Corpo
Corpo
Corpo
1 Justificativa
que não haver possibilidade de a pessoa se drogar nesse lugar e porque as rotinas
preenchiam todo o tempo dos alunos (maneira como são chamados os jovens do MJL).
Entretanto, ao saírem do internato, por ocasião do processo de reinserção social,
via-se quão difícil era para esses jovens se manterem longe das drogas. E há que se
distinguir aqui, algumas formas de segregação social anteriores ao recrudescimento do
recurso às drogas e à segregação institucional, com a finalidade de abstinência.
Algumas dessas formas de segregação ocorrem nas famílias mais abastadas, as
quais identificavam o filho como usuário de drogas e, temendo pelos rótulos com que
pudessem ser taxados e identificados socialmente, escondiam o fato e, na maioria das
vezes, o faziam segregando o adolescente ou o jovem do convívio familiar, enviando-os
para a capital do estado, para concluírem seus estudos secundários e/ou universitários.
Nas famílias menos favorecidas, os responsáveis faziam vista grossa e, às vezes, se
beneficiavam do lucro do tráfico empreendido pelos filhos, que se tornavam
independentes financeiramente ou, então, os rotulavam e segregavam dentro da própria
família, que se ressente da imagem invocada pelo filho drogado. Dentre os processos de
proteção e exposição social, o sujeito sofre as consequências sociais do recurso à droga
e que consiste em duas formas de segregação: a explícita e a implícita.
Como ocorre geralmente em cidades pequenas, todas as pessoas se conheciam e
a exclusão social velada ou explícita ocorria por causa dos rótulos com os quais se
identifica a imagem do sujeito que se utiliza do recurso às drogas: viciados, dependentes
químicos (doentes), marginais, violentos, dentre outros.
O processo de exclusão social vai se agravando até que a necessidade de
abstinência se impõe de fora para dentro, resultando no convencimento do sujeito de
que ele é dependente químico (doente) e que a melhor alternativa é a segregação
institucional, com o objetivo de abster-se da droga.
Em 1998, fui trabalhar em Brasília e, em 2001, voltei a Goiânia. Já era 2003
quando iniciei uma série de estudos sobre o papel da linguagem na constituição do
sujeito, pela via da psicanálise freudiana e lacaniana, a qual havia subsidiado minha
dissertação de mestrado, O inconsciente na produção da leitura e da escrita.
Os campos de minha investigação eram circunscritos à escola e à igreja, mas,
durante meu percurso, as atividades de voluntariado relacionadas aos programas de
recuperação de dependentes de drogas haviam se intensificado, por causa do aumento
4
da demanda, sobretudo, com o surgimento das novas drogas: êxtase, LSD em sua nova
forma de ingestão, sublingual (vulgarmente chamado de papel) e o crack.
Em 2006, decidi direcionar meu trabalho para as casas de recuperação de
dependentes de drogas, com o objetivo verificar se os dependentes de drogas se
constituem da mesma maneira que os não dependentes e quais os efeitos da linguagem
nesse processo de constituição. A pesquisa foi realizada numa comunidade terapêutica
feminina, localizada às margens da BR-153, na Grande Goiânia.
Nessa época, percebi que a demanda por recuperação nessas comunidades
terapêuticas não ocorria apenas por causa das drogas ilícitas e por álcool, como em
poucos anos passados: as drogas farmacológicas também levavam à segregação social e
institucional, causadas por antidepressivos, moderadores de apetite e calmantes, os
quais faziam parte da lista de drogas utilizadas por mulheres internadas no programa de
recuperação da comunidade terapêutica onde a pesquisa era realizada. A idade das
internas variava e algumas delas, sobretudo, as mais velhas (entre 40 e 50 anos) faziam
uso apenas de drogas farmacológicas.
A temática das drogas tornou-se muito importante para mim e eu me apoiava na
Psicanálise freudiana e lacaniana. O enfoque dado na comunidade terapêutica que
constituía o campo daquela pesquisa era educacional – que nega a existência do sujeito,
mas privilegiava o discurso, a palavra –,ditada pelo discurso religioso, segundo o qual o
estudo, a meditação, o trabalho e os cuidados com o corpo e com o ambiente se
constituíam na rotina das internas.
Destaco que a internação nesta instituição só ocorria mediante decisão do
dependente, que poderia abandonar o programa a qualquer momento, com ou sem a
aceitação da família e minhas questões naquele momento giravam em torno do por quê
de, depois de se submeterem a uma rotina rígida e à imposição de valores de
convivência – como o respeito ao outro e às autoridades constituídas – e de
conseguirem cumpri-los, ainda voltam às drogas?
A pergunta que me fazia era quais implicações do sujeito apareciam nessa
“pedagogia”? E mais esta ainda: quais as implicações dessa pedagogia no processo de
constituição do sujeito, já que a educação guarda a marca da incompletude?
A articulação da minha pesquisa, que era a respeito de Psicanálise e Educação,
passou a se direcionar também para a questão sobre drogas. Meus pressupostos teóricos,
do ponto de vista da psicanálise freudiana e lacaniana, partiam de questões sobre a
5
2 Introdução
figuras imaginárias e pela angústia que entra em cena com a puberdade. O sujeito sem
suporte significante durante tal processo acaba por demandar um referencial que
reorganize suas relações e que, muitas vezes, não as encontra, pois os laços sociais
constituídos estão enfraquecidos. Esse autor investiga a passagem ao ato na
adolescência e os efeitos dos laços sociais sobre suas referências simbólicas. Ele destaca
que, devido ao esfacelamento dos laços sociais e a consequente fragilização da lei, o
adolescente acaba respondendo a essa falência simbólica passando ao ato. O lugar que
esse sujeito ocupa na formação dos laços sociais exercerá influência direta sobre suas
respostas, ao tentar dar conta dos imperativos culturais do consumismo na sociedade
contemporânea que proporciona um excesso de ofertas nas quais os sujeitos passam a
ser gozados e afetados em suas referências míticas, levando-os a um processo de
dessubjetivação.
Ruffino (2005) aproxima o tema da juventude à Psicanálise, ao discutir o
fenômeno da adolescência na modernidade contemporânea que, em consequência das
mudanças dos laços sociais, principalmente no âmbito da família, a adolescência se viu
reduzida à intrusão do real no corpo, na puberdade, vivida como um trauma ou como
uma situação de desamparo. Lembra o autor que o jovem cria, particularmente, sua
maneira de lidar com o mundo e de criar saídas para o desamparo na criação de um
novo pai, como lugar representativo da nova fase, a fase adulta, que vem com a
superação dos obstáculos da adolescência. Nessa situação, a adolescência é um
momento propício para a entrada nas drogas, assim como o é também a infância
vivenciada no desamparo.
Essa visão sobre juventude e adolescência, articulada a um estudo das políticas
sobre drogas vigentes no Brasil e representadas pela Política do Ministério da Saúde
para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas (2003) e pela Política
Nacional Antidrogas (2005) não deixa dúvidas quanto à responsabilidade do social nos
processos de segregação interna dos sujeitos que recorrem à droga.
Há políticas e investimentos nas ações sobre drogas no nível policial; há
tratamento das doenças derivadas do uso e do abuso de drogas e para prevenção a partir
da informação sobre drogas, mas não há investimentos suficientes em termos de
políticas para a criança e para o adolescente.
Boaventura (2011) discute a juventude como uma fase de transição, em que o
sujeito deseja ser desejado pelo outro. E esse autor destaca a busca dos excessos, do
18
concebido como uma das formas utilizadas pelo adolescente na luta pela restauração dos
limites entre o Ego e o objeto.
Jeammet (2006) articula os processos internos e externos que levam à violência,
por parte de adolescentes e jovens adultos, relacionando o fenômeno da violência com a
passagem ao ato. Esse termo é utilizado pelo autor como um distúrbio comportamental
comum no adolescente, em consequência dos efeitos de uma desdiferenciação e da
sexualização dos laços familiares, os quais levam a uma determinada interação com o
ambiente externo, gerando a eliminação dos limites entre o objeto e o narcisismo.
Nesse sentido, o recurso à droga surge como um mecanismo masoquista de
violência contra o próprio corpo, como medida de defesa contra a dissolução dos limites
entre o Ego e o objeto de desejo, fazendo passar direto ao gozo da droga, objeto que está
sempre à mão e que é indestrutível. A violência tratada no fenômeno da droga é a
autodestruição por parte do sujeito, e não, a violência contra o outro, embora possam
ocorrer as duas formas, tendo em vista as singularidades que se expressam no uso que o
sujeito faz da droga ou do lugar da droga na economia psíquica já organizada.
Azevedo (2001), nessa mesma perspectiva, investiga a violência sexual contra
crianças e adolescentes, demonstrando que um denominador comum às crianças vítimas
de abuso é um conhecimento sexual inadequado para a idade e a masturbação
exacerbada é também forte indício desse tipo de violência, facilmente compreensível se
consideramos a sexualidade infantil. Lembra o autor que, na mistura da dor com a
angústia, a criança sente prazer, assim aumentando a confusão em que se encontra e que
tais sentimentos podem provocar uma inibição que a impede de investir nos objetos do
mundo e resvala apenas no prazer narcísico.
A não discriminação entre o recurso à droga e a violência mascara esse aspecto
da passagem ao ato como violência contra si mesmo, como efeito de uma violência
externa, sofrida pelo sujeito. Qual o valor das vulnerabilidades sociais desses sujeitos
em relação às drogas? A atualidade tem nos confrontado com o fato de que, do ponto de
vista social, a realidade da droga está presente em todos os lugares e classes sociais,
minorando o valor dado pelas perspectivas psicossociais que preconizam a falta de
condições sociais como forte fator de vinculação entre o sujeito e as drogas, embora não
se possa conceber que tal fator não tenha importância.
Existem vários tipos de tratamento que vão desde a substituição de uma droga
por outra ou outras, passando por vários sistemas de gratificação. Sem se mencionar
20
aqueles que levam os pacientes a repensarem a droga a partir dos postulados das
relações religiosas, tais como a espírita, a evangélica, a católica etc., assim passando por
tratamentos psicológicos, psicanalíticos e psiquiátricos. Mas os números não são
animadores e a maioria dos pacientes tratados retorna às drogas nos primeiros anos e
outra parte, bem pequena, conserva-se mais alguns anos na abstinência.
É importante considerar que o conceito contemporâneo de juventude como estilo
de vida se aplica nesse caso e a entrada na droga pode ocorrer mais comumente na
infância e na adolescência, mas a opção forçada ao recurso à droga inclui todas as faixas
etárias.
Marques (2001) lembra que, ao estudar a evolução do conceito de dependência
de álcool e de outras drogas e as formas de tratamento (psiquiátrico, psicológico,
ambulatoriais, individual ou grupal), constata que não há efetividade e conclui que o
tratamento depende de múltiplos aspectos, como as características do indivíduo, da
substância utilizada e do tratamento aplicado.
O conceito de família que utilizamos aqui contém uma significação que merece
ser ressaltada: não se trata da família tradicional, mas da família pós-edipiana, forjada
em uma sociedade em que o declínio da função paterna como significante da lei, gerou
uma desinstitucionalização que atingiu a família como instituição hierarquizada a partir
do Nome-do-Pai, que foi pulverizado na sociedade contemporânea e cujos significantes
podem estar alhures, fora da família biológica do sujeito.
Shenker (2003) apresenta uma revisão crítica da literatura sobre a relação entre
adolescência, família e uso abusivo de drogas, destacando a importância da inserção do
sintoma drogadicção no contexto familiar e sociocultural para o entendimento de sua
complexidade. E o autor relaciona a visão da família como uma das fontes de
socialização primária do adolescente, juntamente com a escola e o grupo de amigos e
vai constatar que as práticas educativas e os estilos de criação da família, com seus
diferentes tipos de controle parental, podem facilitar, ou não, o uso abusivo de drogas.
Ele propõe o engajamento dos contextos sociais múltiplos (família, amigos, escola,
21
comunidade e sistema legal) para o tratamento do adolescente que faz uso abusivo de
drogas.
É certo que o contexto familiar afeta nas determinações do sujeito, em relação ao
recurso à droga e também que a implicação do sujeito no tratamento pode levá-lo a
engajar-se e a criar laços familiares que não ocorrem necessariamente no mesmo grupo
da socialização primária.
Amaral (2006) articula a função paterna como lugar simbólico do pai às
dificuldades vivenciadas pelos adolescentes de hoje, vinculando a figura do juiz de
direito ao lugar simbólico do pai, podendo esse funcionar como figura de identificação
por parte do adolescente e minimizando o vazio da função paterna, ao mandar que se
cumpram os direitos do adolescente.
A questão que aqui quero pontuar é que o Outro (simbólico, que tem função de
lei, de linguagem), na sociedade contemporânea, tende a se apresentar castrado.
Contudo, com os jovens, pode ocorrer o processo inverso: uma vivência do Outro como
absoluto remetendo a um imperativo de gozo. É a falta da falta que está posta no fato de
que o sujeito, muitas vezes, está de costas para as autoridades, sejam essas pais,
professores, juízes e outros.
CAPÍTULO I
contexto no qual o adolescente se vê, quando faz suas opções singulares, no processo de
criação de mecanismos para lidar com o desamparo no sentido de encontrar apoio para
sua estruturação. É nesse processo que se inscrevem as passagens ao ato, caracterizadas
pela rejeição da linguagem (simbólico) e que implicam efeitos de segregação interna.
Ruffino (2005) aproxima o tema da juventude ao da Psicanálise, ao discutir o
fenômeno da adolescência na modernidade contemporânea em que, em consequência
das mudanças dos laços sociais, principalmente no âmbito da família, a adolescência se
viu reduzida ao real do corpo, na puberdade, que é vivida como um trauma, como uma
situação de desamparo. O autor lembra que o jovem cria particularmente sua maneira de
lidar com o mundo e de arranjar saídas para o desamparo na criação de um “novo” pai,
como lugar representativo da nova fase, a fase adulta, que vem com a superação dos
obstáculos da adolescência. A adolescência é, então, um momento propício para a
entrada nas drogas, assim como a infância vivenciada no desamparo.
Essa visão sobre juventude e adolescência, articulada a um estudo das políticas
sobre drogas vigentes no Brasil e representadas pela Política do Ministério da Saúde
para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas (2003) e pela Política
Nacional Antidrogas (2005), não deixa dúvidas de que existem parcelas maiores ou
menores em cada caso, quanto à responsabilidade do social nos processos de segregação
interna dos sujeitos que recorrem à droga como recurso. Há políticas e investimentos
nas ações sobre drogas no nível policial e quanto ao tratamento das doenças derivadas
do uso e do abuso de drogas e para prevenção a partir da informação sobre drogas, mas
não há investimentos suficientes em termos de políticas para a criança e o adolescente.
Mais do que nunca, é necessário que pesquisadores se destituam de seus
conceitos e pré-conceitos para investigarem a contemporaneidade com o olhar aberto,
para que possam perceber as saídas dessa geração, diante do sem sentido imposto pela
falta de complementaridade e de continuidade entre as vivências familiares, escolares,
profissionais e sociais. Deve prevalecer a crença de que cada geração produz suas
próprias saídas para as crises do seu tempo e que as gerações adultas que construíram a
realidade presente devem conhecer e reconhecer-se na juventude que forjaram.
Nesse sentido, buscamos aqui agregar alguns conhecimentos elaborados sobre a
contemporaneidade, para produzir uma reflexão acerca dos processos de transmissão
geracional e focar o nosso olhar sobre a prática das drogas, que tem assumido
proporções e significados muito distintos daquilo que, historicamente, já se vivenciou.
26
1. O conceito de juventude
de um objeto de gozo clandestino, marginal, que o sujeito insere na sua vivência como
uma forma de estar no mundo, afastado do gozo fálico e representado pela escola e pelo
trabalho.
Camarano e outros (2004) também se envolvem no tema da juventude, pela via
sociológica, lembrando que a ideia de transitoriedade da juventude dificulta a criação de
políticas, porque não permite o olhar para o jovem como sujeito de direitos. O jovem
passa a ser definido pelo que não é, ou seja, não é criança nem adulto. Essa abordagem
pressupõe uma estabilidade do mundo adulto, atribuindo a instabilidade ao jovem,
desconsiderando que o mundo adulto não é rígido e estático, mas que é também
instável. Tal percepção dificulta a criação de políticas públicas que atribuam ao jovem
um recorte afirmativo de identidade.
Essa mesma dificuldade das políticas para a juventude está inscrita na política
sobre drogas vigente no Brasil, a qual não consegue definir o dependente de drogas,
senão a partir daquilo que ele não é: um grupo homogêneo. Há um processo de
indiferenciação generalizada na sociedade contemporânea leva a juventude, as drogas e
a violência social a serem vistos como um mesmo processo.
A Psicanálise identifica essa indiferenciação como uma criação inconsciente
para a manutenção do narcisismo adulto à custa do jovem, a partir de preconceitos
morais e estéticos que promovem a segregação externa do sujeito que faz uso do recurso
à droga.
O texto sociológico em questão também enfatiza que o olhar para a juventude
como transição é útil na observação dos processos de inserção social e econômica dos
jovens, transformando-se com o tempo. Esses autores associam aos estudos os conceitos
de processo, transformação, temporalidade e historicidade, para afirmar que há
evidências de que a realidade juvenil é determinada por processos de transição
desiguais, uma vez que os limites da vida adulta também estão indiferenciados. E eles
argumentam que a mudança histórica do conceito de juventude, por intermédio de um
modelo cronológico, atrelado às formas tradicionais de passagem de uma fase a outra da
vida, o chamado “modelo de desenvolvimento”, para uma compreensão de que a
definição é sempre arbitrária e o subgrupo heterogêneo leva à percepção das falhas das
políticas voltadas para esse público.
Podemos observar também tais falhas nas políticas sobre drogas, as quais não
contemplam a heterogeneidade do grupo formado pelos dependentes de drogas, cujas
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conhecimento concreto uns dos outros e que cessa de existir como uma unidade mental
e espiritual assim que é abolida a proximidade física. Embora os membros de uma
geração estejam indubitavelmente vinculados, de certos modos, esses vínculos não
resultam em um grupo concreto. E ele pergunta como podemos definir e compreender a
natureza da geração como um fenômeno social.
A resposta passa pela reflexão sobre o caráter de um tipo diferente de categoria
social, materialmente bastante distinta da geração, mas representando certa semelhança
estrutural – a posição de classe de um indivíduo na sociedade. A geração está baseada
na existência de um ritmo biológico na vida humana. Mas não podemos supor que o
fenômeno sociológico possa ser explicado por fatores biológicos básicos, sob o risco de
perder de vista o fenômeno social. Sabe-se que o fenômeno sociológico das gerações
está baseado, em última análise, no ritmo biológico de nascimento e morte, sem ser
redutível a ele.
A lógica de Mannheim (1975) é sociológica e admite que essa pode ser aplicada
muito bem ao estudo sobre a dependência de drogas, num primeiro nível, aquele que
questiona as teorias sobre dependência química baseadas em tabelas que indicam os
níveis de tolerância e ou de periculosidade dos tóxicos, por causa apenas da droga,
como substância, sem que o sujeito entre no jogo. A categoria de análise poderia ser não
a posição social do indivíduo, mas sim, a posição do sujeito em relação ao Outro social,
pois os dependentes de drogas não constituem um grupo concreto, apenas uma categoria
abstrata.
Num segundo nível, o estudo sobre a dependência de drogas precisaria levar em
conta que um grupo concreto seria apenas uma representação dos vários grupos que
poderiam existir seguindo aproximações que, ainda assim, não possibilitariam um
estudo da questão das relações entre o sujeito e a droga, mas apenas um estudo dos
significados atribuídos à droga e ao dependente, no discurso do Outro, pela via
sociológica.
Neste momento, me pergunto de que lugar deveria falar esse estudo sobre a
dependência de drogas, se não do da Psicanálise, porém a contribuição de Mannheim
(1975) está na conclusão de que a criação e a acumulação culturais nunca são realizadas
pelos mesmos indivíduos – em vez disso, temos o surgimento contínuo de novos grupos
etários. Assim, os adultos que pensam e planejam a história não são aqueles que a
vivenciam num futuro presente. Nesse sentido, as pesquisas atuais que objetivam o
37
estudo do sujeito precisam partir da forma como o sujeito recebe o conteúdo dessa
cultura, do sentido que o sujeito dá ao conteúdo cultural.
Esse raciocínio me leva a a outro: não é o método científico, mas sim, o
psicanalítico, o único capaz de dar conta da escuta do discurso do sujeito, para entrever
o lugar da droga na sua economia psíquica. O lugar do sujeito no discurso do Outro só
pode ser identificado a partir de uma escuta psicanalítica que contemple por meio da
linguagem a posição do sujeito no Outro (como representação social) e em relação ao
Outro.
Todavia não param por aí as contribuições de Mannheim (1975) para o estudo da
dependência de drogas na contemporaneidade, do ponto de vista do capitalismo atual.
Ele afirma que a juventude faz parte daqueles recursos latentes que cada sociedade tem
e depende de sua mobilização para a própria vitalidade e cita os tempos de guerra,
quando a sobrevivência depende da mobilização de todas as gerações, classes e
categorias sociais, assim como há também uma utilização da reserva psicológica que
existe na mente humana ou na nação, representada pela capacidade de sacrifício,
resistência e iniciativa, a qual ele explica da seguinte maneira:
movimentos desconexos dos sujeitos para uma utilização funcional. Pensando nas
influências da cultura e das intervenções ideológicas na educação, essa precisa rever
seus conceitos, em função da objetividade teórica em que os ensinadores da educação de
massa se envolveram. A noção de certeza científica difundida nas academias e nos
conteúdos escolares da infância e da juventude propicia uma generalização dessas
verdades por parte dos sujeitos, seja pela via da religião ou pela criação de formas cada
vez mais sofisticadas e detalhistas de controle social, sem se importar em perceber de
que forma os sujeitos inseridos na nova geração estão recebendo a cultura de massa.
O discurso da ciência impõe transformações da realidade que não estão previstas
no seu saber e, assim, essa forma de transmissão teorizada por Mannheim (1975) se
mostra sem efeito sobre a juventude contemporânea, tendo em vista a introdução de
novos objetos no mundo, os quais promovem a transformação da realidade social que
ocorre à revelia das políticas e dos planos.
Na atual cultura brasileira, as lentes da tradição ainda estão sobre os olhos dos
autores das políticas sociais e, em especial, das políticas sobre drogas, mas os efeitos do
simbólico produzidos pelas gerações passadas são sentidos pelos sujeitos das gerações
novas, que têm de lidar com essas forças latentes, especialmente, quando o sujeito não
“pegou” a via do gozo fálico, sobre o qual se fundamenta a civilização e cujo estágio
atual é o do consumo. A droga surge como uma das saídas encontradas pela juventude,
para estar no mundo.
A concepção do autor sobre a educação na adolescência é a de que, uma vez
mobilizados e integrados, o espírito de aventura dos adolescentes que ainda não estão
completamente envolvidos no status quo da ordem social auxiliarão a sociedade a tomar
nova orientação, quando houver o desejo de mudança. Para esse sociólogo, o jovem é
especial como trunfo para a transformação social, porque eles ou elas estão sempre
prontos a questionar a ordem, movidos pelo desejo de mudança.
Desse modo, as sociedades tradicionais estáticas ou lentamente mutáveis operam
sem a mobilização e sem a integração desses recursos. Tal teoria fundamenta as
pesquisas que buscam compreender quais forças estão sendo mobilizadas pela sociedade
pós-industrial de filosofia neoliberal, no movimento da juventude em sua vivência dessa
fase da vida.
Não posso deixar de relacionar a dependência de drogas, como manifestação
social de um profundo questionamento da ordem, sem que, necessariamente, haja desejo
39
ou ilusão de mudança. Cito como fato da mesma ordem a eleição do palhaço Tiririca,
nas últimas eleições no Brasil. É óbvio que não se tratou de uma leviandade simples do
povo brasileiro nem de desejo ou ilusão de que um palhaço mudasse os rumos da
história social, foi, sim, uma manifestação da revolta social com a falta de ética na
política.
Debert (1999) desenvolve um estudo antropológico a propósito da questão
geracional, com enfoque na vida adulta e na velhice, problematizando a diferença etária
como limite para a passagem de uma fase da vida para outra. E o autor faz a
desconstrução dos significados da vida adulta e da velhice no contexto da modernidade
e no contexto contemporâneo. Ele afirma que a Antropologia se interessa pelas formas
segundo as quais a vida é periodizada, as categorias de idade presentes nas sociedades e
o caráter dos grupos etários nela constituídos. O estudo dessas dimensões é parte das
etnografias preocupadas em dar conta dos tipos de organização social, das formas de
controle de recursos políticos e da especificidade das representações culturais.
A autora pergunta se teria sentido falar em uma “cultura adulta”, uma vez que as
idades, assim como os gêneros, são relacionais e performáticos. O argumento central do
texto sociológico é o de que assistimos a um duplo processo que dissolve ativamente a
ideia de vida adulta. A juventude perde a conexão com um grupo etário específico e
passa a significar um valor que deve ser conquistado e mantido em qualquer idade, por
meio do consumo de bens e serviços apropriados. Por outro lado, a velhice perde a
conexão com uma faixa etária específica e passa a ser um modo de expressar uma
atitude de negligência com o corpo, de falta de motivação para a vida, uma espécie de
doença autoinfringida, como vista hoje, por exemplo, pelo fumo, por bebidas alcoólicas
e pelas drogas.
Essa concepção de juventude como valor a ser conquistado e mantido está em
estreita relação com o que chamaremos aqui indústria do bem estar. Ser jovem, em
última instância, reflete esse bem estar em relação ao corpo, que é simbolicamente
atribuído à juventude. O gozo real do corpo entra em jogo graças à obtenção de
produtos e serviços que se adequam à modalidade de gozo de cada um, escondida no
discurso sobre o bem estar do corpo, como é o caso de academias para os atletas que
gozam no excesso de atividades físicas, dos complementos nutricionais, para os que
gozam com o excesso de atividade metabólica, característica daqueles que perseguem a
boa forma; os fast foods para os que gozam com o excesso de comida e de gorduras; as
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que as drogas e assim como os demais produtos pirateados, existem na realidade social
e são permitidos, mas somente pelas vias legais representadas pelos produtos e serviços
originais.
O narcotráfico se põe como possibilidade de acesso às demais latusas, como
uma forma de ocupação tão ilegal quanto legitimada pela produção e pela venda desses
produtos pirateados ou não, fazendo com que novos mercados de consumo sejam
criados, tanto para a droga quanto para os demais produtos, originais ou não. Não
importa, porque é do mesmo lugar, do mesmo sistema que se produzem o legal e o
ilegal. O afã de lucro, da tradição capitalista ocorre pela via da exploração do homem
pelo homem, formulada por Marx, com o conceito de mais-valia, e por Lacan, com o
conceito de mais-de-gozar. Esse afã é levado às últimas consequências na sociedade do
consumo.
Martin-Barbero (2008) continua sua análise, mostrando como ocorre o controle
social pelo próprio sistema e revela a operacionalização desse controle social por meio
de três modos de regulação de conduta existentes na realidade social: os reguladores
primários, os morais e os rituais, que atuam como força centrípeta na união de um
grupo, mas que são muito lentos na modificação de condutas, pois atuam com as
experiências do passado. O segundo é o dos secundários, modais e mimético-
exemplares, os quais agem como força centrífuga, comunicando grupos entre si e com
resultados mais rápidos, porque se realizam no presente; e os terciários são numéricos e
experimentais e têm como função conectar as ocupações laborais com a eficiência da
estrutura produtiva que são mais velozes na modificação de condutas, já que se efetuam
no futuro.
Com essa classificação, o pesquisador em estudo apresenta a hipótese de que se
as condutas ocupacionais se modificam e a estrutura dos interesses vai sendo
transformada, também mudarão por completo as relações entre os grupos sociais. E ele
conclui afirmando que são os reguladores secundários os que melhor fornecem a
informação necessária para articular os instáveis interesses de hoje em dia. Assim, é a
televisão, a publicidade, a moda, a música e os espetáculos os que melhor promovem a
comunicação entre os grupos e que produzem resultados mais rápidos. A razão técnico-
científica, o regulador terciário, representado pela figura do ensino médio e
universitário, é incapaz de inculcar a mentalidade científica e seus diplomas valem cada
vez menos no mercado do emprego.
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Média, as crianças viviam entretidas com os adultos no trabalho, na taberna e até nas
camas e que a infância só emerge como um mundo à parte, no século XVII. O autor
resgata a história para mostrar que o novo método de aprendizagem por meio dos livros,
substituiu a aprendizagem pelas práticas e essa condição de mundo à parte foi afetada
pela televisão, vindo a pôr fim em uma separação social que protegeu as crianças da
classe média e alta durante os dois últimos séculos, graças ao símbolo da autoridade
patriarcal, o que gera a dominação.
Segundo o autor, a televisão introduz uma profunda des(ordem) cultural na
família porque, enquanto o texto escrito criou espaços de comunicação exclusiva entre
os mais velhos, instaurando uma marcada segregação entre adultos e crianças, a
televisão cria um curto-circuito da autoridade dos pais e da escola, por não depender de
um complexo código de acesso, como o livro. A televisão oferece às crianças, pelo
simples olhar, o mundo dos adultos, porém, ao dar mais importância aos conteúdos do
que às estruturas das relações, continuamos sem compreender o verdadeiro papel que a
televisão está desempenhando na reconfiguração familiar.
Se não fizessem parte da vida real, os conteúdos da televisão seriam mais
imaginários, assim como os contos infantis, porém a realidade com a televisão entra em
conformidade com o simbólico e produz o processo de desilusão desde a infância,
algumas vezes, colocando no campo do desejo e da ação da criança a possibilidade da
resistência ou da entrega diante da dominação.
Essa realidade social revelada no olhar dos sociólogos da juventude é
fundamental para uma análise das políticas públicas no Brasil em geral e das políticas
que tratam de questões sobre drogas, em especial. As informações veiculadas pelos
meios de comunicação de massa desvelam os mecanismos que sustentam a autoridade
familiar e a dos papéis sociais de autoridade em geral, contribuindo para uma espécie de
desinstitucionalização da sociedade.
