Azevedo - Do Brega Paraense Ao Tecnobrega
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uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Do brega paraense
ao tecnobrega:
história e tradição na
websérie Sampleados
Rafael José Azevedo
Resumo: O artigo trata da websérie musical Sampleados. A partir da descrição de seus episódios,
discutimos possíveis relações entre história e música popular feita no Brasil. A série foi ao
ar em 2015 e, indiretamente, nos conta parte da história do brega paraense ao apresentar,
em suas narrativas, artistas e canções supostamente importantes para o fenômeno desde
os anos 1980. Ao convocar determinado passado, Sampleados apresenta o brega como
uma espécie de tradição musical. Sendo assim, buscamos evidenciar as contradições que
permeiam as narrativas históricas a partir do pensamento de Paul Ricoeur.
Abstract: From “brega paraense” to “tecnobrega”: history and tradition at the web series Sampleados
-- This paper examines a musical web series Sampleados. Describing its episodes, we discussed
possible links between history and popular music made in Brazil. The series was broadcast
in 2015 and, indirectly, tells us part of the history of the style called “brega paraense” by
introducing, in its narratives, songs and artists considered representatives of the phenomenon
since the 1980s. By invoking certain past, Sampleados presents the “brega” as a kind of
musical tradition. Therefore we seek to highlight the contradictions that permeate historical
narratives from the contributions of Paul Ricoeur.
Introdução
A ideia desse artigo é refletir sobre possíveis relações entre música popular e
tradição a partir da observação de uma série audiovisual que nos apresenta a proposta de
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Sampleados é uma web série musical de 5 episódios, que vai contar histórias através
de remixes de bregas antigos com tecnobregas atuais - É um projeto de extensão
universitária da Estácio FAP, que tem o objetivo de divulgar a cultura do estado
e capacitar jovens para o mercado audiovisual. (SAMPLEADOS – 1o. EPISÓDIO)
Há um aspecto que nos chama atenção nessa fala: a relação estabelecida tacitamente
entre a música brega e o Estado do Pará. Esse gênero musical, se assim pudermos considerá-lo,
é algo que viemos percebendo como índice identitário cultural que parece ajudar a erigir
certo imaginário em torno de práticas ligadas à música popular desse Estado brasileiro
junto de outras expressões tais como o carimbó, a lambada e a guitarrada. Outro aspecto
importante é a articulação feita pelos produtores à ideia de websérie. Paula Hernández
García observa o surgimento e os caminhos tomados por esse formato audiovisual
no contexto espanhol propondo uma caracterização que nos parece pertinente:
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May Souza (Banda AR-15), Renan Sanches (Banda ARK), Letícia Diogo e Felix
Robatto se reuniram para se divertir e tomar uma gelada no Ver-o-Peso, até que
a Varejeira Nanna Reis aparece e arrebata o coração da galera da golada, inclusive
do gringo Leo Chermont. (SAMPLEADOS – 3o. EPISÓDIO, 2015)
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de Viviane Batidão, cantada por May Souza e Letícia Diogo, é seguida de Quem vai querer
a minha piriquita (2009), da Banda Katrina, cantada por Nanna Reis. Essa personagem é
peça chave por ser descrita como uma mulher interesseira quando Félix Robatto e Renan
Sanches cantam, respectivamente, Brega da varejeira (2002) -- não descobrimos de que
banda -- e Varejeira da Banda Xeiro Verde de 1998. Na sequência, há uma pequena
menção ao refrão da canção Gererê, de Nelsinho Rodrigues, cantada por Renan logo
antes do final do vídeo em que Nanna Reis seduz o turista enquanto canta Gringo lindo
creditada à Banda Floresta Amazônica na página do YouTube1.
