Artigo Pedro Aragao-457-464
Artigo Pedro Aragao-457-464
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Resumo: O presente artigo tem como objetivo investigar mudanças musicais e apropria-
ções entre a polca e o samba nas décadas de 1930 a 1950. A partir da ideia de que gêneros
musicais são categorias discursivas que envolvem não apenas aspectos sonoros, mas tam-
bém discursos sobre sons (envolvendo conceitos mais amplos como nacionalismo, gestua-
lidades, relações sociais, etc.), discuto no texto as mudanças na percepção e na apropriação
do repertório de obras identificadas como ―polca‖ no inìcio do século XX que passam, a
partir da década de 1930, a serem regravadas por solistas de choro com modificações rít-
micas e melódicas que as aproximam do universo dos padrões rítmicos do samba. Este
processo envolve mudança musical e, paradoxalmente, discursos de continuidade e legiti-
mação entre diferentes práticas musicais.
Palavras Chave: Polca, Samba, Mudança Musical
Abstract: The aim of this article is to discuss musical change and appropriations between
the ―polka‖ and ―samba‖ from the 1930s to the 1950s. Based on the idea that genres are
discursive categories involving not only aspects of sound but also discourses about sound
(involving broader concepts such as nationalism, gestures, social relations, etc.), I discuss
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changes in the perception and appropriation of the repertoire of pieces identified as "polka"
at the beginning of the 20th century which, starting the 1930s, began to be rerecorded by
choro musicians with rhythmic and melodic modifications which made them closer to
samba‘s rhythmic patterns. This process involves musical change and, paradoxically, dis-
courses about continuity and legitimacy among different musical practices.
Keywords: Polka, Samba, Musical Change
O presente artigo tem como objetivo investigar mudanças musicais e apropriações entre a
polca e o samba nas décadas de 1930 a 1950 e é parte integrante de uma pesquisa por mim
conduzida no Instituto Villa Lobos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO) intitulada ―Os primeiros sons do choro: análise de fonogramas de gravações rea-
lizadas na Casa Edison entre as décadas de 1900 a 1920‖. A pesquisa é um desenvolvimen-
to de temas surgidos a partir de minha tese de doutoramento e tem como objetivo geral a
discussão sobre ―gênero musical‖ e relações sociais – abrangendo temas como ―raça‖, prá-
ticas sonoras, aspectos comerciais, entre outros – nas gravações do início do século.
Dentre todas as classificações de gênero determinadas pelas próprias gravadoras nos selos
dos discos da época, a denominação ―polca‖ é uma das mais populares no perìodo que vai
de 1900 a 1920. Um dos primeiros gêneros transnacionais do século XIX, a polca teria i-
mensa popularidade no Rio de Janeiro a partir da década de 1840, sendo incorporado ao
universo do choro pela ação de instrumentistas populares como Callado, Sátiro Bilhar, A-
nacleto de Medeiros, entre outros. Esta popularidade está refletida na mais importante pu-
blicação sobre o choro do período da belle époque: o livro O Choro – reminiscências dos
chorões antigos publicado em 1936 por Alexandre Gonçalves Pinto, violonista e carteiro.
Como afirmei em trabalho anterior (Aragão, 2011), Gonçalves Pinto salienta, ao longo de
sua narrativa, a diversidade de práticas sonoras e sociais que se abrigavam sob a denomi-
nação ―polca‖. Enquanto prática sonora havia polcas ―buliçosas, convidativas aos repuxos
do maxixe‖, polcas ―chorosas‖, ―macias‖, ―cadenciadas‖, etc. (Pinto, 1978, p. 116). Essa
percepção é corroborada pelo depoimento de Pixinguinha ao Museu da Imagem e do Som
na década de 1970: ―Naquele tempo, tudo era polca, qualquer que fosse o andamento. Ti-
nha polca lenta, polca ligeira, etc.‖ 1 (Pixinguinha, p. 37).