Martin-Barbero (2008) fotografa em seu texto a feiúra da realidade cotidiana dos
pais, os quais são cheios de defeitos, e a beleza da abnegação e da honestidade inscritas
nos livros infantis, destacando que a televisão afeta a escola, desordenando sequências
de aprendizado. É esse processo que escapa aos pais, aos profissionais da educação, à
sociedade em geral e, como consequência, escapa também às políticas criadas para
crianças e jovens em geral e às políticas sobre drogas, especificamente.
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portador de outro sentido, de outra finalidade que não aquela que indivíduos e grupos
são capazes de produzir para si mesmos.
Essa questão do tempo cíclico, mencionada por Melucci (1997) não é conflitante
com a perspectiva lacaniana sobre a droga como um sintoma social, porque o gozo é
sempre compulsivo e implica sempre uma repetição, na qual o sujeito se aplica
prazerosamente com o mesmo afinco e com a mesma dedicação como se trabalha nas
rendas do Direito e nas malhas da Administração. É o prazer da compulsão que dá
impulso à cultura de massa e que forma sujeitos pré-agendados, cujas rotinas não
podem ser mudadas sob pena de um estresse muito grande. São sujeitos inaptos para
lidar com as mudanças impostas pelo contexto da modernidade tecnológica, sem que
haja constructos que indiquem que ainda se pode repetir o mesmo.
A droga, como objeto de gozo eleito pelo sujeito, é resistente às circunstâncias e
permanece como sua referência. A demanda do dependente de drogas é pela aquisição
de objetos de gozo que não passam pelo desejo, porque não passam pelo Outro. O
sujeito que faz uso dos tóxicos se segregou do Outro a partir do processo da intoxicação
crônica. Para a perspectiva freudiana e para a lacaniana, o sujeito se segregou do Outro
a partir da escolha pela droga que, segundo Santiago (2001a), se fez como escolha
forçada, diante das invasões do desejo do Outro.
Pais (2001) introduz a metáfora ioiô para significar a tendência da juventude a
relativizar tudo. A mobilidade das situações não permite ao jovem vincular-se a um
compromisso, seja com o casamento, para o qual existe sempre o recurso ao divórcio,
seja com a própria independência, para a qual existe sempre o recurso à volta para a
casa dos pais. Há uma autonomia individual e uma liberdade existencial que deixam
espaço para manobra, para poder seguir dando voltas. Esse mesmo tipo de mobilidade
determina os jovens, também, quanto à qualidade de consumidores, por meio dos ciclos
da moda. A moda oferece a oportunidade de romper com a normalidade em busca da
originalidade. Tudo isso integrado às ilusões acumuladas para manipular a realidade
servem para favorecer o exercício do gozo e para dar asas ao simbólico e ao imaginário,
vinculando a contemporaneidade ao impossível.
O mesmo autor diz que o alongamento da juventude, por causa desses
movimentos circulares mágicos, impossibilita uma prática comum entre sociólogos e
historiadores que, como Schaff (1990) percebeu, prediziam tranquilamente o futuro dos
jovens, porque os processos sociais de reprodução o tornava possível, de forma que as
54
4 Juventude e drogas
As relações entre juventude e drogas, que este trabalho tenta estabelecer como
aproximações, partem do estudo de um texto de Santiago (2001a), intitulado A droga do
toxicômano – Uma parceria cínica na era da ciência. Para esse autor, a questão da droga
se põe, no enfoque psicanalítico, como uma aproximação dos limites do seu saber e de
sua prática. E ele explica que o teor da dificuldade é de cunho conceitual e do amálgama
que foi criado, do fenômeno toxicomaníaco, com o que se veicula pelos valores e
normas, instituídos na sociedade contemporânea. Essa concebe o fenômeno a partir de
uma visão normativa, de um diagnóstico que torna a droga, se não o maior, um dos
responsáveis por grande parte dos flagelos do mundo contemporâneo.
O autor afirma que esse veredicto da droga como agente nocivo é corroborado
pelo avanço da ciência, que fundamenta a concepção repreensível e policial da droga,
tema que marca a convergência dos saberes médicos e jurídicos. Ele acrescenta que a
psicanálise encontra-se em condições de criticar esses sabere, uma vez que aponta a
incapacidade do saber científico de lançar luz sobre a necessária distinção entre a droga
do toxicômano e o elemento de toxidade inerente a essas substâncias.
O mesmo autor aborda o saber analítico e discute a relação desregrada do
toxicômano com a droga, a partir do gozo excluído do discurso da ciência, como tóxico.
A toxicologia, como saber científico, resume-se às análises das modalidades do
mecanismo de ação dos tóxicos e dos venenos, segundo suas propriedades físicas,
químicas e biológicas. Seu programa prevê o estabelecimento de princípios ativos das
substâncias, para distinguir objetivamente a dosagem letal dos tóxicos.
A noção da droga a partir de seus componentes tóxicos e de seus efeitos no
organismo acarreta a consideração do toxicômano de forma puramente policial, uma vez
que a intrusão da ciência no domínio das substâncias da natureza pressupõe o
funcionamento de uma moral na natureza. E, desse modo, a regulamentação do uso é a
ambição da ordem jurídica, que o limita ao útil, mas a toxicomania, como excesso, é do
campo do gozo, da ordem do que não tem valor de praticidade, de necessidade.
Santiago (2001) utiliza-se da metáfora jurídica do uso fruto, revelando a
proibição do uso excessivo de um bem qualquer. Nesses termos, acrescenta ele, só é
59
permitido usar um bem até certo ponto, sem abusar. O uso fruto regulamenta, pela via
jurídica, uma relação com o gozo, que incide justamente sobre o excedente, que não
serve para nada.
Por outro lado, a supremacia da posição científica, segundo a qual a droga habita
a natureza – sendo, portanto, pré-discursiva – omite o fato de que nem todo tóxico é
uma droga e que essa última não pode ser reduzida a uma substância tóxica. Essa
omissão – ou mesmo seu esquecimento – é determinada pela condição estrutural do
formalismo significante, próprio do funcionamento da ciência, o qual exige a disjunção
do saber e da verdade e a supressão de qualquer ligação entre eles.
O texto de Santiago esclarece que o saber analítico sobre a droga leva em conta a
função e o campo da linguagem. Para a Psicanálise, não há droga na natureza e,
portanto, não há noção de droga que não seja relativa ao contexto discursivo no qual ela
se enuncia. A noção do uso da droga na toxicomania tem como ponto de partida a lei
do discurso, o qual pressupõe, em sua definição, um modo de funcionamento e de
utilização da linguagem como elo social. Assim, a questão da droga é interrogada por
vários discursos que, ao contrário da ciência, conclamam o problema da verdade.
Entretanto, segundo o próprio Santiago (2001a), é a concepção lacaniana de
discurso que torna possível detectar os determinantes essenciais desses efeitos, pois
supõe a interferência neles do real do gozo, ponto inacessível à ciência da relação do
sujeito com a droga.
O termo phármakon, historicamente, diz respeito às propriedades de remédio e
veneno. A droga do toxicômano se relaciona com aquilo que se chama pelo nome de
símbolo phármakon. O autor explica que a droga sempre foi fonte de certo jogo de
símbolo, porque ela presta-se a diferentes efeitos de sentido e se tornou um símbolo no
domínio da ficção.
A explicação para a existência de tal símbolo, só pode ocorrer pela via das
ideias, que só se mantêm no real pelo significante, pois elas fundamentam apenas uma
realidade ao destacá-la contra um fundo de irreal.
Para a Psicanálise, nenhum segmento da realidade, tóxico ou não, tem existência
em si, ou seja, nenhum desses segmentos pode ser levado em conta sem a mediação da
estrutura da linguagem. E, a partir das ideias de Freud, a linguagem resulta de um
processo de sucessão temporal que começa com o prazer, e o acesso à realidade é
60
precário. A tendência do aparelho psíquico é para o engodo, para o erro ou para a ilusão.
Por isso, o princípio da realidade, em Freud, é destinado a corrigir essa tendência.
Segundo Santiago (2001a), o fenômeno da droga se põe como pivô nessa relação
conflituosa do sujeito com a realidade. A droga do toxicômano é uma escolha forçada,
cuja estrutura pressupõe o sistema de escritura do psiquismo e em cujas ramificações a
satisfação se realiza. Explica o autor que, desde o advento da psicofarmacologia
moderna, vem se construindo uma classificação dos espíritos das drogas, revelando uma
tendência do saber científico em vedar as particularidades do sujeito envolvido com a
droga, o que se desfaz diante do simples testemunho de um toxicômano decidido a
registrar sua experiência, como se constatará com as análises dos casos de toxicômanos
extraídos das pesquisas de campo desta pesquisa, no Terceiro Capítulo. Esse capítulo
apresentará a análise dos discursos dos sujeitos em processo de recuperação sob regime
de internação.
Na contemporaneidade, a qual Santiago (2001a) chama de “era da ciência”, a
droga assume formas que pressupõem a posição do sujeito no Outro, como lugar de
inscrição. Nesse lugar do Outro, encontram-se a metáfora do Nome-do-Pai, o sistema de
significantes e o sistema de ideais. No lugar do Outro, o valor da droga resulta das
trocas e das transformações no sistema dos significantes e dos ideais, apoiados pela ação
do discurso. Trata-se da ação do discurso que muda os sintomas de uma sociedade,
configurando o mal-estar na civilização. A toxicomania é entendida pela Psicanálise
atual como o lugar de um efeito de discurso, ou seja, como produto das mudanças
operadas pela emergência do discurso da ciência no mundo.
E o mesmo Santiago (2001a) afirma que, desde Freud, o aspecto central da
economia psíquica está no limite entre o sujeito e seus objetos de satisfação, os quais
estão sujeitos a trocas e substituições, abrindo as portas para que se pense uma
aproximação da toxicomania com a prática psicanalítica.
Os objetos carecem da marca real do impossível, postulada por Freud, desde o
início de sua obra e radicalizada por Lacan (2009) no Seminário, Livro 4: A relação de
objeto.
A toxicomania é do terreno da pulsão que, por sua vez, é do terreno do puro
gozo. E Miller (2009) enfatiza que o gozo é da ordem da pulsão que se encontra entre o
simbólico e o corpo. A psicanálise lacaniana trata o campo do gozo no polo oposto ao
do direito, uma vez que o princípio do gozo é o de não se realizar, a não ser a partir do
61
que não serve para nada. E é o gozo, que permite a incursão da Psicanálise no domínio
da ação do ser falante – ação que nem sempre se conforma aos ideais da civilização,
especialmente no que se refere à diversidade das formas de gozo.
Em oposição à Psicanálise, a ordem jurídica apaga essa dimensão do ser falante,
em razão de seu ideal de adequação entre o gozo e o útil. Essa função reguladora da
distribuição do gozo se traduz pelo preconceito que consiste essencialmente na
repreensão ou na condenação da droga.
Essas considerações são preliminares a um estudo do fenômeno da droga na
contemporaneidade. As relações estabelecidas entre juventude contemporânea e a droga
estão postas aqui na forma de rito, que não é de passagem, mas sim, do ciclo de retorno
sempre ao quotidiano imediato do prazer e do gozo, como demanda de muitas
juventudes contemporâneas. E, nesse contexto, a droga é um fenômeno que atinge todas
as classes sociais, indiferentemente de gênero, etnia ou nacionalidade, além de ser
também um fenômeno que ultrapassa as fronteiras da historicidade e que é também
fronteiriça com o sociológico e com o antropológico. A droga atravessa as culturas das
sociedades, historicamente, se fazendo presente em todas elas e se põe também nas
fronteiras da Psicanálise, cuja aproximação com a temática da droga se faz pelo campo
do gozo, como um sintoma.
As questões expostas aqui como preliminares para um projeto desta pesquisa são
a respeito do lugar da droga na economia do gozo, o que responderia à pergunta sobre o
por quê de o toxicômano escolher a droga como objeto de gozo. E, se a droga não se
encaixa na característica principal do objeto substitutivo, que é a impossibilidade de se
satisfazer com ela, passa-se diretamente ao gozo, sem ter que suportar a angústia do
desejo, fazendo-se o sintoma do toxicômano.
E, nesse caso, há outra questão essencial: de que trata esse sintoma que faz laço
de parceria do toxicômano com a droga? E por último, há que se pensar na inferência
sobre a necessidade de se reverem os conceitos a respeito da juventude, da educação e
as políticas públicas. Disso tudo, podemos adiantar que essa revisão deve passar por
políticas e práticas educativas voltadas para um sujeito real, e não, para o sujeito ideal,
postulado pelas concepções modernas de sujeito que estão na base da produção
científica. É preciso lembrar que o planejamento do social nunca pode pretender a
objetividade em tempo algum, como se o futuro fosse passível de controle centralizado,
seja em qual for a instância social, política ou econômica.
62
CAPÍTULO 2
As políticas sobre drogas, assim como a gestão dessas, têm um aspecto social
considerado importante no mundo contemporâneo. Os “semblantes” (simbólico e
imaginário) assumidos pelas autoridades a respeito da questão escondem outros
interesses, os quais aparecem em políticas e legislações constituídas e nas ações
engendradas.
Na França, por exemplo, reduto da Psicanálise lacaniana, as relações entre o
sujeito e as drogas não são contempladas nos discursos políticos e nas ações
implementadas pelos gestores públicos que priorizam a própria política salvacionista.
As leis prometem atacar o inimigo social número um, a droga, acabando com a
toxicomania por meio da abstinência. E tudo isso para fazer valer o “semblante” daquilo
que é politicamente correto e impossível, traduzido no ideal de uma sociedade sem
drogas.
Chassaing (2004) expõe sua visão crítica em relação às políticas francesas a
respeito das drogas e das toxicomanias e inicia seu texto dizendo que, “[...]
historicamente, alguns tomam remédios todos os dias, para o bem de seus corpos.”. E o
autor historia, lembrando que, no fim do século XX, na França, “[...] a cada cinco anos,
um grupo de homens no poder [...] aponta o dedo e denuncia que é preciso fazer algo
no campo das toxicomanias.” (CHASSAING, 2004, p. 83).
E o autor aponta para o fato de que essas chamadas à eficácia das ações políticas
nesse campo são de interesse do próprio grupo. Ele situa o leitor no ponto de vista da
intervenção realizada na França, destacando que um relatório publicado em 1998,
dirigido ao Secretário de Estado da França, a respeito da periculosidade das drogas, por
professores da Faculdade de Farmácia de Paris. No Relatório Público Particular do
Tribunal de Contas, “O dispositivo da luta contra a toxicomania”, publicado em julho
de 1998 pelo jornal oficial da França constata a “insuficiência” da vontade política e do
dispositivo institucional e faz um levantamento das carências na organização dos
64
com uma abordagem policial, sobre os danos sociais e do ponto de vista da saúde,
encarando o uso e o abuso das drogas como doença.
A toxicomania é tratada, no âmbito das políticas públicas do Ministério da
Saúde, como um transtorno mental. A leitura que aqui se fará das duas políticas
públicas mostra que o ponto de vista jurídico e a abordagem policial permeiam os
pressupostos e as diretrizes propostas da Política Nacional Antidrogas (2005), a qual
aprofunda as dicotomias que a Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a
Usuários de Álcool e outras Drogas (2003) quer superar, ao adotar o ponto de vista da
saúde.
Ambas as políticas trazem basicamente os mesmos termos, ao traçar as diretrizes
para o planejamento e para as ações relacionados ao tema das drogas: prevenção,
tratamento, recuperação e reinserção social, redução de danos e informações sobre
drogas. A prevenção, o tratamento, a recuperação, a reinserção social, a redução de
danos e as informações sobre drogas são termos que fazem parte da própria estrutura
textual da Política Nacional Antidrogas (2005), a qual trata especificamente de cada um
desses termos. A Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de
Álcool e outras drogas (2003), utiliza os mesmos termos. Como a política do Ministério
da Saúde é anterior à política do Ministério da Justiça, penso que essa última promoveu
a adulteração do significado que os termos tinham no âmbito da saúde. Serão levantados
os sentidos dos termos em cada uma das políticas, buscando compreendê-las em suas
diferenças, em relação a dois pontos de vista: o jurídico e o da saúde.
Na Política Nacional Antidrogas (2005), a redução da oferta é tratada como
redução dos crimes relacionados ao tráfico de drogas ilícitas e ao uso abusivo de
substâncias nocivas à saúde, responsabilizando a droga pelo alto índice de violência no
país. A lógica é a mesma quanto à prevenção, uma vez que se deduz que a redução da
oferta proporcionaria uma melhoria nas condições de segurança das pessoas. Nas
orientações gerais, essa política volta o foco para os profissionais da área da segurança
pública. A saúde e a segurança das pessoas são transferidas para o profissional da
segurança pública, como se dela dependesse todo o resto. O objetivo é a promoção da
saúde e a preservação das condições de trabalho e da saúde física e mental desses
profissionais, incluindo assistência jurídica. O foco da prevenção em saúde não existe
em relação ao usuário de drogas, mas sim, da polícia.
66
Segundo esses dados estatísticos, o álcool e o tabaco são mais consumidos do que as
drogas ilícitas com prevalência global, sendo essas duas drogas as que causam mais
mortes no mundo, além de apontar o uso do álcool como um fato cultural, cujas
consequências não contêm informações que revelem as consequências do uso
inadequado dessa substância.
Nesse relatório, são abordados também distúrbios da infância, como os de
atenção e hiperatividade, de conduta e transtornos emocionais, como fatores de risco
para a ocorrência de morbidades futuras, especialmente o uso de álcool e outras drogas.
A precocidade cada vez maior do uso de substâncias psicoativas por crianças com o
consequente aumento dos índices de abandono escolar e de rompimento de outros laços
sociais que reforçam a imagem do uso de drogas em sua relação com o crime.
A concepção dos órgãos públicos da saúde a respeito da redução de danos é
completamente diferente da concepção declarada por órgãos da justiça. O próximo item
deste trabalho se constituirá pela leitura dos pressupostos das políticas sobre drogas,
mostrando os furos em relação à realidade demonstrada por estudos a respeito da
juventude, apresentados anteriormente, e as contradições entre as próprias políticas
sobre drogas no Brasil. Os furos e as contradições são explícitos, como mostrará a
leitura realizada e aqui apresentada.
1 Os pressupostos
texto oficial, não há discussão nem proposta de critérios para a definição de drogas
lícitas e ilícitas nem tampouco definição de uso indevido das drogas lícitas. As drogas,
em sua qualificação quanto à proibição e suas respectivas exceções, são tratadas com
base na Convenção de Viena, das Nações Unidas, de 1971, que se seguiu à Convenção
Única sobre Estupefacientes, de 1961.
O que deveria ser discutido não é se determinada droga deve ser proibida ou não
ou que se estipule o público consumidor ou manipulador desse tipo de droga, nem as
possibilidades inúmeras de que essa droga não seja realmente utilizada conforme a
regulamentação legal, mas sim, o que poderia regulamentar a utilização das drogas
lícitas, que são legitimamente comercializadas e por meio das quais crianças e jovens
fazem entrada no consumo de drogas.
Quanto às receitas médicas, ainda que as regulamentações fossem cumpridas,
elas não têm o poder de lidar com o não saber do médico, sobre a relação do sujeito com
a droga, quando esse dá um diagnóstico e prescreve a droga como tratamento ou quando
prescreve ao paciente algum tratamento como meio de diagnóstico. Além disso, na
contemporaneidade, não se pode fechar os olhos quanto às parcerias financeiras que,
“via de regra”, encetam as relações entre médicos, hospitais e a indústria farmacêutica
nem tampouco deixar de mencionar a automedicação com substâncias lícitas,
comercializadas e com propagadas na mídia.
As substâncias ilícitas também são estimuladas pela mídia, pois, no mercado da
informação, as drogas representam uma forma de poder paralelo que se põe como
grandioso numa sociedade onde reina a impunidade e onde a juventude encontra-se
vulnerável à informalidade, consequência do processo de desinstitucionalização vivido
pelas sociedades contemporâneas, como mostram estudos sobre a juventude,
apresentados no início deste trabalho.
Na sociedade atual, há uma falta de conexão linear entre a escola e o trabalho,
aliada à ociosidade dos jovens que não têm políticas que garantam de fato os seus
direitos instituídos – como o direito ao lazer e ao entretenimento – bem como, educação
e saúde públicas de qualidade. A configuração social das juventudes se transformou, na
modernidade recente, em consequência do declínio da função paterna. A maioria das
pesquisas realizadas no Brasil a respeito das drogas aborda a questão do ponto de vista
das políticas e da legislação ou revelam dados quanto à classificação das substâncias,
tendo em vista as variáveis em relação à faixa etária dos usuários. Os pesquisadores
70
constatam que há tendência à precocidade cada vez maior quanto ao início do uso de
drogas.
Pesquisadores, como Guimarães (2004), Pavani (2007), Machado (2007) e
Ventura (2009) mostram dados sobre a prevalência da entrada nas drogas na fase da
adolescência, quando a sociedade falha em integrar e mobilizar o espírito de aventura
dos jovens. Esses dados são reais e, certamente, contribuíram para a construção do
preconceito generalizado que relaciona a juventude à violência, à delinquência, ao
tráfico e ao abuso de drogas.
Contudo, na contemporaneidade, o preconceito extrapola os limites da juventude
e a explicação está na vivência da juventude como valor para todas as idades, de forma
que, algumas características da juventude ocorrem cada vez mais precocemente e a
velhice passa a ser entendida como um sinal de negligência com o corpo, com a falta de
motivação para a vida e, também, com as drogas, vista como doença auto-infringida,
cujos agravos surgem na vida adulta.
A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 considera crime adquirir, guardar, ter
em depósito, transportar ou trazer consigo para consumo próprio drogas sem
autorização ou em desacordo com determinação legal regulamentar. As penas para a
desobediência a esses crimes são: advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de
serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso
educativo. Destaque-se que as medidas para o consumidor ou usuário são as mesmas
prescritas para quem semeia, cultiva e colhe plantas destinadas à preparação de pequena
quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
Nos últimos anos, a mídia veicula conteúdos que vislumbram um Brasil em
processo de transformação, do ponto de vista da participação popular, que solicita uma
mudança ética na política. Mas a sociedade de hoje luta por outras formas de relação
que não as do judiciário. Podemos verificar esse fato nos movimentos a favor do
casamento entre homossexuais e na descriminalização da maconha, de modo que o
cidadão não enfrenta individualmente suas causas pela via da justiça: ele apela para a
organização dos simpatizantes das causas, via redes sociais e, assim, interfere no social.
A questão da droga encontra-se envolta em muitos véus, dificultando as
discussões pretendidas por sociedades e profissionais de diversas áreas. Mas parece
haver nesse circuito um componente mercadológico num contexto de transmissão
geracional que exclui os jovens da ação política.
71
questão do traficante, que pode também ser usuário ou dependente e manter-se no lugar
de traficante para garantir financeiramente o seu próprio consumo. Em terceiro lugar, os
critérios para a diferenciação entre o usuário, a pessoa em uso indevido e o dependente,
não são explicitadas nos documentos oficiais.
Nos pressupostos seguintes, inscritos e escritos na Política Nacional Antidrogas
(2005), são lançadas as bases do significado das drogas para a sociedade e as formas de
tratamento que devem ser dados aos consumidores: eles têm o direito à igualdade sem
discriminação; devem ser conscientizados, assim como a sociedade em geral, de que o
uso de drogas ilícitas alimenta atividades e organizações criminosas que têm no
narcotráfico sua principal fonte de recursos financeiros e de que os consumidores têm o
direito de receber tratamento adequado. Tal conscientização, ainda que atingisse o mais
alto grau de realização, numa dada sociedade, não seria eficaz para todos os sujeitos.
A política do Ministério da Justiça pressupõe que o saber sobre a droga,
representado pela conscientização do povo, é suficiente como prevenção, mas isso não é
corroborado pela realidade nem pela Psicanálise. Trata-se, antes, de um não saber sobre
a droga e é preciso que se diga o quanto esse não saber é conveniente para o mercado.
A Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e
outras Drogas (2003) já apontava para a inviabilização do direito ao tratamento
igualitário, sem discriminação, pela criminalização do usuário. O texto explica que a
ausência e/ou a insuficiência de políticas que promovam a proteção social, de saúde e o
tratamento das pessoas que usam, abusam ou são dependentes de álcool e de outras
drogas são determinantes para o aumento de suas vulnerabilidades. Soma-se a isso, o
rigor da lei criminal de drogas vigente, que é desfavorável ao acesso à saúde e à
participação/organização dos usuários de drogas. Ao estabelecer o uso como proibido,
sugerindo a ocultação e a divisão em drogas lícitas e ilícitas, essa política determina o
pânico diante das substâncias qualificadas como ilícitas e incentiva o uso daquelas
qualificadas como lícitas.
A posição do Ministério da Saúde nessa questão é a favor da descriminalização
do usuário de drogas. Seu texto esclarece que descriminalizar uma conduta está longe de
significar uma ausência de qualquer controle sobre essa conduta: significa apenas
afastar uma das formas pelas quais se exerce o controle social de condutas, sem invadir
o âmbito da liberdade individual. A discriminação do usuário seria mais racional, eficaz
e menos danosa.
74
Assim, essa lei se coloca como instrumento legal máximo para a Política de
Atenção aos Usuários de Álcool e outras Drogas, uma vez que está em sintonia com as
propostas e pressupostos da Organização Mundial de Saúde. Esse documento cita várias
portarias do Ministério da Saúde voltadas para a estruturação da rede de atenção
específica a essas pessoas. A Portaria GM/336, de 19 de fevereiro de 2002 (MS, 2002)
define normas e diretrizes para a organização de serviços que prestam assistência em
saúde mental, do tipo “Centros de Atenção Psicossocial – CAPS – incluídos os CAPS
voltados para o atendimento aos usuários de álcool e drogas, os CAPS ad.
A Portaria SAS/189, de 20 de março de 2002 (MS, 2002), regulamenta a
Portaria GM 336, criando no âmbito do SUS os “Serviços de Atenção Psicossocial para
o Desenvolvimento de Atividades em Saúde Mental para Pacientes com Transtornos
Decorrentes do Uso Prejudicial e ou Dependência de Álcool e outras Drogas.”
A introdução do documento oficial da Política do Ministério da Saúde para
Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas (2003) explica que o desafio da
realidade contemporânea das drogas está na abordagem não reducionista no âmbito da
saúde. A saúde e a medicina assumem a complexidade dos fenômenos, ao mesmo
tempo em que fazem a crítica das “alternativas de atenção” de caráter fechado, que tem
como único objetivo a abstinência. O documento enfatiza que, tradicionalmente, a ótica
predominante de abordagem da droga tem sido a ótica médica e psiquiátrica, mas outras
implicações devem ser consideradas e o tema vem sendo associado à violência, à
criminalidade, a práticas antissociais e à oferta de tratamentos inspirados em modelos de
exclusão/separação dos usuários do convívio social.
A política do Ministério da Saúde defende que a abstinência não deve ser o
único objetivo, que o transtorno é heterogêneo e que os usuários não se sentem
acolhidos nas suas diferenças, fazendo com que o nível de adesão seja baixo. Essa
política alerta para o fato de que novas substâncias e novas formas de consumo
requerem novas metodologias de prevenção contextualizadas. O documento reconhece a
importância do vínculo com o consumidor e seus familiares, porque traz luz a suas
características e necessidades, assim como, às vias de administração de drogas, para que
se possam planejar e implantar múltiplos programas de prevenção, tratamento,
recuperação e adaptação às diferentes necessidades.
No seu marco teórico-político, o texto da política do Ministério da Saúde refere-
se à lógica que separa o campo da saúde: clínica de um lado, e saúde coletiva de outro.
76
O texto expõe o argumento de que a clínica tem seu foco nas manifestações individuais
das alterações da saúde, enquanto a saúde coletiva efetua outro tipo de corte, tomando a
incidência e a prevalência das alterações em plano coletivo. Essa chamada lógica da
binarização faz com que se percam as contribuições da experiência clínica voltada para
as características singulares que se expressam em cada corpo, em cada sujeito, em cada
história de vida e se perdem também as contribuições das análises propiciadas pelo
recorte da saúde coletiva que capta as expressões de uma comunidade, de uma
localidade, de um tipo de afecção, de uma categoria social ou de gênero e de histórias
que se cruzam, configurando certo momento.
O texto da política do Ministério da Saúde destaca que essa lógica precisa ser
combatida em prol de outra maneira de pensar e de fazer que se experimentem as
diferentes contribuições, criando a lógica da transversalização, a qual instaura em todos
os campos da saúde pública uma atitude que garante as especificidades acumuladas em
cada núcleo de saber e atravesse tais saberes uns sobre os outros, de modo a construir
novos olhares e novos dispositivos de intervenção.
A Política de Atenção Integral em Álcool e outras Drogas atende às propostas
recomendadas pela III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em dezembro
de 2001 (III CNSM, Relatório Final, 2001).
A Lei nº 11.343 (2006) regulamenta a Política Nacional Antidrogas (2005), do
Ministério da Justiça nas suas disposições preliminares e define as drogas como
substâncias ou produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou
relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União. Essa
lei proíbe o uso de drogas, bem como, seu plantio, a cultura, a colheita e a exploração de
vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvando
a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como, o que estabelece a
Convenção de Viena, das Nações Unidas, a respeito de substâncias psicotrópicas
(1971), quanto a plantas de uso estritamente ritualístico religioso. Tal lei permite que a
União autorize o plantio, a cultura e a colheita desses vegetais, exclusivamente para fins
medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização e
respeitadas as ressalvas supramencionadas.
Enquanto a política do Ministério da Saúde preconiza a derrubada das barreiras
dicotômicas entre drogas lícitas e ilícitas entre dependente ou usuário e traficante, a
77
era, ao tempo da ação ou da omissão, incapaz de entender o caráter ilícito do fato. Ora,
parece que a existência da lei tem apenas o objetivo simbólico de instituir a proibição,
uma vez que a própria lei, com base na subjetividade que revela um “não saber” (ele
podia ou não compreender o caráter ilícito da ação, estando sob o efeito de drogas?)
anula os efeitos da lei sobre o sujeito.
A lei explicita os procedimentos penais, as investigações, as instruções
criminais, a apreensão, a arrecadação, a destinação de bens do acusado (relacionado ao
Fundo Nacional Antidrogas) e a cooperação internacional.
