (WAISELFISZ, 2015), é urgente
que se promova reflexões sérias e críticas a respeito de como o
tema é tratado em nossa sociedade. Esse é o objetivo principal do
presente estudo, que se dedica a realizar uma análise da violência
contra a mulher baseada em reflexões teórico-críticas e também em
realidades práticas dessa questão na rede de atendimento à mulher,
especialmente no âmbito da saúde pública.
O problema que orienta o estudo pode ser assim formulado:
levando em consideração os altos índices de violência contra as
mulheres no Brasil, e, em particular, o aumento vertiginoso dos
casos paralelamente ao período em que o país enfrenta uma grave
crise de saúde em razão da pandemia do novo coronavírus, esse
é um problema enfrentado, de fato, como uma questão de saúde
pública no Brasil? Como hipótese inicial tem-se que, embora haja
uma verdadeira “epidemia” de violência contra as mulheres, essa
não é uma questão tratada com a seriedade que exige, não apenas em
função de questões práticas, mas, sim, em virtude de profundas – e
estruturais – construções culturais diferenciais nas relações sociais,
que aprisionam milhares de mulheres em situações de violência e
opressão, em um cenário em que a violência doméstica ainda não
foi assumida como um problema não apenas de saúde pública, mas
político, concernente, portanto, à sociedade como um todo.
320

Para realizar esse percurso, o presente estudo está estruturado


em dois principais pontos, os quais correspondem aos seus objetivos
específicos: em um primeiro olhar, através de uma análise biopolítica,
entrelaçada com estudos de gênero, busca-se verificar a abordagem
crítica dada por diversos autores à questão das mulheres em uma
sociedade marcada por grandes desigualdades, dentre elas a de
gênero, considerando, também, o sistema de proteção às mulheres
estruturado no Brasil e a situação da violência em números; e, em
segundo lugar, investiga-se qual é a realidade prática dessa questão,
especialmente nos setores relacionados à saúde e assistência às
mulheres.
O método de abordagem utilizado é o hipotético-dedutivo,
com a utilização da técnica de pesquisa bibliográfica para a coleta
dos dados. Os procedimentos adotados envolvem, além da seleção
da bibliografia que forma a base teórica deste estudo, também a
leitura de pesquisas estatísticas e pesquisas que se debruçaram a
estudar estratégias e procedimentos adotados, especialmente por
profissionais da saúde, quando da constatação de mulheres em
situação de violência, a fim de que se possa verificar se, na prática,
a hipótese aqui formulada verifica-se de fato.

2 ONDE A MULHER PODE HABITAR? UM OLHAR


ATRAVÉS DA BIOPOLÍTICA E DOS ESTUDOS DE
GÊNERO
Buscar compreender valores, práticas e projetos que podem se
encontrar abscônditos nos problemas sociais que vivenciamos exige
um olhar atento para fenômenos que a princípio podem se mostrar
apartados uns dos outros. O tema da violência contra a mulher, no
Brasil, pode ser visto como uma das facetas da violência estrutural
e estruturante das nossas relações sociais. Contudo, muitos estudos
demonstram como há vários outros pontos a serem considerados.
Nesse sentido é que os estudos de gênero revelam como as marcas
de uma sociedade patriarcal5 projetam a mulher como aquele
corpo de menor valor, em uma relação na qual se estabelece um
processo persuasivo ou impositivo mediante o qual as mulheres
devem entregar um tributo aos homens, a fim de que adquiram
321

seu status masculino, como um título ou um grau. Trata-se de um


processo, portanto, de produção diferenciada de masculinidade e de
feminilidade (SEGATO, 2005).
As relações de poder que são estabelecidas nesse sistema
são várias. Partindo de uma perspectiva foucaultiana, ao menos
dois pontos podem ser considerados: um deles é o exercício do
poder em sua microfísica, e o outro é o biopoder que possibilita a
organização de uma biopolítica que irá gerir a vida em função da
sua utilidade. Segundo explica Judith Revel (2005, p. 67), Michel
Foucault “nunca trata do poder como uma entidade coerente,
unitária e estável, mas de ‘relações de poder’ que supõem condições
históricas de emergência complexas e que implicam efeitos
múltiplos”. Implicada nessas relações está também a produção de
saberes: são processos conectados, nos quais “as relações de poder
irão desencadear a produção dos saberes, donde a impossibilidade,
na perspectiva foucaultiana, de um poder desvinculado do saber, e
vice-versa” (LUSTOSA, 2013, p. 54).
A utilização de discursos – ou seja, saberes – é historicamente
verificada como legitimadora de ações que agem direcionadas ao
corpo feminino, à sua liberdade, à sua sexualidade. Foucault (1978),
em sua obra “História da Loucura na Idade Clássica”, explica
como, no século XVIII, a noção de histeria (doença atribuída
praticamente somente a mulheres) era na verdade utilizada quando
o médico possuía uma falta de conhecimento a respeito da doença.
Conforme explica (1978, p. 309), “a noção de histeria recolhe todos
os fantasmas – não daquele que é ou que se crê um doente, mas do
médico ignorante que faz de conta que conhece a situação”.
É significativo notar, portanto, que mesmo a falta desse
conhecimento específico pelos médicos – homens – é convertida
em saber – uma espécie de “saber englobante” sobre a histeria
– e gera uma série de mecanismos que afetam diretamente as
mulheres. A posterior classificação de doenças tais como a histeria
e a hipocondria como doenças mentais cria uma nova categoria: a
loucura (FOUCAULT, 1978). Segundo Valeska Zanello (2018), a
transformação do louco em doente mental gera sua exclusão social
em locais específicos – os manicômios. Contudo, Showalter (1987
apud ZANELLO, 2018), chama a atenção para o fato de que foi a
322

voz das mulheres que foi silenciada nesse processo, de modo que a
história da psiquiatria é, na verdade, uma história dos discursos dos
psiquiatras homens sobre mulheres loucas.
Outro acontecimento histórico que deve ser destacado a fim
de se atentar ao fato de como o corpo da mulher sempre foi objeto
de controle e crueldade é o fenômeno da caça às bruxas, objeto
de amplo estudo realizado por Silvia Federici (2004), cujo ápice
se deu entre os anos de 1580 e 1630 (RODRIGUES; ARAÚJO,
2019). Conforme observa Federici (2004, p. 337-338), a caça às
bruxas foi um fato histórico e político marcado por uma verdadeira
guerra contra as mulheres, em uma “tentativa coordenada de
degradá-las, demonizá-las e destruir seu poder social”, uma vez
que foi “precisamente nas câmaras de tortura e nas fogueiras, nas
quais as bruxas morreram, onde se forjaram os ideais burgueses
de feminilidade e domesticidade”. Esse poder social constituía-se
justamente no fato de que a bruxaria se tratava de um “movimento
social e político de mulheres, voltado para a construção de um modo
de vida e de produção de saber próprios e não mais submisso ao
patriarcado” (RODRIGUES; ARAÚJO, 2019, p. 499).
Essas análises remetem à existência de um controle muito
específico – e longevo – dirigido aos corpos e às subjetividades
das mulheres. Nesse ponto, conforme anteriormente mencionado,
investigar esse campo em uma abordagem inicial a partir de um
marco teórico biopolítico e que se entrelace com os estudos de
gênero parece trazer importantes contribuições ao debate. Tomando
como ponto de partida o entendimento de Foucault (2005) a respeito
da biopolítica, tem-se que se trata de uma nova tecnologia de poder
surgida a partir de meados do século XVIII, por meio da qual há
uma mudança no exercício do poder soberano: “Pode-se dizer que
o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído
por um poder de causar a vida ou devolver à morte” (FOUCAULT,
2005b, p. 130).
Ocorre que esse deslocamento não gera uma diminuição,
mas sim um aumento da violência. O paradoxo dessa questão é
explicado pelo racismo, que passa a ser incorporado como condição
para que se exerça o direito de matar, já que é ele que permite que
se faça uma cesura no corpo da população, estabelecendo as raças
323

como boas ou más, e, a partir disso, que se atue sobre (ou que se
“deixe morrer”) a raça inferior. A esse funcionamento do Estado que
necessita do racismo, Maiquel Wermuth e Joice Nielsson (2016, p.
10) acrescentam um outro mecanismo: o sexismo, pois é a partir do
sexo que, da mesma forma, uma sociedade patriarcal estabelece a
“hierarquização das vidas humanas a partir de diferenças biológicas”.
Posteriormente a Foucault, Giorgio Agamben veio a
aprofundar o tema, agregando novos elementos à análise biopolítica
inaugurada pelo primeiro. Acontece que essa forma de poder coloca
em jogo uma vida biológica, à qual Agamben (2002) chama de vida
nua: uma vida fendida, separada da bíos, que, para os gregos, era a
vida qualificada, em contraposição à zoé, vida comum a todos os
seres viventes cujo lócus é o oîkos (a casa), e não a pólis (cidade).
O problema da vida nua é que ela é uma vida matável, cujo símbolo
é o homo sacer, emblemática figura recuperada por Agamben do
direito romano arcaico, que era o ser duplamente excluído: tanto do
direito humano, pois poderia ser morto impunemente por qualquer
pessoa, quanto do direito divino, pois já não poderia ser sacrificado
na forma dos rituais. Nesse contexto, o âmbito de realização máxima
da biopolítica e da produção de vida nua é o campo (paradigma
formulado a partir da análise dos campos de concentração criados no
nazismo), local onde a exceção pode ser realizada de forma estável,
onde tudo se torna possível, eis que a lei é integralmente suspendida
(AGAMBEN, 2002).
Se essas proposições, descritas em breve síntese, colocam em
pauta a problemática justamente da inscrição da vida – “biológica”,
em Foucault, e “vida nua”, em Agamben – nos cálculos do poder
soberano, tensionando, com isso, diversos mecanismos em curso
na sociedade atual,6 realizar essa análise permeada por questões de
gênero é importantíssimo para aprofundar a reflexão. Isso pois tanto
Foucault quanto Agamben não adentraram nesse viés, no entanto
suas pesquisas têm sido apropriadas como categorias analíticas para
o estudo das profundas opressões e violências de gênero que são
características de diversas sociedades, dentre elas a brasileira.
Nesse sentido, os estudos de Michele Perrot (2015, p.
76) em “Minha História de Mulheres” exemplificam a possível
aproximação entre teorias de Foucault e de gênero, pois a autora
324

retrata que “corpo desejado, o corpo das mulheres é também, no


curso da história, um corpo dominado, subjugado, muitas vezes
roubado, em sua própria sexualidade”. Margareth Rago (2006) citada
por Renata Bravo (2019, p. 33) também observa que incorporar
reflexões e conceitos de Foucault ou de filósofos contemporâneos
não representa incapacidade do movimento feminista, já que não
há como dar conta, por si só, de todas as ferramentas conceituais
necessárias que englobam os estudos de gênero, especialmente, a
própria violência.
A construção de um campo teórico de investigação da
violência de gênero é, inclusive, uma conquista do movimento
feminista, que, a partir de 1980, no Brasil, logrou estabelecer
“uma nova área de estudos e ação, abrindo-se um espaço cognitivo
novo, e sobretudo uma abordagem política singular, levando à
criação de serviços públicos especializados e leis particulares”
(BANDEIRA, 2014, p. 449). Lourdes Maria Bandeira (2014, p.
449) ainda explica como isso só foi possível à medida em que foi
sendo desconstruída a ideia de que “o aparato sexual era inerente
à natureza das mulheres e dos homens, colocando as concepções
acerca dos sexos fora do âmbito biológico e as inscrevendo na
história”, além da desconstrução da ideia de que “a violência
contra a mulher está ligada aos significados atribuídos, de modo
essencializado, à masculinidade, à feminilidade e à relação entre
homens e mulheres em nossa cultura”. Ou seja, trata-se de um
tipo de violência que advém não de um posicionamento que visa
aniquilar um outro considerado igual, mas, sim, uma violência
pautada na desigualdade baseada no sexo (BANDEIRA, 2014).
Nesse ponto vale lembrar o que ensina Hannah Arendt (2016,
p. 23), para quem não é possível pensar e analisar a história e a
política de forma distante “ao enorme papel que a violência sempre
desempenhou nos negócios humanos”. Além disso, alertou para
o fato de que poder e violência não se confundem: apesar de em
muitos casos serem usados como sinônimos, “é insuficiente dizer
que poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente,
o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em risco”
(ARENDT, 2016, p. 73).
Tal situação é vivenciada por inúmeras mulheres quando
325

ocorre a prática da violência por parte de homens próximos, com os


quais possuem alguma relação de afeto, como namorados, maridos,
companheiros, pais, ex-maridos, etc., que, em razão de se sentirem
ameaçados no exercício do poder patriarcal, praticam os atos
violentos com a intenção de reforçar o exercício do poder, seja para
mostrar à sua vítima que o exercem, seja por se sentirem legitimados
a retomar esse “poder soberano” que consideram diminuído. Para
Heileieth Saffioti (2004, p. 71) essa relação de poder que coloca o
homem em uma situação superior e, consequentemente, a mulher em
condição de submissão, “longe de ser natural, é posta pela tradição
cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na
trama de relações sociais”. Outrossim, refere que “nas relações entre
homens e entre mulheres, a desigualdade de gênero não é dada, mas
pode ser construída, e o é, com frequência”.
É nesse cenário que sobrevém a necessidade de se pensar o
espaço do lar, em uma perspectiva que contrapõe o espaço público
e o espaço privado, amplamente problematizada pelos estudos
feministas, a partir do momento em que esses tornam claro o fato de
que a conformação histórica entre a esfera pública e a privada não
produz relações igualitárias entre homens e mulheres, e, ademais,
não é “natural” (BIROLI, 2014). Conforme explica Flávia Biroli
(2014, p. 32), “na modernidade, a esfera pública estaria baseada em
princípios universais, na razão e na impessoalidade, ao passo que
a esfera privada abrigaria as relações de caráter pessoal e íntimo”.
De acordo com essa diferenciação, o espaço da mulher seria,
naturalmente, o privado (seria o mesmo oîkos, referido por Agamben
– o espaço da zoé?), já que os estereótipos de gênero atribuem às
mulheres uma série de papéis, dentre eles a “dedicação prioritária à
vida doméstica e aos familiares”, os quais “colaboraram para que a
domesticidade feminina fosse vista como traço natural e distintivo,
mas também como um valor a partir do qual outros comportamentos
seriam caracterizados como desvios” (BIROLI, 2014, p. 32).
Nesse sentido, os atos violentos praticados por homens contra
as mulheres possuem um viés social e cultural muito forte, em razão
dessas construções culturais dos papéis, segundo as quais o homem
deve ser forte, dominador, agressivo e, em contrapartida, a mulher
deve ser dócil, submissa e apaziguadora. Construções sociais essas
326

cujos atos individuais de violência se inserem dentro de um contexto


maior – aquele em que o próprio Estado é racista e sexista. Por isso,
em casos onde sua masculinidade e virilidade estejam ameaçadas ou,
ainda, quando observada a tentativa por parte da mulher de romper
com esse “padrão ideal”, a violência acontece, o homem entende
que possui o poder de dominar, controlar e punir o corpo feminino
(BRAVO, 2019). Sendo assim, Bandeira (2014, p. 259) aponta para
o fato de que a violência de gênero, gerada em relacionamentos
afetivos, ou praticada no espaço doméstico, privado, também revela
a existência desse “controle social sobre os corpos, a sexualidade e
as mentes femininas” demonstrando, ao mesmo tempo, “a inserção
diferenciada de homens e mulheres na estrutura familiar e societal,
assim como a manutenção das estruturas de poder e dominação
disseminadas na ordem patriarcal”.
Essas proposições aparecem trabalhadas em um estudo
formidável de Marcia Tiburi (2013), intitulado “Diadorim:
biopolítica e gênero na metafísica do Sertão”, no qual a autora
analisa os contornos biopolíticos do corpo da mulher na obra Grande
Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Ocorre que Diadorim é
um personagem homem durante a maior parte da história, apenas
sendo revelado como mulher quando morta. Das tantas instigantes
análises realizadas por Tiburi (2013, p. 192), ela chama atenção para
como é significativo o fato de que as mortes das mulheres aparecem
nas escritas dos homens com a intenção de produzir um gozo
estético – e, nesse sentido, não se trata apenas da liberdade do autor
de salvaguardar a tragédia da narrativa –, de forma que é necessário
perguntar: “se uma mulher pode ser morta na literatura de ficção (ou
no cinema, ou nas artes visuais), se sua morte é bela e esteticamente
viável, por que não seria politicamente aceitável?”. Além do mais,
as mulheres são mortas não para que se tornem heroínas (como
acontece com eles) – note-se que Diadorim morre em combate –
mas “para recolocá-las em seu lugar, a de ser doméstico a viver na
penumbra da casa”.
Tiburi (2013) ainda vai além na análise da morte de
Diadorim, explicitando como o “texto falocêntrico” é a arma
(biopolítica e patriarcal) que elege a vida da mulher como vida nua,
vida matável. Isso pois ela apenas pode existir, enquanto mulher, no
327

mundo masculino, quando morta. Sua presença entre os jagunços,


na narrativa de Guimarães Rosa, apenas se dá enquanto homem,
de forma que “ao voltar à condição de mulher, ela não existe senão
como corpo morto. Tal é o que chamaremos de destino, não escolha,
e destino é, para uma mulher, estar condenada à sua zoé, proibida de
participar da vida qualificada dos homens, do bíos” (TIBURI, 2013,
p. 199).
A interpretação de Tiburi (2013, p. 206) é interessantíssima
para se pensar as múltiplas formas em que se manifesta o que ela
chama de “discurso biopolítico do patriarcado”, além de apontar para
esse aprisionamento da mulher no âmbito privado onde a violência
acontece quase que livremente. É retomando também os conceitos
de Agamben que Wermuth e Nielsson (2016, p. 22) apontam
o espaço do lar como campo, onde a exceção pode ser realizada
normalmente; onde a mulher, “reduzida a seu corpo, a seu sexo, a
seu útero, foi enclausurada e é nele que sua vida (nua) está à mercê
do soberano (patriarcado) e de seus caprichos”. Nessa configuração,
enquanto o homem pode sair livremente, para ir tomar o “seu”
espaço público, “à mulher não está disponível a mesma liberdade
que não seja tutelada ou administrada pelo homem [...] Sua vida está
oculta da esfera pública. Permitida, porém, na esfera privada como
lugar oculto” (WERMUTH; NIELSSON, 2016, p. 27).
É por tais razões que se torna urgente tratar da dimensão
pública da violência contra a mulher, eis que a preservação da
esfera privada em relação à intervenção do Estado e às normas e
aos valores majoritários na esfera pública significam a manutenção
de relações de autoridade que limitam a autonomia das mulheres e
legitimam a dominação masculina. Em muitos casos, a “integridade
individual esteve comprometida enquanto a entidade familiar era
valorizada”, de modo que “a compreensão de que o que se passa
na esfera doméstica compete apenas aos indivíduos que dela fazem
parte serviu para bloquear a proteção àqueles mais vulneráveis nas
relações de poder correntes” (BIROLI, 2014, p. 32). Biroli (2014, p.
33) observa, ademais, que o próprio movimento feminista percebeu
a impossibilidade de “descolar a esfera política da vida social, a vida
pública da vida privada, quando se tem como objetivo a construção
de uma sociedade democrática”. Dessa forma, é incabível que
328

as violações de direitos ocorridas no ambiente doméstico sejam


negligenciadas, ou consideradas como apartadas da esfera pública,
pois as esferas “pública” e “privada” se complementam e não
podem ser consideradas “‘locais’ e ‘tempos’ distintos na vida dos
indivíduos”, uma vez que a existência de relações mais justas e
igualitárias na vida privada refletem da mesma forma na esfera
pública (BIROLI, 2014, p. 33).
Para Wermuth e Nielsson (2019, p. 63) lemas como “o
pessoal é político”, ou, “em briga de marido e mulher o Estado
mete a colher” refletiram a necessidade de politização das mortes
e violências contra mulheres, enfatizando que todas resultam de
um sistema no qual o poder, a masculinidade e a violência são
sinônimos, complementam-se e impregnam o ambiente social de
misoginia. Em decorrência dessa dimensão política da violência,
das reivindicações de movimentos feministas e da ampliação do
campo teórico de reflexão crítica acerca da violência de gênero,
todos eles fatores que já não é possível ignorar, foram adotados
alguns mecanismos objetivando evitar ou ao menos reduzir a prática
da violência contra as mulheres. Em termos legais, destacam-se a
Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha) e Lei nº 13.104/15 (Lei do
Feminicídio).

3 EM MEIO À PANDEMIA, UMA “EPIDEMIA”?


A violência contra a mulher é definida pela Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, incorporada ao
ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 1.973/1996)
como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause
morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher,
tanto na esfera pública como na esfera privada”. É também
considerada um importante problema de saúde pública e direitos
humanos, reconhecido pela Organização Pan-Americana da Saúde/
Organização Mundial da Saúde (2014). Segundo Bandeira (2014,
p. 460) a violência de gênero pode ser considerada como um
“fenômeno social persistente, multiforme e articulado por facetas
psicológica, moral e física” em que suas manifestações buscam
329

criar relações de “submissão ou de poder, implicando sempre em


situações de medo, isolamento, dependência e intimidação para a
mulher”. Trata-se de “uma ação que envolve o uso da força real
ou simbólica, por parte de alguém, com a finalidade de submeter o
corpo e a mente à vontade e liberdade de outrem”.
Dada a complexidade da situação, a Lei Maria da Penha – que,
deve-se ressaltar, é uma legislação exemplar no Brasil, formulada
com a participação de movimentos feministas e reconhecendo essa
complexidade (CAMPOS, 2016) – prevê medidas de assistência às
mulheres em situação de violência doméstica e familiar, tanto por
meio de ações integradas de prevenção quanto assistência quando
da configuração da situação de violência, procedimentos judiciais e
medidas de urgência a serem adotados, dentre outros mecanismos.
Contudo, apesar dos avanços legislativos – some-se à Lei Maria
da Penha a Lei do Feminicídio – e da implementação de políticas
públicas voltadas à proteção da mulher em situação de violência, o
que se observa é a persistência de tal fenômeno. Dados obtidos por
meio de uma pesquisa realizada pelo Datafolha e o Fórum Brasileiro
de Segurança Pública - FBSP (2019), demonstram que quase 60% da
população reportou ter visto situações de violência e assédio contra
mulheres nos últimos doze meses em seu bairro ou comunidade,
27,4% das entrevistadas referiram ter sofrido algum tipo de violência
ou agressão no mesmo período e 37,1% das mulheres reportaram ter
sofrido ao menos um tipo de assédio.
Os números anunciados pelo Anuário de Segurança Pública
Brasileiro (BRASIL, 2019) destacam que o País registrou, em 2018,
263.067 casos de lesão corporal dolosa, na forma de violência
doméstica, o que equivale a um registro a cada dois minutos. O
Anuário também evidenciou que o feminicídio no País ganha
cotidianamente proporções alarmantes, uma vez que foram 1.206
registros contabilizados em 2018, sendo em 88,8 % dos casos o autor
um companheiro ou ex-companheiro da vítima. A situação ganha
contornos tão preocupantes que o relatório global 2019 da ONG
internacional Humans Rights Watch define que há uma “epidemia”
de violência doméstica no Brasil, considerando a existência de mais
de 1,2 milhão de casos de agressões contra mulheres pendentes na
Justiça brasileira. O Mapa da Violência de 2015 (WAISELFISZ,
330

2015), que analisou especificamente o fenômeno da violência contra


a mulher, é mais um instrumento que salienta a gravidade do tema,
pois concluiu que o Brasil ocupa a 5ª posição na lista de países com
as maiores taxas de homicídios de mulheres no mundo, num ranking
com 84 países e, ainda, que no ano de 2013 ocorreram cerca de
4 feminicídios diários em que o autor foi um companheiro ou ex-
companheiro da vítima.
Observa-se, pois, que, em situações consideradas “normais”
os índices de violência doméstica e familiar contra as mulheres já
atingem níveis altos, a ponto de serem relacionados à uma epidemia.
Diante do atual contexto da pandemia do novo coronavírus, o
cenário tornou-se ainda mais crítico, uma vez que em razão da
necessidade de isolamento social como forma de prevenção, muitas
mulheres passaram a conviver em tempo integral com seus parceiros
violentos, bem como distantes de pessoas e recursos que poderiam
auxiliá-las em caso de violações de direitos. Por isso, muito embora
a quarentena seja a medida mais segura e eficaz para minimizar
os efeitos diretos do novo coronavírus, o regime de isolamento
tem gerado consequências não apenas para os sistemas de saúde,
mas também para a vida de inúmeras mulheres que já viviam em
situação de violência doméstica. Sem lugar seguro, elas estão sendo
obrigadas a permanecer mais tempo no próprio lar na companhia
de seu agressor e, em certos casos em habitações precárias, com os
filhos e vendo sua renda diminuída, diante da crise econômica que
também se agravou (FBSP, 2020).
No Brasil, conforme aponta a Ouvidoria Nacional dos
Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos (MMFDH), durante o mês de março, no
qual as medidas de isolamento social passaram a ser adotadas pela
maioria dos estados brasileiros, houve crescimento de 18% no
número de denúncias registradas pelo canal “Ligue 180” e no mês de
abril o aumento foi de 40% comparado ao mesmo período de 2019.
Esse acréscimo demonstra que o necessário isolamento social para
o enfrentamento à pandemia escancara uma dura realidade: “apesar
de chefiarem 28,9 milhões de famílias, as mulheres brasileiras não
estão seguras nem mesmo em suas casas” (VIEIRA; GARCIA;
MACIEL, 2020, p. 2).
331

Porém, apesar do percentual de denúncias por meio do


canal Disque 180 ter aumentado, o FBSP realizou uma pesquisa
denominada “Violência Doméstica durante a pandemia de
COVID-19”, com a finalidade de compreender o impacto das
medidas de isolamento na vida das mulheres em situação de
violência doméstica e concluiu que na maioria dos estados
analisados houve uma redução nos casos de violência contra a
mulher. Contudo, tal redução não parece refletir a realidade, mas
sim a dificuldade das vítimas em acessar delegacias e demais órgãos
de proteção em virtude da proximidade do parceiro/agressor.
Por isso, buscando outra fonte de dados e considerando que o
isolamento faz com que mais pessoas estejam em casa durante
todo o dia, aumentando a probabilidade de que discussões, brigas
e agressões possam ser ouvidas ou vistas por vizinhos, a FBSP
em parceria com a empresa de análise de dados e redes sociais
Decode, realizou um monitoramento no Twitter sobre postagens
contendo relatos de brigas de casais vizinhos, identificando as
formas pelas quais as histórias de violência são marcadas sob a
perspectiva da percepção de terceiros e da possibilidades de que
efetuem denúncias.
A Decode coletou um universo de pouco mais de 52 mil
menções contendo algum indicativo de briga entre casais vizinhos
realizadas entre fevereiro e abril. Após uma filtragem com foco
apenas nas mensagens que indicassem a ocorrência de violência
doméstica, resultaram 5.583 menções. Pelos dados colhidos, o
estudo observou que “houve um aumento em 431% de relatos
de brigas de casal por vizinhos entre fevereiro e abril de 2020” e
concluiu que os números confirmam a tese de que há incremento
da violência doméstica e familiar no período de isolamento social
imposto pela pandemia, ainda que este crescimento não esteja sendo
captado pelos registros oficiais de denúncias (FBSP, 2020, p. 13).
Por fim, destaca-se que a ONU tem recomendado aos
países uma série de medidas para combater e prevenir a violência
doméstica durante a pandemia. Entre as propostas, destacam-
se maiores investimentos em serviços de atendimento online,
estabelecimento de serviços de alerta de emergência em farmácias
e supermercados e criação de abrigos temporários para vítimas de
332

violência de gênero. Isso pois, como já referido, a violência contra as


mulheres é um problema social grave e, infelizmente, muito comum
no cotidiano dos brasileiros que apenas foi potencializado durante a
pandemia do coronavírus, o que torna ainda mais urgente um olhar
atento para o fenômeno da violência contra a mulher. Sendo assim,
para complementar a presente análise, verificar-se-á, nas páginas
seguintes, alguns resultados de políticas públicas adotadas pelo
Estado brasileiro para fazer face a tal problema.

4
DEMONSTRAÇÕES ACERCA DA REDE DE
PROTEÇÃO ÀS MULHERES EM SITUAÇÃO DE
VIOLÊNCIA
Apesar de considerada um problema de saúde pública e
presente em políticas e legislações brasileiras, a violência contra
as mulheres segue sendo um grave problema no Brasil, conforme
se verificou. Sendo assim, o presente momento dedica-se a analisar
algumas pesquisas que trataram da violência contra as mulheres
especialmente na perspectiva da saúde. Segundo explica Carmen
Hein de Campos (2016), embora a Lei Maria da Penha tenha operado
uma profunda ruptura paradigmática no Brasil, de tal forma que ela
está amplamente presente no imaginário social atual, é necessário
ainda uma segunda ruptura paradigmática, voltada menos ao sistema
de justiça criminal e mais para a perspectiva integral – que é a soma
de prevenção, assistência e contenção –, a qual já está prevista na
própria Lei Maria da Penha.
Acontece que a violência é complexa e assim também são suas
consequências, de forma que é impossível que o sistema de justiça
criminal responda adequadamente às necessidades das mulheres
(CAMPOS, 2016). Essa percepção parece já ter sido incorporada
nos documentos que tratam do assunto: o Pacto Nacional de
Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (2011), por exemplo,
lançado em 2007 e reavaliado em 2011, prevê expressamente a
necessidade de ampliar a fortalecer a rede de serviços para a mulher,
além de políticas integradas entre todos os entes federativos. No
entanto, a realidade prática não reflete as previsões. Campos
(2016, p. 8) assinala, por exemplo, a desarticulação entre a Política
333

Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, que tem


sido formulada pelo governo federal, mas cuja execução fica a
cargo das polícias, poder judiciário, ministério público e demais
instituições, de forma que “cada um pode fazer do seu jeito, sem
que alinhamentos sobre a forma de atuação possam ser unificados”.
Esse é um fator que foi observado, na prática, por Marcos
Claudio Signorelli, Angela Taft e Pedro Paulo Gomes Pereira (2018,
p. 93), em pesquisa de campo conduzida em uma unidade básica
de saúde localizada na região sul do Brasil. Segundo destacam os
autores, existe um hiato entre as políticas públicas “implantadas em
nível federal e sua aplicação prática em nível local/descentralizado,
que pode deixar tanto profissionais quanto mulheres em risco”,
o qual foi percebido, por exemplo, em relação à estratégia
“acolhimento”, que é prevista na política nacional, contudo, sem
uma institucionalização e treinamento específico dos profissionais
da saúde.
A rede de atendimento integrada é um dos pontos primordiais
das políticas e destacado, na prática, como essencial. Leônidas de
Albuquerque Netto et al. (2017) destacaram a importância de redes
sociais de acolhimento, que são formadas tanto por familiares
e amigos próximos, quanto pelas instituições especializadas
no atendimento à mulher. Nessa pesquisa, realizada no Centro
Especializado de Atendimento à Mulher (CEAM) do município
do Rio de Janeiro, os autores demonstram que, além do CEAM,
instituições de referência em assistência social e psicologia
desenvolveram um papel essencial no atendimento às mulheres
entrevistadas, por meio de um atendimento especializado em busca
da manutenção ou resgate de sua autoestima. Contudo, conforme
apontam Signorelli, Taft e Pereira (2018), a realidade de muitos
municípios brasileiros é que não contam com esses serviços
especializados, que normalmente estão localizados em capitais e
grandes cidades. Assim, nesses municípios, o atendimento fica por
conta, em geral, dos profissionais das Unidades Básicas de Saúde,
agentes comunitários de saúde e pelos programas a exemplo da
Estratégia de Saúde da Família.
A pesquisa de Albuquerque Netto et al. (2017) também
registra o fato de que apenas sete, de um total de vinte mulheres
334

entrevistadas, procuraram instituições de saúde por conta das


consequências da violência (apesar de problemas crônicos de saúde
fazerem parte do cotidiano de muitas mulheres em situação de
violência doméstica). Nesses casos, também é comum verificar que
muitas mulheres não mencionam o fato da violência – Signorelli,
Taft e Pereira (2018) também o observam. Conforme se mencionou,
é comum o comparecimento de muitas mulheres aos serviços de
atenção primária à saúde, o que resulta em uma necessidade de
que haja um atendimento qualificado para identificar e atender as
mulheres em situação de violência. No entanto, esse é um problema
amplamente verificado nas pesquisas analisadas. Janaína Matheus
Collar Beccon e Izabella Barison Matos (2017) realizaram uma
revisão nos dois principais periódicos brasileiros que tratam de
Saúde Coletiva, entre os anos de 2006 e 2016, e um dos resultados
encontrados foi justamente o despreparo dos profissionais da saúde
para receber e identificar as mulheres nessa situação, grande parte
deles com uma formação que não abordou o tema. Há, portanto,
grandes níveis de subnotificação (violência não identificada) e
mesmo de não notificação deliberada.7
Signorelli, Taft e Pereira (2018) deram atenção especial, no
estudo, ao papel que os agentes comunitários de saúde desenvolvem
nesse complexo sistema, e verificaram um padrão comum naquela
comunidade8: os agentes de saúde costumam conhecer os casos de
violência doméstica, por meio dos relatos das próprias mulheres ou
de vizinhos, reportando-os a enfermeiros. Nesse momento, contudo,
pode vir a ocorrer uma falha nesse sistema de comunicação, eis
que, “dependendo da sensibilidade pessoal da enfermeira (não com
base em políticas institucionalizadas no SUS)”9 (SIGNORELLI;
TAFT; PEREIRA, 2018, p. 96, tradução nossa), ela poderá tomar
as seguintes atitudes: aproximar-se da mulher e verificar suas
necessidades, negligenciar a questão, tratando-a como parte de um
problema de saúde ou, se necessário, poderá encaminhar a mulher
a um atendimento médico, psicológico, etc. Assim, embora muitos
profissionais demonstrem preocupação, especialmente em relação
às implicações psicológicas, e muitos promovam um verdadeiro
acolhimento, os autores apontam – salientando que essa questão
tem sido demonstrada por diversos estudos – que os profissionais da
saúde não recebem treinamento adequado para lidar com a questão
335

da violência doméstica, o que exige um sistema efetivo que tenha


estrutura, orientações, financiamentos e recursos.
O papel dos agentes comunitários de saúde também foi
realçado em pesquisa desenvolvida por Jaqueline Arboit et al.
(2018), realizada na região noroeste do Rio Grande do Sul, tendo
como objeto a violência doméstica sofrida por mulheres rurais, que
muitas vezes possuem maior dificuldades em acessar os serviços de
saúde. As autoras salientaram que as visitas domiciliares realizadas
pelos agentes comunitários de saúde representam uma das principais
possibilidades dessas mulheres entrarem em contato com o sistema
de saúde e com os demais serviços de atendimento. Novamente a
falta de capacitação específica surgiu como uma das dificuldades
em abordar o tema e atuar frente a ele, além da ausência de uma
equipe multidisciplinar que também tenha formação específica para
trabalhar com as questões de violência doméstica.
Por fim, ainda é importantíssimo atentar para a violência
por parceiro íntimo sofrida por mulheres gestantes. Conforme
demonstrado em pesquisa realizada por Samara Silva Marques
et al. (2017), com profissionais de 20 Unidades de Saúde da
Família do município de Porto Alegre, mulheres gestantes, além
estarem passando por um momento de grandes alterações físicas
e psicológicas, ainda podem possuir forte dependência emocional
e financeira do companheiro. Nesse ponto, é essencial ressaltar
que diversas pesquisas apontam a baixa renda das mulheres
em situação de violência doméstica como sendo parte do perfil
(BECCON; MATOS, 2017; ALBUQUERQUE NETTO et al.,
2017). A baixa escolaridade e a cor de pele negra também aparecem
como características (BECCON; MATOS, 2017; RAFAEL et al.,
2017), o que aponta para necessidade de se considerar a noção de
interseccionalidade – ou, como o definem Biroli e Miguel (2015, p.
46) esse “paradigma crítico” – ou seja, a convergência entre gênero,
raça e classe, para que seja possível entender “a presença de formas
múltiplas e articuladas de opressão” (BIROLI; MIGUEL, 2015,
p. 44). Esses aspectos, portanto, devem ser considerados quando
da formulação das políticas públicas, formações de profissionais,
dentre outros mecanismos voltados ao combate à violência contra
a mulher.
336

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso realizado no presente estudo visou realizar uma
abordagem, ainda que parcial, tendo em vista sua amplitude, que
desse conta de olhar para alguns aspectos envolvidos no tema da
violência contra as mulheres no Brasil. A reflexão teórica mostra-
se necessária, já que a partir dos estudos de gênero, aliados à
perspectiva biopolítica, é possível realizar abordagem profunda que
dê conta de suscitar uma análise crítica dos modos como a sociedade
se organiza em suas relações sociais. Por outro lado, examinar
como o problema constatado é manejado, na realidade prática, é
outro aspecto relevante para que se possa desvendar que medidas
mostram-se necessárias e adequadas para um melhor enfrentamento
da violência contra as mulheres.
Se é certo que as relações desiguais de gênero estabelecem
relações de opressão e violência interpessoal, as quais exigem, no
âmbito prático, uma ressiginificação coletiva dessas ideias de gênero
e mesmo que se pense em uma nova sociabilidade, pautada na justiça
social, o que é necessário problematizar, e que se buscou realizar
nesse texto, é a dimensão pública da violência contra a mulher. Ou
seja, não se trata, nesse viés, apenas de dizer quem é o agressor e de
como deve ser punido ou de que meios alternativos se pode lançar
mão a fim de produzir atitudes diferenciadas, mas, sim, apontar para
fato de que a violência contra a mulher é um problema crônico, não
individual, mas incutido nas relações de gênero da nossa sociedade.
Daí o questionamento, realizado na abertura deste estudo, e
a hipótese inicial que supunha uma “epidemia” de violência contra
a mulher, no Brasil. Em um momento histórico em que a pandemia
do novo coronavírus suscitou em diversos lugares do mundo graves
crises de saúde pública e colapso dos sistemas de saúde, é urgente
também encarar de fato o problema da violência contra a mulher
um problema de saúde pública. Diz-se encarar “de fato” pois,
conforme se viu, esse já é um problema reconhecido como de saúde
pública, contudo, no Brasil, ele parece ser invisibilizado. Não nos
instrumentos formais, mas na realidade prática – leia-se, na “vida
real” – de milhares de mulheres. Esse não é um aspecto irrelevante,
pelo contrário: as pesquisas em gênero, aliadas a uma perspectiva
biopolítica, demonstram uma racionalidade perversa agindo sobre
337

as mulheres, de forma que tal invisibilização serve justamente à


perpetuação dos discursos e das práticas de dominação masculina,
que continuam, apesar dos avanços, confinando a mulher ao âmbito
da mera vida e negando sua possibilidade de ocupar todos os espaços
que desde tempos imemoriais são “reservados” aos homens.
Ademais, em um momento como o presente, em que o
acesso universal à saúde mostrou, de uma vez por todas, sua
excepcional importância, é oportuno também pontuar a necessidade
de se fortalecer os serviços de atenção primária à saúde, como
as Unidades Básicas de Saúde e programas como a Estratégia de
Saúde da Família, e fornecer formação constante e especializada aos
profissionais, eis que, conforme visto anteriormente, são os locais
nos quais muitas mulheres que sofrem com a violência buscam
auxílio e acolhimento. Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de
que a atenção especializada a mulheres em situação de violência
seja oferecida de forma integrada, abrangendo a área jurídica, da
saúde, psicológica e assistencial, eis que o problema vai muito além
de um caso de justiça criminal, e mesmo da aplicação singularizada
de medidas protetivas.

