ANAIS DO IV Encontro Internacional de Historia Colonial
ANAIS DO IV Encontro Internacional de Historia Colonial
ANAIS DO IV Encontro Internacional de Historia Colonial
279 p.
ISBN 978-85-61586-70-5
historiografia.
4 Papel que escreveu ao principal dos negros dos Palmares sobre as pazes que determinavam
do governador de Pernambuco, escrita no dia 22 daquele mês. Cópia do papel que levaram os
negros dos Palmares. Doc. anexo à carta do governador Aires de Souza de Castro de 22 de
junho de 1678. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D.
1116. O prazo de 30 dias consta apenas da cópia do AHU.
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2 IV Encontro Internacional de História Colonial
6 Carta de Aires de Souza de Castro de 24 de julho de 1678. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fls.
336v, n. 13.
7 Carta de Aires de Souza de Castro a Gangazumba, de 12 de novembro de 1678. AUC, CCA,
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Encontros com a história colonial 3
ver MELO, Josemar Henrique de. A idéia de arquivo: a secretaria do governo da capitania
de Pernambuco (1687-1809). Porto: Tese de Doutoramento - Universidade do Porto, 2006.
Para uma avaliação de toda a coleção do “Conde dos Arcos”, ver o Guia do arquivo da
Universidade. Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra. Coimbra, v. 1, p. 159,
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4 IV Encontro Internacional de História Colonial
1973. Ver também MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos. Nobres contra
mascates. Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 14.
13 FREITAS, Mário Martins de. Reino Negro de Palmares [1954]. Rio de Janeiro:
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Encontros com a história colonial 5
Há aqui uma sintaxe política que é preciso compreender e que está associada ao
modo como os colonizadores e as populações do Novo Mundo entraram em
contato e se enfrentaram no processo de construção das formas de domínio na área
colonial. Esse é o tema central desse breve texto.
O fenômeno histórico que enquadra a questão que se está discutindo é o da
expansão europeia da época moderna, que incorporou novas áreas “além-mar” ao
domínio das monarquias nacionais que se haviam formado naquele continente. No
caso português, que focalizo aqui, esse processo envolveu a formação de um império
colonial, que articulava territórios espalhados pelos quatro cantos do mundo,
habitados por uma diversidade de povos. Não há dúvida a respeito das tensões e
dilemas que a dominação colonial fez brotar e os historiadores não se cansam de
debater a natureza dos vínculos e nexos políticos, econômicos e culturais que
estiveram em jogo no processo de dominação e exploração das riquezas do Novo
Mundo pelos europeus.17
Grande parte da literatura sobre o tema da expansão ultramarina e da colonização
europeia no ultramar tem se dedicado a analisar seus aspectos econômicos e políticos
mais amplos. A colonização tem sido habitualmente tratada pela historiografia a
partir de grandes temas relacionados à economia, como a ocupação, o povoamento e
a valorização das terras do Novo Mundo, ou a exploração das riquezas produzidas
costumes, ao direito natural e às regras tradicionais. Para ser obedecido por seus vassalos, o
rei ou seus delegados tinham que governar com justiça e respeitar os usos e costumes locais.
Ao perdoar Gangazumba, o príncipe reafirmava suas qualidades como bom governante, em
condições de exigir obediência a seu novo “vassalo” Tal pressuposto envolvia,
necessariamente, princípios laicos e religiosos, associando as noções de fidelidade e
vassalagem, como bem observou CARDIM, Pedro. Religião e ordem social. Em torno dos
fundamentos católicos do sistema político do antigo regime. Revista de História das
Idéias. Coimbra, v. 22, p. 133-174, 2001.
16 Para o Reino de Angola, vide HEINTZE, Beatriz. Luso-african feudalism in Angola? The
vassal treaties of the 16th to the 18th century. Revista Portuguesa de História. Coimbra, v.
18, p. 111-131, 1980; e SANTOS, Catarina Madeira. Escrever o poder: os autos de
vassalagem e a vulgarização da escrita entre as elites africanas Ndembu. Revista de História.
São Paulo, v. 155, p. 81-95, 2006; para o Estado da Índia, vide SALDANHA, Antonio
Vasconcelos. Iustum Imperium. Dos tratados como fundamento do Império dos
portugueses no Oriente. Estudo de História do Direito Internacional e do Direito Português.
Lisboa: Fundação Oriente, 1997.
17 Há, evidentemente, modos diversos de abordar o tema, com implicações teóricas que não
vou discutir aqui. Para uma análise clássica e marcante da colonização portuguesa moderna
ver NOVAIS, Fernando Antonio. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial
(1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979, especialmente cap. 2. Para um exame mais específico
dos nexos coloniais no século XVII português, vide ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato
dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico sul. Séculos XVI e XVII. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
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6 IV Encontro Internacional de História Colonial
18 Ver, a esse respeito, os comentários de BOSI, Alfredo. Colonia, culto cultura. A dialética
defendidas nos diversos programas de pós-graduação do país a partir dos anos 1980-1990.
Ver, por exemplo, CAPELATO, Maria Helena Rolim; FERLINI, Vera Lúcia A. e GLEZER,
Raquel (Eds.). Produção histórica no Brasil, 1985-1994. São Paulo: Xamã, 1995, 3 vols.
21 Vide, por exemplo, SILVA, Rogério Forastieri da. Colônia e nativismo: a história como
“biografia da nação”. São Paulo: Hucitec, 1997; e FURTADO, João Pinto. O manto de
Penélope. História, mito e memória da inconfidência mineira de 1788-9. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. O tema torna-se mais candente nos estudos voltados para o
período da independência. Um panorama dos desdobramentos desta perspectiva pode ser
encontrado nos artigos da coletânea organizada por JANCSÓ, István (Org.). Brasil:
formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec/ Editora Inujuí/Fapesp, 2003.
22 Ver FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva e BICALHO, Maria Fernanda
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Encontros com a história colonial 7
apuros. Notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no império
colonial português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, J. F. (Org.). Diálogos oceânicos,
p. 197-254.
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8 IV Encontro Internacional de História Colonial
25 Ver, por exemplo, FERRONHA, Antonio Luís (Org.). O confronto do olhar. O encontro
dos povos na época das navegações portuguesas. Lisboa: Ed. Caminho, 1991; e
BETHENCOURT, Francisco e CHAUDURI, Kirti N. (Orgs.). História da Expansão
portuguesa. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, especialmente volumes 1 (A formação do
Império, 1415-1570) e 2 (Do Índico ao Atlântico, 1570-1697).
26 Ver, entre outros, THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do
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Encontros com a história colonial 9
uma capitania com um governador nomeado pelo rei português. A partir de 1607, a
Coroa retomou para si o governo, passando a nomear a cada três anos um capitão-
mor e governador da “conquista e reino de Angola e das mais províncias dela”.27
Tornou-se, assim, um poder concorrente em relação aos demais reinos e chefes
locais, lutando para impor a eles laços de vassalagem. Assim como os chefes
africanos, o governador de Angola buscava alianças com o poder militar oferecido
pelos bandos Imbangala.28 Conjugava guerra e alianças para fortalecer seu domínio
sobre a região, seus habitantes e riquezas.
Diferentemente do que ocorria no Kongo, onde os portugueses combatiam
grupos dissidentes com o apoio dos poderes locais, em Angola os portugueses se
aliavam e lutavam com os vários reinos e grupos políticos e militares africanos.29 As
posições portuguesas dependiam das guerras de conquista: eram elas que permeavam
as relações com os reinos e sobas locais, que permitiam o controle sobre as redes
comerciais que forneciam lucros, por meio da cobrança de impostos e do próprio
comércio de escravos e marfim (os principais produtos). Elas constituíam, também,
as formas mais rápidas de enriquecimento, pois ofereciam ocasiões propícias para o
comércio particular e para o roubo. A tensão entre defender e controlar as redes
comerciais ou guerrear envolvia não apenas os interesses da Coroa, como incluía
ainda aqueles dos governadores, dos agentes do tráfico e dos sobas. Sem guerras e
acordos de vassalagem, os navios do tráfico que zarpavam para a América não
podiam ser abastecidos.
Havia, portanto, uma sintaxe que conjugava guerra e paz, e articulava autoridades
portuguesas e linhagens locais, do Kongo e do Ndongo (e, depois, com menos
estabilidade, de Matamba e Kasanje).30 Expressa em kikongo, kimbundo e português,
essa sintaxe fazia sentido para os falantes das várias línguas. Guerras, campanhas
punitivas ou defensivas, acordos políticos e alianças militares estavam imbricados e
promoviam a produção e a circulação de escravos. A ação militar não era possível
sem o domínio político e vice-versa: o envio de tropas e a ajuda em caso de guerra
legitimava e assegurava os acordos de vassalagem, ao mesmo tempo em que fazia
parte de suas cláusulas, negociadas por meio de embaixadas nas quais os missionários
Creoles, and the foundation of the Americas, 1585-1660. N. York: Cambridge University
Press, 2007.
29 BIRMINGHAM, David. The Portuguese conquest of Angola. Londres: Oxford
especialmente cap. 3.
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10 IV Encontro Internacional de História Colonial
31 FAUSTO, Carlos. Os índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 75.
32 Cf. FAUSTO, Carlos. Fragmentos da história e cultura tupinambá: da etnologia como
instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da
(Org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; FAPESP/SMC,
1992, p. 381-396.
33 Para uma visão geral do avanço do processo colonizador sobre os territórios indígenas ver
HEMMING, John. Os índios e a fronteira no Brasil colonial. In: BETHEL, Leslie (Org).
História da América Latina: A América Latina colonial. São Paulo: Edusp; Brasília:
Fundação Alexandre de Gusmão, 1999, p. 423-469. Para uma análise mais específica da
política de aldeamentos ver ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses
indígenas. Identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2003, cap. 2.
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Encontros com a história colonial 11
contemplado pela legislação. Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da. Terra indígena: história da
doutrina e da legislação. Os direitos dos índios. Ensaios e documentos. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 58-61.
36 THOMAS, G. Política indigenista dos portugueses no Brasil, 1500-1640. São Paulo:
OLIVEIRA, João Pacheco de. (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro:
Contracapa, 2011, p. 47-67; e GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e Alianças: os Potiguara
no conflito luso-holandês (1630-1654). In: POSSAMAI Paulo (Org.). Conquistar e
Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil - Estudos de História Militar na Idade Moderna.
São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 143-155.
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12 IV Encontro Internacional de História Colonial
300-304.
40 Os termos rei e súditos aparecem em vários documentos relativos à história de Palmares,
designando Gangazumba e os mocambos sob seu domínio. Talvez o melhor exemplo seja a
Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador dom Pedro
de Almeida de 1675 a 1678.
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Encontros com a história colonial 13
41A hipótese é extensamente analisada em LARA, Silvia Hunold. Palmares & Cucaú. O
aprendizado da dominação. Campinas: Tese de Titularidade UNICAMP, 2009.
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Encontros com a história colonial 15
1 Essas reflexões são fruto dos projetos financiados pelo CNPq: Além do Centro-Sul: por uma
história da população colonial nos extremos dos domínios portugueses na América (coordenado por Sergio
O. Nadalin – UFPR) e Família e sociedade no Brasil meridional -1772-1835 (coordenado por Ana
Silvia Volpi Scott). Acrescente-se também o projeto Gentes das Ilhas: trajetórias transatlânticas dos
Açores ao Rio Grande de São Pedro entre as décadas de 1740 a 1790 (coordenado por Ana Silvia
Volpi Scott e com financiamento Fapergs e CNPq). A autora agradece a essas instituições.
2 Programa de Pós-Graduação em História/ Unisinos.
3 CHAUNU, Pierre. Histoire, science sociale. Paris: SEDES, 1974.
4 Apud NAZARETH, J. M. Demografia – a ciência da população. Lisboa: Editorial
Presença, 2004.
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16 IV Encontro Internacional de História Colonial
estritas.5 Como será possível ver, mais adiante, o uso adequado e elaborado de
conceitos demográficos pode dar uma contribuição fundamental para compreensão
da sociedade no passado colonial latino-americano.
Contudo, antes de entrar na problemática privilegiada nesta comunicação, é
importante tecer algumas considerações sobre os elementos que interferem no
comportamento das populações, pois isso nem sempre está claro para os
pesquisadores que não estão familiarizados com a Demografia Histórica ou com os
estudos de população em perspectiva histórica.
Em linhas muito gerais, o estudo do passado colonial americano também pode ser
feito a partir de uma perspectiva demográfica, que leva em conta tanto a estrutura
como a dinâmica da população.
Quando nos referimos ao estudo da estrutura de uma população, qualquer que
seja, estamos nos referindo às características “estáticas”, isto é, a um momento no
tempo, que nos informam sobre o tamanho da população, sua distribuição territorial
e sua composição por sexo, idade, cor, ou características socioeconômicas (são as
chamadas “estatísticas de estoque”). Por outro lado, quando nos mencionamos à
dinâmica populacional, referimo-nos a eventos que modificam estas características,
como são os nascimentos (natalidade), casamentos (nupcialidade),6 óbitos
(mortalidade) e a migração/ mobilidade da população (estatísticas de fluxo).
No que tange especificamente ao mundo de colonização ibérica na América é
necessário sublinhar ainda algumas características compartilhadas pelas populações
radicadas neste espaço. A primeira característica, sem dúvida, é a sua
heterogeneidade, tanto do ponto de vista étnico, quanto cultural e religioso. A
mestiçagem é outro traço distintivo das populações coloniais e, talvez, especialmente
intensa no espaço dominado pela coroa portuguesa.
A presença dominante de formas compulsórias de trabalho também conforma
mais uma característica importante das populações da América de colonização
5 Minha tese de Doutorado, Famílias, Formas de União e Reprodução Social no Noroeste Português,
socialmente reconhecida (através do casamento que, por sua vez, legitima a reprodução
biológica).
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Encontros com a história colonial 17
de ilustração cito o número especial revista População e Família, vol. 5, 2003, sobre a
família ibero americana; assim como a revista História Unisinos, vol. 11, 2007 com dossiê
temático sobre família latino-americana.
9 Conforme projeto submetido ao CNPq: Além do centro-sul: por uma história da população
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18 IV Encontro Internacional de História Colonial
ameríndio e, ao mesmo tempo, criou o “mito das três raças” fundado no pressuposto
de que as relações étnicas no Brasil sempre se deram harmoniosa e pacificamente.
Nadalin nos revela que, somente tempos depois, na viragem da década de 1960
para a de 1970, é que houve uma mudança substancial nessa interpretação clássica,
que foi resultado do avanço do diálogo de pesquisadores brasileiros com
historiadores e demógrafos europeus, particularmente os ligados às instituições
francesas e inglesas. A partir daí, foram introduzidos em determinados centros de
pesquisas no Brasil, as novas formas de a historiografia tratar a matéria “população”.
Sobressaem neste contexto os nomes de Maria Luiza Marcílio, assim como as
contribuições fundamentais do grupo reunido na Universidade Federal do Paraná
(UFPR), sob a direção de Altiva Pilatti Balhana e Cecília Maria Westphalen.
No entanto, para nossos objetivos, partiremos das considerações elaboradas por
Maria Luiza Marcílio, em capítulo intitulado “A população no Brasil Colonial”, que
integra a coleção História da América Latina (organizada por Leslie Bethell).10
Naquela oportunidade a autora chamava a atenção para o fato de que o estudo e a
reconstituição da população brasileira durante a era colonial, seu tamanho no
decurso de três séculos, seus componentes regionais e seu ritmo de padrões de
crescimento era uma tarefa que “só muito recentemente começava a interessar
estudiosos brasileiros”.
Um dos obstáculos que havia dificultado o estudo da população em perspectiva
histórica, sem dúvida, estava atrelado à disponibilidade de fontes documentais
apropriadas. Por conta disso, a autora propunha uma classificação dos períodos da
história do Brasil, para efeito de estudo da demografia retrospectiva, mostrando que
estudos mais acurados de demografia só seriam possíveis a partir da segunda metade
do século XVIII, quando as fontes se tornariam mais abundantes. Contudo, somente
no último quartel do século XIX que, de fato, começaram a ser produzidas com
regularidade as fontes propriamente demográficas, isto é os Censos (1872 é o ano do
primeiro recenseamento nacional, único no período escravista) e, o Registro Civil de
nascimento, casamentos e óbitos (instituído a partir de 1890).11
Em que pesem as dificuldades relativas à disponibilidade de fontes e a limitação
dos estudos sobre população elaborados até então, Marcílio apresentava as
características básicas da demografia do Brasil colonial, distinguindo três padrões
10 Publicado originalmente em inglês pela Cambridge U. Press, em 1984. A versão brasileira
da coleção saiu em 1999. Veja-se: MARCÍLIO, M. L. A população do Brasil Colonial. In:
BETHELL, Leslie. História da América Latina: A América Latina Colonial. São Paulo:
Editora da USP; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, vol. II, 1999, p. 311-338.
11 O registro anteriormente era da competência da Igreja (sob o padroado régio), constituindo
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Encontros com a história colonial 19
12Em 2005 foi publicada uma reflexão crítica sobre os quarenta anos de Demografia
Histórica no Brasil, onde os autores aprofundam essa discussão. O artigo publicado na
REBEP pode ser acessado em http://www.scielo.br/pdf/rbepop/v22n2/v22n2a09.pdf.
Assinam a publicação Carlos Bacellar, Ana Silvia Volpi Scott e Maria Silvia C. B. Bassanezi.
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20 IV Encontro Internacional de História Colonial
Más allá del Centro-Sur: por una historia de la población colonial en los extremos de los
domínios portugueses en América (siglos XVII-XIX). In: CELTON, Dora; GHIRARDI,
Mónica; CARBONETTI, Adrián. (Org.). Poblaciones históricas: fuentes, métodos y líneas
de investigación. Rio de Janeiro: ALAP Editor, 2009, p. 137-153.
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15 MARCÍLO, Maria Luiza. Sistemas demográficos no Brasil do século XIX. In: MARCÍLIO,
M. L. (org.) População & sociedade. Evolução das sociedades pré-industriais. Petrópolis:
Vozes, 1984, p. 193-207.
16 NADALIN, S. O. História e Demografia: elementos para um diálogo. Campinas:
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Encontros com a história colonial 23
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24 IV Encontro Internacional de História Colonial
de São Pedro na segunda metade do século XVIII. Aqui estamos trabalhando, além
da freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre com as freguesias de Viamão e Itaqui
e a pesquisa está em sua primeira etapa. Nossa atenção está voltada, inicialmente,
para os assentos de casamento e batizado.
Enfim, o aprofundamento da discussão sobre a população no mundo colonial
demanda, de acordo com nosso ponto de vista, um investimento maior na reflexão
sobre os diferentes regimes demográficos que coexistiram no passado brasileiro.
Somente um debate alimentado pela exploração das fontes paroquiais poderá
fornecer algumas das repostas sobre a dinâmica populacional na América portuguesa
e como essa impactou nos sistemas familiares que se organizaram no espaço luso.
A exploração sumária dos dados coletados para a Madre de Deus já confirmou
que algumas das características demográficas estavam presentes também na região do
extremo sul da colônia lusa na América.
A atual cidade de Porto Alegre, capital do estado mais meridional do Brasil - o
Rio Grande do Sul - teve sua origem na freguesia da Nossa Senhora da Madre de
Deus de Porto Alegre. Localizada às margens do Guaíba, na região conhecida à
época por “Campos de Viamão”, Porto Alegre, conforme Sandra Jatahy Pesavento20
teve sua origem na sesmaria de Santana, recebida por Jerônimo de Ornelas em 1740.
Inicialmente a região que se caracterizaria pelas estâncias de criação de gado para o
mercado interno, por conta da necessidade de animais para abastecimento e
transporte na região de Minas Gerais, que à época vivia o auge da exploração
aurífera.
Em 1772, o Porto dos Casais foi elevado à condição de freguesia (denominada
São Francisco dos Casais), desmembrando-se de Viamão. Em 1773, finalmente,
passa a ser denominada como “freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre”, ao
mesmo tempo em que conhece nova etapa de desenvolvimento com a chegada dos
migrantes açorianos, fugidos dos conflitos militares originados da invasão espanhola
do Rio Grande em 1763. A partir daí foram demarcados lotes, ruas e estradas,
reservando-se uma área denominada de Alto da Praia (atual Praça da Matriz), para a
instalação dos primeiros equipamentos públicos e, paralelamente, foram distribuídas
datas de terra aos açorianos.
De um povoado tranquilo, na encruzilhada dos caminhos, a freguesia de Nossa
Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre seria alçada a Capital do “Continente”
em 1773, vila em 1809 e cidade em 1822.
A forte mobilidade populacional e o crescimento acelerado da população por
conta da entrada de contingentes de fora da capitania e do reino, em maior
proporção sexo masculino, ficaram comprovadas pelos dados levantados: em 1780 a
população da freguesia ultrapassava, por pouco, os 1.500 habitantes; em 1822
20PESAVENTO, Sandra Jatahy (coord.). Memória Porto Alegre: espaços e vivências. Porto
Alegre: UFRGS; Prefeitura Municipal, 1991.
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Encontros com a história colonial 25
alcançar cerca de 12.000 habitantes, como também pela análise da naturalidade dos
homens e mulheres que se casaram na Madre de Deus.
Em relação à natalidade aqui também encontramos elevadas taxas de fecundidade
ilegítima, com uma peculiaridade interessante. Enquanto na década de 1770 a
ilegitimidade rondaria os 30%: desse percentual, 29,4 seriam as crianças naturais e os
expostos somariam 0,8%; na década de 1810 os números continuariam altos, em
torno de 26,4%, mas a distribuição teria sofrido uma alteração digna de nota: as
crianças registradas como naturais teriam tido uma queda significativa, baixando para
19,5%, enquanto que o número de crianças expostas (abandonadas, sem a
identificação de seus pais,) teria subido para quase 7%. Seria essa mudança resultado
da crescente urbanização da freguesia?
Esses últimos indicadores, relativos à fecundidade ilegítima, mostram a
importância das relações entre homens e mulheres que se davam fora do âmbito do
matrimônio reconhecido e legitimado pela Igreja.
O cruzamento dos assentos paroquiais com róis de confessados também nos leva
a perceber outras facetas dessa população. Através do rol de confessados da
freguesia para o ano de 1782 verifica-se que, quase 19% dos fogos, eram chefiados
por mulheres.
A exploração dessa fonte confirma as transformações importantes que ocorreram
na freguesia no último quartel do século XVIII. A população total cresceu, assim
como o número de fogos, embora o tamanho médio do domicílio tenha registrado
pequena queda. O espaço ocupado foi sendo ampliado e redesenhado. De acordo
com o rol relativo ao ano de 1779, a população se distribuía em duas ruas: a Rua da
Praia e a Rua Nova. O grosso da população concentrava na Rua da Praia (82.%).
Pelo mapa apresentado por Clovis Oliveira, relativo ao ano de 1772, outras ruas são
arroladas. Mas a informação do rol de 1779 limita-se a mencionar somente aquelas
duas.21
Clóvis Oliveira afirma que já no início da década de 1770, grandes transformações
teriam marcado aquela localidade: em 1772, por Pastoral do Bispado do Rio de
Janeiro o povoado, conhecido como Porto dos Casais (açorianos que lá se haviam
fixado em 1752), era elevado a Freguesia. E o capitão Engenheiro Alexandre José
Montanha havia sido designado para demarcar a ‘praça do novo lugar’, bem como
traçar as primeiras ruas e as ‘meias datas’ que seriam destinadas aos colonos. Cada
uma delas correspondia a uma área de 135,5 hectares (616m de frente por 2.200m de
fundo).22
Por outro lado, pelo rol de 1782, podemos perceber uma mudança na
organização do espaço urbano e os entornos “rurais”. A população já se aglomerava
21 OLIVEIRA, Clovis Silveira. Porto Alegre a cidade e sua formação. Porto Alegre:
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23 Ibidem, p. 31-38.
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28 IV Encontro Internacional de História Colonial
Nada melhor do que depoimentos coevos de viajantes que por lá passaram, para
nos dar uma ideia de como era este cenário. Um anônimo viajante francês, ao
transitar pelo porto da cidade em 1703, registrou: “A entrada do porto parece-me
bastante bem guardada. Ela é defendida por duas fortalezas [Sta. Cruz e S. João],
entre as quais é necessário passar, o que torna um ataque à cidade tarefa de difícil
execução”.4
Ao continuar a sua descrição sobre a entrada da baía e as qualidades de suas
fortificações, relatou certa particularidade: “Isso se dá graças à estreiteza da
embocadura que dá acesso ao porto e à cidade, embocadura que obriga os navios a
passarem muito próximo da fortaleza de Sta. Cruz.”
Citemos um último exemplo, também de autor anônimo, um dos tripulantes do
navio francês L´Arc-en-Ciel, que lá esteve em 1748, e comentou sobre a fortaleza de
Sta. Cruz: “a mais importante do país, está situada sobre a ponta de um rochedo,
num local onde todos os barcos que entram ou saem do porto são obrigados a
passar”.5
Destes relatos, queremos apenas fazer um breve comentário, que
retomaremos mais adiante. Os viajantes, que já haviam circulado por outros
lugares, conheciam um mundo um pouco mais amplo do que o cenário
descrito. Para nossa surpresa, não fizeram menção à precariedade da
estrutura que encontravam, mesmo os que ficaram alguns dias na localidade,
o que lhes possibilitava conhecer melhor aquela realidade.
Este quadro era compartilhado pelos representantes do Estado luso, como por
exemplo, os engenheiros militares Miguel de L’Escolle e Felipe de Guitan.6 Estes
enviaram, em 1649, à D. João IV, informações sobre a barra da capitania. Diziam
eles:
Agora (…) o que toca a entrada da barra desta cidade (…) fica a
fortaleza de Sta. Cruz (…) situada em cima de um penedo saído
no mar. (…) Sua construção é de um parapeito de pedra (…)
defronte desta fortaleza (…) está o forte de S. João (…).
Construído de um parapeito de uma meia parede por de fora e
de um pouco de terra por dentro. (…) E ficará oposta a (…) de
Sta. Cruz.7
citados.
7 FERREZ, G. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800. Rio de Janeiro:
ISBN 978-85-61586-70-5
Encontros com a história colonial 29
8 ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Códice 61, vol. 7, p. 438. Sempre que
possível, optamos por transcrever os documentos utilizando a grafia atual.
9 Ibidem. Ibidem.
10 HESPANHA. Nova História Militar de Portugal…, p. 180-1. Posição compartilhada
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30 IV Encontro Internacional de História Colonial
fortaleza da Laje. Ela só viria a ser erguida nos setecentos. A Laje é um costado de pedra que
se localiza na entrada da barra, exatamente entre a fortaleza de Sta. Cruz e de S. João. Cf.
FERREZ. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800…
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Encontros com a história colonial 31
59-60.
22 SERRÃO, J. V. Do Brasil filipino ao Brasil de 1649. São Paulo: Cia. Editora Nacional,
1968, p. 231 e AHU - Rio de Janeiro, cx. 1, doc. 81, 80, 78, 79, 38.
23 FRAGOSO, J. A Nobreza da República: Notas Sobre a Formação da Primeira Elite
Senhorial do Rio de Janeiro (Séculos XVI e XVII). Topoi. Rio de Janeiro, 7 Letras, p. 76-77,
2000.
24 Como podemos ver nas atas do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, o uso de negros e
índios em obras públicas era comum. Neste corpo documental é possível ver deliberações a
cerca da reforma da cadeia da cidade, em 1640; a construção do aqueduto da Carioca, ao
longo do século, entre outras construções urbanas. (PMDF. O Rio de Janeiro no século
XVII – accordãos e Vereanças do Senado da Camara…, p. 35-6, 36 e 43).
25 COARACY. O Rio de Janeiro no século XVII…, p. 48, 142 e 194.
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32 IV Encontro Internacional de História Colonial
Fonte: João Teixeira Albernaz (o avô). Atlas do Estado do Brasil. Mapoteca do Itamaraty.
171.
ISBN 978-85-61586-70-5
Encontros com a história colonial 33
da Cultura. Rio de Janeiro: Diretoria de Assuntos Culturais, ano VII, nº 12, junho de 2007.
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34 IV Encontro Internacional de História Colonial
A necessidade de defesa da região por parte dos lusos se devia a um duplo medo:
primeiro, o “Mar Tenebroso”, recentemente conquistado e, segundo, a floresta
tropical. Destes cenários poderiam emergir, a qualquer momento, piratas e índios,
respectivamente.
Defesa e colonização andavam de mãos dadas, sendo impossível pensar uma sem
a outra. Para este binômio era vital o conhecimento de vários fatores, a saber:
marítimos, geográficos, climáticos, culturais entre outros. A proteção não só da
cidade como de toda a costa com suas rotas comerciais foi uma preocupação
recorrente por parte dos monarcas.34 Deste modo, nos seiscentos “sempre houve
necessidade de proceder a obras e reparações”35 das fortalezas da cidade.
Característica que também aparece na historiografia que se debruça sobre o tema, em
especial o trabalho de Gilberto Ferrez.36
A urgência de defesa também era discutida no Senado da Câmara. Durante os
anos de 1640, seus membros se reuniram com o governador e com os notáveis da
cidade, entre eles figuras importantes no campo militar, como por exemplo, os
capitães das fortalezas.37
Para tal, uma das figuras principais eram os engenheiros militares. Beatriz Bueno
sublinhou que os desenhos feitos por estes agentes nos permitem apreender não só
“aspectos formais e simbólicos da arquitetura e do urbanismo oficiais implantados
nas conquistas”, mas “entrever os diferentes momentos da política de colonização e
expansão dos tentáculos do Império português nas entranhas do Brasil”. Por meio
33 ANRJ. Códice 61, vol. 9, p. 49.
34 Aqui, naturalmente incluímos os monarcas hispânicos que, durante a União Ibérica (1580-
1640), também eram reis de Portugal.
35 COARACY. O Rio de Janeiro no século XVII…, p. 60.
36 FERREZ. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800…
37 PREFEITURA. O Rio de Janeiro no século XVII– accordãos e Vereanças do Senado
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Encontros com a história colonial 35
vários exemplos de plantas remetidas para a Europa, para serem consertadas, emendadas ou
refeitas. Para citar somente um exemplo, em 1635, o Conselho de Portugal encaminhou ao rei
recomendações para que mandasse vir do Rio de Janeiro “uma planta daquela capitania e das
fortificações que tem e de novo tem feito e se vão fazendo em tão boa forma que se possa
ver por ela ou como tudo esta obrado. E se há de emendar ou acrescentar (…)” Cf.
FERREZ. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800…, p. 124.