As mudanças ocorridas na maneira de pesquisar a juventude apontadas por
sociólogos da juventude não foram acompanhadas por políticas e pela legislação, as
quais continuam não atentando para a questão cultural, ao lidar com a gestão das
questões sociais. O conflito entre o jurídico, o policial e o social não permite que as
políticas trabalhem com o paradoxo de estarmos diante de uma juventude que possui
mais acesso à educação, à informação e menos acesso ao emprego e que se desenvolve
na precariedade e na desmobilização.
A juventude contemporânea é objeto das políticas, mas não se são eles os atores
das mudanças pelas quais anseiam. Enquanto isso, os comportamentos são marcados
pela instabilidade profissional, pelo consumo cultural de música, cinema, vestuário e
entretenimento em geral – realizado por vias ilegais e pelo uso da pirataria como prática
subjetiva coletivamente legitimada dos desprovidos para se conectarem aos bens de
consumo, como estratégia para viver no mundo, e de certas formas ocupacionais
vinculadas à informalidade. Por outro lado, libera exceções às regras que permitem
licenças para manipulação e uso das mais diversas drogas, possibilitando assim, que
elas sejam produzidas e, em alguns casos, distribuídas sem que haja eficácia na
fiscalização.
A Política do Ministério da Saúde para Atenção a Usuários de Álcool e outras
Drogas (2003) define que as diretrizes para uma política de atenção integral aos
usuários de álcool e de outras drogas devem prever, como necessidade gerada pelo
tema, que é transversal às áreas social, de saúde, justiça, educação e desenvolvimento, o
tratamento de forma integrada pelo poder público em articulação com a sociedade civil
e com movimentos sindicais, associações, organizações comunitárias e universidades,
pois todos são fundamentais para a elaboração de planos estratégicos dos estados e dos
79
2 Prevenção
rotinas e práticas diárias e o cultivo de valores familiares, expressos por regras e rotinas
domésticas, devem ser também considerados e viabilizados por meio da intensificação
do contato entre os componentes de cada núcleo familiar.
No domínio das relações interpessoais, os principais fatores de risco são: pares
que usam drogas e que aprovem e/ou que valorizem o seu uso e a rejeição sistemática de
regras, práticas ou atividades organizadas. Ao contrário, pares que não usam álcool nem
drogas e que não aprovam nem valorizam o seu uso exercem influência positiva. O
mesmo ocorre com aqueles envolvidos em atividades de qualquer ordem (recreativa,
escolar, profissional, religiosa ou outras) que não envolvam o uso indevido de álcool e
de outras drogas.
No domínio da educação institucional, ocorre o entrecruzamento de fatores de
risco presentes em todos os outros domínios. Os fatores de risco apresentados são a falta
de habilidade de convivência com grupos e a disponibilidade de álcool e drogas na
escola e nas suas redondezas, bem como, uma escola que apresente regras e papéis
inconsistentes ou ambíguos com relação ao uso de drogas ou em relação à conduta dos
estudantes. Há escolas em que são considerados os fatores de proteção, nas quais o
ambiente de ensino evidencia regras claras e consistentes sobre a conduta considerada
adequada – desde que assim sejam descritas as ações no processo educativo e evolutivo
docente-assistencial, o qual considere cada vez mais a participação dos estudantes em
decisões sobre questões escolares com inerente e progressiva aquisição de
responsabilidades.
Essa perspectiva da política do Ministério da Saúde é muito louvável em termos
discursivos por engendrar todo o contexto do sujeito e as possíveis interferências dessas
instâncias no comportamento antissocial, representado pelo uso e abuso de drogas,
precisa ser revista, pois tanto os fatores de risco quanto os fatores de proteção
encontram-se relacionados ao meio externo e, no que se refere ao sujeito, apenas se
consideram os aspectos de seu comportamento que são observáveis. A parte que lhe
caberia como sujeito ainda é remetida para uma condição de transtorno mental.
É fato que o social participa da relação do sujeito com as drogas, mas não do
ponto de vista do comportamento, e sim, do ponto de vista do vínculo que o sujeito
mantém com o objeto droga. Assim é porque o usuário de drogas faz laço com um
objeto diferente dos demais objetos aos quais outros sujeitos se vinculam, como os
objetos de comunicação ou a comida ou outros. A especificidade do gozo do
82
toxicômano está na relação do sujeito com a droga, como objeto do mercado de gozo,
como efeito do discurso da ciência que coloca no mundo objetos que, antes, não
estavam lá. E esse constitui o “não- saber” da ciência em relação àquilo que ela causa
no mundo preconizado por Lacan (2008a).
O texto da política do Ministério da Saúde cita dez recomendações básicas para
ações na área de saúde mental, álcool e drogas, do Relatório Mundial da Saúde Mental.
Ações na Área de Saúde Mental, Álcool e Drogas, de 2001:
1. Promover assistência em nível de cuidados primários;
2. Disponibilizar medicamentos de uso essencial em saúde mental;
3. Promover cuidados comunitários;
4. Educar a população;
5. Envolver comunidades, famílias e usuários.
6. Estabelecer políticas, programas e legislação específica;
7. Desenvolver recursos humanos;
8. Atuar de forma integrada com outros setores;
9. Monitorar a saúde mental da comunidade;
10. Apoiar mais pesquisas.
Todas as ações são produzidas pelo outro. O sujeito é um mero objeto das ações
e não entra no jogo em nenhum momento. No discurso da ciência, o sujeito não
participa e o método utilizado pela ciência não comporta o sujeito considerado
toxicômano. Esse está à margem do discurso, lá onde o real da sua relação com as
drogas se engendra. Para a ciência, ele é mero objeto das pesquisas, das ações e das
políticas que são, na verdade, voltadas para o Outro social, o “para todos” democrático.
Mas o discurso inscrito na política do Ministério da Saúde reafirma que uma
concepção integral e equânime de saúde não pretere prevenção por causa de assistência
ou vice-versa, uma vez que a informação levada de forma isolada e desconectada de um
programa de prevenção desenhado de forma a respeitar as características de sua
população-alvo revela uma percepção distorcida da realidade do uso de substâncias
psicoativas.
A desigualdade social está no cerne dos problemas sociais contemporâneos, mas
uma política que pretende engendrar ações que contemplem o sujeito, como a pessoa
que usa drogas, precisa de um conhecimento elaborado tendo em vista as relações do
sujeito com a droga, e não, do contexto social com as drogas, embora esse contexto
83
bandos, turmas, guetos, seitas e drogas. É desse lugar que nos olham e ouvem tais
sujeitos jovens, mediados por suas interações pela e com a tecnologia.
As diretrizes da Política Nacional Antidrogas (2005) para a redução da oferta
fixa os objetivos para as ações de prevenção a serem desenvolvidas e os verbos são
sempre os mesmos:
- conscientizar e estimular a colaboração espontânea e segura de todas as
pessoas e instituições com os órgãos encarregados pela prevenção e repressão ao tráfico
de drogas, garantido o anonimato;
- apoiar realização de ações de investigação, fiscalização e controle para impedir
a legitimação de recursos oriundos do tráfico de drogas no Brasil e no exterior; planejar
e adotar medidas para tornar a repressão eficaz;
- priorizar as ações de combate às drogas ilícitas que se destinam ao mercado
interno, produzidas ou não no país, sem prejuízo das ações de repressão àquelas
destinadas ao mercado externo; controlar e fiscalizar o comércio e transporte de
insumos que possam ser utilizados para produzir drogas, sintéticas o não; aperfeiçoar
políticas, estratégias e ações de combate ao narcotráfico e aos crimes conexos;
- desenvolver regionalmente culturas e atividades alternativas, visando à
erradicação de cultivos ilegais no país; assegurar recursos orçamentários em todas as
esferas governamentais para o aparelhamento das polícias especializadas na repressão às
drogas; e
- assegurar dotações orçamentárias para a Política de Segurança Pública,
especificamente, para os setores de redução da oferta de drogas, com vinculação de
percentual, nos moldes das áreas de educação e saúde, com o fim de melhorar e
programar atividades, bem como, estimular a criação de departamentos especializados
nas atividades de combate às drogas.
A Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e
outras Drogas (2003) propõe como principais fatores que reforçam a exclusão social dos
usuários de drogas as seguintes situações:
1. A associação do uso de álcool e drogas à delinquência, sem critérios mínimos
de avaliação;
2. O estigma atribuído aos usuários, promovendo a sua segregação social;
89
pessoas nos locais onde moram são álcool, maconha, cola, cocaína, crack e droga
injetável e o maior percentual está relacionado ao álcool, seguido de maconha e, por
último, de drogas injetáveis.
Esse estudo refere-se à rota do tráfico em relação estreita com a dinâmica da
epidemia do HIV/AIDS, cujos casos de infecção são, em grande parte, causados por
compartilhamento de seringas entre usuários de drogas injetáveis. O estudo alerta para o
desafio quanto à questão do consumo de drogas no mundo, cujo objetivo é encontrar
respostas que possam trazer, em médio prazo, melhoria substancial das condições de
vida das pessoas consumidoras de drogas. Esse desafio está no resgate do usuário do
ponto de vista da saúde, e não, da moral ou da lei que vem sendo concretizado a partir
de estratégias de comunicação que reforçam o senso comum de que todo consumidor é
marginal e perigoso para a sociedade e, por fim, destaca-se no documento que são
observáveis agravos e elevação dos custos.
O estigma, a exclusão, o preconceito, a discriminação e a desabilitação são, ao
mesmo tempo, agravantes e consequências do uso indevido de álcool e drogas,
colaborando morbidamente para a situação de comprometimento global que acomete
tais pessoas, ocorrendo também relativamente aos outros transtornos mentais. O caráter
informativo alarmista em relação ao real status quo do problema não revela que tabaco e
álcool, substâncias de uso historicamente lícito e as mais consumidas em todo o mundo,
são também as que trazem maiores e mais graves consequências para a saúde pública
mundial.
Assim, o estudo reafirma que a lógica da redução de danos deve ser considerada
como estratégica ao planejamento de propostas e ações preventivas. O
compartilhamento de responsabilidades, de forma orientada às práticas de efeito
preventivo também não deve abrir mão da participação dos indivíduos diretamente
envolvidos com o uso de álcool e outras drogas, pois eles devem ser implicados como
responsáveis por suas próprias escolhas e devem ser agentes e receptores de influências
ambientais.
Portanto, no que tange à prevenção, as ações não têm resultados positivos po
causa da distância dos processos na relação entre sujeito e drogas, pois o discurso
científico respalda o mercado do saber sobre a droga que circula na sociedade do
consumo, além do mercado do gozo da droga, o qual também se sustenta a partir desse
discurso.
91
alimentação mútua dentro do sistema que, respaldado pela ciência, faz circular as
informações sobre drogas, uma vez que uma das diretrizes da política do Ministério da
Justiça é desenvolver uma base de dados, por intermédio das agências científicas,
contendo informações atualizadas para subsidiar o planejamento e a avaliação de
práticas de tratamento, recuperação, redução de danos, reinserção social e ocupacional
sob a responsabilidade de órgãos públicos privados ou de organizações não
governamentais. Essas informações devem ser de abrangência regional, com ampla
divulgação, fácil acesso e resguardando sigilo das informações obtidas.
Com base nesses dados, segundo as diretrizes preconizadas pela política,
deverão ser definidas normas mínimas que regulem o funcionamento de instituições
dedicadas a tratamento, recuperação, redução de danos, reinserção social e ocupacional,
quaisquer que sejam os modelos ou formas de atuação.
A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, preconiza que as atividades de
atenção e reinserção social de usuários ou dependentes de drogas e respectivos
familiares definidas nessa Lei são aquelas que visam à melhoria da qualidade de vida e
à redução de riscos e danos associados ao uso de drogas. São atividades direcionadas
para sua integração ou reintegração em redes sociais, independentemente de quaisquer
condições, observados os direitos fundamentais da pessoa humana, princípios e
diretrizes do Sistema Único de Saúde e da Política Nacional de Assistência Social, que
são:
- respeito às diferenças sociais e culturais com definição de projeto terapêutico
individualizado, orientado para a inclusão social e para a redução de riscos e de danos
sociais e à saúde;
- atendimento de forma multidisciplinar com participação de equipes
multiprofissionais;
- atendimento em programas de atenção ao usuário e ao dependente de drogas
nas redes dos serviços de saúde em todas as esferas governamentais, com previsão
orçamentária adequada e obrigatória;
- concessão de benefícios às instituições privadas que desenvolverem programas
de reinserção no mercado de trabalho, do usuário e do dependente de drogas
encaminhados por órgão oficial;
93
não terem registro, além de outras que são registradas, mas que jamais receberam visitas
para inspeção, por causa do acúmulo de trabalho que rege o serviço público no Brasil e,
em particular, no Estado de Goiás.
A Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e
outras Drogas (2003) alerta para o fato de que a definição de políticas públicas para a
promoção de mudanças capazes de se manterem estáveis, nos diferentes níveis
envolvidos, no que se refere à Atenção Integral, requer:
1. mudanças individuais de comportamento que estão diretamente vinculadas a
estratégias globais de diminuição de riscos individuais e nos grupos de pares;
2. mudança de crenças e normas sociais;
3. ações de informação e prevenção destinadas à população em geral com
vistas à participação comunitária;
4. diversificação e ampliação da oferta de serviços assistenciais;
5. adoção de políticas de promoção à saúde que contemplem ações estruturais
nas áreas de educação, saúde e de acesso a bens e serviços – em suma, que incluam na
agenda a questão do desenvolvimento;
6. discussão das leis criminais de drogas e implementação de dispositivos
legais para equidade do acesso dos usuários de álcool e drogas às ações de prevenção,
tratamento e redução de danos de acordo com prioridades locais e com o grau de
vulnerabilidade;
7. revisão da lei que permite demissão por justa causa em empresas que
constatam o uso de drogas por funcionários;
8. discussão e impedimento de testagem de uso de drogas realizados de forma
compulsória em funcionários de empresas e estudantes de escolas públicas.
A apresentação da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a
Usuários de Álcool e Outras Drogas (2003), realizada pelo Ministro da Saúde,
Humberto Costa, fez questão de enfatizar que o problema não é só da saúde e cita a III
Conferência Nacional de Saúde Mental (realizada em dezembro de 2001) para reafirmar
a consolidação de um modelo de atenção a usuários de álcool e de outras drogas que
garanta o seu atendimento pelo SUS e considere seu caráter multifatorial, não reduzindo
a problemática ao âmbito do sistema de saúde.
O Ministro ressaltou a necessidade da estruturação e fortalecimento de uma rede
de assistência centrada na atenção comunitária associada à rede de serviços de saúde e
95
significativas em uma mesma região, tanto nos aspectos sociais quanto nas vias de
utilização e na escolha do produto;
2. a pauperização do país, que atinge em maior número pessoas, famílias ou
jovens de comunidades já empobrecidas, apresenta o tráfico como possibilidade de
geração de renda e medida de proteção;
3. aumento, no início precoce, do uso de drogas legais entre os jovens e
utilização cada vez mais frequente de uso de drogas de design e crack e o seu impacto
nas condições de saúde física e psíquica dos jovens, notadamente, pela possibilidade de
contraírem o vírus do HIV e/ou com vírus de hepatites virais;
4. a definição de políticas internacionais que contextualizem os países em
desenvolvimento somente a partir de sua condição de produção, refino e exportação de
produtos nocivos à saúde.
Por outro lado, a política do Ministério da Saúde ressalta também a necessidade
de desenvolvimento de ações de atenção integral ao uso de álcool e drogas nas grandes
cidades, de forma diferenciada, por causa da constatação de que, nas periferias, locais
de concentração dos cinturões de pobreza, há subsistemas sociais que incluem grupos
organizados (de drogas, crime, gangues etc.), além da ausência de fatores de proteção à
comunidade que possam contribuir para a diminuição das vulnerabilidades dessa
população, tais como: iluminação pública, saneamento, centros sociais e de lazer,
jornadas duplas de escolaridade para jovens com atividades socioeducacionais,
profissionalizantes e recreativas etc.
Esse discurso da política do Ministério da Saúde parte, acertadamente, do
princípio de que atividades sociais voltadas para as modalidades de gozo socialmente
instituídas são importantes e precisam ser oferecidas igualmente a toda a população
indistintamente. Certamente, isso levaria a uma diminuição da violência e da
criminalidade, caso outras medidas fossem tomadas, mas não a impediria.
De maneira geral, a mídia divulga os crimes vinculando-os quase sempre à
droga. Se alguém rouba uma televisão é para trocar por drogas; se roubam fios de cobre
da rede telefônica, é para vender e comprar crack. Caso seja essa a realidade, o vínculo
da droga com os outros crimes também precisa ser analisado a partir da escuta de cada
sujeito, porque nem todo dependente de drogas rouba. Há aqueles que trabalham e/ou
têm renda e sustentam seu gozo e outros que foram excluídos do trabalho.
97
Nem todos têm necessidade de roubar, mas dentre os que teriam essa
necessidade, nem todos fazem essa opção. Enquanto alguns, a priori, não precisariam
roubar para se manter ou para manter o vício, mas matam por dinheiro. Entretanto, o
mesmo fato acontece com não usuários de drogas: roubam e matam independentemente
de sua classe social, simplesmente por causa de sua singularidade. Mas o fato é que as
leis e as políticas, sendo da ordem do Outro, do “para todos”, excluem o sujeito do
processo, fazendo dele um objeto para alavancar o desenvolvimento e o progresso do
Outro atual, representado pelo discurso do capitalismo.
A política do Ministério da Saúde enfatiza que a implantação de serviços de
atenção diária, nas diversas modalidades (CAPS I, II, III, infanto-juvenil e
álcool/drogas) tem mudado visivelmente o quadro de desassistência que caracterizava a
saúde mental pública no Brasil. A expansão da rede em questão obedece aos desígnios
da reforma psiquiátrica, sempre buscando viabilizar a substituição do modelo
assistencial vigente em saúde mental – ainda predominantemente hospitalocêntrico –
por redes de atenção especializadas e compostas por dispositivos extra hospitalares.
São estes os objetivos dos CAPSad:
1. prestar atendimento diário a usuários dos serviços, dentro da lógica de
redução de danos;
2. gerenciar os casos, oferecendo cuidados personalizados;
3. oferecer atendimento nas modalidades intensiva, semi-intensiva e não
intensiva, garantindo que os usuários de álcool e de outras drogas recebam atenção e
acolhimento;
4. oferecer condições para repouso e desintoxicação ambulatorial de usuários
que necessitem de tais cuidados;
5. oferecer cuidados aos familiares de usuários dos serviços;
6. promover, mediante diversas ações, a reinserção social dos usuários,
utilizando para tanto recursos intersetoriais, ou seja, de setores, como educação, esporte,
cultura e lazer, montando estratégias conjuntas para o enfrentamento dos problemas;
7. trabalhar a diminuição de estigma e preconceito relativos ao uso de
substâncias psicoativas, mediante atividades de cunho preventivo/educativo.
Os CAPSad atuam de forma articulada a outros dispositivos assistenciais em
saúde mental e da rede básica de saúde, bem como, ao Programa de Saúde da Família e
ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde. Esses oferecem também atenção
98
ambulatorial diária aos dependentes, que vai desde o atendimento individual até
atendimentos em grupo ou sob a forma de oficinas terapêuticas e visitas domiciliares.
A política do Ministério da Saúde entende que a assistência a usuários de álcool
deve ser oferecida em todos os níveis de atenção, privilegiando os cuidados em
dispositivos extra-hospitalares, como os Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e
Drogas (CAPSad), mas devendo também estar inserida na atuação do Programa de
Saúde da Família, no Programa de Agentes Comunitários de Saúde e da Rede Básica de
Saúde. Afirma também que a integralidade das ações, bem como a consequente
definição de papéis entre os diversos níveis de governabilidade requer a construção de
oportunidades de inserção das ações nos mecanismos implementados pelo Sistema
Único de Saúde (SUS) nessas esferas de governo e a formulação de alternativas de
sustentabilidade e de financiamento das ações.
O sistema vai criando mercados que se sustentam com a droga do outro: o
toxicômano é um sujeito colocado no lugar de objeto das políticas que se dizem
direcionadas a ele, mas o fato é que faz movimentar um mercado que sobrevive a partir
da existência do toxicômano e que não pode prescindir dele. O toxicômano participa
desse mercado do ponto de vista da mais-valia marxista e do mais-de-gozar lacaniano,
conceitos que serão discutidos mais adiante, nesta tese.
O lugar do toxicômano também serve ao sistema, já que é o lugar do segregado,
do marginalizado e do explorado, como poderemos constatar nas análises sobre os
processos de recuperação engendrados na sociedade contemporânea, na parte de estudo
de casos.
4 A redução de danos
uso das drogas, destrói a vida, além de desenvolver uma política para redução de danos
relacionados ao consumo de álcool que modifique a legislação.
Essa ação conjunta deve proibir a propaganda de bebidas alcoólicas em meios de
comunicação de massa e cumprir rigorosamente a taxação de bebidas alcoólicas por
meio de imposto, cujo rendimento deve ser destinado ao custeio de assistência e
prevenção de problemas relacionados ao uso do álcool, bem como, por intermédio de
discussão, implantação e implementação das propostas constantes no Relatório Final da
III Conferência Nacional de Saúde Mental (2001).
A Política do Ministério da Saúde considera o tratamento para usuários e
dependentes de drogas como redução de danos, defendendo que a abstinência não pode
ser o único objetivo a ser alcançado, uma vez que é preciso lidar com as singularidades,
com as diferentes possibilidades e escolhas que são feitas. O texto sugere também que
as práticas de saúde devem acolher sem julgamento a respeito do que é possível, do que
é necessário e do que está sendo demandado pelo sujeito individualmente, além de
perceber o que pode ser ofertado e o que deve ser feito, estimulando sempre sua
participação e seu engajamento.
No que diz respeito a tratamento, recuperação e reinserção social, a Política
Nacional Antidrogas traz também orientações gerais que descentralizam as ações para
as esferas municipal, estadual e federal e as colocam sob a responsabilidade dos órgãos
governamentais das três esferas, de organizações não governamentais e de entidades
privadas. Por essa via, propõe a garantia do acesso a diferentes modalidades de
tratamento e recuperação, reinserção social e ocupacional, os quais devem ser
identificados e qualificados, para garantirem um processo contínuo de esforços
disponibilizados de forma permanente para os usuários, dependentes e seus familiares,
com investimento técnico e financeiro de forma descentralizada.
Não posso fechar este capítulo sem voltar os olhos para algumas notícias,
encontradas em sites oficiais, para vislumbrar as políticas sobre drogas em ação, depois
de suas homologações. Em 13 de dezembro de 2011, foi publicada a seguinte manchete
no site do Governo Federal: O Governo Federal e o Plano contra o crack. O texto da
reportagem explica que, no Plano Integrado de Enfrentamento do crack e outras drogas,
o Governo Federal pretende investir até R$ 4 bilhões, dinheiro que será aplicado em
políticas públicas integradas de diversos setores: saúde, educação, assistência social e
segurança pública.
Segundo as informações contidas no site do Governo Federal, o atendimento
será feito pelo Sistema Único da Assistência Social (SUAS), organismo público
coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome (MDS).
Os serviços são disponibilizados por intermédio de Centros de Referência de
Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializados de Assistência Social
(CREAS) e Centros de Referência Especializados para Atendimento à População de
Rua (Centro POP).
Outro eixo do plano é a prevenção por meio de capacitação de professores e
policiais militares educadores, para explicar o efeito das drogas nas escolas. Segundo o
governo, serão ao todo mais de 210 mil profissionais prontos para atuar no Programa
Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (PROERD). Os recursos financeiros
serão investidos também em serviços telefônicos gratuitos, sites informativos sobre o
crack e outras drogas, mediante campanhas publicitárias e investimentos nas polícias.
Em 13 de dezembro de 2011, foi publicada no site do Ministério da Justiça, a
seguinte manchete: Leilão de bens do tráfico de drogas tem arrecadação recorde. O
texto da notícia afirmava que a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD)
do Ministério da Justiça teve arrecadação recorde de R$ 1.675 milhão, obtidos por meio
de leilão de joias, imóveis, veículos e aviões, realizado na terça-feira (13/12/2011) em
Colombo (PR). Todos os bens pertenciam a pessoas envolvidas com o tráfico de drogas.
Os recursos iriam para o Fundo Nacional Antidrogas – o FUNAD – que promove ações
e programas de repressão, prevenção, tratamento, recuperação e reinserção social de
dependentes de drogas.
Dentre os bens leiloados, havia imóveis localizados no Paraná, para onde foram
levados também os veículos e duas aeronaves. O texto do noticiário detalha que os
produtos foram divididos em 223 lotes e todos foram arrematados. Continua a notícia,
107
para quem perdeu a razão por causa do vício. “O paciente dependente de crack e,
comprometido, precisa que alguém decida por ele. Ele está em um tratamento
temporário. Não está sendo tirada a liberdade dele, mas garantido o direito à vida”
(Portal Brasil, 15/01/2013), disse. Depois do período de desintoxicação, que dura de dez
a quinze dias, a maioria dos usuários de drogas passa a concordar com a internação,
conta Rodrigues.
Mas não é isso que se constata nos casos analisados no Capítulo 8 desta tese, em
que consta, segundo o próprio site oficial do Governo, que o Conselho Federal de
Psicologia, por intermédio de seu presidente, Humberto Verona, questionou a solução,
temendo uma banalização da internação involuntária pelos médicos. Esse psicólogo
defende a linha de tratamento que leve o usuário a entrar em um processo de cuidado
com ele mesmo, sem privá-lo da convivência familiar e dos amigos. “Tenta-se
convencer a sociedade de que a melhor forma é a internação. Parece que o usuário de
drogas perde todo o seu direito e a razão.”, argumentou ele, e segue: “Se ele quiser
sair, a gente não pode ser autoritário e dizer não. Não vamos abandonar essa pessoa
nem prendê-la.”. (Portal Brasil, 15/01/2013).
CAPÍTULO 3
Neste Capítulo, farei uma releitura de Freud, a partir de Lacan, começando pelos
dados disponíveis em Breger (2000), em sua obra intitulada Freud: O lado oculto do
visionário, e em Byck (1989), quando examina as relações existentes entre Freud e a
cocaína. Esses dados encontram-se presentes na literatura a respeito de Freud, de
maneira geral e também no texto de Freud, Um estudo autobiográfico (2006c).
Convém destacar aqui que essas relações são delineadas antes da releitura das
obras freudianas em que a questão das drogas é referenciada. Partirei de três textos de
Freud: Além do princípio de prazer (2006a), O futuro de uma ilusão e O mal-estar na
civilização (2006b).
A droga como sintoma psicanalítico não foi objeto de estudo de Freud, a não ser
como uma das formas de fugir ao mal-estar na civilização inerente ao ser humano. O
tema foi abordado em poucas ocasiões, mas é importante voltar a alguns textos, os quais
são: O futuro de uma ilusão e O mal-estar da civilização (2006b), que se referem às
drogas como um remédio de efeito paliativo para os sofrimentos humanos,
especialmente para aqueles grupos sociais que não têm acesso a opções mais
elaboradas, para atender ao princípio de prazer que, para a Psicanálise, move o sujeito a
partir do inconsciente.
Em Além do princípio de prazer, Freud (2006a) se aproxima mais daquilo de
que significa a droga para o sujeito, ao detectar, para além do prazer, a pulsão de morte.
Não podemos deixar também de esclarecer algumas das relações do próprio
Freud com a cocaína, no âmbito de suas experimentações, tendo em vista o objetivo de
suturar o discurso científico, empreendido por Freud. Essa relação foi apresentada por
Byck (1989), que pesquisou o contexto histórico, cultural e econômico em que se
desenvolveram os estudos de Freud sobre a cocaína e suas informações sobre o uso que
Freud fez da cocaína constam das suas várias biografias, bem como se encontra em Um
estudo autobiográfico (2006c). A psicanálise freudiana tinha por objetivo tornar a
Psicanálise uma ciência do inconsciente, cujo objetivo encontrava no estudo da
112
termodinâmica, as bases para sua teoria substancialista da libido, a qual será abordada
na sequência deste estudo. Sua teoria mostrava os caminhos pelos quais os indivíduos
poderiam ligar-se às substâncias que a ciência sintetizava, para extrair seus princípios
ativos. Uma das questões se destacava em especial: que tipo de efeito as substâncias
promovem, quando são organicamente assimiladas pelo sujeito humano? É inicialmente
esse o caminho que iremos percorrer no estudo sobre a droga na psicanálise freudiana.
Freud (2006c) declara ter recebido sua primeira dose de cocaína do Laboratório
Merck, importante empresa farmacêutica. É interessante declarar que a ciência esteve,
desde o seu início, junto com a modernidade capitalista, oferecendo saberes e materiais
para o seu próprio desenvolvimento. Um desses exemplos diz respeito à descrição dos
efeitos da substância extraída e processada a partir da folha da coca em laboratório. Ela
trazia em seu bojo alguns dos aspectos das potencialidades desejáveis tanto para o
escravo, na Idade Média e, para o trabalhador, na sociedade industrial do tempo de
Freud. E mais ainda para o que se espera do profissional contemporâneo da empresa
capitalista da sociedade de consumo: que ele seja alegre, expansivo, sem fome e com
energia para o trabalho. Talvez, graças às mesmas características, seja possível dizer
que, por meio da psicanálise freudiana, foi possível que os sujeitos se vinculassem à
cocaína.
Essas características também fazem referência a um ideal de juventude que se
põe como valor a ser conquistado e mantido por crianças, jovens, adultos e velhos, na
atualidade. Esse ponto de vista parece elucidar, em parte, o sucesso da droga na
sociedade do consumo.
Breger (2002) cita uma carta de Freud, endereçada a Martha, em que ele dizia
usar doses muito pequenas, regularmente, contra a depressão e contra a indigestão, com
o mais brilhante resultado. Sabe-se que Freud chegou a enviar um pouco de cocaína a
Martha e também a ofereceu a pacientes e amigos e a suas irmãs. O próprio médico
disseminou o produto, por meio de seu método de experimentação.
113
chegou a sugerir que a cocaína poderia servir como analgésico e como anestésico para
cirurgia ocular.
