Sobre Lourenço de Almeida Prado

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METODOLOGIAS ATIVAS E FRACASSO ESCOLAR

Marcos Cotrim de Barcellos

RESUMO- “Ativas” ou não, as metodologias sempre arrancam de um estatuto epistemológico, que assinala
qualquer empenho pedagógico, e de uma fundamentação antropológica que lhe dá sentido. Normalmente, a
prática docente ignora esse pressuposto, o que pode ser reforçado pela gestão muito pragmática dos processos de
ensino-aprendizagem imposta, ora pelas condições econômicas a que as instituições de ensino se submetem, ora
pelos cometimentos ideológicos que assumem o controle das políticas educacionais. A importância de se
esclarecer a fundamentação epistemológica das metodologias em ambiente pedagógico remete-nos ao escopo da
filosofia da educação em diálogo com a história recente da educação no Brasil, especificamente à figura de um
educador que debateu o tema da metodologia enquanto gestor e pensador. Dom Lourenço de Almeida Prado,
OSB, ex-reitor do Colégio São Bento do Rio de Janeiro, é um dos críticos mais consistentes da chamada
“metodomania” que seduziu as propostas pedagógicas brasileiras a partir dos anos 1970, e que parece não contar
nos escassos debates contemporâneos em torno da questão metodológica.

Palavras-chaves: Metodologia. Habitus. Dom Lourenço de Almeida Prado.

Abstract- "Active" or not, methodologies always start from an epistemological statute, which signals any
pedagogical commitment, and an anthropological foundation that gives it meaning. Normally, the teaching
practice ignores this assumption, which can be reinforced by the very pragmatic management of the teaching-
learning processes imposed, sometimes by the economic conditions to which the educational institutions submit,
or by the ideological commitments that take control of educational policies. Debating the importance of
clarifying the epistemological foundation of methodologies in pedagogical environment refers us to the scope of
the philosophy of education in dialogue with the recent history of education in Brazil, specifically to the figure of
an educator who discussed the theme of methodology as manager and thinker . Dom Lourenço de Almeida
Prado, OSB, former rector of the São Bento College of Rio de Janeiro, is one of the most consistent critics of the
so-called "metodomania" that seduced Brazilian pedagogical proposals from the 1970s onwards, and who seems
not to count amongst the contemporary debates about the methodological question.

Keywords: Methodology. Habitus. Dom Lourenço de Almeida Prado.

1 INTRODUÇÃO

Temas metodológicos pertinentes à esfera educacional vêm sendo tratados, nos últimos seis
anos, dentro do quadro motivacional suscitado pela crise de qualidade da educação brasileira,
que teria como solução as chamadas “metodologias ativas”. Longe de ser apresentado como
um objeto de debate, o tema ganhou a dimensão de uma proposta consolidada, um produto
pedagógico divulgado e vendido sob os auspícios do Consórcio STHEM/Brasil1, de maneira
significativamente disseminada.

Segundo seu presidente:

1
STHEM (em inglês: Science, Technology, Humanity, Engineering and Mathematics) é o acrônimo designativo
de uma marca comercial que atua no mercado educacional brasileiro e cujo principal produto é um sistema
didático-pedagógico que pretende incidir sobre “o papel da educação superior e a importância da inovação em
relação à qualidade da educação.” Como credencial, seu sítio oficial anuncia que o “Consórcio STHEM Brasil
passa pela parceria com o Programa Acadêmico e Profissional para as Américas – LASPAU, afiliado à
Universidade de Harvard, que tem se dedicado à missão de fortalecer o ensino superior no Hemisfério Ocidental
desde sua fundação em 1964.” Disponível em: < http://sthembrasil.com/o-que-e-sthem/>.
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O Consórcio STHEM Brasil, que é uma Rede, nasceu em 2013, por meio da iniciativa de
11 IES, liderada pelo Centro Universitário Salesiano de Lorena (SP), com o objetivo de
investir na formação de professores, fortalecer o engajamento e melhorar o aprendizado dos
estudantes, através das metodologias ativas.
Em 2016 o Consórcio STHEM Brasil chegou a 44 IES, presentes em 11 Estados do Brasil.
Mais de 4500 professores passaram pelo processo de capacitação. Instituições Consorciadas
criaram Núcleos de Formação Docente, repensaram o processo de ensino e aprendizagem, o
currículo, a infraestrutura e o próprio projeto acadêmico institucional. 2