NOTAS

1 Artigo desenvolvido na disciplina “Direito à saúde, políticas públicas e cida-


dania”, ministrada pela profa. Dra. Janaína Sturza, no Mestrado em Direitos
Humanos da Unijui.
2 Mestranda em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direitos Huma-
nos da Unijuí. Bolsista PROSUC/CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisa
Biopolítica e Direitos Humanos (CNPq/Unijuí). Graduada em Direito pela
Unijuí (2019). Email: [email protected]
3 Mestranda em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direitos Huma-
nos da Unijuí. Bolsista PROSUC/CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisa
Biopolítica e Direitos Humanos (CNPq/Unijuí). Graduada em Direito pela
Unicruz (2019). Email: [email protected]
4 Pós Doutora em Direito pela Unisinos. Doutora em Direito pela Universidade
de Roma Tre/Itália. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do
Sul – Unisc. Especialista em Demandas Sociais e Políticas Públicas também
pela Unisc. Professora na Universidade Regional do Noroeste do Estado do
Rio Grande do Sul – Unijui, Lecionando na Graduação em Direito e no Pro-
grama de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado. Integrante da
338

Rede Iberoamericana de Direito Sanitário. Integrante do Comitê Gestor da


Rede de Pesquisa em Direitos Humanos e Políticas Públicas. Integrante do
Grupo de Pesquisa Biopolítica e Direitos Humanos (CNPq)). Pesquisadora
Gaúcha FAPERGS – PqG Edital 05/2019. Email: [email protected]
5 A utilização do termo “patriarcado” não é livre de polêmicas. Conforme ex-
plica Luiz Felipe Miguel (2014), dentro da teoria feminista existem autoras
que entendem que mais correto seria a utilização da expressão “dominação
masculina”, pois o termo “patriarcado” faria referência a outro tipo de orga-
nização política, relacionada ao absolutismo, e, portanto, inadequada às con-
figurações atuais. Neste estudo, contudo, optou-se pela utilização do termo
“patriarcado” (e suas variações), com o sentido de conformação social que
engloba a dominação masculina e perpetua as desigualdades.
6 Das quais o questionamento, realizado por Agamben em uma retomada das
reflexões de Hannah Arendt, a respeito da (in)eficácia das declarações de
direitos, que falharam todas as vezes em que foram chamadas a agir para
proteger pessoas unicamente com base em sua condição de seres humanos
(AGAMBEN, 2015), é exemplo representativo.
7 A Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003, já estabelecia a notificação
compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher
que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Contudo, a Lei
nº 13.931, de 11 de dezembro de 2019 (que alterou a Lei nº 10.778/2003),
tornou obrigatória a notificação não apenas de violência, mas também de
indícios, além de estabelecer o prazo de 24 horas, ambas disposições que não
eram previstas anteriormente. Pesquisas futuras, portanto, poderão abordar o
tema da notificação verificando o cumprimento da nova legislação.
8 “A pesquisa de campo foi conduzida em uma unidade básica de saúde e em
seu território adscrito, localizado na região sul do Brasil” (SIGNORELLI;
TAFT; PEREIRA, 2018, p. 93).
9 “Depending on the nurse´s personal sensitivity (not based on policies or
institutionalized in SUS), she could […]”(SIGNORELLI; TAFT; PEREIRA,
2018, p. 96).

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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA
A MULHER NA PANDEMIA DE COVID-19

Caroline Fockink Ritt1


Monike Pasqualotti Ghisleni2

1 INTRODUÇÃO
O presente artigo abordará alguns aspectos históricos e
culturais sobre o surgimento da violência doméstica e familiar
contra a mulher, ressaltando a sua incidência durante a pandemia
da Covid 19 que o Brasil enfrenta. A violência de gênero, a qual
está intimamente ligada à violência contra a mulher, é resultado de
um processo construído ao longo da história, enraizado em nossa
sociedade desde os primórdios dos tempos.
A nossa sociedade historicamente é formada sob bases de
conceitos e cultura patriarcal, onde o papel do homem e os valores
masculinos predominavam e se sobrepunham aos da mulher. A
violência surge como materialização dessa forma de constituição da
sociedade, que, por mais que tenha melhorado ao longo dos anos,
ainda nos dias atuais conserva um viés que coloca o masculino em
destaque, razão pela qual a violência contra a mulher ainda se faz
muito presente.
Enfaticamente e, principalmente, o presente trabalho discorre
a posterior sobre o tema da violência doméstica e familiar contra
a mulher no contexto do momento atual, durante a pandemia
de Covid-19 que estamos vivendo em nível nacional e mundial.
Segundo os dados oficiais e as estatísticas, as taxas de violência e de
feminicídio aumentaram, no Brasil e no mundo, e ascenderam um
alerta sobre o assunto.
Diante dos métodos aconselhados pelas autoridades de saúde
e utilizados para tentar frear a pandemia – quarentena, isolamento,
distanciamento social -, as mulheres se viram “trancadas” em casa
com seus agressores e mais suscetíveis à violência, até por não
terem para onde ir, de modo a ficar convivendo com o agressor. Tal
345

realidade fez com que ocorresse um aumento significativo dos casos


de violência, bem como gerou uma maior dificuldade em denunciar
o agressor.
Em contrapartida e em razão da visibilidade desse problema,
surgiu uma grande mobilização das entidades, públicas e privadas,
com iniciativas e movimentos com o intuito de ajudar as mulheres
que sofrem qualquer tipo de violência doméstica, destaque para a
campanha “Máscara roxa” e a campanha “Sinal vermelho para a
violência doméstica”.
Da mesma forma, outras boas práticas já existentes se
destacam nesse momento, pois se tornaram ainda mais importantes
no combate à violência, como os projetos de extensão comunitária
das universidades, e, nesse caso, especificamente, o projeto de
extensão voltado ao combate à violência doméstica da UNISC, bem
como o projeto “Tele Maria da Penha”.
Todos esses projetos são de extrema importância e visam
auxiliar as mulheres que sofrem violência doméstica a quebrarem
esse ciclo e alcançarem a liberdade de uma vida sem sofrimento.

2 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA PRATICADA CONTRA A


MULHER
Ao longo dos anos, a figura masculina sempre exerceu
um papel de destaque na sociedade. Ao homem, sempre foram
assegurados mais direitos e deveres, sendo considerado o centro
da família. Ou seja, a sociedade era extremamente patriarcal,
organizando-se ao redor da figura do homem, que detinha o poder e
a autoridade. Para firmar e reafirmar essa autoridade, muitos homens
utilizavam o recurso da violência contra a mulher– em suas mais
variadas formas: física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral.
Os valores e comportamentos cultivados nas sociedades
estimulavam e incentivavam a violência e a submissão das mulheres
aos homens, baseando-se em uma cultura decorrente da desigualdade
entre os sexos, onde o masculino era superior ao feminino, em um
sistema patriarcado, no qual homens mantêm o poder primário e
liderança em todos os setores, familiar, político e social.
346

Segundo o pensamento de Sabadell (2008, p. 264), o


patriarcado sugere o predomínio dos valores e do poder masculino,
através de mecanismos de controle social que causam opressão
e marginalização em relação às mulheres. A violência física ou
psicológica é uma forma de dominação do gênero feminino pelo
masculino, onde as mulheres sempre se encontram do lado mais
fraco, carentes de meios efetivos para reagir.
Com apoio da mais consistente literatura crítica sobre
o estudo da violência, nas palavras de Andrade (2003, p. 117), é
necessário reconhecer que se viveu e vive em uma sociedade que
possui valores patriarcais, na qual os homens usam a violência para
controlar as mulheres e submetê-las à sua dominação.
Em contraponto, a figura feminina sempre foi, ao longo
dos anos, destinada a um segundo plano, em uma posição de
inferioridade e grau de submissão. Muitas vezes, as mulheres eram
tratadas como propriedade dos homens, perdendo sua liberdade, sua
autonomia e suas vontades. A elas incumbia o papel de cuidadora do
lar, dos filhos e das tarefas domésticas, submetida à autoridade e à
dominação masculina. A eles incumbia o papel de dominação e de
provedor do lar.
Diante desse cenário de dominação, a violência doméstica
surge em suas variadas formas, mas não é algo que saia do patamar
doméstico. No início, ela era tratada apenas como um assunto
pertencente ao casal, ousa se falar que era tida até como um tabu
social, na qual não havia interferência do Estado. A princípio,
não existiam garantias e direitos específicos para as mulheres que
sofriam algum tipo de violência física ou psicológica em seus lares.
Nos ensinamentos de Dias (2012, p. 39), a violência
doméstica pode ser considerada como sendo o tipo de violência que
ocorre entre membros de uma mesma família ou que partilham do
mesmo espaço de habitação. Tal circunstância faz com que seja um
problema muito complexo, pois entra na intimidade das famílias e
das pessoas, agravada pelo fato de não ter, geralmente, testemunhas
e ser exercida em espaços privados. Está ligada, frequentemente,
tanto ao uso da força física, psicológica ou intelectual, no sentido de
obrigar outra pessoa a fazer algo que não quer, também no sentido
de impedir que ela manifeste sua vontade, tolhendo sua liberdade.
347

Ela é considerada uma forma de violação dos direitos essenciais do


ser humano.
A violência contra a mulher é decorrência de um processo
social estabelecido ao longo da história humana, desde os primórdios
da sociedade, até os dias atuais, onde ela ainda vigora, e onde ainda
são cultivadas as diferenças entre homens e mulheres, que podem
desencadear em possíveis violências.
Mas, ao longo dos anos, houve grande mudança na sociedade,
no sentido de proteger as mulheres, e de afastá-las da submissão
masculina. Aos poucos as mulheres saíram da restrição de seus lares,
inseriram-se no mercado de trabalho, passando a desempenhar
inúmeras funções e atividades que antes pertenciam exclusivamente
aos homens. Houve uma grande ruptura social, com uma mudança
no modelo ideal de família, onde o patriarcado não mais vigora com
exclusividade (DIAS, 2012, p. 20).
Embora as mulheres, ao longo do tempo, tenham assumido
outros papéis na sociedade, não apenas dentro de seus lares, a
violência doméstica ainda se faz presente. Diante dessa mudança
de paradigmas, também surge uma ocasião que pode desencadear
episódios de agressões e brutalidades. Ao sair de seu lar para
trabalhar, por exemplo, a mulher rompe com as estruturas sociais,
invertendo muitas vezes os papéis masculinos e femininos, o que,
segundo o pensamento de Dias (2012, p. 20), é cenário para que
também possa surgir a violência, em uma verdadeira guerra dos
sexos, justificada pela inversão dos papéis de gêneros. O homem
usa a seu favor a força e os músculos, a mulher, as lágrimas.
Em 1988, o advento da Constituição Federal garantiu
tratamento isonômico entre os homens e as mulheres e, em seu art.
5º, inciso I, afirma que “homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações, nos termos desta Constituição”.
E, apesar de todos os avanços, da equiparação entre o homem
e a mulher feita pela Constituição Federal de 1988, a ideologia
patriarcal ainda subsiste a todas essas conquistas. Segundo o
pensamento de Dias (2012, p.18-19), a desigualdade sociocultural
é uma das razões da discriminação feminina, e, principalmente,
de sua dominação pelos homens que se consideram como sendo
348

seres superiores e mais fortes. Eles passam a considerar o corpo da


mulher, como também sua vontade, como sendo sua propriedade.
Segundo Cavalcanti (2017, p. 31), o preconceito e a
discriminação estão evidentes em dados socioeconômicos que
indicam que as mulheres, principalmente as negras, são discriminadas
no mercado de trabalho, quando não conseguem empregos ou
ocupam cargos secundários, apesar de serem qualificadas; ou quando
recebem salários inferiores, quando ocupam os mesmos cargos que
os homens ou as mulheres brancas.
Ou seja, mesmo com o advento da Constituição Federal e
sua garantia de tratamento isonômico e mesmo com o movimento
feminino de inserção no mercado de trabalho, os preconceitos e a
violência contra a mulher persistem, de forma enraizada em nossa
sociedade.
Como observa Porto (2007, p. 20), deve-se partir do
reconhecimento sociológico de que não há uma igualdade entre
homens e mulheres, ou seja, essa isonomia é apenas formal, explícita
no princípio constitucional da igualdade, repetida muitas vezes em
legislação ordinária, mas, de fato, não se transferiu essa “igualdade”
ou “isonomia” dos textos legais para a vida cotidiana.
E com relação especificamente à violência que é praticada
contra a mulher, pode-se afirmar que ela é um fenômeno histórico
que existe há séculos, pois a mulher sempre foi tida como um ser
sem expressão, uma pessoa que não possuía vontade própria dentro
do ambiente familiar. Ela não podia sequer expor o seu pensamento
e era obrigada a acatar ordens que, primeiramente, vinham de seu
pai e, após o casamento, de seu marido, conforme ensinamento de
Mello (2007, p. 03).
Concretizar a igualdade de gêneros se constitui em um direito
humano que é a base de outros direitos humanos. A igualdade possui
um grande valor histórico e está classificada como direito humano
de segunda geração, sendo uma grande conquista pós-iluminista,
segundo Porto (2007, p. 20). Da mesma forma, concretizar essa
igualdade e proteger a mulher da violência doméstica é efetivar
os direitos humanos de terceira geração, conforme menciona Ritt
(2008, p. 68).
349

3 A PANDEMIA DO COVID-19 E OS REFLEXOS DI-


RETOS EM RELAÇÃO A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONTRA A MULHER
O ano de 2020 chegou e com ele um vírus se espalhou pelo
mundo. Vindo da China, o coronavírus espalhou-se rapidamente,
causando uma pandemia mundial de Covid-19 (doença infecciosa
que ele desencadeia).
Em relação a esse vírus causador da pandemia, e de forma
breve e explicativa, citamos as lições de Lana (https://www.scielo.
br/scielo, 2020), que nos explica que os coronavírus são RNA vírus
causadores de infecções respiratórias em uma variedade de animais,
incluindo aves e mamíferos. Sete coronavírus são reconhecidos
como patógenos em humanos. Nos últimos 20 anos, dois deles foram
responsáveis por epidemias mais virulentas de síndrome respiratória
aguda grave (SRAG). A epidemia de SARS que emergiu em Hong
Kong (China), em 2003, com letalidade de aproximadamente 10% e
a síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS) que emergiu na
Arábia Saudita em 2012 com letalidade de cerca de 30%.
O Novo Coronavírus, denominado SARS-CoV-2, causador
da doença COVID-19, foi detectado em 31 de dezembro de 2019 em
Wuhan, na China. Em 09 de janeiro de 2020, a Organização Mundial
da Saúde (OMS) confirmou a circulação do novo coronavírus. Em
16 de janeiro, foi notificada a primeira importação em território
japonês. No dia 21 de janeiro, os Estados Unidos reportaram seu
primei¬ro caso importado. Em 30 de janeiro, a OMS declarou a
epidemia uma emergência internacional (PHEIC). Ao final do mês
de janeiro, diversos países já haviam confirmado importações de
caso, incluindo Estados Unidos, Canadá e Austrália. Em 26 de
fevereiro o Ministério da Saúde confirmou o primeiro caso de
coronavírus no Brasil, no estado de São Paulo, em um homem de 61
anos com histórico de viagem recente para a Itália. De lá pra cá, os
números cresceram de forma assustadora.
Atualmente, até o dia 10 de agosto de 2020, em levantamento
junto a secretarias estaduais de saúde já foram registradas 101.857
(cento e um mil, oitocentos e cinquenta e sete) mortes provocadas
pela Covid-19, e 3.057.470 (três milhões, cinquenta e sete mil,
350

quatrocentos e setenta) casos confirmados da doença em todo o


território brasileiro (GLOBO, https://g1.globo.com. 2020).
Diante desse cenário com números alarmantes de infectados
e mortos, não bastassem as grandes dificuldades enfrentadas para
lidar com a pandemia, dentre as muitas consequências sociais
desencadeadas, uma em especial vem chamando a atenção das
autoridades e da sociedade como um todo: o aumento da violência
doméstica e familiar contra a mulher.
Em que pese muitos outros crimes e delitos tenham
diminuído consideravelmente nesse período, em relação à violência
doméstica contra a mulher houve um fenômeno contrário. As
muitas circunstâncias e medidas adotadas pelas autoridades como
forma de combate ao novo coronavírus, como o isolamento social,
contribuíram de forma exponencial para que a violência contra a
mulher aumentasse, assim como o feminicídio.
A realidade é que violência doméstica está mais privada do
que nunca, pois as mulheres que vivem com agressores já viviam
muitas vezes isoladas da sociedade, ou seja, privadas de muitos
papéis que poderiam exercer fora de seus lares, e agora, diante das
circunstâncias atuais, muitas vivem como se estivessem em cárcere
privado (www.ponte.org.br, 2020).

3.1 O aumento da violência contra a mulher durante a


determinação de isolamento social, quarentena e demais
medidas de combate ao coronavírus
A violência doméstica e familiar contra a mulher está presente
em nossa sociedade de forma constante e crescente, em que pese a
Lei Maria da Penha – Lei nº 11.343/06 -, que já vigora há mais de
quatorze anos, ter sido um divisor de águas no combate a este crime.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou, em 2019,
o Atlas da Violência, onde reuniu dados referentes ao processo
da acentuada violência no país, entre elas a violência contra a
mulher. Os dados são relativos ao período de 2007-2017. (https://
forumseguranca.org.br/, 2019).
351

Os dados divulgados mostram que houve um crescimento dos


homicídios femininos no Brasil em 2017, com cerca de 13 (treze)
mulheres mortas por dia. Ao todo, 4.936 (quatro mil, novecentos e
trinta e seis) mulheres perderam a vida, o maior número registrado
desde o ano de 2007. Houve um crescimento significativo de 30,7%
no número de homicídios de mulheres no país durante a década
em análise (2007-2017), assim como no último ano da série, que
registrou aumento de 6,3% em relação ao anterior.
Outro dado relevante apresentado na pesquisa revela que,
do total de homicídios contra as mulheres, 28% ocorrem dentro da
residência, ou seja, provando que é muito provável que estes sejam
casos de feminicídios, no âmbito da violência doméstica contra a
mulher.
Também no ano de 2019, o Fórum Brasileiro de Segurança
Pública divulgou o Anuário Brasileiro de Segurança Pública
2019, onde são compilados os dados referentes a diversos crimes,
cometidos no âmbito federal e dos estados. Nesse anuário, foram
coletados dados referentes aos anos de 2017-2018, em relação
ao homicídio de mulheres e feminicídio, lesão corporal dolosa e
estupro e tentativa de estupro (www.forumseguranca.org.br/, 2019).
Em 2017, foram registrados 4.556 homicídios com vítimas
do sexo feminino, sendo, destes, 23,6%, ou seja, 1.075 foram
considerados como feminicídios. Já no ano de 2018, foram 4.107
homicídios com vítimas do sexo feminino, e destes, 29,4%, ou seja,
1.206 foram considerados feminicídios. No Rio Grande do Sul, em
2017 foram 83 feminicídios em 2017 e 117 feminicídios em 2018,
segundo constam nos dados.
Em relação à lesão corporal dolosa, no âmbito da violência
doméstica, o Brasil registrou, no ano de 2017, 252.895 casos, com
uma taxa de 125,1 a cada 100 mil mulheres. No ano de 2018, foram
registrados 263.067 casos, com uma taxa de 126,2 a cada 100 mil.
A variação entre os dois anos ficou em 0,8%. O Rio Grande do Sul
registrou no ano de 2017, 23.179 casos, e no ano de 2018, 22.008,
com uma diminuição de 5,1% nos registros de lesão corporal contra
a mulher.
Por fim, é importante citar mais algumas estatísticas
352

importantes lançadas no Anuário (https://www.forumseguranca.org.


br/, 2019), como a prevalência de mulheres negras como vítimas
de feminicídio, com 61%, bem como que o ápice da mortalidade
por feminicídio se dá aos 30 anos. Da mesma forma, em relação
à escolaridade, a maioria das vítimas, 70,7%, cursou apenas até
o ensino fundamental. Nesse universo de violência doméstica,
observa-se que 88,8% das vítimas foram assassinadas pelos próprios
companheiros ou ex-companheiros.
Com a chegada da pandemia de coronavírus e a adoção de
medidas para tentar frear o avanço do vírus - como o isolamento,
quarentena e distanciamento social - surgiram muitos efeitos com
impactos sociais, dentre eles o agravamento e aumento da violência
contra a mulher.
Antes de enfrentarmos a pandemia do Covid os dados que
espelham a violência praticada contra a mulher já podiam ser
considerados assustadores. Segundo dados da Organização Mundial
da Saúde (OMS), no ano de 2013 o Brasil já ocupava o 5º lugar, num
ranking de 83 países onde mais se matam mulheres. Além disso,
uma pesquisa do Data/Senado (também em 2013) revelou que 1
(uma) em cada 5 (cinco) brasileiras assumiu que já foi vítima de
violência doméstica e familiar provocada por um homem. Outra
confirmação da frequência da violência praticada contra a mulher
é o que se chama de “ciclo” que se estabelece e é constantemente
repetido: aumento da tensão, ato de violência e posteriormente,
a “lua de mel”. Nessas três fases, a mulher sofre vários tipos de
violência, que são: a violência física, moral, psicológica, sexual e a
patrimonial. Tais podem ser praticadas de maneira isolada, ou não
(www.institutomariadapenha.org.br, 2020).
Com relação à necessidade de isolamento social, observa o
Instituto Maria da Penha (www.institutomariadapenha.org.br, 2020)
que esse isolamento intensifica a convivência entre os familiares, o
que pode aumentar as tensões. O contexto de apreensão, incertezas e
adversidades impostas pela pandemia, além do consumo excessivo
de álcool nesse período, colaboram para as discussões entre casais,
que podem desencadear diversas formas de agressão (física,
psicológica, sexual, patrimonial e moral). Devido ao isolamento
social, muitas mulheres não conseguem fazer as denúncias, o que
353

gera um número alto de subnotificações.


Quanto à violência praticada à mulher, especificamente, na
quarentena, citamos como fonte os levantamentos realizados pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram três Notas Técnicas
sobre a “Violência doméstica durante a pandemia de covid-19”,
emitidas pelo Fórum, nos meses de abril, maio e julho de 2020,
compilando dados, números e estatísticas sobre a violência (2020,
www.forumseguranca.org.br).
Segundo apresentado no estudo publicado em maio, no Brasil,
o número de feminicídios cresceu 22,2% nos meses de março e abril
2020, em 12 estados, em comparação ao mesmo período de 2019.
No ano passado, foram 117 vítimas nesses dois meses. Já neste ano,
143 (https://forumseguranca.org.br/, 2020).
Com relação aos feminicídios, o Rio Grande do Sul registrou
no acumulado de março/abril de 2019, 17 mortes, e no mesmo
período em 2020, 21 vítimas fatais, ou seja, um aumento de 23,5%.
Nesse mesmo período, houve uma maior dificuldade em
denunciar os crimes, com uma redução dos registros de crimes
nas delegacias de polícia. Os registros de lesão corporal dolosa
decorrente de violência doméstica caíram 25,5% nesse mesmo
período entre 2019 e 2020. No Rio Grande do Sul, houve uma
redução de 16,6% nos registros de violência doméstica no período
de março/abril de 2019 para março/abril de 2020, de 3.668 casos
para 3.058.
Houve, por outro lado, um crescimento dos chamados para a
polícia militar no Disque 190 em alguns estados como São Paulo,
com aumento de 44,9% em março em comparativo com mesmo
período do ano passado.
No Ligue 180, também houve um crescimento de 27%
nas denúncias telefônicas, principalmente no mês de abril, onde
o crescimento foi ainda maior (37,6%), período em que todos os
estados estavam adotando medidas de isolamento.
Posteriormente, no último e mais atual estudo apresentado
em julho de 2020, na Nota Técnica sobre a “Violência doméstica
durante a pandemia de covid-19, v.03”, foram coletados dados de
354

feminicídios, homicídios dolosos, lesão corporal dolosa, estupro e


estupro de vulnerável e ameaça para doze Unidades da Federação:
Acre, Amapá, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Minas
Gerais, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do
Sul e São Paulo.
Todas as Unidades da Federação acompanhadas
apresentaram redução nos registros de lesão corporal dolosa entre
março e maio de 2020 em comparação com o mesmo período no
ano anterior. Houve uma queda de 27,2% no período acumulado,
com as maiores reduções nos estados do Maranhão (84,6%), Rio
de Janeiro (40,2%) e Ceará (26%).
Aqui no Rio Grande do Sul, especificamente, no acumulado
entre março a maio de 2019, houve 5.167 (cinco mil, cento e sessenta
e sete) registros de lesão corporal dolosa contra a mulher, sendo que,
o mesmo período de março a maio de 2020, houve 4.274 (quatro
mil, duzentos e setenta e quatro) registros. A queda, portanto, foi de
17,3%.
Em relação aos feminicídios registrados nos estados
brasileiros, diferentemente do que observamos nos meses anteriores,
em maio de 2020 houve uma queda de 27,9% nos registros
de feminicídios nos estados analisados em relação a 2019. Os
homicídios dolosos com vítimas do sexo feminino, por outro lado,
aumentaram 7,1% no mês de maio, passando de 127 em 2019 para
136 em 2020. No acumulado entre março e maio, houve apenas um
pequeno crescimento nos registros, que foram 382 vítimas em 2019
para 386 em 2020.
Assim, conclui o estudo que enquanto nos meses de março e
abril de 2020 observou-se um aumento no percentual de homicídios
de mulheres classificados como feminicídios em relação aos mesmos
meses de 2019, esse percentual caiu no mês de maio. Em março de
2019, 27,9% dos casos de homicídio com vítimas mulheres foram
considerados feminicídios, contra 34,3% no mesmo mês de 2020.
De maneira similar, em abril de 2019, 26,6% dos homicídios foram
classificados como feminicídios, passando para 31,7% em abril
de 2020. Já em maio, essa tendência de aumento na proporção de
homicídios femininos classificados como feminicídios se inverte,
passando de 33,9% em maio de 2019 para 24,4% em maio de 2020.
355

Segundo o estudo, esses novos dados podem apontar para duas


possíveis causas, ou uma breve diminuição na violência letal contra
as mulheres motivada por questões de gênero; ou uma piora no
registro inicial dos feminicídios no mês de maio de 2020 (https://
forumseguranca.org.br/, 2020).
Certo é que, fazendo um balanço geral em relação aos dados
apresentados, é notório a grande variação e o aumento dos casos
de violência contra a mulher. Muitos desses crimes são registrados
como homicídios com vítimas do sexo feminino e não como
feminicídios, assim podendo existir uma subnotificação de casos e
uma divergência de dados.
Destarte é imperioso frisar que este estudo nos mostra o
quanto a pandemia afetou e está afetando a vida das mulheres que
são vítimas de violência doméstica, tornando ainda mais difícil
quebrar este ciclo violento.

4 OS MECANISMOS PARA COMBATER A VIOLÊNCIA


CONTRA A MULHER NA PANDEMIA
Diante dessa situação vivenciada por inúmeras mulheres,
agravada nesse momento de pandemia conforme já explanado,
surgiram muitos movimentos e iniciativas com o objetivo de dar
visibilidade a esse fenômeno silencioso, e mais ainda, fortalecer a
rede de apoio e fomentar o combate à violência contra a mulher.
Muitos projetos e mecanismos já existiam, mas se tornaram
muito mais importantes, significativos e com uma visibilidade muito
maior nesse momento do enfrentamento da violência doméstica.
Da mesma forma, gerou-se um grande debate sobre a criação
e/ou manutenção de políticas públicas de prevenção e luta contra a
violência de gênero no Brasil.

4.1 Projetos de extensão universitária


Como primeiro projeto a ser elencado, destacamos a
importância da extensão universitária, ou seja, aqueles projetos
que buscam um contato entre a realidade da vida profissional e o
356

estudante, colocando-o frente a frente com situações reais a serem


enfrentadas, bem como sendo ele o protagonista de sua aprendizagem
(LIMA, 2020, p. 46).
Os projetos de extensão universitária possibilitam o
compartilhamento do conhecimento com o público externo da
universidade, articulando esse conhecimento científico para práticas
que ajudem no enfrentamento dos problemas e demandas reais.
A universidade, através da extensão, influencia e também é
influenciada pela comunidade, possibilitando uma troca de valores
entre ambas. A extensão universitária deve acontecer sempre
como em uma via de duas mãos, ou seja, a Universidade leva
conhecimentos e assistência à comunidade, ao mesmo tempo em
que aprende com a realidade dessas comunidades.
Como observa Heitor Facini (2017, https://www.kuadro.com.
br) a extensão universitária faz parte do chamado tripé educacional
junto com pesquisa e com as atividades de ensino. Sua principal
função é a de conectar as universidades com as comunidades em
que estão inseridas, desenvolvendo projetos e as beneficiando
diretamente. A extensão dá a oportunidade de o aluno explorar e
desenvolver na prática o que aprendeu no curso universitário. Na
extensão, o contato com a comunidade é direto, pois o aluno do
projeto acaba assumindo a responsabilidade como se estivesse
diante de qualquer outro trabalho.
Mendonça e Silva (2002, p. 29-44) pontuam que a extensão
universitária é imprescindível para o redimensionamento da função
social da própria universidade. Uma das principais funções sociais
da Universidade é a de contribuir na busca de soluções para os
graves problemas sociais da população, formulando políticas
públicas participativas e emancipadoras. A extensão, portanto, é
indispensável na formação do aluno, na qualificação do professor
e no intercâmbio com a sociedade. A qualidade e o sucesso dos
profissionais formados pelas universidades dependem, diretamente,
do nível de desenvolvimento, equilíbrio e harmonia entre essas três
áreas da Universidade.
Ou seja, diante de demandas da sociedade, os projetos de
extensão visam encontrar formas de resolver tais problemas sociais.
357

A fim de exemplificar a extensão comunitária no contexto


do tema do presente artigo analisou-se o projeto de extensão
desenvolvido pela UNISC – Universidade de Santa Cruz do Sul-
RS, denominado “Enfrentamento da violência doméstica e familiar
– Direitos e garantias legais da Mulher agredida”.
O projeto foi desenvolvido em parceria com a Delegacia
Especializada no Atendimento à Mulher, nas cidades gaúchas de
Santa Cruz do Sul e Montenegro. O principal objetivo do projeto
é prestar assistência às vítimas de violência doméstica e familiar,
fornecendo orientações sobre seus direitos previstos na Constituição
Federal, na Lei Maria da Penha – Lei nº 11.343/06, bem como
demais legislações infraconstitucionais.
Objetiva-se realizar os atendimentos com privacidade e de
forma humanizada, pelo fato de que a mulher chega à delegacia sem
informações sobre seus direitos, não sabe a quem recorrer e está
muito fragilizada devido à violência que está sofrendo. O projeto
conta com duas bolsistas estudantes do curso de graduação em
Direito, da UNISC, em cada campus, o que também se revela muito
importante para o crescimento profissional e humano desses alunos.
São muitos pontos positivos que estão sendo alcançados, com
atendimento das vítimas e esclarecimento de seus direitos. Busca-
se a inserção comunitária da Universidade, por meio desse projeto
humanista e que serve para mudar essa triste realidade.
Observa-se que é a primeira edição do projeto em
Montenegro, mas em Santa Cruz do Sul, o mesmo já tem sete anos
de duração, atendendo com muita responsabilidade as mulheres
que são agredidas. E, em Montenegro os resultados já se mostram
muito positivos, com atendimento de várias vítimas, orientação e
encaminhamentos.
O projeto também proporciona uma melhor interação entre
a sociedade e a Universidade, além do que proporciona aos alunos
do Curso de Direito de Santa Cruz e de Montenegro, mais um local
para colocar em prática seus conhecimentos.
O projeto de extensão é um meio pelo qual a Universidade
tem a oportunidade de levar até a comunidade os conhecimentos
358

dos quais é detentora, ou seja, esta é uma forma extremamente


eficaz de democratizar o conhecimento e fazer com que este chegue
ao alcance das pessoas que precisam de ajuda, como é o caso das
mulheres vítimas de violência que precisam de orientações quanto
aos seus direitos.

4.2 O Projeto Tele Maria da Penha


Outro projeto que merece destaque, também criado pela
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, e que foi desenvolvido
efetivamente para auxiliar as mulheres durante a pandemia, é o
projeto “Tele Maria da Penha”. O projeto é coordenado pelos
professores do Curso de Direito da UNISC, Caroline Fockink Ritt
e Eduardo Ritt, e proporciona um atendimento gratuito por telefone
(call center) às vítimas de violência doméstica e familiar, nas
cidades de Santa Cruz do Sul.
A iniciativa visa auxiliar as mulheres e orientá-las sobre os
direitos em caso de agressão ou outras formas de violência, bem
como sobre as medidas que devem ser adotadas.
Esse atendimento por telefone é feito de foram individual
e personalizada, e as principais orientações giram em torno de
esclarecimento sobre as medidas protetivas previstas na Lei Maria
da Penha, bem como, separação, divórcio e dissolução de união
estável e suas consequências em relação aos direitos da mulher
agredida, a guarda dos filhos, pensão e visitas.
Após esse primeiro atendimento feito por telefone, as vítimas
são encaminhadas aos órgãos públicos responsáveis pela rede de
proteção das mulheres vítimas de violência doméstica, como o
Conselho Municipal da Mulher, a Delegacia Especializada no
Atendimento da Mulher, o Ministério Público, a Defensoria Pública,
a Patrulha Maria da Penha da Brigada Militar e o GAJ (Gabinete de
Assistência Judiciária) da UNISC.
Muitas mulheres não denunciam seus agressores e continuam
vivendo em um ciclo de violência, pois não têm para onde ir ou não
têm uma rede de apoio para contar. Existe também a questão da
dependência econômica, o que acaba obrigando muitas mulheres a
359

continuar vivendo e convivendo com o agressor e com a violência.


E como já mencionado no decorrer deste artigo, a quarentena e o
isolamento estão potencializando a convivência entre vítima e
agressor, aumentando os índices de violência doméstica.
Desse modo, o propósito desse projeto é muito eficiente e
interessante, pois além do fato de preservar que as mulheres se
exponham a riscos em razão da pandemia, garante que elas tenham
conhecimento sobre quais são os seus direitos e as formas efetivas
de buscá-los.