Byck (1989) afirma que Freud investigou os efeitos da cocaína no homem,
tornou-se usuário e empregou a cocaína contra o vício de morfina no tratamento de seu
amigo Ernest Von Fleischl-Marxow. Mas essa tentativa foi desastrosa e gerou
controvérsias a respeito do tratamento e da paternidade de Freud sobre a descoberta da
cocaína como anestésico local. Tais controvérsias levaram Freud a interromper
bruscamente suas investigações, embora ainda utilizasse a droga até 1895, informação
que o autor extraiu do texto de Freud, A interpretação dos sonhos. Byck (1989) reforça
seu conhecimento sobre esses estudos e usos da cocaína por Freud a partir do trabalho
realizado pelo tradutor de Freud, James Shachey, que publicou os trabalhos do
psicanalista que se encontravam dispersos e em língua alemã.
Esses trabalhos e os demais reunidos no escrito de Byck (1989) mostram que
Freud foi um dos fundadores da psicofarmacologia e que tal fato foi confirmado pelo
Dr. J. M. Ritchie, ex-presidente do Departamento de Farmacologia de Yale e autor da
seção sobre a cocaína do The pharmcological basis of therapeutics, de Louis Goodman
e Alfred Gilman (2001). Esse autor constata que Freud se envolveu com a cocaína em
dois aspectos: o primeiro, no que diz respeito à descoberta da cocaína como anestésico
local, crédito que não lhe foi dado, e o segundo é em relação a um possível equívoco
que elegeu a droga como panaceia (remédio universal).
O biógrafo de Freud, em textos publicados na coletânea organizada por Byck
(1989) abordou ambos os aspectos: a análise crítica de Siegfried e a síntese de Hortense
Koller Becker, cujo pai, Karl Koller, se envolveu pessoalmente com a cocaína como
anestésico local. O uso da cocaína por Freud e o desenvolvimento da Psicanálise foi
discutida por Von Schdeit, em Ensaios sobre a cocaína. Esse autor afirma que o
alcaloide cocaína foi isolado da folha da coca pela primeira vez em 1855 e complementa
que foi a partir de então que os problemas com a droga se transferiram para o âmbito da
lei, da sociologia e do abuso de drogas.
Byck (1989) cita a Bíblia e os mitos heroicos para dizer que o uso de drogas para
obter efeitos euforizantes e psicodélicos sempre foi registrado na história. Ele
exemplifica com o Phantástica, de Louis Lewin (contemporâneo e adversário de Freud)
e com o The Etnopharmacological Serch for Psychoative Drugs (1967). O mesmo
autor ensina que o termo psicofarmacologia foi cunhado em 1920 por David March e
115
que esse conceito se expandiu com o pensamento de que drogas poderiam modificar o
raciocínio e o comportamento normais, chegando a atuar na minoração de doenças
mentais. Ambos os caminhos partem do princípio de que as enfermidades do
pensamento têm origens na natureza física ou bioquímica, concepção que foi
privilegiada antes da psicologia evolutiva.
Freud deu sua contribuição às teorias psicológicas e biológicas da doença
mental. Em Sobre a coca, ele observa que uma droga sedativa poderia ser útil no
tratamento da doença mental, descrevendo as experiências de Morselli e Buccola com a
cocaína no tratamento da melancolia, afirmando que eram necessárias investigações
mais amplas sobre a eficácia da coca nos tratamentos da debilidade nervosa e psíquica.
Byck (1998) historia: em 1845, J. J. Moreau de Tours apresentou uma teoria
sobre as psicoses com base no padrão de intoxicação por haxixe, trabalho precursor das
psicoses típicas da mescalina e do LSD. Essas teorias seriam protótipos para uma teoria
tóxica ou orgânica da psicose. Ele cita a carta de Freud a Sandor Frerenczi, de 1916, na
qual ele observa que o excesso de cocaína podia produzir sintomas paranoides, assim
como, a suspensão da droga. E o autor continua, lembrando que Freud teria
acrescentado que os viciados não se adequavam à Psicanálise porque as dificuldades da
terapia os levavam de volta à droga.
O efeito psicotoxicogênico como modelo para psicoses de ocorrência espontânea
foi descrito também por autores modernos. Os efeitos da cocaína servem como modelo
de doença e a droga poderia servir como um modelo para tratamento. Byck (1998)
lembra que a melhor contribuição de Freud está em Uma contribuição ao conhecimento
do efeito da cocaína, de 1885. A experiência de Freud com a cocaína criou uma tradição
de descrição de substâncias com propriedades psicoativas. Os experimentadores citados
pelo autor, cuja literatura encontra-se organizada em Freud e a cocaína, foram Albert
Hoffman (LSD), J. J. Moreau de Tours, Holmstedt e Gordon Alles.
Freud avaliou a equivalência entre a cocaína da Merck e a do Parke Davis,
devido à preocupação com o alto preço do Merck. Byck (1989) afirma ainda que a
experimentação pessoal do cientista como agente psicológico que apregoa as drogas aos
amigos é uma tradição que perdura até hoje e cita Aldous Huxley em As portas da
percepção, para mostrar que essa prática vai além da prática científica, mas enfatiza que
entre os cientistas funciona, ainda hoje, como se fosse uma regra de conduta.
116
O autor mostra que, ao preparar o seu ensaio Über coca, Freud foi influenciado
pelas referências que leu. Trata-se do Index Catalogo of the Surgeon General´s Office
(Catálogo do Gabinete do Diretor de Saúde Pública nos EUA). E o autor explica que
sua inspiração provinha, em grande parte do texto Erythoxylon Coca, em relação aos
vícios do ópio e álcool, de H. Bentley, Valley Oak, Kentucky. Nesse artigo, seu autor
explica que as vítimas do ópio e do álcool tomam a droga pelo seu efeito estimulante
que, a partir de determinado ponto, produz uma sensação de felicidade. Mas a
continuação do hábito leva a uma sensação deplorável de prostração que exige outra
dose e, assim, o cérebro é narcotizado, destruindo o sistema nervoso e se tornando fatal.
E, então, sugere:
É também citado o Dr. Palmer, que afirma em seu artigo publicado no Lousiville
Medical News, que a coca é um medicamento inofensivo e magnífico para a melancolia.
Von Anrep publicou um artigo sobre o efeito fisiológico do muriato de cocaína sobre
animais. E Von Bibra enfatiza que a cocaína, se usada em doses homeopáticas, aplaca a
fome, alegra, dá mais capacidade para o trabalho, aumenta o vigor, de forma que o
máximo de esforço se torna fácil.
O Dr. P. Mantegazza inclui a coca na categoria dos euforizantes narcóticos
alcaloides, cujo efeito é poderoso sobre os centros cardíaco e nervoso, aumentando a
capacidade intelectual a um maior ou menor grau, à custa de uma diminuição da
sensibilidade. E o mesmo médico lembra que o efeito fisiológico da coca é uma
sensação de bem-estar geral, satisfação intelectual e um efeito benéfico sobre a digestão,
o coração e a respiração.
Byck (1989) ressalta a afirmação de Mantegazza, segundo a qual a pessoa sob o
efeito de doses médias de coca fica mais capaz e mais forte, com significativa
resistência à intervenção de influências externas. No tempo de Freud, muitos estudos
detalhados sobre os efeitos da cocaína foram realizados e a grande maioria deles era
favorável à utilização da droga, então tida como detentora de propriedades milagrosas.
117
lhes era imposto nas minas. Ainda hoje – e talvez principalmente hoje –, a droga é
utilizada como um remédio para suportar o cansaço do trabalho, necessário à
sobrevivência na sociedade do consumo, que se impõe sobre o sujeito, empurrando-o
para jornadas de trabalho cada vez mais longas e intensas.
O psicanalista descreve os experimentos que comprovam o aumento da
capacidade e a eliminação da fome, se a cocaína for administrada em doses moderadas
(0,05g a 0,10g) e também quando utilizada em doses altas, o que provoca um estado de
felicidade muito intensa, acompanhado do desejo de completa imobilidade,
interrompido por violento impulso para se movimentar Com doses maiores, há o
aumento do ritmo do pulso e da temperatura do corpo. A fala fica embaraçada, a letra
instável e, por fim, provoca alucinações que não deixam traços de depressão nem de
intoxicação. Em sua tese Sobre a coca, descreve as utilizações terapêuticas da coca
como estimulante e em distúrbios digestivos, na caquexia, no tratamento do vício da
morfina e do álcool, no tratamento da asma, como afrodisíaco e como anestésico local.
Byck (1989) historia que, na primeira redação de Über Coca em inglês (que
consiste em um resumo do original e uma compilação de várias fontes), a opinião sobre
a utilização da coca no tratamento do vício de morfina é de Fleischl, e não, de Freud. E
o pesquisador destaca também que o psicanalista deve tê-la extraído do artigo de E.
Merck, publicado em 1885, no Chicago Medical Journal and Examiner, o qual punha
os médicos a par dos progressos europeus quanto aos estudos sobre a cocaína.
Byck reuniu as informações que demonstram o uso da cocaína por Freud e
lembra que Von Scheidt sugeriu que o desenvolvimento da Psicanálise e da Psicologia
do ego resultou da tentativa de Freud de lidar com o estado de consciência produzido
pela cocaína.
Na apresentação do artigo de Freud, intitulado Contribuição ao conhecimento do
efeito da cocaína, publicado em janeiro de 1885, Byck relata que Freud, além de se
preocupar com as reações subjetivas à utilização da cocaína, realizou também
experimentos sobre os efeitos objetivos da droga, em condições mensuráveis de energia
muscular e de tempos de reação. Ele teria utilizado o dinamômetro e o neuramebímetro
e relata a observação de um aumento da atividade muscular, após a utilização da
cocaína, que não é concebida como consequência direta da droga sobre a musculatura,
mas sim, como decorrência de um maior bem-estar geral que faz melhorar a ação
motora, a qual aparece como um efeito secundário.
119
Byck (1989) afirma que a descrição feita por Lewin (1888), em “Phantastica:
drogas narcóticas e estimulantes, seu uso e abuso”, deixam dúvidas quanto ao fato de a
cocaína ser apenas estimulante central e ressalta que esse autor mostra as variações dos
efeitos da coca mediante dosagens diferentes. Ele relata a disseminação da droga nos
diversos contextos sociais de guerra e de trabalho: médicos e pesquisadores, prostitutas
e seus protetores, políticos, escritores, todos são cocainômanos. E continua em seu
relato, mencionando as consequências da cocainomania, destacando: a) que a ação da
cocaína sobre o cérebro é muito mais violenta do que a da morfina e que uma única
aplicação de injeção nas gengivas ou sob a pele pode causar sérios problemas às funções
cerebrais, como distúrbios mentais, ilusões e melancolia; b) que o abuso toxicomaníaco
prolongado provoca, gradativamente, sintomas mais graves, cujas manifestações são
evidentes entre os coqueiros (maneira como os viciados em cocaína eram chamados em
alguns textos do tempo de Freud); c) que eles se comportam, física e moralmente, como
os fumadores de ópio, aparecendo um estado de caquexia, com emagrecimento e
mudança de conduta; d) que ficam velhos antes de serem adultos; e e) que são apáticos e
governados pelo desejo pela droga.
Quanto às consequências sobre a personalidade, cita a redução da força de
vontade, a indecisão, a falta de senso do dever, a índole caprichosa, a obstinação, o
esquecimento, a prolixidade na escrita e na fala, a instabilidade física e intelectual, a
negligência, a mentira e a solidão.
O autor da coletânea cita descrição de Watson, nos parágrafos iniciais de O
signo dos quatro (1988) – sobre o detetive Sherlock Holmes –, mostrando a indiferença
de Holmes, em relação à vida, diante da cocaína, evocando as perdas do personagem,
em consequência da escolha que faz pela droga, como objeto de uso e trocando qualquer
coisa: prestígio, dinheiro ou amor para ser feliz única e exclusivamente com a droga.
Byck (1989) lembra que o vício de Holmes serve à psiquiatria moderna como
demonstração de sintomas compulsivos de curiosidade e preocupação, comuns aos
viciados em anfetaminas, normalmente concebidas em seus efeitos como equivalentes à
cocaína. E continua, citando a tentativa de Stewart Halsted (1852-1922), cirurgião
americano que fazia uso de cocaína por via intravenosa, o que lhe resultou em perda de
sua carreira brilhante, mas que retomou depois, de maneira medíocre e sem nenhuma
alegria, após se curar da cocaína com a morfina, percorrendo o caminho contrário ao de
Freud.
122
O autor relembra que Freud, em “Ânsia e temor pela cocaína” (1887), tenta
esclarecer sua posição, enfatizando os perigos que a injeção da droga representa e
declarando que houve um erro de julgamento, não reconhecendo o potencial de abuso
da cocaína. E comenta que a descrição feita por Lewin (1988), na Fantástica, levou a
dúvidas quanto ao fato de a cocaína ser apenas estimulante central. Essa obra aponta
para os efeitos da cocaína em dosagens diferentes, analisa a disseminação da droga e os
contextos sociais, enfatizando as consequências da cocainomania sobre a personalidade,
relacionando-a à violência e considerando que o fim do cocainômano é a morte, já que a
toxicomania é vista como doença incurável e fatal, para a qual o único remédio é a
abstinência. O substituto proposto para a cocaína era produzido a partir de um substrato
dessa droga com menor teor tóxico, mas o autor lembra que a justificativa, segundo a
qual a dextropsicaína não teria efeitos euforizantes, é incorreta.
O autor segue mostrando que a coca foi amplamente democratizada na Espanha
e que os produtos Mariani (produzidos à base de coca) tinham o aval de médicos e
faziam um alerta contra os genéricos.
Essa mesma situação se desenvolve no contexto atual, embora a situação legal
de determinadas drogas seja diferente. No tempo de Freud, não havia a proibição legal
que hoje se instaura na sociedade, mas as instituições que tratam da reabilitação dos
chamados “toxicômanos” continuam a trabalhar sobre a sistemática da substituição de
uma droga por outra e não levam em conta as singularidades que o uso da droga tem
para cada sujeito.
É importante assinalar que, mais recentemente, certos psicanalistas têm
retomado as discussões propostas por Byck (1989) a respeito de Freud e do uso da
cocaína, a saner: Scheidt (1975), Gay (1989), Cesarotto (1989) e Rodrigué (1995).
Gurfinkel (2008) assinala que, após a criação da Psicanálise, Freud jamais
dedicou um ensaio ao estudo das adicções e revela que Freud mostra ter consciência dos
dois principais âmbitos de interesse potencial da Psiquiatria pelas drogas psicotrópicas:
como remédios destinados a sanar certos tipos de desequilíbrio psíquico e em relação a
abuso e vício.
Freud destaca a importância de se estar atento à idiossincrasia do sujeito em
relação àquele que se droga, antevendo que haveria reações muito diferentes para cada
sujeito. Para Garfinkel (2008), é o momento em que ocorre o deslocamento da droga
para o sujeito que se droga, possibilitando que os mais diversos autores passassem a
123
coincide com uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação de
desprazer ou uma produção de prazer. (FREUD, 2006a, p. 17).
se à droga como remédio contra a dor da angústia. Essas duas concepções nortearão as
análises que aqui serão empreendidas.
Todavia o texto em questão vai além, ao destacar que há uma condição que
ocorre após graves concussões mecânicas, desastres e outros acidentes que envolvem
risco de vida. Essa condição recebe o nome de neurose traumática e seu quadro
sintomático aproxima-se do quadro da histeria. Observa-se que, nas neuroses
traumáticas comuns, há o fator da surpresa, o susto como causa. E o susto é o nome
dado ao estado em que alguém fica quando entra em situação de perigo, sem estar
preparado para tal.
A angústia, assim como o medo, protege o sujeito contra o susto e também
contra as neuroses de susto. Utilizando-se do estudo dos sonhos, para investigar esses
processos mentais profundos, Freud afirma que, nas neuroses traumáticas, o sonho
repetido traz o paciente de volta ao momento do trauma, numa situação que o faz rever
o susto ocorrido no passado. E o autor esclarece que esse fato não abala sua crença no
teor de realização de desejos dos sonhos, mas o leva a uma reflexão sobre as misteriosas
tendências masoquistas do ego.
A reflexão freudiana sobre o comportamento das crianças ao brincar permite
examinar o funcionamento psíquico a partir das brincadeiras infantis. Ele cita um caso
que diz ter observado intensamente por algumas semanas, o do Fort-Dá, muito
conhecido das teorias pedagógicas que andam pela via da Psicanálise e também da
psicologia. Ele refere-se, então, à brincadeira inventada e realizada por um menino de
um ano e meio de idade. O menino era muito ligado à mãe, que tinha de alimentá-lo e
cuidar dele sem ajuda. O observador notou que o menino tinha o hábito de jogar objetos
para debaixo de sua cama e, ao fazê-lo, emitia um som de “óóóóó”, expressando
interesse e satisfação. A mãe da criança concordou que isso não era apenas uma
interjeição, mas representava a palavra alemã fort.
Freud (2006a) entendeu que se tratava de uma brincadeira de “ir embora”
realizada com os brinquedos. O menino tinha um carretel de madeira com um cordão
amarrado a ele e o segurava pelo cordão, arremessando-o para baixo da cama e dizendo
o longo óóóó; depois, puxava o carretel para fora da cama novamente, soltava um alegre
dá (ali). A brincadeira simbolizava o desaparecimento e o retorno da mãe.
No pensamento freudiano, a criança se relacionava com a renúncia pulsional que
realizava, ao deixar a mãe ir embora e, como compensação, encenava ele próprio o
126
nos sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e no impulso que leva as crianças a
brincarem.
Em Além do princípio de prazer (2006a) é dado o exemplo da vesícula viva que
tem uma camada morta como envoltório, com o objetivo de conter as excitações
externas. No ser vivo, a proteção dos estímulos é mais importante do que sua recepção
e, nos organismos muito desenvolvidos, essa camada cortical já se transformou nos
órgãos dos sentidos que protegem o cérebro dos estímulos em quantidades excessivas e
excluem os estímulos inapropriados. Enquanto os estímulos externos passam por essa
camada protetora, os estímulos internos não têm esse escudo e as excitações que provém
do interior geram sentimentos de prazer e desprazer. Essa condição do sistema tem
efeito decisivo sobre seu funcionamento e no de todo o aparelho mental.
Assim, os sentimentos de prazer e desprazer predominam sobre os estímulos
externos. O funcionamento do aparelho tem uma maneira específica de lidar com as
excitações internas que produzem aumento grande de desprazer. Há uma tendência em
tratá-las como se elas fossem externas, o que mostra haver uma dominância do princípio
de prazer, mas também há casos que contradizem essa dominância.
O psicanalista tenta, a partir de uma concepção sobre o trauma, implicado na
ruptura em uma das barreiras, de forma que um trauma externo pode provocar um
grande distúrbio no funcionamento da energia e ativar todas as medidas defensivas de
que o organismo dispõe. A tarefa é, então, dominar a quantidade de estímulo que
irromperam, vinculando-os psiquicamente como meio de se livrar deles.
Esse mecanismo é explicado em seu Projeto para uma Psicologia científica
(2006d), a partir da neurologia, vinculando o prazer a uma descarga elétrica que ocorre
quando uma barreira de contato que faz a ligação entre os neurônios se rompe devido à
quantidade de energia acumulada. Essa teoria levou Freud mais tarde a uma concepção
substancialista da libido, com base nos princípios da termodinâmica.
Freud (2006a) revela que, na ocorrência de um trauma, a mente reage a essa
invasão com o oferecimento de catexias altas de energia em torno da ruptura da
proteção. Estabelece-se, então, uma catexia em grande escala, empobrecendo os outros
sistemas psíquicos e paralisando ou reduzindo as demais funções psíquicas. E o
psicanalista toma a neurose traumática como consequência de uma grande ruptura no
escudo protetor contra estímulos, mas esclarece que esse não restabelece a antiga teoria
do choque, embora considere que a essência do choque vinculada ao susto causa dano
128
direto à estrutura molecular. O susto é causado pela falta de preparação, pela ansiedade
e pela falta de hipercatexia dos sistemas, que seriam os primeiros a receber o estímulo.
O autor considera que a realização de desejos é causada por uma alucinação nos
sonhos sob a dominância do princípio do prazer, mas os sonhos dos pacientes que
sofrem de neurose traumática conduzem à situação do trauma. Nesse caso, os sonhos
estão realizando outra tarefa anterior ao princípio de prazer: o esforço para dominar
retrospectivamente o estímulo, desenvolvendo a angústia, cuja omissão deu origem ao
trauma. Os sonhos de angústia não são exceção à realização de desejos que os sonhos
têm por tarefa, assim como não o são os sonhos de castigo, os quais substituem
simplesmente a realização de desejo proibida pela punição adequada, ou seja, realizam o
desejo do sentimento de culpa, que é a reação ao impulso repudiado. Esses sonhos
surgem como consequência da compulsão à repetição que, por sua vez, é apoiada pelo
desejo de conjurar o que foi esquecido e reprimido.
Freud (2006a) descreveu o tipo de processo encontrado no inconsciente como
sendo o processo primário, aos quais os impulsos instintuais obedecem. E denomina
secundário aquele que impera na vida de vigília normal. Assim, os estratos mais
elevados do aparelho mental deveriam sujeitar a excitação pulsional do processo
primário. O fracasso no cumprimento de tal tarefa provocaria um distúrbio parecido
com a neurose traumática e, somente depois de ser realizada, seria possível a
dominância do princípio de prazer. Essa tarefa de dominar ou sujeitar as excitações tem
precedência e, embora não se oponha ao princípio de prazer, se realiza
independentemente dele, desprezando-o. A compulsão à repetição tem um caráter
altamente pulsional e atua contra o princípio de prazer. Nas brincadeiras infantis, as
experiências desagradáveis são repetidas por poderem dominar uma impressão poderosa
melhor de modo ativo do que na passividade da primeira cena. A repetição, em si, é
uma forma de prazer, mas não ocorre assim, no caso de uma pessoa em análise, uma vez
que a compulsão à repetição na transferência despreza o princípio de prazer. O paciente
se comporta com infantilidade, mostrando que os traços de memória reprimidos da
infância não estão sujeitos, sendo incapazes de obedecer ao processo secundário. A
compulsão à repetição se põe como obstáculo ao tratamento por ser um instinto – que é
um impulso – a que foi obrigado a se abandonar, ou seja, é a expressão da inércia
inerente à vida orgânica historicamente determinado.
129
que, em ambos os casos, a fronteira entre o ego e o objeto ameaça desaparecer pelo
sentimento patológico de completude. Em seguida, afirma que algumas das coisas mais
difíceis de serem abandonadas – por proporcionarem prazer – não são representantes do
ego, mas sim, do objeto. E essa parece ser a primeira objeção do pensamento freudiano
à ideia da toxicomania como patologia relacionada ao narcisismo contemporâneo, mas
ainda precisamos acompanhar em que medida os processos implicados no complexo de
Édipo e na sua dissolução no que tange à vinculação do sujeito às drogas.
Na psicanálise freudiana, os seres humanos desejam ser felizes e assim querem
permanecer. Há uma expectativa de completude na fantasia da felicidade. Para o autor,
essa empresa apresenta um aspecto positivo, que visa a uma ausência de sofrimento, e
um aspecto negativo, representado pela experiência de intensos sentimentos de prazer.
Em última análise, todo sofrimento nada mais é do que sensação. Só existe na medida
em que o sentimos, e só o sentimos como consequência de certos modos pelos quais
nosso organismo está regulado.
Freud (2006b) inclui as substâncias tóxicas no rol das medidas paliativas para
suportar os sofrimentos da vida, juntamente com as atividades científicas, uma vez que
ambas as medidas funcionam como satisfações substitutivas. Ele destaca que os seres
humanos buscam a felicidade pela ausência de sofrimento e de desprazer por um lado e,
por outro, a experiência de prazer. O recurso ao tóxico seria, então, o mais grosseiro,
porém o mais eficaz desses métodos para se alcançar sensações diretas de prazer,
alterando a sensibilidade e incapacitando para receber impulsos desagradáveis.
paralelamente, a arte e a ciência funcionam como técnica de sublimação dos instintos.
Assim, a sublimação dos instintos seria outra técnica para afastar o sofrimento,
cuja tarefa é a reorientação dos objetivos instintivos, de maneira que elidam a frustração
do mundo externo. Contudo sua intensidade é mínima quando relacionada aos métodos
considerados mais grosseiros ou menos altos.
Freud (2006b) inclui o amor como “técnica da arte de viver”, o qual consiste em
amar e ser amado, uma atitude psíquica considerada natural para o senso comum: o
amor sexual, que proporciona a mais intensa sensação de prazer, mas mostra que o lado
fraco dessa técnica é que o ser humano se vê indefeso quando há perda do ser amado.
Ele esclarece que a felicidade possível é um problema da economia da libido do
indivíduo, que não se aplica a todos: cada um tem de descobrir por si mesmo seu modo
específico de ser feliz. Essa sua constituição psíquica desempenhará papel decisivo,
133
latusas e cujo resto oriundo do saber da ciência é colocado à venda no mercado do gozo
das drogas, com o mesmo objetivo de todos os outros objetos produzidos pela ciência:
produzir o estado de bem-estar geral do corpo.
136
CAPÍTULO 4
que o sujeito entre na simbolização e algo de primordial, que não fora simbolizado,
retorna no real sob a forma das alucinações.
A autora ensina que no Seminário 4, A relação de objeto, Lacan (1995) discute
os conceitos de frustração, castração e privação, para destacar a importância do papel do
significante na relação com o objeto, uma vez que ele recria as situações, mas não as
reproduz.
No Seminário 5, As formações do inconsciente, Lacan (1999) discute a função
do significante no inconsciente, partindo do prazer do chiste e formula questões acerca
do Complexo de Édipo, do Nome-do-Pai e da transferência; no Seminário 7, A ética da
psicanálise, Lacan (1991) critica a moralização psicológica e racionalizante, cujo
modelo exclui o sujeito, numa proposta universalizante, que se aplicaria a todos. E é
também Mrech quem frisa a importância de se considerar o sujeito, de se lidar com o
Nome-do-Pai, agora definido como a função do pai morto, do pai simbólico, que é da
ordem de um lugar vazio.
Esse é o ponto em que a psicanalista (MRECH, 2009b) ressalta o passo de Lacan
rumo à ética do desejo: desejar implica em arcar com as consequências do que se deseja.
Lacan parte da hipótese freudiana do inconsciente, supondo que a ação do
sujeito tem um sentido escondido, que expressa uma ética do desejo, implicando o
sujeito naquilo que ele faz.
No Seminário 8, A transferência, Lacan (1992a) analisa o circuito transferencial
e ressalta que se trata de uma forma mítica (relacionada com o inexplicável do real) de
lidar com a transferência, em cuja base se encontra o amor.
No Seminário 10, A angustia, Lacan (2005) polemiza a lógica da compreensão,
que é sempre prévia e enganosa, e a angústia é tratada como o que emerge diante do que
o sujeito quer saber.
estruturado como uma linguagem e, então, já não é mais freudiano, assentando as bases
para o seu ensino. Esse novo ensino traz uma modificação quanto à concepção de Outro,
em relação ao primeiro ensino: passa a se interessar por algo que se inscreve por meio
do Outro, na e pela linguagem, caracterizando esse estudo pela intersubjetividade. Essa
fase do ensino de Lacan é marcada pela passagem do grande Outro para o pequeno a
(objeto a).
Mrech lembra que, no Seminário 11, Lacan critica as concepções de
inconsciente que privilegiam o ser, entificando-o como ser presente a si e afirma que
Lacan propõe uma concepção mais estruturada de sujeito do inconsciente, revelando
que a análise é uma ação que tem o peso de um ato, e não mais, de uma ação qualquer.
A estudiosa de Lacan difere ato de comportamento, uma vez que o ato traz em seu bojo,
a estrutura da linguagem e enfatiza que o encontro com o real é sempre falhado,
havendo um descompasso entre esse real e a linguagem, pois o real está para além do
autômanton, do retorno, da volta, da insistência dos signos pela via dos quais nos vemos
comandados pelo princípio do prazer – o real é o que está por trás do autômaton – e o
sujeito é visto como resultado da soma dos efeitos de fala.
A autora explica que, no Seminário 16, De um Outro ao outro, Lacan (2008)
discute o conceito de mais-gozar baseado na mais-valia de Marx, propondo a noção de
mercado de saber e assinala que a ciência afetou a concepção de saber, gerando esse
novo mercado, que só existe porque o saber se tornou uma mercadoria. E ela acrescenta
que, no Seminário 17, O avesso da Psicanálise, Lacan (1992b) redimensiona suas
formulações sobre a fala e a linguagem, situando o discurso como um laço social
determinado pelo gozo e sobre o gozo. Os discursos funcionam como aparelhos de
linguagem que estruturam o campo do gozo, criando modos de enlaçamento estáveis
com o outro, aos quais ele denominará de os quatro discursos: o discurso do mestre, o
discurso da histérica, o discurso do universitário e o discurso do analista.
Mrech (2009b) explica que a concepção lacaniana de discurso ultrapassa os
limites da palavra e dos enunciados que com ela proferimos: trata-se de um discurso
sem palavras. E completa, lembrando que Lacan (1992b) retoma, no Seminário 17 o
projeto freudiano pelo avesso, propondo o discurso sem palavras, porque, assim, ele
subsiste em certas relações fundamentais.
A autora destaca também que, no fim do Segundo Ensino, Lacan (1982) revela
que a realidade é abordada com os aparelhos de gozo, no Seminário 20, Mais ainda, no
141
Seminários RSI, O Sinthome, L’Insu que sait de l’une bévue s’aille à mourre, Le
moment de conclure e na Dissolution, seminários centrados no nó borromeano. Lacan
parte da vertente imaginária e simbólica para a vertente que se volta para o registro do
real, a letra, o escrito e o objeto a. Para tanto, introduz o conceito de alíngua, mostrando
que a linguagem e a língua servem como instrumentos de gozo, que provoca distorção.
A lacaniana destaca que, no Seminário 23, O sinthoma, Lacan (2007) critica o
conceito de sujeito proposto por ele mesmo anteriormente, dizendo que o sujeito deve
ser considerado também no plano do corpo. Nesse seminário, seu autor propõe o
conceito de falasser ou ser na fala, indicando que o falasser, além das cadeias
significantes, se prende ao próprio circuito de gozo. Essas propostas de Lacan (2007)
implicam um novo conceito de sintoma, o Sinthoma, esclarecendo que o conceito de
sintoma em Freud foi estabelecido a partir dos sentidos e das significações dos quadros
clínicos de seus pacientes. O sinthoma lacaniano, por sua vez, se baseia em Joyce,
revelando que, na cultura atual, os sujeitos não se pautam tanto pelos sentidos, mas sim,
pelo gozo.
