A Poesia de Noémia de Sousa: Uma Descrição Da Mulher Moçambicana em "Sangue Negro"

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Njinga & Sepé: Revista Internacional de Culturas, Línguas Africanas e Brasileiras

São Francisco do Conde (BA) | Vol.2, nº 1 | p.371-388 | jan./jun. 2022 * ISSN: 2764-1244

A poesia de Noémia de Sousa: uma descrição da mulher moçambicana


em “Sangue negro”

Francisca Jocineide de Alencar Silva 


https://orcid.org/0000-0003-0389-0670
Josyane Malta Nascimento
https://orcid.org/0000-0002-7749-5393
Resumo: O presente artigo se propõe a analisar a representação da figura feminina em três
poemas da obra “Sangue negro”, de autoria da moçambicana Noémia de Sousa, publicada pela
primeira vez em 2001, cujos versos patenteiam o retrato de um sistema colonial português
marcado pelo preconceito racial e pela violência à mulher moçambicana. O referencial crítico que
fundamenta as discussões levantadas nesta pesquisa advém de estudos literários com enfoque
na literatura de matriz africana de Língua Portuguesa, tais como Padilha (2004), Fonseca e
Moreira (2007), Noa (2008) e Chiziane (2013), bem como no levantamento sistemático de
trabalhos acadêmicos sobre a temática em foco, como Freitas (2010), Carvalho e Ribeiro (2017),
Bonini (2018) e Oliveira e Coelho (2019), tendo como objetivo principal identificar a situação da
mulher negra no período colonial em Moçambique. Para tanto, utilizou-se o modelo descritivo e a
análise qualitativa de dados, dada a natureza bibliográfica deste estudo. A análise de “Sangue
negro” deixa evidente um sistema de relações sociais vigentes na sociedade moçambicana
colonial que marginaliza a mulher negra, configurando-se enquanto discurso narrativo que permite
ao leitor vislumbrar o sofrimento, a dor e a angústia de um eu lírico feminino silenciado pelos
horrores da colonização na África. Assim, os versos poéticos de “Sangue negro” apresentam uma
poesia de combate e de resistência feminina ao domínio colonial português.

Palavras-chave: Mulher moçambicana; Noémia de Sousa; “Sangue negro”.

The poetry of Noémia de Sousa: a description of the Mozambican


woman in “Sangue negro”
Abstract: This article proposes an analysis of the representation of the female figure in three
poems from the work “Sangue negro”, written by the Mozambican Noémia de Sousa, published for
the first time in 2001, in which the verses show the portrait of a Portuguese colonial system marked
by racial prejudice and violence against Mozambican woman. The critical framework that underlies
the raised discussions in this research comes from literary studies that focus on African literature in
Portuguese, such as Padilha (2004), Fonseca and Moreira (2007), Noa (2008) and Chiziane
(2013), as well as it comes from the systematic survey of academic studies about the topic in
focus, such as Freitas (2010), Carvalho and Ribeiro (2017), Bonini (2018) and Oliveira and Coelho
(2019). So, the main objective is to identify the situation of black woman in the colonial period in
Mozambique. For that, a descriptive model and a qualitative data analysis were used, because of
the bibliographical nature of this study. The analysis of “Sangue negro” makes evident a system of
social relations in force in colonial Mozambican society that marginalizes black woman, configuring
itself as a narrative discourse that allows the reader to glimpse the suffering, pain and anguish of a
female poetic persona silenced by the horrors of colonization in Africa. Thus, “Sangue negro”'s
poetic verses present a poetry of combat and female resistance to Portuguese colonial domination.


Mestra em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Especialista em Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB).

Professora Adjunta de Literaturas em Língua Portuguesa na Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), Campus dos Malês (BA). Doutora em Letras - Estudos Literários pelo
Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Juíz de Fora.
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Keywords: Mozambican woman; Noémia de Sousa; “Sangue negro”.

Awọn ewi ti Noémia de Sousa: apejuwe ti obinrin Mozambique ni


"Sangue negro"
Áljẹbrà: Nkan yii ni ifọkansi lati ṣe itupalẹ awọn aṣoju obinrin ni awọn ewi mẹta lati inu iṣẹ “Sangue
negro”, nipasẹ Noémia de Sousa Mozambique, ti a tẹjade fun igba akọkọ ni ọdun 2001, ti awọn
ẹsẹ rẹ ṣe afihan aworan ti eto amunisin Portuguese ti samisi nipasẹ nipa ikorira ẹda ati iwa-ipa si
awọn obinrin Mozambique. Ilana to ṣe pataki ti o ṣe agbekalẹ awọn ijiroro ti a gbe dide ninu iwadii
yii wa lati awọn ikẹkọ iwe-kikọ ti o dojukọ lori awọn iwe orisun orisun Ilu Pọtugali, bii Padilha
(2004), Fonseca and Moreira (2007), Noa (2008) ati Chiziane (2013), bi daradara bi ninu iwadi eto
ti awọn iṣẹ ẹkọ lori koko-ọrọ ni idojukọ, gẹgẹbi Freitas (2010), Carvalho and Ribeiro (2017), Bonini
(2018) ati Oliveira and Coelho (2019), pẹlu idi pataki ti idamo ipo naa ti awọn obirin dudu ni akoko
amunisin ni Mozambique. Fun idi eyi, awoṣe ijuwe kan ati itupalẹ data agbara ni a lo, ti a fun ni iru
iwe-itumọ ti iwadii yii. Onínọmbà ti “Sangue negro” jẹ ki eto ti awọn ibatan awujọ ti o bori ni awujọ
Ilu Mozambique ti ileto ti o sọ obinrin dudu di alaimọ, tito ararẹ bi ọrọ asọye ti o fun laaye oluka lati
wo ijiya, irora ati irora ti ara ẹni lyrical obinrin ti o dakẹ nipasẹ awọn ẹru ti ileto ni Afirika. Nitorinaa,
awọn ẹsẹ ewi ti “Sangue negro” ṣe afihan ewi ti ija obinrin ati atako si ijọba amunisin Portuguese.