4.3 A Campanha da Máscara Roxa e a campanha do Sinal


Vermelho para a Violência Doméstica
A campanha denominada “Máscara Roxa” foi uma iniciativa
criada pelo Comitê Gaúcho Eles Por Elas (He for She), em parceria
com a ONU Mulheres, o Governo do Rio Grande do Sul, Ministério
Público, Defensoria Pública, Polícia Civil, Polícia Militar e demais
parceiros, e que possibilita que mulheres vítimas de violência
doméstica e familiar denunciem casos de agressão em farmácias
previamente cadastradas com o selo de “Farmácia Amiga das
Mulheres”, onde os trabalhadores receberão capacitação online para
estarem preparados para realizar este procedimento, garantindo a
segurança das vítimas (https://www.tjrs.jus.br/, 2020).
Essa iniciativa estará vigorando durante todo o período de
isolamento social devido a pandemia, e é uma forma de ajudar e
incentivar as mulheres que estão sofrendo algum tipo de violência,
mas não conseguem ou não podem fazer um registro formal na
delegacia de polícia.
Assim, ao ingressar na farmácia, a mulher deve solicitar
a máscara roxa, que é a senha para que o atendende saiba que se
trata de um caso de violência contra a mulher e de um pedido de
ajuda. Na sequência, o atendente irá informar que o produto está em
falta e pedirá alguns dados pessoais da vítima com a desculpa de
avisá-la quando o produto chegar. Após isso, o atendente passará as
informações da vítima para a Polícia Civil, que tomará as medidas
cabíveis e necessárias.
360

Outra campanha desenvolvida nesse mesmo sentido foi criada


no dia 10 de junho de 2020, em uma parceria do CNJ (Conselho
Nacional de Justiça) e da AMB (Associação dos Magistrados
Brasileiros), e foi intitulada como “Sinal Vermelho para a Violência
Doméstica” (2020, [email protected]).
A proposta consiste em um ato simples, mas que pode
salvar a vida de muitas mulheres. As mulheres vítimas de violência
doméstica devem se dirigir até uma farmácia parceira, com um “X”
vermelho desenhado na palma de uma das mãos. Ao verem o sinal,
os atendentes das farmácias imediatamente acionam as autoridades
policiais para as devidas providências.
Cerca de 10 (dez) mil farmácias em todo país já aderiram
a essa campanha, que é uma forma simples, eficaz e imediata de
denunciar um agressor, não colocando mais ainda em risco a vida
daquela vítima e ajudando a inibir novas práticas deste ciclo de
violência.
Ambos os projetos foram e estão sendo muito bem aceitos
pela sociedade, pois tratam de uma forma silenciosa de denúncia,
onde as mulheres não se sentem expostas, ou seja, se sentem seguras
e acolhidas em um ambiente onde podem denunciar suas agressões
sem medo.

4.4 A Lei nº 14.022/2020 e as novas medidas de enfrentamento


à violência
Em razão do aumento da violência doméstica, houve uma
mobilização das parlamentares da Bancada Feminina para apresentar
uma redação que conseguisse trazer importantes instrumentos para
a defesa das mulheres neste período de pandemia, o que resultou na
Lei 14.022 de 07 de julho de 2020. Essa nova lei estabelece que os
serviços de atendimento a mulheres, crianças, adolescentes, pessoas
idosas e com deficiência em situação de violência doméstica e
familiar, são considerados como serviços públicos e atividades
essenciais, fator que impacta diretamente na continuidade desta
prestação mesmo em períodos de isolamento social determinado
pelos gestores (https://www.conjur.com.br, 2020).
361

Ainda, de acordo com a nova lei, em seu artigo 2º, ficou


estabelecido que não haverá suspensão para prazos processuais, assim
como serão mantidas as apreciações de matérias, o atendimento às
partes e a concessão de medidas protetivas que tenham relação com
atos de violência doméstica e familiar cometidos contra mulheres,
crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência.
Outro detalhe muito importante trazido pela nova lei é
a prorrogação automática das medidas protetivas decretadas,
possibilitando à vítima, em período de pandemia e com atendimento
dos órgãos públicos muitas vezes não presencial, a garantia da sua
segurança, haja vista que o descumprimento da medida protetiva por
parte do agressor constitui crime específico, no caso de violência
contra a mulher — artigo 24-A, da Lei Maria da Penha.
Essa prorrogação das medidas protetivas em vigência
perdurará durante a vigência da Lei nº 13.979 (que dispõe sobre as
medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública do novo
coronavírus) ou da declaração de estado de emergência de caráter
humanitário e sanitário em território nacional.
Outro ponto interessante diz respeito à solicitação e
deferimento das medidas protetivas, bem como ao registro da
ocorrência, que poderão ser feitos de forma remota (online),
garantindo à vítima mais segurança e celeridade para enfrentar a
violência nesse momento de pandemia.
O §3º do Art. 4º, ainda dispõe que o deferimento de medidas
protetivas pode acontecer antes mesmo do registro da ocorrência, o
que garante uma maior efetividade da lei.
A lei também obriga o poder público a manter o atendimento
presencial para as vítimas de violência em diversos crimes, como
feminicídio, estupro, lesão corporal de natureza grave e gravíssima,
entre outros, além dos órgãos de segurança pública disponibilizar
canais de comunicação que garantam interação simultânea, inclusive
com possibilidade de compartilhamento de documentos, desde que
gratuitos e passíveis de utilização em dispositivos eletrônicos.
Por fim, outro ponto muito importante é que as denúncias
recebidas pela Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180 - terão
362

o prazo máximo de 48 horas para serem repassadas aos órgãos


competentes, conforme dispõe expressamente na lei.
Podemos concluir que esta nova lei surgiu em um momento
de extrema necessidade, possibilitando às autoridades instrumentos
para que a vítima seja acolhida e o agressor seja devidamente
punido, somando com o conteúdo já avançado que consta na Lei
Maria da Penha (https://www.conjur.com.br, 2020).

5 CONCLUSÃO
A violência contra a mulher é uma condição enraizada em
nossa sociedade. Em que pese o surgimento da Lei Maria da Penha,
de inúmeras políticas públicas, projetos e iniciativas de combate a
este crime, é algo que certamente jamais será completamente extinto
do meio social.
O escopo do presente artigo foi analisar a violência doméstica
e familiar contra a mulher no momento atual da pandemia do
coronavírus, situação que aumentou o número de casos e agravou a
situação das vítimas.
Esse aumento se explica diante do fato de a mulher precisar
ficar mais tempo em casa nesse período - em razão da quarentena/
distanciamento social - em convivência direta com o agressor. Da
mesma forma, aulas suspensas, filhos dentro de casa, o agressor
muitas vezes sem trabalho, somados a problemas de alcoolismo e
drogadição, são os ingredientes para o aumento desses índices, já
publicizados por órgãos de segurança pública, conforme abordado
no presente capítulo.
Da mesma forma, mostrou-se a importância dos projetos e
iniciativas públicas e privadas – alguns já existentes e outros criados
especialmente para este momento - que, de alguma forma, ajudam
a minimizar os efeitos devastadores da violência doméstica, mas
levam informações, assistência e procuram afastar os agressores das
vítimas e das suas residências.
Foram destaques os projetos de extensão universitária,
especialmente o projeto “Enfrentamento da violência doméstica e
familiar – Direitos e garantias legais da Mulher agredida”, conforme
363

abordado, pois além de proporcionar ajuda gratuita e discreta,


pautada pela ética, para as mulheres que são vítimas da violência,
estes projetos contribuem para que os alunos da Graduação em
Direito possam aplicar seus conhecimentos teóricos, entender essa
realidade, e ainda, adquirir uma formação humanista.
Da mesma forma, foram destaques deste trabalho projetos
desenvolvidos devido às circunstâncias da pandemia, como o projeto
“Tele Maria da Penha”, “Máscara roxa” e “Sinal Vermelho para a
Violência Doméstica”. Nesse mesmo sentido, houve a promulgação
de uma nova lei, lei nº 14.022/2020, com novas medidas de
enfrentamento à violência contra a mulher.
Os efeitos da violência contra a mulher são desastrosos, pois
não se restringem apenas ao lar do casal, mas afetam todos aqueles
que vivem a sua volta. Nesse momento de pandemia, a extensão
desses efeitos é ainda maior.
Diante de todo exposto, buscou-se compreender as causas e
fundamentos desse aumento de casos de violência contra a mulher,
a extensão dos efeitos da violência, bem como, a importância dos
projetos de enfrentamento utilizados e criados com o escopo de
auxiliar as mulheres a quebrarem o ciclo de violência que estão
inseridas, que vieram para corroborar com o propósito da Lei Maria
da Penha, que é a proteção à vida, à saúde, liberdade e a todos os
direitos e garantias fundamentais da mulher.

NOTAS

1 Caroline Fockink Ritt é doutora em direito e pós-doutora em Direitos


Fundamentais na PUC – RS. Professora de Direito Penal no Curso de
Direito da UNISC. Coordenadora do Projeto de Extensão “Enfrentamento
da Violência Doméstica e Familiar: Direitos da Mulher Agredida”. E-mail:
[email protected].
2 Monike Pasqualotti Ghisleni é Bacharela em Direito pela Universidade
de Santa Cruz do Sul. Advogada. Email: [email protected]. Ex-
bolsista do Projeto de Extensão “Enfrentamento da Violência Doméstica e
Familiar: Direitos da Mulher Agredida”, em Santa Cruz do Sul-RS, no ano
de 2013.
364

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A INTERSECCIONALIDADE ENTRE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E TRANSFOBIA: INSTRUMENTOS
LEGAIS DE PROTEÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS

Diego Carvalho Locatelli1

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Em qualquer lugar do mundo, quando se falava do Brasil,
de imediato fazia-se à associação às praias paradísicas, à técnica
futebolística, às festas carnavalescas, à sonoridade ímpar da bossa-
nova. Contudo, nos últimos anos, o Brasil vem ganhando holofotes
no cenário internacional por fatos bem menos agradáveis a que
as areias de Copacabana, o futebol-arte de Pelé, os desfiles da
Sapucaí ou as notas de Tom Jobim. Dentre esses dissabores, está
a súbita fama dando conta de que o país é um dos mais violentos
para os integrantes da chamada população LGBT+ (lésbicas, gays,
bissexuais, transgêneros, dentre outros), baseada em pesquisas
recentes, como levantamentos realizados pelo Mapa da Violência
de Gênero.
Dentro da comunidade LGBT+, há segmento específico
que demanda maior atenção no que se refere a serem vítimas de
violência: os transgêneros. Invisíveis à sociedade por muito tempo
– ou simplesmente ignorados –, os transgêneros tiveram sucesso em
trazer à baila suas pautas e hoje são vistos em filmes, novelas do
horário nobre e grandes campanhas publicitárias, algo impensável
há não mais que duas décadas. Ainda assim, o preconceito e a
ignorância fazem com que continuem a ser vitimados em reiterados
episódios, alguns brutais.
Embora seja cediço que sofram das mais variadas formas de
violência, o presente artigo tem como enfoque a discussão sobre
instrumentos legais proteção e políticas públicas relacionadas à
prática de violência doméstica e familiar contra mulheres trans,
haja vista a ocorrência de possível omissão legislativa que as teria
excluído das ferramentas protecionais.
369

Para tanto, em um primeiro momento, serão pontuadas


anotações a respeito da identidade de gênero, com o intuito de
evitar confusões terminológicas. Posteriormente, como forma
de contextualizar o assunto, será delineado panorama, do ponto
de vista histórico, sobre o movimento de visibilidade trans e o
alcance de políticas públicas reivindicadas. Ao cabo, será estudada
a possibilidade de aplicação de dois relevantes de instrumento de
proteção – a Lei da Maria da Penha e a Lei de Feminicídio – às
mulheres trans, com olhar interseccional e exame de doutrina,
legislação e jurisprudência.

2 BREVES NOÇÕES QUANTO À IDENTIDADE DE


GÊNERO
Para compreensão melhor do tema, precipuamente faz-
se necessário proceder à distinção de cunho terminológico, uma
vez que o emprego equivocado de termos, como se verá adiante,
ensejará consequências jurídicas diversas. Os apontamentos serão
breves, dado que, por si só, o estudo da identidade de gênero e
demais diferenciações terminológicas a ela relacionadas renderia
muitos outros trabalhos acadêmicos.
Do ponto de vista histórico, sexo e gênero sempre foram
tratados como sinônimos, não havendo clara desvinculação entre
homem com o masculino e mulher com o feminino. Essa ruptura
conceitual tornou contornos em meados do século XX, sobretudo
com a eclosão dos movimentos feministas, lastreados na análise
dos papéis desempenhados por homens e mulheres na sociedade,
assim como na relação histórica de poder dos primeiros sobre as
segundas (SCOTT, 1989). A síntese dessa diferenciação é ilustrada
pela célere frase de Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher,
torna-se mulher” (1980, p. 9). Daí então passou-se a fazer distinção
entre sexo e gênero. Nos dizeres de Butler (2003, p. ? ?):

Concebida originalmente para questionar a formulação de


que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero
atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável
em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído:
consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo,
370

nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo.


Assim, a unidade do sujeito já é potencialmente contestada
pela distinção que abre espaço ao gênero como interpretação
múltipla do sexo.

O sexo, desse modo, é determinado a partir de ponto de


vista anatômico sobre o organismo do ser, sobretudo quanto à
sua composição genética e presença de aparelhos reprodutores.
Cuidando-se de aspecto biológico, o sexo habitualmente pode ser
classificado masculino ou feminino, mas abrange também outras
variantes, como a formação orgânica intersexual. Por outro viés, o
gênero é discriminado sob o prisma psicossocial, isto é, ponderando
aspectos intrínsecos (a psiquê) e/ou extrínsecos (a representação
social) do indivíduo, e prescindindo da prévia definição advinda da
composição orgânica, sobretudo de sua genitália. Frente a isso, não
é o fato de uma pessoa ter vagina ou pênis que a definirá como sendo
mulher ou homem, mas sim como se sente e como se apresenta – ou
almeja se apresentar – na sociedade (JESUS, 2012).
Enquanto o sexo é evento biológico, existente não só na
espécie humana, mas também em outros seres vivos, inclusive
vegetais, o papel do gênero é uma construção cultural e histórica
(BUTLER, 2003), o que se pode observar em muitas tradições do
cotidiano, não raramente alvo de críticas e desconstruções. Quando
nascemos, a tradição orienta que as roupas e a decoração do quarto do
bebê sejam azul para meninos e rosa para meninas. Sendo crianças,
aprenderemos que meninos brincarão com carrinhos e usarão calças,
ao passo que meninas se divertirão com bonecas e trajarão saias. Já
na vida adulta, meninos se tornarão homens, chefes de família e
responsáveis pelo sustento financeiro do lar, ao passo que meninas
serão mulheres dedicadas à criação dos filhos, cuidados do marido e
tarefas domésticas variadas.
É notório que, na maioria das vezes, ocorre similitude entre
sexo e gênero, de modo que pessoas do sexo masculino expressam-se
como homens e do sexo feminino como mulheres. A esses dão-se o
nome de cisgêneros, do latim “cis” (do mesmo lado). Contudo, pode
acontecer de o indivíduo vivenciar seu gênero em sentido oposto ao
que lhe atribuem ao nascimento em razão de seu sexo morfológico,
371

ou seja, pessoas do sexo masculino expressam-se como mulheres e


do sexo feminino que se expressam como homens, sendo esses os
transgêneros. Se essa vivência ultrapassar a expressão e atingir a
própria forma como o sujeito se identifica, fala-se em identidade de
gênero, sendo essa pessoa um transexual (JESUS, 2012).
Hodiernamente, se reconhecem outros meandros além da
classificação usual binária, como: agêneros, aqueles que não se
identificam com gênero algum; andróginos, que mesclam aspectos
do gênero masculino e feminino; e gêneros fluídos (gender fluid), os
quais demonstram capacidade de oscilação entre um gênero e outro.
Tamanha diversidade justifica o uso do sinal “+” após a sigla LGBT
e são objeto de estudo da chamada teoria queer. Segundo Ávila e
Grossi (2010, p. ? ?):

A teoria queer se distingue dos estudos lésbicos e gays, pois


considera que estas culturas sexuais foram normalizadas
e não apontam para a mudança social, daí o interesse em
estudar culturas sexuais não-hegemônicas, caracterizadas
pela subversão ou rompimento com normas socialmente
prescritas de comportamento sexual e/ou amoroso, tais
como o travestismo, a transexualidade e a intersexualidade.

Jesus (2012) assinala que a identidade de gênero não se


confunde com orientação sexual, esta a qual diz respeito à atração
erótico-afetiva de alguém por outrem. Falando sobre orientação
sexual, fala-se sobre heterossexualidade (atração por pessoas de
sexo diferentes), homossexualidade (atração por pessoas do mesmo
sexo), bissexualidade (atração por pessoas de ambos os sexos),
dentre outras. Nessa esteira, é perfeitamente possível uma pessoa do
sexo masculino se identificar como mulher e ter atração por alguém
do sexo feminino, sendo assim uma mulher trans com orientação
homossexual (lésbica). Da mesma forma, alguém do sexo feminino
que se identifica como mulher e sente atração por outra do sexo
feminino é uma mulher cisgênero de orientação homossexual.
Levando em conta que a identidade de gênero é fato
psicossocial, é equívoco associar as pessoas trans à necessária
realização de procedimento cirúrgico de redesignação sexual. Pensar
372

dessa forma seria condicionar, mais uma vez, o papel de homem à


presença de um pênis ou de mulher à ocorrência de seios e vagina.
Ademais, por muitas das vezes, o procedimento demanda muito
preparo físico e psicológico, que alguns transexuais não possuem,
apesar da incompatibilidade psíquica com o sexo anatômico. Partindo
desses pressupostos, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275 (2018), reconheceu
a possibilidade de as pessoas transgêneros alterarem seu registro
civil sem a necessidade de cirurgia de redesignação, pautando-se,
principalmente, no direito do indivíduo à autodeterminação. O
julgado assim restou ementado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.


DIREITO CONSTITUCIONAL E REGISTRAL.
PESSOA TRANSGÊNERO. ALTERAÇÃO DO
PRENOME E DO SEXO NO REGISTRO CIVIL.
POSSIBILIDADE. DIREITO AO NOME, AO
RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA, À LIBERDADE PESSOAL, À HONRA
E À DIGNIDADE. INEXIGIBILIDADE DE
CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO OU DA
REALIZAÇÃO DE TRATAMENTOS HORMONAIS
OU PATOLOGIZANTES. 1. O direito à igualdade sem
discriminações abrange a identidade ou expressão de
gênero. 2. A identidade de gênero é manifestação da própria
personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado
apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. 3. A
pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero
dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por
autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua
vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração
do prenome e da classificação de gênero no registro civil
pela via administrativa ou judicial, independentemente
de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se
tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre
desenvolvimento da personalidade. 4. Ação direta julgada
procedente.

Dito isso, centra-se esse estudo na violência suportada


pelas mulheres trans, desconsiderando sua orientação sexual ou
373

o fato de terem se submetido à cirurgia de redesignação. Foca-se,


por conseguinte, na transfobia, especificadamente, o preconceito
consistente na aversão às pessoas transgênero e na prática das
diversas formas de violências, físicas e não físicas, e até mesmo
estruturais.
Desenhadas essas premissas, mostra-se pertinente
compreender o contexto em que emergiu a visibilidade das pessoas
trans, assim como quais foram as conquistas alcançadas e as políticas
públicas que lhes são dirigidas.

3 MOVIMENTOS DE VISIBILIDADE TRANS E


POLÍTICAS PÚBLICAS
Embora transgêneros sempre tenham existido ao longo de
nossa história, viveram, em sua grande maioria, suprimidos na
sociedade pelo preconceito e pelo estigma da patologização, até
que dois significativos eventos ocorridos em meados do século XX,
nos Estados Unidos, acabaram por dar visibilidade à questão trans e
impulsionar a reivindicação de respeito, direitos e políticas públicas.
O primeiro desses acontecimentos foi no ano de 1966, em
São Francisco, precisamente no bairro de Tenderloin, frequentado
e habitado por muitas pessoas transgêneros, marginalizadas pela
discriminação social. Naquela ocasião, policiais foram acionados
para retirar os clientes transgêneros que frequentavam a Cafeteria
Compton, o que desencadeou tumulto, provocado pela comunidade
do bairro, resultando em diversas prisões. A situação revelou a
importância e imprescindibilidade de ações organizadas, fazendo
com que, um ano depois, fosse fundado, naquela localidade, o grupo
COG (Conversion Our Goal, or Change: Our Goal), que, por sua
vez, lançou sementes para outras organizações californianas, como
a National Transsexual Counseling United e a Transsexual Action
Organization (ÁVILA; GROSSI, 2010).
O segundo evento foi a emblemática Rebelião de Stonewall,
ocorrida em Nova York, em 1969, que deu raiz à formação
de associações como a STAR (Street Transvestites Action
Revolutionares) e Queens Liberation Front. Uma incursão de
374

policiais no Stonewall Inn, um bar situado em Greenwich Village


frequentado pela população LGBT+, ensejou manifestações de
enfrentamento à atividade policial contra pessoas fora do padrão
cis-heteronormativo, tornando-se esse um marco no movimento
de reivindicação de direitos dessas minorias (ÁVILA; GROSSI,
2010). Até hoje, o dia 28 de junho, data em que eclodiu a revolta, é
celebrado como Dia do Orgulho LGBT+.
No Brasil, a formação de um movimento organizado LGBT+
tem como estopim o ano de 1978, quando, em pleno regime militar,
foi fundado o grupo Somos – Grupo de Afirmação Homossexual.
Como anotam Ferreira e Sacramento (2019, p. 236):

Como um exemplo de história que precisa ser narrada, é


importante destacar que no Brasil o movimento em defesa
dos direitos LGBT eclodiu como um ato de resistência
em plena ditadura militar, marcada pela repressão e por
ideais conservadores. Nesse contexto, começou a haver
especialmente ao final da década de 1970 a consolidação
de movimentos identitários que estabelecerem novas
agendas públicas (movimento negro, movimento feminista,
movimento homossexual). Nesse cenário, de resistência
e reconfiguração da esquerda, o grupo Somos inicia suas
atividades na cidade de São Paulo.

Entretanto, boa parte dos grupos organizados não eram


liderados por pessoas transgêneros, as quais possuíam reivindicações
particulares, como o enfrentamento da violência, acesso aos serviços
de saúde e alteração do nome e gênero de forma condizente com os
seus. Por isso, surgiram entidades específicas do movimento trans,
a exemplo da ASTRAL – Associação de Travestis e Liberados,
fundada em 1992, no Rio de Janeiro. Foram promovidos encontros
visando a fomentar o debate, a ascensão de novos líderes e a
construção de uma rede nacional. Esses eventos culminaram
na formação da ANTRA, a Associação Nacional de Travestis e
Transexuais, fundada em 2000 e formalizada em 2002, uma rede
que conglomera mais de cem instituições atuantes na defesa da
cidadania dos transgêneros, conforme reporta Keila Simpson Souza,
presidente dessa organização.
375

As universidades também tiveram relevante papel na


visibilidade trans, porquanto passaram a promover estudos,
seminários e eventos tendo como pano de fundo a complexidade das
relações de gênero e sexualidade, o que contribuiu para formação
qualificada da opinião pública e redução de preconceitos e estigmas.
Como exemplo, pode ser citado o Núcleo de Identidades de Gênero e
Subjetividades – NIGS, da Universidade Federal de Santa Catarina,
que, dentre as linhas de pesquisa, estão as homoparentalidades e
conjugalidades homo/transexuais, a lesbo-homo-transfobia, o
gênero e interseccionalidades, além de outros temas similares.
Frenquentemente, o NIGS promove o “Trans Day”, evento no qual
se discutem assuntos de interesse das pessoas trans.
No início dos anos 2000, houve a criação do Conselho
Nacional de Combate à Discriminação, que, em 2003, lançou o
programa “Brasil Sem Homofobia”. Apesar de a nomenclatura
fazer alusão apenas à orientação sexual, a cartilha do programa
trazia diretrizes de proteção e respeito extensivas aos transgêneros
(CNCD, 2004).
Em 29 de janeiro de 2004, houve o lançamento da campanha
“Travesti e respeito: já está na hora dos dois serem vistos juntos. Em
casa. Na boate. Na escola. No trabalho. Na vida”, fruto da parceria
de lideranças dos movimentos trans com o Ministério da Saúde. Esse
acontecimento foi dotado de expressivo simbolismo para assinalar a
autonomia das pautas específicas do movimento, sobretudo na luta
pela igualdade e visibilidade das pessoas trans, algumas das quais,
na referida data, compareceram aos salões do Congresso Nacional
na defesa de seus direitos, dando contornos políticos à ocasião.
Não à toa que o dia 29 de janeiro passou a ser considerando o Dia
Nacional da Visibilidade Trans (QUEIROZ, 2015).
A partir de então, verificou-se que as ações afirmativas
destinadas às pessoas trans, antes restritas à iniciativa de
organizações particulares, passaram a paulatinamente serem
integradas a programas governamentais, desenhando diretrizes para
a execução de políticas públicas específicas para essa categoria.
Barbosa, Brigeiro e Monteiro (2019, p. ? ?) exemplificam alguns
desses avanços, em especial no tocante às políticas públicas de
saúde:
376

Nas duas últimas décadas, como resultado de diálogos e


articulações entre o Governo Federal e representantes da
sociedade civil organizada, algumas mudanças positivas
foram alcançadas no âmbito das normas institucionais
envolvendo o setor saúde. Entre elas, destacam-se a
formulação do Plano Nacional de Combate à Violência e à
Discriminação de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis, de
2004, que prevê ações de promoção de direitos, cooperação
internacional, segurança, educação, saúde e trabalho; a Carta
dos Direitos de Usuários da Saúde, de 2006, que explicita o
direito da pessoa ser identificada no SUS pelo nome que
preferir; o Plano de Enfrentamento da Aids entre Gays, HSH
e Travestis, de 2007; as regulamentações de 2008 e 2013
acerca do processo transexualizador no âmbito do SUS, que
englobam a cirurgia de redesignação sexual, a assistência
e o cuidado de transexuais; e a Política Nacional de Saúde
Integral para População de Lésbicas, Gays, Bissexuais e
Travestis e Transexuais, de 2010.

De suma relevância foi a edição do Decreto Federal nº


8.727/2016, pois, em seu bojo, disciplinou a admissão e uso do nome
social na administração pública federal, atendendo à reivindicação
de longa data do movimento trans. Outro avanço dessa normativa foi
expressamente reconhecer a identidade de gênero, conceituando-a,
em seu art. 1º, II, como

a dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito


à forma como se relaciona com as representações de
masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua
prática social, sem guardar relação necessária com o sexo
atribuído no nascimento.

Em maio de 2019, o movimento trans obteve vitória


significativa de âmbito global. Isso porque a Organização Mundial
da Saúde excluiu da classificação oficial de doenças (CID-11), o
“transtorno da identidade de gênero”. De acordo com especialistas
das Nações Unidas, além de deixar de considerar transgêneros como
pessoas portadoras de doença mental e permitir-lhes maior acesso
a serviços, em especial da saúde, a medida combate tratamentos
377

e procedimentos forçados, coercitivos e involuntários, como o


“estupro corretivo” e a “terapia de conversão” (NAÇÕES UNIDAS
BRASIL, 2019).
Ao mesmo tempo em que houve diversas conquistas
recentes, pessoas trans e outras minorias que formam a população
LGBT+ observaram uma crescente de condutas ofensivas e crimes
de ódio, de fundo discriminatório e preconceituoso, não raramente
legitimadas por discursos firmados em disputas políticas e religiosas
(FERREIRA; SACRAMENTO, 2019). Outrossim, a efetividade
das políticas públicas e os instrumentos legais de proteção depara-
se como outros empecilhos, como o notório subfinanciamento do
Sistema Único de Saúde, sobretudo nessa seara, além da resistência
de setores sociais ditos “conservadores”, que encabeçam cruzadas
autoproclamadas morais em detrimento dos direitos dessa minoria
(BARBOSA; BRIGEIRO; MONTEIRO, 2019).
De acordo com o Mapa da Violência de Gênero, compilado a
partir de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação
– SINAN e do Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM,
ambos do Ministério da Saúde, entre os anos de 2014 e 2017, o
Brasil registrou 12.112 casos de violência contra pessoas trans. No
Rio Grande do Sul, apenas no ano de 2017, foram 167 registros
de vítimas mulheres trans, referentes, em sua grande maioria, à
violência física sofrida na própria residência. Importante frisar que
esses números não consideram as subnotificações, comuns em casos
de violência doméstica e ainda mais rotineiros quando envolvem a
população LGBT+, por conta do receio de sofrerem preconceito ao
buscarem auxílio junto aos serviços de saúde e segurança.
Destarte, tendo em vista que as mulheres trans, conquanto
tenham galgado êxito em muitas de suas pautas, vêm sendo expostas
a constantes atos de violência, sobretudo no lar, faz-se necessário
avaliar se a legislação nacional lhes confere meios de proteção.

4 A APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA E DA LEI


DE FEMINICÍDIO AOS TRANSGÊNEROS
Ao falar sobre o enfreamento da violência de gênero no Brasil,
de imediato se destacam duas ferramentas legais de proteção: a Lei
378

Maria da Penha (Lei Federal nº 11.340, de 07 de agosto de 2006) e a


Lei de Feminicídio (Lei Federal nº 13.104, de 09 de março de 2020).
Essas espécies legislativas guardam consonância com mandamentos
de proteção de cunho constitucional, como a equivalência de direitos
e deveres entre o homem e a mulher (art. 5º, I, da Constituição
Federal) e o dever do Estado em coibir com a violência no âmbito
das relações familiares (art. 226, §8º, da Lei Maior). Alinham-se, da
mesma forma, à Convenção Interamericana para prevenir, punir e
erradicar a violência contra a mulher, ocorrida na cidade de Belém
do Pará, em 1994, e incorporada ao ordenamento jurídico pátrio
pelo Decreto Federal nº 1.973, de 1º de agosto de 1996.
A Lei Maria da Penha trouxe em seu bojo um microssistema
legal de prevenção e combate à violência de gênero, familiar e
doméstica, definindo as formas de violência, instituindo juizados
e delegacias especializadas, disciplinando procedimento para
aplicação de medidas protetivas de urgência, dentre outras
providências. A seu turno, a Lei de Feminicídio acrescentou nova
qualificadora ao crime de homicídio, assim considerando-o quando
for cometido contra a mulher por condições de sexo feminino (art.
121, §2º, VI, e §2-A, do Código Penal), trouxe causas de aumento
de pena (art. 121, §7º, do Código Penal) e o tornou delito hediondo
(nova redação do art. 1º da Lei de Crimes Hediondos).
Um aspecto a ser pontuado é que nenhuma dessas leis traz
expressa referência à aplicabilidade às mulheres trans. Em seu
art. 2º, a Lei Maria da Penha apenas faz menção que será aplicada
independentemente da orientação sexual da mulher; contudo, como
já se apontou, orientação sexual não se confunde com identidade
de gênero. Quanto à Lei de Feminicídio, durante sua tramitação
no Congresso Nacional, ainda quando projeto legislativo, houve
proposições visando a que o homicídio também fosse qualificado
se decorrente de afronta à identidade de gênero, como emenda de
autoria do então Senador Aloysio Nunes Ferreira (Emenda nº 01
ao Projeto de Lei nº 292/2013). No entanto, essas propostas não
vingaram. Não se pode olvidar que tramitam nas casas legislativas
proposições buscando sanar essa possível omissão, como o Projeto
de Lei nº 191/2017, em curso no Senado Federal, objetivando alterar
a Lei Maria da Penha.
379

Ocorre que, mesmo sem serem expressamente mencionadas


nos textos legislativos, mulheres trans estão albergadas pelo manto
de proteção da Lei Maria da Penha e da Lei de Feminicídio.
A começar, pela obviedade: mulheres trans são, afinal,
mulheres, uma vez que essa condição é analisada pela perspectiva da
identidade de gênero, espectro psicossocial, e não do sexo biológico
(RODRIGUES; SANTOS, 2017). Não lhes conferir proteção por
esses diplomas implicaria tratamento diferenciado entre mulheres,
beneficiando tão somente as cisgêneros, o que confronta o princípio
constitucional da isonomia e o objetivo fundamental do Estado
brasileiro em combater qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV,
da Constituição Federal).
Em seu art. 5º, caput, a Lei Maria da Penha é cristalina ao
assentar que a violência doméstica e familiar contra a mulher advém
de condutas comissivas ou omissivas fundamentadas no gênero.
O diploma legal, nessa ótica, não diz respeito apenas à violência
familiar e doméstica, mas abrange, em sua raiz, a violência de
gênero, que se reflete pelo ódio, submissão e desprezo ao feminino,
visto como em posição aquém ao masculino, este ocupando posição
superior e ostentando poder de dominação (BURIN; MELLO,
2020).
Focando-se a identidade de gênero na manifestação
psicológica e social do indivíduo, e não em sua genitália, bem
como sendo a violência contra a mulher decorrente da condição de
vulnerabilidade sociocultural perante a figura do homem, a guarida
legal prescinde da efetiva alteração registral do nome social, por ser
mera formalidade, assim como da cirurgia de redesignação sexual.
Isso porque não é a presença do órgão genital que define quem é
o homem ou mulher, além do que parcela das pessoas trans não
podem se submeter ou não tem vontade no procedimento cirúrgico,
almejando, unicamente, o reconhecimento e respeito ao seu gênero
identitário. Da mesma maneira que a igualdade preconizada na
norma constitucional seria violada ao se fazer distinção protetiva
entre mulheres trans e as cisgêneros, mesma afronta haveria ao
excluir do manto legal aquelas que não procederam à retificação
registral ou o procedimento cirúrgico de redesignação. O fato é
que, independentemente da mudança do nome ou da realização
380

de cirurgia, mulheres trans são vulneráveis por serem mulheres e


também por serem transexuais (RODRIGUES; SANTOS, 2017).
Nessa senda, tal como as mulheres cisgêneros, mulheres
trans se submetem às mesmas formas de violência a que aludem o
art. 7º da Lei Maria da Penha. Sofrem de violência física ao serem
agredidas por seus companheiros ou pelos seus familiares, que não
raramente as rejeitam por suas identidades de gênero. Suportam
violência psicológica e moral ao serem vítimas de ameaças, calúnias,
difamações e humilhações, como quando são alvo de piadas infames
apenas porque manifestam no exterior como efetivamente são por
dentro. Não são ilesas à violência patrimonial, até mesmo no seio
familiar, ao serem expulsas de casa, sem podendo levar qualquer
dinheiro ou pertences pessoais. Enfrentam a violência sexual
ao serem objetificadas e forçadas a praticarem relações íntimas
quando não querem, inclusive por homens que se apresentam na
sociedade como héteros cisgêneros. Por tudo isso, diz-se que há
certa “democracia” na violência doméstica e familiar, pois esta não
distingue trans e cisgêneros, como ressaltam Burin e Mello (2020,
p. ? ?):

Elas [as mulheres trans] também estão sob o manto de


proteção da Lei Maria da Penha. Isso porque, na nossa
sociedade, cultural e historicamente, sempre se atribuiu
maior importância aos papéis desempenhados pelos homens.
Há uma construção hierárquica na sociedade em que o
feminino ocupa uma posição inferior, de menor validade.
Esse quadro de naturalização da hierarquia faz com que o
homem se sinta legitimado a usar da violência para subjugar
corpos feminilizados, o que abrange não apenas as pessoas
que são biologicamente mulheres (cisgênero), mas também
as mulheres transgênero. A violência doméstica e familiar
contra as mulheres é democrática.

Percorrendo essa mesma linha de intelecção, não há o que


se falar em analogia in malam partem, vedada no Direito Penal,
quando essas importantes leis são empregadas como instrumentos
legais de proteção às mulheres trans. Esse entendimento vem já
sendo externado nos tribunais pátrios, conforme se ilustra pelo
381

seguinte julgado, oriundo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal


e Territórios (2018):

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO DO


MINISTÉRIO PÚBLICO CONTRA DECISÃO DO
JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. DECLINAÇÃO
DA COMPETÊNCIA PARA VARA CRIMINAL COMUM.
INADMISSÃO DA TUTELA DA LEI MARIA DA
PENHA. AGRESSÃO DE TRANSEXUAL FEMININO
NÃO SUBMETIDA A CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO
SEXUAL (CRS). PENDÊNCIA DE RESOLUÇÃO DE
AÇÃO CÍVEL PARA RETIFICAÇÃO DE PRENOME NO
REGISTRO PÚBLICO. IRRELEVÂNCIA. CONCEITO
EXTENSIVO DE VIOLÊNCIA BASEADA NO GÊNERO
FEMININO. DECISÃO REFORMADA. (...). 2. O gênero
feminino decorre da liberdade de autodeterminação
individual, sendo apresentado socialmente pelo nome que
adota, pela forma como se comporta, se veste e se identifica
como pessoa. A alteração do registro de identidade ou a
cirurgia de transgenitalização são apenas opções disponíveis
para que exerça de forma plena e sem constrangimentos essa
liberdade de escolha. Não se trata de condicionantes para
que seja considerada mulher. 3. Não há analogia in malam
partem ao se considerar mulher a vítima transexual feminina,
considerando que o gênero é um construto primordialmente
social e não apenas biológico. Identificando-se e sendo
identificada como mulher, a vítima passa a carregar consigo
estereótipos seculares de submissão e vulnerabilidade, os
quais sobressaem no relacionamento com seu agressor e
justificam a aplicação da Lei Maria da Penha à hipótese.
4. Recurso provido, determinando-se prosseguimento do
feito no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher, com aplicação da Lei Maria da Penha.