A linguagem e a língua são considerados como aparelhos de gozo, que é o
próprio aparelho de linguagem, que Freud, em seu Projeto de 1895, apresenta como
sendo o próprio aparelho psíquico, que se estrutura na relação com outro aparelho
psíquico ou aparelho de linguagem. O conceito de lalíngua, em Lacan, se vincula ao de
letra, como objeto a. O significante é da ordem do simbólico e a letra corresponde ao
representante da representação e se vincula ao gozo.
Mrech (2009a) esclarece que Lacan determina que o Outro, da dimensão do
todos, do universal, está vinculado ao simbólico, identificado no passado do sujeito e se
relaciona com a cultura e com o mito familiar. Entretanto a preocupação de Lacan com
o objeto a o leva a se preocupar com a letra, que é da dimensão do particular e do
singular. A letra, então, vincula o sujeito ao presente e ao futuro, e não, ao passado
presentificado na história familiar do sujeito.
No seu Terceiro Ensino, Lacan inverte sua concepção de sujeito, que passa de
uma perspectiva universalizante para a perspectiva do singular do sujeito e introduz a
máxima, segundo a qual a relação sexual não existe. Essa máxima revela que os
referenciais da cultura não são suficientes para a leitura do que se passa com o sujeito.
Assim, Lacan parte para o aprofundamento das modalidades de gozo do sujeito,
143
mostrando que a linguagem, para além do sentido, serve ao gozo do sujeito e destaca
que a linguagem e a língua são atravessadas pelo gozo, pela alíngua.
O conceito de alíngua estabelece outros parâmetros para a atuação do
inconsciente e o Terceiro Ensino cita os jogos que as crianças fazem com a linguagem,
construindo formações linguageiras singulares, como pertencentes ao objeto a. Nesse
estudo, seu autor refere-se também aos neologismos e os sons criados pelas crianças
com o objetivo de brincar. O gozo, no Terceiro Ensino, está associado ao registro do
real, uma vez que ambos estão fora da vertente do sentido, o que significa que não
podem ser explicados pela linguagem, pelo sentido que implica significação.
O objeto a, instituído por Lacan evidencia os furos do real, onde o gozo se
inscreve e que está presente nos circuitos de simbolização e nos acontecimentos de
corpo. Esclarece Mrech (2009a) que, nesses momentos, a natureza produz algo que
ainda não foi simbolizado e o sujeito se utiliza da linguagem e da língua para gozar, o
que Freud já havia identificado em relação aos circuitos sadomasoquistas da libido.
A autora recorre a Miller para expor que o real não pode ser acessado, pois ele
sempre escapa à linguagem, ao se tecer à revelia do saber. A linguagem e a fala não dão
conta do real do sujeito, sendo insuficiente para dizê-lo. E continua, esclarecendo que,
no Terceiro Ensino, esse real é o do inconsciente, e não, o do saber sobre o real. E não
se trata do real da ciência nem da realidade concreta, mas sim de um real que é de outra
racionalidade, de uma ordem mais ampla e mais profunda.
Miller (2009), ao sistematizar o Terceiro Ensino de Lacan, esclarece que a
história do sujeito que se relaciona com o Édipo não pode acessar o inconsciente
simbólico, que é o inconsciente freudiano e o lacaniano em seus dois primeiros ensinos.
E o seguidor de Lacan explica que esse, no Seminário 23, O Sinthoma (2007), realiza a
crítica da história como histoeria e a da linguística como linguisteria, criando esses
neologismos para designar aquilo que é da dimensão do sentido e que se põe em relação
ao inconsciente transferencial. A história pressupõe uma simbolização primária, cuja
negação assume a forma do recalque própria à histeria.
O psicanalista destaca que Lacan estudou o inconsciente a partir da psicose,
onde não há recalque, mas sim, forclusão simbólica, o que implica falta de simbolização
e de sentido, característica do inconsciente real. E o estudioso continua, explicando que
o verdadeiro faz referência ao inconsciente transferencial e o real é relativo à coisa
144
contemporaneidade que empreendo este estudo das concepções sobre a droga e sobre o
sujeito que faz uso dos tóxicos, tal como inscritas na Psicanálise.
Lacan (2008a) pôde prever os efeitos dos processos sociais engendrados pelo
capitalismo e apontou novos caminhos a serem trilhados pela Psicanálise. A psicanálise
lacaniana, cujo início foi a releitura de Freud, afasta-se cada vez mais dos conceitos
freudianos, chegando ao que Miller nomeou psicanálise líquida, centrada no conceito de
Real e Gozo como princípios fundamentais do inconsciente.
Freud representa a Modernidade, onde havia dominância do discurso do mestre:
pai, professor, autoridades religiosas e demais autoridades. No discurso do mestre, há o
senhor e o escravo na relação. E Lacan representa a pós-Modernidade, onde pai, mãe e
filhos têm o mesmo espaço. As estruturas familiares não atendem mais ao modelo
freudiano de família, na qual se desenvolvia o complexo de Édipo. Os sintomas
contemporâneos são novos, não porque não existiam antes, mas porque a figura
masculina não é mais dominante.
Um dos grandes pilares do estudo das toxicomanias pela via da Psicanálise situa-
se, principalmente, a partir do discurso do capitalista, proposto por Lacan (2008a), em O
Seminário – Livro 16, De um Outro ao outro. Nesse estudo, seu autor descortina as
bases da sociedade contemporânea, revelando que ela se encontra pautada em um
mercado de gozo, e não mais, no da simples produção de determinados produtos. No
passado, a produção e a distribuição dos produtos reinavam soberanas. Agora, há um
mais além desses processos: é preciso que os sujeitos gozem com os produtos que
compram e com os saberes que eles adquirem. E é para esse mercado de gozo e para
esse mercado de saber que Lacan (2008a) chama à atenção.
No contexto desse chamamento, identificamos a ilusão de completude que o
saber sobre as drogas pode trazer, assim como o encontramos inscrito nos pressupostos
e nas diretrizes para prevenção, tratamento, recuperação e reinserção social do
dependente de drogas, nas políticas públicas sobre drogas. Essa ilusão apenas aprofunda
o problema social que se ambiciona solucionar, como demonstra Souza (2008), ao
abordar a violência juvenil como produção histórica, que acontece a partir das próprias
políticas e dos serviços oferecidos para os jovens que cometem delitos.
O politicamente correto é o que se anuncia, por trás do discurso da tradição,
travestida de ambientalismo, de tolerância, de inclusão e de outros semblantes mais
(simbólicos e imaginários).
147
Lacan (2008a) refere-se a uma filosofia que define o prazer como uma relação
de bem-estar de tom correto com a natureza, trazida pelo “sem excesso”. Mas alguns
prazeres saem desse tom correto, fazendo funcionar de maneira pervertida tudo o que é
excesso. O psicanalista reflete sobre a possibilidade de que isso traga problemas para a
empresa capitalista, devido ao “sem excesso de trabalho” e conclui que não, porque o
homem moderno tem de dar um “duro danado” para ter o “sem excesso de trabalho”. A
recusa do trabalho coloca-se como um desafio em nossos dias e foram os meios de
produção que condicionaram a prática desse prazer. Em suas palavras, “A empresa
capitalista, para designá-la nos termos apropriados, não coloca os meios de produção
a serviço do prazer.” (LACAN, 2008a, p. 107).
A exclusão do gozo é responsável pela recusa do trabalho. O objeto a, noção
básica no Terceiro Ensino de Lacan, está em relação com o gozo. E a repetição desse
gozo se situa no limite do saber, que é o gozo do Outro, pela intervenção do
significante. Popularmente, instinto traz a ideia de um saber, faz com que a vida
subsista. O princípio do prazer em Freud é essencial ao funcionamento da vida e,
embora mantenha a tensão mais baixa, ele relaciona-se com a pulsão de morte.
O que está no inconsciente é o saber ancestral que faz com que a vida se detenha
no sentido do gozo. A relação entre saber e gozo é primitiva. O saber é um tipo
privilegiado de gozo, que é a perda do gozo sexual – a castração – enquanto o gozo
sexual vem curto-circuitar a droga do toxicômano, segundo Santiago (2001a) .
O objeto perdido é o mais-de-gozar e a hiância, o buraco aberto em alguma
coisa, que não se sabe se é a representação da falta em gozar. O mais-de-gozar está
relacionado com o conceito de mais-valia em Marx: o mais-de-trabalho paga o gozo.
Esse mais-de-trabalho é o que o toxicômano recusa, como substituto ao gozo sexual.
Então, o gozo é pago por meio do sacrifício do corpo, que paga pela demanda do
próprio sujeito, em relação ao gozo da droga como artefato. Essa relação é mostrada a
partir da teoria dos conjuntos que traz em si a lógica matemática da função do discurso
do analista, segundo a qual, a verdade não está no Outro, mas está naquilo que
corresponde à função do objeto a e o Outro não responde nada ao sujeito. O seu esteio
está na sua fabricação como objeto a, diante do sujeito – ele mesmo – que não é a
verdade, mas corresponde ao seu equivalente: ao não gozo, à miséria, ao desamparo e à
solidão.
148
instalado na doença, tratando-o da maneira como lhe convém. Segue o autor expondo
sobre a estrutura da fala entre demanda e desejo, como materialização daquilo que deve
ser escutado pelo médico, na demanda do sujeito. Ele chama de fala epistemo-somática
o efeito do progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo e, nessa
relação epistemo-somática, fica excluída a dimensão do corpo em seu registro
purificado.
Santiago (2001b), em Lacan e as toxicomanias, esclarece melhor sobre esse
registro purificado do corpo, relacionando-o com a perda da posição tradicional do
médico de outrora. Ele evoca a arqueologia de Foucault, para lembrar que o discurso
médico sofreu uma crise ética, a qual está presente no discurso de Lacan, a partir da
ideia de que o olhar é a última fonte epistêmica do nascimento da medicina
anatomopatológica, porém o argumento de Lacan (2008b) vai além disso: ele examina
as exigências determinadas pelo aparecimento de um homem na era da ciência, que
suscita novos poderes de investigação e de pesquisa, cabendo ao médico enfrentá-los.
Santiago continua e destaca que Lacan (2008b) esclarece que o saber médico
avança a partir de uma relação epistemo-somática como o maior indício das incidências
do progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo. Assim, a relação
epistemo-somática remete ao registro do corpo, visto como mero organismo. Esse olhar
exclui a dimensão do gozo do corpo, ao passo que a psicanálise lacaniana está na
posição inversa, resgatando o sujeito e o corpo.
O último ensino de Lacan possibilita que se pense nas vertentes de gozo
relacionadas ao contexto dos trabalhos de “recuperação de dependentes químicos”,
porque o saber não se encontra apenas associado ao desejo de saber, mas também, à
recusa de saber. O médico e o terapeuta, em sua relação com o paciente, podem ver-se
diante dessa recusa em saber, em consequência da posição que ocupam diante da ciência
na contemporaneidade.
Para Lacan (2008a), o lugar do Outro precisa intervir, porque é o campo em que
se localizam os excessos de linguagem, onde está a marca do sujeito, que escapa ao seu
domínio e é nesse campo que se faz a conjuntura com o polo do gozo.
A propósito do princípio do prazer Freud o associa como uma barreira ao gozo.
O prazer se faz a partir do princípio da menor excitação, o que faz desaparecer a tensão,
e mantém distância do gozo, que é da ordem da tensão, do forçamento e do gasto. O
gozo começa quando há dor e é somente nesse nível de dor que algumas partes do
151
seja, o chamado capital variável equivale ao que é devolvido ao trabalhador sob a forma
de salário e a mais-valia é apropriada pelo capitalista sob a forma do lucro.
Assim, se encontraria depurada a fonte mesma das relações sociais de produção
capitalista, no interior das quais o lucro aparece como o valor produzido integralmente
pelo labor dos trabalhadores enquanto que, para os economistas clássicos, o lucro é
percebido como uma renda irredutível ao fator valor-trabalho.
A novidade introduzida por Lacan (2008a), quando retoma a teoria do valor, é a
afirmação de que todo discurso é capaz de articular certa configuração da renúncia e,
principalmente, uma extração do gozo, em geral, que, nesse âmbito, faz aparecer o
mais-de-gozar. Por conseguinte, há uma homologia efetiva entre esses dois registros – a
mais-valia e o mais-de-gozar –, e não apenas, uma simples relação metafórica.
Em torno desse, fundamenta-se o essencial da teoria de Lacan sobre o objeto da
pulsão, a saber, uma função inseparável da definição de gozo como satisfação da pulsão.
No fundo, essa vertente do objeto a concerne à renúncia ao gozo, efetuada pela
satisfação pulsional assim delimitada. O mais-de-gozar circunscreve essa renúncia sob a
égide do efeito de um discurso. A renúncia ao gozo, em si mesma, torna disponíveis
diversas manifestações do mais-gozar no mercado da civilização.
Lacan (1987) situa o sujeito pela sua relação com o saber e demonstra a
ambiguidade dessa relação, que diz ser a mesma que manifestam os efeitos da ciência
na contemporaneidade.
Ora, esse sujeito que deve saber o que faz, ao menos segundo
se presume, não sabe o que, de fato, nos efeitos da ciência, interessa a
todo o mundo. Ao menos assim parece no universo contemporâneo –
onde todos se encontram em seu nível, portanto, quanto a esse ponto
de ignorância. (Lacan, 1987, p. 808).
Se a droga pode servir à satisfação, isso acontece porque essa última está aberta,
por sua natureza mesma, a toda espécie de saída possível. A abordagem clínica
propriamente lacaniana da droga sustenta-se no fato de que a pulsão pode se satisfazer
com um objeto nocivo ao indivíduo. Lacan expõe justamente o paradoxo da satisfação
extraída de um objeto, a de que a investigação científica limita-se a reiterar, de forma
monótona e indefinida, a nocividade tóxica para o organismo. Esse paradoxo consiste,
pois, em que o sujeito não procura, forçosamente, um objeto que lhe traga o bem. A
indiferença quanto ao objeto coincide com a definição do gozo como satisfação da
pulsão, que solicita, necessariamente, a presença do corpo, concebido como uma
estrutura secundária, exatamente porque nele está implicada a linguagem, e não, o
organismo.
Jeammet (2006) lembra que a passagem ao ato, como observada no agir com
adolescentes, no trabalho de uma equipe multidisciplinar – composta por psiquiatras,
psicólogos e psicanalistas – observou que, na adolescência, as chamadas “patologias do
agir” são como uma organização intrapsíquica semelhante que pode corresponder a
destinos diferentes. Alguns fazem de sua relativa fragilidade o motor de uma evolução
aberta, que autoriza a valorização de suas potencialidades, Outros, ao contrário,
afundam-se num destino marcado por repetição, masoquismo e autodestruição.
Para o autor, o que contribui para essas diferenças de destino é a resposta do
ambiente e do papel que a realidade externa representa, podendo essa resposta entrar em
ressonância com partes da organização interna oposta. Ele destaca que essa constatação
levou a equipe a relativizar a noção de estrutura aplicada à organização intrapsíquica. A
noção de estrutura só se aplica às organizações mais extremas, no sentido da patologia.
Entre o patológico e o considerado normal, existem possibilidades de uma evolução que
deixa a realidade externa relativamente aberta durante um longo período que excede
muito além o início da adolescência. Assim, o manejo da realidade externa ganha mais
valor como auxiliar do aparelho psíquico.
O texto de Jeammet (2006), abordado aqui, a respeito da passagem ao ato na
adolescência, refere-se ao objeto mau, que o sujeito escolhe pela possibilidade limitada
de perdê-lo, enquanto esse está sempre à mão, presente, não sujeito às intempéries dos
objetos fálicos, especialmente os sexuais, considerados por esse autor como objetos
bons. Esse princípio da escolha da droga como objeto mau, implicado na passagem ao
155
ato do adolescente é o mesmo responsável pela segregação interna do sujeito que faz
uso metódico da droga como solução para o insuportável da invasão do desejo do Outro.
Com efeito, a adesão profunda do toxicômano à droga não pode se explicar
senão pelo corpo submetido à ação do significante e inseparável do gozo. Abordar a
toxicomania sob o ponto de vista ético do gozo do corpo, como sugere Lacan (2008b),
certamente, leva a concebê-la como um modo particular de satisfação, distinta da
dependência biológica.
Esse modo de satisfação que cativa alguns sujeitos é considerado uma tentativa
de enfrentar as perturbações do gozo do corpo. Diante do corpo inseparável do gozo, a
toxicomania poderia ser vista como um mais-gozar particular, correlativo a uma
mudança operada pela ciência no real. Assim, não poderia ser abordada do ponto de
vista puramente policial.
O dependente químico sofre de uma compulsão determinada pela marca, pelo
Um, que se revela na repetição, pela facilitação trilhada, com base no princípio de
prazer que é regido pela lei do menor esforço. Freud explica o princípio do prazer a
partir dos conceitos da termodinâmica, no Projeto de 1895. E a mola dessa compulsão é
a pulsão de morte que, desde Freud, se põe como um para além do princípio de prazer,
como uma fruição, como no mais-de-gozar proposto por Lacan em seu Terceiro Ensino.
No Terceiro Ensino de Lacan, a droga se põe no lugar do significante esvaziado
de sentido e representa a recusa do Outro, fundando o afastamento do sujeito em relação
ao desejo do Outro e revelando o gozo do corpo, inscrito no real. Embora não tenha
realizado um estudo específico sobre o tema das drogas, desde o seu período pré-
psicanalítico, já apontava para a questão das toxicomanias como sintomas do sujeito. É
dessa concepção pré-psicanalítica sobre a droga, inscrita no primeiro ensino de Lacan,
que passo a tratar agora.
Lacan (2008a) resgata em outras bases as considerações freudianas, segundo as
quais o sujeito não quer curar-se, o que Freud denominou de demanda sobre os
benefícios secundários da doença, fazendo com que Lacan, em seu Terceiro Ensino,
estabeleça uma crítica relacionada a uma concepção de saber que privilegia o simbólico,
ao constatar que o saber pode ir contra o próprio sujeito, levando-o a permanecer
atrelado aos benefícios secundários da doença. O saber não alcança o registro do real,
que sempre escapa. O real se caracteriza pela exclusão do sentido e não depende do
saber para se tecer e atinge o sujeito sem que ele o saiba, embora sofra os seus efeitos.
156
A linguagem e a fala não dão conta de dizer o real do sujeito, que real escapa ao
sentido. As leis simbólicas são construções sobre o real, e não, o real que, para a
Psicanálise, é o real do inconsciente e não se confunde com o real estabelecido pelo
saber, pela linguagem e pela fala. O real da Psicanálise não coincide com a realidade
concreta nem com a realidade instituída pela ciência e a racionalidade de Lacan vai
além do simbólico e do imaginário, alcançando um inconsciente real, que não se
confunde com o real estabelecido pelo saber, pela linguagem.
Segundo Lacan (1998),
fantasia, que Freud a confessa no seu Além do Princípio de Prazer, onde escreveu
metaforicamente que o gozo é masoquista e conduz a uma diminuição do limiar
necessário à manutenção da vida, definido como a mais baixa tensão necessária a essa
manutenção. Ele aponta que também é possível cair abaixo desse, quando começa a dor,
tendendo para a morte, mas que ocorre aí uma ambiguidade: “[...] por um lado, a pulsão
de morte, teórica, e por outro, um masoquismo que é apenas uma prática muito mais
astuciosa (...) do gozo.” (Lacan, 2008a, p. 111).
A função do gozo é uma relação com o corpo baseada numa exclusão que é
também uma inclusão. A topologia do gozo é a topologia do sujeito. É ela que o sujeito
adia. Daí advêm algumas questões: Qual o lugar do sujeito em relação ao gozo? Ele é
senhor ou só existe por meio do gozo? É escravo do gozo? Todo acesso ao gozo é
comandado pela topologia do sujeito que cria a estrutura do gozo, como práticas de
recuperação que não são do gozo, mas sim, da sua perda. Dessa perda, surge o desejo de
saber, do qual o toxicômano não participa. O parceiro sintoma do toxicômano é a droga,
inscrita no Outro como significante de sua recusa quanto ao fato de não haver relação
sexual.
Santiago (2001a) esclarece que a droga do toxicômano vem pontuar a recusa do
Outro sexual, por parte do sujeito, que busca na droga uma espécie de sutura da divisão
do sujeito contra si mesmo. A droga, para o autor, é um objeto que funciona como uma
prótese reparadora dessa divisão, implicada no fato de que não há relação sexual. O
sujeito escolhe a droga como objeto de seu mais-de-gozar como um método de curto-
circuitar a relação com o Outro sexual.
No Seminário 16: De um Outro a outro, Lacan (2008a) aborda a questão do Um
em sua relação com o Outro, fundamental na abordagem da toxicomania, em seu
Terceiro Ensino. Ele ensina que a abordagem do Um é o mais difícil. O Um é o traço
unário de Freud, rotulado por identificação. E no traço unário reside o essencial do
efeito do que o analista, no campo em que lidam com o sujeito, chama-se de repetição e
está ligado de maneira determinante a uma consequência que ele designa como objeto
perdido. Ele reconhece tratar-se do fato de que o gozo é almejado num esforço de
reencontro.
passagem ao ato. Sobre a alíngua, deve incidir a escuta dos sujeitos, em busca de
compreender seus vínculos com a droga, no gozo encerrado no discurso sem palavras.
Santiago (2001a) aborda essa questão e mostra que o pensamento lacaniano não
admite teorias pós-freudianas sobre a toxicomania, como desgenitalização, com base no
conceito de relação de objeto. Essa perspectiva concebe que o toxicômano teria uma
fixação atípica à droga, como efeito de distúrbios no desenvolvimento libidinal, porque
o ensino de Lacan já derrubara o pressuposto, segundo o qual, a satisfação pulsional
estaria submetida aos estágios de desenvolvimento da libido. O autor lembra que as
teorias sobre a desgenitalização da libido são desconstruídas por Lacan, ao revelar o
ponto em que a relação de objeto desconhece a determinação simbólica do objeto e ao
reconhecer, nessa ruptura com o objeto simbólico, o papel da função fálica.
Segundo Santiago (2001a), para Lacan, não há objeto que suture o desejo sexual,
pois ele é indestrutível, porque seu objeto é plástico e nada pode eliminar a articulação
entre a sexualidade e a função significante. Pergunta-se, então, o que é a toxicomania,
que também não pode ser vista como uma categoria clínica autônoma? Conclui-se que
se trata da divisão do sujeito contra si. E o mesmo autor lembra que o gozo é o ponto de
disjunção entre Ciência e Psicanálise, uma dimensão excluída da ciência, que dá peso às
considerações lacanianas sobre a droga – é a demonstração de que os efeitos da droga
são solicitados pelo sujeito, como uma resposta ao insuportável da sua divisão que age
contra si mesmo.
Santiago chama a atenção para a função econômica da droga, lembrando que,
em Freud, o objeto é tomado como causa do desejo e, em Lacan, como mais-de-gozar.
O objeto da pulsão é uma função inseparável da definição de gozo como satisfação da
pulsão. Essa vertente do objeto a concerne à renúncia ao gozo, efetuada pela satisfação
pulsional e a civilização é o mercado do mais-de-gozar que a renúncia ao gozo
disponibiliza. Desse modo, a droga, como forma de satisfação pulsional, é uma tentativa
do sujeito de lidar com o gozo do corpo. E Santiago (2001a) destaca que a toxicomania
é um efeito da ciência, e não, uma estrutura clínica particular que funciona como um
substituto artificial das formas usuais do sintoma neurótico em sua incapacidade de
responder ao sofrimento.
O recurso à droga funciona como uma construção subjetiva auxiliar do sintoma
ou de retorno do recalcado. É uma tentativa de remediar a insuficiência da satisfação
substitutiva do sintoma, que serve de ponto de identificação para o sujeito. Trata-se de
162
um remédio ilusório que visa à unificação do sujeito dividido, uma vez que ele tenta
apagar a dor da divisão subjetiva.
Esse remédio, para Santiago (2001a), não opera em função de causa, mas sim,
no lugar da captação do gozo. Trata-se de um complemento à ordem imaginária. Assim,
a droga, como mais-de-gozar, tem o papel de condensar a identificação como
complemento imaginário e o sujeito se identifica a seus objetos. Entretanto essa
identificação é camuflada com o objeto enigmático.
O laço imaginário do sujeito com a droga constitui uma tentativa de resolução da
“discordância” por uma coincidência ilusória da realidade com o ideal. O recurso à
droga pode significar a busca de unidade do eu em sua exigência de liberdade e se trata
de uma tentativa de minimizar a incidência do Outro sobre o sujeito, com a imposição
da droga ao eu. Esse desejo de liberdade é encarnado pelo ato de se intoxicar, como
tentativa de remediar ou mesmo de reduzir a nada o campo de ação do Outro.
Martins (2009) estuda o recurso à droga nas psicoses, afirmando que é um
recurso que se constitui como uma tentativa de apaziguamento das agruras decorrentes
da foraclusão do Nome-do-pai. O pesquisador se apoia-se na etimologia da palavra
“recurso”, que remete à ideia de remédio. Esse recurso apazigua algumas manifestações
angustiantes da psicose, porém não é uma modalidade de estabilização que permita a
amarração dos três registros, tal como opera a suplência sinthomática.
Assim, conceituo o recurso à droga, neste trabalho, como um remédio ou
pharmakón (guardadas as possibilidades de que esse funcione como veneno, pelo
excesso) que o sujeito busca com o objetivo tamponar a angústia. O remédio não cura,
mas aplaca a dor, dando ao sujeito uma ilusão de completude, um equilíbrio psíquico,
proporcionado pelo apaziguamento produzido artificialmente graças ao recurso à droga.
O veneno opera a partir da pré-disposição do sujeito ao mais-de-gozar.
Santiago (2001a) recorda que Freud elaborou a metáfora do casamento feliz do
alcoolista com a garrafa como uma relação de fidelidade, a qual produziria um
obstáculo ao Outro, principalmente ao Outro sexual. A toxicomania visa à recuperação
do gozo que não passa pelo Outro e pelo corpo do Outro, como sexual. A droga é a
saída encontrada pelo sujeito para a angústia de se encontrar com o desejo do Outro e a
tentativa é de se afastar do Outro.
O autor considera o toxicômano cínico, porque sua maneira de lidar com o corpo
não passa pelo corpo do Outro, mas age diretamente sobre o seu próprio corpo e
163
reconhece que o gozo é uma perturbação do falante com o seu corpo. Assim, o
toxicômano é um cínico da era da ciência, porque ele concorda com esse mandamento
universal do gozo, na sua relação de devoção incondicional à droga. Entretanto o autor
destaca que o cínico não é canalha, pois ele não cria uma lei que justifique seu modo de
gozo e se satisfaz à margem, sozinho e sem intenção de demonstrá-lo.
O chamado “toxicômano”, então, antes de ser segregado pelo Outro, já se auto-
segregou internamente. É na perspectiva desse afastamento do Outro que o texto de
Jeammet (2006) aborda a passagem ao ato no período da adolescência, sugerindo a
segregação interna do sujeito. C
Esse autor explica o processo interno de segregação como sendo próprio da
adolescência, que já apontei como sendo o momento característico da entrada nas
drogas, embora não seja o único, especialmente, nas configurações sociais apresentadas
no Capítulo 2, sobre juventude e drogas, no qual foi abordado o tema do ponto de vista
sociológico.
Jeammet (2006) indica a adolescência como o momento em que os pontos de
apoio que asseguram os fundamentos da autonomia do sujeito são postos em questão,
quais sejam suas bases narcísicas e suas estruturas internas, que tiram a eficácia de seu
caráter diferenciado. Essa solicitação, na medida em que as condições da autonomia
estão mal asseguradas, empurram o sujeito a procurar no acabamento de suas
identificações, o complemento de força que lhe falta. As condições assim reunidas, por
um reforço dos processos de interiorização e de um despertar da “apetência objetal”,
levam o sujeito ao paradoxo, que traduz a dependência de objetos externos, reflexo
provável dos acasos, das interiorizações da infância e do transbordamento invasivo do
meio ambiente sobre o espaço interno da criança. Esse paradoxo só pode ser superado
com a ajuda desse mesmo ambiente. Na ausência de um ambiente satisfatório, ocorre o
surgimento dos chamados “transtornos do comportamento”, que se oferecem como uma
saída possível, por meio da qual o adolescente sai da passividade e da violência a que
fora submetido.
Assim, segundo Jeammet (2006), a adolescência é um período particularmente
propício ao agir, por razões ligadas à própria natureza das transformações dessa idade
que, como já foi demonstrado na contextualização contemporânea de juventude
anteriormente esboçada, não se resumem à puberdade e podem se estender até muito
além da adolescência.
164
O autor ressalta que há, na adolescência, uma dialética muito particular entre a
espacialidade e a temporalidade e argumenta que os adultos sempre respondem às
demandas do adolescente, com o verbo esperar, para que o tempo produza seus efeitos,
mas o tempo é justamente a confrontação da passividade. À temporalidade dos adultos,
o adolescente vai sendo tentado a responder pelo uso do espaço, ou seja, do agir, da
distância. Essa tentação o leva a experimentar encontrar um controle do espaço diante
da perda do controle sobre a temporalidade, que o remete à sua infância, quando era
preciso esperar até crescer. Mas, como no presente vivido na adolescência, ele já possui
um corpo que está se tornando adulto, pode pensar que não há necessidade de esperar.
Segundo Jeammet (2006), esse uso do espaço, na adolescência pode ser visto
como um efeito de uma aproximação relacional. Na adolescência, há a possibilidade de
se ter um corpo apto para fazer agir as pulsões, a genialidade e a destrutividade. E tudo
isso cria uma aproximação, em especial com os pais, por causa da sexualização dos
laços afetivos. Esse sentimento de aproximação e de espessamento da atmosfera se
reflete bem na atmosfera familiar, cuja leveza da infância dá lugar à tensão, fazendo
com que tudo toque o adolescente e levando-o a perder o jogo de cintura, como se lhe
faltassem margens para manobra.
No texto em questão, a tendência desse efeito de aproximação é o afastamento,
que afeta o uso do espaço, que passa a ser o quarto ou a rua e, num degrau acima, estão
as condutas de oposição. O espaço parece comprimido pela sexualização dos laços,
quando um segundo fator de aproximação da adolescência se mostra: é o momento em
que, chamado pela própria família a se tornar autônomo, essa possibilidade é
questionada. É aí que se articulam as problemáticas da infância, com as dificuldades de
estabelecimento das bases narcísicas e os conflitos da adolescência.