Ora, o processo de desenvolvimento das ações do Consórcio concentra-se em larga medida na


venda de ferramentas de planejamento, execução e avaliação docentes com alto teor de
tecnologias agregadas, tendo como público-alvo instituições de ensino superior, ditas
“particulares” ou “comunitárias”, que, no passado recente, têm sido competidoras do sistema
público de educação. O fato sugere o cenário de uma rivalidade que extrapola o foro
comercial e se imbui de traços ideológicos, o que, não obstante esteja fora do escopo desta
comunicação, revela algo do arcabouço teórico não-expresso dessa agressiva campanha de
marketing em favor das metodologias ativas.

Assim sendo, nosso problema de pesquisa é tornar explícito esse pressuposto


epistemológico-antropológico e daí tirar três conclusões de ordem prática.

Para tanto, faremos a análise de dois livros que abordam o tema em sua propositura
teórica, deixando em plano secundário o contexto histórico em que foram publicados, ainda
que esse contexto nos traga algumas diretrizes a serem consideradas no momento conclusivo
do artigo. Trata-se de “Educar: Ensinar a pensar, sim, conscientizar não” (1991) e “Educação
para a democracia” (1997), escritos por Dom Lourenço de Almeida Prado3.

Temos por relevante o presente estudo por trazer à consideração do simpósio uma
abordagem tão pouco utilizada para apreciar o tema quanto fundamental para tratá-lo com o
cuidado que suas implicações ético-políticas obviam. De fato, a dimensão estratégica da
educação nacional e sua dependência da formação de gestores capazes de interpretar o
fenômeno da super-valorização das componentes metodológicas dos processos de ensino-
aprendizagem nos parecem evidentes. Esperamos que daí decorra uma inserção do debate,
que à primeira vista parece ser meramente técnico, no horizonte de questões estratégicas,

2
REIS, Fábio Garcia dos. Palavra do Presidente. Disponível em < http://sthembrasil.com/o-que-e-sthem/>.
Acesso em 17/06/2019.
3
Nelson de Almeida Prado (1912-2009), médico de formação, ingressou no Mosteiro de São Bento do Rio de
Janeiro em 1940, tendo assumido o nome religioso de Lourenço, como é conhecido autoralmente. Tornou-se
reitor do Colégio São Bento por 40 anos, e integrou o Conselho Federal de Educação no anos 1980.
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questões essas que possuem, naturalmente, influência na formação das lideranças que tomarão
em conta a dimensão geopolítica dos problemas educacionais.

Apresentaremos o conceito de metodomania no âmbito das duas obras citadas,


relacionando-o com as “metodologias ativas” e concluiremos elencando três linhas de ação
pedagógica a título de contribuição ao debate.

Metodomania é um neologismo usado por Dom Lourenço de Almeida Prado (1991; 1997),
por muitos anos reitor do Colégio São Bento, do Rio de Janeiro, e um dos responsáveis pelo
êxito do ensino ali ministrado. Esse discípulo de Jacques Maritain produziu uma pequena mas
muito densa obra de reflexão sobre o socratismo educacional, baseada no pensamento
aristotélico-tomista do mestre francês. Aqui encontramos nosso referencial teórico.

Com tais premissas, criticou o iluminismo, o marxismo e o utilitarismo como


fundamentos equivocados de uma educação que se proponha respeitar a dignidade da pessoa
humana, promover a realização do sujeito e inseri-lo como cidadão prestante na esfera das
responsabilidades públicas, políticas e laborais. Tendo presentes tais fins, abre-se a questão
metodológica de como organizar institucionalmente a educação dos jovens e, nessa tarefa,
como adequar pedagogicamente as dinâmicas de ensino-aprendizagem. Parte de seus
argumentos aponta para o “vício” da metodomania, que seria comum às três filosofias
criticadas. Tal vício seria primeiramente intelectual, depois moral.