No penúltimo episódio, contracenam dois músicos apenas: “Thaciane Pantoja (Banda
Batidão do Melody) resolve fugir da escola para esperar ansiosa a chegada do seu amado
Tony Brasil, o criador do tecnomelody. O bole rebole rola solto até que chega a hora de
dizer ‘Tchau Amor’.” (SAMPLEADOS – 4o. EPISÓDIO, 2015). A trama é simples: ao cantar
os versos de Tic tic tac da Banda Amazonas na abertura, notamos que a colegial Thaciane
Pantoja espera por alguém. Este chega em Belém através de uma pequena embarcação
aportando próximo ao Ver-o-Peso. Ele se declara à estudante através dos versos de Meu
amor é todo seu da Banda Sayonara: eles fazem um dueto na canção enquanto imagens
dele no barco e dela na beira do rio se entrecortam até que se encontram no porto.
Na sequência, o casal se encontra dentro de um quarto enquanto dançam e cantam, em
dueto, a canção Bole rebole (2002)2 da banda Los Bregas. A despedida se inicia quando
Tony entoa os versos de Eu voltarei3 -- canção descrita como um “brega marcante dos anos
90” no YouTube --, creditada a Nelsinho Rodrigues e Aninha. Eles continuam cantando
a canção em dueto em outros ambientes na sequência: Ver-o-Peso e a beira do rio. Quando
Tony aparece já ocupando novamente a embarcação, ele canta Tchau tchau, amor (1986)
de Ivan Peter que não consta nos créditos. Ela permanece triste na beira do rio enquanto
a embarcação se distancia, o refrão de Eu voltarei cantado em dueto finaliza o episódio.
O episódio final da série gira em torno de Keila Gentil, vocalista da Gang do Eletro:
Após ver o seu futuro na bola de cristal de Valéria Paiva (Banda Fruto Sensual),
Keila Gentil (Gang do Eletro) embarca numa aventura eletrizante de carona no
marmita de Billy Brasil, e com suas amigas Rebeca Lindsay e Viviane Batidão,
vão para a aparelhagem encontrar o traficante do amor Edilson Moreno
(SAMPLEADOS – 5o. EPISÓDIO, 2015).
Ao início vemos a cantora na Estação das Docas entoando Ao pôr do sol de Teddy
Max: há uma atmosfera onírica nessa abertura dada pelo filtro usado nas imagens.
O cantor Edilson Moreno é o primeiro a contracenar com Keila: eles dançam juntos
naquele ambiente. A segunda sequência começa com Valéria Paiva em uma sala escura
1 No link apresentado nessa página somos levados a um vídeo da canção no próprio YouTube que nos informa
que os créditos corretos seriam dados à Banda Tribus.
2 Versão de Das model do Kraftwerk.
3 Versão de Making love out of nothing do Air Supply.
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Ao final dessa descrição surgem questões que, inevitavelmente, nos chamam atenção:
uma delas é a marcante incompletude no que diz respeito aos créditos das músicas.
Informações como autoria, ano de lançamento e até mesmo aquele que seria o performer
original ou mais conhecido da canção seriam dadas em links nas páginas do YouTube
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O autor se refere a um brega forjado no final dos anos 1960, altamente consumido
na década seguinte através do rádio e da venda de discos. Notamos, porém, similaridades
ao tematizarmos sua vertente amazônica: o brega paraense parece ser refém de algo
semelhante embora também seja muito popular do ponto de vista numérico de consumo
seja em festas, seja em shows, seja ainda em vizualizações/escutas na internet ou mesmo
na venda de discos -- lembrando que a Banda Calypso é parte desse universo tendo vendido,
ao longo de 16 anos, mais de 15 milhões entre discos e DVDs (BANDA CALYPSO, 2015).
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É talvez por isso que o Sampleados procure resgatar esses artistas e essas canções que
são parte de um fenômeno que tem grande força cultural e identitária: o brega no Pará
é algo que ganha traços de uma tradição viva inscrita nas mais variadas instâncias de
sociabilidade (COSTA, 2003).