Awọn ọrọ-ọrọ: Obinrin Mozambique; Noémia de Sousa; “Sangue negro”.

Introdução
O surgimento das literaturas de língua portuguesa em África é o resultado de um
longo percurso que se iniciou com a chegada dos portugueses às terras africanas nos
anos finais do século XV e início do século XVI, durante as grandes navegações, e se
caracterizava por uma literatura assimilada às ideias dos cânones europeus, culminando,
na década de 1940, em um cenário literário de afirmação e de conscientização da
africanidade. Nesse percurso, foi possível assistir ao momento de formação da primeira
geração de escritores cuja produção literária estava alicerçada na afirmação identitária de
uma literatura nacionalista e consciente, notadamente moçambicana, distanciando-se dos
moldes europeus e que cantava a resistência do dominado em face do dominador.
Durante o período de colonização portuguesa em África, Moçambique vivenciou um
momento conturbado de sua história, marcado por intensos e violentos embates sociais e
políticos que assolaram o país durante quase quinhentos anos. Nas palavras de Fonseca
e Moreira (2007), a produção poética dos escritores africanos de expressão portuguesa
durante o panorama da colonização traz subjacente “o momento poético da luta, que se
configura num discurso de resistência e de reivindicação por mudanças” (FONSECA;
MOREIRA, 2007, p. 16-17), pautado por uma escrita poética que tem como
características precípuas a resistência ao colonialismo e a militância em favor da
independência moçambicana, ocorrida em 1975.

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A esse propósito, Francisco Noa (2008), ao se referir aos precursores da literatura


moçambicana, utiliza a expressão “pêndulo do assimilado” como reveladora de vozes e
ações oscilantes que se movem de um lado para o outro, para frente e para trás,
evidenciando uma produção literária marcada pela inconsistência da consciência de
identidade autônoma e vinculada indelevelmente aos cânones europeus.
É nesse contexto de efervescência política e de busca da identidade nacional
moçambicana que se situa “Sangue negro”, da poetisa Noémia de Sousa, obra composta
por 46 poemas cujos versos deixam antever o momento histórico do colonialismo, durante
o qual poetizar se tornou um instrumento de resistência às arbitrariedades do mecanismo
colonial que oprimia os moçambicanos.
Segundo Padilha (2004), é característica dos poemas de Noémia de Sousa uma
ideia de subjetivação que ultrapassa o indivíduo, o que torna possível ver a imagem do eu
lírico se transfigurando em coletivo, que traz à tona a memória coletiva dos
acontecimentos históricos por que passou a África durante o período colonial. Por seu
turno, o eu lírico se mostra como uma voz feminina, cujos versos traduzem as sequelas
deixadas pela escravidão durante o período colonial. São versos de desabafo, de
denúncia, de gemidos truncados, de sofrimento e de resistência ao colonialismo. O eu
lírico quer gritar ao mundo as agruras sofridas pela Mãe África, por isso usa seus versos
para alcançar o objetivo de ser ouvido. As feridas não são apenas suas, pois seu corpo
feminino transcende e caracteriza a metonimização de Moçambique e, por extensão, de
toda a África. Todo o corpo do eu lírico se reconhece como sendo a África, seu lugar
amado que sofre e luta para se tornar independente e livre do colonialismo europeu.
O conjunto poético de “Sangue negro” metaforiza mais uma vez um grito calado do
eu lírico que se identifica de corpo e alma com a terra africana, em que mulher e terra se
fundem para proclamar a revolta de um povo cansado de ser subjugado pelos desmandos
do colonialismo europeu. Por mais que o grito esteja congelado pela revolta, ainda vive o
projeto de um futuro grandioso e livre para a África por meio da união da coletividade em
busca da independência do poderio colonial.
O objetivo central de nosso estudo é analisar três poemas de “Sangue negro”, de
autoria de Noémia de Sousa (“Moças das docas”, “Apelo” e “A Mulher que ria à Vida e à
Morte”), e identificar a situação da mulher negra no período colonial em Moçambique. Os
objetivos específicos são os seguintes: a) Verificar de que forma a voz poética de
“Sangue negro” dialoga com a história de Moçambique; b) Indicar o modo como cada

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verso que compõe os poemas de “Sangue negro” analisados neste estudo simboliza as
vivências da mulher que sentia na própria pele a exploração colonial; c) Descrever o que
os versos de “Sangue negro” sugerem aos leitores da atualidade.
A hipótese de nossa pesquisa é que a obra “Sangue negro”, por meio de uma
linguagem poética que retrata a angústia e o sofrimento de um eu lírico feminino que
vivenciou os horrores da colonização, é o retrato de um sistema colonial português
marcado pelo preconceito racial e pela violência à mulher moçambicana. Este trabalho
visa aprofundar reflexões sobre o tema em análise e permitir outras perspectivas críticas
sobre as representações da mulher na obra de Noémia de Sousa. Sendo assim, justifica-
se a relevância de se investigar as hipóteses levantadas na pesquisa.
O referencial crítico utilizado nesta pesquisa ancora-se nos estudos literários com
enfoque na literatura de matriz africana de Língua Portuguesa, tais como Padilha (2004),
Fonseca e Moreira (2007), Noa (2008) e Chiziane (2013), bem como no levantamento
sistemático de trabalhos acadêmicos sobre a temática em foco, como Freitas (2010),
Carvalho e Ribeiro (2017), Bonini (2018) e Oliveira e Coelho (2019). Para a compreensão
do objeto de pesquisa, utilizou-se como metodologia a pesquisa bibliográfica, a partir da
seleção sistemática de trabalhos acadêmicos sobre a temática em estudo, e a abordagem
qualitativa de dados. O corpus da pesquisa é constituído de três poemas selecionados da
obra poética “Sangue negro”, de Noémia de Sousa, que descrevem e analisam a mulher
moçambicana.