Em relação à Lei de Feminicídio, convém esclarecer que,


para incidência da qualificadora, o legislador exigiu a presença de
alguma dessas duas situações: a prática de violência doméstica e
familiar; e/ou o menosprezo ou discriminação à condição de mulher
(art. 121, §2-A, do Código Penal). Leciona Bitencourt (2017, p. ?)
que:
382

Na primeira hipótese o legislador presume o menosprezo ou


a discriminação, que estão implícitos, pela vulnerabilidade
da mulher vítima de violência doméstica ou familiar, isto
é, o ambiente doméstico e/ou familiar são as situações
caracterizadoras em que ocorre com mais frequência a
violência contra a mulher por discriminação; na segunda
hipótese, o próprio móvel do crime é o menosprezo ou a
discriminação à condição de mulher, mas é, igualmente, a
vulnerabilidade da mulher tida, física e psicologicamente,
como mais frágil, que encoraja a prática da violência por
homens covardes, na presumível certeza de sua dificuldade
em oferecer resistência ao agressor machista.

Mutatis mutantis, nas situações relativas ao cometimento de


feminicídio decorrente de violência doméstica e familiar (inciso I),
valem os mesmos argumentos já exposados quanto à aplicabilidade
da Lei da Maria da Penha. Ocorre que o inciso II tem sentido mais
abrangente, uma vez que protege a mulher vítima de violência em
virtude de discriminação ou menosprezo ao seu gênero. Logo,
se a mulher trans é morta ou atentam contra sua vida por razões
discriminatórias à sua identidade de gênero, amolda-se a conduta
do ofensor ao inciso II do art. 121, §2-A, do Diploma Criminal,
mesmo que o ato não tenha ocorrido no seio doméstico. O Tribunal
de Justiça do Distrito Federal e Territórios (2019), deparando-se
com caso de feminicídio de mulher trans, adotou essa posição:

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO


EM SENTIDO ESTRITO. PRONÚNCIA. FEMINICÍDIO
TENTADO. VÍTIMA MULHER TRANSGÊNERO.
MENOSPREZO OU DISCRIMINAÇÃO À
CONDIÇÃO DE MULHER. MATERIALIDADE E
INDÍCIOS DE AUTORIA PRESENTES. PEDIDO DE
DESCLASSIFICAÇÃO. IMPROCEDENTE. TESES A
SEREM APRECIADAS PELOS JURADOS. PRINCÍPIO
IN DUBIO PRO SOCIETATE. EXCLUSÃO DA
QUALIFICADORA. IMPROCEDENTE. RECURSOS
CONHECIDOS E DESPROVIDOS. 1. A decisão de
pronúncia dispensa a certeza jurídica necessária para uma
condenação, bastando o convencimento do Juiz acerca da
materialidade do fato e da existência de indícios suficientes
383

de autoria, prevalecendo, nessa fase, o in dubio pro societate.


2. No âmbito do Tribunal do Júri, as possibilidades de
desclassificação, absolvição sumária e impronúncia são
limitadas, sendo admitidas apenas quando a prova for
inequívoca e convincente, no sentido de demonstrar que o
réu não praticou crime doloso contra a vida, pois mínima que
seja a hesitação, impõe-se a pronúncia, para que a questão
seja submetida ao júri, ex vi do art. 5º, inciso XXXVIII, da
Constituição Federal c/c art. 74, § 1º, do Código de Processo
Penal. 3. Somente as qualificadoras manifestamente
improcedentes e sem qualquer apoio na prova dos autos
podem ser afastadas. 4. Recursos conhecidos e desprovidos.

Parte da doutrina, como Bitencourt (2017), sustenta que, para


garantir segurança jurídica, o feminicídio só se caracterizaria se
a mulher trans assim estiver identificada em documentos oficiais,
como a certidão de registro de nascimento, identidade civil ou
passaporte. Em que pese compreensível o argumento, essa posição
deixa a vítima à mercê de entraves burocráticos, além do que
desconsidera o elemento subjetivo do agente ofensor. Tal como em
qualquer caso, sobretudo na esfera penal, incumbirá ao operador do
Direito (juiz, promotor de justiça, delegado de polícia etc.) analisar
atentamente as circunstâncias da situação concreta para averiguar se
a vítima é transexual. Consequentemente, reforça-se a necessidade
de compreensão das terminologias que envolvem sexo biológico,
gênero e orientação sexual.
Sanches (2017) defende a inocorrência de feminicídio
quando a vítima for travesti, em que pese admiti-lo para as mulheres
transexuais. Jesus explica que “travestis são as pessoas que vivenciam
papéis de gênero feminino, mas não se reconhecem como homens
ou como mulheres, mas como membros de um terceiro gênero
ou de um não gênero” (2012, p. 17). Seguindo esse diapasão, as
travestis não se confundem com mulheres trans, embora seja cediço
que as reivindicações de ambas essas minorias estivessem sempre
ligadas, consoante se anotou ao serem feitas considerações sobre os
movimentos de visibilidade trans.
A despeito de não se enquadrarem como mulheres trans, o que
afasta a caracterização de feminicídio, o homicídio contra travesti
384

cometido por razão discriminatória ou preconceituosa ainda assim


poderá ser tido por qualificado, todavia, pela motivação torpe (art.
121, I, do Código Penal), tendo em vista ser esse intuito repugnante
e imoral, posição advogada por Gonçalves (2019).
Por fim, cumpre assinalar que a problemática envolvendo
as mulheres trans e a violência doméstica e familiar demanda a
análise sob a lupa da interseccionalidade. Hirata (2014) registra
que o conceito de interseccionalidade tem origem no movimento
black feminism, da década de 70, voltando-se como crítica ao
feminismo branco, de classe média e heteronormativo, sendo usado,
pela primeira vez, em texto da jurista afro-americana Kimberlé W.
Crenshaw. Evocando definição de Sirma Bilge, a mesma autora
sublinha que a interseccionalidade, em suma, propõe o exame
do entrelaçamento entre os múltiplos fatores de opressão – sexo,
gênero, classe, raça, orientação sexual etc. – na compreensão da
complexidade das identidades e desigualdades sociais. Esses fatores
de opressão não são enclausurados, tampouco formam hierarquia,
e não apenas produzem desigualdades sociais, mas também as
reproduzem. O tema é recorrente em diversas obras de cunho
feminista, a exemplo da literatura de Ângela Davis, com destaque
para “Mulheres, Raça e Classe” (1981).
Frente a essa conjuntura, o grau de vulnerabilidade das
mulheres trans é mais acentuado, pois já é existente pela condição
de gênero e vai potencializado pela discriminação transfóbica.
Rodrigues e Santos (2017) ponderam que a ausência de clara
definição de aplicabilidade da Lei da Maria da Penha dá margem
à interpretações divergentes, frustrando, sobretudo, o acesso
das vítimas aos mecanismos preventivos previstos naquela
legislação, como a concessão de medidas protetivas de urgência e
o atendimento em órgãos públicos especializados. E pelo panorama
da interseccionalidade, a mulher trans sofreria de vitimização
secundária e institucional, dado que, além da violência em si, o
Estado não protegeria suficientemente sua vida e segurança quando
a ele fosse procurar ajuda.
Impõe-se, ao cabo, não só uma mudança legislativa, mas
também verdadeira transformação da sociedade, a fim de que as
mulheres trans, que comumente sequer tem o apoio da família,
385

não se sintam sozinhas nem desamparadas e possam ser acolhidas


(RODRIGUES; SANTOS, 2017).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ser mulher em uma sociedade de estrutura patriarcal é
difícil; ser mulher e trans em uma sociedade que prega como
padrão a cis-heteronormatividade é mais difícil ainda. Há, assim,
uma dupla vitimização da mulher trans: por ser mulher, é tida
como ser inferior ao homem; por ser trans, é alvo de preconceito
e condutas discriminatórias, enraizadas pela ignorância e/ou
repugnância quanto à noção de diversidade. A interseccionalidade
dessas formas de opressão desemboca em um cenário propício a
quem sofre constantes e variadas formas de violência, sobretudo na
seara doméstica, razão pela qual são imprescindíveis o estudo e o
aprimoramento dos instrumentos legais de proteção e de políticas
públicas voltadas a essa minoria.
Preambularmente, é imperativa a compreensão quanto à
distinção de sexo biológico, gênero e orientação sexual. Sem ter
em mente as corretas definições, não saberemos a quem proteger,
tampouco como formular leis e políticas públicas adequadas. A
mulher trans, nesse contexto, é assim considerada pela sua identidade
de gênero, elemento psicossocial.
Embora nascido em conjunto e por muito tempo visto como
componente do movimento LGBT+, o movimento de visibilidade
trans conquistou cada vez mais espaço, defendendo reivindicações
específicas dessa categoria. Contou, inclusive, com apoio das
universidades, que fomentaram o debate e pesquisa sobre gênero.
Nas duas últimas décadas, viram-se importantes vitórias: a criação
do Conselho Nacional de Combate à Discriminação; o lançamento
de campanhas antidiscriminatórias; a articulação de políticas
públicas, em especial no campo da saúde, a exemplo da realização
do processo de redesignação sexual pelo SUS; a validação do uso
do nome social na administração pública; no campo internacional,
a decisão da OMS em não mais considerar a transexualidade como
uma patologia mental.
386

Conquanto sejam muitos os avanços, os índices de


violência no Brasil contra transgêneros continuam alarmantes. A
reflexão sobre a aplicabilidade da Lei Maria da Penha e da Lei de
Feminicídio às mulheres trans emerge como essencial, como forma
de garantir a proteção dessas pessoas, que possuem maior grau de
vulnerabilidade.
Ainda que os textos legais não expressamente prevejam,
a aplicabilidade desses diplomas protetivos tem fundamento
constitucional, com destaque ao direito à isonomia, dando igualdade
de tratamento entre mulheres cis e trans, e aos objetivos-deveres do
Estado em erradicar qualquer forma de discriminação e combater
a violência doméstica e familiar. Tendo como pilastra o tratamento
isonômico, não há analogia in malam partem, já havendo decisões
pretorianas nesse sentido.
As mulheres trans, assim como as cisgêneros, sofrem com as
mesmas formas de violência no âmbito doméstico, desde físicas a
sexuais. Com o suporte da Lei Maria da Penha, podem se socorrer
em órgãos especializados – Juizados da Violência Doméstica,
Delegacias da Mulher, Centros de Referência Especializados de
Assistência Social, casas de passagem –, requerer medidas protetivas
de urgência e serem beneficiadas com políticas públicas que visem
à redução da violência entre quatro paredes.
Quanto à Lei de Feminicídio, que garante penas mais severas
ao homicídio, consumado ou tentado, contra a mulher em virtude de
sua condição, a aplicação se estende não só pela prática de violência
doméstica e familiar, mas também quando o delito tiver como fulcro
o cunho discriminatório à sua identidade de gênero. Ressalva a
ser feita quanto às travestis, pois estas, apesar de se expressarem
pelo feminino, não se consideram efetivamente mulheres, pelo
que eventual intuito discriminatório qualificará o homicídio pela
motivação torpe.
Para ambas as leis, figura-se dispensável a alteração em
documentos oficiais ou a cirurgia de redesignação. Mulheres trans
assim são pela sua identidade de gênero, não podendo sua proteção
ficar condicionada a trâmites burocráticos ou a procedimentos
cirúrgicos que nem todas possuem saúde física ou psicológica para
serem submetidas.
387

Ideal seria se fossem aprovadas propostas legislativas que


positivassem a aplicabilidade dessas duas importantes leis às
mulheres trans, sanando divergências doutrinárias e jurisprudenciais
em sentido contrário, até porque o Direito não está livre de operadores
pseudomoralistas, reacionários ou que, simplesmente, não possuem
conhecimento acerca dessa minoria, conjuntura provocadora de
violência institucional. De qualquer forma, a interpretação da Lei
Maria da Penha e da Lei de Feminicídio à luz constitucional não
deixa desamparadas essas mulheres, que, em seu cotidiano, tem
que enfrentar não só a misoginia e o machismo, mas também o
preconceito por serem e não ocultarem quem realmente são.

NOTAS

1 Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, graduado em


Direito e especialista em Direito Processual Civil, ambos pela Universidade
de Santa Cruz do Sul – UNISC. E-mail: [email protected].

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Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe
sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal
e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial
da União, Brasília, DF, 08 ago. 2006. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.
Acesso em: 09 ago. 2020.
BRASIL. Lei Federal nº 13.104, de 09 de março de 2015. Altera o
art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código
389

Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora


do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho
de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, 08 ago. 2006. Disponível
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historia. Acesso em: 06 ago. 2020.
ANÁLISE DO AUMENTO DO FEMINICÍDIO E O
EMPODERAMENTO FEMININO COMO FATOR
DE MUDANÇA

Rosmeri Kunkel1
Vinícius de Melo Lima2

1 INTRODUÇÃO
O artigo analisa a escalada no aumento dos índices do
feminicídio apesar das leis vigentes e o que fazer para reverter
esse quadro assustador. Parte-se da premissa de que o Estado tem
o poder-dever de promover a igualdade e a proteção e esse não
se pode mostrar omisso frente à questão discriminatória que mata
tantas mulheres e deixa órfãs uma legião de crianças, sob pena de
ser responsabilizado por não garantir os meios necessários para a
aplicação das leis e o desenvolvimento das políticas públicas.
Para tanto, aborda a relação de dominação do homem sobre a
mulher introduzida pelo patriarcalismo e de que forma isso impactou
na violência de gênero que vitimiza as mulheres até os dias atuais.
A inovação legislativa, muito embora represente um avanço na
luta pela proteção dos direitos humanos da mulher, não está sendo
suficiente para dirimir os estarrecedores números de violência de
gênero presente em todos os estratos sociais. Com vistas a combater
os feminicídios latentes, propõe-se uma mudança comportamental
para promover a desconstrução dos modelos repressivos que
sobrevivem hodiernamente.
Conforme será demonstrado, apesar de a rede de atendimento
estar institucionalizada, ainda há deficiência de equipamentos
públicos comunitários no combate ao feminicídio. A queda de
investimentos financeiros, no RS, por parte de gestores públicos,
nos últimos cinco anos, é paradoxal aos percentuais de mortes de
mulheres gaúchas. A alteração legislativa mais recente, de 2020,
institui a inserção de medidas protetivas que têm o propósito de
reeducar o agressor a fim de não reincidir em outras eventuais
agressões. A polaridade presente está no fato de que se os homens
393

são parte do problema, eles precisam ser parte da solução. Esse é


um grande passo para reprogramar padrões vivenciais que busquem
mitigar casos de feminicídio sobretudo em época de pandemia com
subnotificações.
Por fim, analisa as ações concretas que tendem a reduzir a
incidência de crimes misóginos, além de abordar que a minimização
de casos de violência contra a mulher será utópica sem pensar na
mudança de mentalidade e no empoderamento feminino. E essa
se faz pela educação, onde tudo começa; assunto inconteste e cuja
implementação deve ser feita nos currículos escolares, além de
ser debatida, amplamente, nas Universidades, principalmente, nos
Cursos de Direito e de Psicologia.

2 O FEMINICÍDIO – EVOLUÇÃO HISTÓRICA


Existe um exacerbado crescimento de casos de feminicídio,
tentados e consumados, no Rio Grande do Sul (RS), de 2015 a 2020,
apesar das leis específicas vigentes no Sistema Penal Brasileiro. Com
o advento da Lei Maria da Penha (LPM), há quatorze anos, e da Lei
do Feminicídio, há cinco anos, leis surgidas com o escopo de proteger
e de inibir a violência contra a mulher, cresce, paradoxalmente, o
índice de casos de feminicídios, de atrocidades que atormentam, não
somente a ala feminina, como também a humanidade.
Dessa forma, surge a presente problemática que analisa o
fato de haver a existência de leis para coibir a violência, no entanto,
há reincidências de crimes e de males causados contra a mulher.
Seguramente, há um contraponto na intensidade em que continuam
havendo crimes de feminicídios. Onde reside a solução para um
problema tão antigo, mas, ao mesmo tempo, tão atual?
O incremento dos feminicídios e da violência contra a mulher
enseja a Responsabilização do Estado uma vez que esse se mostra
omisso em virtude de políticas públicas ineficientes, favorecendo
o conjunto de crimes praticados por razões de gênero. As medidas
preventivas que podem ser adotadas para assegurar o dever de
proteção dos direitos fundamentais estão, sem sombra de dúvida, na
projeção e, ulterior, disponibilização de verbas orçamentárias para a
394

rede de enfrentamento que visem ao empoderamento e à autonomia


da mulher. Nesse viés, é possível falar-se em condenação do Estado
por danos morais por tratar-se de um tema de expressivo significado
ético e moral.
Assim, são abordados os aspectos culturais e históricos da
violência contra a mulher. A causa é cultural, fruto de condições
atávicas. Desde os primórdios da humanidade, os diferentes padrões
de comportamento revelam uma conduta paternalista do homem
em relação à mulher que tende a desenvolver uma situação de
submissão. Dias (2010, p. 18) afirma que “a sociedade ainda cultiva
valores que incentivam a violência, o que impõe a necessidade de
se tomar consciência de que a culpa é de todos”. O protótipo do
pátrio poder percorre instituições, a cultura, os paradigmas sociais e
até mesmo o sistema judicial. Santos (2018, p. 262) pondera que “o
sistema de justiça tem o papel importante de reconhecer e garantir
os direitos das mulheres a uma vida sem violência”. A evolução fez
com que a humanidade, paulatinamente, dissentisse dos modelos
paradigmáticos em relação aos comportamentos por ser uma
violação de direitos.
No Brasil, por volta de 1970, essa questão passou a ganhar
visibilidade por meio da luta das mulheres contra a violência
machista silenciada e naturalizada. Merecem destaque por Viza,
Sartori e Zanello (2017, p. 111) “dois atores coletivos principais:
as produções acadêmicas e os movimentos feministas”. A evolução
temática dessas cinco décadas, juntamente, com os Tratados
Internacionais (TI) é que propulsionaram uma mudança legislativa
brasileira com o fito de diminuir os índices. Pelo Protocolo da ONU
(MODELO..., 2014, p. 23), dois textos devem ser elencados. “No
âmbito universal, a Declaração sobre a Eliminação da Violência
contra a Mulher, [...]. No âmbito latino-americano, a Convenção de
Belém do Pará”.
Importante trazer a lume que até a implantação da LMP, sob
a fundamentação de Martins, Cerqueira e Matos (2015) 90% dos
casos de violência contra a mulher eram arquivados, pois estavam
sob a égide da Lei dos Juizados Especiais Criminais. Os institutos
de penas alternativas tiveram uma conotação de mecanismos de
impunidade e banalização da violência sofrida pelas mulheres.
395

O empenho para desconstruir uma história marcada por


dores e horrores continua no século XXI. Para Santos (2018, p. 262)
“Transformar relações sociais que (re)produzem violências contra
mulheres é um dos grandes desafios das sociedades contemporâneas”.
Essa reivindicação é tão urgente quanto necessária e antiga. Como
há vários brasis, há também mulheres de diferentes classes sociais,
econômicas e culturais. No entanto, é subliminar que a dependência
econômica, ainda é um dos grandes entraves para a independência
feminina.
Vive-se novos tempos e a Psicóloga Hirigoyen, (2006, p. 234)
ensina que “seria bom que os homens trabalhassem na construção
de novos valores de masculinidade, não mais ligados à força e à
agressividade, e sim ao respeito pelo outro”. É papel fundamental da
sociedade, através de todos os canais sociais, promover a mudança
de comportamento entre homem e mulher desde a mais ínfima idade.
Necessário é dizer que segundo Jesus (2015) “a violência contra as
mulheres é talvez a mais vergonhosa entre todas as violações dos
DH. Enquanto ela prosseguir, não poderemos dizer que progredimos
efetivamente em direção à igualdade, ao desenvolvimento e à paz”.
É inexorável que, após tantos anos de resquícios de dominação
ainda de uma sociedade paternalista e patriarcal, seja abolida de vez
essa característica tão nefasta para a humanidade.
Os altos índices de homicídios constatados a partir de 2012,
quando do Relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
de Violência contra a Mulher para apurar omissões do Estado na
aplicação da LMP, fez surgir a tipificação penal do feminicídio.
Isso fortaleceu o entendimento geral de que o Brasil estava muito
aquém de políticas públicas eficientes no combate à violência de
gênero. A efetividade da lei passou a ser questionada, apesar de seus
méritos e, conforme Dias (2015), a terceira melhor lei do mundo era
insuficiente para lograr êxito em que pese na diminuição significativa
da contenção do feminicídio tentado ou consumado no Brasil.
Afinal, tratava-se de um problema social emergente, aparentemente,
invisível para o Estado, apontando-o como responsável pelo desdém
de inúmeras mortes provocadas como ascendente na misoginia.
Contexto esse em que surgiu a Lei do Feminicídio, em 2015,
com o objetivo de tentar erradicar a violência que, por séculos,
396

assola as mulheres que sofrem com a desigualdade ainda imperante


na sociedade. Essa precisa acordar para que se evoque práticas de
diálogos acerca do tema em tese e para promover, intensamente,
respeito ao outro, em atitude de alteridade, cultivando uma cultura
de paz, com uma tomada de consciência do eu, do outro e da teia
que faz o mundo.
Para tornar mais efetivo o combate à violência contra a
mulher houve alterações pontuais, com inserções legislativas, nos
últimos cinco anos, a partir da qualificadora do feminicídio no
Código Penal. A mais recente, de abril de 2020, tem o propósito
de reeducar o agressor a fim de não reincidir em outras eventuais
agressões. Esse é um fator de real importância na busca pela
eliminação da violência: a polarização. Devem ser sopesados os
confrontos que acirram a agressão num embate a proporcionar a
convicção de que deve ser abandonada de vez essa ação/reação de
ser violento com uma mulher.

3 POLÍTICAS PÚBLICAS E SISTEMA DE JUSTIÇA


Cabe ao Estado, através do seu poder-dever de promover
a igualdade e a proteção, a minimização dessas cifras. Afigura-se
acerca da criminologia do tema que o crime é um fenômeno social
e cultural de concepções sistêmicas. Por ser a violência resultante
de uma arraigada cultura machista e discriminatória que subjuga as
mulheres, esse problema não se resolve pelo poder da lei. É propósito
e dever do Estado uma proteção mais austera para com o núcleo
familiar e social de forma a prevenir delitos. Na visão de Durkheim
(2019), o crime é um fato social, correspondendo a uma quebra de
expectativas legítimas e violando bens jurídicos fundamentais à
convivência em sociedade.
O Direito Penal tem estreita relação não apenas com a norma
em si. Porquanto tem real ligação com uma política criminal numa
esfera extrapenal através da observância da sociedade para que a
impunidade não predomine. Vários institutos fazem parte da política
criminal: escolas, imprensa, família, redes protetivas, universidades,
políticas públicas. Para Chakian (2019, p. 303):
397

Se é certo que a igualdade de gênero e o fim da violência


contra as mulheres não dependem exclusivamente do
Direito Penal, também é verdadeiro que não há como se
pensar em combate, prevenção, assistência e garantia de
direitos fundamentais, quando tudo o que ele oferece é uma
proteção insuficiente.

Paralelamente ao aventado, para que haja uma proteção


eficiente, além das normas específicas no Direito, é fundamental que
a mulher não seja alijada da participação na vida pública e política,
tendo a criminologia um paradigma feminista.
Conforme já elucidado, infere-se que a mudança virá a
partir de uma desconstrução de papéis ensejando uma verdadeira
transformação social. No cotejo da perquirição da abordagem
criminológica, merece relevo a exposição de Prando (2016, p. 129):
“[...] o que vê a mulher quando o Direito as olha é a reduplicação
de seu lugar desigual de poder na sociedade[...]”. A seu turno, o
supracitado tem relação direta com o fato de como a vítima de
violência consegue se ver e entender a situação pela qual está
inserida. O episódio de violência, que culmina na busca pelo
sistema judicial, faz com que ela necessite de todo o aparato de
enfrentamento da rede de proteção e que não encontre óbices que
corroborem ainda mais com sua fragilidade. Fundamental também
a presença de profissionais da saúde que dão o primeiro suporte em
uma situação de vulnerabilidade das vítimas.
Com relação às pesquisas jurisprudenciais e às decisões
judiciais no combate ao feminicídio e da rede de enfrentamento
para situações de violência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
pode-se assegurar que, após a vigência da Lei do Feminicídio houve
uma mudança de mentalidade enquanto juízes/atores jurídicos. O
que antes de 2015, era sentenciado morta por motivos como: crime
passional, em nome do amor, da honra; agora passa a ser redigido
Oliveira (2017) por ser mulher, por não querer mais ter relações com
o companheiro, por querer se separar, por exacerbação de ciúmes
decorrentes de sentimento de posse.
O feminicídio, apesar de ser um termo relativamente novo,
é um crime secular. De acordo com Oliveira (2016, p. 25): “[...]
398

e ainda hoje, muitos crimes dessa natureza são minimizados em


razão da orientação sexual da vítima[...]”. É sabido que, no campo
infraconstitucional, a LPM atribui ao Estado a responsabilidade de
criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica
e familiar contra a mulher, além do estabelecimento de medidas de
assistência e de proteção. Em Lima e Streck (2014, p. 333-357):
“A concretização de seus direitos precisa da ruptura com o silêncio
na atual quadra da história. Para isso, o Estado exerce um papel
fundamental, na senda da democracia e dos deveres fundamentais
de proteção [...]”.
Assim, a experiência de audiências públicas possibilita
o manejo de ação civil pública. Ilustra-se a promoção pelo MP
(TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO
SUL, 2017) para a implantação de uma casa abrigo no Município
de Torres. Está evidente a responsabilidade dos entes públicos pela
falta de investimentos a fim de que não haja a violação dos DH. Na
matéria em análise, o MP entrou com uma Ação Civil Pública contra
o Estado do RS e contra o Município de Torres por descumprimento
da decisão judicial referente à Casa Abrigo. A ação está em fase de
cumprimento de sentença. Exemplificada a necessidade elementar
da dignidade humana assegurada após a sobrevivência de uma
tentativa de feminicídio. E, em distribuição por dependência, há
o cumprimento provisório da sentença (RIO GRANDE DO SUL,
2019) da Ação Civil Pública.
Notadamente, o MP, como órgão fiscalizador, representa os
interesses da sociedade: os direitos difusos dentro da esfera de um
Estado Democrático de Direito. O dano moral coletivo ensejado,
neste cumprimento provisório, está calcado na violação ao dever de
proteção e na teoria do risco administrativo. Presente, portanto, a
omissão lesiva a direitos fundamentais.
Vislumbra-se, assim, que não há uma proteção cabal para
com as mulheres vítimas de violência, pois, embora essa esteja nos
ditames legislativos, há um grande caminho para a real efetivação
da proteção. As políticas públicas estão em vias de implementação
e a estrutura existente é precária, restando um grande limiar entre
a lei e a sua efetivação real de disponibilização dos serviços.
Felizmente, nas jurisprudências gaúchas, tem-se sentenciado pela
399

manutenção da qualificadora reconhecendo que a violência está em


estado latente. A unanimidade de decisões é necessária para que o
agressor perceba que há punição severa no que concerne aos atos de
violência praticados contra a mulher.

4 PRIMEIRA CONDENAÇÃO PELA CORTE INTERA-


MERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH) POR
CRIME DE FEMINICÍDIO
A Lei do Feminicídio foi um avanço muito importante que
deu visibilidade política a um fenômeno cotidiano: mulheres são
assassinadas pelo fato de serem mulheres. A discriminação de
gênero apresenta várias formas, através de episódios distintos: pela
violência de assédio sexual nos espaços públicos, pela violência
doméstica, pela discriminação à mulher na política, nos espaços de
poder, pelo controle cotidiano da vida da mulher e de sua sexualidade.
Essa ilídima injustiça vai alcançar o ápice no feminicídio. Esse
crime acaba reforçando a cultura patriarcal dando fôlego, força à
sobrevivência da violação aos DH. Por isso é justa e adequada essa
reprovação mais séria estabelecida pela lei supracitada.
O Direito Internacional (DI) acentua a premissa de
valorização à dignidade e à integridade da pessoa e Novo (2018)
acentua: “O DI é um conjunto de normas [...] consuetudinárias que
estipulam acerca do comportamento e os benefícios que as pessoas
ou grupos de pessoas podem esperar ou exigir do Governo”.
Importante a menção do caso da condenação do México pela
CIDH. Este caso envolve a primeira condenação pela Corte por crime
de feminicídio: o caso González e outras (Campo Algodoeiro) que
versa sobre as mortes violentas de mulheres ocorridas em Ciudad
Juárez. Essa é uma região fronteiriça com o Estado do Texas, na
qual vivem, de forma ilegal, estrangeiros de distintos países. Por
haver muitas disputas por poder entre latifundiários e cartéis de
drogas, o crime é visível.
Válido elencar a série de mortes, como um fenômeno
social expressivo e revoltante. O México foi responsabilizado pela
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2009, pelos
400

feminicídios ocorridos no contexto laboral, fato que impactou os


papéis tradicionais do legado inóspito de uma cultura machista
e que tem suas raízes em conceitos referentes à inferioridade e
à subordinação. Em 1998, a pesquisadora mexicana Lagarde,
que cunhou o termo feminicídio, usou-o, pela primeira vez, para
descrever esses assassinatos de mulheres. O Brasil e o México
têm uma tragédia em comum, por apresentarem tamanha inação.
De acordo com Modelli (2016), “se no México uma das causas do
feminicídio é o tráfico de drogas nas fronteiras, no Brasil, segundo
dados de 2015 do Mapa da Violência, está relacionado com a
violência doméstica”.
Em 2007, foi criada a Lei do Feminicídio, no México. É,
seguramente, a legislação latina mais dura com prisão de 40 a 60
anos. Cabe lembrar que essa lei tem visibilidade política, em função
da incapacidade do Estado em empreender a persecução penal e lidar,
de forma adequada, com os desaparecimentos e mortes violentas
das mulheres, representando uma atitude de aquiescência com os
crimes cometidos, permanecendo a impunidade para os agressores.
No Estado em comento, Hochmüller (2014) define que houve o
julgamento pela CIDH: “Ambos os órgãos reconheceram a estrutura
misógina e o contexto sexistas por trás dos feminicídios e exigiram
do Estado a reestruturação cultural para destruir estereótipos de
papéis de gênero, através de criação e adaptação de leis internas”.
Alguns familiares de vítimas, desse sangrento combate,
apresentaram suas demandas à CIDH e foram indenizados com
auxílios em dinheiro e o Estado, em caráter social, teve que investir
em políticas públicas. Por omissões a crimes contra a mulher,
Miguens e Ribeiro (2018) explanam que a CIDH: “reconheceu
[...] o crime praticado como ‘homicídio de mulher por razões de
gênero’, também conhecido por feminicídio, para fins de atribuição
de responsabilidade do Estado pelas violações de direitos humanos
ocorridas em seu território”. Porém, a Lei de Feminicídio ainda
não diminuiu os estarrecedores números de mortes, ao contrário,
elas aumentaram. É preciso alterar a base cultural investindo na
educação, além do eficaz investimento em políticas públicas para
que o sexo feminino não seja comparado com seres inferiores,
coisificados, humilhados e destratados.
401

Porquanto, é ainda estarrecedor ver que os percentuais


crescem no contraponto de uma mais esperada civilidade. Em 2015,
em A Guerra (2019) a taxa por feminicídio era de 0,66% a cada 100
mil habitantes e, em 2018, foi para 1,19%. O cenário mundial é
preocupante e carece de mudanças, não mais paulatinas. É urgente
a tomada de medidas drásticas para não mais postergar o fim da
violência que leva ao feminicídio. Trata-se de planos mundiais
alicerçados nos índices alarmantes e nada amenos: seis mulheres
morrem a cada hora no mundo vítimas de feminicídios; na América
Latina, de acordo com El País (AMÉRICA..., 2018), nove mulheres
são assassinadas por dia vítimas de violência de gênero; no Brasil,
Catraca Livre (BRASIL..., 2020) três mulheres morrem por dia por
feminicídio.
Portanto, de acordo com a problemática lançada, no início da
pesquisa, há sim correlação entre o Feminicídio e a Responsabilidade
do Estado quando da omissão em casos análogos a esse episódio
horrendo ocorrido no México. Dessa monta, cabe o dano moral
coletivo, pois está calcado na violação ao dever de proteção e na
teoria do risco administrativo.

5 AUMENTO DE ÍNDICES DO FEMINICÍDIO, SOBRE-


TUDO EM ÉPOCA DE CONFINAMENTO, QUEDA DE
INVESTIMENTOS PÚBLICOS: OMISSÃO ESTATAL
Para ilustrar o aumento, a pesquisa valeu-se de dados
estatísticos criminais, da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do
RS. Nesse ínterim, se apenas comparado o ano de 2020 com 2019,
Anflor (2020) houve aumento de 24%, no primeiro semestre, com
um total de 51 feminicídios consumados em detrimento de 41 do
ano anterior. Com relação aos feminicídios tentados foram 166 e 183
respectivamente. Em 2020, 74,5% dos feminicídios consumados,
são íntimos e 84,3% das vítimas não possuía registro de medida
protetiva de urgência.
Desde 2015, o ano de 2018 teve o maior número de mortes
no RS: 117. E, em 2019, foi apontado como o terceiro estado com
mais casos de feminicídios no Brasil, representando um aumento
acima da média nacional. Em Moreira (2020), o ano de 2020 iniciou
402

com um aumento de 233% de feminicídios, se comparado ao


mesmo período do ano anterior. Nesse comparativo, em fevereiro, o
aumento foi de 400%; em março, o número permaneceu estável; e,
em abril, o aumento foi de 66,7%. Em maio e em junho os índices
tiveram uma relativa queda.
Consoante a esses índices crescentes, verifica-se a falta de
investimentos públicos orçamentários, nos últimos cinco anos, no
combate ao feminicídio. Marcelo Ferreira (2020) afirma que “é
o que apresenta o relatório preliminar da força-tarefa de combate
aos feminicídios, vinculada à Comissão de Segurança e Serviços
Públicos da Assembleia Legislativa do RS”. Esse deixou de
investir, substancialmente, desde 2015. Nesse ano, foram mais de
10 milhões investidos em políticas públicas. Em 2016, 335 mil.
Em 2017, 841 mil. Em 2018, 180 mil e em 2019, apenas 20 mil.
Com 497 municípios e 160 comarcas, há apenas 14 casas-abrigo e
22 Delegacias Especializadas para as Mulheres. E, em tempos de
confinamento e de isolamento social, os efeitos são ainda maiores
considerando as mulheres como potenciais vítimas dos efeitos
colaterais dessa pandemia.
Frente à crise sanitária, ultrapolêmica, que é a pandemia do
coronavírus, é mister que os operadores do Direito e os formuladores
das políticas públicas se engajem no combate ao grave problema,
ainda mais visível nesta época. Por conseguinte, é necessário
pensar, urgentemente, em soluções rápidas, seja replicando as
medidas já sinalizadas no enfrentamento ao problema em pauta, ou
inovando com diligências a fim de evitar os números assombrosos
que já assolam a nação. Medidas como realocação de verbas
governamentais com rubrica pertencente a outros ministérios,
devem agora ser implementadas, principalmente, no Ministério da
Mulher, da Família e dos DH com o condão de garantir padrões
mínimos de vida em confinamento, livres de violência.
Nesse liame, mesmo antes da pandemia, a situação de
vulnerabilidade já era considerada trágica. Em Pasinato e Colares
(2020): “o fascínio pelos números da violência fez com que, em
pouco tempo, o problema, que já é grave, trouxesse mais angústia
em torno de um cenário já tão assustador quanto o próprio vírus”.
Enfrentar uma quarentena é um desafio para todos, mas para as
403

mulheres, em situação de violência, a casa é um cativeiro. Consoante


Caldeira (2020) “no Brasil, onde a população feminina sofre
violência a cada quatro minutos e em que 43% dos casos acontecem
dentro de casa, essa preocupação é real.” A desigualdade atinente ao
aspecto abordado é ainda mais visível com a pandemia. Aventado
por Caldeira (2020) “a despeito de todos os impactos e mudanças
vivenciadas coletivamente, o abalo sentido por grupos mais
vulneráveis, entre eles as mulheres, será mais profundo, complexo
e potencialmente duradouro.” Nessa senda, as imbricações entre o
Direito e a vivência da pandemia do isolamento doméstico dentro
da pandemia da Covid-19 já estabelecem relações extremadas com
efeitos bastante longos, cuja segurança do lar é relativizada.
A partir das constatações, fica evidenciada a necessidade de
um programa que consubstancie o alcance de direitos voltados à
mulher, com promoção nas esferas educacionais, pois a mudança
da atual conjuntura criminal começa na mais tenra idade. Por outro
lado, se o Estado não fizer a sua parte com a implementação efetiva
de políticas públicas, é possível que ele seja responsabilizado. O
fundamento jurídico está na teoria do risco administrativo, de acordo
com a Constituição Federal (BRASIL, 1998), no artigo 37, § 6º, de
natureza objetiva.
Conducente com a sua tarefa primordial de assegurar os
direitos fundamentais, aqui evidenciados os das mulheres em crimes
de violência, é caso de omissão estatal a não perfectibilização de
normas jurídicas. De passagem, elementar apontar a translúcida
obrigação do Estado em exercer, de forma volitiva, o seu dever
constitucional sob pena de responsabilização e, por óbvio, do
dano indenizável gerado pela omissão. Nesse passo, Freitas (2010)
atesta que: “Em suma, Estado que não previne é Estado da omissão
inconstitucional. Afinal, [...] passe a atuar como responsável agente
assegurador e cumpridor dos objetivos fundamentais da República.
Não é sonho, tampouco pedir demais”.
Reputa-se a postergação dos deveres fundamentais. Certo
é cessar as omissões estatais pela responsabilidade em dimanar
os princípios da dignidade e da vida das mulheres com o fito de
alterar o quadro iníquo. Urge estabelecer o cumprimento das
demandas pela sua aplicação e prevenção. Ou, em contrapartida,
404

a sociedade continuará a presenciar, passivamente, os ceifares de


vidas femininas.
Após três décadas de uma Constituição Cidadã, é primordial
que haja uma força-tarefa da sociedade, sobretudo de quem
detém o poder de executar as cifras públicas, fazendo um modus
operandi efetivo de investimentos anuais na rede de enfrentamento
de violência contra a mulher, de acordo com Brasil (2018, p. 56-
60) no Manual de Rotinas do CNJ. É mister que os quatro eixos
fundamentais da Secretaria de Políticas para as Mulheres sejam
assegurados: combate, prevenção, assistência e garantia de direitos.
O insofismável dever do Estado na prestação e execução dos direitos
fundamentais a partir dos dispositivos legais é plausível.
Torna-se mister reagir aos índices vultosos que têm
como consequência uma crise geral estabelecida. Pelo Atlas dos
Feminicídios (FEMINICÍDIOS..., 2019):

A morte violenta de mulheres motivadas por condição de


gênero é fenômeno mundial, que em 2017, vitimou 87.000
mulheres em vários países, em que 50% dos assassinatos
tiveram como autores os parceiros íntimos ou familiares. Do
total da vitimização, resultaram 20 mil na Ásia, 19 mil na
África, 8 mil na América, 3 mil na Europa e 300 mulheres
na Oceania.