40 AHU-Rio de Janeiro, cx. 2, doc. 124-A e AHU_ACL_CU_017, Cx. 2, D. 195.
41 FERREZ. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800…, p. 26.
42 TAVARES DA CONCEIÇÃO, M. A praça da guerra aprendizagens entre a Aula do Paço
da Camara…, p.172.
44 Ibidem. Ibidem, p. 175-6.
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36 IV Encontro Internacional de História Colonial
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Encontros com a história colonial 37
51 Hespanha sublinha que antes da Restauração o perigo vinha do mar com os piratas
marroquinos, ingleses ou holandeses. A principal linha de proteção se situava na costa e,
portanto, a preocupação de defesa se localizava naquela região, que não só concentrava o
efetivo militar, mas os fortes construídos ou reformados. (HESPANHA. Nova história
militar de Portugal…, p. 32).
52 TAVARES DA CONCEIÇÃO. A praça da guerra aprendizagens entre a Aula do Paço e a
experientes também o foram, como por exemplo, o conde de Schomberg (Prússia), que teria
que reorganizar todo o Exército português (TAVARES DA CONCEIÇÃO. A praça da
guerra aprendizagens entre a Aula do Paço e a Aula de Fortificação…, p. 32).
54 FERREZ. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800…; HESPANHA. Nova
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38 IV Encontro Internacional de História Colonial
47, 2002.
59 TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da engenharia no Brasil (séculos XVI a
XIX). Rio de Janeiro: Clavero, 1994, p. 10 e; BUENO E REIS. Cidades e fortes coloniais…,
p. 47.
60 TAVARES DA CONCEIÇÃO. A praça da guerra aprendizagens entre a Aula do Paço e a
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Encontros com a história colonial 39
econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001,
p. 140 e; CARDOSO, C. & ARAUJO, P. Rio de Janeiro. Madri: Mapfre, 1992, p. 72.
62 Sobre algumas diretrizes e decisões tomadas pelo Senado da Câmara no Rio de Janeiro, que
circulação destes agentes dentro deste conceito de “cabeça”. Assim, tinham o Rio de Janeiro
como “sede” e circulavam por áreas subordinadas: Angola, Espírito Santo, Cabo Frio e etc.
Este sistema não era novidade. Afonso de Albuquerque, no século anterior, havia pensado a
defesa da Índia por meio deste preceito. O sistema permitira a diminuição de gastos. Cf.
RODRIGUES, V. A Guerra na Índia, p. 203.
64 TAVARES DA CONCEIÇÃO. A praça da guerra aprendizagens entre a Aula do Paço e a
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40 IV Encontro Internacional de História Colonial
somente no século seguinte. O projeto fora feito por Guitan e L’Escolle e havia sido
remetido para a metrópole. Balesteiros ficou responsável pelo aval final sobre o
projeto e elaborou algumas alterações para a sua execução. Não queremos destacar
aqui as suas interferências na planta, mas a sua concepção de que era necessário
conhecer a região e adaptar um modelo pensado por quem não a conhecia. Vejamos
seu parecer: “para que não se seguisse nenhum erro fiz a planta da plataforma (…),
não para que absolutamente se execute por este tamanho, mas para que sirva de
guia”.65
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Encontros com a história colonial 41
Seu “Methodo” fora tão bem desenvolvido que continuou a ser usado até o
século seguinte. Surgia o estilo português denominado de “Estilo Chão”, “uma
arquitetura de raiz maneirista adaptada ao contexto português e com uma feição
castrense fruto do pragmatismo dos seus conceptores”.69 O conceito de guerra era
pensado com foco na defesa em detrimento ao ataque e baseava-se no conceito de
“praças fortes/cabeças” com a clara divisão entre espaços de fronteiras e espaço
centralizado.
O esforço empreendido pelo Estado luso para a criação dessas aulas era vital,
como já vimos, pois era urgente formar um quadro de engenheiros e técnicos lusos
para que se diminuíssem os gastos com a contratação de estrangeiros. Neste sentido,
há um esforço por “popularizar” a formação de engenheiros. O oficio,
tradicionalmente, era destinado à formação de uma elite e, portanto, direcionada aos
fidalgos. Com a crescente necessidade de pessoal especializado, passava a haver uma
ampliação das origens sociais. Os jovens que substituíram os fidalgos eram
recrutados no próprio Exército dentro dos que apresentavam aptidão. Possuíam uma
formação teórica e prática e começavam a carreira como “ajudantes” dos
engenheiros. Este modelo, no fim do século XVII, foi levado às conquistas: na
Bahia, em 1696; no Rio de Janeiro, em 1698; no Maranhão, em 1699 e; no Minho e
Pernambuco, em 1701.70
As inovações não chegavam a Portugal somente desta forma, com os professores
lusos lendo obras estrangeiras. Apesar da “aula de artilharia e esquadria” o quadro de
engenheiros militares ainda era precário. Algumas consultas continuavam a ser feitas
a estrangeiros e são bastante elucidativas da preocupação da Coroa em termos de
defesa e de uma busca da “modernidade”. Mais uma vez, vejamos a documentação,
da qual extraímos uma citação longa, porém bastante rica:
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42 IV Encontro Internacional de História Colonial
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Encontros com a história colonial 43
conservação e abrigo que se dava a ele. O mesmo já havia ocorrido entre 1649-50,
quando, com as reformas planejadas por Miguel de L´Escolle e Filipe de Guitan,
foram mandadas plantas para o engenheiro militar francês, Pedro Pelifique, dar seu
parecer sobre as fortalezas.72
Lembremos que Ferrez nos mostra uma série de relatos feitos pelos governadores
do Rio de Janeiro que sempre dão conta do péssimo estado das fortificações daquela
capitania.73 Como vimos no início do artigo, o engenheiro francês e outros tantos
viajantes que por aqui passaram conheciam outros cenários. Em seus relatos não há
menção à existência de uma diferença, especialmente no que diz respeito à estrutura
física, entre as realidades. Portanto, somos levados a acreditar que talvez fosse bem
pequena. Do mesmo modo, pensamos que os relatórios feitos pelos governadores,
que mostravam a precariedade da capitania, devam ser vistos com outros olhos.
É o que também percebeu Hespanha ao analisar o cálculo dos efetivos reunidos
nas guerras e batalhas portuguesas nos séculos XIV a XVII, “(…) o desejo de
valorizar a vitória faz subavaliar os efectivos próprios ou o desejo de reputação os
faz aumentar”.74
É claro que a estrutura não era ideal, realmente deveria haver carência de quase
tudo. Mas esta devia ser sentida em outras praças, que não somente as lusas. As
condições materiais na Europa, até mesmo pelo desenvolvimento tecnológico da
época, não eram de uma sociedade industrializada, como temos hoje. Deste modo,
os governadores, a fim de valorizarem seus serviços, deveriam “carregar na tinta”
nos seus relatos. Afinal, conseguir sucesso na defesa de uma praça tão importante
como o Rio de Janeiro, com pouco ou nenhum recurso, lhes daria mais prestígio do
que defender uma praça bem equipada.
72 Ibidem. Ibidem.
73 Ibidem, p. 185-6.
74 HESPANHA. Nova história militar de Portugal…, p. 23. Esta percepção também
aparece nos relatos das batalhas da Restauração Pernambucana, ver também VAINFAS, R.
Traição. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.
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44 IV Encontro Internacional de História Colonial
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Encontros com a história colonial 45
Catarina. Em Santos, Macedo foi informado de que deveria seguir para o Rio de
Janeiro, a fim de entrar em contato com o recém-empossado governador, D. Manuel
Lobo, que entrementes havia sido escolhido por D. Pedro para empreender a nova
fundação.5
Seguindo as instruções de Lisboa, assim que Lobo tomou posse do governo do
Rio de Janeiro, em 9 de maio de 1679, ele tratou de dar início à preparação da
expedição que viria a fundar a Colônia do Sacramento. O governador ordenou o
recrutamento compulsório de quantos homens pôde capturar no Rio: operários,
aprendizes, comerciantes, mendigos e mesmo os presos, aos quais foi concedido o
perdão em troca do alistamento.6 A câmara da cidade não deixou de protestar ao rei
contra o procedimento do governador, pois, a fim de evitar o serviço militar, muitos
agricultores e operários fugiram para as matas,7 abandonando os engenhos,
prejudicando desse modo a economia local.8
A pequena frota chegou sem maiores problemas à ilha de São Gabriel em janeiro
de 1680. Porém, ao tomar conhecimento da chegada da expedição, o governador de
Buenos Aires, D. José de Garro, enviou ao seu encontro uma comissão a fim de
requerer ao comandante dos navios que abandonasse as terras do rei de Espanha,
pois se não o fizesse com toda a brevidade, usaria da força para desalojá-lo da região.
D. Manuel Lobo não deixou de demonstrar firmeza na discussão que se seguiu entre
portugueses e espanhóis sobre a posição em que a linha de Tordesilhas passava no
sul da América, encerrando-a com a afirmação de que sem a ordem expressa do
príncipe regente, não voltaria atrás um passo.9
Além da oposição dos espanhóis, o governador encontrou problemas com
indisciplina dos homens que trouxe do Rio de Janeiro. Se houve violência no
recrutamento, o príncipe regente tentou garantir a boa vontade dos recrutas,
ordenando a D. Manuel Lobo que pagasse um mês de soldo adiantado aos oficiais e
soldados, enquanto os efetivos da cavalaria deveriam receber dois meses
5 PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai. Porto Alegre: Selbach,
1954, parte I, p. 387-388.
6 MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento (1680-1777). Porto
comum durante bastante tempo. Em 1722, o governador do Rio de Janeiro informou que
não tinha homens disponíveis para enviar a Colônia “e caso que os houvesse, estes mais
facilmente desertam fugindo pelo mato, como tinha mostrado a experiência”. Cf. Consulta do
Conselho Ultramarino de 17/03/1722. IHGB, Arq. 1.1.21, ff. 75v.-76.
8 COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio,
1944, p. 191.
9 ALMEIDA, Luís Ferrand de. A Diplomacia Portuguesa e os Limites Meridionais do
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46 IV Encontro Internacional de História Colonial
Lobo, uma fora recrutada na metrópole, enquanto as outras foram formadas no Brasil. Cf.
ALMEIDA, Luís Ferrand de. A Colônia do Sacramento na Época da Sucessão de
Espanha. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1973, p. 51.
12 D. Manuel Lobo ao Príncipe Regente, 21/09/1680. In: MONTEIRO, Jonathas da Costa
p. 4.
14 AZAROLA GIL, Luis Enrique. La Epopeya de Manuel Lobo. Madrid: Compañía Ibero-
mas sim o termo lógico de um processo com profundas raízes históricas, que chegam até ao
Tratado de Tordesilhas e aos problemas relacionados com a sua aplicação no Novo Mundo”.
ALMEIDA, Luís Ferrand de. Páginas Dispersas: Estudos de História Moderna de Portugal.
Coimbra: Universidade de Coimbra, 1995, p. 163.
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Encontros com a história colonial 47
fundar uma povoação em frente a Buenos Aires revelou o desejo de marcar o ponto
extremo das pretensões de Portugal. No nosso ponto de vista, a escolha das terras de
São Gabriel como o sítio da nova fundação portuguesa obedeceu antes às
conveniências que o local oferecia ao comércio ilícito com Buenos Aires, que a uma
busca de estabelecer limites e ocupar terras, embora essas finalidades fossem
oficialmente apontadas como a razão da criação de Sacramento.
A enseada de Colônia era o porto da margem norte mais próximo a Buenos
Aires, ao mesmo tempo em que era o último ponto onde as naus transoceânicas
podiam chegar. Dali em diante a navegação deveria ser feita em pequenas
embarcações, que podiam internar-se nos pequenos canais do delta do Paraná e
passar pelos bancos de areia sem grandes problemas. Essas eram vantagens
essenciais para o progresso do comércio ilícito.18 Justamente por isso, a ilha de São
Gabriel era um antigo refúgio de piratas e contrabandistas, principalmente dos
holandeses,19 situação que não deve ter sido ignorada pelos portugueses, uma vez
que eles eram os principais agentes do comércio ilícito no Rio da Prata.
Provavelmente o desejo de se adiantar aos holandeses, que ambicionavam
estabelecer-se na região,20 também contribuiu para a escolha da ilha que, segundo o
regimento de D. Manuel Lobo, era “a de melhor surgidouro, fundo, com água, lenha,
sítio sadio e fácil ao desembarque dos navios e resguardo dos tempos, e dentro da
demarcação e senhorio desta Coroa” [grifo nosso].21 Se o Regimento proibia a abertura do
comércio com os espanhóis, o mesmo taxava em cinco por cento as mercadorias que
“eles queiram introduzir”, exceto prata, ouro e mantimentos. A mesma cobrança
deveria incidir sobre as mercadorias vendidas aos castelhanos, ordenando o Príncipe
Regente que “os despachos das entradas e saídas se farão pelo escrivão e tesoureiro
deste apresto com livro separado e rubricado por vós para se ter toda a conta e razão
que convém”.22
Portanto, antes que estabelecer limites, circunstância que justificava a fundação no
regimento de D. Manuel Lobo, pensamos que a Coroa planejava então criar um
entreposto através do qual seria reaberto o lucrativo comércio ilícito com Buenos
Aires. Como a rede comercial já estava instalada, se inverteram as etapas que os
portugueses seguiram durante o século XV na Guiné e no século XVI na Índia,
18 DIFIRERI, Horacio A. Buenos Aires: Geohistoria de una Metropoli. Buenos Aires: UBA,
1981, p. 18 e 63.
19 RIVEROS TULA, Aníbal M. Historia de la Colonia del Sacramento. Apartado de la
Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay. Montevideo, tomo XXII, p.
39, 1959.
20 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Expansionismo Brasileiro e a Formação dos
Estados na Bacia do Prata. São Paulo: Ensaio; Brasília / UnB, 2ª ed., 1995, p. 39.
21 O Regimento de D. Manuel Lobo (1678). In: MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A
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48 IV Encontro Internacional de História Colonial
23 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico
Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 75.
24 Sobre a política expansionista portuguesa nas bacias platina e amazônica, consultar:
ISBN 978-85-61586-70-5
Encontros com a história colonial 49
27 CORREA LUNA, Carlos. Campaña del Brasil. Buenos Aires: Archivo General de la
Nación, 1931, t. 1, p. LXI.
28 GARCIA, Fernando Cacciatore de. Fronteira Iluminada. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.
30.
29 Informe del Catedratico de Cosmografía Don Alonso de Bacas Montoya. Sevilla, 9 de
Agosto de 1680. In: CORREA LUNA, Carlos. Campaña del Brasil…, p. 285-287.
30 Informe de Don Juan Cruzado de la Cruz y Messa. Sevilla, 13 de Agosto de 1680. In:
Ibidem, p. 287-288.
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50 IV Encontro Internacional de História Colonial
31 ALDEN, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil with Special Reference to the
Administration of the Marquis of Lavradio. Berkeley - Los Angeles: University of
California Press, 1968, p. 70.
32 MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento…, vol. 2, p. 54.
33 COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII…, p. 201.
34 D. Francisco Naper de Lencastre ao rei, 30/05/1690. In: ALMEIDA, Luís Ferrand de. A
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Encontros com a história colonial 51
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52 IV Encontro Internacional de História Colonial
de conduzir os interesses que representava porque ‘não havendo jamais lido um só tratado,
não devia expor-se a fazê-lo”. In: CLUNY, Isabel. D. Luís da Cunha e a ideia da
Diplomacia em Portugal. Lisboa: Horizonte, 1999, p. 37.
39 CLUNY, Isabel. O Conde de Tarouca e a Diplomacia na Época Moderna. Lisboa:
Horizonte, 2006, p. 319. Sobre a diplomacia em Portugal durante a Idade Moderna consultar:
FARIA, Ana Leal de. Arquitectos da Paz: A Diplomacia Portuguesa de 1640 a 1815. Lisboa:
Tribuna, 2008.
40 Resolución capitular de pedir a S. M. que en vez de la Colonia se entregara ‘otra cosa de
menos atraso y perjuicio a sus reales haberes. Buenos Aires, 20/11/1715. In: In: CORREA
LUNA, Carlos. Campaña del Brasil…, p. 452-453.
41 Carta de D. Balthasar García Ros, gobernador interino de Buenos Aires al rey… Buenos
Aires, 07 /12/1715. In: CORREA LUNA, Carlos. Campaña del Brasil…, p. 453-457.
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Encontros com a história colonial 53
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54 IV Encontro Internacional de História Colonial
47 ALDEN, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil with Special Reference to the
Administration of the Marquis of Lavradio…, p. 70, n. 32.
48 Bando do governador Aires Saldanha, 16/11/1724. ANRJ, cód. 60, vol. 14, ff. 84v.-85.
49 Vasconcelos ao rei, 25/09/1722. AHU, Colônia do Sacramento, cx. 1, doc. 76.
50 Consulta do Conselho Ultramarino de 21/01/1726. IHGB. Arq. 1.1.21, f. 346v.
51 Vahia Monteiro a Vasconcelos, 24/09/1728. ANRJ. Cód. 87, vol. 3, f. 155.
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Encontros com a história colonial 55
cruzando alguns dias naquelas costas e fazendo entender aos mesmos castelhanos
[que] lhe fora preciso chegar àquele sítio a dar caça aos piratas que o infestavam”.52
Embora disposto a expandir seus domínios no Rio da Prata, D. João V não
garantiu ajuda ao governador do Rio de Janeiro como havia previsto seu pai, quando
do primeiro projeto de ocupação de Montevidéu. O governador Aires de Saldanha e
Albuquerque comunicou ao rei que escolheu os melhores soldados da guarnição para
embarcar na fragata: cento e cinquenta soldados e alguns oficiais. Escusava-se
dizendo não se atrevia a enviar mais gente, embora soubesse da necessidade, por que
a guarnição do Rio de Janeiro compunha-se de somente seiscentos homens, “entre
os quais há muitos velhos quase estropiados e muitos soldados novos”.53 Para o
comando da expedição foi escolhido o mestre de campo Manuel de Freitas da
Fonseca.
Quando chegaram à enseada de Montevidéu, em novembro de 1723, os
portugueses encontraram uma lancha espanhola que não tardou a levar a Buenos
Aires a notícia da presença dos lusos na região. Ao tomar conhecimento da ocupação
portuguesa, o governador de Buenos Aires escreveu ao governador de Sacramento
protestando contra o fato, mas não perdeu tempo em iniciar os preparativos para
desalojar os portugueses da nova fundação.54
Por isso, os portugueses não tiveram tempo de concluir a fortificação, mesmo
que tivessem os materiais necessários, pois no dia seguinte ao seu desembarque
apareceu uma tropa de trinta índios missioneiros e, em dois de dezembro, chegaram
cerca de duzentos soldados espanhóis, os quais recebiam constantes reforços no
cerco aos portugueses. Por sua vez, o governador de Colônia enviara somente
quarenta cavaleiros, dos quais pedia de volta dez e avisava que a comunicação por
terra era perigosa e que os espanhóis tratavam de cortar a ligação fluvial entre a
Colônia do Sacramento e Montevidéu.
A fome atormentou os expedicionários depois que os inimigos tomaram os
cavalos e o gado enviados pelo governador de Colônia. Segundo Fonseca, dos
mantimentos que havia, “achou-se que só vinte dias podiam durar, dando só meia
ração, porque além de irem poucos, tinha apodrecido parte deles”. As informações
do mestre de campo mostram como estava mal organizada a expedição, não somente
por falta de apoio logístico como também por falta de pessoal, “pois só tinha 150
soldados e poucos artilheiros, uns sem terem visto fogo e outros sem nenhum
52 D. João V para Aires de Saldanha, 29/06/1723. In: Revista do IHGB, tomo 32, p. 22-25,
1869.
53 Aires de Saldanha para o rei. Ibidem, p. 23.
54 MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento…, vol. 1, p. 186.
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56 IV Encontro Internacional de História Colonial
exercício”.55 Com poucas forças e sem apoio naval, Manuel de Freitas da Fonseca
decidiu abandonar Montevidéu em 19 de janeiro de 1724, decisão aprovada pelos
oficiais da expedição. Ao desembarcar no Rio de Janeiro, Fonseca e seus oficiais
foram presos na fortaleza de Santa Cruz por ordem do governador.
Ao escrever ao Secretário de Estado, o governador do Rio de Janeiro pôs a culpa
do fracasso da expedição na “desordenada retirada que o mestre de campo Manuel
de Freitas da Fonseca fez de Montevidéu”. Dizia que tinha enviado um navio de
socorro com soldados, mantimentos e munições, mas que ao chegar ao destino
encontrou-o já ocupado pelos espanhóis.56
A coroa portuguesa procurou então recuperar Montevidéu através da diplomacia.
Porém, a conjuntura internacional de então lhe era desfavorável. As principais
potências europeias estavam reunidas na conferência de Cambrai (1720-1725), numa
tentativa de resolver as discórdias criadas pelo Tratado de Utrecht, que provocaram
uma guerra entre a Espanha e a Quádrupla Aliança (Inglaterra, França, Holanda e
Áustria) em 1719. O fato de Portugal ter permanecido neutro no conflito gerou
preocupações de que não seria aceito na conferência. Entretanto, foram enviados
para representar o monarca português os mesmos diplomatas que estiveram em
Utrecht, o conde de Tarouca e D. Luís da Cunha.
Em 1724, Tarouca defendia que se deveria “fechar o Brasil entre dois grandes
rios Amazonas e Prata e, por esse modo preservar toda aquela costa”. Sua atuação no
congresso visava garantir a posse do litoral, mesmo que deixando a campanha da
Banda Oriental aos espanhóis.57 Em Lisboa, o secretário de Estado, Diogo de
Mendonça Corte Real, insistia nas suas instruções que a margem norte do Rio da
Prata deveria ser considerada domínio exclusivo de Portugal. Escreveu ao conde de
Tarouca dizendo que por “baliza dos domínios de uma e outra coroa a dita Colônia e
de tudo que ficava para a boca do Rio da Prata ficava pertencendo a esta coroa, pois
nós nunca pretendemos que Castela nos desse nos seus domínios praça alguma, mas
que nos deixassem edificar nos que nos pertenciam” [grifo nosso].58
Apesar dos esforços, a diplomacia portuguesa não conseguiu o que queria em
Cambrai. Porém, a recusa de Luís XV em se casar com a infanta espanhola provocou
uma mudança completa nas relações luso-espanholas. A mão da infanta foi então
oferecida ao príncipe do Brasil, futuro D. José I. Por sua vez, Portugal ofereceu a
mão da infanta portuguesa ao príncipe das Astúrias, futuro Fernando VI. Nas
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Encontros com a história colonial 57
150-151.
61 CORTESÃO, Jaime. O Tratado de Madrid. Brasília: Edições do Senado Federal, 2001, p.
310.
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58 IV Encontro Internacional de História Colonial
62 Para justificar seus direitos sobre a região platina, a coroa de Portugal mandou publicar, em
1681, em português, francês e espanhol, um manifesto intitulado: “Notícia e justificação do
título e boa fé com que se obrou a Nova Colônia do Sacramento, nas terras da capitania de
São Vicente, nas margens do Rio da Prata”. In: Revista de História. São Paulo, vol. LXVIII,
1977, p. 1-32.
63 HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Colônia do Sacramento e a Expansão no Extremo Sul.
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Encontros com a história colonial 59
Teresa Toríbio (org.). Além do mar tenebroso: Tordesilhas e o novo mundo. Rio de Janeiro:
UERJ/PROALC, 1995, p. 25-26, p. 33-37.
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60 IV Encontro Internacional de História Colonial
5 Para Luís Ferrand de Almeida, D. João optou por não estabelecer povoados nas margens do
Rio da Prata por “simples medida de prudência”, temendo assim ações mais contundentes do
imperador Carlos V. Cf. ALMEIDA, Luís Ferrand. A diplomacia portuguesa e os limites
meridionais do Brasil (1493-1700). Coimbra: FLUC, 1957, p. 28.
6 Carta de Tomé de Souza a D. João III; Bahia, em 1 de junho de 1553. In: DIAS, Carlos
Nacional da Torre do Tombo. Coleção São Vicente, vol. 3, fl. 93-93v. Publicada
integralmente por ALMEIDA. Ibidem, p. 301.
8 Minuta de carta de D. João III a João Roiz Correia. Lisboadezembro de 1553. In: Arquivo
nacional da Torre do Tombo. Coleção São Vicente, vol. 3, fl. 49. Publicada integralmente
por ALMEIDA. Ibidem, p. 302.
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Encontros com a história colonial 61
solicitava a João Correia que com toda “desimulaçam posivel”, procurasse saber com
algum oficial do Conselho das Índias se essas informações eram verdadeiras.9
A partir da década de 1580, com a União Ibérica, desenvolveram-se linhas
mercantis que conectavam de forma mais regular o Prata, pelo porto de Buenos
Aires, e as praças atlânticas do Rio de Janeiro, Salvador, Recife e até mesmo de
Angola.10 Pode-se mesmo estimar que, por volta de 1584-1585, era razoável o trato
entre o Brasil, por meio principalmente de São Vicente, Rio de Janeiro e Salvador, e
o Rio da Prata.11
No início do século XVII, esse comércio deveria ter notável regularidade. Ao
menos é que se pode depreender da famosa frase do viajante francês Pyrard de
Laval: “Nunca vi terra onde o dinheiro seja tão comum, como é nesta do Brasil, e
vem do Rio da Prata”.12
Assim, o Prata aparece na agenda política da Coroa portuguesa como um dos
elementos constituintes dos circuitos mercantis do Atlântico sul. Se o principal artigo
atlântico para venda em Buenos Aires eram os escravos de Angola, a prata remetida
por esse porto liquidava parcela do pagamento referente às mercadorias adquiridas
no Oriente, a exemplo de tecidos.13 Tais itens, por sua vez, eram empregados para
aquisição de mais negros em Angola, iniciando-se dessa feita novamente a
engrenagem mercantil atlântica. Dessa maneira, o Prata se vinculava ao tráfico
negreiro duplamente: como área receptora de cativos, por um lado; e como fonte de
recursos para, indiretamente, viabilizar a aquisição de mão de obra em Angola, por
9 Ibidem.
10 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes – formação do Brasil no Atlântico
Sul – Séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 77-116.
11 Sobre os portugueses em Buenos Aires, é fundamental a tese de CEBALLOS, Rodrigo.
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62 IV Encontro Internacional de História Colonial
outro. Não faz sentido pensar a inserção da região na pauta política da Coroa lusa
sem pressupor essa lógica.
Perceba-se então que América portuguesa, Angola e Buenos Aires faziam parte
de uma lógica mercantil, que tinha como eixo axial o próprio tráfico negreiro. Como
se pode verificar na documentação, a questão platina aparece freqüentemente
vinculada a Angola, ou ao Rio de Janeiro ou ainda a Salvador. Portanto, o Prata
somente existia na dimensão política portuguesa se encadeado a outras regiões do
seu Império.
Contudo, a frágil estabilidade das relações comerciais entre Buenos Aires e as
praças atlânticas do império português foi fundamentalmente atingida após a
Restauração dos Bragança de 1640.14
O comércio português no Rio da Prata desintegrava-se na década de 1640, o que
gerava retração monetária na América portuguesa.15 Sem escravos para comercializar,
os agenciadores desse trato não dispunham de seu mais lucrativo item. Com isso,
toda a área que dependia economicamente de Buenos Aires ficava menos irrigada
pelo metal branco, havendo, pois, impasse na circulação monetária na Bacia do Prata.
A carência de escravos também era problema sério para a produção de metal nas
minas potosinas.16
De acordo com uma advertência enviada ao monarca sobre a “conseruação do
estado do Brazil sem prejuízo de partes com aproueitamento da fazenda Real de
Portugal”, a situação monetária da praça de Salvador era alarmante.17 Em 1641,
Estado, legajo 7058, doc 14. Apud ALMEIDA. A diplomacia portuguesa e os limites
meridionais do Brasil (1493-1700)…, p. 91.
17 A carência monetária também era problema sério no Brasil holandês. Exemplo disso é o
fato de que, após 1639, era comum que quatro ou cinco soldados da Companhia das Índias
Ocidentais que estavam em Pernambuco recebessem uma única moeda de grande valor como
soldo, tendo de liquidar a parte que lhes era devida. Nesse mesmo ano, o governador
flamengo e seu conselho solicitaram à Cia o envio de 27.000 florins em moedas de baixo
valor. O medo das armadas espanholas fazia com que a população enterrasse suas reservas
metálicas, agravando a situação. Na tentativa de solução, o governo holandês emitiu
ordenanças, ordens de pagamento que seriam liquidadas após o recolhimento dos impostos.
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Encontros com a história colonial 63
aproueitamento da fazenda Real de Portugal pera se afeitar dentro de hum anno. Limoeiro de
Lisboa, a 29 de março de 1644. Papeis Politicos – Cod 987 (K VII 3I), fl. 490-490 v. In:
Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 69, p. 33-34.
19 Ibidem.
20 Ibidem.
21 Ibidem.
22 Ibidem.
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64 IV Encontro Internacional de História Colonial
Salvador defendeu a invasão militar do Prata em seu parecer, mas não sem antes
registrar a importância da reconquista de Angola, já que os negros eram “a
mercadoria que os castelhanos mais necessitam”.23 Quanto à Angola, o ponto
primordial de seu papel incitava a Coroa para que “logo logo mande acudir aquele
Reino”, já que era muito sentida “a falta do comercio de Angola porque sem ela se
prejudica muito as fazendas do Brasil e se aniquila o aumento da Real fazenda assim
no Brasil como neste Reino”.24 Finalmente, quanto ao nordeste, recomendava que
se incentivasse o roubo e a destruição da campanha de Pernambuco, para que os
flamengos aceitassem dinheiro para deixar a região.
O interessante é que os três pareceres dados por Salvador Correia de Sá
retornaram para avaliação no Conselho de Guerra que, de modo geral, concordou
com os seus alvitres. Divergiram somente na questão dos holandeses no nordeste.
Contrariamente ao sugerido por Salvador, o Conselho de Guerra optou por
recomendar ao rei que procurasse a solução para a saída dos holandeses, “gente tão
prevenida”, por via diplomática. 25
Em sua resposta, o Conselho percebera perfeitamente o ponto nervoso da
dinâmica mercantil das rotas do Atlântico, e nesta matéria era sobremaneira taxativo:
“porque sem Angola não se pode sustentar o Brasil, e menos Portugal sem aquele
Estado”.26
Tal opinião circulava com freqüência na corte por esta época. O Padre Vieira era
um dos maiores defensores da importância de Angola. Com uma visão estratégica
singular, escreveu ao Marquês de Nisa em agosto de 1648 que “Todo o debate agora
é sobre Angola, e é matéria em que não hão de ceder, porque sem negros não há
Pernambuco, e sem Angola não há negros”.27 O governador-geral Antônio Teles da
Silva reforçava essas impressões ao escrever ao rei:
Angola, Senhor, está de todo perdida, e sem ela não tem Vossa
Majestade o Brasil, porque desanimados os moradores de não
terem escravos para os engenhos, os desfabricarão e virão a
perder as alfândegas de Vossa Majestade os direitos que tinham
em seus açúcares.28
23 Ibidem.
24 Ibidem.
25 Ibidem.
26 Ibidem.
27 Cf. Carta ao Marquês de Niza, a 12 de agosto de 1648. In: Cartas de António Vieira. São
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Encontros com a história colonial 65
29 Parecer de António Pais Viegas sobre o socorro a enviar a Angola. Cabo Ruivo, a 27 de
abril de 1644. Papeis Politicos – Cod. 987 (K VII 31), fl. 499-499v. In: Manuscritos do
Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 71, p. 35.