Para além da diversidade de andamentos e caráter sonoro, a polca era também um gênero
que tinha funções sociais bem delineadas: ela estava indubitavelmente ligada à dança e à
aproximação entre casais. Como afirma Pinto: ―Quantas vezes dois entes que se querem,
mas que se acham separados, aproveitam a cadência de uma polca para os segredinhos da
pacificação‖ (Pinto, 1978, p. 114). Mais do que isso, o carteiro enxergava na polca a ―ver-
dadeira‖ música nacional, conforme se depreende desse trecho:
―A polca é como o samba – uma tradição brasileira. Só nós, o que Deus permi-
tiu que nascessem debaixo da constelação do Cruzeiro do Sul, a sabemos dan-
çar, a cultivamos com carinho e amor. A polca é a única dança que encerra os
nossos costumes, a única que tem brasilidade. (...) Nós os brasileiros havemos
de aguentar a polca, havemos de mantê-la através dos séculos, como tradição
dos nossos costumes, como recordação dos nossos antepassados e como herança
às gerações vindouras‖ (op. cit., p. 115)
Como argumentei em trabalho anterior, a fala do carteiro pode ser encarada como uma es- 456
pécie de manifesto: em uma década (1930) onde o samba se consolida como ―música na-
cional‖ 2, Gonçalves Pinto será o porta voz de centenas de instrumentistas populares (àque-
la altura – 1936 – já velhos e aposentados como o carteiro) para quem a polca, e não o
samba, deveria ser considerada ―a‖ música nacional (Aragão, 2011, p. 298).
Esse discurso verdadeiramente panfletário (―a polca é a única dança que tem brasilidade‖,
―nós havemos de aguentar a polca, havemos de mantê-la através dos século‖, etc.) nos
mostra que a polca – tal como cultivada em meados do século XIX até as primeiras déca-
das do século XX – já estava entrando em declínio: para nos utilizarmos da definição de
Pierre Nora, ela já estava se transformando em ―lugar de memória‖:
1
Essa diversidade de caráter musical que a polca assume no Brasil é também mencionada por Sandroni
(2001, p. 71-74) que analisou diversas polcas para piano da coleção Biblioteca Nacional. Minha própria
pesquisa em acervos manuscritos de choro da belle époque mostrou que, entre centenas de exemplares de
polcas presentes aos álbuns de partituras dos antigos chorões, encontram-se diversas variações de termos
ligados à polca: ―polca-brilhante‖, ―polca macia‖, ―polca-maxixe‖, ―polca-schottisch‖, etc. (Aragão, 2011, p.
156)
2
Significativamente, surgem em 1933 – três anos, portanto, antes da publicação de O Choro por Gonçalves
Pinto – dois livros seminais dedicados ao samba: Na roda de Samba de Francisco Vagalume e Samba, de
Orestes Barbosa.
Ou seja, somente a percepção de que a polca estava sendo relegada ao esquecimento é que
poderia motivar o discurso inflamado do carteiro em prol da mesma. Essa queda de popu-
laridade da polca estava sem dúvida alguma ligada ao crescimento da popularidade do
samba – não é a toa que Gonçalves Pinto afirmará que ―a polca é como o samba: uma tra-
dição brasileira‖. Equiparar a polca ao samba equivalia de certa forma a legitimá-la como
―música nacional‖, tanto quanto o samba.
Ora, as mudanças que propiciaram o aparecimento deste ―novo samba‖ já foram brilhan-
temente estudadas por Sandroni (2001), que identificou um novo padrão rítmico de acom-
panhamento marcado pela contrametricidade como a ―marca‖ do samba que nasceria no
Estácio de Sá em finais da década de 1920. Como eu mesmo assinalei em trabalho anterior,
o choro também foi influenciado, de forma paralela e complementar ao samba, por esta fi-
guração rítmica marcada pela contrametricidade apontada por Sandroni como símbolo do
―novo samba‖ do Estácio. Figuras como Pixinguinha e Eduardo Souto – ambos com liga-
ções históricas com o choro – seriam alguns dos responsáveis pelo estabelecimento dos
primeiros arranjos do ―novo samba‖ que preservaram suas caracterìsticas contramétricas
em detrimento da sincopação característica do maxixe. Da mesma forma, Benedito Lacer-
da e seu regional (originalmente denominado ―Gente do Morro‖) formariam o mais repre-
sentativo conjunto de acompanhamento de samba desde o final da década de 1920 até a 457
década de 1970 – quando o conjunto, já denominado ―Regional do Canhoto‖ e reunindo
instrumentistas como Dino, Meira e o próprio Canhoto, teria ainda fundamental atuação
em discos como os de Cartola lançados pela gravadora Marcus Pereira, por exemplo (Ara-
gão, 2011, p. 35).