Com a vigência de um Estado Democrático de Direito, é


mister que se forneça à mulher, em situação de violência e aos
seus rebentos, um mínimo de dignidade, a fim de garantir o
respeito às liberdades civis e às garantias fundamentais, através
do estabelecimento de uma proteção jurídica. Assim sendo, a casa
abrigo e junto dela uma equipe multidisciplinar atenderá suas
necessidades básicas após um tormento: uma violência doméstica.
Lima e Streck (2014, p. 333-357): “Há um direito humano à
proteção fundamental prioritária, que passa, inexoravelmente, pela
universalização do acesso aos direitos sociais”.
405

6 AÇÕES CONCRETAS DE DIFUSÃO DO TEMA E O


EMPODERAMENTO FEMININO COMO FATOR DE
MUDANÇA
Nesse sentido, são apresentadas ações concretas do RS,
com o objetivo de mostrar que é mister haver debates acerca do
tema em pauta nas grades curriculares da Educação Básica e com
o envolvimento dos operadores do Direito, junto às Universidades,
com a finalidade profícua de desconstruir a cultura de machismo,
ainda dominante na sociedade atual, apesar de algumas evoluções.
A mudança de mentalidade não prescinde de uma intensa
promoção (BRASIL, 2006, art. 6º, VIII) “de programas educacionais
que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da
pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia”. A
inclusão da temática nos planos pedagógicos é uma orientação da
(COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,
2001) da Organização dos Estados Americanos. Como exemplo
disso, pode-se citar a cidade de Sapiranga/RS, que é pioneira na
implantação, no currículo escolar, acerca de projetos que visem o
combate à violência contra a mulher alastrando essa iniciativa em
outras ações na cidade e hoje já é lei no município.
Vale ressaltar que o MP do Estado do RS, no combate à
violência doméstica e familiar tem se destacado pela ação articulada
com todos os órgãos envolvidos na rede de proteção à mulher em
situação de violência. Desde o ano de 2011, a Promotora de Justiça,
Ivana Battaglin, integra o Grupo Nacional de DH na Comissão
Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a
Mulher e passou a articular políticas institucionais fomentadas pela
comissão.
O tribunal gaúcho, através do Centro de Formação e
Aperfeiçoamento do Poder Judiciário, promoveu cursos de
formação de facilitadores que atuam em 22 comarcas para Grupos
Reflexivos sobre a violência e seus desdobramentos, contendo
resultados positivos (MAIA, 2019): dos 601 homens atendidos,
apenas 4,3 % reincidiram, num período de nove anos. Outrossim,
na sequência de relatos que obtiveram êxito cabe citar o Município
de São Gabriel. Pelo período de dez anos, um funcionário público
406

atuou em um grupo de reflexão para autores de agressão. Reuniram-


se 271 homens. Desses, apenas 9 foram os reincidentes.
Um reconhecido trabalho que vem sendo realizado na
Comarca de Ijuí, desde o ano de 2012, foi premiado pelo Instituto
Innovare, na edição de 2017 (14º prêmio). Uma iniciativa que tenta
amenizar o palpitante problema da violência contra a mulher. Tem o
caráter elucidativo de esclarecer as vítimas, através da força-tarefa
interinstitucional, juntamente com equipe multidisciplinar voltada à
proteção de mulheres, acometidas de violência doméstica e familiar
que estão a esperar pela audiência. O Projeto Sala de Espera tende
a recrudescer a violência evitando o feminicídio. Com o intuito de
tornar mais efetiva a audiência, a vítima e o agressor têm um aparato
com profissionais da área da Psicologia e do Direito.
Dessarte, o mundo e o Direito devem estar associados numa
interação efetiva, intensa, dinâmica, compondo um amálgama. Para
combater a violência, esse infortúnio que tem caráter geracional, a
mulher deve libertar-se dos liames da violência doméstica através
do empoderamento em todos os seus sentidos. Além disso, é
imprescindível que iniciativas para a promoção das desigualdades
partam também das Universidades formadoras dos operadores do
Direito.
Ainda acerca das ações concretas para o combate ao
feminicídio, no Município de Torres, pode-se citar propostas
debatidas, a partir da reunião técnica da força-tarefa (LIMA, 2019),
realizada em dezembro de 2019, em uma iniciativa conjunta com a
Assembleia Legislativa do RS. Ações como as supracitadas, fazem
com que a mulher saia da esfera da submissão dirigindo-se à esfera
do poder, para o gozo dos seus direitos de igualdade assegurados em
lei. Vitor Hugo já enfatizava que (RIO GRANDE DO SUL, 2014)
“a primeira igualdade é a justiça”.
Resta comprovado que as inovações legislativas,
isoladamente, não conseguirão estabelecer mudanças significativas.
É mister que haja, dentre outras ações, uma consolidação do
empoderamento feminino e da justiça de gênero. Trata-se de um
problema social e político emergente de violação, de negligência e
de omissão do Estado com relação aos direitos das mulheres.
407

Ao se fazer uma análise do aumento de casos de feminicídio,


nesses não estão inclusas as “cifras ocultas”, ou seja, os casos que
não fazem parte do cômputo, razão pela qual, muitos crimes são
ocultados, não chegando ao conhecimento oficial. Para mudar o atual
quadro de violências, é necessário haver ações injuntivas em relação
ao assunto por parte da sociedade civil, dos aparelhos do Estado,
dos movimentos sociais, das organizações de DH, dos operadores
da lei, sob a premissa de que o direito à vida é um bem jurídico
fundamental, sem o qual nenhum outro direito é possível. Preservá-
lo é obrigação de todos. Eis o grande debate a ser construído com
parceria da sociedade em geral.
Faz parte do empoderamento feminino despir-se das amarras
da violência e, uma das formas para que isso ocorra, é a questão
econômica. Se a mulher tiver a independência financeira, a autoestima
será fortalecida, pois não precisará aceitar comportamentos
agressivos. Aliado a esse fator importante, está o cuidado com a
saúde física e a mental. Outra questão a ser ponderada é o medo e
a vergonha de denunciar, pois haverá julgamentos. Infelizmente, a
mulher acredita, quando ainda não estiver empoderada, que precisa
aguentar a vivência agressiva em nome daquilo que a sociedade
espera dela, como se o casamento fosse a única instituição social
aceitável. A mulher não deve ter medo de ser sozinha.
Torna-se primordial que se eduque o ser feminino como
um ser merecedor de respeito a fim de que se estabeleça o poder
que a figura feminina representa. Por analogia, se a educação
para o empoderamento feminino se fizer a partir da formação da
personalidade, a mudança ocorrerá quando os jovens estiverem em
idade a ter seus primeiros relacionamentos amorosos.

7 CONCLUSÃO
A partir do exposto, abstrai-se que a minimização de casos de
violência contra a mulher é utópica sem pensar na mudança de olhar
da humanidade. E essa se faz pela educação. As crianças que crescem
em um lar em que a violência é uma constante, sabidamente, irão
reproduzir as estruturas erradicadas no seu cotidiano, quer como
agressoras, quer como vítimas.
408

A origem para esse grave problema de violência contra a


mulher, adquire resistência, apesar da evolução histórica, industrial,
tecnológica e de padrões evolutivos de vida. As respostas a tantas
mortes decorrentes de uma cultura de dominação encontram raízes
nos padrões comportamentais (patriarcal e machista). Para que
haja efetiva mudança, é necessário preparar as gerações futuras. É
inexorável que, após tantos anos de subserviência, seja abolida de
vez essa característica nefasta, do fim da masculinidade tóxica. A
violência não é natural, ela é cultural e histórica e atinge pessoas de
todas as classes sociais e idades.
Além disso, ensejou-se que a mudança na mitigação de
tamanhos feitos mortais está presente, mais especificamente, a partir
de 1970, ao nível internacional e nacional. Por muitos anos, havia
uma condescendência das sociedades com um teor consuetudinário
acerca da questão de gênero. Importante asseverar que, para tornar
mais efetivo o combate à violência, houve alterações pontuais
através de legislações, desde o ano de 2015, com o advento da Lei
do Feminicídio.
Nesse ínterim, buscou-se refletir e demonstrar a gravidade
do feminicídio perante a sociedade. Existe sim a Responsabilidade
do Estado por omissão. Isso ocorre por conta da não projeção e,
ulterior aplicação, por parte dos gestores públicos. Ano após ano,
pelo Relatório... (2020) tanto no RS e em Helber Ferreira (2020)
como no Brasil, tem-se a constatação da falta de investimentos
em equipamentos públicos. Fato esse que propicia um aumento,
diametralmente elevado, de casos de crimes contra a mulher.
A despeito de se tratar da ausência ou de uma insuficiência na
prestação estatal em torno da satisfação dos DH, resta demonstrado
que a vulneração do aludido direito possibilita o manejo de ações
civis públicas, da tutela coletiva contra o Poder Público, inclusive
na esfera indenizatória.
Frente aos sequenciais e escandalosos casos de corrupção
em que o Brasil se encontra mergulhado, consecutivamente, é fácil
entender o porquê de não haver investimentos em áreas que dizem
respeito aos pilares básicos de uma sociedade, democraticamente,
constituída: educação, saúde, segurança. Lima (2020) acentua
que: “por conseguinte, a (in)efetividade dos direitos fundamentais
409

no Brasil está associada, dentre outras razões, ao incremento das


práticas corruptivas.”
Desse modo, é preciso investir na rede de enfrentamento e de
atendimento para o estabelecimento de uma linha de proteção maior
e um mínimo de dignidade para com as vítimas e com os seus filhos
menores em estado de vulnerabilidade. O Estado é o garantidor
de meios para a aplicação das leis. Caso contrário, a violência
continuará a ocorrer inobstante à existência das leis protetoras.
Os números elevados de casos de feminicídio no Estado do
RS, a partir da vigência da lei, há cinco anos, são a prova robusta de
que leis sozinhas não irão resolver um problema secular. Se somado
a isso os efeitos do isolamento social em função da pandemia do
coronavírus, esses podem ser ainda mais assustadores, conquanto
haja uma grande parcela de subnotificações.
Junto ao tema abordado como um propulsor da mudança,
o empoderamento feminino, que é uma espécie de emancipação
das mulheres, essencial é desenvolver entre elas a sororidade,
reverberando o respeito. Desse modo, o aviltamento, pelo qual passa
uma mulher agredida, afeta sua autoestima. Assim, elementar que
todas se unam chancelando a violência contra elas praticada.
Quantas gerações ainda hão de passar para incorporar um
pouco da sobriedade de um relacionamento à altura de Simone de
Beauvoir com Jean-Paul Sartre (RIO GRANDE DO SUL, 2016) “A
violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre
uma derrota.”

NOTAS

1 Rosmeri Kunkel é Bacharel em Direito pela ULBRA. Pós-Graduada em Ges-


tão Escolar pela UFRGS e em Língua Portuguesa pela Faculdade de Regis-
tro/SP. Graduada em Letras pela UNIJUÍ. Professora Aposentada Estadual.
[email protected]
2 Vinícius de Melo Lima é Doutor em Direito pela UNISINOS. Mestre em Ci-
ências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa. Promotor de Justiça
do RS. Professor Universitário da ULBRA/Torres. Currículo Lattes: http://
lattes.cnpq.br/0006328765333176. [email protected]
410

REFERÊNCIAS

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AMÉRICA Latina é a região mais letal para as mulheres. El País
[site] 27 nov. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/
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ANFLOR, Nadine Tagliari Farias. Polícia Civil [Mapas dos
feminicídios no Rio Grande do Sul, 2019 e 2020. 2020. [Apresentação
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Promotor de Justiça: Vinícius de Melo Lima. Torres, 8 de fev. 2019.


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O FORMULÁRIO NACIONAL DE RISCO E
PROTEÇÃO À VIDA (FRIDA) COMO ELEMENTO
IMPORTANTE PARA A ANÁLISE DAS MEDIDAS
PROTETIVAS EM FAVOR DA MULHER VÍTIMA
DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR


Eduardo Ritt1
Isadora Hörbe Neves da Fontoura2
Flávia Esteves3

1 INTRODUÇÃO
A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha,
trouxe diversos benefícios às mulheres que se encontram em
cenário de violência doméstica e familiar. Em 2006, ano em que foi
promulgada, inovou e revolucionou o direito da mulher trazendo
inúmeras disposições legais que garantem proteção jurídica à mulher
que sofrer uma das cinco espécies de violência que a referida lei
visa combater, quais sejam: violência física, violência psicológica,
violência sexual, violência patrimonial e violência moral.
Para a execução do combate à violência doméstica e
familiar, a Lei Maria da Penha elencou, em seu artigo 22, medidas
protetivas que possuem como finalidade o obrigatório afastamento
e/ou não contato do agressor da vítima e, se for o caso, de seus
filhos e familiares, inclusive sob pena de prática de novo crime de
desobediência, com a possibilidade da prisão em flagrante. Todavia,
as medidas de afastamento e não contato dependem, em regra, de
determinação judicial, e necessitam, na maioria das vezes, que a
vítima compareça a uma delegacia de polícia para registrar boletim
de ocorrência, indicando elementos para que as medidas sejam
deferidas pela autoridade judicial. Esses elementos, porém, nem
sempre são possíveis de serem fornecidos, por falta de testemunhas
presenciais e pela grave situação psicológica em que se encontra a
vítima, dificultando a tomada de decisões por parte das autoridades,
por apenas ter em mãos o registro de ocorrência.
417

Para dar um maior embasamento às decisões judiciais e


enfrentar a situação de falta de elementos, criou-se o Formulário
Nacional de Risco e Proteção à Vida, conhecido como FRIDA.
Apesar do boletim de ocorrência ser de suma importância
para substanciar a decisão do juiz, o Formulário Nacional de Risco e
Proteção à Vida (FRIDA) contém informações detalhadas a respeito
das violências que a vítima sofreu durante o período em que estava
no ciclo de violência e do comportamento do agressor, tornando-se
crucial para que o magistrado possa decidir de forma mais rápida e
com mais urgência o caso da vítima, em virtude dessas informações
prestadas.
Assim, para auxiliar na tomada de decisão para deferir ou não
as medidas protetivas de urgência à ofendida, o magistrado terá em
sua posse, além do boletim de ocorrência, o mencionado Formulário
Nacional de Risco e Proteção à Vida, com elementos mais precisos
do ciclo da violência que a vítima está inserida e do próprio
comportamento do agressor, sendo tal Formulário considerado um
elemento importante para análise das medidas protetivas de urgência
em favor da mulher vítima de violência doméstica e familiar.

2 A LEI Nº 11.340/2006
Intitulada Lei Maria da Penha, a Lei nº 11.340 chegou no ano
de 2006 com o objetivo de revolucionar e efetivar, finalmente, os
direitos das mulheres em cenário de violência doméstica e familiar,
estabelecendo, para tanto, cinco espécies básicas de violência a que
as mulheres podiam estar sujeitas, quais sejam: violência física,
violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial e
violência moral (artigo 7º). Nesta seara, o seu principal propósito
foi o de garantir que as mulheres que fossem violentadas por alguma
dessas formas tivessem a proteção jurídica adequada, ou seja, que
tivessem os seus direitos humanos assegurados após o terrível
período que vivenciaram com o autor do delito:

A Lei nº. 11.340/06 apesar de não ser perfeita, apresenta uma


estrutura adequada e específica para atender a complexidade
do fenômeno da violência doméstica ao prever mecanismos
418

de prevenção, assistência às vítimas, políticas públicas e


punição mais rigorosa para os agressores. É uma lei que
tem mais o cunho educacional e de promoção de políticas
públicas de assistência às vítimas que a intenção de punir
mais severamente os agressores dos delitos domésticos, pois
prevê em vários dispositivos medidas de proteção à mulher
em situação de violência doméstica e familiar, possibilitando
uma assistência mais eficiente a salvaguarda dos direitos
humanos das vítimas. (CAVALCANTI, 2007, p. 175-176).

Foi uma luta árdua para que a Lei 11.340 fosse realmente
promulgada e efetivada em 2006. Essa conquista começa pela
história de uma mulher sobrevivente do ciclo de violência doméstica,
chamada Maria da Penha Maia Fernandes, sendo feita que a
denominação de Lei Maria da Penha, justamente, em homenagem
a esta mulher.
Maria da Penha viveu um matrimônio com o Marco Antônio
Heredia Viveros. O início de seu relacionamento, como muitas
vezes ocorre, foi saudável, não havia ainda as agressões presentes no
cotidiano. Todavia, esse cenário começou a ser modificado ao passar
dos anos, com o nascimento de suas duas filhas, desenvolvendo-se
para o ciclo da violência:

A partir do momento em que Marco foi naturalizado e se


estabilizou profissional e economicamente, modificou
totalmente o seu modo de ser. O companheiro, até então
afável, transformou-se numa pessoa agressiva e intolerante,
não só em relação a mim, mas também às próprias filhas.
Os meus pareceres já não eram solicitados, a troca de
informações não mais fazia parte do nosso convívio.
(FERNANDES, 2010, p. 23).

Maria da Penha passou a não ter mais voz ou opinião dentro


de seu próprio lar, com sua própria família, passando a ser agredida
pelo seu companheiro, criando-se um verdadeiro ciclo de violência,
e, como não existiam normas jurídicas que protegessem a mulher
no ambiente doméstico e familiar, ela estava sem qualquer proteção
legal, sem direito ao grito por justiça.
419

O ciclo da violência é assim denominado pois é composto por


etapas de formas diferentes de violência, geralmente iniciando-se
com as agressões psicológicas e, depois, passando para agressões
físicas, sexuais e patrimoniais, até o momento em que a ofendida
não suporta mais essas espécies de violências e decide se separar.
O agressor, então, modifica radicalmente seu comportamento,
demonstrando muito afeto e tendo atitudes amorosas pela vítima,
fazendo com que ela perdoe as outras agressões recebidas.
Entretanto, logo após esta reconciliação, as agressões voltam a ser
cometidas e o ciclo se repete:

O ciclo da violência é perverso. Primeiro vem o silêncio


seguido da indiferença. Depois surgem reclamações,
reprimendas, reprovações. Em seguida começam castigos
e punições. A violência psicológica transforma-se em
violência física. Os gritos transformam-se em empurrões,
tapas, socos, pontapés, num crescer sem fim. As agressões
não se cingem à pessoa da vítima. O varão destrói seus
objetos de estimação, a humilha diante dos filhos. Sabe que
estes são os seus pontos fracos e os usa como ‘massa de
manobra’, ameaçando maltratá-los. (DIAS, 2019, p. 22).

Na maioria das vezes, a vítima encontra justificativas para


o comportamento agressivo de seu parceiro, tendo a convicção
de que é apenas uma fase e que vai passar, justificando-se que o
agressor anda estressado, trabalhando muito e sem receber muito
dinheiro, por exemplo. Nesse período do ciclo, procura agradá-
lo, tentando ser mais compreensiva e boa parceira. Para que não
haja mais problemas, evita visitar amigos, consequentemente
se afastando deles e submetendo-se à vontade do violentador: só
utiliza vestimentas que ele goste e permite, para de se maquiar para
evitar desagradar ele, etc. A ofendida encontra-se constantemente
assustada, em virtude de não saber quando será a próxima explosão
e, por conta disso, tenta não "fazer nada de errado". Torna-se insegura
e, para não ter a possibilidade de incomodar o seu companheiro,
começa a perguntar quais atitudes ela pode realizar para que ele se
sinta bem e feliz, tornando-se, por conseguinte, sua dependente. A
vítima anula a si própria, seus desejos, seus sonhos de realização
pessoal para poder agradar o agressor. Nesse momento, a mulher
420

torna-se um alvo fácil. O seu cotidiano é repleto de angústias, por se


sentir um fracasso. Começa a se perguntar o que houve de errado,
pois o ciclo da violência nunca acaba, sem se dar conta de que para
o violentador não existe nada certo. Não existe possibilidade de
satisfazer o que nada mais é do que desejo de dominação, fruto de
um comportamento controlador (DIAS, 2019, p. 23).
Dessa maneira, o ciclo da violência destrói completamente
com a autoestima e o amor próprio da vítima.
Maria da Penha Maia Fernandes passou por momentos
aterrorizantes com seu violentador. Além do ciclo de violência que
era submetida diariamente, sofreu duas tentativas de homicídio.
Marco Antônio deu dois tiros nas costas de Maria da Penha, que na
época desta primeira tentativa de homicídio, não sabia que era ele o
responsável até começar a desconfiar de suas atitudes frente ao que
havia acontecido. Dessa primeira tentativa, Maria da Penha ficou
paraplégica. Como não houve sucesso na sua primeira tentativa de
executar com a vida da vítima, o agressor Marco Antônio realizou
sua segunda tentativa de homicídio contra Maria da Penha, ao tentar
eletrocutá-la enquanto a vítima estava tomando banho. E, diante
desse acontecimento, a vítima e sobrevivente Maria da Penha Maia
Fernandes finalmente rompeu com o ciclo de violência, recorrendo
à justiça e separando-se de seu violentador:

Tomada de uma força extraordinária, embora conduzida


em cadeira de rodas, comuniquei-me com a Secretaria de
Segurança Pública e agendei para o dia 10 de janeiro de
1984 o meu depoimento. Como era de se esperar, a audiência
foi muito demorada, estendendo-se por toda uma tarde. Ao
final, os elementos materiais, informações e circunstâncias
apontavam para Marco como o principal suspeito do
atentado contra mim. Depoimentos de outras pessoas e o
aprofundar de novas diligências configurariam com mais
consistência o que estava a supor o atencioso delegado,
Dr. Nival Freire, dada a sua cultura técnica-jurídica, bem
como o seu embasamento em tirocínios do dia a dia policial.
(FERNANDES, 2010, p. 94).

Foi uma dura batalha para que Maria da Penha, mesmo


421

estando em um ciclo perverso de violência por anos e tendo sofrido


duas tentativas de homicídio, tivesse seus direitos positivados em
uma lei:
O conselho de Saúde Pública informa que no Brasil, a cada
ano, cerca de trezentas mil mulheres registram agressões
corporais vindas de seus maridos ou companheiros, e que
mais da metade das mulheres assassinadas foram mortas por
seus parceiros. Imagino quantas mais milhares de mulheres
não registram oficialmente as agressões de que são vítimas.
Como é uma violência que ocorre sob laços de casamento,
companheirismo, em situações de convívio e intimidade,
costuma tornar-se uma rotina. Além da violência física, há
a psicológica, a patrimonial, a sexual e a moral. Trata-se
de uma questão de Estado. Diante da repercussão de meu
caso, houve uma iniciativa corajosa e inédita em nosso país:
foi criada, em 2006, uma lei que prevê um tratamento mais
rigoroso para esse tipo de crime, chamada informalmente
de Lei Maria da Penha, com medidas de proteção e medidas
educativas. (FERNANDES, 2010, p. 101).

Após pressões internacionais e a construção de um sentimento


social de necessidade de mudanças legislativas, a Lei Maria da
Penha foi aprovada, garantindo à mulher em cenário de violência
doméstica e familiar seus direitos fundamentais e possibilitando à
mulher ter voz para poder gritar por justiça, por seus direitos e pelo
bem maior de todos, a sua própria vida.

3 AS FORMAS DE VIOLÊNCIAS
Historicamente, desde os primórdios do sistema patriarcal,
o homem era considerado responsável por todo o sustento de sua
família, a pessoa que detinha mais direitos e mais liberdades,
tanto na esfera profissional como na esfera familiar. A mulher, ao
contrário, era vista pela sociedade como um ser frágil, só possuindo
como responsabilidade o cuidado com a sua família, não sendo
considerado um ser detentor de direitos e liberdades como o homem.
Dessa maneira, como o homem tinha a posse da mulher, algo
normal para a era patriarcal, a violência já existia ao matrimônio
422

e, como não havia dispositivos legais que garantissem o direito


da mulher, ela sofria as violências e não tinha abrigo jurídico para
poder recorrer os seus direitos:

[...] O mundo antigo girava predominantemente em torno


da comunidade, e não do indivíduo, cuja personalidade era
facilmente sacrificada em benefício da totalidade dos clãs,
das cidades e dos feudos. Nesta era, a mulher foi muito
vitimizada, não apenas pelo homem – marido, pai e irmãos
– como ainda pelas religiões, pois, sobre sua natureza
feminina, tida como o portal dos pecados, muitas vezes
pesaram acusações de bruxaria e hermetismos heréticos que
as levaram à tortura e à fogueira. Ademais, as sociedades
primitivas sobreviviam e defendiam-se de ataques quase
que apenas baseadas na força física. Eram tempos de
guerras constantes, a sobrevivência do grupo, quando não
obtida por saques a aldeias vizinhas, advinha de caça, pesca,
agricultura e extrativismo, atividades mais compatíveis com
a maior força corporal do homem. À mulher, reservavam-
se apenas as funções domésticas e a geração e criação dos
filhos, consideradas menos importantes para a sobrevivência
do grupo. Já nessa época foi-se moldando o arquétipo do
macho protetor e provedor, com poderes supremos sobre a
família, características essenciais do homem, do bônus pater
familiae romano. Surge, destarte, a sociedade patriarcal,
com todos os seus conhecidos resultados. (PORTO, 2007,
p. 14).

Nessa seara, a violência sempre esteve presente na vida


da mulher, ainda mais por não haver a proteção do ordenamento
jurídico. Mas esse cenário mudou com o sancionamento da Lei
11.340/2006:

A violência doméstica é qualquer ação ou conduta cometida


por familiares ou pessoas que vivem na mesma casa e
que causa morte, dano, sofrimento físico ou psicológico à
mulher. É uma das formas mais comuns de manifestação da
violência e, no entanto, uma das mais invisíveis, sendo uma
das violações dos direitos humanos mais praticados e menos
reconhecidas do mundo. Trata-se de um fenômeno mundial
que não respeita fronteiras, classe social, raça, etnia,
423

religião, idade ou grau de escolaridade. (CAVALCANTI,


2007, p. 48).

A Lei Maria da Penha possui como finalidade assegurar


os direitos humanos e a proteção jurídica às mulheres que foram
violentadas. Para a efetivação desse abrigo, a supracitada lei elencou,
no seu artigo 7º, as espécies de violência doméstica e familiar contra
a mulher.
A violência física, elencada no inciso I do artigo 7º, representa
a agressão física direta, com a concretização da agressão, deixando
expostas, ou não, no corpo da vítima, marcas físicas. Quando deixa
marcas externas no corpo da mulher representa o delito de lesão
corporal. Poderá haver situações em que ocorre a agressão física,
mas não há a efetiva lesão corporal visível, sendo considerado como
o delito de vias de fato:

Violência física é o uso da força, mediante socos, tapas,


pontapés, empurrões, arremesso de objetos, queimaduras,
etc., visando, desse modo, ofender a integridade ou a saúde
corporal da vítima, deixando ou não marcas aparentes,
naquilo que se denomina, tradicionalmente, vis corporalis.
São condutas previstas, por exemplo, no Código Penal,
configurando os crimes de lesão corporal e homicídio, e
mesmo na Lei das Contravenções Penais, como a vias de
fato. (CUNHA; PINTO, 2011, p. 58).

A violência psicológica, indicada no inciso II do artigo 7º,


é, em geral, a primeira a se manifestar no ciclo da violência, por
meio de ameaças, humilhações, inferiorizações, e é a que está
sempre presente em todas as formas de violência que a Lei Maria
da Penha visa combater. Os delitos mais comuns são o de ameaça e
perturbação da tranquilidade (PORTO, 2007, p. 25).
Apesar de ser a responsável pela destruição da autoestima e
do amor próprio da ofendida, a violência psicológica ainda é vista
como uma violência menos grave frente à violência física. Os delitos
de lesão corporal e vias de fato, ou seja, as agressões concretizadas
no corpo da mulher, ainda são reputados como de maior gravidade
424

para as mulheres que esteja em cenário de violência doméstica e


familiar. Todavia, é de suma importância que haja o mesmo olhar
e a mesma preocupação para mulher que esteja sofrendo violência
psicológica, pois essa violência pode acarretar consequências
gravíssimas na vida da vítima:

A mulher, em cenário de violência psicológica, possui


uma autoestima baixa, não acredita em si mesma, em
consequência de ter aprendido a ser submissa. Pelas
diversas vezes em que foi humilhada e inferiorizada pelo
agressor, a vítima começa a acreditar que não existe outra
realidade diferente da que está vivendo, com isto, começa
a desenvolver graves doenças psicológicas, tendo o ápice
na baixa autoestima, evoluindo para a depressão e em casos
extremos ao suicídio. Portanto, a violência psicológica
poderá resultar na perda de uma vida, sem que o agressor
tenha violentado a vítima fisicamente, não deixando
hematomas externos, mas internos. (FONTOURA, 2019,
http://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/snpp/article/
view/20372/1192612881).

É de extrema necessidade a desconstrução de que a violência


física é a mais grave de todas as violências que a Lei nº 11.340/2006
possui como objetivo erradicar. Todas as violências afetam
profundamente a mulher e seu entorno familiar, e qualquer atitude
que fere a integridade física ou psicológica de um ser humano viola
quaisquer dos direitos fundamentais assegurados no artigo 5º da
Carta Magna.
A violência sexual, prevista no inciso III do artigo 7º, é
considerada como todo o ato sexual praticado pelo violentador
contra a vontade da ofendida, ou seja, sem que haja o consentimento
da mulher. Nesse sentido, a violência sexual é considerada como
qualquer conduta que constranja a mulher em situação doméstica a
“presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que induza
a comercializar ou utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade,
que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force
ao matrimônio, à gravidez, ao aborto, ou à prostituição, mediante
coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule
425

o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos” (NETO, 2019,


p. 250).
O inciso IV do artigo 7º, por sua vez, trata a respeito da
violência patrimonial. Nessa espécie de violência, o agressor rouba,
furta ou destrói os objetos que constituem o patrimônio da mulher:

Entende-se por violência patrimonial qualquer conduta que


configure retenção, subtração, destruição parcial ou total
de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinos a satisfazer suas necessidades. Esta
forma violência raramente se apresenta separada das demais,
servindo, quase sempre, como meio para agredir, física ou
psicologicamente, a vítima. (CUNHA; PINTO, 2011, p. 59).

Finalizando o rol das violências previstas pela Lei nº


11.340/2006, há a violência moral, tão importante quanto as
demais formas, e que possui um viés semelhante com a violência
psicológica, mas desta se diferencia. Tal violência se caracteriza
pelos delitos de difamação, calúnia ou injúria. Ocorre nas situações
em que o violentador agride verbalmente a vítima:

A violência moral encontra proteção penal nos delitos contra


honra: calúnia, difamação e injúria. São denominados delitos
que protegem a honra mas, cometidos em decorrência
de vínculo de natureza familiar ou afetiva, configuram
violência moral. Na calúnia, fato atribuído pelo ofensor à
vítima é definido como crime; na injúria não há atribuição
de fato determinado. A calúnia e a difamação atingem a
honra objetiva; a injúria atinge a honra subjetiva. A calúnia
e a difamação consumam-se quando terceiros tomam
conhecimento da imputação; a injúria consuma-se quando o
próprio ofendido toma conhecimento da imputação. (DIAS,
2007, p. 54).

Como se observa, todas as espécies de violência abalam


profundamente a vítima e agridem direitos fundamentais da mulher
e isto tudo no ambiente doméstico e familiar, razão pela qual devem
ser profundamente erradicadas.
426

4 AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA EM FA-


VOR DA VÍTIMA
A Lei nº 11.340/2006 estabeleceu, em seu artigo 22, e em
benefício às mulheres que sofreram uma das formas de violência,
medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor e que
possuem como finalidade o afastamento do agressor perante a
vítima, seus filhos e, se for o caso, de seus familiares, ou mesmo
impedir o agressor de manter qualquer contato. Claro que toda a Lei
Maria da Penha traz um conjunto de medidas protetivas em favor
da mulher:
Deter o agressor e garantir a segurança pessoal e patrimonial
da vítima e sua prole está a cargo tanto da polícia como do
juiz e do próprio Ministério Público. Todos precisam agir
de modo imediato e eficiente. A Lei traz providências que
não se limitam às medidas protetivas de urgência previstas
nos artigos 22 a 24. Encontram-se espraiadas em toda Lei
diversas medidas também voltadas à proteção da vítima que
cabem ser chamadas de protetivas. (DIAS, 2007, p. 79).

Assim, diz o artigo 22, constatada a prática de violência


doméstica e familiar contra a mulher,

o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto


ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de
urgência, entre outras: I - suspensão da posse ou restrição
do porte de armas, com comunicação ao órgão competente,
nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II
- afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com
a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre
as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e
das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre
estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares
e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c)
frequentação de determinados lugares a fim de preservar a
integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição
ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a
equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios; VI
– comparecimento do agressor a programas de recuperação
427

e reeducação; VII – acompanhamento psicossocial do


agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo
de apoio. (BRASIL, 2006, http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm).

A primeira medida protetiva de urgência, encontrada


no inciso I do artigo 22, trata a respeito da suspensão da posse
ou restrição do porte de armas. Essa medida tem por finalidade
garantir que o agressor não tenha mais posse de armas, com o
intuito de evitar que ele possa cometer uma atitude fatal contra
a vida da vítima. Afinal, se o agressor é capaz de violentar a
ofendida, ferindo a sua integridade psicológica ou física, não há
garantias que ele não possa cometer um ato mais grave contra ela,
já que possui um instrumento que pode executar com a sua vida:

Trata-se de medida que se mostra francamente preocupada


com a incolumidade física da mulher. E com razão. Os dados
estatísticos referentes à prática de crimes contra mulheres,
com utilização de arma de fogo, são assustadores. [...] Parece
evidente, também, embora não diga a lei, que a restrição
imposta pelo juiz deverá vir acompanhada da respectiva
ordem de busca e apreensão da arma. De nada adiantará se
suspender sua posse se não for ela regularmente apreendida,
como forme de evitar, assim, sua eventual utilização contra
a mulher, vitimada pelos ataques perpetrados pelo possuidor
da arma. Apenas a entrega espontânea da arma pelo agressor
dispensaria a medida ora sugerida. (CUNHA; PINTO, 2011,
p. 125-126).

A medida protetiva de urgência prevista no inciso II do


artigo 22, discorre sobre o afastamento do agressor do lar, domicílio
ou local de convivência com a ofendida. A medida possui como
objetivo afastar o autor do delito do lar onde vivia com a vítima, a
fim de evitar que ele continue com as agressões contra ela. Não é
porque a vítima foi à delegacia registrar o boletim de ocorrência que
o agressor irá parar espontaneamente com as agressões, e, em tese,
há a possibilidade de ele se revoltar com essa atitude da vítima e
agravar a violência ou cometer um ato fatal contra ela:
428

Obviamente, o afastamento do lar somente será deferido


ante a notícia da prática ou do risco concreto de algum crime
que o justifique, e não como mero capricho da ofendida,
dado que, muitas vezes, o afastamento do varão extrapola
os prejuízos à sua pessoa, significando medida violenta que
também priva os filhos do contato com o pai. Existindo,
porém, indicativos de um passado violento entre o casal e do
risco de sérios desdobramentos, o afastamento do agressor
do lar é uma das medidas mais eficazes para prevenir
consequências danosas que a convivência sob o mesmo teto
pode permitir e até mesmo encorajar. (PORTO, 2007, p. 94).