Jeammet (2006) afirma que o funcionamento familiar pode favorecer ou entravar
esse processo. O autor lembra que a crise da meia idade vivenciada pelos pais entra em
ressonância com a problemática da adolescência e favorece a confusão geracional,
perturbando os limites do adolescente. O mesmo acontece quando os pais atualizam nos
filhos seus conflitos não resolvidos com seus próprios pais.
No texto de Jeammet (2006), a passagem ao ato traduz uma espécie de colapso,
que pode ser estrutural (no caso de psicopatas), mas que pode ser passageira em outras
situações. Ocorre uma falha do aparelho psíquico ao cumprir essa função de
afastamento, graças ao apelo à realidade externa, para contra-investir essa realidade
165
droga, como símbolo desprovido de sentido, funcionaria como uma prótese química
para lidar com o fracasso do gozo fálico no ser falante. A droga encarna a insubmissão
sexual – serviço sexual ao Outro sexo e a droga seria uma tentativa de se inscrever
como sujeito diante do Outro.
Para esse autor, a prática metódica da droga não é o sintoma: esse tem a natureza
de mensagem e função de significante, enquanto aquela se institui como um (acting-
outs) ou passagem ao ato, que não tem caráter interpretável no sentido em que a busca
de felicidade do sujeito ocorre separado do Outro e, portanto, fora de sentido. O
toxicômano quer ser feliz sem o Outro, do seu próprio modo. O desafio do trabalho
clínico é abrir uma brecha na repetição ritualizada no ato toxicomaníaco.
O ato do toxicômano, como gesto cínico, conforme a proposição de Santiago
traduz a incredulidade do sujeito, diante das ofertas da civilização, o que provoca sua
adesão a esse modo de satisfação direta e imediata, a droga.
Segundo Miller (2009), no Terceiro Ensino de Lacan, é nesse real que se
inscreve o Um, que se refere ao sujeito conceituado como falasser ou como ser falante.
É desse ponto do percurso de Lacan que me interessa fazer a apreensão do sujeito em
sua relação com a droga, que não representa o desejo do Outro, mas o gozo do próprio
corpo.
169
CAPÍTULO 5
1 Educação contemporânea
lado, a angústia daqueles que entram pelo caminho do consumo de falsos objetos a
oferecidos pela indústria do consumo. Assim, os processos educativos têm a função de
regular o gozo, limitando o prazer para possibilitar o desejo.
Os estudos realizados pela Psicanálise apontam para o princípio básico dessa
disciplina, que é o de não olhar o sujeito por meio do seu rótulo. O sujeito que faz uso
das drogas não pode ser determinado pelo rótulo que simboliza sua prática de se
intoxicar. Antes de ser toxicômano, ele é um sujeito, cujo empuxo à intoxicação é
determinado antes do encontro com a droga e essa determinação é a mesma que se
reflete sobre o fracasso escolar, porque incide sobre a linguagem como instância do
Outro.
A recusa do Outro implica abandono da linguagem e a passagem ao ato de
intoxicar-se. Essa recusa da palavra, por si só, já deixa seus efeitos no processo de
formação do laço com a escola e com o professor, mesmo antes que o encontro com a
droga se faça. E, como mostram os resultados da pesquisa que aqui se apresenta, nos
casos em que o laço se estabeleceu de maneira satisfatória, pela transmissão do desejo
de saber, o encontro com a droga não consegue desfazer esse laço social, o que
contribui para que não haja uma vinculação maior do sujeito com a droga, tendo em
vista que ainda há laço social.
Para além da estrutura clínica do sujeito que faz uso de drogas, encontramos
aqui o núcleo em torno do qual se instala sua incompatibilidade com a escola – gerada
pela dificuldade de simbolização do sujeito – e com o professor – gerada pela recusa da
lei, das regras e da autoridade que se faz semblante na profissão docente. Trata-se de
uma segregação interna, imposta pela recusa do Outro. Assim, o aluno que faz entrada
nas drogas já se insurgiu contra a escola e os processos simbólicos que ela encerra.
Voltolini (2011) faz a crítica da educação, quando as instituições educacionais
subsistem, por intermédio da história, à revelia das mudanças sociais. Os discursos
oficiais afirmam a relação entre educação e sociedade, mas a escola, concebida como
parte fundamental do processo de socialização, fracassa nesse papel. O autor retoma
Freud, para levar à compreensão da nossa condição civilizatória, relembrando que a
civilização é uma condição de esforço contra a barbárie e, para completar sua
exposição, o autor recorre a Lacan (1992b), para lembrar que, quanto ao discurso
capitalista, cabe ao próprio capitalismo extinguir o laço social: “[...] o capitalista é
178
aquele cuja fórmula se ouve sempre: ‘espero não ter deixado nada a desejar’.”.
(Voltolini, 2011, p. 36).
E o próprio Voltolini afirma que o imperativo do gozo afeta a educação, cuja
função é introduzir o novo membro no processo de humanização e promover o laço
social. O impasse crucial da educação é a socialização e o autor pergunta se a educação
contemporânea socializa, já que ele percebe uma falha no processo.
pelas normas e possibilitado por novas tecnologias que geram novas formas de
repressão pelo Outro virtual.
Na contracultura do cientificismo e do consumismo, porém, reconhecendo-o
como poder dominante na sociedade contemporânea e, portanto, na constituição dos
sujeitos, a Psicanálise traz suas contribuições à Pedagogia. E o faz ao insistir que os
modelos não devem fazer parte da educação dos sujeitos que precisam criar e recriar os
processos educacionais. Tanto o professor quanto o aluno precisam definir-se e
redefinir-se a partir da sua criatividade, adotando novas formas de estar no mundo e
lidando melhor com sua própria singularidade.
mesmo fazendo uso de drogas. Eles construíram um laço social com a escola e esse laço
se mostra como um diferencial no nível de vinculação do sujeito com o objeto droga,
tendo em vista que esses não se entregam exclusivamente às drogas, conseguindo
manter certo laço também com o trabalho e com a família, o que não acontece com os
que abandonaram a escola. O próprio discurso dos sujeitos atesta a droga como causa do
afastamento social, mas os estudos mostram que a causa é anterior ao encontro com a
droga.
O que depreendo desses dados é que os sujeitos que permaneceram vinculados à
escola fizeram laço porque, em algum momento do processo, eles se “engancharam” no
desejo de outro, que fez a transmissão do desejo de saber. Nesse caso, pode ser que a
droga perdure, para o sujeito, como parte de seu funcionamento psíquico, mas a escola
e, provavelmente, a família e o trabalho também estarão presentes na vivência do
sujeito. Esse fato parece fazer toda a diferença. E a escola precisa realizar essa diferença
que consiste na transmissão do desejo de saber.
Entretanto usuários de drogas ou toxicômanos (como são comumente
considerados), esses “desenlaçados” da escola não são os únicos. Desenlaçados sociais
da escola são todos os sujeitos que figuram como objetos de políticas de inclusão,
sobretudo, daquelas que consideram os “doentes mentais” ou deficientes intelectuais.
Miranda (2011) lembra que o termo “criança problema” surgiu no cenário
educacional brasileiro, em 1939, usado por Arthur Ramos. Esse psiquiatra distinguia as
crianças “anormalizadas pelo meio” das consideradas “anormais” pela psiquiatria
organicista. O termo criança-problema é aplicado a todo desajustamento de conduta da
criança ao lar, à escola e ao currículo escolar, descrevendo-as como portadoras de uma
das múltiplas falhas de personalidade e de comportamento.
A escuta da conversação inicial com professores, realizada como parte desta
tese, revela que, na atualidade, os alunos considerados “problemáticos” compõem, junto
com psicóticos, bulímicos, toxicômanos, deprimidos, ansiosos, hiperativos, os sintomas
sociais da contemporaneidade. As crianças consideradas “atípicas” são classificadas
como anormais e a comunidade escolar aborda esses alunos como extraviados ou não
circunscritos no universo simbólico dos laços sociais aceitos culturalmente. Todavia
aquilo que parece ser culpa do aluno é sintoma do Outro. O sintoma social retira do
sujeito suas particularidades que lhe permitiriam uma inserção diferenciada e dinâmica
no mundo das trocas civilizatórias.
182
os processos de segregação interna e externa, impostos pelo próprio sujeito que lança
mão da prática da droga e pela sociedade (aqui incluindo a escola, como instituição
social) que propõe a “recuperação” de tais sujeitos, pela via da abstinência total às
drogas, mediante o afastamento dele do convívio social (recuperação em regime de
internação promovida por clínicas e comunidades terapêuticas), dificultando o processo
de implicação do sujeito no processo. Todavia estudos mais recentes em Psicanálise e
Educação mostram que há processos propriamente escolares e que, muitas vezes, dizem
respeito à relação professor/aluno, que colaboram com a exclusão escolar e social do
sujeito. A exclusão social dos usuários de drogas certamente passa pela escola e a
relação professor/aluno, que pode ser considerada um dos pontos mais fracos da escola
hoje, paradoxalmente, é o mais importante, diante do fracasso escolar e da inclusão
social do sujeito que faz uso de drogas, porque, na transmissão do desejo de saber,
realizada no cotidiano da escola, pode ocorrer a minimização dos processos de
segregação interna e externa a que se submetem e são submetidos, respectivamente.
Mas, para que haja inclusão, é necessário que se faça uma educação para o sujeito, e não
apenas, voltadas a grupos representados nas políticas como objetos do olhar do Outro.
Ferreira (2011) lembra que a vida de crianças, adolescentes e jovens, pais
e cuidadores, educadores, diretores e pedagogos é marcada por experiências que
impõem um esforço de elaboração na relação entre os campos da Psicanálise e da
Educação. E Ferreira historia a relação entre esses campos, a partir de Freud. Na esteira
das propostas de educação psicanalítica, aparecem, dentre outros:
- Ferenczi (1908) – propunha uma educação “psicanaliticamente esclarecida” e,
para tanto, propunha uma pedagogia que pudesse concretizar a profilaxia das neuroses,
deixando, sobretudo, de “cultivar” a negação das emoções e das ideias e se pautando
pelo julgamento consciente;
- Melanie Klein – idealizava uma educação baseada em uma “franqueza
irrestrita” que descobrisse os “espessos véus dos segredos” e protegesse as crianças dos
perigos da ignorância, liberando-as de repressões e culpas por perturbações, inibições
ou elementos mórbidos presentes nas mentalidades;
- Anna Freud – sonhava com uma pedagogia psicanalítica que consistiria em
extrair da Psicanálise, os fundamentos para educar um “ser já formado psiquicamente”,
considerando que a função da educação é reprimir os impulsos. Os elementos que a
Pedagogia traria da Psicanálise seriam: a possibilidade de criticar as formas de educação
184
pela angústia falseia a realidade e não prepara a criança para enfrentar a agressividade
da qual será objeto. Quando não há lugar para a palavra, essa perde o valor.
As crianças e os jovens passam ao ato, ao invés de falar, chegando a “passagens
ao ato” grave: agressões físicas, assassinatos e outros. Se não há palavra, a angústia vem
em seu lugar. No caso da prática da droga, o objeto de gozo vem como um pharmacon,
como um remédio para a angústia, ou seja, a droga vem tamponar a angústia gerada
pelo afastamento do desejo.
O texto que serve a essa discussão explica que os educadores, geralmente, jogam
com o controle no lugar do limite, com a proibição no lugar da lei e enfatiza que dar
limites não implica limitar a criança, mas sim, circunscrever um espaço do que é
possível ou do que é impossível. A autora lembra que os analistas sabem que a lei moral
comporta sempre um viés superegóico à transgressão e que a proibição feroz provoca
um empuxe feroz à autodestruição ou à destruição do outro.
Se a angústia vem, na falta da palavra, a droga vem em seguida, tamponando o
buraco do real, suturando a divisão do sujeito. E se, na escola, na relação
professor/aluno, a palavra é concedida, a angústia pode dar lugar ao desejo. Se não há
palavra franqueada ao sujeito, a rejeição ao Outro se personifica na figura do professor e
a aprendizagem, seja lá do que for, é rejeitada. Nesse caso, o lugar de resto é imputado à
droga, com a qual o sujeito se identifica.
Ferreira (2011) refere-se à ética do bem-dizer e do cuidar, que implica desfazer-
se da leitura moral que recobre a angústia da criança e do adolescente: encapetado,
avoado, cruel, impossível, difícil, hiperativo, com transtornos, com déficit, atrasado,
fracassado etc. É preciso oferecer a palavra e cuidar do que se diz a ele, dele, sobre ele,
por meio dele. A ética do cuidar leva em consideração a pluralidade e é atenta ao
singular de cada educador e de cada criança ou adolescente. Cuidar, para a autora, seria
oferecer apoio e amparo e não deixar a criança abandonada a seus recursos nem tirar
dela a possibilidade de empreender algo novo e imprevisto. O educador tem como
função despertar o interesse pela vida (desejo de viver) e pelo mundo exterior.
Não posso concluir este estudo sobre Psicanálise e Educação sem o relacionar,
no contexto do educar pela angústia, o lado que cabe ao professor, levando em
consideração que sua angústia, como a de qualquer um, procede do afastamento do
desejo de ensinar, com certo gozo sado-masoquista implicado na expressão “educar pela
angústia”, utilizada e desenvolvida por Ferreira (2011), como aquela que se traz da vida
para a escola.
O texto de Chassaing (2004), o mesmo utilizado para refletir acerca das políticas
sobre drogas no Brasil, no fim do Capítulo 2 deste trabalho, refere-se à situação da
França em relação à questão das drogas e faz uma crítica muito pertinente, pela via da
Psicanálise e que, certamente, contribuirá para minhas considerações finais sobre
educação e drogas na realidade brasileira. O texto expõe uma visão crítica em relação às
políticas francesas a respeito das drogas e das toxicomanias.
O autor cita Freud, que teria criado a Psicanálise, e Lacan, que propõe uma
psicanálise capaz de responder à subversão da posição do médico pelo avanço da
ciência. Na sequência, Chassaing cita o texto de Lacan, Psicanálise e Medicina (2008b),
para destacar que o uso ordenado do que chamamos de tóxicos não pode ser reprimido
do ponto de vista do gozo, numa dimensão ética. Ele propõe, então, que os usos de
drogas, na clínica devam ser assinalados na dimensão da linguagem e lembra que o
toxicômano se situa numa modalidade de gozo que recusa a linguagem.
E Chassaing (2004) continua, lembrando que o toxicômano é hipersensível ao
significante, por causa de sua abertura polissêmica, que o desestabiliza: ele se sente
temeroso quanto ao sujeito, o que equivale a dizer quanto ao seu desejo. O onanismo ou
o prazer solitário faz barragem ao gozo fálico. O autor esclarece se tratar de um prazer
de órgão, cujo único limite é a extinção do ardor pela morte do corpo. Para explicar a
diferença entre “recusa do falo” e forclusão, o autor a compara às psicoses, por seu
caráter de refutação, e não, de exclusão e conclui lembrando que se trata de um gozo
extralinguagem, que pertence ao corpo.
188
Chassaing afirma que a função de corte da droga permite recortar o corpo (as
percepções sensoriais), assegurando uma função energética e econômica. Nessa
condição, diferentemente da forclusão, o uso droga é uma manobra artificial para
suplantar o gozo fálico, mas não o substitui totalmente. O autor continua, ressaltando
que a prática da droga difere também do fetiche e da perversão, porque essa recusa, em
sua possibilidade de passagem ao ato, é a instalação da oportunidade de se apoderar de
um objeto exterior, socializado, o qual circula nos comércios e nos discursos.
E o autor, freudiano por formação, vê também a toxicomania como um sintoma
social e conclui que o gozo colocado em jogo nas condutas atuais – toxicomania, jogo,
perturbação das condutas alimentares – é uma exacerbação tornada possível
mecanicamente pela difusão dos objetos e das técnicas da ciência.
A atividade docente transformada em rito e a repetição destituída de sentido
podem ser consideradas como efeito de gozo proporcionado pela padronização de
conteúdos, procedimentos e avaliações, os quais são também técnicas da ciência,
implicadas na ação docente.
Desse modo, a docência é transformada em objeto de gozo, uma vez que o fazer
docente na contemporaneidade é um fazer de corpo presente, sem ser nem linguagem,
como um fazer que caminha rumo a um mais-de-gozar, quando há sempre um excedente
de trabalho, que já não é mais intelectual nem tampouco relacional, mas apenas, mera
repetição. Esse fazer torna o professor um “ensina-dor”, aquele que ensina a dor de um
fazer que só não é estático pelo seu movimento cíclico, repetitivo e que lhe permite uma
aproximação do sair do corpo encontrado no discurso psicótico.
Na educação que é “para todos”, a obrigatoriedade faz do aluno um objeto
sempre lá, como um resto da organização democrática da indústria do consumo, no
mercado do saber. A recusa do Outro ou da linguagem, citada nos estudos sobre
Psicanálise e Educação e apresentados neste capítulo, implica as várias formas de
passagens ao ato, que vem assustando tanto os professores quanto a sociedade em geral.
Essa mesma sociedade que se esqueceu do som que não ressoa mais, como uma voz que
fizeram calar com julgamentos morais realizados a respeito das singularidades do
sujeito. Assim, a moral moderna precisa ser destituída em favor de uma educação mais
ética, que possa resgatar o desejo de ambos, professor e aluno.
Se a droga se põe numa dimensão ética, como objeto de gozo do corpo, a mesma
ética não se aplica ao gozo produzido na escola, pela aula transformada em rito que
189
paralisa o corpo como um significante destituído do sentido que se torna mera repetição.
Se a droga como objeto de gozo do corpo não suplanta totalmente o gozo fálico, o
desejo de saber do sujeito pode ser resgatado, assim como o desejo de saber e de
ensinar, no caso de o professor se posicionar como alguém que pode criar novas
maneiras de implicar o sujeito (aluno) e de se implicar no fazer que realiza. A produção
do sentido é singular e nunca foi tão premente como em nosso tempo.
Mas esse não é o lugar do mestre deste tempo histórico, cujo saber foi esvaziado
pelo discurso científico e cuja maior ambição é estabelecer o controle sobre o
consumidor do mercado do saber. O resgate do desejo de saber do professor,
certamente, passa pela transmissão de tal desejo e o caminho menos provável é o mais
promissor e passa pela formação de professores.
Silva (2010) discute o lugar do psicanalista no trabalho com toxicômanos e o
trabalho de transferência realizado a partir do mito de Quiron, o curador ferido,
indicando que o Psicanalista estabelece seu vínculo com o paciente toxicômano a partir
de um “ser bom” o suficiente, demonstrado pela capacidade de lidar com o seu próprio
sofrimento e pela aposta do analista, em que o paciente terá condições de superar suas
dificuldades.
Assim, inferimos que, no caso do professor, para que se possa criar um laço com
o aluno que é usuário de drogas, é necessário que esse professor se desatrele dos
semblantes ou discursos sobre os quais se ergue a moral moderna, fazendo com que o
sujeito deslize sob o significante Mestre, surgindo como sujeito cindido, barrado, para
que uma relação de ensino/aprendizagem se estabeleça. O usuário de drogas, segundo a
perspectiva lacaniana, recusa o Outro social, recusando também as figuras de autoridade
socialmente constituídas e o professor é uma dessas figuras emblemáticas.
Na tentativa de enlaçar o aluno com a escola, o professor precisa deslizar desse
lugar, aparecendo como sujeito, ao lado do aluno, em uma relação horizontal, e não, em
uma relação verticalizada que é revestida geralmente pela posição moralista do
professor em relação ao vínculo do sujeito com as drogas. Essa posição moralista está
atrelada a uma concepção, segundo a qual o toxicômano se afasta da escola por causa da
droga.
Entretanto este estudo mostra que a droga apenas representa uma posição de
afastamento do Outro, na escolha que o sujeito faz pela droga como objeto de gozo.
190
CAPÍTULO 6
invés de falasser, porque foi mantida a nomenclatura utilizada pela instituição). Esses
quatro sujeitos vivem de forma segregada e se constituem os quatro casos em estudo.
Os resultados foram analisados pela via da psicanálise e, aqui nesta tese, será
utilizada a análise do discurso. Os discursos dos sujeitos participantes foram analisados
do ponto de vista do conteúdo discursivo.
Na comunidade terapêutica, as escutas foram gravadas, com autorização da
instituição e de cada um dos participantes, os quais concordaram em contribuir para esta
pesquisa. O material constituído pelos relatórios sobre as escutas realizadas nos grupos
de ajuda mútua e sobre as escutas gravadas e transcritas, na comunidade terapêutica, é
aqui analisado do ponto de vista do conteúdo dos discursos, pela via da psicanálise.
1 Objetivos
2.1.1 História de NA
Cleveland, em 1950. Nesse mesmo ano, um deles morreu e, em 1971, morreu o outro,
depois de ter organizado uma estrutura de serviço para o grupo que perdurasse para
além da vida dos fundadores do movimento. Esse fundador também escreveu obras
essenciais da literatura AA, que continuam a servir aos membros e à comunidade. Em
2007, o escritório de Nova Iorque registrava a existência de Grupos de AA em cerca de
cento e oitenta países, dentro dos quais participavam mais de dois milhões de
alcoólicos. O primeiro Grupo de AA no Brasil era formado por norte-americanos a
serviço no Rio de Janeiro e as reuniões eram em inglês.
Em 1953, alguns companheiros realizaram uma série de reuniões, a fim de
organizar o que chamaram de Narcóticos Anônimos e Alcoólicos Anônimos do Vale de
San Fernando. A primeira reunião documentada aconteceu em cinco de outubro de
1953. Jimmy K. escreveu diversas partes do Livreto Branco, sendo a mais famosa o
“Fim da Linha”. Desenhou o logotipo de NA e prestou serviço como voluntário até
1983 – ele viveu de 1911 a 1985, como adicto e alcoólatra. Dos seus 64 anos de vida, 36
foram vividos como membro de Narcóticos Anônimos, limpo e em recuperação.
No material de divulgação que pude adquirir no grupo, há uma definição de
adicção, cujo texto foi retirado do Quadro de Custódios do Serviço Mundial, durante o
ano da conferência de 1988-1989. Posteriormente, ele foi amplamente utilizado por
membros de NA, inclusive por membros envolvidos com os esforços dos comitês locais
de tradução. Mas o conceito de adicção não tem grande importância para o NA, a não
ser pela representação de uma doença incurável e progressiva, que termina sempre em
prisões, instituições e morte. Assim, o “adicto” que se torna membro do NA já se define
assim e decidiu por si mesmo manter-se longe das drogas.
2.1.2 A estrutura do NA
O Amor Exigente não constituiu um campo muito fértil para a minha pesquisa,
que visava à análise dos discursos dos participantes e a identificação dos casos para
estudo. Os participantes falavam, sim, mas eram muito direcionados aos temas das
reuniões, que trabalhavam sequencialmente os doze princípios do Amor Exigente. A
técnica de trabalho envolvia a comunicação, a título de informação, sobre textos legais,
como a organização dada pela Constituição Federativa do Brasil (1988), a partir das
idades cronológicas e suas respectivas responsabilidades, o Estatuto da Criança e do
Adolescente e outros a respeito do funcionamento dos órgãos governamentais de apoio
às famílias em situação de risco.
A dinâmica do programa nas reuniões não possibilitava a emergência do sujeito,
por causa do grande direcionamento de sentido, realizado pelos conteúdos dos discursos
apresentados pelos coordenadores e do ponto de vista da identificação de casos para
estudo. Essa se via prejudicada em consequência do princípio de sigilo, que impera no
grupo, assim como o de anonimato, no NA.
Os princípios do Amor Exigente, já apresentados anteriormente, se baseiam em
uma filosofia, segundo a qual a dependência química é fruto da falta de limites na vida
de crianças e jovens, que vivem em famílias desestruturadas ou com uma organização
que favoreça a entrada na droga. Desse modo, se propõe a restituição daquilo que faltou
200
na infância, em termos de limites e responsabilidades, tanto no que tange à vida dos pais
quanto à possibilidade de recuperação do filho que foi usuário de drogas. Assim, a
finalidade última do grupo é dar apoio às famílias de jovens em processo de recuperação
por uso indevido de drogas.
O NATA é um dos vários grupos de ajuda mútua, que funcionam como local de
triagem e encaminhamento dos sujeitos que se utilizam do recurso às drogas, para a
fazenda Senhor Jesus, comunidade terapêutica que funciona no interior de Goiás e que é
vinculada à Igreja Católica, recebendo os chamados “drogadictos” encaminhados tanto
pelo NATA quanto pelo Amor Exigente e por outros grupos.
Foi Pablo (conselheiro em dependência química da clínica terapêutica que
constituiu um dos campos dessa pesquisa) quem me possibilitou a participação também
nesse grupo, que ele próprio coordena. As salas onde se realizam os grupos do NATA
são de propriedade da Igreja Católica e funciona também como local de encontro e
grupo de apoio para os egressos da fazenda Senhor Jesus.
O grupo é grande, contando com a participação de vinte a trinta participantes por
reunião e há rotatividade entre os participantes. As drogas de uso identificadas nesse
grupo são, sobretudo, o crack, em segundo lugar, o álcool e, depois, a maconha, a
cocaína e outras drogas.
Participei de três reuniões, cujos relatórios encontram-se no Anexo. A qualidade
desse grupo, para efeitos da pesquisa, foi um contato maior com jovens usuários de
crack, uma vez que a calçada da própria igreja onde as reuniões se realizavam é lugar de
reunião dos meninos de rua, que ficam por ali, à espera de alimentos, esmolas ou
vítimas de seus assaltos, para a manutenção do vício. O crack, embora não fosse a única
droga de uso desses, se põe como a droga da maioria dos participantes que chegam à
sala em busca de recuperação.
As reuniões do NATA foram registradas sob a forma de relatórios, uma vez que
gravações não são permitidas nesses grupos como uma tentativa de resguardar a
privacidade dos participantes. Os dados contidos nos relatórios das reuniões foram
analisados juntamente com os dados obtidos nos demais campos que serviram a esta
pesquisa. Dos participantes, alguns poucos foram citados nos relatórios, porém não
201
serão caracterizados aqui, pois seus discursos não foram analisados nem citados aqui,
individualmente.
Enquanto participava das reuniões do Amor Exigente, fui apresentada por uma
pessoa de meu relacionamento a um conselheiro de recuperação de uma instituição que
se apresenta como clínica terapêutica e que fora recentemente inaugurada em Goiânia.
A apresentação foi realizada com o objetivo de que eu conquistasse a adesão
dessa pessoa à na minha pesquisa como participante. O conselheiro em recuperação na
clínica passara pelo processo de recuperação na Fazenda Senhor Jesus, vinculada ao
NATA, e se encontra em abstinência das drogas há 17 anos. A prática da utilização de
adictos em recuperação para auxiliar na recuperação de outros adictos resgata certa
concepção de discipulado, muito característica de instituições de recuperação cuja
filosofia é cristã.
No caso dessa clínica de recuperação, particular, de cunho científico e
multidisciplinar, a concepção de discipulado e de recuperação como missão foi
apropriada para a criação da função de conselheiro em dependência química,
desenvolvida por esse profissional. A ideia que norteia essa concepção de recuperação
como discipulado é a de que a experiência da recuperação gera a autoridade do
conselheiro e a concepção de recuperação, como missão, remete ao “ide” cristão, que
leva o discípulo a fazer seus próprios discípulos, colocando em movimento o discurso
do mestre.
Enfim, a apresentação e a proposta de participação na pesquisa foram realizadas
com sucesso e eu pude então identificar o meu primeiro participante para um estudo de
caso. Meu primeiro contato pessoal com Pablo (nome fictício do participante) ocorreu
na própria clínica terapêutica. O lugar é agradável, com bastante verde e uma casa
ampla, com refeitório e cozinhas separados da casa por uma área coberta, que se estende
por toda a lateral da construção. No interior, vários quartos duplos (suítes) e triplos e
apenas um individual. Há também uma sala de estudos e reuniões, uma sala de televisão
e um pequeno espaço, separado por divisórias, chamado de enfermaria, onde são
guardados os medicamentos utilizados para o tratamento dos pacientes com outros
transtornos e para o craving.
202
cada saquinho, havia por volta de quatro comprimidos de cores variadas, indicando se
tratarem também de drogas diversas que, segundo os pacientes, são “remédios para
abaixar a fissura (ânsia) pela droga”.
Posteriormente presenciei a distribuição dos medicamentos sendo realizada.
Todos os comprimidos dos saquinhos, devidamente marcados com o nome do paciente
e com o horário em que devia ser tomado, eram oferecidos para serem tomados como
uma de três ou quatro doses por dia, conforme a indicação do médico psiquiatra.
Destaco que o vínculo desenvolvido com Pablo, no decorrer do nosso primeiro
encontro (momento em que ocorreu a entrevista) foi determinante para a adesão dos
novos participantes. Considero importante uma abordagem que não ocorra como de um
lugar da autoridade: que o pesquisador se apresente como alguém que deseja saber não
sobre a droga, mas sobre o sujeito e o seu contexto. Entretanto é importante que essa
abordagem não seja preconceituosa e que o respeito à pessoa seja mantido em relação à
sua posição de sujeito participante da pesquisa, e não, como um objeto de estudo.
Na sequência à apresentação dos espaços da comunidade terapêutica, Pablo me
levou até o refeitório, onde estava sendo servido o lanche da tarde e onde havia seis
pacientes. O conselheiro em dependência química, então participante da pesquisa,
apresentou-me como uma amiga que passaria um período na casa com eles.
Em meio a risos e piadas, perguntaram se eu ficaria internada também, uma vez
que havia naquele momento, uma mulher que fora internada em caráter de urgência, em
função do abuso de álcool. A resposta não veio e foi possível que tivesse início um
vínculo relacional com os pacientes que não levavam em consideração para minha
posição como pesquisadora. Considero que esse fator contribuiu positivamente para
uma pré-disposição dos participantes em falar abertamente sobre suas experiências com
a droga e com os tratamentos a que foram ou estavam sendo submetidos.
As entrevistas foram gravadas e, depois, transcritas para posterior análise dos
discursos dos pacientes. As perguntas giraram em torno da relação do sujeito com a
droga, no contexto da família, da escola, do trabalho e dos relacionamentos com o sexo
oposto.