1.O contexto histórico da produção de “Sangue negro”


No decorrer do período pré-independência em Moçambique, a literatura colonial
serviu de base para instaurar a visão eurocêntrica de inferioridade étnico-racial, cultural,
linguística e religiosa do negro africano. Por outro lado, no processo de construção de
uma nação livre e na busca por uma identidade nacional, a literatura escrita, a partir da
década de 1940, usando como arma a língua portuguesa, foi uma peça fundamental,
sendo responsável pelo questionamento à ordem colonial e pela tomada de uma
consciência nacionalista, além de conceder voz aos escritores negros que queriam
expressar seu descontentamento diante da hostilidade do branco colonizador português.
Esse foi o momento de despertar de uma literatura que favoreceu a
conscientização do africano sobre a sua própria condição de negro explorado pelo
colonizador. Assim, a elite de negros africanos empenhados em expressar em seus

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escritos um discurso em desfavor das injustiças sociais e contra o sistema escravocrata


que desumanizava os moçambicanos contou com o suporte da imprensa para a
divulgação de sua ideologia de libertação dos ditames impostos pelo jugo dos colonos
portugueses. Em 1909 foi publicado pelos irmãos José e João Albasini o primeiro jornal,
intitulado O Africano, que funcionou até o ano de 1918. Nesse mesmo ano, os irmãos
Albasini fundaram o jornal O Brado Africano (1918-1974), que, em 1932, devido a uma
suspensão de funcionamento, passou a se chamar O Clamor Africano. No ano seguinte,
em 1933, O Brado Africano voltou a funcionar, chegando suas atividades ao fim no ano de
1974.
É nesse panorama literário moçambicano que surgem os 46 poemas que compõem
a obra “Sangue negro”, escritos entre os anos de 1948 a 1951, de autoria da
moçambicana Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares (1926-2002), conhecida
como a “mãe dos poetas moçambicanos”, os quais mantêm uma estreita relação com o
contexto histórico e social vivenciado pelos moçambicanos durante o período em que
Portugal subjugou os negros africanos e os submeteu a toda sorte de crueldade,
passando a figurar, na visão do colonizador, como meros objetos desprovidos de valor e
de alma, aculturados e sem história, no intuito de justificar o racismo e a exploração a que
foram submetidos os povos africanos.
Mais do que palavras escritas em folhas brancas, “Sangue negro” debruça seu
olhar piedoso sobre o povo moçambicano vilipendiado e torturado pelo opressor europeu
e traduz em seus versos o grito dos negros que anseiam pela independência de seu país.
É uma poesia militante, contestatória e porta-voz dos marginalizados que têm seus
direitos usurpados pelo colonizador. A poesia de Noémia de Sousa faz parte de uma
geração de escritores que em Moçambique produziu textos que tinham como fio condutor
um “tom de revolta contra o colonialismo, de denúncia das arbitrariedades e injustiças
geradas pela dominação” (NOA, 2008, p. 39), além de sua poética resgatar as raízes
africanas e, especialmente, militar em prol da conquista da independência de
Moçambique, como ilustra o poema emblemático “Se me quiseres conhecer”:

Se me quiseres conhecer,
estuda com os olhos bem de ver
esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde
de mãos inspiradas
talhou e trabalhou
em terras distantes lá do Norte.

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Ah, essa sou eu:


órbitas vazias no desespero de possuir a vida,
boca rasgada em feridas de angústia,
mãos enormes, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura...
Torturada e magnífica,
altiva e mística,
África da cabeça aos pés,
– ah, essa sou eu:

Se quiseres compreender-me
vem debruçar-te sobre a minha alma de África,
nos gemidos dos negros no cais
nos batuques frenéticos dos muchopes
na rebeldia dos machanganas
na estranha melodia se evolando
duma canção nativa, noite dentro...

E nada mais me perguntes,


se é que me queres conhecer...
Que não sou mais que um búzio de carne,
onde a revolta de África congelou
seu grito inchado de esperança.
(SOUSA, 2016, p. 40-41)

Nesse poema de Noémia de Sousa, vê-se logo de início um convite direto do eu


lírico ao leitor para conhecê-lo, sendo para tanto usada a expressão condicional “Se me
quiseres...”, em que o eu poético não tenciona forçar o leitor a conhecê-lo, mas exige dele
um esforço, ou seja, estudar “com os olhos bem de ver”. Os versos seguintes deixam
entrever que o eu lírico não é qualquer pedaço de pau preto, uma vez que constitui uma
obra de arte dos macondes esculpida em madeira por mãos artesãs que reconhecem o
valor das coisas e as esculpem com perfeição, valorizando, dessa forma, o negro e a sua
cultura.
Nos versos do poema em análise, o eu lírico se manifesta como uma voz feminina,
traduzida pelo pronome demonstrativo essa no verso “Ah, essa sou eu”, e esculpe em
detalhes o seu retrato estético, ou seja, quem é e o que sente: “órbitas vazias no
desespero de possuir a vida,/ boca rasgada em feridas de angústia,/ mãos enormes,
espalmadas,/ erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,/ corpo tatuado de feridas
visíveis e invisíveis/ pelos chicotes da escravatura”. Tais versos deixam à mostra as
feridas de angústia incurável e a dor sob o peso da escravidão durante todo o período

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colonial, que deixaram o corpo do eu lírico repleto de chagas que corroem a alma, mas
que conserva “seu grito inchado de esperança” em ver Moçambique liberta das mãos do
colonizador.