O inciso III, letra “a”, do artigo 22 traz como proibição de


conduta ao agressor a aproximação da ofendida, de seus familiares e
das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e
o agressor. Ora, caso o agressor também seja um risco para a família
da vítima e eventuais testemunhas que tenham o conhecimento
das agressões, é imprescindível que ele não possa se aproximar
dessas pessoas, em virtude de poder ter a chance de ameaçá-las ou
importuná-las para não auxiliarem a vítima:

Conforme decisões jurisprudenciais, o Juiz pode determinar


a distância que o agressor deve manter da vítima em metros.
Todavia, ao analisar o pedido o magistrado deve agir com
urbanidade, pois existem casos em que o local em que
a vítima e agressor residem é o mesmo local de trabalho
do agressor, ou seu local de trabalho é muito próximo, e,
ainda, em alguns casos vítima e agressor laboram em um
mesmo local. Todos estes dados devem ser analisados
antes de ser determinada a distância a ser tomada entre um
e outro.(MONTEIRO, 2016, https://bibliodigital.unijui.
edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/4027/
Laura%20Monteiro.pdf?sequence=1).

Neste mesmo viés de afastamento, o inciso III, letra “b”,


do artigo 22 discorre acerca da proibição do contato do agressor
com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio
de comunicação. Essa medida de proteção também possui como
objetivo proteger a vítima, seus familiares e as testemunhas de
429

eventual ameaça do agressor, pois não é somente pessoalmente


que ocorrem as agressões, elas também poderão acontecer em um
ambiente cibernético. Textos de mensagens, e-mails importunando
caracterizam o delito de perturbação do sossego:

De outra parte, a proibição de comunicação com a vítima


pode ser imposta ao requerido quando estiver sendo
usada para a prática de delitos como ameaças, ofensas e
perturbações do sossego. De fato, se por um lado, a difusão
dos aparelhos de telefonia fixa e móvel dos últimos anos
representou um avanço na democratização do acesso a
tais equipamentos, outrora destinados apenas às classes
sociais mais abastadas, por outro, é notório o incremento
da criminalidade via telefônica, desde golpes, extorsões,
determinações criminosas oriundas de dentro dos presídios,
até as clássicas ameaças, crimes contra a honra, perturbações
do sossego, estas últimas espécies delitivas muito comuns,
em se tratando de relações domésticas e/ou familiares.
(PORTO, 2007, p. 96).

No inciso III, letra “c”, do artigo 22, há a previsão de


proibição do agressor de frequentar determinados lugares a fim de
preservar a integridade física e psicológica da ofendida. Nesse caso,
como a vítima sofreu muito com a violência que o agressor cometeu
contra ela, para a palavra “normalidade” voltar ao seu dicionário,
ela precisa recomeçar a sua vida longe da pessoa que tanto a agrediu
e a fez sofrer. Para isso acontecer, se a vítima frequenta lugares
específicos que o violentador tenha conhecimento, é de necessidade
imperiosa que ele não possa mais estar presentes nesses locais:

Note-se que o agressor não será impedido de frequentar


determinado local somente porque a vítima quer, assim
estarão sendo violados os direitos do agressor à liberdade
e a locomoção, por exemplo, se a vítima sentir-se insegura
ou ameaçada de ir a uma festa em que poderá encontrar com
seu agressor, deverá evitar este encontro, pois o agressor
não poderá ser privado de tudo em razão da vontade da
ofendida. (MONTEIRO, 2016, https://bibliodigital.unijui.
edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/4027/
Laura%20Monteiro.pdf?sequence=1).
430

O inciso IV do artigo 22 discorre a respeito da restrição ou


suspensão de visitas do agressor aos dependentes menores, ouvida
a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar. O
agressor, mesmo que tenha cometido violência contra a mãe de seus
filhos, não se afastará dos menores se não for comprovado riscos
a eles. Se a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço
similar concluir que o agressor da vítima não possui comportamento
agressivo perante os seus filhos, não haverá necessidade afastá-lo
deles. A finalidade da previsão legal é, assim, evitar a alienação
parental.
No inciso V do artigo 22 encontra-se a previsão de forçar o
agressor ao pagamento de prestação de alimentos provisionais ou
provisórios à ofendida. A verdade é que a vida não pode esperar e a
dependência econômica é, em muitas vezes, a maior determinante de
submissão da mulher e dos filhos a um sistema patriarcal violento e
egocêntrico. É uma providência que se faz imprescindível, sob pena
de forçar a vítima a desistir das suas pretensões cíveis ou criminais
por absoluta necessidade sobrevivencial (PORTO, 2007, p. 98-99).
E, para finalizar o rol das medidas protetivas de urgência que
obrigam o agressor, os incisos VI e VII do artigo 22 discorrem acerca
da determinação de comparecimento do agressor a programas de
recuperação e reeducação e do seu acompanhamento psicossocial,
por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio. Essas
medidas foram inseridas em 2020, por meio da Lei nº 13.984, com
o objetivo de proporcionar atividades que façam o violentador
repensar as suas atitudes e auxiliar na sua mudança psíquica.
Além das medidas que obrigam o agressor, o artigo 23
estabelece que o juiz, quando necessário e sem prejuízo de outras
medidas, pode

I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa


oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II -
determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes
ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III -
determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo
dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV - determinar a separação de corpos. V -determinar
a matrícula dos dependentes da ofendida em instituição
431

de educação básica mais próxima do seu domicílio, ou a


transferência deles para essa instituição, independentemente
da existência de vaga. (BRASIL, 2006, http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm).

Diante do exposto, as medidas protetivas de urgência são


mecanismos de extrema importância no combate à violência
doméstica e familiar contra a mulher, em especial aquelas que
obrigam o agressor, elencadas no artigo 22 da Lei Maria da Penha,
que auxiliam no processo de recuperação psíquica e física da mulher
que foi violentada, permitindo que ela recomece a sua vida longe da
pessoa que violou todas as formas de uma vida saudável e plena.
E se o agressor descumprir as medidas, estará praticando o
crime disposto no artigo 24-A da Lei Maria da Penha, incluído pela
Lei nº 13.641, de 2018, de “Descumprimento de Medidas Protetivas
de Urgência”, sendo passível de prisão em flagrante e até mesmo de
prisão cautelar.
Todavia, para a concessão das medidas protetivas de
urgência faz-se necessário, obviamente, que a violência venha ao
conhecimento do juiz, e que a vítima indique a necessidade de
tais medidas, o que ocorre, regra geral, no registro do boletim de
ocorrência policial. Assim, no momento em que for fazer o registro
policial da violência doméstica, a vítima terá a possibilidade de
solicitar as medidas protetivas de urgência, cujo envio ao magistrado
será feito pela própria autoridade policial (artigo 12, III, da Lei
Maria da Penha), ou pelo Ministério Público, que também possui
competência para realizar a solicitação das medidas protetivas de
urgência, cuja concessão serão, regra geral, feitas pelo magistrado:

Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser


concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público
ou a pedido da ofendida.
§ 1o As medidas protetivas de urgência poderão ser
concedidas de imediato, independentemente de audiência
das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo
este ser prontamente comunicado.
§ 2o As medidas protetivas de urgência serão aplicadas
isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a
432

qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que


os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou
violados.
§ 3o Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou
a pedido da ofendida, conceder novas medidas protetivas
de urgência ou rever aquelas já concedidas, se entender
necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de
seu patrimônio, ouvido o Ministério Público. (BRASIL,
2006, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11340.htm).

O magistrado necessita, assim, de elementos claros da


necessidade da concessão das medidas, elementos que, em regra,
são trazidos pela própria vítima. Esses elementos, porém, nem
sempre são possíveis de serem fornecidos, por falta de testemunhas
presenciais e pela grave situação psicológica em que se encontra a
vítima, dificultando a tomada de decisões por parte das autoridades,
por apenas ter em mãos o registro de ocorrência.
Para dar um maior embasamento às decisões judiciais e
enfrentar a situação de falta de elementos, criou-se o Formulário
Nacional de Risco e Proteção à Vida, conhecido como FRIDA.

5 FORMULÁRIO NACIONAL DE RISCO E PROTEÇÃO


À VIDA
Apesar do boletim de ocorrência ser de suma importância
para substanciar a decisão do juiz, nem sempre ele traz todas as
informações imprescindíveis para a correta decisão judicial a
respeito das medidas protetivas.
Fruto de estudos desenvolvidos por peritos brasileiros e
europeus, o Formulário Nacional de Risco e Proteção à Vida,
conhecido como FRIDA, possui como finalidade analisar qual a
situação de risco que a vítima se encontra e auxiliar os magistrados
nos deferimentos ou não das medidas protetivas de urgência. Este
formulário se aplica aos casos de violência doméstica e familiar e
feminicídios consoante previsão na legislação.
433

Violência Doméstica e Familiar De acordo com a Lei Maria


da Penha (11.340/2006) “configura violência doméstica e
familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada
no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,
sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.” (artigo
5º, Lei Maria da Penha). A violência doméstica apresenta-se
nas formas da violência física, psicológica, sexual, moral e
patrimonial e pode ocorrer na unidade doméstica, envolvendo
relações envolvendo laços de parentesco, afinidade ou em
relações intimas de afeto, independentemente da coabitação
do casal.
Feminicídios São tipificados os homicídios de mulheres,
tentados ou consumados, praticados em razão do sexo
feminino em decorrência da violência doméstica e familiar
ou por menosprezo e discriminação pelo fato de ser mulher.
(Lei do Feminicídio, 13.140/2015) (CNPM, https://www.
cnmp.mp.br/portal/images/noticias/2019/maio/Proposta_
de_kit.REV.pdf, 2019).

O Formulário Nacional de Risco e Proteção à Vida (FRIDA)


foi estabelecido, em ato conjunto do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), na
Portaria Conjunta n. 5/2020, como peça essencial e importante para
a decisão judicial, no que foi seguido pelas organizações policiais,
devendo constar das solicitações de medidas protetivas.
Assim, para auxiliar na tomada de decisão para deferir ou
não as medidas protetivas de urgência à ofendida, o magistrado
terá em sua posse, além do boletim de ocorrência, o Formulário
Nacional de Risco e Proteção à Vida (FRIDA), com elementos mais
precisos do ciclo da violência que a vítima está inserida e do próprio
comportamento do agressor, sendo tal Formulário considerado um
elemento importante para análise das medidas protetivas de urgência
em favor da mulher vítima de violência doméstica e familiar.
O formulário nacional de risco e proteção à vida consiste em
um documento com 27 questionamentos a respeito da situação de
violência doméstica e familiar em que a vítima está vivendo, quais
violências ela já sofreu e quais os comportamentos do agressor com
ela e com a sociedade em geral:
434

Referido formulário tem por objetivo prevenir a reincidência


da violência contra a mulher, ajudando as instituições a
gerenciar o risco do aumento das agressões, evitando assim
futuros feminicídios. Composto por 27 perguntas objetivas
e dividido em quatro blocos, a parte I do questionário foi
desenvolvido por magistrados e promotores com atuação em
juizados de violência contra a mulher para preenchimento da
vítima, enquanto a parte II, subjetiva, é para preenchimento
exclusivo por profissionais capacitados.(CNJ, 2019, https://
www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/violencia-contra-a-
mulher/).

No processo de solicitação das medidas protetivas de


urgência, após preenchido o boletim de ocorrência policial na
delegacia de polícia, e a vítima desejar as medidas protetivas, o
policial ou atendente responsável irá preencher com a ofendida o
FRIDA. Após preenchida esta sequência de perguntas à vítima, o
policial competente pelo registro e pelo preenchimento do FRIDA,
também irá responder a questionamentos acerca do comportamento
da vítima durante o relato da violência que sofreu, necessitando
justificar o porquê da resposta, caso seja o contrário do qual ela
respondeu na primeira etapa.
Em situações que seja de necessidade imperiosa, antes do
policial encaminhar o Formulário ao foro da comarca onde a vítima
foi registrar o boletim de ocorrência e solicitar as medidas protetivas
de urgência, ele deverá aplicar as medidas previstas no artigo 11 da
Lei nº 11.340/2006:

Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência


doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre
outras providências:
I - garantir proteção policial, quando necessário,
comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder
Judiciário;
II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e
ao Instituto Médico Legal;
III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes
para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;
IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar
a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do
435

domicílio familiar;
V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta
Lei e os serviços disponíveis, inclusive os de assistência
judiciária para o eventual ajuizamento perante o juízo
competente da ação de separação judicial, de divórcio, de
anulação de casamento ou de dissolução de união estável.
(BRASIL, 2006, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm).

Como o FRIDA contém questionamentos a respeito da vida
do agressor em conjunto com a vítima e da sua personalidade, no
momento em que a solicitação das medidas protetivas de urgência
chegar ao magistrado, ele não terá somente um registro de ocorrência
de um delito que ocorreu em uma única situação, ao contrário, terá
uma ampla visão dos fatos e das necessidades inerentes a ele. O
Formulário permite ao magistrado ter conhecimento de todas as
ocasiões em que o violentador executou uma atitude ilícita contra
a ofendida; como são as suas condutas perante a sociedade; quais
os níveis de agressividade que ele possui e o quanto a vítima está
deteriorada por conta das agressões vividas.
Dessa maneira, o magistrado terá ciência do grau de urgência
das medidas protetivas à mulher que estiver solicitando e terá a
possibilidade de concedê-las antes mesmo do prazo de 48 horas que
é atribuído a ele. Nesse sentido, o FRIDA auxilia nas céleres decisões
dos magistrados às vítimas de violência doméstica e familiar por
meio de todas as respostas que substanciam os questionamentos.
Nos casos dos delitos que não são caracterizados pela
violência física, o FRIDA também pode auxiliar na previsão de
uma possível agressão concretizada no corpo da mulher, em virtude
dos questionamentos acerca das condutas do agressor perante a
vítima e a sociedade. Mesmo que não tenha agredido fisicamente
a vítima no momento em que ela solicitou as medidas protetivas
de urgência, através das respostas do FRIDA será possível concluir
que o violentador possui um perfil agressivo e o magistrado terá a
possibilidade de conceder as medidas protetivas de urgência a uma
mulher que sofreu uma ameaça, uma perturbação da tranquilidade
ou a destruição de seus objetos, como precaução de uma possível
futura violência que será evoluída para a física:
436

De acordo com o presidente da Comissão de Defesa dos


Direitos Fundamentais do CNMP, conselheiro Valter Shuenquener,

o FRIDA traz perguntas, cujas respostas contribuem na


identificação, de forma objetiva, do grau de risco em que
a vítima mulher se encontra. Essa ferramenta reduzirá a
probabilidade de uma possível repetição ou ocorrência de
um primeiro ato violento contra a mulher no ambiente de
violência doméstica. (CNMP, 2019, https://www.cnmp.
mp.br/portal/todas-as-noticias/12036-cnmpdisponibiliza-
a-sociedade-o-formulario-nacional-de-risco-e-protecao-a-
vida-frida).

As respostas dos questionamentos referentes à situação


emocional em que a vítima se encontrava ao realizar o seu relato
no FRIDA podem influenciar na rápida decisão do magistrado, em
virtude de que ela, independentemente de qual violência tenha sofrido,
possa estar em um quadro psicológico extremamente deteriorado e
prejudicado. Além disso, sabe-se que a violência psicológica causa
à mulher agredida sintomas de muito estresse, inferiorização e
humilhação, que começa na baixa autoestima, podendo evoluir para
a depressão e finalizar no suicídio, razão pela qual deve a situação
ser analisada com profundidade pelo magistrado.

6 CONCLUSÃO
A Lei Maria da Penha foi um grande marco na vida de todas
as mulheres que sofreram e sofrem alguma das espécies de violência
que a referida Lei possui como objetivo erradicar, garantindo
proteção jurídica e permitindo que a mulher tenha o direito de gritar
por justiça.
Elencadas no artigo 22 da supracitada Lei, estão as medidas
protetivas de urgência que possuem como finalidade afastar
o violentador da ofendida e, se for a situação, de seus filhos e
familiares, bem como de garantir outros direitos à mulher, dando-
lhe tranquilidade e proteção legal.
Para que a vítima obtenha as medidas protetivas de urgência,
437

ao menos as que imponham condutas ao agressor, é necessário o


deferimento judicial, tendo o magistrado o prazo de 48 horas para
decidir sobre a concessão, dependendo, assim, de elementos e
informações importantes para a sua decisão e celeridade.
O Formulário Nacional de Risco e Proteção à Vida (FRIDA)
é um documento crucial para as céleres decisões dos magistrados
no tocante as medidas protetivas de urgências, em razão de todas as
respostas que ele contém acerca dos delitos e das vidas do agressor e
da vítima, tornando-se, assim, um elemento importante para análise
das medidas protetivas de urgência em favor da mulher que foi
violentada.

NOTAS

1 Possui graduação no curso de direito pela Universidade de Santa Cruz do


Sul - UNISC e mestrado em direito pela mesma Universidade. É professor
do curso de direito da UNISC, onde exerce o magistério superior nas áre-
as do direito penal e processual penal. É Promotor de Justiça e atualmente
exerce a função na Promotoria de Justiça Criminal de Santa Cruz do Sul/RS.
Coordenador do Projeto de Extensão “Enfrentamento da violência doméstica
e familiar contra a mulher: direitos e garantias legais da mulher agredida”.
Endereço eletrônico: [email protected]. Currículo Lattes: 8342935944007299.
2 Graduanda do décimo semestre do curso de direito da Universidade de San-
ta Cruz do Sul. Integrante do Grupo de Pesquisas Relações de Trabalho na
Contemporaneidade. Integrante do Grupo de Pesquisas Direito, Cidadania &
Políticas Públicas. Integrante do Grupo de Trabalho em Apoio a Refugiados e
Imigrantes. Foi bolsista de extensão do projeto “Enfrentamento da violência
doméstica e familiar contra a mulher: direitos e garantias legais da mulher
agredida”, durante o ano de 2019. Endereço eletrônico: isadorahorbe@hot-
mail.com. Currículo Lattes: 9740515127681628.
3 É aluna do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul/UNISC
e bolsista de Projeto de Extensão “Enfrentamento da violência domésti-
ca e familiar contra a mulher: direitos e garantias legais da mulher agre-
dida”. Endereço eletrônico: [email protected]. Currículo Lattes:
4718900806196733.
438

REFERÊNCIAS

BRASIL, Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos


para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera
o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
Penal; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 7 ago. 2006. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/
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análise da Lei “Maria da Penha”, nº 11.340/06. Salvador: Editora
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mulher. CNJ, Brasília, [2019?]. Disponível em: https://www.cnj.
jus.br/programas-e-acoes/violencia-contra-a-mulher/. Acesso em:
10 jul. 2020.
CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Formulário Nacional de Risco e Proteção à Vida. CNMP, Brasília,
abr. 2019. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-
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CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Formulário Nacional de Risco e Proteção à Vida. CNMP, Brasília,
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439

efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica


e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
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Salvador: Editora JusPODIVM, 2019.
FERNANDES, Maria da Penha Maia. Sobrevivi... posso contar.
Fortaleza: Armazém da Cultura, 2010.
FONTOURA, Isadora Hörbe Neves da. A especialização
aprofundada sobre violência doméstica e familiar para o exercício
da magistratura. In: SEMINÁRIO NACIONAL DEMANDAS
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CONTEMPORÂNEA. 15., MOSTRA INTERNACIONAL DE
TRABALHOS CIENTÍFICOS. 5., 2019. Santa Cruz do Sul. Anais
eletrônicos [...]. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2019. Disponível
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MONTEIRO, Laura. A efetividade das medidas protetivas
previstas na Lei Maria da Penha na prevenção do crime de
feminicídio. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado
em Direito). UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2016. Disponível
em: http://bibliodigital.unijui.edu.br:8080/xmlui/bitstream/
handle/123456789/4027/Laura%20Monteiro.pdf?sequence=1.
Acesso em 9 jul. 2019.
NETO, Ricardo Ferracini. A violência doméstica contra a
mulher e a transversalidade de gênero. 2. ed. Salvador: Editora
JusPODIVM, 2019.
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica e familiar
contra a mulher. Porto Alegre: Editora Livraria dos Advogados,
2007.
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: UMA ANÁLISE
COMPARATIVA BRASIL- PORTUGAL

Luciane Bertoletti1

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A violência doméstica é um fenômeno produzido
historicamente e ocorre quando existem relações assimétricas de
poder.
Tal fenômeno tem recebido, ao longo dos anos, tratamento
específico pelo ordenamento internacional e pela ordem jurídica
brasileira e portuguesa, especialmente, no que tange à violência
praticada contra a mulher
Nesse sentido, será destacada a evolução dos direitos humanos
no plano internacional referente à violência contra a mulher, em
especial quanto a Convenção para Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, a Declaração sobre
a Eliminação da Violência Contra a Mulher da Organização das
Nações Unidas, a Resolução do Parlamento Europeu A4-0250/97
e a Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra
a mulher da OEA, conhecida como Convenção de Belém do Pará.
Após, será abordada a evolução legislativa do crime de
violência doméstica no ordenamento português, desde o seu
surgimento até os dias atuais, com as diversas alterações operadas
no Código Penal Português. A partir dessa análise preliminar,
o tipo será examinado, a fim de realizar um comparativo com a
incriminação e os institutos existentes no ordenamento jurídico
brasileiro.
Adentrando no ordenamento jurídico brasileiro,
averiguaremos a legislação aplicada às violências praticadas antes
da Lei 11.340/2006 (Maria da Penha), cuja competência para
o julgamento dos crimes pertencia, na sua maioria das vezes, ao
Juizado Criminal de Pequenas Causas.
Averiguaremos, então, a Lei Maria da Penha, desde seu
441

surgimento, resultado de um movimento feminista, até sua


aplicabilidade nos dias atuais. Serão citadas as inovações trazidas
pela lei e as alterações processadas em outras legislações.
Por fim, trataremos da discussão em torno da (in)
constitucionalidade da lei brasileira que optou por proteger o gênero
feminino frente a condutas de violência doméstica.
Percebe-se que a temática a ser desenvolvida é bastante
abordada pela doutrina e jurisprudência Brasileira e Portuguesa,
razão pela qual passaremos a discorre de modo a elucidar algumas
dúvidas e, principalmente, formar um convencimento acerca do
assunto.

2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO PLANO INTERNACIO-


NAL
Os primeiros instrumentos internacionais sobre direitos
humanos contêm normas sobre igualdade de gêneros, porém não
tratam de forma específica as violações dos direitos humanos das
mulheres, especialmente no que se refere à mulher em situação de
violência doméstica.
O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
do ano de 1948, como mencionado acima, defende a dignidade
das pessoas e a igualdade entre homens e mulheres. O Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966,
introduzem a categoria “homens” e “mulheres” ao tratarem de
temas diversos.
Somente em 1979, por pressão dos movimentos feministas
de diversos países, foi adotada pela Assembleia Geral da ONU, a
Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher (CEDAW, sigla em inglês), denominada Convenção
da Mulher, considerada o mais importante e amplo Tratado sobre
direitos humanos das meninas/mulheres, ratificada por Portugal e
pelo Brasil.
O objetivo de tal instrumento foi o de promover os direitos
da mulher, na busca de igualdade de gênero e reprimir quaisquer
442

discriminações contra a mulher nos Estados- Parte.


Sobre a CEDAW, Beleza (2008, p. 282-291) lembra que

a CEDAW não se refere de forma expressa à violência


(exceto quanto ao tráfico e a prostituição, que
frequentemente envolvam violência ou são, em si mesmos,
formas de violência), porventura porque na data em que foi
aprovada (1979) a violência doméstica (ou outras formas
de violência sobre as mulheres) não tinha ainda entrado de
pleno na consciência pública internacional.

Assim, como bem ensina a professora, no que se refere à


violência, a aludida Convenção, apenas em seu art. 6, traz a previsão
de combate ao tráfico de mulheres e a exploração da prostituição da
mulher,2 mas nada dispõe sobre violência, especialmente sobre a
violência doméstica.
Em razão dessa omissão, no ano de 1992, o Comitê CEDAW,
por meio da Resolução nº 19, definiu “violência baseada no gênero”
como a forma de discriminação pelo simples fato de ser mulher,
afetando-a de forma desproporcional.3
Tal Recomendação trouxe a previsão de promulgação, pelos
Estados- Partes, de legislação sobre violência contra a mulher e
também a possibilidade de serem responsabilizados por atos de
particulares, caso não atuem com a devida diligência para prevenir
violações de direitos ou investigar e punir atos de violência contra
as mulheres.
Em 1993 a Assembleia Geral da ONU, de forma a reforçar e
complementar a ideia trazida pela Convenção da Mulher, adotou
a Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra a Mulher,
reconhecendo a necessidade de aplicação universal às mulheres
dos direitos e princípios relativos à igualdade, segurança, liberdade,
integridade e dignidade.
Esse instrumento, no art. 1, define violência contra a mulher
como questão de gênero e conceitua o termo, trazendo, no art. 2, as
formas de conduta.4
443

Em nível internacional importante citar também as quatro


Conferências Internacionais sobre a Mulher que aconteceram na
Cidade do México, em 1975, em Copenhague em 1980, em Nairóbi,
no ano de 1985 e em Beijing (Pequim) em 1995.
Tais conferências constituíram marcos inquestionáveis
na promoção dos direitos das mulheres em todo o mundo. A IV
Conferência, realizada em Pequim e intitulada “Ação para a
Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz”, merece destaque, tendo
em vista o grande número de participantes que reuniu, bem como o
legado deixado, através de um conjunto de objetivos estratégicos,
a serem efetivadas pelos governos e sociedade na formulação
de políticas e na implementação de programas para promover a
igualdade e evitar a discriminação.
A plataforma de Pequim consagrou três inovações na luta
pela promoção da situação e dos direitos da mulher, tais como, o
conceito de gênero, a noção de empoderamento e o enfoque da
transversalidade.5
A II Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, que
ocorreu em Viena em 1993, também chamou a atenção para a questão
dos direitos das mulheres, em especial, para o grave problema de
violência contra a mulher.
No âmbito da União Europeia (EU), inspirada nas
Convenções, Declarações e Conferências já mencionadas, foi
publicada Resolução do Parlamento Europeu A4-0250/97, que trata
da necessidade de desenvolver uma campanha de recusa total de
violência contra as mulheres.
Fernandes (2008, p. 235-293) sobre o assunto, refere que

o Comité Económico e Social Europeu da União Européia,


adoptou, na sessão de março de 2006, um apelo para uma
estratégia pan-européia sobre violência doméstica contra as
mulheres. O Conselho da Europa define como objectivos
centrais o reconhecimento e o respeito pela dignidade e
integridade das mulheres e homens, tal como o combate
à violência contra as mulheres. Em 2002, o Comité de
Ministros do Conselho da Europa adoptou a Recomendação
Rec (2002) sobre proteção das mulheres contra a violência.
444

No âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA)


o primeiro normativo específico voltado a erradicar a violência
contra a mulher é a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra a Mulher, denominada de Convenção
de Belém do Pará, de 1994 (ratificada pelo Brasil em 1995). A
adoção desse instrumento marca a entrada da perspectiva de gênero
no sistema interamericano, trazendo a definição de violência contra
a mulher como “qualquer ato ou conduta baseado nas diferenças
de gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, tanto na esfera pública quanto na esfera
privada”(citação, autor, data e página).

3 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM PORTUGAL

3.1 Evolução Legislativa


Tradicionalmente, a violência praticada entre marido e
mulher era, de alguma forma, justificada. O poder de correção do
marido sobre a mulher e sobre os filhos tinha apoio na lei escrita e
na jurisprudência.
Parte dessas normas, antes mesmo da promulgação da
Constituição da República Portuguesa de 1976, já havia sido
revogada e, com sua entrada em vigor, as remanescentes foram
invalidadas ante o princípio da igualdade expresso no art. 9 da CRP.
Conforme abalizada doutrina, pode-se afirmar que a violência
doméstica surge pela primeira vez no ordenamento jurídico
português com o Código Penal de 1982, através da criminalização
do tipo penal sob a epígrafe “Maus tratos ou sobrecarga de menores
e de subordinados ou entre cônjuges”.6
De acordo com Dias (2012, p. 507), a criminalização de
tais condutas, deveu-se a uma conscientização da gravidade de tais
comportamentos, vejamos:

A criminalização dos maus tratos ou da sobrecarga (de


menores, do cônjuge, de pessoas física ou psiquicamente
débeis, de subordinados) foi o resultado da progressiva
consciencialização da gravidade destes comportamentos e
445

de que a família, a escola e a fábrica, não mais podiam


constituir “feudos sagrados”, onde o direito penal se tinha
de abster de intervir, foi o tom exageradamente cauteloso
com que o Autor do Anteprojecto de 1966 encarava a
neocriminalização destes comportamentos. Assim, nos
trabalhos de revisão do Anteprojeto, advertia Eduardo
Correia: estes artigos (arts. 166º e 167º do Anteprojeto, que
globalmente, correspondem ao nº 1 dos actuais arts. 152º,
152º-A e 152º-B) correspondem à necessidade de punir com
dignidade penal os casos mais chocantes de maus tratos a
crianças e de sobrecarga de menores e de subordinados.

Importante referir que, tanto na redação final do Código Penal


como no Anteprojeto, só se punia as ações praticadas com “malvadez
ou egoísmo”, restringindo demasiadamente a aplicabilidade do
dispositivo (DURÃO; DARCK, 2012, p. 7-24).
Ocorre que, ao longo dos anos, o referido crime foi objeto
de diversas alterações, sendo a última delas operada em 2013,
conforme passaremos a abordar.
A primeira reforma, em 1995 (Decreto-Lei 48/95, de 15 de
março), introduziu importantes alterações, como a previsão dos
maus tratos psíquicos ao lado dos maus tratos físicos, a eliminação
da referência ‘malvadez e egoísmo’, o alargamento do leque de
vítimas potenciais (pessoas idosas ou doentes), bem como o
agravamento das penas de 6 meses a 3 anos para uma pena de 1 a
5 anos de prisão. Importante ressaltar, também, que o procedimento
criminal contra o cônjuge/equiparado maltratante passou a depender
de queixa.7
O professor Fernando Silva (2011, p. 310-311), no que tange
a alteração operada em 1995, ressalta que o tipo do crime conheceu
uma evolução relevante, uma vez que a eliminação da referência
“malvadez e egoísmo” torna o tipo menos exigente, bastando para
que a conduta preencha o tipo, que seja praticado de acordo com o
que está descrito, sendo desnecessário demonstrar aspectos relativos
à conduta revelada pelo agente.
Contudo, conforme observa Susana Durão, tal crime
continuou a ser pouco fiscalizado e com intervenções pontuais, uma
446

vez que faltavam investimentos políticos e institucionais para uma


mudança de contexto (DURÃO; DARCK, 2012, p. 7-24).
As alterações processadas com a Revisão de 1998, por meio
da Lei 65/98 de 02 de setembro, atribuíram, embora tenha continuado
a depender de queixa, legitimidade ao Ministério Público para dar
início à ação contra o cônjuge maltratante, desde que o interesse
da vítima o impusesse e não houvesse oposição desta até a dedução
da acusação.
Sobre a aludida revisão, José Figueiredo Dias (2012, p. 509)
refere que

a razão da atribuição a este poder discricionário ao


Ministério Público terá sido a de contornar a inibição do
cônjuge maltratado em apresentar queixa, dado o ascendente
do cônjuge violento sobre o cônjuge ofendido. Assim, com
esse regime híbrido, o crime de maus tratos entre cônjuges
deixou de ser rigorosamente um crime semipúblico, mas
também não passou a ser um crime público, uma vez que,
para além de o início do procedimento criminal depender
de apreciação discricionária do MP sobre qual o interesse da
vítima, esta podia opor-se à prossecução do procedimento
criminal.

Em 2000, com a Lei 07 de 27 de maio, foi redigido novo texto


para o art. 152.º.8 O crime de maus tratos a cônjuge passou a ter
natureza pública, foram incluídos os progenitores de descendente
comum, extrapolando, dessa forma, o âmbito de proteção para fora
da casa da família e do agregado familiar.
Ainda, nessa revisão, foi criada a figura da suspensão
provisória do processo a pedido da vítima e a previsão de pena
acessória de proibição de contato com a vítima, incluindo o
afastamento da residência desta.
Com a revisão de 2007, realizada pela Lei 59, se deu a
separação dos crimes de violência doméstica (art.152), maus tratos
(art.152- A) e violação de regras de segurança (art.152- B).
Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette (2014, p. 440),
sobre a revisão ensinam
447

O legislador na exposição de motivos do Projeto donde


emergiu a Proposta de Lei nº 98/X , de setembro de 2006,
e desta geradora da Lei nº 59/2007, de 04 de setembro,
justificou assim suas opções: ... é ampliado o âmbito
subjetivo do crime passando a incluir as situações de
violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas do
outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido
uma relação análoga à dos cônjuges. Introduz-se uma
agravação do limite mínimo da pena, no caso do facto ser
praticado contra menores ou na presença de menores ou no
domicilio da vítima, ainda que comum ao agente. Por outro
lado, a proibição de contacto com a vítima, cujos limites
são agravados e pode incluir o afastamento da residência
ou do local de trabalho com fiscalização por meio de
controlo á distância, acrescentam-se ás penas acessórias de
proibição de uso de porte de armas, obrigação de frequência
de programas contra a violência doméstica e inibição do
exercício do poder parental, da tutela ou da curatela.

Em 2013, com a Lei nº 19, houve um alargamento do tipo


relacional entre agressor e vítima, incluindo o namoro. A pena
acessória de proibição de contato com a vítima incluiu o afastamento
da residência ou do local de trabalho.
Ressalta-se que, no ano de 2009 foi criada a Lei nº 112, de
16 de setembro, denominada “Estatuto da Vítima”, que estabelece
o regime jurídico aplicável à prevenção da violência, à proteção e
assistência das suas vítimas.
Além das referidas legislações, desde o ano de 1999, em
Portugal, vem sendo implementados Planos Nacionais de Violência
Doméstica (PNVD), cuja finalidade é prevenir e intervir nos casos
de violência no âmbito doméstico. O I e o II Planos destinavam-
se às vítimas mais vulneráveis à violência doméstica, ou seja,
crianças, mulheres e idosos. Não excluía os agressores, na medida
em previa acompanhamento por serviços especializados, com vista
à sua integração social. O III Plano tinha como objetivo primordial
de intervenção o combate à violência exercida diretamente sobre
as mulheres, no contexto das relações de intimidade, sejam elas
conjugais ou equiparadas, presentes ou passadas, demonstrando
448

uma preocupação voltada à violência de gênero (DIAS, 2010, p.


258). O IV Plano Nacional sobre Violência Doméstica baseava-
se nas políticas nacionais sobre a matéria e nas articulações com
orientações internacionais, difundidas pela ONU, pela Organização
Mundial da Saúde, pela Resolução do Parlamento Europeu, pelo
Parecer do Comité Econômico e Social Europeu e pela Estratégia
de Combate à Violência contra as Mulheres (ALVES, 2012, p. 79-
112). Por fim, o V Plano alarga o âmbito de aplicação, abrangendo,
além da violência doméstica, outras formas de violência de gênero,
como a mutilação genital feminina e as agressões sexuais.

3.2 Tutela Penal da Violência Doméstica em Portugal


O crime de Violência Doméstica encontra-se, atualmente,
inserido no art. 152.º, Capítulo III (Crimes contra a integridade
física), Título I (Crimes contra as Pessoas) da Parte Especial do
Código Penal Português.
Cumpre destacar, inicialmente, que tal crime abrange,
em Portugal, tanto a vítima mulher como a vítima homem, idoso
e criança, não protegendo, dessa forma, o gênero, como outros
ordenamentos jurídicos, especialmente o brasileiro.
Manuel Valente e Marta Miguel (2012, p. 25-42), sobre a
opção do legislador, referem que

a legislação portuguesa de prevenção e repressão da


violência produzida no seio familiar, aprovada pela
Lei 112/2009, de 16 de setembro, a par das alterações
legislativas penais, materiais e processuais, operadas
desde 2007, procura promover e concretizar o princípio
da igualdade constitucional, como se pode aferir do art. 5º
conjugado com as alíneas a) e b) do art. 2 que coloca no
mesmo patamar vitimológico toda e qualquer vítima [...] o
legislador abandonou a idéia de privilegiamento da tutela
vítima mulher e admitiu-a e concretiza-a na vítima homem,
criança, idoso, como se pode aferir dos arts. 152.º a 152.º do
CP Português e do positivado em toda a Lei 112/2009.