30 Parecer de António Pais Viegas sobre a recuperação de Angola. Cabo Ruivo, a 28 de abril
de 1644. Papeis Politicos – Cod. 987 (K VII 31), fl. 500-501. In: Manuscritos do Arquivo
da Casa de Cadaval, doc. 72, p. 35-36.
31 Cf. VIEIRA, Antônio. Papel que fez o padre Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos
holandeses (1648). In: VIEIRA, António. Escritos históricos e políticos. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
32 Cf. Cartas do Padre Vieira, coordenadas e anotadas por João Lúcio de Azevedo, p.
122. Vieira apresentou na Corte outras idéias radicais a fim de tentar levar ao fim a crise em
Portugal. O padre e outros assessores mais próximos de D. João IV, com o fito de obter
ajuda militar da França, assessoravam o rei a vir para o Brasil. A regência de Portugal seria
dada ao Duque de Montpensier, cuja filha se casaria com o príncipe português D. Teodósio.
Vieira foi inclusive à França com esta finalidade. Sobre isto, conferir CORTESÃO. História
do Brasil…, vol II, p. 114-115.
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Encontros com a história colonial 67
dezembro de 1648. Papeis Varios, t. 2 – Cod. 874 (K VIII Im), fl. 340-341. In: Manuscritos
do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 135, p. 81-82.
41 Ibidem.
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68 IV Encontro Internacional de História Colonial
desta praça [de Pernambuco] em caso que o holandês a largue por preço de dinheiro; ou bem
se posssa sustentar a guerra, quando pelas armas se liberte; e se socorra com um grosso
empréstimo aos moradores para levantarem os seus engenhos, e os fabricarem sem dispêndio
da fazenda real. Pernambuco, a 20 de agosto de 1650. Papeis Varios, t. 2 – Cod. 1091 ( K
VIII Ib), fl. 1-5v; fl. 18-22; Papeis Varios, t. 34 – Cod. 976 (K VIII Ir), fl. 171-175v. In:
Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 149, p. 90-96.
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Encontros com a história colonial 69
46 Ibidem.
47 Ibidem.
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70 IV Encontro Internacional de História Colonial
pelos agentes mercantis, sem uma ação direta? Ou deveria, seguindo os conselhos do
Padre Antônio Vieira e de Salvador Correia de Sá e Benevides, intervir militarmente
na região? Até que ponto uma intervenção dessa natureza não causaria uma
desorganização nos fluxos comerciais?
De Lisboa, costumavam chegar orientações para que fosse mantida uma
reaproximação mais efetiva com o Prata. Por exemplo, um ofício do Conde de
Óbidos, datado de 1664, sugeriu ao governador Pedro de Mello que recebesse
cordialmente os navios vindos do Rio da Prata.
Já Alexandre de Souza Freire, governador geral do Brasil, enviou um patacho a
Buenos Aires, a fim de levar a notícia da paz de 1668 com a Espanha;
posteriormente, escreveu ao rei que “(…) em Buenos Ayres se dificulta hoje tanto a
esperança daquele comercio como quando estava impedido com as guerras: mas os
Castelhanos o desejam mais que os Portugueses. O Brasil se perde por falta de
moeda; com qualquer meio que possa haver de irem ali embarcações se há de trazer
prata…”.48 O fato é que a crise monetária na América portuguesa permanecia.
Seja como for, a Coroa, por meio de seus oficiais, estimulava uma reaproximação
com os súditos de Castela na América. Por exemplo, no item 50 do Regimento de 23
de janeiro de 1677, dado ao governador geral Roque da Costa, o príncipe regente D.
Pedro recomendava que os navios que voltassem “das Índias Ocidentaes, Rio da
Prata e Buenos Aires com prata e ouro, e não com outras fazendas de Espanha, lhes
mandará dar entrada, e poderão comerciar nos portos deste Estado, levando em
troca os gêneros dele”. Acerca disso, “porá o governador todo cuidado e
diligência”.49 Texto quase semelhante é reproduzido no Regimento de 1679, dado a
D. Manuel Lobo.
Conforme explica Antônio Carlos Jucá, as tentativas de reaproximação com o
Prata podem ser explicadas pela carência monetária em toda a América Portuguesa.
Ainda seguindo a análise do autor, as dificuldades de restabelecimento do trato com
Buenos Aires se explicam, dentre outros fatores, principalmente pelas complicações
no comércio negreiro entre o Rio de Janeiro e Angola. Com a oferta de escravos
reduzida, em face da competição com o Nordeste pelo mercado angolano, a
capitania do Rio era incapaz de ampliar suas atividades mercantis no Prata.50
Em 1680, contudo, houve uma inflexão na gestão do Prata: a política estatal
retirou da ação particular a responsabilidade maior das iniciativas, determinando ao
1700)…, p. 91.
50 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na Encruzilhada do Império. Hierarquias Sociais e
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72 IV Encontro Internacional de História Colonial
Em uma extensa carta ânua, datada de 1743, o padre Pedro Lozano informou ao
Superior da Companhia de Jesus em Roma sobre os trabalhos levados a efeito pelos
seus companheiros na Paracuaria, como se chamava então, a Província Jesuítica do
Paraguai:
“Os anos que se passaram desde que meu antecessor (…) enviou a Vtra Paternidad, em Marzo
de 1735, as últimas Cartas, vão descritas nesta, e para que ao menos seja informado o más
importante daquilo que a Companhia realizou, eu a repartirei em vários capítulos”.2 A partir
deste introito, o autor do texto passou a indicar uma série de pontos que seriam
objeto de sua atenção, figurando entre eles, de maneira especial, as missões de
guaranis, as de chiquitos e as “novas e antigas estações missionárias entre os infiéis”.
Ao dar notícias sobre estas últimas, Lozano se acercava de um tema que era
especialmente caro aos seus superiores, uma vez que, destarte a importância de sua
obra educativa e da atenção que mereciam dos jesuítas as populações hispano-criollas, o
trabalho junto aos índios se constituía em um diferencial da presença do Instituto
nos territórios de além mar. Talvez mais do que em qualquer outro ponto, era neste
que confluíam os interesses da Monarquia e da Ordem, haja vista a importância de
sua ação de vanguarda nas fronteiras, ali onde lindavam os territórios dos reinos
ibéricos, como era o caso, por exemplo, das reduções de Maynas ou do Paraguai. O
mesmo valia, podemos dizer, para as “fronteiras internas”, isto é, para regiões em
que as vilas e povoados dos “brancos” se encontravam “na borda” do mundo dos
“selvagens”, caso das novas missões entre infiéis a que Lozano se refere no
documento.
Isto não significou, como veremos, que os interesses das autoridades civis e dos
padres, ou da Sociedade de Jesus e da Coroa, fossem sempre convergentes e suas
ações sempre coordenadas. Ao contrário, a coerência não era um compromisso
inegociável quando se tomavam decisões de governo e administração relativas a estas
distantes periferias. Efetivamente, o mundo das missões era marcado por
contradições e ambiguidades que se manifestavam em vários níveis,3 entre eles, o das
difíceis mediações estabelecidas entre os jesuítas, a sociedade local e as autoridades
populações indígenas que eles queriam doutrinar, tema, contudo, que não poderá ser tratado
no escopo desta reflexão.
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Encontros com a história colonial 73
4 Talvez correndo o risco de não atender exatamente aos termos mais estritos da questão
proposta pela Mesa, estarei refletindo sobre as relações entre a Companhia -entendendo-a
como esfera do poder religioso-, e as autoridades civis da cidade e da governação, pensando
nestes como representantes da sociedade local e da monarquia, respectivamente.
5 SANCHEZ LABRADOR, Jose. Paraguay Cathólico. [1772] Los indios pampa-puelches-
Massiel e Don Pedro Milán; da parcialidade dos “serranos”, o cacique Don Yahati.
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74 IV Encontro Internacional de História Colonial
Os religiosos estavam assim, “maravilhados (…) com os bons resultados obtidos, e isto com
gente que por dois séculos tinha sido mas dura que rochas; parecía agora haver chegado o momento
(…) para sua conversão”.9 Seguindo a sua narrativa, encontramos que as principais
ameaças que pesavam sobre a missão, proviriam dos ataques de grupos indígenas a
ela contrários, informação que nos remete para o complexo e heterogêneo panorama
étnico da pampa-patagônia nesta época. Neste ponto a ajuda do governador se
mostrava essencial, tendo o mesmo destacado 40 “soldados” para defender os
missionários e seus catecúmenos.
Sabemos entretanto, que 12 anos passados da sua fundação, a redução foi
abandonada e não faltaram queixas dos jesuítas relacionando o ocaso da sua “missão
austral”, à falta do necessário apoio por parte das autoridades de Buenos Aires,
especialmente de seu cabildo e dos “vecinos” que este representava.
Sugiro aqui que esta situação - a princípio particular e episódica - pode nos ajudar
a refletir sobre a dificuldade de encontrarmos respostas unívocas para a questão
estabelecida por esta Mesa: isto é, sobre como podemos localizar o trabalho da
Companhia de Jesus, como estando a serviço da Coroa ou da Igreja. Se é certo que
as políticas coloniais das monarquias ibéricas contaram com o apoio da Ordem para
a “pacificação” e catequese dos índios - para a sua “conquista espiritual” -, também o
é que a relação entre o Instituto e as autoridades civis esteve submetida a tensões.
Assim devemos levar em conta aqui, como alertou Marshall Sahlins, que a prática
“tem uma dinâmica própria”, capaz de alterar significados tradicionais.10
O que proponho é justamente perscrutar a razão pelas quais as formas e
condições específicas em que se desenvolveu a chamada “missão austral” não
tenham permitido que este projeto se desenvolvesse nos termos em que foi pensado.
Tampouco, que ele reproduzisse, como se desejava, a estabilidade alcançada pelos
chamados “Trinta Povos” em que, também pela ação missionária jesuítica, foram
reduzidos os índios guaranis. Antes disto contudo, quero esclarecer que tenho plena
consciência de que os desdobramentos experimentados por esta missão estão
irrevogavelmente conectados às circunstâncias das sociedades indígenas às quais ela
se dirige. “Pampas” e “serranos”11 como eram chamados estes grupos, tinham, na
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Encontros com a história colonial 75
década em questão, uma larga experiência para com a sociedade colonial,12 e seus
movimentos de aproximação ou rechaço das missões são igualmente essenciais para
compreendermos a forma como elas existiram e porque foram finalmente
abandonadas. Esta análise todavia, sem a qual a admito que a compreensão deste
tema é parcial e incompleta, exigiria um exame que não cabe nos termos propostos
por esta Mesa.
p. 434. Concordando com ele, creio ser imporatnte assinalar que as “etiquetas” étnicas criadas
naquela oportunidade, atendiam ao imperativo de nomear por parte dos conquistadores,
missionários, administradores, etc. Isto é, elas simplesmente não levavam em conta as formas
pelas quais compreendiam a si próprios, os grupos que estavam sendo nomeados. Como não
é nosso interesse discutir aqui este delicado problema da nominação dos grupos indígenas
americanos, questão complexa e que retém a atenção de diversos especialistas, indicamos
apenas que, em linhas gerais, os “pampas” correspondiam aos ocupantes dos vastos campos
ao sul de Buenos Aires, enquanto como “serranas” eram identificadas as sociedades que, mais
próximas da Cordilheira dos Andes, compartilhavam muitos traços com a cultura dos grupos
daquela região. Já o termo “aucaes”, no mais das vezes, se refere aos índios da cordilheira.
12 Esta experiência havia contribuído para operar profundas transformações na sua cultura
material e simbólica, sendo a adoção do cavalo apenas a parte mais visível de um processo
muito mais amplo. Sobre este tema ver: MANDRINI, Raúl J. Las transformaciones de la
economía indígena buenairense. In: Huellas en la Tierra. Indios, agricultores y hacendados
en la pampa bonaerense. Tandil: IEHS, 1993, p. 45-74.
13 LOZANO. Cartas Anuas de la Provincia del Paraguai…; SANCHEZ LABRADOR.
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16 O ambiente assim descrito não estava, é claro, restrito à Espanha. Como se sabe, também
em Portugal muitas vozes creditaram o atraso do país à influência dos jesuítas. A mais
destacada delas, do Marquês de Pombal, era especialmente crítica quanto à situação das
populações indígenas que, no Brasil, viviam sob a tutela dos padres. Tendo ele determinado a
expulsão dos jesuítas em 1769, a nova orientação para as regiões coloniais foi a de
assimilação dos índios à sociedade colonial. Por parte da monarquia espanhola a medida de
expulsão resultou do Decreto de 27 de Fevereiro de 1767 de Carlos III.
17 BRUNO. Historia de La Iglesia en la Argentina…, p. 57.
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Encontros com a história colonial 79
padres que les asisten, por ser gente vagabunda, inconstante, ingrata y muy dada a la
embriaguez”.22
Este entendimento porém, não implicava em deixar de atribuir responsabilidade a
outros fatores que, para os padres, contribuíam com que as missões austrais não
alcançassem sucesso, sendo o primeiro deles a ação dos “pulperos”, os comerciantes
de aguardente. Segundo os jesuítas, o desejo de adquirir bebidas alcoólicas
mobilizava os índios em prejuízo da catequese e do trabalho. Além disto, a bebida
lhes turvava o juízo, acirrava conflitos e estimulava a desobediência. Mais do que se
queixar, os padres solicitam medidas que pudessem alterar esta situação.
Foi assim que, segundo informa o Pe Sanchez Labrador, o cabildo eclesiástico de
Buenos Aires impôs a excomunhão aos comerciantes “que vendiesen aguardiente á
dichos índios ó se llevasen á sus tierras, ó les hablasen mal de la conducta de los
Misioneros”.23A iniciativa contudo, encontrou forte oposição e o cabildo civil
apresentou petição para supressão da pena, “por el justo rezelo que se tiene que esta
prohibición sea causa de que se quebrante la Paz que con dichos Indios se tiene, la
que sirve de sosiego para todo el Vecindatario”.24 Diante disto, as pressões se
avolumaram até que a medida foi anulada”.25
Quero chamar a atenção para o embaralhamento das posições entre as
autoridades religiosas e civis e, dentre estas últimas, entre o governador e o conselho
da cidade. Isto é, se havia consenso de que o “perigo indígena” deveria ser contido e
que os “selvagens” deveriam ser submetidos, o mesmo não se observa quanto às
estratégias de ação para tanto, nem quanto a que interesses deveriam ser contornados
para apoiar os padres em sua “missão por redução”. Mais ainda, se para os
estancieiros a presença de missões nas proximidades da cidade era motivo de
desconforto, para os pequenos comerciantes ela era vantajosa.
Passados pouco mais de dez anos da fundação da primeira delas, as três missões
estavam abandonadas. Ataques de grupos indígenas inimigos foram o motivo direto
da renúncia de levar adiante a missão austral, mas os padres também lamentaram
amargamente aquilo que entenderam como falta de apoio da cidade para colocar
obstáculo ao comércio de bebidas, bem como para organizar a defesa de “Concepción”,
“Pilar” e “Madre de los Desamparados” .
Escrevendo posteriormente aos acontecimentos acima narrados, Jose Sanchez-
Labrador recapitulou os últimos dias de “Nuestra Señora de la Concepción de los Pampas”
e os assaltos que o povoado sofreu determinando seu abandono. Segundo descreve,
assediados pelos homens do cacique Felipe Yahati, os jesuítas enviaram pedidos de
cit., p.207
25 Apud SANCHEZ-LABRADOR. Paraguay Cathólico…, p. 207-208, nota 53.
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“el Gobernador se acordó que era soldado, y con desden respondio que el Rey
no estaba para hacer gastos”28
28Ibidem, p. 144.
29IGLESIAS, Mirian. Misiones jesuiticas al sur del Rio Salado. Sociedad indigena bonaerense
y politica de frontera colonial. In: NORMANDO CRUZ, Enrique. Anuario del Iglesia,
Misiones y religiosidade colonial. ACEI 1. Jujuy, 2000, p. 60-79, p. 64.
30 SANCHEZ-LABRADOR. Paraguay Cathólico…, p. 144. O missionário está se
referindo ao pedido feito aos jesuítas por uma “embaixada” de cinco caciques “patagões”
[Quilusquil, Taychoco, Chanal, Pagá e Sacachu] em dezembro de 1751, para “fundarles
pueblo”.
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32 Apud: IGLESIAS. Misiones jesuiticas al sur del Rio Salado. Sociedad indigena bonaerense
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Rafael Ruiz1
Contexto histórico
1 Agradeço à FAPESP pelo auxílio JP concedido para a realização desta pesquisa. Prof. de
História da América da Universidade Federal de São Paulo.
2 CONCINA, Daniel. Historia Del Probabilismo y Rigorismo. Dissertaciones
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4 RUIZ, Rafael. Duas percepções da justiça nas Américas: Prudencialismo e Legalismo. In:
Anais eletrônicos do VII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória. Vitória: VII
Encontro Internacional da ANPHLAC, 2008.
5 Ibidem. Os espaços da ambiguidade: os poderes locais e a justiça na América espanhola do
século XVII. Revista de História. São Paulo, 163, p. 81-101, ago/dez 2010.
.
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Encontros com a história colonial 87
essas leis e a verificar o seu cumprimento ou não, tecendo a partir daí as suas
próprias considerações. Contudo, não me parece que seja levado em consideração o
fato de que durante um longo tempo, entre os séculos XV e metade do XVIII, pelo
menos, a praxe judiciária dava uma extrema atenção às glosas, os comentários e, em
resumo, às diferentes interpretações que, sobre uma mesma lei, os juristas e teólogos
foram estabelecendo ao longo dos séculos. Nesse sentido, o importante seria não
propriamente a lei, mas a lei comentada, a lei glosada ou a lei interpretada. Por isso,
esta comunicação procurará mostrar a importância desse aspecto específico da
juridicidade moderna, principalmente quando se estudam questões relacionadas com
a norma e a praxe no mundo americano.
Em 1773, no mesmo ano em que foi suprimida a Companhia de Jesus pelo Papa
Clemente XIV, foi publicada na Espanha a obra do dominicano Daniel Concina,
Theologia Christiana Dogmático-Moral, compendiada en dos tomos, traduzida para o
castelhano. Na introdução, o tradutor da obra queixava-se de que a maior parte dos
juristas e teólogos eram partidários da interpretação probabilística da lei, que, na sua
opinião, era a responsável pelo estado de corrupção e de decadência em que se
encontravam não apenas os indivíduos, mas também os Estados, de tal forma que se
podia afirmar que “passaram os séculos de ouro, e sucederam-lhes os de barro e
corrupção”.6
Para Daniel Concina, entre 1620 e 1656 configura-se o período de auge e
decadência desse sistema moral.7 Trata-se do período da internacionalização do
probabilismo, que foi acompanhado pelo florescimento de uma literatura
especializada em casos de consciência, na qual a vertente probabilística preponderou.
Delumeau afirma que o sucesso foi tão grande a ponto de se configurar como uma
revolução moral, pois construiu-se um novo paradigma a respeito da teologia moral,
quando esta passou a ser discutida em graus de probabilidade.8
A partir de 1640, para Concina, a crítica anti-probabilística tomou força graças ao
probabiliorismo, principalmente na Espanha e na França.9 Como falei acima, este
sistema moral defendia que, em caso de dúvida, devia-se optar sempre pela mais
provável das opiniões. Nesse caso, portanto, não servia qualquer uma das opiniões,
mas apenas a que fosse tida como mais provável. Os probabilioristas, assim como
Concina, consideravam que os probabilistas socavavam a força coativa da lei,
porque, para eles –para os probabilistas- era suficiente uma única opinião de algum
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doutor, teólogo, canonista, ou jurista, para interpretar de forma mais suave ou mais
relativa o texto da lei. E sempre podia –e, de fato assim aconteceu- ser encontrada
uma opinião que legitimasse a probabilidade de um juiz decidir se não à margem da
lei, pelo menos, de uma forma adaptada às suas conveniências.
A partir de 1656, sempre seguindo a Concina, a crítica ao probabilismo tornou-se
preponderante. Este é o ano da publicação das Provinciais de Pascal, nas quais a quinta
e a sexta epístola foram dedicadas a uma crítica feroz e satírica ao probabilismo.10
Para além dessa obra, que se tornou referência no que diz respeito à crítica ao dito
sistema, os dominicanos proibiram o ensino da doutrina probabilista e se seguiram
diversas condenações papais a proposições probabilistas. Segundo Concina, em
1665, o Sumo Pontífice Alexandre VII condenou 28 proposições, no ano seguinte
foram mais 17 condenadas; em 1679, o então Papa Inocêncio XI condenou 65
proposições probabilistas de diversas áreas.11
A questão central que me interessa tocar neste trabalho é perceber em que
medida um sistema teológico-moral teve consequências na praxe judiciária na
América do século XVII, ou, por outras palavras, perceber a estreita e intrincada
relação existente entre o fenômeno religioso-teológico e o fenômeno político-
jurídico.
De acordo com o dominicano, os probabilistas colocavam-se numa cômoda
situação, porque, de acordo com a sua doutrina, não era necessário seguir nem a
opinião sobre a qual não pairasse dúvida alguma (um juízo absolutamente certo da lei),
nem a opinião que fosse tida como mais provável (nem sequer aceitam aquele juízo que nos
apresenta a obrigação mais verossímil). Para eles bastava com decidir conforme à sua
própria consciência (porque colocam a certeza da saúde no testemunho da própria consciência).12
Para seguir a própria consciência, os probabilistas defendiam a necessidade de
que os juízes (e as pessoas, em geral) fossem prudentes, porque a conduta adequada
em cada caso concreto somente poderia ser vista por meio do exercício da virtude da
prudência. Tratava-se, portanto, de uma tradição aristotélica, posteriormente
retomada por Tomás de Aquino, também dominicano, para quem a prudência era
“uma virtude da razão prática e não da razão especulativa”,13 de maneira que, para
que um juiz fosse prudente e acertasse a decisão justa, era preciso não apenas que
conhecesse a lei em geral e os princípios jurídicos universais, mas principalmente os
casos e as circunstâncias concretas de cada caso: “E assim é necessário que a
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Encontros com a história colonial 89
14 Ibidem, p. 5-6.
15 CONCINA, Daniel. Historia Del Probabilismo y Rigorismo…, p. 95.
16 RUIZ, Rafael. Hermenêutica e justiça na América do século XVII. In: XXVI Simpósio
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90 IV Encontro Internacional de História Colonial
Um dos pontos que mais chama a atenção quando lemos a sua obra (por
exemplo, nesse volume dedicado aos Ouvidores) é a insistência e a preocupação do
autor com a figura do juiz, principalmente com tudo aquilo que diz respeito ao
âmbito da moralidade e da consciência do mesmo. Dessa forma, além de elencar
uma série de condições e de requisitos que, hoje e agora poderíamos denominar de
“ordem pública”: não ter nascido na jurisdição da audiência; não casar-se com
mulheres de sua jurisdição, nem com familiares de seus companheiros de audiência;
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não casar seus filhos dentro de seus distritos; não ter dois ofícios nas audiências; não
conferir ofícios a seus parentes, etc, Avendaño preocupava-se também com a
conduta moral ou religiosa dos ouvidores e dos juízes, com a sua assistência à Missa,
as suas confissões, as suas virtudes e qualidades que, também hoje e agora,
poderíamos denominar de “ordem privada”.
Não é muito de se estranhar porque, por exemplo, uma alegoria publicada por
Juan de Matienzo, famoso relator da Chancelaria de Valladolid e, mais tarde, ouvidor
da Audiência de Charcas, e mais conhecido por sua obra Gobierno del Perú, de 1567,
pode dar uma ideia do que se pensava e se esperava de um “bom juiz”, justo e
honesto.20 Sua obra Dialogus Relatoris et Advocati Pintiani Senatus, publicada em
Valladolid em 1558, teve uma boa difusão ao ponto de ter tido uma terceira edição
em Francfort-sur-le Main, em 1623:21 o juiz era como a árvore, onde o solo fértil seria
a nobreza de linhagem; as raízes seriam o temor a Deus, a ciência do direito e a
experiência da prática processual; o tronco estava formado pela fortaleza, o
desprendimento dos bens, a imparcialidade e a suspicácia; a crostra da paciência e da
humildade; a seiva da verdade, da fidelidade e o segredo; os galhos seriam os oficiais e
servidores do juiz que executavam as suas ordens; o fruto maduro da eloquência, da
afabilidade e da cortesia ; as folhas da prudência e, finalmente, o fruto maduro da
justiça e da equidade. Desenhava-se assim a ideia de que as sentenças justas
nasceriam, quase que de forma natural e espontânea, como resultado do conjunto de
virtudes morais que teria o juiz ou, se quisermos de outra forma, pensava-se que para
que a justiça fosse possível não bastavam as leis nem as Cédulas reais, mas que era
absolutamente necessário que os juízes tivessem virtudes e qualidades morais.
E ainda no fim do século XVIII, em 1785, publicava-se em Madri a obra do
jurista Guardiola y Sáez, El Corregidor perfecto y juez exactamente dotado de las calidades
necesarias y convenientes para el buen Gobierno,22 onde o autor recorrendo a toda a tradição
iudex perfectus al iudex solutus. Buenos Aires: Librería Histórica, 2009, p. 75.
22 A obra completa tem um título mais minucioso: GUARDIOLA Y SÁEZ, L., El
Corregidor perfecto y juez exactamente dotado de las calidades necesarias y
convenientes para el buen Gobierno económico y político de los pueblos y la más
recta administración de justicia en ellos, y avisado, entre otras cosas, de las muchas
cargas y obligaciones de su Oficio: conforme todo a las Leyes Divinas, Derecho Real
de España, y Reales Resoluciones hasta ahora publicadas sobre la nueva Planta y
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92 IV Encontro Internacional de História Colonial
anterior, e traçando uma linha de continuidade com as Siete Partidas entendia que “o
juiz, de acordo com as nossas leis pátrias é o homem bom, que é colocado para
mandar e fazer direito e julgar os pleitos”.23 E, sendo assim, Guardiola entendia que
o juiz deveria
ser sóbrio, modesto, agradável, benigno, cortês e afável.
Não devia ser iracundo, altivo, nem cruel nem excessivamente
duro e severo com os súditos; grave e temperado e com
medida, nos gestos, passos e palavras, no asseio, adorno e
compostura. Nem muito falador, nem jactancioso de si
próprio, cauto e distante dos erros dos seus antecessores.
Nem pomposo, nem presunçoso; não devia ser amigo de
novidades, nem precipitado ou negligente, nem crédulo, nem
excessivamente incrédulo. Deveria ser recatado e não
suspeitoso, nem malicioso, nem astuto. Casto, pouco dado
a convites, especialmente convites privados, sem ter
amizades estreitas, desculpando-se por não participar dos
jogos, bailes e outras diversões impróprias do seu ofício.
Não devia ser orgulhoso, austero, nem muito triste ou
melancólico. Nem extremado, nem singular nas suas
deliberações. E, em definitivo, devia procurar que a sua meta
fosse o bem comum da República, a observância das leis e a
defesa dos súditos, sem esquecer o socorro dos pobres, o amor
dos órfãos, a veneração dos templos, a proteção das
virtudes, o rápido despacho dos negócios e demandas,
julgando sempre o justo sem distinção de pessoas cuidando
ao mesmo tempo da fidelidade, diligência, limpeza e
bondade dos oficiais “24.
Ou seja, desde o código das Siete Partidas, de meados do século XIII, até, pelo
menos, a metade do século XVIII, pensava-se que o juiz, para cumprir sua função
de dar sentenças justas, deveria ser, antes de tudo uma pessoa possuidora de todas as
virtudes morais. E, tendo todas essas virtudes, o juiz deveria sentenciar de forma
prudente, tendo em conta as circunstâncias do caso e os costumes do local, por isso
que, normalmente, haveria soluções e sentenças diferentes dependendo de cada caso
concreto.
Alguns exemplos, citados por Avendaño, poderiam ser ilustrativos. Analisemos,
primeiro, o clássico exemplo de aceitar ou não presentes e gratificações. Avendaño,
particularmente, achava que, para a imagem do juiz, não seria bom aceitar nenhum
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Encontros com a história colonial 93
tipo de presente. As leis eram bastante duras sobre isso, mas Avendaño alertava que,
por se tratar das Índias, era preciso se observar o que demonstrava o costume.
E o costume indicava que as únicas pessoas que não podiam de jeito nenhum
presentear aos ouvidores eram os advogados, procuradores e relatores, porque isso
denotaria suborno (ou, no minimo, comprometeria o julgamento do juiz, forçando
de alguma forma a imparcialidade) e seria um escândalo e, mais ainda, obrigaria a sua
consciência, de forma que teoricamente nenhum ouvidor decente conseguiria dormir
sabendo que estava sendo aliciado, chantageado ou subornado.
Por outro lado, qualquer ouvidor sabia que era costume entre os índios oferecer
presentes e que eles se ofendiam sobremaneira se estes fossem recusados. E causaria,
ainda por cima, na opinião de Avendaño, um grande mal para a republica ofender tão
gravemente aos índios. Portanto, concluía o jesuíta, sabe-se que a intenção de um
advogado ao presentear um juiz é torta, porém, a intenção de um índio, ao seguir o
seu costume de presentear qualquer um que seja, inclusive um juiz, não é torta nem
contém malícia e, por isso, os presentes dos índios poderiam, sim serem aceitos.25
Parece-me que, com este exemplo, fica claro como, nos juízos, era preciso ter em
conta as intenções, as pessoas e as circunstâncias de todos os envolvidos e essa
percepção, e consequente decisão, necessariamente flexibilizava a aplicação da lei.
Outro exemplo bastante comum nas Índias era a questão do casamento dos
Ouvidores reais. A lei era bastante clara e rigorosa: o Ouvidor não poderia casar com
mulheres que morassem dentro do território da sua jurisdição. Se casasse, perderia o
cargo.