Num segundo momento, por ocasião da segunda visita à comunidade
terapêutica, o objetivo da minha presença ali foi comunicado aos pacientes, que tiveram
a oportunidade de se disporem ou não a participar da pesquisa. Do total de seis
pacientes que estavam em processo de recuperação, dois se ofereceram para participar
204
que aquela reunião era fechada para pessoas não adictas, em geral e principalmente para
profissionais e pesquisadores.
- P4 – homem de meia idade, acima dos 40 anos, aparentemente com a saúde
debilitada. Usa óculos e tem pele clara e cabelos lisos. Responde a processo criminal e
estava à espera de julgamento, esperando ser condenado, porém com uma pequena
esperança de que, a partir do grupo, pudesse conseguir se livrar da condenação ou
pudesse obter redução de pena. Relata esse homem que, além do grupo de NA,
frequenta um psiquiatra, que lhe administra drogas, e um psicólogo. Ele conta também
que lança mão de tudo o que puder para resistir no seu processo de abstinência, tendo
em vista que a reincidência da droga na sua vida agravaria seu processo na justiça.
- P5 – jovem de mais ou menos 20 anos, cabelos louros, penteados no estilo
moicano. Reside numa cidade 170 km distante de Goiânia e viaja durante uma hora de
ônibus para chegar ao local das reuniões. É participativo e questionador, apresenta certa
dificuldade em manter-se longe das “tentações”, que são comuns nos lugares que
costuma frequentar, já que trabalha em uma casa noturna e frequenta salões de jogos.
- P-6 – servidor 2 – adulto jovem entre 30 e 35 anos, aparentemente, com várias
tatuagens pelo corpo e com um grande alargador de orelhas. Esse jovem veio para o
grupo como membro do corpo de serviço do NA, em substituição ao servidor que
coordenava as reuniões até então. Mais desprendido em relação ao rito das reuniões, que
será descrito posteriormente nesse trabalho, porém não sem ressaltar sua importância.
- P-7 – adulto jovem, aparentemente entre 30-35 anos, muito magro, usa
alargador de orelhas, cabelos pretos estilo moicano e óculos. Participou pela primeira
vez na terceira quarta-feira em que estive presente ao grupo. O jovem parecia muito
debilitado e disse ter passado por uma overdose de drogas, na semana anterior. Trabalha
no sistema judiciário e ressente-se da discriminação sofrida em seu local de trabalho.
Diz ser independente da família, que não o reconhece como adicto, posição que ele
pensa ter conseguido esconder.
- P-8 – adulto jovem, aparentemente entre 30-35 anos. Filho de família espírita,
tem medo de morrer e tenta manter-se afastado das drogas por causa de preconceitos
religiosos (conhecimentos) no que tange à questão da morte e do suicídio, ao qual ele
relaciona a morte por overdose. Ele conta que seu pai morreu de overdose e que toda a
sua família (pai, mãe e tios) eram adictos.
208
- P10 – jovem negro que saiu da rua, lugar onde morava, juntamente com seu
irmão e que se encontra em abstinência, buscando resgatar as relações familiares. Não
conheceu o pai e seu maior desejo é poder estar perto da filha. Ele está trabalhando e
agradece ao grupo pela oportunidade de ficar sóbrio.
- P11 – homem de mais de 40 anos que havia saído da penitenciária há poucos
dias, onde cumpriu pena por tráfico de drogas. Estava de viagem marcada para o Mato
Grosso, lugar onde imaginava poder ver-se livre da polícia. Afirmava ter medo de ser
executado, mas afirmava que não tinha medo de morrer, apenas não queria morrer pelas
mãos da polícia. No período em que estava passando por Goiânia, na casa do irmão, que
foi à reunião com ele, ficava escondido em casa, saindo apenas para ir ao médico ou a
reuniões nos grupos de ajuda mútua.
209
O primeiro sujeito a ser identificado para estudo de caso foi Pablo.* Ele trabalha
na Clínica Terapêutica que constituiu um dos campos para essa pesquisa e foi graças a
ele que os outros três sujeitos foram identificados e a própria pesquisa pôde ser
viabilizada. É necessário esclarecer que ele não é mais usuário de drogas, mas é
considerado, segundo ele, como adicto em recuperação. A base dessa identificação com
o adicto, que permanece presente, mesmo depois de dezessete anos de abstinência
contínua das drogas, é fruto de uma concepção da adicção como doença incurável e
progressiva. Mas Pablo também se autodenomina ex-dependente, demonstrando
confiança no seu processo de recuperação: “[...] um adicto em recuperação, um
dependente químico em recuperação, um ex-dependente.” (Anexo 9 – Entrevista 1, caso
1)
Pablo admite apenas uma recaída, ocorrida há dezessete anos. Filho de pais
separados, mãe imigrante do Ceará e pai militar tem lembrança do ambiente familiar
quando ainda contava com a presença física do pai, que era muito violento. A separação
dos pais ocorreu quando ele tinha apenas dois anos de idade. Aos quatro anos, já tinha
um padrasto, que ele considera como pai. O pai biológico era “matador” profissional e
morreu numa emboscada que vingava uma de suas vítimas. Por ocasião da morte do pai,
Pablo já tinha dez anos de idade e a mãe já constituíra outra família. Do primeiro
casamento, eram dois filhos (Pablo e uma irmã), e no segundo foram gerados mais
quatro filhos.
Por ocasião da entrevista de Pablo, sua mãe morava na zona rural de um
município do interior de Goiás, há 100km da capital. E é ela quem o apoia nos
momentos difíceis da vida.
211
Pablo fez entrada nas drogas aos doze anos de idade, momento em que, segundo
conta, já estava buscando por algo que fizesse sua cabeça. Começou com o clorofórmio,
por meio de um amigo que trabalhava em uma farmácia e que lhe apresentou a droga.
Também fez uso de outros inalantes: cola de sapateiro, benzina e fluido de isqueiro.
Concomitantemente a essas substâncias, ele fazia uso de álcool, uma vez que, aos doze
anos, já trabalhava em um bar e foi nesse ambiente que ele teve contato com a maconha
pela primeira vez, recebendo um cigarro com a substância como pagamento pelo
consumo de um freguês do bar.
Pablo sempre usou todos os tipos de droga concomitantemente e, por último, fez
uso de cocaína durante um ano, tempo em que morou em Campo Grande. Ele
atravessava a fronteira, comprava a droga para um cliente, dava entrada em um hotel e
cheirava a droga que lhe coube pelo trabalho realizado como “avião”. Depois de voltar
para Goiás, não tinha mais acesso à cocaína e abandonou essa substância, substituindo-a
por medicamentos que faziam o mesmo efeito. Conta ele que, depois desse período,
ainda fez uso de chás (Beladona e Cogumelo).
Apesar de ter feito entrada nas drogas muito cedo na vida, Pablo aprendeu a
tocar violão e chegou a tocar em uma banda de rock, que se apresentava pelo interior de
Goiás. Ele diz que a ilusão de glamour fez com que ele se aprofundasse nas drogas e
que o motivo de seu envolvimento com o processo de recuperação aconteceu por causa
das consequências de todos esses usos. Lembra ele que o preço desse tipo de prazer era
muito alto: problemas em casa, com a mãe, distúrbios emocionais, problemas em
estabelecer vínculos sociais, em geral, e de trabalho, em particular. Pablo explica que a
vida era “bagunçada” e que ele percebeu que a causa da desorganização era a droga. No
momento em que soube do NATA, decidiu conhecer, envolveu-se no programa e
passou pelo processo de internação na Fazenda Senhor Jesus.
Na experiência de Pablo, a Fazenda Senhor Jesus funcionou como uma família,
no sentido da educação pela vivência das rotinas, o que ele não pôde vivenciar na
infância e na adolescência. O jovem tem três filhos, cada qual de um relacionamento
diferente e teme pela repetição da sua história na história deles.
Por ocasião da internação, ele havia concluído o quinto ano do ensino
fundamental e tinha dezoito anos de idade, mas conta que concluiu o ensino
fundamental e médio em cursos supletivos e, depois, iniciou um curso superior em
Administração de Empresas, que abandonou logo em seguida. Atualmente faz um curso
212
de Filosofia, que também pretende abandonar, por não ajudá-lo muito na sua questão
profissional, que é o não enquadramento como profissional qualificado para o trabalho
que executa junto aos pacientes na clínica terapêutica em que trabalha como conselheiro
de recuperação.
a melhor clínica que ele pudesse pagar. O tratamento foi pago pelo próprio paciente, que
já atuava no ramo do Direito, em Brasília.
Advogado bem sucedido, apesar de ser ainda muito jovem na carreira, teve
muita ajuda dos amigos da área e atuou como estagiário no Ministério Público. Fez
muitas viagens ao exterior e morava no Lago Sul, em Brasília. Esses dados que
demonstram um bom poder aquisitivo por parte do jovem, segundo ele, fazem parte da
doença que o levou às drogas. Segundo Denis, tudo o que conseguia ganhar gastava em
ostentações, na ilusão de se confundir com os que eram realmente ricos. Muito dinheiro
gasto com cocaína em noitadas com os amigos em restaurantes caros e viagens que
contribuíam para com a sua imagem de homem bem sucedido.
Mas ele, durante seu processo de internação, percebe que nunca se confundiu
com os que realmente tinham dinheiro, porque a forma como ele gastava era própria de
quem vive de fachada, esbanjando dinheiro com os amigos e cheirando pó junto com
eles, mas quando voltava para casa, no Lago Sul, onde morava de favor em um quarto
cedido por uma amiga que morava na casa de alguém que vivia no exterior, usava crack
para dormir. Segundo o jovem, a cocaína era a droga que ele usava para se relacionar
com os ricos e o crack era a droga com a qual ele se identificava na solidão de sua
pobreza.
Ele é filho de mãe esquizofrênica e usou maconha a partir dos 15 anos. Fazia
frete na feira, empurrando carrinho de mão para comprar comida para a família: a mãe e
um irmão. A irmã morava com parentes. Ele, o irmão e a mãe moravam em uma casa
velha que o pai havia deixado para eles, quando abandonou a família com os filhos
ainda muito pequenos. Ele relata ter passado fome, mas que foi salvo pela escola, lugar
onde sempre se sentiu bem, porque lá era bem sucedido. Terminou o ensino médio e
tornou-se professor na própria escola em que estudou, no entorno de Brasília. Fez
vestibular para direito em uma faculdade particular de Brasília e pagou com seu próprio
salário. Depois, mudou-se para Brasília e estagiava no Ministério Público. Formou-se
com dificuldade e passou a pegar causas por conta própria, mas gastava todo o dinheiro
que ganhava em viagens e drogas.
A última viagem foi a trabalho, para Salvador, local onde moravam alguns
primos. Na favela, com os primos, compraram drogas diversas e usaram por muitos
dias. Denis perdeu o prazo do processo, porque perdeu a audiência para a qual tinha ido
a Salvador. Em questão de dias, sua carreira estava destruída e, então, ele pediu socorro
215
e buscou a internação. Ele conta que agora quer caminhar com os pés no chão, voltar
para o lugar de onde saiu e morar com a mãe, cuidar da casa e ter uma vida simples,
mas digna. Concluiu que não foi a droga que o levou àquela situação, mas sim, um
sentimento de inadequação à realidade socioeconômica em que nascera e que a droga
servia para ele como um meio para se aproximardas pessoas e não se sentir sozinho e
excluído.
4 O percurso da pesquisa
O percurso da pesquisa contou com três etapas ou em três tempos: contato com
os vários campos da pesquisa (grupos de ajuda mútua e uma clínica terapêutica),
buscando a identificação o dos participantes; as entrevistas e as análises dos dados
coletados nos vários campos. Estes três tempos estão aqui relacionados à abordagem
lacaniana do tempo lógico: o instante de olhar, o tempo de compreender e o momento
de concluir.
não houve nenhuma manifestação de desejo de participar. Ainda assim, essa escuta
realizada nos grupos foi importante para este trabalho.
Pude perceber que, nos grupos de ajuda mútua, há um interesse em se resguardar
do reconhecimento social da sua condição de usuários de drogas e a forma de se
apresentar ao pesquisador comprometia a abordagem dos sujeitos que poderiam
participar dos estudos de casos. A apresentação do pesquisador era realizada
rapidamente, antes do início das reuniões, cujo objetivo é bastante pontual: os usuários
de drogas falam sobre suas experiências com a droga e/ou sobre seu processo de
abstinência.
Não há ali possibilidade de o pesquisador se despir do seu lugar de sujeito do
conhecimento, que venha a estabelecer com o grupo uma relação de dominação, tendo
em vista que emitirá parecer a respeito de um objeto (a relação do sujeito com a droga),
sobre o qual não tem a mínima ideia ou possui ideias pré-concebidas a respeito. Isso foi
explicitado no Narcóticos Anônimos – NA –, primeiro grupo que serviu de campo a este
trabalho. Nos demais grupos, essa impressão a respeito da forma de apresentação do
pesquisador foi confirmada pela impossibilidade de uma abordagem bem sucedida dos
sujeitos, tendo em vista a participação desses no estudo de casos.
Essa questão enseja que se pense a respeito do lugar do pesquisador como um
limite às práticas de pesquisa. E foi pensando nisso que a reflexão sobre o lugar do
analista se fez importante. O analista não deseja ajudar, não deseja interferir e muito
menos auferir avaliações ou interpretações. O discurso analítico é aquele que subverte o
discurso do mestre – que se apresenta muitas vezes sob a forma do discurso da
dominação – e que trazido frequentemente pelo semblante do pesquisador.
Para Santos (2011), o psicólogo orientado pela escuta analítica aparece como
aquele que quer saber sobre a história do sujeito e, ao assumir esse lugar de “não saber”,
introduz a contingência por meio da “escuta interessada”, aquela que faz laço, abrindo
espaço para o efeito surpresa no discurso e para a possibilidade de que esse encontro
exerça um efeito sobre o sujeito. Da mesma maneira, o pesquisador orientado pela
escuta analítica pode exercer efeito sobre o sujeito que fala ao outro, podendo ouvir a si
mesmo.
Pensando na necessidade dessa subversão do discurso do mestre, optei por outra
forma de abordagem e por outro campo de pesquisa. Na clínica terapêutica, a
abordagem não contaria com o fator de proteção do anonimato, uma vez que os
219
pacientes internos não têm mais a ilusão de que podem esconder o fato de que são
usuários de drogas. Esse fato já é socialmente conhecido, mas só isso não garantiria que
os sujeitos não omitissem fatos e perspectivas importantes para o deslindamento das
relações entre o sujeito e a droga. Assim, a forma como fui apresentada ao grupo de
usuários de drogas em processo de recuperação possibilitou uma abordagem mais
cuidadosa, constituindo um fator muito importante para o início da consecução do
trabalho pretendido.
Santos (2011) pesquisou sobre o trabalho psicanalítico em uma instituição
carcerária e afirma que os saberes encarnados por essas instituições são calcificados,
difíceis de serem desconstruídos, uma vez que representam o discurso do significante
mestre. Se o pesquisador não consegue se deslocar do lugar de mestre ou de sujeito
suposto saber, no momento da abordagem, dificilmente, conseguirá que os sujeitos
falem, dando lugar à surpresa da manifestação do significante, por intermédio das
formações do inconsciente (lapsos, chistes, branco, silêncio).
Nogueira (1999) destaca que o analista deverá ocupar o lugar do objeto a, para
poder dirigir a análise a ponto de causar o desejo do analisante. Essa função de
semblante possibilitará o trabalho analítico. E o autor lembra: Lacan mostrou que os
outros discursos, na medida em que o significante – o saber ou o sujeito – ocupe um
lugar de dominância, produzem, respectivamente, a lei e o poder, esse é o discurso do
mestre. A burocracia é o discurso da universidade e o sintoma analítico é o discurso da
histeria.
Fui apresentada inicialmente como se fosse uma amiga do conselheiro de
recuperação que estava visitando a clínica. Assim, pude conviver um pouco com os
pacientes antes de ser apresentada como aluna de um curso de doutorado. Esse fato foi
extremamente importante, uma vez que os próprios sujeitos da pesquisa se interessaram
pela participação e o fizeram espontaneamente, ao serem arguidos a respeito.
O pesquisador, assim como o analista, precisa subverter o discurso do mestre,
que se assenta sobre os significantes do discurso da universidade. Assim como o
professor precisa subverter seu próprio discurso, para ver realizado seu objetivo de
ensinar efetivamente, deslizando do seu lugar de mestre para o lugar de sujeito barrado,
o pesquisador precisa escorregar do discurso universitário para se tornar sujeito barrado,
diante dos participantes, com o espírito questionador da histérica, capaz de fazer falar e
remeter ao próprio sujeito a resposta a suas demandas ou queixas.
220
refere a trabalho, dinheiro e sexo oposto, tendo em vista o referencial teórico sobre a
relação do sujeito com a droga.
O sujeito contemporâneo se apresenta como um líquido que escorre pela
linguagem, podendo, quem sabe, se reinventar e inventar um futuro diferente para si. O
sujeito falante é pontuado pela própria fala, quanto ao objeto a. Ao se ouvir, pode se
redimensionar, comprometendo-se a partir da própria fala.
Oliveira (2002) destaca que o estilo de escuta de Lacan encontra suporte no
conceito de tempo lógico que não tem a ver com o tempo das sessões nem com o
número delas, libertando a análise do tempo cronológico e respeitando apenas a
emergência significante advinda do inconsciente. Contudo, para que os significantes
possam emergir, é preciso que o analista faça o devido acossamento, esquivando-se de
dar sentido ao dito do analisando e restringindo-se a escutar para além do que se ouve.
As entrevistas foram realizadas em números e tempos diferenciados, de acordo
com as singularidades de cada caso e as intervenções (cortes) foram realizadas a partir
da escuta, e não, da estruturação metodológica da pesquisa. Alguns sujeitos falaram
mais e as intervenções também foram em maior número, seja para esclarecer algum
ponto do discurso ou para produzir o corte, como uma tentativa de precipitar a
conclusão e reconduzir o sujeito à sua responsabilidade quanto à sua queixa.
Nogueira (1999) lembra que, desde Freud, a Psicanálise mostra que a nossa
sexualidade é comandada pela linguagem e ela revela as diferenciações entre o Desejo e
o Gozo. Com a hipótese do Inconsciente e a proposta do Campo Lacaniano, podemos
pensar a impossibilidade de uma complementação na relação sexual. O outro pode
causar o desejo, mas não o satisfazer, porque o que desejamos é anular a falta e o gozo
nos atira para o excesso sem limite. Por esse motivo, a realidade do gozo indica uma
ética nova, diferente daquela proposta pela consciência, segundo a qual o bom é fazer o
bem. Assim, nossa vida pulsional, que nos lança para extremos, vai exigir uma prática
nova.
Nesse sentido, a linguagem vai fazer o papel de pacificadora e estabilizadora da
perturbação do corpo causada pelo gozo. A Psicanálise se apresenta como um
tratamento pela linguagem. O desejo movimenta a cadeia de significantes, distanciando
corpo e gozo e o gozo faz com que o corpo fique numa relação de exclusão com a
cadeia da linguagem. Nesse sentido, o desejo, ao movimentar a demanda em relação ao
Outro, possibilita uma barreira e um limite ao gozo.
O que se pôde depreender, acima de tudo, como resultado deste trabalho, cujas
análises encontram-se mais adiante, é que a relação do sujeito com a droga, embora se
configure como uma falha no registro do simbólico, é singular. A singularidade existe,
uma vez que também são singulares as saídas inventadas pelos sujeitos, depois da
experiência da droga. A implicação do sujeito precisa ser levada em consideração, em
qualquer forma de tratamento para a prática da droga. Trata-se de uma implicação que
ocorre no âmbito da invenção – por parte do sujeito – de uma nova maneira de viver,
bem mais do que o simples propósito de abster-se da droga.
A educação não pode ser considerada como salvadora nem a escola pode ser
considerada como o lugar de recuperação para usuários de drogas, mas sim, como uma
instituição que representa o Outro e que pode ser o lugar por excelência onde o sujeito
se vincule ao social, pela via da linguagem.
225
CAPÍTULO 7
Análises de dados
Os dados coletados nos campos (NA, AE, NATA e Clínica Terapêutica) serão
analisados em duas etapas. Na primeira etapa, são analisados os casos que fizeram parte
da pesquisa realizada na clínica terapêutica. Essas análises são realizadas do ponto de
vista do sujeito, com o objetivo de vislumbrar as relações entre o sujeito e a droga.
Na segunda etapa, as instituições que constituíram o campo para a pesquisa que
aqui se apresenta serão analisadas do ponto de vista de seus programas de recuperação,
objetivando a compreensão de como é tratada a adesão dos sujeitos ao processo de
recuperação pela via da abstinência total às drogas mediante internação.
1 Os casos
O primeiro caso desse estudo é o caso de Pablo, que atua como conselheiro de
recuperação na comunidade terapêutica que serviu como um dos campos para esta
226
pesquisa. Pablo está há dezessete anos em abstinência das drogas que usava. Embora
trabalhe desde a idade de 12 anos, demonstra ter uma relação conflituosa com o
trabalho:
Aí, é aquela merda toda que a gente passa em casa, com mãe,
é distúrbio emocional, é vínculo social, vínculo empregatício, de tudo
enquanto é forma, a vida começa a bagunçar, de certa forma
Pablo credita a bagunça gerada pela falta de vínculo com o Outro, à droga, mas
na continuidade do seu discurso, demonstra que, mesmo em processo de abstinência,
sua relação com o Outro, representada pela escola e pelo trabalho, é conflituosa:
O discurso de Pablo mostra que sua vivência é marcada por rupturas impostas
por circunstâncias que o impedem de progredir financeiramente. Esse dado da vivência
de Pablo demonstra sua dificuldade em relacionar-se com os objetos fálicos, uma vez
que os seus investimentos são sempre frustrados.
Fato semelhante ao analisado no caso de Pablo oorre com Bruno, que se refere a
problemas relacionais enfrentados desde a infância, os quais refletem na sua relação
com a escola:
Em seu discurso sobre seus problemas relacionais e com a escola, Bruno faz
referência ao pai, cuja falta funcionou como causa dos seus problemas, que se fundava
sobre essa falta, que segundo ele, fez com que ele fosse diferente dos outros alunos e
das outras crianças. A perda inscrita no psiquismo do sujeito, como marca do gozo, são
228
Mas a recusa do Outro (simbólico) por parte desse sujeito, singular em suas
relações com o Outro e, por efeito, com as drogas, não para por aí: ela afeta a vida no
trabalho, que se inscreve no âmbito do insuportável, quando a capacidade de desejar
falha. O sujeito recusa o objeto de desejo (inscrito no simbólico), passando ao gozo real
oferecido pelo mais-de-gozar especial, que se instaura com o surgimento da droga,
como efeito do discurso da ciência, o qual excluiu o gozo da linguagem e, por efeito, do
trabalho. A perda se inscreve repetidamente, determinando a droga como parceiro
sintoma para o sujeito, incapaz de lidar com a falta representada pela sua incompletude
diante do Outro da linguagem, que não pode contemplar sua totalidade, deixando um
resto do sujeito, fora de qualquer significação. O sujeito vai encontrar tal significação
no objeto droga, fora de toda relação com o útil, objeto de puro gozo, que o empurra
para longe das situações desejantes, como uma saída para a angústia do desejo do Outro
sexual.
Parei por causa da minha recaída. Porque eu fiquei um ano e
três meses. Eu me converti ao evangelho, nessa época, de 2006 a
2007, eu me converti ao evangelho, comecei a retomar os meus
estudos, tava fazendo supletivo, e trabalhando, tudo normalmente. Aí
um belo dia eu recaí. (...) Não voltei mais pra escola e abandonei o
emprego e as coisas que eu tinha conquistado eu vendi tudo, a troco
do crack e foi só degradando, me regredindo ao máximo. Então, perdi
tudo.
A sequência discursiva de Bruno reafirma essa posição do sujeito que faz uso de
drogas, como método de se livrar da angústia do desejo do Outro sexual.
229
Ah, foi poucos, foi poucos na minha vida, como eu sou uma
pessoa muito fechada, tem dificuldade de expressar meus sentimentos,
eu tive poucos relacionamentos. Poucos relacionamentos mesmo. Mas
é isso. Não tive muitos relacionamentos.
Bruno lança mão da timidez para justificar o seu afastamento do Outro sexual,
expresso em termos de ter tido poucos relacionamentos. Ele expressa o conflito presente
no Outro sexual, que remete sempre às questões do desejo sexual, do trabalho e do
dinheiro. Os objetos fálicos se apresentam como altamente conflituosos para esse
sujeito, conforme se pode constatar no fragmento:
Sávio, que foi encaminhado para a comunidade terapêutica pela mãe e apresentou um
diagnóstico psiquiátrico documental de esquizofrenia.
Martins (2009) investiga a articulação entre a clínica das psicoses e o consumo
de drogas e a hipótese central de sua teoria e prática clínicas é calcada na terminologia
do recurso à droga cuja etimologia, segundo a autora, remete a uma tentativa de
apaziguamento de dificuldades, numa tentativa de dar uma solução aos efeitos da
forclusão do Nome-do-Pai. A autora destaca que o recurso não é absoluto e pode
apresentar fragilidades, fato que justifica sua não adesão à ideia de que a droga pode
operar com função de suplência à forclusão do Nome do Pai.
Martins (2009) se fundamenta no terceiro ensino de Lacan, decorrente dos
avanços de sua conceituação do objeto a, cuja consequência foi a pluralização dos
Nomes do Pai e a introdução da topologia dos nós, o que lhe permitiu rearticular a
noção de suplência na década de 1970. E a autora apoia-se em Freud, a partir da leitura
lacaniana. Sua hipótese central desemboca em outras duas, que são a oscilação da droga
entre objeto e significante, a qual corresponde à irrupção de um gozo ilimitado que pode
comparecer nas psicoses já desencadeadas e participar da cena dramática do
desencadeamento. Seu consumo comporta alguns modos de operação na dinâmica das
psicoses que corresponde às tentativas de estabilização graças a cinco modalidades: a
moderação de gozo, a passagem ao ato, a compensação imaginária, o delírio e a escrita,
que se articulam como o recurso à droga de acordo com a singularidade de casos
clínicos que a autora apresenta. Suas análises de casos articulam os modos de operação
da droga e seu duplo estatuto de objeto e significante. Quanto à dimensão da escrita,
encontra um novo estatuto da droga, o de letra, que condensa o gozo, depositando-o nas
palavras escritas.
A questão da singularidade do sujeito no recurso à droga prevalece para além da
estrutura clínica do sujeito, como mostra o fragmento do discurso de Sávio, cuja
exclusão ou forclusão do Nome-do-Pai determinou uma rebelião radical, representada
pela fuga psicótica:
A relação com o Outro sexual, aparentemente não existe para Sávio, que assume
um discurso extremamente vago ao ser questionado sobre o tema:
Nesse ponto do discurso, novamente o sentido escorre para uma questão que se
põe num contexto espiritual, sobre o qual ele discorre longamente, nas entrevistas
(Anexos 13, 14 e 15, Entrevistas 1, 2 e 3, caso 3), as quais são repletas de relatos de
delírios megalomaníacos relacionados à eleição Divina, que determinou uma luta
espiritual que ele encarna como dificuldades reencarnatórias e que se referem ao seu
destino. Nesse destino, ele inclui ganhar na mega-sena e salvar o mundo do mal de
guerreiros espirituais do mal, representados por seus inimigos espirituais.
O paciente guarda cada coisa em seu lugar e a separação é sempre feita entre o
bem e o mal. Define o bem como uma autoridade. O maniqueísmo sadomasoquista
coloca as drogas – maconha, crack e Daime – como sendo representantes do bem.
O mal é representado pelas pessoas que não merecem continuar e que serão
excluídas, no fim dos tempos, como os cristãos evangélicos, que não seguem o bem,
porque não fazem o bem sem olhar a quem. Na sequência, ele separa também os
“maconhistas” dos maconheiros. A fuga da realidade, realizada por esse paciente foi
mais radical do que a realizada pelos outros sujeitos, que apresentam constituições
234
neuróticas. Sua fuga foi para além das drogas. Ele delira e alucina independentemente
da droga, porém o diagnóstico e as medicações psiquiátricas agem no sentido do
impedimento do delírio e da alucinação. Assim, ao estar sob efeito de medicação,
precisa de outras drogas para alucinar. Essa análise está baseada no discurso do paciente
como um todo, mas alguns fragmentos poderão ser representativos do que aponto:
Foi. Dessa vez que eu vim para cá, foi. Aqui que veio cair um
tanto de ficha. Aí caiu ficha demais. Aqui que foi dar o negócio da
traição, a gente foi ao âmago da questão e resolvemos, entendeu? Na
questão essencial, porque isso é uma luta. E nessa luta, ela envolve
esforço. Tem que ter meditação, ta? E nessa concentração exige
esforço. E a gente cansa. Hoje eu posso dizer para você que eu estou
desgastado, entendeu? Uma pessoa que eu estou cansado.
Ele termina seu discurso, dizendo que sente saudades de si mesmo, mostrando
que o sujeito encontra-se totalmente ausente do processo de recuperação. Em seguida, o
discurso mostra a necessidade de se render provisoriamente aos medicamentos, para
fugir do cotidiano estressante que a internação lhe impõe:
escuta não deve ser realizada como interpretação da fala em si, mas do discurso que
revela o sentido dado pelo paciente à passagem ao ato de se drogar.
Os programas voltados para dependentes de drogas são carentes dessa escuta nos
planejamentos que esses programas engendram. Os programas aqui analisados revelam
muitos equívocos. O primeiro deles é o da identificação do processo de recuperação do
dependente com a abstinência de drogas ilícitas; o segundo é o tratamento da
dependência sem que se faça uma escuta diagnóstica da estrutura psíquica do sujeito.
Seja o sujeito neurótico, psicótico ou perverso, as respostas dadas aos tratamentos
realizados, certamente, não serão as mesmas, por mais que se violente o sujeito com
internações contínuas, medicações diversas e sacrifícios corporais.
O sujeito do caso em estudo esclarece que não se considera doente, mas são e
sensível: loucos são os outros que, segundo ele, “vazam”. Ele se refere ao
comportamento dos demais pacientes, ao se relacionarem: gritam, cantam e brincam,
como uma manifestação do desespero que vivenciam. Ele se sente incomodado com o
barulho dos outros. É muito introspectivo e o ambiente não lhe é favorável.