2.A marginalização da mulher negra africana durante a colonização


Os anos de colonização foram duramente mais cruéis e excludentes para as
mulheres do que para os homens, haja vista a sociedade patriarcal que oprimia a mulher
africana pelo simples fato de pertencer ao sexo feminino e a considerava inferior ao
homem, impedindo-a de participar de forma plena e igualitária da vida política e social de
seu país. À mulher só restava cuidar do lar e dos filhos e satisfazer os desejos carnais de
seu marido, sendo-lhe negada qualquer possibilidade de vivificar sua voz que
permaneceu emudecida por longos anos de colonização. Símbolo de resistência, Noémia
de Sousa se rebelou contra esse sistema tirano de dominação que violentou a mulher
negra em suas nuances mais profundas: corpo, alma e mente. À luz da situação de
subordinação da mulher negra no período pré-independência, Padilha (2004) diz que:

Esse lugar de subordinação nem sempre está de acordo com as formas de


organização das sociedades africanas onde a mulher sempre exerceu um
papel muito representativo, sobretudo no que se refere à etnia banto. [...] A
colonização vai interferir, é óbvio, nesse quadro geral, no momento mesmo
em que impõe seus inquestionáveis modelos e jogos de hegemonia e
poder nas sociedades com as quais passa a interagir pela dominação,
buscando civilizá-las, para arrancá-las do seu estado de barbárie, aqui
tomando o sentido dicionarizado de civilização. (PADILHA, 2004, p. 255).

Nesse sentido, para sustentar essa ideia, Bonini (2018) explica que antes do
império colonialista fincar raízes em solo africano operava em boa parte da África um
sistema de organização sociopolítica matrilinear que estava ligado à ancestralidade, o
qual concedia à mulher maior poder de participação na organização da sociedade e que o
advento do colonialismo trouxe profundas mudanças nesse cenário favorável ao exercício
dos direitos da mulher. De acordo com a autora:

Antes do advento colonialista, vigorava, em parte significativa da África, o


sistema sociopolítico matrilinear, caracterizado pela ancestralidade a partir
da figura materna e pelo direito da mulher à herança e à propriedade,
mesmo sendo a gerência do patrimônio responsabilidade de seus irmãos.

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Sabia-se o que esperar de cada membro da comunidade. Os homens


eram encarregados de funções como a caça, a pesca e a guerra enquanto
às mulheres cabia a responsabilidade da criação dos filhos e realização
das tarefas domésticas. Aliado à capacidade gerativa e à maternidade, o
exercício do trabalho agrícola era também de responsabilidade feminina,
sendo economicamente significativo, representando o acréscimo da força
de trabalho e da riqueza do grupo. [...] A mulher tinha um poder decisivo
muito maior, uma maior participação efetiva na sociedade. Porém, a partir
da penetração europeia, diversos elementos da experiência colonial, como
o capitalismo, o racismo e o patriarcado, modificaram, de modos distintos,
os papeis dos homens e das mulheres no continente africano, colocando
as mulheres numa situação de subalternidade, invizibilizando-as
historicamente. (BONINI, 2018, p. 40).

Com sua sensibilidade de mulher negra que sofre e sente as dores do outro,
Noémia de Sousa se apodera da literatura escrita na língua do colonizador, a fim de
denunciar as mazelas decorrentes do colonialismo e levar o seu povo a conscientizar-se
sobre sua condição racial e resistir à dominação colonial. Seus versos são de uma
agudeza tamanha, que o leitor chega a sentir o sofrimento do povo africano, em especial
o da mulher, já que o corpo desta personifica a Mãe África que foi cruelmente violentada
pela colonização.
Em acréscimo, Paulina Chiziane, cujas obras fazem parte da literatura
moçambicana pós-colonial, escreveu um emocionante testemunho coletivizado sobre sua
vivência diante da opressão e do silenciamento a que historicamente a mulher é
subjugada. Como forma de desabafo e de denúncia, a primeira romancista moçambicana
começou a escrever “para quebrar o silêncio, para comunicar-me, para apelar à
solidariedade e encorajamento das outras mulheres ou homens que acreditam que se
pode construir um mundo melhor” (CHIZIANE, 2013, p. 201).

Foi neste ambiente que eu nasci, numa família de pai, mãe e oito filhos.
Pertenço a uma família pequena comparada com as restantes onde havia
duas ou mais esposas. [...] Acompanhava todos os passos da minha mãe.
No rio, enquanto me banhava, a minha mãe cantava e lavava roupas e
mágoas. As outras mulheres faziam o coro. Estas cantigas umas vezes
eram suspiros e outras murmúrios de angústia. Já em casa ouvia as
cantigas de pilar milho e as de pilar amendoim. Eram todas tristes. O que
consegui observar é que os homens ouviam-nas com total indiferença. Em
momento nenhum da minha vida me recordo de ter ouvido, da boca de um
rapaz ou de um homem, estas cantigas de mulher. Aos seis anos de idade
abandonei o campo com meus pais e fomos viver no subúrbio da cidade.
Entrei na escola católica. Apesar das grandes diferenças na educação da
casa e da escola, encontrei harmonia na matéria que dizia respeito ao
lugar da mulher na vida e no mundo. A educação tradicional ensina a
mulher a guardar a casa e a guardar-se para pertencer a um só homem. A