Dom Lourenço insere a esfera pedagógica, onde a questão do método tem seu lugar
corrente, no âmbito da definição clássica de educação, na qual o conceito de habitus é central.

Ora, na escola de Maritain (1968), educar é aperfeiçoar as potencialidades,


virtualidades da pessoa: seja teoricamente (ciência), seja moralmente (práxis) ou tecnicamente
(arte). Se na ordem tradicional, defendida pelo filósofo, as deliberações e decisões se
escoravam na prudência do governante, na ordem moderna tudo dependerá dos procedimentos
tecnológicos. Para tanto, substitui-se a figura do sábio pela figura do perito como autoridade
condutora dos processos. Em vez de “ars cooperativa naturae”, educar será a intervenção
sobre uma presumida tabula rasa dependente completamente do método: metodologia. Em
vez de cura (cuidado) e cultivo, será construção e modelagem. A principal crítica de Dom
Lourenço será quanto à degradação da pessoa humana neste processo, que retira dos fins da
educação a liberdade e a realização pessoal que dependem, segundo ele, da aquisição de
habitus. O autor elabora sua crítica ao discutir problemas éticos e axiológicos pertinentes à
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escola, evocando o Maritain de Art et Scolastique a fim de criticar o cartesianismo larvado em


nossa cultura pragmática. Afirma:

A história começa muito longe, mas há uma figura particularmente significativa para
essa destruição do habitus, para a negação real dessas qualidades, desses acréscimos
espirituais que agilizam a inteligência, e lês dão plenitude. É o celebrado Descartes,
no seu conhecido Discurso sobre o Método. Propõe ele uma Ciência Universal, que
permite, “mesmo aos que não estudaram, o entendimento das coisas”. Descartes
concebe o método como um meio infalível e fácil de fazer chegar à verdade os que
não estudaram e a gente do mundo. [...] uma “acefalia espiritual”, isto é, a uma
lógica e a uma linguagem cuja propriedade mais maravilhosa é de dispensar de
pensar (PRADO 1991: 234-5).

Para Prado (1991:235), “a metodomania é uma das doenças da educação moderna”,


que se expressa, não somente no desequilíbrio de um “pedagogês” que dificulta a
comunicação entre os principais atores do universo educacional – familiares, professores,
gestores –, senão também revela o pragmatismo de base que corrompe a preparação para o
trabalho e o exercício da cidadania. De um lado, pondera ele, a metodomania multiplica as
instâncias da burocracia escolar, deslocando a autoridade do ensinar, que era afeta mormente
ao professor, para uma rede de especialistas que operam múltiplos conselhos e comissões. O
novo formato – que Prado considera nascido na Lei 5692/71 –, por outro lado, acarretaria um
decréscimo da responsabilidade do estudante em face dos conteúdos, que deixam de ser
fundamentais (PRADO 1991:235). Desta forma, os processos e os meios, os métodos e os
recursos passariam a absorver crescente e paulatinamente a dinâmica escolar em detrimento
da formação do estudante, que se caracteriza, exatamente, por ser o indivíduo capaz de se
qualificar mediante a aquisição do habitus.

Assim, o como passa a prevalecer sobre o quê, deixado cada vez mais na imprecisão o
papel específico do aluno e sobrecarregando o professor, a quem se passou a atribuir a tarefa
de levar o aluno a aprender; portanto, a tarefa de aplicar metodologias inovadoras que
estimulem e valorizem as particularidades do discente. A invenção, nesse contexto, de um
aluno-não-estudante, teve consequências que Prado identifica 20 anos após a lei em causa: o
aluno perde a noção de que é ele quem aprende; o livro didático passa a ser descartável e se
transforma numa espécie de roteiro de aula pronto; os trabalhos em grupo favorecem o acesso
à informação, mas não ao conhecimento (PRADO 1991:237-8).