Avendaño, porém, considerava que, de fato, os Ouvidores não poderiam contrair
casamento com mulheres que tivessem vínculos de parentesco e de moradia dentro
do espaço geográfico da sua própria jurisdição, contudo, como casar não era pecado,
os Ouvidores que não levassem em conta essa proibição poderiam perder o cargo,
mas nem por isso cometeriam pecado.
A partir dessa proposição, o teólogo e jurista jesuíta passava a discutir os motivos
de por que não poderiam casar (ou seja, quais seriam as razões de conveniência para
viver de acordo com essa norma legal) para, depois, considerar que, dependendo do
lugar onde o caso acontecesse, os motivos seriam mais ou menos graves, mais ou
menos coativos. Dessa forma, acabava concluindo que, dependendo da situação e do
lugar, daria até para casar e continuar no cargo.
Interessa-me aqui mostrar a forma do raciocínio de Avendaño, utilizando, ele
mesmo, um tipo de argumentação – por meio de citações de autores e de doutores,
que já em si é claramente probabilista:
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94 IV Encontro Internacional de História Colonial
Outra questão delicada era tudo o relacionado com o pagamento de impostos nas
minas. A lei geral também era conhecida: as minas pertenciam aos Reis, pois, por
natureza, estavam destinadas ao uso comum e não ao privado. Os Reis entregavam-nas
aos particulares, reservando para si o quinto e, em alguns casos, o décimo.
Tudo isso era claro e conhecido, mas a partir daí é que começava a argumentação do
jesuíta para dizer que de acordo com muitos doutores, umas vez que as minas eram
entregues pelo Rei, então, passavam a ser dos particulares, não estando estes, portanto,
obrigados em consciência a pagar os impostos. Por outro lado, também havia muitos
doutores que afirmavam que se o Rei as entregava com a condição do pagamento do
quinto, então, sim, deveriam pagar o imposto. Como vemos, a argumentação jurídica
seguia os princípios da retórica probabilista: alguns autores opinavam de uma forma, e,
outros, opinavam o contrário. Dentro desse espectro de opiniões, qual delas deveria ser
seguida?
A opinião de Avendaño seguia a do célebre jurista Solórzano Pereira: “No siendo las
circunstancias las mismas, no debe observarse el rigor de las contribuiciones: lo pide la equidad, la razón lo
pone de manifesto y lo confirma también la autoridad de los autores”.27 Por outras palavras, e apenas
para deixar mais claro o entendimento da questão: os Ouvidores e juízes deveriam
atentar para as circunstâncias de cada caso e, então, tendo em conta o princípio da
equidade e as diferentes opiniões dos diferentes doutores sobre a matéria, poderia decidir
sem observar o rigor da lei.
Gostaria de me referir a um último caso para mostrar como o probabilismo abria
uma grande margem de ambiguidade, permitindo que os juízes decidissem de uma
maneira ou de maneira contrária, sem nenhum tipo de problema: trata-se dos casos em
que se discutia o que fazer com a herança de um clérigo defunto.
Avendaño explicava que, embora a lei fosse explícita determinando que os bens
deveriam ser encaminhados para obras pias na Espanha, ele entendia que havia muitos
costumes diferentes no Peru, onde muitas províncias costumavam declarar que os bens
de clérigos defuntos deveriam ficar ou para a paróquia local ou para o colégio dos padres.
Diante desse impasse, considerava que se fosse feito como em Lima, onde um juiz,
26 Ibidem, p. 259-261.
27 Ibidem, p. 353.
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Encontros com a história colonial 95
Considerações finais
28 Ibidem, p. 175.
29 Ibidem, p. 30.
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96 IV Encontro Internacional de História Colonial
Ronaldo Vainfas1
“É melhor ter com eles (holandeses) guerra declarada do que paz fingida”. Foi o
que escreveu Manoel de Moraes, em outubro de 1648, emitindo um dos mil pareceres
que o hesitante rei D.João IV solicitava aos que tinham experiência em assuntos
holandeses.2 Era tempo de pareceres solicitados pelo rei sobre se convinha ou não
ceder o Brasil às Províncias Unidas dos Países Baixos em troca da paz. Aliás, como
escreveu Evaldo Cabral de Mello, em O negócio do Brasil, quem hoje compulsa os
códices seiscentistas nas bibliotecas e arquivos portugueses, “topa invariavelmente com
manuscritos sobre as pazes da Holanda”.3
O texto de Manoel de Moraes apresenta os ingredientes de um parecer formal sobre
a questão. Manoel se dirigiu ao rei: “Isto escrevo como fiel vassalo de Sua Magestade,
como quem correu todas aquelas terras, tratou todas aquelas gentes, e lhes conhece de
experiência as condições”. Texto oficial e segredo de Estado: “sob censura”. Sendo o
assunto a famigerada “paz com a Holanda, Manoel começa o texto louvando a paz,
enquanto princípio, nela vendo a raiz da prosperidade dos povos. Mas não a paz com
os holandeses, dizia, que eram povos “variáveis, inquietos e mal intencionados”. Só
fazem a paz enquanto lhes convêm – acrescentou - e ao menor descuido “quebram as
leis dela”. O mote do seu texto se pode resumir no argumento citado no início: “é
melhor ter com eles (holandeses) guerra declarada do que paz fingida”.
Manoel refutou, portanto, o que considerava os quatro pontos essenciais do tratado
“entreguista” que Portugal negociava com os holandeses, afirmando que na Europa, se
fosse possível, a paz era benvinda. Mas no sul, isto é, no Brasil, somente a guerra
resolveria o impasse. Considerou inaceitável que Portugal cedesse aos holandeses
território tão rico em engenhos de açúcar, tabaco, pau-brasil e mantimentos variados.
Alegava que Portugal não precisava da Holanda para nada, pois tudo que vendiam no
Brasil vinha de outras partes, a aguardente da França, as munições da Dinamarca ou
Hamburgo, o ferro da Suécia. Em contrapartida, a Holanda não podia viver sem o sal
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98 IV Encontro Internacional de História Colonial
5 BOXER, Charles. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1886. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1973.
6 Sobre as conquistas holandesas na África, ver ALENCASTRO, Luis Felipe de. O trato dos
viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, cap. 6, p.
188-246; RATELBAND, Klaas. Os holandeses no Brasil e na costa africana: Angola,
Kongo e São Tomé, 1600-1650. Lisboa: Vega, 2003, p. 109-145; SILVA, Alberto da Costa e.
A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2002, p. 407-450.
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100 IV Encontro Internacional de História Colonial
7 COSTA, Leonor Freire & CUNHA, Mafalda Soares da. D. João IV. Lisboa: Círculo de
leitores, p. 114-117.
8 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições. Lisboa: Círculo de Leitores,
1994, p. 111.
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Encontros com a história colonial 101
9COSTA, Leonor Freire & CUNHA, Mafalda Soares da. D. João IV…, p. 127.
10
PRESTAGE, Edgar. As relações diplomáticas de Portugal com a França, Inglaterra e
Holanda de 1640 a 1668. Coimbra: Imprensa Nacional, 1928, p. 196-197.
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102 IV Encontro Internacional de História Colonial
Vale inverter, nesta altura, o titulo do presente artigo, pois esta fórmula parece
exprimir melhor o novo impasse estabelecido com a irrupção da “guerra da liberdade
divina” em Pernambuco. Isto porque, oficialmente, Portugal e Paises Baixos estavam
em paz arrastando negociações diplomáticas, sendo que os portugueses custaram a
admitir o estado beligerante dos luso-brasileiros, preferindo atribuir as “alterações
pernambucanas” à insesatez de poucos rebeldes. Fingia-se não haver a guerra que se
travava no Brasil, ao menos enquanto esta farsa era possível de ser encenada.
Mas no trancurso da rebelião, os endividados de Pernambuco haveriam de dar
enorme ajuda à diplomacia portuguesa, ao deflagrarem a guerra restauradora. Diria
mesmo que deram apoio crucial, a médio prazo, para a própria restauração no reino.
Mas é claro que tais benefícios não seriam imediatos. Os holandeses protestaram
muitíssimo contra a audácia da rebelião pernambucana e exigiram do embaixador
português a imediata cessação das hostilidades e punição exemplar dos rebeldes. Neste
ponto, a situação se inverteu. Francisco de Souza Coutinho prometia tudo aos
11
WÄTJEN, Hermann. O domínio colonial holandês no Brasil. (original de 1938). Recife:
Companhia Editora de Pernambuco, 3a ed., 2004, p. 494 e segs.
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Encontros com a história colonial 103
holandeses, mas não fazia nada. O governador da Bahia, Antônio Teles da Silva,
prometia mandar tropas para conter os rebeldes pernambucanos e, na verdade, enviava
reforços para a rebelião.
O impasse durou alguns anos mais. Em 18 de setembro de 1645, por exemplo, com
a capitulação holandesa no Forte Maurício, em Penedo, 200 prisioneiros de guerra
foram enviados a Lisboa. Entre eles, seis judeus portugueses que, como súditos do
Príncipe de Orange, estavam protegidos pelo acordo de 1641, e não podiam ser
levados ao Santo Ofício. De nada valeu, outra vez, o acordo. D.Pedro da Silva e
Sampaio, bispo da Bahia, mandou os presos para a Inquisição, do que resultou
tremendo quiprocó diplomático.
Pressionados pela Talmud Torá de Amsterdã, os embaixadores holandeses exigiram
a imediata liberação dos presos. D.João IV pressionou a Inquisição, sua inimiga, que
teimou em não liberar nenhum deles. O rei escreveu duas vezes para os holandeses
dizendo que nada podia fazer em matéria de fé, que era foro privativo da Inquisição,
prometendo, no entanto, fazer o possível para libertá-los. Os Estados Gerais exigiram
a libertação de todos, sem exceção. D.João IV conseguiu liberar a metade. Os outros
três judeus que permaneceram presos, saíram no auto-da-fé de dezembro de 1647, o
mesmo, aliás, em que saiu o ex-jesuíta Manoel de Moraes.
Vieira contestou frontalmente a Inquisição e, com isto, só fez acirrar o conflito
entre jesuítas e inquisidores, bem como a oposição do Santo Ofício ao rei. Mas, em
matéria diplomática, Vieira era mais prudente. Diante do avanço arrasador dos rebeldes
pernambucanos nos Guararapes e da reconquista de Angola pelos portugueses, os
holandeses ameaçaram entrar em guerra contra D.João IV. Estavam dispostos a
bloquear Lisboa e até mesmo a se aliar com a Espanha. Inimiga histórica dos
holandeses, a Espanha havia reconhecido, em 1648, a independência batava.
Ainda antes da segunda batalha dos Guararapes, em julho de 1648, Sousa Coutinho
recebeu exigências duríssimas dos comissários dos Estados Gerais. Entre outras, a
restituição de todos os territórios que possuía a WIC em 1641, mais concessões
territoriais na África e até a caução do morro de São Paulo, no litoral baiano; pesadas
indenizações de guerra, incluindo o pagamento anual de mil caixas de açúcar, branco e
mascavado, pelo prazo de dez anos; pagamento das dívidas que os colonos tinham
com a WIC e particulares flamengos; neutralização de uma faixa de dez léguas na
fronteira dos territórios holandeses, onde os portugueses não poderiam erigir
fortificações.
Francisco de Sousa Coutinho amoleceu, apoiado em Antônio Vieira, e
resguardando o desejo pessoal de D.João IV. O rei preferia pagar aos holandeses ou
perder de vez suas ricas possessões no Atlântico do que arriscar-se a perder a Coroa.
De todo modo, o embaixador fez reparos pontuais às exigências holandesas, embora
tenha concordado com o essencial delas, em documento firmado a 19 de agosto de
1648.
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12 Papel que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses.
In: PÉCORA, Alcir (org). Escritos históricos e políticos do Padre Antônio Vieira. São
Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 338-341.
13 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos flamengos: influência da ocupação
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14 BOOGAART, Erns van den. Infernal Allies: the Dutch West India Company and the
Tarairiu – 1631-1654. In: J. M. Siegen et al (orgs). A humanist prince in Europe and
Brazil. The Hague: The Government Publishing Office, 1979, p. 519-538
15 SHALKWIJK, Frans Leonard. Igreja e Estado no Brasil Holandês. Recife:
FUNDARPE, 1986.
16 RIBAS, Maria Aparecida Barreto. O leme espiritual do navio mercante: a missionação
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106 IV Encontro Internacional de História Colonial
19 Ibidem, p. 346.
20 Ibidem, p. 349-354.
21 Ibidem, p. 364-366.
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Encontros com a história colonial 107
22 Ibidem, p. 367-368.
23 Ibidem, p. 371.
24 Ibidem, p. 379-398.
25 Ibidem, p. 399-400.
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Poucas palavras para concluir, começando por dizer que este tremendo problema
militar e diplomático não foi resolvido na corte portuguesa, entre pareceres e reuniões.
Nem com o Papel forte de Vieira, nem com o papel fraco de Manoel de Moraes.
Resolveu-o, em primeiro lugar, a Inglaterra de Cromwell, que declarou guerra à
Holanda, em 1652, inviabilizando o esforço de guerra holandês no Pernambuco.
Salvador Correia de Sá, em segundo lugar, deu também contribuição enorme, ao
reconquistar Luanda, Benguela e São Tomé, em 1648, retirando dos holandeses o
controle do tráfico africano. E, por fim, os generais da insurreição pernambucana
deram o golpe decisivo. João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros e Martim
Soares Moreno, pela nobreza da terra. Felipe Camarão, à frente dos índios potiguares,
com o pomposo título de “governador geral de todos os índios do Brasil”. Henrique
Dias, general do Terço negro, com seu título barroco de “governador dos negros,
crioulos e mulatos do Brasil”. A Insurreição Pernambucana fez pela restauração mais
do que todos os diplomatas de D. João IV.
26Quase um século depois, Nas Instruções Inéditas a Marco António de Azevedo Coutinho, d. Luís
da Cunha afirmou que por ser “florentíssimo e bem povoado aquele imenso continente do
Brasil”, deveria o rei de Portugal tomar o título de “imperador do Ocidente” indo ali
estabelecer-se. E, disse mais, que “o lugar mais próprio para sua residência seria a cidade do
Rio de Janeiro que, em pouco tempo viria a ser mais opulenta que a de Lisboa”.
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Encontros com a história colonial 109
1
Universidade Federal Fluminense.
2 A eficácia dos tribunais espanhóis em erradicar os nichos judaizantes no século XV havia
abrandado a onda de perseguições e deixado como legado um marranismo residual que
ganhou novo fôlego com o afluxo de criptojudeus portugueses. A chegada destes grupos
desencadeou, entretanto, nova vaga de prisões e condenações que atravessou os séculos XVI
e XVII.
3 KAPLAN, Yosef. Judíos Nuevos em Amsterdam – estudio sobre la historia social e
intelectual del judaismo sefardí em el siglo XVII. Barcelona: editorial Gedisa, 1996.
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110 IV Encontro Internacional de História Colonial
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Encontros com a história colonial 111
molinosista, decorrente muitas vezes da relação que as freiras mantinham com seus
confessores.
Ao contrário do pietismo, corrente religiosa que sublinhava a importância da
autodisciplina, do rigor ascético, da obediência aos preceitos da Igreja tridentina para
atingir a santidade e obter a comunhão com Deus, o molinosismo baseava-se no
quietismo. Tinha, portanto, como princípio a completa submissão à vontade divina,
enxergando o homem como um produto passivo da vontade de Deus, razão pela
qual seria inútil seu esforço pessoal para obter a santificação. Para atingir um estado
completo de paz e de arrebatamento espiritual, o Guia Espiritual do teólogo Miguel
de Molinos ( 1628-1696), publicado, em Roma, em 1675, recomendava a oração
mental, a suspensão da palavra e a contemplação para alcançar a união mística.
Molinos punha em cheque assim “a indolência da tradição”, ou melhor, o ascetismo
severo e a repetição mecânica de fórmulas tradicionais para atingir a comunhão
espiritual com Deus. Embora sua intenção fosse apenas “abstratizar ao máximo a
relação teofânica”,4 dispensando os condicionamentos formais da devoção, ou seja, a
ascese repetitiva e mortificante, sua doutrina foi considerada herética.
A bula pontifícia que condenou o molinosismo, em 1687, acusou seu mentor de
fomentar o desprezo à prática das virtudes e de estimular a ociosidade espiritual por
valorizar em demasia a passividade. Acusou-o também de suspender o freio moral
dos fiéis estimulando-os à irresponsabilidade, à desobediência e ao desregramento
sexual. Submetido à torturas, Molinos capitulou diante dos inquisidores e admitiu as
acusações que lhe eram imputadas. Foi condenado por imoralidade e heterodoxia e
recebeu por sentença recitar, diariamente, as orações do credo e do terço, além de
confessar-se quatro vezes por ano e de se manter em reclusão perpétua. Forçado a
cumprir as práticas que contestara e julgava inúteis, Molinos acabou por falecer nove
anos depois nas masmorras de um monastério romano.
O Guia Espiritual assinado por Molinos foi interpretado de maneira diversa pelos
jesuítas que urdiram sua prisão e que viram no discurso do padre aragonês a
completa desculpabilização da união sexual, inclusive, entre aqueles que envergavam
o hábito de uma ordem monástica. Seus algozes não foram os únicos a interpretarem
deste modo os ensinamentos de Molinos, reduzindo sua doutrina à erotização da
vida religiosa. Em Portugal, o molinosismo conventual foi reduzido ao descumprimento
dos votos de obediência e castidade assumidos por homens e mulheres ao
ingressarem em sua congregação.
Em 1720, pelo menos quatro monjas do Convento de Santa Clara do Porto já
haviam sido seduzidas pelo discurso do sacerdote molinosista Frei João de Deus:
Madre Anna do Rosário, Madre Maria da Piedade, Madre Joana de Jesus e Madre
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112 IV Encontro Internacional de História Colonial
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Encontros com a história colonial 113
6 HUNERMMAN, Peter & HOFMMAN, Joseph Apud BELLINI, Ligia. Cultura religiosa e
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114 IV Encontro Internacional de História Colonial
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que matizou a atividade dos jesuítas. Do mesmo modo, também podem ser
contextualizadas as ações de todos aqueles homens e mulheres que combateram as
tropas holandesas.
Quanto à West-Indische Compagnie, [Companhia das Índias Ocidentais], desde sua
criação, em junho de 1621,ela sempre se manteve fiel aos seus objetivos de
colonização e comércio mediante conquista. Seu alvo prioritário era a ocupação dos
territórios pertencentes à coroa espanhola nas Américas. Por conseguinte, em 1624, a
WIC atacou e ocupou a cidade de Salvador, sede da administração colonial. No
entanto, a permanência de suas tropas foi efêmera, pois, a capital foi reconquistada
em 1625, no episódio que passou à história com o pomposo título ‘Jornada dos
Vassalos’, cujo comando coube ao fidalgo, D. Fradique de Toledo Osório.
Dentre os inacianos que viveram aquele período conturbado encontrava-se
Antônio Vieira, que embora tenha nascido em Portugal no ano de 1608, veio para o
Brasil ainda criança. A partir de então, Vieira seguiu a mesma trajetória da maior
parte dos filhos dos colonos e dos funcionários da administração régia, tornando-se
aluno externo dos inacianos. Contra o desejo paterno, segundo afirmam alguns de
seus biógrafos, aos quinze anos de idade solicitou seu ingresso formal na Companhia
de Jesus, sendo recebido no Colégio da Bahia pelo padre Fernão Cardim.5
Em 1624, Antônio Vieira iniciava sua vida religiosa como escolástico no Colégio
da Bahia quando a cidade de Salvador foi tomada pelos holandeses. Em virtude da
fragorosa derrota sofrida pelos defensores da capital colonial e perante o inexorável
avanço das tropas da West Indische Compagnie, Vieira, a exemplo dos demais jesuítas
que ali viviam, teve que abandonar a cidade. A retirada foi realizada durante a noite e
sob uma forte comoção popular, agravada pelo incontrolável pânico que se
estabeleceu, inclusive entre os soldados das tropas coloniais que deveriam defender a
cidade contra a investida dos holandeses. Após inúmeras peripécias os religiosos da
Companhia de Jesus finalmente conseguiram refúgio nas aldeias indígenas de São
João e Espírito Santo, localizadas a poucas léguas de distância de Salvador.
A debandada dos jesuítas em direção às aldeias que mantinham no interior da
capitania seguiu um modus operandi previamente estabelecido. De fato, basta lembrar
que desde o início de suas atividades nos trópicos em meados do século XVI, os
missionários da Companhia de Jesus se notabilizaram pela adoção do aldeamento
tutelado dos nativos, que veio a se tornar o locus privilegiado para catequese e
conversão dos brasis ao catolicismo. No entanto, as aldeias e seus habitantes
desempenharam outro papel decisivo para o sucesso do processo de colonização
iniciado nos trópicos. Refiro-me de modo particular à função militar que os índios
flecheiros passaram a desempenhar no sistema defensivo estabelecido pelos agentes
da colonização. Por conseguinte, desde a década de 1550, os nativos das aldeias
5 AZEVEDO, João Lúcio de. História de Antônio Viera. São Paulo: Alameda, 2008, 2 v.
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MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos: influência da ocupação
holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil. Recife: Secretaria de Educação e Cultura -
Departamento de Cultura, 2 ª edição, 1979, p. 244. (Coleção Pernambucana volume XV).
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124 IV Encontro Internacional de História Colonial
Tabela n. 1
Companhia de Jesus em Pernambuco 1630 - 1635
Estabelecimento Padres Irmãos Total
Colégio de Olinda 13 10 23
Aldeia de São Miguel do Muçuí 2 - 2
Aldeia de Assunção 1 1 2
Aldeia de Santo André 2 2 4
Aldeia de Nossa Senhora da Escada 2 - 2
Aldeia de São Miguel de Uma 2 - 2
Total 22 13 35
Fonte: Archivum Romanum Societatis Iesu.. Códices Brasília 5, ff.135,137; Lusitania 74, f.270.
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Encontros com a história colonial 125
Tabela n. 2
Missionários da Companhia de Jesus em Pernambuco – 1635
Situação Quantidade %
Retirados para Salvador 11 31,43%
Cativos e Desterrados 7 20,00%
Cativos e Desterrados Mortos no Exílio 9 25,71%
Mortos em decorrência dos achaques
4 11,43
sofridos nos cárceres
Mortos por causas naturais entre 1630-1635 3 8,57%
Mortos em Ação 1 2,86%
Total 35 100%
Fonte: Archivum Romanum Societatis Iesu. Códices Brasília 8, ff.517,530
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126 IV Encontro Internacional de História Colonial
Cabe destacar que do mesmo modo que aconteceu com outros documentos
produzidos pelos religiosos da Companhia de Jesus, esta relação dos Religiosos Mortos
no Desterro da Holanda, não se encontrava sob a guarda do Archivum Romanum Societatis
Iesu. De fato, embora se trate de uma fonte preciosa para o entendimento da
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130 IV Encontro Internacional de História Colonial
Ancient to Modern Times. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1999, p.
265-266. Sobre o caso específico das preceptivas de pregação que circulavam na América
portuguesa e informavam o clero da região, sugere-se: MASSIMI, M. A Pregação no Brasil
Colonial. Varia Historia, n. 21, v. 34, 417-436, 2005.
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Encontros com a história colonial 131
se irá apresentar, portanto, é ainda uma pesquisa em estágio inicial com todas as
imperfeições e indefinições de um projeto. A sequência deste texto é a reelaboração
de partes de um projeto de pesquisa de pós-doutorado que executaremos ao longo
do ano que vem no Departamento de História da Arte da Universidade de Warwick
(Reino Unido), em parceria com o professor Lorenzo Pericolo.
Nas últimas décadas, os estudos sobre a “Retórica Renascentista” (normalmente
localizada entre os séculos XIV e XVII, compreendendo a Europa cristã como um
todo) tem sido alvo de interesse renovado. Nesse sentido, destacam-se os atualizados
trabalhos de Lawrence Green sobre o percurso das recepções da Retórica aristotélica
na Renascença4 e os de caráter mais geral, como o mais recente livro de Peter Mack5
e estudos de autores tais como Tom Conley,6 Brian Vickers,7 Francis Goyet8 e
diversos outros. Em meio a esta renovação dos estudos da Retórica na Renascença,
Heinrich Plett, em seu Rhetoric and Renaissance Culture, demonstra que as artes de
Retórica se entrelaçaram com artes relativas a diversas mídias de comunicação não
somente de caráter visual, mas também acústico e “performático”, tais como no caso
das artes do teatro e da quirologia.9 Especialmente no campo da pregação, neste
mesmo período, alguns trabalhos vêm explorando as conexões entre imagens e
palavras em contextos espaciais dos mais diversos. Bons exemplos são os trabalhos
de Lina Bolzoni10 sobre as impressões de sermões de Bernardino de Siena e de
Mujica Pinilla a respeito da pregação no “Barroco peruano”.11
Dentre as conclusões que os estudos sobre as imagens nos sermões nos permitem
tirar, está a de que elas colaborariam com o objetivo de tornar a teologia simbólica e
sensivelmente visível e recodificada para os auditórios da época. Esta estratégia pode
Press, 1990.
7 VICKERS, B. In defence of Rhetoric. Oxford: Clarendon Press, 1988.
8 GOYET, F. Le sublime du “lieu commun”: l’invention rhetorique dans la Antiquité et la
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136 IV Encontro Internacional de História Colonial
termos, nossa proposta é investigar como as artes visuais lidaram com certos
aspectos da eloquência que não eram possíveis de verbalizar nos termos exclusivos
de uma Retórica humana e “pagã”, mas somente nos termos da relação entre
eloquência humana e divina. Em tal contexto, ser persuasivo é tanto uma questão de
lidar com os preceitos da arte Retórica quanto com os aspectos mais “espirituais” ou
“pneumáticos” da eloquência nas suas possíveis expressões visuais.
Na direção em que propomos, a iconografia da pregação deve ser pensada no
interior de uma teologia do visível ou de uma cultura teológica do visual. Estudando tal
questão em teólogos como Gabriele Paleotti e Roberto Bellarmino, Jens Baumgarten
mostra que a Igreja da Contrarreforma postulava que sem os sacramentos a arte
religiosa não seria possível, bem como os sacramentos não seriam concebíveis sem a
arte. Em outros termos, as artes visuais eram entendidas como meios sacramentais
pelos quais o conhecimento a respeito dos sacramentos poderiam ser acessados
sensível e sensorialmente. Portanto, os artistas se submeteriam a desempenhar um
papel análogo a de um pregador tácito e a agir como um exemplo pessoal de devoção.25
Baumgarten conclui o seu artigo com uma afirmação capaz de resumir isto a que
estamos chamando de cultura teológica do visual. Para ele, a nova percepção católica dos
séculos XVI e XVII relaciona os efeitos emocionais das imagens com os seus
aspectos racionais, quais sejam, aqueles referentes à sua análise e controle.26 Quando
falamos de uma Europa Católica da primeira modernidade, pensamos em um
espaço-tempo particular no qual esta cultura era efetiva e produtiva nas suas
dimensões políticas e religiosas. Numa cultura como esta, em que o pregador é ele
mesmo um modelo para o artista, a pregação não poderia ser ignorada como tema
central para a História da Arte e esta como perfeita contraparte da História da
Retórica.
Resumindo os nossos objetivos, o principal é explorar as interconexões entre a
arte retórica de pregar, os seus componentes visuais e a sua representação nas artes
da Europa da Contrarreforma (sécs. XVI-XVIII), considerando a concepção artística
da “eloquência divina”, particularmente, no interior de uma cultura teológica do visual.
Isso envolve compreender uma gramática de gestos relativos à pregação tal como
artisticamente representada na Europa católica da primeira modernidade e investigar
a simbologia da “eloquência divina” e da “Retórica pagã” como aspectos da pregação
e as suas funções nas artes da Contrarreforma. Com isso, espera-se estabelecer as
bases teóricas para uma próxima investigação dos aspectos não verbais da pregação e
as suas representações visuais pela ordem dos Jesuítas no Novo Mundo.
Um dos caminhos importantes para a nossa pesquisa será o foco sobre os tópicos
convencionais relativos à iconografia da pregação. Especialmente, deveremos prestar
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Encontros com a história colonial 137
grande atenção nas relações entre a representação visual e as suas fontes escritas,
sobretudo, aquelas de origem bíblica e/ou hagiográfica. Ao mesmo tempo,
deveremos interpretar os arranjos particulares dessas convenções, atentando para
aquilo que Baxandall nomeia “hábitos visuais” de uma cultura em particular.27 No
caso, tais hábitos estão fortemente relacionados ao que já expusemos como cultura
teológica do visual, presente na espiritualidade e na “estética” da Contrarreforma. Assim
procedendo, será possível especular a respeito dos sentidos culturais mais amplos da
pregação, o seu lugar em relação a outras práticas correlatas e as analogias que
assumiu com outros campos da experiência social e religiosa.
Apesar da importância central de tomarmos a análise de cada imagem como um
todo para a nossa metodologia, ela não é suficiente para os nossos objetivos.
Consideramos cada imagem como arranjo particular de motivos e convenções
iconográficas, o que nos leva a ter em conta os três níveis de significado que Erwin
Panofsky identificou para os estudos de “Iconologia”.28 Isto quer dizer que os
simbolismos de cada representação não podem ser interpretados sem referência à sua
iconografia e à sua combinação particular de motivos. Por outro lado, também indica
que os papéis de iconografia e dos motivos estão imbricados na função mais
profunda de um artefato artístico-religioso: a produção de um significado na sua
relação com a fé. Neste sentido, por exemplo, um conjunto de movimentos ou
expressões faciais convencionalmente representado numa cena iconográfica, quando
se tem em conta os seus potenciais observadores, pode produzir certos efeitos,
capazes de agir sobre suas paixões, seus sentidos, seu intelecto e sua vontade. As
referências comuns compartilhadas por artistas e públicos conformam aquilo que
define os efeitos próprios que cada gesto sugerido na cena pode produzir. Estas
referências precisarão ser descobertas e compreendidas no caso específico das
imagens da pregação, o que só se conseguirá por meio da consideração efetiva de um
número significativo de imagens e da comparação entre elas.