Esta percepção é dada por depoimentos de instrumentistas de choro que ainda conviveram
com antigos chorões remanescentes da época de Gonçalves Pinto. O bandolinista Déo Ri-
an, por exemplo, um dos mais importantes intérpretes do choro da atualidade, relata que
conviveu em sua juventude com chorões octogenários e nonagenários que se reuniam se-
manalmente em um encontro denominado ―Retiro da Velha Guarda‖ (alguns dos quais des-
critos por Gonçalves Pinto em seu livro, como Napoleão de Oliveira e Honório Cavaqui-
nho). Como característica principal destes instrumentistas, Déo relata o fato de que eles e-
ram incapazes de acompanhar ―choros-sambados‖ de Jacob do Bandolim e Benedito La-
cerda:
O ―jeito dos velhos acompanharem‖, era, portanto, baseado nas figuras rìtmicas caracterìs-
ticas da polca. A partir deste tema – de certa forma já abordado em meu trabalho de douto-
ramento – o presente artigo pretende desenvolver a ideia de que, ao contrário do que apa-
rentemente teria ocorrido no ambiente do samba – onde a bibliografia tradicional aponta
para uma espécie de ruptura entre o samba-antigo (ou o samba amaxixado), representado
por compositores como Sinhô, Donga e outros, e o ―samba-novo‖, representado pelos
compositores do Estácio3 – esta percepção de descontinuidade entre as ―velhas‖ e ―novas‖
gerações parece ter sido atenuada no ambiente do choro. Isto se deu pelo fato de que as
polcas tìpicas dos ―velhos chorões‖ foram, ao longo das décadas de 1930 a 1950, regrava-
das e de certa forma ―reinventadas‖ pelos novos intérpretes, que passaram a executá-las
modificando aspectos rítmicos das melodias originais para permitir que as mesmas pudes-
sem ser acompanhadas através de figurações rítmico-harmônicas (as ―levadas‖ no jargão
dos instrumentistas de choro da atualidade) típicas dos novos padrões contramétricos do
samba. É este o ponto de nosso próximo tópico.
Neste tópico procuraremos mostrar, através da análise comparativa de fonogramas das dé-
cadas de 1900 a 1920 e das décadas de 1930 a 1950, de que forma polcas de grande popu- 458
laridade no inìcio do século como ―Flausina‖ de Pedro Galdino (gravada pelo próprio autor
em disco Favorite Record n. 1-454.037, 1911), ―Saudações‖ de Otávio Dias Moreno (gra-
vado por Candinho Silva em disco Odeon n.121104 em 1915), ―Isto não é vida‖ de Felis-
berto Marques, foram, na segunda metade do século XX regravadas por intérpretes como
Jacob do Bandolim, Altamiro Carrilho e o próprio Pixinguinha e de que forma essas regra-
vações alteraram os antigos padrões da polca e as ―conformaram‖ aos ―novos‖ padrões do
samba.
A comparação entre as duas gravações já nos permite de início verificar uma mudança no
3
Veja-se por exemplo Didier (1984, p.3) e Cabral (1996, p. 37).
4
Todas as gravações analisadas nesta seção podem ser ouvidas em formato streaming no site do Instituto
Moreira Salles: www.ims.com.br
padrão de acompanhamento: enquanto a polca tocada pelo grupo Choro Carioca mantém o
padrão característico calcado na figura de contratempo típica da polca europeia (fig. 1), a
gravação da década de 1940 já traz como figura de acompanhamento – conforme se nota
pelas ―levadas‖ do cavaquinho, violões e pandeiro na gravação - o que seria consagrado
como ―padrão sambado‖ caracterìstico do choro (fig. 2). Note-se que não há alteração sig-
nificativa de melodia, mas apenas de inflexões rítmicas do acompanhamento.