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escola também ensinava a obediência e a submissão e preparava as


raparigas para serem boas donas de casa, de acordo com o princípio
cristão. [...] Já adolescente, sonhei em tornar-me pintora. A família disse
que não. A escola disse que não. A sociedade também disse que não.
Porque não é bom para uma mulher. Porque pintura é arte e o artista é
marginal. Eu estava a ser educada para ser uma boa mãe e esposa.
Recalcaram o meu sonho e não o fizeram por mal, queriam apenas
proteger-me porque se preocupavam com o meu destino. Deixei de pintar
paisagens. Nas horas vagas, divertia-me tentando descrever as mesmas
paisagens, realizando de forma alternativa o sonho da pintura. Foi assim
que penetrei nos caminhos traçados por Deus e pelos homens.
(CHIZIANE, 2013, p. 201-202).

A escrita de Paulina Chiziane serve de referência para as mulheres de seu país,


Moçambique, e para todas aquelas do mundo inteiro, por conter em seus textos uma
mensagem de resistência e de luta perante o preconceito machista que ainda persiste no
mundo hodierno. Segundo a própria autora, a maior contribuição de sua escrita virá no dia
em que conseguir semear e ver brotar “a semente da coragem e da vontade de vencer
nos corações das mulheres que pertencem à geração do sofrimento” (CHIZIANE, 2013, p.
205). Ademais, a escrita de Chiziane consegue transportar para todas as mulheres a
mensagem de que mesmo diante das adversidades da vida é possível sonhar e realizar
os seus sonhos.
É por bem assinalar que a literatura é um brado de libertação, de denúncia, de
resistência e de conscientização do homem negro perante a sociedade excludente que o
cerca e tenta extirpar os seus direitos. Além disso, a literatura projeta um futuro na história
para além das palavras tatuadas na folha de papel, um futuro em que o povo negro possa
ter voz e vez e seja reconhecido como um ser humano igual a qualquer outro, tendo
respeitada sua identidade como ser negro.

3.As marcas da descrição da mulher moçambicana em “Sangue negro”


Noémia de Sousa traz em sua poética a descrição da mulher negra moçambicana
por meio da problematização de sua condição feminina, submetida à situação de
exploração resultante da dominação colonial. Nesta seção, analisamos os poemas
“Moças das docas”, “Apelo” e “A Mulher que ria à Vida e à Morte”, cujos versos
denunciam a subalternização e a coisificação da mulher negra no contexto da colonização
de Moçambique.

Moças das docas

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Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço.


Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trancadas,
nossos corpos submissos escancarados.
De mãos ávidas e vazias,
de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo,
de corações amarrados de repulsa,
descemos atraídas pelas luzes da cidade,
acenando convites aliciantes
como sinais luminosos na noite,

Viemos...
Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba,
do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
do doer de espádua todo o dia vergadas
sobre sedas que outros exibirão,
dos vestidos desbotados de chita,
da certeza terrível do dia de amanhã
retrato fiel do que passou,
sem uma pincelada verde forte
falando de esperança,

Viemos...
E para além de tudo,
por sobre Índico de desespero e revoltas,
fatalismos e repulsas,
trouxemos esperança.
Esperança de que a xituculumucumba já não virá
em noites infindáveis de pesadelo,
sugar com seus lábios de velha
nossos estômagos esfarrapados de fome,
E viemos.
Oh sim, viemos!
Sob o chicote da esperança,
nossos corpos capulanas quentes
embrulharam com carinho marítimos nómadas de outros portos,
saciaram generosamente fomes e sedes violentas...
Nossos corpos pão e água para toda a gente.

Viemos...
Ai mas nossa esperança
venda sobre nossos olhos ignorantes,
partiu desfeita no olhar enfeitiçado de mar
dos homens loiros e tatuados de portos distantes,
partiu no desprezo e no asco salivado
das mulheres de aro de oiro no dedo,
partiu na crueldade fria e tilintante das moedas de cobre
substituindo as de prata,
partiu na indiferença sombria da caderneta...

E agora, sem desespero nem esperança,

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Francisca Jocineide de Alencar Silva, Josyane, Malta Nascimento, A poesia de Noémia de Sousa: uma...

seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade...

E regressaremos,
Sombrias, corpos floridos de feridas incuráveis,
rangendo dentes apodrecidos de tabaco e álcool,
voltaremos aos telhados de zinco pingando cacimba,
ao sem sabor do caril de amendoim
e ao doer do corpo todo, mais cruel, mais insuportável...

Mas não é a piedade que pedimos, vida!


Não queremos piedade
daqueles que nos roubaram e nos mataram
valendo-se de nossas almas ignorantes e de nossos corpos macios!
Piedade não trará de volta nossas ilusões
de felicidade e segurança,
não nos dará os filhos e o luar que ambicionávamos.
Piedade não é para nós.