A iconografia da pregação forma um enorme universo repleto de uma variedade
estonteante de temas e subtemas. Contudo, em pesquisa prévia por imagens em
alguns bancos de dados on-line (Art and the Bible, Artstor, Biblical Art on the
WWW, British Museum, Europeana, Matriz Net and WGA), percebemos uma
ligação forte entre o tema da pregação e a iconografia de alguns santos principais. É
o caso de São João Batista e de sua pregação no deserto (também representado
muitas vezes como bosques e florestas). Outro caso é o de São Paulo, especialmente
a sua pregação aos atenienses no Areópago, cujo principal exemplo é o cartão de
Rafael (Cf.: fig. 01), concebido em 1515 ou 1516 para servir de modelo a uma
tapeçaria que hoje encontra-se abrigada na Pinacoteca do Vaticano, e que recebeu
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138 IV Encontro Internacional de História Colonial
diversas versões em desenho e gravuras ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII. A
importância bíblica de ambos para a pregação é enorme. O primeiro aparece nos
evangelhos como o último dos profetas e o primeiro a pregar a Boa Nova de Cristo,
preparando o caminho de seu Mestre. Junto à atividade da pregação, dedicava-se ao
batismo para a remissão dos pecados, o que o lança também para o início do livro do
Atos dos Apóstolos, no qual o batismo de João vê-se realizado em sua plenitude pelo
“batismo no Espírito Santo”, pelo Pentecostes, que torna os apóstolos divinamente
eloquentes com as suas “línguas de fogo”. Também no Atos dos Apóstolos, São Paulo e
sua pregação são fortemente enfatizados. Já nas suas Epístolas, elabora-se uma das
mais autorizadas concepções de “eloquência e sabedoria divinas” no interior da
Igreja. Acreditamos, assim, que o foco na iconografia destes dois santos pregadores,
sem simplesmente negligenciar outros, poderá fornecer paradigmas gerais para a
consideração da “eloquência divina” no conjunto do corpus de imagens com o qual
iremos lidar.
No caso das missões jesuíticas no Novo Mundo, o modelo apostólico paulino é,
particularmente central, conforme elucida, entre outros, John O'Malley:
São João Batista também é significativo como modelo para a pregação jesuítica.
Deve-se considerar, neste caso, a relação que se constitui entre o “batismo de João”
e o batismo pelo Espírito Santo no livro Atos dos Apóstolos. Se o apostolado presente
nas primeiras comunidades cristãs e, especialmente, em São Paulo é um modelo para
a Companhia de Jesus, não é de se espantar que, no âmbito da eloquência, perceba-se
a centralidade dos dons recebidos pelo batismo como meios de comunicar a Boa
Nova a todos os povos.
Dois exemplos podem bem ilustrar o que defendemos aqui. Um deles é a tela de
1690, pintada pelo pintor genovês Baciccio (Giovanni Battista Gaulli) para os
Jesuítas de Roma, a partir de um desenho anterior de (Gian Lorenzo) Bernini, com
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Encontros com a história colonial 139
quem trabalhava (Cf.: fig 02). Nesta imagem, São João Batista é representado como
homem de idade viril, de compleição física bem proporcionada e robusta, pregando
ao povo em uma paisagem selvagem e de relevo acidentado. Entre os personagens
que compõem o auditório, além de mulheres lactantes, crianças, homens de posses e
militares (todos muito comuns e com sentidos particulares na iconografia da
pregação deste santo), observam-se mais ao plano central quatro figuras masculinas
provavelmente a representarem os apóstolos André, João (Evangelista), Pedro e
Tiago, oriundos da Galileia, e que se tornaram seguidores de Jesus após o seu
batismo por São João Batista no Rio Jordão. Chegando à cena, ao lado esquerdo,
observa-se Jesus radiante em dourado sobre um cavalo branco bem iluminado. João
Batista, empunhando uma cruz com as inscrições convencionais “ecce agnus Dei”
(“eis o cordeiro de Deus”), aponta seu indicador direito para o céu, num gesto, em si,
repleto de significados. Um deles e o que mais importa ao nosso argumento aqui é
aquele que deriva das Escrituras, em especial, Lc 20, 1-8. Nesta passagem, Jesus é
confrontado por sumos sacerdotes, escribas e anciãos do Templo que lhe perguntam
com que autoridade pregava. Jesus lhes responde com uma outra pergunta, a que os
fariseus preferiram dizer não conhecer a resposta: de onde vinha o batismo de João,
do céu ou dos homens? Ao ouvir o “não sabemos” como resposta, Jesus, então,
também se nega a responder de onde vinha a sua autoridade, deixando subentendido
que tanto o batismo quanto a autoridade de pregar vinham do céu, o que pode ser
facilmente lido a partir da chave do Pentecostes. Ao apontar para o céu, uma das
mensagens de São João Batista no quadro é a de que sua pregação e,
consequentemente, sua eloquência têm origem divina no poder que vem do Espírito
Santo.
São João Batista, como ícone da “eloquência divina”, modelar para os Jesuítas, é
algo que se confirma no outro exemplo que gostaríamos de mencionar. Nos
referimos ao frontispício do manuscrito seiscentista de Mário Alberico da obra De
contexenda orationis libri duo, do Pe. Famiano Strada, S.J., que se encontra no Arquivum
Romanum Societatis Iesu (ARSI), em Roma.30 Strada, conforme autores como Marc
Fumaroli e Aldo Scaglione, representa uma vertente tipicamente jesuítica de
preceitos para a pregação que, ao dar ênfase no apelo às paixões, afasta-se
relativamente de uma postura agostiniana (e jansenista) de pura inspiração divina do
pregador e se aproxima da proposição de um aprendizado correto de aparatos
30MS. ARSI OPP. NN. 13. Agradeço à professora Hanne Roer por me fornecer informações
sobre este frontispício, quando apresentou a comunicação “Jesuit Rhetoric and the Eloquentia
Divina”, na XVIII Biennal Conference da International Society for the History of
Rhetoric (ISHR), Bolonha, 18 a 22 de julho de 2011. Não reproduzimos a imagem do
frontispício neste texto em função de direitos de imagem.
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140 IV Encontro Internacional de História Colonial
31SCAGLIONE, A. D. The liberal arts and the Jesuit College System. Filadélfia: John
Benjamins Publishing Company, 1986, p. 108.
32 CAUSSIN, N. Eloquentiae sacrae et humanae parallela libri XVI. Paris:
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Encontros com a história colonial 141
Ilustrações
Figura 1 – Rafael, São Paulo Pregando em Atenas, 1515-6. Cartão (desenho em carvão
colorido sobre papel, guarnecido sobre tela). Victoria & Albert Museum, Londres,
Inglaterra. Disponível em: http://www.vam.ac.uk/users/node/7928
Fig. 2 – Baciccio, Pregação de São João Batista, 1690. Óleo sobre tela 181 X 172 cm.
Musée du Louvre, Paris, França. Disponível em:
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/01/Baciccio_-
_The_Preaching_of_St_John_the_Baptist_-_WGA01117.jpg
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142 IV Encontro Internacional de História Colonial
Renato Cymbalista1
Introdução
In: LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Vol. II, p. 202-204.
3 VASCONCELLOS, Simão. Vida do venerável Padre José de Anchieta. Vol. I, p. 42-45.
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Encontros com a história colonial 143
brilhou. Nós, que assistimos, vimos a maravilha, e fomos preservados para podermos relatar
a todos o que ocorreu. O fogo assumiu a forma de uma abóbada, como a vela de um navio
inflada pelo vento, formando uma parede ao redor do mártir. E ele estava no centro, não
como carne queimada, mas como […] ouro e prata sendo purificados em uma fornalha.
Sentimos uma fragrância tão perfumada, como um cheiro tão perfumado, como um incenso
ou outra especiaria preciosa. Finalmente, os homens sem lei, vendo que seu corpo não
poderia ser consumido pelo fogo, mandaram um carrasco esfaqueá-lo com um punhal.
Quando isso foi feito, o corpo soltou uma quantidade tão grande de sangue, que apagou o
fogo.” Martírio de Policarpo, 15:1 a 16:2.
7 “Nec quicquam tamen proficit exquisitior quaeque crudelitas vestra; illecebra est magis
sectae. Plures efficimur, quotiens metimur a vobis: semen est sanguis Christianorum”.
TERTULIANO. Apologeticum, cap. 50:13. Disponível em:
http://www.tertullian.org/latin/apologeticum_becker.htm. Acesso em 15 de maio de 2012.
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144 IV Encontro Internacional de História Colonial
99.
9 BURSCHEL, Peter. Sterben und Unsterblichkeit. Zur Kultur des Martyriums in der
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Encontros com a história colonial 145
11 “Primeira Parte da Historia dos Religiosos da Companhia de Jesus e do que fizeram com a
divina graça na conversão dos infieis a nossa sancta fee catholica nos reynos e provincias da
India Oriental”. Composta pello Rev. Sebastiam Gonçalvez religioso da mesma Companhia,
portugues, natural de Ponte de Mila. Publicada por WICKI, José S.I. Historia da
Companhia de Jesus no Oriente. Coimbra: Atlântida, vol II, 1960 [1614], p. 28-29.
12 “Primeira Parte da Historia dos Religiosos da Companhia de Jesus e do que fizeram…”, p.
43.
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146 IV Encontro Internacional de História Colonial
Dali a três anos, outro jesuíta, o Irmão Luiz Mendes, foi também martirizado na
mesma região, motivando novas associações entre o martírio e o crescimento da
cristandade no Cabo de Comorim, como o relato do estado das missões na índia dos
padres Francisco Henriques e André de Carvalho:
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Encontros com a história colonial 147
Diz o santo Job que hum sangue toca outro sangue. E o real
profeta David que hum abismo chama outro abismo. O sangue
que o bem-aventurado P. Antonio Criminal derramou […]
tocou ao Irmão Luis Mendes de nossa Companhia pera que
liberalmente vertesse o seu pello augmento e defensão da
christandade; o abismo da misericordia, de que Deos usou com
o primeiro martyr de nossa Companhia, chamou o segundo na
mesma Costa da Pescaria.16
46.
17 Dedicatória da Vida del bienaventurado Padre Gonzalo de Sylveira, sacerdota de la
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148 IV Encontro Internacional de História Colonial
morreu nesta empresa, é de esperar que ajudará do céu com sua intercessão para o
bom sucesso dela”.
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Encontros com a história colonial 149
todos los Moros, que en ella viviã; y entrado en Sena buscò, por
ordẽ del Rey de Portugal, a todos os que avian cõcurrido en
aquella muerte del P. Gõçalo: y cogiendolos a todos, los cõdenò
a muerte infame, despues de muchos y extraordinarios
tormentos que les dio para terror y exẽplo de otros.
Y es tan grande la benignidad y misericordia de nuestro Dios,
que muchos de aquellos fueron muertos, conociendo la verdad
de nuestra Fê, y mirando por la salvacion de sus almas, pidieron
ser baptizados: y despues de aver recebido el santo baptismo se
fuerõ el cielo, como es de creer. El primero destos fue el Xeque
Ampeo, mas noble de todos, y el mas doctor y aficionado a su
supersticiõ: a este llamavã los Portugueses Can Perro, y quãto al
parecer de todos era mas cõtrario a la ley de Christo, tãto parece
devemos atribuir a las oraciones y sangre del santo P. Gõçalo,
aver recebido nuestra santa ley […] Afirmavan todos, y teniase
por muy cierto, que la bendita alma del santo P. Gonçalo, dese
el cielo avia alcançado de Dios, que Ampeo se apartasse de la
inorancia en que vivia, y fiesse alumbrado con la luz de su
verdad, y en fin de la vida le concediesse dichosa muerte,
aunqueen la vida avia sido tan malo.21
No fim de 1561, uma carta de um padre de Goa aos irmãos portugueses em que
implora por operários para as missões aos irmãos portugueses – “os clamores de
Japão e as necessidades de Maluquo, estrago da China, os suspiros de Timor e Solor,
e necessidades de Camboja, Sião, Panaruqua, Java, e todas as mais da banda do sul,
desejar o lume e conhecimento de seu Criador” – refere-se à África como mais bem
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Com efeito, após o martírio dos cinco jesuítas a cristandade começou a florescer
naquelas terras, e milhares de pagãos converteram-se:
25 ARSI, Angl. 7, 44a-b. Apud BAILEY, Gauvin A. Between Renaissance and Baroque:
Jesuit art in Rome. Toronto: University of Toronto Press, 2003, p. 324-325.
26 KERMAN, Joseph. William Byrd and Elisabethan Catholicism. In: Write all this down:
vener. Servi di Dio Ridolfo Acquaviva, Alfonso Pacheco, Pietro Berna, Antonio
Franceschi, e Francesco Araña Della Companhia di Gesu. Roma, Per Antonio de Rossi,
1745, p. 39-40.
28 Los cinco martires de Salsete de La Companhia de Jesus (1701), p. 182. BNP H.G.
2761 P, 1701.
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Mesmo com o sangue dos mártires, o século XVII foi cruel para a cristandade no
Japão, que acabou por ser proibida e perseguida. O Padre Cardim termina a
apresentação do seu livro com esperanças de que o sangue derramado no Japão
ajude na reconquista daquele território:
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Ivan Garcia Infanzon associa o mártir Padre Diego Luis de San Vitores, morto
em 1672 nas Ilhas Marianas, com os antigos apóstolos, que com seus exemplos
edificaram a antiga igreja em diversas partes do mundo, na apresentação do livro que
dedica à vida e morte do mártir:
35 Ibidem, p. 231-232.
36 GARCIA, Francisco. Vida, y Martirio de el venerable padre Diego Luis de Sanvitores,
de la Compañia de Iesus, primer apostol de las Islas Marianas, y sucessos de estas
islas, desde el año de mil seiscentos y sessenta y ocho, asta el de mil seiscentos y
ochenta y uno. Madrid: Por Ivan Garcia Infanzon, 1683, p. 1-2.
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Encontros com a história colonial 155
A América não foi território diferente do restante do Globo no que diz respeito à
conversão do território pelo sangue dos mártires. Em 1646, com muita dificuldade
na cristianização dos violentos Iroqueses e Hurones no Canadá, os jesuítas
expressavam que apenas com o sangue dos mártires a empreitada seria viável:
“Acreditamos que os planos que temos contra o Império de Satã para a salvação
desse povo só dará frutos se ensopado com o sangue de alguns mártires”37 Com
efeito, os martírios se cumpriram a partir de 1648, motivando a celebração do jesuíta
Paul Raguenau no ano seguinte:
37 Relations des Jésuites. Montreal: Éditions du Jour, vol. 3, 1972. Apud PERRON, Paul.
Isaac Jogues, from martyrdom to sainthood. In: GREER, Allan e BILINKOFF, Jodi (eds)
Colonial saints: discovering the holy in America. New York/London: Routledge, 2003, p.
156.
38 Paul Raguenau, “Relation of what occurred in the Mission of the Fathers of the Society of
JESUS among the Hurons, a country of New France, in the years 1648 and 1649 to the
Reverend Father Hierosme Lalemant, Superior of the Missions of the Society of Jesus in
New France”. In: THWAITES, Reuben Gold (ed) The Jesuit Relations and Allied
Documents. Cleveland: The Burrows Brothers Company, vol. 34, 1898. Disponível em:
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12 de maio de 2012.
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Figura 7, detalhe do mapa da missão de Mojos de 1713. Martírios dos padres Cipriano Barace e Baltasar de Espinosa.
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Figura 8 – Mapa que consta do livro Noticia de La Californa, de Miguel Venegas, publicado em 1757.47
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dos que obraram seus filhos nesta parte do Novo Mundo. Livro I, p. 101.
49 RICHEOME, Louis. La peinture spirituelle Apud: LESTRINGANT, Frank (ed). Le
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‘Estão todas as utilidades’: trocas e conflitos no sertão amazônico (século XVII). Revista de
História USP, 162, p. 13-49, 1o semestre de 2010.
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Considerações Finais
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Encontros com a história colonial 167
mais que houver enquanto não mandar o cotrário” ou “enquanto não mandar tirar
residência”.2 Até meados do século XVIII, era praxe ocorrerem nomeações em
conjunto por períodos regulares, assim permaneceu até o decreto de 23 de outubro
de 1759 em que se permitia fazer nomeações para os cargos à medida em que fossem
ficando vagos, produzindo maior agilidade nas nomeações e também menor tempo
de espera para os ministros que aguardavam a ocupação dos mesmos e ou a
progressão na carreira sem ter que permanecer tanto tempo em cargos menores.3
Traço marcante no percurso dos ouvidores de Minas é que tiveram como
primeira ocupação no serviço régio o cargo de juiz de fora no Reino
predominantemente, sendo menos expressivos os que iniciaram suas carreiras como
juízes de fora no ultramar, como demonstra o quadro que se segue. A maioria dos
ministros chegavam às Minas para exercício como ouvidores de comarca após a 2ª
ou 3ª ocupação em outros cargos, o que confirma ser a experiência um critério
importante para a escolha dos bacharéis além dos aspectos já mencionados quanto
à qualidade como estudantes. Ao todo, 68 ministros que foram para a Minas
acumularam experiências no exercício de uma a quatro ocupações anteriores, além
disso pelo menos quatro ouvidores de Minas possuíam não só a experiência do
acumúlo de outras ocupações anteriores como foram nomeados desembargadores
para terem exercício no lugar de ouvidor das Minas. Apenas doze bacharéis foram
nomeados diretamente para o cargo de ouvidores depois do exame no Desembargo
do Paço, o que implicava custos elevados para o bacharel e riscos para a
administração da justiça conforme será discutido adiante.
Por outro lado também são pouco expressivos os ouvidores que chegaram às
Minas, depois de terem exercido quatro ocupações anteriores, e, portanto, no final de
suas trajetórias como ministros régios, ou já com quase vinte anos de serviços. Esse
foi o caso de João Lopes Loureiro, que leu no desembargo em 1692 e iniciou carreira
como Juiz de fora de Esposende em que foi encarregado da superintendência do
Forte e Fortificações da Marinha, do qual deu boa residência em 1705. Em seguida
foi nomeado ouvidor de Barcelos, cargo em que permaneceu até dar boa residência
em 1709, com nota para os serviços que prestou tendo feito muitos soldados pagos e
predendo desertores deu pronta execução às ordens que lhe foram passadas. Depois
desse período recebe mercê de Cavaleiro Fidalgo,4 pelos serviços mencionados em
1712 e serviu de Provedor de Guimarâes e deu boa residência em 1718. Mesmo
por João Lopes Loureiro, com $750 réis de moradia ao mês e um alqueire de cevada dia. 17-
11-1712
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168 IV Encontro Internacional de História Colonial
considerando os intervalos que teve que esperar entre uma nomeação e a outra, o
ouvidor já contava em 1718 com quase vinte anos de atuação no serviço régio.
Recebe a mercê do cargo de ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto, em
1721, onde faleceu em fins de 1722.5
Quadro 1
Trajetória dos ministros régios até chegarem a Ouvidores de Minas.
Ordem de ocupação dos cargos
Cargos 1ª 2ª 3ª 4ª 5ª
Auditor Geral ; Auditor de 2 1
Infantaria e regimentos
Corregedor no Reino 2 1 2
Desembargador com 1
exercício no lugar de ouvidor
de capitania no ultramar
Desembargador com 4
exercício no lugar de ouvidor
de comarca em Minas
Intendente 1 1
Juiz de Fora em Reino 46 13 2
Juiz de Fora nas Ilhas 6 1
Juiz de Fora no ultramar 5 6
Juiz das propriedades, crime, 6 2
cível e dos órfãos no Reino
Ouvidor em Minas Gerais 12 33 27 6 4
Ouvidor no Reino 6 3
Ouvidor no ultramar 1 4 3 1
Provedor no Reino 1 1 1
Provedor no ultramar 1
Fonte: ANTT, DP, Leituras de Bacharéis; Assentos de Leitura, Registro Geral de Mercês; Chancelarias Régias.
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Encontros com a história colonial 169
outro aspecto, ainda pouco explorado, mas certamente muito relevante para se
entender os percursos da magistratura no reino e no ultramar, sobretudo em início
de carreira. Como já foi salientado, o caminho que levava até a entrada para o serviço
régio era longo e dispendioso para as famílias. Entrar para o serviço régio demandava
um esforço em estratégias para conseguir uma nomeação, uma vez que os critérios
de acesso vincunlavam-se a uma ordem burocrática-profissional mas também a uma
ordem político-social, e também grandes investimentos em quantias que deveriam
ser pagas à Coroa, como novos direitos, para que se exercesse um cargo no serviço
régio. No caso da primeira nomeação, certamente esses valores seriam cobertos pelas
famílias dos ministros, que eram por ocasião de entrada no serviço régio quase
sempre solteiros, e ainda dependentes da fortuna de seus ascendentes. Apenas quatro
desses ouvidores já estavam casados quando fizeram o exame de Leitura de
bacharéis.
A composição dos valores cobrados como novos direitos, por cargos ocupados
pelos ministros, levava em conta uma avaliação dos redimentos que poderiam ser
alferidos através da atuação em cada um desses lugares. Os redimentos,
emolumentos e salários acabavam por definir um valor que deveria ser pago todas a
vezes em que se recebia a mercê de nomeação para exercerem cargos na magistratura
régia. Para muitos cargos em que não era possível fazer o cálculo dos rendimentos
totais em função de propinas e emolumentos variáveis, os ministros assinavam fiança
dos novos direitos a pagar sobre os rendimentos a mais que houvesse. Não se trata
de uma avaliação propriamente dita do cargo, uma vez que não são
patrimonializaveis,7 como eram muitos outros ofícios, mas sim de uma espécie de
imposto calculado sobre os rendimentos que se poderia obter com o exercício do
mesmo. E quando se passava de um cargo cujos rendimentos não propiciavam
melhoras, não se pagavam os Novos direitos.
Os cargos de primeira entrância, em particular aqueles das pequenas vilas no
Reino eram os que demandavam menores quantias em novos direitos, os quais
ficavam mais elevados para as judicaturas em cidades e vilas principais e ainda mais
elevados em determinadas localidades no ultramar. Como exemplo, temos o
pagamento de 288$465 mil réis, mais fiança da mesma quantia, em Novos Direitos
pagos pelo ministro nomeado como juíz de fora da cidade de Mariana em 1747,8 na
7 Não se está falando de ofícios, serventias, que se tinham como propriedade vitalícia e que
em muitos casos eram legados aos filhos, e para os quais muitas vezes se nomeavam
serventuários, em troca de rendimentos. Sobre os quais recaiam também os Novos Direitos
e mais donativos e terças-partes, e que podiam ser concedidos muitas vezes como mercês em
remuneração de serviços prestados ao rei. Discute-se aqui apenas os cargos com provimento
régio trienal e não patrimonializáveis, pois era imprescíndivel para ter acesso a eles uma
formação letrada e a aprovação do Desembargo.
8 ANTT, Chancelarias Régias, D. João V, liv.116, fl. 69, Carta de juiz de fora de Mariana
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170 IV Encontro Internacional de História Colonial
Quadro 2
Valores pagos em novos direitos para os cargos de juiz de fora
ocupados pelos ouvidores que atuaram em Minas
Pagou
fiança Novos
Valor Fiança de do valor direitos
pago de outra total do tempo
Cargo Ano
Novos tanta dos que
direitos quantia novos serviu a
direitos mais no
cargo
Juiz de Fora da Cidade de
1798 31$303
Funchal
Juiz de Fora da Cidade de
1772 95$000
Loanda
Juiz de Fora da Cidade de
1717 20$000 20$000
Ponta Delgada
Juiz de Fora da Ilha de
1790 43$250
Santa Maria
Juiz de Fora da Vila de
1800 100$000
Alcacer do Sal
Juiz de Fora da Vila de
1730 35$000
Cea
Juiz de fora da Vila de
1739 10$000 100$000
Couruche
Juiz de fora da Vila de
1784 30$00
Fayal
Juiz de Fora da Vila de
1778 26$666 16$542
Figueira
Juiz de fora da Vila de
1742 X
Mafra
Juiz de fora da Vila de
1748 30$000
Mourão
Juiz de fora da Vila de
1799 129$059 189$748
Paracatu
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Encontros com a história colonial 171
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172 IV Encontro Internacional de História Colonial
Nesse sentido, cabe ressaltar que muitos destes ministros iniciavam suas carreiras
no reino também por serem postos mais acessíveis do ponto de vista financeiro. Para
suas famílias, que já haviam suportado o peso da manutenção ao longo da formação
e mais todos os encargos com atos e exames de formatura e no Desembargo do
Paço, arcar ainda com novos direitos elevados era para muitas delas investimento
improvável. Assim, começavam pelos lugares menores no Reino, permaneciam neles
por um período entre 3 a 5 anos, e somente na segunda ou terceira nomeação iam
para lugares em que os rendimentos eram mais elevados mas para os quais também
se pagavam novos direitos maiores, como era o cargo de ouvidor nas Minas.
Para o grupo de ovidores das Minas, esse período como juizes de fora em várias
localidades no reino foi essencial no desenvolvimento futuro de suas carreiras.
Nessas ocupações estruturavam suas famílias e redes sociais e de poder, também
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Encontros com a história colonial 173
muito importantes para assegurar nomeações futuras, já que dar boa residência9 ao
final do exercício nesses cargos dependia duplamente dos serviços prestados e das
testemunhas que no processo acabavam definindo a qualidade dos serviços do
magistrado. Para os que entravam no serviço régio sem se casarem, geralmente o
faziam em sua primeira ou segunda nomeação. E quando se casavam com mulheres
da região onde exerciam a judicatura precisavam de autorização régia, o que muitas
vezes constituia impecilho e atraso nas núpcias desses ministros, os quais somente
recebiam a autorização para depois terminassem o exercício do cargo na localidade
de onde provinha a noiva. Na verdade, muitas provisões de cargo, especialmente no
ultramar, determinavam que os ministros não se casassem naquelas localidades, sob
pena de verem nulas as promessas de acederem aos postos mais elevados como os de
desembargadores de tribunais superiores.
Embora fossem cargos cujos rendimentos não eram muito elevados como os de
outros postos no ultramar, foi a partir deles que esses magistrados acumularam o
necessário para investirem na carreira ultramarina, tanto do ponto de vista social
como financeiro, já que os novos direitos pagos para aceder aos cargos em Minas
Gerais eram sensivelmente mais elevados e no caso das ouvidorias demandavam
quantias avultadas conforme tabela seguinte. Apesar de no início do século XVIII,
quando ocorreram as primeiras nomeações para o cargo, o valor do novos direitos
pagos serem baixos e equivalentes aos de outras regiões, logo foram elevados e
depois sofreram variações relativamente pequenas ao longo do século e com
tendência ao aumento dos valores.
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174 IV Encontro Internacional de História Colonial
Quadro 3
Novos direitos pagos pelos nomeados ao cargo de ouvidores
Pagou
Fiança
Novos
Valor Fiança do valor
direitos do
pago de de outra total
Cargo Ano tempo que
Novos tanta dos
serviu a
direitos quantia novos
mais no
direitos
cargo
Ouvidor da Comarca de
1748 342$875 342$875
Vila Rica e Ouro Preto
Ouvidor da Comarca de
1739 337$500 X
Vila Rica e Ouro Preto
Ouvidor da Comarca de
1721 56$250 56$250
Vila Rica e Ouro Preto
Ouvidor da Comarca de
1723 172$875 172$875
Vila Rica e Ouro Preto
Ouvidor da Comarca de
1744 333$675
Vila Rica e Ouro Preto
Ouvidor da Comarca de
1765 689$167
Vila Rica e Ouro Preto
Ouvidor da Comarca de
1758 692$500
Vila Rica e Ouro Preto
Ouvidor da Comarca de
1801 250$687
Vila Rica e Ouro Preto
Ouvidor da Comarca de
1711 60$000 60$000
Vila Rica e Ouro Preto
Ouvidor da Comarca de
1715 16$900 16$900
Vila Rica e Ouro Preto
Ouvidor da Comarca de
1718 157$500
Vila Rica e Ouro Preto
Ouvidor da Comarca de
1733 847$000
Vila Rica e Ouro Preto
Ouvidor da Comarca do
1775 425$000
Rio das Mortes
Ouvidor da Comarca do
1718 52$500 52$500
Rio das Mortes
Ouvidor da Comarca do
1758 425$000
Rio das Mortes
Ouvidor da Comarca do
1747 212$500 212$500
Rio das Mortes
Ouvidor da Comarca do 1723 57$500 57$500
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A partir dos dados coletados nos dois quadros anteriores percebe-se a diferença
entre o que era necessário investir para ocupação de cargos no reino e no ultramar,
particularmente nas Minas no século XVIII. Além dos novos direitos serem muito
mais elevados para os cargos nas Minas, e, sobretudo, para o de ouvidor de comarca,
é preciso considerar também os custos com a viagem até as localidades. Muitos
magistrados, nesta ocasião de irem para as Minas, já estariam com suas familias
constituídas e não era raro que os familiares os acompanhassem. Também era
comum receberem mercês de ajuda de custo para as viagens, mas também chegavam
a contrair empréstimos para tal fim. Este foi o caso do ouvidor João Gualberto Pinto
de Moraes Sarmento, que recebeu uma mercê para tomar empréstimo de 6 mil
cruzados para seu transporte e estabelecimento nas Minas, como ouvidor da
Comarca do Rio das Velhas, com sua mulher, sete filhos e cunhados.10 Deu como
garantia no empréstimo os rendimentos sobre o ofício de escrivão da mesa do Sal de
Lisboa, do qual era proprietário, por um período de dez anos. Anteriormente havia
exercido o cargo de juiz de fora de Santarem, mas já era proprietário do ofício citado
mesmo antes de entrar para o serviço régio, o que lhe assegurava rendimentos e uma
condição diferenciada de outros ministros régios.
Apesar do cargo de juiz de fora e órfãos em outras localidades do Brasil
demandarem investimentos superiores aos necessários para os mesmos cargos no
reino, os valores que eram pagos em novos direitos para ocuparem os mesmos
cargos nas Minas superavam os demais. Para o caso do cargo de ouvidor as
diferenças são ainda mais significativas conforme visto, e levando-se em conta que
esses valores se compunham com base nos rendimentos dos cargos, está claro que os
investimentos, por mais elevados que fossem, seriam devidamente recompensados,
como será discutido no capitulo 3, através uma remuneração de serviços generosa.
Pode-se dizer que a trajetória mais comum entre os ministros régios nomeados
para exercerem o cargo de ouvidores nas Minas esteve associada ao exercício do
cargo de Juiz de fora no reino, locais onde acumularam as experiências
administrativas necessárias e o saberes quanto ao funcionamento dos poderes locais,
tão úteis ao contexto das Minas. Além disso, acumulavam valores necessários ao
pagamento dos novos direitos, visto que um número significativo deles pagou o
valor correspondente sem dar fiança, e outros deram fiança apenas da metade do
valor. Para os que constituiram famílias, a maioria o fez ainda quando exerciam esses
cargos e, portanto, criavam laços de sociabilidade nesses locais. Quase não houve
ouvidores que casaram-se em Minas. Raramente o seu percurso passou por outras
áreas do Império, e são poucos os casos de exercício de cargos em outras capitanias
no Brasil com destaque para Paraíba, Bahia e Rio de Janeiro, Pernambuco e
Maranhão. Outra questão a pontuar é que poucos exerceram o cargo de ouvidores
em outras localidades antes de o exercerem nas Minas, assim como poucos
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Encontros com a história colonial 179
Introdução
A partir do século XVII a grande conveniência das terras dos sertões do Ceará
para a criação do gado, proporcionou rapidamente a ocupação e conquista desta
região através da divisão das sesmarias na capitania para inúmeros representantes da
Coroa portuguesa. A ocupação aos poucos foi acontecendo com a inserção de
algumas famílias que passaram a consolidar a formação de importantes núcleos
familiares dentro do processo de organização social na capitania do Ceará.