O autor extrai daí algumas consequências que podem explicar o fracasso escolar.
Começa relacionando a desimportância dos conteúdos ao desprestígio docente do professor.
Se “a função da escola é mais promover a socialização da criança e do adolescente, para a
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qual o ensino é mera oportunidade”, surgem as críticas de que a escola “não tem ressonâncias
na vida”, e que o professor “é uma figura ridícula que leva a sério coisas inúteis” (PRADO
1991:238). Assim, sobre os ombros do professor passou a pesar o ônus de aprovar a todos, de
“recuperar” a todos, uma vez que os objetivos sócio-econômicos da escola – hoje, a 20 anos
da época em que se escreveram essas páginas, diríamos “inclusivos” – seriam mais relevantes
do que os objetivos instrucionais. Mais: seriam quase hegemônicos, se levarmos em conta que
o terreno da educação escolar é suscetível de manipulações ideológicas diversas. Entre elas, o
autor percebe a desconstrução dos papeis instrucionais do adulto e do professor, eu passaram
a ser identificados como “opressores” interferindo com sua suspeita autoridade nas
“liberdades” discentes que foram associadas à “classe oprimida” (PRADO 1991:242).

Ainda em linguagem de hoje, estaria em curso dentro da ênfase nas metodologias um


“empoderamento” do aluno-não-estudante. Aqui se imbrica a principal justificativa da
metodomania: o apelo à “democratização do ensino”. O conceito bem desenvolvido por Prado
(1997) ganhou proporções dignas de nota ao tangenciar o sentido da educação baseada no
habitus; um sentido que modificou a noção mesma de democracia e de educação, mediante
um dos principais corolários da metodomania: o igualitarismo.

Prado assinala o desprestígio da carreira do magistério como decorrente da sub-


valorização do docente como um funcionário que justifica sua função social nos escopos do
“escolanovismo”, no qual “o professor tem a tônica de sua formação na habilidade em
funcionar como animador de debate em uma classe ativa [...] à custa da diminuição do
conteúdo: o professor fica sabendo como ensinar, mas ignorante do que vai ensinar” (PRADO
1991:241). Tal rebaixamento está associado ao utilitarismo, pondera o autor, refletindo que aí
se encontra um aviltamento não só do professor, mas do homem mesmo, que “deve ser
educado para ser ele mesmo, para ser livre, não para ser reduzido ao meio de produção”
(PRADO 1991:242). Essa crise dos fins da educação revela a desumanização da escola, num
horizonte de democratização igualitária do ensino e da gestão escolar, bem como da
universalização do acesso à escola, que, segundo o autor, rompem com paradigmas de
qualidade a ponto de comprometer o mínimo fundamental acesso à cultura e suas
competências básicas numa sociedade moderna. “A solução não pode ser baixar o nível da
escola” (PRADO 1991:245).

Desta maneira, a metodomania não se circunscreve apenas ao âmbito, pretensamente


neutro, da técnica didática ou da epistemologia, mas revela uma essencial alteração da
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concepção de ser humano e dos fins da educação que lhe convêm. O igualitarismo e o “horror
ao habitus” inerentes às metodologias ativas, portanto, inviabilizam de saída o objetivo
primordial da educação que é aperfeiçoar, tornar o aluno melhor, diferenciado, qualificado.

Prado formula o problema metodológico desde a conhecida oposição entre “escola


tradicional” e “escola progressista” que “agiganta os meios por ter perdido o endereço do fim
da educação” (PRADO 1997:143). O utilitarismo levaria ao “delírio de métodos e processos”,
sinal de uma “antiintelectualismo” que “tem horror ao saber pelo saber, preferindo o saber
prático, o saber fazer, de tal modo que tudo se concentra no entretenimento”, sob o pretexto
de que “a função da escola não é fazer conhecer, mas „aprender a aprender‟.” Ora, assevera o
autor, esse aprendizado do pensamento é formal, e precisa ir adiante e se aplicar às coisas do
mundo real. Ele, no entanto, não avança na análise pedagógica da metodomania, que nos daria
a dimensão das perdas embutidas nas chamadas “metodologias ativas.”