Agora, vida, só queremos que nos dês esperança


para aguardar o dia luminoso que se avizinha
quando mãos molhadas de ternura vierem
erguer nossos corpos doridos submersos no pântano,
quando nossas cabeças se puderem levantar novamente
com dignidade
e formos novamente mulheres!
(SOUSA, 2016, p. 79-82)

Nesse poema, Noémia de Sousa volta o seu olhar denunciador para os problemas
enfrentados pelas negras moçambicanas prostituídas para sobreviver aos terrores do
colonialismo e, dessa forma, tornam-se objeto sexual de homens que as submetem a
humilhações e usurpam a sua dignidade humana.
O pronome oculto “nós” expresso nos primeiros versos da estrofe que encabeça o
poema – e que aparece também ao longo do poema – remete a uma voz feminina coletiva
de denúncia do sofrimento pelo qual passa a mulher negra moçambicana: “Somos
fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço./ Fugitivas das Munhuanas e dos
Xipamanines,/ viemos do outro lado da cidade/ com nossos olhos espantados,/ nossas
almas trancadas,/ nossos corpos submissos escancarados”.
De acordo com Oliveira e Coelho (2019), a voz poética coletivizada denuncia o
lugar de subserviência das mulheres negras no contexto histórico de Moçambique
colonial, levando-as a buscarem a prostituição como um meio de sobrevivência:

O eu poético coletivo chama a atenção para um grupo representativo da


sociedade moçambicana, as jovens mulheres negras que, vivendo num
contexto social de exclusão, tiveram que se submeter à prostituição,

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Francisca Jocineide de Alencar Silva, Josyane, Malta Nascimento, A poesia de Noémia de Sousa: uma...

oferecendo-se aos colonizadores no cais do porto. (OLIVEIRA; COELHO,


2019, p. 140-141).

Os versos do poema “Moças das docas” referem-se às condições sociais


degradantes das colonizadas que, “atraídas pelas luzes da cidade”, fogem de sua terra
natal em busca de uma melhor qualidade de vida e passam a vender seus corpos e, com
isso, degradam-se ainda mais, vivendo à margem da sociedade. As moças
moçambicanas que trabalham nas docas tentam escapar da realidade que as oprime e as
deixa sem perspectiva de mudança no amanhã, o qual será um “retrato fiel do que
passou,/ sem uma pincelada verde forte/ falando de esperança”.
Mais adiante, o eu lírico, "sem desespero nem esperança", confessa que
brevemente fugirá “das ruas marinheiras da cidade” e retornará, com marcas indeléveis
no corpo, ao lugar de onde partiu, isto é, “aos telhados de zinco pingando cacimba,/ ao
sem sabor do caril de amendoim/ e ao doer do corpo todo, mais cruel, mais insuportável”.
Nos versos finais do poema, o eu poético rejeita a piedade, uma vez que esta não
conseguirá restituir a dignidade e as ilusões perdidas: “Piedade não trará de volta nossas
ilusões/ de felicidade e segurança,/ não nos dará os filhos e o luar que ambicionávamos”.
Em vez de piedade, o eu lírico, representando todas as mulheres moçambicanas, em
particular as moças que habitam as docas, suplica à vida por esperança de um amanhã
que restaure a dignidade da mulher prostituta: “Agora, vida, só queremos que nos dês
esperança/ para aguardar o dia luminoso que se avizinha/ quando mãos molhadas de
ternura vierem/ erguer nossos corpos doridos submersos no pântano,/ quando nossas
cabeças se puderem levantar novamente/ com dignidade/ e formos novamente
mulheres!”.
Carvalho e Ribeiro (2017) consideram que Noémia de Sousa consegue transpor
para seus versos a vida das “mulheres afastadas de sua dignidade pela violência
cotidiana, esquecidas em sua dor e em seus sonhos findos” (CARVALHO; RIBEIRO,
2017, p. 10), ou seja, por intermédio das palavras a poetisa descreve de forma sutil a
problemática do cotidiano das mulheres negras de Moçambique que vivenciam em seus
corpos a violência da prostituição e, assim, perdem seus sonhos e sua dignidade.
Assim como o poema anterior, os versos de “Apelo” debruçam-se sobre a condição
da mulher negra moçambicana marginalizada no período colonial, em que a voz feminina
metaforiza o coletivo das mulheres que lutam cotidianamente pela sobrevivência,
desempenhando funções de baixo prestígio social, como é o caso da vendedora de

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Francisca Jocineide de Alencar Silva, Josyane, Malta Nascimento, A poesia de Noémia de Sousa: uma...

carvão, que outrora tinha por ofício a agricultura, daí a referência ao termo mato em “irmã
do mato”.
Apelo

Quem terá estrangulado a tua voz cansada


de minha irmã do mato?
De repente, seu convite à ação
perdeu-se no fluir constante dos dias e das noites.
Já não me chega todas as manhãs,
fatigada da longa caminhada,
quilómetros e quilómetros sumidos
no eterno pregão: “MACALA”!

Não, já não me vem, molhada ainda da cacimba


ajoujada de filhos de resignação...
Um filho nas costas e outro no ventre
-Sempre, sempre, sempre!
E um rosto resumido no olhar sereno,
um olhar que não posso recordar sem sentir
minha pele e meu sangue desfraldarem-se, trémulos,
palpitando descobrimentos e afinidades...
- Mas quem terá proibido seu olhar imenso
de vir alimentar-me esta fome de fraternidade
que minha mesa pobre não consegue nunca saciar?

Iô mamanê, quem terá fuzilado a voz heróica


de minha irmã do mato?
Que desconhecido e cruel cavalo-marinho
a terá fustigado até matá-la?
- A seringueira do meu quintal está florida.
Mas há um mau presságio em suas flores roxas,
em seu perfume intenso, bárbaro;
e a capulana de ternura que o sol estendeu
sobre a leve esteira de pétalas
aguarda desde o verão que o filhinho de minha irmã
se venha nela deitar...
Em vão, em vão,
e um xirico canta, canta, poisando no caniço do quintal,
para o filhinho de minha irmã,
para o filhinho de minha irmã ausente,
vítima das madrugadas nevoentas do mato.

Ah, eu sei, eu sei: da última vez, havia um brilho


de adeus nos olhos ternos,
e a voz era quase um sussurro rouco,
desesperado e trágico...