―Figura 1‖
―Figura2‖
Uma segunda polca onde é possível notar alterações ainda mais visíveis na comparação en-
tre gravações é a polca ―Saudações‖ do trombonista Otávio Dias Moreno. Assim como Fe-
lisberto Marques, nos restaram poucas informações biográficas sobre este autor, a não ser a
de que era músico da orquestra do Rancho Flor do Abacate. A primeira gravação desta pol-
ca foi realizada pelo ―Grupo Carioca‖ (disco Odeon 121104 de 1915), tendo como solista o
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trombonista Cândido Pereira da Silva, o Candinho Silva (1879-1960). Um dos mais im-
portantes compositores de choro da primeira metade do século, Candinho Silva foi também
um dos mais importantes copistas do gênero, tendo deixado centenas de partituras manus-
critas de suas próprias composições e de seus contemporâneos. Seu acervo foi incorporado
à coleção de Jacob do Bandolim, de quem era amigo pessoal, hoje incorporada ao Museu
da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (Aragão, 2011, p. 229-230). É justamente Jacob do
Bandolim o responsável pela segunda gravação comercial da polca ―Saudações‖, já em
1950 (gravação RCA 800702).
A comparação entre estas duas gravações revela diferenças ainda mais marcantes do que as
da polca ―Isto não é vida‖. De inìcio cumpre notar que o padrão de acompanhamento da
gravação mais antiga já é diferente do padrão de contratempo da polca tradicional: aqui se
percebe claramente a ―levada‖ calcada na ―sìncope caracterìstica‖ de que nos fala Mário de
Andrade (fig. 3), - ou, para usarmos uma expressão do ―nativo‖ Alexandre Gonçalves Pin-
to, esta seria uma polca ―convidativa aos repuxos do maxixe‖. Esta caracterìstica se refere
também à melodia: ao contrário de ―Isto não é vida‖, a polca ―Saudações‖ já traz na melo-
dia inicial da primeira e segunda partes a sincopação típica do maxixe (figs. 4 e 5).
―Figura 3‖
―Figura 4‖
―Figura 5‖
A gravação de Jacob já traz mudanças muito mais marcantes em relação à gravação origi-
nal, a começar por mudanças no padrão rítmico da melodia. Enquanto no registro de Can-
dinho a melodia é toda calcada na síncope do maxixe, na gravação de Jacob esta toma ou-
tro caráter (fig. 6 e 7).
―Figura 6‖
―Figura 7‖
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Ora, a mudança de figuração rítmica da melodia na gravação de Jacob não parece ser for-
tuita: ela indica a conformação da música ao novo ―padrão sambado‖ tìpico do novo choro,
por oposição ao ―jeito dos velhos acompanharem‖, conforme depoimento do mesmo Jacob
a Déo Rian, como visto anteriormente. Ao transformar sistematicamente a figuração rítmi-
ca dos segundos tempos dos compassos em uma série de quatro semicolcheias (com acento
na última), ao invés da ―sìncope caracterìstica‖ do original, Jacob desloca o acento rìtmico
para a última semicolcheia do compasso, permitindo assim que o acompanhamento possa
realizar o padrão rítmico do samba. Desta forma, o padrão contramétrico é estendido para
além da fronteira do compasso (fig. 8).
―Figura 8‖
Curiosamente, esta mudança de padrão de melodia das antigas polcas para o ―novo padrão‖
também é perceptível na análise da polca Flausina, de autoria de Pedro Galdino. Composi-
tor e flautista que alcançou certa popularidade no início do século – deixou mais de dez
discos gravados pela gravadora Favorite Record – Galdino é um nome que certamente ain-
da precisa ser melhor dimensionado entre os instrumentistas populares de choro do início
do século. As parcas informações que temos a seu respeito, em livros como os de Vascon-
celos (1977) e Pinto (1978) o identificam como operário negro da Fábrica de Tecidos de
Vila Isabel, onde participava como instrumentista da banda da corporação. Seu conjunto –
com o qual realizou as gravações da Favorite Record - era intitulado ―Pessoal do Bloco‖ e
era muito provavelmente formado por operários como ele. Várias de suas músicas recebe-
ram posteriormente letra de Catulo da Paixão Cearense e alcançaram grande popularidade,
como o schottisch ―Meu Casamento‖ (ou ―Olhos de Veludo‖, na versão com letra), rece-
bendo gravações posteriores de Pixinguinha e sua Orquestra do Pessoal da Velha Guarda.