É preciso ressaltar que essa questão, colocada a uma século XX que viu a
industrialização e a urbanização se globalizarem, demandando escolarização de massa, essa
questão foi colocada no interior do debate entre escola tradicional e escola progressista, sim,
como quer Prado. Com seu ideal de espontaneidade da criança, espécie de otimismo
antropológico que preconiza “respeito” (!) ao seu ritmo, suas preferências, e validando a
didática lúdica e “interessante”, que dá toda a liberdade à criança na construção do seu saber,
nada deve impôr, sob pena de ser tachada de “autoritária”. Ora, autores contemporâneos como
francês Gilles Lipovetsky (2019) reconhecem que estas pedagogias estão na origem do
fracasso na aquisição de conhecimentos. Seu estudo sobre a sociedade da sedução seria um
caminho para passarmos do “horror ao habitus” de Prado à compreensão do fracasso escolar.

Diz Lipovetsky:

O fracasso das pedagogias modernas [...] é flagrante, pois não permitem nem a
aquisição de competências escolares elementares nem a redução das desigualdades
sociais e da influência do meio de origem sobre os alunos. [...]

Fomos demasiado longe na eliminação dos métodos tradicionais de transmissão que


são necessários para a aprendizagem da leitura e da escrita, para adquirir os
mecanismos necessários ao bom exercício do pensamento (LIPOVETSKY
2019:347-348).

Para ele, “isto não significa os apelos ao regresso da escola de outrora”. Mas é
inegável que o sucesso educacional das gerações passadas se deveu ao paradigma clássico,
argumenta ele, que de acordo com Prado se baseava na psicologia do habitus. Prossegue:
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A aquisição dos saberes abstratos e cultivados exige necessariamente esforços


perseverantes, disciplina intelectual, repetição, exercícios geralmente fastidiosos.
Nem tudo deve ser lúdico e atrativo: o trabalho difícil, metódico e organizado dos
alunos é necessário para transmitir o patrimônio dos saberes e desenvolver as
capacidades de intelecção de todos (LIPOVETSKY 2019: 349).

A assertiva no sugere pontos de interesse a respeito do fracasso da educação brasileira.


Primeiro, é inegável que as “pedagogias libertadoras” e os processos de inclusão baseados nas
estatísticas sociológicas têm assinalado a educação brasileira há quase cinco décadas. Metas
de produção e de salvaguarda de direitos fundamentais vêm atingindo metas quantitativas,
realizando utopias igualitárias que Lipotevsky (2019: Introdução) avalia como derivadas de
uma antropologia da sedução, isto é, os destinatários dos processos educacionais são tomados,
antes de tudo, como “consumidores”. Desta forma, a natural tendência do homem a “agradar e
tocar” teria sido reduzida a formas muito primitivas e imediatas de satisfação, que impedem –
dizemos nós, a partir de Prado – a aquisição do habitus. Ora, o habitus é um “patrimônio
espiritual” que “diversifica”, “torna um diferente do outro”, pelo que “a sociedade moderna,
igualitarista, tem horror ao habitus, tem horror a esses títulos de nobreza metafísica que
qualificam as pessoas” (PRADO 1997: 145; 147). Portanto, estamos lidando, aparentemente,
com causas do fracasso escolar que possuem uma dimensão ética que está suposta ao debate
técnico-pedagógico.