Ainda quanto ao sujeito passivo, ressalta-se a proteção


449

abrangente da norma, quando inclui o cônjuge, ex-cônjuge e a


pessoa de outro ou mesmo sexo com quem o agente mantenha ou
tenha mantido uma relação análoga às dos cônjuges, ainda que sem
coabitação, incluindo aqui, as relações de namoro.
Sobre as relações conjugais ou análogas, Fernando Silva,
refere que o ordenamento jurídico português equipara, para todos os
efeitos, a união entre pessoas, independentemente de serem de sexo
diferente ou do mesmo sexo (SILVA, 2011, p. 309).
Ainda, quanto aos sujeitos passivos, poderão ser vítimas o
progenitor de descendente comum de 1º grau, desde que não mantenha
com o agente do crime uma relação análoga a dos cônjuges, pois se
assim fosse estaria abrangido pela alínea b). Incluem-se também,
as pessoas particularmente indefesas, como sendo aquelas que se
encontram em situação de especial fragilidade ou vulnerabilidade,
por serem menores, idosos, padecerem de deficiência, doença física
ou psíquica, mulheres grávidas ou dependentes economicamente do
agente. Nessas situações exige-se a coabitação com o agente que
pratica o crime, o que facilita o estabelecimento de uma relação de
proximidade e de convivência relacional íntima com o agressor.
Quanto ao bem jurídico protegido pela norma temos a proteção
da pessoa individual e sua dignidade. Para a doutrina dominante, a
saúde, nas suas mais variadas formas (física, psíquica e mental) é o
que se quer, diretamente, proteger (DIAS, 2012, p. 512).
O tipo subjetivo do ilícito é o dolo, sendo necessário o
conhecimento, pelo agressor, da qualidade da vítima e, ainda assim,
não se demova da conduta criminosa.
Os elementos típicos do crime abrangem os maus tratos
físicos e psíquicos, incluindo os castigos corporais, privações de
liberdade e ofensas sexuais.
Os maus tratos psíquicos são normalmente associados a
conflitos interiores e mentais das vítimas, em razão de sofrimento,
medo e etc, podendo conduzir a quadros de depressão, levando-a
ao suicídio, bem como a tentativas de homicídio contra o agressor.9
Quanto à integridade física, Teresa Quintela de Brito, citada
por Victor Pereira e Lafayette (2014, p. 376), considera existirem 4
450

manifestações distintas de ofensas: a) direito à integridade corporal-


não ser privado de nenhuma parte do corpo; b) direito à saúde física
e psíquica- não sofrer doenças ou perturbações no equilíbrio físico
e psíquico; c) direito ao bem-estar corporal- não sofrer dores, d)
direito à aparência pessoal- não sofrer deformações na sua imagem
externa
Questão relevante, diz respeito à ressalva introduzida pela
revisão de 2007 no que tange à reiteração das ofensas dirigidas à
vítima.
Nuno Brandão (2010, p. 20) refere que

ao determinar que para ser tipicamente relevante a inflicção


de maus tratos pode ocorrer de modo “reiterado ou não” o
legislador tomou posição sobre questão que dividia doutrina
e tribunais, inclinando-se para a tese que vinha sendo
dominante na jurisprudência, a de que o perfeccionamento
do tipo não exige a reiteração da conduta violenta, podendo
bastar-se com um episódio isolado.

A censura penal desse crime pode ser avaliada através da


moldura penal estabelecida para as penas, cujo mínimo é de 1 ano
e máximo de 10 anos de prisão, de acordo com a gravidade do fato.
Além da aplicação da pena principal, poderão ser aplicadas
penas acessórias como a proibição de contato com a vítima, a
proibição de uso e porte de armas, obrigação de frequência a
programas específicos de prevenção da violência doméstica, inibição
do poder parental, da tutela e da curatela, nos casos em que os fatos
sejam graves e tenham conexão com a função exercida pelo agente.
Jorge de Figueiredo Dias (2012, p. 531) atenta para o fato de
que no caso de proibição de contacto com a vítima, a pena assessória
poderá incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho
desta e o seu cumprimento poderá ser fiscalizado por meios técnicos
de controlo a distância.
Sobre as penas acessórias, Fernando Silva (2011, p. 312)
ensina que “tais penas visam um acréscimo de censura para o acto
doa gente e, simultaneamente uma acrescida protecção da vítima”.
451

Ainda, em que pese a natureza processual penal, cabe citar o


sistema especial de detenção e de aplicação de medidas de coação,
nos casos de indícios da prática de crime, criados pela Lei nº
112/2009,10 referida no item anterior, tendo em vista sua semelhança
com as medidas protetivas insertas na legislação brasileira sobre
violência doméstica. O art. 31 consagra um regime especial para
aplicação de medidas de coação urgentes, no prazo máximo de
48 horas: a) não adquirir, não usar ou entregar, de forma imediata,
armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de
facilitar a continuação da atividade criminosa; b)sujeitar, mediante
consentimento prévio, a frequência de programas para arguidos
em crimes no contexto de violência doméstica; c) não permanecer
na residência onde o crime tiver sido cometido ou onde habite a
vítima; d) não contactar com a vítima, com determinadas pessoas ou
frequentar certos lugares ou certos meios.11

4 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL

4.1 Evolução Legislativa


A Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, § 8º dispõe
que "o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada
um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência
no âmbito de suas relações".
Conforme se observa, a nossa Lei Maior, de forma expressa,
refere a necessidade de políticas públicas no sentido de coibir
e erradicar a violência doméstica no âmbito de suas relações.
Contudo, até o advento da Lei Maria da Penha, conforme observa
Maria Berenice Dias (2008, p. 21) “a violência doméstica não
mereceu a devida atenção, nem da sociedade, nem do legislador,
muito menos do Poder Judiciário”, em virtude da ideia, como no
ordenamento português, de que não era adequado interferir nos
conflitos ocorridos na intimidade de cada família.
Nesse contexto, antes da legislação em comento, os casos de
violência doméstica e familiar eram abarcados pelo Código Penal e
pela Lei 9.099/95, criada para dar aplicabilidade ao art. 98, inciso
I da Constituição Federal, que previa Juizados Especiais no âmbito
452

da União e dos Estados com competência para o julgamento das


infrações de menor potencial ofensivo. Ocorre que, em que pese
a celeridade nos julgamentos, a lei dos juizados especiais criminais
trazia em seu bojo medidas despenalizadoras, como a transação
penal, a suspensão condicional do processo e também a possibilidade
de aplicação, ao autor do fato, de penas pecuniárias, como, por
exemplo, o pagamento de cestas básicas, gerando sentimento de
impunidade e consequentemente o aumento das estatísticas desse
tipo de criminalidade.
Sobre o tema, Meneghel (2013, p. 692) leciona que

anterior a Lei Maria da Penha, as situações de violência


contra a mulher eram julgadas segundo a Lei 9099/95 e
grande parte dos casos era considerada crime de menor
potencial ofensivo, cuja pena ia até 2 anos e os casos eram
encaminhados ao Juizado Especial Criminal (JECRIM). As
penas muitas vezes eram simbólicas, como cestas básicas
ou trabalho comunitário, o que contribuía para produzir um
sentimento de impunidade.

Com o aumento dos casos de violência doméstica, bem


como o sentimento de impunidade frente às poucas condenações
o legislador, em 2002, por meio da Lei nº 10.455/02, acrescentou
ao parágrafo único do art. 69 da Lei nº 9.099/95 a previsão de uma
medida cautelar, de natureza penal, consistente no afastamento
do agressor do lar conjugal, a ser decretada pelo Juiz do Juizado
Especial Criminal.
Outro antecedente ocorreu em 2004, com a Lei nº 10.886/04,
que criou, no art. 129 do Código Penal, um subtipo de lesão corporal
leve, decorrente de violência doméstica, aumentando a pena mínima
de 3 (três) para 6 (seis) meses.
Tais iniciativas, contudo, não foram suficientes para reduzir
os índices de violência doméstica, obrigando-se então, o legislador
à adoção de medidas mais enérgicas e eficazes, as quais vieram
consubstanciadas na Lei 11.340/2006.
453

4.2 Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)


O movimento feminista foi ator fundamental no processo de
elaboração e aprovação da lei denominada Maria da Penha.
Segundo Leila Barsted (2014, p. 25)
A ação de advocacy feminista para a elaboração de uma
lei de violência doméstica e familiar contra as mulheres
foi promovida, inicialmente, em 2002, por uma articulação
envolvendo, em sua maioria feministas operadoras do
direito de diversas ONGs e instituições. Essa articulação
denominada de Consórcio de ONGs elaborou uma proposta
de leis de enfrentamento da violência doméstica contra as
mulheres calcada na Convenção de Belém do Pará. [...] Esse
Consórcio, de forma propositiva, redigiu um anteprojeto de
lei focado na violência doméstica e familiar contra a mulher
por considerar a naturalização e o alto grau de banalização
dessa violência na sociedade brasileira.

Em paralelo ao movimento feminista que culminou na


aprovação da Lei 11.340/2006 desenvolveu-se uma vitoriosa
ação internacional junto à Comissão de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos- OEA, que responsabilizou
o Estado Brasileiro por negligência e omissão no cumprimento da
pena alcançada pelo ex-marido de Maria da Penha em dois júris.
Maria da Penha é uma brasileira, cearense, bioquímica que foi
casada com o colombiano, naturalizado brasileiro, Antonio Heredia
Viveiros, que a agredia e a ameaçava durante todo o período em
que estiveram casados, tentando por duas vezes matá-la, deixando-a
tetraplégica. Após 15 anos do fato, a justiça brasileira ainda não
havia julgado o caso, o que fez com que o Brasil fosse denunciado
e responsabilizado.
Para a doutrina brasileira, o advento da Lei 11.340, de 07
de agosto de 2006, constitui um avanço do Estado Brasileiro em
sede de direitos humanos, uma vez cria mecanismos para prevenir e
coibir a violência doméstica e familiar.
Tal norma não cria novos tipos penais, mas introduz
mudanças na legislação penal, processual penal e na Lei de
454

Execução Penal brasileira. Dispõe também sobre políticas públicas


integradas de assistência à mulher vítima de violência doméstica
e familiar e instrumentaliza medidas protetivas de urgência à
ofendida, bem como medidas que obrigam o agressor. Promove,
ainda, uma reestruturação do Poder Judiciário por meio da criação
dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,
com competência cível e criminal.
Diferente de outros ordenamentos jurídicos a lei brasileira
leva em consideração a questão de gênero, conferindo tratamento
diferenciado à mulher vítima de violência doméstica e familiar, por
considerá-la vulnerável diante da evidente desproporcionalidade
física existente entre agredida e agressor. Nesse sentido, o art. 5 da
lei é expresso quando afirma que a norma protege o gênero, ficando
evidenciada a consciência e a vontade do agente em atingir uma
mulher em situação de vulnerabilidade.12
Segundo Renato Brasileiro (2016, p. 904) “revela-se inviável
a aplicação da Lei Maria da Penha nas hipóteses de violência contra
pessoas do sexo masculino, mesmo quando originadas no ambiente
doméstico e familiar”.13
Assim, as disposições do parágrafo único do art. 5º14 da
Lei Maria da Penha não se estendem a pessoas do sexo masculino
vitimizadas em relações homoafetivas.15
No que tange ao sujeito ativo, aí sim, aplica-se a norma citada
acima, podendo o agressor ser tanto o homem (união heterossexual)
como a mulher (união homossexual).
A esse respeito Campos (2008, p. 24) ensina que

importante ressaltar a ideologia inovadora presente no art.


5º da Lei Maria da Penha, ao ampliar o conceito de família e
reconhecer como tal as uniões homoafetivas. Nesse cenário
a Lei admite uma situação que já está presente na sociedade
e que vem sendo bastante reproduzida nos meios de difusão
cultural. Assim, o legislador ao reconhecer a família advinda
da união homoafetiva, considerou a realidade social em que
vivemos e sua evolução, não ficando alheio as relações que
envolvam pessoas de diferentes gêneros, das quais também
pode derivar violência doméstica e familiar.
455

Nesse mesmo sentido caminha a jurisprudência do STF que


reconheceu na ADI 4277-DF as uniões homoafetivas como entidades
familiares. Assim, lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros de
identidade feminina estão ao abrigo da lei, quando a violência for
praticada em relações domésticas, familiares ou íntimas de afeto.
Importante mencionar que quando o sujeito ativo do crime
for mulher entende-se a necessidade de demonstrar a existência
de vulnerabilidade da vítima frente à agressora ou à motivação de
gênero e não apenas uma simples agressão moral, física, psicológica
ou patrimonial.
Para De Lima (2016, p. 903), quando a violência é
perpetrada por uma mulher contra outra no seio de uma relação
doméstica, familiar ou íntima de afeto cuida-se de uma presunção
relativa de vulnerabilidade. Como o sujeito ativo de tal crime não
se apresenta supostamente mais forte, ameaçador e dominante
que a vítima, entende-se não existir critério razoável para a
aplicação dos institutos da Lei, uma vez que o objetivo da norma
não foi o de conferir uma proteção indiscriminada à mulher, mas
somente aquelas que, efetivamente, se encontram em posição de
vulnerabilidade. Diante disso, para a configuração de violência
doméstica e familiar contra a mulher é indispensável que a vítima
esteja em situação de hipossuficiência física ou econômica, em
condição de vulnerabilidade, enfim, que a infração penal tenha
como motivação à opressão à mulher.16
Também no art. 5º encontraremos o conceito de violência
doméstica e familiar, o qual apresenta-se de forma ampla, abarcando
não apenas a violência física, mas também a violência sexual,
psicológica, moral e patrimonial. Para chegarmos a um conceito
preciso necessário conjugarmos tal dispositivo com o art. 7º, que
trata das formas de violência.
Sobre o tema, Rogério Sanches e Ronaldo Pinto (2010, p.
1183-1185) ensinam que:

Violência física é o uso da força mediante socos, tapas,


pontapés, empurrões, arremesso de objeto e queimaduras,
visando, desse modo, ofender a integridade ou a saúde
corporal da vítima, deixando ou não marcas aparentes,
456

naquilo que se denomina, tradicionalmente vis corporalis.


Por violência = psicológica entende-se a agressão emocional
(tão ou mais grave que a física). O comportamento
típico se dá quando o agente ameaça, rejeita, humilha ou
discrimina a vítima, demonstrando prazer quando vê o outro
amedrontado, inferiorizado e diminuído, configurando a
vis compulsiva. Violência sexual é qualquer conduta que
constranja a mulher a presenciar, a manter ou participar de
relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça,
coação ou uso da força; a induza a comercializar ou
utilizar, de qualquer modo a sua sexualidade, que a impeça
de usar qualquer método anticontraceptivo ou que a force
ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição,
mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação, ou
que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e
reprodutivos. Por violência patrimonial entende-se qualquer
conduta que configure retenção, destruição parcial ou total
de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.

A doutrina majoritária entende que para a caracterização


de violência doméstica e familiar não é necessário a presença
simultânea e cumulativa de todos os requisitos do art. 7º, bastando
a presença de uma das formas de violência (física, psicológica,
sexual, patrimonial, moral) em combinação alternativa com um dos
pressupostos do at. 5º, os quais serão abordados em seguida.
Retomando o art. 5º, necessário, então, enfrentar os
pressupostos previstos nos seus incisos (I ao III),17 os quais
autorizam o reconhecimento da violência doméstica e familiar.
A primeira situação em que se presume maior vulnerabilidade
da vítima diz respeito ao âmbito da unidade doméstica, compreendida
como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem
vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas
Para Renato Brasileiro de Lima (2016, p. 903) este pressuposto
deixa entrever que a existência de laços familiares ou de uma relação
íntima de afeto entre agressor e vítima não é condição sine qua non
para o reconhecimento da violência doméstica e familiar praticada
457

no âmbito da unidade doméstica. Para ele o legislador presumiu a


vulnerabilidade da mulher levando em consideração tão somente o
aspecto espacial, ou seja, o local em que foi praticada a conduta.
O segundo pressuposto ocorre quando a agressão é cometida
no âmbito da família.
De acordo com o doutrinador citado acima ao contrário
da hipótese anterior o traço peculiar é a existência de vínculos
familiares, pouco importando o local de cometimento da violência,
que não necessariamente precisa ser no espaço caseiro” (DE LIMA,
2016, p. 903).
Importante mencionar que não há necessidade de coabitação
entre agressor e agredida18.
A última situação engloba qualquer relação íntima de afeto,
independentemente de coabitação.
Entende-se que o inciso deve ser interpretado restritivamente,
no sentido de abranger apenas relacionamentos dotados de conotação
sexual ou amorosa, uma vez que a redação do dispositivo se refere
à relação “íntima”.
Quanto ao namoro, a jurisprudência ora tem aplicado a lei19
ora tem afastado sua aplicação, tendo em vista a necessidade de
análise do caso concreto, que demanda a existência de um nexo de
causalidade entre a conduta criminosa praticada e a relação de
intimidade existente entre o autor e a vítima. Ante a inexistência
de vínculo afetivo ou relação intima de afeto entre os sujeitos deve-
se ater à normatização prevista no Código Penal e na Legislação
extravagante.
No capítulo II, que engloba os arts. 10, 11 e 12, a lei descreve
os procedimentos a serem adotados, imediatamente, pela autoridade
policial que tomar conhecimento da prática de violência doméstica.
Dentre tais medidas, que são de cunho administrativo, cita-se a
de garantir proteção policial, quando necessário, a de fornecer
transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local
seguro, quando houver risco de vida e ainda acompanhá-la para
assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do
domicílio familiar.
458

Cabe mencionar também as medidas protetivas elencadas no


art.22 que obrigam o agressor e aquelas cuja previsão encontra-se
no art. 23 e são aplicadas à vítima da violência doméstica.
Para a maior parte da doutrina e jurisprudência tais medidas
possuem a natureza jurídica de tutela de urgência autônoma, de
natureza cível e de caráter satisfativo durante o tempo necessário
para garantir integridade física, moral, psicológica e patrimonial da
vítima.20
Como na legislação portuguesa existe a previsão na Lei Maria
da Penha de proibição de contato com a vítima, com o acréscimo da
proibição de contato com os familiares e testemunhas por qualquer
meio da comunicação.
A lei brasileira também prevê a suspensão da posse ou restrição
de porte de armas por parte do agressor, bem como a restrição ou
suspensão de visitas aos dependentes menores, semelhante ao
previsto no Código Penal Português.
Por fim, não podemos olvidar a discussão que se travou
desde a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, no que se refere
a sua constitucionalidade, tema já pacificado por meio da ADC 19
proposta em 2007, pelo então Presidente da República.
A divergência inicial girava em torno do princípio da
igualdade e da proporcionalidade, uma vez que a lei brasileira
protege o gênero feminino.
Nesse contexto surgiram duas correntes uma que proclamava
a inconstitucionalidade da Lei em virtude do princípio da igualdade
formal e outra que defendia a constitucionalidade respaldada no
princípio da igualdade material.
Após muitas discussões e divergências de entendimentos, os
Ministros do STF consideraram que todos os dispositivos da Lei
Maria da Penha estão de acordo como o preceito fundamental da
dignidade da pessoa humana, vejamos algumas referências feitas
pelo Relator, Ministro Marco Aurélio, em sede de julgamento:

A norma mitiga realidade de discriminação social e cultural


que, enquanto existente no país, legitima a adoção de
459

legislação compensatória a promover a igualdade material,


sem restringir de maneira desarrazoada, o direito das pessoas
pertencentes ao gênero masculino. A dimensão objetiva dos
direitos fundamentais, vale ressaltar, reclama providencias
na salvaguarda dos bens protegidos pela Lei Maior, quer
materiais, quer jurídicos, sendo importante lembra a proteção
especial que merecem a família e todos os seus integrantes.
Nesse linha o legislador já editou microssistemas próprios,
em ocasiões anteriores, a fim de conferir tratamento distinto
e proteção especial a outros sujeitos de direito em situações
de hipossuficiência, como o Estatuto do Idoso e o Estatuto
da Criança e Adolescente.

Adiante:

A mulher é vulnerável quando se trata de constrangimentos


físicos, morais e psicológicos no âmbito privado. Não
há dúvida sobre o histórico de discriminação por ela
enfrentado na esfera privada. As agressões sofridas são
significativamente maiores que as que acontecem – se é que
acontecem – contra homens em situação similar. A Lei Maria
da Penha retirou da invisibilidade e do silêncio a vítima de
hostilidades ocorridas na privacidade do lar e representou
um movimento legislativo claro no sentido de assegurar às
mulheres agredidas o acesso efetivo a reparação, à proteção
e a justiça.

Assim, chegou-se ao entendimento pela constitucionalidade,


pois, neste momento, tal legislação atende os anseios constitucionais
atuais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência doméstica é um fenômeno que não afeta apenas
homens e mulheres, mas afeta crianças, jovens e idosos, causando
uma instabilidade pessoal e familiar de efeitos devastadores cuja
consequência gera repercussão em nível pessoal, social, econômico
e cultural.
Tal espécie de violência ultrapassa barreiras geográficas e
460

econômicas, caracterizando-se como um problema mundial que


afeta todos os países.
Marco histórico de proteção à mulher foi a Convenção
das Nações Unidas sobre a eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a mulher, de 1979, que abrange as áreas
como trabalho, saúde, direitos civis e políticos, estereótipos sexuais,
prostituição e família.
Em nível Europeu, no ano de 1997, foi publicado o Relatório
A4-0250/97, que trata da necessidade de desenvolver uma campanha
de recusa total de violência contra as mulheres. Anteriormente, em
1994, a Organização dos Estados Americanos- OEA normatizou a
violência de gênero por meio da Convenção de Belém do Pará, que
cria para o Estado a obrigação de elaborar políticas e o dever de criar
serviços voltados à proteção das mulheres.
No que tange à legislação portuguesa sobre violência
doméstica, verificamos que esta sofreu diversas alterações desde sua
inicial previsão no Código Penal de 1982, resultando no atual texto,
que encontra-se disposto no art. 152. Conforme abalizada doutrina,
Portugal procurou promover e concretizar o princípio da igualdade
constitucional, abandonando a ideia de privilegiamento da tutela
à vítima mulher, alargando a proteção de forma a incluir a vítima
homem, criança e idoso.
Ainda sobre o ordenamento português, verificamos a previsão
de penas acessórias àquele que pratica as condutas descritas no
dispositivo mencionado, como a proibição de contato com a vítima,
de uso e porte de armas, a obrigatoriedade de frequência a programas
específicos de prevenção da violência doméstica, bem como a
inibição do poder parental, da tutela e da curatela, nos casos em que
os fatos sejam graves e tenham conexão com a função exercida pelo
agente, semelhante ao que encontramos na legislação brasileira.
O ordenamento brasileiro, diferentemente, protege, nos
casos de violência doméstica, o gênero feminino, por meio dos
mecanismos insertos na Lei 11.340/2006, conhecida como Lei
Maria da Penha. Tal normativa, oferece um conjunto de instrumentos
com o fito de possibilitar a proteção e o acolhimento emergencial à
vítima, isolando-a do agressor, como o afastamento do lar, proibição
461

de contato com a ofendida e testemunhas e a suspensão do porte


de armas. Frisa-se que tais medidas, ao contrário da legislação
portuguesa, têm natureza autônoma, cível e de caráter satisfativo,
isto é, durante o tempo necessário para garantir a integridade física,
moral, psicológica e patrimonial da vitima
Fazendo o cotejo das normas sobre violência doméstica no
Brasil e em Portugal e analisando as duas realidades, podemos
referir que tanto o legislador português quanto o brasileiro acertaram
quanto ao âmbito de proteção da norma, uma vez que a legislação do
Brasil não desconhece que o homem possa ser vítima de tal conduta,
mas a lei não lhe dá maior ênfase ao prevenir e coibir, pois se
trata de exceção e não de regra como demonstram as estatísticas
que apontam o Brasil no 5º lugar no ranking de países com o maior
número de crimes dessa natureza e onde 7 mulheres são mortas por
dia (IGLESIAS, 2017).
No Brasil, a Lei Maria da Penha cumpre um papel relevante
na medida em que avança em direção à garantia da igualdade de
direitos para as mulheres

NOTAS

1 Luciane Bertoletti. Delegada de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do


Sul. Pós Graduada em Direito do Estado pela UniRitter. Mestranda em Ci-
ências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa- UAL. Professora
Universitária. e-mail: [email protected]
2 O art. 6 dispõe que “Os Estados- Partes tomarão todas as medidas apropria-
das, inclusive de caráter legislativo, para suprimir todas as formas de tráfico
de mulheres e exploração da prostituição da mulher”.
3 A Recomendação Geral nº 19/1992 prevê que “23. La Violência em la família
es uma de las formas más insidiosas de violência contra La mujer. Existe em
todas las sociedades. Em las relaciones familiares, se somete a las mujeres
de cualquier edad a violencia de todo tipo, como lesiones, violación, otras
formas de violencia sexual, mental y violencia de outra índole, que se ven
perpetuadas por las actitudes tradicionales. La falta de independencia eco-
nômica obliga a muchas mujeres a permanecer en situaciones violentas. La
negación de sus responsabilidades familiares por parte de los hombres puede
ser uma forma de violencia y coerción. Esta violencia compromete La salud
de La mujer y entorpece su capacidad de participar en la vida familiar y en la
vida publica em condiciones de igualdad (ONU).”
462

4 O art. 1 refere que, para fins da Declaração, violência contra as mulheres


significa “qualquer ato de violência baseado no gênero do qual resulte, ou
possa resultar, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para a mu-
lher, incluindo as ameaças de tais atos, a coação ou a privação arbitrária
de liberdade, que ocorra, quer na vida pública, quer na vida privada.” Já o
art. 2 define que a violência contra a mulher abrange os seguintes atos “a)
violência física, sexual e psicológica ocorrida no seio da família, incluindo os
maus tratos, o abuso sexual das criança do sexo feminino no lar, a violência
relacionada com o dote, a violação conjugal, a mutilação genital feminina e
outras praticas tradicionais nocivas para as mulheres, os atos de violência
praticados por outros membros da família e a violência relacionada com a
exploração; b) violência física, sexual e psicológica praticada na comunidade
em geral , incluindo a violação, o abuso sexual, o assédio e a intimidação
sexuais no local de trabalho, nas instituições educativas e em outros locais, o
tráfico de mulheres e a prostituição forçada; c)violência física, sexual e psico-
lógica praticada ou tolerada pelo Estado, onde quer que ocorra.
5 O conceito de gênero permitiu passar de uma análise da situação da mulher
baseada no aspecto biológico para uma compreensão das relações entre ho-
mens e mulheres com produtos de padrões determinados social e cultural-
mente e, portanto, passíveis de modificação. As relações de gênero, como seu
substrato de poder, passam a constituir o centro das preocupações e a chave
para a superação dos padrões de desigualdade. O empoderamento da mulher
– um dos objetivos da Plataforma de Ação- consiste em realçar a importância
de que a mulher adquira o controle sobre o seu desenvolvimento, devendo o
governo e a sociedade criar as condições para tanto e apoiá-la nesse processo.
A noção de transversalidade busca assegurar que a perspectiva de gênero pas-
se a efetivamente integrar as políticas públicas em todas as esferas de atuação
governamental. (VIOTTI, Maria Luiza Ribeiro. Declaração e Plataforma
de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher- Pequim, 1995).
6 A redação do art. 153 do Código Penal de 1982 assim dispunha: “ 1. O pai ,
mãe ou tutor de menor de 16 anos ou todo aquele que o tenha a seu cuida-
do ou à sua guarda ou a quem caiba a responsabilidade da sua direcção ou
educação será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa até 100 dias
quando, devido a malvadez ou egoísmo: a) Lhe infligir maus tratos físicos, o
tratar cruelmente ou não lhe prestar os cuidados ou assistência à saúde que
os deveres decorrentes das suas funções lhe impõem: ou b) O empregar em
actividades perigosas, proibidas ou desumanas, ou sobrecarregar física ou
intelectualmente, com trabalhos excessivos ou inadequados de forma a ofen-
der a sua saúde , ou o seu desenvolvimento intelectual, ou a expô-lo a grave
perigo. 2- Da mesma forma será punido quem tiver como seu subordinado,
por relação de trabalho, mulher grávida, pessoa fraca de saúde ou menor, se
se verificarem o restante dos pressupostos do nº 1. 3- Da mesma forma será
ainda punido quem infligir ao seu cônjuge o tratamento descrito na alínea a)
no número 1 deste artigo.
463

7 A alteração operada em 1995 denominou o tipo de “Maus Tratos e Infração


de Regras de Segurança”, com a seguinte redação “1. Quem, tendo ao seu
cuidado, á sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação,
ou a trabalhar a seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em
razão da idade, deficiência ou gravidez, e: a) Lhe infligir maus tratos físicos
ou psíquicos ou a tratar cruelmente; b) A empregar em actividades perigosas,
desumanas ou proibidas; ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos. É
punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo art.
144.º 2. A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge, ou a quem com
ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou
psíquicos. 3- A mesma pena é também aplicável a quem infligir a progenitor
de descendente comum em 1º grau maus tratos físicos ou psíquicos. 4- A
mesma pena é aplicável a quem, não observando as disposições legais ou
regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou perigo de grave
ofensa para o corpo ou para a saúde. 5- Se dos factos previstos nos números
anteriores resultar: a) Ofensa a integridade física grave, o agente é punido
com pena de prisão de 2 a 8 anos; b) A morte, o agente é punido com pena de
prisão de 3 a 10 anos. 6- Nos casos de maus tratos previstos nos n.os 2 e 3 do
presente artigo, ao argüido pode ser aplicada a pena acessória de proibição
de contacto com a vítima , incluindo a de afastamento da residência desta,
pelo período máximo de 2 anos.”
8 “Art. 152 [...] 2- A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge, ou a
quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos
físicos ou psíquicos. 3- A mesma pena também é aplicável a quem infligir a
progenitor de descendente comum em 1º grau maus tratos físicos e psíquicos.
4- A mesma pena é aplicável a quem, não observando disposições legais ou
regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave
ofensa para o corpo ou para a saúde. 6- Nos casos de maus tratos previstos
nos 2 e 3 do presente artigo, ao argüido pode ser aplicada a pena acessória de
proibição de contacto com a vítima, incluindo a de afastamento da residência
desta, pelo período máximo de 2 anos”.
9 I- A ratio do crime de violência doméstica não está na protecção da comuni-
dade familiar ou conjugal, mas sim na protecção da pessoa individual e da
sua dignidade humana. O âmbito punitivo, abrange os comportamentos que,
de forma reiterada ou não, lesam a referida dignidade. II- Se é certo que no
passado se considerou que o bem jurídico era apenas a integridade física,
constituindo a violência doméstica uma forma agravada de crime de ofensas
corporais simples, no presente, uma interpretação como a acabada de expor
é inaceitável, pois manifestamente limitativa e redutora. A ratio que lhe sub-
jaz vai muito mais longe que os maus tratos físicos, abrangendo também os
maus tratos psíquicos, como as ameaças, as humilhações, as provocações,
as curtas privações de liberdade de movimentos e as ofensas sexuais, ou
seja, as condutas que integram o tipo objectivo do crime previsto no art. 152.º
do C. Penal podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (ofensas cor-
porais simples), maus tatos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças,
464

injurias) e podem ser susceptíveis de , singularmente consideradas cons-


tituírem, em si mesmas, outros crimes, a saber, ofensa à integridade física
simples, ameaça, injúria e difamação. III- Prenche, pois, o crime do art. 152.º
do C. Penal a prática de qualquer acto de violência que afecte a saúde físi-
ca e psíquica ou emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando do
mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade
conjugal 93.14.3 GBRMZ. EI, julgado em 16.05. 2007)
10
Violência Doméstica - Medidas de Coacção I. Em relação ao crime de vio-
lência doméstica, a Lei nº112/09 de 16 nov., no art.30º, nº2, prevê um regi-
me mais aberto e consentâneo com as necessidades práticas que este tipo de
crimes suscita, admitindo, fora de flagrante delito, a detenção quando exista
perigo de continuação da atividade criminosa, ou em caso de necessidade de
proteção da vítima; II. Prevê, ainda, no art.º 31º, medidas de coação urgentes,
em particular as medidas de afastamento do arguido, ora da residência ora
da vítima; III. Não desconhecendo que, na maioria dos casos de violência
doméstica, é a vítima que tem de sair de casa e recorrer a ajuda de familiares,
amigos ou a casas de abrigo, o nº2, daquele art.º 31º, prevê que o facto de a
vítima se ter ausentado da residência em razão da prática ou de ameaça séria
do cometimento do crime de violência doméstica não obsta a aplicação da-
quelas medidas de afastamento. ( Ac. TRL - 144/15.4PKLRS-A-L1-5)
11
Lei 112/ 2009, de 16 de setembro, art. 31º.
12
O art. 5 da lei é expresso no sentido de que “Para efeitos desta Lei configura
violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer ação ou omissão
baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, ou
psicológico e dano moral ou patrimonial”.
13
HABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL LEVE. LEI N. 11.340/06.
INAPLICABILIDADE ENTRE IRMÃOS. MULHER. SUJEITO PAS-
SIVO. AD ARGUMENTANDUM TANTUM. ART. 16 DA LEI MARIA
DA PENHA. AUDIÊNCIA PARA RETRATAÇÃO. OBRIGATORIEDADE
CONDICIONADA A INTENÇÃO DA VÍTIMA DE RETRATAR-SE. MÓ-
VEL NÃO-MANIFESTADO OPORTUNAMENTE. ORDEM DENEGA-
DA. 1. Lei n. 11.340/06. Sujeito passivo: mulher. In casu, a relação de
violência retratada neste feito ocorreu entre dois irmãos. Inaplicabilida-
de. Precedentes. 2. Não há se falar em realização de audiência retratatória,
pois a Lei Maria da Penha é inaplicável na hipótese em apreço. 3. Ad argu-
mentandum tantum. A obrigatoriedade da realização da audiência está con-
dicionada à prévia manifestação da vítima, expressa ou tácita, de retratar-se
antes do recebimento da denúncia, circunstância que não ocorreu na hipótese
dos autos, como bem asseverou a Corte originária. 4. A tese de que a vítima
possuía o desejo de revogar a autorização para a deflagração da ação penal,
inegavelmente, confronta-se com as premissas assentadas pelo Tribunal de
origem. Destarte, a alteração do julgado, da maneira explicitada, demanda re-
volvimento do conjunto fático-probatório dos autos, circunstância interditada
na via angusta do habeas corpus. 5. Ordem denegada. (STJ, 6º Turma, HC
465

212767/DF, Rel. Ministro Vasco Della Giustina, j.13.09.2011)


14
O parágrafo único do art. 5 dispõe que “as relações pessoais enunciadas neste
artigo independem de orientação sexual”
15
Conclusão nº 8 do Comunicado nº 217/2008 da Corregedoria Geral da Jus-
tiça do Estado de São Paulo, publicado no Diário Oficial do Estado em
06.02.2008. [Em Linha]. [Consult. 20 ago]. Disponível em https://www.
imprensaoficial.com.br/DO/GatewayPDF.aspx?pagina=4&caderno=D-
JE%20%20Caderno%201%20-%20&data=07/02/2008&link=/2008/dje%20
-%20caderno%201%20 %20administrativo/fevereiro/07/pag_0004_7O9V-
61JT70PQIeFO95D3DFFSF9F.pdf&paginaordenacao=
16
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. JUIZADO ESPECIAL CRI-
MINAL E JUIZ DE DIREITO. CRIME COM VIOLÊNCIA DOMÉSTI-
CA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. CRIME CONTRA A HONRA
PRATICADO PELA IRMÃ DA VÍTIMA. INAPLICABILIDADE DA LEI
11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. 1.
Delito contra a honra envolvendo irmãs, não configura hipótese de inci-
dência da Lei 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspec-
tiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou inferioridade física
e econômica. 2. Sujeito passivo da violência doméstica, objeto da referida
lei, é a mulher. Sujeito ativo pode ser tanto o homem como a mulher, desde
que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afe-
tividade. 3. No caso, havendo apenas desavenças e ofensas entre irmãs,
não há qualquer motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade
que caracterize situação de relação íntima que possa causar violência
doméstica ou familiar contra a mulher. Não se aplica a Lei 11.340/06. 4.
Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito do Juizado
Especial Criminal de Governador Valadares/MG, o suscitado. (STJ, 3º Se-
ção, CC88027/MG, Rel. Ministro Fernandes. j 18 .12.2008)
17
Os incisos do art. 5º trazem as hipóteses de configuração de violência domés-
tica quais sejam I- no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o
espaço de convivência permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar,
inclusive as esporadicamente agregadas; II- no âmbito da família, compre-
endida como comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expres-
sa; III- em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
18
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE AMEAÇA
PRATICADO CONTRA IRMÃ DO RÉU. INCIDÊNCIA DA LEI MARIA
DA PENHA. ART. 5.º, INCISO II, DA LEI N.º 11.340/06. COMPETÊN-
CIA DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CON-
TRA A MULHER DE BRASÍLIA/DF. RECURSO PROVIDO. 1. A Lei n.º
11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, tem o intuito de proteger a
mulher da violência doméstica e familiar que lhe cause morte, lesão, sofri-
466

mento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, sendo que


o crime deve ser cometido no âmbito da unidade doméstica, da família ou em
qualquer relação íntima de afeto. 2. Na espécie, apurou-se que o Réu foi à
casa da vítima para ameaçá-la, ocasião em que provocou danos em seu
carro ao atirar pedras. Após, foi constatado o envio rotineiro de mensa-
gens pelo telefone celular com o claro intuito de intimidá-la e forçá-la
a abrir mão "do controle financeiro da pensão recebida pela mãe" de
ambos. 3. Nesse contexto, inarredável concluir pela incidência da Lei n.º
11.343/06, tendo em vista o sofrimento psicológico em tese sofrido por
mulher em âmbito familiar, nos termos expressos do art. 5.º, inciso II, da
mencionada legislação. 4. "Para a configuração de violência doméstica,
basta que estejam presentes as hipóteses previstas no artigo 5º da Lei
11.343/2006 (Lei Maria da Penha), dentre as quais não se encontra a
necessidade de coabitação entre autor e vítima."5. Recurso provido para
determinar que Juiz de Direito da 3.ª Vara do Juizado de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher de Brasília/DF prossiga no julgamento da causa.
(STJ, 5º Turma, Resp 1239850/DF, Rel. Ministra Laurita Vaz, j. 16.12.2012)
19
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA.
RELAÇÃO DE NAMORO. DECISÃO DA 3ª SEÇÃO DO STJ. AFETO E
CONVIVÊNCIA INDEPENDENTE DE COABITAÇÃO. CARACTERI-
ZAÇÃO DE ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. LEI Nº 11.340/2006.
APLICAÇÃO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA
CRIMINAL. 1. Caracteriza violência doméstica, para os efeitos da Lei
11.340/2006, quaisquer agressões físicas, sexuais ou psicológicas causadas
por homem em uma mulher com quem tenha convivido em qualquer relação
íntima de afeto, independente de coabitação. 2. O namoro é uma relação
íntima de afeto que independe de coabitação; portanto, a agressão do
namorado contra a namorada, ainda que tenha cessado o relacionamen-
to, mas que ocorra em decorrência dele, caracteriza violência doméstica.
3. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao decidir os conflitos
nºs. 91980 e 94447, não se posicionou no sentido de que o namoro não foi
alcançado pela Lei Maria da Penha, ela decidiu, por maioria, que naqueles
casos concretos, a agressão não decorria do namoro. 4. A Lei Maria da Penha
é um exemplo de implementação para a tutela do gênero feminino, devendo
ser aplicada aos casos em que se encontram as mulheres vítimas da violência
doméstica e familiar. 5. Conflito conhecido para declarar a competência do
Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete -MG. (STJ, 3º
Seção, CC 96532- MJ , Rel. Ministra Jane Silva. j. 05.08.2008)
20
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA
A MULHER. MEDIDAS PROTETIVAS DA LEI N 11.340/2006 (LEI MA-
RIA DA PENHA). INCIDÊNCIA NO ÂMBITO CIVEL. NATUREZA JU-
RÍDICA. DESNECESSIDADE DE INQUÉRITO POLICIAL. PROCESSO
CIVIL EM CURSO. 1. As medidas protetivas previstas na Lei 11.340/2016,
observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma podem
ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento
467

de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência,


presente ou potencial, de processo crime ou ação principal contra o suposto
agressor. 2. Nessa hipótese, as medidas de urgência pleiteadas terão natureza
de cautelar cível satisfativa, não se exigindo instrumentalidade a outro pro-
cesso cível ou criminal, haja vista que não se busca necessariamente garantir
a eficácia pratica de tutela principal. O fim das medidas protetivas é proteger
direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações
que a favorecem. Não são, necessariamente preparatórias de qualquer ação
judicial. Não visam processos, mas pessoas.(STJ, 4º Turma. Resp 1419421/
GO, Rel. Luis Felipe Salomão. j. 07.04.2014)