A formação dos primeiros núcleos familiares na capitania do Ceará é o ponto de
partida para compreensão de determinados fenômenos referente à organização dos
principais grupos que detinham o poder de mando sobre as terras da capitania.
Partindo desta perspectiva, se descortina assim dados preciosos sobre as formas de
composição, formação e organização social dos poderes locais na capitania do Ceará.
Portanto, estudar a formação das famílias no pano de fundo de suas
historicidades regionais, significa ainda um esforço de síntese, no sentido de compor
um quadro mais amplo, abarcando ao mesmo tempo a reconstituição de suas
experiências de vida local, e nuanças ou conjunturas de inserção nas redes de
sociabilidade e poderes da sociedade colonial.
Em meio a esse contexto de concessão de terras e o processo de povoamento
progressivo na capitania através dos primeiros núcleos familiares que foram sendo
incorporados ao longo das ribeiras do Jaguaribe, Acaraú e Salgado, surgiram diversos
conflitos envolvendo colonos, jesuítas, administradores régios e as populações
indigenas. No processo de ocupação da capitania as populações indígenas passaram a
ser inicialmente inseridas dentro da dinâmica da política colonizadora, no entanto
devido a resistência indígena grande parte das comunidades foram sendo
exterminadas nas “guerras justas” por determinação do poder administrativo da
Coroa portuguesa que ficou marcado na historia como a “guerra dos bárbaros”.
O ímpeto do colonizador português proporcionou o avanço e a expansão da
pecuária para o interior da capitania cearenses através da instalação dos criatórios de
gados as margens das ribeiras tanto do Jaguaribe como do Acarau. Segundo Almir
Leal de Oliveira a expansão da pecuária para o interior da capitania intensificou o
processo colonizador definido pelas diretrizes de povoamento emanadas da política
metropolitana.
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180 IV Encontro Internacional de História Colonial
2 OLIVEIRA, Almir Leal de. “A dimensão atlântica da empresa comercial do charque: o Ceará
e as dinâmicas do mercado colonial (1767-1783)”. In: Anais do I Encontro Nordestino de
História Colonial: Territorialidades, Poder e Identidades na América Portuguesa –
séculos XVI a XVIII. Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2006, p. 2
3 PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará (1680-1820).
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4 Ibiden, p. 24
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182 IV Encontro Internacional de História Colonial
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Luis da Câmara Cascudo. 12ª Ed. V, I. Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza: ABC Editora,
2003, p. 189
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184 IV Encontro Internacional de História Colonial
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13SILVA, Rafel Ricarte da. Formação da elite colonial dos Sertões de Mombaça: terra,
família e poder (século XVIII). Fortaleza: UFC (Mestrado), 2010, p. 73
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186 IV Encontro Internacional de História Colonial
secas na vila de Santa Cruz do Aracati – Capitania do Siará Grande, 1767-1793”. Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011, p. 13
16 NOGUEIRA, Gabriel Parente. Fazer-se nobre nas fímbrias do império…, p. 65
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17 Ibidem, p. 67
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22 STUDART, Barão de. Datas e fatos para a história do Ceará. Fac-sim. – Fortaleza:
Fundação Waldemar Alcântara, 2001. Tomo I., p. 167
23 AHU_ACL_CU_006, caixa 2. D. 116.
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Encontros com a história colonial 191
uma situação, tirar partido das ambigüidades e das tensões que caracterizam o jogo
social”.24
Os vários processos que envolviam as investigações de desmando político por
parte dos administradores duravam o tempo necessário da devassa realizada sobre os
procedimentos tomados na administração do ouvidor antecessor, e enquanto o
mesmo não fosse considerado inocente, não poderia ocupar outros postos no
serviço real.
No caso do ouvidor do Ceará, em 30 de agosto de 1730, o parecer régio nomeava
o desembargador da Relação da Bahia, Pedro de Freitas Tavares e, na sua falta, ao
também desembargador André Ferreira Lobato para tirar devassa dos referidos
acontecimentos como realizar e tirar residência de José Mendes Machado.25
Considerações finais
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Encontros com a história colonial 193
1 Esse trabalho tem o auxílio da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais.
2 Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor Adjunto –
Universidade Federal de Viçosa (Campus Florestal - MG).
3 Os governos de D. Jerônimo de Ataíde (1654/57); Francisco Barreto de Meneses
ultramarinas portuguesas e também em respeito à forma como essa conquista era tratada na
documentação a partir do início do século XVII. Com isso, estou distinguindo essa parte do
Estado do Maranhão. A expressão América portuguesa é genérica e induz a uma
compreensão historiográfica dicotômica com a qual não concordo. Ver COSENTINO,
Francisco Carlos. Governadores gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVII): ofício,
regimentos, governação e trajetórias. São Paulo: Annablume/FAPEMIG, 2009, p. 220-221.
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Ver também: SANTOS, Fabiano Vilaça dos. O governo das conquistas do Norte.
Trajetórias administrativas no Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751-1780). São Paulo:
Annablume, 2011.
5 HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan. Coimbra: Almedina, 1994, p.
160.
6 Ibidem. História das Instituições. Épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina, 1982,
p. 216.
7 Ibidem, p. 216-217.
8 SALDANHA, António Vasconcelos de. As capitanias do Brasil. Antecedentes,
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Encontros com a história colonial 195
conteúdo e os termos usados nas cartas são praticamente os mesmos, por isso, vamos usar
patentes diversas.
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por apellação e agravo”.19 Explica então que por quanto “muitas e yustas causas e
respeitos que me aysso movem o hey ora por bem de minha certa ciencia por esta
ves e nestes casos pera aver effeito todo o conteudo na alçada regimentos e
provisoens que [o governador] leva e ao diante lhe mandar”20 e conclui que
derrogava, “como de effeito hey pro derogadas as ditas doaçoens e todo o
contheudo nellas emquanto forem contra as cousas declaradas nesta carta e na dita
alçada regimentos e provisoens”21 que os governadores levam. Em todas as patentes
de 1548 a 1621, sustenta o direito de revogação de direitos concedidos recorrendo ao
direito e as ordenações que estabeleciam que se fizesse “expreca menção hey especial
derogação as quaes hey por expressas e declaradas como se de verbo ad verbum
fossem nesta carta imcorporadas sem embargo de quaesquer direitos leis e
ordenações que aja em contrayro e da ordenação do 2º Lº tittº 44”.22
A carta patente do Marques de Montalvão (1640) apresenta um conteúdo
diferente e não traz as colocações apresentadas pelas cartas anteriores. A derrogação
dos poderes concedidos aos donatários, presente até então, foi substituída por uma
fórmula na qual todos estavam submetidos ao poder de Montalvão,23 conforme a
passagem de sua carta patente a seguir,
157v.
22 Carta patente de Diogo de Mendonça Furtado. ANTT - Chancelaria Felipe III. Livro 2, fol.
157v. A lei que consta da Ordenação, “diz que se não entenda ser pro mim derogada
ordenação algua se da sustancia della se não fizer expressa menção e declaração”. No
regimento de Tomé de Sousa as Ordenações utilizadas são as Manuelinas que, no seu Livro
II, título XLIX, indica que: “nunca se entenda deroguada ninhua’ Nossa Ordenaçam, nem a
tal clausula geeral obre efecto alguu’ contra disposição de qualquer Nossa Ordenaçam; salvo
se expressamente por Nós for deroguada a dita Ordenaçam, fazendo mençam sumariamente
da substancia dela”. Ordenaçoens do Senhor Rey D. Manuel. Coimbra: Real Imprensa da
Universidade, 1797, Livro II, p. 242. Nas outras cartas patentes, temos as Ordenações
Filipinas que afirmam a mesma coisa no título XLIV. Codigo Philippino. Rio de Janeiro:
Typographia do Instituto Philomathico, Tomo II, 1870, p. 467.
23 Montalvão foi enviado como vice-rei e tem-se dito que trouxe esse título para negociar em
igualdade com Maurício de Nassau. Acreditamos que os Felipes pretendiam instituir essa
forma de governo como podemos ver pela sua carta patente: “e tudo o que por ele de minha
parte vos for mandado cumprais e façais intrªmente com aquella diligencia e cuidado que de
vos confio como fizereis se por mim em pessoa vos fosse mandado” (ANTT - Chancelaria
Felipe III. Livro 28, fol. 297). Essa era a fórmula empregada para os vice-reinados espanhóis:
“nuestra Real persona”. Recopilacion de Leyes de los Reynos de las Índias. Madrid:
INBOE, Tomo I, libro III, tit. II, 1998, p. 543.
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Encontros com a história colonial 197
governadores que o sucederam é o mesmo até Roque da Costa Barreto. Esse governador
trouxe um novo regimento, empregado até 1808, e a forma e conteúdo da sua carta patente é
diferente, como veremos a seguir. Sobre esse regimento ver: COSENTINO, Francisco
Carlos. Governadores gerais do Estado do Brasil…, p. 245-303.
28 Carta patente de António Teles de Meneses – BNRJ – SM. 1, 2, 5. Estou mesclando
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198 IV Encontro Internacional de História Colonial
ao governador geral e “cumpram & guardem inteyramente seus mandados & ordens
como devem & sam obrigados”.29
Esse formato foi interrompido na carta patente de Roque da Costa Barreto, para
ter continuidade, depois dele, com António de Sousa de Meneses e os que o
sucederam no século XVII. A carta de Roque da Costa, por ter ele trazido o novo
regimento para o governo geral que seria utilizado até a vinda da corte portuguesa
em 1808, dizia que ele não era enviado “com a mesma autoridade jurisdição e
prileminensias que tem os governadores e capitães gerais do mesmo Estado”30 e que,
em razão disso, estes “lhe obedecerão e guardarão suas ordens assim no militar como
no civil e político”,31 assim como, “os ministros e officiais de justiça guerra e
fazenda, chanceler, desembargadores, e governadores do Rio de Janeiro, e
Pernambuco e das mais capitanias subordinadas ao governador geral tudo na forma
de meus regimentos”.32 Em linhas gerais mantém o conteúdo que vem desde 1640.
O que podemos perceber é que desde a Restauração os donatários hereditários não
eram mais figuras proeminentes na ação de governo das capitanias ou os seus loco-
tenentes, mesmo que esses senhorios ainda existissem e pudessem gerar rendimentos
aos seus senhores.33 Todas as cartas patentes sinalizam para a supremacia da
autoridade governativa dos governadores gerais sobre todos os outros servidores
providos ou não pela monarquia portuguesa no Estado do Brasil.
Quando analisamos os dois regimentos utilizados para o governo geral após 1640,
o de Diogo de Mendonça Furtado,34 elaborado em 1621, utilizado até o de Roque da
Costa Barreto (1677), observamos que a supremacia indicada nas cartas patentes, se
completa com as instruções desses regimentos.
As instruções apresentadas no regimento de Diogo de Mendonça Furtado
estabeleciam como obrigações do governador geral, abordando as orientações de
caráter mais geral,35 a suspensão dos capitães das capitanias em caso de “alguma
29 Carta patente de D. Jerônimo de Ataíde – ANTT – Chancelaria de D. João IV, Livro 26,
fol. 23.
30 ANTT – Registro Geral das Mercês. Chancelaria de Afonso VI. Livro 29, fl.116v.
31 ANTT – Registro Geral das Mercês. Chancelaria de Afonso VI. Livro 29, fl.116v.
32 ANTT – Registro Geral das Mercês. Chancelaria de Afonso VI. Livro 29, fl.117.
33 A monarquia portuguesa assumiu as diversas capitanias hereditárias passando a considera-
las como reais. Os diversos donatários iniciaram uma longa pendenga judicial com a
monarquia e tiveram seus direitos reconhecidos, obrigando a monarquia portuguesa a
indeniza-los de formas diversas até o período pombalino que aboliu esses senhorios. Ver
SALDANHA, António Vasconcelos de. As capitanias do Brasil…, p. 134-138 e 387-435.
34 Arquivo Público do Estado da Bahia, S. C., estante 1, caixa 146, livro 264.
35 Os regimentos tinham instruções estruturais associadas a orientações conjunturais que
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Encontros com a história colonial 199
36 Arquivo Público do Estado da Bahia, S.C., estante 1, caixa 146, livro 264.
37 APEB, S.C., estante 1, caixa 146, livro 264.
38 APEB, S.C., estante 1, caixa 146, livro 264.
39 APEB, S.C., estante 1, caixa 146, livro 264.
40 APEB, S.C., estante 1, caixa 146, livro 264.
41 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação Administrativa do Brasil.
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200 IV Encontro Internacional de História Colonial
46 Ibidem, p. 804.
47 Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Augusto Porto & C.,
vol. V, 1928, p. 374.
48 Ibidem, p. 374.
49 Ibidem, p. 375-6.
50 De acordo com Veríssimo Serrão, o regimento dado ao governador do Rio de Janeiro,
Manuel Lobo, em 1679 (Revista do IHGB. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Tomo
LXIX. Iª Parte, 1908, p. 99-111), foi elaborado com as mesmas preocupações ordenadoras e
perenes que nortearam o regimento de Roque Barreto, utilizado até o século XIX. O mesmo
aconteceu com o regimento dos governadores de Pernambuco, conforme observação que
pode ser encontrada nessa mesma revista. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de
Portugal. A Restauração e a Monarquia Absoluta (1640-1750). Lisboa: Editorial Verbo, vol.
V, 2ª ed., 1982
51 As patentes dos governadores gerais e vice-reis do século XVIII eram, no que diz respeito
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organização feudal, D. João III”. ABREU, Capistrano. Capítulos de História Colonial. São
Paulo: Publifolha, 2000, p. 67; ou “de engenho imaginativo do capitalismo régio português”,
segundo Nunes Dias.
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202 IV Encontro Internacional de História Colonial
57Boxer procura apresentar a situação das capitanias após 1640 mas comete alguns enganos.
Ver BOXER, C. R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686…, p. 307.
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Encontros com a história colonial 203
Assim como são reduzidos os estudos a respeito da natureza das capitanias, mais
ainda das relações entre as principais e subalternas ou anexas, apesar de encontrada
na documentação, particularmente nas décadas seguintes da Restauração portuguesa,
correspondência que trata de conflitos de jurisdição envolvendo capitanias principais
e subalternas. Alguns autores que reconhecem essa divisão remetem-se ao século
XVIII, início do século XIX, e tratam indiscriminadamente o Estado do Brasil e o
Estado do Maranhão, mesmo quando ainda não estavam unidos, antes do período
pombalino, e identificam algumas dessas capitanias,60 entretanto, essas listagens são
imperfeitas, e, ao deixarem de fora diversas regiões, identificadas na documentação,
nos servem apenas como uma referência.
O período que se inicia após a Restauração portuguesa se caracteriza pela sua
complexidade e instabilidade oriunda da conjuntura vivida pela monarquia
portuguesa e o seu império ultramarino: a guerra e expulsão dos holandeses do
Nordeste, os conflitos nas partes africanas e orientais do império português, a guerra
contra Espanha e Holanda na Europa. A insegurança do momento e da nova
58 Essas expressões são encontradas na documentação. Caio Prado Junior afirma sua
trata do Brasil como se apenas essa unidade política existisse – conforme percepção de cunho
nacionalista vigente no seu tempo – ignorando as particularidades do Estado do Maranhão.
60 Segundo Sousa, na véspera da independência, governadas por Capitães-Generaes existiam:
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204 IV Encontro Internacional de História Colonial
61 Estamos analisando uma sociedade fundada em valores corporativos onde cada um recebe
e é respeitado pelo que é socialmente. Assim sendo, estamos analisando relações entre
indivíduos que são socialmente iguais, apesar de estarem exercendo cargos hierarquicamente
diferentes e que se movem segundo regras de direito – falamos de uma sociedade que é
jurisdicional – expressas nos seus regimentos onde as posições de mando são diferentes e
hierarquizada. Ou seja, algumas vezes, governadores gerais e de capitanias tem origens sociais
iguais apesar de ocuparem posições de poder diferentes. Muitas vezes, nos conflitos de
jurisdição, essa origem social e as normas da sociedade de corte estão presentes.
62 Ver: COSENTINO, Francisco Carlos. Governo geral do Estado do Brasil: governação,
jurisdições e conflitos (séculos XVI e XVII). In: FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M.F.S.(Org.).
Na Trama das Redes. Política e negócios no império português. Séculos XVI-XVIII. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 401-430.
63 ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos. Aspectos da Administração colonial.
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Encontros com a história colonial 205
que se estenderia desde o Rio S. Francisco até o Rio Grande”64 e que, talvez, “tal
decisão tenha sido o fundamento dos conflitos de jurisdição que ocorreram entre os
governadores gerais do Estado do Brasil e os da capitania de Pernambuco”, com o
que concordamos, estendendo porém, para as outras capitanias do Estado do Brasil.
As necessidades de defesa do Nordeste explicam os poderes alargados recebidos por
Francisco Barreto e as do sul, por Salvador Correa de Sá e Benevides no Rio de
Janeiro.65
Os governos que sucederam os dois primeiros pós-expulsão dos holandeses – D.
Jerônimo de Ataíde e Francisco Barreto – até Roque da Costa Barreto, cujo
regimento proclama a supremacia dos governadores gerais, a monarquia portuguesa
foi superando a insegurança e a instabilidade inicial e passou a tomar iniciativas
voltadas para restabelecer a autoridade do seu representante na conquista. A
nomeação de Francisco Barreto para o governo geral e a abolição dos poderes
extraordinários que tinha no Nordeste, a nomeação e a posse de Pedro de Mello no
governo da capitania do Rio de Janeiro em abril de 1662 e a anulação dos poderes de
Salvador Correa de Sá e o envio do conde de Óbidos como vice-rei para o Estado do
Brasil, foram às primeiras iniciativas no sentido de ajustar a hierarquia de poderes
tendo na cabeça do Estado do Brasil, seus governadores gerais.
Entretanto, se a monarquia portuguesa faz movimentos voltados para retomar
controles e restabelecer a hierarquia de poderes, inclusive regulamentando por meio
de regimento elaborado pelo conde de Óbidos, os governos das capitanias, que
tratamos anteriormente, a situação política e internacional do reino e do império,
inclusive o Estado do Brasil, exige atitudes conciliatórias e, às vezes, dúbias. Não
atribuímos isso a uma situação de confusão jurídica e política ou uma aparente e
irracional superposição de poderes. E, se a monarquia pluricontinental portuguesa
tinha uma organização política fundada em regras jurisdicionais, onde predominavam
os fundamentos do direito (costumeiro, régio, religioso, etc.), ao mesmo tempo em
que o novo governo bragantino procurava recompor a ordem no reino e no império
ultramarino, o momento exigia, mais do que nunca, curvar-se a dinâmica da política,
negociar, contemporizar, punir quando necessário, perdoar quando possível, agraciar
quando dos merecimentos, prender quando no limite, como veremos a seguir. Nesse
contexto, os conflitos de jurisdição que afloraram, foram alimentados, em parte,
conforme Acioli ressaltou, pela conjuntural divisão do Estado do Brasil, mas
também, pela necessidade de conceder poderes excepcionais e atender aos interesses
64 Ibidem, p. 61. Acioli trata o Estado do Brasil como ele se tornou na segunda metade do
século XVIII ao absorver o Estado do Maranhão. Por isso fala de 4 partes e não três.
Conforme já afirmamos, não concebemos as terras de Portugal na América como uma única
unidade política antes do período pombalino.
65 Ver BOXER, C. R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686…, p. 306-
340.
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Encontros com a história colonial 207
70 Ibidem, p. 162.
71 Ibidem, p. 162.
72 Ibidem, volume IV, p. 367-368.
73 Ibidem, p. 326-331.
74 Francisco de Brito Freire, sucessor de Negreiros, entrou em conflito com Francisco
regimento: “E por quanto no tempo prezente se tem alterado as couzas de maneira que para
o bom Governo do Brazil convem reformar-se o Regimento do Governador e Capitão Geral,
como dos governos e Capitanias de todo o Estado, ordenareis as pessoas a que tocar, vos
enviem os traslados, e dem as noticias necessárias, e todos os regimentos e ordens antigas e
modernas que houver pertencentes ao governo, Fazenda, Justiça, e Guerra, que facão a este
cazo, e os haja nos Livros antigos da Secretaria desse estado, Livros de minha fazenda e
Relação, e Câmaras, ordens pró e contra dos Senhores Reys meus Predecessores, ou dos
Governadores, ou de outras pessoas que tivessem faculdade pa as passar”. BNRJ-SM. 9, 2, 20.
13.
76 Em carta de novembro de 1671 de Afonso Furtado de Mendonça argumenta sobre a
jurisdição de Itamaracá e que as “anexas [de Pernambuco] são as Capitanias do Rio de São
Francisco, Lagôas, Serinhaem, Porto Calvo, e Iguaraçú, que antes da guerra não eram
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208 IV Encontro Internacional de História Colonial
A carta régia instrui o governador geral agir contra Fernão de Sousa Coutinho
repreendendo-o os “excessos com que se houve, estranhando-lhos muito, por
Capitanias-mores: e por occasião dela se constituíram taes, como essa e ficaram anexas á de
Pernambuco”. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, volume X. Rio de
Janeiro: Augusto Porto, 1929, p. 12.
77 Ibidem, p. 43.
78 Ibidem, p. 57.
79 Projeto Resgate – Avulsos de Pernambuco. AHU – ACL – CU, 015, cx. 6, doc. 466.
80 Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Typ. Baptista de
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Encontros com a história colonial 209
82 Ibidem, p. 196.
83 Ibidem, p. 196.
84 BOXER, Charles R. Reflexos da Guerra Pernambucana na Índia Oriental, 1645-1655. In:
Boletim do Instituto Vasco da Gama. Bastora, Goa: Tipografia Rangel, 1957, p. 36.
85 FARIA, Ana Leal de. Arquitectos da paz. A diplomacia portuguesa de 1640 a 1815.
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210 IV Encontro Internacional de História Colonial
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Encontros com a história colonial 211
Grosso era o espaço simbólico da coesão entre o norte e o sul da colônia, por meio
das bacias platina e amazônica, delimitando o circuito da conquista territorial de
Portugal.4
Para o seu sobrinho João Pedro da Câmara, que o sucedeu no governo da
capitania, Antonio Rolim de Moura recomendou que se os padres da Companhia de
Jesus, estabelecidos nos domínios hispânicos, não provocassem distúrbios, deveria
manter a boa harmonia com eles. Mas em setembro de 1768, João Pedro da Câmara
informou ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, da retirada dos jesuítas das mais de quinze missões espanholas
localizadas nas raias da fronteira.5 Após a expulsão deles, outros religiosos assumiram
as antigas missões e participaram ativamente do comércio ilegal com os domínios
portugueses. Em diversos momentos esses clérigos foram denominados pelos
governadores portugueses de religiosos contrabandistas.6
Já o governador Luís Pinto de Souza Coutinho em sua instrução ao seu sucessor,
Luis de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, foi enfático ao tratar do comércio de
contrabando pelas províncias de Moxos e Chiquitos. Isto tudo feito debaixo do
completo sigilo, pois as instruções dadas a Antonio Rolim de Moura proibindo o
comércio com os castelhanos continuavam em vigor. Segundo Souza Coutinho, o
comércio de contrabando se reduzia à compra de algum gado vacum e cavalar, mas
se esperava que novos contatos fossem estabelecidos com a cidade de Assunção,
para facilitar a entrada do tabaco.7 Chama-nos atenção e merece ser investigado, além
do descaminho de ouro, o de diamantes que saía da capitania de Mato Grosso, bem
como as relações com os ingleses para efetivação dessa prática.
Uma das comunicações “oficiais sigilosas” feitas com a província de Moxos
ocorreu no ano de 1769, quando o tenente Francisco José de Figueiredo se dirigiu as
antigas missões com o motivo de entregar cartas aos governadores espanhóis e
oferecer auxílio para a expulsão dos jesuítas, conforme instruções do governador
Luis Pinto de Souza Coutinho. Mas o objetivo de tal viagem era fazer o
reconhecimento do local, descobrir caminhos de terra e fluviais que ligassem as
missões, verificar a defesa espanhola, a população, a produção, as pedras preciosas,
as autoridades existentes e a possibilidade de estabelecimento do comércio. Ao
chegar a uma das missões, o tenente Francisco acertou o negócio do gado com o
religioso do local com cautelas e segredos. Em troca, o padre queria como pagamento
para contentar os índios: bretanhas, fitas, missangas, verônicas, facas, navalhas e alguns chapéus e o
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212 IV Encontro Internacional de História Colonial
excesso em ouro, mas que este lhe devia ser entregue ocultamente… Sobre as missões de Moxos,
informou, dentre outros aspectos, que safiras e pérolas encontradas nos domínios
hispânicos eram comercializadas pelos espanhóis com os holandeses.8
O governador Luis Pinto de Souza Coutinho temia que o comércio com os
religiosos espanhóis não tivesse longa duração por ser volumoso e conduzido por
várias pessoas. Por isso seria impossível conservá-lo no segredo, principalmente entre
índios que nunca souberam guardá-lo, sendo muito provável que o governador tomasse
medidas no sentido de coibi-lo.9
Por meio das viagens realizadas pelos oficiais dos domínios portugueses até os de
Castela, a Coroa portuguesa ficava informada da localização, força e intenções dos
espanhóis. Além do mais, muitas informações acerca das relações diplomáticas entre
Espanha e Portugal eram trocadas entre os homens que viviam na fronteira e muitas
vezes chegavam à capitania de Mato Grosso antes da correspondência oficial do
Reino português.
Introduzir com disfarce, debaixo do segredo, cautelas e segredos, missão secreta, sigilo são
expressões evocadas na correspondência das autoridades. Segredo ou sigilo que será
invocado logo no título do documento referente ao comércio com as capitanias do
Pará, de Mato Grosso e com os domínios hispânicos: a Instrução secretíssima, com que
Sua Majestade manda passar à capital de Belém do Grão – Pará.
O segredo era uma das armas importantes no estabelecimento do comércio
clandestino, de caráter oficial, como ocorria em Sacramento. Com essas ações, cujas
instruções partiam de ministros lisboetas e eram seguidas pelos governadores da
capitania de Mato Grosso, a Coroa desenvolvia certa política de comércio
clandestino. Quando era conveniente à Coroa, ele o autorizava e incentivava,
contando para a sua efetivação com uma rede envolvendo diferentes pessoas da
administração régia e local, assim como militares e pessoas comuns, unidas por laços
familiares, comerciais ou de dependência, de ambos os domínios ibéricos. Cada
indivíduo dava sentido a esse empreendimento e tinha um papel a desempenhar.
Por sua vez, o governador Luis de Albuquerque de Melo e Cáceres foi convocado
a promover o contrabando. O secretário de estado, Martinho de Melo e Castro, o
instruiu a embaraçar o comércio com os castelhanos pelo caminho terrestre,
permitindo-o somente pelo rio e que era conveniente promover, por todos os meios
que fossem possíveis, o comércio com as aldeias castelhanas. Isso deveria ser feito
com todo cuidado e com tal disfarce que não parecesse que o governador promovesse e
tivesse ordem para assim agir.10 No ano de 1774, o governador entrou em contato
com diferentes pessoas estabelecidas próximo à Missão de Moxos e demonstrou o
interesse com contrabando a ser realizado com as partes de Chuquesaca ou Potosi, que pela sua
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Encontros com a história colonial 213
Gama abrir comércio com Potosi por meio dos afluentes do rio Amazonas. Na década de
1740, o capitão-general Mendonça Gorjão também foi encorajado a incentivar o contrabando
entre Belém e Quito, com ordens régias para obter a prata espanhola. Na segunda metade do
setecentos, as ações de Pombal, por meio das Instrução Secretíssima, seriam mais incisivas e
abarcariam outros territórios. DAVIDSON, David Michel. Rivers & Empire. The Madeira
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214 IV Encontro Internacional de História Colonial
route and the incorporation of the brazilian far west, 1737-1808. New Haven: Tese de
Doutoramento em História - Yale University, 1970, p. 159 e 160.
15 CD ROM 7, rolo 77, doc. 72 - AHU -PA(grifos meus).
16 PIJNING, Ernest. Controlling contraband: mentality, economy and society in
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216 IV Encontro Internacional de História Colonial
22 O parágrafo 13º do capítulo 3º dos Estatutos ou posturas municipais de Vila Bela do ano de
1753, aprovados um ano após a fundação da vila, referia-se às despesas que deveriam ser
feitas, no futuro, para a condução de gado de Goiás ou dos currais da Bahia. Na Vila Real
esses contatos já eram efetuados desde a abertura do caminho de terra na década de 1730.
ROSA, Carlos Alberto e JESUS, Nauk Maria de. Estatutos municipais ou Posturas de Vila
Bela da Santíssima Trindade - 1753. Territórios e Fronteiras - Revista do PPGH da UFMT.
Cuiabá, vol. 3, n. 1, 2002.
23 CD ROM 7, rolo 77, doc. 72 - AHU -PA.
ISBN 978-85-61586-70-5
Encontros com a história colonial 217
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218 IV Encontro Internacional de História Colonial
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Encontros com a história colonial 219
32 Sobre esse aspecto ver FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda B. e GOUVEA,
Maria de Fátima Silva. Uma leitura do Brasil colonial: bases da materialidade e da
governabilidade no Império. Penélope. Fazer e desfazer a História. Lisboa, n.º 23, p. 67-
88, 2000. BICALHO, Maria Fernanda B. As representações da câmara do Rio de Janeiro ao
monarca e as demonstrações de lealdade dos súditos coloniais. Séculos XVII e XVIII. In: O
município no mundo português. Seminário Internacional. Centro de Estudos de História
do Atlântico, Funchal, p. 523-564, 1998.
33 Carta, CD ROM 4, rolo 18, doc. 105 – AHU – MT.
34 Ibidem.
35 Ainda estamos levantando os dados e verificando se o pedido dos comerciantes foi
atendido.
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220 IV Encontro Internacional de História Colonial
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Encontros com a história colonial 221
Fábio Kühn1
mercantil carioca na primeira metade do setecentos. In: (org.) FRAGOSO, João Luís Ribeiro;
ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Conquistadores
e negociantes…, p. 253.
4 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e
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222 IV Encontro Internacional de História Colonial
colonial. Bauru: Edusc, 2006, p. 96-99. Ver também KÜHN, Fábio. As redes da distinção:
familiares da Inquisição na América Portuguesa do século XVIII. Varia Historia, vol. 26, nº
43, p. 177-195, 2010.