A ética igualitária, que domina os pressupostos educacionais hoje transcritos em


termos de direitos fundamentais, invalida os recursos pedagógicos concebidos ao longo de
milênios com a finalidade de levar o aluno a adquirir habitus. Essa deslegitimação só se
agravou com a pauta da inclusão digital, posto que o problema do fracasso escolar deixou de
ser apenas objeto de um debate sobre métodos para perder o sentido diante da naturalização
das mídias em rede. Esse mundo em rede instaurou um processo de superação do debate
moderno entre tendências pedagógicas que marcou o século XX e é avaliado por Lipotevsky
(2019: 351): “Ao peso da aquisição tradicional dos saberes, sucede uma aprendizagem
„informal‟, fragmentada e descontínua, que permite menos submissão ao discurso do mestre,
mais interatividade e autonomia dos alunos que se tornam assim „agentes das suas próprias
aprendizagens‟”. Esse diapasão pós-moderno caracteriza as metodologias ativas, levando o
estudante a adquirir uma cultura fragmentada que, no limite, nega a própria escola como
ambiente de organização de saberes e sua vinculação com a sociedade histórica da qual faz
parte e pela qual deveria ser responsável segundo o mais imediato conceito de justiça: dar a
cada um o que é seu.
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A ruptura com as linguagens e referências simbólicas vinculantes conduz à perda do


sentido de pertencimento e suas correlatas responsabilidades éticas, como critica Lipovetsky.

[...] não podemos abandonar a escola clássica, a única capaz de fornecer os


conhecimentos básicos para saber ler, escrever, contar, exprimir-se corretamente,
argumentar, expor com correção e rigor as ideias. Não enterremos demasiado
depressa as práticas metódicas de aprendizagem, que, baseadas na repetição, na
memorização, na transmissão das referências fundamentais, são tão indispensáveis
como o eram no passado. A liberdade do espírito e a formação das mentes “bem
feitas” exigem a perpetuação de alguns métodos clássicos “estritos”, mais
necessários que nunca numa época de excrescência dos dados e de dispersão
”googlizada”. É ilusório pensar que as navegações na Internet estão à altura desta
exigência e que são capazes de assegurar a aprendizagem do rigor intelectual, bem
como o domínio das normas da expressão oral e escrita (LIPOVETSKY 2019: 354).

A transformação da massa crescente de informações em conhecimento e competências


variadas necessitaria da aquisição do habitus. Uma educação centrada no método convém
mais ao adestramento do que ao ensino, conduzindo a automatismos que formam imitadores,
afirma Prado (1997:146). A distância entre ensino e adestramento é significativa na
apreciação de possíveis fatores que expliquem o fracasso escolar.

Dessa maneira, encaminha-se a conclusão dessas considerações, propondo como pista


para equacionar o problema do fracasso escolar, primeiro a crítica pontual da premissa
igualitária. Seja devido à demagogia política que manipula o natural desejo de prestígio social
conferido pela titulação acadêmica, seja por conta de injunções econômicas que fazem do
aluno um “cliente”, o igualitarismo não permite a transformação do aluno em estudante. Em
outras palavras, não faz da escola um lugar de formação dos habitus. Isso exigiria considerar
que qualquer educação digna desse nome, na medida em que qualifica, aperfeiçoa, também
elitiza. É preciso, pois, alterar o imaginário social que desvaloriza as elites em nome de uma
igualdade impossível ou para responder, temerariamente, àqueles que se sentem “vítimas” das
condições sociais e econômicas de oferta de vagas no sistema educacional.

Em segundo lugar, para se restituir à escola o papel de promover os estudos, formar o


estudante, será preciso reconhecer o habitus fundamental que opera tal qualificação. Trata-se
de retomar a alma da escola, aquele conjunto de ordens e de ritos de ensino-aprendizagem que
foi chamado de “estudiosidade”. Parte integrante do habitus da temperança, estudiosidade não
significa apenas dedicação, aplicação ao estudo, mas aquela disposição do espírito que
modera a dispersão do interesse e o falecimento da concentração. A ela se opõem dois vícios:
por excesso, o da curiosidade (ânsia imoderada de conhecimentos); e por defeito, a preguiça
ou negligência na aquisição de conhecimentos necessários ao cumprimento do dever.
XII SIMPED – Simpósio Pedagógico e Pesquisas em Educação - 2019 9

Aqui, vale citar Tomás de Aquino:

[...] o objeto da temperança é moderar o movimento do apetite, a fim de não buscar


com excesso o que é naturalmente desejado. Ora, assim como o homem
naturalmente deseja os prazeres da mesa e do sexo, pela natureza do seu corpo,
assim, a sua alma naturalmente deseja conhecer; por isso, diz o Filósofo, que todos
os homens naturalmente desejam saber. Ora, a moderação desse apetite é o objeto da
virtude da estudiosidade [...] está compreendida na modéstia.