No ano 2000, tomamos contato com uma série documental intitulada Música do
Brasil através da MTV. Tratava-se de um projeto de grandes proporções que, além dos 15
episódios televisivos de meia hora dirigidos por Belisário Franca e produzidos por Hermano
Vianna, contou com um livro de fotografias (VIANNA; BALDAN, 2000) e com 4 discos
produzidos por Beto Villares e novamente por Hermano Vianna. Um dos episódios da
série, dedicado às formas de utilização da guitarra elétrica em variadas partes do Brasil,
temos um trecho de mais de cinco minutos que faz ponte entre a jovem guarda e o brega
paraense dos anos 1990. Ali havia depoimentos de músicos que seriam importantes agentes
daquela cena, dentre eles Chimbinha, Kim Marques e Wanderley Andrade. Na entrevista,
temos algumas falas curiosas:
Chimbinha: Nós pegamos a jovem guarda, né, e colocamos no ritmo nosso aqui
do brega... Com ajuda aqui do maestro Edi Silva [...]. Pegamos um pouco do funk,
pegamos um pouco do reggae, aí eu coloquei a guitarra no ritmo do... do calipso.
Kim Marques: Eu acredito que... é... tá no sangue. As pessoas que moram em
Belém do Pará, do mesmo jeito que nascem gostando do carimbó, nascem
gostando do brega.
Chimbinha: Acho que não dá mais pra chamar de brega. Tem nada de brega aí [...]
(CHIMBINHA, KIM MARQUES E WANDERLEY ANDRADE, 2013, grifos nossos).
Ao fim dos depoimentos, entrecortados por imagens dos músicos tocando enquanto
casais dançam a dois em uma embarcação em Belém, aparece um close do rosto de
Gilberto Gil que complementa: “Chimbinha, com 23 anos, já colocou sua guitarra em
mais de 400 discos paraenses. Um desses discos lançou Wanderley Andrade, o ídolo louro
do brega.”. No livro Música do Brasil (2000), temos o seguinte texto de Vianna:
Quando Roberto Carlos colocou em segundo plano as guitarras elétricas e se
transformou em cantor romântico acompanhado de orquestras, a fórmula inventada pela
jovem guarda se descentralizou, primeiro passando pelo Goiás de Amado Batista, depois
pelo Pernambuco de Reginaldo Rossi, até chegar ao Pará do ex-governador Carlos Santos,
também cantor brega, autor de dezenas de discos.
Hoje Belém é a capital do novo brega. Centenas de CDs são lançados anualmente,
em princípio para um consumo regional, mas que começa a se alastrar para
o Nordeste. Os músicos locais já nem chamam o que fazem de brega, dizem que é
“calipso”, música mais “sofisticada” (VIANNA; BALDAN, 2000, s/p, grifos nossos).
Esses dois excertos apontam duas questões que nos interessam a partir de nossa
leitura do Sampleados. Uma delas reside nos testemunhos que colocam o brega como
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um importante signo cultural do Estado do Pará e a série parece endossar tal consideração.
A outra se refere à tentativa de demonstrar que esse fenômeno musical encontra raízes
na Jovem Guarda. Nesse caso parece haver discordância, pois a roupagem eletrônica e
pop empregada nas canções nos diz que o brega, pelo menos em tempos atuais, busca
referir-se a outras tradições. Instaura-se um campo de disputas nessas diferentes narrativas.
Paul Ricoeur, em sua discussão em torno da noção de tradição no capítulo Por uma
hermenêutica da consciência histórica (2010), defende que é tarefa do historiador tomar
o passado como obra inacabada, aberta e suscetível de desconstruções. Nesse sentido,
o autor tenta demonstrar que a tradição não deve ser entendida como um depósito
de relíquias inalteráveis ou mesmo como uma prisão ideológica; “[...] é preciso lutar
contra a tendência de só considerar o passado sob o ângulo do acabado, do imutável,
do findo.” (RICOEUR, 2010, p. 368). A tradição -- no singular -- seria como um mediador
institucionalizado que busca cristalizar os sentidos do passado sob o signo do verdadeiro.