6 PEDREIRA, Jorge M. Negócio e capitalismo, riqueza e acumulação: os negociantes de
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Encontros com a história colonial 223
negócios José de Barros Coelho, estabelecido na praça desde 1728. Após casar, constituiu
família e viveu na Colônia por cerca de quatro décadas, falecendo em 1769.
12 Agradeço a Paulo Possamai por esta sugestão, que ajuda a explicar o número relativamente
hierarquias sociais: o Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII. In: (org.)
FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima. Na Trama das Redes: política e negócios
no Império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.
470.
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224 IV Encontro Internacional de História Colonial
ilha dos Ingleses, Francisco José da Rocha e do capitão da ilha das Duas Irmãs, José
de São Luís.14
Se compararmos a comunidade de comerciantes da Colônia do Sacramento com
àquelas existentes nas principais praças mercantis da América Meridional,
percebemos que o número de negociantes era proporcionalmente avultado, em
relação às dimensões da povoação. Em Lima, por volta de meados do século XVIII,
a comunidade mercantil chegava a 135 indivíduos, ao passo que em Buenos Aires, o
grupo de comerciantes poderosos e prestigiosos alcançava 178 pessoas no período
entre 1775 e 1785.15 Na América portuguesa, a cidade de Salvador contava com 120
comerciantes em 1757, dos quais praticamente a metade estava envolvida com o
comércio transatlântico de escravos. A praça do Rio de Janeiro contava com pelo
menos 199 homens de negócio atuantes no período 1753-1766.16 Embora a Colônia
do Sacramento não se constituísse numa praça mercantil à altura das grandes cidades
sul-americanas da época, ela chegou a possuir um grupo de comerciantes
relativamente autônomos, que tinha diversos graus de vinculação com os homens de
negócio do Rio Janeiro. Ademais, eles eram favorecidos pela proximidade e
facilidade de comunicação com os domínios espanhóis, o que facilitava o
contrabando. Um grupo que teria no seu auge por volta de uma centena de pessoas,
embora nem todos fossem poderosos homens de negócio: quando a praça foi
tomada pelas forças espanholas em 1762, o governador de Buenos Aires, Pedro de
Cevallos, apresentou duas opções para o grupo mercantil estabelecido na Colônia.
Poderiam retirar-se levando consigo “todos sus efectos de Comercio” ou então
permanecer nos domínios de Sua Majestade Católica, desde que apresentassem um
inventário exato dos seus gêneros, para que fossem taxados pela Real Fazenda. Não
obstante a elevada alíquota de 45% cobrada dos negociantes que quisessem
onde existiu uma fortificação portuguesa, as ilhas das Duas Irmãs, as ilhas de Fornos, a ilha
dos Ingleses e a ilha Rasa. Atualmente, algumas dessas ilhas fluviais possuem denominações
diferentes.
15 TURISO SEBASTIÁN, Jesús. Comerciantes españoles en la Lima borbónica:
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Encontros com a história colonial 225
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226 IV Encontro Internacional de História Colonial
21 PAREDES, Isabel. Comercio y contrabando entre Colonia del Sacramento y Buenos Aires
en el período 1739-1762. In: Colóquio Internacional Território e Povoamento. Instituto
Camões, p. 3, 2004.
22 As clausulas de autorização a busca de víveres em Buenos Aires aparecem desde 1737, após
o final das hostilidades entre portugueses e espanhóis, quando da perda do entorno agrícola
da Colônia do Sacramento. Em 1749 estas práticas são oficializadas, o que favoreceu o
incremento do comércio ilícito.
23 PAREDES, Isabel. Comercio y contrabando entre Colonia del Sacramento y Buenos Aires
Identity in Bourbon Rio de La Plata (c. 1750-c.1813). Atlanta: Tese de doutorado - Emory
University, 2009, p. 73 e 75. O autor se valeu dos dados disponibilizados pelo Slave Trade
Database: www.slavevoyages.org.
25 MILLER, Joseph. Way of Death – Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade,
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Encontros com a história colonial 227
quando governou interinamente a praça, o brigadeiro José da Silva Pais procurou aumentar a
arrecadação da Fazenda Real e instituiu uma “contribuição” de sete mil e quinhentos réis por
cada escravo adquirido na praça pelos espanhóis. Segundo uma certidão passada no final de
1745 pelo escrivão da Fazenda Real da Colônia do Sacramento, tal taxação havia arrecadado
em cerca de um ano o montante de 3:262$500 réis, o que equivalia à transação de 435 cativos
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228 IV Encontro Internacional de História Colonial
para os domínios espanhóis. Cf. PIAZZA, Walter F. O Brigadeiro José da Silva Paes –
Estruturador do Brasil Meridional. Florianópolis: Ed. da UFSC; Rio Grande do Sul: Editora
da Furg/Edições FCC, 1988, p. 106.
30 O texto dos Discursos foi parcialmente divulgado em um artigo publicado em 1980, pelo
Silva Fonseca, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Tomé Joaquim da Costa Corte
Real, sobre a sua posse do governo da Colônia (15.04.1760). Segundo o mapa populacional
em anexo a este ofício, em 1760 viviam na praça 2693 pessoas (1588 homens e 1105
mulheres), estando incluídos nesse número os brancos livres, pardos e negros forros, além
dos escravos. Estes últimos somavam a quantidade de 1575 indivíduos (941 homens e 634
mulheres).
32 PRADO, Fabrício. In the Shadows of Empires…, p. 72 e 77.
33 Pelo menos 207 escravos foram apreendidos pelas autoridades espanholas de Buenos Aires
entre 1753 e 1760. Conforme STUDER, Elena. La trata de negros en el Rio de la Plata
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Encontros com a história colonial 229
saber um pouco mais sobre quem eram os envolvidos com o comércio ilegal de
escravos para Buenos Aires. Um indício neste sentido aparece nos registros de
batismos de escravos na Colônia, no período compreendido entre 1747 e 1759.
Durante esses doze anos foram batizados 583 escravos na praça, sendo que 105
constam como “adultos” (18%). A esmagadora maioria destes 105 escravos era
formada por cativos de grupo de procedência Mina, que saíam dos portos africanos
sem terem recebido o sacramento do batismo, por isso tinham que comparecer
diante dos párocos colonenses. Foi possível identificar a presença de ao menos 17
comerciantes, que compareceram 29 vezes diante da pia batismal trazendo africanos
recém-chegados ao rio da Prata. 34 Certamente que nem todos os escravos adquiridos
e batizados pelos negociantes seriam revendidos aos domínios espanhóis, mas
provavelmente a maioria era objeto de transações mercantis e indicam a existência de
contatos com traficantes baianos e fluminenses.35
Essa prática reiterada do comércio ilícito nos mostra que os conceitos de
contrabando e corrupção precisam ser repensados para as sociedades de Antigo
Regime, onde a separação da esfera pública e da esfera privada era praticamente
inexistente.36 As ações corruptas não eram praticadas somente pelos governantes,
mas também por aqueles que se serviam destes funcionários para obter benefícios
econômicos ou sociais, como alguns membros das elites locais.37 A própria distinção
entre práticas legais e clandestinas parece ser anacrônica, se nós considerarmos o
universo do contrabando não como um mundo delituoso, mas como uma espécie de
fronteira social em relação às representações jurídicas, com suas regras bem
estabelecidas e aceitas. Assim, as práticas descritas podem revelar uma lógica social
global partilhada pelos súditos dos Impérios ibéricos que somente nosso olhar
durante el siglo XVIII…, p. 260. Evidentemente este número representa aquela pequena
parcela que não conseguiu ser introduzida ilicitamente.
34 ACMRJ (Arquivo da Cúria Metropolitana – Rio de Janeiro). Livro 4º de batismos de
ultramarino português (c. 1690-c.1750). In: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima
(orgs.). Na Trama das Redes…, p. 221.
37 PERUSSET, Macarena. Contrabando y Sociedad en el Rio de la Plata colonial. Buenos
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230 IV Encontro Internacional de História Colonial
38 Para uma discussão sobre o tema da corrupção no mundo ibérico, ver o trabalho pioneiro
XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 21, nº 42, p. 398-399 e 407, 2001.
40 RIVEROS TULA, Anibal. Historia de la Colonia Del Sacramento (1680-1830). Revista
del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay. Montevidéu, XXII, p. 205, 1959.
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Encontros com a história colonial 231
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232 IV Encontro Internacional de História Colonial
a essa Cidade com vários pretextos”. Ele registrou que essa prática havia deixado de
existir, pois agora eram os habitantes de Buenos Aires que vendiam e permutavam os
gêneros que levam eles mesmos à Colônia, o que lhes garantia grandes lucros,
vendendo pelo dobro ou triplo do preço os produtos que traziam aos portugueses.
Mas isso não significava que os contrabandistas sacramentinos tivessem deixado de
atuar, apenas que tinham modificado seus procedimentos, visando maior segurança.
Saindo da Colônia, para evitar a ação das embarcações corsárias, dirigiam-se ao delta
do Paraná, onde faziam os desembarques em qualquer parte da costa. Em seguida, a
introdução se fazia passando as mercadorias pouco a pouco, durante a noite, de
umas fazendas para outras, utilizando carretas ou cavalos, até chegar em Buenos
Aires. Millau ainda observou que, muitas vezes, quando a carga era grande e de
consideração, os contrabandistas valiam-se “dos mesmos sujeitos que o deviam
impedir”. 43
O contrabando de escravos na década de 1770 aparentemente manteve em parte
a sua vitalidade, muito embora perturbado pelas crescentes hostilidades luso-
espanholas.44 Seja como for, as medidas restritivas parecem ter surtido pelo menos
algum efeito durante os anos finais da Colônia do Sacramento. Tornaram-se comuns
as apreensões feitas pelas corsárias espanholas de pequenas embarcações,
especialmente canoas com escravos “pescadores”. Além disso, havia o problema das
deserções (ou fugas) de escravos para o lado espanhol. Assim, em 20 de dezembro
de 1775 foi enviada ao governador Francisco José da Rocha uma “Representação
dos moradores da Praça”, onde se queixavam do grave problema do roubo dos
escravos, “que daqui se passam para o Campo de Bloqueio, aonde lhes dá o
comandante do mesmo Campo liberdade, de sorte que aliciados e atraídos com este
injusto indulto, são quotidianos e freqüentes as deserções dos escravos”, o que
estaria reduzindo os moradores à extrema pobreza… Teriam sido roubados mais de
mil escravos desde 1760.45 De todo modo, a presença portuguesa estava com os dias
contados na Colônia do Sacramento, que seria tomada definitivamente pelos
espanhóis em 1777.46
1776. Agradeço a Fabrício Pereira Prado, da Roosvelt University pela disponibilização desta
fonte.
46 ALDEN, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil…, p. 238-246. Para um relato
contemporâneo da perda definitiva da praça, ver MESQUITA, Pe. Pedro Pereira Fernandes
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Encontros com a história colonial 233
de. Da relação da conquista de Colônia (1778). RIHGB. Tomo XXXI, 1ª parte, p. 350-363,
1868.
47 BENTANCUR, Arturo A. El proceso de legitimación de las relaciones mercantiles entre la
vice-rei diante do contrabando no Rio Grande de São Pedro, que era lesivo à Coroa,
diferentemente daquele praticado no Prata, ver GIL, Tiago. Infiéis Transgressores – Elites
e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grade e do Rio Pardo (1760-1810). Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2007, p. 73-80.
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234 IV Encontro Internacional de História Colonial
total, foram introduzidos 281.323 escravos no porto do Rio de Janeiro entre 1759 e 1792.
52 BERUTE, Gabriel. Dos escravos que partem para os portos do Sul – Características do
tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790 – c.1825. Porto Alegre:
Dissertação de mestrado - Programa de Pós-Graduação em História/UFRGS, 2006, p. 40,
Tabela 1.
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Encontros com a história colonial 235
capitania, visto que seu território foi quase sempre muito circunscrito
territorialmente. Situada muito ao sul dos domínios lusos, surgida no final do século
XVII como fortaleza militar que marcava a disposição portuguesa em estender seus
territórios até o Rio da Prata, ela tornou-se ao longo do século XVIII um importante
entreposto comercial. Após o cerco de 1735-1737, com a imposição do Campo de
Bloqueio pelos espanhóis, os habitantes de Sacramento ficaram confinados a um
espaço vigiado e restrito, com um território muito reduzido, situação que se agravaria
a partir da década de 1760, quando o bloqueio terrestre e marítimo foi aumentado e
intensificado, especialmente a partir da criação do Real de San Carlos.53 Mas,
paradoxalmente, tal cerceamento, ao invés de desestimular o comércio ilícito, foi
talvez o catalisador da decidida opção pelo contrabando, fazendo a praça destacar-se
no terceiro quartel do século XVIII pela introdução de escravos africanos no Rio da
Prata e nos domínios espanhóis na América Meridional.
53O casco urbano da Colônia apresentava um tamanho extremamente reduzido na fase final,
sendo suas dimensões bastante restritas. O comprimento da muralha era de somente 550
metros, sendo que da muralha até as margens do rio da Prata a extensão alcançava meros 410
metros. Cf. MOREIRA, Cecília Porto Gaspar. Colônia do Sacramento – Permanência
urbana na demarcação de novas fronteiras latino-americanas. Rio de Janeiro: Dissertação de
mestrado - Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, 2009, p. 70. Para um estudo sobre a
cartografia da Colônia, ver a obra de CAPURRO, Fernando. La Colonia del Sacramento.
Revista de La Sociedad “Amigos de La Arqueologia”, Montevidéu, p. 43-97, 1928.
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“Saber Ver y Saber Leer”: Santiago Sebastián demonstra, como relata Fagiolo,
que as vias de representação e da persuasão passam, sobretudo, pela transmissão de
imagens e textos do Velho ao Novo Mundo; destacando-se como fontes visuais as
estampas religiosas e alegóricas elaboradas no ambiente da Contra-Reforma. Ainda
segundo Fagiolo, a maior contribuição deste volume de Santiago Sebastián seria a
reconstrução do tecido que conecta os emblemas ao substrato do universo de
imagens ibero-americano, transmitido sobretudo pelos ensinamentos dos jesuítas,
que induziam os alunos dos seus cursos de Retórica à exercitassem na leitura e na
elaboração de emblemas e divisas (ou impresas), como podemos constatar através
dos estudos, por exemplo, de Lydia Salviucci Insolera: “Il termine emblema si trova
espresso concretamente nelle varie stesure dell`ordenamento didattico dei collegi, la
Ratio Studiorum, alla voce riguardante i tipi di attività consigliati nei corsi di umanità e
di retorica”;11 ou no artigo de Nigel Griffin, onde são relatadas as inúmeras
atividades, que envolviam tanto a elaboração, a exibição (inclusive com
apresentações dos alunos, contando com cuidadosas ornamentações e ricos
figurinos), e a leitura/interpretação de emblemas realizados pelos estudantes dentro
dos Colégios jesuíticos.12
Santiago Sebastián foi um dos nomes mais importantes da emblemática e da
cultura do hieróglifo na Espanha e na América, impulsionando a criação de uma
escola espanhola de emblemática e de iconografia, com estudos tantos da
emblemática na Europa, quanto na América Hispânica.13 Sebastián foi o autor de
estudos fundamentais sobre a emblemática na América, como por exemplo, o do
11 INSOLERA, Lydia Salviucci. L’Imago Primi Saeculi (1640) e il significato
dell’immagine allegorica nella Compagnia di Gesù. Genesi e Fortuna del Libro. Roma:
Editrice Pontificia Università Gregoriana, 2004, p. 26-27.
12 GRIFFIN, Nigel. Enigmas, Riddles, and Emblems in Early Jesuit Colleges. In: GOMES,
na Colômbia, Sebastián trabalhou em Yale com George Kubler, e ali pode conhecer os
trabalhos de Martín Soria, cujas pesquisas sobre a pintura do século XVI na América, abriram
novas portas para que Sebastián pudesse circular simultaneamente, entre fontes de gravuras e
estampas. Ainda de acordo com Gutiérrez, teriam sido estas leituras iconográficas, que
projetaram Santiago Sebastián a um intenso conhecimento do campo da emblemática com
um assombroso domínio das fontes editadas durante os séculos XVI e XVII, valendo aqui
acrescentar que Sebastián também colaborou com o casal José de Mesa e Teresa Gisbert, na
Bolívia; e com Graziano Gasparini, na Venezuela. Tudo isso aliado a uma forte “vocación
americanista”, como também destacou Gutiérrez, fez com que Sebastián se tornasse um dos
maiores estudiosos de iconografia e de emblemática na América. Cf. GUTIÉRREZ, Ramón.
La vocación americanista de Santiago Sebastián [Prólogo]. In: SEBASTIÁN, Santiago.
Estudios sobre el arte y la arquitectura coloniales in Colombia. Bogotá: Corporación La
Candelaria/Convenio Andrés Bello, 2006, p. 41-49.
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Encontros com a história colonial 241
Não seria diferente com a emblemática. Por exemplo, tendo como claro modelo
o Imago Primi Saeculi (1640), o mais conhecido livro de emblemas produzido pela
Companhia de Jesus, elaborado por jovens jesuítas provenientes do Colégio da
Antuérpia, em razão da comemoração do primeiro centenário da Companhia; os
emblemas que decoram a nave e a capela doméstica da Igreja de Córdoba na
Argentina, foram objetos de estudos de Rafael Mahiques (Universidad de Valencia), e
de Sérgio Barbieri.22
Na Iglesia de la Compañía, século XVII, os Emblemas entalhados em madeira
(policromada e dourada), aos quais nos referimos, são em número de cinquenta, e
estão localizados à dez metros de altura, decorando em alternância com outras mais
cinquenta pinturas, todo o perímetro da Igreja jesuítica de Córdoba. Sendo que
quarenta e oito deles estão na Igreja, e dois decoram a Capela Doméstica. Como
observou Barbieri, na Igreja de Córdoba, temos por exemplo, um emblema que
copia exatamente a figura do “Emblema I” do frontispício do Imago Primi Saeculis,23 e
outro emblema que se utiliza da mesma inscrição: Omnia Solis Habet (Todo lo tiene del
sol), porém com a figura retirada do “Emblema II” do Imago. No mesmo emblema,
como também destacou Barbieri, a moldura ornamentada com grottesche, foi copiada
do “Emblema LIb” (51b) que compõe uma das tábuas de Emblemas do Imago. Nota-
se, portanto, que houve uma fusão de diferentes elementos, e de distintos emblemas
do Imago, na composição do Emblema de mote Omnia Solis Habet da Igreja de
Córdoba. Procedimento que também ocorreu em outros emblemas da dita Igreja.
O hibridismo do barroco colonial americano, e o emprego das grotescas, como
um gênero decorativo mais apartado da iconografia da Igreja Católica, onde os
nativos americanos teriam sentido mais liberdade para impor elementos de sua
própria cultura e iconografia,24 tem sido alvo de estudos recentes por reconhecidos
especialistas, como Luciano Migliaccio,25 Claire Farago,26 Alexander Gauvin Bailey,27
e Serge Gruzinsky.28 No Brasil colonial, nas obras dos jesuítas em suas Missões,
Churches of Colonial Peru. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2010, p. 305.
25 MIGLIACCIO, Luciano. De Guevara a Vico: funções do ornamento no sistema figurativo
horizons to fit a brave new world. Medieval Feminist Forum, 16, n. 1, p. 20-23, 1993.
27 BAILEY, Gauvin Alexander. The Andean Hybrid Baroque…
28 GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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242 IV Encontro Internacional de História Colonial
the Baroque: a Preliminary Investigation. In: GOMES, Luís (Org.). Mosaics of Meaning
Studies in Portuguese Emblematics….
32 Ver “La Influencia de Vaenius en Iberoamérica”. In: SEBASTIÁN, Santiago.
autoria do famoso polígrafo português Francisco Manuel de Melo, que é citada por Barbosa
Machado na sua Biblioteca Lusitana, porém o manuscrito da coleção não foi até hoje
localizado. Cf. AMARAL JR., Rubens. Portuguese Emblematics: an overview. In: GOMES,
Luís (Org.). Mosaics of Meaning Studies in Portuguese Emblematics…, p. 12.
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Encontros com a história colonial 243
pouco foi realizado em Portugal sobre o tema dos Emblemas, e ainda muito menos
no Brasil, ficando este fato muito claro quando comparamos a produção de trabalhos
em língua espanhola com aqueles em língua portuguesa, quase inexistentes.
Rubem Amaral Junior, em “Portuguese Emblematics: an overview,34 deixa
transparecer alguns pontos importantes a serem considerados acerca da presença de
Livros de Emblemas nascidos em território português. Em primeiro lugar, esclarece
que, assim como a maioria dos países europeus, Portugal não ficou imune à paixão
pela cultura emblemática durante os quase dois séculos e meio em que este gênero
literário floresceu, porém no que se refere à produção de livros de emblemas, ao seu
ver, a contribuição portuguesa seria “modesta, atrasada, frustrante e derivada”.35
Modesta: poucos livros, qualidade distante de ser excepcional, edições limitadas e
com mercado restrito. Atrasada: a maioria dos livros foram produzidos a partir da
segunda metade do século XVII. Frustrante: a maior parte dos livros não eram
ilustrados, muitos não foram publicados, e alguns manuscritos foram inclusive
perdidos. Verdades Escritas e Pintadas, é o título de um destes manuscritos
desaparecidos.36 Derivada: No sentido que a maioria eram cópias que imitavam,
adaptavam ou traduziam livros de emblemas estrangeiros. Tudo isso, segundo
Amaral Jr., deve estar na raiz do problema de que tão poucos portugueses tenham
direcionado a sua atenção em direção a este campo de estudo. Não é de se espantar,
portanto, que os estudos de emblemática também tenham sido, de certa forma,
deixados de lado no Brasil. Mas e apesar destes fatos elencados por Amaral Jr., o
mesmo defende que valeria a pena recuperar esta história, também pelo motivo de
que Portugal foi capaz de criar uma forma muito original de expressão artística, que
seria o emprego da tradição emblemática na azulejaria.
Mas, aproveitando, e expandindo “além-mar” a defesa de Amaral Jr., destacamos,
que na América Portuguesa, além de emblemas na azulejaria, como mencionamos,
admiravelmente representado pelo conjunto de azulejos do claustro dos franciscanos
em Salvador da Bahia, quanto ao extenso patrimônio jesuítico no Brasil, por exemplo
e como citamos anteriormente, podemos encontrar também no território das antigas
Missões da Companhia de Jesus no antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará duas
sacristias setecentistas que fizeram claramente emprego da emblemática na pintura de
seus tetos: a sacristia da Igreja de São Francisco Xavier do Colégio de Santo
Alexandre em Belém, e a sacristia da Casa-Colégio da Nossa Senhora da Madre de
Deus em Vigia, que foram as duas principais fundações dos jesuítas no Grão-Pará.
Nas duas principais igrejas jesuíticas no rio Amazonas, assim como na Igreja Jesuítica
de São Roque em Lisboa, em diferentes programas iconográficos, os Livros de
34 Ibidem, p. 1-20.
35 Ibidem, p. 2.
36 Ibidem, p. 12.
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244 IV Encontro Internacional de História Colonial
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Encontros com a história colonial 245
pax’ [da guerra vem a paz]. A letra diz que da guerra nasce a paz
e o corpo da pintura a nenhuma paz se pode aplicar com maior
propriedade, qual à do Brasil. Os favos são os doces frutos desta
terra singular entre todas as do mundo bênção de doçura com
que Deus a enriqueceu (…) Este é o sentido natural do mistério
do Evangelho, a que poderão servir de elegante comento o
capacete e abelhas do emblema, se o capacete for o de David, e
as abelhas de Salomão.42
42 VIEIRA, Antonio SJ. Sermão do Décimo Segundo – Rosário. Ver ALMEIDA, Isabel de.
Alciato in Parnassus…, p. 75-76. [Ver Sermão na íntegra na Biblioteca Brasiliana da
Universidade de São Paulo - USP online].
43 Os quatro emblemas possuem os seguintes motes: 1) Sonvm Dulcedo Sequetur (“Que a doçura
siga o som”), e Nomen Delectabile (“Nome Aprazível”); 2) Rejicit Avt Frangit (“Repele ou
quebra”), e Nomen Invincibile (“Nome Invencível”); 3) Lux Cibus et Medicina (“Luz, Alimento e
Remédio”), e Nomen Admirabile (“Nome Admirável”); 4) “Emblema do Sol”: Fvgat Ut Fvlget
(“Afugenta ao brilhar”), e Nomen Terribile (“Nome Terrível”). Ver MARTINS, Renata Maria
de Almeida. Tintas da Terra, Tintas do Reino: Arquitetura e Arte nas Missões Jesuíticas do
Grão-Pará (1653-1759). São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
de São Paulo, 2009, p. 433-456.
44 FERRO, Giovanni. Teatro d’Imprese. Veneza: Giacomo Sarzina, 1623. [ver Google Books:
ISBN 978-85-61586-70-5
246 IV Encontro Internacional de História Colonial
“Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas”, uma das mais importantes obras
sobre a Amazônia do século XVIII. João Daniel nos fala do “peito de aço”, do
“capacete”, da “saia de malha”, que são a “roupeta da Companhia”, as “armas do
Evangelho” e de Antonio Vieira, contra as “agudas e horrendas frechas e taquaras”
dos índios nheengaíbas; conhecida nação guerreira da Ilha do Marajó no Pará, que
finalmente foi aldeada pelos jesuítas, após 20 anos de guerras, resistindo às investidas
dos colonos portugueses.
Já em relação à presença de Livros de Emblemas nos acervos das Bibliotecas dos
Colégios Jesuíticos da América Portuguesa, é parte do inventário da expulsão dos
jesuítas das colônias portuguesas, em 1759, o único manuscrito remanescente de uma
antiga Livraria de Colégio jesuítico na Amazônia brasileira, conservado no Arquivo
Histórico da Companhia de Jesus em Roma: O Catálogo da Livraria da Casa-Colégio da
Madre de Deus no Pará.46 Composta por cerca de 1010 volumes, como nos diz o padre
jesuíta Serafim Leite em sua obra essencial, “A História da Companhia de Jesus no
Brasil”: “aquela livraria imersa como foco de luz nas selvas coloniais do Brasil tinha
um pouco de tudo”.47 Deve-se acrescentar a Serafim Leite, que inclusive, aquela
livraria em plena selva tropical, possuía em seu variado acervo, importantes obras de
tradição emblemática. Andrea Alciati, Sebastián de Covarrubias, Don Juan de
Solorzano, Francisco Sanchez de las Brozas (comentarista de Alciati), e Filippo
Picinelli, certamente ficariam estupefatos ao verem seus Livros, depositados em uma
Biblioteca a menos de um minuto da linha do Equador!
Importa saber, segundo os documentos originais estudados por Serafim Leite,
que a livraria do Colégio de Salvador da Bahia possuía cerca de 15000 volumes; a do
Rio de Janeiro 5434; a de Belém cerca de 2000; a de São Luís do Maranhão 5000. As
Bibliotecas jesuíticas, como no caso de Vigia, não se restringiam apenas aos centros
mais importantes; como também sabemos quanto às missões na América de domínio
espanhol:
La destinazione finale dei libri portati dai gesuti non erano soli i
centri accademici o le residenze. Migliaia di essi anadarano a
costituire importante biblioteche nei villagi indios (…) In ogni
villagio c`era una biblioteca: a San Borja 716 volumes, a San
Pedro 834, a Itapua 530, a Santos Mártires 382, a Candelaria più
expulsão dos jesuítas (1759-1760), segundo o seu inventário, cerca de 1010 volumes. Ver
“Catálogo da Livraria da Casa da Vigia”. ARSI, Brasiliae 28, fl. 18v-23r. Segundo a somatória
de Leite, seriam na verdade 1006 volumes. Ver LEITE, Serafim S.J. História da
Companhia de Jesus no Brasil…, p. 160-167. Cf. transcrição do catálogo com anotações
da autora e da Profa. Sylvie Deswarte em MARTINS, Renata Maria. Tintas da Terra,
Tintas do Reino…, p. 280-285.
47 LEITE, Serafim S.J. História da Companhia de Jesus no Brasil…, p. 167.
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Michoacán: El Colegio de Michuacán, 1997. [Trad. do Lat. e do It. para o espanhol. Tradutor:
Eloy Gómez Bravo].
50 A autora trabalhou o tema dos astros na Emblemática em MARTINS, Renata Maria de
Almeida. La Compagnia sia, come un cielo: o sol, a lua e as estrelas dos Livros de Emblemas
para a decoração das Igrejas das Missões jesuíticas na América Portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Colóquio Internacional A Arquitetura do Engano entre Europa e Brasil…
51 SEBASTIÁN, Santiago; MONTERROSA, Mariano; TERÁN, José Antonio. Iconografía
del Arte del Siglo XVI en México. Zacatecas: Editorial UAZ, 1995, p. 60.
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248 IV Encontro Internacional de História Colonial
fortaleza, e o sol (Electa ut Sol; Cant. cant. 6, 9), a lua (Pulchra ut Luna; Cant. cant. 6,
9), e a estrela (Stella Maris, Hino Litúrgico).
Segundo Luís de Moura Sobral, um grande número de emblemas nas Igrejas de
Portugal relatariam a Virgem Maria, refletindo a importância da Mãe de Deus na
crença católica em geral, e na portuguesa em particular. Assim como Sebastián,
Sobral também traz em seus estudos a associação da emblemática mariana ao
“Cântico dos Cânticos”, Tota Pulchra: Tota Pulchra es amica mea et macula non est in te.52
Luís de Moura Sobral nos diz que, em torno do século XVII, dezenas, senão
centenas, de tetos com caixotões de madeira (cassoni) são decorados com as imagens
de Maria, de longo tempo associadas com as Litaniae Lauretanae, como é o caso de
Vigia no Pará.
Sem o emprego de “motes”, com simples motivos marianos, no centro de
festões, florões, brutescos e/ou grotescas; pintados em têmpera ou à óleo,
diretamente na madeira, seriam aqueles emblemas encontrados no teto em caixotões
da sacristia da Igreja de São Roque em Lisboa, e também do santuário da Igreja do
Colégio Jesuítico de Funchal na Ilha da Madeira. Não com motivos marianos, mas
com símbolos cristianos; podemos encontrar modelo semelhante ao de Lisboa e ao
do Funchal (caixotões de madeira, decorados com motivos simples, sem motos, no
centro de festões e florões), na sacristia jesuítica da Igreja de Nossa Senhora do
Embu em São Paulo, antiga Aldeia de M`Boy Mirim. De mais elaborada composição
decorativa (como os de Vigia), seriam aqueles emblemas que ornamentam o teto da
sacristia das Igrejas dos Cistercienses em Bouro, norte de Portugal; que utiliza em sua
decoração “motos” e motivos figurativos de proveniências diversas.53
Na antiga Igreja de Nossa Senhora da Luz em São Luís, o arco concêntrico do
retábulo do altar-mor desenhado no século XVII pelo jesuíta João Felipe
Bettendorff, como já mencionamos, também está decorado com motivos marianos.