A polca Flausina é outra destas músicas que aparentemente ficaram na tradição oral do
choro. A comparação entre a gravação original (de aproximadamente 1911) e uma grava-
ção historicamente recente de Altamiro Carrilho (realizada na coleção Princípios do Choro
lançada pela Acari Records em 2001), nos mostra um processo de mudança de padrões
rìtmicos muito parecida com a observada na polca ―Saudações‖.
As figuras 9 e 10 mostram o padrão rítmico da melodia dos dois primeiros compassos nas
gravações de Galdino e Altamiro, respectivamente. Mais uma vez, observa-se que a figura-
ção do segundo tempo dos compassos foi modificada: a ―sìncope caracterìstica‖ (semicol-
cheia, colcheia, semicolcheia) se transforma em quatro semicolcheias (com acento na últi-
ma). No que se refere aos padrões de acompanhamento, nota-se que a gravação original é
calcada na figuração sincopada do maxixe, enquanto a gravação mais atual é toda baseada
no padrão ―sambado‖ representado pela figura 8, perfeitamente reconhecìvel na figuração
rítmica do cavaquinho e do pandeiro, principalmente.
461
―Figura9‖
―Figura10‖
Conclusões
Obviamente não há espaço, no escopo deste artigo, para uma análise exaustiva de grava-
ções que permita estabelecer conclusões mais aprofundadas sobre as modificações da polca
ao longo das gravações realizadas na segunda metade do século XX. Entretanto, mesmo
admitindo que o esboço de análise acima apresentado traz alguns perigos a respeito dos
quais este autor está plenamente consciente – como, por exemplo, o perigo de reificação de
termos como ―padrão rìtmico do samba‖, ou ―padrão do maxixe‖, como se cada um destes
padrões pudesse ser resumido a um único pattern rítmico; ou ainda a utilização de ―catego-
rias nativas‖, resultado de minha própria dupla condição de pesquisador e músico (e por-
tanto, em certa medida, insider) de choro, etc. – creio que as análises propostas podem ser-
vir como ponto de partida para futuros trabalhos de maior fôlego.
Para além da análise musical, o que se salienta é a trama de discursos que estavam envol-
vidas nas categorias nativas da época. Ao defender em tom quase panfletário a legitimidade
da polca como ―tradição‖ brasileira, Alexandre Gonçalves Pinto estava, em última análise,
tentando estabelecer uma linha de continuidade das ―velhas‖ práticas com o ―novo‖ samba.
É exatamente neste sentido que ele chega a afirmar em meio a seu livro:
A polka cadenciada e chorosa ao som de uma flauta, fosse o flautista o Viriato,
o Callado, o Rangel ou seja o Pixinguinha, o João de Deus ou Benedicto Lacer-
da; um violão dedilhado outr'ora, por Juca Valle, Quincas Laranjeira, Bilhar,
Néco ou Manduca de Catumby e hoje por Felizardo Conceição, José Rabello,
Coelho Grey, Donga, João Thomaz, etc.; um cavaquinho palhetado hontem por
Mario, Chico Borges, Lulu' Santos, Antonico Piteira e hoje pelo mestre dos
mestres Galdino Barreto, Nelson [Alves], João Martins – foi, é e continuará a
ser a alma da dansa brasileira (Pinto, 1978, p.116).
O carteiro tem razão em estabelecer estas pontes de ligação entre os antigos e novos ins-
trumentistas, uma vez que a memória da polca não foi abruptamente esquecida pelas novas
gerações: entretanto, não há dúvida no fato de que ela deixa de ser a principal forma de a-
companhamento do choro para se tornar coadjuvante do novo padrão calcado nas figuras
rítmicas do samba surgidos a partir de finais da década de 1920. Mais do que isso, pode-se
dizer que as velhas polcas seriam modificadas pelos novos intérpretes do choro – como Pi-
xinguinha, Jacob do Bandolim, Altamiro Carrilho, entre outros – através de alterações em
seus padrões rítmicos e melódicos originais, conforme demonstrado. Em última análise,
tais intérpretes acabaram por referendar – ainda que por linhas tortas – a afirmação de
Gonçalves Pinto de que ―a polca é como o samba – uma tradição brasileira‖, através de um
processo de reinvenção, onde a polca se aproximava dos novos padrões do samba e eram 462
reintegradas desta forma ao mercado de gravações.
REFERÊNCIAS
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