“Ela não é somente um intervalo de separação, mas um processo de mediação, balizado [...]
pela cadeia de interpretações e reinterpretações das heranças do passado.” (ibidem, 2010,
p. 375). Seriam, segundo o autor, o conjunto de coisas já ditas, ouvidas e recebidas a partir
de cadeias legitimadas de interpretação e reinterpretação. Ricoeur convoca a questão da
legitimidade para tratar do termo como uma instância que “designa a pretensão à verdade
(o ter-por-verdadeiro) oferecida à argumentação no espaço da discussão” (RICOEUR,
2010, p. 387, grifos originais). A tradição, portanto, é como um lugar de credibilidade no
campo da mediação do passado.
Um possível -- e necessário -- contraponto a esse caráter autoritário residiria, então, na
noção de tradicionalidade que aponta para um potencial mais dinâmico dessas mediações:
Ela significa que a distância temporal que nos separa do passado não é um
intervalo morto, mas uma transmissão geradora de sentido. Antes de ser um
depósito inerte, a tradição é a operação que só pode ser entendida dialeticamente
na troca entre o passado interpretado e o presente interpretante (RICOEUR, 2010,
p. 377 –, grifos originais).
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as canções mais “clássicas” resgatadas pela série referem-se a uma textualidade sonora análoga
à do mais recente tecnobrega, que é representado por canções como Na balada pop, Você
vacilou, Tic tic tac e Xirley. Algo semelhante se dá com a presença de músicos como Keila Gentil,
Viviane Batidão e Tony Brasil, um dos precursores do tecnobrega (LEMOS; CASTRO, 2008).
[...] música popular hoje é, antes de tudo, a expressão dessa verdade musical,
na medida em que revela no caso do Brasil [...] as várias faces do povo que
a produz e consome -- o que contraria a hipótese inicial e indica que o Brasil
também possui outras imagens além dessa face única que nos acostumamos
a aceitar como normal (BURNETT, 2015, p. 185, grifos do autor).
5 Para além disso, lembramos de gestos pontuais como as versões de Caetano Veloso para canções de compositores
desse universo desde os anos 1970 tais como Odair José, Peninha e Wando. Vale a pena lembrar também
do mais recente trabalho de Fafá de Belém, Do tamanho certo para o meu sorriso (2015): a intérprete convoca
os músicos belenenses Manoel Cordeiro e Felipe Cordeiro para a produção imprimindo uma textura sonora bem
próxima ao tecnobrega para canções como Ao pôr do sol que também é parte do repertório do Sampleados.
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Podemos pensar que o Sampleados, nesse sentido, nos apresenta uma face minoritária,
periférica de nossa música popular: o brega paraense surge aqui como um fenômeno
que busca, através de gestos autorreferencial, afirmar-se como uma importante expressão
cultural. Essa operação posta em prática indiretamente pela série não apenas evidencia
uma espécie de renúncia a passados “mais tradicionais” de nossa música popular, como
demonstra que: a) a história da música popular feita no Brasil é um terreno de disputas
muito complexo; b) mesmo diante da falta de narrativas, arquivos e objetos reconhecidos,
catalogados e monumentalizados, o Sampleados, ao operar tal escrita historiográfica,
busca estabilizar uma memória musical coletiva explicitando um projeto de conservação
para o futuro do que é, em parte, o brega paraense.
Referências
Galaxia (São Paulo, online), ISSN 1982-2553, n. 35, mai-ago., 2017, p. 80-92. http://dx.doi.org/10.1590/1982-2554129873 91
Do brega paraense ao tecnobrega: história e tradição na websérie Sampleados
LEMOS, R.; CASTRO, O. Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música. Rio de Janeiro:
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92 Galaxia (São Paulo, online), ISSN 1982-2553, n. 35, mai-ago., 2017, p. 80-92. http://dx.doi.org/10.1590/1982-2554129873