Ó África, minha mãe-terra, diz-me tu:


Que foi feito de minha irmã do mato,
que nunca mais desceu à cidade com seus filhos eternos
(um nas costas, outro no ventre),
com seu eterno pregão de vendedora de carvão?

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Francisca Jocineide de Alencar Silva, Josyane, Malta Nascimento, A poesia de Noémia de Sousa: uma...

Ó África, minha mãe-terra,


ao menos tu não abandones minha mãe heróica,
perpetua-a no monumento glorioso dos teus braços!
(SOUSA, 2016, p. 83-84)

Nos versos iniciais do poema, a voz poética questiona à África o sumiço de sua
irmã do mato, a vendedora de carvão, que teve a voz silenciada, não sendo mais possível
ouvir seu grito a anunciar, em língua ronga, a mercadoria que vendia, o macala, que
significa carvão:

Quem terá estrangulado a tua voz cansada


de minha irmã do mato?
[...]
Já não me chega todas as manhãs,
fatigada da longa caminhada,
quilómetros e quilómetros sumidos
no eterno pregão: “MACALA”!
(SOUSA, 2016, p. 83)

A mulher-mãe moçambicana, além de ter sido submetida aos incontáveis


sofrimentos em decorrência da dominação colonial, teve de mudar de profissão a fim de
sobreviver em uma sociedade patriarcal que tira tudo do colonizado, inclusive o direito de
desempenhar a função que desejar, conforme assinala Bonini (2018):

A tarefa de garantir a vida à geração que cresce “um filho nas costas” e da
próxima que ainda está no útero “e outro no ventre”, torna-se árdua para a mulher
que tem de sair do seu bairro periférico para ganhar seu sustento como vendedora
ambulante de carvão, já que a agricultura lhe foi roubada. A maternidade agora,
ao invés de realização torna essa mulher “ajoujada de filhos e resignação”.
(BONINI, 2018, p. 81).

Nos versos que finalizam o poema, é por meio de um apelo que o eu lírico suplica à
Mãe África que abrigue em seus braços a vendedora de carvão, a mulher trabalhadora
que andava com “um filho nas costas e outro no ventre” e que teve sua vida extirpada: “ao
menos tu não abandones minha mãe heróica,/ perpetua-a no monumento glorioso dos
teus braços!”. A África torna-se, então, a mãe que aconchega suas filhas resignadas e
exploradas pelo colonizador, mas que ainda encontram dentro de si a resiliência que as
torna fortes e capazes de suportar as adversidades provenientes das condições sociais
menos favoráveis à mulher negra colonial.
Por fim, o poema “A Mulher que ria à Vida e à Morte” tematiza a resiliência da
mulher negra que sofre as duras penas do patriarcalismo e do racismo e mesmo assim

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Francisca Jocineide de Alencar Silva, Josyane, Malta Nascimento, A poesia de Noémia de Sousa: uma...

não teme a vida nem a morte, suportando até o insuportável. Vejamos o poema
supracitado:
A Mulher que ria à Vida e à Morte

Para lá daquela curva


os espíritos ancestrais me esperam.

Breve, muito breve


tomarei o meu lugar entre os antepassados

À terra deixarei os despojos do meu corpo inútil


as unhas córneas de todos os labores
este invólucro sulcado pela aranha dos dias

Enquanto não falo com a voz do nyanga


cada aurora é uma vitória
saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo

Oyo, oyo, vida!


Para lá daquela curva
os espíritos ancestrais me esperam
(SOUSA, 2016, p. 138)

Nas primeiras estrofes do poema, o eu lírico feminino premoniza o iminente retorno


do seu corpo inútil ao lugar dos antepassados, que se encontra espaço-temporal perto da
mulher que ria tanto à vida quanto à morte: “Para lá daquela curva/ os espíritos ancestrais
me esperam./ Breve, muito breve/ tomarei o meu lugar entre os antepassados”, deixando
à terra o seu corpo inútil e maltratado pelos anos de labor árduo. Nesse mesmo diapasão,
observa Freitas (2010) que:

A inutilidade do corpo é algo que merece nossa atenção. A idéia de que a


terra tudo absorve, quem do barro é feito para o barro volta, reforça tanto
ideologias bíblicas, como mitologias africanas. A presença dos ancestrais
também marca o paganismo de algumas comunidades de linhagem bantu.
Essa linhagem também é evidenciada pelo nyanga, uma espécie de
sacerdote ou curandeiro que possui o dom de medicar com ervas e se
comunicar com os ancestrais e outras divindades. (FREITAS, 2010, p. 9).

Enquanto o dia de se comunicar com a voz do nyanga não chega, ou seja, o dia de
regressar aos ancestrais, o eu poético saúda cada aurora com ar triunfante de vitória, por
ter vencido mais uma longa e cansativa jornada de trabalho: “cada aurora é uma vitória/
saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo”. Os dois últimos versos do poema
enfatizam a ideia de retorno ao mundo onde habitam os espíritos ancestrais, como uma

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Francisca Jocineide de Alencar Silva, Josyane, Malta Nascimento, A poesia de Noémia de Sousa: uma...

espécie de desejo de se tornar imortal: “Oyo, oyo, vida!/ Para lá daquela curva/ os
espíritos ancestrais me esperam”.
Os versos de Noémia de Sousa são simples e ao mesmo tempo de uma
profundidade poética desmedida, a ponto de transportar o leitor para o espaço-temporal
das experiências aterrorizadoras vividas pela voz poética feminina durante a colonização
portuguesa em solo moçambicano e, além disso, os versos de Noémia denunciam as
cicatrizes deixadas pelas violências do colonialismo no corpo negro da mulher africana,
que jamais o tempo poderá curar.