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A SISTEMATIZAÇÃO DAS MEDIDAS
PROTETIVAS DE URGÊNCIA PREVISTAS
NA LEI 11.340/06

Camila Conrad1

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
São décadas de mobilização da sociedade civil e dos
movimentos de mulheres contra o fim da violência de gênero.
Conforme Pinto (2003) a partir da década de 1950, as mulheres
passaram a questionar sobre a naturalização da opressão e da
discriminação da qual eram vítimas. Assim, teve início uma série de
reflexões, movimentos, produções literárias e ações de resistência,
como a marcha da panela vazia, a participação na luta pela anistia
e pela redemocratização do País, a criação de grupos feministas
para discutir sobre literatura relacionada às mulheres ou sobre a
sexualidade.
A violência doméstica é a mãe de todas as violências.
As vítimas não são apenas as mulheres e crianças que sofrem
reiteradamente, apanham, são estupradas e eventualmente são
mortas. A vítima termina sendo toda a sociedade. Além do
sofrimento cotidiano, a violência doméstica reproduz e alimenta
um aprendizado que geralmente não fica restrito às paredes do lar.
Crianças e jovens que crescem nesse meio, muitas vezes, respondem
aos conflitos quotidianos e à necessidade de autoafirmação, tão
típicos da juventude, usando a linguagem aprendida, da violência.
Quando tais incidentes ocasionam uma morte, uma espiral de
agressões e de vinganças recíprocas envolvendo grupos de jovens
gera inúmeras outras vítimas fatais, sendo que o rastro da origem
de todos os problemas há muito foi apagado por uma sequência de
eventos, tornando invisíveis para a sociedade as consequências do
aprendizado da violência intrafamiliar (CERQUEIRA, 2015).
Diante desta realidade que assombrou, e até hoje assombra
nossa sociedade, o Estado se deu conta que era preciso criar
mecanismos em nosso ordenamento jurídico, por meio de adoção de
472

políticas públicas capazes de coibir e erradicar a violência doméstica


sofrida pela mulher no seio familiar.
Frente a tanto, após longo caminho em busca dos direitos
humanos, o tema ganhou maior relevância em 2006, quando foi
promulgada a Lei 11.340 de 07 de agosto, mais conhecida como Lei
Maria da Penha, marco da história da luta de violência doméstica
e familiar contra a mulher no Brasil. A Lei Maria da Penha inovou
ao tipificar a violência de gênero e escancarar a violência praticada
contra a mulher no ambiente familiar. Dessa forma, a violência
deixou de ser um problema íntimo e privado, e passou a encontrar
visibilidade e respaldo legal de modo a permitir seu combate e
prevenção.
A referida Lei leva o nome de Maria da Penha,
biofarmacêutica cearense símbolo de violência contra a mulher.
Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de violência praticada
pelo seu marido o qual chegou a deixá-la paraplégica. Foram
necessárias duas tentativas de homicídio, para então dezenove
anos e cinco meses após a primeira tentativa o acusado ser preso.
Hoje ele vive solto.
Desde o advento da Lei Maria da Penha, que reflete as ideias
feministas e as lutas pela conquista dos direitos para as mulheres,
traz também mudanças jurídicas e polêmicas em relação a sua
aplicação. Reflete a preocupação de uma abordagem integral para o
enfrentamento à violência contra as mulheres em três dimensões de
enfrentamento: o combate, a proteção e a prevenção.
A importância de que a atual legislação seja interpretada
de forma que se proporcione a máxima efetividade à proteção
dos direitos fundamentais de todos os cidadãos e, diante do
reconhecimento da violência doméstica como um problema
histórico de desigualdade nas relações de gênero, a legislação deve
ser interpretada de forma que maximize a prevenção à violência
doméstica, evitando quaisquer práticas que respaldem a persistência
e a tolerância da violência contra a mulher, foi fundamental para a
delimitação do tema.
A finalidade das medidas protetivas é justamente proteger
direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das
473

situações que a favorecem, buscando assegurar a incolumidade


física e resolver os problemas da mulher agredida, servindo como
meio de proteção e garantia.
O objetivo geral deste trabalho é analisar e compreender
as Medidas Protetivas de Urgência como a principal inovação de
instituto de proteção contra a violência doméstica e familiar no
âmbito da Lei nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha. Portanto, é de
extrema necessidade o aprofundamento desta proposta de pesquisa.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Da violência doméstica


Como abordado anteriormente, a violência contra a mulher
não é nenhuma novidade diante da atual sociedade. O estudo da
violência e dos mecanismos desenvolvidos por uma dada sociedade
para combatê-la, constitui um campo aberto e profundo para a
investigação histórica e sociológica do Brasil. Como ponto de
partida pode-se considerar a observação de que a violência não é
um fenômeno recente na sociedade brasileira, estando presente em
seu processo histórico, desde a colonização, desde a antiguidade
clássica até nossos dias atuais.
A inclusão da palavra "poder", completando a frase "uso
de força física", amplia a natureza de um ato violento e expande o
conceito usual de violência para incluir os atos que resultam de uma
relação de poder, incluindo ameaças e intimidação. A Organização
Mundial da Saúde (WHO, 1996) define a violência, embora o
grupo reconheça que a inclusão de "uso do poder" em sua definição
expande a compreensão convencional da palavra, como:

[...] o uso intencional de força física ou poder, ameaçados


ou reais, contra si mesmo, contra outra pessoa ou contra
um grupo ou comunidade, que resultem ou tenham grande
probabilidade de resultar em ferimento, morte, dano
psicológico, mal-desenvolvimento(sic) ou privação.

A questão da violência de gênero contra a mulher ganhou um


474

lugar tão importante na sociedade que eliminar todas as formas de


violência contra as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas
é uma das metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável
de Igualdade de Gênero da ONU Mulheres. A Convenção para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(CEDAW, 1979) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra a Mulher, mais conhecida como a
Convenção de Belém do Pará de 1994, estabelecem o compromisso
dos Estados em garantir às mulheres uma vida sem violência.
Diante disto diversas leis e normas nacionais e internacionais
reiteram que é urgente e necessário reconhecer que a violência
doméstica e familiar contra mulheres é inaceitável e, no mais,
que os governos e organismos, empresas, instituições de ensino e
pesquisa devem assumir um compromisso de não conivência com
o problema. Igualmente, afirmaram que a violência contra a mulher
constitui violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais e
limita total ou parcialmente a observância, gozo e exercício de tais
direitos e liberdades.
Dessarte, podemos resumir que a violência contra a mulher
é produto de um sistema social que sempre subordinou o sexo
feminino. É a chamada lei do mais forte sobre o mais fraco, em que
o grande problema está na sua origem estrutural e cultural, ou seja,
nosso sistema social/cultural sempre foi influenciado no sentido
de que o homem é superior à mulher e que esta deve assumir uma
postura de subordinação e respeito ao homem para que aceite, muitas
vezes, ser vítima de discriminação e da violência. A mulher, por sua
vez, acaba sofrendo as consequências como a potencialização do
medo, insegurança, incerteza, redução da autoestima e gerando até
as chamadas doenças psicossomáticas.

2.2 Formas de violência


A Lei Maria da Penha não criou o crime de violência
doméstica, mas, sim, definiu e especificou as diversas formas de
violência doméstica e familiar contra a mulher, e permitiu uma
tipificação mais eficiente dos crimes já previstos na legislação.
O legislador, preocupado em mostrar que a violência doméstica
475

e familiar vai muito além da agressão física ou do estupro, e,


principalmente, em cessar a violência doméstica e familiar, a qual
constitui uma das formas de violação dos direitos humanos (Art. 6º),
previu em seu Art. 7º, formas de violência doméstica e familiar entre
outros. Ponderamos:

Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra


a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que
ofenda sua integridade ou saúde corporal;

A violência física, que no mínimo é acompanhada da violência


psicológica, é caracterizada pelo uso da força a qual é entendida
como qualquer conduta que ofenda a integridade ou a saúde corporal
da mulher. É a primeira forma identificável, a que aparece primeiro.
É aqui que os números disparam, a maioria das mulheres que buscam
ajuda já sofreram alguma agressão dessa natureza. A infração penal
que configura essa forma de violência é a lesão corporal e as vias de
fato. A ação penal é pública incondicionada:

II - a violência psicológica, entendida como qualquer


conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da
auto-estima(sic) ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante
ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação
do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause
prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

Já a violência psicológica trata-se de previsão, até então não


entendida como forma de violência. É entendida como qualquer
conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima
ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que
vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos e decisões,
mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto,
chantagem, ridicularização, exploração e até limitação do seu direito
476

de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde


psicológica. Infrações penais são a perturbação da tranquilidade,
injúria, constrangimento ilegal, cárcere privado, ameaça, vias de
fato e abandono material:

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta


que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de
relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça,
coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a
utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça
de usar qualquer método contraceptivo ou que a force
ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição,
mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou
que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e
reprodutivos;

A violência sexual é entendida como qualquer ato sexual que


a vítima é submetida contra sua vontade, ou seja, qualquer conduta
que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação
sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou
uso da força. Atos que a induzam a comercializar ou a utilizar, de
qualquer modo, sua sexualidade. Podem ser compreendidos atos que
a impeçam de usar qualquer método contraceptivo ou que a forcem
ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante
coação, chantagem, suborno ou manipulação. Configuram-se
atos que limitem ou anulem o exercício de seus direitos sexuais e
reprodutivos. Infrações penais são estupro e atentado violento ao
pudor. A ação penal pode ser pública ou privada:

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer


conduta que configure retenção, subtração, destruição
parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho,
documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos
econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas
necessidades.

A violência patrimonial pode ser entendida como qualquer


conduta que configure subtração, retenção, destruição parcial/total de
seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens,
477

valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados


a satisfazer suas necessidades. Infrações: extorsão, roubo, furto,
estelionato. Quanto à ação penal se for cônjuge separado(a), deverá
haver a representação criminal por parte da ofendida para iniciar
o procedimento policial (Art. 182, I, Código Penal). Se houver
violência ou grave ameaça, a ação será pública incondicionada:

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que


configure calúnia, difamação ou injúria.

A violência moral geralmente coexiste com a violência


psicológica e é entendida como qualquer conduta que atinja a honra
da mulher. Inclui a calúnia, difamação ou injúria. As infrações
penais são injúria, calúnia e difamação. A ação penal é privada.
Assim sendo, a violência pode se dar no espaço de convívio
permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas que se enquadram no âmbito doméstico,
ou na comunidade formada por indivíduos que são ou que se
consideram aparentados, unidos por laços, afinidade ou ainda em
qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Vale ressaltar, ainda, que essas relações pessoais mencionadas acima
independem de orientação sexual.
As consequências negativas da agressão são muitas, e
atingem a saúde física e emocional das mulheres, o bem-estar
de seus filhos e até o contexto econômico e social dos Estados.
Denominar as formas e tipos de violência, foi uma forma do
legislador encorajar as mulheres a irem à Delegacia, mostrando
que muitas vezes, as sequelas psicológicas do abuso são ainda
mais graves que seus efeitos físicos.

3 DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA


A Lei Maria da Penha introduziu importantes instrumentos
jurídicos para garantir sua eficácia, e, pode-se afirmar que as medidas
protetivas de urgência representam uma das principais ferramentas
disponíveis para o judiciário no combate à violência doméstica
478

e familiar. Elas têm por finalidade assegurar a integridade física,


psicológica e material da vítima de violência doméstica e familiar,
garantindo sua liberdade de ação e locomoção, bem como de optar
por buscar a proteção estatal e jurisdicional contra seu suposto
agressor.
Ressalta-se que existem dois tipos de medidas protetivas,
as quais vamos ver a seguir, ou seja, as que obrigam o agressor
e as medidas protetivas de urgência à ofendida. Lembrando que
o deferimento se condiciona à existência de um risco iminente à
integridade física das vítimas de crimes domésticos.
Maria Berenice Dias (2019) aduz que as Medidas Protetivas
de Urgência tratam de medidas cautelares inominadas previstas na
Lei Maria da Penha, que visam proteger a mulher vítima de violência
ou fazer cessar as agressões no âmbito doméstico e familiar de
forma rápida.
É importante esclarecer que em toda a Lei existem medidas
que visam dar proteção às mulheres ofendidas. Nesse sentido,
podemos mencionar a possibilidade de assegurar à vítima o acesso
prioritário à remoção do trabalho, à manutenção do vínculo de
emprego, aos programas assistenciais, além de tantas outras
medidas. O deferimento de tais medidas não impede a aplicação de
outras, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o
exigirem.

3.1 Das medidas protetivas de urgência previstas na Lei


11.340/2006
Existem dois tipos de medidas protetivas, as que obrigam
o agressor e as medidas protetivas de urgência à ofendida. As
primeiras restringem a liberdade do agressor, obrigando-o a manter
certa distância da vítima, dentre outras coisas que poderão ser
determinadas pelo magistrado, ficando assim, sujeitos a obrigações
e restrições conforme elencado no Art. 22 da Lei 11.340/2006:

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e


familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz
poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou
479

separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência,


entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com
comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº
10.826, de 22 de dezembro de 2003 ;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência
com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das
testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre
estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas
por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar
a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes
menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar
ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
VI – comparecimento do agressor a programas de
recuperação e reeducação; e (Incluído pela Lei nº 13.984,
de 2020)
VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio
de atendimento individual e/ou em grupo de apoio. (Incluído
pela Lei nº 13.984, de 2020).

Ainda, o inciso VI trouxe muita discussão com a


obrigatoriedade do agressor comparecer em programas de
recuperação e reeducação para acompanhamento psicossocial. Em
diversas cidades do país já existe esse serviço de atendimento, mas
ainda é, de modo geral, de difícil efetivação que já estava previsto
no art. 35 da Lei Maria da Penha.
Já a segunda, dentre outras determinações, obriga o agressor
a restituir algum direito à vítima. Lembrando que o deferimento se
condiciona à existência de um risco iminente à integridade física das
vítimas de crimes domésticos conforme previsto no artigo 23:

Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de


outras medidas:
I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa
oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
480

II - determinar a recondução da ofendida e a de seus


dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do
agressor;
III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem
prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e
alimentos;
IV - determinar a separação de corpos.
V - determinar a matrícula dos dependentes da ofendida
em instituição de educação básica mais próxima do seu
domicílio, ou a transferência deles para essa instituição,
independentemente da existência de vaga. (Incluído pela Lei
nº 13.882, de 2019).

As medidas protetivas previstas no artigo 24 da Lei


11.340/2006 são para a proteção patrimonial dos bens do casal ou
dos particulares da mulher, podendo o juiz determinar:

Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade


conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o
juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas,
entre outras:
I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo
agressor à ofendida;
II - proibição temporária para a celebração de atos e
contratos de compra, venda e locação de propriedade em
comum, salvo expressa autorização judicial;
III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao
agressor;
IV - prestação de caução provisória, mediante depósito
judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática
de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente
para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo.

3.2 Do prazo de duração


Uma das características das medidas protetivas de urgência
é sua continuidade, uma vez que não possuem prazo nem máximo.
Nada obsta que possa haver a sua revisão e revogação a qualquer
tempo. Ademais, não formam coisa julgada material (Art. 471,
481

inciso I, do Código de Processo Civil, e Artigo 19, §§ 2º e 3º, da Lei


Maria da Penha).
No estudo das medidas protetivas de urgência é preciso que
se analise as peculiaridades de cada caso concreto. Sua manutenção,
entretanto, deve obedecer aos princípios da proporcionalidade
e da razoabilidade, não podendo perdurar indefinidamente sem
uma justificativa plausível, sem que se aprecie a manutenção da
situação que justificou sua decretação, sob pena de banalização da
ferramenta protetiva.
Ademais, defende-se que as medidas protetivas deverão
durar enquanto existir a violência física e psíquica da vítima.
Quanto à violência física não há nada a questionar, mas quanto à
violência psíquica, esta, por sua vez, fica totalmente impossível
determinar ou provar seu enfraquecimento, por ser subjetiva,
ficando exclusivamente vinculada à vontade da vítima, que poderá,
até mesmo por má-fé, não demonstrar a realidade vivenciada pela
mulher, ferindo, assim, um dos princípios mais recentes e utilizados,
o “princípio da verdade real”. Conforme define Gomes (2011, www.
professorlfg.jusbrasil.com.br):

O princípio da verdade real informa que no processo penal


deve haver uma busca da verdadeira realidade dos fatos.
Diferentemente do que pode acontecer em outros ramos do
Direito, nos quais o Estado se satisfaz com os fatos trazidos
nos autos pelas partes.

Destarte, fica bastante claro que não existe validade de


vigência da medida protetiva, tendo o mesmo prazo de duração
enquanto manter-se a situação de perigo, mantendo sua eficácia caso
o agressor volte, futuramente, a cometer outro ilícito em mesmo
sentido.

3.3 Da natureza jurídica


A natureza jurídica das medidas protetivas de urgência
são tutelas de urgência autônomas, de natureza cível e caráter
satisfativo, perdurando enquanto durarem seus efeitos e enquanto
482

necessárias para garantir a integridade física, psicológica, moral,


sexual e patrimonial da vítima.
Muitos apontam para seu caráter cautelar, previsto no art. 319
do Código de Processo Penal. No entanto, além de não estar no rol
descrito no dispositivo, as medidas não pressupõem um processo
criminal, sem a qual as medidas não existiriam.
A regra nas medidas cautelares é a necessidade de assegurar a
aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e,
nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações
penais. Ao contrário, as medidas protetivas previstas na Lei Maria
da Penha não são instrumentos para assegurar processos. O fim das
medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a
continuidade da violência e das situações que a favorecem. Lima
(2012) acrescenta:

Assim, a própria LMP não deu margem a dúvidas. As


medidas protetivas não são acessórios de processos
principais e nem se vinculam a eles. No ponto, assemelham-
se aos writs constitucionais que, como o habeas corpus ou
o mandado de segurança, não protegem processos, mas
direitos fundamentais do indivíduo.

Além disso, o próprio art. 18, § 1º, da Lei 11.340/06 traz


a possibilidade da aplicação das medidas protetivas de urgência
de imediato, independentemente de audiência das partes e de
manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente
comunicado. Já o art. 282, § 3º, do Código de Processo Penal, traz
que, “ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da
medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a
intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento
e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo”.
O Superior Tribunal de Justiça em decisão datada de 12
de fevereiro de 2014, ratificou o entendimento que as medidas
protetivas de urgência são autônomas, possuem natureza cível e
assim pontuou:
483

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. MEDIDAS
PROTETIVAS DA LEI N. 11.340/2006 (LEI MARIA
DA PENHA). INCIDÊNCIA NO ÂMBITO CÍVEL.
NATUREZA JURÍDICA. DESNECESSIDADE DE
INQUÉRITO POLICIAL, PROCESSO PENAL OU CIVIL
EM CURSO. 1. As medidas protetivas previstas na Lei n.
11.340/2006, observados os requisitos específicos para
a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas deforma
autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de
violência doméstica contra a mulher, independentemente da
existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação
principal contra o suposto agressor. 2. Nessa hipótese, as
medidas de urgência pleiteadas terão natureza de cautelar
cível satisfativa, não se exigindo instrumentalidade a
outro processo cível ou criminal, haja vista que não se
busca necessariamente garantir a eficácia prática da tutela
principal. "O fim das medidas protetivas é proteger direitos
fundamentais, evitando a continuidade da violência e das
situações que a favorecem. Não são, necessariamente,
preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam
processos, mas pessoas" (DIAS. Maria Berenice. A Lei
Maria da Penha na justiça. 3 ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2012). 3. Recurso especial não provido.
(STJ Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de
Julgamento: 11/02/2014, T4 – QUARTA TURMA).

Nesse sentido, SPADONI ainda ratifica que diferentemente


de uma ação cautelar, seu objetivo não é proteger o objeto da lide até
a resolução do mérito, mas tem o fim precípuo da prevenção:

A sentença que reconhece a existência do direito ameaçado


e da obrigação duradoura do réu possui, assim, uma eficácia
que acompanha a qualidade temporal da relação jurídica,
diferindo-se no tempo enquanto durar a relação jurídica por
ela disciplinada. Isso porque, repita-se, a eficácia da sentença
tem por função possibilitar a realização prática do direito
reconhecido, e tem a sua duração limitada pelo atingimento
do objetivo. Ela se mantém apta a produzir os seus efeitos,
enquanto esses efeitos se mostrarem necessários para o
disciplinamento da relação jurídica acertada. (SPADONI,
2007, p. 128).
484

Sendo assim, a natureza jurídica das medidas protetivas de


urgência se caracterizam por sua natureza cível, de caráter inibitório.
Claro que outros defendem a sua natureza penal ou, até mesmo,
mista.
Dessa forma, a discussão sobre a natureza jurídica das
medidas protetivas é de extrema importância pois, mais do que
simples categorização do instituto, a resolução de tal controvérsia
implica na escolha de padrões de procedimentos pré-definidos, que
vão repercutir diretamente em questões práticas e essenciais para a
real efetividade da proteção da mulher vítima de violência.

3.4 Do crime de descumprimento de medida protetiva de


urgência
Desde a criação da Lei Maria da Penha muito se falava
na efetivação das medidas protetivas de urgência, bem como na
punição caso houvesse seu descumprimento. Em 13 de abril de
2018 foi promulgada a Lei nº 13.641/2018, que trouxe a tipificação
do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência, que
incluiu na Lei Maria da Penha o artigo 24-A e parágrafos:

Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas


protetivas de urgência previstas nesta Lei:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
§1º A configuração do crime independe da competência civil
ou criminal do juiz que deferiu as medidas.
§2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade
judicial poderá conceder fiança.
§3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras
sanções cabíveis.

Com a inclusão, a Lei previu a finalidade de dirimir a


controvérsia existente no ordenamento jurídico acerca da atipicidade
do descumprimento de medida protetiva. O verbo do tipo penal
é descumprir, ou seja, há a necessidade de desobediência de uma
ordem judicial em um novo episódio de violência contra a mulher
desobedecer a ordem judicial.
Para tanto, o agressor deverá ter sido devidamente cientificado
485

da decisão que deferiu as medidas protetivas de urgência, advindo


de um magistrado, que obrigue o agressor a praticar uma ação e/ou
omissão.
Importante salientar que antes da alteração da lei e da
criminalização do descumprimento de medidas protetivas,
o entendimento de atipicidade do crime era majoritário da
jurisprudência (STJ. 5ª Turma. REsp 1.374.653-MG, Rel. julgado
em 11/3/2014, Info 538) e (STJ. 6ª Turma, RHC 41.970-MG, Rel.
julgado em 7/8/2014, Info 544).
Agora, o assunto está praticamente pacificado, constituindo a
ocorrência de crime autônomo a desobediência, pelo agressor, das
medidas protetivas.

3.5 Do atendimento e procedimento policial


A lei Maria da Penha em seu art. 8º, inciso IV, prevê “a
implementação de atendimento policial especializado para as
mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher”.
Tal serviço é direito da mulher em situação de violência doméstica
e familiar, sendo o atendimento policial e pericial especializado,
ininterrupto e prestado por servidores - preferencialmente do sexo
feminino - previamente capacitados (Art. 10-A). O mesmo artigo
prevê que:

Art. 10-A §1º A inquirição de mulher em situação de


violência doméstica e familiar ou de testemunha de
violência doméstica, quando se tratar de crime contra a
mulher, obedecerá às seguintes diretrizes:
I - salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional
da depoente, considerada a sua condição peculiar de pessoa
em situação de violência doméstica e familiar;
II - garantia de que, em nenhuma hipótese, a mulher em
situação de violência doméstica e familiar, familiares e
testemunhas terão contato direto com investigados ou
suspeitos e pessoas a eles relacionadas;
III - não revitimização da depoente, evitando sucessivas
inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível
e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida
privada.
486

§2º Na inquirição de mulher em situação de violência


doméstica e familiar ou de testemunha de delitos de que
trata esta Lei, adotar-se-á, preferencialmente, o seguinte
procedimento:
I - a inquirição será feita em recinto especialmente projetado
para esse fim, o qual conterá os equipamentos próprios e
adequados à idade da mulher em situação de violência
doméstica e familiar ou testemunha e ao tipo e à gravidade
da violência sofrida;
II - quando for o caso, a inquirição será intermediada por
profissional especializado em violência doméstica e familiar
designado pela autoridade judiciária ou policial;
III - o depoimento será registrado em meio eletrônico ou
magnético, devendo a degravação e a mídia integrar o
inquérito.

Vale ressaltar que as denúncias não precisam ser feitas


exclusivamente nas delegacias de mulheres, uma vez que todas as
delegacias podem receber a denúncia e após transferir o caso para
as especializadas. Chegada a vítima na Delegacia, deve a autoridade
policial proceder a oitiva da mesma, confeccionar o REDES, ou seja,
o boletim policial, colher todas as provas e no prazo de 48 horas
deve remeter o expediente para o juiz com pedido de deferimento
de medidas protetivas de urgência (art.12, inciso III, da Lei Maria
da Penha).
Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a
mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial
adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo
daqueles previstos no Código de Processo Penal (art. 12):

I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar


a representação a termo, se apresentada;
II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento
do fato e de suas circunstâncias;
III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas,
expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para
a concessão de medidas protetivas de urgência;
IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito
da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários;
V - ouvir o agressor e as testemunhas;
487

VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar


aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando
a existência de mandado de prisão ou registro de outras
ocorrências policiais contra ele;
VI-A - verificar se o agressor possui registro de porte ou
posse de arma de fogo e, na hipótese de existência, juntar
aos autos essa informação, bem como notificar a ocorrência
à instituição responsável pela concessão do registro ou da
emissão do porte, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de
dezembro de 2003 (Estatuto do Desarmamento);
VII - remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial
ao juiz e ao Ministério Público.

O próprio nome do instituto evidencia essa necessidade:


medidas protetivas de urgência. Quando o Estado demora em agir,
ofende a própria natureza da medida, deixando a ofendida com o
justo receio de que voltará a ser vitimada e o agressor com o caminho
livre para dela se aproximar e voltar a delinquir.

2.7 Novidades legislativas


A Lei Maria da Penha completou em agosto de 2019 treze anos
de existência e podemos dizer que ela sofreu inúmeras alterações nos
últimos anos. Embora muito se discuta a necessidade de novas leis
de combate à violência contra a mulher, fato é que a Lei 11.340/06
é considerada uma das três mais avançadas do mundo e podemos
afirmar que a nossa legislação é bastante completa quando se trata
de violência doméstica e familiar contra a mulher.
No ano de 2019, uma das principais alterações legislativas
relativas à violência contra a mulher consistiu na inclusão do artigo
12-C à Lei Maria da Penha, incluso pela Lei nº 13.827 que permite
que o Delegado de Polícia, uma vez verificada a existência de risco
atual ou iminente à vida ou à integridade física da vítima ou de
seus dependentes, conceda a medida protetiva de afastamento do
agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida,
quando o Município não for sede de comarca.
O dispositivo também autoriza que qualquer policial conceda
esta medida, quando o Município não for sede de comarca e não
488

houver delegado disponível no momento da denúncia, sendo o


juiz comunicado no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, devendo
decidir, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da
medida aplicada, comunicando as medidas aplicadas ou revogadas
ao Ministério Público.
A Lei nº 13.871/19, acrescentou os §§ 4º,5º e 6º no art. 9
da Lei Maria da Penha a obrigação daquele que, por qualquer ação
ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou psicológica e
dano moral ou patrimonial à mulher fica obrigado a ressarcir todos
os danos causados, inclusive o Sistema Único de Saúde (SUS), os
custos relativos aos serviços de saúde prestados para o tratamento
das vítimas. O dinheiro recolhido deverá ir para o fundo de saúde
do ente federado responsável pelas unidades de saúde que prestarem
os serviços.
No atendimento à mulher em situação de violência
doméstica e familiar, a Lei nº 13.894/2019 trouxe diversas alterações.
A primeira incluiu o inciso V no art. 11, que prevê que a autoridade
policial deverá, entre outras providências, informar à ofendida os
direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis, inclusive
os de assistência judiciária para o eventual ajuizamento perante
o juízo competente da ação de separação judicial, de divórcio, de
anulação de casamento ou de dissolução de união estável.
Inclusiva a Lei 13.505/2017, prevê para a mulher em situação
em violência domestica e familiar o direito de ter atendimento policial
e pericial especializado, ininterrupto e prestado, preferencialmente
por servidores do sexo feminino (MADALENO, 2019, p. 275).
A segunda alteração significativa foi a inclusão do inciso II
no art. 18, trazendo a hipótese do juiz determinar o encaminhamento
da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso,
inclusive para o ajuizamento da ação de separação judicial, de
divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união
estável perante o juízo competente.
Ainda, a Lei 13.894/19 passou a estabelecer que o juiz deverá
assegurar à mulher em situação de violência doméstica e familiar
o encaminhamento à assistência judiciária, quando for o caso,
inclusive para eventual ajuizamento da ação de separação judicial,
489

de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união


estável perante o juízo competente. O artigo 18 da Lei Maria da
Penha praticamente repete o comando, determinando ao juiz o
encaminhando da vítima à assistência judiciária, no prazo de 48
(quarenta e oito) horas do recebimento do expediente com o pedido
de medidas protetivas.
Outra alteração com a inclusão do inciso V no art. 23, na Lei
Maria da Penha, foi a determinação de que a mulher em situação
de violência doméstica e familiar tem prioridade para matricular
seus dependentes em instituição de educação básica mais próxima
de seu domicílio, ou transferi-los para essa instituição, mediante
a apresentação dos documentos comprobatórios do registro da
ocorrência policial ou do processo de violência doméstica e familiar
em curso, independentemente da existência de vaga.
Já o artigo 38-A da Lei Maria da Penha, acrescentado pela
Lei nº 13.827/2019, prevê que o juiz competente providenciará o
registro da medida protetiva de urgência em banco de dados mantido
e regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça, garantido o
acesso do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos órgãos de
segurança pública e de assistência social, com vistas à fiscalização e
à efetividade das medidas protetivas.
Outro avanço importante foi em relação à arma de fogo
(art. 18, IV, incluído pela Lei nº 13.880/2019). Agora caberá ao
juiz determinar a apreensão imediata de arma de fogo sob a posse
do agressor. Deverá o delegado, após a confecção do boletim
de ocorrência, verificar se o agressor possui registro de porte ou
posse de arma de fogo e, na hipótese de existência, juntar aos autos
essa informação, bem como notificar a ocorrência à instituição
responsável pela concessão do registro ou da emissão do porte, nos
termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003 (Estatuto do
Desarmamento).
A nova lei garante, ainda, a apreensão da arma de fogo do
agressor em 48h pelo juiz, prazo este contado a partir do recebimento
na Justiça do expediente com o pedido de medidas protetivas de
urgência.
490

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de toda história de luta contra a violência contra a
mulher pode-se disparar o salto do Estado Brasileiro frente a tanto
com a criação da Lei 11.340/06, a qual já foi considerada pela ONU
como a terceira melhor lei contra violência doméstica do mundo.
Assim, este estudo alcançou o objetivo inicial proposto para
identificar os tipos de violência, e o procedimento de concessão
das medidas protetivas de urgência previstas na Lei, assim como
as inovações decorrentes para as mulheres uma vez que a Lei nº
11.340/2006 é efetiva em aumentar o rigor das punições sobre
crimes domésticos, e também em prevenir futuras agressões e punir
os devidos agressores.
A lei criou instrumentos legais para maior proteção à mulher
vítima de violência doméstica e familiar, compreendida como
qualquer ação ou omissão que resulte em morte, lesão, sofrimento
físico, sexual, psicológico e dano moral ou patrimonial que ocorra
no âmbito familiar ou domiciliar.
Considerado o maior marco na busca à efetivação ao direito
das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, as Medidas
Protetivas de Urgência e hoje, sua penalização, vieram para amparar
a mulher em risco iminente afastando e restringindo direitos do
ofensor.
As medidas protetivas de urgência são deferidas em desfavor
do agressor com o objetivo de garantir a integridade física e
psíquica da mulher vítima de violência doméstica e familiar. Em
caso de descumprimento e, dessa forma, de retorno à situação
de risco que ensejou a concessão do instrumento, o juiz poderá
tomar determinadas medidas para garantir sua eficácia, inclusive
determinando a prisão do agressor.
Com o texto, percebemos que as medidas protetivas de
urgência não têm prazo de duração e permanecem enquanto forem
necessárias à proteção ao direito tutelado.
Caracterizamos a natureza jurídica das medidas protetivas de
urgência como de natureza cível, com vistas a garantir a integridade
física ou psíquica da vítima em situação de violência doméstica em
491

face do suposto agressor e, de caráter inibitório, pois sua principal


característica é a não exigência da ocorrência do dano, bastando
a existência de uma ação ilícita, concedendo todos os meios
necessários para conservar a eficácia das medidas protetivas durante
o tempo que seja necessário.
Por fim, trouxemos algumas inovações legislativas no que
tange à violência contra a mulher. Constatamos que muito já foi
feito, no entanto a violência ainda é silenciosa e mesmo com diversas
inovações ainda há muito o que fazer.
É importante estarmos atentos e proteger nossas mulheres
de qualquer forma de violência como a física, psicológica, moral,
patrimonial e sexual. Precisamos lembrar que essa mulher é filha
de alguém, mãe de alguém, irmã de alguém, pode ser inclusive do
nosso próprio seio familiar.

NOTAS

1 Camila Conrad, graduada em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul


- UNISC, advogada, pós-graduanda em direito das famílias e sucessões pela
Fundação Escola Superior do Ministério Público - FMP. Participou como
bolsista do Projeto de Extensão “Enfrentamento da violência doméstica e
familiar contra a mulher: direitos e garantias legais da mulher agredida”.
E-mail: [email protected]. Currículo Lattes: 3270401484183377.

REFERÊNCIAS

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da Penha. 2015.
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Salvador: Juspodium, 2019;
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da Maria da Penha. Conjur, local ver, 2012. Disponível em:
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492

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PINTO, C. R. J. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo:
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PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica e familiar
contra a mulher: análise crítica e sistêmica. 1. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007.

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