Como diz o Filósofo, para o homem tornar-se virtuoso, há de contrariar aquelas


inclinações a que, sobretudo, o impele a natureza. E daí resulta que [...] o mérito da
virtude da temperança, [consiste] em refrearmos de certo modo os prazeres da carne.
Mas, relativamente ao conhecimento há em nós uma inclinação contrária. Porque,
pela nossa alma somos levados a desejar o conhecimento das coisas; e, assim, é
louvável refrearmos esse apetite, para não buscarmos com excesso o conhecimento
delas. Mas, pela sua natureza corpórea, o homem se inclina a fugir do trabalho de
buscar a ciência. Quanto ao primeiro ponto, pois, a estudiosidade consiste em
refrear; e faz parte da temperança. Mas, quanto ao segundo, o mérito dessa virtude
consiste na força da aplicação empregada para obtermos a ciência; e disso tira ela a
sua denominação (ST 2ª 2ªe q.166, a2).

Como se pode ver, a oferta maciça de informações atinge antes de tudo a curiosidade,
mas não forma o estudante. É fácil de se entender que a multiplicação de apelos visuais etc.
num ambiente de pouca seletividade, sem a prévia edição feita pelos tradicionais meios de
censura e seus critérios de qualidade, favorece a ruptura com toda disciplina discente. De fato,
observa Tomás que “a estudiosidade não recai diretamente sobre o conhecimento intelectual,
mas, sobre o desejo do conhecimento e o esforço [...] por alcançar a verdade.” Assim sendo o
fracasso escolar não será superado por metodologias que reforcem a indisciplina discente
favorecendo a curiosidade, “vício que consiste na desordenação mesma do apetite e do estudo,
na aprendizagem da verdade” (Loc. cit).

Em terceiro lugar, é necessário possuir um perfil do aluno ingressante, que seja capaz
de configurar o que se poderia preliminarmente chamar de potencial de estudiosidade. Os
fatores sócio-culturais e a escolarização anterior certamente interferem no aproveitamento
escolar, concebido como aquisição do habitus. Em decorrência disso, considerando o fracasso
escolar como a incapacidade total ou parcial do aluno tornar-se estudante, urge proceder a
estudos sistemáticos sobre as causas que estiverem ao alcance de uma análise preliminar.

Como pistas para maturação de uma hipótese de trabalho, o exposto até aqui pode
sugerir: 1) Estabelecer indicadores capazes de esboçar o potencial discente do aluno mediante
a identificação de uma “vocação básica”, entendida como predisposição dominante para
aquisição de competências teóricas, práticas ou técnicas; 2) Testar as hipóteses da
proveniência, valorização do estudo sistemático e cultura superior familiar; 3) Avaliar a
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capacidade de organizar as informações disponíveis segundo critérios de relevância e


efetividade para o aprendizado, a nível de aluno e de matriz curricular.

Um pesquisa qualitativa e aplicada seria capaz de produzir séries anuais durante 4


anos (Enad), devendo concomitantemente desenvolver ferramentas de interpretação que
atuem no desempenho discente do ingressante.

Bibliografia

ALMEIDA PRADO, Lourenço, Dom. Educar – Ensinar a pensar, sim, conscientizar não.
Rio de Janeiro: Agir, 1991.

. Educação para a democracia. Rio de Janeiro: Agir, 1997.

LIPOVETSKY, Gilles. Agradar e tocar – Ensaio sobre a sociedade da sedução. Lisboa: Ed.
70, 2019.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Tradução de Alexandre Corrêa. 2ª ed. Porto Alegre:
Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Livraria Sulina Editora; Caxias do
Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980.

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