Considerações finais
O presente estudo sobre a descrição da figura feminina durante o contexto colonial
moçambicano no livro “Sangue negro”, de Noémia de Sousa, nasceu da curiosidade de se
pesquisar as representações da mulher na obra supracitada a partir da perspectiva de
que o domínio colonial português em Moçambique revelava-se imbuído de preconceito
racial, violência e centrado em um jogo de aparências que reprimia a mulher negra. Por
conseguinte, pretendia-se alargar a discussão em torno da voz feminina marginalizada na
sociedade moçambicana de então.
Diante disso, a pesquisa teve como objetivo geral analisar os poemas “Moças das
docas”, “Apelo” e “A Mulher que ria à Vida e à Morte”, de autoria da poetisa moçambicana
Noémia de Sousa, e identificar a situação da mulher negra no período colonial em
Moçambique. A partir da análise dos poemas, constatou-se que na sociedade
moçambicana, à época do colonialismo, a mulher negra sofreu fortemente as atrocidades
em decorrência do sistema colonial português e teve sua voz silenciada pelo dominador.
Outrossim, este estudo nos permitiu chegar a algumas conclusões, tais como: A
voz poética e a história moçambicana se entrecruzam na medida em que a literatura
constrói o momento histórico vivenciado pelos moçambicanos no sistema colonial, cuja
representação da figura feminina é tecida a partir da evocação de um passado permeado
de discriminação racial à mulher negra africana, em particular a mulher moçambicana. A
linguagem poética dos versos dos poemas aqui analisados aproxima o leitor do cenário
colonial da época das vivências narradas e sentidas pelo eu lírico feminino negro, que
sofre e luta para sobreviver ao colonialismo, uma vez que o transporta para o momento
histórico ao qual se debruça a narrativa poética, ou seja, à realidade do colonialismo
português imposta à mulher negra. Os versos sugerem aos leitores hodiernos evidências

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Francisca Jocineide de Alencar Silva, Josyane, Malta Nascimento, A poesia de Noémia de Sousa: uma...

da violência atroz e do silenciamento do eu lírico feminino infligidos pelo sistema colonial


opressor em Moçambique, tais como o sofrimento, a dor e a angústia da mulher negra
diante do colonialismo.
Salientamos que o estudo realizado apresentou limitações quanto ao tamanho da
amostra, já que foram utilizados apenas quatro poemas de um universo de 46 poemas
que compõem o livro “Sangue negro”. Pesquisas futuras poderão ampliar o número da
amostra e tecer outras discussões que porventura se mostrarem necessárias, como a
descrição da criança nascida mulher e negra na sociedade moçambicana colonial.
Por fim, espera-se que este estudo consiga ampliar os conhecimentos acerca das
representações do papel feminino durante o período colonial moçambicano na obra
“Sangue negro” e, assim, levar os leitores a repensar e desconstruir o racismo e o
preconceito de gênero na sociedade atual, além de contribuir com as demais pesquisas
em torno do objeto analisado.

Referências
BONINI, Roseleine Vitor. A poética de Noémia de Sousa: História e identidade em
Moçambique colonial. 2018. 119 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Programa de Pós-
Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 2018. Disponível em:
https://doi.org/10.11606/D.8.2019.tde-01082019-141948. Acesso em: 29 ago. 2021.
CARVALHO, Alice Aparecida de; RIBEIRO, Elaine. Noémia de Sousa, a “cantadora dos
esquecidos” na Moçambique colonizada (1948-1951). Revista (Entre Parênteses), Minas
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CHIZIANE, Paulina. [Testemunho] Eu, mulher... Por uma nova visão do mundo. Revista
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Horizonte, nº 16, p. 13-69, set. 2007.
FREITAS, Sávio Roberto Fonseca de. Noemia de Sousa: poesia combate em
Moçambique. Cadernos Imbondeiro, João Pessoa, vol. 1, nº 1, 2010. Disponível em:
https://periodicos.ufpb.br/index.php/ci/article/view/13521/. Acesso em: 30 out. 2021.

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Francisca Jocineide de Alencar Silva, Josyane, Malta Nascimento, A poesia de Noémia de Sousa: uma...

NOA, Francisco. Literatura moçambicana: os trilhos e as margens. In: RIBEIRO,


Margarida Calafate; MENESES, Maria Paula (Org.). Moçambique: das palavras escritas.
Porto: Edições Afrontamento, jul. 2008, p. 35-45.
OLIVEIRA, Jaqueline; COELHO, Cláudia. A resistência poética em Noémia de Sousa.
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PADILHA, Laura Cavalcante. Bordejando a margem (escrita feminina, cânone africano e
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SOUSA, Noémia de. Sangue Negro. São Paulo: Ed. Kapulana, 2016.

Recebido em: 20/03/2022


Aceito em: 25/05/2022

Para citar este texto (ABNT): SILVA, Francisca Jocineide de Alencar; NASCIMENTO,
Josyane Malta. A poesia de Noémia de Sousa: uma descrição da mulher moçambicana
em “Sangue negro”. Njinga & Sepé: Revista Internacional de Culturas, Línguas Africanas
e Brasileiras. São Francisco do Conde (BA), vol.2, nº 1, p.371-388, jan./jun. 2021.

Para citar este texto (APA): Silva, Francisca Jocineide de Alencar; Nascimento, Josyane
Malta. (jan./jun. 2022). A poesia de Noémia de Sousa: uma descrição da mulher
moçambicana em “Sangue negro”. Njinga & Sepé: Revista Internacional de Culturas,
Línguas Africanas e Brasileiras. São Francisco do Conde (BA), 2 (1): 371-388.

Njinga & Sepé: https://revistas.unilab.edu.br/index.php/njingaesape

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