O arco foi repartido em seis partes, cada qual destacando um símbolo associado à
Maria. Estão no arco concêntrico retratados (da esquerda para a direita): a palma, o
cálice, o sol, a lua, a estrela e a rosa. Fica bastante claro, então, a transferência da
tradição portuguesa de Emblemas com símbolos marianos (entre eles, o sol, a lua, as
estrelas) ao menos para a Amazônia. Do artigo de Luís de Moura Sobral,54 dedicado
às pinturas de emblemas na azulejaria em Portugal e no Brasil, podemos retirar
algumas fontes, sobre o tema Mariano, que seriam as obras de Jacques Callot,
Herman Hugo, Joachim Camerarius, Henry Hawkins, Hendrik Engelgrave.
Conluindo, as obras por nós estudadas, de tradição emblemática, fazendo parte
de todo um sistema decorativo que imperava no Novo Mundo, dialogam e vão ao
encontro das pesquisas mais atuais sobre a arte barroca do período colonial na
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Lista de Imagens
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Imagem 4: São Miguel Paulista (zona leste da cidade de São Paulo), São Paulo,
Brasil, Capela de São Miguel Arcanjo, detalhe do retábulo pintado (lado da
Epístola) contendo desenhos do sol, da estrela e da lua na parte superior interna
do nicho, s/d. Fotografia: Renata Martins, janeiro de 2012.
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Imagem 5: Embu das Artes, São Paulo, Brasil, Igreja da Residência de Nossa
Senhora do Rosário do Embu (M`Boy Mirim), pintura do teto da sacristia
contendo símbolos da Paixão de Cristo, brutescos, grotescas, flores e chinoiseries,
detalhe da pintura de um dos caixotões [contendo os pregos da crucificação],
séc. XVIII. Fotografia: Renata Martins, fevereiro de 2012.
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Luciano Migliaccio1
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da Udine, nos estuques das galerias vaticanas, em que as possibilidades abertas pelo
gênero permitiam mixturar a erudição arqueológica, científica e a fantasia poética na
busca de uma prazerosa divagação da imaginação.
Por meio da atividade de artistas como Perin Del Vaga, Francesco Salviati,
Giorgio Vasari, na segunda metade do século XVI, as grotescas penetraram
amplamente nos espaços profanos, como naqueles religiosos: capelas, refetórios de
mosteiros, oratórios de irmandades, sendo sinônimo de cultura em dia com as
tendências humanísticas da aristocracia das cortes, não sem se confundir com outros
tipos de imagens com funções didáticas e de edificação moral como os hieróglifos,
os emblemas, as divisas. As grotescas eram consideradas como o lugar da invenção
livre por parte da fantasia do artista, mas, por isso mesmo foram associadas a uma
atividade mental fora dos limites da razão.
No contexto colonial é possível sugerir uma hipótese que vai num sentido
contrário à idéia de uma inspiração direta em modelos teóricos e fontes européias e
mais no sentido indicado por Santiago Sebastián de pensar que o caráter específico
da recepção americana dos modelos europeu seja sobretudo a diferente
recombinação e composição das formas procedentes dos centros metropolitanos.
Não tanto a invenção então de formas novas, mas uma nova “dispositio” que quebra
frequentemente os limites fixados entre os gêneros na cultura originária.4
Nas imagens de decorações pintadas como as da Casa do Fundador de Tunja, na
Colômbia,5 do Colégio de Santo Alexandre e da sacristia do mosteiro de Santo
Antônio de Belém, da sacristia da igreja dos jesuítas de Vigía,6 há frequentemente a
presença da arquitetura fingida, da grotesca, do emblema e da “impresa”, que em
falta de uma melhor tradução ao português, designaremos com a palavra italiana, ou
com a palavra lusa divisa. Tanto o emblema como a divisa são associações livres de
imagens e motes. Eles distinguem-se apenas pela função, sendo a divisa um emblema
(no sentido da etimologia grega de objeto a ser contemplado) que é adotado por um
indivíduo para expressar uma intenção moral e pode mudar no tempo, a diferença do
brasão e do emblema que possuem uma função de identificação dinástica ou de
ensino moral sem se identificar com um indivíduo em particular.
Por exemplo, na casa do fundador de Tunja, na Colômbia, um falso pórtico,
definido por arcos sustentados por colunas, abre-se mostrando animais e vegetação
das diversas partes do mundo: o rinoceronte, representando a África o cachorro, o
terra, tintas do reino: arquitetura e arte nas missões jesuíticas do Grão Pará (1653-1759).
São Paulo: Tese de doutorado – FAU/USP, 2009.
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cavalo representando a Europa, podem ser vistos como uma das primeiras
manifestações de um exotismo de um ponto de vista americano. Na casa de Juan de
Vargas o mesmo tema é declinado mediante o uso do repertório da grotesca: o
cavalo e o rinoceronte reproduzido fielmente da famosa gravura de Durer, aparecem
ao lado dos seres íbridos, dos nós, dos festões típicos dos modelos europeus. Ao
lado dos animais e dos seres monstruosos, eis os emblemas do nome de Jesus e de
Maria, o brasão familiar.
Já no século XVIII, no claustro do mosteiro de São Francisco em Salvador da
Bahia, a arquitetura falsa, incluíndo tarjas e emblemas, forma a moldura de figurações
narrativas, enquanto os motivos da grotesca à antiga foram substituídos pela rocaille
em que sobrevivem do repertório do passado apenas cabeças de anjinhos alados. Os
casos de Belém do Pará também parecem estabelecer uma espécie de diálogo
permanente entre pintura de arquitetura, emblema e grotesca (ou brutesco em
português) que sugere algumas considerações sobre o papel da arte decorativa na
cultura figurativa colonial da América Latina. A decoração, em particular o emblema
e a grotesca, por serem imagens que se aproximam ao pictograma ou por terem uma
ligação menos estreita com a tradição mimética típica da arte clássica, foi o lugar
privilegiado onde foi possível o surgimento de uma atitude mais aberta em relação às
tradições iconográficas locais, em virtude da combinação entre erudição científica e
religiosa, didática moral e divagação fantástica que é característica da grotesca
utilizada nos espaços comuns de edifícios monásticos, quais refetórios, sacristias, na
Europa já durante a Renascença . Algo deste caráter se transmitiu à maneira de
interpretar os modelos de pintura decorativa procedentes da Europa na segunda
metade do século XVIII, particularmente no Brasil.
Esta ideia é sugerida também da leitura de um trecho dos Veri precetti della pittura
de Giovan Battista Armenini publicado em 1587. No capítulo dedicado aos temas
adequados para decoração das galerias e dos pórticos, Armenini louva a variedade
das escolhas temáticas possíveis nestes ambientes destinados ao recreio e ao
entretenimento do espírito. Acrescenta que, posta a diversidade das formas
arquitetônicas que são na maioria dos casos arcos e pilares, a pintura precisa adequar-
se escolhendo uma grande variedade de formatos “de maneira que neles toda
extravagante invenção é adequada desde que crie riqueza e ornamento”. Passando
aos exemplos cita as Logge de Rafael e de Giovanni da Udine, a galeria da vila Doria
de Fassolo em Gênova por Perin del Vaga, louvando a erudição arqueológica e
científica dos dois primeiros e a capacidade de domínio da perspectiva e da figuração
do segundo. No entanto, termina com um louvor do uso da pintura de arquitetura e
perspectiva:
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Daniel escreve o seu Thesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas durante os anos
em que ficou recluso nas prisões portuguesas por resistir à ordem de expulsão da
Companhia dos territórios da coroa (1757-1776), a partir das experiências vividas na
região entre 1741 e 1757. Trata-se, portanto, de um relato de memória, visando
destacar e enaltecer as capacidades inatas dos índios evangelizados pelos jesuítas. Ele
não ressalta a obra educativa das oficinas jesuíticas na prática artística dos nativos.
Estas só servem para disciplinar um povo que não possui o hábito do trabalho
sistemático.
Daniel quer mostrar a disposição inata dos indígenas e suas habilidades manuais
espontâneas. Daí ele não vê a maneira instintiva dos artistas indígenas como um fato
negativo, pelo contrário, admira a criação imediata como uma característica da
mentalidade deles. É claro que para o jesuíta isso indica ainda apenas uma disposição
à aprendizagem da regra, mas numa certa medida, a observação de Daniel se
contrapõe a consideração totalmente negativa da disposição mental dos indígenas
presente em escritos de outros padres. Para isso, Daniel lança mão da categoria da
“fantasia” e elogia a capacidade criativa a partir da manipulação direta dos materiais
da escultura, com utensílios primitivos (o esboço) para acabar depois com
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Encontros com a história colonial 261
instrumentos mais refinados, e ressalta a rapidez com que a imagem idealizada pela
fantasia, é traduzida pela mão do artista indígena. Ao fazer isso, ele parece se
aproximar a motivos da critica de arte e da pintura, em particular, de grande
atualidade na Europa do seu tempo: se pense nas noções de “fantasia”, de toque, de
colorito, utilizadas por eruditos como De Piles, Algarotti, Caylus.17
Posto isso, é possível perceber na posição de Daniel uma valorização consciente
destes aspectos da produção indígena, não apenas como parte de uma disposição
inata à aprendizagem das regras da arte, mas como característica positiva da
produção artística em geral a ser valorizada na criação particular dos artífices índios.
Daniel estaria então em dia com correntes da crítica da época que ressaltam o valor
do elemento da espontaneidade e da fantasia não como “primitivos”, mas como
caráter da própria atividade estética, destacadamente presentes na produção dos
“primitivos”.
Cabe lembrar que em 1720 Giambattista Vico começa a elaborar a sua obra
Principi di una Scienza Nuova, fundando uma visão da história que valoriza as primeiras
fases da história da humanidade, consideradas como o momento da primeira
apreensão do mundo mediante a fantasia poética e a linguagem. Para Vico os
primeiros povos foram poetas que falaram por meio da poesia: a linguagem
entendida como criação e expressão da fantasia foi essencialmente poético porque os
homens daquela idade se expressavam por imagens e metáforas; formas do saber
tecidas com universais fantásticos ou caracteres poéticos que estão na base dos
grandes mitos dos povos primitivos, possuindo, portanto, valor histórico de
conhecimento.
Naqueles mesmos anos, o lombardo Lorenzo Boturini Benaduci, leitor da obra
de Vico, no México desde 1736, recolheu um grande acervo de documentos sobre a
civilização azteca, publicou em Madri em 1746 a obra Idea de una nueva história de la
América Septentrional fundada sobre material copioso de figuras, símbolos, caracteres y jeroglíficos
cantares y manuscritos de autores Indios ultimamente descobiertos aplicando pela primeira vez à
história antiga americana os métodos da pesquisa antiquaria de Montfaucon, baseada
na consideração filológica dos documentos materiais.18
17 PUTTFARKEN, Thomas. Roger de Piles' theory of art. New Haven: Yale University
Press, 1985; ERCOLI, Giuliano. Francesco Algarotti e la nuova critica d'arte nella seconda
metà del Settecento. In: Nuove idee e nuova arte del Settecento italiano. Roma,
Accademia dei Lincei, 1977, p. 409-425; DÉMORIS, René. Le comte de Caylus entre théorie
et critique d'art. In: CRONK, Nicholas, PEETERS Kris (ed.). Le comte de Caylus.
Amsterdam, 2004, p. 17-41.
18 Sobre a figura de Lorenzo Boturini Benaduci, ver GHELARDI, Maurizio. L'oratio ad
divinam sapientiam del vichiano Lorenzo Boturini. In: Giornale Critico della Filosofia
Italiana, 1984, p. 406-419; CODAZZI, Angela. Boturini Benaduci, Lorenzo verbete,
Dizionario Biografico degli Italiani. Roma, Istituto dell'Enciclopedia Italiana, vol. 13,
1971.
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Encontros com a história colonial 263
Os desenhos de Frans Post, 1645, foram feitos para as gravuras do livro Rerum per
octennium in Brasilia, 1647, de Caspar Barlaeus, sobre o governo de João Maurício de
Nassau no Brasil. Uma análise formal e iconográfica demonstrou que a composição
dos desenhos foi feita nos moldes das vistas topográficas de lugares pátrios, relativas
à cultura visual neerlandesa do século XVII. Tratou-se, portanto, da estruturação de
uma visão da Nova Holanda através de uma retórica visual associada à paisagem
política.2
Porém, os resultados dessa análise põem um problema historiográfico, uma vez
que a representação da topografia da Nova Holanda, construída como imagens da
Pax Nassoviana, não tinha correspondência com a realidade social vivida. Ao
contrário de seus antecedentes iconográficos - as séries de gravuras paisagísticas
holandesas relacionadas ao contexto da Trégua dos Doze Anos com a Espanha, de
1609 a 1621, o conjunto de vistas topográficas de Frans Post representava uma paz
que não existia de fato. Sabe-se que o período histórico de que elas tratam – o
governo de Nassau, não deixou de conhecer conflitos armados, pois que eram
constantes as incursões dos guerrilheiros luso-brasileiros. Para não mencionar o fato
de que Frans Post executava os desenhos e ajudava Jan van Brosterhuyzen a preparar
as gravuras ao tempo em que o território representado caía sob o cerco dos
insurretos pernambucanos.3
Como compreender esse deslocamento de sentido, entre um real vivido e uma
realidade representada? Essas imagens operavam a visibilidade do projeto político
orangista do stadhouder [lugar-tenente] Frederik Hendrik para a legitimação de poder
dos neerlandeses no Brasil e no Atlântico, uma vez que, assegurando a posse do
Caspar Barlaeus’s History of Dutch Brazil. The Rijksmuseum Bulletin. Amsterdam, vol.
59/3, p. 236-271, 2011.
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4Cf. BOXER, Charles. Os Holandeses no Brasil, 1630-1654. Recife: CEPE, 2004; Ibidem,
The Dutch Seaborne Empire: 1600-1800. New York: Alfred A. Knopf, 1965; SPRUIT,
Ruud. Zout en Slaven. De Geschiedenis van de Westindische Compagnie. Houten: De
Haan, 1988; e ISRAEL, Jonathan. I. Dutch Primacy in World Trade, 1585-1740. Oxford:
Oxford University Press, 1989.
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Encontros com a história colonial 265
Como afirmara J. L. Price, os anos de 1618 e 1650 foram críticos para o corpo
político da República dos Países Baixos Unidos.5 Ambos foram precedidos pela
criação imagética de representações de paisagem em séries de impressos com
temática topográfica. Porém, houve uma assimetria dupla em relação aos dois
conjuntos caros aqui a esta análise. Os impressos dos anos 1610 focavam os lugares
pátrios holandeses, sobretudo Haarlem; as gravuras de 1645, de Frans Post, tinham
como tema central o território da Nova Holanda. Ademais, por um lado, o primeiro
conjunto, relacionando-se à ideologia de estado orangista, tal como aventada a partir
do coup d’état de Maurício de Nassau, em 1618, marcou o advento da identificação da
iconografia emergente a uma paisagem política específica. Por outro, o segundo
conjunto foi talvez uma última defesa dessa ideologia durante a crise que terminou
por pender a balança política da república a favor do governo civil e da ideologia do
livre comércio. Para que esta hipótese adquira validade, é preciso, entretanto, que
demonstremos a correlação entre a criação imagética das séries e as contingências
históricas dos períodos em que elas foram urdidas.
Comecemos com as séries dos anos 1610. Após a retomada espanhola da cidade
de Antuérpia, centro comercial e financeiro de grande expressão no cenário europeu,
metade de sua população, identificada com a causa protestante, migrou para os
Países Baixos do norte. Isso significou que, ao longo dos últimos anos do século
XVI, 40 mil cidadãos de Antuérpia se juntaram a, pelo menos, mais outros 100 mil
flamengos e brabanteses, na sua maioria, numa onda migratória que marcou
decisivamente a sociedade e os rumos da revolta ao norte dos rios Reno, Mosa e
Escalda.6
A maioria desse fluxo migratório dirigiu-se para Amsterdã, contribuindo, com o
estabelecimento de capitais e redes de contatos, para a consolidação dessa cidade
como a sucessora de Antuérpia no comercio e nas finanças, tornando-se já em fins
dos 1590 no centro de uma nova economia-mundo. Entretanto, parte dessa corrente
dirigiu-se para as cidades fabris de Leiden e Haarlem. Foi nessa última que vários
artistas gráficos se instalaram, levando não só toda uma tradição pictórica, associada
5 Cf. PRICE, J. L. Holland and the Dutch republic in the seventeenth century. The
politics of particularism. Oxford: Clarendon Press, 1994.
6 Cf. ISRAEL, Jonathan I. The Dutch Republic. Its Rise, Greatness and Fall, 1477-1806.
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266 IV Encontro Internacional de História Colonial
7 Cf. GIBSON, Walter. Pleasant Places: the rustic landscape from Bruegel to Ruisdael.
Berkeley: University of California Press, 2000.
8 Cf. Catálogo de Exposição. Dutch Landscape: The Early Years: Haarlem and Amsterdam,
do Schilder-boeck, sobre a pintura de paisagem, cf. Idem. Sobre a importância para que o
Schilder-boeck viesse a constituir parte dos cânones da arte neerlandesa de princípios do século
XVII, cf. MELION, Walter S. Shaping the Netherlandish Canon. Karel van Mander’s
Schilder-Boeck. Chicago: The University of Chicago Press, 1991.
10 Cf. MELION. Ibidem.; e LEVESQUE, Catherine. Journey through landscape in
seventeenth-century Holland: the Haarlem print series and Dutch identity. University Park.
Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 1994.
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Encontros com a história colonial 267
contrário.11 Esse processo, já iniciado antes mesmo do início do século XVII, tomou
mais corpo, engajando a sociedade e seus artífices, durante os anos da Trégua dos
Doze Anos, de 1609 a 1621. Pausado o conflito com o inimigo estrangeiro, os
neerlandeses se viram diante da tarefa de, diante do “espelho do tempo”, se
perguntar “quem eram”, “de onde vinham” e “para onde iriam”. A produção de
imagens, sobretudo a paisagística e a cartográfica, tornou-se o lugar privilegiado para
essa construção simbólica.12
Assim, ainda em 1607, Claes Jansz. Visscher compôs alguns desenhos que
retomam a linguagem visual dos desenhos de Goltzius, mas em outra escala de
representação da paisagem observada: ao invés da distância panorâmica, Visscher
escolheu o close up de um aspecto de um caminho em curva, com casas e árvores ao
lado. A composição foi retomada posteriormente, entre os anos de 1612-13, para
integrar a série de impressos Plaisante Plaetsen. Algumas figuras humanas foram
adicionadas e uma legenda ajudava o espectador a situar a localidade: Aende Wegh na
Leiden [no caminho para Leiden].13 No mesmo ano de 1607, Karel van Mander
pintou uma paisagem que, embora sem ser representação topográfica, trazia no
centro do plano médio uma alusão à passagem bíblica da adoração do bezerro de
ouro.14
Eram duas maneiras distintas de relacionar a criação de imagens de paisagem às
circunstâncias históricas da construção identitária. De um lado, Van Mander, ao fazer
uso de uma alegorização da paisagem política, deixava ver uma crítica ao grupo social
que, preocupado com a lucratividade comercial, apoiava Oldenbarneveld – o líder
civil da república depois da morte de Guilherme de Orange – a fechar as negociações
da trégua com os papistas espanhóis. De outro, Visscher usava a estratégia de
representação topográfica a fim de construir uma imagem de identificação com os
lugares pátrios.
Examinemos mais detalhadamente o caso do último, que está mais diretamente
ligado ao nosso próprio objeto de estudo aqui nesta investigação. A série de
Visscher, Plaisante Plaetsen, é composta por doze páginas impressas, sendo a primeira
para a página título e as onze subsequentes contendo vistas de localidades no
ADAMS, Ann Jensen. Competing Communities in the ‘Great Bog of Europe’: Identity and
Seventeenth-Century Dutch Landscape Painting. In: MITCHELL, W. J. T. (org.).
Landscape and Power. Chicago: The University of Chicago Press, 1994, p. 35-64.
13 Cf. LEVESQUE. Journey through landscape in seventeenth-century Holland…; e
Catálogo de Exposição. Dawn of the Golden Age. Northern Netherlandish Art, 1580-1620.
Curadoria de Ger Luijten et al. Amsterdam/Zwolle: Rijksmuseum/Waanders Uitgevers,
1994.
14 Cf. MELION. Shaping the Netherlandish Canon…
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268 IV Encontro Internacional de História Colonial
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Encontros com a história colonial 269
18 Para uma descrição formal dos mapas, cf. WELU, James A. The Sources and Development
of Cartographic Ornamentation in the Netherlands. In: WOODWARD, David. Art and
Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987. Para
uma interpretação dos mesmos, cf. o capítulo “O impulso cartográfico na arte holandesa” em
ALPERS, Svetlana. A Arte de Descrever: A Arte Holandesa no Século XVII. São Paulo:
Edusp, 1999.
19 Cf. GIBSON. Pleasant Places…
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270 IV Encontro Internacional de História Colonial
de arte na Holanda do século XVII, cf. BOK, Marten Jan. Pricing the Unpriced: How Dutch
Seventeenth-Century Painters determined the Selling Price of their Work. In: NORTH,
Michael & ORMROD, David. Art Markets in Europe, 1400-1800. Aldershot: Ashgate,
1998.
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26 Cf. ISRAEL. The Dutch Republic…; PRICE. Holland and the Dutch republic in the
seventeenth century…; e ROWEN, Herbert H. The Princes of Orange. The stathouders
in the Dutch republic. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
27 Sobre a primeira caracterização, cf. LEVESQUE. Journey through landscape in
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Quando Frans Post viajara para o Brasil, no início de 1637, a linguagem visual do
“realismo” já estava associada ao imaginário de topografia pátria na paisagística
neerlandesa. A sua primeira tela, Vista de Itamaracá, já apresenta essa característica. E
se a segunda tela, O Carro de bois, representa a paisagem pernambucana em alegoria de
abundância açucareira sem fazer menção à topografia, tratou-se de uma estratégia
que não voltou a se repetir nas telas que ele pintou depois e que chegaram até nosso
conhecimento hoje. Todas as cinco, datadas até 1640, foram compostas respeitando
o motivo da topografia das localidades oficiais da Nova Holanda.28
A conclusão a que chegamos na nossa tese de doutorado foi a de que se tratou do
uso daquele repertório de topografia pátria, como constituído pelas séries de
impressos na década de 1610, de forma que Frans Post estava representando, por
analogia no tratamento do tema, a Nova Holanda como terra pátria, como parte
integrante do corpo político neerlandês.
Fazer a paisagem política do Brasil surgir da relação entre vistas topográficas
dispostas em série era privilegiar uma maneira de conferir, através do cuidadoso
acuro da representação, uma distinção política que João Maurício pôde ter querido e
conseguiu fazer vigorar na corte de Vrijburgh; mas que pode não ter encontrado
muitos entusiastas na Holanda, sobretudo porque seus conflitos com a WIC se
agravaram após 1644, a despeito da iniciativa de mandar publicar o Rerum per
octennium in Brasilia.
O cuidado em representar cada câmara municipal, com seu brasão, através da
topografia paisagística, pode ter sido tomado como uma tentativa de representar a
Nova Holanda e suas localidades em equivalência direta entre o modo com que se
representava os Países Baixos Unidos e suas localidades, como vimos, sobretudo, no
uso de perfis topográficos para representar a base municipal da soberania
neerlandesa.
Então, a construção de uma imagem oficial da colônia em Frans Post se
relacionou a uma questão que passava pelo estatuto político da Nova Holanda e seu
relacionamento para com a soberania neerlandesa, tal como nas imagens identitárias
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29 Cf. VIEIRA, Daniel de Souza Leão. A Topografia Ausente: A Paisagem Política da Nieuw
Holland nas Vinhetas de Frans Post para o Mapa Mural BRASILIA qua parte paret BELGIS,
1643-1647. Clio - Revista de Pesquisa Histórica. Recife: UFPE, n. 29.1, vol. 1, 2011.
30 Cf. WATJEN, Hermann. O Domínio Colonial Holandês no Brasil: um Capítulo da
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Encontros com a história colonial 275
produtos, mas o açúcar, o produto mais rentável da colônia, esse ficara aberto ao
livre comércio.
Porém, se João Maurício sublinhou os aspectos do livre comércio que trariam
benefícios ao negócio do Brasil (de interesse a ambos os acionistas da WIC e os
Estados Gerais), o deve tê-lo feito mais pela necessidade imposta pela situação
conjuntural da economia da colônia do que pela convicção de uma política
econômica. Detenhamo-nos neste ponto a fim de investigar as implicações políticas
que se relacionavam com os dois interesses econômicos em jogo.
Ao se ater sobre a questão histórica do debate entre uma posição monopolista e
outra, liberalista, por assim dizer, em torno do comércio do açúcar do Brasil
holandês, W. J. Van Hoboken afirmou que foram os interesses de Amsterdã que
decidiram o sucesso do debate. No entanto, cabe aqui ressaltar que Hoboken havia
demonstrado que os interesses no livre comércio estavam relacionados à emergência
do partido libertino, que, sendo mais ligado ao republicanismo, propunha a
diminuição do papel do stadhouderschap dos Orange no arranjo político das forças na
governança.
Nesse sentido, o orangismo e o republicanismo, as duas correntes do pensamento
político neerlandês do século XVII, poderiam se antagonizar a ponto de trazer
“tensões latentes” e “conflitos” que podiam ameaçar o equilíbrio do
“comportamento político”; assim como ocorreu em 1650, quando do embate entre o
stadhouder e os Estados da Holanda em 1650. Ora, o episódio da tentativa de coup
d’état de Willem II em 1650 foi o clímax de um impasse entre as duas posições de que
falava J. L. Price; impasse esse que já vinha se agravando desde o começo das
negociações que levaram à Paz de Münster, em 1648.32
De fato, a confirmação da paz foi uma vitória dos Estados da Holanda sobre a
Casa de Orange. Sobretudo porque a nova situação em relação à política
internacional (as negociações de paz com a Espanha apontando para o fim das
hostilidades militares) permitiu que os Estados Gerais apoiassem a proposta de
diminuição do efetivo militar da República, o que poderia ser uma forma de minar o
poder do stadhouder, uma vez que um dos atributos de sua posição de liderança era
justamente a função de comando em guerra. Essa mesma manobra, a da diminuição
do efetivo das tropas, já tinha sido executada pela WIC após a saída de João Maurício
do posto de Governador-General da Nova Holanda, em 1644.
Com o stadhouder Frederik Hendrik adoentado, e Willem II ainda apenas tentando
ganhar o comando das tropas, em 1645-6, quem “dirigia efetivamente a República”
eram os irmãos Bickers, de Amsterdã, líderes que eram do partido da paz e principais
membros da plutocracia mercantil.33 Nesse sentido, a feitura das pranchas para o
livro de Barlaeus tornou-se, durante os anos de sua feitura, de 1645 a 1647, uma
32 Cf. PRICE. Holland and the Dutch republic in the seventeenth century…
33 Cf. ISRAEL. The Dutch Republic…
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arena de embate político em prol de Frederik Hendrik. Cabe lembrar que, a essa
altura dos acontecimentos, o Orangismo, estava cindido em três, uma vez que à
posição conciliatória de Frederik Hendrik, opunham-se os extremos de Willem II,
mais a favor do partido da guerra, e de Amalia von Solms, mais adepta do partido da
paz.34
Enquanto uma mescla de soberania provincial com prerrogativas de linhagem
principesca, a paisagem política proposta pelo discurso orangista-nassoviano para o
Brasil implicava a construção de alegorias de prosperidade em termos de vista
topográfica. Ao assim fazer, esse discurso operava em três níveis: 1) fazia do
particularismo de origem municipal, tão típico da soberania neerlandesa ao século
XVII, a base imaginária do corpo político; 2) removia a referência a uma cabeça
desse corpo político, a fim de evitar a evocação ao stadhouder como soberano,
articulando então as topografias como partes de um todo político que era sugerido
pela cartografia do país; e 3) ao propor a aplicação dessas categorias discursivas e
imaginárias a fim de elaborar uma geografia do Brasil, incluindo para isso motivos
tropicais, estava-se então procedendo a uma assimilação cultural da terra do Brasil ao
corpo político neerlandês. Em outras palavras, tratava-se de um projeto colonial.
Por outro lado, enquanto proposta republicana pautada nas noções de livre
comércio, a paisagem política proposta para o Brasil holandês mantinha os motivos
tropicais que aludiam e/ou conotavam a alegoria de prosperidade sem, no entanto,
querer precisar inseri-los numa estrutura de iconografia topográfica. Evitando as
implicações de inclusão política dessa última, a imagem do Brasil holandês
simplificou-se em estereótipo generalizante que exotizou o Outro, fazendo da
paisagem não especificamente um corpo político, a Nova Holanda; mas um corpo a-
politizado, considerado imaginariamente nos termos de um suikerrijk. Em outras
palavras, não constituía um projeto de colonização, mas uma visão que propunha
imaginar a terra do Brasil em termos de conquista a uma colônia portuguesa. Nesse
sentido, o que se propunha era a manutenção de uma mínima infraestrutura local
(embora de relevância geopolítica para todo o Atlântico) que, permitindo a
continuidade da produção açucareira por portugueses, permitiria também a
manutenção do comércio holandês.
Ora, essa proposta republicana e liberal para a paisagem política do Brasil
holandês emergiu pela primeira vez na obra de Frans Post na tela O carro de bois, de
1638, ano em que um regime de chuvas benfazejas trouxe uma excelente safra,
justamente coincidindo com a promulgação da abertura do comércio do açúcar à
livre iniciativa.35 Num contexto tido como promissor, o imaginário da terra
abundante foi associado à paisagem ficcionalizada na tela de Post.
34
Ibidem.
35
Sobre os dados acerca das safras, cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada:
Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1654 [1974]. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. Sobre a
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relação entre a tela de Frans Post e a safra de 1638, cf. LAGO, Bia e Pedro Corrêa do. Frans
Post {1612-1680}. Obra Completa. Catalogue Raisonné. Rio de Janeiro: Capivara, 2006.
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36 PRICE, J. L. Culture and Society in the Dutch Republic During the 17th Century.
New York: Charles Scribner’s Sons, 1974.
37 WESTERMANN, Mariët. A Worldly Art. The Dutch Republic, 1585-1718. New Haven:
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