A simples escuta desse sujeito mostra que o tratamento recebido, assim como o
ambiente da comunidade terapêutica, não são propícios à qualidade de vida para ele.
Sávio diz que se sente diferente e é tratado como igual, pela “doutora”, que acha
ruim, minando suas tentativas de sair da instituição. Aqui, há um dado muito importante
no tratamento de dependentes químicos. Além das diferenças já mencionadas, das
239
estruturas clínicas dos dependentes, ainda há a questão colocada por Sávio, sobre a
singularidade do sujeito, que dá “tom” à relação que mantém com a droga. O lugar da
droga e o seu sentido são dados pelo sujeito e esse sentido, por sua vez, está sujeito à
estrutura clínica dele próprio. O tratamento do dependente deve levar em consideração
essas duas dimensões da escuta do sujeito. O funcionamento psíquico é diferente, por
causa das estruturas clínicas e das modalidades de gozo elegidas pelo sujeito, como
representante da marca, na sua relação com o gozo do corpo.
As análises mostram que o resgate do sujeito, nos processos chamados de
recuperação implica autorresgate. Se não houver envolvimento do sujeito, esse resgate
não é possível. E a escuta do paciente é muito importante, porque o sujeito, como nós o
conhecemos, é o ser na fala ou falas (ser) – falasser. No seu Terceiro Ensino, Lacan
(1985) designa assim o sujeito líquido, que flui na linguagem. Porém não é essa
linguagem comunicacional, e sim, outra linguagem, tecida de gozo: a alíngua que, em
Lacan, é uma língua que o sujeito costura com as agulhas e linhas do passado.
Entretanto é um passado que não é da ordem da história ou da histoeria, e sim, de um
passado anterior à linguagem, da ordem do discurso sem palavras. A alíngua, linguagem
gozosa do sujeito, esconde a repetição, engendrada a partir da marca, do trauma, do sem
sentido, que caracteriza o registro do real.
A modalidade de gozo do sujeito, inscrita na alíngua, pode ser identificada e
manipulada, transformada pelo sujeito em processo de análise. Mas essa Psicanálise,
chamada na literatura lacaniana em seu Terceiro Ensino, de Psicanálise Líquida, não é a
psicanálise transferencial de Freud. O lugar do analista é deslocado do sujeito suposto
saber para lugar de objeto a, lá onde na psicanálise transferencial realiza a escuta da
histoeria, na esteira da linguisteria. Esse é o lugar onde a linguagem do sujeito deve ser
interpretada pelo analista, a psicanálise líquida, que Miller (2010) designa como a
Psicanálise do nosso tempo, pois a palavra escorre, não se solidifica em conceitos, como
na Psicanálise freudiana. Na alíngua, o sujeito não fala ao Outro, mas a si mesmo e fala
sobre o seu gozo.
Sem dúvida, pode-se dizer que em qualquer processo que pretenda o “resgate”
do sujeito como princípio do afastamento do sujeito das drogas, há que se ver com a
alíngua e com a modalidade de gozo do sujeito. Essa posição põe em dúvida todos os
programas de recuperação oferecidos pelas Instituições que serviram de campo a esta
pesquisa, porque os processos engendrados não contemplam a escuta do sujeito nem
240
Em relação ao craving, o caso de Denis faz cair por terra o discurso corrente em
favor dos medicamentos de forma generalizada, por causa do surgimento das drogas
sintéticas. Denis era usuário de cocaína e crack, drogas que utilizava eventualmente, nos
momentos de lazer. A relação desse sujeito com as drogas é absolutamente singular, sob
alguns aspectos, quando comparado aos demais casos e às informações correntes sobre
241
drogas, que apontam para a escalada da droga, sobre a droga de escolha (fixação do
sujeito a apenas um tipo de droga):
Seu vínculo com a droga se estabelecia pela falta de dinheiro, de casa, de pai, de
mãe e de comida boa. O contexto de utilização da droga era sempre o de contato com
outras pessoas, geralmente, de uma classe social mais elevada, momento em que a droga
242
(cocaína) era utilizada como forma de ostentação de uma posição social que não era a
sua, comportamento do qual se ressente, durante o período de internação:
Denis revela em seu discurso o poder de sutura que a droga representa para ele.
O sentido de completude está na possibilidade de superar a diferença social por meio de
um delírio de grandeza. Sem a droga, o delírio não se processa.
O sujeito em estudo faz cair por terra, o discurso corrente sobre o poder do crack
na determinação da dependência química desde o início de sua utilização. Esse caso
demonstra que o poder de se vincular à droga ou não está no sujeito, e não, no objeto de
gozo. O sujeito em questão desenvolveu-se bem na escola, tornou-se primeiro professor,
depois advogado, exerceu ativamente a profissão de advogado e se apresenta como
aluno de curso de Pós-Graduação em sua área, numa instituição particular de Brasília,
lugar onde morava e exercia a profissão no momento de sua opção pela internação, que
243
ocorreu por conta própria e a sua própria custa. Contudo, ao se referir às suas relações
com o Outro sexual, seu discurso era evasivo ou lacunar, por um lado, e assertivo, por
outro:
Não tinha não. Só sexo casual.
O que questiono aqui é a ética do sistema jurídico, inscrita nas políticas sobre
drogas, que proíbem certas drogas, considerando-as impróprias e, portanto, são
consideradas ilegais, mas permitem outras que são certamente mais perigosas, como no
caso do álcool, do tabaco e de certos medicamentos, com seus efeitos colaterais, que
sempre dependem da tolerância e cujo grau é determinado pelo sujeito, e não, pela
droga. A tolerância, então, só pode ser vislumbrada mediante a escuta de singularidade.
mas que é ligada ao governo desde sua criação. O objetivo da reunião era orientar os
funcionários da OVG que atuam em diversos campos da Assistência Social quanto ao
processo de triagem dos dependentes de drogas, com os quais esses funcionários lidam
diariamente. A metodologia do encontro era a divulgação dos trabalhos de prevenção e
tratamento/recuperação, existentes em Goiás.
Em uma das apresentações, realizada pela médica psiquiatra que trabalha em um
centro de atenção para servidores da polícia militar, esclarecia como era a atuação do
crack no cérebro e de que forma o medicamento administrado servia de auxílio para que
o paciente se mantivesse em abstinência.
A mesma médica disse que o remédio utilizado agia sobre a dopamina,
hormônio responsável pela sensação de prazer nos sujeitos. O efeito do remédio
consistia em não permitir que o crack liberasse a produção da dopamina, de forma que o
sujeito poderia utilizar o crack, mas não sentiria prazer durante seu uso. Tal
procedimento me parece de uma violência terrível para o sujeito, cujo recurso à droga se
inscreveu em seu funcionamento psíquico, e penso que os direitos humanos são
infringidos aí.
O segundo momento foi no I Seminário PET de Saúde Mental UFG/SMS,
promovido pela Universidade Federal de Goiás e pela Secretaria Municipal de Saúde,
cujo tema era Redução de danos como estratégia de cuidado dos usuários de drogas:
caminhos e perspectivas. O seminário realizado nos dias 22 e 23 de março de 2012, no
Auditório da Câmara Municipal de Goiânia faz parte do PET, Programa do Ministério
da Saúde para Formação de Trabalhadores da Saúde – Programa de Bolsa para Estágio.
Estava presente e realizou uma das conferências da mesa redonda, intitulada
Construindo a intersetorialidade em redução de danos, o Dr. Dartiu Xavier da Silveira –
psiquiatra, professor livre docente da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP),
pesquisador, colaborador da University of California (UCLA), com especialização em
Toxicomanias, no Centre Medical Marmottan (Paris). O médico psiquiatra protagonizou
o filme (documentário) Quebrando o tabu, juntamente com o presidente Fernando
Henrique Cardoso e Dr. Dráuzio Varela.
Em sua conferência sobre A redução de danos no tratamento das toxicomanias,
Dr. Dartiu disse que há vários padrões de uso das drogas e que a classificação pela
frequência do uso não reflete a dificuldade com as drogas. Os dependentes não são
regras, mas exceções e destacou que 90% dos usuários de maconha não se tornam
245
embora em um primeiro momento possam parecer corretas, por causa dos danos sociais
provocados pelo fenômeno da droga na sociedade atual, são no mínimo duvidosas do
ponto de vista dos direitos da pessoa humana.
A comunidade terapêutica que foi campo para esta pesquisa é particular e as
mensalidades dos pacientes chegam a variar de R$ 1.500,00 a R$ 3.000,00 – conforme
o caso. Há algumas vagas com valor menor, de aproximadamente um salário mínimo,
que são reservadas a pacientes que fazem parte do programa de justiça terapêutica do
Estado. Os critérios para o estabelecimento do valor não são claros. A ociosidade e a
atividade terapêutica voltadas para as rotinas caseiras, de organização e limpeza do
espaço, preconizada pelo coordenador de recuperação, como sendo muito importante
para o processo, parecem também aumentar os lucros da instituição, que pertence a um
psiquiatra do quadro de uma conceituada universidade brasileira. E assim é porque os
próprios pacientes cuidam da manutenção da propriedade. Tal pensamento se baseia no
fato de que não foi constatada a presença de nenhum funcionário além da cozinheira, no
quadro operacional da Instituição, como já havia sido informado anteriormente nesta
tese.
O paciente do Caso 3, Sávio, analisa que essas atividades não têm sentido para
ele e expressa o desejo de que as atividades fossem mais “elaborativas” e tivessem um
sentido. O sentido da atividade não pode ser dado do ponto de vista da instituição ou
dos especialistas, precisa ser dado pelo sujeito, quando se pretende a sua adesão às
atividades propostas. No caso em questão, uma simples horta engendraria um sentido,
para ele, que seria capaz de se engajar no projeto. Mas o sujeito não é contemplado
nesse tipo de programa.
A fala do paciente é corroborada pelas observações realizadas na comunidade
terapêutica, uma vez que raras vezes presenciei atividade física ou qualquer outra
atividade relevante. Na maioria das vezes em que estive nessa clínica, as tardes eram
livres, com um lanche no meio. Uma delas foi registrada no Anexo 9 e se refere ao
primeiro dia da pesquisa na comunidade terapêutica:
O sujeito fica absolutamente sem margem para manobra, mais ausente do que
nunca e, como nunca, mais segregado internamente; segregado até de si mesmo. Nesse
fragmento do discurso de Sávio, percebemos que, longe da droga que o nomeia
toxicômano, ele se sente longe de si mesmo. E isso não acontece sem consequências
para o sujeito. O retorno à droga, nesse caso torna-se certo e pode funcionar como
250
3 O toxicômano e a pulsão de morte: morrer pela droga, mas não pela polícia
Essa maneira de pensar a respeito do uso que faz das drogas é muito comum
entre dos dependentes:
Aqui, há que se fazer uma reflexão, sobre o aspecto repreensivo que reveste a
questão da droga nas sociedades contemporâneas: de onde vem a violência social, se
não desse aspecto repressivo?
Este sujeito não teme a morte, mas quer escolher a forma da morte: que seja pela
droga, mas não, pela polícia, pois ele teme morrer pelas mãos da polícia. A
criminalização da droga e do usuário incita o tráfico, que gera outros crimes. No caso de
Bruno, um dos pacientes da comunidade terapêutica, por exemplo, depois de enganar a
família para conseguir dinheiro para o crack, partiu para o tráfico, buscando a
manutenção do vício:
Nos discursos aqui analisados, o Outro, que se põe em foco sob várias formas
distintas e concomitantes, passando do absoluto ao social e ao sexual. O Outro do
social, nos discursos analisados, pode significar o Outro do Pai, da Lei, na sociedade da
produção ou ser o Outro vazio, fragmentado e, até mesmo, inexistente, da sociedade do
consumo, mas é do lugar do Outro que as enunciações se inscrevem, tanto nos grupos
de ajuda mútua quanto na comunidade terapêutica.
segregação gera: elas têm início muito antes, pois o dependente vai sendo empurrado –
é um exemplo do efeito do simbólico sobre o real. O dependente de drogas é visto como
criminoso ou, na melhor das hipóteses, como um doente. Sendo assim, a segregação
social se impõe e as perdas vão se acumulando: sem emprego, sem renda, sem família,
sem amigos... o que lhe resta? Sucumbir à pressão do Outro e assumir os seus discursos.
Contudo, dos quatro casos aqui analisados, dois dos sujeitos passaram por várias
internações sem resultados satisfatórios e um deles, o único que se manteve sóbrio,
também confessou uma recaída. Esse enganar-se a si mesmo, frustrar-se, recair nas
drogas e perder novamente é comum. A estatística dos que recaem antes de completar
um ano de abstinência é muito grande e vai dimuindo conforme o tempo vai passando,
mas ainda pode ocorrer após quinze ou vinte anos de abstinência.
Segundo Freud, em O mal estar da civilização (2006c), o homem que vê todos
os seus planos ir por água a baixo pode entregar-se às drogas.
A busca pela abstinência efetuada pelo dependente em regime aberto, ainda que
seja por meio dos grupos de ajuda mútua, parece permitir ao dependente uma chance de
acomodar-se a uma nova perspectiva de vida sem drogas. A abstinência pode ficar mais
distante e as recaídas podem ser mais frequentes, tornando o tratamento mais difícil,
mas pode ser mais eficaz, permitindo que o dependente não passe por tantas perdas.
A análise que passo a realizar incide sobre as drogas utilizadas, sobre a idade de
entrada nas drogas, sobre o processo de recuperação desenvolvido para os dependentes
e sobre o mercado de saber sobre as drogas em atenção aos usuários nas agências
governamentais e não-governamentais. Utilizarei os dados coletados como uma amostra
em si. Não tenho o objetivo de quantificar e generalizar os números, mas apenas, de
realizar uma reflexão a partir das relações engendradas, do ponto de vista do sujeito no
recurso à droga.
No NA, é regra que não se mencionem nomes de drogas nas reuniões, mas não é
o mesmo que ocorre nas reuniões do Amor Exigente e do NATA. Nesses lugares, as
256
falas são sobre a história da droga na vida dos participantes e, ao contar sua história,
eles fazem referência às substâncias de uso. No NATA, o coordenador faz perguntas aos
participantes, conduzindo as falas, quando necessário, para obter deles as informações
necessárias ao processo de triagem para a internação na fazenda do Senhor Jesus. Na
comunidade terapêutica, a realização da pesquisa teve caráter individual e, portanto, não
posso afirmar se, no grupo, as drogas de uso podem ser mencionadas. Entretanto é fato
que as substâncias são mencionadas nos relatórios das reuniões no NATA e das
entrevistas individuais dos casos em estudo.
Havia cinco pessoas novas, naquela noite. Alguns usuários de
crack e outros usuários de álcool.
...
aquela que apareceu primeiro na vivência do usuário. Ele conta que já buscava a droga e
que, aos doze anos, se sentia preparado para usá-la – segundo ele, isso era percebido na
sua linguagem, já era a linguagem de um dependente.
como esquizofrênico e passou por várias clínicas psiquiátricas e abrigos para doentes
mentais. Deu entrada na comunidade terapêutica por uso de maconha.
Estas são as drogas mais conhecidas, porém várias outras substâncias foram
citadas nas entrevistas:
crack sempre foi considerado uma droga que gera dependência muito rapidamente e
cujo valor destrutivo é também muito alto, levando a uma morte igualmente.rápida Os
casos de dependência em que o uso do crack já se inscreveu mostram que a instalação
da dependência é realmente muito rápida e, em alguns casos, definitiva e pode matar
tão rapidamente quanto qualquer outra doença crônica.
Do crack tem dez anos, né, foi de 2000, 2001 pra cá que eu
conheci o crack.
- Tem dez anos, então?Tinha dez anos que você estava usando
crack? Direto, todo dia?
É, direto assim, que às vezes eu internava, mas não concluía o
internamento, saía, fugia.
Fugia pra ir atrás do crack.
que os que chegam pela via da família e por si mesmos permanecem. E o fazem em
nome do desejo de se livrarem dos danos causados pela dependência. A concepção de
recuperação como abstinência não permite o resgate do sujeito no processo de
afastamento das drogas e da dependência.
Em uma das reuniões do NA que serviu de campo para esta pesquisa, um dos
sujeitos presentes apresentou a problemática da exigência de liberdade que o recurso à
droga significa, reivindicando a promessa de liberdade evocada pela simbologia inscrita
na estrutura do NA, conforme podemos conferir no fragmento do relatório da reunião e
nas análises que se seguem a ele:
O questionamento de um dos sujeitos (chamaremos de
participante 5 ou P5) me chamou a atenção. Trata-se de um jovem de
aparentemente 20 anos, de classe média. Ele iniciou seu discurso
falando da ‘sala’ (é como chamam o lugar onde se reúnem), de sua
importância e referiu-se à literatura do NA. Disse que há uma
representação da caminhada espiritual do NA. Essa representação se
dá com uma pirâmide, cujo topo representa o lugar da liberdade. O
rapaz (P5) falou um pouco sobre isso, dizendo que esperava que em
algum momento se falasse sobre o seguinte: se caminhamos passo a
passo, vivendo um dia de cada vez, mantendo-se sóbrio ‘só por hoje ’,
pelo resto da vida e não temos cura, onde está a liberdade? Ele (P5)
não obteve resposta. Os companheiros mais antigos apenas sorriram.
A impressão que o rapaz (P5) transmitiu foi que ele efetivamente
acreditava que haveria, na literatura e/ou na experiência uma
resposta para isso que para ele é um paradoxo do ‘só por hoje’: a
liberdade.
vez que acena com uma liberdade efetuada pelo programa de abstinência às drogas em
troca da adesão incondicional (semelhante à da adesão ao tóxico) do sujeito aos doze
passos, aos doze conceitos e às doze tradições, além do lema do NA: “Só por Hoje”.
O NA apresenta, em sua estrutura e constituição, princípios e valores que
refletem os sujeitos que constituem o grupo, tendo em vista que há alguns traços que
podem ser identificados também nos discursos dos sujeitos em estudo. O grupo, cuja
história e concepções (Anexo 21) estão baseadas no anonimato e no voluntariado, tem
como princípio fundamental a horizontalidade, expressa em seu 12º conceito. Esse
conceito guarda um elemento de recusa da autoridade, cujos primórdios são
identificados na Psicanálise no estudo clínico das toxicomanias. Trata-se da recusa do
Pai, representante da Lei.
Essa estrutura pressupõe uma escala de valores que deve nortear o processo de
recuperação e que estão desenvolvidos nas 12 tradições e nos 12 passos, já apresentados
na caracterização dos campos desta pesquisa. Tal estrutura pressupõe aquilo que Lacan
(1998) chama de alienação ao Outro, como parte do processo de constituição do sujeito,
em seu Segundo Ensino: para que o sujeito passe a existir como tal, é necessário que ele
se aliene profundamente ao Outro (social), para depois, então, se afastar e constituir o
sinthoma, a partir do Um ou do traço Unário.
Contudo é preciso que se reflita sobre a estrutura do programa proposto por NA.
O engodo aqui, não é do Outro, como inconsciente que aliena o sujeito, mas sim, do real
que é anterior ao inconsciente. Antes dessa alienação ao Outro da linguagem, houve
uma marca, um traço e esse traço, que é da ordem do Um, deriva do trauma,
representado por um susto, por um acontecimento não simbolizado.
Enquanto a estrutura do NA e de seu programa de recuperação trabalha no
registro do simbólico, que é do campo do Outro, o sujeito funciona a partir da sua
264
modalidade de gozo, campo do Um, que é registro do real. A força desse gozo é a
mesma força do traço Unário de Freud, que faz com que esse se sobreponha e faça com
que o programa que se pretende universal não tenha a mesma força com todos os
sujeitos.
As tradições de NA são semblantes da ordem do inconsciente transferencial, a
saber, o freudiano. E essas tradições suscitam a atenção e até a adesão do dependente
pela identificação com o simbólico representado pelo lugar do NA no Outro.
O NA representa certa insubmissão à ordem simbólica, pela recusa da autoridade
do Outro como externo (referenciado pela castração) à irmandade. O sujeito se
identifica com a irmandade, com a instituição, como Outro interno (referenciado pela
privação).
A crise foi gerada devido à presença de alguém que era profissional e que estava
ali para estudá-los. O olhar do Outro externo sobre o dependente de drogas é
constantemente enfrentado por sujeitos em processo de recuperação e na ativa. Esse
olhar, no grupo que pertence a eles, lugar onde não há governo exercido por um só, não
é admitido. Ali, é o lugar de onde a afronta é devolvida, tendo em vista os vários
episódios de demonstração de desagrado pela minha presença.
266
A recusa do Outro se apresenta sob diversas formas, nos discursos dos sujeitos.
É representado pela polícia, repressora, e identificada claramente no discurso de um dos
participantes do NA:
O slogan do NA, repetido por cada membro que partilha suas experiências no
grupo de ajuda mútua é uma peça chave na compreensão do processo de recuperação
que se engendra no nível do sujeito a partir daquela instituição. E como funciona para o
sujeito?
Ele iniciou com as “palavras-chave”, que são entoadas por todos, após ouvirem
seus nomes ditos em coro pelo grupo: “meu nome é (....) sou um adicto em recuperação,
limpo há 24 horas, só por hoje.”
Esse lema sugere que, ao invés de tomar decisões para a vida toda, é melhor se
limitar a fazer propósitos por um dia apenas, justamente o dia que se está vivendo: o dia
de hoje. O de ontem já foi vivido quando ele era hoje, e o amanhã, quando chegar, será
hoje novamente.
Se aplicarmos o que é sugerido, estaremos, por assim dizer, cortando a vida em
“pedacinhos mastigáveis” o que irá tornar bem mais fácil nossa caminhada através do
processo de recuperação. O seguinte é uma sugestão do que podemos nos propor a fazer
a cada novo dia.
A partilha é um momento importante e revelador do modus operandi do
processo de recuperação: o sujeito tem como regra afastar-se das tentações, nem sequer
falando o nome da substância que usava, quando estava na ativa e, principalmente,
afastando-se de ambientes e pessoas do tempo da dependência ativa. Não é permitido
que o dependente partilhe sob efeito de nenhuma substância, porque ele faria voltar à
lembrança, aquilo que eles precisam esquecer.
Aqui, podemos vislumbrar o sujeito suposto saber, que atua com o mesmo
propósito que o dependente usa para se recuperar. A ideia é que o Outro, representado
pela estrutura do NA, detém o saber sobre ele e é por falta de saber que ele se encontra
em dificuldades, mas a fé que faz funcionar o programa, o que ocorre quando o
dependente continua voltando, é a atuação do discurso do mestre. A fé em que alguém
vá dizer a verdade sobre o sujeito, o que redundará em sua felicidade. Entretanto o
cotidiano dos dependentes, ao perseguirem o “só por hoje”, do ponto de vista deles,
implica “morder correntes”.
Ele se põe no lugar de alguém que entende do que está falando, a pretexto de sua
atividade profissional, exercida junto aos dependentes em recuperação e também como
participante do processo, pois é dependente em recuperação há vinte anos. Na sequência
do discurso, remete a situação do dependente de drogas à desestruturação familiar:
Porque eu sei que hoje, se pudesse dizer pra todo mundo que
a família é a célula mãe da sociedade. Para aqueles que não têm
família, que são filhos de pais separados, tem que existir algo. Porque
realmente é complicado..
271
O discurso de Pablo traz em seu bojo algumas relações de analogia que revelam
a falha, aquilo que escapou, na linguagem: a dependência é um problema moral e
espiritual, que identifica o dependente com a sujeira e com o desleixo. E ele próprio diz
que esse é o discurso que veicula sociedade afora em palestras que faz e nas direções
que dá ao tratamento dos dependentes sob sua coordenação. Na sequência do discurso,
percebe-se uma mostra radical do masoquismo inerente ao dependente de drogas, cujo
gozo acontece no real do corpo.
[...] Tem um ditado que diz que todo prazer que seu corpo
recebe sem sacrifício, ele vai cobrar depois em forma de depressão.
Então assim, para tudo existe um prazer. Existe um prazer em fazer
um trabalho manual, existe um prazer nisso. Então é descobrir,
realmente. Existe prazer em cantar uma música, glorificar o Senhor,
existe prazer. Existe prazer em namorar, existe prazer nisso. Existe
prazer em andar pela rua, fazer uma caminhada, tudo isso são coisas
que na vida do dependente não é rotina. Não é rotina e que precisa,
por isso que os centros de reabilitação e eu acredito muito nisso, as
comunidades terapêuticas, elas funcionam e têm uma estatística
baixa, é bem verdade, e as mais altas do mundo, sabe por quê?
Porque é um reaprender a viver de novo e muitos estão aprendendo a
viver, realmente.
Ele cita outros prazeres que podem surgir na prática da abstinência e ressalta a
importância da rotina de trabalho, que sacrifica o corpo na reabilitação de dependentes
de drogas. Na sequência, retoma a significação de rotina como a instituição de práticas
domésticas relacionadas à organização e à alimentação, remetendo novamente à
desestruturação familiar como origem de transtornos comportamentais em dependentes
de drogas.
272
Pablo credita sua recuperação ao fato de ter aprendido a ter prazer nesse tipo de
rotina, na Fazenda Senhor Jesus. Aqui, parece estar a mola mestra que sustenta a
abstinência dos dependentes de drogas de instituições vinculadas à Fazenda Senhor
Jesus. O próprio conselheiro de recuperação da clínica terapêutica que serviu de campo
para esta pesquisa assume ter “copiado” o programa das casas terapêuticas que não
trabalham com equipe multidisciplinar. A ênfase nessas comunidades é colocada no
aspecto espiritual, moral e de condicionamento pelas rotinas instituídas.
pouco ele chega. Todo dia ele vem dar exercício. Então é um tempo
que a gente vem observando que é razoável, pra pessoa se moldar, se
trabalhar, para aqueles que querem. Então é isso aí.
Depois, Pablo volta a ressaltar a importância da equipe, por causa das novas
drogas:
Aqui é igual eu te falei, é uma experiência nova. Já trabalhei
só com clínica psiquiátrica. Mas aqui é um misto da comunidade
terapêutica com a ciência, porque, igual eu te falei, as drogas estão
274
que é sempre do registro simbólico, porque é sempre o desejo do Outro. Quanto ao real
implicado no gozo do corpo, ele se expressa na substituição de uma droga por outra e
nas recaídas dos sujeitos nos processos de reinserção social, como trato de esclarecer
nas análises que se seguem.
O lugar do sujeito no recurso à droga se situa entre o prazer e o gozo. O desejo
acontece como um representante da falta e seu princípio motor do desejo é o fato de que
ele jamais se realiza. Mas o dependente químico atua entre o prazer e o gozo da morte,
que é o registro do real, representado pelo gozo do corpo próprio. O prazer faz barreira
ao gozo e o desejo se refere à ordem fálica, pois adia o prazer, enquanto o prazer adia o
gozo.
Aqui, há que se esclarecer algo a respeito da exclusão do prazer nas práticas
terapêuticas que engendram os chamados processos de recuperação de dependentes de
drogas. A qualidade dos serviços prestados nas comunidades terapêuticas, do ponto de
vista do sujeito que ainda não se enganchou no desejo do Outro e de viver sem drogas, é
realmente muito ruim. Esse sujeito não está inserido na ordem fálica e necessita de
alguma forma de prazer. Mas, para ele, isso implica que o seu gozo seja contemplado
como algo que não serve para nada.
O gozo do dependente de drogas não passa pelo sistema fálico que sustenta a
civilização. Por isso, a droga é escolhida pelo sujeito, por se tratar de um objeto
clandestino que faz barreira ao gozo, representante da pulsão de morte. A sociedade
contemporânea, com suas exigências competitivas é insuportável para o sujeito que faz
uso metódico das drogas. A droga funciona como objeto clandestino de prazer, que
implica um gozo masoquista e solitário.
276
CAPÍTULO 8
Considerações Finais
dos casos dos sujeitos, cujos casos foram estudados, sobretudo, aqueles que se
encontram em processo de recuperação de forma segregada (regime de internação).
E, para além dos objetivos pré-estabelecidos para esta pesquisa, concluo que a
determinação do fracasso escolar é anterior à entrada que o sujeito faz nas drogas e o
sucesso escolar nem sempre é impedido, em seu sentido estrito de transmissão de
conteúdos escolares e de inserção dos sujeitos no mercado de trabalho, apesar da droga.
O fracasso e a evasão da escola, por parte dos sujeitos que fazem uso de drogas
agravam o quadro do sujeito em relação ao aprofundamento do vínculo com as drogas,
pelo afastamento da possibilidade de que o Outro possa intervir no processo de
constituição do sujeito, promovendo a simbolização do real.
O sujeito que faz percurso nas drogas é um sujeito que recusa a linguagem, que é
do campo do Outro como lei e autoridade, recusando também a escola, por causa das
regras engendradas pelo pedagógico e pelo professor, quando esse corporifica o
discurso do mestre, colocando-se no lugar de autoridade.
A inclusão do sujeito que faz uso de drogas na escola, sem dúvida, passa pela
posição do professor, que pode criar um laço do aluno com a escola, privilegiando a
possibilidade de simbolização e o afastamento das drogas. Para tanto, o professor
precisa se desatrelar dos semblantes (simbólico e imaginário) e dos discursos
(simbólico, do campo do Outro) sobre os quais se ergue a moral moderna, fazendo com
que o sujeito deslize sob o significante mestre, surgindo como sujeito cindido, barrado,
para que se estabeleça o laço social e a relação de ensino/aprendizagem aconteça.
A última e, talvez, a mais importante conclusão sobre as investigações realizadas
a respeito das relações do sujeito com a droga é a de que o laço com a escola, uma vez
estabelecido não é necessariamente rompido pelo encontro com as drogas, se
constituído, quem sabe, como o último fio de desejo do Outro que resta ao sujeito, para
fazer barragem ao gozo, inscrito na prática das drogas.
O sem-sentido da contemporaneidade é fruto da constatação de que o real da
educação não pode ser contemplado, simplesmente, porque dele, só sentimos os efeitos,
nos sintomas sociais. Assim, as políticas educacionais, que visam à melhoria da
qualidade da educação e da escola, mas que acertam na carreira rumo à barbárie,
contemplam a formação de professores como um processo singular que passa,
certamente, pela transmissão do desejo. É preciso que as autoridades educacionais deste
país percebam que o mais importante de tudo, no contexto social presente, não consta
278
Referencias Bibliográficas